Chão dos Lobos

Transcrição

Chão dos Lobos
JURANDIR, Dalcídio. Chão dos Lobos. Rio de Janeiro: Record,
1976. 291p.1
[5] Sempre ausente do Ginásio, às aulas não faltava. Sempre em
Cachoeira, aqui escondido. Da José Pio, Ana, jaqueira, da velha avó,
não sabia, deles tão perto, por isso mesmo mais separado. Maré vem,
maré vai, três linhas para mãe: me mande ao menos o Dicionário,
aquele, na mochila do búfalo. Sem resposta.
Pois sigo na Guilherme: surpreender no chalé o silêncio e os
ratos, entra pelos fundos, abre a dispensa, reencontra dentro da
garrafa a borboleta queimada há anos, está na saleta, o Major folheia
o catálogo, saltam do álbum as francesas nuas e embalam a rede.
Ficou na escadinha da Port Of, vendo a lancha sair. Vendo a
mãe, à noite, guiada pela acuraua, atrás de Maridonha pelo campo, de
bruços na beira-rio pescando o filho afogado. Aquela conversação na
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Texto de “orelha” (sem indicação de autoria): Chão dos Lobos [obra
concluída em 1968] é o seguimento da obra que Dalcídio Jurandir escreveu, em
termos de romance, em longos anos de fervor e solidão. A raiz da saga amazônica
está em Marajó, a grande ilha na foz do Amazonas, onde Alfredo, personagem
principal, desde Chove nos campos de Cachoeira, atravessa paisagens e costumes,
girando em torno de humildes seres de pé no chão de figuras de casario e latifúndio.
/ Em Chão dos Lobos, Alfredo, em plena juventude, encontra-se em Belém, a
cidade mágica e injusta, manipula sonhos, faz e desfaz esperando, se deixa envolver
pelo encanto das, primeiras surpresas, solto e aflito no descobrimento do amor, da
injustiça, da incompreensão, da pobreza extrema, do Não se Assuste, onde se
acumulam gentes e bichos e se recolhe a triste donzela que le alto o Carlos Magno à
mãe paralítica e cega com um menino que toca a flauta rachada. / O romancista,
neste volume, reúne quadros e situações de intensa dramaticidade, conflitos e cenas
em que se movimentam esquivos e pungentes personagens de extraordinário
realismo. / O capítulo de Guimarães, a cidade dos pianos mudos, a viagem da
professora pelo Baixo-Amazonas, o episódio do Oiapoque, a aparição de Roberta,
enfeitiçada pelo rio e pelo boi-bumbá, a fuga de Alfredo a bordo do navio do Lóide,
sustentaram-se como páginas de comovente veracidade. / Um livro bem brasileiro,
de leitura empolgante, que confirma as qualidades do romancista marajoara.
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escada do chalé — a história do lilás, o pescador obrigado pelos
fazendeiros a desenterrar o defunto, irmão deles, te gruda na morte
dele, na morte que fizeste... — distanciava-se. Agora ouve a mãe em
Muaná, entre os miritizeiros do avô, sentada nas pedras, no limo, nas
lendas do Araquiçaua. Longe o som da moringa na camarinha de São
Pedro, atravessando a baía. Do barco, que se afundava na memória,
subia o rosto da mãe, ao som da moringa as águas serenavam.
Chover não passava. O céu aquele chumbo. Bondes carregados
de mau humor, carvão e paneiro, de retardatários bocejando. A que
rumo vai o rabecão da Santa Casa? O galego, tabuleiro na cabeça:
A tainha! A pescada!
[6] Via pela cidade uma apressada gulodice, rápidos comedores
de pupunha e camarão frito, mingaus bebidos num repente, todo o
arroz doce numa colherada, e cedo esvaziam açougues, aparadores de
peixe, panelas de munguzá e caruru no Mercado de Ferro. A manhã,
na feira da praia, se cobria de vinagreira, maxixe e cabelo de mulher.
Içando os panos molhados, as canoas se enxugavam. Parda uma,
subia a branca, azul aquela, esta vermelha alta, velame em cima,
desabrochavam na maré seca, velas em girassol. Lá fora o rio passado
a ferro. Na praia, as amassadeiras roxeavam mão e beiço provando
açaí nos paneiros, donas no exigir o mais bom e a menos preço, os
vendedores remancheavam.
Queria ver no rosto das amassadeiras e dos sobrados o reflexo
do velame ao sol. Algumas janelas. Algum azulejo, certos semblantes.
Aqui no aparador do Dr. Raiz, que raiz, erva, grude, miolo ou dente
de bicho, lhe servia de remédio ou lhe guiava o passo? E que passo?
Esse, do velho aposentado, resmungando: não é mais aquele tempo.
Hoje só dá caranguejo magro. Belém? Belém? Aquele tempo? Ah!
Era cada caranguejo! Cada um gordo! Todo esse Mercado de Ferro de
hoje não vale a unha de um daqueles caranguejos tão vivos da Vigia,
vivões! Que me diz, Dr. Raiz?
Junto às proas, Alfredo come a posta de peixe frito do tabuleiro.
Nisto, no ombro o braço nu pitiando a gurijuba. O caboclo, calção lá
embaixo, casquento de sol, o muque tatuado, lhe estende a mão cheia
de farinha:
— Suco! Não me coma assim tão escoteiro, perde a saborosidade, estraga é o peixe, assim, não, meu camarado. Apare esse
pingo aqui da mea mão, não repare o tico. Já o senhor aí sem um cuí,
um bago...
O caboclo lhe vira a farinha na palma da mão, a munheca
suando, suando a tatuagem, o bonde passa, o caboclo lambendo os
beiços, no pano de fundo das velas içadas. Um giro, corre a saltar
pelo cordame, enfia-se num toldo, agora na cana do leme, devorando
a meia melancia como se a tivesse ganho num campeonato.
[7] Alfredo jogou a farinha na boca à moda canoeira. O gosto
que deu no peixe, no comer assim, já de frente para o bonde! Também
lambia os beiços. De pé sobre a cana do leme, o tripulante misturava
na melancia a cor das velas, o sol nos mastros, aquele veterano
sossego dos telhados e tudo comeu, muito inocente.
Corre a doca e a praia, corre entre os jerimuns e vendedeiras de
cheiro, abriga-se entre as velas que parecem acesas. Esperou: na
canoa que baixou o pano, o tio chegando? O tio nunca chegava. Já a
maré pelos igarapés de Belém abria, pelo fundo, a palma da mão e
embalava a cidade.
Bagé adentro, parou defronte do casarão de barra descascada.
No beiral murcho, o urubu de asa aberta. O Orfanato. Bateu. Lá de
cima, a visagem puxa o cordão da porta. O que ele quis dizer, não
disse (Irmã, a senhora conheceu uma que aqui morou, todo dia
gramando palmatória, horas de joelho, uma por nome Ana? De tanto
apanhar bolo, escarrou, com perdão da palavra, o Corpo de Nosso
Senhor Jesus Cristo?), a porta estronda-lhe na cara, se dá conta:
Lá está o Arsenal de Marinha guardando as freiras. Melhor
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entrarmos nesta passagem onde só é lavação de roupa e serragem.
Salta entre os lençóis estendidos, retrocede, acertando o passo com o
silêncio e o sono destes sobradinhos beatos. Que será que até sentou
na calçada do Carmo? É pelo sangue, aqui entranhado na laje,
daquelas guerras?
Puxa pelo barbante a folha do portão: no encharcado, o correr
de quartinhos de madeira com o magro alpendre, é a estância. Aí, no
2, a vinte o aluguel, guardou-se.
Arma a rede, embala-se, telhados, velas, lençóis se misturam no
cochilo. A laje, menos a laje, aquele sangue, pesava-lhe. A porta do
Orfanato atroava. À sua rede, aqui no tão abafado, chegavam os sinos
de São Raimundo, o [8] bate-|boca do casal português encarregado da
estância, e o barulho, aqui bem junto, bem saboreado, no banheiro de
zinco, rente da parede. A vizinha se assustando: Mãe da Misericórdia,
um tamanho cururu! E este grilo! Ah, gelume d’água! chamando a
atenção do mundo para o seu banho. E tudo isso embalava mais a
rede, fazia correr a tarde; apitava as seis, Folha!, passava o jornaleiro.
Deste jornal escorre um fio de remota ou absurda notícia de
Calcutá ou do posto policial do nosso bairro. Quem dá notícia daquele
instante da farinha ao pé do tabuleiro e do velame ao sol? O jornal
sujava os dedos. Estaria Rodolfo, no chalé, compondo o Cachoeira
Nova? Neste, nunca impresso por falta de papel, o tipógrafo registra a
vida de Cachoeira que ele faz de conta, acontecimentos que tão
sonhava, logo distribui o sonho pelas caixas; desfeita a composição,
volta a compor, os passarinhos pela varanda, como repórteres,
entrando e saindo.
Mas este aqui na mão, a duzentos réis, responde a esta informe
indagação de tudo? De todo aquele mar lá fora, esta escuminha de
tinta, esta bolha de tempo. As cartomantes se anunciavam. Também o
Porca Prenha? No novo escritório? E este piano aqui em leilão? O
compacto obituário. Como morre esta cidade! Chega de Guamá, mas
sem aqueles bons bandoleiros, a lancha Antonina. O jornaleiro atira o
vespertino na sala do major reformado que pula da sesta, café! pede
aos berros, engolindo o noticiário. Da outra janela, desce a cadeira de
vime para a calçada e logo na porta, pijama, calva e charutinho, o
guarda da Saúde, os óculos pela vizinhança, um salamaleque para a
senhora que passa, o riso desdentado e feliz, coçando o pé na chinela,
agora estira-se no vime com o privilégio de abrir a folha, sua
exclusividade, seu regalo, tudo no mundo só acontecia para o seu
Ribeiro saber e comentar, um pouco antes do aperitivo e da janta.
Vendo o Alfredo, que lhe fazia um aceno, levantou-se num festivo
cumprimento, jornal em punho, o sotaque de Mossoró.
[9] — Boa tarde, cavalheiro. Será que pela boquinha da noite
temos chuva? É que é a palestra do General Diocleciano. Às oito.
Tenho de ouvi-lo. Já leu o valoroso vespertino? Então? Domingo em
Marituba, na nossa caravana? Chegue-se ao nosso ideal excursionista,
ao nosso Garimpeiro. Um banho naquele igarapé, concidadão, lava os
refolhos. A água lá, vê-se a areia do fundo. Também assim voltamos
de Marituba de alma transparente, creia. Um pouco de plena natureza!
Voltou ao vime, senhor do mundo, e Alfredo, agora, olha é para
a D. Violante, da Cachoeira, na máquina de costura, catando nos
jornais trazidos pela Lobato, uma catástrofe, a derrubada de um trono,
a punhalada num grande da República, com um ora bolas! se não via
nada, afasta o jornal, virando a máquina de fazer calça de homem.
D. Violante! Agora recorda: Rapazinho, teu pai já te deu pra ler
o Carlos Magno? Não? Pois tu não sabes que dois filhos meus têm
nome tirado do livro?
Aqui, no jornal e nas chinelas, seu Ribeiro mergulhava. Então,
entreabrindo as rótulas, na casa de lado, aparecia, furtiva. a cabeça da
filha-do-italiano, só o cabeça. só um repente nada mais. E era tudo. A
casa sempre num silêncio, trancada. Sabia-se do gramofone no
consolo, o reposteiro no corredor, o cão, enorme, mudo, se amontoava
no sofá. Que a moça só era ali toda hora, atrás da veneziana, à
espreita, Alfredo desconfiava. Na rua, passava com bandós, toda-toda
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abotoada, rosto atrás do leque, alta, fugidia. Alfredo seguia-lhe o
passo, o perfume, uma música, uma luz da Itália entrava pela estância,
embalava-lhe a rede. Uma noite, na casa dela, soou, fanhoso, o
gramofone, logo parou. Atrás da veneziana, na sala apagada, a moça
espiava, Só sair na rua, ganhava aquela altura, sem ver e ouvir nada,
sem dar bola a ninguém, não por soberbia mas por nunca se dar conta,
muito italiana. Ali, nas rótulas, dobrava-se, atenta, ávida dos rumores
e movimentos da rua, desabotoada, [10] des|calça. Seu Ribeiro, ao vêla na rua, vergava-se a dar-lhe passagem, sussurrando para Alfredo:
— A nossa madona, a nossa madona.
Alfredo, atrás dela, seguia para a Itália. Seu Ribeiro advertia-o:
— Concidadão! Concidadão!
Como ciumento, no risco de saber que a moça, lá um dia, quem
sabe? por distração ou engano, desse pelo rapaz, respondendo-lhe ao
boa tarde, O viajante viajava pela calçada, roçando na janela,
esperando ver ao menos entre as rótulas a pestana da espiona, ou
sentir-lhe o respirar. Só uma vez lhe ouviu a voz, surda, ríspida, não
sabia se um tanto ressentida ou habituada àquela sala, àquela espreita,
àquele cão no sofá. Alfredo passou três vezes, três vezes na esquina,
sabendo-se espiado. A dama ali dentro, na casa adormecida, os
incessantes olhos clandestinos.
Alfredo entrava. Pelo encharcado os inquilinos se serviam da
mesma torneira e do mesmo banheiro onde Alfredo despejava a lata
cheia na velha tina, tomando banho o mais que depressa senão vazava
tudo. E se via, muito afobado, surpreendido pela vidente da
veneziana, até aqui vem o olhar da curiosa? Lá da sala fechada
olhando o mais miúdo de todos nós? À roda do banheiro e da torneira,
as crianças merendavam esta e aquela sobra de sabão, rolam sabugo
de milho; de lama e do lixo faziam brinquedos, armas para briga e
suas asas de anjo. Os cachorros disputavam prato cuia panela que
lambiam por teima e era apanhar guri distraído lhe tiravam a ração.
Na ponta das estacas, o urubu tomava nota. Aos fundos, num aguaçal
grosso, atolava-se o Não-Se-Assuste, renque de palhoças onde a mãe
do Ferrinho, com aquele montão de roupas, o seu primeiro sangue
dentro da tina cuspiu. E estes desconhecidos na soleira, calados, no
visgo que o ar trazia depois de chuva? Ali encolhidos, respiravam
calados, que nem moscas no batente de chão, destilando sonolência.
A lama entrava pelas portas. Ana, D. Dudu, o sótão da moura, a
jaqueira, a mãe errante [11] no campo, a moça atrás da veneziana,
coavam suas sombras no esverdinhado desta poça d’água. Batia na
porta o gringo, ruivo, regougante, vendendo quadros de santo a prestação.
— Se me trouxer um daquela italiana, compro.
— Que santa italiana, senhorr, que santa italiana, senhorrr?
— Da casa do lado. Do 142. Depressa. Compro.
Corriam rifas, vinha o bicho que deu, o rabecão veio cobrar um
defunto, também saiu o anjo, um morre-não-morre muitos meses, que
a solteirona, a D. Sebastiana dos Prazeres, criava.
— Já posso ir depois bem sossegada. Nossa Senhora me
escutou. Agora ela te leva. Também tu meu não eras. Do pecado foste
filho, gerado no erro foste. Faz muito tempo que te dei a ela. Pode ir,
meu filho.
A voz pingava no silêncio, no calor, no zumbido lá fora das
meninas que queriam carregar o anjo. Mas Alfredo se adianta, apanha
o caixão como um brinquedo, carregando aquele de Maninha, que só
ele queria carregar pelo campo, entre as vacas, sozinho no cemitério a
abrir a cova com as mãos e assim guardar a irmã como guardou as
cinzas da borboleta. A seu lado as meninas zumbiam desaprovação e
raiva: quem mandou que ele... quem pediu? Ser visto pela moça da
veneziana, carregando o anjo, Alfredo também queria. E olhou para a
tal janela. Fechada. Por certo a abelhuda espiava. Voltou à barraca da
D. Sebastiana dos Prazeres:
— Me separa por lá um cantinho pra mim, meu filho, nem que
seja no chão que aqui neste dos Lobos já tudo é por demais
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incômodo.
Alfredo ouvia era a voz da nhá Lucíola, aquelas noites:
ela até que desejava a morte dele, os dois levados por Nossa
Senhora. Então lá em cima, aí, sim, tua mãe sou, meu filho és, certa
de que te pari.
[12] Mal saiu o anjo, entra o investigador a arrancar lá de dentro
do Não-Se-Assuste um rapazinho ladrão que trazia no pescoço cruz,
rosário e várias orações no bolso contra cadeia e bala. Tem licença
dos santos, autorizado por eles a roubar, resmungou o encarregado da
estância; voltavam as mulheres do mercadinho trazendo a piramutaba
da viração, um quilo de “mulher-ingrata”, já meio fedida. E nem uma
vez entrou, por milagre, a cabeça no portão, nem um só momento a
sem-nome da veneziana. Agora é a velha do outro sábado, chapéu de
sol cobrindo a imagem que carregava: Esmolinha pro São Miguel.
Esmolinha por São Miguel. Estância e Não-Se-Assuste se benziam
sem pingar na mão da pedinte um mel coado. A velha, na rua, viravase para o portão: São Miguel, meu São Miguelzinho, me façazinho
isto pra mim, vos rogo, me jogue todos esses enjeitados naquele
caldeirão, já-já, me abra aí debaixo da bunda deles aquela goelona
fervendo. Alfredo seguia a velha que parava na janela da italiana, e
dois dedos alvos por cima da rótula, ariscos, deixavam cair na mão da
outra a moedinha.
Pois bem ao pé do portão, um lunfa correndo não tomou o São
Miguel da velha? Veio varando o Não-Se-Assuste, como, onde se
escondeu, ninguém soube. O soldado de polícia, com a velha atrás,
bate as palhoças, uma a uma, as lavadeiras num vozerio: Não tinha
nem um ladrão na casa delas. Nem um São Miguel nem dentro dos
baús nem na privada. Só se por dentro do nosso peito, debaixo da
nossa saia! O ladrão era o próprio santo, arre!, exemplou a bruxa.
Todo quarteirão varejado, invadido o Não-Se-Assuste. De lá, de onde
espiava, a moça da veneziana só espiando, e via tudo. Ou o ladrão,
entrando pelo telhado, foi depor o São Miguel aos pés dela? Mal saiu
o soldado e a velha, o surdo alarma: — Se escondam... o senhorio do
Não-Se-Assuste.
— Por conta dos atrasados arrecado já-já essa rouparia toda aí
da corda e do quarador! Onde estão as lavadeiras? Mando o Dr.
Viriato requerer o despejo! Apareçam as lavadeiras!
[13] Ao pé da bica, guarda-sol aberto, o senhorio esperava.
— O Dr. Viriato, é o Dr. Viriatinho? — perguntou Alfredo,
examinando aquela figura azinhavrada, de guarda-sol aberto.
— É, é o Dr. Viriatinho por alcunha o Porca Prenha, o meu
advogado.
— O menino, Nossa Senhora levou, seu Batista, tenha uns
diazinhos mais de santa paciência.
Era a D. Sebastiana dos Prazeres pondo a cabeça de fora. A
vizinha lhe varria a sala.
— Pois tome dois mil réis. Ponha meu nome na lista da
subscrição do enterro. Será mais um anjo por nós lá nas alturas, sim.
E a senhora, D. Sebastiana, os dois meses que atrasou, pra quando?
— O tempo que eu possa sair daqui seguindo o anjo, seu
Batista. Espere só um tempinho que logo o senhor ocupa o que é do
senhor, o que é seu, seu é, sua posse, isso não desconheço. O alheio é
o alheio, é a lei. Mas só espere o pouquinho que me falta pra juntar o
pé. Capaz até do meu espírito ir deixar a chave, a chave, não, que não
tem, o japá com que fecho a porta, deixar bem embaixo de sua rede.
— Rede, não, D. Sebastiana. A conselho médico, durmo em
cama.
— Então, na sua cama.
— Olhe que um despejo pela Vara da Justiça não é uma folia.
Aquele Dr. Viriato nisso é mais que uma fera. Duvidou, se apropria
das roupas. Não sou eu, é o meu advogado. Ó lavadeiras! E eu pago a
taxa aos Lobos, que isto é chão dos Lobos, por lei antiga do Rei de
Portugal.
De guarda-sol aberto, o senhorio foi na porta de D. Sebastiana,
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fez cair na mão dela duas moedas de dez tostões.
— Nossa Senhora que lhe acrescente.
— Os dois meses, D. Sebastiana, pra quando?
Já não lhe disse, seu Batista? O anjo já não foi na frente
escolher e marcar o meu cantinho?
[14] — E as lavadeiras? Duvidou, duvidou, o meu doutor
manda fechar a água. Tranca a água, tranca a roupa. As lavadeiras,
aonde andam? Pessoal parece que nunca viu a Vara da Justiça. Tranca
a água. Onde estão as lavadeiras?
D. Sebastiana agora só dizia: — Ah, agora é... ah, agora é...
Alfredo batendo, ensaboando, torcendo, não as roupas mas seus
espantos, seus temores, seus silêncios, sua ronda pela janela da
espiona. Vem e vai, folheando o Atlas, é o lente bêbado: Singramos,
agora, os mares da Hélade. Alfredo se lembrava do seu Antonino
Emiliano abrindo o casco do caranguejo para daí tirar a Vênus que
não era senão D. Celeste desembarcando do baile no Trombetas.
Subia no alpendre o agente de seguros e de aparelhos contra surdez:
— Aqui dou com o nariz na porta. Minha freguesia é a outra,
bem sei. Mas sempre me condói, gostaria de fazer um seguro aí, aí
que é o que tem de mais inseguro nesta cidade. Quanto aos aparelhos
de surdez então é bater debalde. Aqui? Vou para São Jerônimo,
Nazaré, Serzedelo, o comércio... É que a maioria dos ricos surdosmudos são.
Também subia no alpendre a mocinha vesga, um antigo anjo de
procissão de São Raimundo, de fita na testa:
— Eu, se tal pudesse, um dia o que só criava no meu quintal?
Só-só borboleta. Vender as enfiadas no vapor inglês. Borboletas de
raça. E tua roupa, quem lava? Diz depressa, quem lava?
Demorava sobre Alfredo os olhos zanoios, meio esverdeados,
sempre olhavam a outra coisa, ou parecia a Alfredo que ele era
sempre este e outro no olhar dela, qual dos dois era ou não, nem um
nem outro? Um poder, esse que eu queria, o de criar borboleta.
Olhava como se nunca se olhasse no espelho, nunca soubesse de seus
olhos, deles sempre muito satisfeita, ou escondia? Mostrava a unha
podre.
— Foi um cobreiro mas já secou. Pode espremer que não sai
mais matéria. E tua roupa, quem lava?
[15] Ia para a tina, entrava pela noite, lavando, incessante na
sombra. Alfredo, então, fazia cair aos pés da mirolha um quintal de
borboletas.
— Boa noite, seu Alfredo, ora me descubra um santo
medicamento pra esta minha esipra, me estude um medicamento.
A D. Fausta, debaixo do braço a pasta das valsas, tocava piano
no cinema São João durante duas sessões.
— Nem o Dr. Raiz, D. Fausta, corta a esipra?
— Nem, meu filho, nem. E no que me sento no cinema e vou
tocando, meu filho, então que é doição.
— Mas nem o Dr. Raiz?
— Ontem na fita do Chico Bola, eu, sabe Deus como tocando e
gemendo, me via debaixo daquela gargalhada geral. Eu ardendo de
dor acompanhando a comédia. Até numa passagem quando pensava
que eu ia rir, gemi, tirei a mão do piano...
— Valsa?
— Berravam por um repinicado. Assobiavam, raspavam o
cimento. Platéia bem baixa aquela, seu Alfredo. Também não é
qualquer um que aprecia piano.
— E o seu piano, D. Fausta?
— Meu? O meu? Era. Vendi ao dono do cinema. Foi numa
precisão, meu consolo é tocando nele este resto da vida. Está é um
tanto desafinado.
— Conhece aquele alemão...
— O dono do cinema não chama... Deixe indo assim mesmo
desafinado, D. Fausta, pra quem é, bacalhau basta, ele me diz. Está
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que dá pena, uma lata velha. Coitado. Passei a minha esipra nele.
— A senhora quer, eu consulto o Dr. Raiz lá no Mercado.
— Não carece, meu filho. Já não espero o milagre.
Alfredo, atrás do milagre, vai na Ponte do Galo.
— Tu não és o Biá, o filho do finado Sabino lá da Usina? Tu
não és o Biá?
[16] — És o Alfredo do Major?
Sabino, o maquinista, o foguista, o eletricista da luz de
Cachoeira, quando tinha luz. Um dia o dínamo parou, lama entupia os
canos, a usinazinha a lenha, adeus. Luz so era das seis às oito,
apagou-se a vila, um ano de escuridão, guerra na Europa, de
querosene se contavam as gotas e luz entre o geral dos pobres era
candeia de azeite de andiroba ou luar. Todos os dias ia comprar, ou
trazia fiado, o meio quartilho no Delfim Ruela. A garrafa no dedo por
um barbante. O carocinho na palma de mão iluminava o mundo. Para
a lamparina, o farol na varanda, o candeeiro da saleta, bastava aquele
meio quartilho chorado. Vinha a Rita da Siá Pureza, com um vidro,
que foi de óleo de rícino:
— D. Amélia, mamãe mandou dizer, se a senhora pode. que a
senhora emprestezinho do seu querosene um pingo, que logo que o
Amâncio chegue da tarrafeação lhe traz um peixe.
Aqui no chalé: Diminui essa luz, menino! Lá fora, já nem se via
mais o outrora poste que dava choque nos meninos, a vila no escuro,
o carocinho no escuro, o Brasil no escuro, a guerra no escuro, no
escuro agoirava a matintaperera. Meio quartilho, quando tinha, era o
que cabia ao chalé. Nas casas de baixo (casas! — palhoças de chão e
taboca), uma e outra candeia com a velinha de bubuia no azeite, luz
tão pobre e hoje para Alfredo tão escurinha como esse Biá do Sabino,
aqui por acaso na Ponte do Galo. Adiante o rio passava no escuro, ou
é ainda muito Brasil na escuridão, a aula de latim, o pingo de
querosene, a mãe levando a lamparina para alumiar um momento de
agonia do filho da D. Porcina?
— Biá, tu te lembras daquela tua escola? A professora:
Meninos, o Brasil é muito, muito, muito rico. Tem riquezas colossais.
E tu: Professora, que é colossais? A mestra: Mas menino! E o nosso
ouro e o nosso café e o nosso Conselheiro Ruy Barbosa? Escreva no
quadro.
— Mas, professora, e o giz?
— Então no caderno: o Brasil...
[17] — Nem um tico de papel que dirá caderno, professora.
— Tome papel, escreva a lápis.
— Lápis?
Que é que tinha naquela escola? O Inspetor chegava. A
professora com aquela cara de quem sempre jejuava, vexada,
gaguejando:
— Inspetor, nem unzinho material escolar? Estou sem um toco
de giz.
— Providenciaremos, providenciaremos. Já decoraram o hino?
E a mestra voltava a ensinar que o Brasil... Vamos decorar o
hino, criançada. Os meninos cabeceavam, sequinhos, ou roíam seu
torrão de terra, a ponta da caneta, muitos vindo de longe, remando, do
de comer só o ar do rio, só, sem um torrão de açúcar, um chibé. As
letras viravam aquela rosca no balcão, o pão na canoa ligeira, a farinha pesando na balança do Delfim, cuspiam. Não cuspam no chão,
mal educados! Cantem. Nossa terra tem mais flores. A professora:
Vamos, meninos. Biá voltava, remando, apanhava pelo rio algum
taperebá que ia roendo, roendo até chegar no jirau da barraca onde o
periquito lhe beliscava o dedo. Em casa o pau de lenha à espera do
aracu que o pai há de trazer — peixe anda arisco, arisco. Veio a mãe,
amarela, seco e solto o cabelo, um trapo em cima da pele, verme até
os olhos.
— Mamãe, por que diz que o Brasil é tão rico e a gente...
Perturbou-se, a mãe ralhou: Abom! O periquito gritava.
Alfredo abraçou o conterrâneo.
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— Tu te lembras, Biá? Foi, ou não, assim? E agora Biá?
— Me ajeito na boca de uma caldeira, em Val-de-Cans.
Aprendiz. E tu?
— Estou lá.
— Lá onde?
— Ah, rapaz, num tal de Ginásio. E tu, ganhas?
— Aprendiz tu também nessa tua oficina?
[18] — Não, não, Biá. Dizer que aprendo? Adeus. Dá lembrança. Ah, tu te lembras do Raimundinho? Sim, quedê ele?
Raimundinho. Pretinho, cabeça de coco, vendia os pastéis da
mãe da professora. Pela manhã, estudava. Que cabeça para os
números!
— Raimundo, você tem é queda para os cálculos da
matemática. É taco nas contas, número é contigo, não?
— Ah, meu camarada, pudesse... Pudesse, e este seu criadinho
aqui ia era ser um da engenharia.
— E então?
— Ouvi falar assim por alto, soprou aqui pelo meu ouvido que
tem lá no Rio de Janeiro uma escola por nome Politécnica.
Disse o nome, até assustou-se, ficou roendo a unha, melhor
tratar de vender os pastéis. Era chegar hora da tabuada, e
Raimundinho ficava sozinho, dono dos números, as quatro operações
na ponta da língua. Traçava a fração com um desembaraço! E tão
maneiro com os sinais, com os problemas, o olhar comendo os
algarismos. No arraial, em dezembro ficava ao pé do xarão de pastéis,
encolhidinho, mais pretinho, talvez mergulhado nas mil numerações.
E vender bem pastéis da mãe da professora, isso, também sabia. Os
pastéis mereciam.
— Aí na Politécnica, Raimundinho?
Os colegas vinham namorar o charão, comer o cheiro dos
pastéis. O pasteleiro acudia:
— Tomem unzinho só, se repartam. A azeitona é minha.
A professora falava:
— Pago promessa à Nossa Senhora da Conceição para que
você, Raimundinho, possa ir estudar ao menos na Fênix Caixeiral, lá
na cidade, o ofício de guarda-livros.
Uma tarde, Raimundinho via chegar na lancha um senhor por
nome o Deputado Federal, o doutor Bento.
— Esse aí, Raimundinho, estudou na Politécnica. Sabe quantas
reses a família dele tem nas sete fazendas do Alto Arari?
[19] Raimundinho nem sabia, essa aritmética não sabia. Por isso
mesmo segue pros rios acima num pontão velho. recolhendo cabos,
ali é a sua Politécnica.
— Até um dia, Biá.
Da Ponte do Galo ao Valha-me Deus, depois Pedreira:
passa pelo posto onde as serpentes desovam e há uma amarelidão geral.
— Ara me deixa meter a mão no meio das cobras...
— Pois não, à vontade. Sem cerimônia. Cobras, lambam a mão
dele.
Fede a calomelano. Espia a baixa de onde os sapos indagam:
tens notícia da tua mãe? O Ginásio é a tua oficina?
Agora nesta chuva o subúrbio se sobrecarrega. Que faço, nesta
chuva, destes livros, desta idade? Parece que ali na barraca 46 tem um
vivente batendo o pacau.
— Já — gritou a vizinha.
— Já — respondeu a outra, carregando no colo o menino com
guariba.
Aqui na baixa é o caldeirão das febres. Onde estás, Guamá, com
teus cabanos? Na entrada da Pedreira, a faixa do aniversário:
VIVA O SENADOR FACIOLA, O PAI DOS POBRES
Embaixo, uns curumins nuzinhos, só te olham. Um estica o
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dedo para o céu, para o arco-da-velha.
— Me dá do teu um tostão? Me dá do teu?
Do teu, onde, onde? Que fim levaram aqueles noivos guardados
pela Mãe Ciana, levados pelo seu Lício, na véspera do Círio?
Voltarão?
Um dia?
Com seus filhos, muitos, atulhando o trem, eivém o trem, é
agora, é agora, soltam o trem porta dentro do Palácio? Ó cidade do
Senador Faciola!
[20] O remédio é chegar ao quarto, sentir-se espiado pela
ragazza da veneziana. Bordeja pela calçada.
Mas, e essa menina, na porta desta casa? O bichinho sem um
sangue no beiço.
— Menina, te conheço, tu não és a irmã da Odaléa?
Séria, tão bem penteada, repentina, a Odaléa diante dele, a
Odaléa de Muaná, a prima do lado branco.
— Estamos aqui nesta casa de uma família. Mamãe, eu e esta.
Esta, com a tal de uma febre! Veio ao médico.
— Odaléa!
— Milagre tu te lembrares do meu nome!
— Odaléa!
— A carta, aquela, a tua, todos os namorados em Muaná
copiaram. Sim, senhor, sim, senhor, seu escrivão dos namorados, seu
fino!
Entram na sala, ela abre a janela, aqueles olhos iraúnas da
Odaléa nos objetos, muito branca, a voz repleta. Canta baixinho:
À noite convida o apache
A gigolete, a gigolete...
— Já sabemos o que é apache, o que é gigolete, Odaléa?
Não é a mesma da casa em ruínas onde, lá na varanda, zumbia a
escola estadual, com os meninos toda hora à volta do filtro, o filtro já
sem a pedra. Não mais a despenteada, o colo sem cautela, olhando do
peitoril a lavadeira que estendia roupa. Aqui na casa alheia se cobre,
na janela, de cerimoniosa faceirice. Alfredo, mudo, encostadinho,
depressa eivém a noite. Nisto, num sobressalto, dando conta do
escuro, Odaléa faz que vai mexer no cabelo dele, não fez, desaparece
para dentro de casa, volto, acendo a sala?, as mãos atrás, senta-se na
cadeira de embalo, alva, desconhecida na sombra.
— Olha, se não for tanto incômodo... Amanhã à tarde, estás
estudando? Tem um tempinho deste tamanho assim [21] para ir
conosco, em nossa companhia, uma voltinha, no Largo da Pólvora?
Só pra distrair estazinha, esta febrenta.
Chega a menina, fica no embalo.
— Não sou eu. Por mim não. É a maninha. Vai? Nos faltando
cavalheiro. Amanhã à tarde, sim?
A seguinte manhã no Ginásio, Odaléa nos mares da Hélade, no
teorema da pedra, e corre a pé até ao Marco, mais de uma hora ida e
volta, como a tarde não passava! Na travessa Lomas, que o capim
cobria, a lavadeira, estendendo roupa. era, sem tirar nem pôr, aquela
do Muaná:
— D. Odaléa, D. Odaléa!
— Senhora, D. Tertuliana?
— Rezo que ele seja moreno!
— Olhe que lhe meto na sua boca um tição aceso,
D. Terta! Mas a senhora!
— D. Odaléa!
— Senhora, D. Tertuliana?
O coração escurece que escurece as coisas, não escurece?
— Mas, D. Terta!
Do Marco ao Largo da Pólvora, tudo indolentemente
longo, e suando, pessoas paradas num visgo de sossego e
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espera, bondes arrastam-se, as mangueiras ressonam, vão e
vêm as carroças, carregadas de sono e ananás.
Largo da Pólvora, ao apito do Utinga, as quatro, numa aragem
de chuva; aquele açaizeiro, sozinho, é ver um repuxo.
— Não estás mais naquela casa?
— Que casa?
— Ora, que casa... Então não sei?
— Moro num sótão bem defronte da madrugada.
— Tão alto que dá pra ver a Eunice atrás do tajá orelha de
burro?
— E te ver também comendo mangaba na janela.
— Aquela casa da José Pio, a dona mesmo... morreu?
— Quem que te disse?
— Tio Leônidas.
[22] — Por onde anda esse seu tio?
— Ora por onde... Por esses rios costurando. E tu, onde moras?
— No sótão, menina. Da minha janela avisto...
— Que fim levou aquele jabuti?
— Mora comigo. É o meu criado, varre o sótão, vou ao Ginásio
montado nele.
— Ah!
Odaléa vira-se para o Teatro da Paz, abrindo os braços:
Ai, ai, Belém, Belém! Que só te vejo voando! Mamãe, só
acabar de consultar, é debaixo do toldo e o pé em Muaná. Mas deixate está, deixa-te está! Um dia! Um dia me vingo... Mas, ah! Belém...
Teu visgo não me agarra.
Ficou alheiosa, à espera de que surpresa? Ávida de que
imprevisto? Tinha marcado um encontro? Vinga-se daquela carta?
Fazia-se tranqüila, satisfeita mas seus olhos procuravam, ou fingiam
que procuravam, ocupada de si mesma, saboreando o instante.
Calada, numa faceira expectativa, segura de que Alfredo, agora, sim,
tinha um outro olhar para ela e que a carta, aquela para Eunice, aquela
carta.
Alfredo disfarçou, sentou no banco: Ainda não passei de
acompanhante. Assim fardado, guarda a princesa entre as plantas. E o
rapaz que falava dos teus olhos no jornal, o jornalista? O vento te
despenteava, mangabas e ingás te cobriam de resina nem sempre o
banho te limpava o calcanhar. Mais forte o vento e era uma vez o teu
pardieiro, a escola na varanda, a professora lá dentro tirando do fogo
a panela do camarão, desconsolado, um Lauro Sodré, na sala, tapava
o buraco da parede e no lugar de honra o diploma da Escola Normal.
Vizinho-vizinho, numa puxada entre goiabeiras e um pé de urucu
carregado, era aquela doente-da-pele, tão dezesseis anos, cabelo pelo
ombro, espiando, com a lamparina lá no fundo, podia espiar a seu
gosto: O largo da festa, ali quase defronte, toca a banda, começou o
leilão, lá vai a Odaléa no seu organdi e laços de fita, o arraial cheira a
pão-de-ló e foguete queimado.
[23] — A moça, aquela, da puxada?
— A Esperança? Já não vem na janela.
— Agora é no rosto?
— Nunca mais aparece. Não vem mais na janela.
Odaléa num pasmo, confidente:
— Também ela? Mas até a Esperança, Alfredo?
— Oh, Odaléa!
Odaléa nem se deu conta, vigiou o colo, chamou a menina que
fugia pelo jardim. Alfredo não se mexe. A prima habituara-se àquela
doente, anos, e nunca a visitou, ou quem sabe, nunca mais a viu.
Odaléa dá uma volta com a menina, dedicada ao seu papel de moça
do interior passeando na cidade, filha de professora. Vai casar com
um promotor público, admite Alfredo. Vai entrar na magistratura.
Some-se a lavadeira, chega o promotor público.
— Esta é a praça da República — diz a moça, categórica.
— Ali a estátua da mesma senhora — falou o rapaz,
temperando a goela.
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Ouve-se o espreguiçar da cidade, saem do banho as moças para
a janela, a tarde cheira a moça. Odaléa, ajeitando o atracador no
cabelo, cuidadosa do penteado e do peitilho:
— Mas tão sem ninguém isto!
— Ninguém-ninguém?
— Ninguém-ninguém.
— Eh, eh, ninguém? Mas noutro dia... Ninguém? Isto aqui
virou um escarcéu, ninguém? Então que isto ficou repleto. Ninguém.
Ninguém, hem?
— Aqui? Mas quando.., mas que mentira! Pensando que eu
como coco?
— Daqui queriam marchar para o Palácio. As mães, só as mães,
não falo do resto. Só as mães queriam comer o governo vivo.
Ninguém, bem?
— Eras, Alfredo! Agora em vez daquela carta para a Eunice, já
inventando... As mãos antropófagas? Eras!
[24] — Odaléa, de lá pra cá muitas palavras, não?
— Muitas palavras?
— Que aprendeste...
— Aprendi. Mas muitas. A metade na tua carta.
A menina corre para as mãos de Odaléa, esta, abraçada à irmã,
ficou de nariz no ar, compenetrada, solitária.
— Perdida no bosque?
— É. Adivinha o meu paradeiro?
— O bosque é imenso. Impossível. Quem é agora lá o promotor
público?
— Por quê? Por quê? Que-que tu soubeste? Que-que te
contaram? Como voam as coisas! Como tu soubeste?
— Sentindo aquele meu frio — queixou-se a menina.
— Meu Deus! Então vamos!
Alfredo voltou. Amadurecia nesse encharcado? A juventude era
como aqueles bichos do primeiro tempo da terra, enormes no sol
grosso morrendo por muito grandes? E tua roupa, quem lava? A
indagação ia além da roupa, além do entendimento. Era saltar da rede
para o alpendre, dava com os urubus no pouso, com a vesga inclinada
na torneira, com as aulas da manhã lenta. Atravessava o Bulevar
onde, dobradinhos sobre os paralelepípedos do meio da rua, os
ferrinhos de dez anos catavam capim, reco-reco-reco-reco. Um senhor
baixo, corado, paletó e guarda-chuva, tomava conta deles, como um
velho guardador de carneirinhos sujos que pastavam aquele capim por
entre os paralelepípedos. Era arrancar o capim, noutro dia o capim
grelava. Um dos limpadores morava no Não-Se-Assuste. Mal
acabava, ia catar pelo cais um servicinho, ajuda a varrer navio, passa
um bom pedaço da noite escolhendo e separando os bagos do feijão
do milho, o arroz do café e com isso trazia um sofrido mantimento
para casa nem toda semana. Chegava tarde e aqui, no lamaceiro, à
noite, devolvia-se ao menino, entretido a soprar a velha flauta
rachada, encontrada num aterro do lixo. Soprava, soprava, precisava a
mãe:
[25] — Dormir, Candoca, que é o emprego cedo, guarda é que
é o peito pro capim que tens de arrancar, a manhã, olha a obrigação.
Uma vez, vergado com o ferrinho tirando capim, mais que a
curiosidade deu no menino um tal espanto: Vinha passando com
banda de música a parada dos colégios de Nazaré e São Jerônimo,
escoteiros na frente, bastão, tambor, bandeira e padres. No seu pasmo,
o pirralho ficou de joelhos, a mão na boca, rasinho como capim, a
banda estalando os pratos, aquelas batinas escureciam ainda mais o
espanto do menino. Alfredo olhando. Entrou no Liceu: O Absoluto
existe! Existe um princípio onisciente, uma ciência perfeita, uma
sabedoria total... Era o veterano falando, esmirrado, rouco, no pátio,
puído o uniforme, sempre errado o passo militar. Alfredo trazia o
reco-reco lá de fora, o pasmo do carneirinho, de joelhos, esmagado
pela parada escolar, a batina dos padres amortalhava o Ginásio. Sol
em cheio no pátio, as paredes reverberavam; riam, rinchavam os
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belerofontes do trote, vaia e assobio. Um do bando, quartanista,
aproxima-se do veterano, toca-lhe com o cigarro apagado:
— Certo que fazes voto de virgindade? Casto? Só no
casamento? Posso apostar no que tu dizes, é a verdade? Que nem...
Outro abotoa o intruso, dá-lhe um empurrão, o pátio agita-se,
veio o inspetor, o veterano apaziguava.
— Eu aceito a aposta. Aquele ar dele, que vocês julgam
insolente, é legítimo, sim, um desafio legítimo. Posso fazer a aposta.
Admito que é um escândalo. É meu irmão que espalha a verdade,
quando só a quero para mim. Não quero dar exemplo.
A um passo era o grosso do pátio, pés e bocas.
— Como falsa é a cópia que se faz da juventude, essa péssima
cópia somos todos nós... Quando meninos esperamos, queremos que
ela venha o mais depressa, quanto antes... Chega, e tão de repente,
que não sabemos o que fazer dela, nunca estamos preparados. E
ficamos à espera [26] da juventude. A que chega não é verdadeira,
verdadeira é a que não vem. É uma coisa que nunca pertence a Deus,
a juventude? Sempre obra do Diabo? Adão caiu por muito verde.
Alfredo afasta-se, avista o Pereirinha que fazia no Marco da
Légua revista manuscrita Belemita, sem nunca trazê-la no Ginásio.
Sempre com o Bilac debaixo do braço. Por dentro dos livros um e
outro soneto de Augusto dos Anjos e escrito, repetido, no caderno de
matemática:
L’Amor che move il sole e l’altre stelle.
Meio arisco, temia que os colegas viessem a saber, de fato, da
revista que circulavas um só número, pela Avenida Ceará, sendo só
ele que a escrevia toda, distribuído em muitos pseudônimos. Alfredo
chega-se:
— E então a revista?
— Que revista?
Pereirinha, para livrar-se, do constrangimento, tira um papel da
pasta, hesita, quer rasgar, rasgou, embolou, vai lançá-lo por cima do
muro, Alfredo apanha-lhe o braço, toma-lhe um dos pedaços do
papel, lê:
As montanhas e abismos que carrego
despedaçar-me nos despenhadeiros
deixar trapos da túnica nas pontas
de eriçados penedos e marcar
cada frágua com a flama do meu sangue
— Frágua, Pereirinha?
Os dois fitaram-se. Alfredo indagava, já não se sabia se por uma
insolência ou por ignorar a palavra ou repentina presunção de crítico.
Pereirinha entrefechou os olhos, vexado, ferido, remexeu na pasta.
— Sugere outra? Outra palavra?
Debicava, azedo. Alfredo até que se assustava.
— Eu? Eu?
[27] Pereirinha mete os pedaços do papel na pasta, retira-se a
um canto do pátio, só, com os seus despenhadeiros, assobiando.
Alfredo acode:
— Vais publicar no GPC, ou é só na tua revista?
Vamos! Troca a palavra. Tira do teu dicionário a outra palavra.
— Mas eu, Pereirinha?
Alfredo teme agravar o incidente também teme agradá-lo,
gostaria de dizer-lhe: “Toque, aperte a mão. Queres que eu escreva na
tua Belemita em letra gótica?” Pereirinha e ele, num esforço de se
aproximarem, cada vez mais se separavam.
— Báiron, já leste, ouviste falar? BYRON?
Pereirinha, rouco, repetia as cinco letras, numa fanfarra surda.
— Báiron...
Alfredo dava um tempo a ele para explicar o Byron, ditar
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conhecimentos, ou desembaraçar-se da frágua. Disposto a ceder,
contanto que se entendessem, até gostaria mesmo de colaborar na
Belemita com a sua letra gótica. Mas o Pereirinha!
— Vamos! Ainda não encontrou a palavra entre os nomes das
suas canoas do Ver-o-Peso?
— Báiron... não é um clube de futebol em Niterói, no Estado do
Rio?
— Hilariante! Hilariante... — soltou o Pereirinha já a acenar a
um colega e agora subitamente em posição de sentido diante de
Alfredo, fez continência, a imitar o sargento do Tiro:
— Hilariante o calouro que pensando entrar no primeiro ano
entrou no terceiro e que na hora de enfrentar honradamente o trote...
Pernas pra que te quero?
E rodou nos calcanhares, correu ao chamado do campo na saída
do pátio com Alfredo atrás dele a apanhá-lo pela ponta do dólmã.
Virou-o num empuxão:
[28] — Repete.
— Que é isso, Alfredo Coimbra? — Foi o grito do Novaes, o
primeiro aluno de Geografia, que diante de tudo se assustava, cheio
de exclamações. Os colegas acudiam. O Pereirinha apanhava a pasta
no chão. Escorou-se no muro do pátio, sorrindo, a mão pelo cabelo,
depois cruzou os braços, esperando.
— Que questão de honra é essa? Tão medievais, vocês!
O veterano lhe tocava o ombro, se aproximou, abraçou-o.
Alfredo puxou um fôlego. Enfrentar honradamente... Era preciso uma
surra no Pereirinha, ir ao Marco, rasgar diante deles a revista em
miudinho. Ou merecia? Era merecido? Como se tivesse escutado a
voz de Luciana. E lá de cima da porteira, ou do búfalo, do jirau rente
d’água, a Andreza escutava? Ou desafia o pátio inteiro para o total
desagravo? Ou não tinha mais remédio? Via na boca do Pereirinha as
mil bocas do pátio, a idéia que todos faziam dele, pátio sujo, sujo
estou eu também, uma surra no Pereirinha, sim. Ou tudo consumado,
sem apelo? Uma, duas, três bofetadas no Pereirinha.
— Vamos tirar a limpo? Quer marcar lugar e hora?
Distantes um do outro com certa distinção, dois diplomatas.
— Espero-te à noite na Vila Tubo. Sem testemunhas,
— falou o Alfredo pondo o quepe.
— Na Vila Tubo? Com aqueles pobres de lá só nos olhando?
Tomando a sopa do Santo Antônio? E quais as armas?
Pereirinha galhofava e ali mesmo os dois se atracam, se
esbofeteiam, purgam suas raivas, no meio do pátio que atiça a luta.
Vem o inspetor. Os dois se levantam, triunfantes, quase felizes, já
parecem reconciliados.
— Medievais! Medievais! E estamos na época do Gandhi! Do
Gandhi! — repetia o veterano surpreendendo-se com o próprio
contentamento — Veja! Veja! — ao ver [29]o duelo, e abraçou os
dois, o pátio se agitou numa aclamação, os dois carregados em
triunfo. Alfredo, ao lado do veterano, sorria com um ar sobressaltado,
surpreendido consigo mesmo e grato ao Pereirinha. É assim, é assim
que se ganha um bom amigo.
Até a porta do Liceu chegava a raspar dos ferrinhos na pedra do
Largo, rins dobrados, ali o dia inteiro, tão bichinhos do chão. Agora,
na luz do pátio, passa lavado e gordo o Monsenhor da Moral e Cívica.
Alfredo olha o veterano, o feinho angélico, que erra o passo militar, a
voz enrouquecida, Parsifal catando o Absoluto.
— Não pretende ser um possesso do Absoluto. Ou quem sabe...
Eu queria clareza, clareza absoluta. Não era o que queria também
aquele colega? Queria fazer uma aposta. A que provas me submetia?
Ergue a cabeça, sem um sinal de desafio, sobre a agitação do
pátio impuro. Bate a campa, o pátio se esvazia, Parsifal sobe a escada,
meio confuso, meio curvo, sempre errando o passo. Eivém o insolente
correndo, dizendo-lhe: Não leva a sério, aquilo, viu? Hem? Sim?
Alfredo, entre esquivo e zombeteiro, um pouco aturdido de si
mesmo, subia-descia no Liceu entre o logro das aulas e o suado
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alarido do pátio. E o Pereirinha, onde estava, para abraçá-lo? Lá fora
o reco-reco-reco dos ferrinhos catando o capim entre os
paralelepípedos. O velho guardador abria o guarda-chuva, a cada dia
mais velhinho, os guris pastavam. Mas, espere, os meninos cantavam?
Estão cantando? Cantando, sim, tão desentoado, ali vergados, ou de
joelhos, tirando capim, cantavam? Roucos, fanhosos, apelo surdo,
gemer dos rins, ou súplica, coro abafado, os carneirinhos cantavam?
Ali debaixo do guarda-chuva o velho guardador parecia reger. Com o
reco-reco-reco entre os paralelepípedos o cantar feria, doía.
Alfredo ficava ao pé daquele que não degradava o amor, o
consumido pelo Absoluto, o casto, o desajeitoso, o obstinado.
Sozinho contra a voz geral. Ostentava, humilde, a sua [30] pureza. E
disso os demais tinham, entre o respeito, uma vergonha, escarneciam
surdamente. O pátio se tomava mais. sujo diante dele. Os professores
mais imundos. A verdade mais difícil. Também aqui, neste casarão,
ficou, para sempre, a vaga de Luciana. Como aceitar as coisas sem
remédio? Quando olhava as moças do quinto ano, tão suficientes,
missa de cinco divisas, tentava ver um traço da morta ou a visão dos
sonhos dela ali no ar feito poeira. Na rua, o cara-de-índio, o Parsifal,
falou em Platão. Alfredo lembrou aquele almoço do Círio nos
Alcântaras, o mesmo nome na boca do Porca Prenha, a indignação do
seu Lício. O cara-de-índio recebia lições de grego com o padre Crolé.
Por isso, agora, tão de repente, Alfredo apanha o bonde em movimento, Platão e o feinho a pé pela Campos Sales. Entre os anúncios a
palavra: Hilariante. Feliz um pouco, estava.
Gastando a tarde pelas bandas de Batista Campos, deu num
portão com aquelas três moças de Marapanim tão ao mesmo tempo as
três, que com as três se casaria. Passou, atrás do que, não indagava.
Atrás dele o cantar dos ferrinhos, cantar, chorar, ou só gemiam? Que
havia com a noite, que tardava? Pensou em Libânia ao passar pelo
Soledade onde as visagens do cemitério, trepadas no muro, puxavam,
à noite, os passantes pelo cabelo. No que escurece, entra a fundo e
sem rumo pela Mundurucus ouvindo aquela ladainha lá embaixo sem
um vagalumeio na quadra espessa de mangueira.
Já na frente da barraca suspendiam a lamparina dentro do
paneiro, como nos sítios em festa. Esperou que acabassem de rezar.
Esperou.
Veio se chegando, entreviu, na meia escuridão, a mesa, bancos,
pessoas, no terreiro a quem desejava pedir um sossego, qualquer
explicação e um pouco d’água.
Mas quem que ali estou vendo?
Quem aqui no meio do terreiro, a saiona em cima da chinela,
olhem a blusa rendada, o bogari no cabelo, quem? Pois não era?
[31] — Ó Magá!
— Mas como? Como é que tu te atreve nem me tomar a bênção,
seu coirão? Perdeste o número lá de casa? Já não sabes o rumo dos
teus primos? Mas santo Deus! Nem te condói saber da Mãe Ciana?
— Doente?
— Ou não é doença bater Belém a pé todo dia sempre atrás
daquele invisível?
Alfredo beija-lhe a mão escura que cheira a tucupi e cera de
santo.
— A Virgem de Nazaré não tire a mão de cima da tua cabeça,
cuidado com o mundo! Cuidado! Nesta casa se rezou pra São
Francisco das Chagas, promessa da mea comadre Quelé, que o filho
dela? Quebrou o dedo direito na corda de uma polia, dedo esse... pois
não arruinou? Pois por pouco não perdia a mão? Então virou-se, se
pegou com o santo.
Torcendo a orelha do parente, torceu, segredou:
— Cuidado é com o mundo. Com o mundo. Olha o que estou te
dizendo: Com o mundo. A tua polia é o mundo!
Foi, destampou a panela da tacacá no terreiro.
— Mas venham, pessoal, em nome do São Francisco das
Chagas. Oferecimento é dele. Só hoje que amanhã adeus. Desfeiteiem
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o santo, depois agüentem.
Alfredo escorava-se numas estacas, pensando em Mãe Ciana
que ia e vinha pela cidade atrás daquele “não-tem-descanso”. Eu
queria a tua paixão, Mãe Ciana, queria o teu pé incansável e a tua
mão que faz o cheiro, temperas a infusão com as tuas lágrimas e tuas
raivas. Quero fazer uma promessa para o dia do Círio: Carregar de um
lado a velha parteira e do outro a Mãe Ciana, as duas no ombro
pesando menos que dois passarinhos.
— Te chega mais pra cá, aqui, rapaz, te desescora, quem te
condenou pra ficares aí de castigo. Carece de escora? Quedê teu
espinhaço? Me andas com um ar de arrependido ou desgarrado?
Tiraste é a sorte nascendo da mãe que tens, [32] felizardo. Então tu
não conhece a comadre Quelé? A comadre Quelé? Que fizeste então
da tua memória, seu rói-casca-de-queijo? A comadre Quelé? Cansa de
armar, coitada, todo santo ano, a barraquinha dela lá em Nazaré, mas
da festa, no traseiro do arraial. Do lado esquerdo? De quem entra?
Pois nesse correr a barraquinha dela, por nome É Aqui A Quelé, bote
idade, o que tem de fazer é passar tinta fresca nas letras da tabuleta, já
tudo tão desmaiado. Fica entre o João Barabaia e a Cabana Luar das
Flores, defronte da É Aqui A Sereia. Não vem me dizer que não te
lembras, sabendo eu a tua cabeça e o teu fraco pelas gulodices do
arraial, que herdaste de tua mãe. Também do teu pai. Sendo que ela é
aquela tamanha quantidade de tanta pimenta oh!, rapariga! Bote, bote
pimenta em toda e qualquer comida. Não olha o prato dela que só de
olhar te arde, O teu pai? Quanta vez! Ficava ali de molho no ver-opeso da festa, e era um mingau e era um cuscuz e era uma coxa de
pato no tucupi só pra esperar os fogos, saíam já pelo clarear, tua mãe,
sempre bem arrumada, ia pra casa como veio, no esmero, aquele rosto
passado na pluma cetim e veludo. Ou já torces o nariz para alizinho a
bunda da igreja e são outros os teus comes-e-bebes, viraste princês?
Magá servia tacacá, recendia forte o molho das malaguetas, Na
lata de querosene o mungunzá fumegava.
— Aqui, meu filho, a dona, a comadre Quelé, fez promessa de
distribuir de graça munguzá e tacacá entre gente convidada e gente do
sereno.
Magá andava magra, ao clareúme das lamparinas o rosto
reluzia. Tirava o tacacá como numa cerimônia. Debaixo das
bandeirinhas de papel, sob o fedor da vala perto, uns convidados se
abanavam.
— E tua mãe, que nunca mais? Que cachorro te mordeu lá em
casa que nem um ar de tua graça? Me admira é de ti, me admira é de
ti.
Nisto, trovejou.
[33] — Hum, o porteiro lá de cima arrumando as malas pra
viajar? Me levezinho na vossa bagagem, meu São Pedro.
De mangas enroladas, sisuda, distribuía cujas, ganhava uma cor
cobre. Atenciosa no servir, não ria um só instante. Teria matado
recém-tartaruga?
— Nestes seis meses? Olhe, meu anjo, que só uma! Casa do
contador do Tesouro. Só uma, que por sinal bem magralhona. As
inocentes estão que estão escasseando. Raridade. Mais pimenta,
menino? Mais tucupi nessa goma, meu preto? Mais jambu? Comadre
Quelé, me mande mais jambu. E do mungunzá, gente? É o santo que
oferece. O único pago é beber sem dizer obrigado. Povo,
acanhamento de lado, só mandar servir. Não desfeiteiem o santo.
Séria, na serventia do santo, o colo sobre o terreiro, Magá fazia
sala.
— Que que então que te deu que de tão longe te atiraste de
vento em popa aqui por esta baixa, como se tivesse te ligado o meu
telefone? Que é que tu andas mariscando? Adivinhaste? Rastejando o
cheiro? Vai primeiro, vai primeiro pedir bênção do santo lá dentro,
entra lá dentro, vai entrando, que não tem cachorro, a abundância que
tem ai dentro é agrado, o que nunca falta é carinho. Comadre Quelé!
Lhe apresento esse-um aí, esse pau-de-virar-tripa fardado, meu
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sobrinho, é da raça, anda perdido no Jurunas. Apresente ele ao santo,
faça ele ao menos beijar a fita, coisa que já não faz, vá ver, conta as
folhas da folhinha, ocupadinho que anda — sabe lá... — com o estudo
dele... Susto que o santo te meta em confissão, saber teu fogo, que é
que tu andas... tamanha lonjura, aqui pela zona do Jurunas, atrás de
que companhia, no pegadio da Mundurucus? Te influi! Te influi! Te
influi com o Jurunas! Te influi! Que a Mundurucus, por demais
grudenta, gruda de arrancar pele, Vai atrás de isca neste remanso,
vai... Da feita que fisgou...
Magá falava por experiência? Aqui pegada, trazida de sua
esquina do tacacá na São Jerônimo onde é dona, moradeira velha da
Ruy Barbosa em que passa o bonde, com o [34] retrato do falecido,
mestre funileiro, na parede e no estandarte, e aqui na Mundurucus
servindo a São Francisco das Chagas, a um pecador do Jurunas, seu
travesseiro de orelha? Aqui no fisgo? De quem? Só por amizade à
comadre Quelé? Ou por um não-te-digo-o-nome do Jurunas, unzão da
estiva, do boi-bumbá ou da diretoria do São Domingos Futebol
Clube? Atrás do jirau, lá atrás, cachimbava um senhor afastado, só de
banda, no-só-te-espio, era ele?
Eu te quero um homem, lhe disse Magá naquela longe tarde. A
casa Alcântara ia abaixo. Um homem. Já era? Ou tão só maliciando
dela, a enxergar o que não via? Aqui, em torno do tacacá, descobria
bruscamente no Não-Se-Assuste, no rosto da D. Fausta tocando
debaixo do assobio as suas valsas no cinema, este mundo sem apelo.
Por isso, aderia ou puxava o santo pela barba?
— Comadre Quelé, me guie essezinho penitente até o pé do
santo.
— Entre, que só paga na saída. As feições da mãe, ele... Ela,
como vai?
Comadre Quelé, barraqueira tão atrás do arraial, as faces em
festa, era rir e fazia as pessoas felizes; nos braços dela se podia
agasalhar a cabeça. Diante do oratório azul, na sala de chão, entre as
palmas de açaí, Alfredo ajoelha-se, beija a fita, o santo parecia
sufocado de flor, vela e reza ou a dizer-lhe: Me enganando, não, seu
safado? Atrás, a comadre Quelé, o olhar das moças, eivém um guri,
vira-se para ele, muito espião, bastante adivinho, cadê que Alfredo
queria ou podia levantar, pois lhe deu um embaraço. Ou culpava-se?
Melhor não era ter beijado a palma da mão da D. Quelé que vai agora
soprando as velas do oratório? As ceras se apagavam macio, macio, o
santo só faltava pedir: Quelé, meu coração, me trás lá da Magá um
tacacá mas com bem pimenta, antes que me feches neste oratório.
Alfredo desajoelhou-se. O filho de D. Quelé chegava..
— Lhe cortou o dedo? A polia?
— Ah, não foi nada.
[35] — Não? Não foi nada? — Acudiu a mãe, franzindo alegremente a testa. — Olhe o Zezinho. Se atrevendo a dizer na frente do
santo que nada foi, o prosa. Só que te aprecio!
Alfredo foge para o terreiro.
— Que te deu, que tu já vai que nem me toma a bença, rapaz?
Que desassossego esse, seu tão desempaciente?
Aqui na roda as meninas cantavam:
Das filhas de minha mãe
Sou eu a mais estimada
que me importa
que me importa
que eu seja a mais desprezada
sereno da madrugada...
Surdina um borrifo de chuva, a cidade se agasalhando nos
braços da comadre Quelé.
Agora em Batista Campos dormem de rede as três formosas de
Marapanim. Entra no parque, deserto, olha os portões, fechados, nas
janelas ninguém.
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Escrevia no ar ao pé da mangueira:
1 quarto, de preferência sótão ou mirante, rente das
madrugadas.
1 cama de soldado, defronte a rede com varandas vermelhas.
1 retrato da filha de italiano a prestação no gringo.
1 enterro para Luciana.
1 peça de linho para a mãe.
1 enxoval ao gosto da donzela viúva.
1 epitáfio, escrito por Parsifal, para a defunta do rabecão.
1 lei desapropriando o chão dos Lobos.
1 aparição de Andreza sempre menina.
1 flauta para o ferrinho.
1 explicação do Absoluto.
Todos os catálogos de pós-guerra para o pai.
[36] 1 peruca para Dadá.
1 vapor para a D. Celeste.
1 tabuleiro de pupunha para aquele menino que derrubou no
comício do largo da Pólvora. Menino?
O endereço daquela operária que comia gergelim ao pé da
estátua da República.
Pendurar na jaqueira de Zulmira, a nua, o manto de Nossa
Senhora.
1 oração, ou bom preparado que faça o seu Lício rojar-se aos
pés da Mãe Ciana.
1 boa noite da filha de italiano.
1 elixir de formosura para a Bina, a tão feia.
1 bobina de papel para Rodolfo, o tipógrafo.
1 tina para o banheiro.
1 carta da mãe: tudo bem no chalé, meu filho.
A roda, longe, sereno da madrugada, o munguzá fumaçava,
ardia a boca de pimenta.
Virou que virou o calcanhar pelo Jurunas, agora caminhando
pela D. Pedro com a visão do pai, na varanda do chalé, compondo,
bem devagar, o livro do Juiz de Direito, os passarinhos espiavam da
janela a sacudir o bico a tão inútil esforço.
Flutuava entre Liceu e vagabundagem, entre optar pelo mundo
ou seguir aquele rabecão da Santa Casa até encontrar uma resposta.
Reapareço para D. Dudu? Volto ao meu terreiro? Saboreava a feia, a
má ausência que faziam dele, todos, todos, na José Pio, Curro, Rui
Barbosa, na errante casa Alcântara, depois que se viu bem servido...
Via, de longe, a Nini, uniformizada, mais a caminho do Orfanato que
da Fábrica de Chapéus de Homem. Arriscou-se uma semana pela
Pedreira, uma tarde enfia os olhos por entre as estacas de um quintal:
A Dalila?
Caminhando entre as populeiras em flor, Dalila, no pajé, espera
o seu banho.
Um tempo.
Dalila entra no barracão.
[37] Esperou.
Ela voltava com uma alegre pressa, e o seu cabelo? Ainda pedia
um tifo?
Cortou pelo Acampamento, passa pelas cobras, entra na Curuçá,
espiando a Passagem dos Inocentes. Quis ver o jogo, não era
domingo. Nem mais as traves senão a mangueira no meio,
empoeirada, sombria. Da ramagem ia saltar o Lázaro, voltando do céu
que não encontrou?
Aqui na rua da estância, vai e volta, aqui na esquina, comeu um
pão, coragem! Roça a janela, lá dentro os olhos da espiona, a luz que
vem da veneziana é dela, apostava, apostava. Então te arrisca, te
arrisca, coragem, bate palmas. Bate! Corre da porta, desce a rua, vem
voltando, sobe na calçada, bate palmas.
Custou.
Aqui fora sol queimando e eis que da moldura desce o rosto
oculto na toalha, entreabrindo a porta, só indagou de olhar, cortando
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afiado.
— Um copo com água, se não for muito incômodo?
Em cheio a porta na cara e já aqueles passos lá dentro e aqui
fora este sol, a rua escalda, aqui sem dar mais um passo. Lá dentro
enchem um pote? Arrastam um banco? Ou é a princesa voltando à sua
moldura na parede?
Veio passando rente. Já atrás da veneziana ela espiava, o ar
dizia, dizia a janela.
No quarto, não sossega, corre ao Ver-o-Peso. Chegando uma
canoa de Cachoeira?
— Leônidas!
Os dois caminham debaixo das mangueiras do largo do Palácio.
Leônidas se despede. Alfredo, impelido a apanhar aquele barco, a
canoa aquela, não demora esta noite em Cachoeira.
Vem a pé para a estância, tranca-se, e então é a noite, aquela, de
que lhe falou Leônidas:
— A mãe encontrada desfalecida no campo. Uma pessoa
carregou ela para o chalé.
[38] — Quem essa pessoa?
— Tu sabendo tu te aborrece.
No campo. Na sua ronda, cercado de seus fantasmas, Edgar
Menezes a leva ao chalé, entra pela porta dos fundos, deita a
desfalecida na varanda. Lá na saleta o Major —ah, que aspérrimo
dezembro! — folheia o catálogo: quem é? Quem entrou?
O chalé fecha-se, os bacuraus gritando.
Seu Ribeiro vem arrancá-lo do quarto.
— É o nosso Garimpeiro, concidadão, hoje é domingo. É a
excursão. É nosso convidado. Vamos. Desate a rede. E com cara de
que não dormiu?
Seu Ribeiro no trem:
— Aquele cróton! Ali ao pé do portão o cróton! Cróton
selvagem, tinhorão lascivo!
Ria, desdentado. Do bigodinho saía todo o acolhimento.
— Olhem ali no cercado um amor-dos-homens florando,
florando. É ou não é a nossa primavera? A propósito, vamos
encontrar na estação, vendendo chouriço, aquele italiano, filho de
Catânia, que recita Petrarca.
— Quem? — virou-se Alfredo com a visão do campo escuro, a
mãe estirada na bosta de boi, carregada pelo bandido que, onde põe a
mão, tudo apodrece.
— Ainda não sabe do freguês do chouriço em Marituba? Pois
comeu milho. Pois então comeu milho, meu amiguito. Por um
chouriço assado, sapeca-nos um soneto, o molho para o chouriço é
um soneto de Petrarca. Mas olhem! Contemplem. Tivesse eu o pincel
de Manoel Pastana! Sim, sim, sou serei um eterno admirador das
belezas da natureza. Admirai! Admirai!
Passavam crestadas capoeiras, ali um pé de urucu morrendo,
eivém o aterro escuro onde já foi uma barraca, o burrinho e o pouco
caso dele pelo trem, aqueles barrigudinhos ao peso de tanto verme
nem adeus faziam. Seu Ribeiro, soprando o fumo do seu charuto,
admirava. Por incrível, o [39] trem vai ligeiro, arqueja nesta curva,
ligeiro coisa nenhuma, Alfredo. ligeiro é o teu imaginar, fugindo do
campo, do chalé, viajas para aquele 142 de platibanda carcomida
onde é a Itália. Mas o campo insiste, aqui a mãe despejada na varanda, já vai o Capitão Edgar pelo aterro, contando o achado.
— Ó Zematias, vai direitinho o nosso farnel? Em ordem a
caranguejada?
Esguio, resseco, sonolento, calça, sapato, camisa, chapéu, todo
de branco, Zematias punha os óculos verdes. Junto de Alfredo,
murmurou:
— Tenho horror à paisagem. Só mesmo o banho, aquele, lá, é
que me faz suportar a moldura. O igarapé é pra me livrar deste meu
sono, desta minha esquisita contrariedade por tudo.
Recém-chegava do Nordeste, servia a escritório da Machine
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Cotton. Viajando no sertão deu com um bando de cabras do cangaço.
— Então como foi, Zematias?
O viajante, num bocejo — Ah. Foi metido nos óculos verdes.
Puxava o chapéu sobre o rosto, cochilava. Morto o interesse dos
amigos, saltava do cochilo:
— Uns cabras. Foi. Ah. Foi.
Era de sociedade, a família debruçada nas suas quatro janelas da
São Mateus, Alfredo via, ao passar de bonde. As Irmãs, três, toda
tarde ali a rigor, em ruge penteado e anéis. Aos bailes da Assembléia
às paradas altas do Pará Clube, Zematias preferia, no subúrbio, o
relancinho com o Filemon e o sírio-libanês do curtume, a companhia
do seu Ribeiro com quem fundou os Garimpeiros, e um sabadozinho
ao mês, na Dois de Junho, a três mil a entrada, cervejando — sempre
com sono, sempre contrariado — com aquela Antonieta que
continuava a escancarar, com o seu sopro, as janelas de família.
— Bem que podia ter trazido a Antonieta...
Espreguiçou-se, oh, sono! Seu Ribeiro tirou o charuto da boca:
[40] — Cavalheiro! Cavalheiro! E a finalidade de nossa excursão? Não desvirtue!
Zematias pigarreando, sonolento, ria de contrariedade? O
chapéu sobre o rosto, o lencinho no bolso da camisa. Usava o
perfume da família.
— É do hábito dela mesmo passar soprando dentro das casas?
— Quem, Ribeiro?
— Concidadão! Concidadão! Olhe os nossos estatutos! Os
nossos estatutos!
— Soprou na tua, Ribeiro?
Ribeiro, sorrateiro, suspende a perna, os olhos em cima:
— Quem sou eu, cidadão! Eu que não sou vós, concidadão,
concidadão.
Se estes dois rios fôssemos, Maria
Todas as vezes que nos encontramos
Que Amazonas de amor não sairia
De mim, de ti, de nós, que nos amamos!
E o único dente, o de cima, do seu Ribeiro ria.
O trem perdia o fôlego. Parando? Seu Ribeiro espiou pela
janela:
— Ah, a minha máquina fotográfica, que nunca tive, sempre
sonho e nunca terei! O trem pára, não. O trem caminha.
Cumprimentarei, em nome dos Garimpeiros, o maquinista, lá na
estação.
— E aquele outro teu desejo, Ribeiro, aquelezinho? O carrinho
Ford? Quando?
No que falou, Zematias baixa a voz, inclinando-se para o
amigo:
— Filemon, ali, caladão, coçando a fístula.
— Ó Filemon!
— Aqui estou eu descansando da insônia desta noite.
— A ferida? Como vai? Fecha ou não fecha?
[41] Seu Ribeiro acudiu:
— O carrinho Ford, Zematias? Sim, sim, ah, um bem usado,
humildemente... O carrinho oficial das excursões. Propiciava,
propiciava. Mas bem usado, humilde, nem que seja se quebrando por
aí afora, sim... Não por mim mas pela finalidade... E aí você,
ginasiano, nem uma palavra? Nem a paisagem admira? A paisagem é
um estado de alma, é não? Já ouviu dizer? Olhe por exemplo aquela
palmeira.
Alfredo via: A filha de italiano se pendurava na pupunheira em
flor, seguindo o trem, entra no carro com a fumaça da máquina e
sempre ali atrás das rótulas, vergada na espionagem, gulosa da rua.
Chegavam.
— Sr. Maquinista! Sr. Maquinista! Os cumprimentos do grupo
excursionista. Os Garimpeiros pela boa disposição da locomotiva e
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por vossa perícia!
Onde o chouriço e o Petrarca? O italiano do chouriço, viram?
Então caminhemos já para o éden. Ao garimpo! Desencardir a alma!
Ah! Só este ar. Este orvalho! Este sossego! Balsâmico! Balsâmico!
Deleite-se! Deleite-se, menino! Por entre a folhagem entreabre-se o
igarapé tão de repente, ali aconchegando na sombra. É ou não é uma
visão celeste?
— E os caranguejos, Zematias? Em ordem o bornal? Bem?
Alfredo, as mãos dela vê, muito alvas, dando-lhe água. Seu
Ribeiro retira da pasta do clube a flâmula verde-amarela e pendura no
ramo:
— A missão excursionista de Os Garimpeiros é difundir o gosto
pela natureza, fazer o turismo em nossos igarapés regionais. Se adoto
o espiritismo, não menosprezo aos domingos o culto panteísta.
Retirou a garrafa de cana:
Ai
dos
teus
tristes
ais,
moenda
arrependida!
Álcool para esquecer os tormentos da
vida
[42] E cavar, sabe Deus! um tormento maior!
— Vamos deitar o néctar de bubuia, esfriarzinho no seio da
linfa. Nas tuas mãos, mãe-d’água, a botija de Baco! Um golito,
Alfredo. In vino ventas! In vino ventas! Vinde, sereias!
Desenrolou, um trago, abriu os braços:
Tenho sede demais, samaritana
Tenho sede demais, quero beber.
Alfredo estirou-se no fundo de areia e limo. O limo não mais
dos cabelos de Dolorosa naquela noite de Santana em que nasceu a
criança e um rapaz. Aqui no limo e areia, vagarosamente desfiados,
os cabelos de quem espia da veneziana. Sobre o peito a corrente fria,
desliza o rosto oculto, o rosto que desceu do quadro. É ou não é uma
visão celeste? repetia o seu Ribeiro com outro gole, tirando a roupa:
— Ao estado natural. Ao estado natural. Agora aos caranguejos.
Ave, César, os que vão... Zematias, amarra a garrafa num ramo dentro
d’água. O embrulho de camarão seco, Zematias? O camarão seco?
Vinde a nós, São Francisco de Assis, meu pobrezinho, prega nestas
nossas águas, que nós te merecemos! O camarão seco, Zematias.
Alfredo caçava no silêncio folharal, nos esconderijos, o olhar,
aquele, da veneziana.
— Que este igarapé me afogue esta... que choca dentro do peito.
— Quem que choca, Filemon?
— Aquela, rapaz, aquela, dona de todos nós, de todos nós.
Filemon entrando n’água, com o copo que emborcava. Já o
Zematias, achando a água gelada, bebia na garrafa. Ainda com a visão
dos cabras na caatinga?
— Viva os Garimpeiros! — gritou o guarda da Saúde, dentro
d’água, chupando a unha de caranguejo.
— O martelinho de quebrar caranguejo! Esqueci-me! Agora só
a pau. Estão é magros. Dêem-me um charuto aceso [43] .e cortem.
Conhecem a frase? De Mariz e Barros que na casamata do
encouraçado recebe um estilhaço e tem de cortar a perna... Ao herói!
Ao herói!
Filemon coçando o peito, a ferida que não sarava:
— Magros? Pois não fui eu que os comprei e mandei cozinhar?
Magros?
— Estão magros, não?
Caranguejo gordo só dá nos meses sem R: maio, julho, agosto.
Nos demais meses é que é caranguejo junho, magro.
— Mas estamos em maio, Filemon.
— Por isso, Ribeiro, por isso, Ribeiro. Estão gordos! Magro é o
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teu conhecimento sobre o assunto, rapaz. Sabem? Vi seguir ontem no
rabecão a Chiquinha Buá. Soube servir e empestar, no Umarizal, duas
gerações. A Chiquinha Buá!
Quando levantam na praça um monumento às putas? Seu
Ribeiro, tomando pé, não sabia nadar, batia água:
— Dobra a língua, que isto não é dos nossos estatutos. E bem
que eu não quero morrer sem que ela morra... Sabes que sou sócio da
Sociedade Olhar de Jesus que ampara as decaídas.
Alfredo sacudiu o ramo, descascou um camarão seco, olhando
aqueles excursionistas, no regozijo dominical. Seu Ribeiro lavava-se
de seis dias de repartição, e do mergulho saía recitando:
Porque na terra deu-se apenas isto
Multiplicou-se o número de Judas
E vai crescendo a prole de Pilatos...
Zematias enxugava-se, branquíssimo, magríssimo, contrariando-se, procurando o sol, ou enxugava ainda o seu terror?
Filemon escondia-se no cipoal, coçando o peitame, era ou não era?
— Quero um grama de rádium! — gritou, rouco.
[44] Alfredo via-lhe o gordo rosto angustiado. O sol varou a
folhagem. O olhar da espiona, era? Alfredo mergulhou, abriu os olhos
no fundo, mais só, muito mais só, boiou ouvindo:
— Viva os Garimpeiros! Viva os Garimpeiros!
— Este minuto só, em troca de toda aquela eternidade lá
embaixo! — Ergueu-se Filemon esticando sete dedos. Alfredo
mergulhou de novo, tão-tão longe dos três que bebiam, partiam
caranguejos, cantavam. Mais longe de si mesmo, sim, batendo esta
água, agora batendo aquela porta em vão,. e aquela noite em que entra
pelos fundos do chalé o barbudo assassino carregando a desacordada.
É ou não é uma. visão celeste? Onde o italiano do chouriço? Ouvir
dele os sonetos que só aquela da veneziana merecia, sim, sim o carca-
mano onde morava? E Catânia, em que parte da bota, aquela do mapa,
que o mestre de Geografia enchia de cana e virava?
— Comer! Vamos comer! Esfreguem a alma!
— Sai isto de mim? — indagou, suplicante, o Filemon, batendo
o peito, logo um trago.
— Este sono, esta contrariedade? — zombou o Zematias,
tapando o rosto contra o sol.
— Abre um bicho desses, Alfredo. Esta unha! É ou não é uma
visão celeste?
Alfredo apanhava a unha. De que valia? Onde o chouriceiro?
Zematias cabeceava de sono. Ou vomitando o seu terror trazido da
caatinga? Debaixo da ramagem, a mão n& peito, seu Filemon parecia
sabendo a verdade.
— Sob o signo do caranguejo, Filemon! Comer! Viva Os
Garimpeiros! Viva a democracia liberal! De 24 de fevereiro, a nossa
Carta Magna!
Os três escorregaram no limo e na areia, um trem longe apitou.
Alfredo espremia solidão e do mergulho breve trazia sobre as costas
todo o chalé com a desacordada no meio da varanda. Os três
emborcavam. Seu Ribeiro erguia a garrafa: E tu, verdade viril por
quem trabalho, com a alma agradecida dos melhores paraenses, rodeie
cada vez mais [45] carícias sem conta a existência daquele a quem
deve o límpido fulgor de suas louçanias! Bebamos! Nem um canto de
saudade!
Zematias tentava acordar, Filemon mirava n’água o seu
peitame, corriam ecos pelo mato, os passos no chalé entrando na
varanda. No meio d’água os três abraçavam-se, deu sol na garrafa de
bubuia.
— Será o meu banho de despedida? — perguntava Filemon.
— Só vestir a roupa, visto a contrariedade — lastima-se
Zematias.
— Brilhe ao sol a nossa flâmula — gritou o seu Ribeiro.
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Alfredo abriu o peito do caranguejo com um súbito desespero.
Os três saltaram d’água, já se vestiam em silêncio, agora é sol no
caminho, onde o chouriceiro? Aqui no pé da plataforma o cavalo já
bem idoso.
— Me ceda um tempo só prum galope?
Trotou à volta da estação, sobre o sono do Zematias, o peito do
Filemon, a flâmula do seu Ribeiro.
— É o teu domingo hípico, ginete!
O cavalo empacou.
— Moço, isso é o aviso dele, melhor que desapeie. É a idade.
— Minha ou dele?
— Dele. Não queira o risco.
Soltou a rédea, foi-que-foi longe, desapareceu a vila. tomou a
galope, vamos, velho, senão perco o trem, o trem chegando. O trem,
Alfredo! O trem! O trem partia.
Apela na estação deserta. Onde o chouriceiro? Agora rodeia a
oficina da estrada de ferro; os ferros descansavam ou se cobriam de
ferrugem e limo. Voltou ao igarapé, o mato resingava, quem que ali
deita a cabeça no tronco?
O folharal fiava os escurões para a noite. Atrás do tronco a
mulher soluçava.
— A senhora...
[46] — Vamos, Durvalina! Acabas é tendo o inocente na beira
deste igarapé, sua desesperada. Querer parir como as vacas do
compadre Abreu, cristã?
Três homens agarram a mulher. Não quero. Não quero! A cristã
debatia-se. Adalberto! Adalberto!, gritava surdamente. Alfredo
seguiu-os. Entraram numa barraca, os gritos continuavam. Nem um
trem? A alegre excursão! E se a pé até a cidade? Seria a mãe assim,
grávida do primeiro filho, fugindo pela beira do igarapé, as mãos na
barriga, Adalberto? Adalberto?
Dos três garimpeiros... Ribeiro, na cadeira de vime, onde
esqueci a flâmula?, o Zematias aposta no relancinho o sono e a
contrariedade esquisita, o Filemon, à mesa espírita, isto aqui no peito?
Isto aqui no peito? São Pedro, lá em cima, arrumando as malas, ia
viajar? Adalberto! Um foguete pelas alturas do Ananindeua. Debaixo
deste caramanchel de maracujá, valia um descanso, sim. Da velha
casa saem morcegos apressados. Será sono? Os caranguejos agarram
o cochilo, quando aquele copo d’água nas mãos da italiana? Filemon
abre o peitame, engolindo este limo, este domingo. Os morcegos
olham a perfeição deste sono e não ousam, o pente cai do bolso, pinga
das folhas a madrugada, os galos não respondem, gordos os
caranguejos em maio, de que valia tudo? Os galos não respondiam,
vamos de volta a pé, carregado de caranguejo, garrafas de bubuia, os
gritos da mulher, o pé do urucu morrendo, o burrinho no ombro, afia
as tuas pestanas, espiona, e espia este-um aqui descaminhando pelo
trilho do trem, amanhecia rosa com duas estrelas crepitando alto, rosa,
entrava pelo sono, restituía íntegro para o mundo este olhar, este
passo, este rumo, flâmula no ombro, alegre domingo em Marituba.
Iam a pé para a usina as quebradeiras de castanha.
Enforco a aula de desenho?
Dá volta pelo Reduto, um café, ali se demora, vê a mãe de Zuzu
da Jaqueira (tão cedo?) à porta da lojinha [47] mi|rando, esquecida, a
peça de chita que o sírio desdobra e pendura, oi a tapuia-mãe não tira
os olhos.
Deu a volta, de novo virou-se para a loja: O olhar da senhora na
chita que o vento sacudia.
E vem, a zanoia das borboletas lhe aparece, o beiço grosso de
pintura, o cabelo encaracolado, o tamanquinho, um galho de roseira
com duas rosas na ponta, os olhos cada um para o seu lado.
— Caçando borboleta?
— O senhor, sim, que mais parece. Vá, vá mangando, que um
dia... Um dia vai ver é eu saindo com a minha criação até a bordo do
vapor inglês.
23
— Já viu um vapor inglês?
— Sempre olho nos anúncios do jornal, aquele vapor. Em
pessoa mesmo nunca vi, assim de dizer que vi de perto, de pertinho,
não. Mas penso.
— Pensa?
— Não é? Oiço ou não oiço que tem navio inglês que vem e
vai? Quem que compra borboletas? E essa flâmula enrolada na mão, é
o seu clube?
— É.
— Me deixe ver as letras.
— Não. É um clube proibido. Não pode ver. É feio. Onde vai?
— Ali cobrar uma roupa. Depois vou na Cidade Velha. Lá onde
morei.
— Te acompanho?
Tinha morado, sim, na Cidade Velha. Também numa estância.
Sendo que lá, por mui pobríssimo que fosse, sempre cabia. Agora?
Naquele tal de Não-Se-Assuste? Na Cidade Velha, sim. A mãe levava
ela para as freiras, para a porta do Arsenal, os marinheiros lhe davam
rebuçado, das cinco, na Sé. Dava-lhe vertigens, sabia? Certa missa,
zonzeou, olhando os vitrais, como se fosse ficar num deles, não sabia,
a cabeça rodava, por falta de café não era, bebeu [48] com pão, ou
medo? Fugindo de rezar ou ainda agarrada no sono? Nosso Senhor
lhe dava a modo de um calafrio, de madrugada. De menina rezando
assim cedinho, a Nossa Senhora de Belém não aprovava. Ah, tinha, às
vezes, cada um desgosto! Então que carregava cada aborrecimento!
Olhasse ela por dentro. Por exemplo, cobrar roupa. Cabia? Era um
instante só, passava. Passava? Primeiro um e outro preferir errando,
confronte as vitrinas, quiosques, aquele pano tão primeira vez que via
no Paris n’América, e se desse a cabeça de ir no cais? E aquela
boneca, ali na Santo Antônio, de encher o colo? O olhar nas continhas
daquela volta, tanta rede no Mercado de Ferro e dela nem uma?
Doideira de sair descalça entrar correndo na Gurjão provar todos os
sapatos de seu número, em todos da prateleira deixar o rastro de seu
pé e ir dizendo, ao ver cada um no pé das outras: Esse foi meu, meu
também aquele, todos por mim já usados.
— Meu pé é grande? Acha?
— Mimoso.
— Mimoso? Mas ah! Só estou seu gosto! Pois bem, muito
obrigado. Vou pôr no meu cofre a sua palavra.
— De vez em quando abra o cofre e tire a palavra que eu
areio... dou um lustro. Sim?
— Acabei foi enfiando a cabeça num quintal de borboletas.
Crio?
A zanoia riu tão menina, lembrou aquele rir da Semíramis no
baile em Muaná, e aqui os dois caíram pensativos.
— Agora, noutro mês... Parece. Ao que zoou... Zoou... que vou
pra fábrica de cigarros.
— Cigarreira?
— Aleja?
— Quem disse?
Nele brotou a moça do gergelim na praça: E tu, onde tu
trabalhas?
— Fuma?
— Eu?
[49] — Pois aprende com cigarro feito da minha mie, sim? Ah,
peguei a falar, peguei a falar, já está então bem tarde, ah! vou cobrar a
roupa. Tão aborrecido... É num instante. Me espera?
Voltou.
— Na Cidade Velha, a estância onde morou, onde?
Ela não quis dizer, caminharam, ela entrou em Santana, beijou o
pé de São Pedro. Quando viram estavam na Cidade Velha, cheios de
suor e espanto. A mocinha olhava. A velha cidade lhe parecia mais
pesada, a Sé caindo-lhe no coração, com aqueles altares, aquelas
portas. Alfredo esperou que ela rezasse.
24
— E a estância?
— Olhando esta queimadura no braço, esta marca? É Deus que
ainda pude pular pela janela. Uma semana antes do casamento da
titia.
— Que foi?
— Queimou tudo, o casariozinho queimou tudo. Foi pegar fogo,
a tia Magui casou-se.
O casamento da tia? Perdeu a conta do tempo do noivado. A
caixa de charuto assim de postais só do namoro deles e iam ficando os
dois tão ressequidos, tão aborrecidos de se olhar um para outro aquela
toda noite nas cadeiras de fundo furado! Ele chegava, assinando o
ponto, tal e qual como na sua repartição, a das Águas, era do
protocolo, entretia-se com um almanaque e ela com o croché. Ao
apito do Utinga, às nove, o noivo bem, boa noite, não te esquece,
Magui o gengibre pra cabeça. De primeiro mimavam o futuro com
casa própria, mobília, e toalhas brancas no domingo, e lâmpada acesa
ao Coração de Jesus, e um peru no Círio. O mimo escoando-se, deu
broca no futuro, este agora tão atrás, já nem se davam conta, quebrouse aquele vidro de aumento que era a esperança. Nada mais preciso
senão casar. Nada mais que o pobre dia, já cheio de bicho, velha
goiaba do chão. No que chegou, já tão fora de tempo!
[50] Passou do ponto, o doce queimou. Por baixo daquele sim,
um cuspo engolido.
A mirolha queria o casamento da tia mas na Sé, segurando-lhe o
véu, conta os carros, os preparos, as posições, o fotógrafo batendo a
cerimônia. Acabou que nem na Sé foi, tão chinfrim na Intendência,
cobertos de mofo os noivos pareciam. Os botões da grinalda caíam de
velhos. O padre casava ou dava extrema-unção?
— Casar, eu? Só se o rapaz na mesma horinha me dissesse:
Vamos ficar papel queimado um com outro? E eu, aí sim, pois vamos,
seu bobo. Pois depois a tia veio: Olha, não diz nada a ninguém do que
vou te dizer: Tão me acostumei de ser noiva que cada vez mais
aborreço de estar casada.
— No Bosque, você dança? No Bosque?
— Bosque? De bosque só sei quando danço ali na rua na roda
das meninas.
— Quantas vezes foi anjo de procissão?
— Uma só vez ah, me aborreci! Mordi o dedo de outro anjo, fui
excluída.
— Quer dizer que é um anjo rebelado?
— Hein? Olhe, se for cigarreira até quem sabe... vou tirar uma
linha desse seu Bosque. Onde é mesmo?
— Tão inocente!
— Juro... Juro... De bosque só na roda da D. Sancha. Bem,
agora a dona deve estar em casa. Vou cobrar a roupa. Espera?
Tinham voltado da Cidade Velha. Alfredo só agora temia ser
visto no lado da zanoia e desse temor se envergonhava. Galho da
roseira na mão, beiço grosso de pintura, a mocinha batia os tamancos.
— É num instante. Espera?
— Espero.
Não esperou. A moça voltou à estância, sorrindo para ele:
— Esperou a vida inteira, não?
[51] — Foi.
— Olha a mentira dele, pois foi menos dum instante mas ah!
Mas ah!
— Fui caçar borboleta.
Ela, mordendo o beiço, num silêncio, não sabia onde pôr os
olhos, quis rir, tapou o rosto. Alfredo, batendo a porta, entrou no
quarto, borboleta coisa nenhuma, coisa nenhuma! Desceu ao
banheiro, foi ao portão. A vesga, já sobre a tina, lavava; as duas rosas
numa cuja sobre o cepo.
Mas não me lava aqui por dentro, borboleta coisa nenhuma!
Longe no campo, no caminho das formigas, desmaiou a mãe. Vão
morrer as pixuneiras do campo. Por que não foste, tu, Sabá
25
Manjerona, nas tuas rondas, que acudiste, levando-a para a cama de
ferro, esperando que ela acordasse e viesse pelo caminho de baixo,
molha a cabeça com água do moinho, o velho cachorro brabo lambe o
pé dele, e entra no chalé pelos fundos, senta um pouco na escada,
devagarinho na varanda, maneja o prelinho, ralha com os ratos do
telhado...
Agora aqueles gritos no Não-Se-Assuste: O diabo te entortou a
vista, infortunada! E o meu lenço? Tiraste do lugar? Quem sabe já
não vendeste o lenço que o teu irmão me mandou? Dá cá o lenço,
anda, quero apalpar. Bem pausado, bem pausado, estás correndo
muito, desembestada.
A mocinha lia, lia. Ao menos me deixe molhar a goela, mamãe,
espere um pouco.
Noutra noite, a zanoia virou na roda, cantou a D. Sancha, veio
assoviar na porta de Alfredo.
— Promessa é dívida, quedê as borboletas? Sua roupa, quem
lava?
— Olhe aí sua mãe...
— Não sabia?
— Que?
— Que cegou da vista, entrevou das pernas?
— Ela?
[52] — Não sabia? Mamãe paga inocente. O senhor tem por aí
aquele do Imperador Carlos Magno e os doze Pares?
Na sombra os olhos dela ganhavam uma fixidez, que diante dela
tudo vira um pouco inocente? Suava no rosto, pálida. A mãe queria
ouvir romance toda hora ou folhetos da Guajarina, onde achar?
Andava pelos vizinhos catando este e aquele, agora lia A Condessa
Cega, A Condenada à morte, lia com muita pausa, rendendo,
retardando o mais possível, e a mãe, pelas noites, a escutar, adeus,
sono, escutando, nunca satisfeita, então parecia que a vizinhança
dormindo escutava também. Mamãe, já é bem tarde. Acorda o
vizinho. A um resmungo da mãe, continuava, O galo já cantou,
mamãe. Que tem o galo com a leitura, boa merda. E assim, folha a
folha, ia lendo com o galo cantando, já tinha gente cá fora aparando
água da torneira.
Conta no dedo, tirante os folhetos, bote dúzias de romances que
leu, que a mãe ouviu. Aquele-um grande, em fascículos, olhe a altura
deles, pesando mais de quilo e meio, leu todinho, quando acabou uf! a
goela queimava, ardia a língua: Ponto Final, mamãe. Aqui bem
pingado. Pelo tanto que padeceram, ela e ele bem felizes. E nós?
Diabo! tu não saltaste as folhas? Parece que saltaste, sua semvergonha, o pouco tempo de tua leitura não casa com a porção do
livro. Não vejo mas apalpo, sua sem-vergonha. Tu saltaste!
— Um aí entre os seus sem ser de estudo, tem? Tomara que
não, senão me agarro nele, tenho de ler perante a mamãe até o ponto
final, e babau novena de São Raimundo, adeus, rua, roda, cabeça no
portão, e atrasando a roupa, ai! acaba me caindo a língua da boca... Já
me corre é um frio aqui por dentro da espinha. Também a
D. Imaculada, essa portuguesa da estância, que é que tinha só de
emprestar um só dos dela? Mas não! São em língua francesa, me diz.
E olhe, no que acabo de ler, devolvo. Inda ontem devolvi pra dona,
uma cara-de-onça lá de Curuçá, um mas desconforme! (carreguei o
bicho num paneiro, e olhe [53] o tamanho peso! E escute eu dizendo
para a D. Imaculada:
— Pois me deixe ver o francês de seus livros. E ela: —
Suspeitando de minha palavra, menina? Suspeitando? É assim?
Os dois irmãos? Onde que mais senão no mundo? Passavam,
esta e aquela viagem, nos monarcas do Lóide, e deixavam um sapato,
um perfume, inveja e fogo nela, de segui-los. Nunca deixavam que
ela fosse no cais. Por quê? Porque não, respondiam. A bem da
verdade, só um mesmo, o mais velho, deixava assinzinho as coisas
em casa, o outro, o mais novo, nem “Bênção, mamãe?” Só mandava
retrato, em cada porto tirava um. O mais velho? Tempo já que não
26
passa por Belém! A última que veio? Já não dizia macaxeira, dizia
aipim. Nem jerimum, era abóbora. A mamãe babada. Filho bom como
aquele? Quem que mais viajado? Felizona, ditosa mãe de semelhante
filho. Andando que anda pelo mundo, sofreu um arranhão a índole do
Imbiriba? Quem te disse? Por que... olhe que o Rio de Janeiro é que é
encantador de maridos alheios e de filhos, pois de toda aquela
encantação, Imbiriba nem sinal. Assim como saiu de dentro da mãe,
assim é dentro do mundo. Um agrado, sempre deixava, ou mandava,
um corte, um cartão, Quer ver? Justinho na hora da aflição de não
achar nem nas frinchas da mesa um bago de farinha, e já pensando
pedir uma sopa no Santo Antônio, chega da América do Norte aquele
lenço de seda, todo-todo amarelinho, tão bem apreciado, de se pôr na
cabeça, passado na gema. O de comer? Não tinha? Mas não chegava
o lenço? Vamos torrar, mamãe, a gente oferece na janela da filha do
italiano, sim? A brabeza da velha! De tanto jejum desmaiando, passa
e repassa o lenço no pescoço, até com uns orgulhinhos de faceirice:
Agora isto! Tu que te atreva. Que a velha cegou e entrevou, disso, até
hoje o mano não sabia. Ela não quis que mandasse dizer, proibiu, nem
uma linha, sim, um recado sequer, um sopro no cais. De minha parte
respeito as vontades dela. É pura seda, dizia, apalpando o amarelo,
muito conhecedora, coração despencando à falta dum caribé. Coma o
lenço [54] de seda, mamãe. Jantando e almoçando as saudades do
filho se empanturrava. Num esforço da faceirice, pedia que Lhe atasse
na cabeça emplastada o lenço da América do Norte. E logo, brababraba: Coisinha, estás engordurando o lenço, que o teu irmão me
mandou, nos meus implastos, diaba! Mandava guardar o presente bem
debaixo da imagem de Nossa Senhora do Rosário. Tu nunca me pega
nesse lenço, sua mexe-se-mexe, não te enxere com ele, respeita o pé
da santa, vê lá. Ela queria o lenço para quando morresse, ninguém lhe
visse o rosto nem por parte de sua morte olhar os vivos, fechem o
caixão com ele dentro. Ora, mamãe, a senhora só quer gozar quando
morrer? Ele assim não lhe manda é mais nada. Mais nada. E quando,
de repente, aqueles cinqüenta mil réis? Quinhentos, espalhou-se pelo
Não-Se-Assuste, meu filho mandou mas foi quinhentos. Desde os 18,
Imbiriba embarcava. Tudo que mais queria era logo aposentar-se, o
resto da vida então entre o peixe e a água de coco em Salvaterra.
Papéis, selou, protocolou, direitinho tudo? Bem! Alto mar, meu
velho, adeus, linha da Europa, linha da América, bom proveito,
fornalhas, portos do mundo, muito obrigado por tudo, fundeio nesta
praia, agora é na montaria em cima das marés de Soure pescando, ou
debaixo dos coqueiros de Salvaterra tirando um cochilo. Belém, esta,
não engolia. Na cidade, quando nada, sempre era uma dor de dente.
Que a mãe ficasse em Belém, o descanso dele, santa paciência, era
aquele caldo de gurijuba e o coco verde em Salvaterra, lá um
domingo o gole de tiborna pelos roçados e fornos de farinha de
Jubim. Na visão da mãe cega, onde estava sempre o filho? Onde mais
se não a bordo na boca da fornalha? Mas cercado pelos anjos. Quem
quisesse espiar pelos muitos buracos da barraquinha, espiasse: Tamanha madrugada, a mãe bem rezando. Aos vizinhos: Imbiriba, vejam o
que lhe deu no juízo, pois não mandou uma caixa de passas? E aquele
sapato... vai buscar, não esconde o teu sapato, dos outros, coisinha!
Não esconde dos outros. Ela? Ela esconde! Certa de que a filha não
trazia, que [55] sapato não tinha, O Não-Se-Assuste viu foi no Natal:
Da parte do filho o embrulho de castanhas portuguesas, toca a zanoia,
da parte da mãe, a distribuir, em cada porta ou janela, lembrança do
Imbiriba, não repare a insignificância, uma, todo mundo quebrava a
sua castanha de Natal, era ou não era? As restantes — toma a tua,
coisinha — a mãe guardavazinho no balaio dos retalhos, guardava,
até que apodreciam.
— Fez de um saquinho de castanha um castanhal pra todos.
Imbiriba, o mais velho, até que engordou, linha da Europa, linha
da América, boca da fornalha, da fornalha para o ventilador e um
copo de água gelada, ai! Um fôlego, um ar no bofe, enxuga este suor,
não mereço? Ah, mea filha, tu veste, tu luxa mas não sabes que tudo
27
isso é o teu irmão na boca da fornalha, aquele vagante por esses semconta e arriscosas e diversas paragens e onde atracava, aí da América,
ali de Lisboa, lá vem carta, olhe esta encomenda. Boa noite, comadre
Germina, aqui este dinheiro, de ordem de seu filho, chegava o
compadre Manduca Bagre que trabalhava no cais, coitado, carregando
aquela hérnia lá nele, que a hérnia? Só o tamanho, faça um juízo. Que
é que fazia ainda aquele padecente no cais? Uma vez, Imbiriba
viajando, vinha da América, dormia. Quando viram, Imbiriba!
Imbiriba! O adormecido soluçando, soluçando, que soluços são esses,
e de sono ferrado. Sacudiram ele.
— Em que altura estamos?
— Muito ao largo.
— Não se pode mandar um telegrama pro Pará?
— Não, Imbiriba. Só pela altura de Salinas.
Pela altura de Salinas, com resposta paga: Notícias mamãe.
Responda para Bahia. Que a mãe tinha morrido, o que sonhou, sim.
Com resposta paga, com resposta paga! Para a Bahia. Passe, passe
logo, compadre Manduca Bagre. Para a Bahia. As lavadeiras
entravam, sentavam, o telegrama de mão em mão, resposta paga,
ficavam escutando. [56] Res|posta para a Bahia. Para a Bahia. O
vapor só vai pelo mar de fora. Bahia, Bahia, entre a espuma das
lavagens, Bahia pelos lençóis do quarador. Tua mãe telegrafou com
resposta paga, foi? Indagou aquela menina da roda da rua, meio não
acreditando. Da Bahia só conheço é aquela senhora do sobrado, mas
de um homem a voz dela, credo!
A zanoia sacudiu o vestido.
— Só esqueceu da minha, não?
— Da sua?
— Sim, da castanha que me cabia.
— O senhor nem sonhava de vir morar aqui, nem sonhava, ora,
ora. Só uma?
— Então só uma não bastava?
— O senhor que sabe...
— A metade já me contentava.
— Isso o senhor quer dizer é mais o avesso, o avesso do que
diz. Me morda aqui... Não mangue de nós, que-que eu tinha então de
lhe contar. O senhor só mangando. É assim o seu mau-juízo?
A zanoia espichou o minguinho e sempre ocupada em falar,
agora com voz ressentida:
— Tu veste... Tu luxa... Me visto? O mais, e olhe lá! Que faço,
é-é me cobrir. Me cubro, não me visto. Ao menos aquele lenço, uso?
E é só a boca da fornalha? E a beira daquela senhoríssima tina, a
corda de roupa, o quarador e entrega e cobra e lá vem na cabeça, de
novo, o trouxão? Ah, não? Mas coitadinha da mamãe, sempre pagando inocente. Mamãe passa martírio.
Coçou o cangote, desceu o alpendre, voltou num pulo.
— Sendo que o filho mais novo? O outro? Sobre este a mamãe
costura a boca. Abra só por uma curiosidade o travesseiro dela, na
rede: Assim de retrato dele. É o preferido em segredo. Também meu,
Nosso Senhor não me castigue. O outro, meu aquele-menino... o
outro? Eu, eu, se eu não fosse irmã dele, ou não sendo irmã, não fosse
assim tão desamparada de feição e talhe, as duas coisas não [57] fosse
para poder ser a outra, olhe, pela luz divina, que estava aqui ela se
arrastando de joelho na pedra, na folha de urtiga, no caco de vidro, até
chegar no cais do porto rogando a Osvaldo: Te casa com ela. De tanto
que ele apaixona as pessoas. E tão sem cabeça, tão, tão! Do semblante? O senhor perto dele, vá me desculpando, que o senhor até que
não é tão feioso, mas desaparece. Qualquer rapaz dos que eu conheço,
comparado com ele, ponha no lado dele, desista do concurso, que não
tem um. Ver um rosto tirado de um cinema. Agora me escute, tire só
um cálculo:
Inteirinho escrito, escarrado, sem tirar nem pôr é um puro
demônio, que eu não pague pelo que eu digo. Me coçava com galho
de cuieira, me queimava com tição. No meu braço a dentada dele,
28
bem funda, arruinou. Me levantava tanto aleive. De perder a conta a
mamãe me castigando eu inocente-inocente, o aleivoso atrás da porta
bem roendo caroço de bacaba roubada do alguidar da vizinha. E a tão
recolhida paixão da mamãe por ele, meça! Abra o travesseiro, aperte
o nariz por via do enxofre e da fumaça e puxe de dentro os retratos,
mesmo que um mágico tirando o sem-fim das fitas da cartola vazia.
No que amaldiçoa, a mãe suspende ele entre os querubins. Quando eu
era anjo de procissão, no meu lugar, na procissão, ela só via o Osvaldo. Isso tudo ajudou a cegueira e a entrevação dela pois tão assim
tão das trevas outro mais não tem. Por que, por que eu falo? Se eu
também ficava cega, entrevada? Ficava, ficava. Ele cega as pessoas,
por onde passa empeçonha. Deus de misericórdia, lugarzinho naquele
caldeirão, dele, lá está reservado, se já não está lá. Mas ó mano, me
leva contigo, vem, me carrega!
A zanoia fez que se assustou.
— Olhe, olhe! Não leve a mal que tudo é a mea pura bestice. Eu
nos mais das vezes vario, entro na corrente do meu irmão. O que me
falta é eu ter uma certa paciência comigo. É, lhe juro. Aai, que às
vezes me falta! Passo martírio! O meu merecido não era este.
[58] De costas para Alfredo:
— Enfim, mamãe cegou por só ter olhos de coruja e entrevou
porque os dois dela, meus irmãos, as pernas deles não param no
mundo... Demais. Demais. Mas, e eu? As minhas pernas? Ando? Eu
ando? Quando andei? Eu ando?
Insistiu pelas borboletas. Espiou o quarto.
— Um dia, um dia... Um dia entro aí dentro com um balde
cheio e baldeio o seu assoalho. Me deve, pelo menos, um par de
borboletas, ouviu? Onde está sua roupa suja?
— Aquela moça lá da frente, da janela de veneziana, mal
aparece, mal sai... pode me dizer o nome? Conhece?
Quis dizer mais: lavas roupa da casa dela? Não disse.
— Quem? Quem?
Agora é Alfredo em silêncio, quase alheio, meio impaciente.
Sem mais nem menos ela sentou no alpendre, repentino dobrou-se
num choro, miúdo, abafado, não cessava. Alfredo inclinou-se,
receando gente.
— Vamos, então, no Una, domingo, caçar borboleta.
Num instante, ela de pé, assoa-se, negou a mão, desceu.
Alfredo escutava.
— O remédio, mamãe.
— Remédio é aquele rabecão, coisinha! Já acendeste lá fora o
toco da vela para as almas? Me carrega até ao bacio, desgraçada. E o
livro? Onde tanto tempo te meteste que não trouxeste nem uma folha
de livro? O Imperador Carlos Magno, não me prometeste, esta noite,
infeliz? Mas a quem devo culpar, a quem? E a tua vaga na fábrica de
cigarros, diabo, quando, mas quando?
— Tia Magui não traz a resposta, sábado? Sábado, mamãe.
Sábado. E só quero ver quem fica então cuidando da senhora. A
minha alma? Só meu corpo lá fazendo cigarro?
Alfredo escutava. Ela voltou a bater roupa, repetindo
abafadamente: Sábado, sábado. Carregou água, pendurou na corda um
lençol grande, lá dentro a mãe suplicava: O Carlos Magno, mea filha,
o Carlos Magno.
[59] De manhã, ao seguir para o Ginásio, Alfredo deu com ela
que vinha da padaria.
— É domingo, no Una. Senão borboleta, vamos ver as cobras
do Posto?
Ela deitou a cabeça pra trás, apressou-se, correu, daí em diante
sem uma palavra, sempre fugindo.
Alfredo, assim que saía, entrava, assim que entrava, saía.
Domingo. Viu que ela parava no canto da rua, fita no cabelo,
calçada, guardando um vexame.
Esperando por ele?
Alfredo toma o rumo oposto, fugindo, correndo à própria
29
pergunta: Mas por que fujo? Por quê? Ela o esperava? E aí, atrás da
veneziana, na emboscada a outra! De olhar perfeito, espia, sacudindo
o cabelo nas costas, a alça dá camisa escorrendo pelo braço, espiando,
espiando.
Correu na casa do seu Ribeiro.
— Tem aí um romance qualquer?
— A Carne? A Carne?
— De moça ler e velha ouvir. Um. Mas bem enorme. Tem o
Carlos Magno?
— Bem enorme? Quo Vadis? Serve?
Correu com o livro para o portão nem sombra da zanoia.
Entrou. Sobre a tina, sem fita no cabelo, descalça, ela batia e
ensaboava roupa.
Voltou com o livro ao seu Ribeiro.
— Mas já? Já leu?
— Já.
— Concidadão! Concidadão! Lhe apetece um charutinho?
Domingo, a Peixe-Boi, combinado? Cada qual com a sua flâmula.
Dou-lhe uma das minhas. Deixa que vou remexer no caixão do
corredor, desencavar o Carlos Magno, desconfio que tenho. De boa
estante careço para desentulhar a livralhada. Esse do caixão arrematei
num lote e com um único lance. Estão na minha posse desde...
desde... o fim da guerra. Entre eles o Amante de Jesus. De Jesus, [60]
cida|dão. Fazer crer que Jesus antes de entrar, aquela triunfal entrada
em Jerusalém, foi... Cedeu aos encantos da terra? Tens visto a
madona? Espio, espio, e não descubro dela sequer um fio de cabelo.
Concidadão! Concidadão! Então, Peixe-Boi?
Alfredo andou pela baixa da Curuçá, apanhou a borboleta e
chega no pé da tina:
— Cumpri ou não cumpri? Tome...
Inclinada sobre a tina assim ficou a zanoia, tirando espuma do
braço.
— Solte a próxima é que é. O senhor só o que o senhor usa á
malvadez?
Até que veio a tarde, na D. Januária, eivém o Curro, um
bagageiro, a arrastar-se. Alfredo! Alfredo!, e salta do bonde andando
aquele pretão alto e maneiro, todos os dentes na risada maciça,
Alfredo meio assustado, agora abraçado, o tio, O tio Sebastião, o tio.
— Batendo este chão dos lobos atrás do teu rastro, foragido! Lá,
na José Pio, naquela campainha, aquela maçaneta, tudo debalde, me
enjoei de apertar e bater, ninguém. tudo trancado. Bordejei pelo
vizinho, indaguei que indaguei, canso de tanto indagar. De ti nem um
traço, me informei na Ruy Barbosa, as primas abriram na reclamação:
que de ti nem um adeuzinho passando de bonde pela janela da casa.
Mas assim não, Alfredo! O remédio era eu ir agora lá no Liceu
indagar de tua freqüência por lá. No Curro, as três vezes que fui?
Tudo debaixo de tranca. Andei catando, catando e dei na José Pio
com aquela moça debaixo da jaqueira. Atrás da jaqueira a moça só
mostrava a cara, dizer a cara, minto, só os olhos e uma parte do
cabelo, só os olhos.
— Só os olhos?
Alfredo se lembrou da formiga taoca que fazia o tio irresistível,
Os olhos da Zuzu. Era?
— Atrás do tronco da jaqueira só o par de olhos olhando e bem
miúdo. A modo que à míngua de uma roupa, [61] não mostrava o
corpo. Só os olhos. Disse o teu nome, ela com o dedo que não, me
respondia que não, não sabia de quem se tratava. Falar não falava, no
que olhava, tirava os olhos, só o dedo conversava. Mas no pouco que
deu pra ver nos olhos dela faiscou que te conhecia, sim, sim, embora
acenando que não. Que te parece?
— Vou lá adivinhar, titio? Na jaqueira? Só olhos? Não era
efeito da formiga, tio?
O tio fingiu espanto, garboso, consentidor, de repente
— Aquela que mordeu o senhor. A força que lhe dá! Não era?
30
— Tu, tamanhão que estás, metido ainda com aquela formiga?
Bem, e então? Não lhe disse? Cheguei ou não cheguei a tempo? E
essa cara amarela e esse esvaimento, meu sobrinho? Por que não toma
um batatão, me andas é bem puxado!
O tio numa encadernação! Pé-de-anjo no alvaiade, calça branca
talhe de Leônidas, camisa urucubaca quebrando tigela, paletó de
burro quando foge, gravata pegando fogo, palhinha, o tio escorrendo
o seu piche, sua altura, suas caminhadas na Amazônia.
No portão da estância, paga-lhe os dois meses de aluguel e lhe
escorre na mão uns trocadinhos.
— E depois, meu sobrinho, e depois?
Alfredo, agarrado ao portão, cuida que o tio não veja o quarto,
não espie a estância por dentro, não aviste os urubus já ali tão
inquilinos.
— Me deu na vontade de levar comigo na viagem um
almanaque da César Santos com o nome dos quarenta remédios da
casa. Pode que eu tenha uma precisão é só correr na lista, mando
aviar. Me arruma um?
— Mas não custa ir na farmácia. Vai mandar aviar os quarenta
remédios? Demora em Belém?
— Chegar, virar, o repente de te dar a bênção e azulo.
— Não baixou pelo Arari?
[62] — Vim que vim me arriando aí de muito mais altura. Não
era em Belém o nosso encontro? E dela? Tens noticia? Tens escrito?
— Dela?
— Dela, sim, tua mãe, menino!
O tio mentia? Calavam-se, embaraçados.
— Do Maguari, Veio? Nunca se soube mesmo que fim levou
aquele Dr. Edmundo no búfalo, titio?
— Até agora... Uai, que lembrança essa?
— Pelo menos numa conversa, quem sabe?
E tinha um nome na boca para indagar do tio, não indagou.
Calavam-se, embaraçados.
— Onde atraca o seu vapor? Ou é ainda aquele cavalo? Um
barco? Gaiola? Pontão? Fretou o rebocador Conqueror?
O tio rasgou a risada, amaciou a fala, vagaroso.
— Viajando a bordo de uma pele de jibóia... vou, sim. Pois se
admire.
— Esfolou a cobra?
— A pele dela boiou rente-rente da popa do meu casco no furo
do Pipixuna. Recolhi a prenda, me debrucei na borda e mandei mea
voz lá pro fundo: Dentro dela sigo, meu caruana. Ao que o caruana
respondeu fazendo dali por diante aquele tão bom tempo e aquela
bem lisa macia maré, eu ia pelo furo, as duas beiragens se roçando
uma na outra que era só miritizeiro cacheando.
— Mas então me viajando pelo fundo?
— É só me enrolar no couro, um repente varo as sete marés, no
ferver de qualquer rebojo.
— Onde atracou o prodígio?
— No Porto do Sal.
— Então, vamos.
A pé devagarinho. Possível encontrar o seu Lício na Sé, ali ao
pé do altar lendo o eterno livro de suas idéias ou escrevendo contra o
governo e a cavalaria. E perto, [63] fare|jando o velho, a Mãe Ciana
com o balaio do cheiro. A pé? Há dias falou na Liga da Liberdade
contra os Lobos.
— Seu Lício prepara o seu curare contra o governo na pia da
Sé? Debaixo da guarda de Santa Maria do Belém? O governo que
solte os seus cachorros. E é bom encontrar a Mãe Ciana. Quero
também levar daquele cheiro dela. Mas daqui até o Porto do Sal a pé,
na pátria-amada, menino? Me deixa num átimo alisarzinho o meu
sim-senhor num banco da carruagem inglesa, meu sobrinho. O bonde
é bom. É ou não é?
— Pois eu sou do peximetro. O andar não é seu oficio?
31
— Este meu pé-de-anjo me sujiga um pouco o dedão. E aqui na
cidade a pé? Aqui o andar, cada braça mede légua e meia, aquelemenino.
— Agora pra onde, titio? O senhor nunca sossega? Ainda
perseguido?
— Ainda secreto. Não sei se ainda perseguido. Se eu pudesse
encontrar o velho Lício na Sé! Vou-que-vou me atirando prum mais
longe.
— Saindo dum longe, entrando noutro?
— Antes daquele nosso encontro em Cachoeira? Me engajei
num arremedo de circo pelas Guianas. Administrei a pantomima.
Fazia a função de porto em porto. O barco lastreado de artista e bicho.
E assim foi, e assim foi, e eu sei que entra no nosso camarim aquele
gringo de um nariz! que era ver rola de cachorro, trazendo no bolso
do culote um trevo de quatro folhas. Que botou o pé dentro, adeus,
modificou. Empanemou. Quebrou todo o segredo de nossas artes
mágicas e pantomimeiras, não dava mais certo um número. O
palhaço, uma noite, veio: Sebastião, adeus. Não sei onde deixei a
graça, que de hoje em diante o meu papel é correr essa Costa atrás
dela, a ver se acho, de novo, o saleiro que perdi. A trapezista, uma
ruivinha de papouco, muito exímia, caiu na rede de um
contrabandista, já levantou-se de barriga, no prazo tem as dores a
bordo, o barco no largão brabo de fora. Vento! Tu lembra da Prisca
em [64] Santana? Assim fui eu. A aparação do umbiguinho? Me
coube a proeza. Nesse dito instante escapole da corda o macaco que
fazia o número com o palhaço e tibum! N’água como se atrás do
palhaço. Não espicho o acontecido: Já lá me vejo é guiando aquele
comboio de gado, ai! Que coitadinho gado tão do magro, tão do triste,
tão nos ossos, que eu me dizia: Esse gado? É devera ou visão desta
paragem? Guiava a um grama de ouro por dia. Bem. Entrego, dou
conta dos meus flagelados e já venho de proa em riba do Maguari.
Quando em Cachoeira? Eu me indagava e assim no corta-volta vinha,
pois não virou a embarcação na corredeira? Doze contos de réis do
meu dinheiro? O meu revólver cabo de madrepérola? Adeus. E no
que, por obra e graça, firmo o pé no escorregume da beirada, Deus te
livre! Então que é pium, ventou foi morossoca me tirando cada lasca
do lombo, popocou tudo, o beiço inchou, inchou o escroto, arriamos o
corpo no remanso e fomos que fomos, até dar com o casco e a
lamparina na Goela da Morte. A Goela da Morte? Era que nem um
vômito em cima do mar. Pois que saía no mar. Aquele aguaçal brabo?
Só barro? Vomitava no mar. Então que avisto um barco garimpeiro
bolinando. Andam aí carecendo dum cozinheiro? E já, dessalgo o
mapará seco ardido, faço torresmo de um que se dizia toucinho e cadê
que mea mão pegava a banda de capivara que só fazia feder? Assim
de Calçoene à Guiana tudo não cabe num só postal. Trago aqui pela
mochila a ripada daquela ventania, o sol, o sal da Costa Negra. Com
quarenta graus e carregado de cada calombo vi o cabo do Norte. Tive
um diamante na mão.
— No delírio?
— No meu exato juízo. Tive. Dizer que tenho? Tive.
Pôs a mão no ombro do sobrinho. Alfredo tomava àquele guri
de Cachoeira, o tio se cobria com a espuma e os estrondos da
pororoca mãe.
— E daquele enfermeiro cego? Fui guia dele. O pé, este agora
acochado no bostoque de anjo, comeu dezoito léguas. [65] E tome
encharcado, te sustenta na estiva de açaizeiro que aí embaixo é o
precipício, rapaz, e cada um monte, de subir, quem disse? e ladeiras
de arrancar de uma só vez, inteirinha, a sola do pé e aqui o folharame
nos metendo na goela e nos botando das suas tripas para um lavrado
seco e atolento com rastro de onça e índio e ossadas que não se sabia.
E o enfermeiro por aqueles trabalhos, acampamentos e loucuras
cumprindo cego o seu ofício, cego, cego. Injeção era raro, ataduras?
O mais era um sal amargo, uns sarros, umas pomadas, umas cascas,
se não sarava, desencarnava. E as trinta e seis cachoeiras? Eu guiando
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aquele cego por trinta e seis cachoeiras. E sete ilhas, o Travessão,
aquela cachoeira onde também tomba o que é o além, o outro mundo.
Mais que o das águas era o barulho das almas. Lugar do muito assombroso. Aparição de acampamentos, palhoça que não era, redes no pau
que não tinha, fogueira que de repente subia e era no céu aquele
penacho que Deus me acuda, todo um pessoal ali fincado, ali virou só
alma catando ouro, enxergando diamante onde só bicho bebe. Vinham
dos tachos fervendo atrás de ouro com que pudessem saldar com o
diabo e pagar a entrada no purgatório.
— O chaveiro do purgatório recebia?
— Ouro? Quer apostar? Já não digo São Pedro... bem... Ou
também não ponho a mão no fogo?
— E o diamante?
Alfredo via no tio, nos olhos do tio a explicação: Trevo de
quatro folhas, os doze contos na corredeira, o guiar enfermeiro cego,
o aparar o umbigo, os quarenta de febre olhando o cabo Norte, culpa
de quem? Tudo ausência de Dolores, tudo ali no duro rumo de
Cachoeira, sempre atrás de Dolores pela Costa Negra, varando os
fogos do acampamento fantasma. O tio, como se ocultasse o
diamante, meteu a mão no bolso.
— Agora? Agora é pra aquelas alturas do Tapajós, vagareando,
vagareando. Ou virar moquém na maloca? Índio come preto. Não
come acará pixuna? Ou tirar uma linha [66] daqueles brabos meus
pareceros pretos, bote um século, no Trombetas. Ouviu falar?
— E ela? Também?
— Que ela?
— Ora, tio Sebastião... E mamãe, viu?
Teme que o tio tenha visto a mãe e confirme, cru e nu, aquela
verdade.
— Ou me trouxe o diamante?
O tio adota uma cerimônia, se descobre, examina o fundo do
palhinha, escolhendo uma resposta, teso.
— Como sabes, não baixei pelo Arari.
— Mas vamos na farmácia.
A cada momento o tio cortava o assunto com a sua risada,
atravessam o Igarapé das Almas, param na Quinze de Agosto atrás
dum caldo de cana. Começa a soprar pelas mangueiras aquelazinha
aragem do cair da tarde.
— E aquele seu cavalo?
— Sempre salto no que vejo. Montaria não escolho. Cavalo,
que fosse meu, já tive? Por essas e aquelas foi que lá me vi num
grande assado: aquele cavalo mal aparecido no Ananatuba, no pé da
porteira, pois não me afoitei em cima dele, o bicho só faltando me
dizer: às ordens, cavaleiro. Dizer que principiou jogando, isto não,
manso até que parecia. Só que a modo queimava lenha por dentro.
Num tal repente empinou, soltou aquele seu relincho, foi lá em cima,
aquela altura, empinando, saltando, me agarrei na crina dele, que não
te conto, desembestando, desembestando, me escarrou no atoleiro e
foi relampeando lonjura afora como coisa que o tropel dele era no ar,
na nuvem, no lavrado do céu. É Deus que passa um caçador, me
puxou do atolado. Montou no Cão?, ele indagou. Um animal do seu
bom tamanho, castanho, a crina a modo.., ah sim, quando ele
desembestou? A modo de uma labareda. Figure-se, era ou não era?
No Ananatuba, arriba de Mocoões. Montei no que não cabia. No
mais, o restante é sempre o trivial, cavalo terrestre, bicho de gente.
Cavalo que cocei, a [67] quan|tidade? Bote! Em todas aquelas
cavalarias, meti o arreio, sim, arção, sela e balança de todo lugar me
conhece e, não 6 o pé, meu jogo, mea montação, meu tropel é muito
conhecido. Cobri o continente da ilha com o meu galope e a mea
risada. Aquele cavalo lá da vila? Foi só aquelezinho instante.
— Que instante?
Alfredo na súbita esperança, o tio revelasse o instante em que
arrebata do balcão a filha do padeiro, puxando-a a laço de dentro da
saca de farinha de trigo. — O tio temperou a goela, esticou-se,
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fechou-se. Tira um espelhinho do bolso, mira o nó da gravata, o
dente, o penteado. Ou só a sua felicidade?
— E o nome do circo?
— O Grande Circo Sul-Americano do Elefante Fantasma.
— Tinha?
— O fantasma? Só o mágico fazia ver. Tinha, sim. O mágico
tirava o elefante da cartola. Diabo do trevo de quatro folhas!
— Será aquele antigo mágico que uma vez apareceu em
Cachoeira comendo fogo e soltando o pombo e que fez filho na Zita
Marques?
— Pois aquele mesmo! Vive agora de filar o gole nas tabernas
de Caiena.
— E agora o seu cavalo?
— Meu cavalo? Sou eu mesmo.
Alfredo recolhia a indagação, cismoso, mudo, e agora o tio, no
igual silêncio, aqui passado a ferro, por dentro voltava a galopar nos
campos e descampos, poupando suas risadas, atalhos que inventou,
lonjuras que o apanharam de surpresa, com aquela na garuna, a
branca escanchada, suando suas alvuras na sela, pende a cabeça, pra
fugir do sol, nas costas molhadas do cavaleiro, a ouvir miar a onça —
onde? e os búfalos, no piri, se entreolhavam, fumegantes, e neste pé
de ilha: Sebastião, me apeia aqui um pouco senão me urino no cavalo.
E logo na garupa, a galope, Sebastião, [68] está cerrado! Sebastião,
seu cego, olha que ninguém atravessa este atoleiro, desvia o cavalo da
mãe de fogo ali de facho aceso no aterroado escuro, acerta o galope
bem em riba da luzinha de vera lá longe, já enxerga o curral, os
vaqueiros na porteira afinam viola, a dona estira-se na rede no rancho,
o cavaleiro banha-a com leite escumoso tirado agorinha e já se vão
com a madrugada, Marajó a fundo, desprende o cabelo sobre o
balcedo, onde mijava nascia açucena, os guarás vinham ver para crer,
lá está o bago de lua, as águas sonham, o barco no Maguari acende o
farol.
— Oiapoque, não, Sebastião.
— Tem que tem diamante, Dolores.
— Não cobiço, Sebastião.
— É a uma panada de Caiena, e aí de contrabando o luxo é lixo.
— Ligo luxo, rapaz?
Já a revoada das garças anunciava o rabo da maré, o tralhoto
espetava a cabeça na lama do mangal, para o mangal corriam os
patos, cancã cantando fora de hora, cantando fora de hora, sinal, vai
se dar o estampido, estrondou, a maré sacode o rabo, subiu no mesmo
estrondo, eivém, a monstra galopando o seu rebojo. Atrás do mangal,
o clareúme da noite lambia o rosto assustado. Sebastião abre o peixe,
lá fora o rabo danando as águas.
— Tu queres deste peixe, bem, sua finge-que-dorme?
Alfredo se indagava: Certo o que dizia o seu Antonino
Emiliano, marido da D. Celeste, que o tio desde o Juruá até o Anajás,
era só cruzando a raça? O seu Antonino Emiliano falava no adubo da
África. Já bem adubada a dama da garupa? Num sovaco de rio,
sentada na esteira, atrás do miritizal, já bem barrigudona? Mas aqui,
no passeio da cidade, o tio apura a sua inglesia, muito cidadão.
— Então o cavalo é o senhor mesmo?
— Monto em mim mesmo, me galopeio.
— O senhor tem aí que dê para um sorvete na terrasse?
— Terrasse?
[69] — Ali no Grande Hotel.
— Me livre a Virgem de Nazaré de semelhante sorvete naquelas
mesas de ferro. Não estou pra um garçom: desinfeta daí, tição, não
tisna a cadeira. Isto aqui não é teu cocho, não é pra teu fundilho, zéferrugem. E eu, por conta desta minha educação, fora do meu juízo:
conheceste, bicho? fazendo o filho-de-deus amarrotar a lamparina na
pedra da terrasse. Eu?
— Então saía cinza, era?
— Cinza só faço sair quando dá pra ofender. Por isso evito.
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O tio elevou-se, o rosto no sol, os dentes de fora.
— Cinza, sim, por tua mãe, teus tios, pela pele da Areinha, a
nossa fidalguia, rapaz, isto é pouca bosta? Põe no teu juízo a cor da
tua mãe. Ou o estudo te dá brancura? Essa tua pele disfarça, sim,
pegou um alvume que é do teu pai, mas o ninho onde foste gerado
onde é?
Carapinha partida ao lado, tio Sebastião examina o pé-de-anjo,
cauteloso, sopra da calça vincada o grãozinho de poeira como se
soprasse de sua frente a terrasse do Grande Hotel.
— O andar a pé pela cidade chama por demais poeira, meu
sobrinho.
Olhava os passantes, o bonde, com certa soberania, logo nu:
— Preferível a garapa aqui nesta portinha ah! mas ainda quanta
mosca! Queres um sonho? Desengasga com a garapa. Prova deste
sonho (Seu caixeiro, mais um sonho).
— Ora me dê uma passagem na casca de sua jibóia... Me dê...
Pedia entre sério e brincalhão ou como se apostasse consigo
mesmo. Não me trouxe o diamante? A pele da cobra tentava, sim,
mas se quisesse não teria partido antes, moço a bordo, praticante de
escrivão? Subia a escada do Ginásio carregando aquele rabecão da
Santa Casa, a mãe, atrás, [70] em|purrando-o, e ali na estância, pela
parede, riscava a carvão itinerários impossíveis.
— Olhe que ir a boi do assim... Debaixo das sete marés?
O tio, de cima de suas viagens, do seu mistério, palitando o
dente, olhava a cidade, alto como um telhado. Belém ouvia-lhe o
ranger do pé-de-anjo e a força de seus mergulhos pela Amazônia?
Na sua garupa um ano por aí por esses mais longes... (este
sonho é de ontem, seu caixeiro? Olhe que azedinho...)
Pedia a passagem, já levado pelas próprias palavras, como se
esperasse sorte.
— Apetitou a lonjura?
— Arrisca?
— As suas primeiras voltas pelo mundo é ali no casarão pra
onde sua opiniosa mãe lhe mandou, menino. Teima de sua mãe? Boa
teima, seus tios aprovam. Sua mãe, lá no chalé, olha sempre você
entrando no Liceu, todo dia, seja dia santo feriado domingo. Olhando
debruçada na janela:
Lá vai o Alfredo entrando no Liceu. Debruçada na janela.
Vamos pegar seu Lício, na Sé? Queria uma palavrinha com ele. Na
escada da igreja a Mãe Ciana espera? Esperando?
Vararam o comércio, conseguiram o almanaque, seguiam os
trilhos do Bagé. A Sé fechada. Rodaram no largo. Desciam do
sobrado, como se desembarcassem de 1680 os dois frades
barbadinhos.
— Já é tarde — diz o tio com súbita pressa — estou de caldeira
acesa.
— Medo de que lhe tomem a pele mágica?
A risada do tio pela praça deserta. E já sério, escondia uma
preocupação, tomou um fôlego.
— Já é tarde, a maré me chama. Você me cata um dia o seu
Lício pela cidade? Ou fala com a Mãe Ciana?
— Queria só uns cheiros?
— Queria dele uns papéis.
— Seu Lício?
[71] — Diga a ele que passei por aqui.
— Falo com a Mãe Ciana.
— Bem, na volta, na volta. Eu te escrevo. Na volta.
— Mas essa volta, quando?
— Vai arrancando folha da folhinha, folha a folha...
Anoitecia no Porto do Sal, tio Sebastião pulou numa proa.
— Ei! Ei de debaixo do toldo, ei!
— Chamando o prodígio?
— Ei! Ei! de debaixo do toldo, ei!
De debaixo do toldo ninguém, nem luz lá dentro; o tio
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debruçou-se espiando, já preocupado, inseguro, não se decidia a
entrar.
— Ei! Ei de debaixo do toldo... com uma voz cautelosa.
Alfredo avança pela borda, salta na retranca.
— Dolores...
Disse baixo, vendo-a na boca do toldo, como se chamasse:
Clara! Andreza! Irene! Luciana! A sombra de Isabel descendo do
jirau, rabeando entre jejus e sanguessugas, e de repente sobre a
solitária pixuneira em flor a lua leite da vaca Merência na panela do
céu coalhando. Tantos dias repelindo o mundo e pelo mundo repelido,
ali recluso nos dois, e agora na boca do toldo a embiara do caçador
negro, recortada pelo anoitecer, secreta na sua alvura e silêncio,
domada pelo tio na boca do toldo. Isto pagava. Mais alto que os telhados, o tio, era? Fez com ela o que fazem os vaqueiros pra domar
cavalo, tirando-lhe a seda do rabo e enterrando no fogão? Dela só um
fio do cabelo, e enterrou. Domou? O tio desenrolando a bijarruna,
desenrolava a alma. Nisto, roque-roque-roque, puxam a vela, de onde
veio tanto pano? Vai subindo. Correu pra cima a bijarruna, larga! Só
aquela, na boca do toldo, não içava?
— Até outra volta, meu sobrinho.
— Até outra volta, tio.
[72] Ia dizer: adeus, Dolores, poupou-se, como se de súbito só
visse a prisioneira amarrada na garupa, com toda Belém nos olhos
dela, terrasse, o Bosque, a janela da São Mateus, lá se iam.
Dela trazia o leve aceno, quase nenhum, a mãe alva — o barco
noite adentro enrolado na pele da jibóia. Ficava a maré, prenha,
espumando, lambendo o trapiche deserto e esta infrene solidão a pé
pela cidade. Sem o diamante na mão.
Mais encharcada e escura agora a estância com aqueles sinos de
ladainha, a zanoia torcendo roupa, o Não-Se-Assuste lá no fundo e
esse bate-boca, entre pigarros e bater de tamanco, do casal português.
Já a vizinha do banheiro, cadeira de embalo na sapata de sua porta-e-
janela, dava palmadas na perna contra os carapanãs da rua. Seu
Ribeiro relia As Noites na Taberna. Vamos, rente-rente da tal janela,
com uma tesoura a aparar as pontas da pestana, aquela da espiã? O
capitão reformado, com o facho do vespertino, queima lixo no meio
da rua. No que cessa a briga do casal, chega na porta do quarto o
velho, cabeludo, num paletó mendigo, o ressequido rosto em que
sobrava o bigode grisalho; recendia a cachaça e a sarro. Apóia-se na
porta, tenta um espirro, dobra-se a um ataque de tosse. Para que entre
a claridade dos outros quartos, Alfredo abre toda a porta.
— Seu Alfredo, o recibo. Aí no lusco-fusco?
— Lusco-fusco? Há séculos que é noite. E o portão? Conseguiu
a fechadura?
O velho empunhou as abas do paletó, cuspindo para o alpendre.
— Este valhacouto? Esta estrumeira?
— Mais do que isto não é aquele ali, o Não-Se-Assuste, seu
Rodrigues?
O velho arquejava, mais curvo, abotoou-se, lento.
— Veja lá se meu compadre mete mais um preço neste alcoice.
Ou aparece aqui, meio pedinte meio assaltante, de recibos na mão
como o outro, querendo levar por conta a [73] roupa das lavadeiras. E
assim é com as três estâncias. Cuida é só das vinte casas bem
alugadas, a oficina de marcenaria onde este seu criado arranca a
côdea do pão, não contando a mercearia na Serzedelo, as duas filiais,
o botequim no pé dos bordéis da General Gurjão, as duas vacarias, os
três capinzais, os depósitos no Ultramarino... Aqui, se fecho o portão,
é a barbante. Delindo de ferrugem a dobradiça. Mas todo fim de mês
tenho de lhe levar o numerário. E o terreno, por baixo destes esteios, é
dos Lobos. O patrão paga a taxa.
— E um barril, uma tina, para o banheiro, seu Rodrigues? E a
chave do portão?
— Guardo a relíquia na caixa de ferramentas.
— Esperando abrir com ela as portas da Divina Providência?
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É D. Imaculada, gemendo sempre, a custo chega à porta, rouca,
o buço espesso, as pernas inchadonas, ai meu menino, que é um
moimento dos pés à cabeça, me deu cupim nos ossos, ferrugem nas
veias, e já aquela mão gelada pela alma... E a filariose e o reumatismo
e as dores na cabeça e as hemorragias e os resfriamentos e a insônia e
a aflição pelo filho lá na América do Norte, pois não viajou clandestino? Lá pela América do Norte, e nem uma linha, um eco, um
sinal ao menos de que também seguiu clandestino para o outro país a
que vamos todos nós, não é?
— O filho, Imaculada? Dará sinal.
— Nem em sonhos nem desencarnado...
— Todo filho é pródigo.
— Aquele é que nunca mais, meu senhor, uma vez parido e
criado, já fui teu ovo, hoje não sou mais, galinha velha, cisca noutro
terreiro, xô! É o merecido que me coube. É o que sempre converso
com a D. Fausta. Os filhos dela? Onde? Então lá no cinema toca as
valsinhas, recordando o tempo deles quando mamavam,
engatinhavam, apanhavam... Até que enfia uma valsa noutra, aonde
andam os filhos? Ganha vaia, debaixo dos assobios chorando e
tocando.
[74] E as varizes embaixo e a esipra sobe-lhe pela coxa... Assim
somos nós, mães, cadê os bendito-é-o-fruto? Os filhos? É próprio
deles serem como são.
E olha para Alfredo como se encarnasse nele todos os filhos.
Alfredo tenta disfarçar, sorrindo, o olhar graúdo. Vem a voz de cima
do toldo: até outra volta, meu sobrinho! E aquela alvura e silêncio de
Dolores lhe dá Cachoeira, o rio, a mãe debruçada na janela, os
algodoeiros brabos florando.
— E por que aí acabrunhando o rapaz, Rodrigues? O rapaz
recolhido ao quarto, nas suas meditações, ou estudo, e invades o
sossego do moço? É ele agora o muro das tuas lamentações?
— Trouxe-lhe o recibo.
— Por pretexto?
— Foi bom, foi bom. Estamos conversando, dona Imaculada.
Nem meditando nem estudando. Eu só escutava — atalhou Alfredo
sem dizer-lhes que entrassem, não tinha um banco e a rede estava
armada.
— Te lastimas com o rapaz, Jeremias? Falando do teu senhorio
e bom patrão? Do teu compadre que te abriu no Pará o caminho da
fortuna? A fortuna em que mudamos, ah, graças a ele, graças a ele. A
fortuna? A ele! A ele. Só a ele. Só a ele que devemos esta fortuna,
esta ostentação, como somos felizes! Justiça se lhe faça! Vieste de
São Paulo com uma ansiosa esposa às costas a bordo do Alegrete, já
se lá vão a galope vinte e cinco anos, correndo ao chamado do
compadre. Te acenou com uma quinta em Portugal onde pudesses
morar bem a teu gosto com o teu reumatismo ao calor da lareira e a
tua tosse, já viúvo... já viuvo... meus ossinhos aqui no Santa Isabel.
Sabes bem o que ele queria há vinte e cinco anos!
A velha coçava a perna, a rir, gemendo. Nem mal estavam,
aqueles anos, em São Paulo, bate aquela carta do seu Simas e num
relâmpago é tudo a bordo do Alegrete, e desembarcam marido e
mulher em Belém de olhos no [75] calçamen|to do cais a ver se as
pedras eram... Eram ou não eram?
— E não eram, menino. Calçada de ouro era a ilusão do meu
marido.
— Imaculada, também a tua bagagem no Alegrete só era a tua
fantasia, menina. Quem te disse?
D. Imaculada ganhou um alívio — por tratada de menina? —
sacudia a saia.
— E de São Paulo só tenho aquelas lembranças... O senhor
conhece a Bodorrada do Luiz Gama?
Do meio de suas dores e gemidos, a velha animou-se.
— Pois saiba o cavalheiro que fui vizinha da Faculdade de
Direito de São Paulo. Vi o Bilac fazendo ali uma conferência. O
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Alberto de Oliveira. Namorei estudantes. Tenho um sotaque paulista.
Tinha um lampião a gás bem defronte da nossa residência.
— Residência, aí residência... Também tínhamos carruagens,
Imaculada? Me apanhaste num banco da Academia? Sobra-te ainda
muito daquela fantasia, menina!
Os dois velhos se encararam em silêncio, catre gado de moscas.
— A patroa aqui, moço, é o próprio vale do que chamamos
lágrimas. Nossa Senhora das sete mil setecentas e setenta e sete dores.
Já? Uma delícia aos pés dela. Residência, ai residência — repetia o
velho, a encolher-se no seu paletó sovado.
Os dois juntos, mendigos na sombra, reconciliavam-se, agora
em Lisboa, no São Carlos, ouviam a Bohème.
— Imaculada, a ária. A ária! E daquelas tiradas do Alfageme?
Do Alfageme? A ária, Imaculada, a ária!
A velha escancarou a boca, falta de ar, Alfredo acudiu.
— A ária, Imaculada! A ária! Vá, coragem! Ar nos pulmões,
gorjeia a ária, Imaculada!
A velha tentava limpar a garganta, saía um regougo, as moscas
em cima, um cão latiu no alpendre.
[76] — E a passagem do Alfageme, Imaculada! Ao menos! Foi
no São Carlos! No São Carlos! O Alfageme! Oh, esse cão!
O olhar da velha — buço mais escuro, rosto de estearina, dente
amarelo — pedia a Alfredo que não zombasse deles.
— Nunca ouviu? Nunca ouviu? A ária?
O velho, no alpendre, berrava contra o cão.
— Não carece todo esse berro, seu Rodrigues — ponderou
grosso o vizinho do quarto. — o cão não lhe mordeu. Passa pra
dentro, Beija-Flor.
— Pois, seu Alfredo, faça a fineza de vir a nossa casa um
instante para tomar conheci mento de minhas três relíquias. Dê-nos a
honra.
O velho, que discutia com o vizinho, aparece à porta:
— Mas Imaculada! Convidas o rapaz e nem lhe podes brindar
com um cálice de Porto?
— Vai só visitar-me as relíquias.
— Nem um cálice?
— Basta-lhe ver as relíquias, meu filho.
Entraram. A sala, estreita, quente, janela sempre fechada, fedia
a remédio, bolor, urina. Alfredo viu, numa litografia desbotada na
parede, o Garrett, o Herculano, o Camilo, como lhe dizia a D.
Imaculada.
— Aí estão, conhecia? Ouviu falar deles no Ginásio?
— Mas nem um Porto, Imaculada?
— Meu marido, meu marido quer porque quer que abra aquela
garrafa do Porto que venho guardando há tantos para uma data a que
tanto aspiro.
— Carta do seu filho? A volta dele?
— Para lhe dizer a verdade, não sei bem. Mas com toda a
consideração que tenho por sua visita à nossa residência, perdoe-me
não me ser possível, agora, abrir o Porto; É para aquela data. Qual
que seja ainda ignoro. Compreenda-me.
— Imaculada!
[77] — E o Eça? Também não? E o Eça? — indagava a dona
Imaculada num pigarro grosso, sentando-se no baú onde guardava o
Porto.
— Do Eça tenho a Relíquia sim... Mas do Herculano escolho O
Bobo. Conhece O Bobo? “Meu Deus, meu Deus! Por que me
desfalece a esperança?” Conhece? Conhece O Bobo?
— Que é aqui o marido dela, meu caro, o marido dela...
O velho, lamparina na mão, dobrou-se numa tosse. Dona
Imaculada levanta-se, pesada e gemendo, remexe papéis, panos,
livros na cômoda atulhada, apanha uma brochura já sem capa,
largando páginas pelo soalho que o estudante ajuntava, com
embaraço, o nariz na poeira.
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— Do Camilo basta-me este Amor de Perdição, meu menino.
À luz da lamparina que o velho, curvo e tremendo, sustentava,
Alfredo folheou a brochura em pedaços.
— E o Porto, Imaculada? E os direitos de hospitalidade?
— Meu pai, lá no chalé, contava sempre passagens desse livro,
D. Imaculada.
— No chalé?
— Lá em casa, em Cachoeira, em Marajó, meu pai. Curioso que
nunca encontrei o livro nas duas estantes. Mamãe ia pondo a mesa, eu
ajudava a trazer as colheres e a farinha, e eu e ela íamos escutando o
Amor de Perdição.
— Até a partida do veleiro? Também de Mariana?
— Papai era melhor representando o pai da moça...
— Pois seu pai, em Cachoeira? Seu pai?
— Sim, meu pai. Meu pai, uma noite na varanda do chalé,
representou o Pilatos diante da Madalena que lhe vinha pedir a
absolvição de Cristo. Foi o que viu aqui em Belém, no Teatro da Paz.
Ele nos contava.
— Pois a varanda de seu chalé um palco e tanto, não?
[78] — Era, é, uma varanda. Papai lavava as mãos numa bacia
invisível.
Alfredo reanima aquela varanda, o pai nas representações, a
mãe na platéia, a cachorrinha Minu na porta, lá fora, pela noite, os
bacuraus em silêncio. À luz da lamparina, diante dos velhos, folheia,
pela primeira vez, o romance que o pai representava — tantas noites!
— na varanda do chalé. Os três ficaram calados. As moscas. Ratos
pela cozinha. Alfredo prometeu a si mesmo escrever longa carta para
o pai. No alpendre, o Ferrinho tentava a flauta rachada.
— Do Camilo basta-me o Amor de Perdição — como que se
lastimou a D. Imaculada. Ou fazia uma indireta?
— Que lemos juntos, juntinhos, lá pelos tempos da flor da
laranjeira. Os tempos nupciais. Não acredita? Pelos seus olhos, seu
Alfredo, não acredita que um dia fomos noivos. Te lembra,
Rodrigues, da carta que mandei ao vigário da aldeia em Portugal,
pedindo-lhe a certidão de batismo? O senhor não acredita? Justiça é
mesmo não acreditar. Não?
Alfredo fez que sim, que acreditava, acreditava. Os velhos
trocavam olhares de zombaria e desconfiança.
— Sim, já fomos noivos, já fomos noivos — confirmou a D.
Imaculada, enxugando o rosto com o avental encardido, e
bruscamente:
— Mas que bobalhão és, Rodrigues, a porca da vida! O menino
aí conversando com dois lixos catarrentos, com um bobo e com uma
bruxa. Não estás vendo o horror?
D. Imaculada abateu-se sobre o baú num grunhido longo. O
velho apressou-se a mostrar a Alfredo o “cabedal das garrafas”
outrora cheias de Porto, Madeira, Moscatel, amontoado a um canto da
sala.
— Desse cabedal vazio já vendeu mais de dez para o
garrafeiro... — troçou num gemido a D. Imaculada a coçar a barriga.
Pela porta do quarto, Alfredo via a cama de ferro. De ferro! Ah, Sabá
Manjerona, na tua cama de ferro recebendo, depois do ponto no
cemitério, a visita celeste.
[79] Agora em tua cama de ferro, velha rameira da rua das
Palhas, Deus se deita contigo.
— E o Monge de Cister, Rodrigues? Também foi no lote que
levaste ao sebo para tuas águas, rapaz? Onde o puseste? Já bebeste o
Monge?
O velho mantinha-se calado, torcendo o bigode, abotoando-se
um tanto respeitoso ou figurando-se arrependido.
— Essa senhora, meu caro visitante, tinha até ontem os seus
vernizes. Mas já perdemos a esperança, lá se foi também o lustro. O
verniz agora é de seus emplastros, suas pomadas, suas andirobas.
D. Imaculada levantou-se, coçando as nádegas, avançou para a
39
litografia:
— Meu Deus, meu bem! Por que me desfalece a esperança?
Voltando-se para o estudante, tentou um mimo na voz:
— E para o menino nem uma delicadeza temos. Nem uma
delicadeza!
— A delicadeza? Mas está no baú, desmemoriada!
D. Imaculada aproximou-se do marido que sustentava a
lamparina, ficaram juntos, muito sujos na sala morna e fedorenta.
Alfredo folheava o Amor de Perdição, as páginas despencavam,
assim parecia que era também a voz do pai agora, aos pedaços, na
sombra da varanda. Em consideração ao moço, D. Imaculada acendeu
o candeeiro, apagou a lamparina.
— Lá está o estupor do pequeno a soprar a flauta rachada.
Sobre uns tamancos, no chão, jaziam volumes e cadernos de
música.
— Também música, D. Imaculada?
Ouviu num ar de espanto, como acordando de repente.
— Música?
— Tocava?
— Eu?
— Tocava?
[80] — Dava patadas no teclado, em São Paulo. Hoje com o
dedo duro só toco as coceiras e as aflições, O meu piano agora é
aquele filho lá na América do Norte, clandestino.
— Queres, agora, desenrolar como um papiro a biografia do
filho, Imaculada?
— Primeiro era em arminhos, em veludos, com favos de mel
criado. No dia de escolher a carreira: É o Ginásio, menino? Não. Não
era o Liceu.
D. Imaculada exala um ai, corre-lhe um calafrio, apanha um dos
cadernos de música.
— Engraxate. Queria ser engraxate. Não passou uma semana:
Quero o ofício de barbeiro. Queria ser barbeiro. Bem. Melhor em
cima que embaixo. Antes cabeça que pé.
— No que te enganas, mulher. Preferível pé. Menos sujo que a
cabeça é o pé. A cabeça? Nem com todo o dilúvio. Antes engraxate.
Estaria servindo a Deus ainda hoje no Reduto lustrando as botinas do
desembargador Serra e Souza.
Ao nome do Desembargador, Alfredo guardou um sobressalto:
Via o Leônidas, com o luto de aluguel, voltando do enterro da noiva,
O nome dela no jornal, a tarja do aviso para o enterro, o
acompanhamento, coche de primeira. Leônidas voltava ao Ver-oPeso, com o gogó mais fino, de repente muito emagrecido e desabou,
assim mesmo enfarpelado, na camarinha do Zéfiro. O cunhado
gritava-lhe:
O fato, rapaz! O prazo do aluguel morre às nove da noite. Te
desenfarpela que esse luto não é teu, é alugado, rapaz! O coche de
primeira... No entanto, Luciana. Algo morria de Belém com Luciana,
ou da juventude dele, Alfredo, ou do que deixou de ver no mundo, ou
Luciana servia apenas para tirar a limpo a idéia da justiça e da
moralidade? Nem a mãe acudia com uma palavra. Aquela família, na
fazenda, prepara requeijões para o Arcebispo. O Dr. Gurgel advoga a
Questão. Sem apelo a condenada.
— Mas deu coqueluche de dólar, menino. Lá se me foi o
barbeiro.
[81] — Dólar?
— Dólar, meu menino. De dólar os caminhos da América do
Norte. O rapaz precipita-se...
D. Imaculada joga os braços para o lado, para a frente,
figurando a sua incompreensão sem cura.
— Não saia da fita em série, e com o nome do Ford na boca e
lhe cai nos olhos de barbeiro a vista de Nova York...
— A vista de Nova York? — indagou Alfredo se lembrando —
Onde? Onde? — de uma estampa de arranha-céus em Cachoeira —
40
Onde, onde?
— A lenda vinha de Lisboa. Passavam por Belém, atulhando o
porão, bandos de portugueses.
O velho se chega para o pé do estudante com voz tremida:
— Recolhe de um pé de meia uns escudos e lá se vai também
no porão, também clandestino. Pensando que ia nos dizer adeuzinho
lá de um décimo quinto andar de cimento e aço...
— Meu filho costumava sentar, ainda pequenote, no Dicionário
de Cândido de Figueiredo e humildemente lustrava os sapatos dos
vizinhos. Não vislumbrava eu nisso qualquer vocação, senão a da
humildade. Um dia vendeu o Dicionário e com o dinheiro compra
uma escova, a lata de graxa e a banquinha de engraxate. Claro que foi
tudo uma pechincha. Mas acreditei que fosse um divertimento infantil
e mais ainda.
— Nem no cais fomos para a última bênção. Clandestino. Aqui
a senhora D. Imaculada querendo atirar-se ao cais, bradar à polícia...
— Lá se me foi o barbeiro atrás de uma vaga nas barbearias da
América do Norte. Não era um rapaz desajeitado. Queres ver?
A velha levou o Alfredo pelo braço, mostrou, no quarto, o
retrato do filho junto do oratório. Veio o seu Rodrigues) puxa o
estudante para a sala, lhe diz ao ouvido:
[82] — Dólar. Atrás de dólar. O Moloch, lá, engoliu o
barbeirozinho.
E alto:
— A mãe, por ter ido o filho para a América do Norte, se cobriu
de orgulho. Orgulha-se por isso. Mas não desgosta que eu espalhe aos
quatro ventos a sua paixão de mãe querendo atirar-se no rio. Orgulhase disso também. E eu sufocando-lhe o grito com a palma da mão,
tapando-lhe a boca. E cá entre nós. Ele não tem obrigações tão
absolutas conosco. Eu aqui remendeio. Por lá, sabe lá, se sem trabalho
e, para esconder os revezes, não escreve.
E sentenciou, sisudo:
— Ambição de engraxate. Cobiça de barbeiro. Nada mais. A
mãe aí a contar as cartas que não recebe, a amontoar retratos e
presentes dele que nunca chegam.
— Foi ambição? E isso é demais? Uma ambição não se admira?
Justiça não é dar a cada um a sua ambição? —avançou a velha, com o
seu buço e o cheiro de seus remédios e moléstias.
— Não se admira? Teme-se e admira-se. Correu o risco.
— Mas, Imaculada, não tentaste correr pelo cais gritando doida
que a polícia arrancasse do porão o clandestino? Não foi preciso te
agarrar os pulsos? Debater-me contigo? Não lhe chamavas de
cabeçudo, de desnaturado?
— Era da parte de minhas fraquezas. Teme-se e admira-se, no
que eu temia, eu dizia: Vai! me rasgando por dentro. E o digo pelo
respeito que tenho pelo moço aqui presente. Tu também não
arriscaste, Rodrigues? Não estávamos sossegadinhos em São Paulo?
Não me arrastaste até cá só pra me sobrecarregar de moléstia e
aflição? E por cima...
— Imaculada...
Alfredo quis fugir. Também ele, na idade de partir, de arriscar,
ali também culpado, sedento de graves faltas, sórdidas ou nobres
aventuras e desastres que não tinha. Ou não merecia? O menino, aí
fora, calou a flauta?
[83] — Olha, Imaculada, antes lustrando as botas do Desembargador.
— Mas eu culpo o Correio, sempre digo, acuso o Correio, o
Correio! O desviador da correspondência do meu filho, o Correio
dissolve amores, lares, a compreensão entre as pessoas. Meu filho
escreve, escreve, o Correio declara guerra ao amor filial.
Seu Rodrigues traz Alfredo para sala, segreda:
— E nós neste alcouce e ele em Gomorra e sem duas linhas,
uma só, ao menos o nome dele dentro do envelope e isso bastava. Em
Gomorra.
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Ergueu o braço, numa voz surda:
— Engolido.
— Se ainda vive, quem sabe... — resignou-se a Dona
Imaculada.
— Qual nada, Imaculada. Para semelhante barbeiro, tão cedo a
morte não afia a navalha. Só sei que de mim o rapaz nada herdou.
Talvez levasse na bagagem ou na moleira fantasia da mãe.
Voltou-se para a velha:
— Ou tu querias deste tamanhinho na ventura, como engraxate
no Reduto, daquele tamanho na desgraça, desafiando o arranha-céu?
Barbeiro mas em Nova York e sem trabalho?
— Olha, Rodrigues, já estamos bem defuntos, é o que penso e
tudo porque não respondemos às cartas dele que o Correio extravia,
ele já nos julga no outro mundo. Enfim não vivemos mais. Não
vivemos mais. Já acabamos. Aqui só vagamos como almas. Céu,
inferno, purgatório, nos barram a entrada, por isso é que ainda
andamos cá, rastejando.
— Com a alma do teu marido lavrando na marcenaria? E não
comes e não urras com os teus setecentos achaques? Não vais à
latrina?
— Uma rolha na boca, Rodrigues, a rolha, que tuas palavras
fedem, rapaz. Onde está o teu acatamento à visita?
[84] D. Imaculada fez sinal a Alfredo, que o desculpasse e falou
com súbita rapidez:
— Viver é só pensamento, é só pensamento. Só de pensar que
ele está vivo, certo estou que está, e está conosco e isso me basta. Não
sacudo o braço contra os reveses.
O velho empertigou-se.
— Moral cristã contra a qual me insurjo. Não! Tenho as minhas
ponderações contra o clero. Já leu?
Deu ao estudante o Palavras Cínicas.
Alfredo abriu a brochura com a preocupação distante. A velha,
resfolegando, sentou-se no baú onde guardava o Porto.
— Resmungo um pouco contra os padres — esclarecia o seu
Rodrigues. — Antes engraxate. E em que é que Deus pode ser
servido?
— Antes engraxate, antes engraxate... mas desde que ele partiu,
Rodrigues, ó deserdado, nunca mais fizeste o cabelo. Nunca mais.
Antes engraxate. Nunca mais. Mas o teu cabelo nunca mais!
Sobre o alguidar ao pé do velho crucifixo, A Relíquia; atrás se
cobria de pó A Velhice do Padre Eterno. Em cima da Bíblia o latão da
farinha.
— A Bíblia sustentando a farinha?
— Já não guardamos farinha pois que não há grão a guardar.
— Comem com pão como bons portugueses.
— Comíamos. A d’água esburacou-me o esôfago, fura-me as
tripas, empedrou-me o fígado, meu amiguito.
Alfredo pedia licença, a sala abafava, pedia licença, ia escrever
para o chalé, nisto batem no portão, vai o velho, logo volta, abre a
janela, fecha, vai no alpendre, vem amarrotando uma carta. D.
Imaculada quer segui-lo, cansa-se, abatendo-se no baú:
Acalma-te, Rodrigues. Mas que te sucede? Teu coração te salta
pela boca, rapaz! Primeiro o teu coração. Primeiro o teu coração. Põete um freio! Senta-te!
[85] Seu Rodrigues do quarto para o alpendre. Alfredo apanhalhe a carta: sem selo, em mão.
— Mas o portador, Rodrigues? Corre atrás do portador. Não te
disse nada?
— Entregou-me só, não me disse nada.
— A morte, Rodrigues?
— Era um senhor de idade, Imaculada.
D. Imaculada tentou erguer-se. Peso. Peso nas pernas.
— Já não me levanto mais. Já não me levanto... Não é o recibo
da água, Rodrigues?
42
Alfredo, a carta na mão, esperava.
— Eu leio, Rodrigues, eu leio. Dá-me os óculos. Eu leio. Sim,
ela não lia melhor que ele? Sempre foi assim, beira
da cama, romances, poesias, jornais, cartas, documentos,
anúncios de cartomantes, charadas. O assassinato de Sidônio Paes não
se lembrava?
— E a letra? Reconheces a letra, Rodrigues? O moço tem a
carta nas mãos. Lê por nós.
Alfredo apressou-se a entregar a carta ao velho, que recusa. A
velha pede, de mãos postas:
— Não, meu filho, ampara-nos. Leia-nos por fineza a carta.
Talvez nas suas mãos, por misericórdia! se transforme em boa notícia.
Agora, neste minuto, nem ele nem eu sabemos ler.
Alfredo foi lendo alto. A seu lado, a velha espalmava as mãos
no rosto.
— Metido inocente? Estava inocente? Repita, por favor!
— Culpa dos colegas portugueses? Como?
— De álcool? Álcool? Quando? A data! Como? Repita, repita,
menino!
— A fábrica onde trabalhava? Escreveu? Escreveu? Não te
disse, Rodrigues? Não te disse? O Correio? O Correio! E esse frio
dele, terrível, moço, conte, leia! Onde? Mas onde os cobertores dele,
onde, onde?
O velho temperou a voz:
[86] — O tom, ao que parece, me soa um pouco falso,
Imaculada. A carta é um tanto enigmática. Não diz nem onde está, em
que cidade, em que prisão...
— Prisão, Rodrigues? Diz prisão? Assinou o nome dele, seu
Alfredo? Diz prisão? Leia de novo. Prisão? Assinou o nome dele, seu
Alfredo, Manoel?
— Manoel.
— Quando volta ou se volta? Mais nada? Diz prisão?
— Mais nada, D. Imaculada.
D. Imaculada leva as mãos à cabeça. Apressadamente o velho
apanha a carta de Alfredo, some-se no quarto.
D. Imaculada parecia alheia, ausente. O silêncio continuou. Seu
Rodrigues vai ao alpendre, volta, cai-lhe do paletó o último botão,
procura no soalho. Não encontra, levanta-se, inclinando-se para
Alfredo:
— Assim é que estava escrito? Atolado na Gomorra? E por trás
das palavras? Talvez com o fogo se esclareça o enigma. Só?
Inocente? Culpado? Barbeiro? Trabalhando? Sem trabalho? Antes
engraxate?
D. Imaculada, como carregar as pernas? Arrasta-se até o
oratório, sopra as teias de aranha de cima dos santos, rezou. Retirou
debaixo do latão a Bíblia, apanhou os óculos, abriu, abriu no Jó.
Alfredo pedia licença. Escrever para o chalé. Conversar um
pouco, ou longamente, com o menino da flauta. O velho, dobrado no
sofá, soluçava?
No portão, olha para a vizinha na calçada. Toda de branco na
espreguiçadeira, desgrampeava o cabelo. Logo escutou da sala do
casal os gritos da D. Imaculada: onde puseste a carta? A carta? Onde
puseste tu a carta? O velho veio ao alpendre:
— Já lá vão vinte e cinco anos! Vinte e cinco anos! E a meus
pés: Perdoa-me, Rodrigues, perdoa-me... Contigo, no teu perdão,
beberei o meu quinhão de fezes...
[87] Alfredo tentava acudi-lo.
— E não perdoei? Perdoei ou não perdoei? Ou foi só da boca
para fora? Pode-se perdoar? Neste mundo cabe?
— Ateasse fogo em si próprio, desgraçado! Esse o teu perdão!
Do teu perdão me sobram estas pernas, esta barriga podre, este
charco, magnânimo!
Alfredo recolheu-se, o cão ladrava, a carta era invenção do
velho? Lá está ao pé da torneira o menino com a flauta.
43
— Candoca, dormir, que amanhã é a tua obrigação, meu filho!
Alfredo corre:
— Me dá a flauta por um dia para ver onde se conserta ela, sim?
Rachada?
— Esta? Conserto? Rachou, adeus. Vou assim mesmo fazendo
que sopro. Já vou, mamãe. Tem uma chave inglesa?
— Pra quê?
— Desatarraxar a flauta.
— Que que vocês cantam quando trabalham?
— Nós? Cantamos.
— O que cantam?
— Nós? Cantamos. Toda noite uma barata dorme dentro da
flauta.
E o que vocês cantam na rua, sopras aqui na flauta?
— De tudo isso, Zezinho, só sei que cantamos.
Chegava a vesguinha lavando um prato na torneira.
— Pode que ao som da flauta rachada as borboletas apareçam,
não?
A moça não respondia.
— Os ferrinhos cantando no meio da rua, já ouviu?
A moça correu ao grito da mãe: com quem que estás aí? Com
quem?
Aqui dentro sem querosene para a lamparina nem as primeiras
palavras para o chalé. Descia pelo punho da rede a pele de cobra com
Dolores, a retranca vibrava, o tio saca o paletó, enfia-se no toldo, sai
de tronco relumeoso, pé solto. [88] Empina-se na proa como uma
bijarruna, e lá do toldo a branca fecha na palma da mão os rumores de
Belém, o sopro que vem do largo da Pólvora, da São Mateus.
No alpendre o cão ladrava. Embaixo, ao velório dos sapos,
fermentava o Não-Se-Assuste. D. Imaculada, gritando, pedia a carta
queimada. Mesmo que me queimar o filho, incendiário, incendiário!
A um rosno do marido, D. Imaculada vem ao alpendre:
— Rodrigues! Rodrigues! Aquela verdade, não a merecias, que
só a merecem...
O cão ladrou. Aqui dentro, este outro cão, por dentro morde as
correntes. Alfredo colou o ouvido para o banheiro da vizinha, agora
um coaxo, um ruído no zinco — as osgas?
— voltou ao portão, a rua deserta, renteou a tal janela, sabia lá
se aquela insone não espiava, agarrada à sua espreita.
Entrou.
Cochilou, ouvindo um som de flauta, chovia borboleta? Quem
tomava banho na torneira? Pela tosse, é a D. Fausta chegando.
— Meu piano, hoje, D. Fausta? Fale baixo, D. Fausta.
— Mas que é isso, minha filha! Que te deu na cabeça!
— Baixinho, baixinho, D. Fausta. Bem baixinho... Meu fogo D.
Fausta.
— Te cobre já-já com a toalha, variada. Te entrou o demônio?
— Olhe, D. Fausta, um dia de são nunca, contrato a senhora pra
tocar no meu aniversário, sim? Mas só valsa, sim? Mas só-só valsa.
Sim?
Tu que teu costume é sossegada, se de repente um homem? Se
entra agora aquele que roubou o São Miguel, menina?
— Ora, D. Fausta, na falta do santo, me roubava, que é que
tem? É o piano e a flautinha do ferrinho, contrato assinado, sim?
[89] Abre-se a porta, a porta do quarto dois, corre a menina com
a toalha para os fundos, o cão ladrou, deu um vento nas palhas.
Vergada ao peso da esipra, das varizes e das valsas, D. Fausta fecha a
torneira.
— Boa noite, seu Alfredo, hoje muito estudo?
— E a senhora? Muita valsa, hoje?
— Muita esipra, muita variz e muito assobio, meu filhinho.
Alfredo vai com a lamparina apaga-não-apaga caçando os
carapanãs da parede. Alumia os nomes a lápis e que o surpreendem,
como se não tivesse sido ele quem escreveu:
44
Luciano. Andreza. D. Amélia. Ana. Diante da teia de aranha,
imagina o tio e Dolores na pele de jibóia sete marés adentro.
Viu-se nos telhados, no telhado da espiona. Afasta a telha? Vê?
Nada viu. Tudo lá embaixo era sono, lá dentro escuro escuro. Espreita
o Não-Se-Assuste adormecido. Com a carga desse escuro desce na
calçada, banha-se nas estrelas, entrou. Saiu. Renteou a barraca da
zanoia, espiou pela fresta: sentada no mocho ao pé da rede, à luz da
lamparina, a zanoia lia. Um ler pausado, sonolento, a lamparina então
que fumaça. — Mais devagar, que teu defunto pai não está na forca,
não dispara a língua. Repete esse pedaço, joça!
Lá pela frente aqueles dois reabrem o bate-boca. Incendiário!
Até caírem juntos na cama de ferro, com a cinza da carta cobrindolhes a fadiga e o sono. Dentro da flauta dorme a barata, cochichou
Alfredo a si mesmo e com um não pequeno espanto, de repente:
— Mas foi que subi mesmo esse telhado? Foi? Não posso
render a zanoia na leitura?
Enrolou-se que enrolou-se na rede como na pele da jibóia.
[90] — Ando que ando mas nem calcule! fazendo já mais de
semana rezo para encontrar o senhor em casa ou onde mais seja,
contanto que lhe pudesse dizer uma palavra, que esperança! sempre o
senhor saindo, nunca acertava sua hora... hoje Deus me ouviu. Não
ardeu todo instante, estes dias, a sua orelha? Até um recado pela filha
daquela senhora cega e entrevada, aquela, que lava, a zanoinha...
Não? Mas não recebeu?
No portão da estância, Alfredo tira o quepe, põe o quepe, corre
o dedo pelos botões do uniforme, o sol em cheio na rua deserta. A
desconhecida abre a sombrinha, sustenta o ar de mestra puxando os
efes e erres, aqui e ali o “vê-lo”, o “encontrá-lo”, um “quiçá”, repleta
de condicionais. Por tudo isso uma velha fadiga no rosto ossento e
luzidio, o olhar pedinte, a boca muito usada com um dente de ouro, o
peito comido, toda num antigo vestido de missa que a vergava um
pouco. Alfredo, no seu embaraço, vira-se para a janela da italiana.
Fechada. Atrás da veneziana, ela espiava?
— Pois só assim seria, professor. Esperaria chamá-lo professor,
pois não? Por que não? E então? O senhor consideraria o obséquio
que me faria. À tarde, sim, das duas às quatro, o senhor concordaria?
É que o senhor sabe, compensar não compensa, poderia lhe contar os
anos que sigo ao peso deste meu lenho de viúva. Imaginaria isso? Os
alunos, pagarzinho mais, não poderiam. Quem nos dera! O senhor
sabe, o magistério — este, então, nesta redondeza e particular de
primeiras letras — só consumir é o que faz, e sempre. No mais, só
Deus.
[91] — Mas não sei se...
— Não, não se escuse, não se escuse, pois não sei? Pois não
sei? Basta o que tenho tanto escutado e escuto a respeito do senhor.
Sei que encontraria uma pessoa conforme sempre sonhei. O senhor.
Por isso mais que tanto troquei a perna e apurei a vista atrás de
encontrar o senhor. Foram dias! Nada! Meu Deus, seria o moço
adivinhando que rastejo a sombra dele? Foi. Mas quem que não
teima, eu? Eu? Vejo que é verdade.
— Que verdade? Por quê?
— O senhor. Tão boa ausência do senhor, que todos fazem!
Estou por ver igual. Das referências no tocante ao senhor fosse esta
sua criada anotar no caderno traria o caderno cheio.
— Mas de mim? Eu?
Alfredo falou alto para a janela fechada, para a veneziana da
espiona. A senhora espalhasse pela rua as imprevistas coisas que ia
dizendo.
— De mim? Mas eu?
— Quem mais? Não é nem uma nem duas que sobre o seu
nome só jogam flores.
Alfredo quis rir, teme ofender a senhora, olhou, de novo, para a
janela fechada, querendo correr até lá, como fazia a doida Antonieta:
Soprar.
45
— Não se escuse. Não se escuse. E é só o que lhe rogo, a sorte
de minha escola à tarde nas mãos do senhor está.
Suando debaixo da sombrinha, um tanto arquejante, a senhora
se fazia mais descorada, a boca num tremor, um olhar cheio d’água.
— Vamos um pouco até a esquina, D. Nivalda? A gente pode ir
até lá conversando mais um pouco.
Queria passar defronte da janela, agora fale mais alto,
professora, e puxou pela senhora, a fazer-se rogado, então que os
louvores choveram, alto. Lhe deu vergonha, certo espanto de si
mesmo, um impulso de fugir ou saber que a espiona escutava ou
confessar-se diante da professora.
[92] — Não se escuse. Não se escuse, sim? Conceda-me a
preferência, sim? À tarde, o sr. não vai ao Ginásio.
— Mas e as lições em casa?
— Sim, sei, ah, isto a... Estudioso que tanto o senhor a... Pensa
que não sei de sua aplicação e aproveitamento? Só que imagino é o
seu futuro... Conceda-me um pouquinho de suas tardes, sim?
Aqui, professora, isto, bem defronte da janela, repita mais alto,
D. Nivalda.
— Não se escuse. Socorra-me. Deixe está que o santo de minha
devoção, o meu S. Francisco de Canindé, lhe ajudará em tudo que de
bom o senhor ambicione neste mundo, assim seria. É uma caridade.
Foi alto, bem-bem defronte, e a italiana? S. Francisco de
Canindé, abra a janela, escancare. Embaraçou-se mais, estou
descendo muito, a professora não se calava.
— Pois, D. Nivalda, pois bem. Pois, hoje, logo às duas.
— Hoje, seu Alfredo? Já hoje? Ah!
Certo estou que espias e escutas, atando o cabelo, o colo
suando, muito italiana, aí atrás, teu rosto clareia a sala. A professora,
tirando um alívio, agradecia. Num instante, pensativa, tentou fechar a
sombrinha, fechou os olhos contra o sol, confusa.
— O senhor compreenderia?
— Como, D. Nivalda?
— Me fio que o sr. não me coloque acima das minhas poucas
posses, Sr. Alfredo, um preço...
— Um preço?
— O senhor compreenderia...
Alfredo caminhou, afastou-se da janela, olhava para o capinzal
doutro lado, galante professora! A senhora mudava de voz? Mais sem
sangue, mais ossuda? Receias que te roube o dente de ouro, esse que
agora mostras, pechincheira?
— Ah, sei que muito educado o senhor é. É só ver as suas
maneiras... Ah, tão satisfeita que estou, tão-tão feliz por ter andado
tanto à sua procura e travar conhecimento com [93] a pessoa do
senhor. Então, hoje, conforme a sua vontade, o que o senhor por bem
decidir. Às duas? O número, já sabe, mas olhe lá! chegando lá, não
ponha reparo em nada, que tudo ali é somenos, tudo aquilo foi, hoje
não é, tudo teve um luzimento, agora... E o chão da casa ainda é dos
Lobos. Fui mulher de comandante, hoje viúva. Pela manhã dou aula
na escola estadual. Ando é tão consumida, mas tão extenuada, Deus
que lhe conte. Aqueles meninos? Olhe que puxam muito, não por
muito impossíveis, é que desemburrar os outros vai emburrando o
desemburrador. Aqui estou eu como um espelho. O que já perdi de
fósforo e hemoglobina... Então até lá, Sr. Alfredo. Espero o senhor.
Sua palavra é palavra! Ah, que foi Deus! Uma libra de cera é quanto
vai ganhar o meu santo, sete dias de vela acesa, sim, e eu rezando sete
terços.
Alfredo, agora só, cobiça o sótão da esquina de onde podia
dominar as baixas de açaizal e capim, talvez o telhado da italiana, ali
está a chave de abrir a madrugada. Sótão em que se refugiaria, noites,
incomunicável.
Voltou, passo tardo, roça a janela na esperança de abri-la, de
súbito, aquele rosto, plena Itália, ou lá dentro se entupia de macarrão?
Veio devagar, mestre-escola de D. Nivalda, correu para o portão, que
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duas da tarde que nada nem hoje nem amanhã! Desceu pela Curuçá,
seguindo a empinação dos papagaios, ganhar algum dinheirinho? Um
dez mil réis se delindo, sem saber se é ainda dinheiro, de tão
emendado, das poucas e sovadas notas que circulam neste chão?
Qualquer trocado valia, sim, que os borós do chalé rareiam e convém
trabalhar. A pé pela São Jerônimo, um tostão chorado, abaixo de suas
poucas posses, chorosa professora, agarrada professora. A professora
pedia a seu santo, azeda por ter de adular, o dente de ouro dizia, viúva
de comandante. Algum. Para onde vão as ambições? Que éter
ambição nesta cidade, ao pé do Não-Se-Assuste, já que Luciana nem
morta lhe devolve a chave? Que prometia o Ginásio? Parsifal falava
em perdão. Mas quem? Quem?
[94] Quem a obra do perdão começa? Onde? Que será
conseguir? Aonde aquele dia que pensou ver nascendo na volta de
Marituba? Que fazer com estes passos, este olhar, este estar sozinho e
arder para abrir essa janela e dizer: Como vai, meu irmão?
Vai em busca do ferrinho, pedir-lhe a flauta rachada. Decifrar a
esfinge, sabendo que dilacera mas é preciso. Agora é o forno, este,
pela rua, queima o sapato, assa a cabeça, os urubus revoam,
chamejantes; os papagaios precipitam-se no sol. Daquele monte de
lixo, no meio da rua, que o reformado queima quase toda tarde, sobe a
italiana.
A fumaça o leva para a escolinha da D. Nivalda, mais só, mais
desguiado, um pouco réu, ia-não-ia, onde está o teu espinhaço?, dizia
Magá. Não se escuse, não se escuse, de repente levado ao pátio do
Ginásio, no redemoinho do trote, cuspido, batido, e o angélico a seu
lado, Parsifal casto e sangrento, o rolo com o Pereirinha; começa a
subir do liceu a grossa poeira em que iam lentes, matérias, uniformes...
Ou passa pela D. Dudu no Curro e lhe pede perdão? Queres
café? ela responderá e será tudo, no modo sempre de esquecer a falta
(dele e não delas), que perdoar, não, ofensas e ingratidões atocha no
bolso da saia a cadeado e segue gomando ou pregando botão nas
ceroulas do Bon Marché. Feliz, ferozmente feliz por ver nas sobrinhas
o que previa. Feliz nos olhos mas por dentro? Que sei da D. Dudu?
Ou apanha nalguma parte a velha parteira. Ou Zuzu, nudez atrás
das jacas, destas a mais madura?
Tudo isso subitamente se apagava, e de tudo isso tinha perdido
o melhor gosto, o sumo mais secreto e necessário. Desperdiçava
sempre. O último gomo da jaca, naquela tarde, comeu? O caldo de
gurijuba, já agora sabe o quanto não saboreou.
E vai, se vê defronte da taberna da Brasiliana, o balcão deserto;
não, aqui está o jacamim, lá o sótão com os tajás [95] na janela, os
pombos no telhado num burburinho de quem carrega do mar as sedas
e os perfumes do contrabando.
Apanha o bonde, salta na D. Januária, segue até à beira do rio,
os olhos no barco que suspende a vela, num caminho que o leve até o
campo onde está a mãe, desfalecida, ou adormecida, e dela afasta o
capitão Edgar, afasta o afogado, carrega a mãe nos braços, apaga a
surra que lhe deu o tio Antônio, a morte de Maninha, as noites na
dispensa. Será que ela atravessa o rio a nado e magma que um dos
três pretinhos da extinta pororoca é o filho?
Mas agora, neste toldo, aqui na estância, neste quarto, cala a
flauta, ferrinho, calem-se, portugueses, durma mais um pouco, mãe.
Deu com o número no tabuado que escondia a velha casa lá
dentro, duas janelas, rente da porta a torneira enchia a lata da vizinha.
— Professor, professor! Milagre de São Francisco de Canindé!
Em cima de sua palavra! Esteja a gosto, mesmo que em sua casa, só
que não vá reparando. É aqui o nosso... Mas, meninos, meninas! Não
se levantaram? É o vosso professor. Oh!
Corre o olhar pela sala, a mesa ladeada de dois bancos onde
sentam os alunos maiores. Nos banquinhos afastados, rentes da
parede, os menores, todos agora de pé. Virou-se para a porta, a
vizinha acabava de encher a lata e espiava. O relógio, encardido e
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gasto, dá duas pancadas. Foi olhando os meninos do primeiro banco,
seis rostos melados, de maloca e jirau sobre o rio, todos numa
curiosidade festiva ou receosa. Dois lhe pediram a bênção. No outro
banco, defronte deles, três meninas, exagerando a surpresa, o
agarravam com o olhar, tiravam e retiravam o pé das chinelas. E
aquela, na pontinha do banco, cabeça baixa, vestido azul, riscando o
caderno com o lápis, menos de pé que vergada, a mais alta? Ajeitou o
atracador no cabelo curtinho, os olhos no caderno, sem se dar conta.
No que a professora corre e atende à porta onde batiam palmas, a
aluna ergue um [96] ins|tantinho o rosto para a janela, morde o beiço,
deixa cair o lápis, abaixa-se a apanhá-lo, agora folheia o caderno,
tirou um santinho, séria, solitária. E Alfredo, sem dizer “sentem-se”
no seu silêncio: A Roberto? Na escolinha da D. Nivalda? Roberta!
Sentem! Sentem! — pôde falar, engolindo o seu espanto,
transpirava vexame. — Sentem.
A aluna da ponta do banco é a última a aceitar a ordem, a
sentar-se como a dizer-lhe: Quem tu és, Zezinho? ajeitava o vestido
atrás, abana as moscas, logo numa compostura meteu a cabeça no
livro.
— Professor, são do primeiro e do segundo... O senhor sente
aqui na cabeceira da mesa. Não repare a mesa velha, é só risco de
lápis e tinta, pertenceu à minha família quando naquele tempo se
jantava com o bico de luz em cima da minha avó. Pois sente. Use o
rigor que carecer. Olhem, meninos, o moço freqüenta aquelas salas do
Ginásio. Por muita consideração da parte dele, veio e aqui nos dá a
honra. Obra do São Francisco de Canindé! O máximo respeito. Mas o
máximo! Não desgostem o moço. Não desgostem o moço.
O professor sentou-se, mal pôde crer: Roberta! Apanha o
caderno:
Caderno do aluno Argemiro Gonçalves.
Externato S. Francisco de Canindé.
Roberta! Por trás dos seus livros, as três alunas lhe sorriam,
como se compreendessem, à maneira delas, a recomendação da
professora: Não desgostem o moço. Não desgostem o moço. De lá do
corredor espichou-se a cabeça:
— Um instantinho, professor, que é já que lhe façozinho o café,
sim?
— Não, não, professora. Vamos começar pelo ditado, um tema?
Que a senhora acha?
D. Nivalda, saco de café no braço, veio de mãos postas:
— Que a senhora acha! Que a senhora acha! Ache o senhor é
que é, que assumiu a cadeira, professor! Assuma. [97] Assuma. De
suas luzes tudo espero. Máxima atenção e respeito, meninos e
meninas.
Voltou com a rosa no copo d’água, colocou no meio da mesa.
Espalhou-se o cheiro de café. Uma das meninas, por divertir-se,
apertou o nariz. A outra cutucou-lhe: Olha ele aí te olhando. Alfredo
fingia-se atento ao caderno, receando o olhar dos alunos. Apanhou
um Mário tão muito usado, capa roída, faltavam folhas, lhe fez
recordar, por quê? o Didico destampando a lata d’água, onde
guardava os peixinhos vivos que iam servir de isca na pescaria à
noite. Também o professor Chiquinho em Cachoeira. Naquelas tardes
aprendia letra gótica, as ginjas lá fora, o máximo divisor comum aqui
no quadro, de repente um passarinho. Acabem com isso. Acabem com
isso, seu pio parecia dizer. Aqui os meninos por dentro muito agitados
nem se mexiam. E o olhar das três meninas? A primeira tirou uma
pétala da rosa e comeu, meio escondido, e assustada. Aquela
gorducha, carinha de lua, sorrateiramente imitou a professora com as
mãos postas. À terceira ralhou com as sobrancelhas e se pôs de pé:
— Professor, licença de cuspir lá fora?
Descansado então o andar dela! Volveu com o sol no rosto —
escondeste o meu lápis, Zul? — disse por dizer, piscando para os
meninos. A que comeu a pétala, empoada, escurecendo os cantos da
boca, se movimentou, queria pedir, não queria, guardou-se, os dentes
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fáceis, e um colo de donzela que irrompia sobre a mesa. Aqui na
ponta, cotovelos fincados, mexia os lábios:
Una, duna, tena, catena
Undurinha, undurau...
Roberta olha o pêndulo, olha o fio da lâmpada forrada de papel
crepom, logo se recolhe ao caderno, virando as folhas, quanto mais se
fazia de aluna menos era, sempre em si mesma, recebendo pelos ares
o seu ar de moça.
[98] — Pois bem, um tema. Vamos?
Que vou dar a eles? Este ditado, o meu espanto, o logro do
Ginásio, a visão da mãe no campo, a morte de Luciana, a briga com o
Pereirinha, o Não-Se-Assuste, a parecença do que não sou? E por que
Roberta? Eis que me surpreende, por quê? À presença dela, por quê?
Este sobressalto, me expliquem.
Lembra-se, lembra-se: A menina no meio do milho verde, o pai
voltando do Pinheiro. Roberta, morreu o cavalinho. Acabou-se o
carrossel. Roberta, morreu o cavalinho. Acabou-se o carrossel? O
vento arrancava a empanada do carrossel. Roberta, no meio do milho
verde, abria as espigas.
— Prontos?
Abriu o livro, esperou que os alunos preparassem os cadernos.
As três meninas com os olhos nele, submissas, atentas a uma
condescendência dele, a um olhar fora do regulamento... A morena de
beiço roxo agitava o peito de rendas sobre a mesa, a esperar que ele
só ditasse o que o seu olhar pedia.
— Pronta?
Pela primeira vez falando com a Roberta. Ela só fez foi abrir o
caderno com fina má vontade, escreve na primeira linha o nome do
Externato, datou, borrou, vira a folha, interrompe para mudar a pena,
tira de dentro do caderno a flor seca, esmigalhou sobre o livro, de
novo o nome do Externato, a data, e esperou de cabeça baixa. Já
cheirava a moça o seu cabelo? Cheirava mais a milho verde. E o rosto
do pai, escuro de barba e mágoa?
Era um velho carrossel de oito lugares, muito desarranjado,
quatro cavalinhos, um carneiro, três assentos de pau, rodava no
Pinheiro, girou pela Estrada de Ferro, um ano atravessou a baía de
Marajó e virou em Soure. Soure ou Salvaterra? Não sabia bem, O
dono, um gringo de óculos e chapéu colonial, O pai de Roberta
tomava conta. Tinha o cego e sua flauta, um pequeno tocando viola,
assim iam. Um domingo no Pinheiro quebra de uma vez a geringonça,
o vento arranca a empanada; o pai de Roberta veio no trem [99]
guiando o cego, o menino vende a viola na viagem, e a flauta, que
rachou, era aquela nas mãos do ferrinho?
Debaixo da chuva, os sapos morando nos cavalinhos podres,
acabou-se de uma vez o carrossel. Roberta, morreu o cavalinho. O
cego espera-espera-espera o trem de Bragança, tirando esmola na
estação. O menino pegou um trole para Benevides, foi comendo doce
de gergelim com pão torrado. A barba do teu pai, Roberta, crescia a
olhos vistos, agora pelo cais, na Rua 15 de Novembro, escovando
urubu. Tua mãe costurava. Roberta, de cabeça baixa, como se visse
longe, no Pinheiro, o carrossel quebrado.
— Prontos?
À primeira palavra, “Amanhecia”, que ditou, repetiu
mentalmente: Roberta. Roberta. Ditava abafado, o carrossel quebrava,
escoa-se o sobressalto, em cada palavra indagando, ditando sem
firmeza nem pausa. Entre as letras salta aquela menina de carrossel e
milho verde, sempre a pé-descalço da José Pio, no bando dos
moleques apedrejava a casa das Boaventuras, a foguete brincando
juju nas toiças do largo mas já tão tamanha noite! E foi numa tarde,
jogavam bola no campo do Astor-Vila, a relâmpago trepa na
mangueira vizinha, desce no telhado da Brasiliana, no meio dos
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pombos... Te capo, pirralha, gritou a moura, entre os seus. tajás na
janela, coberta de cetim, com a moringa na mão. Te capo, pirralha!
— Como, professor? — perguntou um aluno, aconcheando o
ouvido.
— Firmamento. Fir-ma-men-to. Vírgula.
E pela esquina da roda dos rapazes o vem-vem-vem do capinzal
e fundos de cerca com a doidinha no meio, criando asas, sempre na
berlinda, chispando pela baixa mais que uni moleque, este conta isto,
agora é aquele, o que um não viu por outro visto, ao balcão da taberna
devorando aquelas anedotas e fugindo rápida à mão cabeluda do
taberneiro, caindo de costas no saco de milho. E a D. Brasiliana,
virando a registradora: Essazinha? Essa? Esse botão tirado do galho?
[100] Já nasceu teimosa? Deus que me perdoe, que a pixota
nem caroço ainda grelou no peito, mas de tudo aquilo, assim e assado,
todo o ré-mi-fá-sol de tudo aquilo que só vim a saber direitinho foi
bem mais tarde, ela, engatinhando, já traz na ponta da língua, de
mecha acesa... Essa lombriguinha é-é de nascença! Boa viagem, no
teu descaminho, estradeira. Ela? É-é... Nascida, batizada na pia do
Diabo, é...
E soprou no ouvido dele.
— Não, D. Brasiliana! Uma menina? Tão menina assim?
D. Brasiliana sobre o balcão fechava o peignoir, com o jacamim
no pé.
— Por ser tão menina assim, não nasceu de racha, meu anjinho,
não? Aleijada? Ela tem parte com a Cabra-Cabriola. — Cantava:
Quem não me conhece chora.
A moura ajeitava os papelotes do cabelo, apanhava o leque
entre o sótão do contrabando e o bonde que a levava à Alfândega e ao
Foro.
— Disse Mãos, professor?
— Mãos, sim. Não tem pressa.
Debaixo destas palavras, quebra-se o carrossel, o pai entre as
palhas do milho verde: Roberta, era uma vez o cavalinho. Borbulha a
voz da taberneira: É-é, de nascença... O. Brasiliana se benzia,
escarrava o nome, o diminutivo. Diminutivo. Aqui soa bem, nesta
gramática, entre os condicionais da D. Nivalda. Sua aluna! De tinta,
sardinha, giz e aritmética! Te capo, pirralha! O pai trazia um ar flagelado, seca de 15, de onde veio rapaz sempre assim, ninguém mais
taciturno. A mãe falando Ceará: chora não, Roberta. Aquele
brinquedo da peste havia de ir para as profundas, chora não.
Parou de ditar, ouvindo repetir-se o nome sujo, já escrito no
quadro negro, nos cadernos, na tabuada cantada dos mais pequeninos,
severamente anunciado pelo relógio, escorre na torneira, gravado no
coraçãozinho do cordão, esse aí da nossa aluna. Palmas na porta, as
vozes da taberna:
[101] — D. Brasiliana, D. Brasiliana, ponha termo nesse apresentado!
— Mas o vestido da menina, monstro?
— Eu?
— Quem mais, seu cachaça? Quem mais aí ao pé da lenha? Isto
aqui não é cepo de sangrar menina, monstro! E tu, paturi danisca,
fora! Somezinho já daqui, onde é que tua mãe anda, enjeitada, que
não te escalda num banho de malagueta? Ou já te botou na rua, maldesmamada?
— Mexa com a mea família, não, D. Brasiliana. Me avie logo o
meu sal.
— Teu pai, onde está, que não te sova? Alguém já te conheceu,
sua apressada? Já? Já?
— Mexa com a mea família, não, D. Brasiliana. Pese é meu sal.
As vozes somem. Os guris da cartilha coaxavam baixinho a
tabuada. Alfredo suspende o ditado, vai à janela, a papoula sangra ao
sol, volta olhando para Roberta. Ela, no meio do milho verde na porta
da rua, os zebus passavam: “Vem comer milho verde na mea mão,
zebuão!”
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— Bem. Ponto parágrafo.
E baixo para ela que se mostrava indecisa:
— Noutra linha.
Aqui de azul, caneta amarela, pés quietinhos na sandália, junto
ao caderno o santinho e os restos da flor seca. Roça a perna um
repente no vestido dela, um repente, sem querer, afastou a cadeira.
Roberta. Fazia o ditado como se não escutasse, a letrinha esquiva,
roda, carrossel, o cego tocava flauta, o guri a viola, o pai armava e
desarmava o brinquedo, aqui a aluna suspende a cabeça. Tomando
fôlego? Brusca contrariedade enxotando as moscas. Franziu a testa à
caneta amarela. Cedo, com um s ou dois s?. Risca-não-risca, apressase a escrever a seguinte que o mestre repetiu, sem saber que ele
também repetia: Roberta. Roberta. [102] Veio o café, de novo o
sobressalto, a roçar no vestido, de repente lá de fora eivém!
“Gombra ouro guebrado!”
— Vamos vender o dentinho de ouro da professora? —
cochichou a rechonchuda, já a mão na boca, ao ver-se pilhada pelo
mestre que lhe sorria.
— Ponto final. Marquem no ditado dois substantivos.
— Como, professor?
— Dois substantivos.
— Dois?...
— Dois substantivos.
— Ponto final?
— Ponto final.
Nisto corre um menininho para o pé do mestre:
— Professor...
Encabulou-se, o fura-bolo, de unha escalavrada, pela orelha e
nuca. Virou-se, num pulo voltou ao seu mocho, ficou de pé, aí
espirrou, “Santinho!” foi a aula em coro. Veio vindo, meio arrepiado.
Alfredo lhe pegou a mão:
— Diga.
Esfregou os olhos, quis soltar-se daquela mão.
— Anda. Me diga.
Então deu no aluno uma alegria:
— Esta noite papai matou.
— Quem?
Arrastou o tamanco, piscou muito, abaixou-se para apanhar um
alfinete:
— É o meu! — falou a menina que lhe tomou o alfinete.
— Vamos. Diga. Você me anda um tanto cabeludo, não? Não
precisa de uma escovinha?
No que falou, Alfredo viu: era vexar mais o aluno e se lembrou
daquela máquina, no barbeiro do Ver-o-Peso que lhe pelou a cabeça.
— A mucura.
— Mucura?
[103] — Papai matou. Esta noite.
— A tiro?
— De espingarda.
— Comia pinto?
— O meu pintinho. Quer ver, olhe.
Diante da aula em silêncio, puxou do bolsinho umas penas, logo
muito cuidadoso, guardou as penas correndo para o seu mocho.
Tornou a ficar de pé, a costa da mão pela testa suada. A morena da
mesa. Licença, professor?, acudiu o menino, enxugando-lhe o rosto
com o lenço lilás que ele trazia de enfeite. E cochichava-lhe: Deixe
está. Deixe está que te trago um pintinho, sim? Onde escalavrou a
unha?, e tudo isso um pouco também por faceirice, realçar-se diante
do professor. O menino ganhou desembaraço:
— Ajudei a jogar a mucura no rio. Amanheceu foi cheinhacheinha de formiga.
— Cheinha-cheinha? — A morena escapuliu, num falso
espanto, se deu conta, vexada, voltou à mesa, abriu o livro, a colega
lhe tocando com o cotovelo, baixo:
51
— Mas, pequena?!
— Que foi? Que foi? Que foi que eu fiz?
E fincou o nariz no livro, embaixo da mesa as pernas sem
sossego. Aqui consigo, Alfredo repetia: Que foi? Que foi que fiz para
meter-me nisto? Roberta no mesmo alheamento, assinou, enxuga o
nome com um pedaço de giz, a última a passar o caderno às mãos do
mestre, sem fitá-lo, já ocupada a guardar os restos da flor dentro da
aritmética. A seu lado, as três colegas se cutucavam e sorriam com o
livro aberto sobre o rosto, a espiar o mestre que corrigia os cadernos
(Que foi? Que foi que fiz?) num vago desamparo por não decifrar o
que os alunos, nos seus ditados, queriam ou não puderam lhe dizer,
este instante, este instante em que Roberta fecha na aritmética os
restos da menina e crava os olhos nele.
Varando a madrugada — meio-dia, uma da tarde — e o tempo
não suspende! Pé-d’água! Nesta arca deserta, o [104] quadro-|negro,
os banquinhos. a mesa dos adiantados; não se salvou um bicho nem
coberto de lama entrou desgarrado um só aluno! Nem um-nem-um, O
professor? E esse vapor cobrindo a mangueira, onde a papoula? As
goteiras jorrando, o telhado estalava? Vão chegar, de novo, os
tucanos? Depois das moscas, a praga de formiga de fogo? Belém
soçobra, os alunos chegarão a nado.
Ninguém.
Aqui dentro gordas moscas grudam na parede, na rosa
murchinha do copo, no quadro de São Francisco de Canindé. O
relógio (quebrou a corda) é aquele trazendo o navio que resfolega e
atraca, prancheou a porta. Bufando no aguaceiro, o fantasma de
azulão e gorro.
— Amanajás, o teu chá, Amanajás. Esfriando na mesa.
— Lesa? Estás lesa? Ora, não amole.
— É um cozimento da flor do cravo pro teu resfriado,
Amanajás. Teu defluxo não passa...
Jogando fora o chá, Amanajás recolhe, como uma tromba,
aquela brutalidade tão familiar, tão necessária para que tivesse a exata
sensação de que vivia. Coçou a corcunda e se abriu num bocejo,
como um jacaré no balcedo. Sacudia o casaco roto e sebento.
Esfregava as mãos sujas, de unhas ferozes, no nariz achatado. Ao
peso da corcunda, batendo os tamancões de galego, sentava-se no
banco, junto do portão de casa. Tira o cachimbo. Na primeira fumada,
a careta, tabaco péssimo. Com aqueles olhos espremidos na cara
sebosa, permanecia ali um vagabundo de gravura. Ninguém no largo.
Ninguém, não, urubus.
(E esse estrondo surdo no dilúvio? Bonde?) O moço descerá?
Não, que agora só entra peixe e caranguejo. Os sapos ocuparão a
escola.
O comandante apagava o cachimbo. Acendia. Ajeita o boné de
viagem. Caminhões roem o silêncio, mais pesados e lentos como esta
chuva. Uma zoada longe. Vozes vagas ondulando na ramerame do
subúrbio. Tropeçam carroças na rua esburacada. Poeira, cheiro de
gasolina, urubus no lixo, [105] moscas sobre o bagaço de cana atrás
da garapeira. De novo o silêncio. O comandante vai engolindo a
fumaça, e os rios que viajou, e os gaiolas que guiou e afundou,
empapado de chuva, mormaço e cana. Boné, corcunda, cachimbo,
tamancos, brutalidade recolhida como uma tromba, o comandante
Amanajás, o marido. Senta-se ou abre o relógio, berra contra o
relógio, investe contra os meninos da escola estadual. Seis e um?
Quatro e dois? Sete vezes setenta? Noves fora? Que letra é esta, seu
patetinha? A dordolho sarou? Antes cego que soletrando errado, meu
come-terra, meu comedor de barro, a tua especialidade é aquela
terrinha do Valha-me-Deus? Lombriga? Adjetivo ou substantivo?
Depressa, antes que ela te saia pela boca. Que é gramática? Tu, aí,
que estás com já-começa. Tu, aí, moleque, me traça no chão com o
dedo do pé, inchado de bicho, me traça já-já um ângulo ou a grade do
purgatório. Isto é aula ou bicharal?
— Amanajás, lá fora te chamam.
52
— Mentira! Queres que eu saia da sala! Mentira!
O comandante levantava o braço, os meninos sérios, uni
papelinho passando pelas costas, de mão em mão. Jaburu Jaburu
Jaburu.
A professora fingia corrigir cadernos e já lá fora, no Minerva, o
botequim da quadra, o Comandante bebia, até que lhe cortassem o
fiado. Voltava fumegante contra a instrução pública, pois tamanhos
pais-d’égua estudando! Decretei feriado neste bicharal, abre a jaula!
Bando! Embora, embora! Ponto facultativo, rua!
— Amanajás!
Dava as costas, arquejante, suando. A corcunda, nem dez
carregadores de piano carregavam. E lá do fundo o sussurro:
Jaburu. Jaburu. Avançou, brandiu o cinturão, a barriga de fora,
a meninada debandava.
— Amanajás!
Ficava só, atulhando a sala com a corcunda, num regougo.
— Amanajás! Amanajás!
[106] A professora enxotava a picota. Os meninos na rua, à
espera que o Jaburu desmoronasse na alcova, ao peso de mau
cachaça. (O cochicho nesta chuva: Jaburu. Jaburu.)
— Mas, meninos, voltem. Para dentro. Pelo amor de Deus, seus
diabinhos, entrem.
— É ou não é? É ou não é, Nivalda? Isto, aqui, é ou não é uma
goela da Volta da Tripa?
— E tu és o... O? Deus que me perdoe, Amanajás. Passaste o
ungüento?
— O o quê? O o quê?
Avançou, esbugalhado, apanha a cadeira para atirar na mulher,
escorrega na casca de manga.
— A seus lugares, meninos. A seus lugares.
A professora cochichava.
A aula recomeçava. O comandante no soalho, estirado.
adormecido, babando. A professora assumia a cadeira, terço da mão,
os alunos principiavam a cantar a tabuada — ciu... silêncio.., não
acordem o Jaburu... corria o cochicho.
— Ensaiar o hino.
— Mas agora, professora?
— Quem atirou a casca de manga? Quem?
— Já podemos começar o hino, professora?
De bruços, encalhado no soalho, o antigo comandante de gaiola,
donos dos rios, barrancos e trapiches, todo de branco pelo
tombadilho, o navio embandeirado na manhã das regatas. Os meninos
começavam a cantar.
Pé-d’água! Nem a nado chegam. O moço, que parece sempre no
ar, nem por esta janela entra como um tucano perdido.
Ninguém.
O chuvaral arremessa a gaiola, arremessa o fantasma, aquela
primeira viagem.
— Entramos no Amazonas, Nivalda.
Amazonas? Debruça-se. O rio? Ai que me dói a barriga, essa
água a bordo, onde o elixir paregórico? Bom é viajar trancada no
camarote, o rio passando dentro do sono, passam [107] os estirões, as
vilas mortas, os trapiches caindo, as várzeas escorrendo maré.
— Juriti, Nivalda.
Os lagos pelo verão morriam como gente.
— Mas é um lago, Amanajás.
— Um lago?
O tambaqui boiou debaixo do tauarizeiro. Pousava no pau do
aparizeiro o pato brabo. O pica-pau subindo na tataparica. O
comandante no trapiche: “Arpoaste o pirarucu? Gordo? Dá cá a
ventrecha.” De pé, soturno, o velho arpoador esperava.
— Tua filha afogou-se? Onde? Boiando entre os mururés, de
seus cabelos pulou um tralhoto? Foi? Pirarucus, quantos arpoaste este
ano? Toma este xarope. Uns anzóis? Leva também umas pílulas,
53
rapaz.
O arpoador calado. O arpoador fechado. Trazia nos olhos um
breúme de águas velhas, de noites no lago, sondando o corpo da filha.
E agora, por que vamos neste paraná, roçando o fundo? O francês?
Esse francês a bordo vai mesmo ficar aqui, com sua mochila e seu
cabelo louro? Nesta beira d’água? Fincar aqui o seu aborrecimento do
mundo, mas vai? Chega daquele mundo, minha senhora. Nem
ninguém. Nem ninguém. Aqui, sim, aqui, sim. Encontrei, meu
comandante.
— E a França?
— Fique com a máquina. Tire retratos de sua senhora. Só me
mande um carretel de linha.
(A máquina? Um dia, abre a mala do comandante, saltam
retratos de Manaus, Itacoatiara, Porto Velho, Manaus:
Belarmina, Matilde, Dulcinéa, Emília, Mercedes, Nhanhá.
Manaus.) O comandante espremia limão-caiana na cachaça, comia na
folha do remo o pedaço de tambaqui, o beiço queimava, mete a
montaria no meio do matupá, de repente o tiro, a surucurana debaixo
da folha, foi bem-bem na cabeça, e o sonho no camarote, os gritos do
francês por entre as canaranas e a acordar com a cobra debaixo do
sovaco, de [108] quem? Dela ou do francês? A surucurana a enrolarse no bico do peito, debaixo desta folhagem aqui sempre oculta, ai
Amanajás! a cobra! acudam aquele francês coberto de formigas de
fogo, escorrendo no jirau como um camaleão morto pendurado na
vara. Apitava o vapor no paraná, este com a sua língua amarela e seus
dentes de canaraua comia já o defunto, o alvo, o louro.., apitava o
vapor, eivém para a proa, era sol era chuva, o navio atracava no arcoíris e de novo, lá do fundo do paraná, alvinhos, no jirau os ossos do
francês. E de tarde no barranco dá de frente com o gavião. Menina!
Deu bem de frente com o gavião? É alegria, sua arara. É alegria. Bem
de frente com o gavião? Insone no beliche com aquele gavião
esvoaçando, desconforme, arrepiado, sinistra alegria, “até nunca,
comandante”, desenrola o carretel, desenrola, me estende a ponta da
linha, francês, ao menos, até onde era aquela beira d’água?
— Faro, Nivalda.
Onde pajé é mina? Aqui um ente, por encantamento, choca
pedra um caroço, um qualquer caroço, choca, é só o pajé querer. Mas
até agora nem caroço nem pedra. E de pajé nem um taquari, um
suspiro, um chocalho, uma toada, só a noite com os bichos piando, e
aquele guarda-sanitário tirando do morto, que chegou no batelão, o
fígado. Das palhoças se entornava um tal luto, um não ter ninguém
nem nada! O rio, muito em si mesmo, ressumava seus remansos, e
dele fugia a terra, fugia geral até onde são índios. Os uruás, e
Maria Pixi
Acariquiçáua
Uruparanã
Sapucuá
Mirixi e os lagos de pirarucu de Macuricanã, montanhas,
cachoeiras, castanhais. Nem caroço nem pedra. Tinha era aquela
mulher em trânsito, sentada à porta da Casa Amigável, unicamente
entregue à sua espera, intocável nas [109] suas sedas. Olhava o rio,
esperava. E das montanhas a noite, as velhas tribos ali acossadas
vomitavam. A viajante aqui na cadeira de couro de jacaré, sozinha,
em busca de sua viagem, armada de solidão e espera, a ouvir saindo
de Manaus ou de onde nunca se sabe o navio que vem buscá-la. Nem
caroço nem pedra. Mas a modo que debaixo dela rezavam os
feiticeiros? Está nos cuidados da D. Maria Jardelina da Terra Santa de
Faro? Trespassada pelos caruanas? Chocava?
Nhamundá. Ali acolá é mesmo o espelho da lua?
— O lago? O lago?
Mas olha primeiro um instante esses miudinhos de beira-rio
carregando lenha para o gaiola, carregando, carregando lenha, como
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vão vergadinhos! Correm pela prancha, o pé maneiro, ágeis, curvos
ao peso das achas, seres de uma estranha espécie, saídos da selva de
repente, astutos e velozes. Deles a voz? não se ouvia. D. Nivalda
atirou-lhes um pedaço de bolacha, passem um sebo no ombro deles,
soprem no nariz deles para que tomem um fôlego. Me deixem com a
beira de minha saia enxugar o rosto de cada um? Carregando lenha.
Toda noite, Amanajás?
— Queres ver o Espelho da Lua? Corta um dos teus peitos,
icamiaba, mergulha no lago e traz do fundo aquela pedra.
— Amanajás, tira da mão dos meninos a carregação de lenha.
Santo Deus! Toda a noite? Dá ao menos depois uni bando lenha. Toda
noite, Amanajás?
Carregando, carregando lenha. Cortar o peito, que nunca lhe
secasse o peito, pois tomem o peito, curumins da lenha, e pela
madrugada, toda a madrugada, aqui está, mamem, mamem.
Do fundo do lago subiam os curumins verdes carregando lenha.
— Juruti, Nivalda.
Assim de longe, visto do gaiola, era que era uma paz. tudo ali se
aninhando, onde mais verdejante? Vá, a prancha! [110] suba o
barranco, o olhar daquele um, tão de lá de dentro, a mão na ilharga
em cima de uma dor ou do que queria e não sabia dizer, o olhar
falava; aqui e na cova, faz diferença? O ar fervia. A febre aqui é
verde. Debaixo destes folharais o delírio. Se despenca do barranco,
chia fumegando na maré.
— Óbidos, Nivalda.
A ladeirinha, chão de tijolo, macio, da pensão, o advogado fala
num Cícero, num Bevilaqua, na palavra precatória. Dois turcos se
destratam na língua deles, tocou a cometa no Forte, aqui o frade
acordou berrando; a índia! Emprenhei a índia! Emprenhei a índia!
Aqui morreu, entrevado, o caixeiro-viajante. A velha dona do
muiraquitã que não mostra a ninguém. Na cabeça do trapiche, o
advogado, cruzando as mãos, declama: o crepúsculo! E aqui por
dentro do sono, o rio, engasgado com seus abismos, na goela de
Óbidos. A posse do Intendente com aqueles bogaris no jarro cívico.
Vem o advogado: aqui em Óbidos é na farmácia do Fonseca o nosso
Agora. Quer ver na parede da casa os desenhos do Príncipe Adalberto
da Prússia?
O urutaí gemia, onde? gemia era aqui dentro, o seu ninho, bem
fundo, neste sossego, tão, que desassossegava fundo. O navio se
aproxima do trapiche, prepara a prancha
— para o trapiche ou para que a noite, que se debruça ali na
beiragem maciça, entre a bordo? O farol da proa, direito na face da
velha avó, ilumina a maloca destruída. Nas. redes da terceira, na
popa, quem batia os dentes de frio da. febre? O navio apitava,
caçadores atiravam longe, o comandante desceu.
— No jantar temos paca, Nivalda. Paca.
Em Porto Velho, um espanhol ele falava, feito de todas. as
línguas; a professora queria passear na Bolívia.
— Não me levas só por causa das tuas bolivianas?
Dizia por um ardil de fazê-lo viajar um pouco mais. acima e
perceber nele essa mal contida vanglória de suas. aventuras em tantos
anos em navio da lama. Em [111] Madeira-|Mamoré, trilho do trem,
dormentes ou cadáveres? Encalha no Purus. Nem repara na corcunda,
ia crescendo nele, nem na brutalidade dele contra os marinheiros nem
nas horas em que se trancava no camarote: Não estou aqui, Nivalda.
Morri. Arma aí fora a tua rede? Purus? Madeira-Mamoré? Acre? As
viagens se misturam, agora desce para Oriximiná. Ele quer abrir o
corpo do meu pai morto, tirar o fígado do meu pai, comandante, o
fígado do meu pai, não deixe, não deixe, não deixe! O fígado do meu
pai, comandante! O rosto da menina! Aqui no braço dela o rosto da
menina, o comandante a abrir os braços e a acenar que despeça a
menina, o baque da prancha, o resfolgo da máquina, o estirão abocanha o navio, entra lenha, entra lenha, o outro tempo! E um monte,
na beirada, de ninguém-sabe-o-nome e de onde vinham? Defecados
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pela selva, um monte pedindo passagem, passagem, passagem! De
onde vinham? Passagem! Passagem! O estirão, já longe, comia os
sem-nome. E que ansiedade a dela para ver os ingleses, turistas do
Hildebrand, traje a rigor a trinta e quatro à sombra. O comandante engrossava a voz, a arrancar da goela o seu inglês. O postal dos estreitos
de Breves. O postal do encontro rio Negro x Amazonas. Os macacos
pendurados no mastro. O bando de jacamins viraram o jabuti, iam
comendo. Se regalem com a vossa embiara, bando de jacamins, mas
me deixemzinho do jabuti só o fígado. O fígado, sim? Contrato
assinado, sim? Manaus. O jantar no Hildebrand, traje a rigor a trinta e
quatro à sombra. Aqueles seringueiros e fiscais de renda sabiam
comer à mesa? Se o inglês gaguejava uma, duas palavras em língua
da terra, apressava-se o comandante: E o caboclo? Prestava? Os nossos bebedores de chibé, matadores de bicho, pais de terreiro?
Civilização? Quando? Quando? Como a dos senhores, hein? Quando?
E aí Nivalda intimamente protestava, o marido exagerava, o marido,
às vezes, zombava dos gringos. Os caboclos? Quem mais que eles?
Quem? Ao certo não sabia o que pensava o marido ou nunca pensava.
Ela [112] meio admirava os ingleses, as inglesas, ah não! Muito bruacas, ou se assustava. Saibam comer na mesa deles, autoridades locais,
repórteres de Mares e Rios de Manaus e Belém. Muito termo, minhas
senhoras da nossa sociedade, ou não sois a prata da casa? Dos sábios
que aqui se embrenhavam, o marido dizia o nome de cada um, meio
enrolado.
Lambendo o beiço, alagado de suor, no seu rigor, o comandante
voltava da civilização para o seu gaiola e tibum! dentro d’água, nu
com a sua corcunda, bufando no rio, era de madrugada. Os urutaís
gemiam. Assim viajava uma, duas, três, sobe-e-desce o Amazonas.
Carrega em Alenquer castanha. Desce no jirau: as lavadeiras de
castanha lavavam, uma a uma, escolhe as boas, separa as podres...
Aquela tapuia (mascava tabaco ou o seu desprezo) era nos olhar, e
cada um de nós sentia o arpão. Febrentas, estropiadas, silenciosas,
lavavam, batiam a castanha com aquele sol serrando as nucas. Vão
carregando os paneiros de castanha. Amanajás, a castanha? De quem?
Os mururés cingiam Alenquer no paraná, a cidade boiando do
mururezal, o promotor público, de emboscada, se fazendo lobisomem,
a assaltar as lavadeiras mais novas debaixo do trapiche, à noite. Sobre
carregou o gaiola, fedor dos couros, redes entre cachos de banana,
cestos, baútas de folha, e por cima da lenha: De quem aquela
harmônica? Monte de periquitos, o porco foge a galinha salta n’água,
na falta de capim o burro tenta comer a varanda da rede ali atada ao
pé dele; reclamando contra a baldeação se levanta de sua tipóia
molhada o cego sem guia, barbudo, ossudo, a abrir a boca como se
fosse lançar as sete pragas, a fatal profecia. O gaiola metendo lenha,
não cabia mais uma acha, carrega, descarrega, o guincho baforando
sobre a terceira, enrola, desenrola os cabos por entre as cordas das
redes, roca-roca-roca... Que aconteceu que parou? Cerração? Onde?
Em que altura? O navio no escuro rente ao verde escurão. Ainda a
reboque a alvarenga dos inflamáveis? Estão tocando harmônica. [113]
Encadea|das com a luz de bordo as aves pelo salão da proa, ali
apanhadas. Queres comer juruti no espeto, professora?
Agora em Guimarães, meses ali passou, tão breve, embalada
pelo silêncio daquelas montanhas do Tapajós, daquelas areias onde as
marés, entre as suas sementes, deixam montarias e lendas trazidas de
tão longe, ilhas, lagos, paranás, naufrágios. Lembra Guimarães como
quem escreve a velha amiga, com amorosa negligência, aquele
abandono com que a cidade sabe acolher o forasteiro e faz dele um
filho. Viajava no Vitória, ia de bubuia, viu a serra azulando na manhã
em que se escondia a cidade. Não mais estirões da várzea encharcada.
Desfraldava-se pedra e cor, raiações sangrentas na chapada entre
nuvens e fumos e de onde escorria o silencio satisfeito do sétimo dia
da criação. O velho vaticano conseguia escapar do cenário em que foi
envolvido, avança pelo rio, desemboca nas águas — feitas de limo?
— do Tapajós e surpreende a cidade.
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Os silenciosos pianos de Guimarães, tão silenciosos, com seus
panos rendados, até pareciam tocando? Dentro do rio o Castelo era
um ingênuo sobrado de aventura, estalagem de folhetim, a hospedar
caixeiros-viajantes, o fiscal do imposto de consumo, um e outro
quiromante de passagem, e o doutor Numa. E as procissões com a D.
Quitéria, da Irmandade do Sagrado Coração, que sempre dizia: sou
uma mulher generosa, a exibir a sua fita, porta-estandarte das
zeladoras?
D. Quitéria, sem consultar antes o seu confessor, o Frei Pio,
hospeda na sua pensão o Professor Pekim que instala no quarto, com
janela para a rua, o gabinete de cartomante. O Professor Pekim
baixou uma cortina e outros paramentos.
Batendo lata pela rua, os curumins anunciavam a novidade. O
brilhante no dedo do Professor Pekim encandeou a dona Quitéria.
— Professora Nivalda, valei-me! O Frei Pio vem me pedir
contas!
[114] Menos temor e contrição que vanglória. Consagrava a
pensão e sua dona à visita do Frei Pio. A Diocese punha na graça de
Deus a estalagem da D. Quitéria.
— Professora Nivalda! Meu querubim, que será de sua pobre
amiga diante de tamanha visita? Que foi que fiz, professora Nivalda?
Eu nunca ofendo a Deus. Eu sou uma mulher generosa.
— O Frei Pio? Aquele a quem Deus deu aquela boca? —
indagava a D. Enilda, mulher do Secretário Municipal, recémchegada de Belém.
— D. Enilda! Não bula no sagrado.
— Olhemzinho só para a boca daquele frei. É de frei? Aquela?
A senhora já viu, professora Nivalda?
— Ainda não — mentia a professora Nivalda.
— A boca muito bela, professora Nivalda. Uma boca de
precipício. Daquela não pinga prece, pinga favos. Não dá absolvição,
põe a perder. Deus me livre! Ali não está uma boca de Deus mas do
Demônio, eu juro.
— Mas credo! D. Enilda! Tome é a sua sopa antes que esfrie.
Quem vê a senhora assim falando, vai pensar...
D. Enilda!
— Ah, D. Quitéria, não me venha dizer que ainda não reparou
na carnação daquela boca, ora veja lá se como milho.
— D. Enilda, a senhora peca! D. Enilda! Se o seu marido
ouvisse todo esse despautério, D. Enilda! Deus o livre! Uma senhora
que a senhora é, tão distinta!
— Sou só eu? O rezar do Frei Pio? Põe o termômetro debaixo
do sovaco de cada moça, na entreperna de cada casada ali de olho
revirado, põe e mede o paludismo. É do sopro de Lúcifer. Os vapores
do frei, quando abre aquela boca, se virando para os fiéis na hora da
missa, dando a hóstia? Não é o Corpo do Filho de Deus que as
devotas apetecem, é a boca do homem ali soprando nelas, lhe digo eu.
A senhora não viu, professora Nivalda?
— Não, D. Enilda — mentia a professora Nivalda.
[115] — Nossa Senhora, D. Enilda! Olhe o inferno! Não fale o
que não sente, que a senhora, eu sei, que é tão distinta. D, Enilda! O
horror que a senhora diz!
— E agora vem o frei, aqui na sua casa, repreender a senhora,
D. Quitéria? Me deixe atrás da porta espiando um instantinho, Sim?
Quero tirar um retrato daquela boca. A missa dele é sempre à cunha,
com as mulheres dependuradas no beiço dele. Não é, professora
Nivalda?
— Não sei, D. Enilda — mentia a professora Nivalda
D. Quitéria, em pessoa, varreu a sala, lustrou a cadeira, com
bordadinho forra o velho sofá, o medalhão de Nossa Senhora, tão ali
no baú com pó e caruncho, agora na coluna, o havia de pôr o véu para
ouvir humildemente a pia mas severa repreensão. Repreendida,
agradecia e servia o piedoso censor com um cálice de vinho do Porto
que o cartomante lhe deixara de lembrança.
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— Por que que fui eu hospedar aquele professor Pekim e o
secretário, meu Sagrado Coração de Jesus? Mas não vinha da Capital
Federal? Me folheou um álbum de fotografias e referências. E o
brilhante no dedo e atando aquela cortina e me abre a mala! Fiquei de
vista escura com tanto Paramento atopetando a mala! Me deu
adiantado 260 mil reis. Pessoas direitas. Ciganos não eram. A
primeira coisa que me disse, foi: Esta casa aqui é católica? E no gabinete montado, no meio de toda a paramentagem de suas artes e
figurações, o quadro do Sagrado Coração. No que abriu o consultório,
tudo foi na maior compostura. As coisas que ele adivinhava! Pois
muito me admira! Sabendo do passado, do presente, do futuro, olhe
que as cartas dele? Só faltavam falar. Sim que falavam pela língua
dele. Eu só sei que o que aqui fez, satisfez. Mas que se há de fazer, o
Frei Pio aborreceu-se. Agora espero a repreensão.
— Mas a senhora, D. Quitéria, também não põe suas cartinhas a
duzentos réis?
— D. Enilda, pela honra de seu marido, não me ande
espalhando... É uma coisazinha à parte.
[116] — À parte de quê? Do Frei, da Irmandade, dos Sacramentos?
— Mas, D. Enilda, é só um simples passarzinho o domingo à
tarde no descanso das consumições e só entre as pessoas de minha
estreita escolha e que me rogam o serviço. Pela honra de seu marido...
— Não meto a mão nas brasas pela honra do meu marido, D.
Quitéria. Nem pela minha. Toda a honorabilidade das esposas nesta
cidade anda correndo risco naqueles beiços do Frei Pio. Daquela boca
sai faísca. É preciso um abaixo-assinado exigindo já-já a remoção do
frei. Ou fazer um esconjuro, todas nós, mulheres, na pracinha: Sai de
dentro desse frei, Maligno. Que a tua boca é a dele, Disfarçado, sai,
Príncipe das Trevas. Senão, senão o estrago é grande. Que a senhora
acha, professora Nivalda?
— Não acho nada — mentia a professora Nivalda.
— E no dia da procissão, depois do Te-Deum? Todo nos
paramentos, com aquela boca em cima das mulheres, gritou contra o
veneno que andava circulando em Guimarães, aqueles papéis do
espiritismo. De repente abriu os braços, num arranco e deu aquele
berro: Viva o Cristo Rei! Viva a Maria Santíssima! Viva a Igreja
Apostólica Romana! De se ver que belo foi, foi, professora Nivalda.
No beiço do homem o mulherio de Guimarães se esgoelando em
Viva! Viva! e eu sei que para o Cristo não era. Para a boca do padre
isto que sim, ele de braço estendido a acalmar as mais derretidas, a
passar água benta nas possessas. O povo de saia entrava na igreja
ralando o joelho pra Maria Santíssima. Eu bem que sei a Maria
Santíssima!
— D. Enilda, minha flor, vá, vá quanto antes se confessar, hoje
mesmo, que essas suas brincadeiras a Deus não agradam. Se confesse,
sim. Não fique cega da razão, dona Enilda, que tão distinta que a
senhora é. Mas a senhora está desenfreando a língua, me anda muito
ímpia, credo cruz, ave maria, valha-me Deus!
— Confessar-me com ele? É o mesmo que perder-me.
[117] — D. Enilda! Brinque! Brinque! E se seu marido agora de
repente... Ave Maria! Com Deus ninguém brinca.
— Mas não é, professora Nivalda?
— Não sei, D. Enilda — mentia a professora Nivalda.
E de volta da confissão, brandindo o rosário, D. Quitéria
mandava para os infernos o parente atrasado na pensão dois meses.
Despejou-o do quarto:
— Meu parente? Parente? Parente? Dente é que é nosso
parente! Está faltando arroz na mesa, peste! Parente? Dente é que é
parente. Ó, peste, não estás vendo que falta arroz na mesa? Parente?
Dente é que é parente!
A peste era a Rosilda. A conselho do comandante, que lhe
conseguiu passagem num Lanchão de Monte Alegre, fugiu numa
madrugada. D. Quitéria, perdido o seu braço direito nos afazeres da
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pensão, trazia a terrina de sopa:
— Eu que sou uma mulher generosa! E o bom pago? Pois uma
bicha que meti dentro de casa, com licença da palavra, nua-nua, tudo
o que pode ser de mais flagelada e dota banho com creolina na
fedorenta, lhe tiro os piolhos, assim.., desculpando por estarem na
mesa... as bichas, levo ela pra fazer a primeira comunhão. Enfio-lhe
um rosário na mão. E o bom pago? E depois? Não ia lavar no porto
porque era quebrada do estômago — dizia. Pois nem a rede que não
era dela, era minha, nem a rede deixou? Tudo era meu, tudo do seu
uso era desta D. Quitéria,, me pertencia, que ela do que me pertencia
até que abusava. A corda, a corda da rede ela levou. A chinela que eu
dava emprestado, levou. O meu trancelim, sim, que quebrado, mas era
meu. Aquele meu cinto. Madrinha, me emprestezinho aquele cinto da
senhora, o mais usado, sim? Eu sou uma mulher generosa, disso Deus
está ciente e dou por testemunho o Frei Pio. E por ser, saí premiada
com aquela cachorra no perna-pra-que-te-quero? Pois até o meu
gramofone velho? Aqui a prova, carregou ele até o pé da porta da rua,
viu que não podia, que pesava, Largou aqui no soalho com a corda
quebrada. Dei, dei parte na polícia não pela honrinha [118] dela que
sei... ninguém me passa a perna nos meus territórios, ninguém me
mete no saco. Aqui em casa? Eu não via? Eu bem que via e ouvia. E
por uma comodidade me fiz de cega, me fiz de surda, me faço de
palerma quando convém. Dei parte, sim, mas pelo bom nome de
minha casa que ela quis emporcalhar fugindo. Quem com porco se
mete, farelo come. Mas eu pago a precatória atrás dela e exijo que o
meu compadre Cristóvão, o sargento da guarda, ajoelhe ela em cima
do milho na cadeia e lhe dê de palmatória só duas dúzias, o suficiente,
e tudo muito bem gratificado.
O Frei Pio me disse sim. Duas dúzias só! Para isso aqui na terra
tenho os meus conhecimentos e sei com quem me pegar por lá por
cima. Que paga, paga. Paga!
D. Generosa, me consiga, me rape lá na sua panela um
pouquinho de arroz? Ou a Rosilda também levou?
— Esse comandante mesmo... Me mangando... O senhor me
faça um cálculo, meça o grau da afronta que sofri, comandante.
— Por lhe roubarem a escrava, D. Quitéria? A bichinha rompeu
o grilhão, se desenfiou do seu rosário, D. Quitéria. Ou não foi?
— Ah, comandante... O senhor também leva tudo na caçoada...
Não é, professora? Mais arroz, professora?
Por que o conselho do comandante, o interesse, aquele socorro a
Rosilda? Também generoso? A idéia do gramofone era dele, que
imbirrava com aqueles dobrados tocando na hora da sesta. Rosilda e
ele... Agora é tarde para saber.
E o Fona, o pinta-cuia? O vagar do Fona desenhando cuja,
pintando as pedras que vendia a bordo. Lembrava as mulheres cueiras
carregando o paneiro das cujas, rompendo chuva, madrugadas, ou
queimando o pé no pedrume quente, lá da Aldeia, pobrinhas palhoças
da Aldeia, entravam a bordo. Viagem que não vendiam uma só cuia.
O salão de proa ficava em flor e verde dos regalos de Guimarães.
— Queres, Nivalda?
[119] Guardava aquela porção, restam umas pelo fundo do
armário baú, desta a tinta saiu, daquela a filha fez um caco para a
água do pinto, e assim, Fona, o pinta-cuia e pedrinha, com o seu
violão, fazia um tanto pelo povo que tanta coisa grande tem para
fazer. Naquele pintar e naquele tocar, vinha um pouco das cunhatãs
que todos os dias sobem as ruas da cidade com latas e baldes d’água
do Tapajós. Dos trabalhadores de madeira e balata, das canoas de
pesca, batelões e caminhos que levam os homens para as cachoeiras
em busca de castanha, ouro e pau-rosa. As garças das cuias coloridas
voam para dentro de nós, aqui se aninham. Via cadência na
caboclinha carregando água, subindo a rua. Sua beleza triste e
fatigada ficou nas cujas, na melodia, na manhã em que os velhos
azulejos de Guimarães se enchem de uma luz e de acolhimento. O
violão parou. Das cuias e das pedras, agora em silêncio, saltam
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garças, peixes, nomes de estimação e afago, palmeiras; os poentes do
Tapajós, Fona, pintando e tocando, sabia recolher, e nos dá esta
sensação tranqüila de que a paz virá e a felicidade é possível. A
vizinha, a cantar às duas da tarde, invariável e doce, enchia a sesta.
A sesta de Guimarães?
Quanto mas quanto sono! O calor nos parava o coração.
Unicamente os esses das redes. Na rua o sol roía a; pedras e a língua
dos velhos cachorros. Até hoje na palma da mão a maciez dos
azulejos da velha pensão da D. Quitéria, janelas e portas portuguesas,
a bilha d’água no parapeito, o beco empedrado de onde apontava a
sege lenta em que viria o capitão-mor. Os sinos da Matriz
anunciavam caravela, notícias de Portugal. Na missa de domingo ia
ouvir um sermão de Vieira? Junto ao Cristo de Martius, na igreja,
escutava o naturalista contar do seu naufrágio no Amazonas. Certas
missas, novenas, procissões, lhe falavam de um burgo católico de
1678, vagaroso e severo nos sacramentos, nas penitências. Diante de
velhas casas, como a dos Porandubas, não escondia seus cuidados: ia
sair agora mesmo na rede, [120] carregada pelos escravos, a Cecília?
As velhas casas de ladrilho e varanda abrindo sobre a caramanchel em
flor? A elas pedia benção. Naquela porta de gonzos, forrado de suas
gramáticas. o professor Jaguarema ensinava, com assaz paciência, a
colocar o pronome, pondo em português as cartas dos namorados e o
relatório do Intendente.
O comandante a levava para os Porandubas, havia mesa posta
tão copiosa quanto acolhedora, salas de pedra tão feudais de espessura
quanto liberais de hospitalidade. Do outro lado, bairro da Aldeia,
doía-lhe aquela custosa igreja em obra; em torno as palhoças se
apertavamzinhas de pé no chão.
Toda tarde dava o seu bordo pela travessa dos Mártires onde um
velho alemão relojoeiro, de tanto olhar a insensível D. Berta na
sacada, estuporou. Recorda que anotou no seu diário, jogou no rio,
bruscamente, uma noite. Tudo ou não foi? Tudo um pouco, ou muito?
Por causa daquele impossível doutor doido? Daquele doutor doido
que perdeu a fortuna se educando na Europa, cursou universidades e
boêmias, para ser promotor público em São Domingos do Capim,
onde dormia no trapiche, promotor em Mocajuba, Baião, Almeirim,
Aveiro. Vizeu, e aqui demitido, vagamente advogando. Uma tarde
leva ela pelo braço para o pé da fogueira na travessa dos Mártires e
lhe faz uma mesura:
— Vamos, vamos passar fogueira. Estou falando em termos de
alegoria, D. Nivalda. De quê? Passar fogueira de quê? De minha
alegoria? Sim, de minha alegoria.
Três vezes sobre a fogueira, beijou-lhe a mão, murmurou:
— Salte daquele navio abalroado, senhora. Salve-se no meu
escaler.
À noite, dormia nu pelas areias do Tapajós no meio das laranjas
que levava num saco ou corria pela praia revirando imaginárias
tartarugas. Vou revirar a lua! Vou revirar a lua! e entrava no baile,
H.J., chapéu-chile, a reclamar da música as doze valsas. Era a boca
cheia de filósofos alemães, [121] reci|tava aquele soneto do recife de
coral, e tome conhaque e tome conhaque! e foi que naquele domingo,
manhã cedinho, come lingüiça no mercado, quebra a garrafa vazia à
porta da igreja, entra na missa, ao instante da comunhão. O padre.
aquele velhinho, cinqüenta anos de ofício pelo interior do Pará, com a
sua velha Sexta-Feira, lá na Aldeia, cerzindo-lhe a batina e tendo dele
seis afilhados. O Bispo, por isso, só lhe permitia aquela missa ao
lusco-fusco, domingo. Em casa entre suas couves e plantas
medicinais, o padre socorria os doentes, benzia com folha de arruda,
mestre em cataplasmas, esquentava cuja na barriga doendo dos menininhos, mandava assar a canarana, espreme o sumo, põe no sereno, e
bebe, que é um repente a gonorréia. Em fomentar a barriga de
senhoras, podia tirar patente. Assim ganhou o apelido de Pajé Padre.
Também desconfiavam que era espírita e ele mesmo partejava a sua
Sexta-Feira. Pois bem. Vendo o padre que aquele doutor se ajoelhava
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e já abria a boca fumegante para receber o corpo do Nosso Senhor,
apertou a hóstia entre as pontas dos dedos, sussurrou, bonachão:
— Mas é o senhor mesmo, Dr. Numa? Matando o bicho?
Primeiro vomite um pouco.
Ali mesmo, entre as velhinhas que esconjuravam e as moças
que acudiam, o Dr. Numa vomitou um pouco, recebeu a hóstia, logo
se virou, empinou-se, assoou-se, ganhou o largo na direção do
mercado onde ia recomeçar. Voltando de Souzel apanha, tão fora de
idade, aquela catapora. Interna-se no pequeno hospital onde pelas
rótulas zumbia um vento que ele dizia uivante. À noite, se logo não
fechava a janela, saltava aos brados pelo corredor, cobertor em punho
a bater os carapanãs. Foi vê-lo, levando-lhe laranjas e encontra ao pé
da cama dele aquela bela negra alta de olhos feéricos, ali silenciosa,
catingando intenso e suado como se fosse a magia mesma.
Uma tarde, passeando na travessa dos Mártires, encontra-se
com ela, lhe entrega um papel e um búzio.
[122] — Guarde, D. Nivalda, esses rabiscos inspirados na senhora e nos meus contratempos. Belém, Aveiro, Melgaço, Vizeu, São
Domingos do Capim e a cachaça de Jararaca, tudo isso me apodreceu.
Fígado e alma, fígado e alma. Sinto-me agora entre minhas próprias
cinzas. E olhe, aquela escura, (o irmão vende macacos a bordo)
aquela escura, que viu no hospital, a crioula Sulamita? Arrebatada por
um inglês no rumo de Arapiuns. Bebia vinho branco com japana
branca para só ter amante branco. Penso partir, hoje à noite. Estou
bebendo muito. Ou pouco? Quem sabe? Quem sabe? Minhas
homenagens ao comandante. Parto sem ter visto a tal dança dos
tangarás. Guarde a jóia mal lavrada. Não comi ovo cozido de japiim
no quarto minguante, por isso nada fiz. O búzio, sou eu que lhe vou
falando. Sigo só no meu escaler.
D. Nivalda retira do velho cesto de retalhos o canudo de
papelão de onde desata a folha amarelenta:
No puxo da maré, a errante amada renascerá dos lagos, o cabelo
sinuoso e crespo como os rios no verão. Tuas mãos, misteriosas
pedras, errantes, como os muiraquitãs, desejos sem destino na noite
em que as florestas nasciam, os rios nasciam e procuravam correr e os
bichos nasciam e procuravam cantar. Assim tuas mãos vagavam entre
as jatoaranas e as lontras, com as índias dançando a puberdade e os
jacarés em torno mundiados. Oiço o grito do acauã no Nhamundá, por
ordem do pajé choco minha pedra. Dos meus ovos salta a ninhada. As
guaribas dançam a anunciação da noite. Venho do rio Negro, fervi
num tabacuri, bebendo aqueles venenos, marquei o tempo e a paixão
com os nós de um ainhém que a índia cobéua me deu, uma noite, as
saúvas saindo debaixo da chuva. Das alturas de Parintins vem o
minguante, agasalha-se entre as escamas do peixeacará de onde
nascem as auroras para o sairé de Alter-de-Chão. Dançam o sairé as
velhas índias, se cobrem de limo e fumo no lago verde, e bebem
caxiri. No terreiro, na casa de dona Ana, bebo o meu tarubá. Ao lado,
o meu mutum de [123] crista encarnada. De repente me vejo em
dores: uma aranha de boca encarnada, com duas presas, me ferrou na
perna. Dia e noite me doendo perna, coração, o mundo. Sarou assim:
o pé do lago, bem de madrugada, faz silêncio geral, de repente como
pela primeira vez em terra chora debaixo do toldo aquele verdinho de
peito.
Os botos de bom gênio rondam o perau dos curumins afogados.
Tuas mios benzem os caboclinhos mortos que ficaram no fundo com
as montarias perdidas, ali no fundo dos lagos por não morrerem de
fome no fundo das palhoças. Não morreram subindo o Nhamundá e o
Trombetas atrás de balata e pau-rosa, felizes, felizes, não morreram
de febre e bouba como os do Lago Grande e os de Arapiuns nem
rachados de inchação, nem acordam nas meias-noites debaixo da
chuva para carregar de lenha os regatões com aquele doutor na rede lá
em cima, com o seu conhaque, lendo o livro alemão. Felizes, felizes,
porque não ficaram tristes ao pé do aturiá e no trapiche de lenha,
sentadinhos na antiga balança da borracha, inchadinhos e tuíras, e
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tristes, e tristes, errante amada, e tristes... Ah, teus cabelos se
estendem sobre o vale à flor da enchente, se misturam com os periatãs
e os barrancos desmanchados pela correnteza, o boi urrando no curral
dentro d’água e da noite. Teus cabelos uma ilha de aninga e miritizal
e garças de repente no anoitecer nascendo dos remansos. Março e
abril desatam as correntezas com os cedreiros na espuma, lá em cima
reboam surdamente os repiquetes, aqui embaixo nos rebojos, pelo
fundo, o pajé mergulhão escuta a receita de Urumutum, o caruana,
que há de curar no Boim a menina encolhidinha na rede, triste, cada
vez mais triste, nem come nem dorme nem fala o que sente, os olhos
vidradinhos. E te oiço na voz do remeiro com febre no furo, na voz do
canoeiro baixando as velas sob a trovoada no furo, nas vozes da
ladainha para a Senhora do Perpétuo Socorro e na voz do seringueiro
chamando os cachorros, por onde? Já ninguém sabe, e na voz dos
viradores de madeira e nas vozes da febre [124] voando sobre redes e
tapiris, caminhos e jiraus, o canto da febre, e os cemitérios: Basta!
basta!, repletos. Teus cabelos vão para o mar oceano, são os
inumeráveis caminhos para o mar oceano que é o amor e a morte. Teu
pé marcou na várzea e o açaizeiro que dá o melhor vinho, o lugar
onde o tajizeiro queimado pelas formigas dá mais flor. Teu olhar
domina o estuário, como o do pássaro sobre a maré. Nem toda liamba
me fará esquecer as promotorias públicas. Felizes peixes, me contem
de que brincam os curumins afogados, como dançam os peixes-bois
sob o capim nupcial, os tambaquis tão de súbito arpoados, me contem
onde se escondem aquelas noites, onde se afogam nas lagos do Alterdo-Chão, onde? Aquelas noites tão de minha vagabundagem e de
minhas buscas, como a noite dos homens para sempre perdidos nos
balatais. Como te poderei prender, se és dispersa e vives entre os
elementos como a semente e a morte? Fica de ti no meu tormento a
sombra das mortas auroras. de Alter-do-Chão ou quando morre o
marabaxo e sobe pelo tambatambatajá o suspiro do Urumutum, o
caruana. As mulheres se enrolam nos teus cabelos para ficarem belas
e amadas, o corpo fechado contra febre, fome, viuvez... Quem me
fecha o corpo contra as promotorias públicas?”
Aqui o doutor risca o escrito. A letra corrida, as emendas
ilegíveis, o papel amarelou muito, velho, velhas as palavras aqui
deixadas, soam como o debater do bêbedo no rio. Naquela noite,
conforme avisou na despedida, o Dr. Numa avança pelas areias,
gritando: Quero rever as profundezas, e entrou, com a garrafa de
conhaque, rio adentro, até hoje.
Molequinhos pela rua, numa algazarra, batendo Lata,
anunciavam a fita do cinema. Era também como se anunciassem a sua
partida; lembrava aquele bater de lata na João Balbi noite de eclipse
da Lua. Quero rever as profundezas, o que se escutou, quem por ali
passava ou amava, ou à toa ao pé do rio, ao gosto do areal.
Desesperou-se para partir, descesse logo de Aveiro o navio do
seu marido. E a esconder o papel e as palavras [125] do afogado ali
encravadas na travessa dos Mártires como pedras do calçamento.
Queria fugir daquela cidade, das cujas, cestos, doces decorativos,
cheiros da terra, que lhe falavam cio escaler, do doido pelo areal
entrando no rio, deste papei que quis queimar, queimou? Sigo só no
meu escaler. O búzio deu-lhe um temor, podia ser como uruá, que não
prestava levar pra casa, jogou n’água. De H.J., chapéu-chile, conhaque: Comandante, permita-me esta parte com a sua senhora?
Haverá no mundo, como os de Valência, bailes tão lembrados?
Era uma velha casa avarandada abrindo para o quintal, mesas do bar
debaixo dos coqueiros. No salão, aquele estrado para os músicos
servia também de palco às sessões cívicas e de posse. O mestre da
música tocava piano, requinta e bombo, secretariava a Congregação
Mariana e administrava o Cemitério. Chegava, pontualmente, a
Honória, alta, pálida, os olhos machucados do serão. Ia sentar-se, solitária dama, rente à porta da sala de jogo. Dentro de casa, que caía aos
pedaços na esquina, vivia costurando, coçando a frieira do pé no chão
de tijolo. A mãe, a ocupar-se lá dentro com um neto, nunca aparecia.
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De instante a instante: Cadê o Lionel? Não deixa o Lionel no sol.
Acomodadinho aí, tome o seu pipo, Lionel? Não deixa o Lionel no
sol. Acomodadinho aí, tome o seu pipo, Lionel. Cessava a voz, os
ruídos lá de dentro, voltava a máquina a coser o pano e o silêncio na
sala. Atrás de Honória entrava no baile a irmã, a Davina, miúda, a
sobrancelha arqueada, sardenta, as pernas tortas, ali cerimoniosa,
meio assustadiça como se fosse a primeira vez que ia ao clube e desde
os quinze anos a um baile nunca faltou, sempre bem comportadinha,
na sua cadeira cativa. Fossem vê-la junto da irmã, cosendo cuecas,
cortando a unha do pé: Era aquela boca apimentada, nomes, gíria,
anedota, apelido nos outros, arremedando o próximo, contando como
se levantou da mesa o Cobra Prenha, larga o copo no banco e volta e
senta a bunda em cheio na boca ido copo, haja fazerem força para
arrancar daquela bem [126] fornida bochecha os cacos do copo. Era
um doutor local, traçava o seu latim, cheio de linhagens, espichando
suas raízes de família até a fidalgaria portuguesa conforme seus
pergaminhos. Tinha uma coleção de solitárias conservadas em álcool.
Quem tem sua solitária, me chame que eu tiro e conservo no meu
museu. O seu cartão:
Dr. Cândido Belarmino
Intelectual
Ao sinal do bombo abrindo o baile partia o Cobra Prenha a tirar
a Davina. Demônios, se queixava ela ao pé da máquina, no dia
seguinte, a mirar no espelho as sardas e as sobrancelhas, e logo a
acender, aqui no muito reservado, o cigarrinho, pois o meu primeiro
cavalheiro é sempre o Cobra Prenha? Só ele só que me tira o selo do
baile. Toca a marcha da despedida e lá me vem o coleciona-solitária
fechando com chave de ouro a minha bela noite no Valência. Isso não
é pior que chá de cadeira? Preferível o croché da Jesuína Almeirim no
seu vestido parece pano das bandeiras, emparafusada no assento, sem
um cochilo, sem um misericordioso, nem mesmo o Cobra Prenha, ali
naquele suplício, toda a noite. Dá pra carregar um navio, o croché que
ela faz sem nunca desistir, no seu trono de rainha de chá de cadeira.
Melhor assim que o Cobra Prenha. Pois me cubro de lantejoula, só
vou ao clube quebrando tigela, disfarço as pererecas da cútis, empôo
as espinhas e a lepra da costa, puxo de lá de dentro o colo, faço uma
figuração do peito com o olho de boto dentro da medalha, me benzo
ao entrar no baile, distribuo os meus olhares. Quem que vejo?
Aquelas caras de papelão? Também que rapazes! Ah, Guimarães! Ah,
Guimarães! Rio Tapajós. me arranja uma bruta enchente e engole isto
com a Diocese e tudo!
Mestra em penteados, Davina cobrava pouco, à custa de soltar,
entre as íntimas, carregando na tinta, o que via na cabeça das suas
freguesas, daquelas mais titis-de-galinha, a tal que encarecou e usa
postiço dizendo que foi fumaça no [127] cabelo... Davina, tem dó, dá
um descanso à língua. Como puxas no preço do teu penteado,
pequena! Corria a desinfetar as mãos no seu cheiro de garrafa, mas
credo! axi! tamanhas moças! e ali estão elas no baile etc, e tal, por
fora muito enfeitadas e estratadas, pávulas dos meus penteados.
Quanto ao seu cabelo, passava o pente, joga a crina pra trás e pronto,
seu costume, não se deixava pentear, sim que às. vezes uma fitinha,
uma flor. Este meu desalinho é a minha elegância. Trazia ao peito o
seu cacho de jasmins, agora no salão, muito respeitadeira, seca para
fumar, mas aqui em público? e assim meio vexada era mais por fugir
do Cobra Prenha que a caçava e em pleno foxe:
— De Quintiliano, já ouviu falar?
— Quem, Dr. Belarmino? Aquele seu Quintiliano meio coxó
que abre cova no cemitério, o coveiro? É, Dr. Belarmino?
— É o que eu digo. O mal de Guimarães é a sua falta de letras.
Deixa estar, deixa estar que hei de fundar o meu Liceu.
Coibida na mão do cavalheiro, Davina queria coçar-se, peguei
comichão desse velho? Vá ver que é sarna, cera! cera!
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D. Nivalda, olhando as duas irmãs no salão, via-as lá na casa
delas meio escura e suja com aquela estampa da parede escalavrada.
Davina, os pastora e suas ovelhas na olhos no vazio, apanhava o
abano, se abanava, se abanava, atira longe o abano: Bosta! Que faz
nessa parede essa pastora, essas ovelhas? Chega. Ó calamidade!
Davina! ralhava a mãe, sempre invisível, a voz não sei onde, às
voltas com o Lionel, uma voz apagada, muito solitária, como se fosse
apurada no bater daquela bigorna do ferreiro.
— Vá tapando as oiças, mamãe. O baile do Valência não dá
nem dez réis de marido. Ficar no trapiche vendo navio pranchear e
despranchear ou à espera do baile das flores pra ser tirada pelo Cobra
Prenha? É me passar por sem-vergonha e sem-vergonha sem os
saldos da [128] sem-vergo|nhice. Minha cruz é continuar honrada, ora
já se viu! Mas a donzelinha saçariqueira fica pra semente? O
assanhamento dura uns cinco anos, o meu prazo escoa. E eu fiada nas
cartas do tal Pekim, aquele embusteiro, ah, meus cinco mil réis! Em
que mais que vou me fiar? Não tem conchavo que dê certo. Mas filha
de Maria que não vou ser, abrir meus podres no ouvido do frade,
agora isso... Pela honra da firma é o pelo-sinal da pia e na hora de cair
na rede. Olhe que tenho me fiado! O prêmio é aquele par no
Valência? Um dia... Um dia a donzela se enfia entre a carga dos
inflamáveis na Alvarenga e tudo salta pelos ares. Em vez de dar no
vinte, fico neste vinha-d’alho, aqui defronte dessa pastora de mentira,
de onde tirei minha fantasia de carnaval de há três anos, dessas
ovelhas de papelão? Aqui nesta cidade tem uma rua dos Remédios
onde não se acha um pé de sabugueiro, é um lixaral, um foco! Tem
uma rua da Misericórdia onde mora o seu Benigno, este não dá um
gole d’água a cristão, contando toda noite o dinheiro que guarda e
acumula na velha burra. Guarda nota que já não circula mais. É assim.
E assim vou penteando as piolhosas, ouvindo o seu Adamastor bater a
bigorna entra-e-sai ano, a ferrugem cobrindo o meu cadeado, com
pouco estou coçando o meu caruncho no entulho daquele sereno com
a minha língua de pirarucu ralando as que tomaram o meu lugar lá
dentro do salão. Tudo me sai virado. Que foi que aconteceu, que-que
se deu no mundo que eu me gerei na barriga de minha mãe, e logo em
Guimarães! Ó mamãe! a culpa é da senhora, me gorasse... me
gorasse... Ao menos em criança tirasse três pontas de cipó tracuá,
fervesse, lavasse nele a a minha perna pra desentortar um tiquinho,
ah! Também!
D. Nivalda, a senhora precisa de uma lavadeira? Posso pentear
nem que seja uma porca-espinho num buraco de Belém? Não tem
quem lave a bordo as escarradeiras dos passageiros? Aqui estou eu!
Aqui estou euzinha!
E no que ia arrancar a estampa, já lhe deu pena, sacudiu a
cabeça, soprou a poeira, uma folhinha de 1916, 16, [129] coitadinha
da mamãe, coitada, tem cortado uma volta, aquele ano da viuvez dela
e da nossa orfandade, fique ai sossegadinha, pastora, fiquem no pasto,
ovelhinhas. O que é preciso é avivar as cores, vou chamar o Fona.
Mamãe, me atirezinho um naco do seu migado, me deixe aqui dar um
trago já que em público é muito feio, oh, tudo que se apetece em
Guimarães é sempre muito feio, demais feio, merda para a Diocese.
Cale essa bigorna, ai, seu Adamastor!
A irmã em silêncio, tesa, virava a máquina, pescoço duro,
costurando, a esperar o delfim que virá buscá-la. No clube, aquela
estampa, à altura de sua experiência de salão, a dar com
circunspecção e mestria o seu primeiro passo na abertura do baile nos
braços sexagenários do Capitão Fonteneles, o Coletor Estadual,
membro da sindicância. Nos intervalos, o Capitão ia lá fora atrás do
coqueiro tomar rapé e livrar-se de seu numeroso vento. Honória
aceitava o Capitão como se aceitasse um par de França. Que linha,
abrindo o baile! E que competência no vestir, no deixar-se guiar pelo
trôpego cavalheiro, ao sentar-se apanhando o vestido, como ninguém
em Guimarães, num saborear os seus feitios ali nas outras, tão dela
aqueles vestidos de baile, domingo na praça, procissão, dando-lhe
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fama e freguesia. Mas ai! o que era melhor, nunca vinha, nunca vem?
O delfim?
Davina, para fugir ao Cobra Prenha, escondia-se no camarim,
como dizia, o reservado às damas, à espera que uma das senhoras,
com o marido no bar, a chamasse para uma cerveja. Entravam as duas
Pantojas. Não faziam os vestidos na Honória e sim na D. Vitalina da
terceira rua, muito achacosa: Esse teu vestido, Ambrosina, me Custou
uma pedra no rim. E tu, Elvira, tua saia de cambraia me valeu este
catarro no peito. Ambrosina, a mais velha, já trazia uns longes de titia
menos no rosto que nas maneiras, cobiçada à meia distância pelo
irresoluto Juiz que recém enviuvara. Contavam da secreta paixão dela
por um Frei Praxedes que abalou para o Xingu a converter índio. Sem
nunca realçar-se nem apagar-se, ia mantendo com jeitosa discrição e
[130] fideli|dade a sua paixão pelo missionário e o seu pendor pelo
Juiz. A irmã, essa, entrava no salão como enfurecida, rosto trancado,
coando dos olhos verdes a sonsice e o fogo. Dava-se ao cavalheiro
com um ar de recusa e enfado, a cara amarrada, os olhos verdes de
banda, atolando-se no rapaz que logo errava o passo, perplexo,
temendo a sindicância do salão. E ela, testa franzida, ciosa de seu
dever de engatar-se no homem e desdenhar dele, sem trocar palavra,
ali atochada e com toda a surda arrogância da família de quem era, os
Uchôas, tronco de monsenhores de Belém e desembargadores de
Manaus. Também estudava para catequista. Com uni leve desvio na
espádua, a cicatriz no rosto, um tumor sebáceo que a fez ausente do
clube vários meses, chegava a Lucila Feitosa. Durante o baile, trocava
sinais com o clarinetista. Por ter tomado fita recente na Pia União ia
dizendo, bem agarrada ao par: Achei em Jesus o meu caminho.
Chegavam as Lima e Silva. A primeira trazia na medalha o retrato do
noivo ausente. Quando o casamento? Era sempre no fim do ano. Ali a
noite inteira, muito noiva, nunca dançava, acenando não aos
cavalheiros, a exercer publicamente a sua obrigação de noiva, olhe
nas minhas mangas compridas. Me pinto? Nem Davina me penteia
mais, aprendo a bordar. Exibia pelo salão a sua aliança de dezoito. ia
ao trapiche, praça e comércio, com o letreiro na testa: Estou noiva,
estou comprometida, vejam como sei compenetrar-me. sem meter-me
a besta como a Sinhá de Aragão que de todos se arredou, engaiolouse, com o rei na barriga. A irmã tinha uns olhos graúdos, rajados,
cheios de pasmo, dançando sem cessar com um aflitivo afinco e
sempre a seco sem um licor, um copo d’água sequer um instante no
reservado das senhoras, sem perder uma, aplicada ao baile como uma
serviçal. E entrava a Geltrudes, rotunda, sem pescoço, cara chata, a
deslizar no salão com toda a sua fluência, uma pluma, diziam os
rapazes, uma sílfide enchida a gás, dizia o doutor. Numa, sufocada
nos moldes da Honória que não sabia mais como conter aquelas
banhas. Fazendo exame para [131] professora interina, com onze
erros no ditado, foi nomeada. Devorava pastéis no bar com uma
gulodice festeira, tirava um momento o seu pequenino pé do sapato,
certamente para dizer: Debaixo destas banhas olhem o pé, este é meu,
não é bem da Borralheira?
Neste momento, entra no salão a Nair Camacho, longo vestido
de gaze, braços nus, costas nuas, o melhor penteado do baile, Davina
a penteava de graça. Era cega. Na sua cadeira, puxando conversa com
as vizinhas, sorria sempre. a reconhecer, no tocar a mão, um por um,
os rapazes que a vinham tirar, tão satisfeita, macia, no braço do
cavalheiro. a envolver o salão com o seu olhar defunto. Carregando os
seus estofos entrara a Hildebrandina, imponente de feiúra tão.
proporcionada em todos os traços que a faziam tão feia. por isso saía
dela uma espécie de beleza. É a vez da Romilda dos Pinas, cara
ralada, a bacante, como dizia o doutor Numa, ardente no dançar e
profunda no beber. Boa noite, D. Nivalda. Era a Jacira, franzina,
exagerando a fragilidade, a dizer pelos olhos e pelos gestos: Protejamme, protejam-me, que sou uma vítima. Apaixonada pelo noivo alheio,
na hora em que este ia dizer o sim a outra ao pé do altar, Jacira
irrompe em prantos gritando: Tu me fizeste mal, Coriolano; tu me
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fizeste mal, Coriolano, me desencaminhaste, debaixo da romanzeira
do quintal, tu me és devedor, Coriolano! Coriolano! A noiva desmaianão-desmaia. arranca o véu, rompe a grinalda, igreja porta afora.
Quanto à desencaminhada, submetida a exame, inteira-inteira. E agora tão frágil, sempre o ar desiludido, nos braços do par efetivo, o
Coriolano.
Aproximava-se o Dr. Numa, com o seu copo de conhaque:
— Repare aquele rosto. É uma cabocla? A mãe índia? Mais
parece da Polinésia. Como se viesse pelos fundos do Pacífico e dos
Andes e boiasse precisamente aqui no meio do salão. Tem quinze
anos? É o primeiro baile? Vejo nela as meninas que amei na
adolescência, sobretudo as que [132] sonhei. Quero guardar para
mim, intacto, perene, o encanto dessa menina.
Com essa tirada, esvaziou o copo, um passeio entre os
coqueiros, convida a bacante para o bar.
Num rumor de argolinhas, colares, braceletes, brincos e fitas,
caudas, leques, barbatanas e risinhos, chegavam as Munizes, irmãs e
primas, uma penca, tiradinhas da roseira; faziam o lastro nos bailes do
Valência, muito oferecidas, bastante faladas no trapiche, por serem
tão novas sempre debaixo do olho da sindicância. Filavam sorvete aos
caixeiros-viajantes, vinham ao baile muitas vezes sem jantar, já no
almoço comeram escasso. Dançavam com bastante fome. Tudo aquilo
é fiado e no calote, murmurava a Honória doutro lado, olhando o
cardume. Acabava o baile, corriam as esfomeadas para o laranjal da
Chiquinha Pipira onde amanheciam devorando laranjas.
Agora é a vez das moças ricas, entravam por cima do ombro,
ostentando o comércio do pai, uma o curso de estenografia e
escrituração mercantil, a outra o pulmão fraco em busca dos ares do
Ceará e a terceira os seus três cachorrinhos de raça que invadiam o
salão, querendo pular no colo das moças, atacavam a música,
ocupavam o reservado das senhoras; a empregada da família leva de
volta na corrente os três anjinhos, o sereno abrindo-lhes ala entre os
oh oh de ternura e surdas pragas. As três pareciam dizer: Digam muito obrigado pela nossa presença nisto. Isto não é a sociedade que
sonhamos. Saindo do cartão-postal, numa aparição estudada, a
Ivanilda num vestido de tafetá, o rosto compassivo, um ar de
resignação como se agora mesmo escutasse o que diziam dela, que só
namorava homem casado e isso lhe dava certa auréola, a convicção de
que era em Guimarães a incompreendida. Um vernizinho nessa
menina e ela poderia sustentar uma conversação comigo, dizia dela o
Cobra Prenha. Ivanilda, afetando languidez, fazia-se mais pequenina
no braço do ruivo doutor da Febre Amarela. O médico, entre os da
sua roda, contava dos exames de ânus que fazia das [133] senhoras.
Ivanilda ali se agasalhava como se protegendo do mundo. Tu não me
toma o meu marido, safada, era o olhar da senhora dele na cadeira,
seguindo o par pelo salão, a sorrir para Ivanilda, as duas tão amigas.
No aniversário do clube, Ivanilda recitava a saudação escrita pelo
Cobra Prenha que discutia este advérbio, aquela variação pronominal
com o professor Jaguarema. O gramático pontuava a medo, cauteloso,
para não ofender o latinista. Nas festas lítero-cívicas, Ivanilda era
indicada pela Diretoria para promover as representações. Era o bom
gosto do clube. Tudo assumia com gentil contrariedade, uma risonha
compaixão por aquelas que não tinham os seus dons, a sua cabeça.
Meu Deus, eu não sou insubstituível. E quando eu morrer? E se
acudia no confessionário a contar de suas súbitas vaidades, seus
impulsos de breve rancor e desespero ante as calúnias que lhe
atiravam. Agora, D. Nivalda espanta-se: Mas a Sinhá de Aragão no
baile? Desfeito mesmo o noivado? Exato que aquele passeio a cavalo
pelas roças deu motivo ao rompimento? Um doutor de Belém aqui
passando dançou com ela no Valência, namora sete dias, pediu. Sinhá
de Aragão ficava no peitoril da casa de azulejos, dominando o
trapiche, a sorveteria, as catraias e o sol que se afogava noutra banda.
Lá está a noiva, diziam todos, como se por toda Guimarães fosse a
escolhida para semelhante noivado. Vai casar com um fino moço, um
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doutor de Belém. Guimarães numa sussurrante expectativa por aquele
casamento. O Valência, embora perdesse a sua mais formosa dama,
orgulhava-se, como se mandasse lavrar em ata o ter propiciado aquela
noiva, não havia outra em terras do Baixo Amazonas. Sinhá de
Aragão, no que se vê noiva se encheu de vento, rompe amizades,
corta o bom-dia a qualquer um, não mais o pé no clube, sair era só à
missa com a mãe, apurando a soberbia e a formosura no quadro de
sua janela, lacrada no seu noivado. Guimarães sem saber se dava
razão a ela ou sufocava os ressentimentos. Sinhá de Aragão, no
pouquinho que saía, [134] era tão evitando a cidade como se receasse
a peste, o mais que depressa no peitoril, intocável, no êxtase de seu
noivado.
Uma tarde de sábado, a cidade sobressalta-se: Sinhá de Aragão
a cavalo? A caminho das roças, subindo o platô, a cavalo, montada
como um homem, a cavalo. Como explicar? Como entender?
Arrebatada por um centauro, dizia o Dr. Numa, vamos ver o deus que
vai sair dela. Já à noitinha. a cavalo, voltava das roças a Sinhá de
Aragão, defronte de casa, apeia, mas era? Dias depois a carta,
registrada, afirmou o agente do Correio, desmanchando o
compromisso. Diziam que até fotografia da moça a cavalo foi
entregue em mão ao doutor, as peripécias daquele brusco passeio às
roças tudo debulhadinho. O doutor: Pois case com o cavalo. Como
explicar? Como entender? Quem desmancha este novelo? Quebrou
seus cadeados, por quê? Por que de sua redoma escanchou-se no
cavalo? Voltavazinho agora ao baile, tão de repente dada, catando
cumprimentos, a dirigir-se a Honória:
Amanhã passo lá, ver um
feitio, sim?, coisa que nunca mais fez, virava a cabeça na janela
quando passava a costureira. Ali no meio das moças e diante do
sereno, tão inesperada, toda devolvida, a afetar naturalidade e
regozijo, aqui estou eu, diretores do Valência, a vossa melhor dama,
aqui estou, colegas, vos tirando da boca o melhor cavalheiro. E
aceitava a corte daquele caixeiro-viajante besuntado de etiquetas, tão
educado que repugnava, dizia a Davina, as gentilezas dele são de
embrulhar o estômago. Mas Davina não escondia o seu respeito pela
moça: Como enfrenta! Aqui dentro e o sereno, é preciso raça. E todas
nós debaixo do pé dela. Já um pouco tarde, chegava a Ritinha
Almeida, o olhar vidroso, a voz embuçada. Taciturna, sorrateira, sabia
colear a cintura, rara em Guimarães, sim que a perna um pouco
piririca. Rodava, só, na pracinha, faixa cor-de-rosa, apertando ao seio
o livro da missa. Constante ao confessionário e ao trapiche, com uma
especialidade: se agarrar no escuro com os pilotos. No baile,
reservada, obscura, confiava-se ao par que a descobria, sempre um
forasteiro, e ia dando suas [135] licenças sem nunca dar na vista, nas
escalas do permitido, o mais possível longe do sereno. Nesta curva,
nesta área mais à feição, favorecia a face, num repente virava o rosto,
a entender ao cavalheiro que dado não foi, nem sugerido, fez que
tropeçou para apertar um pouco mais a mão do homem, fingindo um
sobressalto. Voltava ao seu lugar, sem falar com as suas vizinhas e de
lá de sua obscuridade, mordia a ponta do leque, ávida para ser de
novo descoberta, e de repente, sem mais nem menos pedia ao irmão
que a fosse deixar em casa onde ficava contando a coleção de
santinhos ou a tomar caprichosamente o seu custoso banho de cheiro,
dentro da tina, desfazendo com o penteado mais um baile do
Valência. Lá fora, defronte do clube, nas duas janelas do salão,
aglomerado e burburinhando, falado em todo o Baixo Amazonas, o
crespo sereno de Guimarães, na maior parte velha geração da
sociedade, casadas, veteranas no mexerico, laureadas no ofício, a
virago que apalpava coxa de moça, tudo gente de primeira, compactas
solteironas ali, no posto fiscal, vorazes e inapeláveis. Por efeito de tal
sereno, o Valência amargava crises, dissenções graves, quedas de
diretoria. Em muito baile os diretores mandavam distribuir entre
aquelas megeras e palmatórias da cidade um agradinho de doce,
chocolate e guaraná, o que só servia para afiar o olho e a língua do
sereno insubornável. Entre as solteironas, avultava a Sinhoca
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Ervedosa, cara de holandesa, a sustentar os dois aríetes, como dizia o
Dr. Numa, e que eram as mamas formidáveis, as mais eretas de
Guimarães, de bronze pareciam, eqüestres, encouraçadas, a virgem
dos peitos de ferro, dizia o Dr. Numa, a bovina donzela, com aqueles
ubres, abastecia Guimarães de todo o leite da maldade humana. Seja
por pavulagem ou implicância ou aferrada ao detalhe, com os peitos
assestados sobre o salão, serenava a binóculo.
E as moreninhas da Aldeia, mas tão bonitinhas, botões de rosa
da arraia-miúda?, perguntava o Dr. Numa. Por que proibidas no
Valência? Ofereci-me àquela jovem negra para trazê-la no meu braço
ao clube. Ofereci-lhe vestido, [136] adere|ços, perfumes, ou viesse
mesmo com aquele seu almíscar fabuloso. Sei o meu lugar, me
respeite, me respondeu de cara braba. É verdade que barrariam na
porta. Sim, sim... Aqui no clube, negro só entra para varrer o salão,
carregar as bebidas para o botequim. No mais não convém. Vedado às
moreninhas da Aldeia tão bonitinhas. Vissem a negra repelindo o meu
convite!
Assim conversava o Dr. Numa. D. Nivalda lia nos olhos meios
dormidos do cavalheiro: Não quer mesmo seguir no meu escaler? Já
lá estava o Cobra Prenha arrancando do bar aquela indefesa. Eu reino,
D. Nivalda, eu reino... Não demora vomito ali mesmo no ombro dele,
cochichava a Davina a amarrar a calça no camarim, com um súbito
querer chorar, ou rir de si mesma, sabia?
D. Nivalda — chovia sempre — recompõe o baile, os bailes,
todos misturados, este naquele, desfeitos, refeitos, perdidos para
sempre, achados em sonho, visão de chuva e de viúva, repleta de
moças, que aconteceu a elas, que fim tiveram, quantas casaram,
quantas no sereno, quantas na cova, onde os bailes do Valência?
Mas tudo recomeçava, sim, outros bailes, outras debaixo do
laranjal, outra jovem negra proibida, vedado ainda às moreninhas da
Aldeia? E são novas mocinhas girando na praça, girando em torno do
coreto, dos fícus, em torno dos bancos, da adolescência mesma,
diante do rio e do inesperado transatlântico que passava, indiferente,
meio fantasmal, rumo de Manaus. Outras a ouvir missa do galo
sentadas nos bancos do largo, comendo doce, o minguinho trançado
no do rapaz na sombra. E aquele carnaval? Um certo conhaque fez o
comandante piruetar no Valência que nem ninguém. ganhou
subitamente fama de bem bom folião; foi curta a in— fluência, se
recolhe ao camarote numa ressaca selvagem. No trapiche, D. Nivalda
recebia a lata de lingüiças preparada pelo seu Bezerra lá da Coroa de
Areia e aquele doce de cupuaçu que a D. Mundica fazia, lá na ilha
Daquetá, misturando ao doce os tão tamanhos sustos de saber, sentir
que [137] o Amazonas vinha comendo devagarinho devagarinho toda
& ilha.
E que terá sido daquelas enfeitiçadas do Lago Grande Como se
debatiam, a cabeleira em cima, desnudas. Vinham do Lago, do Lago
Grande, tiveram o pulo, flechadas do bicho, todos diziam, e a Cidade
ia ouvir os ais, suas convulsões. seus delírios. Aquela via onça preta,
a outra o homem com rabo. Vinham do Lago Grande. No poder do
pajé, saltavam dentro da rede como botas. Que é que estava
incorporado nelas? Quem retira delas a flechada? Tiveram o pulo.
Jaime!, gritava uma. Jaime deu o pulo nela? Chamassem o Pajé
Padre.
Talvez a cidade ande mudada ou não a reconhecia mais, por que
terá de reconhecer-me?
Agora com esta chuva, bom ouvir aquele silêncio dos pianos, e
o outro, seis da tarde, quando cessa a bigorna. Volta àquela noite em
que viu a lancha partir, branca no rio escuro e rápido, como se fosse
em busca do Dr. Numa. Tudo tão secreto, tão dela! Não será
Guimarães ou só o meu fantasma pela cidade, nas ruas de pedra e
sono onde não ficou um vestígio dos meus passos? Aqui no peito,
estás intacta, sim. O comandante, puxando sapiência, aponta a pensão
do Castelo cercada pela maré:
— Lembra ou não lembra Veneza?
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Lá está, esculpida em acapu, a velha preta vendendo canjica.
O banho de curumins no Tapajós. Enche a moringa, carrega o
pote limoso, rola o barril d’água para o banho da velhinha entrevada.
E aquela subida, em junho, tempo em que as pirapitingas, bem boas
não estão, pois comem louro e folha da paricá. Em que rio há melhor
peixe?, indaga aquele frei perna-de-pau que bebia cana, a barba
embebida de cana, babando no breviário? A pirapitinga, no banco da
canoa, tinha as escamas prateadas. O frei: Ela, quando encrespa as
escamas? Está guardando suas ovas rio abaixo.
[138] Sem mais nem menos aquela discussão no jantar, se
Carlos Magno era ou não era.
— Um grande homem? Não era.
— Era.
— Não era. Um analfabeto.
— Bem. Me deixe ver primeiro o dicionário.
Nasce na Ordem Terceira a única filha, Eleonora, a primeira
dentição em Manaus, a admiração geral, Oh, tão ainda do peito e tão a
bordo, contezinho suas viagens, ó viageira, estudando o ofício de
piloto, vai herdar o leme do seu pai? Assim a bordo, mulher de
comandante, mãe atrás da filha, seus espantos, sua obediência, seu
cerimonial, a senhora é também professora?, escutando as ordens do
marido e com a filhinha no portaló.
Subindo rios, rios descendo. Aqui esta passagem, vale a pena?
Não lembrou antes, por quê? Por que, pedaço a pedaço, aquele tão
fora de propósito, o Dr. Numa? Ou efeito de uma noite de febre, por
demais só, afligida sem motivo, ou quase culpada, espiando pela vigia
aquelas trevas de água e mato?
A bordo o Dr. Numa com o seu copo de conhaque, o livro
alemão, rede atada na popa, o gaiola subindo aquele afluente
desconhecido, brusco retorcido de estirões e ilhas, um rio de outras
eras, as margens, sacudidas de bicho, com seus beiços de pau na
lama. Ao cair da noite, já os dois, o Dr. Numa e o Amanajás, no
mesmo conhaque, haviam alterado as escalas, entrando num paraná,
saindo noutro, como se tudo dali em diante já não tivesse rota ou fim.
Subiam até as nascentes? Iam lançar o navio nos balsedos? Os dois
disputavam o conhaque, ou a mulher aqui trancada no camarote? A
guarnição se agitava como se quisesse precipitar-se sobre a porta do
camarote. Apitando, soltando vapor, o gaiola ia-que-ia enfiar-se no
barranco, o piloto carrega o calhambeque para outro lado, desvia da
ilha, evita o pedral, o desrumo, a catástrofe. Este outro paraná
entregou os bêbedos a um afluente escuro e sem sonda.
[139] — D. Nivalda. Saia que é uma noite no Paraíso. Dos
orvalhos do Éden nasceu este rio. Bebemos do rio.
Não respondeu, os olhos na vigia, O rio rebojava com seus
alambiques pelo fundo. Já de luzes apagadas, bebendo longamente
naquelas águas, o gaiola desembestava por estirões e furos.
Foi diminuindo a marcha. Ofegava, esfalfado. Sem lenha’?
Com os peixes na bebedeira, ia de bubuia no rio. Agora esbarrou. Vai
afundar? Um banco de areia? Tudo se calou a bordo.
— Vamos todos dormir nesta areia, ao pé deste pau-d’arco,
comandante. O navio tem que dormir, bêbedo que também está.
Ela se guardou no camarote, a luz não acendia. A tripulação
dormindo. O Dr. Numa? O comandante? O navio dormia. Só os
bichos lá fora sacudiam o escurão. O dia, ai que nunca mais! Quanto
rio, naquela vertigem, correu o gaiola?
— Não desce no meu escaler?
Dr. Numa na porta do camarote, sol alto, maré alta. o navio de
fogo aceso, sinal de saída no mastro do traquete.
— E o meu marido, Dr. Numa?
Indagou como resignada, agora entregue àquele novo comando,
no mesmo instante em que o marido lhe traz o café. Foi? A febre? O
terror? Entravam no Amazonas.
Viu no marido um capitão corsário, seus marinheiros no ferro, o
faz-e-acontece na linha, fino no afundar e no ganhar o seguro, águia
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regatão, retarda a partida em Monte Alegre para terminar o
relancinho. E guardando, por orgulho, aquela suspeita contra o Dr.
Numa... Como se tivesse provocado aquela viagem para atirar o
doutor nos balsedos, com a garrafa de conhaque, o livro alemão, o
escaler.
Ali no camarote? Os guardas fiscais vinham buscar o remédio
que os tornava cegos mudos surdos. Na ausência de D. Nivalda, que
só ia sabendo aos bocadinhos em Belém, ou adivinhava, cunhatãs do
estirão saíam do camarote com [140] um corte de chita debaixo do
braço e um corte de sangue debaixo da saia.
Daquela pequena de Sena Madureira? Bateu a história em
Belém, meses depois, trazida aos pedaços. A pequena de Sena
Madureira, O marido dela trabalhando na fronteira como soldado,
acabou-se com beribéri. A mulher caçada de cima do jirau pelos
machos. Embarcou já barriguda, variando de febre.
— Tome o quinino. Tome. Vou-lhe mandar depois o doutor de
bordo? Entre.
— Mas credo, comandante!
— Mostre o pulso, deixe lhe colocar o termômetro. Use esse
Cinto, enfia essa volta, e este tricoline tem três metros. Mas me deixe
ver sua febre.
— Mas credo, comandante. Mas o senhor, comandante!
O gaiola descia. Diabo! Ainda mais essa! E este grito abafado,
escumando no peito, na goela. Que faço deste lençol? Atiro pela
vigia? A careta de choro, a mulher esvaindo-se, o gaiola descia,
diabo! diabo! Marinheiro! Marinheiro! Entreabre o camarote, logo
tranca-se, diabo! diabo! Tinha de ser. Não é nada. Engole o teu grito,
rapariga. Tome um pouco d’água. Está com o comandante. Desembarca no primeiro porto de lenha, levada pelos lenheiros ao tapiri
rente d’água, onde lhe puseram a cera na mão; faz o vestido de
tricoline, põe o cinto, a volta, levada na rede ao cemitério beira rio,
debaixo do aguaceiro. A maré solapou o barranco, os botos sopravam,
os cachorros ladravam contra os urubus, aquela boca de maré sugando
as covas mastigando o cemitério, O gaiola descia.
Chega em Belém, desembarca o comandante, chamado à
Direção, são os tantos cumprimentos, entra para a Superintendência.
Superintendente. Trazia de Solimões para a Virgem de Nazaré aquela
arara azul, arrematada, no leilão do arraial, pelo inspetor do Arsenal
de Marinha. E como dona Nivalda continuasse professora, o
Superintendente:
[141] — Agora cumpre a promessa. Deixa o lugar. Uma banana
para a instrução pública.
— É gosto meu, Amanajás.
— Casei-me para ter mulher em casa ou na rua?
Em casa entre as fronhas, criadas e as altas horas em que
entrava o comandante, batido de champanha, rameira e jogo. Escoamse aqueles anos, o inglês cismou, pegou:
O Superintendente metendo a mão? Queria partilha dos nossos
roubos? E lá se foi rampa abaixo o nosso Amanajás.
D. Nivalda viu de perto aquela corcunda. Os credores cercavam
a casa. Veio o leilão. Os colegas do comandante enchiam a sala e só
era a zombaria daqueles lances. A carta anônima: Mas você,
Amanajás, tão pirata a bordo e no escritório e só com trastes velhos
em casa! A tromba engrossou, saco de pedras nas costas:
— Mas, Nivalda, já podias ter arrumado de novo o teu lugar.
Estou a nenhum, não estás vendo? A minha única porta aberta és tu.
Acabei.
Coça a corcunda, estira-se na espreguiçadeira de fundo puído,
lendo nos jornais o movimento marítimo, a pendurar na parede e na
corcunda as fotos de seus navios.
Dias e dias, a Palácio, de chapelinho e sapato roído, o bico
murcho, aparecimento de cãibras, e espera, e espera, e espera. Venha,
amanhã. Apareça, terça-feira. Venha sempre. Ou lhe serve São
Domingos do Capim? Bagre? A vaga em Portel? Venha sempre. Por
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um milagre, aquela manhã... Ah, doutor é uma esmola o que o
senhor... Ora, professora. Ora, professora. Era no subúrbio, com um
lameiro na frente mas na capital. Conseguiu que a escola se instalasse
na casa dela, o aluguel pago pelo Estado. O ordenadinho, um mês
faltou. O procurador, coçando a corcunda, tentava explicar.
— Jogaste, não, Amanajás?
O comandante bateu a porta, foi beber no Minerva. Ela então se
deu a uma ousadia: Retirou-lhe a procuração. No outro mês, o
procurador foi a Tesouro, e lhe disseram.
[142] Estalou os dedos: Ah, sim. É verdade. Distraí-me. Vim
por hábito. Por falta de tempo, não podia eu mesmo receber, sim, sim,
esta cabeça! Em casa não piorou. À noite Nivalda, me cede aí uns dez
mil réis? Foi beber no Minerva. Com o marido no Minerva, e por que
agora era uma necessidade, D. Nivalda enjoava a profissão. Também
alunos daquela espécie! Me deixa ver, como foi que arruinou esta
pereba na cabeça, Raimundo de Castro. Me deixa olhar essa tua
orelha inchada, Nazaré. Professora! O Zito aqui botando uma bruta
lombriga, professora! O comandante eriçava a tromba, invadindo a
aula. Os meninos começavam a cochichar. Jaburu. Jaburu.
Enxugando as mãos no pano da cozinha, mandando o aluno remover
a lombriga e limpar-se, a professora reassumia as funções:
— Cantar o hino, meninos e meninas.
— Marcha á ré, marcha à ré, Nivalda. Quero primeiramente
desembuchar um teu aluno: É aquele, o focinho de tatu. Tu, tatu,
Otaviano Secundino de Paula, neto de um foguista meu no Rio Juruá.
Tu, tatu! Tu! Tu! Sabias! Em vez do 5 me armaste o alçapão do 4! O
5 pingava do teu focinho e preferiste engolir o número. E estás te
rindo? Te rindo? Pois já de pé na janela, de focinho pra rua! Na janela
e com o 5 pendurado no pescoço! Desse tamaninho já e já tão safado!
Pelo 5 que sabias e não me disseste! Pelo 5 que escondeste! Aí na
janela, aqui está o 5, pendura no pescoço, carrega o teu ferrete,
condenado! Na janela, de pé, por dez minutos. Assim! Bem, agora,
por mim, podem cantar o hino. Cantar? Urrar o hino! Sabem lá cantar
o hino! Bem, vou passar meu telegrama.
Mal o comandante saiu, veio a aluna:
— Professora, aqueles dois tostões que a mamãe me mandou
deixar no oratório da senhora ao pé da Nossa Senhora das Dores?
Pois o comandante, no que viu, tirou e mandou o Vadico botar todo o
dinheiro no 2464. Deu 2465, professora.
[143] — Otaviano, desce e tira isso do pescoço, meu filho.
Vamos! O hino!
D. Nivalda escutava, alta noite:
— Ei, marinheiro. Carrega o leme a boreste! Meta esse
amotinado nos ferros!
— Que é isso, Amanajás? Amanajás! Amanajás!
O comandante boiava da rede como um casco velho batia pela
casa atrás de sono ou do seu passado, acordando a vizinhança,
carregado de seus navios. Ia para a rua cachimbar, à espera do pão. O
padeiro deixava a cesta ao pé dele, a distribuir os embrulhos pela
vizinhança. Uma madrugada.
D. Nivalda acorda e corre para aquele bate-boca no portão:
— Como ousa dizer que te tirei pão da cesta, seu galego! Como
ousa? Como ousa?
Chegava do Minerva para o almoço:
— Mas só isto? Istozinho? Não mata a fome de uma pulga que
dirá de homem.
E tu és um homem?, quis indagar a mulher, de olhos baixos,
colher suspensa entre os dedos. Também coitado. Naqueles jantares a
bordo, comandante à cabeceira, e aqui, corcunda, sujo, meio bêbedo,
debaixo de ração, Jaburu dos meninos.
— Ora, Amanajás, tu não queres, não come. Desintera de lá da
gaveta da cômoda, do dinheiro da luz e compra uma lata de sardinha.
Ficas te lembrando dos jantares do Hildebrand, é isto.
— Nivalda, mea filha, esse teu feijão brocou de vez. O
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taberneiro que te avia, aquele Figueira da Foz, rouba além do
consentido.
— Esse, pelo menos, me fia, comandante Amanajás, me fia.
— Comandante é a mãe, Nivalda!
— Ora, Amanajás, só queres que te chamem de comandante lá
fora? Aqui dentro não? Ai de quem lá na rua não te chame... Não?
Pois eu...
O comandante estirava o beiço para a foto da parede:
[144] — E ela?
— Ela, quem?
— Ora, quem, Nivalda, a figurinha de cera. Escreveu?
A filha, na parede, sorria com as suas antigas tranças A mãe,
aqui embaixo, varria o soalho.
— Onde, onde que está mesmo o trocado?
— Mas, Amanajás, uma lata de sardinha, e não jogo e não
bebida, Amanajás. Era da luz.
Está bem, está bem. Como a sardinha lá mesmo. Com pão.
— Onde, Amanajás?
— Onde mais, mea velha, onde mais?
Voltou do Minerva trauteando:
No tempo dos apostólos
os homens eram barbáros
subiam em cima das arvóres
para caçar os passáros
Entrava na alcova, abria a gaveta da cômoda, atrás daquele resto
da luz que a professora já havia escondido.
— Mas por que tudo escondem neste porão? Ah! Ah! Tudo
agora é a chave? Trancado? Sob o regime da desconfiança?
Os alunos traziam doces e rosas para a professora tomados, no
porão, pelo comandante:
— Bença, comandante?
— Deus te desabençõe, cabeça de boi. Seus sovinas! Só
istozinho de doce para a vossa professora? E por que essas rosas?
Rosa é comida? Bacobaco, sim, é que é presente. Ou querem que a
professora se sustente a pétalas?
O bom é o bacobaco, é a paçaroca. O bacobaco. Sacudia a
pança, desfolhava as rosas:
— Flores! Tragam nem que seja uma banana. Um beiju, um
ovo, um coco seco. Proibido florinhas nesta casa. Primeiro a
paçaroca.
[145] Um e outro aluno tentava explicar: Banana? Ovo? Coco?
Mas quando? Era, se fosse.
— Minha mulher se matando a desemburrar vocês todos e nem
um rebuçado!
Discutia com os meninos já agora em pleno comando, dirigindo
a manobra do seu gaiola, prancheou, desembarca suas copiosas coisas
de viagem, dono do cais, mares e rios. Quando aquela maior fábrica
do norte do Brasil, de doces, pegou fogo à noite, o comandante correu
a ver o espetáculo, ali defronte da igreja de Santana. Os bombeiros
não sabiam se combatiam o fogo ou combatiam o povo que iniciava o
saque.
— Não tem água! Faltando água!
— E aí a caixa d’água?
— Cheia está mas é das lágrimas das putas desta zona. Acuda,
comandante!
E foi que o comandante também entrou naquela fúria, a comer,
a encher os bolsos, no meio da fumaça, aqui apanhado pelo bombeiro,
saltando adiante sobre os pudins. tropeça num bolo inglês, afunda o
pé num pão-de-ló, disputa a lata de bolacha, arrebata o queijo,
precipita-se na barrica das torradas. Mais que o incêndio era a velha
fome geral devorando a casa. Então irrompe no tumulto: São Pedro!
Eivém o São Pedro! Tinha saltado de sua cadeira lá da igreja, entra no
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meio das labaredas, lançando para o meio da rua os estoques da
confeitaria. Fluía ardente um rio de doce, manteiga, e maisena. Os
bombeiros viam, entre golfadas de fumo e chama, aquele santo
escurão que arrancava dos depósitos lá do fundo as provisões, pela
cidade tão reclamadas e sempre tão negadas. Com pouco chega a
cavalaria. São Pedro mais que depressa correu para a sua cadeira. O
comandante em fuga, chamuscado, encharcado de açúcar, entrava em
casa trazendo para a mulher um saquinho de bombom. Foi contando o
que fez não fez, vítimas e bens que salvou, alçou a mangueira,
presenteou a solteirona com um bolo de noiva... Dormiu falando, em
[146] seus pesadelos, a ferver num tacho de calda de goiaba e gema
de ovo.
Aqui o menino suspirava:
— Teu pai, sim, que é carregador...
— Dia que nem um carreto, comandante.
— O entendido, o entendido, em carreto, em bagagem! Que
sabes de cais, de navios, de cargas e descargas, seu fedelho? Bem, já
te dei muita trela. Queres é escapulir de trazer o que se mastiga. Por
isso! Por isso que pisei nos calos quando meu pai quis me fazer
professor. Para quê? Por quê? Para isto?
Uma terça-feira, pela manhã, aquelas três enchapeladas com
ofício do Diretor. Vinham servir na escola como professoras
auxiliares. D. Nivalda cobria com as mãos o seu pasmo. Não tinha
aluno para tanta professora. Mesmo que tivesse! Mesmo que tivesse!
— Aqui? Nesta escolinha poeira? Não está à altura das
senhoras. Lugar das senhoras é lá no Barão, no José Veríssimo...
— Professora, é só por ora. Pelo menos aqui é a capital. Onde
estávamos? Ah, onde estávamos! Ah, não queira saber daqueles
lugarejos, professora. Dispense-nos de pronunciar o nome deles.
As três, com súbito pistolão em Palácio, transferidas do interior,
já faziam crer que nunca tinham saído da capital.
— Bem, então só dois turnos.
— Preferimos as três juntas no mesmo turno, professora.
— As três juntas?
D. Nivalda ia notando que as três, na idade, nos chapéus e nos
vernizes, se pareciam cada vez mais. E a escola, que julgava tão dela,
agora repartida, devassada. Três, sabia lá de onde e com que
costumes, a invadir-lhe a casa e a ver, da porta ao quintal, tudo.
Vinham juntas, saíam juntas, ensinavam da mesma forma, enchiam a
boca de “novos métodos educativos”, já não era mais merenda era
lanche. [147] Acabam não ensinando nada, dizia ela, num desabafo,
sem dar pelo comandante que logo assumia um ar dos grandes dias a
bordo, espanando os seus navios na parede:
— Nivalda, o farelo que pudeste catar na Escola Normal foi se
gastando a bordo naquelas viagens. Assim como perdi meus navios, o
timão, a Superintendência e estou aqui espanando os meus fantasmas,
perdeste o teu farelo. Por isso te opões à pedagogia moderna.
Deu uns passos pela varanda como num tombadilho.
D. Nivalda até virou-se para ele. Pedagogia na boca de
Amanajás. Deus! Esse era aquele e aquele já era esse, escrito e
escarrado, no uniforme de bordo? Pedagogia moderna. Na alcova, ao
espelho, viu no rosto não só o seu pasmo como a crispação de sua
pergunta. Ali se mirou, querendo consolar-se, já um pouco divertida.
Não, tão ruim pessoa não sou, que merecesse. Isto é verdade. Aqui no
rosto se vê a sombra daquela corcunda, sim. Mas não era para estar
bem mais usada, mais roída, bem mais caindo aos pedaços? Atrás
dela, o espelho mostrava aquele longe portão arriado na João Balbi
onde a mãe curtia, debaixo das palhas e curvada sobre a Singer, a sua
viuvez. As irmãs bordavam, a caçula, na Escola Normal, indo, vindo,
cola grau, sai a nomeação, de repente a bordo rumo de sua cadeira:
— Gostando da viagem, professora?
— Só pensando para onde vou, comandante, para onde vou.
— Passando esse estirão, está chegando, professora. Só mais
um estirão e puxo o apito.
73
Do trapiche de lenha vinha um bafo morno, um latido, duas
velhas altas de luto fechado. E a escola? Defronte do cemitério.
Na descida, um mês depois, desembarca o comandante:
— Então, professora?
— Sim, comandante.
[148] — Marinheiro, me carrega pra bordo a mala da professora.
Fiel, foi, sim. Naquele escaler, não embarcou, embora quase
quase. O primeiro ano bulia um pouco por dentro dela, fervendo,
fervendo, nas viagens passava a fervura. No primeiro ano, sim, aquela
noite de ópera, no Teatro da Paz, uma derradeira companhia passando
por Belém. Ela e marido aqui nas cadeiras e ali defronte o camarote
onde um senhor não tirava o binóculo de cima dela. Uma autoridade?
Marinha? Exército? Agente do Lóide Brasileiro? Olhares, olhares,
mas então olhares. Indiferente à cena repleta de cantoria e traje cada
um o mais antigo, via era aquela personagem lá do camarote, põe e
tira o binóculo tão... Exército? Comandante da Flotilha? Inspetor da
Alfândega? Caiu na conta de sua curiosidade, barrou a vista com o
leque, ai! Como cantavam! E assim ficou de rosto no palco, sem ver
nem ouvir nada, engolindo a surpresa (é comigo mesmo, sou eu?) a
vergonha, a curiosidade, debaixo daquele binóculo durante os três
atos. Por um tempo guardou o programa da noite d.e onde saltava,
como uma lanterna mágica, aquele binóculo. No mais, este velho
papel embebido de conhaque.
Pedagogia moderna. Além do mais, como diz o espelho, o
desgosto me conserva a aparência. O roer muito mais por dentro, aqui
por dentro o berro, o escarro, os cambaleios do comandante e toda a
nossa cinza acumulada. E ele pensa estar sempre comandando. Ainda
ontem, violando o seu orgulho, foi ao cais, que não via, meses.
Bêbedo. Não lhe permitiram a entrada num gaiola. Os carregadores
vieram trazê-lo, veio na carroça como um lixo. Trancou-se no quarto,
como no camarote, seguia a carta das navegações, numa ressaca de
três dias. Veio para a varanda: No meu uísque com os ingleses, eu só
bebia era daquele carvoeiro tossindo na boca da fornalha o suor e o
sangue? O suor e o sangue? O suor e o sangue? Explodiu a caldeira
em cima do velho Teodoro? Os gringos desembarcam de branco e
entram no Cachimbo de Aço. O relógio da Companhia [149]
mar|cando as horas da cidade. Marcando aquele tritura-tritura lá das
máquinas, guinchos, pranchas, porões, carrega lenha. carrega lenha, e
os inflamáveis? Explodem os inflamáveis, Nivalda! Não vi, não
cheguei a ver as manobras navais, ai manobras da esquadra inglesa,
minha velha, minha velha...
Pedagogia moderna. Para mais, pela casa adentro, três víboras.
Tira a cabeça do espelho empoa-se, apanha o leque e o ânimo,
entra na sala para enfrentar, sorrindo, as três e manter delicadamente
aquela linha de diferença entre ela e os bichinhos da Curuçá,
Passagem dos Inocentes, goela do subúrbio. As três ao mesmo tempo
tiravam um fiapo. A danada, no seu casabeque cerzido, até que
sustenta bem a calamidade. D. Nivalda sob o olhar delas, os pés
suavam frio, desabafava com um e outro aluno. Vamos! o hino!
Ninguém se metesse. Deixassem com ela só aquela corcunda.
Com a aluna que ajudava a D. Nivalda na cozinha, apanhada no
portão, as três insistiam:
— O que eles vão comer hoje, hein?
— Ah, não sei lhe dizer, não, senhora.
— Como que não sabe? Não é lá no fogão o teu lugar de aluna?
Não é à boca da panela que ela te ensina a tabuada? Hein? Feijão de
ontem? Bucho requentado? Ou só-só vinagreira?
— Agora isso é que não sei lhe dizer, não, senhora.
— Ela te amarrou a língua.
— Ah, isto não sei lhe dizer, não, senhora.
— Pois, sua boca grudada, e da filha? Tem recebido carta
mesmo, como ela diz?
— Ah, isto não sei lhe dizer, não, senhora.
74
Logradas se não assistiam a uma cena entre a professora e o
comandante. Saiam com qualquer coisa lhes faltando, tossiam,
escarravam. Viam no sorriso de D. Nivalda uma galhofa de quem diz:
Desta vez, hein? Passem fome desta vez. Não comeram hoje a nossa
migalha de todo dia, víboras. Fiau. E as três a um tempo:
[150] — Puxa, D. Nivalda, mas a senhora está tão bem hoje,
professora. Mas tão bem.
D. Nivalda guardava o suspiro. As três inclinavam-se:
— E olhe, professora, que a senhora tem lutado, não?
— Lutado? Credo!
— Tão bem que está a senhora!
D. Nivalda folheava os cadernos.
Noutra manhã, o menino com um embrulhinho para a
professora.
— Que é isso, seu...
— Doce, comandante.
— De quê?
— Não sei, comandante. Mamãe que manda pra mestra.
— Deixa ver, deixa ver.
No que entrega o doce, corre o guri para a aula, atrás o brado do
comandante, mandando-o subir na janela, ali de pé na janela.
— Por que castigas o menino, Amanajás?
— É um particular entre nós. Entre nós dois só.
Minutos depois fazia o aluno descer.
— Vem cá, sua peste. Aquele sal amargo polvilhado de açúcar
que me trouxeste como doce, seu langanho insolente, podias repetir o
presentinho para as três? As três? Aqui entre nós. Que tal para as três?
Diante das três o comandante portava-se como a bordo, na
cabeceira da mesa. E elas: Finezas e distinções que tem esse homem!
Que lhe fez a delicada esposa para que ele se meta a casca grossa?
Aqui conosco é aquele do salão a bordo.
O outro, acuado no Minerva, de quem a culpa;
— A mulher, comandante, é que faz o marido, sim. A boa
aparência do esposo é o espelho da boa dona-de-casa. Não acha?
— Não, minhas senhoras. O homem tem sido um canalha com
as senhoras. Se eu pudesse me casar de novo saberia como tratar bem
minha mulher. Agora, tarde O tempo me dobrou o espinhaço, já não
posso variar de [151] hábitos. O uso faz o abuso. Me acomodo. Mas
se eu me amarrasse hoje? Com a Nivalda? Hoje? Rá!
— Mas não são, comandante, felizes?
Instante em que saltou a tromba:
— Indagar de marido e mulher se são felizes não é mesmo que
indagar a idade das senhoras? Bem, que data é hoje? Vou passar meu
telegrama.
D. Nivalda acudia, fossem pacientes com o Amanajás, não
levassem a mal, agora que afogava as boas maneiras no Minerva.
Com isso, quer mostrar-se melhor que ele e saboreia a ofensa que
sofremos, refletiam as três, duplamente ofendidas. D. Nivalda com o
desculpar-se, sabendo que assim feria muito mais, se vingava. A
idade das senhoras. Esse Amanajás mesmo! Foi rir na alcova. Com
efeito, o tempo. nas três, se distribuía a fundo e sem descanso, às três
dava igualmente quinhão implacável. Nisso tentavam diferenciar-se,
percebia a D. Nivalda. As duas vão mais depressa, dizia a primeira a
si mesma diante do espelho. A segunda beijava a terceira com um
súbito calor ao ver que a colega ia murchando muito mais. A terceira
via no rosto das amigas a ruína que, graças a Deus, graças a Deus,
ainda não via no dela. E nessa, naquela ou na outra o mesmo
caruncho crescente. Tinham deixado longe, como uma tocha apagada,
aquela busca de marido. Famosas na vizinhança pelo que faziam no
escuro em tantos anos de namora-este-e-namora-aquele ao pé da
mangueira e na volta dos bailes. Tocha na mão, corriam Belém
inteira. Foram fazer a praça no interior, professoras, a. tocha já apaganão-apaga, saíram à caça e às suas armadilhas não caía um, estezinho
um, quanto mais um casacudo. Baixavam de preço e degrau, mas
75
quem? Naquela altura um qualquer, um qualquer, o diabo quem fosse,
o facho caindo-lhes da mão. Ou não foi melhor? Espiem essa, esse
espelho, a D. Nivalda. Casar? Deus que soprou, fez tombar o facho. E
isso as juntou, as tornou gêmeas.
Sim, que a professora lançava o seu anzol naquelas três águas,
pareciam uma só, e pescava, por exemplo, a surda [152] porfia entre
elas no que toca a enfeites, braceletes, colares. Iguais no vestir,
parelhas no modo de ensinar, em toda aquela sina tentavam
distinguir-se surdamente nas tetéias. Esta, as pérolas de mentira.
Aquela, o brinco, vá ver de perto, ah, mas tão ordinário; a terceira, o
broche, arrancou do prestação, fingindo que comprou na Krauzer? Por
isso mesmo cada vez mais semelhantes, Deus! Que é este mundo! A
professora sacudia a cabeça. Já não distinguia esta daquela, as duas da
terceira. Completavam-se. A falsidade, escassa na primeira, era um
dom na segunda que servia às colegas. Doenças ou birras que às duas
faltavam, acudia a terceira a distribuir das suas, irmãmente. O destilar
o fuxico, o invejarzinho acariciando a invejada, o cuspir no calcanhar
alheio, o ter pena com um arre! engasgado, o lastimar-se, não cabia a
uma só mas às três a um só tempo. Via uma só falando por três bocas.
Ao se mirarem no espelho, não três mas uma só, ali se viam. A D.
Glafira? A D. Emeridiana? A D. Custódia? Uma só, sem nome ou
com um número: 3. As 3. E isso dava medo. As 3 entrando na sala, no
mesmo passo e ofego, com os meninos de pé, e lá fora, no rumo do
Minerva, o comandante:
— Acaba de entrar no picadeiro a 3 Cabeças.
Encerram-se as aulas, os alunos ornamentam a sala com palmas
de açaizeiro, colocam seus doces no centro da mesa entre buquês e,
sempre com um fiscal de apito na boca, de sobreaviso: O comandante
rondando pela varanda. As 3, muito cívicas, dirigem o programa.
Com aquele terno preto de Superintendente, o colete, o corcunda, a
condecoração da Bolívia, o comandante perfila-se ao hino da Bandeira. Cuidadinho com os doces, olho no Jaburu, cochicham os
alunos. Vem a parte dos recitativos. Lígia, do terceiro ano, dedica aos
donos da casa, o Vida de Rosas:
Construindo o lar dentro da vida calma
E sempre assim tendo horas deliciosas
[153] Graças ao céu pela felicidade
Vida de espinhos, fazem-na de rosas.
As 3 tossiam, sacudindo os braceletes. O comandante
aplaudidor: Bravo! Muito bem! D. Nivalda roía a unha: esse recitativo
é de propósito, obrinha delas, víboras. Mordia o beiço, ia chorar? Tão
repentino, evitando o olhar da menina, como se aquilo tudo fosse
verdadeiro, gentil, ou sonhou ou pediu, tão leal na menina. Ou porque
na voz das crianças tudo... Logo a gorduchinha, a Íris, avança para o
meio da sala:
Ergue o rosto formoso — é uma sultana
Tem um harém — o céu, róseo palor
Tem um palácio — o Amor.
As 3 anunciavam as notas, os prêmios, distribuíam os cadernos
enlaçados de fita e flor, a capa com a Bandeira do Brasil e do Pará. D.
Nivalda fez foi chorar um pouco na alcova. D. Nivalda! D. Nivalda!
As 3 chamavam. Na varanda, à cabeceira da mesa, o comandante
abria a cerimônia, partindo o pão-de-ló que trazia escrito em cima:
Salve professora Nivalda.
D. Nivalda fecha a gaveta do outro tempo, abre a deste instante,
é só chuva e a aparição: o professor em uniforme de ginásio. A visão
dissipa-se, tudo lá fora é ver goma de tapioca, desfeita a cidade em
chuva.
— Ah, que não pára de chover, Santa Clara! De onde-tanta
chuva?
76
Morava ali atrás do Una a mãe da chuva, ali a sua usina
destilava o dilúvio.
No quarto, arma a rede, embala-se um minuto. Nas paredes, que
transpiravam, desenha-se aquela figura do professor e o olhar de
Roberta em que a figura se consome. Goteja dentro do quarto, sobre a
moldura descascada onde a filha com aquelas tranças é que nem uma
ave mudando pena.
[154] Cantava no coro de São Raimundo.
— Não puxes tanto pela laringe, minha filha, que assim rebenta
as cordas.
— Mas, mamãe? Pois tem quem emende.
E ia puxando as cordas. No cantar, lá no coro, já a modo que a
menina ia era se acabando, Nossa Senhora! um piado de perua na
chuva. Descia com falta de ar, que fim levou teu sangue, Eleonora?
Boca aberta, caía na rede, pedindo uma breve morte, o livro da missa
no soalho entre as patas da cachorra que ficava mirando os santinhos.
Todo aquele subúrbio, domingo, ia escutar, na missa, a língua embrulhada do padre holandês, que fazia cumprir a norma dentro da
igreja a peso de relincho, coice e polícia. Na porta, policiais
obrigavam os fiéis: Ajoelha! ajoelha! ajoelha! Os devotos iam, sim, se
ajoelhando de dente trincado, mais praguejando que rezando, Deus
perdoasse, mas arre! E assim aconteceu que um, bem feito! não quis
dobrar o joelho, um por apelido Cara-Longe, ali de joelho duro, a cara
em retaguarda como se fosse arremessá-la contra o mundo: Nunca fui
idólatra. Não concebo. Não sou. Os santos é que deviam ajoelhar-se
perante nós, humanos, agradecendo:
— É por vossas sujeiras, meus filhos, que ganhamos a
santidade. Venerar não venero, e aquele São Raimundo, ali
encolhidinho, nunca foi um qualquer ídolo gentio, que isto eu juro.
Espremido entre os policiais, lhe subiu à cabeça, lhe deu um
desrumo, aconcheou a mão ao canto da boca, fez uma trompa,
desembestou pela igreja, na imprecação, pulou diante do altar,
arquejante:
— Vamos, vamos, meu São Raimundo!
— Quis subir, arrebatar lá de cima o santo, a inocente imagem
traída.
— O sacerdote deste templo é um paquiderme do mar do Norte,
do mar do Norte. Correi com ele, São Raimundo! Esta igreja virou
cocheira. Cocheira. Chama, chama a cavalaria! bradava o padre que
fazia evacuar a igreja e se [155] pos|tou na porta, alto, ruivo,
possesso, de óculos, banhado de suor como um cavalo.
Se coçando ainda dos percevejos e dos furúnculos, ganhos no
xilindró, Cara-Longe esperou, umas oito e meia da noite, o reverendo
sair da igreja. Foi seguindo o padre pelo escurinho do largo do
Esquadrão. O padre meteu-se pela Jerônimo Pimentel, entrou num
pardieiro. Cara-Longe espia: O padre dá extrema-unção, sim.
Esperou. Com pouco eivém, muito apressado, batendo a batina no
capinzal, de novo no largo do Esquadrão, e aí, ao pé da vala, CaraLonge atalhou: Reverendo, me desculpe lhe deter o precioso passo.
Por gentileza, me conceda um minuto, não sou um lobisomem mas,
com sua licença, purgue um pouco por mim na sua santa carne
holandesa os meus pecados, e deu-lhe de galho de cuia uma surra tão
senhora surra que o ministro de Deus, esfolado e sangrando, foi
socorrido pelo seu algoz, nos braços de seu algoz até a Santa Casa.
Por afilhado do Senador Faciola, Cara-Longe escapou de uma
condenação. O padrinho tapou a boca da igreja com uma espórtula
suplementar, fez o afilhado licenciar-se de Belém, das suas atravessações no Ver-o-Peso, a benzer pela Bahia do Sol pessoas que traziam
panariço. Nem pôde, noutro ano, pelo carnaval, fazer o Herodes e o
Sardanapalo. O comandante Amanajás brindou a proeza no Minerva:
Mais uma vez, e agora em Belém, batemos o batavo! E contam que
trocou brinde com o seu Ribeiro (cá entre nós, comandante, mas a
galho de cuja? Está na Carta Magna que separou o macho da fêmea?
Ontem casada com o Governo. Hoje concubina e com todas as
77
vantagens de uma concubina...). E o Filemon a desesperar daquela
insarável ferida no peito e o Zematias aos primeiros sinais daquela
contrariedade sem motivo, à toa, à toa... O intérprete do Hildebrand,
conhaque em punho, o pé na cadeira, puxava o God save the King.
Todos já naquele tempo assíduos no Minerva.
A visita, levando maçã, que Eleonora fez ao padre na Santa
Casa, o comandante achou compreensível. Levou à [156] conta de
que a filha se agarrava àquela batina, aos santos,. ao desagravo,
unicamente pelo Coló. Pegou pelo Coló aquela total cegueira mas tão
cega, tanto se embeiçou que se pai e mãe falassem, ela, tão franzina,
no risco de desmaiar: não é minha dor de dente? A marca da bexiga
em quem é? A bexigosa é o senhor? A senhora? Quem que pega a
lepra? Estou cega? Me deixem que me guio por mim mesma no
escuro, que o caminho eu sigo, sei a minha luz. Que o rapaz —
lastimava o pai com seus velhos botões, a meter-se no casaco sebento
para ir ao Minerva — cru e nu de qualquer recomendação era pote,
cujo barro, só tocar, soa lodo e obra de porco. O rapaz fedia a pira.
Condizia que a filha do comandante mostrasse o dente a um aceno de
um sabe-Deus-quem saindo de uma goela sem fundo, lá das baixas
impaludosas e minadas de alastrim da Sacramenta onde os bucheiros
baldeiam seus carrinhos? O comandante levantava o punho para os
navios da parede, soprando o pó dos navios, azedo por não tomar
banho e não fazer nada, com um diabinho em riba da corcunda,
cochichando-lhe: Te empina para o lado da gazela, te empina... Não te
atrevas senão ela te pendura na tromba murcha um anel daquela
carapinha, escorrendo pomada, do Coló. No bilhetinho dele o
garrancho: estremosa heleonura com h e h pequeno e aquele u. E
quem o pai dele? A mãe? Com h pequeno e o u. Claudomiro de quê?
Me diz? Tua certidão? Indaguem dos cururus naquele cariazal.
Virava-se para a O. Nivalda.
— Estás fazendo sentir na tua filha a tua educação, a tua
autoridade?
— E as tuas, comandante?
— Que minhas?
— Vamos que como filha da professora... Mas como filha do
comandante?
Vai debochando, vai debochando, que qualquer noite dessas te
devolvem tua filha pela janela adentro esquartejada... rasgada ao meio
pelo estuprador, professora.
[157] Só foi dizer aquilo e Amanajás lhe deu nele um arranco,
arrancando da parede um dos navios, o Andirá, rasga e pisa, apanha
os pedaços, quer juntá-los, colá-los, assim sombriamente ocupado o
resto da noite.
Mas qual! A filha, com seu beicinho de meia defunta, olheira
crescendo, cantareira de fora, tão que tão fraca, batia que batia o pé,
encravada no Coló. O pai, no escuro, sem ser visto, receando-a,
seguia a filha pela Dois de Dezembro urdindo um modo de separálos, a tapona no pirento e a vespa trazida pela orelha... Eleonora bem
que adivinhava no escuro aquele pai com o peso da corcunda, mas
temia? Toda tarde tomava gemada com agrião para ter um fôlego no
troca-perna pelo Umarizal atrás do seu pequeno, e o cujo, bem. pávulo, por se ver no píncaro, até que nem como coisa — amanhã te
espero neste canto — vinha? Sumia uma semana, voltava na maior
cara lisa, e tudo o mais assim, jogando bola no Marco, pelo São Brás
de velório e farra, caçando dentro do Bosque as moreninhas ariscas
que amansava com pipoca e sorvete rala-rala. Não vê uma saia que
não se assanhe. Um estradeiro de marca, um rufião. Vou averiguar
quantas entradas já deu na polícia!, rosnava o comandante voltando
do Minerva.
Senão quando, aquela manhã: pendido no galho da mangueira,
ali pendurou-se, o laço no pescoço, assim encontraram o rapaz,
ninguém explicava, vestido para um passeio, paletó e gravata, se
enforcou. A razão? A não serzinho o que se escutava pelo São Brás,
pela oficina da Estrada de Ferro. aquele tão soturno agarradio dele
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com uma tal Dionísia, trazida zinha-zinha no trem de Bragança,
criou-se com mingau e tacacá ali no mercado, mulata de venta acesa,
já tamanha rapariga, no que olhou o recém naval saltando do estribo
do bonde, como do torpedeiro, é já que dá dormida a ele, aninhou o
marujo debaixo de suas anáguas de renda, mais que de repente os dois
no Ita, até um dia, mercado e trem de São Brás, do Pará só a falta do
açaí.
E de tudo isso o Coló?
[158] Que justamente noutro dia, paletó, gravata, sapato duas
cores, amanhece pendurado no galho da mangueira?
Eleonora, esta, adeus, coro, adeus, largo do Esquadrão, lhe deu
uma asma, O comandante e a professora, por que esconder, embora
com um doer pelo juízo, dizer nunca diziam mas um tanto se
aliviaram. E os cuidados com aquela asmática? Ah, quando a filha
aparecia na varanda, à noite, sufocada no seu gogo e um vidro o
corpo, de tão transparente. (Telefona pro Dr. Camilo, Amanajás, nos
dando uma hora, que ele escute os pulmões dela.) Pois muito bem.
Não é que da noite para o dia, junta-se a Eleonora com um
terceiro sargento do Exército transferido para o Piauí? Os dois
embora, deles nunca mais uma linha.
Da filha restavam aquelas tranças na moldura descascando, e
aqui, na memória, neste aguaceiro, aquele olhar de Eleonora seguindo
o corpo do enforcado que os homens carregavam no jirau sobre a
lama. Um olhar por onde soltou seu grito.
Nem demora, na Santa Casa, o comandante com um antraz.
— Nivalda, mea velha, só o Camilo meter a faca nisto, rasga
este bicho, a tempo de ainda pegar aquela tartarugada, no domingo,
do meu compadre leiloeiro. A preparadeira é a Magá, da Ruy
Barbosa. E na segunda-feira aquele tamautá no leite de coco no
Hilário.
Não comeu a tartaruga. D. Nivalda andou catando pelos papéis
do falecido um tostão poupado, uma cruz de vintém ocultas, ao
menos. Remexe na mala velha de viagem, das viagens, mala outrora
copiosa, imponente: o baralho sujo, o dente de tubarão, a gazua.
Tinha de descontar do seu ordenado mesmo. Rezou seus sete terços,
embalou-se um minuto na rede, até desejou ficar ali o resto do tempo,
pelo menos até que saísse o enterro. Morta estava ela, ali sepultada.
Tinha de enterrar o marido em primeira classe, não por ele, excomandante, mas por ela, professora em pleno exercício. Meia zonza
pela casa, ficava olhando os navios na parede, lá [159] está ele, de
uniforme, a mão na roda do leme... Ausente estava ela, e não ele, que
tudo atulhava com a sua corcunda, seus navios na parede, sua morte.
Da filha, no Piauí, nem o endereço. Nisto chegam as 3, lhe enfiam o
braço e a levam para a capela da Santa Casa onde os alunos da
estadual, gozando o feriado, cobrem de flores o velho Jaburu. Como
correram a apanhar o bonde, como tomaram conta do cemitério!
— Pois comendo manga de cemitério, meninos!
— Ah, professora, que que tem, tão doce!
Na cova o caixão, apressaram-se a jogar terra que caía, ávida,
com fome do defunto. As 3 ralhavam surdamente:
— Mais termos, meninos. Mas que é isso, demônios.
Os demônios comendo manga, disputavam torrões e flores,
felizes no inesperado brinquedo.
As 3 vieram deixá-la em casa, tudo, tudo é tão transeunte,
explicavam, a sacudir voltas e braceletes, satisfeitas de estarem ali
acudindo. Que dia cheio! E que ocasião para bem avaliar a donaprofessora, o seu descuido: não internou a tempo o trambolho. As 3
insistiam em ficar. A viúva, numa súbita energia, armou-se de uma tal
delicadeza, foi botando as 3 de casa.
Quer, lhe faço um chazinho, lhe faço, sim, lhe diz a afilhada de
fogão, aquela do não sei, não, senhora. Entrou num sono, se via entre
as 3 no meio da praça, numa ciranda, soltando balões de onde
zarpavam os navios do comandante. De repente o comandante, no seu
uniforme de bordo, com o cadáver do Coló em punho, seguro pelo
79
pescoço, varria as 3, três cabeças de uma só cobra, varria os meninos
que escapavam para o largo da Pólvora, se enfiavam pela ramagens
de Batista Campos, invadem a Basílica, voam para o Bosque onde
aquele doutor no seu escaler desembainha o sabre e barra o passo ao
comandante. O escaler puxava os carros do trem por entre os estirões
da noite. Só o sabre no ar contra o enforcado no ar. Ou era um navio
no ar, a proa do navio na mão do comandante? Era? Cheguei com o
meu escaler, [160] ouvi-a. As 3 mordiam-se, espumavam, espremiam
o antraz? Os meninos sepultavam a ciranda. Agora era o navio que o
comandante fazia rodopiar, seguro pela chaminé. O chá, madrinha, o
chá. Ao pé da rede com a xícara sem asa na mão suada, a Não-SeiNão-Senhora.
Noutra semana, bruxas no ar, foram-se as 3. Perde a casa, a
escola fecha, enterra-se no subúrbio, consegue o lugar de adjunta na
mista do Umarizal. Ao seu ordenado, acrescenta a escolinha, esta,
particular, à tarde, tão pouco. Só por necessidade? Mais por estima
aos bichinhos? Se podia, só ela, dar conta, por que chama o
ginasiano? Agora, este sentir-se excluída e mais só, o ter as culpas
que não teve, quis e não soube praticar, a pedir, agora, tão tarde,
aquele escaler.
Ali à mesa, nestas tardes, fazendo o ditado, o ginasiano mais
parece ditando do seu coração, não do livro. Ou só dos seus instintos,
acesos no olhar de Roberta, esta quem sabe roçando-lhe a perna por
baixo da mesa, passando-lhe, quem sabe, bilhetinhos dentro do
caderno e na aritmética fechada.
D. Nivalda não tira os olhos. E isso lhe remexe as cinzas, um
sobressalto lhe arde no rosto, algo maligno doendo-lhe nas rugas,
atrás dela o olhar de Roberta a surpreendê-la, a dizer-lhe: Ainda não
crê no que lhe diz o espelho?
Se lhe dá de chamar a aluna: Não me apareça mais. Seu mal
pega nas meninas. Suma-se? A aluna, toda tarde, com uma rosa: É da
senhora, professora. Toda tarde. Foi ele entrando, noutro dia a rosa.
Agora toda tarde.
— Que roseira é essa agora que todo dia dá rosa, menina?
— Rezo ao pé dela, professora, e peço: quero uma rosa todo dia
para a professora. Acordo e corro no quintal: lá está a rosa.
A sabidinha! A flor é pra ele. Está no olhar da astuciosa. Na
mão da professora a rosa que te trouxe, diz, queimando o rapaz, arisca
em tudo que diz, guardando os olhos dentro da aritmética. Lá vem ela,
o vestidinho azul, um ar de má vontade, a rosa, taqui que lhe trouxe,
professora, [161] sen|ta-se sem nunca dar pela presença dele e dona
dele, faz o ditado, nunca olha o rapaz e vigia-lhe todos os
movimentos, sempre a última a entregar-lhe o caderno, no que vai
entregar não entrega: Ai, me esquecendo de assinar meu nome.
Alfredo baixava a cabeça sobre os cadernos, a ouvir aquela pena no
papel como se fosse lhe tatuando o peito, letra por letra,
ROBERTA
Até se assusta com o caderno nas mãos e os olhos dela, um
instante olhar puxando o rapaz de lá de dentro. Assinou? indagou ele,
à toa, à toa, sem fitá-la, aqui com o nome dela no caderno. À porta do
corredor, suspensa, é D. Nivalda, ralhando sem motivo com os
alunos, rouca. Roberta se voltou sorrindo: Fez a fatia parida,
professora? Esperando que a senhora me ensine a fazer, sim?
Demoninha! Já os olhos na aritmética, por baixo olhando o rapaz que
não soube o que fazer dos ditados. Ou lia naquele último caderno as
cifras de Roberta? Ela a cada instante mais moça, desabrochando-se
sobre o rapaz, este de rosto no ar, na tarde lá fora, tarde que só é
Roberta.
Por que o chamou? Foi por vê-lo, aquela tarde, e outra, e na
manhã de domingo, ou por ouvir... Quis lhe falar na praça, não lhe
80
falou, correu para casa, a doer-lhe a cabeça, rezou os sete terços.
Depois aquele encontro, o embaraço dele, e ela no empenho de vê-lo
na escola.
— Mas meu Deus! Meu Deus! O senhor!
As mãos na face, vendo-o surgir, tão de súbito, de dentro do
aguaceiro. Saltou na sala como um peixe, o rosto banhado daqueles
orvalhos do Éden, de que falava o doutor Numa.
— Mas, meu Deus, o senhor?
[162] — Boa tarde, professora.
O que ele só falou, tentando enxugar o rosto, a custo
reprimindo: Roberta? Roberta? D. Nivalda, a mão na boca, sem saber
se o seu espanto era por vê-lo aparecendo ou descobrindo nos olhos
dele nada mais que a outra, Vá ver nascia da chuva. Ou chegava
jovem aquele doutor no escaler?
— Ao menos tire a blusa que eu seco a ferro. Mas onde o seu
juízo?
Indagou mais de si mesma, colhendo dos olhos dele a busca de
Roberta, a surpresa, a raiva, a amargura de não encontrá-la. E em
lugar de Roberta, essa sobrevivente do dilúvio.
— Deixe que acendo o ferro.
— Não, não, professora! Seca logo. Tanta chuva, não? Nem um
menino? Nem um menino!
O menino dele, quem, o menino! Nem um menino! E em tão
poucos dias, tão poucas tardes! Que fiz para chamá-lo? Que fiz para
que esses dois tão de repente... Nem um menino! Unicamente nesta
sala era Roberta. Varando o aguaceiro por pensar — ou combinou?
— que Roberta viria também, um em busca do outro, ambos usando a
chuva para o encontro na sala vazia, os dois únicos bichos nesta arca.
Em que virava a escola! Alfredo escorria ao pé da janela. O preço que
dá à pequena, o preço! Como se tivesse se submetendo a uma prova.
Saltou da chuva feito um encantado e ali ficava, gotejante, como sem
fôlego.
— Espere que é só pôr brasa no ferro. Num instante. Isso lhe
faz mal. Enxugando a roupa no corpo? Não vale o sacrifício. Molhado
o senhor não está, está é empapado. Tão moço assim, de pulmão
verde, cuidadinho. Por que a proeza? O seu juízo, menino!
Disse menino? D. Nivalda queria dizer-lhe: Pois vai-te embora.
Assim como as águas te trouxeram, que te levem. Carrega com a
zinha na enxurrada.
— Deixezinho de acanhamento, vá tirando a blusa. Ao menos
enxugue as costas. Perto de mim o senhor, ainda é, [163] é, sim, um
menino. Com pouco está espirrando... Já tenho idade para ser...
— Ora, professora, chuvão assim é que dá sustância. Me criei
na chuva, dentro d’água. Onde moro? Em Cachoeira? Três meses de
bubuia na enchente. O velho jacaré, à noite, embaixo do soalho
batendo com o rabo: Õ gente desta casa! Õ gente desta casa!
Dormindo? Foi assim que me criei. Tempo que não tomava um banho
de chuva assim. Não saltei aqui na sala como um sapo? Foi ou não
foi?
Mordeu o beiço, foi à porta sacudir-se, bateu as roupas. Daquela
nem um sinal, um. Ainda podia vir? Ainda? A chuva abrandava.
Chegasse de repente, chinela na mão, de repente, molhada molhada, a
chuva caindo de suas pestanas. A sua flor, professora. E sempre no
olhar aquelas águas rápidas. Recolhidos nesta arca, Belém afundando
no aguaceiro. Só você de aluna? Faça o ditado. Qual dos dois ditados,
o da boca, o dos olhos?
— Tome este paletó velho, professor, está limpo, tire a blusa.
Pegue a toalha. Quer vir ao quarto?
Estremeceu, que pensará ele? Ou só sou eu pensando? Outra
intenção não foi senão enxugá-lo. Se alguém entra neste minuto ao
vê-lo no quarto? Assim molhado mais parece despido, Deus meu! Se
alguém entra... Um menino. Uma menina.
— Seco já já a sua roupa a ferro. Não custa.
81
Ia, vinha, no quarto apanhou o terço, se olhou no espelho,
ajeitou o cabelo, largou o terço, trouxe duas toalhas. Um café quente?
Mas molhado! Veio andando ou nadando? Ao menos os sapatos, eu
ponho no fogão. Ensopado. Da chuva ou de Roberta? Repentinamente
se via nas viagens, no escaler, roçando a rede das enfeitiçadas, todo
todo um desperdício aquele guardar-se, agora se debatia nas cinzas de
um fogo em que não soube se queimar, não saiu pura, saiu velha.
Como em vez da chuva no rosto, ele só transpira Roberta! Não se
arreda da janela.
[164] — Não se acanhe, tire a blusa. Olhe que lhe faz mal.
Passe a toalha por dentro. Pelas costas.
À janela, Alfredo não enxuga o rosto que dirá as costas. Desça
neste relâmpago. Chegue nesta refega. Da espessura branca lá de fora,
o vestido azul, as chinelas na mão, o salto na sala... Espremia as
mangas da blusa como se fosse a esperança. Os sapatos só lama. D.
Nivalda ia ao quarto, apanhava o terço, voltava, ia à cozinha, voltava.
Nem sua toalha nem seu paletó velho, professora. O que me
enxuga um pouco é a sua cisma, é um pouco adivinhar que a senhora
também pensa nela e descobre... E eu de mim que sei? Sei ao certo?
Dessa lufada de chuva despenque a lontra-menina... Não acenda seu
ferro, professora. Sei como enxugar-me, ou molhar-me muito mais,
quem sabe, molhado molhado... Ela entrou na Brasiliana? Solta no
capinzal mamando nas tetas da Cabra-Cabriola. Entre os moleques,
caçando sapo? A rir, em casa, deste panema na chuva, deste panema
na janela. Não vem. Chova o que chover vou. Dizia. A água monte
nas mangueiras, vou a nado.
Escutei o que não era? Nestas poucas tardes, vejo, ouço nela
uma outra que não é, só de mim nascida? Traz o cão nos olhos, sal na
moleira, brasa nos chifres, calda nos peitos. Cabra-Cabriola. Escreveu
no caderno: Cabra-Cabriola. E com a moura aprendeu esta:
De coçar este demônio
Quero fazer matrimônio
Estou com o dedo cansado
De coçar este demônio
— Quem te contou da Cabra-Cabriola?
— A que comeu os bezerrinhos?
— Quem?
— Comeu os coitadinhos. Um que me contou, pois foi.
Quem sabe interceptada pela Brasiliana, pela moura atraída,
subindo o sótão, tira o vestido da chuva, cobre-se com sedas e rendas
da Guiana. E aqui estou, e ela? O [165] tem|po desabava, relâmpagos,
trovões, eivém a D. Nivalda com o ferro aceso: professor. a chuva!
Não vá, professor!
Roberta anda pela Romariz onde queria se empregar para
quebrar caroço. Entre menina de escola e moça de fábrica: moça.
Sim, que moça de fábrica é mal falada, mal vista na cidade. Mas
menina de escola, ponto final no ditado, professor. Ficava no trapiche
olhando.
— Menina, olha como tu acaba! Moça que muito olha o rio, ou
emprenhou ou quer emprenhar.
— O filho que eu pegar, de bicho que não há de ser. Tenho
medo de bicho, não. Então me emprenha, rio, anda!
O rebocador passava, canoas de vela preguiçosa à espera de
vento, lama da praia faiscando, o esfumarado longe. Ouvia-se bater a
quilha do barco no estaleiro. Moleques patinavam na praia, catando
camarões.
— Camaroeiro, me apanha um, que te dou um beijo.
Roberta ninava as águas:
Quase que perco o baú
— Repete, rio: perco o baú.
Quase que não tomo pé
— Repete, rio: não tomo pé.
82
Por causa do remador
do remador
que remou contra a maré
— Repete, rio: contra a maré.
A correnteza levava a imagem dela para o fundo onde estava a
Come-Bezerrinho. Uma noite, ela e um bando ouviram a estória da
Cabra-Cabriola. Fizeram de conta que pegaram a monstra, mete no
saco, arrasta até o rio, com uma pedra no pescoço lá no fundo, adeus
que comia bezerrinho mais.
— Me dá um camarão, que teu dou uma prova do meu beijo,
camaroeiro.
O rio perdia seus mistérios, banhando aquela cidade de cimento
e telha, apitos, sinos, chaminés, bacharéis. [166] Abrindo-|se a navios
escuros, pesados, resfolegantes. Bóias lhe rasgavam a treva e o
silêncio. Aqui com Roberta, vêm à flor os antigos mistérios. Roberta
mirava o rio. Com Roberta o rio restituía-se.
— Quem que não queria assim ficar encantada-encantada?
Gosto meu ver o rio. Miro, miro até que me dê uma tontura. Uma
vontade! Ficar quietinha lá no fundo, a piraíba se chegando: que me
vieste fazer aqui, sua menina?
Abria a boca, o sono? Cruz no bocejo. Gosto de estudar, não,
puxa! mas só chuva? Só chovendo? Chuva na pedreira mata a
tucandeira. O rio por cima dela como um homem. Seu cabelo
flutuava. Os camaroeiros lhe puxavam a perna. Dava uma claridade
algodão, azul depois, até ficar bem noite, cor do fundo. Soava. Soava.
Chega ó meu príncipe do manjericão. Õ meu príncipe do manjericão.
Gosto de estudar, não. Quero quebrar caroço na usina Romariz, caroço que dá um azeite. Camaroeiro, me dá um dos teus camarões, que
te dou um meu cheirinho. Um. Não chega? Te dou dois.
Roberta! Roberta! A mãe lhe sacudia a rede.
— Roberta! É hora!
— Eh, mamãe, já agora? Neste friozinho eu me acordar? Eu
não.
O pai, já de pé, o ar flagelado:
— Isso, mea filha, vá não, vá não.
— Pois agora que eu vou — e senta-se na rede, inchada de
sono, sanhanhando o cabelo.
— Então vá logo que senão chega a tempo não.
— Pois agora que eu não me levanto — e deitava-se, enrolando
o trapo de lençol nas pernas.
— Pois então não se levante, é melhor, tire outro sono, que vai
fazer lá?
Roberta saltava, trapo no chão, punho da rede gemia na
escápula, ia direitinho no pote.
— Bem, pois agora vou.
[167] E aqui na Romariz:
— Mamãe não cansa de me ralhar que sou por demais
carregada de meu querer. Sou, rio? Sou, chuva? Sou, meu príncipe de
manjericão?
Quase não tomo pé
Não tomo pé
Por causa do remador
Que remou contra a maré
Contra a maré.
Na praia atrás dos camaroeiros.
Alfredo ia subindo o sótão, deu com a D. Brasiliana descendo.
— Que é isso, menino? Delirando? Espere!
Tropeça no jacamim, o telefone chamava, corre debaixo do
aguaceiro.
83
Olha a barraca de Roberta, vizinha do capinzal. Agora, sim,
encharcado até os ossos. Até os ossos. Apita as seis. Até os ossos.
No seu quarto, se despiu, se enrolou na rede, e tanto que cerrou
a noite, caminhou pelo silêncio do subúrbio depois da chuva e do
vento, o tempo estrelou. Rondou a quadra de Roberta, deu sete voltas,
nem luz nem rumor na barraca. Caminhou no trilho do bonde,
querendo chamar, arriar-se no capinzal, e apanhou o bonde até o Vero-Peso, voltou noutro que o deixa no fim do Curro. Espiou o serão do
curtume — Sabina trabalhava? — deu nove, dez, onze horas,
chuviscou, escorou-se na cerca, esperando.
Temia encontrar-se com os seus companheiros da noite,
caminhava. Parou no canto da Brasiliana. Sempre à boca da rua
aquele valão escancarado, agora com os sapos em festa.
Lá em cima, a janela abria, a luz apagou-se. Alfredo quis fugir.
Mas ao cabo que descia do sótão agarrou-se, subiu num desespero.
[168] Aqui fora, roçando as plantas, olhava à janela: Seu
Bahiano pendurava na parede da sala o candeeiro aceso para o
primeiro ensaio do pássaro que ia sair pelo São João.
— Cumprindo promessa de ficar aí a noite inteira no sereno, só
olhando do lado de fora, é menino? Aqui a bordo, convés arreia? Deu
percevejo no beliche? O barco está de quarentena ou para embarcar
me cobra um imposto? Suba a prancha, não conspire com as plantas
que elas aí sempre são inocentes, talvez se queixem do dono da casa
pelo mau tratamento, precisam de um estrume, um canteiro. Por obséquio, entre com as devidas honras, tome o navio, que acomodação
sempre se arranja, suponho, isto aqui é um pontão velho, sem sanefas,
roído pelo turu, os assentos mancos mas não faz água. Que apito toca
no ensaio? Dono do pássaro? Caçador? Naturalista? Ensaiador? Ah, o
enredo é seu, as letras? Muito que bem. Ah, só estou é o meu zinho
querosene...
— Deixe estar, deixe estar, seu Bahiano, deixe estar que o
pássaro manda ligar o fio da eletricidade nesse seu navio velho, deixe
estar. Já não vai servir de nosso palco? Licença?
A gorducha puxava o bando de suas companheiras, todas à
porta, com cerimônia:
— Mas por que não embarcam? O barco, de tripulação, só tem
eu agora, é o marinheiro. A comandanta deu um pulo no espiritismo
mas de com pouco volta. O palco às ordens. O tombadilho anda sem
calafeto. Tenham só cautela no escolher por onde andam, o pontão
não joga. Água, vocês querendo, tem o pote com caneco aí no
corredor, às ordens, o pote esfria. Falta é as gambiarras. Quem que é o
tesoureiro da sociedade?
— Bem que havera de ser o senhor mesmo, seu Bahiano, ainda
bem que o senhor está lembrando. Aí uma escolha a dedo. Dou o meu
voto, O senhor ia arrecadandozinho os donativos e as cotas no seu
charão de prata. Era ou não era? Não era? Feliz de quem é servido por
um charão como esse-um do senhor, de prata pura. Era ou não era.
Não era?
[169] Bem que era, bem que era, sim, aprovavam as moças entrando na sala. Alfredo, aqui fora, reconhecia rostos, laços de fita,
flores no cabelo, a Carlinda apertando o cinto, sempre a modo
assustada, o trancelim da Catitinha, o colo da Pérola, a gaga — que
papel o dela no bicho? — figurantes do primeiro ensaio,
embaraçadas, uma esconde o rosto nas costas da outra, a Palmira, sem
termos, esparralha-se no banco, os sovacos de fora, afrouxa o cós,
como afrontada; na filha do seu Amaro Bucheiro, a amarelidez dava a
seus olhos um escurume fundo, não parava com a cabeça? A
gorducha entrega a seu Bahiano a garrafa de querosene.
— Mas eu não estava cobrando, eu pilheriava, falei por pura
mangação, que apavoramento esse de pagar na bucha a luz do
candeeiro?
84
A Noca metia e tirava uma bola-de-cuba na boca. Aquela, ali,
donde conheço? De um sábado nos Estivadores? Da 20 de março? Do
15 de agosto? Não é a Mindoca? Cortou o pixaim bem rente. E essa,
afastada das outras, solitária, alta, já de diadema na testa? Já subindo
o palco e recebendo palmas? A pirralha ali no meio, de chinelinho, é a
que vai encarnar o pássaro? Bem debaixo do candeeiro, a Esméia,
tirando o pé da chinela, tão empoado o rosto virava róseo, mira seu
vestido claro, de sombra cor-de-rosa. A um ruído do portão debaixo
do maracujazeiro, Alfredo virou-se: Ela? Correu.
— Entrada grátis, Ana. Tempos! Não?
— Cismei, aquele-menino, que até fosse quarto e tu o defunto.
O rosto de Ana, no meio-escuro, branquejava. Alfredo quis
apanhar-lhe a mão. Ana atolou-se na sombra. Alfredo querendo
indagar: Carregas a sombra da tua tia Luciana? Puxas o rabecão dela
para o Santa Isabel? És a herdeira? A Babilônia, ela te legou? É a
hóstia do Orfanato que cuspiste? Ana lhe deu as costas e ele na
remoição: Roberta prometeu que vinha. Ia aceitar um papel no
cordão. E lá de dentro:
[170] — O seu charão, seu Bahiano, ia servir como depósito na
Pará Elétrica. O senhor deposita a jóia, o inglês, manda ligar a luz,
sim? Fora de brincadeira. Falamos agora em nome de uma comissão
de senhoritas, sim? Além da sala que tão de agrado nos deu, empenhe
em nosso benefício o charão e assim o senhor virava o nosso
benemérito, sim? O padrinho do pássaro, selado?
— Meninas, suas precipitosas. eu ainda nem cobrando a luz do
candeeiro, eu brincava...
Alfredo, no portão, outra vez não virá?, tentava a confidência
com a Ana:
— Entra um pouco, menina — tanto tempo! pra me contares da
tia Dudu, do Centro, da D. Santa. Rezou-se missa? Tive que sumir um
pouco desde aquela manhã, Ana. Entra que te reservo um papel,
conseguiste lugar no curtume? Entra que te conto como foi, o que se
deu comigo. Ou se quiseres ficar, só ficar de parte, só criticando, fica.
Faz um pouco de amizade, de conhecimento com essas moças. Põe o
teu rosto na sala, índia gavião de pele descascada. Fica me contando
das tuas tias, da tua irmã — Dalila foi ao menos um dia no hospital?
— do que anda acontecendo no estaleiro, no Curro, no Una, e tua
roseira? Diz que aquelas duas da vacaria, as duas fidalgas do Curro,
casaram na polícia? Eu não disse? Quantos quartos de anjo já fizeste
este ano? Que te fizeram no orfanato, Ana? Quem te aborrece no
mundo, Ana? Descobriste onde moro? Foste no meu rastro? Descobriste? Queres um papel no Japim?
Ana escutava até numa paciência, de costas para ele, num
repente saltou no maracujazeiro, tirou uma folha, mastigou:
— Axi! Axi! Que eu me misture, axi que entre nesse teu cóio.
Cuche! E nunca me passou pelo juízo te andar espiando, descobrindo
teu paradeiro, tu quem tu és? Farejar teu rastro... Cachorra é outra,
atrás de semelhante osso são as cadelas do teu cordão, que que te
incomodas comigo? Pois fizeram muito bem as duas da cocheira,
muito bem que elas [171] tivessem soberbia, os zebus são delas,
nunca te deram confiança, batiam a janela no teu nariz, não eram pro
teu bico... A roseira? Foi só arrancares a rosa, secou, seu
encaningado. Quisesse eu e hoje era a pastora do Tentém, também
fica tu sabendo.
Alfredo espalmava as mãos: Mais baixo. Mais baixo.
— Pássaro! Amizade com elas! Pássaro de asa já quebrada. Vai
é levar tanto assobio, tanto caroço de manga, tanto peido de velha
aceso atrás das comas, que eu só de parte só me rindo... E olha, falo
no meu natural, não decreta a voz que devo ter. Não estou te dizendo
segredo pra falar baixo.
Mas falava baixo, os olhos no pé que mexia a folha do portão.
Entre as moças, lá dentro, seu Bahiano ria.
— ... ah, mea filha, meu charão? No cofre do inglês? Meninas,
meninas! O charão, esse ai...
85
Alfredo fez um passo para Ana, na sombra.
— Ana, ao menos aqui dentro, tens medo da luz da janela? Das
moças? E tua avó? Pegando criança esta noite? Atrás de ti? Ao menos
do pé das plantas, te acocoras, um pouco, ali ao pé da papoula, ao
menos ela te dá um sono... Dalila? Moro numa estância, na Manoel
Evaristo, vizinho dos portugueses...
Estou falando para esta, ou para a outra que não vem?
— Rapaz, vê lá, ensaia tu, é que é, as tuas misses. A negra, ali
na janela, de te espiar vira urubu, dos olhos dela só faltam sair os
bagos despencando em cima do portão, com medo de perder a
carniça. Tens pulado muita janela? Com teu ar de sempre? E com
carinha de santo, o anjinho da tia Dudu, sumiu, coitado, não se
sabendo onde anda o mimoso, que desespero deu nele? No Ginásio,
quem informa? Pra Cachoeira, não foi. Em que lugar se enfurnou?
Feito a tia Luciana, nem poeira? Ah, até que pode o nome dele sair
também no registro fúnebre, levado no rabecão.., onde a sepultura
dele? E o anjo bem saltando a janela, agarrado na corda do
contrabando! Teu desespero é aquele esconderijo em [172] que tu
sobes na corda? Ou se encharcando de laca debaixo da jaqueira, ela te
adorando? Te fazendo comer piramutaba podre? Por mim, sumisse
que sumisse, o mais sumir possível, suma que pelo sumiço não
arranco um fio deste meu cabelo. Se os do meu sangue, renego,
quanto mais tua raça. Fosse no oco da jaqueira, amanhecesse teso de
bubuia na maré do Una ou piraíba te cravasse o dente, te estrepassem
a caveira na estaca da Zuzu, eu? E olha, é livre de se andar na rua
ando, velo os meus anjos, pra vovó, onde vou, não abro a boca. As
noites que eu quiser, o pé, este pé, é meu e o sono. Sou só, eu, tua
ausência e a dos outros é o meu sossego.
— Debaixo da jaqueira, menos verdade,, Ana.
— Que me importa? Que tem a Ana com isso, ora, esta, uai!
Égua! A desgraça é minha?
E a voz do seu Bahiano:
— ... esse charão, meninas, esse charão? Ainda hoje, esta noite,
suspendo o ferro pra viajar com o meu charão debaixo do braço e
abrilhantar um aniversário — bote lonjura! — quase no Valha-me
Deus, um cariazal, os moradores de lá que digam! Mas vou.
Ana respondia mais baixo:
— ... da jaqueira, que eu sei, sim. Debaixo da jaqueira! O anjo!
O teu estudo! Se. agachando de noite pelo telhado da Brasiliana,
apanhando os pombos do vizinho para os dois comerem de espeto?
Um papel nesse aí Japim,? Dá pra tua, de Eva. Daqui com pouco ela
está serenando com o vestido do ultimo figurino: a folha da
bananeira. Te preza, arranja do boi do Bicudo, o Estrela Dalva, uma
tanga de índio pra ela, veste a nua em pêlo, desalmado. Rouba uma
peça de pano lá de cima... O jacamim desenrola o pano com o bico.
— Jacamim?
— Morde este dedo, seu-se-faz-de-desentendido. Lá, onde
mudaste o teu Ginásio. Que a tua mãe descubra onde. Deixa-te está
que um dia telefono pro Arsenal de Marinha. Quem que não te
conhece...
[173] Ana distancia-se, apanha um capim. Alfredo afina o ouvido pra dentro do portão:
A gorducha
Deixe estar, seu Bahiano, que o senhor no dia do ensaio geral
vai servir o chocolate pros nossos convidados no seu charão de prata.
Se Deus quiser, se Deus quiser. Aceite esta rosa monte-cristo e ponha
no pé do santo no seu oratório...
(Espichou o olho pela porta entreaberta da alcova. Na sala, as
moças admiravam o couraçado Minas Gerais e a âncora na parede.
Seu Bahiano lá nos fundos tomava banho de cuja.)
86
A gorducha
Palmira
Que a imagem abençoe esta nossa brincadeira. Bom todos
acenderem suas ceras em casa. Que este é o terceiro cordão que
promete sair na José Pio. Dois já goraram. (Não fomos nós, Maria
Emília! Não fomos nós!) O primeiro, no segundo ensaio, um dos
diretores era bombeiro, torrou-se naquele incêndio, desmanchou-se o
cordão, O segundo, a feiticeira.
Se saber bem, bem, não se sabe, nunca se soube. Sim, que tinha
um namorado, na ocasião vaqueiro do Estrela Dalva. Mas havia o
outro, aquele que ensinava a ela os versos e ela, muito atormentada,
gostando deste, gostando deste sempre em segredo, sendo este bem
amigo, de tudo muito inocente, (Ou não?) amigo e nada mais, assim
creio, assim escutei, assim correu. Ou o rapaz mexeu com ela? Não.
Não que a família mandou fazer o exame na morta. Inteira. Direito
não se sabe. Torou a garganta, se atirou no poço. Quem explica?
Palmira
Conheci ela. Ensaiava tão bem, tão bem entoado! Nem um
instante que não fosse alegre. Já com o cordão em forma, pra sair, ia
dançar na primeira casa, todos numa paramentação só vendo, a
orquestra tocando, a feiticeira de cetim e espelhinhos. Pois não corre
para os fundos, não anavalha a garganta, não se atira no poço?
Esméia
Vocês sabem da adivinha do poço? Por cima de ti...
Coro
Esméia! Olha a memória da morta! ímpia!
A filha do bucheiro
A gorducha
Joana, Joana, Joana Soares de Almeida. Tanto verso que
recitava em festa de aniversário, naquela festa de uma revista escrita a
mão... Muito mas muito meiga, tinha uns [174] den|tes! Trabalhava na
Romariz. Na mão direita o dedo cortado pela máquina de carimbar
sabão. Todo o cordão correndo, ali no redor do poço, esperando subir,
içarem o corpo, Os faróis, os gritos, os homens lá dentro...
Esméia
Não digo que o nosso já entre no concurso... já ganhe taça.
Quem ainda somos nós? Ou vai também gorar?
Palmira
Qual de nós é a escolhida? Mande o seu Bahiano esconder a
navalha. Quem tem poço em casa, tape bem tapado, mande rezar no
redor. Poço atrai, sim.
Mas a causa?
[175] Esméia
87
O meu só está reservado para a minha.
Meninas! Deixem a morta em glória. Não agoirem, não
agoirem!
A gorducha
Noca
Que minha, rapariga?
Esméia, estás com um ar! Fadada a cair no poço?
Esméia
[176] Esméia
Morte, que mais? Não é só o que é meu? Que eu tenho? Poço e
eu fizemos um trato.
Palmira
Que a tua praga pegue, mea mana, pegue... Prometo só me atirar
depois do São João, prometo, assino um documento. Quero saber se
dá mesmo um sossego.
Joana. Vi a Joana no Necrotério. Semblante tão sossegado.
A gorducha
Esméia
Cismo que nesse pé não vamos nem criar pena, que este nosso,
coitadinho, vai gorar igual aqueles dois outros. Vocês soprando mau
agouro! Esméia já se atirando no poço! Xô, suas corujas!
Palmira
As moças
Vestida de feiticeira?
Como feiticeira, não caiu no poço? Como querias...
Esméia
Toda morte é sossegada? A minha que não. Eu defunta,
ninguém me descubra a lamparina. Em quem me tirar o pano do
rosto, eu sopro. A morte é um sossego?
A gorducha
Por nossa culpa, não, Maria Emília, por nossa culpa, não. Fé em
Nossa Senhora de Nazaré, em nossa boa memória, na nossa falta de
acanhamento, que este São João saímos. Que saímos, saímos! Se não
sair tão bem ensaiado, desonra não será! Que saímos, saímos! Tapa
essa tua boca, agoirenta!
Maria Emília, a gorducha
Vocês? Todas ainda tão vergonhosas? Quando se quer a sério
um assanhamento da parte de vocês, aí que nunca sai. Descreio! Mas
a música? Nem a música? Noca, ficas com o pape!?
88
Noca, tirando a bola-de-cuba da boca
De feiticeira? Eu de gênio sou tão pouca feiticeira, mana...
Bem, não custa tirar a prova, se não... ah! mas Simão jurou que trazia
os músicos camaradas deles! Também só um pouco mais de
paciência, sim?
Alfredo, no portão
Entra, Ana, só um pouquinho, descansa a perna, já vens de
algum velório? É o meu quarto, sim, lá na sala é o meu [177] corpo,
aqui só sou fantasma, com que cera me alumias? Vou num rabecão e
tu a pé, atrás, de cera acesa, sim? Por que não aceitaste ser pastora do
Tentém? Querias ser a filha do duque? Olha, debaixo da jaqueira, isto
é invenção tua. Zuzu, o que tem de nua, tem de pura.
Ana, cuspindo
O papel? O da defunta tia Luciana naquele rabecão da Santa
Casa? Me dás? (Batendo a folha do portão, “pura”, sacudindo o
maracujazeiro, “tira o r e põe t”. Ana some-se.)
Alfredo, debaixo do maracujazeiro, sozinho. Ana reaparece.
— Aquela Roberta é tua aluna, que eu sei. Uma bela menina. O
que dizem dela é um puro aleive, dou fé. Roberta paga inocente.
Alfredo adivinha: Ana louvando a outra como se armasse uma
cilada. Instiga para que Roberta o agarre e o atire de vez naquela vala
da José Pio. A minha vingança é a Roberta, lê nos olhos de Ana.
Bruta menina. A desvairada tudo sabe neste subúrbio. Ana some-se.
Alfredo escuta:
— Esméia, te fica bem melhor fazer a feiticeira, menina. Noca,
a fada, se a recomendada do nosso ginasiano não aparecer... Tu
queres fada, Noca? Fada? De fada já tens um arzinho, se não me
engano.
Alfredo sacudiu o maracujazeiro, como se Roberta estivesse ali
oculta. Foi ao canto, passou pela jaqueira, suspeitou de Ana ali na
sombra. Voltou ao portão onde falava a filha do bucheiro:
— E me digam uma coisa: o Japim? Quem confecciona o
bicho? Quem me está armando o pássaro? Quem já viu bem de perto
um Japim verdadeiro? Onde está o ninho do nosso? O ovo? Em que
beirada de rio?
Nisto, três moças encostadas na folha do portão, se segredaram
e saltaram para fora, a rir, tapando a boca: Mas ah! mas, meninas!
[178] Maria Emília
A fabricação do pássaro? Só vão ver o bicho no ensaio geral.
Ou queres, Esméia, encomendar um Japim vivo, ensinado, lá no rio
Barcarena? Por enquanto, fazendo de conta que o pássaro é aqui a
nossa tripinha, tu já me tomaste a bênção, Chichita? Deus te faça
feliz, dê uma queda e quebre o nariz.
Fada, murmurou Alfredo. Fada. O papel para Roberta. Aqui é a
letra, falta a música, a flauta do Satiro que toca no Boi, meio bêbedo,
aquele buraco na testa, o cabelo partido ao meio, tocando flauta. Fada.
Chegaram duas moças. A tripa correu para a madrinha, muito vexada,
que queria ir lá dentro.
— Menina, és frouxa da bexiga? Como é para passar a noite
com o Japim na cabeça? Que tripa nos tocou! Vai, entra. Eu não digo?
— Tripa? Não é o passarinho em cima da cabeça da menina
dançando? Então é um pássaro tamanho do Boi para a menina dançar
debaixo?
— Ah, vocês sabiam? Ainda não sabiam? Do que aconteceu
com o Cabuculino ainda não sabem? Não vai mais sair este ano. Um
cordão daquela fama, pois não sai este São João. Daquele luxo, pois
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este ano, gorou. Cordão ganhador de taças, metido a grande, este ano
babau.
— Que foi?
— O bichinho bateu o papo.
— Mas que bichinho, filha de Deus?
— O passarinho da representação, o Cabuculino! Não vem me
dizer que tu não sabias que era um cabuculino vivo-vivo na cabeça da
tripa? Cantava! Bem cantando quando representavam. Até que
parecia ensinado. Pois bem. Estavam na metade do ensaio quando
repararam que o bichinho adeus.
— Na cabeça da tripa?
— Ah, isso não sei se na gaiola ou na cabeça da tripa. Estou que
foi velhice ou paixão. Ou desgosto do ofício. Sempre tão sozinho.
Também assim tão sem uma companhia, tão [179] solteiro, não? Por
isso este ano não tem Cabuculino. Bem feito. Uma vez me assanhei
para entrar no cordão deles, me barraram, uma tanta exigência, pois
agora bem feito.
— E o enterro do passarinho? Fizeram?
— Não, dona indagadeira, assaram debaixo do teu fogo,
comeste de espeto, sua indaga-tudo.
— Ah, a conversação está é comendo as horas, representar é
que são elas. Seu Bahiano já saiu? Quando a mulher dele chega então
do espiritismo? De com pouco dá as nove e nem os papéis
distribuídos. Cedo chega de volta o seu Bahiano, charão no sovaco.
Quem aí de vocês já foi de algum cordão, entrou nalgum pássaro,
numa pastorinha? Todas cruas? Entra em forma, entra em forma.
Façam as alas. Alinhamento. Também que pássaro fomos escolher:
Japim. Antes tucano. Não choveu tucano em Belém?
Alfredo corre para o pé de Maria Emília, queria lembrar-lhe:
Me reserve sempre aquele papel. A condição dela: Fada. Sem ser
Fada, não entra no bicho. Escreveu a lápis na margem da aritmética:
Fada.
— Mas a cantoria quem puxa? Que música é? Ah, tudo ainda
nem se sabe como se principia. Destrança, Maria Emília, tu que és a
cabeça. E a orquestra? Cordão só vai, se puxado a orquestra. Remédio
é ir na Pedreira, Ângela, e catar um músico emprestado do Boi de lá.
Não faz mal que seja o mais ratuína.
— Do Flor da Pedreira?
— O Gafanho, aquele, que pia no clarinete.
— Daquele Boi? Logo daquele Boi?
— Por quê? Que é que tem?
— Vem cá que eu te digo bem baixinho.
Maria Emília inclina-se, a outra com a mão espalmada na boca.
Maria Emília sufocou a gargalhada.
— Põe uma tranca na língua, boca de tramela!
Alfredo vai ao canto, volta, nem a música nem a Fada. Se
corresse até a casa dela? Me jurou. Me jurou a lápis que não faltava.
[180] Onde que está tua aluna, rapaz? Ela vem, sim.
— Com toda essa demora?
— Ela vem, sim.
— Ela vem, sim, ela vem, sim, e era uma vez a tua Fada. Ah!
Ou é mesmo uma, uma verdadeira tirada do teu bosque?
— Tirada do meu bosque, sim. Não demora, chega.
Alfredo intimida-se. Maria Emília aceitará Roberta? Aquela
debruçada no balcão da D. Brasiliana? Aquela? Fada?
— Está esperando ela? Ela vem? Onde ela mora? O pior é que a
música... E a música? O pior? — Indaga Alfredo a si mesmo. — O
pior?
— Feiticeira, te desencanta da janela, menina. Tira os olhos do
portão, ou é algum tajá no jardim te ensinando o papel? É o tajá?
Algum poço te atraindo? Queres meter uma folha do tajazeiro por
dentro do vestido? Para a forma, caçador. Noca, ó Noca! Alfredo,
quando chega a sua aluna? Nem chega nem nada?
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— Deixa, não faz mal que eu façozinho o papel dela, por ora,
comadre Maria Emília, tapo a falta, tapo a falta. Me experimente,
comadre Maria Emília.
Alfredo deu outro pulo no canto. Lá pelo sótão, lá em cima,
estava escuro. Será que ali em cima é a Roberta aprendendo as outras
coisas? Volveu ao portão.
— E o papel de caçador é mesmo moça? Melhor não será
homem?
— O combinado não era só moça? Só assim moça? Melhor não
será homem?
— O combinado não era só moça? Só assim mamãe consentiu.
E então, Alfredo? A sua aluna? Entrem em forma, meninas.
Entrem em forma. Assim é que vocês não querem que o cordão gore?
Qual! Pra o que que inventei essa tamanha dor de cabeça e, para mais,
lidar com moça alheia, inventar nesta rua um cordão de bicho para o
São João, já com [181] dois gorados, onde eu tinha o juízo? Bem que
podia era ficar preparando a sorte, os meus bons banhos, a locé na rua
passando fogueira, criticando o cordão dos outros. Pra o que que me
meti. Não somos nós que vamos tirar a urucubaca desta rua. Entrem
em forma, entrem, entrem em forma. Alinhamento. Esméia, vira essa
tua bunda para a janela e entra em forma, janeleira. Te atira no poço
mas só na queimação das palhinhas.
Em casa? No capinzal? Na ciranda? No sótão com a Brasiliana?
Pois hoje, na aula, escreveu: Vou, mas meu papel é Fada. Durante a
aula, Roberta só fazia de conta? Aprendiz ao pé dele e aqui fora já
professora, aplicando as suas artes onde não se sabe? Lá aprendia
para aqui praticar, invisível, fugitiva, ou no sótão apurando-se?
Queria aprender de Ana aquela obstinação no rancor, na
vagabundagem, pela liberdade ou pela sua perdição e com isso domar
Roberta, trazê-la até este portão, dizer-lhe: Entra, és a Fada deste
bicho, vagabundinha.
Roberta se negava, ou só desafiava? Ali na aula iam e vinham
os bilhetinhos, e tudo o que prometia o olhar dela, e certos momentos
séria, cobrindo o rosto com a aritmética.
D. Nivalda falava: E da Roberta, professor? Tem aproveitamento? Melhorou no ditado, na análise? Tão moça já, o senhor não
acha? E agora, toda tarde, me trazendo rosa.
Com o charão debaixo do braço, vem dos fundos o seu
Bahiano:
— E a música? O acompanhamento? Ou vão chamar o pirralho
da jaqueira que mal arranha a rabeca? Cordão, esse, que só na José
Pio mesmo! Já foram na polícia tirar licença? E o manuscrito para
dele cada uma tirar o seu papel, meninas? A partitura? Ali o moço
escreveu mesmo o enredo do bicho, as letras? Vai ter um duque, vai
ter um bosque? O caçador mata o bicho e o bicho, vem a Fada, o
bicho ressuscita? As letras? Quem escreveu mesmo? O moço do
sereno?
As moças à janela voltam-se para Alfredo que continua entre as
plantas, o rosto na luz que vem da sala. No peitoril o caderno de papel
pautado.
[182] — O senhor escreveu que escreveu, mas que quantidade!
Tão tamanha paciência, eu não lhe invejo o gosto, se eu escrevesse
tudo isso, o meu dedo me doía, criava calo no meu miolo. Dá até pra
dois bichos, ainda sobrando. É escrito que não acaba. Encheu o
caderno?
Tudo aqui foi seguindo os velhos enredos, foi, e escrito na
intenção de Roberta. Aqui a Fada ressuscita o bicho, sim.
— O enredo modificou? Emendou o caçador, a Fada, a
feiticeira? Como se chama a filha do dono do pássaro? E as outras
personagens?
— Tudo é seguindo o enredo antigo.
— Como a gente vai decorar tudo isso? Mas tudo isso!
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— Falta tempo, Maria Emília, já se está nas portas do São João.
Tenho a fábrica. Só de noite... Cada folha cheia!
— Bem, se não serve, é só dizer, levo de volta o caderno...
— Não dê preço, Alfredo, essa menina ela só só é implicante.
Me deixe espiar o caderno. Olhem! Olhem! O cântico pedindo licença
para o bicho entrar na casa da vossa excelentíssima família! Está com
toda a cortesia, ah! Aqui o papel da Fada. Fada escrito em letra
gótica, meu Deus!
As moças se amontoavam sobre o caderno.
— Comadre Maria Emília, ponha uma ordem em nós senão...
— Mas tudo isso! Tirou da sua cabeça? Só da sua cabeça? Não
fez um translado?
— Olhem, a D. Brasiliana manda dizer que ajuda nas
vestimentas, no enxoval do pássaro. D. Brasiliana.
Todas num espanto: D. Brasiliana? D. Brasiliana?
— A D. Marocas Soares costura os trajes, de graça, de graça.
Fez o seu oferecimento. Noite e dia na máquina, aquela senhora!
— Qual o meu papel, moço, e os versos das pastoras? O senhor
é do Vinte e Seis, do batalhão? Ou da Brigada?
— Antes de indagar, põe atenção nas coisas, Sofia. Não estás
vendo que é farda do Ginásio, sua cega, errada, zonza! [183] Gruda a
ignorância no céu da boca, menina. Peru calado, ganha um cruzado.
Não vais entrar em forma?
— Não, que não venho aqui receber ralho dos outros, ora só.
Agora isso... Boa noite.
— Folgou! Folgou! Refrescou foi muito! E nunca mais o pé
aqui, escutou?
Vagarosa veio Esméia, roça-se no dólmã do ginasiano,
cochichando:
— Pensa que não sei que o papel de Fada... oh,, vergonha! Oh,
vergonha! Quando soube, não acreditei. Aquela? Fada! Estou de boca
aberta.
— Que é, Esméia, que estás pedindo, pidona?
— A língua de quem pergunta.
— Entra em forma, entra em forma, senão encalho este barco
do seu Bahiano, é um repente que armo lá no meu oco de pau a mea
rede, suas prosas, e adeus nosso assanhamento de botar cordão na rua.
Olhem os papéis! Feiticeira! E a Fada? De onde vem essa Fada,
Alfredo? Onde é o encanto dela?
— Presente, Diretora — apresenta-se a Esméia, piscando.
— A substituta da Fada. Fada que nunca vem. Não afiançou que
vinha? A outra, a vice, em forma!
— Eivém a nanica, abram alas, é a vice-fada.
— Nanica não é tua mãe, peste, porque ela, coitada, é mea
madrinha.
— Mas assim que não! Tem de haver boa união e acatamento,
criaturas. .. Alfredo, entra e vem me explicar as outras partes do
caderno. Mas, vocês aí? Querem uma comissão que traga vocês para a
forma, rogando: Princesas, tenham a honra? E a tal, aquela, me diz o
nome dela, Alfredo? Ainda lá no canto pedindo o alvará do
namorado? Mas os músicos? As juras do Simão? Será que o pirralho
da jaqueira dá um caldinho na rabeca?
— Ele então não aprende com o cunhado?
— Rabeca?
— Não, as letras.
[184] Alfredo fechou o caderno.
— Menino, não vai atrás da burridade delas. Entrem em forma.
É sério ou não é sério?
Esméia saiu, veio até a janela, por fora, debruçou-se para dentro
da sala, debruçou-se, bem de cara com Alfredo que se voltou para
aquele negro rosto róseo, jasmins exalando, o beliscão no braço e ela
cochichando, guardando o peito com as mãos:
— Cunhado, não? Cunhadinho? Já? Foi o caldo da piramutaba?
Já cunhado? Vão casar Adão e Eva naquele paraíso? Espera que vou
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dizer para a Fada. No que te tocou com a varinha de condão, arre! nas
mãos da Fada! És o Adão da jaqueira?
— Não, que a maçã que comi peguei de tua mão.
— Um molho de malagueta, um molho de malagueta, era o que
devia te fazer engolir, seu-não-sei-que-diga. A Fada que te meta na
corrente, infeliz. Que aquela, tu bem que mereces, sim. Bem mereces.
Mereces. Mas bem merecido. Faço voto.
Maria Emília chamava.
Esméia entrou em forma, olhando de esguelha para Alfredo,. —
enfia o teu caderno no miolo das outras, no meu que não, ah,
arrependimento... Aquela noite, só o meu fogo, onde eu estava? Foi a
modo de um ímã, ah, arrependimento, O que agora ele de mim já
espalha, falando de maçã, ah, arrependimento... Cerra os olhos como
se voltasse àquela sala que lhe parecia, no escuro, deslumbrante, girou
no sonho em torno do lustre, dos enxovais ali guardados, o mergulho
no leito, o salto para a rua...
— O teu papel, Esméia.
— O meu já tenho em casa, mana. De cor, inteirinho, letra e
música. Era dum antigo pássaro do Umarizal, vovó e mamãe se
lembram, bote que tempo, o Aritauá. Desse caderno aí pra mim já não
carece.
— O teu papel, larga de pavulage, Esméia, pega! Assim vocês
me obrigam a um regulamento de penalidade. [185] Alfre|do, me traz
amanhã, um regulamento, me traz? Toma o papel, mau-exemplo!
— Pego, mas leio de cabeça pra baixo, serve?
— Olha, Esméia, se gorar não é só só eu que me cubro de
vergonha.
— Não ralha comigo, Maria Emília, não ralha... Olha o poço!
E leu na margem do papel: Me desculpa, Ismênia, engulo o
molho.
Leu, deu-lhe uma raiva, o molho? Engolia? Pela outra?
Escolheu, escolheu, tanto escolheu que caiu no alçapão. Roberta?
Fada? Bem merecido!
— Alfredo, vai com os namorados de Roberta, buscar o alvará.
A Fada se faz de rogada, assim não.
Alfredo, à frente do portão, não sossega. Maria Emília chama-o.
— Alfredo, o trato é você não se arredar durante o ensaio. Que
aconteceu com a sua aluna? Por que a sua aluna não vem?
Arrependeu-se? Ou desdenhou de vir? Soube quem somos, lhe deu
nojo? Vai buscar a menina, rapaz.
— Quem? — indagou Esméia, tapando o riso.
— Em forma, Esméia.
— Meu Deus, onde está a encantada, onde a encantada, que não
vem?
Alfredo guarda-se debaixo do maracujazeiro e logo fortes
palmas no portão.
— É aqui a sede do pássaro de fama? Frondoso maracujazeiro,
sim, senhor. Deve dar muito. Pode-se apreciar o ensaio das gentis
senhorinhas? Prontas para ganhar a taça na quadra joanina? Posso
entrar por uma curiosidade? Um lugar na platéia, consigo? Não vou
desvendar lá fora para os rivais o que sucede aqui nos ensaios, os
variados números, me comprometo. Entrada franca, senhoritas?
Licença?
— Maria Emília, o teu pai.
A gorducha, bem baixa, lhe deu uma impaciência: Que cabeça
essa do papai aparecer... Que tinha de vir? Era só mandar pelo Bidico.
Enquanto não veio, não sossegou...
[186] — Entre, papai. Trouxe o apito?
Alfredo reconheceu: Era aquele mesmo de Santana, o dos efes e
erres, só faltava o papagaio no ombro, o dono daquela festa, o
presidente da irmandade de São Sebastião recebendo os convidados
com uma salva de palavras, a noite com os tios no barco Santo
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Afonso, o parto da misteriosa senhora fugida de Belém, a dança com a
Dolorosa, a recémnascida no colo da D. Prisca a embarcar mal
amanhecia maré enchendo, o seu Almerindo, o santo no colo, com
palavras da Santa Escritura e lá fora a ilha, de dia, de noite boiúna.
Agora na voz, nos olhos do pai de Maria Emília, Alfredo revia o
barco, os tios, o resto do menino que ficou em Santana, o suado
amarelume de Dolorosa, a primeira mulher nas pedras, a baía lá fora
braba. O rio, num limo, clareava com os botos sem sono, e ali boiava
o rapaz, este. Agora este rapaz, com este caderno na mão, esperando a
Fada.
— Licença pra tirar uma opinião desse vosso primeiro ensaio?
Todo começo tem os seus embaraços. Bois e pássaros já ensaiei, par
deles, no Marajó, no estirão do Arapixi, par deles. Está lá o rio que
não me deixa mentir. Então aquele que botamos, o Pirarucu
Encantado? Não nego a sofrível experiência que tenho da ciência de
cordão de bicho, modéstia à parte, mas pode somar os São João que
brinquei, graças a Deus, nunca desconheci ninguém nem ninguém a
mim graças a Deus, assim é o proceder, muito aprecio ainda os
folguedos, folgazão que sempre fui depois de feita a obrigação, e
estou que a família o meu sangue herda, pegou de mim, não censuro
mas façam na boa união e escolha e tudo no devido. Fazer má figura,
isto que não convém. Filha minha passando vergonha?
Vira-se para Alfredo, fingindo surpresa:
— As pedras se encontrando! Muito do bem aparecido! Devera
me regozijo que o senhor seja um honrador desta brincadeira em que
a mea filha Emília toca o apito. Naquela noite menino e nesta meça o
tamanho! Folgo de ver o amiguinho partilhando da idéia da mea filha
e suas distintas [187] cole|gas no desempenho de uma representação
de um pássaro na quadra joanina. Pode nos dar um especial adjutório
com a sua luz? Bastante estudo? E os vossos tios? Ah, Santana!
Acabou-se. Perdi a mea senhora, que Deus a tenha, Deus levou, em
Santana enterrada. Os brancos me pedem o barracão de volta,, que de
lei é deles, então, no relento sem no que me agarrar, atravesso para a
cidade com a família nas costas. A irmandade finou-se, o santo me dê
indulgência. O São Sebastião, eu tive que me desfazer dele, precisão
duns cobres, o santo é testemunha. Pra onde vou? Onde o agasalho?
Trabucar no que ainda posso, não esmorece, Almerindo. Remexo esta
cidade. Já peguei um lugar de vigia numa usina, começo amanhã.
Assim faço parte desta população, finco na baixa deste subúrbio a
mea raiz marajoara. Começa sempre, sim, há quantos anos,
começando sempre, faz desfaz... Um chão, meu, nunca que tive. No
alheio ando porém nunca me apropriando, começando sempre, desde
curumim tapador de igarapé, vira tartaruga, arpoa pirarucu, caldereiro
de ferro, e o mais no que experimentei o pé no mundo. Gosto meu,
meu amiguinho, era, isto sim, ficar numa beira de igarapé, ali pelo
Arari debaixo dos meus coqueiros, com um roçado atrás, a farinha de
tapioca espocada de forno bem quente, o cacuri na maré, ceva uns
capados, arma a rede no copiar, o meu mingau de crueira com açaí e
deixa cantar o tucano! Porém cismo que amarrei a envira neste porto.
A sorte não maldigo. Obedeço ao decreto. E o seu pai, o Major, como
está passando? Estou que conheço a senhora sua mãe, ou sua mãe
nunca passou em Santana, estou que sim. Ou foi em Cachoeira, se não
me engano, te lembra, Almerindo, um inverno, que... Espere... Sim,
sua mãe, pois não me lembro? Parece que estou vendo! Ela na porta
do chalé com uma braçada de baunilha. Era, sim!
— E a bacia de louça fina?
— Onde lavou sua mão, aquela noite?
Seu Almerindo desata a sua risada.
— Não lhe fez mal o toucinho? Por certo não, que era do santo
o capado.
[188] Espicha-se para o ouvido de Alfredo:
— Que é que eu podia fazer mais?
— Como?
94
— Ainda não sabe o que é arrancar uma família da velha toca,
meu menino, carrega com os tarecos, sustenta as bocas na cidade na
primeira semana, mês, conforme o tempo, conforme a pedra e a
necessidade, até que encontre um osso? Tive que me desfazer não só
da imagem mas da bacia, de duas frigideiras que a finada tanto
estimava, e do que possuía em tetéia... E depois, perdendo a patroa...
Tire o senhor um juízo. Sim, que os filhos pegaram tamanho. O meu
mais velho embarcou. O outrozinho praticando a caldeira. Essa, aí,
não se vexou, logo se dando com as vizinhas, lá por conta dela entra
na fábrica. E aqui me acho. O folgo não perdi.
— Nem a sua risada.
— Ah, que o senhor até que me lembrou! Dar uma risada é
soltar os passarinhos da gaiola. E só bem ri quem muito chorou sem
ter chorado, decifre esta. Como vai a sua aritmética? Devo imaginar a
alta numeração que vai nessa cabeça, não me diz porque não se gaba,
o gabar-se é oferecer-se, o oferecido valia não tem. Ainda sei rir, sim,
entro nesta cidade feito um de primeira viagem, o tombo deste navio
não me põe n’água. Agora estou com uma promessa de cortar carne,
viro açougueiro, assim espero, me adisponho, que conhecer boi, não é
por me gabar, sei pro meu gasto, reparto assim-assim um animal
bovino, que a partição de um boi exige uma fina arte, concordo. De
talhe e das partes da carne verde para açougue sempre passei por um
curioso, talhei uns quantos, fiz matalotagem, sangrei, tirei couro, abri.
Já não falando em porco, que nisso tirei grau. Está lá o rio que não me
deixa mentir. Ainda ontem estive na marchantaria, à espera da
promessa. Depende de uma vaga naquele mercadinho da São João.
Espero. Mão no leme, traquete firme, vamos embora. Bem, esta hora
não é pra falar das responsabilidades da vida, é uma hora recreativa e
aqui entre nós, seu Alfredo, essa mea filha, pro senhor ver, em
pouquinho [189] tem|po em Belém e logo reunindo uma irmandade,
cabeceando um cordão, que o que ela tem, tem, impõe respeito, é o
sangue? E os senhores músicos? Não me dou mal nesta cidade.
Vamos a ver. Vamos a ver. Safra de moças! Voto que seja um bicho
bem falado se bem ensaiado. Que é que falta?
D. Maria Emília, autoriza-me a usar o apito?
Alfredo, agora num alento, tentando desenroscar-se corre no
portão, encontra os companheiros da noite que se espalham no jardim.
— Chegou o rabequista da jaqueira? Manda entrar o rapaz. O
rabequista da jaqueira?
— Quede a rabeca?
— Falta encordoar e corda não tem.
— Corre pela vizinhança atrás, mas meu Deus! Vai na
Brasiliana!
Entre os rapazes, Alfredo parece indagar de cada um:
Estiveram com ela? Um de vocês rolou com ela pelo capinzal,
andaram no estaleiro, aonde? Volta para a sala. O velho fazia as suas
caçoadas. Logo se compenetrou: Olha a forma! Bate palmas, apita
com bravura.
— Tirar a introdução?
Em forma, as moças se entreolhavam, num embaraço, Maria
Emília de cabeça no chão, Esméia fazendo figa escondido para
Alfredo. Assanhavam-se os rapazes debaixo do maracujazeiro.
Que formalidade falta?
— A orquestra, papai! Não falta a orquestra?
— Pois então até que chegue a orquestra, licença para tirar uma
lá das do Arapixi, as senhoritas pão reparem no meu grasno, entôo
mas muito desentoado, só o trivial, acompanhem o meu solfejo.
Vamos assim mesmo a seco, tudo é a boa disposição, é a boa
influência, o acanhamento deixem para o dia, aquele que desejo a
todas, O que sobra aí nas senhoritas ah! é a flor da idade, é o botão de
rosa, é a flor da idade! Imaginem, meninas, o que era no meu tempo!
Um temporal! Animação. Animação! Animação, meninas. [190]
Vexa|me? Põe debaixo do chinelo. Aí a menina, a que faz o pássaro,
fique no centro, aprenda a evoluir, assim, assim! Maria Emília, tanto
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que o Bidico chegue manda de volta para buscar o nosso farol velho
que o candeeiro, esse, é pouco. Um! Dois! Três! O senhor não aprova,
seu Alfredo? Tem notícias do nosso Major? Apreciou aquela nossa
festa de Santana? Ah, o rio, aquele, não vai ver outra igual. As festas?
Só as do passado. Feliz o senhor que ainda apanhou a derradeira. Não
é do seu parecer, principiar o ensaio assim mesmo a seco até que
cheguem os instrumentos? Acharam corda para a rabeca? Atenção!
Maria Emília, já ensinaste a meia volta, por dentro e por fora?
Atenção! Afinem a garganta! Entoem! Ou vamos distribuir primeiro
os papéis? Mãozinha na ilharga, passarinho! Assim! Balançando no
galho da seringueira, a maré subindo, o vento ventando, o ninho
balançando, ei, japim! Assim. Já!
Salve, salve, meu São João
Saiu, saiu em seu louvor
O Japim de estimação
O Japim de estimação
— Coro! Coro. Evoluir! O Japim de nossa estimação. Maria
Emília, puxa as vozes, puxa a ala. Coro! Assim! Agora vamos
distribuir os papéis. Que o senhor está achando, seu Alfredo?
Acharam a corda da rabeca? Vamos, vamos distribuir os papéis. Uma
por uma, vou chamando, o senhor não concorda, seu Alfredo? Então
vou chamado:
— O amo do pássaro!
— A filha do amo!
— O caçador!
— A feiticeira!
— A fada!
— A fada!
— A fada? Onde a fada?
[191] Olha a manhã verde. Verde o chão, na calçada, nos tabuleiros, bancas, alguidares, cuias, morenas, principalmente as mais
acesas e faceiras do Jurunas e Marco da Légua, verde, verdes as
montarias que chegam da outra banda carregadas de São João.
Amanheceu São João em Belém. Depois do banho de cheiro, sortes
de madrugada, arrumação das lenhas para a fogueira da noite, Belém
põe na cabeça a capelinha de São João. Da feira verde nesta beira
d’água sai a cidade repleta de ervas, raízes, grinaldas e folhagens,
verde o rio, o cais, as janelas.
— Magá!
Alfredo beija-lhe a mão cheirosa. Magá, com a sua capela de
pataqueira, alta, escura, os jasmins no cabelo, a sala folhuda, exala
banho tomado aquele instante. Larga e lustrosa como folha de
morirana.
— Tão cedo na beira da praia, aquele-menino? Estás com cara
de noite em claro! Olha! Olha! Vens buscar alguma garrafada com o
Dr. Raiz? Tento com o mundo! Tento com o juízo! O mundo é a
Cabra-Cabriola, só gosta de bezerrinho novo. Olha, meu cabeça de
pião! Queres um ramo? Fizeste, te prepararam uma garrafa de cheiro?
Uma capela pra uma das tuas tantas namoradas?
— E a senhora? Preparou alguma tartaruga?
— Olha ali uma virada... Fiz uma, sim, um dia (lesse. Anda
vasqueiro, pequeno, ter, teve, e agora?
— Me dê notícia de Mãe Ciana.
— Saindo na minha ilharga agorinha-agorinha com o balaio de
cheiro pros fregueses dela.
— E depois?
[192] — E depois? O depois tu bem que já sabes.., O depois é ir
no rastro daquele santo dela — por onde, é que não se adivinha — até
que pegue o danado pelo papo e ralhe: Mas, rapaz! O banho que te
preparei desde ontem, fiz serenar toda a noite, te espera, que tu queres
mais? Mas banho de São João num diabo velho daquele? Mãe Ciana,
96
por dentro dela, é sempre uma de quinze anos. Estou por ver doença
igual.
— A senhora nunca teve?
— Pelo meu finado marido até que me comichou. Mas disse:
Ah! Se for meu, outra não come, senão... o diabo que te leve. Nunca
padeci dessa febre. De tal gogo. Ah, Deus te livre!
— Hoje bem que é o dia dela. Dia da Mãe Ciana. Dia do cheiro.
— Ah, que hoje em Belém a modo que até a nossa obra, com
perdão da palavra, cheira.
— Mais ou menos onde primeiro foi a Mãe Ciana?
— Pra te dizer, aquele-menino, qual a banda que escolheu pra ir
primeiro, pra te dizer, não sei. Só te digo que saiu pensa com o balaio,
trescalando. Lá se foi, a pé, que é o bonde dela.
Mãe Ciana ia salpicar de cheiro o chão, o céu e os soalhos. E ele
queria seguir — Deus te livre! — com Mãe Ciana, carregando-lhe o
balaio e a paixão.
Também não seguia um rastro, uma sombra, um pé de vento?
Não mais Andreza nem Luciana. Essa outra que esquecia de assinar o
nome no ditado. Assim de braço com a Mãe Ciana, pelo cheirume
geral, caminhariam entre as fogueiras e os cordões, currais de boi e
banhos no sereno, os dois pela cidade, aonde anda o diabo velho? A
demoninha, aonde? Ah, que lhe acertou fundo a flechada, Deus te
livre.
Já não pode esperá-la na D. Nivalda. Roberta na escolinha não
vai mais, virou moça de fábrica, trabalha na Parah, em solas de
borracha. Sai dos serões da fábrica no meio dum bando, todo aquele
bando, pitiando a borracha. No sábado, [193] entra em casa, rica do
seu salário. Lá pelo quintal a figura do pai, o sempre flagelado. No
Reduto compra um pano no prestação, aquele atracador brilhoso, e o
sapato branco, tudo nos turcos do Reduto, vejam só a compradeira,
agora é só “estive no Reduto”.
— Soube que vai a um baile.
— Soube? Pois não soubesse. Quem te soprou?
— O meu anjo da guarda.
— Foi? Demais linguarudo esse teu anjo. Corto a língua dele.
— Vai?
— Então pra que que comprei no Reduto o pano e o sapato?
Querias que eu fosse, como? Vou pra não fazer desfeita a quem tanto
me pediu que eu fosse. Culpa é minha de ser convidada?
— Só por isso?
— Só por isso. A quem me convidou, dizer não, não posso.
— Quem?
— Meu Deus! Bencinha, papai?
Deus te livre! Andou e reandou, maré vem, maré vai; para não
se aproximar do Reduto onde era o baile, varou a Vila Tubo, vagueia
pelo cais, que se viu estava no meio da rua só espiando de longe, casa
iluminada, uns braços na janela, o jazz na alcova. Aqui fora tudo
gelava, ou queimava, Deus te livre! O pé doía, o poste dando choque,
o bonde espirrou lama, lá dentro sumia Roberta, naquele clarão um
ombro, uma fita, o cabelo, os braços na janela, e esperou infinitamente o fim do baile. Lá saiu um bando, a pé pela São João, e
passa a convidada, pois de repente não tirou os sapatos? Correndo
atrás da manga que tinha caído?
— Não oferece?
— Oi que me assustaste, rapaz. Donde já que tu saíste?
— Dum baile na Piedade.
— Na Piedade? Tu? Como? Se nem me avisaste? Baile?
— Baile.
[194] — Toma, come deste lado da manga, que como deste..
Dançou muito?
O bastante que pude.
Comeu a parte da manga que lhe cabia e ela cantarolava com os
sapatos na mão. Um tempo assim sem se falarem. Por fim:
97
— Carrega na tua mão este sapato... Com quem... Bem... Ah,
assim, sim! De pé no chão! Vamos neste instantinho fugir nós dois?
Volta agora do serão um pouco pálida, impregnada de borracha,
convencida moça de fábrica não mais uma aluna nem menina, e passa
sem vê-lo ou Consente que a acompanhe, seca, mais atenta às colegas
que a ele, ou só, com pressa. Nem uma vez foi ao Japim espiar o
ensaio quanto mais receber seu papel de Fada. No que entrou na
fábrica... Em que capinzal ficou a molequinha, em que praia a
enfeitiçada pelo rio?
A última vez que ele a viu aluna foi aquele domingo à noite,
rente do muro, os dois passeando, com uma prima de companhia. Ele
leva ao sebo o livro de matemática para terzinho uns trocados no
bolso, se traja meio tio bimba, paletó claro, calça azul puída, passável
para a noite, a sentir-se tão caboclo-do-sítio, jegue-jegue perante ela,
moça de fábrica que faz compras no Reduto, de sapato branco. Ainda
assim era a aluna a seu lado, um tanto quanto menina na voz, nos modos muito exemplar. Como e onde levá-la? E aqui neste paletó ruço, o
sapato salto comido, todo embaraçoso, melhor seria fardado, faltava
passar a farda, também levava em conta que perdia o Ginásio, não ia
às aulas, por isso tinha vergonha de uniformizar-se, o ranger da
perneira peava-Ihe o passo. Convidava para a garapeira? Ao doceiro?
Um passeio até o Una? Olhar os imigrantes chegadinhos do Japão ali
amontoados na hospedaria? Uma volta de bonde? Ou em busca de um
quarto de anjo ou de um bom defunto, ali os dois se namorando mas
com todo o respeito defronte do morto? Não. Melhor aqui rente do
muro, escondido da mãe [195] dela, a prima de companhia, luar,
caminhavam muito calados. A prima: Que é que vocês dois têm que
vão tão assim, comeram abio?
O abio, sabia o que era, o que era, e só pressentia fim, o baile
atravessado, aquele sapato branco, o serão da fábrica, o iminente bater
de asa, as compras no Reduto, era uma vez a aluna. Roberta passava
pelo amor, molhando a ponta dos dedos no imenso mar. Ou não era?
O luar amadurecia a moça? Ou não era? Ou só lhe ensinei a tabuada e
ela me ensina a sua álgebra? Essa era aquela a quem a Brasiliana
gritava: Te capo, pirralha?
Iam até ao canto, voltavam, ao Longo do muro, os dois sem
língua, a prima inventou uma toada, calou-se. Era um velho muro, lá
dentro a horta, e foi que Roberta:
— Ah, eu só um instantinho nessa horta! Não era? Vamos,
Geralda? Tem de ter bom maxixe, tem não?
Puxando um suspiro, a segurar a mão da outra, examinou o
sapato.
— Vamos? Roubar um pé de couve. Meu jabutizinho lá de casa
bem que anda me pedindo uma couve... Mas estou é com pena...
Pena de ter saído de sapato branco, o do baile, preferível ele na
mão, assim tão...
— Tiro do pé, Geralda? Vamos na horta?
Alfredo olhou para a sua dama. Ela parecia de asas com
o sapato branco e a zombar de tudo, do luar, da cerimônia do
rapaz que já se via entre as couves a apanhar uma folha para a
jabota... Como entrar no canteiro senão... Como fazer o desejo dessa
jabota?
— O jeito é me encostar no muro, você pula no meu ombro...
— Me tomando por quem? Por uma gata? Uma mucura? Eras!
Roberta apressou-se, parou, olhando o sapato, olhando a lua:
Está que encadeia, não, Geralda? Mas é que o meu [196] sa|pato
encarde. Está encardindo. Escorou-se no muro, de cabeça virada,
fechou os olhos no luar.
— Adivinha o que estou pensando, Geralda. Adivinha. Mas
adivinha!
— Ainda mais! Não aprendi esse ofício, Roberta. Ele sim que
adivinhe. Que adivinhe, que adivinhe.
98
Ele veio, tocou-lhe o braço, a prima distanciou-se, Roberta deu
a mão, tão imprevisto, deu um passo e ele lhe roçou o beiço no
cangote.
— Quem que lhe deu licença? Assim tão confiado? Acostumado?
— Não adivinhei?
— Aquilo que te contei, Geralda? Sabes? Pois foi. Depois te
digo mais.
Passou a mão pelo pescoço, desmanchou a fita do cabelo, logo
apanhou o rapaz pela aba do paletó, Alfredo temeu pelo paletó.
— Pois venha agora me dizer, venhazinho me dizer. Quem que
acabou no meu lugar naquele seu tão falado cordão? Quem a muito
excelentíssima? A sua escolhida? Aquele cordãozinho tão chocho?
Coitado! E eu ali, pra fazer as vontades do meu professor, eu ali de
Fada! As honras... Estas ouvindo, Geralda?
Alfredo sentiu a mão fugir-lhe. A fábrica arrancava-lhe a Fada,
não sabia mais desentranhar aquela flecha, como partir o cadeado.
Tocou-lhe o braço, juntou-se a ela que lhe deu a face, ele a beijou
bem no canto da boca fria, fria, de Fada, e assim se despediram,
desfeitas no luar as duas moças rente do muro.
Atrás daquele rastro, lá se vai no cadeado, aqui parando, capaz
de subir na Penitenciária e afundar a cabeça no colo de Bina, a feia,
agora correndo, como se uma febre, o beijo, o beijo no canto da boca
fria, perdida aluna, perdido luar, perdido Ginásio. Segue pelo Una,
renteia o rio, escolhe o ponto do muro onde deve saltar para apanhar
as couves, entra na estância, abre a torneira, a cabeça debaixo da
torneira.
[197] Agora a todo momento espera o fatal bilhete a lápis: De
hoje em diante tenho outro em seu lugar. Queira desculpar as faltas.
Por isso esta noite inteira pelo subúrbio, nos currais de boi
bumbá, entre a cabroeira da cachaça, entre a mulambada, viu num
esgru à porta do botequim o pau cantando, alisou-se na roleta, as
rameiras de pé no chão metiam rama emborcando a garrafa atrás do
curral e lá vai, mediante o cartão aceito para dançar em casa, o
coitadinho do Japim, as moças de amarelo e branco, cetim e
acetinado, o bicho na cabeça da tripa, o seu Almerindo puxando o
cordão como um diretor de irmandade, o irmão da Zuzu arranhava a
rabeca e o Bahiano recolhendo o donativo do dono da casa com o seu
charão de prata. Coberta de cetineta, sandália e fita na testa, Esméia
uma rosada negra dançando no bosque, debaixo de palmas, “...Tão
bem de feiticeira!”
De Ana não sabia. Fechada a janela do sótão. Os companheiros
da noite andavam pelo arraial de São João, pelos bailes roceiros.
Quando foi, se viu defronte do sol raiando, defronte a barraca de
Roberta. No sobressalto, apanhou o bonde, veio banhar de verde a sua
noite em claro nesta feira de São João atrás do Mercado de Ferro.
Magá voltou com o jambu para o seu tacacá da esquina.
— Passa por lá à tarde por São Jerônimo, seu sumido, não te faz
de tão caro. Queres que te prepare um banho? Vai lá em casa. Tirar a
caninga, que de caninga Deus te guarde. Tás é a modo esverdeado,
criatura! Não vá ter pegado da Mãe Ciana, Deus te livre!
Os meninos, coroados de folhas, brincam na praia como filhos
do curupira. Magá com as suas folhagens, por entre os peixes, os
cheiros no ar, aqui é chão de feitiçaria. Alfredo apanha o Curro, o
bonde está que um bicho-folharal. Nesta exata manhã perde o
Ginásio. Cortada a matrícula, tantas são as faltas, agora é o muito
abandono de si mesmo ou desprezo, solidão sem socorro ou livre para
saborear a sua postema. Que vai dizer ao chalé? Aos tios? Aquele
caminho [198] per|deu-se. Fechou-se a porta. No pé de Roberta, os
restos do Ginásio. Ao chegar à estância, é o bilhete de Roberta? Bina,
tu que és a mais feia por isso a mais carecente, abre o teu colo a esta
cabeça. E de tudo desligado, neste nada metido, o passageiro desce no
Reduto, na esperança de encontrar a moça de fábrica pelas lojas com
a sua grinalda de São João ou com um bando atrás de chita para o
99
baile na roça. Ou prova a sua vestimenta de Fada do Estrela Dalva na
casa do seu Quintino Profeta, dono e amo do Boi?
No centro da sala, cercado de meninos, o Boi. Seu couro é de
veludo com estrelinhas prateadas. Alfredo quer entrar, não pode, toda
a casa zoando de gente, preparativos, o quintal tomado, brincantes,
agregados, espelhinhos, maracás, pandeiros, o macaco, capacetes,
tangas, esse tinge o rosto, aquele põe a cabeleira, ali o curumim no
urinol. O Boi, o Estrela Dalva, do São João do Bruno, com seus olhos
de fundo de garrafa e chifres dourados, levantou a cabeça. O seu tripa
alisa-lhe o rabicho:
— Menino, não toque no Boi. Olha só, senão chamo o seu
Profeta.
É o que dança debaixo do Boi, leva o Boi para o meio da roda,
para as arremetidas e volteios, na rua, palanque, arraial. Com seus pés
de homem, o Boi escarva, investe em círculo, curveteia, brabo ou
travesso, rabeando atrás dos balizas, Boi dançador que só visto.
— Aqui isto, professor.
O guri lhe põe o papel na mão, some-se casa adentro,
encandeado pelo Boi.
Não abre o bilhete. Soltaram um espanta-coió. Os três cachorros
ladraram, acendeu alto a fogueira da casa, também a do vizinho,
aquela defronte, ateou-se ali a outra, as fogueiras iluminam a cidade,
e este bilhete a lápis,. papel de embrulho, lido ao fogo das achas: “É
pra lhe dizer somente que tudo de minha parte teve fim. Tudo que o
senhor me escreveu está no meu poder as suas ordens pra lhe mandar
de volta. O que lhe escrevi pode queimar, queime. Alguma falta que
fiz foi sem querer. Desta sua amiguinha R.”
[199] Gibões de veludo vestem os vaqueiros e o Amo, lantejoulas no peitilho, esta casa é o camarim do Estrela Dalva, aqui se guarda
o Boi durante o ano, seus apetrechos, roupagens, instrumentos, as
toadas, suas taças, sua fama, em dormitório especial, com as
fotografias do Boi na parede. Vai sair daqui um instante para exibição
e desfile ao calor das fogueiras, com os balões subindo e com este . . .
tudo de minha parte teve fim.
— Professor, professor, passe fogueira comigo de padrinho,
sim?
— Ar, Zul! Pecado! Com ele de padrinho? Logo tu? Olha que
São João te castiga, aquela-menina...
Passaram fogueira, três vezes, São Pedro confirmou, bença,
padrinho? Olhem! Vamos! Depressa que o Boi vai longe, já
chegando! O Boi dá entrada no curral com trinta estrelas clareando na
mão da tropa, estandarte, orquestra, a indiada com as suas plumagens
saltando, sobe no palanque debaixo das palmas do terreiro aqui cheio
de lama e serragem, barraquinhas de mingau, arroz-doce, casquinha
do muçuã, tacacá, cariru, cerveja paraense, pato no tucupi, rama e um
joguinho, lá no fundo, de roleta e dado. Pode queimar, queime...
Queime. O Boi ocupa o palanque de pau e palha, embandeirado e
com lâmpadas elétricas, o Boi dança:
Já chegou, já chegou
Tá no terreiro
Tá no terreiro
Nosso fama caprichoso
Alevantou
Alevantou
Pra pisar orgulhoso
Alevantou
Pra pisar orgulhoso
Machuca o bilhete, pra pisar orgulhoso, furando pelo curral à
cunha, a tropa lá no palanque faz suas evoluções, [200] vai principiar
a comédia, O amo do Boi, vestido a fidalgo, desfolha a toada:
100
Arreceba o Boi
Prata fina brincadô
semeando pena de ouro
que a princesa lhe mandou
Na ponta da fila, luziu o diadema, saia de cetineta, o peito de
lantejoula; o manto de arminho, luvas brancas, varinha de condão, a
Fada. Assim, lá em cima, no palanque, tão de repente, vista de longe,
ao clarão das lâmpadas, dominava o terreiro, dominava este chão de
serragem, esta poça de lama, os balões e as fogueiras. Agora é a voz
do primeiro vaqueiro:
Moça bonita
Sem ser mulata
Teu rosto é lindo
Teus olhos mata
A simples amiguinha em pleno palanque, Fada! Numa nuvem,
semeando pena de ouro, reluz o diadema, vira-se daqui, vira-se dali,
na cadência da tropa, rejeitou alpercata, calçou o sapato do baile, e
seu manto de arminho? Deus te livre! E dela, nesta mão, como um
lacrau ferrando, este papel de embrulho, a lápis, adivinhando esta
noite, esta manhã na feira verde, este meio dia no Reduto, esta tarde
pelas estivas no cariazal, um minuto antes quando tentava de rojão
entrar no Profeta para ver os preparativos da saída do Boi. Alteraram
a velha comédia, que não tinha Fada, e introduziram a Fada, que era
só de pássaros, agora é a Fada no curral, correndo os campos para
proteger o Boi, tirar da mão da Feiticeira os vaqueiros enfeitiçados,
vira-se daqui, vira-se dali, a tropa entoando:
[201] Levanta meu boi de fama
Estrela da madrugada
a apresentação do Boi às damas e cavalheiros, às autoridades e
demais convidados. Roberta, com os seus poderes, lá em cima, nunca
olhava para baixo, toda em si mesma, na mão direita a varinha de
condão, tão certa de ser Fada, tão nascida para o Boi, Deus te livre! O
Boi faz um pião, chifra o ar, o Pai Francisco entra e solta uma graça,
desce a toada:
Meu Boi é prata fina
É pai de muita malhada
Sai de noite do curral
Só volta de madrugada
Roberta no Estrela Dalva. Ali no palanque, de Fada. Com a
prima de companhia ensaiou meio secretamente na casa do Boi,
nunca no curral, cortou os serões da fábrica, nunca aparecia no ponto
do namoro. Quando e como a viu o seu Profeta? Como principiou o
conhecimento? Muito manhoso, mandou uma comissão em nome do
Boi em casa dela pedir aos pais licença para Roberta ser a Fada. Os
pais. (para melhor dizer, a mãe,) se fizeram de muito rogados, que
não podia ser, que era por demais de todo impossível, que Boi era
Boi, muito do impróprio para uma moça. Não corria má fama? Queque não se falava! Boi? Minha filha no Boi? Saindo no Boi? Boi era
Boi, sabendo-se muito bem os assuntos que saem, o que era Boi.
Sabia de cor. A menina era família.
— Mas nosso Boi é de família, D. Domingas.
— A menina tem sua educação. Fosse num pássaro. numa
pastorinha, num bloco de moças para o carnaval... Tinha um
cabimento. Mesmo assim, ano passado, não consenti que ela saísse de
sabia na pastorinha do Prado. Agora no Boi? Logo no Boi? Naquele
Boi? A menina tenzinho a sua [202] educação, sim que pouquinha.
Quem que de nós pode ter muita? Agora sem mais nem menos levada
101
metida saindo no Boi? Pouquinha mas tem e com tão pouca que tem
ainda saindo no Boi? Assim desgraça tudo. Arrisco consentir não.
— Mas, e o Boi, D. Domingas? Sabemos dar boa conta de filha
alheia. A educação faz parte dos nossos regulamentos, lá no Boi, D.
Domingas. Nosso Boi é familiar,
D. Domingas.
— Dou licença, não.
— Sua menina é que melhor encarna., D. Domingas.
— Dou licença, não.
— Para aquele papel, outra não tem, D. Domingas, senão ela, só
a sua filha, D. Domingas. Não é por estar na sua presença, D.
Domingas.
— Dou não.
— Fada e sua filha é só uma, D. Domingas.
A mãe já não falava, só era não com a cabeça. O pai, o ar
flagelado, se fechava na sua barba dura. A comissão ia desistir —
Esperem, esperem o café. . . — quando a menina, que escutava de
costas na janela:
— A vestimenta é toda nova?
— Toda-toda nova, material e confecção.
— Nem um fiapo da do ano passado?
— Toda-toda nova, quebra tigela. Nem um alfinete usado. Tudo
que requer um tal papel. Ainda por tirar selo. Sendo mais: que não sai
Fada se não ser a senhora.
— Pois então mamãe deixa, o pai, e eu como filha faço as
vontades.
Sendo mais: que não sai Fada se não ser a senhora.
Pisou o palanque com o sapato branco do baile, nesse Boi velha
prata da casa, que ali são anos e anos de fazer Boi, brincar com o Boi
nas noites de junho, aquele Boi, o Estrela Dalva.
Num passo de fidalgo, seu Quintino Profeta se aproxima da
Fada, o chapéu armado com fitas de tantas cores, os espelhinhos e
fios de conta na testeira quebrada, o apito preso [203] ao peito por um
cordão de ouro. Se não ser a senhora. Senhora! Só faltou vir no andor
a roupa de Fada. Senhora! Os panos comprados na D. Brasiliana?
Quintino Profeta, no que mandava a comissão, já armava o seu laço?
Mestre de Boi-Bumbá, isso era, que era, era. Ninguém lhe negava o
bom brincar, o saber consumir-se, o merecer a Taça. Diabo é o seu
costume, por todos esses anos de brincar com Boi: brincar também
com as xerimbabas do Boi, as mais de dentro do farrancho, aquele seu
ninhal só fêmeo. Assim diziam, como de fato, era muito CabraCabriola com as bezerrinhas do seu curral. Quintino Profeta? Todos
lhe conheciam a mandinga e a política, o seu macio abuso de: No que
preferiu, possuiu. Como uma atribuição que o Boi lhe dava, cumpria.
Nesta hora inclina-se para a Fada, lhe diz.., sabe-se lá o que foi dito?
Demais respeitoso à vista do público, o semblante fechado, os modos
de quem muito se preocupa com umas tantas coisas, o rigoroso apito
na boca, transpirando moralidade, não se sabe quando e como afia as
unhas, joga a sua tarrafa, iscando com a sua lisonja para colher as
mais verdoengas. Sua fala dá sossego, sua conversa é pouca, sua
toada já não embrabece nem namora e da geração que fez já chegam
os netos lhe pedindo a bênção. Apanhou o maracá, voltou ao seu
posto de Amo:
O meu Boi de muita fama
Venha o Rei, venha a Rainha
Vou brincar com este Boi
Pra mostrar pr’estas meninas
Estas meninas. O viveiro delas no putirum dos preparativos para
a saída do Boi, passarinhando debaixo da mangueira, ao pilão
socando os tucumãs para o vinho, dá a banana ao macaco, lava com
creolina os três cachorros, limpa o bucho e o mocotó para a
102
maniçoba, seguindo o Boi onde o Boi vá, um viveiro onde o seu
Quintino Profeta é o urubu-rei. Das verdes, então, é que mais preferia.
Passava maná [204] nas palavras. Sabia fazer coceira na palma da
mão delas. Verde? Aquela do diadema? Até que ficou mais alta, virase daqui, vira-se dali, solitária, como é o costume de uma Fada no
Bosque, nas pastagens do Estrela Dalva, devia de estar suando um
bom pedaço, transpirava incanti. Naquele manto de arminho, sua filha
e Fada uma só é, D. Domingas. E de tudo que era aquela zinha da
rosa para a professora, do ditado esquecendo de assinar o nome, da
aritmética atrás da qual sorria e piscava, do muro ao luar, resta este
papel de embrulho, a lápis, assinado R. Teve fim. Pode queimar,
queime. Agora é do Boi. Do baile do Reduto ao Boi não durou um
mês. Do Boi. Ali debaixo do apito e da toada do seu Quintino Profeta,
não duvidassem que este? Olhem que até com bota brincou na praia
Maiandeua, deflorador que só ele, Deus te livre! Roberta trazida pela
maré, entrando no cacuri do seu Profeta. Guarda o Bosque e o campo
onde pasta o Boi, e quem salva a Fada daquele laçador de mão
certeira? Ou só se moldava, temperando um aleive?
Desde zinho, bem zinho, o seu Profeta brinca de Boi.
Balançando no macuru já via o Boi. Gatinhava atrás do Boi, se
emperreando para ficar com o maracá do índio. Sua primeira palavra:
Boi! Principiou a botar Boi na rua com seus pareceiros moleques,
Boi-curumim, vira a folhinha do avesso, vira os dias para trás, enfia
junho com julho, conta as temporadas. Veio vindo, veio vindo, até
formar o Dois de Ouro, Boi que fez tremer terra:
O meu Boi por estas bandas
Não tem contrário melhor.
Tempo mesmo de Boi-Bumbá, ali da gema, contrário está me
chamando, eu vou dar na boca dele, topando o contrário nos fuzuês,
pessoal afiado na capoeira e na navalha, o contrário está dizendo que
esta noite tira o couro, Boi que não tinha comédia, Boi do Cazumbá,
do Pai Francisco, Mana Maria, do Rebolo. Tempos do Rebolo! Dias
machos, o [205] Rebo|lo com a força de pai dó terreiro, seu peito
alvejado por bala de Boi rival. Que na escola do Rebolo, seu Quintino
Profeta tirou grau. Como Rebolo, fechou o corpo, sua oração é forte,
seus santos e caruanas lhe dão poder sobre os rivais, favo e brio na
toada e boa guarda ao Boi até raiar. Antigo serralheiro, foguista de
gaiola, tocador de rabecão, Quintino Profeta carrega o seu Boi no
meio dos afazeres e desenganos, atravessando a crise e as alterações
do mundo, O Boi dava despesa desconforme, cada ano esticando a
conta e São João houve que nem acabar de vestir o pessoal podia. São
João passado, não foi? Teve de empenhar a casa. Também tira uns
minguados nas orquestras tocando o rabecão, pela festa de Nazaré faz
parte de uma banda no arraial. No mais é o só pensar no Boi, que é a
sua fortuna e a sua fraqueza. Nome e história de Boi o seu Quintino
Profeta tem no jornal, no plantão da permanência, nas rodas da
cabroeira, nos cantos do subúrbio. Não viu o seu Dois de Ouro
queimando duas vezes pela polícia? Precisou que o soldado rasgasse a
sabre o veludo do Boi, derramasse querosene, que só assim o Dois de
Ouro pegou fogo, virou cinza com a sua tropa toda em caráter e trajo
dentro da cadeia e o seu povo na rua com o coração queimando,
recolhendo a cinza. Aqui neste jarro de louça, a cinza recolhida é o
Dois de Ouro. Noutro ano, o mesmo contratempo, a armação do Boi
resistiu, a armação do Boi não pegou fogo, a cabeça, com o 2 de
metal na testa e uma figa na capela, saía chamuscada mas intacta,
mais parecendo cabeça de santo. Como tirar de dentro da
subprefeitura a cabeça do Dois de Ouro? Deixa na mão dos meninos,
com o Mendobi na frente que te afianço. Como de fato. Os guardas
naquele plantão fizeram que dormiam e entram os meninos, saem
com a Cabeça para a casa do Boi. Salvavam a cabeça do Dois de
Ouro, Mendobi na frente, hoje um marujão da flotilha. Meninos
103
daquele tempo hoje cada um pai-d’égua, bigus de batente brabo,
vaqueiros do Estrela. Não foi nem uma nem duas que Quintino Profeta gramou xadrez, viu seu Boi rasgado a sabre, sabrecado, [206]
degolado. Ali no cesto tem ainda pertence de antigos Bois destruídos.
Tudo aí nessa alcova do Boi é relicário e uma noite há de mandar
rezar ladainha por todos que brincaram no Boi e que não são mais
deste mundo. Aqui na alcova será a ladainha, defronte do Boi, com o
santo na mesa forrada.
Como ia contando, Boi se queima, Boi se faz de novo. O que é
do homem bicho não come, o Dois de Ouro renasce das labaredas.
Noutro ano armou outro animal, saiu com ele e sua tropa, abriu curral,
na rua brincou, no arraial desfilou, dançou em sala de branco, fez a
matança do Boi, varreu. Polícia só aí vendo sem piar, o seu Quintino
Profeta tinha cartão de Senador conseguido numa audiência. Por fim,
morre o nome, o Dois de Ouro, morre naquele ano em que o velho
Timbó já de vela na mão ainda parecia fazer toada. Morria um de
raça, de lei, toadeiro de Boi estava ali, não renegava. Morte dele
lembrava a do velho Macário, este do carimbó, rezador do Divino,
morrendo, os seus companheiros foliões rezando a folia do Divino.
Morreu ouvindo a sua folia, o tambor tamboreando surdo, a vela
acesa, a Coroa no colo da mulher, esta ali com as mãos ocupadas, sem
enxugar as lágrimas. Um pombo branco voou do telhado quando o
velho folião expirou. Seu Quintino Profeta ajoelhou-se diante da
Coroa, desejou, pediu, assim fosse também a sua morte, ao pé do Boi.
Então nasce o Caprichoso, chegam as chuvas, vêm as pupunhas,
despencam as mangas, e sempre aquela cachaça, aquele sempre
ajuntamento na porta de casa, acabando em serenata, Satiro e Cecílio,
o par de sopro, o rabecão falando, as meninas em roda, esta trazendo
um café, aquela o tição, as morenas aqui pelo ombro da gente no uso
do melhor dengo e do dá cá um cheiro ou deixa que te esprema o
cravo. São João se anunciava? Então reúne, que remédio, prega edital
na porta, buzina para o Chaminé, bate no cochicholo do Cecílio, o do
saxofone, vai ao cais ver o Pixixi, dá um pulo no Satiro, o flautista, e
tudo o mais que for preciso que de hoje em diante, neto do Dois de
Ouro, filho do Caprichoso, nasce o Estrela Dalva. Vamos botar o
[207] Boi. Tinha lido o nome em sonho como coisa que do céu lhe
mandaram dizer, ou do fundo onde seus guias estão, aí nessa água açu
do Pará e ilhas e poções de cobra-grande, remansos e correntezas.
Pediu ao professor Cirilo a primeira comédia para representar em
palanque. Os tempos da ferrugem, do tirasulapa, dos rolos de Boi,
longe iam. Não podia escurecer a mudança das coisas. Tinha que
acompanhar a transformação. Aluga o quintal do seu Moísés, que
paga o foro aos Lobos, finca o curral, arma o palanque, divide e
arrenda terreno para os divertimentos da noite, e sobe, Estrela Dalva,
no palanque, o soalho é teu. A cidade não mudava? De Belém,
aquela, quem me dá notícia? Os ausentes, os morridos! Estas
saudades, outros semblantes, bem, Boi, entra no tempo do jazz, te
agüenta, que até avião já voa. Carecer de ir no cartório deixar o nome
do Boi nos livros, não tem dúvida, ia. Corre na Pedreira atrás do seu
Raimundo Alecrim para vir benzer o bicho. Procura no jornal o seu
Seabra, combina com ele uma roda de rama e peixe frito no Bonitinho
e que assim ele publique as notícias do Boi. Planta os tajás protetores
do Boi. Pendura pela casa dente de jacaré, de boto, e vamos, que o
Boi urrou, nosso-pessoal!
Estrela Dalva entrou no curral como Boi de comédia, a tropa
numa vestimenta só de cetim três peças, não digo os ornamentos. Seu
Quintino Profeta tirou as toadas saudando a assistência, repetiu umas
do falecido Timbó, apalpou a sua oração no bolso de dentro. Vera!
Vera! Vem pastar no lavrado o neto do Dois de Ouro, o filho do
Caprichoso, observando um pouco as modas de agora sem quebrar o
respeito pelo antigo.
O Boi enfiou no chifre a estrela da madrugada, colou no lombo
de veludo as Três Marias. E assim principiou o Estrela Dalva, assim
veio de longe o seu urro, varando a cidade. Nunca outro Boi entrou no
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bairro pra lhe fazer pique, axi! Estrela, o Boi, seus chifres riscam céu
e terra, deixam um rastro de cantoria e fios de cetim. Do Esquadrão
para dentro. Chão dos Lobos, é chão que só um Boi pisa, um só Amo
[208] canta, uma só tropa entoa, um só curral festeja. Ainda assim
barulhos não evitou, quando atravessava a cidade, subia o São Brás,
ou cruzava um rival. Um e outro chinfrim com a cavalaria e a polícia,
mas já não tomava Boi dos outros, ainda assim bota turuna pra correr
quando carece. Bala, sabre, rabo-de-arraia, pau comendo mas
comendo mesmo, já não. Quintino Profeta e sua tropa campeavam
num campo dando flor, protegidos pelo Cavaleiro Jorge.
Este ano, sob a varinha de condão, Estrela Dalva levantou a
cabeça, urrando no seu curral, com a toada do Amo cheia de vozes
mortas, de amos e vaqueiros do antigamente, Rebolo, Cazumbás,
Mães-do-Mar de outros tempos: Satiro, com aquele buraco no meio
da testa que nunca sara, tocando flauta à frente do pau e corda.
Campeão nos concursos da cidade, Estrela Dalva é rival do Pai de
Campo do Jurunas, do Canário do Umarizal, este não saiu mais.
Cessada a briga de capoeira e navalha, desfeita a rixa, agora os Bois
se respeitam, até que se cumprimentam, trocam ofícios, usam de
educação. A palavra contrário, num tom de desafio, é só pura toada, é
só um garbo, tudo o mais é faceiro. Acabou a emboança, cântico de
vera, que xingue, trate o rival de resto, tem mais não. Cavalaria já não
vai atrás num tropel, de chanfalho em cima. Ali é a Fada como paz, a
menininha do milho verde, a pirralha que a D. Brasiliana queria capar
lá no telhado no meio dos pombos e das sedas de contrabando. O
punhal, cabo de osso, seu Quintino já não traz no cinturão, é um
adorno na alcova do Boi, entre as taças e as medalhas, nunca mais
desembainhado nem para cortar tabaco. Mas seu Quintino Profeta,
basta um traguinho, deixa transpirar a saudade dos tempos de guerra,
do brinquedo saindo fumaça, sem Fada nem Feiticeira, Boi nu e cru,
guerreiro, do tira a cisma e a teima, arreda da frente que eu quero
passar, o pau cerrou, poeirou o furdunço... Agora a toada é um
cumprimento, um dizer não fazer, mais por ser bonito:
[209] Urrou, urrou
Tornou a urrar
Já urrou o Estrela Dalva
Guerreiro deste lugar
Vai principiar a comédia?
Boi, boi, boi
Brinquedo de São João
Deus queira que tu não veja
A riqueza do meu chão
O Amo dá um passo para o meio da roda, sacudindo o maracá.
Dirige-se ao primeiro vaqueiro:
— Vaqueiro, toma conta do meu Boi. Leva o Boi pro campo pra
pastar. Muito cuidado!
— Sim, senhor, meu Amo. Não tenha cuidado que eu tomo
conta do seu Boi com toda a vigilância.
Entrem as famílias que o arraial é de sossego, sentem nas
barraquinhas, ai reina o respeito. Foi-se aquele tempo.
Os vaqueiros vão dormir.
— Ó Estrela Dalva, nosso Boi vai pastando por aí enquanto nós
vamos quebrar a cabeça do sono.
O Boi no campo, pastando. Hora de aparecer o Pai Francisco?
Na ponta, vem e vai, vira-se daqui, vira-se dali, tesa, séria, a Fada,
segurando a varinha, com diadema e arminho. De lá de cima, do seu
reino, enxerga? Por curiosidade, divisou nesta serragem o
desassossegado a quem mandou o bilhete? A lápis. Papel de
embrulho. Os músicos tocam a introdução. Satiro, a esta hora, no
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palanque, já deve estar reclamando a chilra. Aquele buraco na testa do
flautista nunca há de sarar? Difícil distinguir a voz de Roberta. Com
pouco, vai entrar em cena, de varinha dura, tapando com as
vestimentas o que ela tem desta serragem, capinzal, beira d’água, da
mangueira onde subiu para espiar o sótão da loura. Desce do
palanque, devolve o condão e vamos os dois mas só um instantinho?
Soa o teu passo no meu peito, já te perdia quando te encontrava nem
bem te dou a mão, dela [210] te escapas, agora o que te cobre é
cetineta e arminho, teu dono é o Boi. Satiro vem descendo do
palanque, a flauta no sovaco, depressa vem tomar a sua rama, que
sem ela não soa. Este ano, está sem o parceiro.
Entre os músicos, um não está, mas é verdade! Faltando, este
ano, o saxofone.
Quiseram o saxofone no lado do defunto, seu Quintino não
deixou. Melhor ficar ali na alcova do Boi, o pedido é feito, assim
queria o finado. Aquele saxofone! Em glória esteja o tocador mas
aqui neste chão, oh, bicho! O quanto revirou nesta cidade com aquele
saxofone! Falassem as casas de família, falasse o raparigal de pé de
cerca e passagem. Falasse a Bela, que o nome já dizia, pelo saxofone
cega, perdida, meia-noite de São João fincou a faca na bananeira, na
faca amanhecia escrito: Cecílio. Encheu a boca de água, à espera de
ouvir o primeiro nome de homem, que com esse havia de se casar. E
ouviu: Cecílio. Lhe aconselharam o uso das fezes de gato e mais
coisas bem secretas que trouxessem o Cecílio aos pés dela, de joelhos
tocando o saxofone. Que nada. Quando estava perto dele, era rezando
aquela oração, que lhe ensinaram, tiro-e-queda para segurar o rapaz,
mas quem disse? Para depois, ali na raiz da mangueira: me digam por
tudo que é mais sagrado no mundo, me digam por onde viram o bom
daquele tão demônio, que eu acabo é tendo esta criança na rua atrás
dele.
— Melhor chamar a D. Santa. Corre na velha parteira, já-já.
Cecílio bem no Uberaba tocando aquela sua valsa para os
quinze anos da Querubina, Feiticeira do Boi, mantilha amarela, lenço
atado à cabeça. Por toda parte, o saxe e a Querubina. No Uberaba,
Querubina, instigada a tomar aquelas misturas, foi, que lhe subiu à
cabeça. Cecílio cala o saxofone, carrega a-que-bebeu-o-juízo para a
casa do Boi. Noutro dia, acordava espantada com a pergunta da outra:
— Querubina, esta noite foi a tua primeira?
— Que primeira?
[211] — Que ele te conheceu?
Correu no rumo do saxofone, onde tocava o saxofone? Agora
tocava para os quinze anos da Cilá, uma cabelo-nhã lá da Vila Isabel.
Foi o único no subúrbio, que acertou o passo no São João Batista com
aquela carioca aqui chegada, aqui revirando cabeças, num repente
voltando para o Rio, atrás dela o Belúcio, o do cavaquinho, que
mandou tatuar o nome dela no braço e uma estrela com o nome dela
em cada ponta. Quando Querubina se viu era com aquela barriga já lá
embaixo, atrás do saxofone, seguindo as serenatas, o músico fazendo
os seus traços no salão do baile, na porta do botequim, sem Bela nem
Querubina nem Cilá, apreciava a variedade, era do saxe e da rama, ou
cativo de um desgosto? Em meio da serenata sentiu aquele orvalho de
sangue, não disse a ninguém, onde a Bela? A Querubina? A Cilá? As
noites em que o saxofone dobrava o soluço? Enxugou o bocal, era?
Esmorecia? Seu som, seu sangue, ficava no bairro, no caminho da
Bela, da Querubina, da Cilá. Quando chamaram o Pedro Chaminé, o
músico já estava de vela na mão. Caiu ao peso das serenas, dos Bois,
das Belas e da rama, uma segunda-feira. Nem Bela nem Querubina. O
seu Quintino Profeta apanhou o saxofone:
— É todo o haver dele, isto. Tivemos, justo é dizer, as nossas
diferenças, mas na maior parte a gente se deu em boa irmandade. Fez
foi facilitar com o peito, abusou do fôlego. O saxe esburacou, chupou
o pulmão dele. Nunca teve um só descanso, nunca se privou, não foi
por falta de conselho. Era aquela toda noite. Sempre nosso
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apaixonado. Pra repenicar o que se pedia, nunca se fazia de rogado, o
beiço no saxofone. De dentro mesmo de casa, desta família, do pé do
fogão, que foi, foi. Honrado rapaz. No lugar de um gema como esse
cadê outro? O Boi faz o enterro.
No enterro só faltou o Boi, sim que nem Bela nem Chá nem
Querubina.
Agora no palanque entra em cena, ladrando para fazer graça, o
Pai Francisco, seguido de três companheiros. [212] Deita|do no
campo, a capela nos chifres, as estrelas prateadas no veludo, o Boi.
— Olhem que tão bonito Boi encontrei nesta paragem! É a fala
rouca de velho negro, o Pai Francisco.
Os vaqueiros quebravam a cabeça do sono. A Fada, vira-se
aqui, vira-se ali, fingia que ali não estava, estava no bosque ou no
prado colhendo florinhas, só vem quando chamada e vem cantando.
Assim, de cima, nas luzes, no brilha-rebrilha da sua roupagem, é a
Fada, ou já é aquela, conhecedeira do mundo, encorpando as suas
tentações, maduro o peito, a anca? Aqui desta serragem o olhar já não
alcança tanto, e nesta serragem é o arraial repleto, chegou a D.
Brasiliana no braço de seu baixinho português, coberta de contrabando, agitando as pulseiras, espalha a loção da França, crioula
pompadour dominando o arraial. A dona aproxima-se do palanque, os
quadris ondeiam, a sinuosa abana o leque, o português é a sua
bengala, e finca os olhos na Fada. A Fada, mas veja a pirralha! Só de
cima, de sapato branco no nariz da moura. A Fada acompanha os
movimentos do Pai Francisco e uma graça do negro cobre o sorriso
com a mão enluvada. Duvido que me diga, de novo, D. Brasiliana: Te
capo, pirralha.
Agora é a vez do Pai Francisco.
Pedro Chaminé, que faz o Pai Francisco, esteve na Marinha,
fez, na baía de Guanabara, o motim do encouraçado, com o João
Cândido, seu almirante. Como Pai Francisco, nos currais de Belém,
por desempenho e idade, estava só. Este ano, de sua cabeça modificou
a cena, inventou a roubada do Boi. No Estrela Dalva, não se mata
mais o Boi, se rouba, quem rouba é o Pai Francisco. Não se sangra
nem se reparte, só se rouba o Boi, falou Pedro Chaminé, quebrando
rigorosa regra do enredo que nunca mudava. Agora não tem comédia?
Não tem Fada? Feiticeira? O ferrador já não é uma moça? Aquela
com funda cicatriz de ferida na perna? Não se mata mais o Boi, o Boi
é roubado, muito melhor reaver o Boi que ressuscitar o Boi. Seu
Quintino Profeta não [213] quis contrariar o velho amigo, aquele seu
insubstituível personagem. Aceitou a alteração. Enfia da tua cabeça
na comédia do professor Cirilo essa roubada do Boi, mete aí dentro
tua novidade, se der saldo é só teu, por tua conta só, que por mim me
esquivo. Disse por dizer, pois se fiava no preto, preto de cachola boa,
também inventar um outro tempero. mau não era.
O Pai Francisco põe um olho no Boi. Gira em torno do Boi, este
parece adormecido no meio do campo, debaixo da cobiça do Pai
Francisco. Os vaqueiros bem quebrando a cabeça do sono. Tremei,
vaqueiros, amigos do Boi, platéia do Boi, que o Boi vai ser roubado.
Pedro Chaminé, Pai Francisco todo ele, limpa com a ponta do casaco
velho o suorzão do peito. A cara retinta com aquela alvacenta barba
postiça, chapéu de massa surrado e o clavinote. Espalhador de graça,
arteiro no fazer rir, espremia a sua pimenta, nas ocasiões próprias
carregava no sal. Queria um concurso dos Pais Franciscos do Pará,
Amazonas, Maranhão, para saber se havia esse-um que ganhasse ele.
Matança de Boi tão bem como a dele nas três capitais não tinha, tão
caprichosa era, tão bem acabada. Trazia do Una, onde morava, o
tabuleiro de munguzá e cariru que a mulher vendia na barraquinha por
nome A Cabana Tupi. Vez em quando descia do palanque pelos
fundos e atrás da barraquinha matava o seu bicho, vertia suas águas.
A outra sua voga, aquela, de bom benzedor no Una? De um santo
emplasto, tinha o segredo. Arca caída, nervo torcido, espinhela
arriada, carne rasgada, estava canso, era emplastar com o emplasto
dele e pá! casca! Tinha visões quando se concentrava rezando: via o
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pajé sacaca debaixo da maré bem fumando o seu taquari. Imitava o
canto do curió. Carregava na arca do peito, sem perder nunca o
sentimento, a porção de modinhas, também apostava com quem
comesse mais que ele: quatro quilos de gurijuba, uma terrina de caldo
e quinhentos réis de açaí, pra rebater, foi aquele almoço que só ele
comeu, apostando com o Bonitinho do botequim, dia dos Rezes. Isso
é fome, canina, [214] falava o seu Quintino Profeta, capaz de jurar
que comeste galinha choca.
Agora, neste instante, agora nesta noite, um rapaz procura a
Cabana Tupi.
— Aqui é a barraca do seu Pedro Chaminé? É a senhora dele?
— Pra lhe dizer que sou a senhora dele carecia lhe apresentar os
documentos. Estão em falta. Se não é o mesmo, faço as vezes.
Ele está?
— Brincando ali no Boi, ali. Suspenda a vista que dá com ele
ali.
— Estou é vendo que a senhora não está me conhecendo, D.
Brasiliana.
Xá ver... Me deixe lhe ver direito. Dizer que lhe conheço... Me
parece que não.
— Pois sou aquele um que vomitava sangue, um que ia já com
guia para o Domingos Freire, já desenganado. Já se lembra?
— Espere... Ah, sim, estouzinho já me lembrando. Ficou bom?
A Deus que deve.
— Abaixo de Deus quem me tirou da cova foi o emplasto do
seu Pedro Chaminé, D. Brasiliana. E aqui estes quarenta mil réis por
conta, a senhora faça entrega dessa insignificância, sabendo que nem
a maior fortuna paga o seu Pedro Chaminé pelo que me fez. Desculpe
a demora.
— Tire já-já esse seu dinheiro de minha frente, moço, que se o
Chaminé chega e vê, com toda a razão há de ficar bastante bem
aborrecido comigo. Não é do trato o que o senhor está fazendo.
Daquilo ninguém arrecebe, nem do muito obrigado fazemos questão.
É sabido e dito que uma coisa o Pedro Chaminé tem: o dom de curar
que recebeu.,, recebeu de graça, e obrigação é dele dar de graça.
Assim foi ajustado. Arrecade o seu dinheiro de cima da mesa, moço,
antes que o meu velho apareça, veja, e me passe, olhe o tamanho do
raspa! Por eu ter consentido, coisa que o senhor sabe que não [215]
estou consentindo, o senhor sem me ouvir foi logo puxando do seu
bolso para cima da mesa, ande, guarde o mais depressa, estou-lhe
pedindo. No mais, não quero o meu velho aborrecido, pois assim só
prejudica o papel dele lá no palanque. Ele ali no palanque é bastante
divertidor mas nos assuntos de seu particular sempre é muito rigoroso
no que encontra uma falha. E da feita que se contraria, a velha dele
que agüente os azeites.
— Mas, D. Brasilina...
— É o que estou lhe declarando. De tudo que lhe disse não
altera uma palavra. A contrariedade dele? Em cima do senhor não é,
mas da velha dele, que não cortou a sua intenção a tempo.
Então o rapaz foi em casa dele, trouxe a noiva para apreciar,
n’A Cabana Tupi, a roubada do Boi, as artes do Pai Francisco, os
vaqueiros quebrando a cabeça do sono.
— Porém o cariru, posso, pagar, não, D. Brasilina?
— O cariru, ah, sim sim, agora isso pode, é à parte. O que
desejar, tirar uma prova da nossa mercadoria aqui nesta barraquinha,
às ordens. O senhor paga o devido. Assim, sim.
— Pois o meu peito fechou, D. Brasilina. Aquela guia o
Domingos Freire? Queimei na lamparina, Deus te livre! Seu Pedro
Chaminé no que ia pondo o emplasto me salvava.
— Um outro assunto, com sua licença, o senhor não se
aborrece?, — me deixe lhe falar, é bom também lhe dar conhecimento. É outra questão fechada desse meu velho. Ele é cheio de
poréns. Não ande por aí falando que o meu velho curou o senhor. E
ele também finca pé proibindo que espalhem por aí, de boca em boca,
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o senhor sabe, não é? Cale então sua boca. O senhor sabe, é
conveniência dele. Isso também pro meu velho é lei. Do que ele não
gosta: Chamarem ele curandeiro.
— Bem, se é lei dele,, D. Brasilina, me regulo pela lei, me calo.
[216] — É o regulamento dele, sim. Assim é o reto. Mais
cariru?
— Um mais, D. Brasilina. Minha noiva, é o prato dela, o cariru.
Não é, Corina?
Um riso pelo arraial, são as graças do Pai Francisco na hora de
roubar o Boi.
— E aquela Catirina, D. Brasilina? Modo que não é a mesma,
do ano passado...
— Um custo achar este ano uma outra Catirina. Aquela do outro
ano? Pegou um tumor lá nela, um inchamento na barriga lá dela, tão
do perigoso, meu Deus! Aí que nem o emplasto do meu velho!
Padecendo até hoje na Santa Casa.
— Na Santa Casa?
— Na Santa Casa. Agora o senhor imagine. Na Santa Casa!
— Eu então que não imagino?
— Então meu velho cuscuvilhou, cuscuvilhou, quebrou que
quebrou cabeça por esse Chão dos Lobos até que arranjou essa aí,
mas tão envergonhada a rapariga... Que é da vida, ela. Meu velho
primeiro teve que fazer lá nela um tratamento que... nem lhe digo.
Mas se desincumbezinho assim-assim mesmo aleijando, no palanque
debaixo das vistas do meu velho, um tanto desconsolada, uma água de
açaí. Só quer que seu Quintino Profeta lhe dê uma importância para
uma saia, uns borós por noite. Também o pouco que ela representa!
Demais pouco. Está ali e não está... Dizer que diz duas palavras?
Quem disse? É mais fazendo figura e o meu velho dando com o pau
na paciência. O certo, meu amiguinho, é que Pedro Chaminé carrega
esse Boi na costa.
No ouvido dele era sempre “te passa para o Boi da Pedreira,
Chaminé não seja arara”. Mas seu Quintino Profeta não lhe deu um
milheiro de palha para a cobrição da barraca do Una, três mil réis por
ensaio, seis mil por sábado de exibição? Era ou não era? Sim, que
cobiçado e muito, todos lhe soprando: Vem pro nosso Boi, Chaminé.
E Pedro Chaminé:
Só tenho uma palavra. Tudo é também a simpatia, a boa [217]
camaradagem, o não ter que dizer mal de seus parceiros, sendo mais
que o Estrela Dalva é aqui do chão, Boi de casa, Estrela Dalva, o que
foi, ainda é. O Boi da Pedreira? Não tinha nem quem tirasse toada. E
eivém um diretor de la querendo apalavrar o Chaminé para tirar
toada. Gente, que é isso? Não é da mea categoria. Não tiro toada.
Brinco, desempenho de Pai Francisco e nisso tirei patente, sou vitalício, no mais não meto o nariz. Toada é outra especialidade.
Alfredo se desencosta do esteinho da Cabana Tupi. Triste,
escura ó magra Catirina no palanque. Tão tão sem uma pedra de sal, a
saia poeirenta, o ombro murcho, o rosto sovado, representa lá em
cima o que aqui embaixo sempre é e, vão ver, já se gaba, lavada de
luzes, quem sabe um pingo de faceirice, à sombra do Boi, par do Pai
Francisco, defronte da Fada, a azul-celeste. E ali parece de vera, de
todos a mais personagem, da vida, da vida, repete Alfredo tomado de
uma áspera compaixão.
Com o aperto de gente, o arraial um forno, o chão pegajoso,
lama, serragem, roleta, peixe assando, fervendo a goma do tacacá,
entra pelas barracas o perfume francês da D. Brasiliana; o Pai
Francisco, seu freguês de jenjibirra, capricha nas graças, girando em
volta do Boi. Lama, mormaço, serragem, este bilhete na mão, Ginásio
perdido, o Boi lhe rouba a Fada, melhor é fugir deste fofo e úmido
inferno, deste ímpeto de subir no palanque e arrebatar a Fada; talvez
ela quisesse isso, na hora da roubada do Boi; de lá do palanque
inacessível estruge fantasticamente aquela vaia do pátio sobre o
calouro, o arraial vaiando e a toada:
109
... o nosso Estrela Dalva
foi roubado da malhada
Os vaqueiros se dão conta, o Boi? Mas e o Boi? Estonteados
pelo campo deserto.
— Então, vaqueiro, que conta me dás do Estrela Dalva, Boi de
minha estimação?
[218] — Meu amo, nós estava muito cansados. Trabalhando seis
dias, dia e noite. Nos foi preciso quebrar a cabeça do sono.
Aí grita de longe para a platéia, gracioso, o Pai Francisco:
— Nunca vi sono com cabeça!
O Amo se desespera, se desespera a tropa, o Boi roubado! Onde
encontrar, como recuperar o Boi? Aqui embaixo, nesta serragem, a
desesperada busca, como arrancar do palanque a aluna?
— Então, vaqueiro? Quero o Estrela Dalva de volta pro meu
poder!
— Meu Amo, para conseguir de novo o Estrela Dalva, só com o
Diretor dos índios.
Aqui embaixo na A Cabana Tupi:
— Mais cariru?
— Mais um, sim, D. Brasilina. Olhe que o seu cariru, hein? Não
é por estar na sua presença...
Lá no palanque chegam os vaqueiros: Pai Francisco atirou num.
Ó sinhô meu amo
Chico me atirou
Nem bala nem chumbo
Nada me pegou.
Lá se vão os vaqueiros para a maloca. Os índios hão de prender
os roubadores do Boi? Que é feito do Boi? Com pouco será a voz da
Fada, seus poderes em cena, a varinha de condão salvando o Boi. O
palanque se distancia, o curral do Boi um minuto apaga-se,
interrupção da luz, e só a Fada no palanque, nunca mais conseguida,
iluminava.
E essa pouca trava que se fez no arraial alojou-se no peito, aqui
se acumula, apodrece, ou crepita, aqui se destampa a panela de cariru,
espanta as moscas de cima do peixe frito; ali, no inacessível, a Fada, e
ao pé, com o apito, o Amo a chamar pelo Boi roubado, o Boi perdido,
o Boi, quem [219] sabe, sangrado e repartido. Os índios demorando.
O Amo dá o seu passo no palanque. E todo o seu desempenho mais
parece para a Fada, o laço vai apanhá-la, o urubu-rei revoa com seu
veludo e vidrilhos, as asas invisíveis.
Então será na derradeira noite, pela volta do arraial de São Brás,
volta de campeão, a tropa cansada, Satiro escorrendo o bocal da
flauta, o tripa, debaixo do Boi, comendo a pamonha, mais dormindo
que caminhando, viram rama pra espertar do sono, sa-gente! Pegue,
Fada, leve a Taça, está em boa mão. Vai recolher o Boi, bote festejo,
comes e bebes em casa e no quintal, faz a matança e varrição do Boi.
E as grudes principiam a grudar o pé da Fada, as grudes do Amo que
se unge de marapuama. Também mordido pela formiga taoca? Tudo
não será em nome do Boi? Em nome do Boi, pois então! Corre o
frasco, já tomaste o vinho de tucumã que te guardaram? E desta
misturada de maracujá, uma prova, experimente, molha o beicinho,
forte? Dobre o manto, tire o diadema, descansezinho um pouco a
varinha de condão, guarda a Taça, sim? Seu Quintino Profeta se descobre, recolhe o seu chapéu de Amo, suspira aquele suspiro que
sempre dá no apagar da fogueira, acendendo o cachimbo no
derradeiro tição, fecha o curral, varre o curral, o Pai Francisco
aparece lá de dentro com o prato de barro cheio de maniçoba, e no
lugar de sempre se deita, ali sagrado, até outro ano, o Boi. Tudo antes
110
no dormitório as meninas defumaram, e lá pelo quintal ao pé do
araçazeiro arma-se a rede. Será assim. Noutra manhã, não mais Fada,
seguirá para a fábrica. Só para a fábrica?
No arraial fumegante cheirando a pimenta é difícil varar até a
rua, agora a Fada lá em cima se cobre de poeira, névoa e toada.
Alfredo consegue sair. Incha-lhe na palma da mão, como um rato
podre, o bilhete a lápis.
— Professora, a senhora por aqui?
— Espairecendo...
O que disse a ele, toda sem desculpa, pegada na falta, agora
querendo meter-se terra adentro. Alfredo, um [220] instan|te a seu
lado, olhando para o inacessível palanque que parecia subir como um
balão.
— Mas aquela, a Fada, professor? Professor, não é a nossa
aluna? Aquela?
— Não sei, parece. Será? A senhora aprecia Boi?
A professora calava-se. Disfarçado! O diadema te deixa em
carne viva, partioso. Ou te escurece a vista? Um fogo no meu rosto.
Meu Deus! Preciso ir embora, agarrar-me a mim mesmo, e aqui
miserável ao lado do moço. Falar, quem disse? Alfredo tinha os olhos
no palanque. Me leve, professor, até em casa, quis pedir, numa
súplica, um orgulho lhe tapou a boca, lhe veio a visão do escaler, das
viagens, do navio que bebia, e do espelho lá na alcova.
— Bem, professora, boa noite.
Tentou segui-lo, já não via nada, empurrada, batida, espremida
no arraial, náusea daquelas comedorias e de si mesma, até que pôde
ganhar a rua, às pressas, as mãos no rosto., cega, a seus pés estalou
um foguetinho, atravessou uma roda de fogueira, ouviu: Quem dá
confiança a bucho é feijão. Quem dá confiança a bucho é feijão. As
risadas. Quem dá confiança a bucho é feijão. Bucho sou mas não do
teu cocho, que puta sou que Deus quis mas benquista.
A professora chegava em casa. Sentou-se no batente, arquejava,
como se tivesse feito aquele trabalho delas, aquelas, pela rua e
cercados, carregasse o escaler no ombro, suas viagens, o peso
daquelas águas, ou chegasse de quatro patas arrastando-se... Deu-lhe
uma tosse, lá na esquina uns bêbedos principiavam a gritar. E por
todo o subúrbio o espectro das fogueiras.
Alfredo foge por este beco em silêncio. Agora vai caminhando
pelo Acampamento. Dá com a mulher de cócoras num esteio ao pé da
vala.
— Fazendo aí o que, Maria? Não estás no Boi?
A Maria Igarapé. Nasceu no Ceará, serra do Maranguape, casou
lá, teve filho lá, como acabou no meio dos flagelados neste Chão dos
Lobos não se sabia. No Cais, os [221] ma|rinheiros ingleses, que lhe
davam ficha, lhe diziam camone. Era da serra, virou do igarapé,
Maria Igarapé.
— Vou é ver o Boi da Pedreira. Aquele com o curral no fundo
das sentinas. Por isso se diz que é o Boi da merda.
— E por que sentada, aí, o nariz na lama. Maria? Chocando?
— Chocando mea pedra.
— Chocando?
— Ah, meu mano, aqui debaixo deste escuro estava era só
alembrando da serra... Ah! É o meu choco.
— Foste mesmo casada? Ele que te abandonou?
— Não. Nós se abandonamos.
Caminharam por um beco. Para ajudá-la a saltar a vala.
segurou-lhe o braço.
— Olhe, quer, lhe arrumo uma... Conchavo pro senhor uma
rede vaga. Que comigo, hoje não, que estou de lua.
Alfredo queria responder-lhe: Pela Roberta é que te acompanho.
O mais, não, irmã.
— Não acredita? Pois olhe.
111
A Alfredo é a cena brusca na ladeira do Castelo, chegando
menino a Belém. É o defunto do necrotério, barriga aberta, gordo, é a
mãe no quintal cheio... E a esta hora, a mãe? Como se acompanhasse
a mãe pelo beco, a esta hora, pelo campo, ou correndo fogueiras e
cordões da vila, e ela aos conhecidos respondendo: Meu filho? Meu
filho? Há de voltar doutor.
— Tão que escureceu! — disse a Maria Igarapé, como um
lamento baixando o vestido.
Pararam no caminho da baixa. Devolve aos sapos a Maria
Igarapé de lua. Os sapos no cariazal esperavam. calados.
E eu aqui, em vez do diamante na mão, com este bilhete a lápis.
Tio e Dolores, embarcados na pele de jibóia, estavam chegando mas
aonde? Saltou um sapo como se saltasse a Fada, azul celeste,
escrevendo o ditado.
— Vai mesmo no Boi?
[222] — Com esta intenção. Ah, que não me agüento com estas
mil dores, sabe?
— Pois se meta na rede. Onde mora?
Num dos quartos do Teófilo dentro do igapó. Como um trem a
fila dos quartos balançando sobre o charco, a quinze mil o mês.
— A esta hora, com a maré seca, o igapó fede que só o diabo.
— E isso aí também é dos Lobos?
— Esse lodo? Pode que ser. Ou da Marinha? Sei, não.
— Quer que te leve?
Respondeu que não, as mãos na barriga, o pé grosso de lama.
Prendeu o cabelo, ‘Ia ver o Boi da Merda.
— Então, bom Boi, Maria. Levas a faca no dente contra o
lobisomem? Me deixa te dar um beijo na testa, boa noite. Tu queres
que a D. Santa olhe tua barriga, benza tuas mil dores? Conheces a D.
Santa?
Alfredo voltou para o São João, será que estou com febre? O
arraial fervia, o Boi retornou ao Amo:
Urrou meu Boi
Já urrou, tornou a urrar
Nosso Boi Estrela Dalva
Guerreiro deste lugar
Lá estava o diadema, a roleta parou no Touro, não mais balões,
aonde o Japim?
Aqui perto um resto de fogueira. Os cantos do Boi longe iam.
Para as bandas de São Brás e da Pedreira subia uma sonolenta
iluminação. Aqui as fogueiras cessavam, o curral, já ao longe, se
cobria de silêncio. Quis seguir a Fada, vê-la descer do palanque,
levada pelo braço... Tornou ao curral que se apagava, o palanque
deserto, restavam bebedores pelas barracas, alguns rapavam os
derradeiros carirus. A roleta rodava.
Também trazia a visão de Maria Igarapé suspendendo a saia, as
mil dores dela, o choco da serra. Era febre? [223] Cami|nha para o
Não-Se-Assuste onde a zanoia, decerto, sem ter pulado uma só vez
fogueira, lê para a mãe o Carlos Magno e os Dozes Pares. D. Fausta, a
esta hora, sacode-se de pesadelos, debaixo da vaia no cinema,
passando ao piano a sua ezipra. Na altura da José Pio, dá com um
homem sentado na ponta da calçada.
— Não está no Bio, seu Satiro? Saiu de lá hoje tão cedo?
O sentado custou a responder. Alfredo inclinou-se:
— Se sentindo mal?
— Hoje? Hoje? Uma sombra daquele Satiro, menino, hoje sou.
Pigarreou, deu-lhe uma sufocação, com pouco aliviou.
— Tu aí, meu camarado, não te fazendo de meu moleque, acode
o velho de perna morta. Me acende este toco de cigarro ali na cinza da
fogueira. Pois não?
Alfredo voltou com a bagana acesa.
— Hoje? Uma sombra... A sombra daquele Satiro.
112
— Não lhe quero sentado assim na beira da calçada, falou uma
da-vida que boiou repentina no escuro, um tanto gorda, a modo
sabrecada pelas fogueiras, o rosto contrariado. Era aquela que falava,
muito ofendida, quando passou a professora Nivalda de volta do
curral.
— Na beira da calçada, não. Sentado estou em cima da caixa de
minha flauta, pecadora.
Satiro levantou-se, esfregou o buraco da testa, Alfredo apanhoulhe a flauta.
O pessoal só me chama Satiro mas meu nome é St. tiro! Sátiro!
Foi andando, Alfredo devolveu-lhe a flauta.
— Sátiro! — gritou, rouco, num gesto de quem ia lançar a
flauta na vala.
— Soa a invenção, já, a sua! Dizer seu nome, agora, como não
6, seu Satiro... — Riu a mulher, ajeitando a cintura, abanando a
cabeça para Alfredo.
[224] — Não sou o que sou. Me chamam como não devo ser
chamado. Vontade tenho, por isto, de rachar esta flauta neste poste
apagado. Sátiro! Onde estás, que me tiraram de ti? Racha a flauta!
Sátiro!
— Mas, seu Satiro! — Acudiu a mulher detendo-lhe o braço. —
Quebrar a flauta, mesmo que quebrar esse seu espinhaço. Toque é que
é uma bem sentida aqui pra mim, pra mim e aí o moço... Olhe, moço,
o senhor... Eu bem que lhe conheço. E olhe que o senhor tirou uma
sorte por ser eu, eu só que vi, vi o senhor subindo aquela janelinha
seguro num cabo... Mas eu? O que vejo, é pedra no fundo dágua,
adeus, pode contar. Petisque bem a sua mocidade, tenha sempre bom
apetite. Toque, seu Satiro, sim?
— Não te gasto — cuspiu o músico a sentar na caixa de flauta,
todo urinado. — Não te gasto. Axi! Eu? Sátiro Gonçalves Pantoja!
Sátiro!
— Não faça fita que fita o Boi não quer — cantarolava a
gorducha desgrampando o cabelo, espalhando os seus cheiros de
banho.
— Pétala desfolhada de uma rosa, vem cá. anda, sua semvergonha! Toma a chave do meu instrumento. Me chama, já-já, de
Sátiro, como o meu nome mesmo! Sátiro! Já-já. Pronuncia! Quero
escutar o meu exato nome. De tua boca podre o meu exato nome.
— Olhe já! Mea língua que dá, seu Satiro? É ou não é, moço, o
senhor que presenceia, não acha? A língua não afina.
Satiro vomitou um pouco.
— Venha que lhe faço já-já um chá por seu estômago.
— Estou é com pinima de acabar a noite lá no bucheiro da São
João Batista. Lá de dama é só refugo. Só traíra de viração. Só quando
a Antonieta passa na rua e sopra pela janela, os buchos ganham um
alento, o sopro da demônia a modo que remoça as caras, refresca o
salão. Uma noite: Me [225] sopra na flauta, Antonieta, eu disse a ela,
e ela soprou. Um instante tirei um som, mas que som, que sonoridade,
aquela mulher tira do peito um sopro encantado. Tu, tu vais comigo,
na São João Batista, lixo da noite!
— Mas primeiro sossegar esse seu estômago com o chá, sim?
— O selo! Tens o selo? A polícia empombou com a festa do
Sacramenta por via do selo da caridade que não foi pago. Ah,
Quintino Profeta! Ah, Quintino Profeta! Pagaste?
De pé, a flauta em punho:
— Quintino Profeta! Pagaste o selo?
Sua voz enchia a quadra deserta, o vento levantava as cinzas da
fogueira morta, a mulher mascava tabaco.
— E tu, velho bucho do Chão dos Lobos, megera das cloacas,
pagaste o selo? Pagaste o foro dos Lobos? O selo da misericórdia?
Tu, velha pirangueira, me mostra, tira de dentro do seu farrapo, dessa
tapera que é o teu peito, o papel de tua licença, o alvará da tua
desgraça...
113
— Seu Satiro, me deixe lhe fazerzinho um chá... Bem ali
naquele buraco que durmo, onde faço que moro. Seu estômago está
enrolado.
— Terreno dos Lobos?
— Onde moro? De quem mais?
— Também este buraco aqui no centro da testa é dos Lobos. Os
Lobos, um São João, hão de levar o Boi como penhora, por conta dos
foros do curral. Ainda ontem me foram cobrar o imposto lá na
barraca, como eu não tinha com que, o cobrador: Empenha a flauta.
Pagaste o selo, Pulunga? Essa é a D. Pulunga, rapaz. Gato
antigo do Chão dos Lobos. Tu queres ir com ela no beiçame? Ela é
mãe de caridade. Aqui neste chão ela vai por um tabaco, serve por
uma cabeça de alho, dá pela graça de Deus. Tu és muito
compadecida, Pulunga. Pois então me dá teu chá, onde é o teu cocho?
Vamos, vamos, que te toco a valsa bem baixinho enquanto o chá
ferve. Servido, cavalheiro?
[226] Este quarto. Lá fora a torneira escorrendo, visões do palanque: da serragem e da lama salta o Boi com a sua tropa de veludo,
dourados e arminho, a Fada no ombro do Seu Profeta, pendurando o
diadema, a varinha e a vergonha na lança do Amo, os cordões atrás,
maracás, triângulos, violões, seda e cetim, as plumagens, Esméia, a
Feiticeira, sacudindo o jasmineiro nos zebus que passam, eivém seu
Almerindo com a bacia de louça, o São Sebastião no charão de prata
do Marujo, os peixes do cacuri debatendo-se na montaria carregada
pelos três Garimpeiros, um com a esquisita contrariedade, o segundo
com a ferida no peito, o seu Ribeiro, com a flâmula, recitando: o
beijo, amigo, é a véspera do escarro. A Maria Igarapé levanta a saia,
no seu corpo o ar da serra, o amanhecer na serra, a coalhada na serra;
os currais reúnem com fogo de artifício e com a volta dos tucanos,
coroando o Pedro Chaminé campeão dos Pais Franciscos e a seu lado,
liberta da Santa Casa, aquela Catirina: desinchou, de organdi e
tarlatana, braço dado com esta outra Catirina que vai cobrindo com as
suas anáguas de renda o arraial; oi que febre enxugou a serragem, a
lama, os vômitos do Satiro, os condicionais da professora Nivalda, a
pungente insolência de Ana, a mágoa da Pulunga sempre tão ofendida
quando rejeitada, sempre a troco do-quanto-quiser-dar ou então-nãodê que é tudo que lhe resta neste atoleiro dos Lobos e sabe, com todo
o coração, fazer um chá, altas horas. Chá que necessito para passar
esta febre, esta flechada funda, um chá para arrancar dos Lobos este
chão e estas almas, tapar o buraco na testa de Satiro, fechar aquele
poço onde caiu Joana para que não caia Esméia. A febre queima o
bilhete a lápis [227] nesta trempe, chiam suas palavras ou se
transformam em piolho aqui pelas costelas, aninham-se no umbigo,
palavras de Roberta, a que escrevia o ditado, escrevia nesta pele,
numa urgente tatuagem, o seu nome, o sonho do sapato branco, o
lugar na fábrica de borracha, o baile no Reduto, de repente no Boi,
cantando no palanque, escrevia com as tintas daquele muro no luar, o
sumo de mangue e gelo daquele beijo. O português tossindo. Andam
pelo telhado? A italiana? De dia era espiando pelas rótulas. De noite,
pelo telhado? A espiar sonos, fornicações, insônias, a reles e
imprevisível intimidade, aquelas redes como sepulturas, como se espiasse um cemitério, o do sono; só a menina acorda de repente, salta
da rede: Mamãe! Mamãe! Estou com este sangue. Este sangue,
mamãe! Abre-se a concha, todas as redes sacodem, rangem nos esses.
Um vento pelas casas, agitam-se os mosquiteiros, espalham-se as
sementes, os gritos da menina acordam o cemitério, bebendo aquele
sangue o galo anunciava, e nesta febre escorre, aceso, escaldante, o
sangue, regando a cidade, a italiana pelo telhado flutua como um
pólen, a torneira escorre, o pé da italiana, por muito alvo, acende os
escuros do casario sobressaltado. Subo já e sigo aquele pé no semrumo da noite e de Roberta. A torneira escorrendo é lá longe no
pedral da ilha das Pombas, um banzeiro na quilha do Santo Afonso,
com o tio Antônio no leme, farejando aquela nuvem. Nesta febre
melhor será sair, agarrar-me ao cabo que a moura me lança da janela
114
e arder meu delírio entre aqueles anéis da serpente. Nesta febre das
fogueiras, dos balões, do palanque inacessível, o quarto submerge
num caldeirão. Se de repente, ela... Que febre essa que tu tens, é por
mim? Me deixa ver teu pulso. Põe tua cabeça bem em cima do meu
umbigo, que passa.
Desarma a rede, rede debaixo do braço, tamanha hora da noite
para a travessa do Curro. Ou no rumo do seu Pedro Chaminé?
— Menino! Mas, menino! Estás pegando fogo, criatura!
[228] Levado pela D. Dudu ao quartinho aqui atrás, aqui atrás
tomando um chá, mormaço escuro, igapó fumegante.
Dias sem se dar conta, no quarto, a todo instante morre ou salta
para a rua, entra na barraca de Roberta, caindo aos pés dela. Já não
sabe do mundo, lá fora os ruídos de um universo perdido. Passa o
bonde, a carroça, por certo a mando de Luciana, o rabecão da Santa
Casa apanhando os defuntos do bairro, O búfalo do Dr. Edmundo lhe
traz Andreza morta. O cata-vento range, o cata-vento range, o catavento na cocheira dos zebus. Nesta porta-e-janela esburacada, a
centopeia pelo soalho, goteiras, as paredes suando, escorre chuva pelo
punho da rede, oh, aquele apito do curtume! Vem a velha parteira, só
de camisa, a lamparina na mão, o cabelo solto, curva, encovada,
falando fanhoso: Deixa te rezar na cabeça. Aonde andam as duas
netas? Vai beijar a mão da avó parteira e se encolhe, crispado. A
lamparina espicha a língua do fuligem, tisnando a parede. Febre com
o gosto dessa aflição da avó morrendo atrás das netas, desses trapos,
cacarecos, fumaças, murrão de lamparina, a sombra da louca, a mãe
da Nini, no quintal de lama podre. Um visgo em que se queima, lento,
e se precipita na rede funda daquele irmão lá da saleta do chalé, morto
como ele, não por Irene mas pela donzela do palanque, a que o Boi
comeu. Lá fora é verde, o capinzal defronte, os zebus ruminando ao
pé do cata-vento e suas donas, aquelas duas do colégio das freiras,
bem grávidas, na janela. Roberta a caminho da fábrica ou debaixo do
araçazeiro? Aqui dentro o cata-vento não é senão a febre girando,
moendo o Ginásio, o chalé, o Não-Se-Assuste... Dezoito anos?
Vamos queimar a flâmula, seu Ribeiro, vamos multiplicar essa
contrariedade, Zematias, apodrecer dessa ferida, seu Filemon. Aqui só
fede a mofo. Zuzu flutua na sombra, com a sua melhor laca, peluda na
sombra. Dolores e o tio enrolados na pele da jibóia, puxam a maré pra
cima desta febre. Passa aí fora, Antonieta, e sopra na janela.
[229] Dói-lhe o osso, os escrotos, o sonho, o cata-vento mói
aqui dentro, zumbindo. Um boi urrando? O Estrela Dalva? Pedro
Chaminé raspa o resto da maniçoba na queimação do Boi e o Amo
com a Fada debaixo do araçazeiro. É um boi urrando, sim, um zebu
desmergulha do valão e entra pela
D. Brasiliana adentro. Devagarinho vem a vila, o chalé, o velho
curral das vacas, Maninha guardando os pintinhos no oratânio,
Andreza com a sanguessuga na coxa, e a mãe no campo entre os
bacuraus naquele caminho da pixuneira em flor. Lobo um travesseiro
na cama. Leontina, afilhada do Major, vinha ao chalé, gostando de
brincar com o menino na cama. A mãe acudia: Andem que o vinho de
tucumã já está na mesa. E ia para o Major ao pé do prelinho: Essa sua
afilhada... Deus o livre. Só é inocente quando dorme.
Aquele vinho, um sangue tucumã, põe mais farinha e mel, o
melado grosso escorrendo do pote. A guria se dava como uma patinha
n’água, era aflitivo, o nariz nos cabelos dela que se derramavam,
anelados, plumagem escura. A patinha naquela maré enchendo, as
fitas do vestido se mexiam como mururés na correnteza. Dela o
sempre cheirume, no travesseiro, cheirume de quem acorda suada
com a chuva no zinco e com os cupuaçus abertos no alguidar. A mãe:
— Já, já daí. Só não duvidar, um dia esse travesseiro acaba
tendo filho.
Esta rede, nesta febre, coleia pelas sombras, O rosto de
Leontina é o da Roberta no galho da mangueira espiando o
esconderijo da moura e a moura com o frasco de loção aberto entre os
peitos suados: te capo, pirralho. O cata-vento geme. Nem Ana? As
115
duas netas botaram o pé no mundo? Nini chega da Chapéus, de
uniforme, choramingando, órfã cada vez mais. D. Dudu entra e sai
num ar de tão ocupada, como se festejasse a febre do rapaz e a
desaparição das sobrinhas. Te tenho na mão, diz o olhar dela, que
dizia eu das duas? Não foi? A velha parteira vagueia pela casa,
dobrada e sem voz, saindo a um chamado.
Aqui no atoleiro fervendo, no visgo deste delírio, ouve lá fora,
na calçada, as pequenas da fábrica e do curtume. [230] Trabalham.
Pitiando a borracha e o couro. Trabalham. No curtume, atoladas nos
tanques. Trabalham. Sabina revira os couros verdes, trabalha e vai, de
fita na testa larga, esgulepar na Dois de Junho. E neste tanque quem
me remexe este couro, quem me sacode esta inércia? Visões inundam
o travesseiro, a Fada escanchada na cabeça do Boi, o choco da Maria
Igarapé, o bucheiro daquelas onde toca e cochila o Satiro com a
Pulunga dando-lhe chá, cobrindo-lhe com folha de arruda o buraco da
testa.
— Ei, mea gente desta casa!
Levanta meio corpo da rede e já no quarto: Ei, mea gente desta
casa!, de repente, numa aragem:
— Mas então? Já morreu?
Nem tomou bença, olhando para ela como se fosse pegado em
extrema culpa, tivesse perdido toda vergonha, não merecesse aquela
visita. De novo o som da moringa. De novo a voz de Areinha. De
novo, à boca do toldo, neste mau tempo, o rosto escuro, belo como o
acará-pixuna. Vinha dos seus desmaios no campo, das caminhadas
pela beira-rio, de :sua janela olhando o ingazeiro, para colher do
soalho a ponta deste lençol e tocando, de leve, o punho da rede: Mas
tu nem mais febre tens? A mão, pela testa do filho, sábia e sossegada.
Às perguntas que ela lhe fazia, mantinha-se calado, ou não, sim, sim,
não, confuso, escondendo a febre, como se tirasse de dentro da rede e
depositasse aos pés dela o bilhete a lápis, aquela noite do Satiro e da
Pulunga, o Ginásio perdido. Sentou-se na rede para dizer que... Tinha
de partir para o sul. Largar Belém, seguir para o Rio ou em busca do
tio Sebastião entre as tribos e os balatais. Engole a palavra, deita-se,
ouvindo a fala da mãe, fala festeira, voz de Areinha, da família. A
mãe, mas nem parece! Intacta, sem um sinal daquelas suas noites,
imune ao tempo e à mão, que no que toca apodrece, do Capitão
Edgar. O vestido de florinhas, novo, e seu penteado e suas unhas, o
sapato, seus movimentos... Não muda, ou melhor, se apura. Agora
mãe e filho atravessam o mau tempo, ficam os [231] dois se
enxugando à sombra do miritizal onde o velho avô tira tala para os
cestos. Entra a D. Dudu com a cadeira.
— Conforme se pôde, o doente foi assistido. Até que não
carecia de vir com tamanha pressa. Uma viagem é uma viagem. O
mais arriscoso já passou. Boa travessia, fez? Mas sente, D. Amélia.
D. Dudu mantinha-se à distância, tesa, séria, e seu triunfo: Teu
filho fora de perigo. Chegaste atrasada. Numa cortesia, deixa mãe e
filho à vontade. D. Amélia sentou-se, esquecendo por alguns instantes
o doente para contar da viagem, tão sem mares a travessia, quem
vinha de passageiro, a carga de porcos no barco... Alfredo cortou:
— E o Major? Como vai o Major? — num gracejo brusco,
sentado na rede, contendo uma impaciência. A mãe voltou-se, viu-lhe
a palidez, o constrangimento, curvou-se sobre ele:
— Agora vai me dizer tudo bem contadinho onde e como me
arranjou essa febre na casa alheia. Dando consumição a D. Dudu! Os
tantos incômodos! Vá ver... Tens de ir ao médico.
— Consumição, D. Amélia? Era ou não era obrigação de minha
parte? A quem mais que a senhora confiou ele? Estou-lhe prestando
conta. E me dê licença: pra ele, esta casa não é alheia, não, senhora.
Alfredo se encolhe no fundo da rede, já não sabe se vexado ou
divertido. D. Amélia alteou a voz, um breve rir meio trocista ferindo o
filho.
— Mas então já é um homem, D. Dudu! Ou partiosidade dele
para que a boba viesse a toque de caixa de lá de Cachoeira? Traga,
116
por favor, a sua trena da costura e me tire o tamanhão desse mimi,
tome as medidas, D. Dudu. Só a ele mesmo se confia. Fazendo é de
sua casa hospital, não lhe gabo a sorte, D. Dudu, o que a senhora faz é
de coração. não cobra.
— Bem que cobro, D. Amélia, bem que cobro, então que não
cobro? Ai de mim se não cobrasse. Não costuro fiado. [232] Fiado é
com a mamãe, à volta com os partos e benzições. e com as duas
cachorras, a sina é dela. Eu, não. De onde vinha a farinha? E a
senhora pensa que o seu filho não andou fazendo bem das dele nesta
cidade? Deixe está que devagarinho vou-lhe dando parte dele, na
presença dele pra que me desminta.
— Pois me conte, D. Dudu. Desenrole o seu novelo, que eu
ando um pouco seca pra saber os mistérios, um pouco crua desse
cavalheiro. Ele tão nesta cidade e euzinha lá no pé do meu poço. Me
conte. Um homão adoecendo sem mais nem menos! Foi quarenta
graus de febre ou nem um grau de juízo?
— Pra mim, ele nessa rede, com aquela tamanha febrona... ver
um menino.
D. Dudu falou como se não admitisse contestação, dando o
preço de seu desvelo.
— Febrona? Agora então no que chego eu, ele engole a febre?
Não é duvidando da sua palavra, D. Dudu. É que essa gente nessa
idade o que sabe é fazer dum estrepinho no pé um Deus-nos-acuda.
— Ele bem que variou... Falava sem ligar coisa com coisa.
Esteve feio.
— Falei? — acode Alfredo e logo se encolhe, vexado daquela
situação, com receio de levantar-se e dar um grito com as duas.
— Ou fez foi pregar susto na senhora, D. Dudu? Resta saber o
que ele andou soltando debaixo dos quarenta graus. Qual, D. Dudu!
Menino! E por que me mandou dizer tão tarde, Alfredo? Teu pai está
bem, sim. Anda é com umas coceiras. Aquilo é mais dos catálogos —
todo dia, todo dia!
— da tinta do prelinho, do caruncho da Intendência. E teimando
que é ácido úrico. E tu, meu fino, tens tosse, deixa ver teu olho, me
deixa ver tua língua, tens fastio? Então, menino, não, D. Dudu? O
biguane! Menino!
Alfredo já entende. Debaixo daquela troça, daquele pouco caso,
a mãe arrolha os seus ocultos e põe o filho em [233] brios. Seu olhar,
de vez em quando cauteloso, procura-o com uma certa malícia, como
se lhe dissesse: Bem que te conheço. Ou empenhada em surpreender
no filho o homem que dali saía? Quem sabe não teme perder para a D.
Dudu aquela atribuição de conhecer o filho mais que ninguém? Tanto
tempo longe dele e ele com a D. Dudu tão junto.
— Olha, desta vez te trouxe... Adivinha! Adivinha!
O filho não adivinha.
— Mas roubado, viu? Bem roubado...
O filho não entende.
— O Dicionário de Latim, rapaz! Que era que eu mais podia
roubar do teu pai? Tanto que mandavas me pedir.
Alfredo se arrepiou. Nada mais lhe resta senão se levantar da
febre e partir, embarcar. Subir aquela escada do Liceu nunca mais.
Mas como dizer-lhe? Não dizia o tio que eIa no chalé só via era o
filho entrando e saindo, toda manha no Ginásio? Era arrancar da mãe
a última confiança. Vai, quem sabe, romper o último laço que a
prende ao chalé e entregá-la inteiramente ao seu demônio.
D. Dudu vem com o café.
— Pois muito bem, D. Dudu, deu a mão à palmatória, já que
consumição não foi, foi gosto, lhe agradecer não lhe agradeço. O
doentinho é seu. Serve de pago. Fique com essa prenda. Empregue ele
para abrir vala no quintal, tirar goteira, embarrear buraco de parede,
capinar na frente de casa e acompanhar a D. Santa pelos partos com
um farol na mão... Fique com essa prenda.
D. Dudu, mãos na ilharga, cabeça lá em cima, olhando de cima,
ganhou intimidade:
117
— Tudo passado no papel? Selado?
— Selado e sacramentado. Uai, D. Dudu, não lhe disse que é
seu? Pois carregue o peso.
— Não apoiado, D. Amélia, o seu filho, o mister dele...
— Mas o Dicionário? Aí na mala? Ou está brincando? —
cortou Alfredo.
[234] — Querias que eu carregasse ele no colo toda a viagem?
Ou num aturá na costa?
Tão confiante! Nada lhe pergunta sobre o Ginásio, segura do
caminho dele, trazendo-lhe o Dicionário, escondido.
D. Dudu coloca-se de parte, já sem contestar mais nada. E de
repente:
— Hora do teu chá, aquele-menino! Espera...
— Não, D. Dudu. Deixe que mamãe...
— Tua mãe aqui é só visita, rapaz. Não te dei alta.
D. Dudu retirou-se, apressada. A mãe só fez foi sorrir, abriu o
baú e tirou o Dicionário. Roubadinho, hein? Hein?
O Dicionário grande, o patriarca da estante, o pé de meia da
ilustração do pai. Roubado. Nos braços estendidos, como um cofre
repleto. No instante em que se curva sobre a rede
— Mamãe, perdi o Ginásio —, range a rede na escápula, passa
o bonde, o Curro, arrastando-se para o fim da linha, move-se o catavento, entra a D. Dudu com a tigela de chá. Agora com o livro na
mão, pesado, como se a vergasse um pouco, D. Amélia encara o filho
que toma o chá, franze a testa, fica olhando o livro como se lhe
tivessem proposto um enigma ou aguardasse a D. Dudu sair do
quarto. Que ele devolve a tigela à D. Dudu, toma, entrega-lhe o
volume e se escora no esteio que separa o quarto da sala. Alfredo sustenta no braço o cofre já vazio.
— E essa febre? Quantos dias?
Alfredo não responde, alisando a capa vermelha, o Dicionário
cheira um pouco a cânfora. A mãe volta ao baú e vem com um
embrulho:
— Também te trouxe isto, um morim espora tirado lá no turco,
te fiz um lençol. Marquei tua letra. D. Dudu precisou chamar médico?
Fez conta na farmácia? Teu tio passou por aqui, te adiantou algum
dinheiro? É certo que estás ensinando? Mas, meu filho... Febre, que
seja febre, não tens mais. E é só febre? Foi? Me fala verdade.
— Perdido. Perdido.
[235] E quer com isso, obscuramente, culpar a mãe, vendo-a
solta no campo, desfalecida no caminho do gado, levada ao chalé pelo
bandido, e todo o silêncio dela (Fale, mãe, fale a sua verdade), do pai,
de todo o chalé... Também mede com isso a própria culpa, é certo ou
só agora acorda de seu descaminho. A mãe desembrulha o lençol sem
pressa, cuidadosa em guardar o papel de embrulho acetinado e o cordão:
— Teu pai sempre diz: vintém poupado... Sempre aquele teu
pai. — Subitamente Alfredo vê nos olhos dela o primeiro filho
afogado. Mariinha morrendo... Quer pegar-lhe a mão, vira-se, sacode
a varanda da rede contra as moscas, torna a sentar, a mãe desdobra o
lençol.
— Quando recebi o recado, eu estava no pé do poço, puxando
água. Lá no jirau dela a Isabel era escamando peixe, O recado veio
com o filho da Marcelina que passava do trapiche. Depressa dei um
pulo na ponte atrás de qualquer passagem, fosse lá no que fosse que
descesse. Larga-não-larga, estava a Boa-Esperança, carregada de
porcos. Tenha paciência... como é sua graça? Ah, seu Fileto. Seu
Fileto, não desatraque antes que eu ponha o meu pé no seu convés.
Até que quem me ajudou a passar a ferro foi a Isabel. Coitada, me
carregou o baú até o trapiche e ainda queria te mandar uns tamautás
salgados... Deus me livre! E olha que de me assustar não sou.
118
Baixa a voz, confidente, e Alfredo sabe que ela quer dizer outra
coisa, fazê-lo confessar tudo, essa delicadeza da mãe o exaspera. Ela
desdobra o lençol sobre a rede, cobrindo o filho com aquele cheiro de
roupa lavada de chalé, limpezas da mãe, a mão de Isabel, a
escamadeira de peixe no jirau. Debaixo do lençol, choro e ímpeto de
sair porta afora, reprimia, O Dicionário pesa-lhe nas pernas como um
grilhão.
— Pra te falar a verdade, nem me lembrei de dizer à Isabel que
aquecesse a janta do seu Alberto. Mas que aqueceu, aqueceu, aposto.
Ou eu disse a ela? Seu Alberto: vá ver, não é nada. Ele já pegou
sarampo? A Isabel: deixe [236] estar, D. Amélia, que hoje mesmo
acendo uma cera em tenção de São Expedito da finada Lucíola. Na
Bahia ficamos foi de bubia, bote... Valha-me Deus, que caíazinho um
vento... Rodolfo, esse, a gritar da beirada, me fazendo uma
encomenda (coitado, sempre esperando ocasião de ter um papel pra
imprimir o jornal que compõe e desmancha, desmancha e compõe) e
a Benedita, essa: Madrinha, me traga um par de brinco que aqui lhe
pago. E Mercedes me pedindo que eu não deixasse de ver a sobrinha
dela lá no Orfanato. Ah! Eu com que cabeça?
Senta-se, como aliviada, cruza os braços:
— Mas então, essa tua febre, de que, de onde?
Levanta-se: morreu? Vai à janela: de um moinho de vento como
esse é do que estou precisada no chalé, volve ao quarto, recolhe o
lençol, dobra-o com aquela habilidade que o filho tão bem conhecia,
O filho, estirado na rede com o Dicionário nas pernas, bate as moscas
da tarde quente.
Entram dois senhores com a D. Santa nos braços, encontrada
caída na estrada do tina. Juntou gente na calçada, já invadindo a casa.
Alfredo desarmou a rede, fugiu para o quartinho dos fundos. Não
demorou, Dalila e Ana chegavam. Entrou seu Pedro Chaminé. D.
Amélia apanhou o bonde em busca do médico. A casa encheu. Pouco
antes do Utinga apitar as nove, a velha parteira expirou.
Alfredo saiu do quartinho para a sala onde já não cabia mais
ninguém. Disputando a única janela, aqueles rostos da rua, o rosto do
Una, do São João do Bruno, do Valha-me-Deus, e em todos o barro
dos Lobos. Outras cabeças atrás se comprimiam. No quarto cheio, já
preparada, a defunta na esteira. Alfredo descobriu-lhe o rosto à luz
das velas: só pele e osso, múmia tapuia em que se via ainda a pacífica
obrigação de servir ao próximo e a obstinada busca das duas netas.
Ana está de joelhos, suando, inclinada sobre a avó, uns olhos.
vorazes, o beiço insolente. Escorando-se na parede. Dalila ainda
apalermada. Veio D. Amélia:
[237] — Alfredo, sai deste abafado. Isto aqui bem não te faz.
O quarto fedia a remédios; ardia ao canto um fogareiro de barro.
Coberto por um pano o espelho da parede. No oratório, os santos
espiavam. Alfredo correu os olhos pela sala. Trepada no banco, Nini
pendurava o candeeiro grande do vizinho no prego do esteio.
Cumprimentou a mãe de Roberta. E eu, como nunca tivesse
febre nem nada? Chegou o caixão, estabeleceu-se o velório, vieram
cadeiras e bancos da vizinhança. Alfredo preparou os dois castiçais.
D. Amélia trouxe o crucifixo e Bina, a feia, num vestido bem colado,
pastosa de talco e suor, entrou com uma braçada de angélicas. D.
Amélia pediu que evacuassem o quarto onde armou a rede para a D.
Dudu que preferia o quintal, preferia ficar no tempo.
— Ou entregar a ossada pras cachorras.
— Não, D. Dudu, agora eu. É a minha vez. Deixe por minha
conta. Descansezinho um pouco.
No quarto, sentada na rede, dura, calada, D. Dudu parecia alheia
a tudo, como se a presença das duas sobrinhas a tomasse insensível à
morte da mãe. Ou a morte da mãe, para seu maior triunfo, consumava
a profecia? Seu pé de meia pagava os funerais, as cuecas do Bon
Marché pagavam. A Santa Casa aqui não pára a carroça. O rabecão
leva eu sei quem... Obra de Deus esse tombo no Una, esse fim mais
119
cedo, a vê-la pelo escuro e debaixo de chuva atrás das duas
vagabundas.
Mais mães entravam com seus filhos pela mão e no colo,
algumas sentavam-se no chão do corredor para o resto da noite.
Outras iam à cozinha preparar mamadeiras ou oferecer-se para um
serviço. A criançada principiava a correr e a chorar pela casa toda,
derramando-se pelo quintal.
— Sai daí dessa lama, meu filho! Seu demoninho, sai da lama!
— gritavam. Alfredo via a velha parteira cercada de mães. curumins
chorando e correndo, ninhadas que pegou. Bem que merecia aquelas
vozes, era como se estivesse [238] escutan|do, melhor que entre os
anjos. Alfredo ia na sala, ia na cozinha, entrava no quarto, passando a
mão no queixo, diabo desta penugem no queixo, viu-se cabeludo,
saindo daquela fornalha que nem caldereiro. Varou a cerca, foi ao
vizinho, seu amigo Oscar o levou ao banheiro; a tina, cheia, que
entornava. Oscar lhe deu a chaleira quente:
— Pra quebrar a friagem. Tira esse limo. Essa graxa da febre,
essa sarna da Roberta.
— Água de poço por que trava? Quando vamos ao aviso do teu
pai?
— Fosse do meu pai, fazia ele navegar para Paramaribo,
carregar seda. Toma o sabonete.
Ah, banho! Lhe restituía o alvoroço de viver, tirava a flechada
do peito. Isto lhe dava o preço do mundo, do que tinha a fazer. Varou
a cerca, chegou ao quartinho escuro, dá com a Dalila a um canto atrás
duns panos na corda, nua-nua se passando cheiro. De toalha passada
no corpo se aproxima dela, cochichando:
— O pajé te dava banho quando soubeste?
Lá fora a voz do seu Bahiano:
— O charão às ordens. Às ordens! Pra servir o café, às ordens!
Às duas primeiras palavras quase festivas, seguiu-se um pesame
de voz lenta no silêncio da sala em que o charão fazia brilhar a sua
prata.
— Ah, D. Santa! Inda ontem rezou na cabeça da mea patroa.
Toda vez que lá passava, me abençoava. Abençoadeira que só ela.
— Também de lá nos abençoa. Nos abençoa a nós todos —
atalhou a senhora que fazia assoar o filho, dava palmada no outro por
querer este por força ficar com o charão. Um estivador entregou a D.
Amélia um embrulho de café. De paletó e guarda-chuva, vindo da
União Espírita, entra o seu Ribeiro alisando a careca:
— Na porta de casa soube do desencarne. Ela? Mais um espírito
de luz, lá em cima, por nós. Mais do que fez nesta [239] nossa tão
curta passagem pela terra, no além ela fará e eternamente.
Limpou os óculos:
— Esta vidinha material! Esta vidinha material! — e puxou pela
manga de Alfredo, agora num cochicho:
— Mudou-se de lá? Doente? Temos, domingo, uma excursãozinha a Marituba.
— Boa noite, D. Brasiliana.
Aquele perfume na sala só uma pessoa podia usar no bairro: D.
Brasiliana, de lamê preto, o penteado alto, uns graúdos brincos
verdes. Indagou de Nini:
— O enterro?
E no ouvido da moça:
— Qualquer coisa, às ordens. Às ordens.
E alto para toda a sala:
Às ordens. Não façam cerimônia.
— Não é preciso, não é preciso — exclamou Nini tão ofendida,
lhe tremia o beiço. — Não é preciso. — Tremia o beiço, a voz tremia.
— Às ordens. D. Santa, o bem que fez! Morreu acudindo gente.
A quem se não deu a mão nestes buracos? Era o socorro em pessoa. A
120
rezadeira que era! A falta que vai fazer nesta nossa carecência de
tudo...
As mães se acotovelavam com desagrado e impaciência: Essa
intrusa. Ali mães pariam, assistidas pela velha e agora, de lamê e
penteado de gala, intrometia-se a manina do contrabando a falar em
nome delas, a abrir subscrição para o enterro e debaixo daquela
perfumaria como se viesse da Primeiro de Março... D. Brasiliana,
indiferente ao olhar das mulheres, ficou junto do caixão, muito
formalizada. Ao despedir-se de Nini, então fez que deu com a
presença de Alfredo, armando um pasmo:
— Assim tão pálido? Que foi?
As mulheres seguiam os mínimos movimentos da taberneira. D.
Amélia até assustou-se com aquela crioula no trinque que lhe estendia
a mão, respeitosa:
[240] — Conheço já a senhora de vista, sim. Mas ele? Andou
doente? Tão pálido!
D. Amélia só fez sim, sem sorrir, com boa maneira, pedindo
licença, chamavam ela da cozinha.
— Às suas ordens, lá na nossa quitanda, minha senhora.
D. Amélia piscou para Dalila que viera espiar a sala. A moura
tirou de dentro do peitilho o leque negro de pontas douradas, abanouse agitando a luz das velas, o que mais danou as mulheres, e com o
leque, séria, tocou no Alfredo que tentava evitá-la.
— Pode me levar, não for incômodo até a parada, sim?
Saiu debaixo de todo o olhar do velório, como se saísse de um
baile, rompendo caminho no sereno apinhado. Alfredo acompanhou-a
em silêncio, pouco atrás dela, não trocaram palavra. O bonde por
sorte não demorou.
Voltando à sala, o primeiro olhar sobre ele era de Ana como se
lhe dissesse: Mas nem diante do cadáver? E engrossou o beiço,
engoliu o cuspo, à cabeceira da avó, olhando as ceras pingarem nos
castiçais. Ainda nem sabes, rapariga, que ela tombou ao teu peso, por
ti, em tua busca, por ti a toda hora, e por ti se acabou? Fazedeira de
velório dos outros, faz agora o da tua avó. Alfredo remoía a
indagação com uma gana de arrastá-la ao quintal, dizer-lhe tudo, cara
a cara ou... As velas a modo que avermelhavam o rosto de Ana, nem
um sinal de culpa, medo ou abatimento, seu rosto dominava a sala,
projetava a sua luz nas faces da defunta. Alfredo voltou-se, viu, e fez
um gesto de incredulidade: A italiana? Também a italiana? Sem dar
boa noite, de bandós, vagarosa, esquiva, inclinou-se sobre o caixão,
rezando. Alfredo via nela um ressentimento que a levava a rezar
assim:
Não esperaste minha vez, velhinha, me farias um grande parto.
Rezou, e sem olhar para ninguém, retirou-se, apressada, como uma
dançarina. Alfredo seguiu-a e dela só trouxe um breve gesto quando
se voltou no escuro para ele ou por nada sumiu.
[241] Seu Bahiano servia café no charão de prata. A romaria se
avolumava. Entravam famílias, mães solteiras, a Maria Igarapé, a
Pulunga e foi que também entrou, Alfredo reconhecia: A tal
Antonieta, a que soprava para dentro das casas, afinou, com seu
sopro, a flauta do Satiro, aquela tal, neste instante se debruça sobre o
caixão, chorando. Blusa lilás, saia branca, o cabelo à Nazareno, a
chinelinha amarela. Chorando. Seu Ribeiro limpava relimpava os
óculos na manga do paletó. Diante do crucifixo, a mulher se benzeu, o
rosto molhado, murmurou à Nini: Meus pêsames, saiu como
acossada, seguindo-se o repentino boa noite alto, do seu Ribeiro a
tropeçar no batente, amparado pelos estivadores que guardavam a
porta, Cristo vos lhe pague! Cristo vos lhe pague! E a que horas o
enterro? Lá se foi atrás. Com seus jasmins e suas parceiras, entrava
Esméia. Tentavam varar o aperto em torno do caixão. Roberta? Nem
no sereno. A mãe dela se aproximou:
— Ela que me pegou a Roberta. E também o outrozinho. E
olhe, seu Alfredo, chegou a ocasião, tenho um assuntinho a lhe falar.
121
Alfredo, fugia-lhe o sangue, quis levá-la para o sereno, agora
impossível de atravessar com tanta gente.
— Não, não, aqui, aqui mesmo, Roberta lhe falou não?
— Tempo que não vejo Roberta, D. Domingas.
D. Domingas se esticou para falar-lhe ao ouvido:
— Pois o assunto é o de me dar umas aulinhas em casa, de
noite, pro meu filho, o Raimundo, que me anda tão rueiro! Pode? De
noite? Me ceda duas das suas noites, é o bastante. Pagar justo, vou já
lhe desenganando, lhe pago, não. Mas lhe pago no que for do meu
alcance. Pensa que não sei que quem desemburrouzinho o irmão
daquela semelhante índia da jaqueira foi o senhor? Sim, aquela que
usa a folha de bananeira feito tanga. Agora é a minha vez. Roberta, na
fábrica, botou de vez a pedra em cima de livro. Agora, de noite,
aprende violino. O senhor pode?
— Não, D. Domingas. Vou embarcar.
[242] — Ali, embarque, não... Roberta, é o que diz sempre, que
o senhor é um professorzinho e tanto.
Um professorzinho e tanto! Violino! Aprendendo violino! À
noite! Um professorzinho e tanto! As crianças choravam, faziam
pixixi pelo soalho. Todos suavam. A janela carregava aqueles rostos
de fora, pesados, parados, amarelos. Seu Bahiano trazia da cozinha o
charão cheio, agora à janela, servindo o sereno. Dentro, na rua, na
calçada, naquela aglomeração, Alfredo descobria o Satiro com a caixa
de flauta, o seu Quintino Profeta, o Pedro Chaminé, a Catirina, toda a
tropa do Estrela Dalva, caras do Não-Se-Assuste, e maridos e
companheiros, pessoal de oficina, carrinho de bucho e estiva. Será
que daí sai tacacá, sai cariru, sai dominó e roda de bisca no sereno?
Sabina, a do curtume, afobada, sem nem olhar a defunta, varou o
corredor para tomar a bença da
D. Amélia na cozinha repleta e fumacenta. Ali ficou, ajudando a
lavar as xícaras e toca a perguntar sobre Cachoeira. Olhe, madrinha
Amélia, seu filho, uma vez, pois não foi que me ofereceu uma rosa?
Eu ia a caminho do curtume e quando vi seu filho me fazendo
presente de uma rosa. Alfredo no corredor: A professora. D. Nivalda
acompanhada de duas alunas.
Por obséquio, faça ciente à família para me desculpar... pois não
poderia passar a noite. Pudesse, passaria. Mas já rezei meus sete
terços. Meus sete terços. E o senhor? E o senhor? Nem para me
mandar dizer! Por quê? Os seus alunos tão ansiosos...
A morte da velha parteira foi o pretexto para vê-lo, via-se nos
atrapalhados olhos dela, na canseira, no tremor das mãos. Com pouco
retirou-se, já arrependida de ter vindo, depressa, meninas! Depressa
que está trovejando e ia ficar só, como sempre, na velha casa, ao peso
do seu comandante e suas viagens.
Pelo braço do marido que capengava e trazia um embrulho,
entrou a custo uma senhora grávida.
[243] — Que será de mim, de mim que estou em véspera do
quarto e sempre contei com ela?
Espremeu-se na sala à cunha, roçou a barriga alta na tampa do
caixão como se isso lhe desse sorte.
— Entrega o açúcar, meu filho... Como está de flor, não? —
virou-se, já incorporada às outras que iam fiando e desfiando seus
velhos assuntos, já íntimas daquela morte.
— O bonde parou defronte! — exclamou a Esméia aparando os
jasmins que lhe caíam do cabelo e todo o velório se voltou para o
bonde parado, bem defronte. Saltou o motorneiro com a chave na
mão, entrou. A linha do bonde queria custear o enterro.
— Os meus três filhos? Os dois da minha cunhada? Os cinco de
minha irmã? Tudo berrando na mão dela. Na mão dela. Sem falar dos
meus colegas.
Ana, que acendia outro castiçal, bruscamente fugiu num choro
surdo. Passou pela porta do quarto onde estava a tia e Alfredo viu a
costureira levantar-se, metendo o pé na chinela.
— Quer café, D. Dudu? Café no charão de prata?
122
D. Dudu empertigou-se, o rosto seco, lívido, sorriso lívido,
sentando-se; Alfredo deu um embalo à rede que pesava.
D. Amélia se chegou para o filho:
— Não abuse do sereno, olhe... Fique aí conversando com a D.
Dudu. O seu Bahiano, entre aqui com o seu charão.
Incessante mãe, guardando seus tormentos, dona da casa alheia,
a trazer do quintal a Ana, a fazê-la sentar ao pé do fogão, a passar-lhe
a mão no cabelo. A ordem que dava ao velório!
Seu Bahiano continuava a servir café no seu charão de prata e
assim foi até horas altas quando, com receio de D. Amélia, se meteu
na roda aqui fora, do Quintino Profeta, bebeu enfim a sua talagada.
Dois dias depois do enterro, o embarque da mãe no Ver-o-Peso.
Fique com estes duzentos mil réis e veja lá o que é [244] que vai
bem, a cabeça não é minha, é sua. E a carta pro seu pai? Escreva, Só o
que disse a mãe no instante em que Alfredo lhe tomava a bença. O
filho a sete chaves, sem uma palavra, uma razão. Ia embora a mãe
para as noites do chalé. A canoa ganhou o largo, dobrou a vela e tudo
ao pé do Necrotério ficou vazio, irremediável.
Sacudia as sete chaves caminhando para o Curro.
D. Dudu, no quarto, cosia o seu luto e o rancor contra as duas
sobrinhas. Estas pelo bairro, espalhadas, com o fantasma da avó atrás.
Ia vender o Dicionário de Latim, cobrar os atrasados da escola e
partir. O professor de geografia lhe falara de sua amizade com um
comissário de bordo, o do Duque de Canas, que voltava de Manaus.
Fácil encontrar o lente na terrasse do Grande Hotel tomando gim.
Subiu na Brasiliana. A moura saia do banho. Os pombos
arrulhavam no telhado. Os tajás na janela exalavam a sua magia.
Menino! Mas menino!
Ela agora insistia: Espera só um pouco que embarcamos juntos.
Só um mês e embarcamos. Vai comigo. Estou caladinha me
preparando pra voar de uma vez deste galinheiro, de Belém, deste pé
de vala. A vala é cavando debaixo da taberna cada vez mais fundo.
Um dia é tudinho abaixo, poço adentro. Embarcamos para a Guiana.
Estou só à espera do Cassiporé. Vem comigo que te abro os
caminhos. Me farás companhia, e te dou o estudo, esta garupa, até
que me abandones... Espera, espera que inda te quero dizer mais...
Ia vender o Dicionário. Passou pela casa do Ribeiro que lia o
livro sobre Messalina. Na cadeira de vime. O Sagrado Coração de
Jesus na parede, o Allan Kardec no banquinho:
— Cidadão! Cidadão! Esgotada mas não saciada! Cidadão! Ah,
Roma! Ah, Roma!
Ribeiro trazia no rosto o sopro da Antonieta.
Entrou em casa, andou pela cozinha, bebeu um café frio. Nini
acudia: Estalo já-já dois ovos, sim? Bateram palmas.
[245] — Professor, pro senhor falar com ela lá no canto da
travessa do Curro.
Ao aproximar-se do ponto, foi esmorecendo, quis fugir. Vendo
a esquina deserta, afoita-se pela São João. Noutro lado, em
companhia da prima... Noutro lado. De vestido branco, de sapato
branco. Noutro lado.
Fingia não vê-las. As duas vieram vindo pela quadra,
atravessaram a rua. Param na esquina. Alfredo passa rápido, o cordão
do sapato desmancha-se. Diabo!
— Rico? Já nem conhece os pobres... — falou a prima.
— Ah, não repare... Passeando?
Amarrou o sapato, emparelhou-se com a prima que se
distanciou da companheira.
— Tinha mas era gente no enterro, não?
Atrás, a outra desatava a fita do cabelo, parou, de costas
dobrando a fita.
— Um enterro tão bonito...
— Sua prima que me mandou chamar?
123
A moça fez sim com a cabeça e se esquivou, correu, escorandose no muro da horta. Roberta, atrás, ata e desata a fita, eivém
vagarosa.
— Me mandou chamar?
— Eu? Quando? Eu? Foste tu, Geralda?
Geralda riscava o muro com a ponta da sombrinha sem dar
resposta.
— Não foi seu o recado? — indagou Alfredo, muito cavalheiro,
fazendo cerimônia.
— Mas que não foi, que eu me lembre... Eu?
— Então desculpe, boa noite.
— Desculpado, boa noite. Amanhã devolvo seus papéis.
— Pode queimar, queime, jogue no fogo.
— Jogando no fogo enfeia sua letra, eu, não.
— Enterre no quintal.
— Olhe que grela um pé de urtiga...
— Enfeite o Boi com ela.
— Quando é o embarque?
[246] — Adivinhando?
— Mamãe que deu com a língua. Adoeceu que adoeceu
mesmo? Não soube, senão lhe mandava o meu médico.
— O Pedro Chaminé, o Pai Francisco?
— Não uso. Que que não posso lhe mandar um médico?
— Bom não ter mandado. Senão era o meu aquele enterro.
— Quem me dera eu dispor da morte... Então sou eu quem
manda a morte? Fale sério, adoeceu mesmo?
— Não. Mas vou embora.
— Não antes de ensinar meu irmão, só umas noites. De. pois,
sim, me apresente a conta e corra que o navio está largando. Mamãe,
eu sei, que lhe falou.
Alfredo não respondeu.
— Até eu se quisesse... se ainda quisesse, até eu... ficava de
aluna. Só de aluna. Mais, não.
— Não estou lhe pedindo nem menos nem mais.
— E eu? Se quiser ensinar meu irmão, ensina, está na sua
vontade, o saber é seu, ninguém lhe tira à força. Sim, que pagar nós
pagamos. Para isso estou na fábrica. Faço serão. Suplicar não suplico.
Suplicar? Eu? Vem, Geralda!
— Era esse o assunto?
— Que outro mais, então? Eras! Era outro assunto, Geralda?
Geralda!
Geralda, ao pé do muro, cantarolava:
Vou-me embora, vou-me embora
Mineiro pau... Mineiro pau...
Na segunda para a terça
Mineiro pau... Mineiro pau...
— Que é que tem essa tua fita, que põe e tira, tira e põe...
— Os incomodados... Com ela trago a morte amarrada. Não sou
eu quem manda na morte?
[247] — Bem, já está tarde. Pode o Boi nos pegar conversando...
— O Boi! O Boi! Quem aqui falou em Boi? A morte é o Boi?
— O Boi é o Boi. O diabo te livre da chifrada do Boi.
— Não aprovou, professor?
— Quem sou eu para aprovar ou desaprovar. Não foi a Fada?
— Quem que está lhe pedindo opinião? És tu, aí, Geralda?
Deu as costas, passou a fita pela cintura, jogando o seu
escárnio:
— Então vai deixar Belém... Cada um procura as suas
melhoras...
— Assim me consta.
124
— Que vai ser de suas apaixonadas?
— Cairão todas no poço.
— A primeira que se atira é a professora...
— Assim espero.
— Deixe está que pingo um veneno no chá da desconsolada.
— Deixo-lhe uma procuração. Ou basta que você cuspa no chá?
— Ou sua viagem é alizinho onde tem uma jaqueira, onde tem
uma Eva, onde... Ou sentou praça? Espere um pouco, com licença.
Correu para a Geralda, cochichou-lhe, e voltou como
aborrecida, abrindo a boca com sono.
— Ah, e os meus garranchos, queimou? Os meus erros de
ortografia?
— Bem, vou embora.
— Se não diz pra onde, é que não vai pra parte alguma. Vai o
que...
Fez muxoxo:
— Por mim... que que tenho com a sua viagem, se vai não vai,
fica não fica. . . Geralda!
[248] Sapato branco, vestido branco, descida do palanque.
Laçava o pescoço com a fita sem sossego. Olhava sempre para o
outro lado. Era outra a voz? De quem atravessou a fábrica, os bailes
do Reduto, o Boi, o som do violino. A prima, escorada no muro:
Vou-me embora, vou-me embora
Mineiro pau... Mineiro pau...
— Geralda, vem cá, sua mineiro pau... Tão ruim não ter tido
serão hoje...
Deu uma volta, veio vindo:
— E olhe aqui, se alguém lhe mandou chamar, está uma aqui
que não foi. Se julga que fui eu, come coco.
Caiu-lhe a fita da mão, Alfredo apanhou-a.
— Me dê a fita que senão não amarro a morte...
— Amarre, tome... Sem mais adeus, sustente o diadema.
— Agora-agora que vai embora?
— Agora.
— Ali pra a garapeira? Pra sua rede? Por causa do sereno?
— Indague de sua varinha... Ou tudo acabou no palanque?
— Hein?
— Debaixo do araçazeiro?
— Me diga quando, que eu e a Geralda, não é, Geralda?, vamos
nós duas ao seu embarque. Ah! Já vai...
Cadê teu lenço, Geralda? Adeus, professor Alfredo...
— Ai, que não sou merecedente — gracejou Alfredo, abrindo
os braços como para recebê-la, restituída, tirando-lhe o sapato branco,
partindo em dois o violino.
— E meu irmão?
— Mas se estou com o pé na prancha?
— Nem uma, nem que fosse uma noite? Que foi que disse?
Debaixo do araçazeiro?
[249] — Já tirei passagem. E o seu violino? Já executa?
— Que araçazeiro é esse?
— É que nada mais temos a dizer, não é, Roberta?
Um no lado do outro, parados, debaixo do araçazeiro. A prima
correu do muro:
— Já se entenderam?
— Entendemo-nos — disse Alfredo afastando-se, com um
aceno, logo dobrou a esquina. Apanha o bonde, encontra o lente
encharcado de gim na terrasse do Grande Hotel. O Duque de Caxias
voltava de Manaus.
Do Quinze de Agosto, embrenhou-se pelas transversais, viu-se
no largo de Santana, de repente no Reduto, tornou ao largo da
Pólvora, dobrou a Dr. Moraes, desceu pela Rui Barbosa, parou diante
do capinzal no Igarapé das Almas, ali um tempo na boca do escuro-
125
escuro, ou da baía que a mãe atravessava, devolvida ao rio, às noites
de Cachoeira.
Já pela São João, parou no ponto para sempre perdido.. Aqui é
debaixo do araçazeiro.
Acercou-se da barraca fechada. Pelas frestas luz na salinha. D.
Domingas. D. Domingas tossiu. Com pouco a luz apagou.
Em casa, entrou no quarto, D. Dudu, sentada na rede, mais de
pedra parecia.
[250] Terceira vez a campa, lá embaixo o cais, o seu Ribeiro. já
miudinho, o Filemon, com a sua ferida, o Zematias doente de sono e
da contrariedade esquisita. Fazendo-se de muito alegre, o Oscar
acenava, quem sabe a repetir: Vou te ver no meu aviso de guerra. No
meu aviso de guerra. Bina, desconfiou que Bina... Era? Se fosse Ana?
A campa recolheu-se aqui dentro batendo longamente, esse monstro
engoliu-me, os guinchos calaram, lá em cima os salões, a proa
implacável. Aqui nasço de novo, um outro hei de ser. Nunca havia
entrado no ventre de uma nave, leu isto, folheando velhos volumes do
sebo, já não sabia que livro, nunca havia entrado no ventre de uma
nave. É a minha pele de jibóia. A cidade é aquela? Em que rumo é o
chalé? Separei-me de mim, agora que me precipitei neste bojo. Salta
das águas revolvidas a jibóia com o tio dentro. Estamos passando
defronte da José Pio? Do estaleiro? Do aviso de guerra para sempre
encalhado, onde marujos assinam o ponto, lixam os metais, dormem a
sesta, sonhando com um palpite de bicho? Do curtume? Da praia,
onde aquela menina queria emprenhar do rio? Ana, no trapiche,
murmurando a praga ou espera o seu boto no camarote de um dos
navios mortos no Curro. Esméia debaixo do jasmineiro? A sombra da
jaqueira cobre a nudez de Zuzu. Da torre de contrabando, a moura
assesta o binóculo. Vamos juntos para a Guiana. Em primeira no
Cassiporé... Vamos, até que me abandones... Até que me abandones...
Agora é neste silêncio em volta, os rumores do navio se tornam
surdos, ou não anda? Verdadeiramente só [251] e capturado. Estamos
defronte do Mosqueiro? Agora é ter em conta essas pessoas ainda sob
o espanto do embarque e da viagem, ainda não se sentem a bordo,
esse-um alto, o rosto comprido, aqui ao pé, sombrio, sossegado.
Desce à terceira, engolido subitamente pelo porão, desce como uma
carga. Os beliches, uma enfermaria indigente, em tudo um pegadio
imundo, as caras subterrâneas. Subiu ansioso, falto de ar e olha para a
cidade que não tem mais. A proa devora o rio selvagem e tudo atrás, o
Não-Se-Assuste, Boi, Chão dos Lobos, aquela fita no cabelo, fica na
mesma sepultura de Luciana. Nem uma palavra à mãe que carregou
para o chalé o Liceu perdido, o mistério da febre e da viagem. Aqui
na popa, olhando o turbilhão da hélice, como dormir, ou manter-se
acordado? Lá embaixo é percevejal, aí em cima os salões, os
escaleres, a impassível hostilidade de tudo. Voltou à terceira. Fedia.
Aqui embaixo da escada, ao pé da mesa, junto de malas e sacos, tem
um banco. O pardo de rosto comprido, descendente de boliviano,
conversa abafado, confuso, e desaparece no forno dos beliches. Aqui
é o dormitório dos homens. Ali o das mulheres. Melhor este banco
que o beliche. Nele estira-se, arrepiado, ao peso desta insônia. Ou não
deixou no cais aquela carga? Ou toda a bagagem comigo é o chalé, a
mãe, o pátio do Liceu, a Maria Igarapé deitada no igapó, por
travesseiro a serra do Maranguape? Dói a cabeça neste banco duro.
Com a cabeça nesta pedra, á Jacob, subo na tua escada? Subiu para a
popa, o hélice revolve um breu escumoso. Por toda parte, lá fora, é
treva e sono. Nem céu nem margens. E de uma luzinha da canoa ou
da palhoça numa ilha vem a D. Dudu na rede, de pedra feita. Ao
despedir-se dela, escutou: Que tu vais fazer tão de repente e tão longe,
menino, mal saído de tamanha febre? Que te deu na cabeça? Te olha
no espelho. Estás ainda seco, verde da febre, seco e verde... Andou
em busca de Ana pelo bairro, não encontrou senão o Satiro na esquina
com a sua flauta, Pulunga a dar-lhe o chá e passar-lhe a mão na testa
esburacada. Foi jantar no seu Ribeiro, aquela comidinha tão da velha
[252] mãe do seu Ribeiro. O amigo lhe abriu um vinho e falou no
126
filho pródigo, na reencarnação, em Messalina e Sodoma. Não olhe
para trás. Não olhe para trás. E agora debruçado nesta popa em sal me
tornei. Que será depois de Maranhão? O professor de Geografia a
bordo falou ao comissário e este muito atencioso: Vamos ver o que se
faz, vamos ver o que se faz. Para facilitar, compre uma passagem de
terceira até o Maranhão. Até o Maranhão. Depois serão tomadas
providências. Vamos ver o que se consegue. Uma passagem para o
Maranhão. Vamos ver o que se consegue. E nesta insônia amanhecia,
Salinas um fio de areia, a barca do prático se foi, bom será mergulhar
nesta espuma, apanhar aquela cidade pela anca e mergulhá-la neste
banho, lavá-la nesta espessura. Cospe a tua insônia no mar, que te
recebe em pessoa, o que sonhavas, menino, quando enchias o tanque
embaixo do chalé, afogando os caroços de tucumã. Lá atrás o chão
desfeito, o formigueiro dos rios, agora, largamos. O navio não joga,
jogam estes nervos, este ir não sei aonde... Bate a campa, é o café,
distribuem-se os canecos, eivém o bule pesado, as bolachas duras,
agüente-se, o café é uma lavagem de espingarda, recusa; aceita as
duas bolachas que o sombrio, sossegado companheiro lhe oferece. Em
volta do bule, os mal acordados da terceira estendem os canecos. Os
marinheiros lavam o convés como se dançassem, agora é sol, estamos
chegando ao Maranhão.
— Esta passagem só é até o Maranhão. Tem de desembarcar no
Maranhão.
— Fale com o Comissário.
— O Comissário? Que Comissário? Aqui já é São Luís. Tem de
desembarcar no Maranhão.
— O Comissário sabe...
— Salta no Maranhão.
— Espere... Lá vai o Comissário. Ó seu Comissário! Seu
Comissário!
De branco, sobrecenho fechado, vira-se o Comissário,. outrora
tão gentil:
[253] — Nada tenho a ver com as suas complicações... Que
tenho a ver com isso? Quem é o senhor? Mostre sua passagem...
Desembarque no Maranhão.
— Mas sou o recomendado do professor... Já não se lembra?
— Que é que o senhor já arranjou para usar o meu nome.
Desembarque no Maranhão.
— Mas foi o senhor mesmo que...
— Carregue já a sua mala, rapaz, desembarque no Maranhão.
Mas não ficou combinado?
— Ou isto aqui é Pará e não Lóide? Mostre sua carteira.
Taifeiro? Onde arranjou isso? Seu destino é o Maranhão.
— O senhor prometeu, combinou...
— Viajou até o Maranhão... Não posso perder meu tempo. Salte
no Maranhão.
— Só desembarco carregado. À força. Só à força fico no
Maranhão.
Eivém um marinheiro a chamar o Comissário que subiu ao
comando. Estavam no Maranhão.
Espera os guardas, ou quem quer que seja, que o carregue e o
jogue no Maranhão. Junto a ele o descendente de boliviano, sombrio,
sossegado. Bate a campa para a janta, sobe o caldeirão, fumegou no
convés, apertem o nariz, que é a perfeita gororoba. Os da terceira,
com os pratos de folha, se aproximam como condenados.
— A bóia! — berrou o tripulante impaciente, de concha cheia
para o primeiro prato.
— Que nem pra porco — resmungou um com o prato nas
costas.
— É mais vômito. Deles. Esquentaram o vômito dos da
primeira. Isso tudo é vomitado.
— É a bosta deles.
Alguns se arriscam. Alfredo, refugiado na popa, como um
desertor, envergonha-se. Por que recusa a gororoba? Não é do código,
127
da aventura, do seu desafio? Que fraqueza [254] é que cede à náusea?
Ninguém vem desembarcá-lo? Entre o caldeirão e o desembarque,
espia o mar.
— Deixe estar... Deixe estar.., Vá ficando aparece o
companheiro, a oferecer-lhe um prato de comida.
— Faça uma boquinha com esta. Dá pra dois. É lá da copa. Vá
comendo enquanto não vai desembarcando.
— Vai ser sempre essa mesma gororoba?
— Não. Pior.
Hesita em receber o prato, irrita-se por não ter se antecipado ao
companheiro para conseguir aquela janta. Avançou com seu prato de
folha para o caldeirão. Recuou, a mão ao nariz, tropeçou numa caixa,
vai vomitar?
— Dá pra dois, sim — lhe fala o companheiro. Alfredo olha o
prato que recende. Um pedaço de omelete.
Desceram os dois, abancam-se debaixo da escada e se repartem.
Terminado, o companheiro inclina o rosto na mão como tomado de
um pesar.
— Comendo vai ficando. Vai ficando.
— Vai passear no Rio?
— Não. Trabalhar. Trabalhar no guincho. E você? É mesmo
taifeiro?
— Não. Tirei a carteira na polícia por simples tirar.
— Por simples tirar? Sem ofício? Como? Sem ofício?
Ergueu-se num espanto.
— Mas em que vai trabalhar? Como viaja sem ofício? Ou não
sabe ou não vai trabalhar?
— Não — disse Alfredo.
— Ainda não sabe?
— Não sei.
— Então acaba ladrão?
— Quem sabe?
— Será esse o seu ofício.
— Com a graça do Diabo, não é?
— Mas me diga...
— Penso em jornal...
— Jornaleiro? Vender jornal, sim, sim... Agora sim..
[255] O outro fez um aceno aprovador e repetiu, suspirando:
— O ofício... Mostre as mãos. Finas. Pode, sim. Mão de ladrão
é acetinada. A sua é. Mas vai vender jornal, já é o trabalho. Eu no
guincho. Guincheiro. É o que sei e me satisfaz.
Subiram, O companheiro levou os pratos à copa, ajudou a laválos, trouxe duas bananas. Os dois ficaram na popa.
— Viu que não lhe desembarcaram?
— O Comissário se esqueceu.
— Vá ficando. A cada porto, é: desembarca! sempre não
desembarcando.
— Vou metade clandestino.
— Com um pé a bordo e outro em terra.
— Faz de conta que fiquei no Maranhão. O Comissário me dá
por desembarcado. Não estou mais a bordo.
— É. Está em São Luís. Me mande um camarão.
— Seu nome?
— Emiliano Romero. Muralha o apelido.
— Muralha?
— Muralha.
Muralha escorou o rosto na palma da mão e não mais falou,
sombrio, sossegado, contemplando São Luís do Maranhão.
— Será que o navio não sai mais? — indagou Alfredo sem
sossego mas sem medo.
— Sai, mas na hora. Ele tem a sua hora. Não está escutando o
guincho? Na hora dele. Carrega.
Muralha. O guincho era o seu canto, a sua viagem.
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Passaram marinheiros, o Coberto chegou dobrou, outros vieram,
a quem procuravam? Alfredo desceu ao banco e esticou-se, atento. A
cabeça sobre o rolo de suas camisas, duas. Defronte aquele barbudo
cachimbava. Vinha dos dormitórios um mormaço. O companheiro se
aproximou, inclinou-se:
— Com pouco é barra afora, sossegue, boa noite, meu amigo.
[256] Meu amigo, repetiu Alfredo, com quase espanto, um calafrio, querendo levantar-se, pôr a mão no ombro do outro, e ficou
inerte, agora suava. Como um anjo da guarda, sombrio, sossegado, o
outro entrou no dormitório e entregou-se aos percevejos.
No Ceará, de novo a ameaça de ser desembarcado. Ficava na
borda a olhar a cidade, a longe montanha tão ali num sossego que
podia assustá-la quem lhe tocasse de leve. Os botes traziam
passageiros que saltavam, com risco, na escada do navio ancorado.
— Na hora de me desembarcarem... — disse ele ao Muralha.
Muralha, o rosto na palma da mão, sombrio, sossegado. Alfredo
caçando um alívio, voltava a olhar a serra lá aos fundos, como
suspensa, azul sobre Fortaleza, a Maranguape, aquele travesseiro da
Maria Igarapé nos encharcados do Una? E por que tão de repente se
fez noite? Desembarca!, gritavam lá embaixo, dos botes. A noite
boiava, espessa, do mar, o céu salgado. Já agora adeus, serra. Desce
dos salões a luz e o gosto do jantar. Aqui embaixo fedeu a gororoba.
— Com pouco mais vou verzinho a nossa bóia — acudiu o
Muralha num cochicho, ajustando o boné.
Quando vê, entra a bordo a moça da muleta, a perna ressequida,
o solto e ondulado cabelo negro. Atrás o casal com a bagagem. Quis
segui-la. Luzes, bagagens, rumores, gentes no navio o atordoavam. A
aleijada desceu para a terceira de cabeça baixa, como apressada para
esconder-se no beliche. Alfredo via descendo a flagelada do sertão, o
Ceará emigrando, a Iracema de muletas. Batia a campa. Lá embaixo
no mar as últimas vozes da terra, a onda cobriu a cidade, já vamos,
aqui não desembarcou.
Desce, estira-se no banco, a lâmpada em cima do rosto. Vai,
abre a maleta, tira um livro, quer subir, e senta-se, ouvindo o silêncio
da terceira. Aonde o Muralha? Combatendo percevejal? Ou na popa,
lá em cima, sombrio, sossegado, ao pé da casa do leme? Já não sabia
se... Desembarcado era [257] uma violência que o exaltava, edificava
seu orgulho. Seguiria a pé pelo sertão, vestido de couro e desespero.
Aqui esquecido, virava resto de carga, rato de bordo... Já não queria
prosseguir? Que foi ao certo que o impediu? O banco onde se deita é
amarelo, duro, estreito. O rolo das duas camisas cai-lhe da cabeça. O
barbudo, de pé, bate o cachimbo, escoando-se pelo dormitório. Fica o
sarro, os odores do navio, carga, suor e restos de comida. E de
repente: à porta do dormitório das mulheres, aquele rosto em cheio,
queimado, sério. Alfredo ergue-se, surpreendido. O rosto, pleno. Dele
uma luz tranqüila, íntima, confiante. O olhar deu com ele menos que
um instante, o rosto fugiu. Escureceu a porta. Era a morena de
muletas, com o seu rosto de sertão, agora no beliche, de olhos acesos,
curiosa da viagem e sem sono, escutando o navio. Aqui Alfredo
também escutava. Esperou. Vagueou ali embaixo da escada, topando
bagagens, esperou. As muletas? Dormia com as muletas? Deixava
embaixo? Indagação tola. As muletas. A perna seca, seca, sacudia um
pouco a perna seca, a pressa com que entrou e desceu, o cabelo negro,
a cabeça baixa, o rosto que não mostrava. E agora num repente, pelo
meio da noite, brotando no mormaço, do silêncio, do mau cheiro, dos
percevejos, aquele rosto que ninguém viu chegando nem descendo,
assim queimado e sério. Esperou. Escutou. Compaixão, percevejos,
para semelhante rosto. Lhe toquem na face, não.
Tentava ler, à mesa, sob os passos na escada descendo subindo.
Aqui embaixo, nesta popa, ruge a bunda do bicho. Muralha, o rosto
na mão, espia a máquina do leme.
Subiu. Trazia para as trevas da navegação aquele rosto
inesperado. As estrelas, sal cuspido do mar. O navio jogava. Num
pressentimento, desceu rápido para ver à porta do dormitório o
129
mesmo e insone rosto. No que foi visto, desapareceu. Alfredo
caminhou, deteve-se na porta, era proibido, e sentiu lá por dentro os
passos da fugitiva. Voltou ao seu banco, abriu o livro, à espera de
nova aparição.
[258] Ficou que ficou escutando. Compaixão para o rosto,
aquele, percevejos. Ao menos o rosto, que é a única luz, tão de súbito,
nesta terceira. Lhe toquem na face, não.
Badalou o café, acorda assustado, o banco duro na cabeça e sob
o incessante sobe-e-desce na escada. Na porta do dormitório das
mulheres a moça espiava-o apoiada nas muletas. Desceu o Muralha
com a sua sombra e o sossego:
— Ao café?
Subiram. Alfredo cuspiu no mar se lembrando do chalé, a
pontezinha sobre a cheia, aquele raso aguaçal de mururé e horizonte,
um lento vôo de garça, mãe e pai tão juntos na janela quanto, quem
sabe, tão separados, sem ver que a cascavel, fugindo das águas ou
curiosa da casa, subia a escada; acabará por certo por enrolar-se
dentro do oratório.
Que mudava em seu corpo, ou em seu espírito, ou nada mudava
senão pelo que via à porta da terceira, a tão de rosto cheia e a perna
seca? Cuspia no mar, O Liceu, o Boi, boiavam ao mar.
Muralha lhe entrega a caneca e nesta lavagem de espingarda
Alfredo vê a D. Dudu passando o seu café na José Pio (Queres café?),
agora na Timbó, para onde se mudou. Mas tu me vais logo na
horinha-horinha que eu compro o meu palacete?
D. Dudu largava a porta-e-janela do Curro para encafuar-se na
Timbó. A do Curro adeus, dela não era, desistia da partilha. Esta
palha que me cubra, não aquele telhado, o soalho de lá não é mais pra
este meu pé. Livre é pras damas, as duas damas abrirem ali a porta do
mundo. Se demitia dos seus direitos. Com trezentos mil réis compra a
barraquinha em Chão dos Lobos e pendura a rede e põe na sala a
máquina de costura e arma a trempe lá fora, rente da rede. No quintal
uma laranjeira-da-terra carregava, em glória quem aqui te plantou,
criatura. As duas netinhas, sim, ah, coitadinhas! Depois que mataram
a avó, herdassem o buraco velho. Era ou não era gosto da avó no
Santa Isabel de sepultura perpétua, cruz, nome, data? As duas damas?
Fossem ao leilão, [259] arrematassem a cama, a cama no meio da
sala, vista pelo. bonde, pelos passantes da calçada, a cama; venham,
pessoal! Pusessem placa na porta, ou reposteiro, alvará na parede,.
preço de viração, a cama chamando. Mas aqui na Timbó? L o meu, e
pertence próprio, aos Lobos pago a taxa. Um cochicholo, quase todo
destapado, a palha podre, chovia dentro, umas tabuinhas dando cupim
na sala, aqui na mesa é o Santo Antônio, bem de raiz e a tábua de
engomar, mea camarada velha, lá na frente, oculto pelas ervas o poço,
debaixo das folhas, aquelazinha água tão da encabulada.
Se meteu feito um morcego pelo quarto, o único, de chão, já
cheio de cacareco e carapanã, só aqui tapado, escurecendo úmido.
Vais quando? Estou te convidando pro meu palacete. Levava Nini
com ela. Casebre fincado num teso dominando o capinal da vacaria,
as toiças de açaí na baixa, uns telhados no sol, e vinha dos açaizeiros
uma aragem com esta e aquela borboleta, sempre um cão, fosse no
céu ou num quintal, ladrava. Lá doutro lado chispava pelas noites um
foguete de ladainha ou levando a São Pedro noticia de mais um anjo e
o som de terreiro tamboreando nos longes da meia-noite. Lá está na
onda desfolhada a D. Dudu costurando, o rosto aplicado. O Santo
Antônio no respingo da chuva naquele sem-que-fazer de santo nem se
espreguiçar sequer. Tinha também um pé de papoula beirando o poço.
O orvalho das papoulas escorria dentro do poço e lá do fundo senão
água, se puxava sono, sonhos, um sapinho verde, uai! Esse mar virou
lilás? Desbalançou o navio? Aqui, de verdade, o Muralha nem a goela
temperou. Alfredo voltou ao seu banco, lá embaixo, e deu com a
moça bem sentada.
— Abusei do alheio. Deixei em casa o acanhamento. Roubei
seu beliche.
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— Não, não. Dá pra mais um, sim.
Ela sorria. Me dá por prenda o teu sorriso e com ele ser
desembarcado, com ele me perder pelos areais da Costa. Quis lhe
tocar na pele queimada. Cheirava ainda a sertão, a caminhadas sabia
que longes, com aquelas muletas, [260] arrastan|do a perna seca. Com
estas mãos apanhar-lhe o rosto, apanhar-lhe o acolhimento, o sorrir, e
toda a desalegria que essa perna lhe dá...
— É de onde?
Intimidou-se com a pergunta que ela fazia mais de olhar menos
de boca.
— É de onde? De que parte?
— Lá do Pará — respondeu com modéstia.
Ela fez uma admiração, as mãos no rosto.
— Pará? Primeira vez que ponho a vista num Pará. Pará?
A voz lembrava os Alcântaras, os antigos flagelados da
Penitenciária, o cantante de Bina e daquela quitandeira viúva da
Podrona que pendurava as bananas pacovas à janela da barraca.
Arriscou-se:
— Seu falar é assim de quem comeu bem rapadura... e me
lembra uma família...
Ela, cresceu o olhar, a mão na boca por um espanto, acabou se
rindo e muito, pois rir era sua riqueza. Ria como se chovesse sempre
no sertão. Deus! E lá embaixo do banco aquela perna morta,
ressequida. A outra, se via, desmanada, cheiosa. E o colo onde o peito
cacheava, o corte da boca, o rosto.
— Meu nome? Sou sem nome. Mereço um nome, não. O seu, já
sei, é Pará. Precisa dizer, não, seu nome. Ó Pará... Deixe lhe meter
este sal na boca. Batizado. Pará.
Nada a te dizer, criatura, que só tua voz escuto. E és uma
espécie de sereia, mulher na banda do colo, o resto sereia e seca. A
seca do teu chão te secou a perna e sorris. E esse anel que tens, eu te
pedia, com ele desembarcava, linda-pela-metade.
— Que tanto me espia?
— Não te espio, te decifro.
— Tu não é besta, não?
Ela não se cansava de repetir. Tu não é besta, não?, e lhe deu
um pedaço de rapadura já molhado de sua boca. Alfredo subiu, atrás
do Muralha ou dum rumo, que fará [261] desta viagem?
Desembarcava? Será desembarcado em Cabedelo? Nunca mais viu o
Comissário. Não mudava a calça de mescla nem a camisa, já azeda,
usava uns tamancões, ficava olhando os escaleres, um e outro
passageiro da primeira atirava sobre a terceira um pouco de fumo e
um qualquer olhar de nenhum caso e cautela. Subia descia a escada,
um modo de enganar o receio, ou curar-se daquela piedade, ou impureza, que tomava conta dele na presença da Sem-Nome. Voltou. Ela,
sentada no banco, cerzia.
— Viu eu lá por cima, viu eu? Foi o que vi, nada mais.
— Tu não é besta, não?
— Quixadá, onde é?
— Onde vós não sabe. Mangue de minha terra, não, senão...
— Tire do dedo um instante esse anel, me mostre...
— Cobiçando o meu ouro? Ouro pra não dizer chumbo.
— Cor de chumbo não tem. Chumbo era, no que enfiou no dedo
virou ouro.
— É um de estimação. Não é por luxo. Foi minha madrinha.
— Aqui lhe devolvo, inteiro-inteiro. Ou é aliança?
Ela apanhou as muletas, levantou-se, o olhar torcido para
Alfredo como se quisesse descobrir nele uma pena ou desprezo por
ela ou qualquer troça ou desejasse que ele só tivesse olhos para o seu
rosto, que era tudo, o seu rosto, o colo em plena flor. Apoiou-se nas
muletas, um pouco curva, os cabelos sobre o rosto. Foi subir,
trabalhão, as muletas pesavam, a perna seca-seca, bambeava. Ao meio
da escada, voltou, lenta, entregue às muletas, retirando-se para o
dormitório. Alfredo deitou-se, o banco duro na cabeça, ou sobre
131
aquelas muletas? Esperou que ela voltasse. Veio a noite. Apareceu, de
roupa mudada, o rosto empoado, ali no banco mas ausente, fingindo
não vê-lo. Fez de repente um ar de sono, abria a boca, um sono...
fechava os olhos, tão mau-olhado, quem me deu, que só que quero é
dormir? Um instante tão [262] afastada das muletas, estas e a perna
seca jogadas no mar. Dez horas, levantou-se Alfredo, ia subir.
— Ainda? Vai dormir, não? Vai render serviço? Onde é a sua
ronda lá em cima?
Quer saber por quê? Vai? Guardo o escaler.
— Tu não é besta, não?
— Tem razão, é. Não subo mais.
— É que é um vento cão lá fora...
Ela entrou no dormitório, não demorou, da porta atirou-lhe um
pequeno travesseiro e sumiu-se. Alfredo ficou olhando para a porta.
Escura. Ninguém. Em suas mãos o pequeno travesseiro. Com ele
cobriu o rosto, um tempo assim, sujigando o nó, um soluço, sabia lá.
Deitava a cabeça no travesseiro ou no coração dela?
Cabedelo.
Espiou coqueiros, freges, aquele ar tão areoso, e escurecido, dos
que ali moravam, areia funda e morna. Lá de bordo, debruçada com
as suas muletas, a Sem-Nome olhava.
Voltou com um desejo de lhe trazer cretone, um bordado de
terra, uma rendinha de boneca e só lhe deu foi a laranja que ela
descascou, repartiu. Sempre comia tudo com alegre, travessa fome.
As coisas de comer já os dois se repartiam. Porém no prato que o
Muralha trazia ela não tirava um fio de macarrão. Submetia-se à
medonha bóia da lei, saboreando a gororoba sem franzir a testa, muito
festiva, comia gulosa (para divertir-me?) a mão ao nariz.
— Estou mais gordinha, estou, não? De comer isto.
Um pedaço de marmelada ou queijo, ela, aí, sim, com voz
menina: Me deixa morder nessa ponta. O que um tinha dos dois era.
Viu o livro na mão dele, tomou e de dentro do livro tirou o retratinho,
escondeu na palma da mão, meteu na boca. Enxugou-o no peitilho.
— Conhecida, minha conhecida, só.
Fez que ia rasgar o retrato.
— Nome?
[263] — Quero me lembrar, mas não me lembra.
— Pois olhe aqui, seu deslembrado, aqui meio apagadinho a
lápis. Soletre.
Repôs dentro do livro que fechou, sentou em cima, cruzando os
braços.
— Tua noiva, sim.
— Era a Fada do Boi.
— Tu não é besta, não?
E espetava o braço de Alfredo com o alfinete, pegou um papel
escreveu a lápis: oh, que saudades tenho de ti, Roberta, meu anjinho
que tristeza eu sinto por está tão longe de ti não achas? Alfredo.
— Meta no envelope, sele e mande na mala-postal.
Abriu o livro e se demorou, atenta, fingindo ler, repetindo
Roberta, Roberta, Roberta, Roberta, o cabelo pelo rosto.
— Pará, que tu vai ver lá no sul? Que apito vai tocar? Onde
desapeia?
Sul? Alfredo no ar, sem responder, desatando uma área nas
nuvens, um sul que não vislumbrava, fosse uma enseada, o trem da
Central, o Mourisco, sul? Então pediu segredo. Ele, por lei, não
viajava, podia ser desembarcado a qualquer minuto, jogado num
escaler em plenos mares. Sua passagem? Só foi até ao Maranhão, até
São Luís. De fato viajava, de direito, não.
— Tu não é besta, não? Tu não é besta, não? — a Sem-Nome
picava-lhe o braço com o alfinete.
— Aí embaixo no porão estão juntando os paus da jangada onde
vou.
132
— De volta pro Maranhão? O Pará é o Maranhão?
— E a vela? Faço com teu cabelo?
Ela virou-se:
— Tome meu cabelo, apare a vela e prenda no mastro da
jangada.
[264] Assim sentada, embaixo dos degraus, esquecia as muletas, o rosto de serão em luz de navio, no mais. só ele e ela na jangada.
À noite, a bordo aquela carga de cristãos, azeda de sol e das
léguas, esmolambados, ali amontoados, aninhando os. filhos à sombra
do toldo armado no convés. A carga entrava. Nisto, um corre-corre
dos diabos, a polícia desembarca a moça que ia fugindo com o
namorado para os cafezais de São Paulo e eivém que ela eivém de
volta correndo, atraca-se com Alfredo. Não me deixe desembarcar.
Não me deixe! Não me deixe!,. arrastada para fora. Francisco onde tu
estás! Francisco!, arrastada e sumida pelo areal. Alfredo se via
culpado, no ombro os dedos da moça e o grito aqui, repetido, neste
navio implacável, com a outra das muletas, ali ao pé a dizer-lhe:
Que mal fez a criatura.., que mal fez a criatura... Já um sujeito
mulato tentava fazer graça imitando trem, batendo o pé, apitando sem
sossegar, sacudindo o macacão, O trem de ferro. O trem! E apitava:
Francisco! Francisco!
— Quase que você ia com ela... Em troca do dela que sumiu a
bordo era o Pará que ela levava. Ai que agarrou-se com ele, como
agarrou-se! Já não era mais o outro, era o Pará. Foi, não? Está em
tempo de ficar na vez do outro. Vá com ela. Corra o areal. É dois
desembarcados. Faz o par.
Alfredo cismou: A aleijada via na outra era aquele par de pernas
no areal, uma e outra, iguais, correndo pelo navio,. escada e areal.
— Quase pronta a jangada? Pra nós dois?
— Acuda a desamparada.
Ah, correr no areal com aquele par de pernas, embora perdida a
viagem, perdido o Francisco.
Que o navio andou, ela veio, batendo as muletas.
— Me peguei com meu santo pra que você fosse atrás dela. Se
dando bem no Maranhão? Sua noiva lhe escreveu?
— Levo na jangada o travesseiro. Aquele seu travesseiro?
Amansou meus marimbondos.
— Virou eles de perna pro ar? Ah, Pará!
[265] — No que me atirou lá da porta...
— Mangando do coitadinho... Seu mangão. Que é isso? Quer
tirar o anel do meu dedo? Pois tome. Francisco! Francisco!, ela
gritava. E eu: Se console com o Pará, desafortunada.
Guardou o anel, subiu a escada, tornou ao banco. Subiu de
novo, voltou. A moça num divertido espanto: Perseguido? Anda
perseguido? É o Comissário atrás? Olhe, mocinho, por favor, a sua
passagem. Alfredo via o colo que ali se dava e a perna, embaixo, seca.
Fugiu para o convés. Aquietou-se na popa, escutava os paraibanos, ia
ouvindo neles o Brasil, variado, confuso, imitando o trem, no berreiro
dos meninos, nas muletas da Sem-Nome, vozes a bordo que abafavam
as máquinas e o mar, a campa anunciando a gororoba e bumba!
Estourou a contrariedade contra a comida. Foi geral. Era demais.
Vamos ao Comandante!
— É um motim? — gritou o Coberto olhando para Alfredo.
— Motim ou o diabo que seja. Aos tubarões! Aos tubarões! Aos
tubarões! — atirada ao mar a lata de gororoba, escureceu com um
vento áspero. Aos tubarões! Aos tubarões! Durou um tempo o
rebuliço e Alfredo se viu entre os parai banos acuados no convés. O
Comandante, este não aparecia, Alfredo olhava as luzes da primeira.
Lá em cima, na primeira, tinha música e omelete. Um longo, brabo
bater de pratos de folha aqui embaixo entrava pela noite. Não veio
outra comida. Alfredo recusou o jantar do Muralha. Encontra a SemNome na escada, vira-lhe o rosto, deitou-se. Rejeitou o travesseiro. A
cabeça no banco duro. A hora não cessava. As máquinas de bordo
mastigavam a raiva e o sono.
133
— Viu a cunhada? Viu, não? Viu? — indagava a senhora, já
apreensiva.
— Pois não vejo faz hora. Viu?
Chega o marido, tinha procurado a irmã lá por cima.
— Ela não lhe disse nada, não?
Alfredo a desassustá-los:
[266]— Brincando de juju, ela. Só sendo. Não demora aparece.
— Trocou com ela, sem querer, alguma má palavra? Não lhe
estou pondo culpa. Não trocou? Ela vive de sentimento muito
exposto. Trocou?
Alfredo subiu, desceu, ora, inda mais esta. Má palavra? Foi o
bastante? Atrás das bagagens, dos montes de gente. quem sabe no
porão entre as cargas agarrada num marujo. Má palavra? Mas a
ofendeu? Por ter virado o rosto na escada? Muito de ferida exposta?
Ademais corria que as cearenses, por paixão, cortavam volta, muito
por demais sentidas, por istozinho assim se melindravam, de repente
se ofendiam e tomavam decisões desesperadas. Alfredo, aqui por
cima, ia, vinha, que demônio deu nela? O vento pesado. O navio jogando. Ali na terceira ninguém sabia. Indagava, de novo, pela copa,
bar, escaler, quem sabe no beliche dum tripulante ou ajudando na
cozinha. Olhou lá fora. Vá ver, despencou-se Ferida com a desatenção
na escada, corre e era uma vez. Desceu, varejou, insistiu, subiu com o
irmão dela e a cunhada atrás. Dela este travesseiro, este anel, e em
troca no meio da escada, lhe deu as costas, a ofendida se atirou?
Zonzeia a bordo, invade a primeira, atravessa os salões, é convidado a
descer, espiou pelas máquinas. Busca, rebusca, vira o navio do
avesso, o restante é o lá-fora, desconforme, ventoso. Não lhe ponho
culpa. Se perdeu a bordo ou despencou? Precipitou-se para a terceira,
já reza-não-reza, a tanto levou a vergonha? Aqui o irmão dela
puxando um silencio e ali a cunhada cheia de aves-marias, O navio
avança como um monstro satisfeito. Erra pela popa, corre o
passadiço, volta a espiar os escaleres. Até que a desencanta num
oculto do convés, mas veja! Ao pé duns cabos, atrás de umas
bagagens, encolhidinha, as muletas no chão, a cabeça nos joelhos.
— Mas, menina, que esconderijo é esse, que foi que foi isso. .
Passa-lhe a mão pelo cabelo, rosto molhado, abaixa-se e apertalhe os dedos úmidos que se negam.
[267] — Mas, Sem-Nome! Atrás de ti pelo navio todo! Onde
que não te procuramos? Quem te botou tão invisível?
A cabeça nos joelhos, enrolada no silêncio, por dentro de seus
cabelos.
— E assustando tua cunhada, teu irmão... Só faltou o navio
parar.
Toma um fôlego:
— Saudades de Quixadá? Foi lá e voltou? Pediu asa de gaivota?
Sabe o que já se dizia a bordo? Os tubarões jantaram a moça.
Ela destapou o rosto, firmou-se nas muletas, assim de pé,
olhando as luzes da primeira.
— Me vomitaram, voltei.
Agarrada às muletas, na sombra do convés, o cabelo no vento.
Alfredo continha-se, temendo ofendê-la com a sua piedade e iludi-la
com a sua ternura.
— Vá, vá na frente, que meu costume é só.
— Ora, Sem-Nome, comigo que mal faz? Comigo, anda.
Fez que não, tornou a sentar-se, enrolada em seus cabelos,
sustentando as muletas. Alfredo afastou-se entre aliviado e afligido,
desceu ao banco, novamente subiu, espiando-a. Ficou de guarda.
Vendo-a levantar-se e caminhar, correu para baixo, deitou-se, a
cabeça no travesseiro. Esperou que ela descesse, coitadinha, com
aquela dificuldade toda. Meu costume é só. Me vomitaram, voltei —
foi descendo, ali, degrau a degrau, só lhe via o cabelo, mas o rosto,
onde?
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Desceu, passou, carregando-se a si mesma para o dormitório.
Meia hora depois voltava, aproximou-se do banco, sustentou-se nas
muletas.
— Esta noite o navio jogando um bocado, não? Imagine lá fora,
não?
Alfredo não insistia, ela de pé com as suas muletas pelos
tubarões vomitada. Sentou-se na beirinha do banco, de costas para
ele, veio a cunhada, conversaram, a cunhada saiu.
[268] Ficaram os dois no banco, num serão mudo, o travesseiro
os separava. À porta do dormitório dos homens, fumando, o Muralha
os espiava, sombrio, sossegado.
Natal.
Bahia.
De Salvador aquele negro, subindo a ladeira com um baú azul
na cabeça, lembrava o tio. E esta laranja, a Sem-Nome lhe deu, e este
mar é caldo daquelas comidas, mais nascido daquelas igrejas,
candomblés e ladeiras. Pedia o risco de ser botado em terra, adotado
pela Bahia. Os gomos da laranja na mão da Sem-Nome, repente de se
esconder no porão, à espera que a cearense fosse encontrá-lo entre
cargas, no bem escuro. Toca a campa. Amanhece em Recife. O mar
cuspia a sua espuma no pedral. Eivém a Sem Nome com um coco
verde: queres a água?
— Me dás na concha da mão.
Na concha da mão. Alfredo se debatia entre os seus semelhantes
da terceira. Pertencia mesmo a estes ou aos outros lá de cima, lá por
cima, entre a música e a omelete? O tio viajava na terceira. Agora é
pelo fundo, dentro da pele da jibóia, ou subindo a pé aquelas
montanhas doutra banda para ver o Orenoco ou espiar onde se
amamenta o Amazonas. O tio em terceira viajava, cabo do Exército
na viagem de volta. A mãe, por preta, da terceira por nascença, levada
pelo Major à primeira, ninguém mais senhora do seu camarote. A
Sem-Nome chegava, penteando o cabelo, e se ouvia lá nos homens
um som de viola. Que lhe pregou o botão na camisa, a Sem-Nome:
— Que foi que não fala?
— Estou te vendo no chalé lá de casa, em Araquiçaua, Areinha,
as goiabas de lá estão te chamando. Queres?
— Tem o juízo aonde?
— Jantando na primeira, música e omelete.
— Danou-se! Virou o miolo? Vou chamar o doutor.. Ó doutor!
[269] E o espanto no entrar — que será isto? —- em Vitória.
Ver, tão surpresa foi, que ver o que via não era. O navio, por estes
encantados, vai abrigar-se no coral das delfins? A Sem-Nome veio e
juntos ficaram olhando a pintura. Na popa, juntos, sem se tocarem ou
falarem, com os últimos gomos, comiam a laranja e a paisagem. E
dele o desejo de extrair daquele mar e daquela montanha o sumo para
reverdecer a perna, aquela perna. E então, numa cerimônia, lançar
nestas águas de Vitória as muletas da Quixadá. Roçou-lhe o braço, ela
olhava como habituada ao cenário (Ou quem sabe? Um instante a
perna sã?). Silenciosa, consentida. Mas tão de repente desenfreado
saltou diante deles o Muralha.
— Todo o nosso dinheiro... Todinho o dinheiro...
— Que dinheiro?
— O nosso! O nosso!
— O meu? O nosso?
— Como abriram a mala é que não sei, não sei, no que subi,
desci, adeus, foi tudo, o meu, o seu, foi tudo!
Muralha desarvorava-se. Só fazia coçar a cabeça, no que subi,
desci, adeus, cuspindo no espetáculo aqui fora, o navio neste canal e a
Sem-Nome os olhos tamanhões, agora sim que se espantava. Os dois
desceram como se fossem achar o ladrão. Junto ao banco a mala do
Muralha. Exalava extrato e canforina, intacta, intocada, e dela o meu,
o dele — quanto o dele? — e o meu, 260 mil réis, entregues pela mãe,
135
agora furtados de mansinho no justo momento de cenografia e pasmo,
lá fora, à popa, com a Sem-Nome recolhendo ao colo os cromos de
Vitória. Aqui estava. Guardei aqui. Só eu e Deus sabia. Muralha
coçava a cabeça, gaguejava, veste desveste a camisa, revira a mala, o
olhar de acossado. O paraibano imitava o trem da Great Western.
Alfredo ou por não acreditar ainda, decidiu ficar por cima: Foi?
Melhor! Subiu, deu de ombro, com risonha indiferença e voltou ao
postal. A Sem-Nome com as suas muletas:
Não trancou a chave? E ali ao pé do banco na vista de tanto
povo? Só estou é o sangue-frio.
[270] Alfredo não respondia, catando lá por dentro os cacos de
sua indiferença ou estupor, misturando o roubo ao rochedo, a esta
garganta de água azul, a colina... A moça calou-se em pleno sol e
espanto, e dela o cheirume de Quixadá se espalhava, o navio
imperturbável ia indo. Alfredo se buscava na montanha, enseada,
botes, a areia, tão súbita, cintando a pedra, e o navio num vagar de
enfeitiçado, a caminho dos delfins. A Sem-Nome roçou-lhe o braço
(cheirando a rapadura?), rosto com rosto, o sol sobre os dois tão
solitários que a popa e paisagem: E então? Lhes diziam. Assim menos
que um instante Alfredo lhe deu o beijo, meio desesperado, meio
enraivecido, e ela que se fez quieta-quieta, a blusa entreabre-se,
faltando um colchete. Ao lado das muletas, embaixo a perna morta;
ele se afastou, mordendo o beiço, onde esconder-se? Chegava o
Muralha, coçando a cabeça, falando surdo, de que valia a queixa ao
Comissário, saber quem foi, mas como? O paraibano, imitando o trem
da Great Western, ali mesmo na borda sobre o panorama, mijou. Lá
na frente se desenrolavam os cabos da atracação? Que era? Muralha,
de lá para cá, descompassado, como aquela água lá embaixo virada
pela hélice. Alfredo olhou para ele, um minuto, logo virou-se
arrepiado. Quem? Quem mais? Muralha? Muralha? Não, não cabia.
Muralha transpirava leal. Lhe deu a calça velha para andar a bordo,
trazia-lhe a comidinha da copa. Verdadeiro em todo o seu ar sombrio
e sossegado. Direito na voz, no coçar a cabeça, assentado de modo e
palavra. Dos dois a agir torto, era eu, por desfastio ou mau bofe, ou
teima de me atormentar. O Coberto batia danadamente a campainha.
Os esfomeados da terceira acudiam com os pratos de folha. A
gororoba caía no bucho deles à força, à força de tão intragável. Os da
terceira? Só emporcalhavam a bordo, risco de desovarem sabe lá que
peste no meio da viagem, carregavam mais doenças que bagagens,
cacarecos da terra, batidos de azar, de calamidade. Nos beiços da
aleijada provou o flagelo. Isso nem carga é, quanto mais passageiro, é
bagaço só. Esta terceira acaba afundando o Lóide. Os de lá de [271]
cima olhando para baixo, cá embaixo, que viam lá de cima? Exato o
que leu no diário de viagem do Dr. Genaro, Procurador Fiscal do
Estado, voltando de suas águas de Caxambu: Aqueles da terceira?
Bichos. Escrito e escarrado bichos. E aqui mais lanzudo, ia e vinha
este-um de bicharal, que assaltou a aleijada, já suspeitava do Muralha,
farejando naquele monturo quem que era o ladrão. Ordinária proeza
na popa do Lóide. Legalmente desembarcado do Maranhão nem ao
menos cuspido de bordo como clandestino. Roubava, isto, sim, o
sossego da inocente. Em vez de juntar-se ao Muralha e bater o navio
atrás do ladrão, agarra-se àquele beiço, a aleijada deixou cair as
muletas. A perna mais seca. Olhos no espumejo já debaixo, navio em
manobra, a moça chorava; choraste em presença da morte? Dizia o
pai no chalé ao pé do fogão, fazendo o velho tuxaua. A campainha
badalava, badalava, inchando a orelha, moendo nervo a nervo, não
duvidar vomito. Eivém a bosta com arroz e abóbora. Só falta vir no
penico, grunhia o penitente, pele e caveira, arrastando a perna com
tão antiga ferida; só vivia para a sua chaga. Metia a mão na gororoba
e tudo engolia com ódio como para saciar a perna podre que o
devorava.
A Sem-Nome chorava? Escondeu-se? Não. Está aqui na popa,
engolindo o manjar de bordo...
Se eu tivesse... Se eu pudesse, olhe que eu lhe acudia.
136
— Mais do que acudiu? E o travesseiro?
— Fingindo soberbia? Que não se abalou? Me deixe lhe ver aí
por dentro. Com uma só espetada do meu alfinete lhe tiro a verdade.
— Tu não é besta, não?
Diante dela parecia fechado ao desânimo. Vinha dela uma força
simples que o acusava ao mesmo tempo.
— Sabe? O dele e o meu guardei foi dentro do travesseiro, o
seu. Escondi.
— É mais meu, não, o travesseiro, não lhe dei? Guardou... Não
é o que vejo nos seus olhinhos. Todo o seu [272] so|brosso... Se
fazendo aí de sossegado? Deixe lhe meter o alfinete.
— Vou só abrir o travesseiro no Rio, vá ver.
— Engolindo o fel e cuspindo potoca? Coitadinho do Pará.
— Com aquele travesseiro, eu, coitadinho? E olhe, queria lhe
dizer uma coisa a respeito do travesseiro e cadê?
Então é mentira. Tão nonada aquele travesseiro, oxente!
— Ela comia o intragável tão gostoso, lia-se nos olhos dela:
Agora que você tão brusco me tirou esse beijo de minha boca, me
meto numa fábrica, lavo, engomo, cozinho, por você eu faço,
contanto que carregue comigo esta perna. Ela capengou para outro
lado com o prato vazio, O prato vazio. O vapor não atracava? Alfredo
se via só, destilando suspeitas contra-suspeitas.
Muralha? Muralha que falava da noiva, da família, do dinheirinho que poupara, do guincho em que ia trabalhar. Não. Estava
tudo consumado. Tudo consumado, como traduzia o pai aquele latim
na varanda ao fazer o Cristo na Cruz. Dissera ao Muralha: Olha, me
guarda na tua mala este meu cobrinho chorado, que aí é mais seguro.
São os meus contos de réis. Na minha maleta é mesmo que deixar
tudo à mão. Na maleta, foi, só deixou aquele trocado, que ninguém
mexeu, este resto, trinta mil réis, o que se salvou. Tanta gente era na
terceira, quando que se havia de saber? Trinta mil réis. Diabo! A
Sem-Nome só faltava lamber o prato, o sabor que ela dá às coisas! É
isso! Trinta mil réis só? Saltando de bolso furado? Liso? Pega o pião
na unha. Esta prova não me verga, não corro do desastre. Deu uma
queda? Pois te levanta! Foi? Que remédio! E aqui, por onde entra o
navio, é tudo inesperado, dizendo que vale a pena! Chegavam a Vitória. Será que aquilo ali, no relvado lá em cima, é um ganso? Os
gansos novos devem ter fácil acesso à erva fresca, aconselhava La
Hacienda aberta na rede, à tarde, pela sesta do Major. É mesmo um
ganso no relvado? Desponta o [273] telha|do do padrinho Barbosa,
calou-se, anos, o gramofone, o ganso velho reclama queijo e o
padrinho, sem queijo, entre as louças da borracha, rapavazinho a sopa
de falido. No tapete que saía para a rua a menina e este menino. A
caixa de música, tinha? Aqui em Vitória, debaixo da asa do ganso,
tocava. 260 mil réis. Que falta faziam se estava ali a bela pedra, o
ganso no relvado, a moça do Quixadá tão com apetite?
— Faz de conta que aquele ganso, ali... estás comendo assado.
Já sem dizer tu não é besta, não, a Sem-Nome, tão séria, comia
mesmo ganso? Mas de repente adeus, ganso, eivém é a Fada batendo
suas asas de cetim e serragem, fez do relvado um palanque, num
repuxo de fitas, cetim e penas, inteira nesta moldura. Confuso
instante, o gosto é castigar-se, o desrumo no Rio e tudo o mais muito
bom pelo tamanho da inquietude. Mas a Sem-Nome batia palma
como para acordá-lo. Sem-Nome! No meio do corpo para cima como
era! Por que então tem Deus, se carrega embaixo aquele trambolho?
A perna seca, mais seca pelo meu beijo? Comia o ganso? Mar.
Montanha, aves, a perna secava.
À noite, estirado no banco, cabeça no travesseiro, então que
principiou a perder os 260 mil réis. Dinheirinho arrancado ao pai,
trazido pela mãe, queimando a mão. A mãe. esta, sem atinar por que
lhe fugia o filho. Que fugir era, ou não era, ou fugia da Fada, do Boi,
de novo a cabeça rapada no Ver-o-Peso, o trote no pátio, as duas
esposas no descaminho em busca dos maridos de repente somem, o
bilhetinho a lápis, o Satiro de buraco na testa chorando na flauta
137
enquanto a Pulunga faz chá. Trinta mil restam. Com esses trinta
dinheiros salta no Rio, de esporão em brasa, ah, larápio! Foi ver o
mar. O navio jogava. A terceira adormecia. Bina, prometeste rezar
por mim. Valeu de nada tua reza, á, feia da peste, os santos só
atendem às outras. A Fada no palanque ou no revaldo ria a sua
risadinha de ganso e se embalava debaixo do araçazeiro. O palanque
se cobre de lama, [274] serra|gem, noites mortas. A esta hora, Maria
Igarapé caça um macho nos escuros do cariazal ou derruba, com um
trago só, no Bonitinho, a sua fome, e se agasalha com a visão da
serra. A Sem-Nome, dormindo, o sono lhe tirava as muletas. E ele, o
badalo da gororoba badalando-lhe insônia, sacudindo-o, oh, teu fedor,
gororoba! e doe vez em vez aquela do palanque e da aula, o joelho
dela, não mais menina, na sua mão. Voltou para o banco. Sentou-se,
olhando mais que olhando a porta das mulheres. A Sem-Nome
dormindo, de que lado o seu beliche? Estirou-se, a cabeça no
travesseiro, trancava os olhos, aonde andas, sono? Que só encontro a
aluna e aqui defronte a outra, o seu carnume pela metade, suas
rapaduras, seu sertão. Duzentos e sessenta mil réis. Muralha?
Muralha, não. Por um descuido a mala aberta, o ladrão foi num
relâmpago. Aquele susto, aquele coçar a cabeça, o Muralha não
fingia. Não. Era uma só peça. de uma só, sombrio talvez por ser um
só. No dormitório dos homens aquela tosse que nunca acabava
acusava como diabo. Urgente era entrar no dormitório das mulheres e
surpreender debaixo do lençol aquela linda metade do umbigo para
cima senão quando o maço furtado. Ficou de bruços sobre o
travesseiro. Ergueu-se. Quis ler, lia coisa nenhuma! Abriu a maleta.
Virou-se. A Sem-Nome trazia-lhe café.
— Onde arranjou?
— Precisa saber, não.
Falava em meia voz. Lá nos homens, a tosse se agravava.
— Esse café é de conta que é teu leite.
Ela lhe pôs a mão na boca:
— Mais baixo, boca de sapo, mais baixo e beba, seu desrespeitoso.
— Teu leite?
— Onde tenho leite? Nunca pari.
— É um leite de que falava um meu amigo lá do Pará, sempre
me falava. Tinha em casa um sortimento de livros e eu disso me
aproveitava, lia. Ele, então, me festejava: Entre, que aqui é a fonte de
Castália, concidadão!
[275] — Oxente!
— Não liga a palavra, é uma qualquer das tantas fechadas no
dicionário, deixa o dicionário em paz. Era por via das meas leituras.
Sempre me convidava pra jantar, a velhinha mãe dele caprichava num
escabeche que ai, ai... De pijama e chinelo ia na mercearia e mandava
arriar um vinho: ponha na conta, seu Alexandre. Na calçada da casa
dele, se conversava. Ele falava de política, se dizia um cisne sem ter
uma cisne nadando a seu lado, e era espiritismo, Jesus e Samaritana, a
mulher obrigada a montar no cavalo nua-nua... De repente: Nada
como a liberal-democracia. Quando luar, vinha um violão vadio ou
um antigo caixeiro-viajante contando das suas viagens. Tempo de São
João, pagava para um cordão de bicho dançar na frente de casa pois lá
dentro a sala não cabia e mesmo podia quebrar uma cadeira, sumir um
postal da coluna, noutro dia a velhinha mãe a lavar o soalho... E tome
aluá! Na hora da cachacinha...
— Tu?
— Tu o quê?
— Já bebendo, Pará?
— ... ele pedia ao Supremo Arquiteto que desse um cobro
nessas nossas autoridades, fazer mais estradas de ferro, repartir mais o
bê-a-bá, pagar em dia, etc. e tal e de repente: Viva a liberaldemocracia!
— E que bicho é esse, a liberal...
— Pra te dizer a verdade...
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— Salta a palavra, vamos ao leite.
— O leite? O leite, ele dava um nome. Sentado na cadeira de
vime, depois da janta, dizia de que peito, de quem era...
— Oh, Pará! Mais baixo, mais baixo... Não és a campa de
bordo. E bebe senão esfria. Mais baixo. De quem que era?
— De uma tal bondade humana, assim ele dizia, tirando o
charuto da boca, embalando a cadeira.
— O leite? Tu não é besta, não?
[276] — Nos furtaram, minha irmã.
— Irmã?
— Pois não foi?
— Irmã? Irmão esse na boca da irmã, tão, que tive de puxar
meu beiço? Te descreio. Irmão o diabo, o diabo.
Falava baixo, como se recebesse no rosto o cuspo da piedade
dele, o beijo devolvido.
— Estou que ele saltou em Vitória, o nosso bom ladrão, —
falou Alfredo, embaraçado, e cochichou miúdo: — Sim, o
ladrão. Eu? Aquele? O outro? Todos do navio? Um não foi?
Bebeu o café, assustou-se com o olhar dela... Ou foi... Alfredo
estalou os dedos, já a Sem-Nome bebia o sobejo da xícara. Alfredo
lhe via os peitos cheios.
Ia atracar. Nada via senão sua solidão, seu Susto, seu não saber
onde ir, onde mudar de roupa, ao vai-e-vem de bordo:
— Cala essa estrepolia de trem, apitador do Cão! Arrolha teus
apitos, boca do diabo!
Divide os trinta mil réis com o Muralha que está a nenhum, aqui
sentado na sua mala agora fechadinha a chave. Ambos num
embaraço, envergonhados, como dominados por mútua suspeita ou é
a despedida? Aqui se corta a amizade e tudo assim, chegando o porto,
se interrompe. Perto, dente de fora, penteando-se, a Sem-Nome com o
seu vestido de saltar acostumando os olhos no que via.
Com a sua maleta, vê-se no cais, o cais jogando, os guindastes
vão despencar? Nos olhos o serão embaixo da escada, a ação do
travesseiro, o entrar em Vitória, noites de gororoba e mar, a face da
cearense entre os cabos e os barulhos de bordo, aqueles muitos pés de
Cabedelo na terceira, o beijo ao som do hélice lá embaixo escumando,
o olhar de Muralha, o meu, o teu, adeus e a chaga do penitente pele-ecaveira, o feroz flagelado. Onde fica ele? Salta em Santos? Dele, em
Santos, é só aquela chaga a saltar.
[277] Aqui em terra e sem fôlego, com a falsa identidade de
taifeiro, e sua maleta. Sim, a carta para a rua do Livramento. Pelo
menos uma rua, um número, uma porta. Trinta mil réis? Agora
quinze.
— Cadê o sangue da cara, Pará?
Se despede, com o irmão e a cunhada, agora no cais, meio
dissolvidos no cais.
Quer agarrar-se àquelas muletas, os dois cidade adentro, e está
sem voz, os pés no ar; a moça, neste minuto, nada mais que aleijada
no cais, reduzida àquela perna; doeu-lhe pensar assim e ver assim,
certo do que ia acontecer a ela neste cais duro e sujo e mais adiante.
— Te despede de eu, Pará. Pode que nunca a gente se veja mais
um dia só, você faz voto?
Sorria, rainha de suas muletas, com elas pronta a romper cais,
cortiços, e demais durezas, tranqüila quanto ao imprevisível,
aceitando o que ia lhe acontecer.
Teu sangue, Pará?
Meio caçoava, como se indagasse: Foi quanto te custou, Para,
aquele boca-com-boca, te cobro dobrado, Pará. O sangue, cadê? Teu
sangue? As muletas a levavam. O aperto de mão, o; olhos dela. E teu
sangue? Sem sangue estou mas e por minhas baixezas, cospe no rosto
que desconfia de ti, inocente. Nunca mais. Quem te tirou teu sangue,
Pará? De repente sumiram?
Veio o Muralha, desgovernado, tossindo, e se despedia, rumo
ao guincho, ou atrás dela? Tinham combinado? De repente sumiram,
139
esses dois, quem sabe? Tão entendidos que suspeitar paga no inferno?
Tinham combinado? Lá adiante, com as suas goelas, a cidade: Cá te
espero, recruta. Cais sujo, duro, onde é a saída? Apalpa a carta no
bolso, os quinze dez tostões, aquele par de bordo, o guincheiro e a
aleijadinha. Cuspia no prato, estripava o travesseiro. Neste adeus,
nesta saudade, deu bicho. Correu para vê-los. Sumiram-se. Escutava
no calçamento o baque surdo das muletas.
[278] — O senhor me ensina por favor a Rua do Livramento?
Onde a rua, que não aprendia? O chão trepidava. Ia escurecendo
irreal, rodava o labirinto, em tudo um redemoinho. Andava que
andava, onde era? Seguia trilhos, os bondes o enxotavam, ferozes;
parou nesta porta a ouvir bater a bigorna, bem batendo a bigorna, um
som limpo, sossegado, parecia vir de longe e batia por dentro do
peito, era o ferreiro de Cachoeira, chaves da cadeia, Andreza a chave
jogava no rio, a marca em brasa no quarto da Merência, o ferreiro
batendo. Queria misturar-se em tudo isto, bigorna, gente, portas,
assim no primeiro instante, e só via a Sem-Nome batendo as muletas
no barulho geral. Maleta na mão, se cansou, fico na esquina, a maleta
pesando, era todo o Pará que carregava. E esses mendigos, esses
bêbados, esses com um ar de múmias, na calçada, chumbados?
Pediam, escancaravam as chagas, espichavam o braço imundo. Onde
a Livramento?
Até que entrou num túnel, lá do escuro explodiu aquele grito
como nunca ouviu, alguém ali caído, onde estava, de onde vinha,
quem? Os escuros do túnel faziam mais tenebroso o grito. Todos os
miseráveis da Terra gritavam naquele grito. Retrocedeu, respirou
numa pracinha. Tornou a andar, com o Pará na maleta, voltaria ao
cais?
— Meu senhor, por obséquio, onde é que é a Rua do
Livramento?
— Está andando nela, moço, andando nela.
Aqui é o número, bateu. Dos bondes que passam salta o grito do
túnel.
Zarolho pelas esquinas, já nem se reconhecia, quem me devolve
o que sou? Caminha jogando no ar o invisível tucumã, por isso aluga
quarto na Sacadura — aquele mirante — tira as medidas no alfaiate,
manda buscar a mãe. Me perdoa, Roberta, lhe escrevia, e acabava
gaguejando, esmorecido e suado, por um copinho d’água no café.
Com seu sola de borracha que até chamava atenção, descia pela
Sacadura, roçando [279] naqueles desconhecidos do Lóide, Costeira,
Marinha, jogo de bicho e turfe, estiva e patentes do morro, aqui se
deu uma punhalada, ali um tiroteio, no beco, este, costuma passar valentes, essas ladeiras no escuro e no silêncio fazem abrir navalha, aqui
nos batentes saiu carnaval e morte. Lá por cima os morros onde
parecia a paz, qual nada, escorria de lá uma pobreza de tamanco
apressado ou se jogava futebol todo dia num baldio e às quartas tinha
feira. Aqui é a Saúde. Aqui bem na bunda do cais, transpirando
estiva, botequim, varejo, porão, o hálito das viagens e dos
contrabandos. Dos freges chinas o fedor de sebo, carne velha e
repolho. O herói vagueando no calor de outubro a ouvir nesta esquina
falar do Vasco, é o Rio? Vamos nos guiar pelo toutiço da Galeria,
para a maré dos encontros, onde ninguém encontrava nem consigo
mesmo, sendo um zero a mais no meio fio. Ah, Pará! A maleta pesava
lá na Livramento. Em Belém tudo é vizinho, tudo na palma da mão,
aqui o descostume amolece espinhaço, rói o sapato, pui o fato número
um, escurece o colarinho, o juízo é um pião. Ah, Chão dos Lobos
aquelas tardes com o Oscar no aviso de guerra — Vamos fazer deste
aviso da Marinha a moradia da Maria Igarapé? — Subia fora da lei a
janela do sótão, tão familiar, os sabores do a pé pelo Marco, o
tempero de tucupi e ladainha na voz da Magá, a mão, por debaixo da
mesa, tateando o joelho e a dona do joelho aqui por cima estudando o
catecismo. Suspenso sobre o Não-Se-Assuste, o quintal de borboletas
onde a zanoia lia o Carlos Magno para a mãe, e a ragazza atrás da
veneziana, coçando o cotovelo, espionava Deus e o mundo. Com
140
aquele seu pesão cavado de beijo, o velho São Pedro de Santana, sem
se afastar dali, fechava e abria a Porta lá de cima. Tudo na palma da
mão, visto e conferido, de cor e salteado, a desnuda entre as jacas, o
sapo ancião da vala, veterano do Paraguai, coaxando a batalha de
Tuiuti, fedores e cheirumes de Belém, aquele sempre piano na
travessa do Curro ao fim da tarde, depois da chuva, vá ver quem
tocava, outra não era senão D. Emília Alcântara. O jeito das
mangueiras em [280] cer|tas noites ou quando em São Brás
desembarcava do trem a madrugada já no fim da serenata e se
espalhavam os boêmios bebendo orvalho à falta do último gole. Onde
a cova de Luciana, não sabia, e tão à vista na sala da José Pio. O rosto
da passante, quem, não sei, e é de toda intimidade, e aqui a rua cega,
apinhada, a areia come os passos, dormindo de misericórdia naquele
cantinho do soalho, debaixo das inquirições de D. Aurora, aqui na
Livramento, neste sobrado encardido de três janelas com um
misterioso depósito no térreo sempre trancado. Porém, na José Pio,
debaixo do jasmineiro, Esméia despetala seu escurume, como se
gerasse jasmins. Lá no sótão a pompadour de jinjibirra2 e alho fazia
as malas para Caiena: Vem comigo que, é só não duvidar, a gente dá
um saltinho lá na França, que tu achas? Tu gastando esse teuzinho
francês decorado com a D. Marta, te despacha, meu arara, pula no
estribo, te agarra a esta costela, que meu vôo é esticado, vou é léguas.
Ter com o que viajar, ter, tenho. Não tão como o que tens e isso é de
berço. Entra no balaio que te carrego nas costas o tempo que der, sim
que depois, filho, que se há de fazer? Aí, o mundo é só teu.
Aqui ninguém sai do ouriço, dos seus ocos, de seus dentes
ferrados. Vozes, passos, rostos, roupas, aglomerações, bancas,
estátuas e mictórios, estoura o barril do chope, desembestou a sirena,
tudo o suficiente para ocultar o que pelas almas é solidão, o pé atrás,
quarteirões de pedregulho e caco de vidro esfolando o recém2
Bebida fermentada, feita de frutos, gengibre, açúcar, ácido tartárico,
fermento de pão; cachaça.
chegado. Uma palavra, uma so, só uma quero escutar, que me
assegure que estou em redor de gente ou comigo mesmo, uma
palavra, uma palavra, ao menos aquela, a derradeira, no cais, que a
Sem-Nome exalou: “e teu sangue?” tão Ceará, baixinho, como se
também se esvaziasse de Quixadá e de si mesma, aqui lançada às
feras. Uma palavra. Neste calor só de gelo, aqui de cambulhada, no
corre-corre de um milhão de gente, adeus, quinze mil réis e a razão da
viagem. Este edifício mais alto da América do Sul sorve e cospe as
lesmas que entram e saem por entre os marinheiros bêbedos. Então
vamos ao escritório levar a [281] se|gunda carta de recomendação do
professor de Geografia, coitado, metia suas canas desde o café e do
seu delírio ditava a aula e suas cartas de recomendação, sempre
desembaraçoso no recomendar, encerrando o dia com gim na terrasse,
seguia para a casa a pé pelos Alpes ou fundeava no Mediterrâneo, um
buraco de cachaça e posta de piramutaba na São Mateus. Pois vamos
levar a carta de recomendação no tal escritório. Era chegar, no que
põe o pé no primeiro degrau, dava atrás. vá ver puxado por uma alma,
tão atrás, varrido por um vento que o deixava na Avenida. Só dava
conta de si já pelas alturas da Ouvidor onde gritavam:
— Pérolas Japonesas! Pérolas Japonesas!
E as vitrolas ganiam.
Horas e horas na rua para não almoçar na Livramento. Como no
baile imaginário da fazenda Mãe Maria, Andreza lhe tirava das
vitrinas a lingüiça, o pão, o pudim, o vinho. O leitão assado com a
batata na boca. Aquele terno de casimira. Aquela camisa com aquele
preço tão nas nuvens. O jornaleiro: O crime da mala! O crime da
mala! Agora com dois mil réis no bolso, o passo de borracha entre
tantos e tamanhos bancos desta rua, bancos de nome comprido e
nome gringo, aqui neste guichê um senhor, oh, quantidade assim de
notas, não pára de contar? Fugia para Botafogo. Comia a enseada ao
molho inglês visto do Largo da Carioca. Pendurava a enseada no
pescoço da Esméia ou no quarto de Bina, a mais feia. Passou pelo
141
hotel, aqueles criados na frente que nem marechais. Sentou-se num
banco do Flamengo. O mangue, onde era? Roberta salta daquele bote
a vela, ou doutro lado, com o Boi, conduzida no ombro do Amo, seu
Profeta.
Entrava na Sacadura. Aqui, neste fim de tarde, o mesmo velho
dos bilhetes de loteria. Na esquina estendia a mão, em silêncio. Todo
dia ali fincado, com um tremor no corpo todo, oferecendo a sorte.
Ninguém comprava, ninguém olhava. Ah, tudo isso aqui é de
chumbo, só chumbo. Queria-lhe dizer, por exemplo: Boa tarde. A
língua não dava. O velho responderia duro, quem sabe também, de
chumbo, [282] chumbo. Vem e vai, é o mesmo velho, mendigo de
corpo inteiro sustentando o maço da loteria, de mão estendida a
oferecer fortuna. Vem e vai, e é o mesmo velho. Segue para a
Livramento. (O crime da mala! O crime da mala!) Novamente para
dizer que foi furtado e ninguém a acreditar? Me furtaram, dizia sem
calor como se não fosse exato. No túnel, gritou: Me furtaram!, todos
os ecos o escuro comeu.
Voltava à Livramento, cortando gente e esquina, mais zarolho,
o fato mais sujo, mais suor pelos sovacos e com bosta de cachorro na
sola de borracha. E o primeiro furinho no fundo do bolso, onde
enfiava o dedo e o ânimo.
Na Livramento, entrar quem disse? Como fugir das vistas da D.
Aurora que sempre puxava o cabo da porta? Gorduchona,
movimentada, falante, D. Aurora do Pará fornecia refeições,
subalugava quartos, agarrada ao seu serralheiro, o seu Mílton,
também paraense, mulato amareloso, meio artimanhoso no falar, bem
mais moço que a D. Aurora. Menos se esperava rompia a D. Aurora
pela casa, bochechas em fogo, o cabelo à la garçonne, brandindo a
vassoura: Pois mal me chega, mal me toma banho, mal me janta, mal
atira no ombro da vaca velha o macacão da oficina pra que lhe seja
devolvido bem passadinho, etc. e tal, e o meu: Mas onde tu vais? Que
se deu pra tamanha pressa, quem que na rua vais tirar da forca?, ele
botando tromba: É a sessão, mulher, é a sessão da minha sociedade
profissional, já vou atrasado. Atrasado! Sociedade profissional! Arma
a Kodak, tira uma vista da sociedade profissional, bate a chapa.
Descarado! Vou é saber já-já onde é no Mangue esse teu puteiro, bato
lá de táxi, pago, ponho um secreta grudado no teu fundilho! E de
quando aqui chegando do Pará adoece e olhe os meses.., entre a visita
do médico e a vela na mão e te paguei, doutor, farmácia, as maisenas:
Ai, Aurora, não me deixa morrer, Aurora..., o froxura! e colherinha
do xarope na boca e a bem dizer aparava na palma da mão o mijo da
tua bexiga podre, cadê, seu descarado?
[283] Marinheiros e barbeiros, que comiam na D. Aurora, se
vergavam sobre o prato de sopa, partiam o pão com divertida
paciência. O serralheiro, sapato duas cores, chapéu de palha, o lenço
no paletó com uma ponta de galhofa, descia pateando os degraus e
com um coice na porta. D. Aurora trazia no tabuleiro os sólidos da
janta e ia cantarolar, lá dentro, sobre o tanque, lavando o macacão.
Alfredo entrava debaixo daquele vexame, com o seu desaprumo de
quem comia de graça e ali apanhava o prato já feito na mesa, comia
tão de cabeça baixa, a ouvir o 3.º sargento da Armada falar de sua
belonave e das mangas de Itamaracá.
— Olhe, Pará, talvez lhe arranje a bordo uma vaga, servir à
oficialidade a bordo. Serve?
— Serve, serve, sim — acudia lá do tanque a D. Aurora.
— E olha, grumete, antes de ir servir à oficialidade naval, me
comprezinho agora um sebo de holanda na drogaria do canto, sim?
Alfredo arriava o cadáver no chão, onde, à luz da lâmpada lá do
teto, lia O País. Não demorava: Olha a luzinha correndo... Me
apague, sim? Era a D. Aurora, metia pela entreporta o ombro nu e os
bugalhos.
— Este quarto, aqui, é baratinho, só sessenta. Você quando se
empregar, pode ficar com ele. A refeição é duzentos e dez. É só você
pegar um emprego.
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Não achava lugar no travesseirinho para a cabeça. Ficava pelo
quarto escuro a loção da D. Aurora, o amarelo daqueles bugalhos e a
voz um tanto abafada.
Bateu a Saúde, correu cais, Central, Mauá, até no Caju foi, e da
aleijadinha nem um eco. Ficava na janela defronte do sobrado onde
tinha sempre o velho no peitoril. Toda boca da noite era o ancião de
gorro, cachimbo e silêncio à espera que aquela carroça parasse à sua
porta e o levasse enfim. Espiando o céu, Alfredo fez um espanto:
— Estrela! Mas tem estrela! Tem!
Veio a D. Aurora, queria que ele, noutra manhã, preferível bem
cedo, esfregasse o soalho com pano molhado, sim?
[284] Salas, corredor, escada... sim? Faz crescer o músculo, não
custa, sim? Sim, sim, por que não, não era por conta? Pelo menos
esfregava o soalho. Veio quarta e ela o rebocou com um cesto à feira
e fez dele o seu moleque de carreto, e ai! Que dona mais
pechincheira, tira, refuga, tão titi-de-galinha no escolher como no
pagar. Já alguma vez comeu cenoura, conterrâneo? Alfredo se via de
novo o tal menino lá da Gentil carregando com o velho Alcântara as
compras de domingo. Foi distrair-se, caiu do cesto a cebola, a folha
de alface. Descansou o cesto na calçada. Lá atrás a D. Aurora com o
ramo de flores para o centro da mesa. Agora ao pé do tanque,
chamou-o: — Que lhe falta pra rebaixar esse seu matagal da cabeça?
Aí noutro quarto o Ezequiel está fazendo tosquia. Entre, entregue a
cabeça, que ele lhe corta a crédito. Ponha abaixo a cabeleira do Norte.
Talvez seja ela, talvez seja ela... Me mire bem, me olhe bem, mas de
frente, sustente. Raça de índio, aí, que é de doer! Paraense a mais não
ser. Me mostre suas marcas da maloca, seus urucus. Que foi? Que se
deu? Tudo o que faz é sorrir nos olhos o selvagem.
De cabelo aparado, bastante alheio a tudo, a si mesmo, vai à
janela, esperando ao menos aquela carroça chegue em busca do velho
lá defronte. Nem os balanços do mar lhe botaram fora a Aluna e a
Fada. Nem uma noite se enjoou de enjôo do mar nem mesmo ao pé da
gororoba, para vomitar o Chão dos Lobos, o Ginásio, a Fada. A Fada,
sobretudo. Vomitá-la na borda e saltar aqui sem um pó de serragem,
sem um estribilho do Boi, sem vê-la nunca mais debaixo do
araçazeiro. Não era a carroça que chegava, era aqui atrás dele,
desatando o avental, a D. Aurora.
— Espere aí, me escute, índio gavião, agora é a sério, pão-pão,
queijo-queijo, ponha de lado o arco e a flecha, me dê uma audiência.
Venha cá, se sente aqui, me venha dizer, me exponha a questão,
cheguezinho cá, mais perto de mim, arraste daí sua cadeira que seu
pedaço não tiro, não me dou com carne bugre e me diga devera sem
comer uma palavra, [285] aqui entre eu, sua pessoa e Deus, só entre
nós três, que essas coisas bem que eu compreendo, nunca são do meio
da praça na boca do camelô e tanto que acontecem! Não finja que lhe
desaconteceu, não finja. Disso é feito o mundo, é o nosso ingrediente.
Me explique de que é culpado ou de quem é vítima, desate comigo o
seu nó. Que foi então que me andou por lá fazendo o meu cavalheiro,
lá pelas nossas malocas do Pará e já que de lá se atira pra cá assim
sem mais nem menos — do que duvido — e a sete chaves e tão
sobressaltado, a modo de um cachorro lhe cravando o dente atrás?
Então uma pessoa, que não creio que seja à toa, se arreda de onde
enterrou o umbigo e de lá do confim inventa semelhante viagem, tão
despreparado, nem que viesse fugindo da ilha do Diabo? Está a
prêmio? Olhe o mapa aí na parede, tire uma imaginação só das
distâncias, a enormidão do tempo, quinze vezes vinte e quatro horas
ou mais num qualquer calhambeque. Ou isto aqui não é a Capital? A
toque de caixa, escapuliu de quê? Em que cumbuca apanhado? Fale
nem que seja baixo, estou de oiça limpa. Me declare. Chegando aqui:
Me furtaram a bordo, foi no porto de Vitória e nada mais? E fica
assim numa sarapantagem? Olhe o seu inventário: suas roupagens.
Deus que me perdoe. Um? Um? Uma beca só? Além do mais, que
beca, de que fazenda! Um ao menos de casimira me trouxesse, um!
Ou desembarcou para o zoológico, errou a porta? Todo nu, pintado de
143
urucu, sendo assim servia. Mas já que veio em figura de gente, ah,
não! Tenha paciência! Pra sua ciência, olhe o Mílton quando aqui
desembarcou, só de ternos trouxe sete, sete! Todos de casimira. Aqui
se chama terno a fato. E o meu cavalheiro? Roupa é o melhor
documento. Um de casimira, fosse de segunda mão, trouxesse. Ou
isto aqui não é a Capital? Que então que sucedeu? Faça o seu
relatório. Tão carecente das mais mínimas coisas, qual a causa? Aí me
furtaram a bordo. Fui furtado em Vitória e só? Rasgue a fantasia e
mostre o tumor, mc tire do desentendido. Estou lhe dando um
vomitório? Por mal não é o que lhe digo. Conte as artes que fez. Ou
que lhe [286] fize|ram. Olhe só: sua carinha não me engana. Até suas
espinhas de rapaz parecem falar. Só a sua voz não fala? Corrido?
— Corrido?
— Corrido, sim, que mais que é? Corrido?
Alfredo afeta embaraço, instiga a suspeita, mira-se no espelho
da parede:
— D. Aurora!
— Da justiça?
— D. Aurora!
— Foi fazer, fugiu? Foi?
— D. Aurora!
— Vomite, ande, vomite. Vomite, que lhe aparo o vômito. Ou
recolhi no seio uma serpente?
Alfredo riu. D. Aurora abanava-se, respirava fundo fez-se um
pouco sufocada.
— D. Aurora, já lhe disse, fui furtado. Sim, que o dinheiro não
era senão para os primeiros dias. Um conto de réis.
— Olhe, meu filho, no seu balão não vou. Bem. Já que insiste,
tão apregoa, vá lá, deixa pra lá, isso em Vitória, admito, não desminto
nem confirmo. Mas o fogo de pegar o navio, o fogo? O sem-que-nempra-que do perna-pra-que-te-quero? Alguma?
Alfredo armou o espanto:
— Alguma, D. Aurora?
— E por cima debochando? Sendo você um menor e eu a dona
desta casa, não está no meu dever?
D. Aurora mexe-se na cadeira, enfia a mão dentro do peito,
arruma a massa dos seios, abana-se, suando as suas gorduras, ávida,
piscando o olho.
— Foi fazer e... — palmeou a mão esquerda, logo cruzou os
braços.
— Lhe botaram então os javalis no calcanhar?
Levantou-se, arrastou a cadeira para o pé do rapaz, fez a voz
abafada:
[287] Tudo, tudo, tudo faz crer sim. Não que eu queira
adivinhar. Deixe de maquiavelismo, criança, criança, e mostre o que
lhe fede por dentro que assim, sim. Se a polícia? Queria que
escondesse você debaixo da minha saia?
— A polícia me levava, ora essa, D. Aurora.
— Menino, enxugue a alma na bainha desta saia, que esta, aqui,
que sou eu, má mulher não é, e a hospedagem que lhe deu foi em
muita consideração, que aqui? No Rio? No Rio é um buraco, olhe que
é um buraco. Foi fazer, meteu-se a bordo? Fez?
— Que fiz?
— Tire a chave na fechadura e me mostre os compartimentos,
seu cabeçudo! A sua idade está dizendo, idade assim como essa sua,
Nossa Senhora da Boa Morte! Olha só o rasgado da boca, um beiço
pimentão. Essa estatura toda. Por detrás desse teu sorriso, hein? Aí
que está a cavilação, índio! Olhe, batida de polícia aqui dentro de
casa, Deus me defenda. Passar pela vergonha? Me escancara a casa
com um escândalo? A quem abri a porta?
D. Aurora desabotoa o peitilho, enxugou o rosto com o braço,
apertou o cinto na barriga. Fez um rogo na voz:
— Desate seus ocultos, índio urubu. Me deixe ver essa sua mão,
olha a linha... oi! Infeliz de quem te escuta e te segue... Infeliz.
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Alfredo recupera a mão, levantou-se.
— Bem, D. Aurora, se assim é, por isso não, pelo bom nome de
sua casa, licença, licença, só é o tempo de pegar a maleta.
— Mas ó, meu diabo! Estou te mandando embora? Vem cá!
Vem cá!
Maleta na mão, vara o túnel dá com aqueles gritos. Os mesmos
berros de bêbedo ou doido atroando. O berreiro explode ali do escuro,
da pedra, das bocas do mundo. Roda a carroça no escuro. Vai buscar
o velho na Livramento?
[288] Voltou pela Camerino debaixo dos gritos, descansa no
cais. Esse bicho norueguês, aqui descarregando, aceita um grumete?
Venderá a maleta, os dois livros, o anel. O travesseirinho. Mas onde?
pensa, agora, no menino guardado dentro do caroço de tucumã em
Santana (talvez pendurado no pescoço de Dolorosa), o caroço
grelando em breve um tucumãzeiro, lá em cima entre os espinhos o
cacho do faz-de-conta. Aqui, meu senhor, me compre este caroço,
jogue no ar e veja os resultados... Não tem preço mas fique com ele
por cinqüenta mil réis pois preciso um casimira de segunda mão.
Segue, de novo, pelo túnel debaixo dos gritos, o túnel despeja
escuridão e o berro sobre a praça. Deságua na Central, o trem saía.
Deita-se no banco da praça, ouviu um toque no quartel. Põe a
cabeça no travesseiro. O túnel entra-lhe pelo sono, reboando.
Mal amanheceu. Nem lhe tinham furtado a maleta? Compra o
jornal, corre os anúncios e de maleta em punho chega à Conselheiro
Zacarias. É o Café São Silvestre.
— É oitenta mil réis, com direito a café, refeição e duas garrafas
de cerveja.
— Não tenho documento. Venho do Pará.
— Não importa. Espere o rapaz que vai lhe mostrar o serviço.
Tome logo o café.
Tinha que limpar o fogão, trazer o carvão do depósito, acender
o fogo. Chegava o cozinheiro.
— Aqui está o novo empregado.
— Vamos ver se dura, se presta.
O mulato, ajudante de cozinheiro, ensina-lhe a tirar do tanque as
carnes velhas, a carregar o carvão, a cortar o repolho, a dispor da pia,
tinha água quente. O cozinheiro preparava as panelas para o fogo.
— Vamos, traga mais carvão. De sapatos? Tome este tamanco,
ponha o avental, parece que está com cerimônia? Vá agora buscar o
carvão.
[289] Aos poucos se movimenta o frege, se amontoam os
pratos, o diabo é que nem almoçou antes, como é do regulamento. A
torre de pratos cobre a pia e nova pilhas chegam. O grito do garçom
se mistura ao do túnel e ao jorro das torneiras.
— Nunca na vida lavou prato? Tire a gordura. A gordura.
Ponha água quente. A gordura! A gordura!
As comidas saem, sabe Deus como, esse pescoço de galinha,
não espreme que sai bicho. Repara no cozinheiro, um português, meio
esverdeado, porco de língua, de gorro e sempre tossindo, tossindo
sobre o cozido e o arroz.
— Hoje é o meu derradeiro escarro. O resto do meu bofe podre
sai neste ensopado, assim me pede o Diabo. Está por pouco esta
tísica. A cozinha me comeu o peito? Pois que agüentem o menu!
Anda, Brito. Leva este ao molho Koch ao freguês!
Os pratos se derramam, frenéticos, lava, enxuga, se empapa de
sebo, fumaça e frio, agora sob a torrente dos talheres. Aqui
devolvidos, quentes ainda das bocas saciadas. Lá fora comem o pasto
brabo. Daquelas fomes lá fora chegam os pratos sujos, o sobejo, um
sarro, um palito, o arroto, a náusea. Teve uma necessidade, vai aos
fundos e vê, através da cerca, aquela pretinha bem pretinha a estender
roupa. Pedaço de quintal! Flui sossego, a roupa lavada, o rostinho da
lavadeira. O rostinho é o Pará puro, as escuras de Areinha, a mãe donzela a estender roupa. Já o português berrando:
— Ó meu rapaz! Só agora te lembras de mijar? Mija aqui
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mesmo na pia, lava os pratos no mijo, que é o azeite da casa. Aos
pratos! Aos pratos!
Não cessam. Lava também suas suspeitas, seus vexames, seus
espantos, o medo indefinido, a cara da D. Aurora, aquele Vem cá!
Vem cá!, tantas como estes pratos. E se vê quebrando pratos,
desmorona a torre, joga o avental na cara do cozinheiro, agarra a
maleta, salta pelos fundos, rompendo a corda da roupa, ouvindo atrás
dele a voz doce: ladrão! ladrão!
[290] Consegue ocultar-se num baldio, sentado na maleta, por
dentro o escarro do cozinheiro, viscoso, engordurado.
Calçou os sapatos, cheirou as mãos que tinham trabalhado,
precisa fazer a barba, tomar um banho. E esse rumor de oficina?
Que anoiteceu, entrou no túnel que o recebe com os mesmos
gritos, ou sai de mim este clamor? Os pratos giram. Outubro, Círio,
em Belém roda no túnel a Berlinda, o Carro dos Milagres, o brigue
dos serafins, mulatal do Jurunas, as descalças de São Brás, a Mãe
Ciana atrás do seu Lício, os bêbedos e raparigueiros do arraial, a
cabeça do Arcebispo, as cadeiras de embalo na Sociedade do
Descanso, as bandas de música, os Alcântaras mais gordos, todos
dentro do túnel que devora a procissão. O túnel reboa.
Chegou ao banco da praça, tirou o travesseirinho e de cada
prato, no sonho, salta a menina, aquela, dançando em cima do arroz e
da salada, já sentada na Berlinda, toda de cera no Carro dos Milagres,
suspende a saia para os serafins, boiou entre os talheres na pia
imunda.
Acordou pela madrugada. Um mendigo, sentado na maleta, lhe
pede um cigarro.
— Então vamos ao café.
O restinho dos tostões paga. Os dois ao café bebem uma
cachacinha em silêncio, como se comungassem. O mendigo se benze.
Mostra a medalha no pescoço, medalha essa que trazia no meio os
olhos de Roberta.
De maleta na mão, flanando na Avenida, pára, surpreendido.
Mas aquele se não é o seu Paula... Aquele fazendeiro do Curral do
Meio, lá do rio de cima. Ele mesmo! Ele mesmo!
— Ó seu Paula! Ó seu Paula!
— Mas, seu menino! Que me anda fazendo, assim de maleta na
mão, com cara de perdido neste colosso?
Neste colosso, perdido? Alfredo não vacilou: está rumo da
Escola de Agronomia de Piracicaba.
[291] Seu Paula, não. Está com a senhora muito mal, tão mal
que só Deus.
— Trouxe ela de lá faz dois meses, operou, tentou o rádium.
Mas aquele caranguejo, seu menino, quando crava, crava. Venha nos
ver no Largo do Machado.
Largo do Machado! Na cama, a senhora muito alva, penteado
feito, sobre o seio a mão exangue. Tudo muito limpo, sossegado,
lençóis brancos, a laranja descascada, o cacho de uvas, o vidro de
perfume, a flor de ontem, as horas, o telefone. A que altura vem a
carroça? Aqui será bem recebida. E isso deu a Alfredo:
— O senhor pode já-já me pagar a passagem de volta? Lá lhe
saldo. Pode?
Corre no cais, um cargueiro, pulou a bordo.

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