Revista Antropologia Ciência Política História Sociologia

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Revista Antropologia Ciência Política História Sociologia
SOCIEDADE
em ESTUDOS
ano 1 vol.2
Revista
Antropologia
Ciência Política
História
Sociologia
Apoio:
N
Conselho Consultivo
Editor – Chefe
Jeulliano Pedroso de Lima
Editores
Área de Antropologia
Edimara Oliveira (Coordenadora)
Elton Colini Gonçalves Zimmermann
Jeulliano Pedroso de Lima (Editor Chefe)
Leonardo Campoy (Coordenador)
Marcel Taminato
Área de Ciência Política
André Ziegmann
Bohdan Metchko Filho
Bruno Bolognesi (Coordenador)
Julio Gouvea (Coordenador)
Lucas Fernando de Castro
Luiz Domingos Costa
Área de História
Aruanã Antonio dos Passos
Jakson Hansen Marques (Coordenador)
Natália de Cássia Teixeira Bellos (Coordenadora)
Heloíse Peratello
Área de Sociologia
Felipe Trovão(Coordenador)
Gabriel Cardeal Oganauskas
Luiz Eduardo Silva e Silva (Coordenador)
Rafael Braz
Coordenadoria Financeira e de Convênios
Bohdan Metchko Filho
Secretaria Executiva
Sandra Avi Santos
Área de Antropologia
Bruna Franchetto (UFRJ-Museu Nacional), Ceres Gomes Víctora (UFRGS), Christine
Alencar Chaves (UFPR), Ciméa Barbato Beviláqua (UFPR), Edilene Coffaci Lima
(UFPR-ABA), Gilberto Cardoso Alves Velho (UFRJ-Museu Nacional), Jose Guilherme
Cantor Magnani (USP), Leila Sollberger Jeolás (UEL), Liliana de Mendonça Porto
(UFPR), Lorenzo Macagno (UFPR), Luiz Fernando Dias Duarte (UFRJ-Museu Nacional),
Marcio Goldman (UFRJ-Museu Nacional), Marcos Pazzanese Duarte Lanna
(UFPR), Marcos Silva da Silveira (UFPR), Maria Inês Smiljanic Borges (UFPR), Miriam
Pillar Grossi (UFSC-ABA), Otavio Guilherme C. Alves Velho (UFRJ-Museu Nacional),
Peter, Henry Fry (UFRJ-ABA), Roberto DaMatta (PUC-RJ), Sandra Jacqueline Stoll (UFPRABA), Yonne de Freitas Leite (UFRJ-Museu Nacional).
Área de Ciência Política
Adriano Nervo Codato (UFPR), André Marenco dos Santos (UFRGS), Armando Boito
Jr (UNICAMP), Décio Saes (UNICAMP), Eli Diniz (UFRJ), Fabiano Santos (IUPERJ),
Fabrício Tomio (UFPR), Fernando Limongi (USP), Jairo Nicolau (IUPERJ), João
Feres Jr (IUPERJ), João Quartim de Moraes (UNICAMP), João Roberto Martins Filho
(UFSCAR), Luciana Veiga (UFPR), Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida (PUC-SP), Luiz
Werneck Viana (IUPERJ), Luzia Helena Herrmann de Oliveira (UEL), Marcus Figueiredo
(IUPERJ), Mario Fuks (UFMG), Nelson Rosário de Souza (UFPR), Paulo Roberto Neves
Costa (UFPR), Renato Monseff Perissinotto (UFPR), Renato Raul Boschi (IUPERJ), Rafael
Antônio Duarte Villa (USP), Sérgio Soares Braga (UFPR), Emerson Urizzi Cervi (IUPERJ).
Área de História
André Luiz Joanilho (UEL), Ciro Flamarion Santana Cardoso (UFF), Eduardo Basto de
Albuquerque (UNESP-Assis), Euclides Marchi (UFPR/UNICEMP), Fátima Fernandes
(UFPR), José Roberto Portella (UFPR), Margareth Rago (UNICAMP), Marion Brepohl
(UFPR), Pedro Leão da Costa Neto (UTP), Rafael Rosa Hagemeyer (UFPR), Renan
Frighetto (UFPR), Ronald Jose Raminelli (UFF), Ronaldo Vainfas (UFF), Roseli Boschila
(UFPR), Ruy de Oliveira Andrade Filho (UNESP-Assis), Sandra Jatahy Pesavento (UFRGS),
Sergio Nadalin (UFPR).
Área de Sociologia
Adalberto Moreira Cardoso (Iuperj), Alvaro Augusto Comin (USP), Ana Maria Fernandes
(UnB), Ana Maria Kirschner (UFRJ), Angela Alonso (USP), Angelo José da Silva (UFPR),
Arthur Trindade Maranhão Costa (UnB), Benilde Maria Lenzi Motim (UFPR), Berenice
Alves de Melo Bento (UnB), Berlindes Astrid Kuchemann (UnB), Bernardo Sorj (UFRJ),
Danilo Nolasco Cortes Marinho (UnB), Débora Messenberg Guimarães (UnB), Dimas
Floriani (UFPR), Elisa Reis (UFRJ), Eurico Antônio Gonzalez Cursino dos Santos (UnB),
Fernando Antônio Lourenço (Unicamp), Fernando Antonio Pinheiro Filho (USP), Iram
Jácome Rodrigues (USP), João Gabriel Lima Cruz Teixeira (UnB), José Ricardo Ramalho
(UFRJ), Leila da Costa Ferreira (Unicamp), Liana da Silva Cardoso (UFRJ), Lúcio de Brito
Castelo Branco (UnB), Luiz Antonio Machado Silva (Iuperj), Marcelo Siqueira Ridenti
(Unicamp), Márcio Bilharinho Naves (Unicamp), Marcio Sergio B. S. de Oliveira (UFPR),
Marcos César Alvarez (USP), Maria Alice R. de Carvalho (Iuperj), Maria Angélica Brasil
Gonçalves Madeira (UnB), Maria Arminda do Nascimento Arruda (USP), Maria Helena
Oliva Augusto (USP), Maria Ligia de Oliveira Barbosa (UFRJ), Maria Tarcisa Silva Bega
(UFPR), Marlene Tamanini (UFPR), Mário Antônio Eufrásio (USP), Michel Misse (UFRJ),
Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro (UnB), Nadya Araujo Guimarães (USP), Nelson
Dacio Tomazi (UEL), Renan Springer de Freitas (UFMG), Ruy Gomes Braga Neto (USP),
Sedi Hirano (USP), Sylvia Gemignani Garcia (USP), Tania Barbosa Quintaneiro (UFMG),
Vilma de Mendonça Figueiredo (UnB) Walquiria G. D. Leão Rêgo (Unicamp), Pedro
Rodolfo Bodê de Moraes (UFPR).
Editora Sociedade em Estudos
Coordenação Editorial: Jeulliano Pedroso de Lima
Foto de Capa: Letícia Moreira
Diagramação : Rosana Santos e Shenara Pantaleão
Sumário
Antropologia
A relação dos trabalhos publicados neste número da Revista Sociedade em Estudos, bem como mais
informações sobre seu histórico e como adquirir exemplares ou artigos avulsos encontram-se na internet, no
site
www.sociedadeemestudos.ufpr.br
“Na Batida da Concha”: Um Olhar Antropológico Sobre Homossexualidade Masculina No Interior do
Rio Grande do Sul - PÁ G I N A 9 - Guilherme Rodrigues Passamani
Pessoas e nomes Kwakiutl: os recipientes universais - PÁ G I N A 2 0 - Luciana Braga Garcia
Tempo e Espaço entre Pescadores da Praia da Concha, Vila Velha-ES - PÁ G I N A 3 0 - Márcio de
Paula Filgueiras
Ciência Política
A Produção Legal na 14ª Legislatura da Assembléia Legislativa do Paraná (1999-2003) - PÁ G I N A 4 0
- André Barsch Ziegmann
CATALOGAÇÃO NA FONTE
Coordenação de Processos Técnicos. Sistema de Bibliotecas, UFPR
Revista Sociedade em Estudos
v. 1, ano 2, 2007
O combate à discriminação racial nos EUA: estudo histórico comparado da atuação dos três poderes
- PÁ G I N A 5 3 - João Feres Júnior
História
Semestral
A caminho da Terra Prometida socialista. Um estudo sobre o discurso e a acção dos manipuladores de
tabacos de Lisboa (sécs. XIX-XX) - PÁ G I N A 6 3 - Rui Manuel Brás
ISSN-0556-5782
1. Ciências Humanas. 2. Ciências Sociais. 3. História.
“Entre a cólera e o ódio”: justiça popular e assassinatos no sudoeste do Paraná (1920-1930) PÁ G I N A 7 6 - Aruanã Antonio dos Passos
ISSN: 1809-4627
Uma Leitura Possível da Crônica da Tomada de Ceuta, levando em conta a Representação do Infante
D. Henrique nessa obra de Zurara - PÁ G I N A 8 9 - André Luiz Bertoli
Sociologia
PRINTED IN BRAZIL
Curitiba, 2007-12-06
PEDE-SE PERMUTA
WE ASK FOR EXCHANGE
Requalificação Urbana e Ordenamento dos Trabalhadores Informais no Centro Tradicional de Salvador
- PÁ G I N A 1 0 4 - Elisangela Silva dos Santos
Deficiência ou diferença: o estigma como produtor de desigualdades no mundo do trabalho PÁ G I N A 1 1 4 - Cauê Fraga Machado e Rodrigo Ciconet Dornelles
Normas Para Publicação - PÁ G I N A 1 2 5
Onde Encontrar - PÁ G I N A 1 2 9
“Na batida da concha”:
Um olhar antropológico sobre homossexualidade masculina no
interior do Rio Grande do Sul
Guilherme Rodrigues Passamani*
Resumo: Este trabalho problematiza as práticas homossexuais de seis jovens homens com idades entre
18 e 25 anos, residentes em Santa Maria, pertencentes às classes médias. Os entrevistados vivem a
experiência homossexual de maneira não “assumida”, ou seja, são jovens que têm desejos ou práticas
sexuais homoeróticas, mas não se identificam publicamente como homossexuais. Os dados foram
coletados através de uma pesquisa qualitativa, antropológica, iniciada com uma observação participante
em bares e festas direcionadas ao público GLBTT e entrevistas gravadas. Em comum, além das práticas
homoeróticas, e da situação sócio-econômica, os seis informantes são oriundos de cidades do interior
do Rio Grande do Sul e apontam cenários de bastante repressão a sua sexualidade. As razões apontadas
para tanto são a cultura familiar muito arraigada aos valores conservadores, sobretudo do tradicionalismo
gaúcho, e à moral religiosa cristã.
Palavras-chave: Antropologia, Homossexualidade, Gauchismo.
A NTROPOLOGIA
Abstract: This work problematizes the homosexual practices of six young men aged between 18 and
25 years old, habitants of Santa Maria, from the middle class. The people who were interviewed live
the homosexual experience in a non-assumed way, therefore, they are youngsters who have desires or
sexual homoerotical practices, but don’t identify themselves publically as homosexuals. The data were
collected through a qualitative research anthropological, started by a participative observation at bars
and parties directed to the GLBTT public and taped interviews. The six informers have in common,
besides homoerotical practices and the social-economic situation, their origin from cities from the interior
of the state of Rio Grande do Sul, and also the sample of scenes of considerable repression of their
sexuality. The reasons pointed are the family culture, too attached to conservative values, especially
the “gaúcho” traditionalism (from the state of Rio Grande do Sul) and the christian religious moral.
Keywords: Anthropology, Homosexuality, “gauchismo”.
Introdução
Este trabalho é o resultado de uma pesquisa antropológica realizada ao longo dos anos de faculdade,
com início do segundo semestre de 2002. Esta pesquisa resultou no Trabalho de Conclusão de Curso de
Ciências Sociais da UFSM, orientado pela Profa. Dra. Zulmira Newlands Borges. A expressão êmica “Na
batida da concha” foi utilizada por um entrevistado, durante o trabalho de campo, para identificar um jovem
recém chegado ao grupo em termos da sua orientação sexual.
*
Cientista Social, Bolsista CAPES, Mestrando em Integração Latino-Americana na UFSM, RS, Brasil.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 9-19, 2007.
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Passamani, G. R. “Na batida da concha”:...
Passamani, G. R. “Na batida da concha”:...
A sexualidade, após o grande boom causado pela epidemia de AIDS, começa a ser olhada mais atentamente
pelas Ciências Sociais, especialmente, pela Antropologia. Dentro dos estudos de sexualidade, há uma gama,
crescente, de pesquisas sobre homossexualidade em diferentes regiões do país. Noto, porém, que, grande
parte destes estudos, dizem respeito a populações gays de grandes centros, via de regra, capitais e/ou regiões
metropolitanas. Carecendo, portanto, um estudo sobre a homossexualidade em pequenos centros, pequenas
localidades, principalmente, do interior do Rio Grande do Sul, onde, segundo minhas informações, um estudo
nesse sentido era, até então, inexistente.
Logo, esse sentido de ineditismo da pesquisa foi uma motivação a mais, entretanto, por si só, não se
sustenta. Nas primeiras idas a campo pude observar elementos que me causaram “estranhamento”, pois os
primeiros homens jovens que contatei, buscavam aproximações homoeróticas, muitas vezes, pensando em
mim como um possível parceiro, ao mesmo tempo em que apresentavam certa “aversão” a uma identidade
homossexual e um forte preconceito com relação a “afeminados”, travestis, transexuais, dentre outros.
Um primeiro ponto que me pareceu pertinente foi a situação de “closet” que aqueles jovens pareciam
estar vivendo. Tendo em vista que a maioria dos trabalhos que investigam homossexuais o fazem de uma
dimensão mais “política” e militante em que há certo orgulho em ser gay, o grupo estudado apresentava-se
como bastante peculiar por certa “vergonha em ser gay”, como algo que “não se escolhe” como algo que em
algum momento “deu errado”.
Percebi que a cultura predominante no Rio Grande do Sul, qual seja, a cultura “gaúcha”, tinha um papel
importante nesse cenário. Sabe-se que nas cidades menores há uma presença marcante desse tipo de culto ao
“macho gaúcho”, vigorando certa lógica de enaltecimento aos valores construídos pelos “tradicionalistas” em
torno da figura do “fiel representante” das gentes do sul, isto é, aquele “macho”, autônomo, viril, que domina e
controla a natureza e não se submete a nada, nem mesmo a própria morte que como mostra Ondina Leal (1992)
é procurada e enfrentada com dignidade e altivez.
1. Questões metodológicas
A homossexualidade é uma realidade historicamente construída e estabelecida. Algumas vezes encarada
como prática perfeitamente recorrente, em outras, combatida como um mal abominável. Nos dias atuais,
a homossexualidade adquire, em escala crescente, uma visibilidade muito grande, seja através de grupos
ativistas das mais variadas correntes, ou através da mídia em geral.
Tento dialogar com uma população “invisível”, fora de quaisquer estatísticas e que experimenta a
vivência de práticas homoeróticas através de um “pacto de segredo”. Conhecer as razões e implicações deste
segredo pode ser uma chave para a compreensão de várias outras questões, como, por exemplo, a forma de
convívio entre hetero e homossexuais, ou entre populações de grandes e pequenos centros.
A construção do campo foi bastante lenta e cheia de transformações. Quando das primeiras investigações,
ainda em 2002 e 2003, fiz aproximações através do contato de amigos e salas de bate-papo virtual, em sites da
Internet, em Santa Maria. Via de regra, o site utilizado era o Terra e o MSN - Messenger.
Destaco aqui, que o recurso dos chats foi bastante útil para conhecer novos contatos e estabelecer novos
vínculos, minha primeira “inserção” em campo. Nessas salas de bate-papo foi que conheci os primeiros
informantes para a pesquisa, dois dos quais, ainda foram entrevistados, outra vez, para o trabalho ora
apresentado. Nos sites de chats do Terra não há, no link cidades, uma sala exclusiva para o público gay. Todos
dividem a mesma sala na rede.
Em um dado momento de minhas conversas na Internet, comecei a “teclar” com um jovem de 21 anos.
Depois de alguns dias de contato virtual, o jovem, identificado pelo apelido de Marco Antônio Bi, contou-me
sua história homossexual e me convidou para um encontro, sem que ao menos eu tivesse demonstrado interesse
pelas práticas homoeróticas, ou mesmo, que eu tivesse assumido uma identidade gay. Rogério1 demonstrou
certo interesse, mas estava, preponderantemente, reticente. Contou-me, ainda, de um grupo de amigos, todos
homossexuais, e prometeu voltar a me procurar.
Rogério aceitara me ajudar e me apresentar o seu grupo de amigos. Antes de me apresentar ao grupo, ele
fez questão de me cobrar, enfaticamente, o anonimato completo deles. Tais garantias foram dadas, através de
meu compromisso com os informantes, bem como com o bom desenrolar da pesquisa.
Era uma noite de sexta-feira, final de outubro de 2002, quando adentrei pela primeira vez na “Sociedade
1
Rogério é o apelido que vou usar durante todo o trabalho para identificar esse entrevistado. Tivemos vários encontros
entre 2002 e 2005, quando ele me dá a última entrevista.
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do Apertamento”2. O nervosismo sentido ao conhecer Rogério era, praticamente nenhum, perto do que senti
aquela noite. Eram treze pessoas que eu nunca tinha visto e que estariam a minha espera, já que a visita fora
anunciada por ele. Malinowski cita uma passagem que eu lembrei assim que cheguei em casa após aquele
encontro:
Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a uma
aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. (...)
Suponhamos, além disso, que você seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro
e sem ninguém que o possa auxiliar (...). Isso descreve exatamente minha iniciação na pesquisa de
campo, no litoral da Nova Guiné (MALINOWSKI, 1984, p.19).
Eu, o “estrangeiro”, precisava desbravar o mundo dos “nativos”. Já passaram quase quatro anos deste
dia, mas não esqueço o momento da porta abrindo-se e as pessoas todas, me olhando. Senti-me analisado nos
mínimos detalhes, de cima a baixo, o que só colaborava para aumentar o meu constrangimento. Depois das
desconfianças preliminares, o choque esrangeiro-nativo, as diferenças foram sendo vencidas.
O convívio com o grupo se deu entre setembro de 2002, quando conheci Rogério e dezembro de 2003
quando houve sua dissolução, devido a mudança de cidade e desentendimentos. Ao longo desse período, os
encontros não foram seguidos. Para freqüentar o grupo, eu ligava com antecedência, marcando uma hora ou
um dia para fazer as visitas, ou mesmo, os informantes tinham a liberdade de me ligar quando desejassem.
Para a execução do Trabalho de Conclusão de Curso, decidi voltar a campo e entrevistar em profundidade
algumas pessoas daquele grupo que vinha acompanhando já há algum tempo3. As entrevistas foram realizadas
entre fevereiro e julho de 2005 na cidade de Santa Maria. A peculiaridade desse último momento de pesquisa
é que estes sujeitos não mais se organizam em um grupo específico.
Para chegar a seis entrevistas, conversei com, pelo menos, 20 pessoas. Dos seis entrevistados, dois
faziam parte do grupo pesquisado anteriormente e são as entrevistas que vão nos remeter a utilizar os dados
do trabalho de 2002 para construir um universo um pouco mais elaborado enquanto grupo, já que os demais
se pulverizam em termos de homossociabilidade4.
Nesta etapa do campo, fiz a observação de dez festas em locais de freqüência homossexual. A partir das
observações consegui dois informantes. As outras duas pessoas me foram indicadas por estes dois jovens.
Assim, o grupo para entrevistas estava formado.
Para dar conta do que detidamente apresentei acima, entendi necessária uma análise qualitativa, lançando
mão do método etnográfico, com um intenso trabalho de campo, diário de campo e outras especificidades que
são necessárias para uma empreitada desse porte.
Cláudia Fonseca afere que a etnografia é calcada numa ciência, por excelência, do concreto. O ponto de
partida deste método é a interação entre o pesquisador e seus objetos de estudo, “nativos em carne e osso”
(1999, p.59).
Através do método etnográfico torna-se fundamental o ponto de vista do nativo, conforme esclarecem
Ceres Victora e Daniela Knauth, dando voz ao seu modo de operar a sua realidade específica, assim, ao
pesquisador, no caso, o antropólogo, cabe analisar detidamente os aspectos da vida do grupo pesquisado
(2000, p.53).
A entrevista, cujo roteiro teve uma prévia estruturação básica, não era fechada e dados novos surgiram
a partir das falas dos entrevistados, o que enriqueceu o estudo. As conversas informais, a seu turno, foram um
grande alimento do diário de campo.
O foco das entrevistas ou conversas informais era a trajetória sexual dos entrevistados, porque entendo,
tal como, Maria Luiza Heilborn (1996), que a sexualidade é um aspecto muito importante na constituição da
identidade, ou das identidades, bem como da subjetividade das pessoas. Não se trata de uma biografia, mas de
uma retrospectiva das questões mais relevantes da vida sexual do entrevistado que dê as mínimas condições
2
Essa “Sociedade do Apertamento” era uma referência ao apartamento pequeno onde os mais de 10 integrantes se
reuniam. O grupo teve um máximo de 15 participantes e três anos de existência, segundo Rogério.
3
Este novo campo foi necessário porque os primeiros informantes não residiam, na maioria, mais em Santa Maria e não
mantinham mais o grupo que eu estudara anteriormente. Logo, precisava de um outro campo.
4
Uso o termo homosseobilidade, bem como homossocial, ao longo do trabalho, no sentido de relações afetivas entre
homossexuais, onde não há, necessariamente, as relações sexuais. Geralmente, esta denominação remete ao espaço de amizade
dos informantes.
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para uma análise, entretanto, são de certa forma, histórias de vida e relatos orais desses indivíduos.
Sobre o consentimento informado, é preciso esclarecer algumas questões. Desde as primeiras investidas
em campo, soube da importância, da necessidade e relevância do consentimento informado para a elaboração
da pesquisa. Contatei várias pessoas, mais de cinco, e elas em nenhum momento se prontificaram a assinar um
termo de consentimento, porque não queriam explicitar sua identidade, mesmo que o documento fosse para
sua própria segurança. Para Victora e Knauth, o consentimento informado:
Visa, fundamentalmente, resguardar o respeito às pessoas. Isso se dá através do reconhecimento da
autonomia de cada indivíduo, garantindo a sua livre escolha após ter sido convenientemente esclarecido
sobre as alternativas disponíveis. É, dessa forma, um procedimento mais abrangente do que a simples
obtenção de uma assinatura em um documento de autorização (2000, p. 82).
O consentimento informado, entretanto, está além da assinatura de um termo é um processo de negociação
em que esclarecimento e confiança fazem parte do processo de pesquisa. No desenvolvimento deste trabalho
alguns informantes aceitaram participar do estudo mediante a devolução da fita gravada após a transcrição. As
entrevistas transcritas foram lidas pelos informantes e pequenas correções foram feitas. Após a elaboração do
trabalho, ficou também combinado o envio de uma cópia para cada informante, para terem conhecimento do
que foi produzido a partir de seus depoimentos.
É lugar comum, que a neutralidade é lenda e que o conhecimento científico é profundamente ideológico.
Uma pesquisa dessas, como tantas outras, envolve muitos riscos, “beber da boca do informante” é perigoso,
por isso desconfiar do que está sendo dito é um caminho a ser seguido. Os “erros de percurso” são os que
levam à experiência para fazer cada vez com mais atenção e empenho.
2. Da “fazenda” ao “mundo”
2.1 As cidades de origem
A sociedade atual, dos grandes centros e da aparente diversidade está em franca oposição ao mundo de
onde partem os entrevistados desse trabalho. Eles fazem parte do mundo rural, da sociedade de interior, onde
as transformações, talvez até comecem a chegar, mas estão longe de estabelecerem-se no mesmo ritmo dos
grandes centros.
Os informantes são filhos de famílias tradicionais, famílias de classe média-alta, a maioria, de fazendeiros,
uma elite do interior do Rio Grande do Sul. Quando falo nesse tipo de família uso o conceito família patriarcal,
seguindo Eni de Mesquita Samara, para quem a família patriarcal era aquela na qual:
O chefe da família ou do grupo de parentes cuidava dos negócios e tinha, por princípio, preservar
a linhagem e honra familiar, procurando exercer sua autoridade sobre a mulher, filhos e demais
dependentes de sua influência. (...) esse modelo de estrutura familiar necessariamente enfatizava a
autoridade do marido, relegando à esposa um papel mais restrito ao âmbito da família. (1986, p.12).
Nessas famílias o pai é “chefe”. É o olhar do pai, o chefe da fazenda, que molda o comportamento dos
filhos e da esposa. Entretanto, o diálogo entre a ruralidade do interior e o urbano, de centros maiores, mais do
que possível é necessário a fim de que se perceba a recorrência da influência de uma tradição ainda viva nas
mentes, práticas, costumes e relações sociais do interior sul-rio-grandense, como destaca Leonardo.
Santa Maria é uma cidade pertencente à região central do Estado e de porte médio, por volta de 270
mil habitantes, que se transformou em um pólo receptor de jovens de todas as partes do Rio Grande do Sul
e Brasil, por abrigar uma Universidade Federal. Assim, ela transita entre o rural e o urbano. Nesse cenário,
urbano, mas com toques fortemente influenciados pelos pequenos “rincões” é que encontrei a possibilidade de
estudar os “filhos gays da fazenda” em uma cidade “quase grande”.
Segundo Tau Golin (2004), apenas no século XVIII é organizada a ocupação da terra, que hoje se
chama Rio Grande do Sul. A ocupação empreendida pelo Estado Colonial Absolutista deu-se através de um
regime escravista de classes, onde a propriedade privada era o fundamento. Ruben Oliven (1992) argumenta
que o modelo construído, quando se fala em “gaúcho” e sua realidade, é um modelo baseado em um passado
supostamente existente na região pastoril do Estado, na chamada Região da Campanha, sudoeste do Rio
Grande do Sul, bem como, nessa figura mitológica do “gaúcho”.
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Passamani, G. R. “Na batida da concha”:...
Para Leonardo (21 anos), outro informante, é inegável a recorrência do “gauchismo”. Esse seria um fato
que recrudesceria o preconceito. Segundo o informante, a história do “gaúcho” é repleta de homens valentes,
não existe nenhum deles que tenha sido homossexual. Assim reflete:
Gaúcho é tudo macho e anda por aqui comendo todas as mulheres encima do seu cavalo. A gente (gays)
é o podre da raça. Eu sou assim, no fundo eu sou esse macho do interior também, eu sempre fui educado
por essas cartilhas, mas em um momento da vida eu vi que era gay, é o que faz ao mesmo tempo, que
sou vítima do preconceito, também discriminar os travestis, por exemplo. É da minha natureza. Não é
voluntário (Leonardo, 21 anos).
Leonardo e os outros informantes concordam que a tradição histórica do Estado colabora para que o
preconceito seja mais arraigado, porque essa mesma tradição trata de enaltecer os valores físicos do “centauro
dos pampas”, moldando uma identidade para a população em geral, já que toda a identidade é relacional.
Segundo Medianeira Padoin (1999), a identidade regional de nosso Estado é produto de uma elite
intelectual comprometida com o latifúndio, com a pecuária, com os militares e o caudilhismo, a fim de criar
esse elemento que unificasse a cultura rio-grandense, embora existam inúmeros elementos heterogêneos em
seu interior que são ignorados pela ideologia homogeneizante.
O “gauchismo” é recorrente no Rio Grande do Sul, transformado, reinventado, mas presente no cotidiano,
inclusive, daqueles que não fazem parte desse movimento cultural. Por isso, entendo, ser relevante discutir
homossexualidade no universo do “gauchismo”, porque as dicotomias e os paradoxos, ficam frente-a-frente.
A homossexualidade, ao longo dos séculos, reuniu inimigos poderosos, talvez, lanço essa questão, nestes
tempos, um destes inimigos possa ser o “gauchismo”.5
Entretanto, muitos estudos documentam a recorrência da homossexualidade no interior de inúmeras
populações ao redor do Planeta, sem ser tratada com qualquer olhar discriminatório.6 Dennis Wernner mostra
que na sociedade Kaluli da Nova Guiné, os pais escolhem um homem saudável para ter relações sexuais
durante vários meses com seus filhos de onze a doze anos. Esse sexo é considerado como necessário para o
desenvolvimento do rapaz. (1987, p 99).
Em Tristes Trópicos (1996), Lévi-Strauss relata as relações homossexuais entre os índios Nambiquara,
em Rondônia, no norte do Brasil. Nessa tribo, o homem pode estabelecer relações poligâmicas. Essas premissas
causam um desequilíbrio na tribo, já que os mais jovens não têm com quem casar. Os jovens ou ficam solteiros,
ou atrelam-se com viúvas ou mulheres mais velhas rejeitadas por seus esposos. Uma solução foram as relações
homossexuais, o chamado tamindige kihandige, amor-mentira.
2.2 Sexualidade e homossexualidade no interior do Rio Grande do Sul
As cidades de onde partem os informantes para viver em Santa Maria, são cidades em que se percebe,
segundo eles, a clara imposição de um comportamento. Há uma demarcação das atitudes esperadas para um
homem, um universo mais ou menos, semelhante ao descrito por Pierre Bourdieu em A Dominação Masculina
(1999).
Tal como na sociedade mediterrânea descrita pelo sociólogo, no interior do Rio Grande do Sul, pelo
menos nos espaços aos quais tive acesso através dos informantes, prevalece a diferenciação bastante nítida das
funções de homem e de mulher e dos modelos de homem e de mulher, baseados na virilidade do primeiro e da
candura e meiguice da segunda, onde o primeiro é o dominante e a segunda é a dominada.
No interior, como nas sociedades mais conservadoras, o destino dos filhos é traçado pelos pais, a fim
de seguir uma tradição familiar. Leonardo (21 anos) diz que quando dá errado, o cara vira gay. Ele faz essa
declaração em virtude, talvez, daquilo que Bourdieu discorre. Nesse sentido, os gays borrariam as demarcações
tão claras dos papéis de homem e de mulher, ao inclinar-se afetiva e sexualmente para um parceiro de seu
5
Na Grécia Antiga, antes da era Cristã, o sexo e a verdade estavam ligados, segundo Foucault, através de uma pedagogia.
A transmissão do conhecimento, acreditava-se, era feita pelo “corpo-a-corpo” de uma saber precioso. O sexo, nesse sentido, servia
como suporte às iniciações do conhecimento (1988, p.61). O sexo com os rapazes na Grécia não só era aceito como incentivado.
Ser cortejado por um homem era razão de satisfação e afirmação de qualidades. O jovem era visto como um objeto de prazer,
talvez o único objeto honroso e legítimo dentre os parceiros masculinos do homem.
6
Entretanto, o preconceito contra a homossexualidade ainda é muito presente. Basta lembrar que no início dos anos 80,
com o surgimento da AIDS, houve um significativo acirramento da discriminação, a ponto da AIDS ser intimamente associada à
homossexualidade, segundo Veriano Terto Jr. (2002 p.148).
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mesmo sexo.
A masculinidade enquanto configuração de prática em torno da posição dos homens na estrutura das
relações de gênero, conforme Conell (1995) atua como um vigilante na vida dos informantes, por essa
razão durante o tempo que permaneceram em contato mais efetivo com a cidade de origem, esforçaram-se
sobremaneira para ostentar e introjetar a masculinidade dominante, a partir de todas as questões destacadas
acima, mas isso os violentava não física, mas simbolicamente.
Santa Maria representou uma ruptura, ou melhor, várias rupturas, dentre as quais, se destaca o
distanciamento, pelo menos espacial, da família, a conquista de uma, aparente, liberdade, e a possibilidade de
estar em uma cidade maior, mesmo que ainda estando em uma cidade de interior.
As declarações dos entrevistados mostram que eles se sentiam sufocados pelas suas cidades, onde as
práticas homoeróticas não eram vistas com “bons olhos”. De posse dessa realidade, a transferência para Santa
Maria foi um momento de mudança, mais que uma mudança de cidade, uma mudança de estrutura de relações.
Foi um tempo novo, como relembra Rogério:
Cheguei em Santa Maria com 17 anos, super feliz, vida nova, mundo novo, tava pulando de faceiro. Ah,
sem contar, que eu ia morar sozinho. Isso era muito bom. Ta, eu adoro meu pai e meus irmãos, mas eu
cresci e quando a gente cresce tem que morar sozinho e longe de casa. Eu fui criado só pelo meu pai.
Quando eu tinha sete anos a minha mãe morreu. Chegou a minha hora de ser feliz do meu jeito, longe
de todo mundo (Rogério, 24 anos).
A fala de Rogério demonstra como uma história termina e como outra poderia começar. Como termina
a vida e os contatos na cidade de origem, onde tudo é escondido, onde tudo é proibido e como começa a vida
em um espaço novo, onde ele é novo, onde colegas, amigos e todas as relações são novas.
Mário Pecheny vê tais práticas como identidades discretas. Pecheny diz que a homossexualidade
constitui um segredo fundante das relações pessoais dos homossexuais. A partir desse segredo, os grupos de
amigos começam a se dissociar, ou seja, existem aqueles que sabem da homossexualidade, aqueles que não
sabem e os demais homossexuais com os quais eles convivem (2004, p.16).
Para os entrevistados o mais importante em Santa Maria, após os primeiros contatos, era o segredo. A
homossexualidade deveria permanecer em segredo entre eles e entre as pessoas com as quais eles se relacionavam.
A necessidade do segredo no estabelecimento de relações entre gays e não gays sobre a sexualidade dos
indivíduos estão fundadas na vontade de não fazer parte do grupo dos estigmatizados, conforme Goffman
(1988).
O cuidado, os pactos, as relações de amizade mais duradouras, a confiança, o segredo, são elementos
fundamentais para a construção de novas relações onde a homossexualidade não seja apenas uma realidade
conhecida ao homossexual, mas à um círculo bem restrito de pessoas, onde a família, quase sempre, pelo
menos nos casos por mim observados, permanece ausente, sendo comum apenas aos amigos saberem das
vivências homossexuais.
Durante a primeira fase do trabalho de campo realizado nos anos de 2002 e 2003, contatei com a
“Sociedade do Apertamento”, um grupo de amigos homossexuais, que foi base para minha pesquisa de então
e que, agora, para a realização do Trabalho Final, consegui contatar com alguns de seus integrantes, Leonardo
(21 anos) e Rogério (24 anos), que, prontamente, dispuseram-se a colaborar outra vez. Por outro lado, através
das informações de Matheus (23 anos), tive acesso a uma outra experiência de espaço de homossociabilidade
masculina onde o trânsito pelo circuito gay ocorria com maior freqüência.
Rogério (24 anos) conta que depois de uma experiência não muito feliz no “mundo gay” de Santa Maria,
passou a conhecer rapazes na Internet, nas salas de chat. Nesses espaços conheceu os amigos que formariam
com ele a “Sociedade do Apertamento”.
Eles pensaram em reunir uma turma fechada, onde pudessem conversar e expressar sua sexualidade,
desde que fosse dentro de casa, em sigilo, o que era fundamental. A “Sociedade do Apertamento” surge como
um espaço homossocial, de caráter privado, em contraposição às identidades que poderiam ser adotadas em
público.
Matheus, para fazer uma turma de amigos, entrou em um grupo de jovens da Igreja Católica ainda que
não fosse religioso. O informante diz que achava tudo aquilo uma “palhaçada”. Ele percebeu que o grupo tinha
vários gays, a princípio por dedução, depois por confirmação, através de laços de amizades formados.
Matheus destaca uma situação bastante peculiar do grupo. Segundo ele, quando viam alguém, um rapaz,
na rua, ou nas festas particulares, que nem sempre eram freqüentadas apenas por homossexuais, e desconfiavam
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que ele fosse gay, para não chamar a atenção, isto é, para não falar abertamente sobre homossexualidade eles
diziam que a concha batia, ou simplesmente batiam uma concha na mesa.
A expressão “bater a concha” ou a simples batida do talher, comunicava os demais que eles pensavam
que determinado garoto fosse homossexual. Este era o sinal. Na noite, nos bares quando saiam, aquele que
concordava com a afirmação batia uma colher.
Esta expressão “êmica” surgiu, segundo lembra o entrevistado, quando Matheus levou um amigo que
não era gay e que não sabia de sua homossexualidade para uma janta com todos os amigos gays. O jantar
transcorria normalmente quando um dos integrantes do grupo pegou a concha e disse discretamente: mas é
claro que eu bato a concha. Depois, disse outra vez: bate a concha mesmo, apontando discretamente para
o amigo de fora do grupo. Outros bateram as colheres, como que pedindo comida, mas na verdade estavam
dizendo, através dos talheres, que o convidado era gay.
3. Homem com homem é lobisomem?
3.1 Uma questão essencial?
Quando os entrevistados estavam contando suas trajetórias, todos voltavam à infância, por volta dos
dez anos, para dizer que desde então se percebiam meio “estranhos” e “diferentes”. É na infância que eles
reconhecem os primeiros sinais de uma “futura homossexualidade”, em brincadeiras aparentemente inocentes
com os “amiguinhos”, no não interesse pelas meninas, ou mesmo nas amizades muito fortes com outros
meninos, que acabaram transformando-se em paixões juvenis. Leonardo conta:
(...) eu comecei a ficar meio cabreiro, porque eu gostava de um homem, sabe? Tipo, um guri. Mas eu
gostava de estar junto com ele sempre, todas as horas, a gente jogava bola, ia às festas, enfim... achei
que depois que eu ficasse grande ia passar essa coisa, podia ser uma amizade muito forte, mas eu tinha
mais que amizade, eu tinha tesão (...) (Leonardo, 21 anos).
Eles relacionaram-se com meninas, mas alimentavam, secretamente, alguns desejos por colegas da
escola, vizinhos um pouco mais velhos ou amigos. Concluem que sempre foram “meio diferentes”, seja por
serem alheios aos esportes, por serem mais gentis, mais educados, mais sensíveis. E tais posturas explicariam
ou fundariam a homossexualidade em suas vidas.
Os discursos nas Ciências Sociais são muito variados a esse respeito. O debate teórico tem sido travado
entre duas posições antagônicas: o essencialismo e o construtivismo social. Heilborn destaca:
No primeiro há uma oposição simples entre as duas perspectivas; no segundo incluem-se variantes entre
as diferentes modalidades de conceber o construtivismo social. (...) nas trincheiras do essencialismo
viceja a convicção de que há algo inerente à natureza humana, inscrito nos corpos na forma de um
instinto ou energia sexual, que conduz as ações. (...) O construtivismo social reúne abordagens que
buscam problematizar a universalidade deste instinto sexual (1999, p.09).
Heilborn esclarece que pelo modelo essencialista a sexualidade mantém-se refém de um mecanismo
fisiológico determinado a perpetuar a espécie e intimamente ligado ao “gozo”. A sexualidade restringe-se ao
ato sexual e ao fisiológico, nesta ótica. Essa é uma visão recorrente entre as áreas médicas. Já as observações
a partir do olhar do construtivismo social permite perceber que existem dimensões culturais específicas para a
sexualidade e aí agrupam-se uma série de mecanismos desenvolvidos pelos homens que, as vezes, não estão
ligados à reprodução, mas aos desejos e ao prazer.
A opinião dos entrevistados em atribuírem à homossexualidade um caráter inato, essencialista, filiase ao discurso dominante, biomédico, que durante muito tempo respondeu a todas as questões relativas à
sexualidade, entretanto, esse modelo se esgota e não consegue responder mais às múltiplas sexualidades.
Todavia, pensar a homossexualidade de maneira essencialista, retira do homossexual a culpa “moral” de ser
“sem vergonha” e desviante.
3.2 Homossexualidade: algumas reflexões
Edward MacRae fala que quando se pensa em uma população homossexual é necessário lembrar que
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 9-19, 2007.
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Passamani, G. R. “Na batida da concha”:...
essa população não é homogênea nem na sua preferência sexual nem em sua vivência (1990, p.40). A partir
desta compreensão, Rogério (24 anos) destaca que o preconceito contra a homossexualidade pode ser em
razão de ser uma categoria tão variada. Existem desde travestis até “saradões”7 de academia. Ele diz tratar-se
de uma categoria heterogênea, mas homogeneizada pela sociedade.
Os entrevistados tentam, de maneira geral, mostrar que ser homossexual é ser como qualquer pessoa. O
problema, segundo eles, não é ser homossexual, mas é ser homossexual afeminado o que, hodiernamente, faz
com que o preconceito vire escracho, deboche, piada. Por isso, faz-se necessário adotar o “pacto do segredo”,
do “sigilo” quanto à homossexualidade, afim de não ser vítima do preconceito direto. Segundo MacRae:
(...) a necessidade sentida em muitas ocasiões da vida cotidiana em adotar a prática enrustida para evitar
vexames ou perseguições é justamente percebida por muitos homossexuais como uma opressão. O fato
de que os heterossexuais não estariam sujeitos a ela da mesma forma configurava então uma condição
de discriminação. (1990, p.293)
Logo, o gay, mesmo “enrustido”, está sujeito à discriminação, porque adotar a prática “enrustida” já é
estar diferenciando-se e anulando-se para não receber o preconceito diretamente.
Percebe-se, não obstante as várias transformações em curso, um recrudescimento do preconceito, porque
ainda existe, nas palavras de Lévi-Strauss, uma recusa de admitir o próprio fato da diversidade cultural;
preferimos lançar fora da cultura, na natureza, tudo o que não se conforma à norma sob a qual se vive (1993
p.334).
Assumir-se publicamente, então, é encarado pelos informantes como desnecessário, pode ler-se essa
assertiva, como uma estratégia de tentar burlar o preconceito, isto é, você concebe-se gay, mas não o faz
publicamente, já que no espaço público é onde a discriminação é mais efetiva. Sem contar que, segundo os
informantes, não haveria uma mudança significativa ao empreender tal processo, “não ganhariam nada com
isso”.
Adam Kuper vai dizer que assumir uma identidade de minoria, como a homossexual, a negra, a feminista,
é expor-se, porque automaticamente a sociedade espera que suas práticas sejam as práticas de um ativista, de
um determinado estereótipo. Mas nem todos aqueles que se assumem homossexuais são pertencentes a uma
causa, ou mesmo, filiados ao mesmo estereótipo. Kuper salienta que (...) ao se declarar homossexual (...)
a pessoa descobre que a sociedade espera que ela corresponda a expectativas rígidas sobre sua própria
maneira de se comportar (2002, p.299).
Na cultura brasileira, segundo Peter Fry (1985), é nítida a diferenciação de papéis sociais e sexuais
de “machos” e “bichas”. O “macho” pode até se relacionar com a “bicha”, mas ele tem que ser o “ativo” da
relação e, geralmente, esse “macho” tem relações heterossexuais freqüentes. “Comer” a “bicha”, ao contrário
de depreciativo, seria uma afirmação de sua masculinidade. À “bicha”, obrigatoriamente, pelas imposições
culturais, sobrava “dar” para os “machos”, ou seja, ser o “passivo” da situação, assemelhando-se ao papel
executado pela mulher e sendo razão de depreciação.
Como destaquei, no Brasil, há uma demarcação muito rígida dos comportamentos de homens e mulheres.
No Rio Grande do Sul, conforme recolhido, essa assertiva é corroborada. Essa pode parecer uma questão
menor, mas não é. É o começo da formação universos simbólicos bem delimitados.
O “gaúcho” leva tão a sério o culto a sua virilidade e masculinidade, determinando, tão claramente
estes espaços, que a suposta perda da masculinidade deve ser paga com a morte, ou seja, através do suicídio,
como destaca Ondina Leal (1992). O “gaúcho” oferece um derradeiro ato de bravura e coragem. Leal diz que
masculinidade, honra e liberdade estão claramente presentes no discurso gaúcho a respeito da morte (1992,
p.142). A decisão pelo suicídio é um ato de coragem masculina, porque pior do que a morte é ser passivo e
submisso em vida, tal como são as mulheres.
3.3 Questões contemporâneas
São muitas as questões contemporâneas que envolvem a homossexualidade, dada a diversidade que falei
Os “saradões” são os homens que freqüentemente estão nas academias e mantém o corpo em forma, com horas e horas
de malhação, não são especificamente gays. Quando Rogério se refere aos “saradões” de academia, está dizendo que esse é um
grupo onde também existem gays. Os “saradões-gays” são o que há um tempo era chamado de barbies.
7
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Passamani, G. R. “Na batida da concha”:...
acima, entretanto o preconceito regenera-se e mostra-se em formas apuradas. Adriana Vianna e Paula Lacerda
denunciam a violência contra a homossexualidade como uma recorrência e a necessidade de enfrentamento
dessa situação através da reivindicação, organizada, de direitos (2004).
Sérgio Carrara, por exemplo, faz um estudo sobre os assassinatos de homossexuais e a morosidade e
descaso da justiça ao tratar de tais casos. Nesses eventos destacados por Carrara no Rio de Janeiro dos anos
oitenta, as vítimas são mortas com requintes de crueldade e expostas a situações humilhantes. Geralmente são
mortas por garotos de programa, ao que tudo indica (2004, p.365-383).
Para tentar minorar situações como esta é que está em tramitação uma série de Leis tanto municipais,
como estaduais e federais que buscam defender os homossexuais e lhes garantir uma série de direitos,
historicamente, reivindicados. Em várias cidades do país e em alguns estados essa legislação já entrou em
vigor. Ao contrário dos demais informantes Rogério se posiciona de forma crítica às leis que amparam os
homossexuais. Conforme justifica:
Eu não quero que tenha lei que me assegure. Eu quero é consciência das pessoas. A lei é a repressão.
A consciência é libertação. De que adianta a lei, se as pessoas seguem te odiando. A lei é bobagem.
Pode ser um avanço. Será que é um avanço? As pessoas só não vão discriminar porque elas podem ser
punidas, não porque elas respeitem (Rogério, 24 anos).
As declarações de Rogério apelam para uma mudança de consciência, conforme argumenta. Essa
mudança, no entanto, já é percebida, mesmo que ainda bastante preliminar, pelos demais informantes.
Entretanto, Rogério sente-se ainda mais discriminado ao ter que apelar para uma lei para ser respeitado. Para
isso, ele argumenta que teria de andar, permanentemente, com os códigos embaixo do braço, para defender-se
da homofobia.
A homossexualidade ganhou espaço nas mídias em geral. Entretanto, os entrevistados concluem que na
maioria das vezes, ainda é associado ao gay o estereótipo que não representa a diversidade existente entre os
homossexuais.
Rogério e Murilo têm muitas críticas às manifestações públicas dos homossexuais, tais como as Paradas
do Orgulho GLBT. Eles observam nesses eventos, não atos políticos, de luta por direitos, uma festa saudável
da diversidade. Murilo diz que as Paradas são “reuniões de gays para sexo”. Essa opinião é compartilhada por
Rogério que se questiona a respeito dos avanços conseguidos com o evento: Avanços? Quais? O direito de
andar de mãos dadas e de se beijar em público um dia, no meio do Parque? Na Paulista? Isso é migalha. Eu
não gosto de migalha. Segundo ele, não há uma conscientização nem dos próprios gays.
Os entrevistados olham com olhos muito críticos essas práticas porque em seus olhos não está apenas
a sua visão, mas a visão de uma sociedade educada por uma moralidade cristã monogâmica, interiorana
“gaúcha” e por mais que haja a tentativa de um afastamento, esses elementos continuam introjetados nas
mais profundas estruturas mentais dos indivíduos o que lhes faz serem tão tácitos nas críticas a esses eventos,
percebendo deles, apenas o que há de menos politicamente correto.
Vive-se um tempo multifacetado, um tempo de diversidade, em que é preciso aprender a viver e conviver
com ela, onde a diversidade precisa de fato instaurar-se. Não se deseja o passado, onde, por exemplo, os nazistas
marcavam os homossexuais com um triângulo rosa. Muitos ainda hoje, segundo Marcos Rolim, erguem em
torno da homossexualidade um universo concentracionário distinto, mas igualmente intolerável. O triângulo
rosa desapareceu das vestes, mas ainda persiste o ódio recalcado dos algozes e o silêncio ensurdecedor de
muitos homossexuais (2005).
Considerações finais
Detidamente, ao longo das páginas, contei uma estória de vidas reais, de pelo menos seis vidas reais.
Conheci, de maneira mais detida, através dessa pesquisa, o universo do interior do Rio Grande do Sul, que me
parecia, ainda, tão estranho. O conheci, ou o percebi, pela lente de dois olhares, o olhar de meus informantes
e o olhar dos estudiosos, a partir de então, através de minha subjetividade, tentei formar algo que abarcasse
essa diversidade de olhares.
Olhares que mostraram uma sociedade “gaúcha” ainda presa ao mito de um “homem a cavalo”, tentando
fazê-lo seu herói mais valente, mais homem e mais “macho”. Impondo-lhe valores e características mitológicas,
que o fazia um ser maior que a condição humana.
Esse ambiente de repulsa à homossexualidade fez com que os informantes construíssem uma vivência
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 9-19, 2007.
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Passamani, G. R. “Na batida da concha”:...
homossexual diferenciada das vivências homossexuais mais comuns, isto é, afastando-se dos ambientes de
freqüência gay e daqueles gays mais “afeminados”. Não é tão problemático, para eles, ser homossexual, mas
é por demais constrangedor ser considerado homossexual “afeminado”.
A partir dessa tentativa de fugir de um suposto estereótipo é que se estabelecem as relações, as práticas e,
inclusive, a caracterização de uma personalidade. É recorrente nas entrevistas, e destaquei isso no trabalho, a
constante crítica ao “gauchismo” por reeditar valores machistas e preconceituosos, em certo ponto, bitolados,
estabelecendo normas de comportamento e normas de verdade para a ação dos homens do sul. Todavia, os
informantes, em algum momento, ensinados pelas cartilhas “gauchescas”, incorporam esse discurso machista
e o aplicam a suas relações homossexuais.
Há possibilidades para a inclusão da homossexualidade e quebra de hegemonia do preconceito? São
perguntas audaciosas, cujas respostas, no máximo, podem ser parciais. Hipóteses podem ser lançadas e não
vou me privar disso, porque entendo que essa também é uma missão do Cientista Social, mais do que estar em
campo, retirando dados, é preciso propor alternativas.
Boaventura de Sousa Santos acredita que vivamos um tempo de constantes mudanças, mudanças
que não são novidade. A única novidade é a rapidez com que elas se concretizam. Boaventura diz que o
paradigma cartesiano-positivisa está em crise e propõe um novo modelo, o que ele chama de paradigma de um
conhecimento prudente para uma vida decente (2000, p.74). Este novo paradigma proposto por Boaventura
é o paradigma do conhecimento-emancipação, em oposição, ou substituição, ao conhecimento-regulação,
dominante até nossos dias. Como um utópico contemporâneo, Boaventura nos diz que é preciso reinventar o
futuro, abrir um novo horizonte de possibilidades, com alternativas radicais de transformação (2003).
Humberto Maturana, a seu turno, em Emoções e Linguagem na Educação e na Política (1998), nos
presenteia com uma nova utopia, no mesmo sentido de Boaventura, através de um encontro conosco mesmo
para que possamos nos reencontrar com os outros. Maturana tenta edificar um novo olhar para o mundo pela
lógica do amor, a emoção capaz de agir em todas as pessoas e capaz de conviver e respeitar o outro como
legítimo dentro das relações sociais. Um outro igual, mas diferente. Igual porque gente, mas diferente porque
humano dotado de uma individualidade que merece e precisa ser respeitada.
É preciso discutir a questão sim, esgotá-la não. Lanço apenas questionamentos, alcançáveis na medida
em que o comprometimento for espraiado por todos os setores da sociedade a fim de edificar, de maneira
plena, um espaço inclusivo e cidadão. De forma que vida vá além, bem além, das práticas sexuais. Assim,
sei que podem esgotar os conceitos, porque eles ainda são limitados. Na falta dos conceitos, segue-se com a
utopia, até então, infinita, ao lembrar Boaventura.
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19
GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
Pessoas e nomes Kwakiutl: os recipientes universais
Luciana Braga Garcia*
Resumo: O objetivo deste trabalho é aprofundar a discussão de algumas análises sobre a organização
social do grupo indígena canadense Kwakiutl, amparando-se em trabalhos etnográficos realizados
previamente, especialmente os desenvolvidos por Franz Boas. A investigação direciona-se no sentindo
de compreender algumas categorias nativas, como os nomes e a noção de pessoa, a partir de uma breve
análise do modo de troca nativo, o potlatch, e a organização do grupo em suas unidades sociais básicas,
os numaymas. Com referências constantes às obras de Louis Dumont e, em especial, Marcel Mauss,
este artigo visa aprofundar a construção da pessoa Kwakiutl a partir da relação entre os nomes nativos,
sua importância dentro da configuração social local e sua conexão com o sistema de hierarquia nativo,
baseado na ascensão social através da honra, prestígio e distribuição de propriedade.
Abstract: The main purpose of this paper is to deepen the discussions over some analysis about the social
organization of the indigenous group Kwakiutl, from Canada, based on ethnographical works such as the
ones developed by Franz Boas. The research leads towards the comprehension of some native categories,
as Kwakiutl names and personhood, starting from a brief analysis of the native exchange system called
potlatch and the group organization in basic social unities, the numaymas. Using constant references to
the work of Louis Dumont and specially Marcel Mauss, this paper intends to analyse the construction of
Kwakiutl persoonhood based on the relationship between native names, their importance within the local
social scheme and their connection with the native hierarchy system, which is constituted by the dispute
of honor and property distribution.
Resumo: El principal objetivo de este artículo es profundizar la discusión de algunas análisis sobre
la organización social del grupo indígena canadense Kwakiult, apoyado por estudios etnográficos ya
realizados, especialmente aquellos desenvolvidos por Franz Boas. La investigación está direccionada
para una mejor comprensión de algunas categorías nativas, como los nombres y la noción de persona,
a partir de una breve análisis del modo de troca nativo, el potlatch, y de la organización del grupo en
sus unidads sociales básicas, los numaymas. Com referencias constantes a las obras de Louis Dumont y
Marcel Mauss, este artículo se propone a profundizar las ideas acerca de la construcción de la persona
Kwakiult a partir de la relación con los nombres nativos, su importancia dentro de la configuración social
local y su conexión con el sistema de hierarquia nativo, baseado em la ascención social por medio del
honor, del renombre y de la distribución de propriedad.
Este artigo é fruto de pesquisa realizada entre os anos de 2003 a 2006, em atividade realizada no
Programa de Iniciação Científica do CNPq e cujos resultados plenos podem ser encontrados no trabalho
monográfico intitulado “Troca e hierarquia entre os Kwakiutl”, que consistiu em uma análise bibliográfica
sobre esse grupo indígena canadense, baseada especialmente na obra de Franz Boas. Buscou-se dar consistência
aos materiais já escritos sobre os Kwakiutl e interpretar seu sistema de troca, denominado potlatch, à luz de
conceitos como o de dádiva (Marcel Mauss) e hierarquia (Louis Dumont), entre outros.
Neste texto, entretanto, pretendo me ater a outras questões sobre a organização social indígena. De
maneira diferente do que realizei em minha monografia, na qual priorizei o potlatch, a explicação sobre os
grupos sociais básicos (numaymas) e a hierarquia decorrente da troca e destruição de bens, pretendo aqui
* Curso de Ciências Sociais concluído no primeiro semestre de 2006 na Universidade Federal do Paraná
20
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 20-29, 2007.
enfocar a importância dos nomes nativos, bem como sua relação com a cosmologia Kwakiutl e a noção
de pessoa pertencente a este grupo1. Faz-se necessário, de qualquer forma, uma explanação geral sobre os
numaymas e o potlatch, já que estes possuem ligação direta com a aquisição dos nomes e seus significados.
Os Kwakiutl habitam a Ilha de Vancouver, no Canadá, e sustentam-se da caça, coleta de frutos e
especialmente da pesca. O trabalho em madeira é muito comum, nas canoas, e também sempre foi notável a
confecção de cobertores, os quais são trocados em grandes quantidades entre os índios. Os Kwakiutl foram
descritos por Boas, em seus trabalhos iniciados a partir de 1885, como divididos em 25 grupos politicamente
autônomos, as aldeias (“villages”), cada qual considerada uma unidade separada, a “tribo” (termo utilizado
por Boas). As aldeias estão divididas em grupos chamados numayma, as unidades sociais básicas. Cada aldeia
possui de 2 a 7 numaymas, e possui grandes casas de madeira, cujas fachadas eram pintadas com a figura
mítica relacionada à história das famílias que ali viviam (BOAS, 1966).
Cada numayma possui um nome próprio, de origem diversa: alguns dos nomes são puramente geográficos
(o lugar de onde vem o ancestral mais antigo), outros são chamados pela forma coletiva do ancestral (por
exemplo, “Dançadores de Canções”) ou ainda através de um nome honorífico (“O Grupo do Chefe”).
O numayma Kwakiutl equivaleria a uma casa, no sentido proposto por Lévi-Strauss (LÉVISTRAUSS, 2000), uma entidade social que possui duas ou mais casas de madeira, cada uma tendo nome,
origem e privilégios próprios. A partir dos estudos sobre várias sociedades, inclusive os Kwakiutl, LéviStrauss cunhou o conceito de “sociedade a casas”, no artigo A organização social dos Kwakiutl. Este tipo
de sociedade é capaz de conciliar princípios aparentemente antagônicos, tais como endogamia e exogamia,
patrilinearidade e matrilinearidade, filiação e residência e etc: “... la casa es pues uma creación institucional
que permite componer fuerzas que, fuera de allí, parecen no poder aplicarse sino excluyendo la una a la otra
en razón de sus orientaciones contradictorias (...) la casa realiza uma especie de vuelta topológica de lo interior
al exterior; reemplaza una dualidad interna por uma unidade externa”2 (LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 160).
Os numaymas kwakiutl seriam casas, no sentido de
... persona moral detentadora de un dominio constituido a la vez por bienes materiales e inmateriales,
que se perpetúa por la transmisión de su nombre, de su fortuna y de sus títulos em línea real o ficticia,
tenida por legítima com la sola condición de que esta continuidad pueda explicarse en el lenguage del
parentesco o de la alianza y, las más de las veces, de los dos al tiempo 3 (LÉVI-STRAUSS, 2000, p.
150).
Para Boas, “the numayma consists of families embracing essentially household groups and the
nearest relatives of those who married into the household group” 4 (BOAS, 1966, p. 48). Equivaleria a uma
casa, no sentido proposto por Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS, 2000), uma entidade social que possui duas
ou mais casas de madeira, cada uma tendo nome, origem e privilégios próprios. É composto por um chefe
principal, chefes menores e súditos com suas respectivas famílias, sendo que o chefe principal é descendente
do fundador e herda os seus poderes. O numayma é também um conjunto de posições de ranking, cada uma
associada a nomes e privilégios. Como expressa Boas,
The structure of the numayma is best understood if we disregard the living individuals and rather
consider the numayma as consisting of a certain number of positions to each of which belongs a
name, a “seat” or “standing place”, that means rank, and privileges. Their number is limited, and they
form a ranked nobility. (...) These names and seats are the skeleton of the numayma, and individuals,
in the course of their lives, may occupy various positions and with these take the names belonging
to(BOAS,1966, p. 50).
Embora se reconheça a existência de uma discussão sobre corporalidade, noção de pessoa e configuração dos nomes
nativos nos estudos a respeito dos ameríndios sul-americanos, a qual poderia aqui ser utilizada comparativamente para enriquecer
o trabalho, entendeu-se que isso não seria possível nos limites deste artigo. No entanto, essa temática está sendo objeto de estudo
em projeto em andamento.
(Todas as traduções apresentadas em nota de rodapé, feitas a partir dos originais em inglês e espanhol, foram
realizadas pela autora.)
2
... a casa é, portanto, uma criação institucional que permite compor forças que, fora dali, parecem não poder se aplicar
a não ser excluindo-se mutuamente em razão de suas orientações contraditórias (...) a casa realiza uma espécie de volta topológica
do interior ao exterior; substitui uma dualidade interna por uma unidade externa.
3
... pessoa moral detentora de um domínio composto simultaneamente por bens materiais e imateriais, que se perpetua
pela transmissão de seu nome, sua fortuna e seus títulos em linha real ou fictícia, tida como legítima sob a condição única de que
esta continuidade possa exprimir-se na linguagem do parentesco ou da aliança e, as mais das vezes, em ambas ao mesmo tempo.
4
O numayma consiste em famílias envolvendo essencialmente lares [no sentido de edificação e grupo doméstico,
simultaneamente] e os parentes mais próximos daqueles que casaram nestes grupos.
1
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 20-29, 2007.
21
GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
Os indivíduos possuem mais de uma posição em mais de um numayma (o número de posições
é, portanto, sempre maior que o número de membros do grupo). As posições sociais estratificadas são
diferenciadas pelo nome que possuem, além das prerrogativas e privilégios que carregam. Ou seja, cada
posição assegura um nome, privilégios e prerrogativas correspondentes, os quais validam seu status. Dentro
da família, a estratificação é determinada pela ordem de nascimento (o filho ou filha mais velho sempre tem
posição mais alta).
As posições dentro do numayma e entre os vários numaymas existentes são negociadas através do
potlatch, a troca cerimonial existente entre os Kwakiutl. Na cerimônia, bens materiais e imateriais são distribuídos
de acordo com a importância social e a posição dos convidados. O potlatch é constituído de discursos, danças,
canções, comidas e trocas e é realizado em ocasiões especiais, tais quais casamentos, nascimentos, mortes,
trocas de nomes, e geralmente é acompanhado por uma festa, referente ao compartilhamento de comida.
O potlatch é, pois, este festival para o qual um chefe convida outras tribos vizinhas para realizar trocas. A
unidade de valor é o cobertor, comumente de lã branco e barato. Ao realizar o potlatch, o chefe kwakiutl tenta
se sobrepor ao seu rival – aquele que foi convidado para a cerimônia -, dissipando a maior quantidade possível
de riqueza, através da doação de cobertores.
Marcel Mauss define o potlatch como sendo “o sistema de dádivas trocadas” (MAUSS, 1925, p. 9596), já que ele representa a expressão de um princípio de organização social mais amplo, a saber, o princípio
de dar, receber e retribuir. A obrigação de dar é o que sustenta o potlatch, através da distribuição de fortuna,
demonstrando para os outros a riqueza através de dádivas e presentes distribuídos. Da mesma maneira, há
uma forte obrigação de receber, pois não se pode recusar uma dádiva ou mesmo um convite para um potlatch.
A obrigação de retribuir uma dádiva, entretanto, dificilmente se concretiza imediatamente; é necessário um
tempo para realizar a contra-prestação, o que torna a dádiva uma dívida a prazo. Neste sentido, como atesta
Mauss, o potlatch contém três noções fundamentais: crédito, prazo e honra. Segundo sua teoria, “a dádiva tem
por natureza criar uma obrigação a prazo” (MAUSS, 1925, p. 97).
Além disso, a dádiva fomentadora do potlatch opera inexoravelmente no sistema social Kwakiutl
constituindo um modelo nativo de compreensão do mundo. Segundo Irving Goldman, o potlatch não é o modelo
através do qual se expressa a sociedade Kwakiutl; ele seria, subordinadamente, uma das muitas maneiras de
expressão de um modelo, o qual pode ser constatado tanto no potlatch como na pesca, por exemplo, e que seria
o modelo da distribuição e retribuição (GOLDMAN, REFERENCIA).
Como foi mencionado, além da troca de bens materiais, tais quais cobertores, pratos, caixas, etc, o
potlatch também valida a troca de bens simbólicos, como canções, prerrogativas, privilégios e nomes.
Estes últimos são de fundamental importância, pois a posse de determinados nomes, posições e funções
coordena a vida social kwakiutl, definindo o papel de cada habitante do numayma de acordo com
sua posição dentro do grupo, as quais são determinadas, primordialmente, pelos nomes e títulos,
responsáveis por conferir prestígio e, conseqüentemente, uma alta posição social (ranking).
O potlatch e a aquisição de nomes são fatos intrinsecamente ligados à estratificação, pois a transmissão
ou aquisição de um nome só é oficializada quando se realiza um potlatch, que legitima a nova posição
do kwakiutl. Boas destaca, de maneira concisa, que a aquisição da posição é feita pelo potlatch ou pela
distribuição de bens. A aquisição de uma alta posição e a manutenção da mesma requerem casamento
arranjado da maneira correta e também riquezas acumuladas e dissipadas no momento apropriado
(BOAS, 1966).
A posição de um kwakiutl dentro do seu respectivo numayma é essencial para que ele seja definido
enquanto a pessoa que é. Além do ranking do numayma, outro aspecto importante na identificação e
posicionamento dos Kwakiutl dentro da coletividade são os nomes que eles portam. Nomes aqui, entretanto,
referem-se também a títulos de nobreza e prerrogativas e privilégios que estes acarretam. O nome está no
centro do sistema de hierarquia social e é o esqueleto do numayma, uma vez que coordena todo o sistema de
estratificação que este representa.
Em primeiro lugar, é importante destacar que há uma grande rotatividade de nomes entre os indígenas.
A troca de nomes é comum, necessária enquanto etapa de vida e é sempre acompanhada de um potlatch. É a
troca de nome que permite ascensão na hierarquia do numayma, o que se dá através da aquisição de uma nova
5
A estrutura do numayma é melhor compreendida se nós desconsiderarmos os indivíduos e considerarmos o numayma
como consistindo em certo número de posições às quais corresponde um nome, um assento ou uma posição que significam
estratificação e privilégios. Seu número é limitado e eles formam uma nobreza estratificada. (...) Esses nomes e assentos são o
esqueleto do numayma, e os indivíduos, ao longo de suas vidas, podem vir a ocupar várias posições e com isso possuir nomes que
pertençam a essas posições.
22
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 20-29, 2007.
GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
posição, sempre pela dissipação de riqueza realizada no potlatch.
É no potlatch que se oficializa qualquer transação comercial, casamento, transferência ou obtenção
de um novo nome. O potlatch operacionaliza esta mudança de identidade, uma vez que cada novo nome
assumido pelo indivíduo é considerado uma mudança substancial que o torna outro indivíduo através de sua
mudança de status.
Há duas categorias de nomes: os transmitidos pelo casamento e os transmitidos pela primogenitura.
Boas supõe que ambos teriam uma origem comum. Para os Kwakiutl, entretanto, não existe diferença alguma
entre estas duas categorias de títulos. Estes nomes e privilégios dão aos seus portadores o direito de uso de
emblemas, cantos, danças, funções nas sociedades secretas e etc.
A primeira categoria, nomes transmitidos pelo casamento, compreende aqueles nomes dados pelo
sogro ao genro por ocasião do casamento, tendo maior alienabilidade e mobilidade. Estes nomes e privilégios
dão aos seus portadores o direito de uso de emblemas, cantos, danças, funções nas sociedades secretas e etc, e
muitos estão contidos dentro de uma crest-box (uma caixa de privilégios esculpida em madeira), as quais são
transmitidas em ocasiões especiais como o casamento, por exemplo.
Já a segunda, ou seja, aqueles transmitidos pela primogenitura, são identificados como títulos de
nobreza que, segundo Ruth Benedict, seriam “uma série de nomes titulares que eram assumidos por pessoas
consoante os seus direitos hereditários e a sua capacidade financeira” (BENEDICT, 1934, p. 205). Estes
nomes não teriam sido reduzidos nem ampliados desde o começo do mundo, sendo portanto um número fixo.
Ao possuir estes títulos (nomes), a pessoa assumiria em si mesma a força de seus antepassados e, ao serem
transmitidos para o seu herdeiro, ela perderia a legitimidade de usá-los como seus. Estes títulos são conhecidos
também, como denominam Boas e George Hunt, por “nomes do mito”, e não podem sair da família dos
chefes do numayma, devendo ir para o filho (a) mais velho (a) do chefe e não podendo ir para o marido da
filha, devendo permanecer na família de procriação do chefe. O nome da casa, a posição e os privilégios
correspondentes não devem sair da linhagem primogênita e não devem ser trocados no casamento. Segundo
Hunt, “los solos nombres de um jefe principal de numaym que puedan ser dados em ocasión de uma boda son
aquellos que el próprio jefe obtuvo de sus suegros, así como los privilégios, pues sus propios privilégios no
los puede trasmitir a su yerno” 6 (HUNT, 2000, apud Lévi-Strauss, p. 143/144).
Os nomes são adquiridos por herança pela linha de primogenitura, independente do sexo (as garotas
asseguram nomes mesmo que possuam irmãos mais novos). As posições e nomes da família são mantidos
pela mulher somente até que seu filho tem idade suficiente para assumi-los (funcionando assim como holder).
As mulheres herdavam títulos como os homens, e executavam o papel correspondente ao homem até que
seus primogênitos pudessem assumir as funções do potlatch e exercer os títulos de seu numayma. A criança
herda os nomes do pai e da mãe se ambos forem de alta linhagem, sendo comum um índio participar de dois
numaymas simultaneamente, pois, dada a transmissão bilateral da herança, ele poderia requisitar os nomes da
família da mãe e do pai (BOAS, 1966).
Se um primogênito se casa com uma primogênita, seu filho herda o nome de ambos os numaymas, e
um dos primogênitos é incorporado hierarquicamente na casa do outro. Este tipo de união pode ser considerada
como a ideal, pois duas casas se fundem através da ligação de duas pessoas de posições equivalentes entre si
(LÉVI-STRAUSS, 2000).
Existem alguns tipos de nomes entre os Kwakiutl, como os nomes de infância, os de potlatch, os títulos,
nomes cerimoniais, os nomes cristãos (incorporados com a colonização) e etc. Os títulos são especialmente
dotados de grande importância política, já que são aqueles ligados às posições sociais (seats). São nomes que
devem ficar restritos ao numayma ao qual pertencem, não sendo transferíveis através do casamento, e somente
pela primogenitura – como já foi mencionado, são conhecidos como “nomes do mito”.
Os Kwakiutl acumulam diversos nomes durante sua vida, havendo uma ordem de aquisição dos
mesmos. A criança recebe o seu primeiro nome ao nascer, sendo que este é o nome do seu local de nascimento,
e o mantém até possuir um ano. Alguém da família dá um pequeno remo ou esteira para cada membro do
grupo (distribuição de propriedade em um potlatch organizado pela família) e então a criança recebe outro
nome, o segundo.
Por volta dos dez ou doze anos ela obtém o terceiro nome, distribuindo pequenos presentes entre o
grupo. Para poder realizar essa distribuição, criança toma emprestado cobertores e outros objetos aos mais
velhos, os quais devem ser devolvidos um ano depois. Eles são distribuídos proporcionalmente entre o grupo
6
Os únicos nomes de um chefe principal de numayma que podem ser dados em ocasião de um casamento são aqueles que
o próprio chefe obteve de seus sogros, assim como os privilégios, pois seus próprios privilégios não os pode transmitir a seu genro
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 20-29, 2007.
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GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
(o chefe sempre recebe mais) e, após pagar suas dívidas no ano seguinte, a criança pode adquirir um nome
de potlatch, através do assento que seu pai lhe transmite. Um conselho se reúne para autorizar a transação
e a criança distribui mais cobertores. Seu pai abre mão de seu assento e se posiciona com os anciãos do
conselho.
Throughout his life, the child acquires new names and divests himself of old names, but these names are
all eternal, ceremonial names; and since only one person can embody those names, a child can acquire a
name only when the previous name holder has divested himself of that name. (...) As holder of a specific
name, the child has the same rights and responsabilities every holder of that name has had since the
beginning of time, when the name was first created by the spirits 7(WALENS, 1981, p. 65).
Os nomes, como se pode observar, ocupam papel central em todos os aspectos da vida indígena,
pois é a partir deles que se estabelece a estratificação social (rank), as cerimônias, a configuração geográfica
e política da tribo, entre outros aspectos. Como afirma Mauss, “a partir das classes e dos clãs [estabelecidos
pelos nomes], ordenam-se as ‘pessoas humanas’” (MAUSS, 1938, pg. 376).
“... the social transfer of names is central in constituting the Kwakiutl person in the cosmological and
social order. Also importantly, names are of differential importance, and position the person as an agentin-society accordingly” 8 (NIELSEN, 2001, pg. 192).
Para Steffen Nielsen, os nomes seriam ainda responsáveis por ligar os homens com o mundo
sobrenatural, através da referência direta ao ancestral mítico de cada numayma. Indicam também o numayma
ao qual o kwakiutl pertence, os privilégios que ele porta e a localização geográfica de seus consangüíneos. O
nome conecta diferentes gerações, uma vez que várias pessoas utilizam o mesmo nome ao longo do tempo,
dado o estoque fixo dos mesmos. O nome conectaria uma pessoa em relação aos seus contemporâneos e
também com relação aos outros detentores do seu nome ou título. Dada a mudança serial de nomes de um
kwakiutl (a cada idade determinada, há uma troca, efetuada por um potlatch), este seria um instrumento de
conhecimento da sua trajetória pessoal – e, no caso de um chefe, a sua carreira.
Desta maneira, o nome operaria socialmente como um identificador da pessoa kwakiutl. Ele é o
responsável por conferir-lhe prestígio – em se tratando de um título nobre –, de fornecer informações sobre
a sua casa, seu passado e também sobre a região que habita. Através do nome, conhece-se os privilégios
aos quais o indivíduo tem direito, ligando-os aos holders anteriores deste mesmo nome. Os nomes e títulos
conectam o indivíduo com a coletividade, como afirma Nielsen, dando-lhe uma história pessoal e prerrogativas
próprias. São os articuladores da dimensão social da pessoa kwakiutl, atestando a identidade de cada indivíduo
através de uma referência constante à coletividade. Segundo Goldman, “The name is not a guide to personal
character, but to the collective representation of the tribe or lineage” 9 (GOLDMAN apud NIELSEN, 2001,
p. 184). Os nomes são uma importante parte constituinte da pessoa kwakiutl, aquela que lhe confere o aspecto
social e que a liga ao restante da coletividade, através de relações de poder simbólico e ritual e das linhas de
descendência ancestral, mantendo assim uma referência constante aos espíritos e seres sobrenaturais.
In the case of an individual, identity comprises the aggregate of his body, his body as a spirit being, all
his souls, and the ritual paraphernalia associated with these. All of these are the treasures stored in his
name, or the box of his identity. In Kwakiutl terms, what we think of as individual identity is actually
a corporate identity and exhibits the characteristics anthropologists usually associates with corporate
descent groups 10 (WALENS, 1981, p. 48).
Ao analisar os nomes nativos, é fundamental compreender a dimensão espiritual de que eles se
revestem. Para tanto, faz-se necessário uma rápida passagem pela cosmologia Kwakiutl, a fim de compreender
a ligação intrínseca entre nomes, almas e pessoas.
7
Ao longo de sua vida, a criança adquire novos nomes e se desveste de nomes antigos, mas esses nomes são todos
eternos, nomes cerimoniais; e como apenas uma pessoa pode incorporar estes nomes, uma criança pode adquirir um nome
somente quando o detentor anterior do nome já se desvestiu deste nome (...) Como mantenedora do nome específico, a criança
possui os mesmos direitos e responsabilidades que cada detentor deste nome possuiu desde o princípio dos tempos, quando o
nome foi criado pelos espíritos.
8
... a transferência social dos nomes é central na constituição da pessoa kwakiutl na ordem cosmológica e social.
Igualmente importante, os nomes são de importância diferencial, e posicionam a pessoa propriamente como um agente na
sociedade.
9
O nome é não somente um guia para o caráter pessoal, mas para a representação coletiva da tribo ou linhagem.
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Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 20-29, 2007.
GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
Segundo Nielsen, o universo kwakiutl estaria dividido em quatro planos elementares: o mundo dos
Céus, o do Oceano, o dos Mortais e o dos Espíritos (“Sky World”, “Undersea World”, “Mortal World” e
“Spirit World”, respectivamente). Estes mundos estariam interconectados e poderiam ser acessados pelas
criaturas dos outros mundos através de poderes sobrenaturais. É constante a referência a migrações de um
mundo a outro através de comer ou ser comido. A força da fome deveria ser constantemente controlada para
que homens, animais e espíritos não se excedessem ao acessar outros mundos. As relações entre os mundos
seriam simétricas e deveriam ser mantidas assim, reproduzindo eternamente a interdependência entre os
mundos através de uma reciprocidade inexorável. Citando Goldman, “The kwakiutl see each community as an
incomplete segment of the wider universe. No part, no person, no tribe, no species, no body of supernatural
beings is being self-sufficient” 11 (GOLDMAN, apud NIELSEN, 2001, p. 200).
Para passar de um mundo ao outro, seria necessário obter poderes sobrenaturais, o que só poderia
ser realizado por ancestrais dos numaymas. Como o chefe do grupo era tido como o ancestral mais direto do
ser sobrenatural que havia dado origem ao numayma, esta se tornava uma questão ligada à política do grupo.
O nome, portanto, estaria intrinsecamente ligado a esta ordem cosmológica, dando direitos sobrenaturais ao
chefe do numayma devido a sua proximidade ao ancestral mítico.
Os animais, também possuidores de almas, seriam humanos em forma animal. Os primeiros ancestrais
eram, pois, animais, e a humanidade tornar-se-ia permeável na medida em que os animais poderiam, eles
mesmos, encarnar almas e mudar de mundo. As pessoas estariam unidas com os animais pelo fato de serem
todos humanos, todos possuindo almas, diferenciando-se apenas pelo fato de os animais terem assumido esta
forma ao utilizarem máscaras. “A forma manifesta de cada espécie e um mero envelope (uma “roupa”) a
esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos
seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o espírito do animal (...) um esquema corporal
humano oculto sob a máscara animal” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 117). Animais e espíritos viveriam
da mesma maneira que os humanos, ou seja, nas aldeias de inverno, realizando danças, cantos, festivais,
usando máscaras, casando entre si, etc. O oposto também é verdadeiro, de forma que os animais estariam
unidos às pessoas pelo fato de que ambos são animais, mas estes haveriam tirado suas máscaras e roupas para
retornar à forma humana.
Thus, the ultimate similarity between humans and animals is that they are in form, in constitution, in
behavior, in motivation – in all ways – exactly the same (...) human behavior and animal behavior,
being equal, always reflect and reinforce one another, and humans see in animals the ideas, motivations,
relations, and personalities they see in themselves 12 (WALENS, 1981, p. 23).
É comum a viagem de um mundo para outro, ou seja, do humano para o espiritual. Espíritos possuem
livre acesso ao mundo dos humanos, mas para homens e animais efetuarem esta viagem é um pouco mais
complicado. É necessário uma completa mudança de estado de ser, no indivíduo, para que isso aconteça
(NIELSEN, 2001). Os Kwakiutl metaforizam esta mudança através do uso de máscaras, que permite que o
indivíduo se ambiente e se adapte ao mundo no qual ele está adentrando. Os animais, que em seus mundos
são humanos, colocam máscaras de animais e viajam ao outro mundo, onde encarnam a figura destes animais.
Da mesma maneira, os humanos, que em seu mundo possuem a forma de humanos, colocam máscaras com
as quais se torna possível viajar a outros mundos. Se colocam máscaras de salmão, se parecerão com peixes
quando viajarem ao mundo dos salmões, ou pássaros quando usam máscaras de pássaros, e assim por diante.
“Masks are the metaphors of altered self” 13 (WALENS, 1981, p. 59). Como já afirmava Lévi-Strauss, “una
máscara no es ante todo lo que representa sino lo que transforma (...) Igual que um mito, uma máscara niega
tanto como afirma; no está hecha solamente de lo que dice o cree decir, sino de lo que excluye” 14 (LÉVISTRAUSS, 2000, p. 124).
10
No caso de um indivíduo, a identidade compreende o agregado do seu corpo, seu corpo enquanto um ser espiritual,
todas as suas almas, e a parafernália ritual associada a estas. Todos esses são tesouros salvaguardados no nome, ou a caixa de sua
identidade. Nos termos kwakiutl, o que pensamos como a identidade individual é na realidade uma identidade corporada e exibe
as características que os antropólogos geralmente associam com grupos corporados de descendência.
11
Os Kwakiutl vêem cada comunidade como um segmento incompleto do universo mais amplo. Nenhuma parte, pessoa,
tribo, espécie e corpo de seres sobrenaturais é auto-suficiente.
12
Assim, a similaridade final entre humanos e animais é que eles são em forma, em constituição, em comportamento,
em motivação – em todos os aspectos – exatamente iguais (...) comportamento animal e comportamento humano, sendo iguais,
sempre refletem e reforçam um ao outro, e os humanos vêem nos animais as idéias, motivações, relações e personalidades que eles
vêem em si mesmos.
13
Máscaras são as metáforas do ego alterado.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 20-29, 2007.
25
GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
Os kwakiutl formam com os espíritos uma díade, que coloca ambos em uma relação de constante
superioridade/inferioridade e subordinação/insubordinação. Os eventos sobrenaturais são responsáveis pela
constituição do mundo e todos os seres viventes, inclusive plantas e animais, os quais carregam algumas
características derivadas destes poderes. Os homens estão sempre subordinados aos espíritos. Esta idéia
relacional funda toda a concepção dos Kwakiutl sobre sua comunidade e sua relação com o universo. A
relação dos espíritos com os homens é refletida e reproduzida na relação hierárquica dos kwakiutl entre si, dos
chefes com os súditos, maridos com esposas, pais com filhos, etc. Esta oposição seguida de hierarquia, que nos
remete à obra de Louis Dumont, fornece uma espécie de fórmula pela qual qualquer relação entre dois seres
pode ser compreendida entre os Kwakiutl.
Esta idéia de hierarquização e subordinação está refletida, também, na concepção de contenção.
Tudo o que existe no universo pode ser expresso metaforicamente como caixas. Os humanos nascem em
caixas, e quando morrem são enterrados nas mesmas. O próprio corpo é uma espécie de caixa que contém
a alma e carrega o nome, e o universo é visto como um grupo de caixinhas conjugadas que compreende a
casa, o numayma, o homem, sua alma e assim sucessivamente. Da mesma forma que a crest-box contém bens
materiais, que são passados pelas gerações, o corpo é uma caixa que contém bens imateriais e espirituais.
A cosmologia opera, neste sentido, como informante das práticas sociais que nos permitem estudar
a construção da pessoa kwakiutl. O perspectivismo, que garante “uma unidade do espírito e uma diversidade
dos corpos” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 116) através da noção de alma que viaja ao mundo e troca de
lugar com os animais, é um indício de como os indígenas concebem a si mesmos e suas individualidades em
relação com o mundo. Da mesma maneira, a idéia do universo em caixas permite conhecer como se constitui
a pessoa, ou seja, quais são as características, materiais e imateriais, que dão vida a um corpo.
Mauss analisa, em seu artigo A noção de pessoa, alguns aspectos da constituição da pessoa kwakiutl.
As questões que se colocam quando procedemos à análise do grupo são, principalmente, a “do nome, da posição
social, da ‘natividade’ jurídica e religiosa de cada homem livre e, com mais razão, dos nobres e príncipes”
(MAUSS, 1938, p. 375). Segundo Mauss, as pessoas estratificadas na ordem social Kwakiutl assemelham-se
a atores ordenados em um drama, envolvendo um complexo sistema cerimonial de prestações de bens. Esta
análise revela-se importante na medida em que consideramos a pessoa kwakiutl como um dos componentes
da organização social do grupo. Não há como dissociar estes dois elementos, uma vez que a construção deles
se dá de maneira conjunta e interligada. A estratificação social e a hierarquia são dependentes da noção de
pessoa, e vice-versa.
A pessoa seria composta de três espectros: a alma, o corpo e o nome. Para os Kwakiutl, todos os
seres vivos possuem alma, inclusive plantas e animais. As almas estariam localizadas na cabeça, podendo-se
se separar do corpo. Sem ela, entretanto, o indivíduo ficaria fraco e debilitado. Afirma-se que a alma abandona
o corpo algumas horas antes de o indivíduo morrer; em seguida, o corpo separa-se em duas partes, o corpo
físico e o fantasma, o qual seria um esqueleto duplicado do corpo. A alma viajaria, então, para o mundo dos
animais, o que será discutido posteriormente.
Acredita-se que a alma reencarna, retornando aos indivíduos do numayma. Cada numayma teria o
seu estoque fixo de almas, ao qual cada alma retornaria após deixar seu respectivo corpo. Como aponta Marie
Mauzé, “The idea of the soul is thus that of a ‘flow’ substance around a closed system, so that at death the soul
returns to a stock of substance, owned by the group of which the individual is a member” 15 (MAUZÉ apud
NIELSEN, 2001, p. 211). Para Boas, ”the soul has no bone and no blood, for it is like smoke or like a shadow”
16
(BOAS, 1966, p. 169).
Os homens seriam resultado de um processo tríplice, no qual um corpo é materializado, depois
habitado por uma alma do estoque do grupo e, então, articulado com esta alma pra constituir um indivíduo,
uma pessoa. A individualidade ficaria garantida pelo corpo do kwakiutl, único e intransferível, mas conectado
à coletividade pela alma, do estoque grupal, e também através do nome. Semelhante aos ameríndios, “o
espírito (...) é o que integra; o corpo (...) o que diferencia” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 129).
O corpo seria, pois, o recipiente da alma neste mundo. Esta substância física e material era tida
como transitória, enquanto a alma e o nome seriam duráveis, eternos. Um kwakiutl pereceria inevitavelmente,
no que refere ao seu corpo físico; sua alma e nome, entretanto, continuariam a existir para sempre, como já
14
Uma máscara não é antes tudo o que representa senão o que transforma (...) Igual a um mito, uma máscara nega tanto
quanto afirma; não está feita somente daquilo que diz ou crê dizer, mas daquilo que exclui.
15
A idéia da alma é assim de uma substância ‘fluída’ ao redor de um sistema fechado, de maneira que na morte a alma
retorna ao estoque de substâncias, detido pelo grupo do qual o indivíduo é membro.
26
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GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
existiam desde o começo do mundo, e encarnariam e nomeariam outras pessoas, interminavelmente. O corpo
seria o abrigo da alma, enquanto a pessoa seria aquela que carrega um nome.
É importante destacar que o nascimento e morte biológicos não coincidiam necessariamente com
o nascimento e morte social da pessoa, já que a constituição da mesma, como venho tentando mostrar, é
um processo composto de algumas variáveis que não se restringem aos fatores biofísicos. A vida humana,
acreditava-se, era fruto de relações sexuais e conseqüente gravidez. O sexo da pessoa não era determinante na
reencarnação da alma.
A pessoa ideal, segundo Nielsen, seria aquela que carrega um título, tornando-se assim um ser
completo, dotado de poderes sobrenaturais. É o nome que diferenciaria a pessoa do indivíduo, através das
posições sociais e prerrogativas às quais ele fornece acesso.
Enquanto o nome provoca hierarquização e estratificação entre os membros do numayma, organizandoos verticalmente, a alma não possuía nenhuma linha de descendência, operando em um nível horizontal, por
assim dizer (NIELSEN, 2001, p. 222). Outra diferença apontada entre nomes e almas remete à estabilidade dos
mesmos. Enquanto nomes passavam pelos indivíduos, que se apropriavam de outros a cada ocasião importante
em sua vida, a alma escolheria um indivíduo para nele ficar até que este morresse.
Goldman aponta uma distinção marcante entre nome e alma, discordando daqueles que sugerem
alguma equivalência entre as duas categorias. “The name stands rather for the collective immortality or
continuity of the descent line (...) The personal soul departs at death to join with owls or other animals. The
name soul remains forever among men.” 17 (apud NIELSEN, 2001, p. 184). Ele sugere, então, que os nobres
kwakiutl possuiriam três tipos de alma: “name soul”, uma representação coletiva da tribo ou linhagem de
descendência, remetendo ao ancestral mítico e à posição social; “form soul” retomando o ancestral sobrenatural
animal através das máscaras, pratos, cobertores, etc, contidos na crest-box; e, por último, “personal soul”,
distinta individualmente, que abandona o corpo quando este morre para entrar em uma existência sombria.
Considero o aspecto mais importante desta discussão sobre alma e nome kwakiutl o seu papel
enquanto ligação com o mundo espiritual e encarnação de prerrogativas ancestrais. Isto reporta, novamente, ao
texto de Mauss. O francês enfatiza a noção de pessoa kwakiutl enquanto encenação de um drama. Subjacente
à troca de nomes e do estoque fixo de almas, além da disputa por poder e prestígio – pertinente quando se fala
em potlatch e destruição de bens –, está a ligação com os antepassados de cada numayma.
... é a existência mesma destes e dos antepassados que se reencarnam nos detentores de tal direito, que
revivem no corpo dos que carregam seus nomes, cuja perpetuidade é garantida pelo ritual em todas
as suas fases. A perpetuidade das coisas e das almas só é garantida pela perpetuidade dos nomes dos
indivíduos, das pessoas. (...) Toda essa imensa mascarada, todo esse drama e esse balé complicado
de êxtase, dizem respeito tanto ao passado quanto ao futuro, são uma prova do oficiante e uma prova
da presença nele do naualaku, elemento de força impessoal, ou do antepassado, ou do deus pessoal,
em todo caso poder sobre-humano, espiritual, definitivo. O potlatch vitorioso, o cobre conquistado,
correspondem à dança impecável e à possessão bem-sucedida (MAUSS, 1938, p. 377).
O indivíduo enquanto incorporação, enquanto carregador de um nome e portador de uma alma, a
construção da pessoa kwakiutl enquanto ser permanentemente remetido aos seus ancestrais, à encarnação
dos mesmos, torna compreensível a metáfora utilizada por Mauss quando se refere a atores em um drama. A
identidade kwakiutl é dada pela transformação, transformação em nova identidade através de um nome, ou
incorporação, de um nome ancestral ou alma também ancestral. A pessoa estaria, para Mauss, intrinsecamente
ligada ao nome, uma vez que é este que fornece a dimensão social do indivíduo kwakiutl. Ele sugere, pois,
que a identidade kwakiutl é uma máscara, um papel desempenhado de acordo com o nome e a alma que porta
o sujeito. É interessante destacar que a máscara sugerida metaforicamente por Mauss toma forma real ao ser
analisada por Lévi-Strauss em A via das máscaras, sendo inclusive a responsável pela mudança de estado,
plano ou forma dos índios.
O nome opera centralmente neste esquema, uma vez que fornece distinção social, ligação cosmológica
com os espíritos e status político. A pessoa kwakiutl pode ser melhor compreendida mediante essa noção
de caixa, um corpo que porta um nome e é preenchido por uma alma, ambos ligados aos seus ancestrais
míticos.
A alma não possui osso e sangue, por isso é mais como uma sombra.
O nome representa a imortalidade coletiva ou continuidade da linha de descendência (...) A alma pessoal parte na
morte para se juntar com corujas e outros animais. O nome da alma permanece para sempre entre os homens.
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GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
The individual is a box that must be filled with some vital substance to bring it to life, and the box
a container with substance within that must be given an individuality to bring it to life. (...) The
nonmaterial Box is the name. No characteristic of Kwakiutl names is more important than the simple
fact that names are eternal and that although the holders of a name may live and die, the name goes on
forever 18 (WALENS, 1981, p. 63).
Nesta perspectiva, tendo em vista a cosmologia nativa que se embasa na idéia de contenção em
caixas, sugiro que o nome seria, pois, o nível hierarquicamente superior da pessoa kwakiutl. Embora ateste-se,
como foi visto, que a pessoa carregaria em si o corpo, a alma e o nome (uma tríade), parece haver mais sentido
propor que o nome, este sim, seria a entidade englobante da pessoa, bem como de sua alma e seu corpo.
O nome colocar-se-ia como um dos eixos principais na sociedade kwakiutl. Ele é o esqueleto do
numayma, através do sistema de posições; é o motor do potlatch e da contração de dívidas, que visam sempre
obter mais prestígio pela aquisição de uma alta posição; é também o coordenador da relação entre a vida
coletiva e individual de cada kwakiutl, na medida em que confere-lhe especificidade (dado o estoque fixo de
nomes, duas pessoas nunca levam nomes iguais, somando-se a isso ainda a incorporação de características que
acarreta a posse de determinado nome ou título) e também conecta-o aos seus ancestrais e ao seu passado.
O nome é responsável por englobar a pessoa kwakiutl nas suas mais diversas vertentes, operando
como hierarquicamente superior, no sentido proposto por Dumont. O nome engloba a pessoa, subordinando
o indivíduo a uma categoria que lhe embute características pessoais e sociais. Retomando a idéia de caixas,
presente em todos os aspectos da vida social indígena, o nome seria o recipiente da pessoa, juntamente com sua
alma e seu corpo. O status da pessoa, sua posição dentro do numayma, a alma que lhe foi destinada do estoque
eterno e fixo, bem como os poderes sobrenaturais que lhe são atribuídos, tudo isso pode ser considerado como
decorrência do nome que é adotado ou conquistado pela pessoa, sempre através de um potlatch ou uma disputa
de rivalidade.
Todos os fatores que coordenam a vida social de um índio (sua posição, seu assento, suas
prerrogativas, seus poderes sobrenaturais, seus direitos, seu status, etc) estão ligados ao seu nome. E este
é, pois, o fator pelo qual as posições, títulos e nomes são disputados com tanta veemência em potlatches
magistrais. O nome determina quem é o kwakiutl, ele determina seu posicionamento social, suas ações e
também sua individualidade. Coloca-se, como hierarquicamente superior à pessoa, como uma caixa que a
engloba, e também como eixo central na relação entre estratificação social e potlatch.
Corpo, alma e nome são, pois, os grandes eixos articuladores desta pessoa kwakiutl, desta incorporação
ancestral – seja através de máscaras, prerrogativas ou etc –, como afirma Mauss. O nome acaba por ser o maior
eixo articulador desta relação, operacionalizando organização política, poder simbólico e cosmologia nativa
... they are not given names that define them as individuals only, but instead acquire names that define
them as parts of the collective. A name provides a box, and people must provide the supernatural,
spiritual treasure to fill that box. A name provides a body, and people must provide the soul to animate
that body. The name ingests a person and transforms him into the animating soul of that name. People
bring vitality and energy to the world; but it is the eternal containers – the names, boxes, houses and so
on – that provide the identities, the constant verities, and the immutable structure of the universe. The
names are superior, the people subordinate 19 (WALENS, 1981, p. 65-66).
18
O indivíduo é uma caixa que deve ser preenchida com alguma substância vital para ser trazido à vida, e a caixa um
recipiente com substância dentro à qual deve ser dada uma individualidade para trazer à vida (...) A Caixa não-material é o nome.
Nenhuma característica dos nomes kwakiutl é mais importante que o simples fato que os nomes são eternos e que embora os
mantenedores de um nome possam viver e morrer, o nome permanece para sempre.
19
... eles não são dados nomes que os definem apenas como indivíduos, mas ao invés nomes adquiridos que os definem
enquanto parte da coletividade. Um nome provê uma caixa, e as pessoas devem prover o tesouro sobrenatural e espiritual para
preenchê-la. Um nome provê um corpo, e as pessoas devem prover a alma para animá-lo. O nome ingere a pessoa e a transforma
na alma animada daquele corpo. As pessoas trazem vitalidade e energia para o mundo; mas são os recipientes eternos – os nomes,
caixas, casas e etc – que provêm as identidades, as constantes realidades e a imutável estrutura do universo. Os nomes são superiores,
as pessoas subordinadas.
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Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 20-29, 2007.
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Tempo e Espaço entre Pescadores da Praia da Concha, Vila Velha-ES
Márcio De Paula Filgueiras*
Resumo: O presente texto aborda alguns aspectos relacionados às noções de tempo e espaço entre
pescadores artesanais da Praia da Concha, no bairro de Barra do Jucu, em Vila Velha-ES. Pescando com
tecnologia simples, estes pescadores possuem uma rica bagagem de conhecimentos sobre as sazonalidades
locais, que lhes permite pescar com segurança e eficácia, no contexto produtivo instável que é o mar.
Pretendemos mostrar também como algumas modificações nos espaços tradicionais destes pescadores,
operadas por dinâmicas externas às suas práticas, transformam a territorialidade local e impõem novos
ritmos e atitudes a estes trabalhadores do mar.
Palavras-chave: Tempo, Espaço, Pescadores, Mudanças
Abstract: This text approaches some aspects related to the notions of time and space among artisanal
fishers of Praia da Concha, in the neighborhood of Barra do Jucu, Vila Velha-ES. Fishing with simple
techniques, these fishers have a rich knowledge of local seasonality that allow them to fish with
safety and efficiency, in the context of the sea as a instable productive enviromental. We also intend
to show how some changes in the fisher’s tradicional espaces, operated by dynamics external to their
practices, transform the local spaciality and impose new rhythms and new attitudes on the fishers.
Keywords: Time, Space, Fishers, Changes
Tempo ecológico
Introdução
Neste artigo pretendo compartilhar alguns resultados da pesquisa que realizai entre outubro/2003 e
abril/2004, como um dos requisitos para obtenção do título de bacharel em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Espírito Santo e que deu origem à monografia intitulada “Pescadores da Praia da Concha: saberes,
práticas e ritmos locais”.
Os interlocutores desta pesquisa foram pescadores cujas pescarias partem da Praia da Concha, localizada
no bairro de Barra do Jucu, em Vila Velha, Espírito Santo. Apesar de não ter tido contato com registros oficiais,
conversas com pescadores antigos, como Seu Írio de 92 anos, sugerem que a pesca é realizada no local há pelo
menos 100 anos.
Como pude observar, os pescadores da Praia da Concha pescam com tecnologia relativamente simples,
com embarcações denominadas localmente baiteiras, geralmente tracionadas a remo ou motor, com tripulações
de dois pescadores, que utilizam como aparelhos de captura redes de espera ou linha e anzol. Não há nenhuma
organização local formal que reúna estes pescadores e a grande maioria deles não está vinculada à Colônia
Z-2, localizada no centro da cidade de Vila Velha ou à SEAP1.
Este estudo inicial vem se somar às pesquisas que, desde o início do século XX, com os Argonautas do
Pacífico Ocidental de Malinowski (1984) e a Expedição Cambridge ao Estreito de Torres (NIETSCHMANN,
*Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (2005).
1
Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca.
30
Filgueiras, M. P. Tempo e Espaço entre Pescadores da Praia do Concha
1989, APUD MALDONADO, 1993), têm abordado as complexas formas de relacionamento entre povos
pescadores e o meio marítimo.
A estas pesquisas se seguiram diversas outras, como a de Raymond Firth (1975) na Malásia, a de
Fredrik Barth (1966) na Escandinávia, as de Forman (1970), e Kottak (1983) na Bahia, a de Peirano (1975)
no Ceará, a de Maldonado (1993) na Paraíba, a de Woortman no Rio Grande do Norte (1992) e as de Kant de
Lima & Pereira (1997) em Niterói-RJ, para citar algumas.
A diversidade e qualidade destes estudos permitiram a consolidação das pesquisas entre grupos
pesqueiros como um campo bastante fértil para a reflexão antropológica. Segundo Simone Maldonado (1993),
o mar enquanto meio indiviso e instável, tanto do ponto de vista do perigo quanto da produção, produz um
contexto produtivo que vai desencadear diferentes formas de cognição e sociabilidade que, a despeito das
especificidades locais, compõem o que a autora chamou de maritimidade, ou seja, o conjunto de práticas e
conhecimentos do meio natural, das sazonalidades, dos cardumes, dos locais adequados para pesca, das formas
de organização da produção, que se colocam como imprescindíveis para a realização da atividade pesqueira
seja qual for a escala de produção, artesanal ou industrial.
Como constituintes universais desta maritimidade aparecem as noções de tempo e de espaço (FARIS,
1972; SMITH, 1977; MOLLAT, 1979; DIEGUES, 1983; MALDONADO, 1986 apud MALDONADO, 1993).
Enquanto trabalhadores do mar, os pescadores têm o ritmo de suas atividades condicionado em grande medida
pelo movimento dos cardumes, pelas condições do mar, ou pelas variações da Lua. Estes ritmos, por sua
vez, estão relacionados a espaços específicos, onde se produz, onde se espera a hora de voltar ao mar ou se
compartilha com descontração os eventos cotidianos socialmente significativos.
A seguir apresento algumas das formas que esta relação entre tempo e espaço assume entre pescadores
da Praia da Concha. Para orientar a análise dos dados me vali da perspectiva conceitual de Evans-Pritchard
(1978) que trabalha com a distinção entre o tempo ecológico, cíclico, reflexo das relações da sociedade com a
natureza, e o tempo estrutural, linear, reflexo das relações dentro da estrutura social.
Em seu estudo sobre os Nuer, povo habitante do que hoje é o Sudão, Evans- Pritchard pôde perceber
um calendário polarizado entre o tempo das chuvas e o tempo da seca, aos quais correspondiam ritmos
diferenciados de vida nas aldeias e nos acampamentos.
Entre os pescadores da Praia da Concha pude identificar também períodos diferenciados do ano em
que as condições ecológicas se alteram e alteram-se igualmente os ritmos e atividades dos pescadores. Além
ainda destas sazonalidades naturais, certas modificações nos espaços costumeiros dos pescadores, operadas
por dinâmicas externas às práticas locais, também afetaram os ritmos sociais dos interlocutores da pesquisa,
como espero esclarecer a seguir.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 30-38, 2007.
No que se refere ao tempo ecológico, os principais eventos naturais cíclicos que aparecem de forma
relevante no discurso dos pescadores são as variações sazonais referentes ao tempo quente e ao tempo frio e às
fases da Lua. Todavia, há outros eventos naturais bastante significativos para a compreensão dos ritmos sociais
dos pescadores como o vento e a direção para qual corre a água, os quais também descrevo a seguir.
Os pescadores da Praia da Concha pescam todos os dias do ano, salvo quando o mar está grosso
(agitado), o que, segundo eles, dificulta a navegação e não permite que os peixes encostem, ou seja, aproximemse da costa.
Segundo Paulo Lira (66 anos), pescador local, no chamado tempo frio, que vai de abril a outubro,
o mar costuma ficar grosso, ou seja, agitado, com poucos dias apropriados à pesca, em contraposição ao
chamado tempo quente, que vai de novembro a março, quando o mar costuma ficar em melhores condições
para a pescaria. Neste período, além do mar ficar mais constantemente manso, ou seja, mais tranqüilo, os
cardumes de comidinha (peixes pequenos, em geral filhotes de manjuba) encostam, atraindo cardumes de
peixes maiores.
O tempo quente é, portanto, a época à qual os pescadores se referem como a mais apropriada para a
pescaria de mar na Praia da Concha apesar de, durante o tempo frio, também ocorrerem muitos dias propícios
à pesca, o que reafirma a importância do fator imprevisibilidade sobre os ritmos regulares da sua compreensão
da sazonalidade da pesca e da presença de cardumes no contexto de suas atividades.
Segundo Paulo Lira, a Lua também exerce significativa influência nos ritmos dos pescadores. Segundo
ele, quanto mais clara a Lua pior para os peixes encostarem porque a Lua clara costuma tornar o mar mais
agitado.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 30-38, 2007.
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Filgueiras, M. P. Tempo e Espaço entre Pescadores da Praia do Concha
Ainda segundo Paulo Lira, o advento da iluminação da Praia do Peitoril, principal praia da Barra do
Jucu do ponto de vista turístico e via de acesso para a Praia da Concha, está relacionado à menor ocorrência
de peixes pois, segundo ele, a luz intensa impede que os peixes encostem. Outros pescadores, como Marcelo
(37 anos), já acham, por outro lado, que a luz artificial não interfere muito.
Em relação aos ventos, Paulo Lira disse ainda que estes costumam soprar mais freqüentemente vindo
do norte/nordeste e, com um pouco menos de freqüência, vindo do sul. Ocorrem outros ventos, mas estes são
os principais. Nas duas condições ocorrem peixes, o mais importante, porém, é que o vento não esteja forte
demais, porque dificulta a navegação
A experiência de surfar já tinha me colocado em contato com alguns saberes tradicionais sobre as
expectativas a respeito do tempo, como a mudança da direção do vento ou a chegada de uma frente fria. Os
outros surfistas diziam que os pescadores, referidos às vezes como os “antigos” costumam prever a chegada
do vento sul pela formação das nuvens (cirrus, na linguagem científica, ou rabo de galo2) ou pelo aparecimento
de aves chamadas tesouras (Fregata magnificens), de maneira que, o número de espécimes que aparecem
corresponde à quantidade de dias em que vai soprar o vento sul.
Isso fazia parte das informações prévias que eu possuía sobre os conhecimentos tradicionais dos
pescadores. Com a pesquisa pude perceber que, hoje em dia, os pescadores já utilizam bastante as previsões
do tempo da televisão. Alguns, como Marcelo, no entanto, confirmaram a eficiência prática destes saberes
tradicionais.
Em relação à direção do curso da água, fui informado de que a água pode correr tanto do sul para o
norte quanto do norte para o sul e isso independe da direção do vento. Os pescadores destacam também que é
importante que a água esteja correndo, não esteja parada, porque é melhor para matar os peixes.
Os pescadores também dão atenção ao aspecto da água de maneira que, segundo eles, a água boa
para matar robalo, por exemplo, é a água amarelada ou suja. Algumas questões como a cor da água ou a
direção da corrente são difíceis de serem previstas, pois ocorrem dentro de uma sazonalidade que não se
repete de maneira regular, todavia, são condições que se impõem e que determinam, em grande medida, os
comportamentos e as expectativas dos pescadores em relação aos peixes.
Narrativa de uma da idas à Praia da Concha, “recheada” de dados das várias outras idas:
No dia oito de outubro de dois mil e três cheguei à Praia do Peitoril às 4:45 hs. Ainda estava escuro,
e já haviam sete pescadores na calçada, esperando suas parcerias para irem pescar. Como pude observar, os
pescadores costumam pescar em duplas. A formação destas duplas não obedece à nenhuma regra formalizada
ou pré- estabelecida, mas acontece, antes, por afinidade, como me disse Marcelo: “por exemplo, to pescando
com Franchino, mas se eu me cansar dele ou ele de mim agente já não pesca junto, melhor que brigar’’.
Ao chegar à Praia da Concha, observei que, ao contrário do que eu imaginava, aqueles sete pescadores
esperando suas parcerias não eram os primeiros à chegarem à praia, uma vez que já haviam três embarcações
na água. Dentre as duplas que observei irem ao mar, pude reconhecer Paulo Lira formando parceria com
Brandinho, Tião Vergalhão com seu irmão Jorge Magaiver, Marcílio com Joãozinho e Marcelo com seu irmão
Leléu.
As duplas Joãozinho e Marcílio assim como Brandinho e Paulo Lira e Tião e Jorge, armam suas redes
de espera na Praia da Concha e foram mirá-las, ou seja, verificar se haviam capturado algum pescado. Já
Marcelo e Leléu , como não possuem rede na Praia da Concha, foram pescar de linha em alguma baixa (ponto
pesqueiro).
Os pescadores que foram mirar suas redes voltaram para a praia, guardaram as poucas (5 ou seis)
guaibiras que capturaram e voltaram para o mar para pescar de linha. Por volta das 8:45hs a maioria dos
pescadores já havia voltado do mar, guardado seus materiais de pesca nos barracões e seguido para casa.
Voltei à Praia da Concha às 14:30 e encontrei novamente Paulo Lira, dessa vez remendando uma
rede de espera boeira3 que, segundo ele, havia rasgado na Ilha “quando o mar engrossou”. Um pouco mais
tarde chegaram Brandinho, Joãozinho, Marcílio, Muriçoca, Marcelo, Fábio, Aílton que ficaram de baixo das
castanheiras, conversando sobre a pescaria e alguns episódios de suas vidas. Paulo Lira e Brandinho miraram
São chamadas de nuvens sólidas pois são compostas de cristais de gelo. São as mais altas, normalmente formadas a
mais de 5.000 metros de altitude. Sua aparência estriada faz com que sejam também conhecidas como “rabo de galo”.
3
As redes de espera boeiras são as que segundo os pescadores locais capturam os peixes que vivem na “flor da água”, ou
seja, próximos à superfície.
2
32
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 30-38, 2007.
Filgueiras, M. P. Tempo e Espaço entre Pescadores da Praia do Concha
mais uma vez seus trasmalhos e aproveitaram para mirar os de Marcílio e Joãozinho. Depois disso, por volta
das 17:00hs, os pescadores deixaram a Praia da Concha, percorrendo a escadaria que leva de volta à praia do
Peitoril.
Ocorre que, na atualidade, dos cerca de 40 pescadores da Praia da Concha, poucos são os que se
dedicam em tempo integral à pesca, de forma que a grande maioria mantém outro emprego e não pode estar
presente na praia em todos os referidos momentos. Para citar alguns exemplos: Brandinho é pintor. Tião
Vergalhão e Rogério trabalham como pedreiros e Paulo Lira foi funcionário da prefeitura por muitos anos
antes de se aposentar
As razões apontadas pelos pescadores para esta necessidade de um outro emprego são, principalmente,
a degradação do rio Jucu, a progressiva exploração do litoral pelos chamados barcos de pesca industrial e a
conseqüente diminuição da captura na pescaria que não permite mais que uma família se sustente, como se
sustentava no passado, só da pesca.
Historicamente, a degradação do rio Jucu pode ser relacionada ao progressivo despejo de esgoto não
tratado, ligado principalmente ao aumento populacional ocorrido em toda a Grande Vitória, a partir da segunda
metade do século XX, com os grandes projetos industriais (Aracruz Celulose S/A, CST, CVRD). O aumento
das áreas de pasto, nos municípios do interior do estado atravessados pelo rio, por sua vez, também contribuiu
para a degradação deste, através do assoreamento, que dificulta a navegação mesmo de barcos pequenos.
Já a sobre pesca realizada pelos barcos industriais, que repercute localmente na escassez de pescado,
é um fenômeno percebido também em outras partes do mundo, como conseqüência dos métodos de captura
utilizados pelos grandes barcos (grandes redes de cerco e de arrasto) e das políticas de exploração dos estoques,
centradas nas espécies com maior valor econômico, com freqüentes repercussões negativas sobre as demais
espécies, como aponta Diegues (2003).
Ao invés de significar a pouca importância da pesca na vida destes indivíduos, a dedicação em tempo
parcial sugere, como eu a interpretei, pelo menos duas coisas:
a) independente do tempo de dedicação dos indivíduos— exclusiva ou parcial— a articulação entre os
pescadores desta praia mantém-se viva e cheia de significados;
b) mesmo que encontrem alternativas complementares que tragam alguma solução para suas dificuldades
financeiras, já que a pesca não pode ser a fonte exclusiva da subsistência, essas pessoas escolhem prioritariamente
esta atividade e se dizem pescadores.
O tempo estrutural - antigamente e hoje em dia
Na Barra do Jucu coexistem pelo menos três gerações de pescadores artesanais. Uma, a primeira, que
viveu um período, marcado pela fartura do pescado, quando não havia luz elétrica ou água encanada, e que
pode ser simbolizado pela figura do Seu Írio, pescador de 92 anos, um dos mais antigos ainda vivos, mas que
não pesca mais.
Outra geração, a segunda, viveu um período de transição, quando o cotidiano da Barra do Jucu e da
pesca na Praia da Concha começaram a se transformar sensivelmente e pode ser simbolizada por Seu Paulo
Lira, de 66 anos, que já não se dedicou exclusivamente à pesca, mantendo um emprego de topógrafo na
Prefeitura de Vila Velha, no qual se aposentou.
A geração mais nova, por sua vez, corresponde aos pescadores que têm por volta de 30 anos e que
vivem o que alguns mais antigos chamam de “fim da picada”: um tempo marcado pela escassez do pescado e
onde é praticamente impossível viver só da pesca.
É importante ressaltar que alguns pescadores com quem conversei têm, em grande medida, uma visão
do tempo diferente da nossa noção abstrata de cronologia. Sem usar anos ou décadas, o que lhes marca o
tempo são, com muito mais freqüência, os eventos significativos dentro do seu curso de vida. Dessa forma,
essa situação assemelha-se aquela descrita por Woortman sobre comunidades pesqueiras do litoral do Rio
Grande do Norte:
Para que eu traduzisse essa percepção do tempo naquela que é familiar a nós, tive que transformar a
temporalidade vivida (...) na nossa cronologia abstrata de forma que (...) é claro que não posso precisar
dia, mês e ano mas apenas tempos aproximados (WOORTMAN, 1992, p.55).
Quando iniciei meu trabalho de campo e comecei a ter os primeiros diálogos com os pescadores,
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 30-38, 2007.
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Filgueiras, M. P. Tempo e Espaço entre Pescadores da Praia do Concha
pude perceber que, além das já referidas sazonalidades que nos permitem apreender seus ritmos sociais
cíclicos, suas narrativas deixavam clara uma visão dicotômica do tempo histórico, que pôde ser percebida
pela contraposição recorrente do tempo de antigamente ao tempo de hoje em dia.Estes dois momentos são
distintos, pois marcam períodos onde as condições concretas da reprodução do modo de vida e de trabalho dos
pescadores se alteraram significativamente.
Se o passado, ou o antigamente, remetem à fartura e ao sucesso da pescaria, tanto no mar quanto no rio,
remetem também a um tempo onde era difícil vender o pescado (que precisava ser levado a Vila Velha), onde
faltava infra- estrutura básica (energia; água encanada) e onde todo o material de pesca, salvo os anzóis, e a
maioria dos alimentos e bens consumidos eram produzidos pelos pescadores e suas famílias: “não tinha nada
de fio de náilon não, era linha Ursa, que a gente cochava no carro, de primeiro se cochava linha no carro, no
carrinho, nós ia tudo cochar linha , hoje não, já compra tudo pronta, né? ( Seu Alceste)’’
O presente, ou hoje em dia, por sua vez, se por um lado é marcado pelo maior acesso à infra- estrutura,
bens de consumo (incluindo materiais de pesca) e ao mercado, é também marcado pela escassez do pescado
que, segundo os pescadores, não permite mais que uma família se sustente só de pesca.
Tal dicotomia na visão do tempo tem como pontos de referência alguns processos e transformações
ocorridos no espaço e que são fundamentais para a compreensão das mudanças que aconteceram ao longo do
tempo na Barra do Jucu e que afetaram significativamente a vida dos pescadores da Praia da Concha. Como
nos diz Woortmann (1992, p. 43) em seu estudo sobre comunidades pesqueiras do nordeste: “Ao longo do
tempo, o espaço se modificou e essa modificação é construtora da temporalidade histórica”.
Uma das questões mais presentes no discurso dos pescadores e mais importantes para a compreensão
desta visão dicotômica do tempo, é a progressiva degradação do rio Jucu, acentuada a partir do final da década
de 1980, que aparece, em suas falas, como fator determinante para explicar a escassez do pescado. Segundo
Seu Alceste, pescador de 77 anos, “(...) quando dava um vento sul e o mar engrossava, não podia pescar no
mar, o que valia era o rio, era robalo, carapeba, tiucupá, era tudo que é variedade de peixe”.
Com a degradação do rio os pescadores perderam uma importante alternativa de pesca: se antigamente
podiam contar com esta opção nos dias de mar grosso, hoje em dia não lhes resta outra opção senão ter outro
emprego fixo ou fazer alguns bicos. Além disso, também a escassez do pescado no mar é associada à poluição
do rio uma vez que, segundo me informaram os pescadores, diversas variedades de peixes pescados no mar se
reproduzem na região do rio e dos mangues.
Além da degradação do rio, outros processos espaciais exteriores ao mundo local dos pescadores
passaram a ter importância, nas representações deles, para explicar a passagem do tempo de fartura ao tempo
de escassez. Em várias ocasiões vi os pescadores se referirem aos sucessivos aterros feitos nas praias da
Grande Vitória e ao quebra-mar do Porto de Tubarão como responsáveis, segundo eles, por fazerem com que
a água e os peixes corressem mais por fora.
Tais percepções dos pescadores a respeito das transformações no espaço e, por conseguinte, das
suas condições concretas de existência, são formuladas para dar significado aos processos de mudança que
vivenciam e, dessa forma, dão, em grande medida, origem à um sentido de temporalidade que, no caso dos
pescadores da Praia da Concha, pode ser traduzido na dicotomia passado/ fartura, presente/ escassez.
Esta visão dicotômica do tempo reaparece quando Paulo Lira menciona um tempo quando havia, na
Barra do Jucu, um capataz, designado pela Capitania dos Portos que regulava toda a atividade pesqueira.
Segundo Paulo Lira “não passava a rede de arrasto na hora que quisesse não, tinha que falar com o Capataz
(...)”.
Marcelo também faz referência à falta de organização posterior à saída do capataz: “antes era obrigado
a correr o lance, hoje não, (...) esses lance tão aí faz mais de ano sem correr (...)”. Pode-se perceber
por estas duas falas que o fim do controle exercido pelo capataz marca dois tempos bem distintos nas
representações dos pescadores: o passado, relacionado à ordem formalizada, garantida pelo capataz e o
presente, marcado por uma ordenação mais informal das atividades pesqueiras à qual alguns se referem
como “bagunça”.
Tanto o controle do capataz sobre a rede de arrasto quanto sobre a corrida dos lances são questões
que desenvolvo especificamente mais adiante. O que quero realçar aqui é o quanto a ausência do capataz
representou mudanças significativas nas práticas de pesca a ponto de servir como referência nas representações
dos pescadores sobre seu passado comum.
A construção, em meados dos anos de 1980, da escadaria que dá acesso à Praia da Concha, por sua vez,
representou uma reconfiguração da dinâmica social deste espaço, com repercussões nas percepções do tempo.
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Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 30-38, 2007.
Filgueiras, M. P. Tempo e Espaço entre Pescadores da Praia do Concha
Se antes os pescadores tinham a Praia da Concha como um espaço exclusivamente seu, a partir deste momento
passam a dividi-lo com pescadores esporádicos, de outros lugares, e com banhistas, principalmente no verão
(tempo quente) e nos fins de semana.
Segundo as percepções dos pescadores com quem conversei, se a escadaria, por um lado, tornou mais
prático o acesso deles à Praia da Concha, por outro, tornou-a mais acessível, também, para qualquer um.
Como conseqüência desse acesso irrestrito, os pescadores passaram a conviver com novos elementos,
como a sujeira deixadas por banhistas, roubos e danos ao seus materiais e a presença de pescadores esporádicos
“de fora” que aumentam a competição pelo pescado, apesar de não haver aparentemente nenhum conflito
entre pescadores locais e os que são incorporados de outros lugares, já que muitas vezes há “conhecidos” que
intermediam a chegada de novos pescadores.
Percebe-se, portanto, que os eventos numa representação linear e fragmentada do tempo, construída
pelos pescadores, são produto das várias experiências vividas pelo grupo, todas elas possuindo forte significado
comum. Entre estes eventos percebemos e nos referimos acima às mudanças no meio ambiente (como a
degradação do rio Jucu), à construção da escadaria que dá acesso à Praia da Concha e ao fim do controle do
capataz sobre as atividades de pesca locais.
Estes eventos, ao modificarem substancialmente as condições em que os pescadores reproduzem suas
atividades pesqueiras, tornam-se significativos para o grupo, compondo assim, um quadro de memórias,
trajetórias e episódios partilhados pela grande maioria dos pescadores.
Localização no mar
Ao contrário da impressão de indiferenciação que pode ter um leigo quando lança seu olhar sobre o
mar, os pescadores constroem uma sofisticada territorialidade marítima que os permite diferenciar entre regiões
mais piscosas, regiões mais seguras, criando assim lugares socialmente significativos aos quais atribuem
diferentes valores (MALDONADO, 1993; FORMAN, 1970; KANT DE LIMA & PEREIRA, 1997).
Acheson (1988) quando analisa a pescaria de lagostas no estado de Maine, nos EUA, se refere a
territorialidade como um mecanismo através do qual certos direitos exclusivos de uso de determinados lugares
no mar são estabelecidos e mantidos. Aqui, no então, gostaria de estender um pouco este entendimento de
territorialidade ao processo de apropriação simbólica do mar de uma maneira mais geral, o qual pode ou não
implicar em sistemas de propriedade.
Quando vão ao mar, os pescadores da Praia da Concha acessam uma série de espaços específicos, os
chamados pesqueiros, que são os lugares onde costumam pescar de linha ou armar algumas de suas redes
de espera. Estes pontos possuem, em geral, fundo de pedras ou lama, o que, segundo os pescadores, atrai os
peixes .
Alguns pontos, como a Ilha, são visíveis e facilmente localizáveis. Outros, porém, nem tanto. O acesso
a estes pontos, por sua vez, depende de um saber local e de um conhecimento a respeito dos espaços no mar
bastante peculiares e que lhes permitem localizar tais pontos pesqueiros com um alto grau de confiabilidade.
Pra fazê-lo, os pescadores utilizam pontos em terra como referência para marcar espaços na água.
Marcam dois conjuntos de dois pontos alinhados a partir do mar visando a terra. Quando eles estão numa
posição no mar tal que, fazendo duas visadas, podem ver alinhados cada um dos dois conjuntos de pontos,
eles sabem que estão situados no ponto pesqueiro. Trata-se, portanto, de um processo conhecido por nós como
triangulação. Neste caso a referência aos conjuntos de pontos duplos, a partir de um ponto no mar, substitui
o que, numa triangulação comumente entendida, seria feita por medidas de ângulo referentes à apenas dois
pontos separados visíveis na direção da costa.
Segundo os pescadores, este alinhamento dos pontos forma a letra “L”:
(...) por exemplo, você alinha em cima, ou seja, no norte, dois pontos, podem ser o Convento e uma
antena alta, e embaixo mais dois pontos, pode ser Araçatiba e outro morro, quando você alinhar a
baitera às marcas, em cima e embaixo, você tá no pesqueiro (Marcelo).
A maior parte dos nomes das baixas se refere aos pontos em terra, utilizados com referência, como é
o caso da baixa do Morro da Seira que se refere ao morro Mestre Álvaro. Outros três exemplos de nomes de
pesqueiros: Roças Velhas, Sacambu, Tapinambi4 .
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 30-38, 2007.
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Filgueiras, M. P. Tempo e Espaço entre Pescadores da Praia do Concha
O direito de botar a rede
Hoje em dia os lugares privilegiados de suas vivências enquanto pescadores são o mar e a Praia da
Concha. No mar, esta apropriação do espaço pode ser notada e simbolizada pela presença dos trasmalhos
boeiros, localizados a cerca de 50m da praia, e que chamam a atenção de quem percorre a escadaria que leva
à Praia da Concha.
Estes trasmalhos boeiros são fixados com uma corda (rabicho) a partir de uma estaca de madeira
presa às pedras do Morro da Concha. Daí eles são esticados para o mar até um determinado ponto, onde são
amarrados a uma espécie de âncora (arinque). Estes instrumentos e esta operação são denominados lances.
A partir deste primeiro lance, outros vão sendo instalados e amarrados seqüencialmente em cada arinque, em
geral completando doze lances. Portanto, entre todos os lances existe somente um amarrado à pedra. Cada
lance sendo feito com a rede de um pescador, o lance é próprio do pescador e, conseqüentemente, também o
é o produto da pescaria.
No passado, quando na Barra do Jucu havia um capataz que fiscalizava a pesca, os pescadores eram
obrigados a correr o lance, ou seja, fazer um rodízio entre os lances: quem ontem estava no décimo segundo
lance, hoje vai para o primeiro e assim por diante. Isso ocorria porque, segundo os pescadores, os peixes malham
(emalham) mais nos primeiros lances, que ficam mais próximos às pedras onde correm os cardumes.
Segundo os pescadores com quem conversei, como Seu Alceste e Marcelo, esta regra era rigidamente
respeitada e cumprida, sob o risco de serem penalizados pelo capataz que poderia suspendê-los da pesca pela
infração. Hoje em dia, porém, não há mais este tipo de controle sobre o direito de botar as redes, de maneira
que alguns pescadores mantém um direito permanente aos primeiros lances.
Segundo Dirceu5, este direito permanente é um assunto que, quando vem à tona, costuma provocar
discussões entre os pescadores. Isso pode ocorrer quando algum dos pescadores insiste em querer fazer correr
o lance, o que, no entanto não costuma acontecer: “...o que acontece é que alguns são mais arrogantes e se
impõem (...) aqueles trasmalhos estão daquele jeito (sem correr) faz mais de anos, mas o pessoal, para evitar
briga, deixa pra lá... (Dirceu)’’ mas Dirceu faz ainda uma ressalva: ‘‘ (...) mas se resolverem que querem correr
tem que correr, não tem essa não, mas do jeito que tá ruim de peixe, tanto faz.’’ Ou seja, parece não haver
muita disputa para o revezamento, ou seja, correr o lance pois, de qualquer maneira, o pescado está escasso.
Alguns como Felipe6,no entanto, se referem à questão de uma maneira bem mais irônica, chamando
de “donos do mar’’ os pescadores que se opõem a correr o lance para não abrirem mão de suas posições
privilegiadas.
Esta situação se assemelha em parte à descrita por Zarur (1984) entre pescadores da Flórida que
mantém um sistema de propriedade dos pontos mais piscosos no mar, que pertencem às famílias tradicionais
locais e são transmitidos por herança (ou, às vezes, mudam de dono depois de serem abandonados). Segundo o
autor, este sistema de propriedades busca limitar o acesso aos pontos pesqueiros em função das circunstâncias
impostas pelo mercado e pela crescente escassez de pescado.
Ainda não possuo dados suficientes para indicar todas as implicações e lógicas pertinentes ao sistema
de propriedade dos lanços na Praia da Concha. No entanto, a fala destes dois pescadores acima e as observações
que fiz sugerem uma situação um pouco diferenciada da descrita por Zarur já que, apesar de se tratar também
da limitação do acesso a certos pontos piscosos, na Praia da Concha esta restrição carece de legitimidade, e é
motivo de controvérsias, questão que ainda não pude desenvolver satisfatoriamente.
Notas finais
Além de oferecer um campo bastante rico para posteriores investigações sobre os conhecimentos e
formas de sociabilidade possíveis entre pescadores, a relevância deste estudo se liga ao fato de se debruçar
sobre um dos grupos sobre os quais há ainda pouca atenção antropológica, qual seja, os de pescadores artesanais
do litoral do estado do Espírito Santo.
4
Este sistema de marcação foi identificado em diversos outros grupos pesqueiros, entre estes os estudados por
Maldonado (1993), Forman (1970) e Kant de Lima & Pereira (1997).
5
Dirceu é um pseudônimo que criei para preservar o pescador que me deu tal informação, uma vez que esta questão é
demasiado polêmica e poderia intensificar conflitos internos.
6
Idem 5.
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Filgueiras, M. P. Tempo e Espaço entre Pescadores da Praia do Concha
A identificação dos elementos que constituem o que Maldonado (1993) chamou de maritimidade
permite-nos articular de maneira rica o específico, peculiar às relações e construtos estruturados localmente e,
ao mesmo tempo, identificar os universais das culturas marítimas, ou seja, o conjunto de práticas concretas e
simbólicas que permeiam as atividades dos pescadores em qualquer lugar do mundo e em qualquer escala de
produção, seja artesanal ou industrial.
Aqui busquei analisar como noções universais como tempo e espaço tomam forma entre pescadores
da Praia da Concha e como alguns eventos como a poluição do rio e o fim do controle do capataz sobre as
atividades de pesca locais modificaram as relações com os espaços e produziram um sentido de temporalidade
histórica, recorrentemente traduzido, entre estes pescadores, na oposição passado/fartura e presente/escassez.
Mapa rodoviário onde se pode visualizar o bairro Barra do Jucu e a distância relativa do centro da
cidade de Vila Velha.
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CIÊNCIA POLÍTICA
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Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 30-38, 2007.
ZIEGMANN, A. B. A Produção Legal na 14º Legislatura...
processos de tomada de decisões que envolvam as relações Executivo-Legislativo e/ou a ação de determinados
grupos sociais sobre o processo legislativo.
A Produção Legal na 14ª Legislatura da Assembléia Legislativa do Paraná
(1999-2003)
André Barsch Ziegmann*
Resumo: O objetivo deste artigo é caracterizar o perfil das decisões legislativas das diversas bancadas
partidárias durante a 14ª Legislatura da ALEP/Assembléia Estadual do Paraná (1998-2002). Para tanto,
aplicamos uma versão adaptada da tipologia e do modelo explicativo desenvolvidos por Amorim Neto &
Fabiano Santos (2002; 2003) às proposições legislativas (1474 leis e aos 2580 projetos de lei) propostas e
aprovadas durante esta legislatura da ALEP. Procuraremos demonstrar a tese básica de que os padrões de
interação entre o Executivo e o Legislativo e de comportamento dos parlamentares é significativamente
diverso do observado pela literatura em nível nacional. Apresentar evidências que corroborem tais
afirmações e que expliquem o padrão de comportamento parlamentar observado é o objetivo deste
artigo.
Abstract: The objective of this article is characterizing the profile this legislatives decisions this different
party during the 14ª Legislature of ALEP/Assembléia Legislativa do Paraná (1998-2002). They apply
an adapted version of typology and explicative model developed by Amorim Neto & Fabiano Santos
(2002;2003) of legislative propositions (1474 laws and 2580 propositions of laws) and approved laws
during this legislature from ALEP. They objective are demonstrating the basic thesis from the model
interactive of Executive and Legislative and parliamentarian behavior is significantly diverse from
observable in national researches. Introduce evidences of corroborate this affirmatives and explain the
model parliamentarian behavior observed is the objective this article.
Introdução
Com a redemocratização em 1985-1988 e o funcionamento da Assembléia Constituinte, o Congresso
Nacional e os órgãos legislativos passaram a receber maior atenção da parte dos cientistas sociais, da mídia e
da população de um modo geral, fato que provocou o aparecimento de uma série de estudos buscando analisar
de maneira mais sistemática o que ocorria no seio desta “terra incógnita”, como eram designados os órgãos
legislativos federais quando do surgimento das primeiras pesquisas sobre o assunto (Figueiredo & Limongi,
1999). A esses estudos iniciais sobre o Congresso Nacional, seguiram-se uma série de trabalhos sobre os
órgãos legislativos nas unidades subnacionais, tanto sobre as Assembléias Legislativas estaduais, quanto sobre
as Câmaras de Vereadores, em nível municipal. 1
Em geral, os estudos produzidos sobre estes órgãos legislativos enfatizam as características do processo
decisório e, mais especificamente, observam como se dá a relação entre o poder Executivo, o Legislativo e os
partidos nos corpos parlamentares das diferentes unidades de governo nacionais. Os enfoques abrangem desde
estudos que buscam empreender uma análise agregada das proposições legislativas ou do comportamento
político dos parlamentares, até trabalhos de natureza mais qualitativa, que buscam realizar estudos de caso de
* É cientista social e pesquisador do Núcleo de Pesquisa Democracia e Instituições Políticas. O presente artigo é uma
versão adaptada da monografia de conclusão de curso que defendi em julho deste ano.
1
Exemplos destes estudos são as coletâneas organizadas por Andrade (1998), e Santos (2001). Entretanto, ao contrário
do que se poderia esperar, a estes trabalhos não se seguiram outros, com o mesmo nível de sistematicidade e abrangência, sobre os
egislativos nas unidades subnacionais.
40
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Pelo menos desde os primeiros estudos sobre as relações Executivo/Legislativo no Brasil (Brigagão,
1973; Santos, 2003) 2, a análise agregada da “produção legal” (leis, projetos de leis e demais proposições
legislativas) dos órgãos parlamentares tem sido utilizada como um importante indicador para caracterizar as
relações entre os poderes e o processo de governo, especialmente durante a primeira experiência de democracia
presidencialista pluripartidária brasileira, no período anterior a 1964. No tocante ao período posterior a 1988, a
partir da publicação dos consagrados trabalhos de Limongi e Figueiredo (1994; 1999) iniciaram-se os estudos
mais aprofundados sobre as relações Executivo/Legislativo na nova experiência democrática brasileira, sendo
a partir de então a análise das proposições legislativas utilizada de maneira sistemática como um importante
indicador, ao lado de outros, das características do comportamento parlamentar e do processo decisório
governamental, tanto em nível nacional como subnacional. Na esteira da publicação dos trabalhos pioneiros
de Limongi e Figueiredo surgiram uma série de estudos sobre as relações Executivo/Legislativo nas unidades
subnacionais, empregando recursos analíticos e metodológicos homólogos aos utilizados por esses autores
em seu enfoque sobre o processo legislativo em nível nacional (Andrade, 1998; Abrúcio, 1998; Santos, 2001,
dentre outros).
Resumidamente, podemos dizer que duas teses gerais emanam dessa literatura sobre as relações
Executivo/Legislativo no Brasil, especialmente em relação ao período pós-1988: (i) De um lado, estão
aqueles autores que postulam uma dominância do Executivo sobre o Legislativo no processo decisório e um
acentuado desequilíbrio entre ambos no sistema político brasileiro, seja através da concentração de poderes de
agenda no chefe do Executivo eleito, que dessa forma concentraria prerrogativas que forçariam o Legislativo
e os parlamentares a cooperar e a se submeter a sua agenda (Santos, 1997; Limongi, 1999), seja através da
concentração de recursos políticos que viabilizariam o controle do “distrito eleitoral potencial” do parlamentar,
que ficaria assim numa situação de subordinação e dependência em relação ao chefe do Executivo, situação
esta responsável em última instância pela vigência de um “ultrapresidencialismo estadual” na maioria dos
estados (Abrúcio, 1998); (ii) Por outro lado, estão aqueles autores que constatam a existência de uma relação
mais equilibrada entre os poderes, não só em nível estadual (Santos, 2001), como também nas Câmaras de
Vereadores de alguns municípios brasileiros (Andrade, 1998). Na visão desses autores, o “presidencialismo
imperial”, com dominância do Executivo, seria um fenômeno histórico e localizado no tempo, recuperando o
Legislativo seu papel no processo decisório governamental, quando algumas circunstâncias o permitissem3.
Importa frisar aqui que, para fundamentar tais teses, os autores procedem a uma análise sistemática do processo
decisório vigente em cada uma dessas unidades de governo.
Sendo assim, seu objetivo básico é examinar o padrão de produção legal dos deputados durante o
segundo mandato de Jaime Lerner (1999-2002). Para efetuar tal trabalho, utilizaremos alguns dos indicadores
geralmente empregados pela literatura para caracterizar tais relações, especialmente a análise das leis
promulgadas e dos projetos de lei apresentados e aprovados no período. Seguimos, assim, a recomendação
metodológica efetuada por alguns analistas (Figueiredo, 2001: p. 10) acerca de necessidade de se diferenciar
estas duas dimensões da atividade legiferante dos deputados e dos órgãos parlamentares, a fim de evitar
confusões analíticas e diagnósticos precipitados sobre as relações entre os poderes, especialmente nas esferas
subnacionais.
Embora o exame sistemático e agregado de tais proposições esteja longe de esgotar o problema das
relações entre os poderes e do comportamento parlamentar nos diferentes sistemas políticos, ele pode e deve
A edição original do texto clássico de Wanderley Guilherme dos Santos é de 1986, e a base de dados utilizada pelo
autor é a mesma elaborada por Brigagão em sua tese de mestrado. A partir da análise agregada da produção legal no período, ao
lado de outros indicadores sobre polarização ideológica, fragmentação político-partidária e instabilidade das elites, Santos elabora
o conceito de “paralisia decisória” para caracterizar uma situação de ruptura institucional que pode eventualmente dar lugar a
uma interrupção no funcionamento dos regimes políticos democráticos e sua substituição por regimes autoritários a partir da
intervenção violenta e saneadora de um “ator externo”.
3
Estas circunstâncias são de várias naturezas: reformas regimentais que estimulam a participação popular e reorganizam
internamente a distribuição entre as prerrogativas dos centros decisórios do órgão legislativo, no caso da ALEMG (Anastasia,
2001); um maior grau de competição eleitoral e maior sensibilidade dos parlamentares a demandas sociais, no caso da ALERJ
(Santos, 2001); a adoção de uma estratégia de “negociação pontual” por parte de um chefe de Executivo minoritário eleito por um
partido de centro-esquerda, no caso da Câmara Municipal de São Paulo durante a gestão da prefeita Erundina (Andrade, 1998).
O que importa observar aqui é que os autores utilizam esses casos para contestar as teses dominantes na literatura acerca da
existência de uma tendência inexorável ao predomínio do Executivo no sistema político brasileiro, ou a um papel irrelevante ou
secundário desempenhado pelos órgãos Legislativos.
2
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41
ZIEGMANN, A. B. A Produção Legal na 14º Legislatura...
ZIEGMANN, A. B. A Produção Legal na 14º Legislatura...
constituir-se num ponto de partida (ou numa “primeira aproximação) para o estudo de tais fenômenos, pois
nos permite, dentre outras coisas, uma primeira visão inicial e abrangente das mesmas, além da construção de
parâmetros e indicadores objetivos e empiricamente fundamentados para análises de cunho comparativo.
Tendo em vista estes esclarecimentos preliminares e objetivos de ordem mais geral, nosso artigo tem
um objetivo mais específico. Analisar algumas das principais características das relações entre o Executivo e
o Legislativo e da produção legal dos parlamentares no período, nos baseando especificamente e procurando
dialogar com os autores que produziram estudos nesse sentido, especialmente no Legislativo Nacional. Para
realizar tal intento, nos basearemos aqui fundamentalmente nas variáveis e na tipologia empregadas nos textos
de Amorim Neto & Santos (2002; 2003) em seus textos sobre o Congresso Nacional, a fim de verificar se
os padrões detectados por estes analistas se reproduzem  sim ou não  no estado do Paraná e em que
medida.
1. Parâmetros das relações entre os poderes no estado do Paraná (1999-2002)
Inicialmente, cabe elencar alguns parâmetros gerais que regulam as relações entre o Executivo
e o Legislativo e a interação entre os atores na Assembléia Legislativa do Paraná, ou seja, elementos que
enquadram a ação legislativa dos parlamentares e sua relação com o chefe do Executivo eleito. Ao contrário da
literatura de matiz institucionalista, no entanto, não consideramos que os fatores de ordem institucional sejam
os únicos ou mesmo os principais condicionantes da ação dos parlamentares e das relações entre os poderes,
embora, como esperado, estes elementos “micro” e “macro” institucionais, “exógenos” e “endógenos” à arena
legislativa influenciem significativamente as motivações e a interação estratégica entre tais atores.
Sendo assim, por “parâmetros da atividade legislativa” e da relação entre os poderes compreendemos
tanto as variáveis “macro” (sistema eleitoral, sistema partidário etc.) e “micro-institucionais” (regras
constitucionais e regimentais), que regulam e limitam a ação estratégica dos atores envolvidos no processo
legislativo no período, quanto variáveis de natureza não estritamente institucional (tais como o perfil
sociopolítico dos atores, as ideologias e os interesses que vocalizam e dos quais se fazem representantes, o
formato das coligações eleitorais e das coalizões parlamentares, dentre outros fatores), que também influenciam
e interferem na atividade social, especialmente política, de tais agentes.
Enumeraremos abaixo uma série de indicadores, boa parte deles extraído da literatura especializada,
mas também por nós elaborados a partir de nossas bases de dados, que servem para definir alguns parâmetros
de de ordem geral da atividade parlamentar e das relações entre os poderes no Paraná, durante o período em
tela. Na coluna da esquerda, estão elencadas as variáveis que consideramos relevantes para a compreensão de
alguns dos parâmetros que organizam a atividade legislativa da ALEP na 14ª Legislatura, inclusive em termos
comparativos; na coluna central, estão consignados os números ou percentuais relativos a cada uma destas
variáveis; por fim, na coluna à direta, acrescentaremos, quando for o caso, observações contrastando o padrão
verificado na ALEP com o observado pela literatura em outros órgãos parlamentares.
1
42
16
ICO/% cadeiras da coligação eleitoral do governador
63,00%
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
% Cadeiras da base governista
IO/Ìndice de Oposição
Índice de migração partidária
% parlamentares de partidos de centro
% parlamentares de partidos de centro-esquerda
% parlamentares de partidos de centro-direita
% parlamentares do interior
% parlamentares com curso superior
% parlamentares empresários
Índice de localismo (deputados nascidos no PR)
% parlamentares no primeiro mandato legislativo
Índice de mobilidade partidária (% parlamentares filiados
anteriormente a mais de um partido)
% parlamentares reeleitos 1998
% parlamentares reeleitos 2002
74,20%
25,90%
43,50%
17,70%
25,80%
59,50%
69,40%
66,13%
38,70%
58,10%
11,30%
Coligação eleitoral
majoritária
Grande coalizão
Baixo
Alto
Baixo
Baixo
Alto
Alto
Alto
Alto
Médio Alto
Sem dados comparativos
67,70%
Alto
61,30%
53,20%
Médio alto
Médio alto
28
29
30
Fonte: Base de dados Núcleo de Pesquisa Democracia e Instituições Políticas (NDI)
Como dissemos, a tabela acima foi elaborada utilizando alguns dos principais indicadores empregados
pela literatura para caracterizar o perfil das bancadas partidárias nos parlamentos estaduais e nacionais, bem
como as relações entre governo e parlamento nos vários sistemas políticos. A partir dela, podemos constatar
o caráter fortemente conservador, fragmentado e “clientelista” da ALEP, resultante de um sistema partidário
fracamente institucionalizado, de base interiorana e geralmente controlado por partidos de centro-direita
(Abrúcio, 1998). O governador Lerner foi eleito no primeiro turno das eleições apoiado por uma ampla
coalizão de 14 partidos, sendo que entre cinco e sete destes estavam representados na ALEP, assegurando uma
coalizão majoritária de apoio que funcionou por quase toda legislatura, apesar da crise da bancada governista
e da mudança da correlação de forças na base parlamentar do governo ocorrida após a votação do projeto
de iniciativa popular contra a privatização da COPEL, no segundo semestre de 2001. Ou seja: o caráter
excessivamente fragmentado do sistema partidário paranaense não foi óbice para que o governo Lerner, ao
longo de todo o seu mandado, formasse uma coalizão majoritária de governo, cujo núcleo era o próprio
PFL, a agremiação do governador, que funcionou como “partido para o governo” durante todo o período,
apresentando fraco grau de institucionalização política (Cervi & Codato, 2002). Os dados sobre a evolução do
sistema partidário ao longo da 14ª legislatura são os seguintes:
Tabela 1.1 - % de cadeiras por partido e blocos ideológicos, Assembléia Legislativa do Paraná (1998-20
Bloco
ideológico
Centro
-direita
Quadro 1: Características gerais da ALEP e das relações entre os poderes
no Paraná, 14ª Legislatura (1999-2002)
N/%
I) Variáveis
Partido do governador eleito
PFL
Observações:
Direita
PPB/PTB/PSL/PST/PTN/PSC/PL/PPS/
PFL/PRN/PSB/PSD/PRP/PTdoB
Centro-direita
Centro
Alto
Centroesquerda
2
Coligação eleitoral do governador (1º turno)
3
4
Coligação do governador no 2º turno
N Partidos da coligação eleitoral
Não houve 2º turno
14
5
N Partidos da coligação eleitoral com assentos na AL
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
N parlamentares da Assembléia
N parlamentares empossados durante a legislatura
N partidos início da legislatura
N partidos final da legislatura
Índice de fragmentação parlamentar
N partidos efetivos início da legislatura
N partidos efetivos final da legislatura
Grau de competitividade eleitoral
IC/Percentual de cadeiras do maior partido
54
62
9
11
0,849
6,78
8,58
7,8
22,22%
Alto
Pluralismo fragmentado
Pluralismo fragmentado
Baixa
Alto fracionamento
15
ICA/Percentual de cadeiras dos dois maiores partidos
42,60%
Alto fracionamento
Médio Alto
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 40-52, 2007.
Partidos
1998*
N
%
1999
N
%
2000
2001
2002*
N
%
N
%
N
%
PFL
12
9
9
16,67
9
16,67
8
14,80
9,00
PPB
PTB
PSC
PL
PSL
PST
PSDB
PPS
PSB
PDT
PMDB
PT
8
11
1
0
0
0
6
0
2
3
7
4
7
11
1
2
1
0
7
0
2
3
7
4
4 7,41
11 20,37
1 1,85
2 3,70
4 7,41
1 1,85
6 11,11
0 0,00
3 5,56
2 3,70
7 12,96
4 7,41
6
6
0
2
3
0
8
2
0
6
8
4
11,11
11,11
0,00
3,70
5,56
0,00
14,81
3,70
0,00
11,11
14,81
7,41
6
5
1
3
3
0
8
2
0
6
8
4
11,11
9,26
1,85
5,56
5,56
0,00
14,81
3,70
0,00
11,11
14,81
7,41
5,75
8,25
0,75
2,00
2,75
0,25
7,25
1,00
1,25
4,25
7,50
4,00
1,85
0,00
0,00
0,00
0,00
3,70
5,56
7,41
1,85
3,70
1,85
0,00
0,00
3,70
5,56
7,41
54 100 54 100 54
54
TOTAL
Índice de
nº partidos
efetivos
* Resultado das eleições de 4 de outubro de 1998.
54
54
0,87
8,20
** Situação no final da legislatura, em dezembro de 2002
Fonte: Tabela adaptada e atualizada a partir de Cervi & Codato (2002).
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 40-52, 2007.
43
ZIEGMANN, A. B. A Produção Legal na 14º Legislatura...
Um dos fatores que certamente contribuiu para a relativa estabilidade nas relações Executivo/Legislativo
no período, foi a origem social e a inclinação político-ideológica dos parlamentares na ALEP: a maior parte
deles filiados a partidos de centro-direita (59,3%), oriundos do interior do estado e com ampla experiência
política ou administrativa: apenas 8,1% dos parlamentares empossados (5/62), nunca haviam exercido cargo
administrativo ou parlamentar (vereador e deputado) anteriormente. Podemos afirmar portanto que, seja em
virtude da coalizão eleitoral inicial, seja devido a seu potencial de atrair parlamentares para sua base de apoio,
o chefe do Executivo eleito logrou obter amplos poderes partidários ao longo da legislatura, enfrentando
com menor intensidade o problema clássico dos sistemas políticos de presidencialismo pluripartidarismo
fragmentado como o brasileiro, que é o da disparidade radical de agendas, quanto a seu conteúdo ideológicoprogramático substantivo, entre o chefe do Executivo eleito e o sistema partidário que lhe deve potencialmente
servir de base de apoio (Mainwaring, 1993).
ZIEGMANN, A. B. A Produção Legal na 14º Legislatura...
poderes é o da origem das leis promulgadas num determinado período legislativo. Embora esses indicadores
nem sempre sejam utilizados de maneira precisa e/ou apresentados juntamente com evidências robustas do
ponto de vista comparativo, os analistas em geral detectam dois padrões vigentes de relações entre os poderes
a partir do exame da origem da produção legal: de um lado, temos uma “agenda compartilhada” entre os
poderes, como por exemplo a que vigorou no período 1946-1964 e, por outro, uma “agenda imposta” tal como
a do período pós-1988, com amplo predomínio do Executivo na produção legal (Figueiredo e Limongi, 1999;
Santos, 2003).
Os dados que obtivemos para a 14ª Legislatura sobre a origem das leis são os seguem abaixo:
Tabela 2.1) Leis por autoria e grau de relevância (1999-
2. A produção legal dos deputados na 14ª Legislatura da ALEP
Executivo
Legislativo/
Partidos
Legislativo/
Comissões
Legislativo/CPIs
Judiciário
Total
2.1. Características gerais das relações entre os poderes e da produção legal na 14ª legislatura da
Assembléia Legislativa do Paraná (ALEP).
Podemos agora partir para a caracterização geral da produção legal na 14ª Legislatura da ALEP.
Para classificar as proposições apresentadas e aprovadas na 14ª legislatura da ALPR, adotaremos a
tipologia empregada por Amorin Neto & Santos em seus artigos (2002; 2003). Embora na construção original
de nosso banco de dados utilizássemos categorias diferentes das empregadas pelos autores, optamos por
adaptar nossa tipologia à contida nesses textos, a qual por sua vez inspira-se parcialmente na análise de TaylorRobinson & Diaz sobre o processo legislativo em Honduras (Taylor-Robinson & Diaz, 1999).
Esse procedimento visa a estabelecer certa padronização na análise dos dados a fim de tornar mais
preciso o cotejo entre a realidade observada em uma esfera subnacional e os dados do Legislativo federal.
Outrossim, a ausência de padronização metodológica na tipologia das proposições, é um dos fatores que
limitam o alcance dos estudos comparativos sobre o assunto. Devido a esse fato, resolvemos nos basear
integralmente na tipologia aplicada pelos autores, a fim de tornar possível a comparação do padrão verificado
no legislativo estadual paranaense, com o verificado em nível nacional, já que desconhecemos estudos que
busquem aplicar tal tipologia em nível subnacional.
Antes de avançarmos na análise dos dados, convém mencionar um problema prévio de natureza
metodológica. Dada a grande quantidade e o predomínio generalizado de leis e proposições do tipo
“homenagens e utilidade pública”4 nos legislativos subnacionais, alguns autores introduzem o conceito de
“legislação relevante” (Anastasia, 2001: 65) ou “legislação complexa” (Domingues, 2001: 100) a fim de
evitar uma espécie de ilusão de ótica ocasionada por uma análise excessivamente agregada e quantitativa
das proposições, que consiste em caracterizar como “dominante” no processo decisório governamental um
parlamento que detém um mero predomínio quantitativo no processo legiferante, predomínio este oriundo
basicamente do inflacionamento de proposições do tipo “homenagens e utilidade pública” permitidos e, de certa
maneira, estimulados per contextos institucionais tais como os vigentes nas unidades subnacionais brasileiras.
Para evitar esse problema tais autores introduzem estas noções com o fito de possibilitar uma comparação
mais precisa das relações entre os poderes a partir da análise agregada das proposições legislativas, motivo
pelo qual também criamos uma categoria em nossas tabelas incorporando essa variável5.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 40-52, 2007.
0,1
1
0,1
1
0,1
1102 100,0
2
3
21
372
0,5
3
0,2
0,8
4
0,3
5,6
22
1,5
100,0 1474 100,0
Temos, assim, um predomínio quantitativo do Legislativo sobre o Executivo na produção de leis,
com a maioria delas sendo originárias de projetos apresentados pelos partidos. O Legislativo predomina na
produção legal como um todo, sendo responsável por 88,7% das 1474 leis promulgadas, fato que ocorre
tanto na produção de leis de menor complexidade (98,9%) quanto na produção de leis de maior relevância
e potencial alocativo, embora nessa categoria de leis o predomínio seja menos acentuado (58,6%). Outra
informação importante da tabela acima - e se aproximando mais de nosso objeto de estudo que é o padrão de
produção legal dos parlamentares - é o elevado número de leis originárias de projetos dos deputados, num total
de 1308 sobre 1474 (88,7%).
Vejamos entretanto como podemos caracterizar as relações entre os poderes Executivo e Legislativo
empregando outros indicadores mais precisos do que os utilizados acima.
TABELA 2.2) ORIGEM DAS LEIS (1999-2003):
POR AUTOR (AGREGADO)
Total
N % N % N % N %
GRAU DE COMPLEXIDADE
9 6,6
83,0 1 4,5
74,8
Simples
128 93,4 223 17,0 21 95,5 372 25,2
Complexa
137
22
Total
ASSUNTO
52 38,0 44 3,3 20 90,9 116 7,9
Administrativo
53 38,7 62 4,7 0 0,0 115 7,8
Econômico
Honorífico/
0 0,0 962 73,2 0 0,0 962 65,3
Utilidade Pública
8 5,8 0 0,0 0 0,0 8 ,5
Orçamentário
0 0,0 4 0,3 0 0,0 4 ,3
Político
13 9,5 206 15,7 1 4,5 220 14,9
Social
Cultural3 2,2 11 0,8 0 0,0 14 ,9
científicotecnológico
2 1,5 7 0,5 0 0,0 9 ,6
Ecológico
6 4,4 19 1,4 1 4,5 26 1,8
Outras/SI
137
22
Total
NÍVEL DE AGREGAÇÃO
8 5,8 872 66,3 1 4,5 881 59,8
Individual
9 6,6 131 10,0 0 0,0 140 9,5
Local
Como é sabido, um dos indicadores utilizados pela literatura para caracterizar as relações entre os
44
1
Total
N
%
137
9,3
1308 88,7
Fonte: Base de Dados do Núcleo de Pesquisa Democracia e Instituições Políticas (NPDI/UFPR)
2.1.1. Origem das leis
4
A maioria dos autores que trabalham com análise agregada de proposições legislativas inclui as proposições do tipo
“homenagens e utilidade pública” como leis do tipo clientelista, individual ou “Transferência Concentrada de Recursos” (Santos,
1995; Lima Júnior & Camargo, 1999), enquanto outros classificam esse tipo de peça legislativa como proposições de natureza
“social” e de maior abrangência (Santos, 2001: 178). Nesse texto, optamos pela primeira classificação, pois as proposições desse
gênero, no caso da ALPR, visam claramente a promover a transferência de recursos, materiais ou simbólicos, para entidades
sociais específicas, não almejando influir sobre a elaboração ou sugestão de políticas governamentais de maior abrangência ou
mesmo estimular movimentos “associativos e reivindicatórios”.
2002)
Simples
Complexa
N
%
N
%
9
0,8
128 34,4
1090 98,9 218 58,6
A “legislação relevante” ou complexa é um conceito meramente “negativo” e é empregado aqui num sentido
descritivo significando todas aquelas normas propostas e aprovadas pelos parlamentares, menos aquelas proposições de natureza
clientelística e/ou de baixo impacto alocativo tais como declarações de utilidade pública, homenagens, leis autorizatórias, e leis
que tratam de pequenos detalhes da rotina administrativa do poder Executivo e do parlamento.
5
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 40-52, 2007.
45
ZIEGMANN, A. B. A Produção Legal na 14º Legislatura...
Regional
Setorial
Estadual
Total
Benéfico
Onerante
Misto
Neutro
Total
7 5,1 54 4,1 0
68 49,6 187 14,2 19
45 32,8 71 5,4 2
137
22
EFEITOS
49 35,8
81,4 6
50 36,5 84 6,4 4
21 15,3 21 1,6 1
17 12,4 140 10,6 11
137
22
0,0 61 4,1
86,4 274 18,6
9,1 118 8,0
27,3
76,3
18,2 138 9,4
4,5 43 2,9
50,0 168 11,4
Fonte: NPDI/UFPR
De acordo com os dados da tabela acima, temos que as leis aprovadas pelo Executivo são de natureza
predominantemente complexa (93,4%), tratam de assuntos administrativos (38,0%), econômicos (38,7%) e
orçamentários (5,8%), têm nível de agregação predominantemente setorial (49,6%) e estadual (32,8%), e
possuem uma distribuição mais equilibrada quando a seus efeitos, destacando-se o elevado percentual de
leis benéficas (35,8%) e onerantes (36,5%). Já as leis ordinárias aprovadas com origem em proposições do
Legislativo apresentam características simetricamente opostas: a maior parte delas consiste de leis de menor
relevância e impacto alocativo (83,0%), tratam de assuntos honoríficos/utilidade pública (73,2%) e social
(15,7%), têm nível de agregação individual ou local (76,3%) e produzem efeitos predominantemente benéficos
(81,4%).
Temos, assim, um padrão de produção legal na 14ª legislatura da ALPR bastante diverso do verificado
em nível nacional por Figueiredo & Limongi (1999) e Amorin Neto & Santos (2002; 2003). Com efeito, os dados
acima evidenciam uma clara “divisão do trabalho” entre os dois poderes, com o Executivo se encarregando
aprovar uma agenda de normas gerais enquanto os deputados são responsáveis predominantemente por leis que
transferem recursos de maneira concentrada para suas bases eleitorais, ou seja, por leis de natureza honorífica/
utilidade pública, de níveis de agregação individual e de efeitos benéficos. Deve ser observado também que
tais relações entre os poderes segue a norma vigente em outras unidades da federação, conforme demonstram
estudos comparativos mais recentes (Tomio, 2005).
Entretanto, podemos afirmar que esses dados evidenciam que a “divisão do trabalho” ocorrida na ALPR
é um pouco mais complexa do que a suposta pela literatura. Por um lado há, de fato, maior propensão dos
parlamentares a aprovar leis de natureza local e individual, que potencialmente transferem recursos de forma
concentrada para as respectivas bases eleitorais. Entretanto, como indicado pelo percentual de “legislação
relevante” de autoria dos deputados, também é significativo o papel dos parlamentares na produção de legislação
relevante em nível estadual, não apenas de legislação pork barrel, dado que um percentual significativo de
legislação de maior abrangência e relevância é de autoria dos parlamentares.
A nosso ver, esse dado coloca problemas tanto para uma visão inspirada estritamente no
“ultrapresidencialismo estadual”, quanto para uma visão “hiperinstitucionalista” do processo decisório, que
afirma que o padrão verificado nas unidades subnacionais de governo é efeito exclusivamente de regras
institucionais, restando pouco espaço para as interações estratégicas ente os atores visando o aumento das
respectivas participações no processo decisório.
2.1.2. Os projetos de lei propostos e aprovados
Podemos agora passar para a análise dos projetos de lei a fim de caracterizar “o que propõem” os
diferentes atores. Podemos deduzir de algumas formulações existentes na literatura que, dados os interesses
particularistas dos deputados, haverá a tendência de a proporção de PLs apresentados pelos parlamentares
que impliquem transferências de recursos para bases eleitorais seja superior do que o percentual de PLs
aprovados ou de leis promulgadas. Isso deve-se basicamente à lógica particularista e de troca de favores que
predomina no parlamento (logrolling), o que faz com que o interesse dos parlamentares em aprovar leis que
impliquem a transferência de recursos para o reduto eleitoral se sobreponha a um eventual interesse manifesto
na sugestão de proposições em legislar sobre normas gerais, desejo este que seria de certa forma “recalcado”
pelos mecanismo de negociação e barganha existente no interior do parlamento, onde vigora uma lógica oculta
de cunho predominantemente “distributivo”.
Assim, os dados da tabela abaixo são compatíveis com ambos os modelos analíticos, embora em sistemas
presidencialistas com maior fragmentação partidária e sustentados em bases partidárias fracas ou por “coalizões
fisiológicas de governo” (Andrade, 1999), a taxa de aprovação da agenda do Executivo tenda a ser menor do que a
46
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 40-52, 2007.
ZIEGMANN, A. B. A Produção Legal na 14º Legislatura...
observada em caso de montagem de uma sólida base parlamentar, organizada em bases programáticas.
TABELA 2.3: AUTORIA DOS PLS X RESULTADO FINAL
(DESAGREGADO)
N
Aprovado 137
Rejeitado
0
Arquivado 18
0
Retirado
0
pelo autor
Vetado
1
Sem
5
informação
Total
161
Total
N %
57,0
27 1,0
0,0 705 27,3
0,0 5 0,2
% N %
85,1
54,9
0,0 26 1,1
11,2 682 28,6
0,0 5 0,2
N
2
0
1
0
%
50,0
0,0
25,0
0,0
N
4
0
1
0
% N %
80,0 21 75,0
0,0 0 0,0
20,0 3 10,7
0,0 0 0,0
N
0
1
0
0
%
0,0
0,0
0,2
0
0,0
0
0,0
0
0,0
0
0,0
0,6 202 8,5
0
0,0
0
0,0
2
7,1
0
0,0 205 7,9
3,1 155 6,5
1
25,0
0
0,0
2
7,1
0
0,0 163 6,3
4
4
5
28
4
0,2
1
Fonte: NDIP
Também no Paraná o Executivo apresenta uma taxa bem superior de aprovação de projetos do que o
Legislativo, uma característica que parece ser comum aos vários “subsistemas políticos” brasileiros, embora
se verifique certa margem de variação entre as diversas unidades da federação. 6
Entretanto, um dado mais relevante para a verificação das relações entre o Executivo e o Legislativo no
Paraná é a agenda proposta por cada um dos poderes, que pode ser verificada através da tabela abaixo:
TABELA 2.4) PLs APRESENTADOS, POR ORIGEM
(1999-2002)
Total
N % N % N % N %
GRAU DE COMPLEXIDADE
10 6,2
63,4 1 3,6
59,2
Simples
151 93,8 875 36,6 27 96,4
40,8
Complexa
161
28
Total
ASSUNTO
62 38,5 219 9,2 26 92,9 307 11,9
Administrativo
60 37,3 256 10,7 0 0,0 316 12,2
Econômico
Honorífico/Utilidade
0 0,0
49,4 0 0,0
45,8
Pública
8 5,0 3 0,1 0 0,0 11 0,4
Orçamentário
0 ,0 15 ,6 0 0,0 15 0,6
Político
16 9,9 605 25,3 1 3,6 622 24,1
Social
Cultural-científico4 2,5 21 0,9 0 0,0 25 1,0
tecnológico
3 1,9 31 1,3 0 0,0 34 1,3
Ecológico
8 5,0 59 2,5 1 3,6 68 2,6
Outras/SI
161
28
Total
NÍVEL DE AGREGAÇÃO
12 7,5
45,2 1 3,6
42,4
Individual
9 5,6 260 10,9 0 0,0 269 10,4
Local
8 5,0 106 4,4 0 0,0 114 4,4
Regional
80 49,7 647 27,1 23 82,1 750 29,1
Setorial
52 32,3 297 12,4 4 14,3 353 13,7
Estadual
161
28
Total
EFEITOS
56 34,8
67,0 6 21,4
64,5
Benéfico
64 39,8 383 16,0 6 21,4 453 17,6
Onerante
21 13,0 95 4,0 2 7,1 118 4,6
Misto
20 12,4 310 13,0 14 50,0 344 13,3
Neutro
161
28
Total
Fonte: NDP
6
As taxas apresentadas na coletânea organizada por Fabiano Santos são as seguintes, para a 13ª Legislatura: ALEMG,
86% dos PLs do Executivo aprovados; ALES, 87%; ALERGS, 92%. São Paulo, por sua vez, o estado que serviu de base para
a cunhagem do conceito de “ultrapresidencialismo estadual”, teve uma taxa bastante inferior, de 74%. Já na ALESC as taxas
foram bastante elevadas, superando os 90% nas quatro legislaturas examinadas por Fabrício Tomio. Para projetos propostos
pelo Legislativo as taxas de aprovação são: 66%, na ALEMG; 47%, na ALES; 54% na ALRGS; 25%, na ALESP; e 67% na
ALESC (Tomio, 2005: 26). Talvez a taxa bastante reduzida da Assembléia Legislativa de São Paulo em comparação com a
média nacional, tenha influenciado Fernando Abrúcio no enunciado tão categórico de sua tese sobre o predomínio inexorável do
“ultrapresidencialismo” nos estados.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 40-52, 2007.
47
ZIEGMANN, A. B. A Produção Legal na 14º Legislatura...
ZIEGMANN, A. B. A Produção Legal na 14º Legislatura...
O contraste dos dados contidos na tabela acima com as informações sumarizadas na tabela 2, nos
permite chegar a algumas conclusões interessantes. Verificamos assim que, embora os padrões de legislação
proposta e aprovada pelo Executivo sejam bastante semelhantes, no caso das proposições dos parlamentares
elas diferem significativamente. Assim, enquanto aproximadamente 36,6% dos projetos de lei propostos pelo
Legislativo tratam de temas de maior relevância, no caso dos projetos aprovados o percentual se reduz para
apenas 17,0%.
A primeira vista, há a seguinte lógica nas relações entre os poderes no estado do Paraná: os parlamentares
propõe projetos de lei de maior nível de abrangência, de maior grau de complexidade e mais orientados
para políticas públicas de cunho social, entretanto não conseguem aprovar essa agenda “balance adora” das
preferências do Executivo devido à lógica predominantemente particularista vigente no parlamento, na qual
os parlamentares de todos os partidos estão, indistintamente, interessados na aprovação de uma legislação de
cunho particularista para favorecer seus redutos eleitorais.
Ou seja, os partidos políticos seriam “fracos” na arena parlamentar, não possibilitando ao eleitor uma
clara opção de políticas públicas no momento das eleições, na medida em que todas as agremiações estariam,
indistintamente, interessadas na transferência de recursos para suas bases eleitorais. Vigoraria assim um padrão
de comportamento parlamentar compatível com uma lógica cliente lista e “distributivista”.
Entretanto, apenas um estudo mais acurado da produção legal a da atuação dos parlamentares nos
permitiria fazer inferências de maior amplitude a respeito da lógica subjacente a seu comportamento, e com
qual dos modelos de comportamento parlamentar tal lógica mais se compatibiliza.
É o que faremos a seguir.
2.2. O que fazem os deputados estaduais paranaenses: leis e projetos de lei
PPS
PSDB
PPB
PPPP
PTB
PFL
Situação/subtotal
Total
Como já observado, das 1474 leis aprovadas durante a legislatura, 1308 são de autoria de parlamentares
individualmente considerados. Verifica-se, assim, em nível subnacional, um padrão de produção legislativa
quase que simetricamente oposto ao verificado em nível nacional, onde os parlamentares individualmente
considerados são responsáveis por um número bastante reduzido de leis7. Outro fator que deve ser observado
é que, conforme indicado pela tabela abaixo, há uma clara desproporção entre o percentual de leis aprovadas
pelos partidos de situação e de oposição, e a bancada média de cada uma das legendas ao longo da legislatura
(Cervi & Codato, 2002)8. Significativamente, a maior desproporção observada é a do partido do presidente
da Assembléia na segunda metade da legislatura, o PSDB, do deputado Hermas Brandão, que também foi o
parlamentar que maior quantidade de leis aprovou individualmente, evidenciando a existência de uma lógica
personalista e concentradora de poderes na mesa que se sobrepõe à lógica partidária vigente na ALPR.
TABELA2. 5) ORIGEM DAS LEIS
POR
BANCADA MÉDIA DOS PARTIDOS
PT
PMDB
PDT
Oposição/
subtotal
PSB
N
51
115
48
%
3,9
8,8
3,7
7,4
13,9
7,3
214
41
16,4
3,1
28,6
2,6
7
Amorin Neto e Santos (2002) observam que, entre 1985 e 1999 apenas 336 leis foram de autoria dos parlamentares, o
que é inferior à média anual de leis via de regra aprovadas pelos parlamentares em legislativos subnacionais.
48
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 40-52, 2007.
1,8
21,9
9,0
14,1
16,4
17,3
83,6
100,0
1,5
13,0
11,5
9,1
16,3
17,4
71,4
100,0
Fonte: NDIP/UFPR
Por sua vez, examinando-se a distribuição da origem das leis por partido, dada pela tabela abaixo,
verificamos que, excetuando-se o PPS, há um padrão de distribuição das leis aprovadas bastante semelhante
entre os vários partidos representados na ALPR. Assim, todos eles aprovaram um maior percentual de leis
“simples”, de cunho honorífico ou utilidade pública, benéficos e individuais. Excetuando-se o PPS que apresenta
um padrão contrastante, reproduz-se, assim, um padrão já verificado em outros períodos de funcionamento da
democracia brasileira, inclusive em nível nacional (Santos, 1995), e também observado por outros analistas em
outras unidades subnacionais brasileiras (Lima Júnior, 1997; Moraes, 2001), ou seja, independentemente da
legenda partidária e de seu alinhamento político-ideológico parlamentares de todas as agremiações aprovam
predominantemente leis de abrangência individual e local, potencialmente voltadas para sua base ou clientela
eleitoral (pork). Também aqui há, aparentemente, uma lógica próxima ao “ultrapresidencialismo” com a “arena
eleitoral” tendo um papel predominante na formatação do comportamento parlamentar no interior dos órgãos
legislativos.
Em primeiro lugar, analisaremos as leis aprovadas pelos parlamentares. Em seguida, os projetos de lei
propostos pelos deputados, a fim de verificar “o que fazem” tais parlamentares paranaenses em seu esforço de
apresentação de projetos de leis.
2.2.1. As leis aprovadas pelos parlamentares
24
286
118
184
215
226
1094
1308
Simples
Complexa
Total
TABELA 2.6) ORIGEM DAS LEIS (POR PARTIDO)
OPOSIÇÃO
GOVERNO
PT PMDB PDT PSB PPS PSDB PPB PPPP PFL
N % N % N % N % N % N % N % N % N %
GRAU DE COMPLEXIDADE
45
42
33
16
98
6
12
6
8
8
53
20
32
34
51
115
48
41
24
118
ASSUNTO
0 0,0 5 4,3 1 2,1 2 4,9 2 8,3 14 4,9 3 2,5 4 2,2 6 2,7
1 2,0 1 0,9 1 2,1 0 0,0 5
20 7,0 5 4,2 6 3,3 10 4,4
Administrativo
Econômico
Honorífico/
Utilidade Pública 43
93
42
26
Político
0 0,0 0 0,0 0 0,0 0
Social
6
15
2 4,2 11
Culturalcientíficotecnológico
1 2,0 0 0,0 0 0,0 1
Ecológico
0 0,0 0 0,0 2 4,2 0
Outras/SI
0 0,0 1 0,9 0 0,0 1
Total
51 100 115 100 48 100 41
Benéfico
Onerante
Misto
Neutro
Total
Individual
Local
Regional
Setorial
Estadual
Total
PTB Total
N % N %
39
5 2,3 42 3,2
13 6,0 62 4,7
16
92
0,0 0 0,0 1 0,3 0 0,0 1 0,5 0 0,0 2 0,9 4 0,3
1 4,2 38
15
34
38
42
2,4
0,0
2,4
100
0
0
0
24
43
92
4 7,8 6 5,2
0 0,0 0 0,0
4 7,8 17
51
115
0,0 5 1,7 1 0,8 1 0,5 2 0,9 0 0,0 11 0,8
0,0 2 0,7 0 0,0 0 0,0 3 1,3 0 0,0 7 0,5
0,0 4 1,4 2 1,7 3 1,6 6 2,7 2 0,9 19 1,5
100
100 118 100
100
100
100
100
EFEITOS
39
33
18
3 6,3 1 2,4 4
17 5,9 4 3,4
2 4,2 2 4,9 0 0,0 3 1,0 2 1,7
4 8,3 5
2 8,3 31
11 9,3
48
41
24
118
ABRANGÊNCIA
39
83
41
25
12
84
2 3,9 8 7,0 0 0,0 6
0 0,0 28 9,8 5 4,2
1 2,0 6 5,2 1 2,1 4 9,8 2 8,3 17 5,9 6 5,1
6
15
5
5
7
46
15
3 5,9 3 2,6 1 2,1 1 2,4 3
20 7,0 8 6,8
51
115
48
41
24
118
14 7,6 13 5,8 14 6,5 80 6,1
6 3,3 3 1,3 3 1,4 21 1,6
14 7,6 31
19 8,8
16 8,7 33
33
1 0,5 9 4,0 7 3,3 54 4,1
31
22 9,7 31
8 4,3 14 6,2 8 3,7 69 5,3
8
Esse é um dos indicadores utilizados por Pereira e Müller (2002: p. 757) para demonstrar que há uma lógica partidária
subjacente ao uso estratégico feito pelo Executivo do processo de liberação e aprovação de emendas ao orçamento no Congresso
Nacional.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 40-52, 2007.
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ZIEGMANN, A. B. A Produção Legal na 14º Legislatura...
2.2.2. Os projetos de leis propostos pelos parlamentares
Dos 2580 projetos apresentados, 2381 foram por deputados, um percentual bastante significativo.
Cabe agora efetuar uma análise mais detida de alguns deles, a fim de verificar se há alguma semelhança ou
diferença em relação ao padrão verificado na aprovação de leis.
Conforme ilustrado pela tabela apresentada a seguir, os dados indicam um padrão mais diversificado
de distribuição entre as diferentes agremiações. Assim, três partidos destacam-se por não possuir uma lógica
predominantemente particularista na apresentação de projetos de lei (PT, PDT e PPS), sendo que dois desses
partidos fizeram oposição ao governo estadual durante e todos possuem inclinações ideológicas de centroesquerda. Esses dados também podem indicar uma outra lógica subjacente ao comportamento dos parlamentares
da ALEP que não se restringe apenas à apresentação de legislação pork barrel para responder a pressões da
arena eleitoral e satisfazer as demandas dos potenciais eleitores.
Entretanto, para apreendermos de maneira mais sistemática a existência de uma eventual “lógica oculta”
à organização do processo decisório da ALEP, temos que aprofundar as sugestões metodológicas contidas na
literatura e efetuar cruzamentos e tabulações estatísticas entre os padrões de recrutamento dos vários grupos e
subgrupos de parlamentares representados na ALPR e seu comportamento político, tal como indicado por sua
atividade legislativa. É o que faremos a seguir.
TABELA 2.7) PROJETOS PROPOSTOS (POR PARTIDO): 14º LEGISLATURA (19992002)
PT
PDT PSB PPS PSDB PPB PPPP9 PFL PTB Total
N % N % N % N % N % N % N % N % N % N % N %
GRAU DE COMPLEXIDADE/RELEVÂNCIA
Simples
61
57
57
20
Complexa
61
86
62
33
22
69
Total
90
42
ASSUNTO
Administrativo
15
23 8,9 19
4 4,4 5
23 6,0 12 6,6 27 8,4 47 9,5 42
9,1
Econômico
15
22 8,6 16
9
12
56
21
23 7,1 52
29 8,0
Honorífico/
Utilidade Pública 49
51
34
18
97
Orçamento
0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 1 0,3 0 0,0 2 0,6 0 0,0 0 0,0 3 0,1
Político
1 0,8 5 1,9 1 0,8 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 3 0,9 2 0,4 2 0,5 14 0,6
Social
36
61
23
37
6
89
40
94
Culturalcientífico3 2,5 1 0,4 1 0,8 2 2,2 0 0,0 2 0,5 5 2,7 1 0,3 6 1,2 0 0,0 21 0,9
tecnológico
Ecológico
1 0,8 2 0,8 4 3,4 0 0,0 1 2,4 5 1,3 1 0,5 1 0,3 12 2,4 4 1,1 31 1,3
Outras/SI
2 1,6 5 1,9 4 3,4 4 4,4 0 0,0 11 2,9 7 3,8 7 2,2 13 2,6 6 1,6 59 2,5
Total
90
42
EFEITOS
Benéfico
79
73
59
24
Onerante
22
41
30
15
11
61
25
53
68
52
Misto
6 4,9 14 5,4 3 2,5 3 3,3 1 2,4 15 3,9 8 4,4 13 4,0 18 3,6 14 3,8 95 4,0
Neutro
15
40
13
13
6
52
26
31 9,6 65
47
Total
90
42
ABRANGÊNCIA
Individual
44
49
32
14
88
Local
7 5,7 18 7,0 4 3,4 13
0 0,0 63
11 6,0 32 9,9 52
60
Regional
2 1,6 9 3,5 9 7,6 7 7,8 2 4,8 15 3,9 9 4,9 6 1,9 33 6,6 14 3,8
4,5
Setorial
52
69
35
23
18
90
36
Estadual
17
29
22
15
8
38 9,9 39
30 9,3 65
31 8,5
Total
90
42
ZIEGMANN, A. B. A Produção Legal na 14º Legislatura...
Conclusão
Podemos, assim, concluir nosso estudo sobre o recrutamento parlamentar e a produção legal na 14ª
legislatura da ALEP. Devemos frisar que trata-se de um primeiro ensaio de estudo do problema, uma “primeira
aproximação” ao objeto de estudo, pois ainda são raros estudos de cunho comparativo que adotem esse enfoque
e apliquem a metodologia de análise e a tipologia das leis empregadas pelos autores que serviram de base para
nossa análise.
A principal conclusão de nosso trabalho é a de que há um padrão complexo de produção legal e de
comportamento parlamentar na ALEP que não equivale ao observado em nível nacional e que, por outro lado,
não é uma mera reprodução da lógica “clientelista” e “distributiva” pressuposta pelos autores que postulam a
existência de um “ultrapresidencialismo” nas unidades subnacionais (Abrúcio, 1998).
Assim, “o partidos contam” na organização interna da Assembléia Legislativa. A produção legal dos
parlamentares não se limita à proposições de natureza pork barrel e a taxa de sucesso de suas proposições está
positivamente relacionada à sua filiação partidária, além de outros fatores a serem mapeados com maior nível
de profundidade em estudos posteriores.
Entretanto, mais importante do que apresentar resultados substantivos e afirmações taxativas a respeito
do funcionamento da ALEP no período (o que implicaria mais estudos, inclusive de natureza comparativa),
acreditamos que o resultado mais palpável desse estudo é refletir sobre uma metodologia que pode se revelar
fecunda para a elaboração de estudos mais aprofundados sobre as relações entre o Executivo e o Legislativo e
o comportamento parlamentar nas esferas subnacionais de governo.
Nesse sentido, a análise sistemática dos dados sobre os projetos de lei apresentados e aprovados,
pode se revelar um interessante recurso metodológico - ao lado de outros, como o recrutamento sociopolítico
dos parlamentares - para uma visão mais abrangente a próxima do comportamento parlamentar efetivamente
observado pelos atores nos parlamento subnacionais.
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O combate à discriminação racial nos EUA: estudo histórico comparado
da atuação dos três poderes
João Feres Júnior*
Resumo: o presente artigo tem a finalidade de analisar o papel dos três poderes, executivo, legislativo e
judiciário na evolução das políticas de ação afirmativa nos Estados Unidos, desde sua criação em meados
da década de 1950 até os dias de hoje, com ênfase na principal instituição do judiciário, a Suprema Corte.
Ainda que haja na literatura recente um certo entusiasmo em relação às supostas virtudes republicanas
do judiciário, vis-a-vis os outros poderes, a análise do exemplo em questão mostra que a Suprema Corte,
quando comparada às atuações do executivo e legislativo, não teve um papel decisivo eminentemente
positivo. Ou seja, essa instituição muitas vezes foi contrária ao alargamento e capilarização do acesso a
direitos da minoria negra americana.
Palavras-chave: ação afirmativa, Estados Unidos, judiciário, Suprema Corte.
Abstract: the present article has the finality to analyze the role of the three powers, executive, legislative
and judiciary in the evolution of the affirmative actions polices in the United States of America, since
your creation in 1950´s until nowadays, with especial emphasis in the main institution of judiciary, the
Supreme Court. Even though in the recent literature exists some enthusiasm in relation to the suppose
republican virtues of the judiciary, vis-à-vis others powers, the analysis of the present example shows that
Supreme Court, when compared to the actuations of the executive and legislative, has not have a mostly
decisive positive role. So, this institution many times has been against to the spreading and vaporization
of the access to rights for the african-american minority.
Keywords: affirmative actions, United States, judiciary, Supreme Court.
A discriminação racial é hoje um tópico de destaque no debate público nacional. No início dos anos
1990, sindicatos e associações de trabalhadores denunciaram junto à Organização Internacional do Trabalho
(OIT) a existência de discriminação racial no mercado de trabalho brasileiro, provocando uma reação do
governo federal que começou a institucionalização de mecanismos de combate à discriminação. Contribuiu
também para o avivamento da questão a participação do Brasil na III Conferência Mundial contra o Racismo,
a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, promovida pela ONU em Durban, África do Sul,
que foi precedida de um amplo debate sobre o problema do racismo no país, envolvendo setores do governo e
da sociedade civil. Anteriormente a esses eventos, acadêmicos já haviam se esforçado para mostrar com dados
empíricos a falsidade do mito da democracia racial brasileira (Hasenbalg 1979; Hasenbalg 1988; Hasenbalg
1992; Skidmore 1992; Adorno 1995). Porém, nada disso parece ter sido tão eficaz no acirramento desse debate
do que as iniciativas recentes de adoção de políticas de ação afirmativa por parte de algumas universidades
públicas brasileiras (Cesar 2003).
O exemplo pioneiro de utilização da ação afirmativa para a seleção de estudantes de terceiro grau
vem do Estado do Rio de Janeiro, em particular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da
* Professor Associado
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ
52
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 40-52, 2007.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 53-61, 2007.
53
JUNIOR, J. F. O combate à discriminação nos EUA:...
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Instituídas através de leis estaduais (3.524/2000 e
3.708/ 2001), o programa de reserva de cotas para negros e estudantes oriundos do ensino público nessas
universidades foi posto em prática no vestibular de 2003. Além de um debate acirrado nos veículos de opinião
pública, essa iniciativa teve também conseqüências no âmbito da justiça. Muitos estudantes que não passaram
no vestibular, mas obtiveram nota superior a outros que ingressaram através do sistema de cotas, entraram com
ações contra as universidades requerendo a vaga que lhes foi negada. O deputado estadual Flávio Bolsonaro
ajuizou no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro uma Representação por Inconstitucionalidade
contra as duas leis estaduais. Já a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN)
propôs junto ao STF uma ação direta de inconstitucionalidade dessas leis estaduais (ADIN 2.858).1 Outras
universidades públicas no país estão em processo de adoção de políticas similares às das estaduais do Rio
de Janeiro, entre elas a Universidade Federal da Bahia, a UnB, Universidade Federal do Mato Grosso e a
Universidade Federal de Minas Gerais. Em suma, seja no Rio de Janeiro ou em outros estados da federação, as
políticas de ação afirmativa vão certamente gerar mais litígio, com prováveis desdobramentos para o Supremo
Tribunal Federal.
Em sua curta existência as políticas de ação afirmativa no Brasil traçaram todo o caminho que vai da
sua aprovação pelo legislativo, implementação pelo executivo e contestação no judiciário. É interessante notar
que esse caminho é de alguma maneira semelhante àquele percorrido pelas políticas antidiscriminação e de
ação afirmativa nos EUA, país pioneiro no mundo nesse tipo de iniciativa. O objetivo desse artigo é examinar
a história dessas políticas nos EUA, particularmente no que diz respeito a sua relação com os três poderes.
Espero que esse tipo de reflexão sirva informar de alguma maneira aqueles que se interessam pelo assunto.
Quando da promulgação de sua constituição (1788), os Estados Unidos era um país agrário, cujo
setor econômico mais produtivo (as plantations do sul) baseava-se no trabalho escravo de africanos, trazidos
para o Novo Mundo como cativos, e de seus descendentes. O republicanismo e o federalismo do texto
constitucional conviviam, então, lado a lado, com provisões que facilitavam a continuação da escravidão.
Por exemplo, a constituição original aprovada pelo Congresso em 1788 declarava que cada escravo contaria
como três quartos de uma pessoa para efeitos da divisão entre os estados de assentos na câmara dos deputados
(House of Representatives). Ao mesmo tempo, contudo, os escravos negros não tinham direito de voto.
Conseqüentemente, esse arranjo proporcionava aos brancos dos estados do sul, onde viviam a maioria dos
escravos negros, uma representação desproporcional no legislativo federal, e, portanto, meios para barrar
qualquer iniciativa contrária à escravidão no âmbito federal. Além disso, a constituição americana continha
originalmente outras duas provisões que visavam proteger o sistema escravocrata. Uma proibia qualquer
interferência do congresso com o tráfico de escravos até 1808 – ano em que os fazendeiros do sul acreditavam
poder atingir autonomia na geração de escravos através de incentivos à reprodução dos já cativos. A outra,
chamada de provisão do escravo fugitivo, obrigava os estados do norte, que não praticavam a escravidão, a
retornarem todo escravo que conseguisse fugir para território.
A Suprema Corte confirmou o propósito excludente da constituição no famoso caso Dred Scott v.
Sandford, de 1857. Escravo no Missouri, Scott fugiu para Wisconsin, território onde a escravidão havia sido
abolida. A Suprema Corte poderia ter simplesmente referendado a decisão da corte inferior, que, aplicando o
princípio constitucional, afirmava que a condição de escravo de Scott não se alterava com o seu deslocamento
para um território livre. Contudo, a Corte aprovou por 7 votos a 2 uma decisão onde argumenta, usando o
princípio da intenção original do legislador, que os autores da constituição americana nunca pretenderam incluir
os negros, cujos ancestrais foram trazidos para o país como escravos, em sua comunidade política.
Isso porque eram considerados uma raça inferior, e, portanto, impróprios para entrar em uma “associação
com a raça branca”. Ademais, argumentaram os juízes, a abolição da escravidão em alguns estados do norte
não se deu pelo reconhecimento do valor dos negros, mas somente pela constatação da improdutividade do
trabalho escravo em climas frios. Em suma, a Corte concluiu que Scott não gozava dos direitos e imunidades
estabelecidos pela constituição, o que, entre outras coisas, o impossibilitava de se fazer representar perante
uma corte de justiça (Fehrenbacher 1978; Finkelman 1997).
A decisão do caso Dred Scott v. Sandford pela Suprema Corte se deu às portas da Guerra de Secessão
(1861-65), ou Guerra Civil, que foi em toda a história dos EUA o conflito que produziu o maior número de
Antes que a ADIN fosse julgada pelo Supremo Tribunal Federal, a Alerj aprovou uma nova lei, nº 4.151, de 04 de
setembro de 2003, que revoga a legislação anterior e institui uma reserva de cota de 45% para os próximos cinco anos, divida da
seguinte maneira: 20% para estudantes oriundos da rede pública de ensino, 20% (vinte por cento) para negros e 5% (cinco por
cento) para pessoas com deficiência e integrantes de minorias étnicas. Dado que a legislação anterior não está mais em vigor, a
ADIN e a Representação por Inconstitucionalidade perderam seu objeto.
1
55
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baixas (aproximadamente 600.000). A questão da escravidão estava no centro da oposição entre estados do
norte, representando a União, e os do sul, que lutaram sob a bandeira da Confederação. Logo após a vitória da
União, o governo americano, sob a hegemonia dos abolicionistas do norte, interveio ativamente nos estados
derrotados do Sul para garantir o exercício dos direitos e liberdades recentemente estendidos à população
negra. A historiografia americana batizou esse período, que vai do fim da guerra a 1877, de Reconstrução
(Nolen 2001). Os representantes dos estados do sul foram expulsos do Congresso, os artigos que sustentavam
a instituição da escravidão foram retirados da carta constitucional e três emendas constitucionais foram
aprovadas: a décima terceira aboliu a escravidão em todo o território americano, a décima quarta conferiu
direitos de cidadania aos ex-escravos e a décima quinta lhes deu o direito de voto.2
A décima quarta emenda à Constituição Americana é de especial importância uma vez que alterou
o arranjo federativo do país ao proibir que os estados negassem, através de legislação ou atos do executivo,
a qualquer pessoa, os direitos a “vida, liberdade ou propriedade sem o devido procedimento legal”, e ao
garantir a todas as pessoas dentro da jurisdição estadual “proteção igual das leis”.3 A primeira ficou conhecida
como cláusula do “procedimento legal devido” e a última como cláusula da “proteção igual das leis” (Nelson
1988).
Em reforço às emendas constitucionais, e com o objetivo de estender o exercício dos direitos individuais
postulados nelas, o Congresso americano aprovou em 1875 o Civil Rights Act, que proibia o exercício da
discriminação racial em todas atividades abertas ao público, como hotelaria, entretenimento, transporte, etc.
Mas a Suprema Corte anulou o Ato do Congresso com o julgamento dos casos de direito civil de
1883, nos quais pontificou que a 14.a emenda regula exclusivamente ações do governo federal, e, portanto,
não autoriza a criação de legislação federal que regule práticas de empresas e indivíduos privados que estão
amparados pela jurisdição de legislação estadual (Green 2000).
Com o caso Plessy v. Ferguson, de 1896, a Corte ratificou sua condescendência em relação à
discriminação real dos negros na sociedade americana. O legislativo estadual da Luisiana aprovou legislação
tornando obrigatória a existência de vagões separados para negros no sistema de transporte ferroviário. Homer
Adolph Plessy, que como informa o texto do acórdão era 7/8 “caucasiano, sentou-se em um vagão reservado para
brancos, e por isso foi preso. Plessy acionou a companhia ferroviária e o caso foi escolhido para julgamento na
Suprema Corte que analisou o caso em termos de seu enquadramento na 14.a emenda constitucional. A Corte
decidiu em favor das leis estaduais usando a doutrina do “iguais mais separados”, que afirma ser constitucional
a segregação, desde os bens ofertados a cada uma das partes sejam equivalentes (Thomas 1997).
Na prática, a Suprema Corte deu mais um sinal verde para a continuação de práticas discriminatórias.
Se a população negra dos EUA não voltou à condição escrava, ela tampouco conseguiu usufruir os direitos
políticos e civis dos americanos brancos. Isso foi particularmente verdadeiro nos estados do sul, onde vivia
a imensa maioria dos afro-descendentes daquele país. A solução tentada por muitos foi a migração para os
grandes centros urbanos industriais do nordeste em busca de melhores oportunidades. Contudo, mesmo nesses
lugares, foram vitimados pela segregação social e política, expressa espacialmente pela multiplicação dos
guetos negros nas áreas mais desvalorizadas nas metrópoles americanas.
Uma vez que o nordeste, vitorioso na Guerra Civil, conseguiu impor sua agenda industrialista à União,
os problemas da incorporação da população negra à sociedade americana praticamente desapareceram das
arenas política, legal e jurídica daquele país. Foi somente na década de 1940 que um dos poderes constituídos
da União voltou sua atenção para o assunto. Através da Ordem Executiva 8892, o então presidente Franklin
Delano Roosevelt proibiu a discriminação, por parte do governo federal e das indústrias de armamentos
fornecedoras do governo, baseada em critérios de raça, credo, cor e origem. Roosevelt também criou o Fair
Employment Practices Committee (FEPC) para supervisionar a implementação dessa ordem executiva.
Em 1943, Roosevelt promulga a Ordem Executiva 9346, que estende a proibição da discriminação
às organizações, sindicatos e industrias que celebram contratos com o governo federal. Ainda naquele ano,
Roosevelt reforçou o FEPC (Pauley 2001).
O comitê foi desativado pelo congresso americano em 1945, mas em 1948, o presidente Harry
Truman criou, através da Ordem Executiva 9980, o Fair Employment Board, cuja atribuição era combater
a discriminação no serviço público. Com a Ordem Executiva 10308, Truman criou o Government Contract
2
As emendas à constituição americana estão reunidas no chamado Bill of Rights. Esse anexo do texto constitucional
aprovado em 1791 trata dos direitos individuais -- matéria completamente ausente do texto constitucional principal – e, portanto,
limita os poderes governamentais. Originalmente as emendas do Bill of Rights regulavam somente as ações do governo federal.
Contudo, a 14a. emenda explicitamente estendeu seu alcance ao âmbito estadual, abrindo um precedente para que outros direitos
também o fossem.
3
“the equal protection of its laws.”
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Compliance Committee, medida que visava combater a discriminação na empresas que prestavam serviços ao
governo federal. Seu sucessor, o presidente americano Dwight Eisenhower, criou, através da Ordem Executiva
10479, o Government Contract Committee, com competências semelhantes ao comitê previamente instituído
por Truman, mas agora submetido diretamente ao presidente, e não ao Government Employment Committee,
como era o caso do outro. Eisenhower também proibiu a discriminação no serviço público.
Em 1954 a Suprema Corte julgou um caso que se tornou referência na história da luta por direitos civis
dos negros nos EUA: Brown v. Board of Education. Através desse julgamento, a Corte declarou nula a doutrina
do “iguais mas separados” de Plessy v. Ferguson, argumentando que a segregação racial nas escolas públicas
dos estados do sul feriam a 14.a emenda constitucional, mesmo quando as condições oferecidas aos diferentes
grupos eram semelhantes. A Corte ordenou que o fim da segregação se desse de maneira paulatina, sob a
justificativa de propiciar a adaptação das instituições de ensino a essa nova realidade. Contudo, isso permitiu
que muitas escolas postergassem a mudança ad infinitum. Em 1964, portanto dez anos após a decisão da Corte,
apenas 3% da população escolar negra do sul dos EUA estudava em escolas não segregadas. Ademais, Brown
revogava a segregação de iure praticada no sul, e, portanto, não tinha efeito sobre a segregação de facto das
comunidades negras nas grandes cidades do norte, cujas crianças eram forçadas a estudar nas escolas precárias
dos guetos (Levine 1988).
Por outro lado, no executivo, o presidente democrata John F. Kennedy não só repetiu as medidas de
seus predecessores republicanos, proibindo a discriminação dentro do serviço público federal e nas empresas
prestadoras de serviço à união, mas, pela primeira vez na história daquele país, requereu que essas empresas
praticassem ações afirmativas para combater a discriminação. Kennedy criou o Equal Oppportunity Employment
Committee, órgão com a autoridade de bloquear a contratação ou anular os contratos das empresas que não
implementassem as novas diretivas do governo. Essas medidas estão todas contidas na Ordem Executiva
10925 (Pauley 2001).
A atividade reguladora do executivo americano no combate a discriminação no âmbito do governo
federal, no período que vai do fim da Segunda Guerra à eleição de Kennedy, deve ser entendida dentro de
seu contexto histórico. A discriminação e segregação dos negros perduravam por todo o país, sendo que em
vários estados do sul lhes era negado o acesso à representação política, seja através de medidas legais de
âmbito local e estadual, como desenho distrital ou testes de aptidão, ou do uso da intimidação e da violência.
Por outro lado, como produto da participação massiva de negros americanos na Segunda Guerra Mundial,
que se deu ainda em batalhões segregados, esse setor da sociedade americana conseguiu conquistar uma
maior visibilidade política, principalmente no âmbito do serviço público federal. Daí se explica o fato de
dois presidentes republicanos fazerem um esforço, pelo menos formal, de combater a discriminação racial.
Todavia, dado que as ordens executivas não têm a perenidade das leis, ou seja, não passam de presidência à
presidência, as mesmas medidas tiveram de ser tomadas repetidamente.
Foi somente em 1964 com a aprovação no Congresso de um novo Civil Rights Act -- produto de uma
extensa mobilização dos setores progressistas da sociedade americana que envolveu desde manifestações
pacíficas até o terrorismo, passando por desobediência civil, assassinatos e conflagrações violentas que tomaram
bairros ou cidades inteiras – que as medidas anti-discriminatórias finalmente se transformaram em lei federal.
Em seu Inciso Sétimo (Title VII), o Civil Rights Act proíbe a prática da discriminação em serviços voltados ao
público. A proibição se estende a vários aspectos do emprego, como a contratação, treinamento, promoção,
recrutamento, dispensa e outros. Ou seja, o Civil Rights Act de 1964 finalmente reverteu a interpretação
da Suprema Corte de 1883 que anulou o Civil Rights Act de 1875, habilitando assim o governo federal a
processar as empresas privadas que praticassem a discriminação. O Inciso Sétimo também criou o Equal
Opportunity Commission (EEOC), desenhada para negociar soluções para queixas contra a discriminação
(Grofman 2000).
A constitucionalidade do Ato foi imediatamente contestada por ação movida pelo Heart of Atlanta
Motel contra a União, reclamando seu direito de não aceitar a hospedagem de clientes negros. Contudo, a
Suprema Corte, baseada no Inciso II, que proíbe a discriminação racial em atividades comerciais direcionadas
ao grande público, julgou a ação improcedente, confirmando assim a constitucionalidade do ato (Cortner
2001).
Devemos notar que as ações do executivo e a iniciativa do legislativo, das quais viemos discorrendo
até aqui, concentravam-se sobre o combate à discriminação, e portanto, não eram medidas de ação afirmativa
propriamente ditas. Apesar de ter sido usada pelo presidente Kennedy no texto da Ordem Executiva 10925, o
termo “ação afirmativa” não tinha o sentido de “discriminação positiva” que veio a assumir, pela primeira vez,
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na Ordem Executiva 11246 promulgada em 1965 por seu sucessor, Lyndon B. Johnson. Em seu texto, ação
afirmativa é definida como um procedimento ativamente direcionado para a promoção da igualdade racial na
contratação como resultado objetivo, e não somente como princípio orientador. Através dessa mesma ordem,
Johnson colocou sob a supervisão do Departamento do Trabalho o cumprimento das medidas (Stern 1992).
Em 1966, o EEOC adotou um conjunto de regras para o exame de candidatos a empregos públicos que
seguia a teoria do impacto desproporcional, requerendo que empregadores utilizassem critérios diferenciados
para julgar o desempenho de minorias nos exames. A teoria do impacto desproporcional reza que a discriminação
pode ser produzida mesmo quando a intenção original daquele que estabeleceu os critérios de contratação não
pode é comprovadamente discriminatória. Os casos mais contenciosos, contudo, dizem respeito à utilização de
critérios exagerados na contratação de pessoal para serviços que não requeiram tal especialização. Devemos
sublinhar o caráter pragmático dessa teoria. Trata-se de constatar que na sociedade em questão há de fato uma
desiguladade imensa de oportunidades e condições entre as raças e que, portanto, a universalidade da norma
não pode ser tomada como garantia de seu caráter justo. Muito pelo contrário, essa universalidade se tornar um
obstáculo à justiça quando a norma excede as necessidades de qualificação do determinado posto de trabalho
em questão.
O governo do republicano Richard Nixon (1969-1974) deu continuidade à implantação de políticas
de ação afirmativa ao criar o Plano Filadélfia. Na época, o governo federal estava investindo 40 bilhões de
dólares da expansão da malha rodoviária interestadual. Os contratos de trabalho para as obras públicas eram
monopolizados pelos sindicatos, dominados por clãs de trabalhadores brancos que praticavam discriminação
aberta contra negros. Apesar de constituírem quase metade da população da cidade, as minorias representavam
somente 1,6% da força de trabalho contratada pelos sindicatos. O Plano obrigou o uso de cotas raciais na
contratação de empregados e adotou uma tabela com as proporções percentuais a serem alcançadas e o tempo
estimado para que elas se tornassem realidade. Os métodos a serem utilizados ficaram por conta dos contratantes,
desde que os objetivos fossem alcançados. No ano seguinte, esse requisito foi estendido a empresas fora do
ramo da construção civil que prestavam serviços ao governo. No mesmo ano, a EEOC criou uma política
sistemática de controle dos exames para contratação utilizando a teoria do impacto diferenciado potencial.
Segundo comentadores, Nixon tentou através dessa medida angariar a simpatia dos eleitores negros
americanos que estavam descontentes, entre outras coisas, com a interrupção em muitos lugares do serviço
público de transporte de alunos para escolas – ação fundamental para o combate a segregação nas instituições
educacionais públicas nos EUA. Sua votação entre os negros havia caído de 30%, na eleição que perdeu
para Kennedy em 1960, para 10%, em 1968. A adoção de tal programa também visava dividir o eleitorado
do partido democrata, conseqüência que, devido a sua renúncia, o então presidente não teve chance de testar
(Pauley 2001).
Finalmente, em 1971, com o caso Griggs v. Duke Power Co., uma medida de ação afirmativa finalmente
chega à instância máxima do poder judiciário americano. Contrariando as expectativas da Duke Power Co.,
a Suprema Corte julgou que o diploma de segundo grau e os demais exames por ela ministrados companhia
não serviam como indicadores razoáveis do rendimento no trabalho. Foi a primeira vez que a Suprema
Corte reconheceu a validade da teoria do impacto desproporcional, e a usou para redefinir a discriminação
(McCloskey and Levinson 2000).
O Equal Employment Opportunity Act de 1972, outra iniciativa legislativa, universalizou as medidas do
Inciso Sétimo do Civil Rights Act de 1965, forçando empregadores da iniciativa privada, servidores estaduais e
municipais, e instituições de ensino a adotarem as mesmas medidas de combate à discriminação, e autorizando
o EEOC a processar em corte federal aqueles que resistirem à lei.
No caso McDonnell Douglas v. Green, julgado em 1973, a Suprema Corte voltou a usar a teoria do
impacto desproporcional, agora alegando que o ônus da prova (da isenção quanto à discriminação) recaia sobre
a empresa e não sobre a suposta vítima. No caso Albermarle Paper Co. v. Moody (1975), a Corte novamente
adotou o impacto desproporcional para invalidar os critérios de seleção usados pela companhia, concluindo
que eles não corrigiam de fato a disparidade de impacto. Contudo, no caso Washington v. Davis, de 1976,
que versava sobre o uso de um exame de habilidade verbal para a contratação de pessoal pelo Departamento
de Polícia da cidade de Washington, a Corte reverteu sua decisão anterior ao julgar que é necessária a prova
da intenção discriminatória para que a acusação seja examinada sob a cláusula da “proteção igual das leis”.
Essa decisão representa uma guinada na posição da Corte em relação às iniciativas anti-discriminação. A
Corte poderia ter dado ganho de causa à cidade de Washington afirmando simplesmente que a habilidade
verbal é de fato um aspecto necessário da atividade policial, o que livraria a norma da imputação de impacto
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desproporcional. Contudo, ao afirmar a necessidade de prova de intenção discriminatória, a Corte toma uma
posição de princípio que contradiz a teoria do impacto proporcional (McCloskey and Levinson 2000).
O poder executivo continuou a promoção da ação afirmativa ao promulgar o Presidential Reorganization
Plan no. 1, em 1978, que deu a EEOC a prerrogativa de cuidar da implementação de “oportunidades de
trabalho iguais” nos setores público e privado. No mesmo ano, o EEOC criou regras para uniformizar os
aspectos laborais de todas a agências federais. Entre outras coisas, a regulamentação definia “discriminação”
pela presença de impacto desproporcional e estabelecia um critério de cotas para a contratação de minorias.
Ainda em 1978, a Suprema Corte julgou aquele que é considerado, até os dias de hoje, um divisor de
águas na história da ação afirmativa nos EUA, o caso Regents of the University of Califórnia v. Bakke. Allan
Bakke, candidato de cor branca rejeitado pela escola de medicina da Universidade da Califórnia em Davis,
entrou na justiça contra a escola reclamando seu direito à vaga, uma vez que candidatos negros e latinos com
notas inferiores às dele foram admitidos através de um processo de seleção que utilizava a reserva de cotas.
Os juízes da Suprema Corte declararam a inconstitucionalidade do programa de cotas raciais, mas afirmaram
ser de acordo com a constituição o uso de outros critérios de promoção da igualdade racial, permitindo assim
a continuidade de algumas políticas de ação afirmativa. A decisão da Corte pode ser resumida nos seguintes
itens: 1) para que o tratamento preferencial dada a minorias seja considerado legal, o empregador terá que
demonstrar que a empresa ou organização pôs em prática critérios de contratação discriminatórios no passado,
2) a ação afirmativa deve ser implementada caso a caso e não através de reserva de cotas, e 3) pode ser
justificada somente em casos de reparação da discriminação passada (Schwartz 1988; Ball 2000).
Na prática, a Corte criou abandonou de vez, em Bakke, a teoria do impacto desproporcional, preferindo
validar a tese mais restritiva de que a ação afirmativa só se justifica através da evidência histórica de
discriminação.
Em uma futura contribuição, pretendemos tratar especificamente dos casos de ação afirmativa
examinados pela Suprema Corte a partir de Bakke, ou seja, do final da década de 1970 até o presente, de Bakke
até os mais recentes casos da Universidade de Michigan.4 Examinaremos, entre outras coisas, a paulatina
aplicação do critério de escrutínio estrito (strict scrutiny) a esses casos e o estreitamento das possibilidades
legais de políticas de ação afirmativa causado por essa démarche. Só então poderemos avaliar com mais
clareza o papel histórico desempenhado pela mais alta corte dos EUA no combate a discriminação racial
naquele país.
Conclusão
Essa breve revisão da atuação histórica dos três poderes da república estadunidense no que tange a
discriminação racial revelou algumas tendências interessantes. Primeiro, devemos assinalar o papel pioneiro
do executivo, seja no período da Reconstrução, seja a partir do New Deal de Franklin D. Roosevelt, em
criar impedimentos cada vez maiores para a continuidade de práticas discriminatórias contra a minoria negra
naquele país. Essa tendência se revelou suprapartidária no período que vai do fim da Segunda Guerra Mundial
ao governo de Richard Nixon. Apesar do Plano Filadélfia ter sido implementado durante seu governo, Nixon
mais tarde, conjuntamente com o partido republicano, se tornou um adversário da ação afirmativa. A partir
dessa guinada histórica, a ação afirmativa tornou-se mais e mais uma matéria de divisão e conflito ideológico
nos EUA. Mas Nixon não ficou tempo suficiente no poder para reverter a posição do executivo em relação a
políticas anti-discriminatórias e de ação afirmativa. O governo Carter garantiu que essas continuassem a se
multiplicar, aplicando, através do EEOC, a teoria do impacto desproporcional para regular políticas relativas
ao emprego.
Uma vez descontado o longo hiato que vai da Reconstrução até o Civil Rights Act de 1965, o legislativo
também assume um papel ativo no combate a discriminação racial nos EUA. Além de seu papel ativo na
aprovação dos atos de 1965 e 1972, devemos notar que o Congresso não criou empecilhos para o ativismo do
executivo na implementação de políticas anti-discriminação e de ação afirmativa – um dado importante dada
a soberania que o poder legislativo tem sobre o executivo em tempos de paz.
Por fim, o papel da Suprema Corte, como representante máxima do poder judiciário foi, na longa
história das relações raciais nos EUA que vai até meados da década de 1970, como esse artigo pretendeu
demonstrar, no mínimo duvidoso, quando não conservador. O estilo abertamente racista da decisão do caso
Dredd Scott foi abandonado após a Guerra Civil, contudo, a Corte continuou se opondo sistematicamente a
4
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Bárbara Grutter v. LeeBollinger et al. e Jennifer Gratz and Patrick Hamacher v. Lee Bollinger et al., 1 de abril de 2003.
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JUNIOR, J. F. O combate à discriminação nos EUA:...
medidas de ampliação dos direitos reais dos ex-escravos, vide a anulação do Civil Rights Act de 1875 e a
decisão Plessy v. Ferguson, que permitiram de fato a continuação de práticas discriminatórias. Essa orientação
só foi revertida com Brown v. Board of Education, uma decisão que apesar de simbolicamente importante,
teve conseqüências práticas pífias. Com o crescimento do ativismo anti-discriminatório do executivo e do
legislativo nos anos 1960, a Suprema Corte adquiriu uma postura mais progressista, permitindo assim que as
iniciativas dos outros poderes, inclusive a adoção da teoria “revolucionária” do impacto desproporcional, não
fossem declaradas inconstitucionais. Porém, já ao final da década de 1970, a Corte começou a limitar a base
de justificação dessas políticas, e, conseqüentemente, sua aplicação.
Como vimos, a história da interação entre os poderes republicanos constituídos e a luta por direitos
civis e políticos dos negros americanos mostra que a Suprema Corte, quando comparada aos outros poderes,
não teve um papel decisivo eminentemente positivo. Ou seja, essa instituição muitas vezes foi contrária ao
alargamento e capilarização do acesso a direitos da minoria negra americana. Dada a importância política e
social da questão racial naquele país, essa evidência não pode ser desprezada. Em uma contribuição futura,
analisaremos mais de perto os aspectos legais e constitucionais suscitados por casos de discriminação racial
escolhidos pela Suprema Corte em décadas mais recentes.
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HISTÓRIA
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 53-61, 2007.
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A caminho da Terra Prometida socialista
Um estudo sobre o discurso e a acção dos manipuladores de tabacos de
Lisboa
Rui Manuel Brás*
Resumo: Os manipuladores de tabacos de Lisboa estiveram particularmente activos no movimento
socialista dos inícios dos anos 1870. Nessa época faziam parte da Fraternidade Operária, uma organização
com ligações à Internacional. Porém, seguiu-se um período de descrença na possibilidade de alcançar a
“Terra Prometida” do socialismo através da estratégia definida pelos seus líderes. Tal não obstou a que o
socialismo se mantivesse como o discurso unificador dos operários dos tabacos, isto é, o ideal em torno
do qual se uniram e mobilizaram estes operários para lutarem por um mundo melhor. Em geral, da forma
como foi expressa pelos manipuladores dos tabacos, esta ideologia pode ser identificada com a corrente
possibilista da Internacional, mas foi de alguma forma elaborada e adaptada às condições particulares dos
operários tabaqueiros de Portugal.
Abstract: the present article has the finality to analyze the role of the three powers, executive, legislative
and judiciary in the evolution of the affirmative actions polices in the United States of America, since
your creation in 1950´s until nowadays, with especial emphasis in the main institution of judiciary, the
Supreme Court. Even though in the recent literature exists some enthusiasm in relation to the suppose
republican virtues of the judiciary, vis-à-vis others powers, the analysis of the present example shows that
Supreme Court, when compared to the actuations of the executive and legislative, has not have a mostly
decisive positive role. So, this institution many times has been against to the spreading and vaporization
of the access to rights for the african-american minority.
Quem sinceramente deseja ver caminhar o operariado na senda do progresso, da sua libertação do regime
capitalista, vai modestamente trabalhando pouco a pouco, teimando na luta encetada, esperançado que num
futuro mais ou menos próximo, o operariado há-de enfim chegar à terra da promissão socialista. 1
I.
A acção colectiva operária visando a satisfação de reclamações que afectavam a vida quotidiana dos
operários, não era desprovida de uma coerência conceptual que caracteriza todas as formas de experiências
da classe operária. Ou seja, as ideias e as crenças estão inscritas no quotidiano dos operários, enformando
culturalmente o conjunto da vida social. Por isso, a adopção de uma determinada ideologia, neste caso o
socialismo, como discurso unificador de uma classe, neste caso a classe operária,2 não foi imposta de fora,
mas correspondeu à elaboração de um novo enquadramento simbólico e à representação que os operários
faziam da realidade em que viviam. Procurar as formas simbólicas através das quais os operários dos tabacos
experimentavam o mundo, é uma tarefa que implica ir para além do discurso e englobar todas as formas
*Investigador do Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa (ISCTE) e docente do Instituto Português de
Administração de Marketing.
1
“Palavras Simples”, A Voz do Operário, nº935, 18º ano, 26-9-1897, p.1.
2
Cf. Gribaudi (1987), p.169 e Auslander (1993), p.161.
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BRÁS, R. M. A caminho da Terra Prometida socialista...
inteligíveis doutras actividades, acontecimentos e instituições.
Estudar a ideologia é uma parte importante da experiência de classe que pretendemos descrever, como
forma de compreender a emergência e o desenvolvimento da consciência de classe. A dificuldade maior está
na reconstrução do discurso ideológico a partir de fontes fragmentárias, onde pretendemos encontrar uma
coerência interna. Sendo nossa intenção perceber os operários como agentes activos e não como uma classe
intelectualmente inerte e sujeita à imposição de construções ideológicas de teóricos burgueses, analisaremos
todas as experiências como afirmações com sentido, como textos interrelacionados.
Começaremos pela abordagem da expressão escrita do socialismo, considerando-a como construção
social e expressão da prática dos manipuladores dos tabacos, enquanto sector específico da classe operária
portuguesa. Num segundo tempo, veremos como a posição ideológica e a acção desenvolvida na defesa dos
seus interesses, influiu na integração dos tabaqueiros no movimento operário e socialista nacional.
II.
Os tabaqueiros constituíram uma das mais importantes secções profissionais da Associação Fraternidade
Operária fundada em Janeiro de 1872, com cerca de 1640 inscritos, 960 homens e 680 mulheres.3 O entusiasmo
que as ideias socialistas veiculadas pela Fraternidade Operária provocaram entre os manipuladores de tabacos,
foi evidente em momentos como aquele em que, numa só assembleia, foram aprovados 590 novos sócios.4
Desde então, os operários dos tabacos identificaram-se e foram identificados com o socialismo.5
Vivendo nos anos 70 um processo de proletarização intenso, sem qualquer protecção coerente por parte
do Estado numa fase em que as relações laborais eram más, o socialismo aparecia aos tabaqueiros como a
ideologia que correspondia à sua representação da realidade e às expectativas para o futuro.6
Não podemos dizer que se tratava de uma ideologia claramente definida no pensamento dos dirigentes
ou dos operários em geral. Seria um socialismo difuso, sem grande elaboração teórica, assente em princípios
como a associação, a igualdade, a justiça e o orgulho da força produtiva.
Saídos de um regime de monopólio em que, apesar de tudo, alguns laivos de paternalismo da parte
dos “caixas” (nome dado aos contratadores do tabaco) amenizavam as condições de vida,7 os operários
confrontavam-se com um sistema baseado no egoísmo e na concorrência. O seu único suporte estava na
associação, fosse ela a Fraternidade Operária ou a Associação União Fraternal dos Operários da Fabricação
de Tabacos (UF), primeira associação de socorro mútuo dos tabaqueiros, fundada em 1863. Através dela, os
operários acresciam a sua capacidade de cristalização identitária e representavam a sua autonomia cultural.
O sentimento de identidade cristalizado na “associação de classe” é uma componente fundamental
da consciência de classe operária, que leva à resistência organizada dos que lutam contra a exploração, pela
liberdade e pela respeitabilidade dos trabalhadores.
O processo de proletarização, durante o qual se desenvolve a consciência de classe, afecta o modo de
vida, a cultura tradicional e a estrutura de solidariedades enraizada numa forma pré-capitalista de produção
industrial. As solidariedades anteriormente limitadas ao quadro do ofício ultrapassam esses particularismos e
3
Goodolfim (1974), p.159. A Associação Fraternidade Operária foi fundada por iniciativa de Antero de Quental, Nobre
França, José Fontana e Brito Monteiro, membros do grupo original que esteve na origem da criação da secção portuguesa da
Associação Internacional dos Trabalhadores. O seu primeiro órgão de imprensa foi a revista Pensamento Social.
4
Pensamento Social, nº28, 1º ano, 27-10-1872, p.3.
5
“Juntamente com os chapeleiros, marceneiros e metalúrgicos, os tabaqueiros constituíram um dos mais sólidos apoios
que o socialismo reformista, ligado a José Fontana e Luís Figueiredo, teve em Portugal”, Mónica (1992), p.39.
6
Até 1864, a indústria dos tabacos foi gerida em sistema de monopólio do Estado contratado com grupos de capitalistas.
Desde o início do ano de 1865, a produção de tabacos foi liberalizada, originando a abertura de cerca de 40 unidades de produção
de dimensão variável, das quais 18 em Lisboa. Após a tentativa frustrada de criação de um grémio em Agosto de 1887, o gofverno
fez passar a lei de 22 de Maio de 1888 que pôs fim à liberdade de fabrico, passando a administração da indústria para as mãos
do Estado. Foi o período da régie, de grande importância para a melhoria das condições de vida e de trabalho dos operários
tabaqueiros. Em 1891, as necessidades financeiras do Estado português tornaram inevitáveis o regresso do monopólio contratado
com capitalistas, neste caso a Companhia dos Tabacos de Portugal. Esta situação durou até 1927, quando os dirigentes da ditadura
militar implantada a 28 de Maio do ano anterior, optaram por um regime de duopólio envolvendo a Companhia dos Tabacos e a
empresa A Tabaqueira.
7
Foi o caso de Costa Lobo, um dos administradores mais elogiados pelos tabaqueiros. Quando abandonou as suas
funções, um grupo de operários charuteiros dirigiu-lhe uma carta na qual o consideravam “um protector desvelado, a quem
devemos talvez mais do que áqueles que nos deram a existência”, um “bom chefe”, “um modelo que deve servir de incentivo
áqueles que, em igual posição, abusam do seu lugar, tornando-se déspotas opressores dos seus subordinados”, “um bom chefe e
amigo”. Carta datada de 5 Maio in A Federação, nº33, Vol. II, 15-5-1858, p.3. A ele se terá ficado a dever a introdução do “rancho”
(nome dado ao almoço) fornecido pela companhia, na fábrica de Xabregas. Cf. AVRJ, “Apontamentos para a história do operário”,
O Protesto, nº323, VII ano, 23-10-1881, pp.1-2.
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dão lugar à solidariedade de classe.
Sem o auxílio do Estado, os operários só podiam contar com a solidariedade para ultrapassar as
dificuldades quotidianas, como a doença, a inabilidade ou a morte. As primeiras associações dos manipuladores
de tabacos, como a já mencionada União Fraternal ou a Associação da Classe dos Manipuladores de Tabacos
(ACMT), desempenhavam essas funções, nomeadamente na distribuição de benefícios. Neste sentido,
exprimiam a comunidade moral deste grupo operário, ao unir os seus sócios através do auxílio mútuo e de
laços que se prolongavam para lá da morte.8
Esta função da associação, a de ensinar e reforçar a solidariedade entre os operários e a de formar
a identidade de classe, era essencial para a defesa perante o inimigo – o capital. Só através da união na
associação, os tabaqueiros teriam a capacidade para defrontar semelhante poder e prosseguir o caminho da
sua emancipação:
A união pela associação, só ela pode, e só ela tem força de terminar essa árdua guerra do capital com
o trabalho e promover a nossa emancipação que tanto precisamos. Mas para isso é mister a União, é
mister que todos se unam pelos sagrados laços da inseparável fraternidade, que se alistem debaixo da
nossa bandeira, porque ela tem por divisa a igualdade, fraternidade e justiça.9
A igualdade, a fraternidade e a justiça eram os conceitos inscritos na bandeira associativa.
A igualdade entre todos os Homens, porque todos podem ser úteis à sociedade humana. Por maioria
de razão, os operários, os detentores da força de trabalho, hábil, criadora de riqueza, não deveriam ser
desconsiderados por aqueles que, por uma razão ou por outra, enriqueceram com o seu trabalho. O trabalho,
liberto pelo Iluminismo dos constrangimentos ideológicos a que estava preso, era finalmente entendido como
motor da Humanidade:
A classe operária desempenha um importante papel no teatro do mundo porque dela derivam todas as
outras. É fora de toda a dúvida que é pelo trabalho que o homem se nobilita e imortaliza, porque é ele
que constitui a riqueza e a opulência das nações. É o trabalho a causa primordial de todo o movimento
e a mola real da civilização e do progresso, porque é ele que põe em prática a ciência humana, a qual,
sepultada na mente não era mais de que uma fantasia e um ideal irrealizável10
O trabalho é sinónimo de criatividade e emanação do sublime. O operário manual não podia ser tratado
como um escravo, até porque também era capaz de ter talento. O manipulador de tabaco Pedro José de Carvalho
não escrevia poesia e peças de teatro? Não havia outros envolvidos na representação teatral ou na música? Esta
era uma prova da capacidade de elevação dos trabalhadores. Tudo dependia de lhes darem as condições para
que esse talento desabrochasse. Condições de igualdade ao nível da instrução, por exemplo:
Dizem esses desumanos potentados pretendendo justificar o seu repreensível procedimento, que cada
um tem o direito de viver com a grandeza e a decência relativas à sua posição. Mas quem os elevou a
esse estado de grandeza não fomos nós os operários? Certamente que sim, porque o capital procede ou
deve proceder do trabalho. Nós que lhes proporcionamos todas as comodidades não teremos direito a
gozar também algumas, e a mandarmos educar os nossos filhos? O talento não é privilégio dos ricos, e
por isso se os filhos do povo fossem instruídos como deviam ser não se perderiam algumas inteligências
que passam despercebidas por não serem cultivadas11
Daí a importância que a instrução teve para a classe operária, e em particular para os manipuladores de
tabacos, criadores dessa grande instituição do ensino que foi a Sociedade de Instrução e Beneficência “A Voz
do Operário”, cuja primeira escola foi inaugurada em 11 de Outubro de 1891.12
Chegando a ter mais de três mil alunos de ambos os sexos em escolas espalhadas por toda a cidade no
8
Em Portugal, as “associações de classe” conjugavam a função de socorro mútuo e a função sindical. Muitas vezes
nascidas a partir de associações mutualistas, evoluíram no sentido de se tornarem verdadeiros sindicatos. A Associação de Classe
dos Manipuladores de Tabacos de Lisboa foi fundada no início dos anos 80, em estreita relação com o jornal A Voz do Operário e
a sociedade de instrução e beneficência com o mesmo nome.
9
“Divagações”, A Voz do Operário, nº80, 3º ano, 24-4-1881, p.2.
10
Custódio Braz Pacheco, “Os operários”, A Voz do Operário, nº1, 1º ano, 11-10-1879, p.3.
11
Idem, ibidem.
12
A Voz do Operário, nº625, 13º ano, 18-10-1891, p.4.
13
“Sociedade de Instrução e Beneficência A Voz do Operário”, A Voz do Operário, nº1358, 27º ano, 5-11-1905, p.2.
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início do século XX, a “Voz do Operário” tornou-se um símbolo do direito à instrução para todos, mesmo
(ou principalmente…) aqueles que não tinham condições económicas para estudar ou pôr os seus filhos a
estudar. Através da sua obra, os manipuladores de tabacos procuravam distribuir a luz da instrução aos que
eram vítimas da injustiça que caracterizava a sociedade capitalista.14
Apesar da retórica socialista apelar à igualdade, como no caso do acesso à instrução, a sua ética
universalista não incluía as mulheres. Ao excluir as mulheres da primeira associação da classe, a União
Fraternal, os seus dirigentes perpetuavam a ideia segundo a qual a actividade pública era codificada como
masculina, o que mostra que neste caso a cultura operária estava em conformidade com a cultura nacional.15
As distinções de género em que essa ideia assenta representavam a mulher como pertencendo à esfera privada
e como um ser emocional, fraco e dependente.
Se bem que na ACMT a participação feminina fosse permitida e até incentivada, o momento de viragem
na posição das mulheres nas “associações de classe” dos manipuladores de tabacos ocorreu durante a Primeira
República (1910-1926). Desde a implantação do novo regime, mais exactamente a partir de 1914, começamos
a encontrar operárias eleitas para cargos de relevo. Para isso terá contribuído o aumento do peso numérico das
mulheres na mão-de-obra tabaqueira e a sua cada vez maior importância económica.16
O capitalismo era visto como um sistema onde a justiça não podia existir. Baseado na concorrência
que podia levar ao encerramento de fábricas, à falta de trabalho e à degradação da condição dos operários,
como os manipuladores de tabacos cedo compreenderam desde 1865, o capitalismo levava ao egoísmo e à
imoralidade.
Através das acções colectivas, os trabalhadores tentavam equilibrar um pouco os pratos da balança, mas
isso não chegava. Uma outra solução era a possiblidade de fugir à proletarização através do cooperativismo.
Esta forma de associação, não muito bem vista em alguns meios socialistas, satisfazia pelo menos
alguns sectores qualificados que, como os charuteiros, sentiam a sua posição ameaçada pela proletarização.
A organização do trabalho que a cooperativa prometia evitaria o caos da concorrência capitalista, o
desenvolvimento do trabalho assalariado e a total desqualificação do ofício, num quadro colectivo e não
individualista. Este esforço para manter as tradições artesanais e fugir às imposições da lógica do mercado
teve vários episódios, todos eles instáveis e de curta duração entre os manipuladores de tabacos.17
A primeira tentativa data de 1870 e o seu objectivo era apenas o de reunir fundos para emprestar
aos associados mediante o pagamento de um pequeno juro. A única cooperativa que tinha por objectivo a
produção de tabacos foi a “Progresso e Trabalho”, fundada em 1876 por Júlio Maria da Costa, Eusébio Luís de
Paula e Joaquim José da Rosa. Meio e não fim, a cooperativa voltou a ser equacionada como solução para os
operários grevistas da Regalia em 1882 e, para escândalo de outros socialistas, foi apresentada por Corregedor
da Fonseca nas páginas da Voz do Operário, como a “base de toda a organização operária”.18
Fosse como fosse, a cooperativa acabou por não vingar como alternativa ao sistema capitalista entre
os manipuladores de tabacos.
A conquista da justiça passava, então, por outros meios.
Não pela guerra de classes que levasse à aniquilação de uma pela outra. Não era esse o tipo de socialismo
defendido pela Fraternidade Operária, nem pelos manipuladores de tabacos.
13
Em Portugal não há guerra de classes, e não será o socialismo que virá declarar a guerra social. Nutrimos
a esperança de que assim continuará a suceder. (…) Não se cavou ainda como nos países industriais um
abismo insuperável, e cada vez mais fundo entre pobres e ricos. Não há hostilidade entre classes. Há
A Sociedade “A Voz do Operário” ainda existe e mantém uma escola devidamente integrada no sistema de ensino
português.
15
Sobre a fraternidade como forma sóciocultural de solidariedade e comunidade explicitamente masculina, ver Aminzade
(1999), pp.103-104
16
A primazia coube à Associação de Classe do Pessoal dos Tabacos, na qual aparecem as primeiras mulheres escolhidas
como delegadas, se bem que ainda suplentes: Olímpia dos Santos e Maria Gracinda Donas. Logo no ano seguinte, 1915, esta
passou a delegada efectiva. Na Associação de Classe dos Manipuladores de Tabacos, a mais antiga, as mulheres entraram para
cargos nos corpos gerentes mas apenas em 1918: Amélia Maria dos Santos foi eleita 1ª secretária da mesa da Assembleia Geral.
Entre 1914 e 1926, dezoito mulheres ocuparam cargos de responsabilidade nas associações de tabaqueiros. Esta tendência não
seria contrariada nos primeiros anos do Estado Novo: nas direcções dos sindicatos nacionais de 1933 e 1936, encontrámos doze
mulheres, quatro delas antigas dirigentes da ACMT.
17
Segundo Jürgen Kocka, na Alemanha dos anos 60 e 70 do século XIX, entre os sectores atraídos pela ideia
cooperativista, incluíam-se os impressores, os alfaiates, os sapateiros e também os operários dos tabacos. Cf. Kocka (1984), p.102.
Para Portugal, e no mesmo período, temos, além dos tabaqueiros, os casos dos fundidores (“Indústria Social”) e dos sapateiros
(“União Operária”).
18
Ver a reacção in O Protesto Operário, nº7, II ano, 22-4-1883, p.4.
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pelo contrário dumas para outras uma benévola aceitação, que ainda não podem anular completamente
as modernas invasões do feudalismo capitalista e da agiotagem crescente.19
Assim se escrevia n’O Pensamento Social, órgão da Fraternidade Operária, em 1872, marcando uma
ideia que continuaria a ser defendida pelos tabaqueiros durante décadas, segundo a qual a conquista da justiça
não implica a destruição do capital, mas antes a possibilidade de harmonizar o trabalho e o capital.
Em 1887, apelava-se à Companhia Nacional de Tabacos:
deve harmonizar o capital trabalho com o capital monetário, porque a aristocracia de um não é inferior
à aristocracia do outro, e repartindo com aqueles que os ajudam a enriquecer não faz mais do que o seu
dever, é preciso que se fraternize o capital com o trabalho, e cesse essa exploração assaz indigna que
outra coisa não é mais do que um odioso que já há muito devia ter acabado.20
Retomando o tema da nobreza do trabalho, mas sem a retirar ao capital, fazia-se a apologia da conciliação
das classes. Este conceito seria retomado em 1895, agora já de novo sob o monopólio, em documento enviado ao
Conselho de Administração da Companhia dos Tabacos de Portugal (COTAPO): “A classe dos manipuladores
de tabaco tem o maior respeito pelo digníssimo Conselho de Administração e pela lei, e o seu mais ardente
desejo consiste em harmonizar quanto possível os interesses do capital com os do trabalho”.21
Não havia sonhos de expropriações, nem sequer de partilhas de riqueza com os operários. Desejavase a igualdade e a justiça sem tirar nada a ninguém, mas dando aos que trabalham aquilo a que têm direito
por Natureza: “Não queremos dizer com isto que os ricos repartam os seus haveres bem ou mal adquiridos
connosco, o que desejamos é que não seja tudo para o capital monetário e nada para o capital trabalho, que
haja justiça e equidade, que não vivam os ociosos na opulência e os que trabalham na miséria, e, finalmente,
que deixem de haver escravos e senhores”.22
Harmonizar as classes para trazer a justiça à sociedade. Nesse processo, a união dos operários na
associação seria a solução quase milagrosa nesta “nova cruzada” que os operários encetavam:
Se assim fizermos, aparecerá depois ante essa cáfila devoradora que nos arranca a vida por qualquer
moeda, aparecerá, dizíamos, o fruto do nosso trabalho – a Moral! Se, assim mesmo a sua raiva exploradora
não transigir, acharemos ainda o fruto da Moral – a Revolução! Com este recurso derradeiro teremos
refreado a sanha aos danados, e colocá-los-emos, mansos e moralizados, ao nosso lado, ao lado dos
trabalhadores – no campo da Igualdade!23
A vitória pela moral ou pela revolução seria o resultado inevitável do trabalho associativo, mas uma
vitória pacífica através da igualdade de todos os Homens. Era a “insurreição pacífica do proletariado” que se
adivinhava, o triunfo da justiça através da moral.
Há uma quase inevitabilidade nestas palavras: a causa é justa, o bem deve triunfar, por isso a felicidade
virá naturalmente.
Era uma “cruzada” inspirada nos princípios da justiça e da humanidade, não contra os capitalistas mas
contra um sistema:
Enquanto uns dispõem de tudo a seu belo prazer, outros, o grande número, os que trabalham, esses
passam uma vida cruel de misérias e provações. Mas o verdadeiro mal está não nos homens, mas sim
na organização da sociedade; é ela que faz destas aberrações, em que uma pequena minoria maneja a
grande massa do povo acorrentada há longos séculos, obedecendo-lhe cegamente24
O que estava em causa era a organização económica e social de que os homens eram vítimas. Essa
devia ser modificada, passando a obedecer a outras regras que não as do mercado, mas sim as da economia
moral e do direito natural.
O socialismo não seria uma vingança mas um meio de transcender a exploração e criar uma sociedade
justa. O socialismo traria não a guerra mas a paz, não o ódio mas a harmonia universal, a justiça, a igualdade
e a fraternidade. Semelhanças com a religião cristã no conteúdo e na forma: “Desejo, esperança ou sonho,
“Paz aos Homens”, O Pensamento Social, nº6, 1º ano, Março 1872, p.1.
20
“Monopólio do tabaco”, A Voz do Operário, nº380, 8º ano, 6-2-1887, p.1.
21
“Classe de manipuladores de tabaco”, A Voz do Operário, nº801, 16º ano, 3-3-1895, p.1.
22
Custódio Braz Pacheco, “Os operários”, A Voz do Operário, nº1, 1º ano, 11-10-1879, p.3.
23
O Pensamento Social, nº40, 2º ano, 19-1-1873, p.
24
“A situação do operariado perante as classes superiores”, A Voz do Operário, nº882, 17º ano, 20-9-1896, p.1.
19
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o socialismo quer paz: diremos melhor, o socialismo não só oferece a paz, vem ele trazer-vos a paz. Vem
anunciar-vos – a boa-nova: vem dizer-vos os meios práticos pelos quais podeis realizar o pensamento de amor
do Divino Mestre. Como ele, o socialismo vos afirma que a sua doutrina se contém nesta palavra: Amai-vos
uns aos outros”.25
A genealogia cristã era assumida de forma evidente pelos primeiros socialistas. O socialismo era o
novo evangelho, um quinto evangelho que trazia a via prática para completar o caminho iniciado por Cristo.
Qual era essa via? Era a conquista do mundo pelo trabalho e pela palavra, não pela força: “pelo trabalho
e pela palavra temos a força precisa para sacudirmos o jugo de ferro que nos quiserem impôr”.26 A revolução
assumia deste modo a forma de um fenómeno religioso e político que seria levado a cabo pela pregação, pelo
exemplo moral, pela conversão espiritual.
Nessa missão, o operário tornava-se o apóstolo do novo evangelho. Tal como aos seus seguidores
Cristo enaltecera a humildade, a bondade e o desapego dos bens materiais, também o difusor do socialismo
devia ser um exemplo de moralidade em toda a sua vida. Só assim poderia a sua palavra ter valor junto dos
trabalhadores:
O dever dos seus propagadores sinceros e justos, deve consistir na verdadeira orientação às classes
proletárias, dando-lhe uma feição nobre e justa, a fim deles compreenderem o caminho das suas
reivindicações e oferecerem uma sólida resistência às ganâncias do capital que as explora. Para se
propagar o socialismo, para se ser amigo da humanidade, é mister que se tenha um coração bem formado,
uma alma generosa e desinteressada, propensa ao bem, não trocar a modéstia pela vaidade e proceder
lealmente. Assim as classes proletárias seguirão de boa fé os apóstolos devotados que lhe apareçam,
caminharão avante, seguindo os seus amigos, os amigos da humanidade; escutar-lhe-ão com interesse
os seus conselhos e saberão cumprir estritamente o seu dever, qual é o da sua emancipação.27
O militante socialista seria o portador da nova mensagem de esperança na perfectibilidade do Homem:
a igualdade, a justiça, a fraternidade, a paz, eram possíveis dentro de um quadro ideológico de crença na
capacidade do ser humano para se aperfeiçoar e aperfeiçoar a sociedade em que vivia.28
Esse dia parecia próximo nos anos 70 do século XIX. Havia uma quase certeza de que a redenção,
ou seja, a emancipação dos trabalhadores, estava para breve sob a acção da Internacional e da Fraternidade
Operária:
Quando entrámos no movimento operário, em 1872, entusiasmados com as teorias socialistas, que para
nós surgiam como raios vermelhos em alvorada de Maio, julgámos, com a ingenuidade dos poucos
anos e a crença no ideal que abraçámos, que a hora redentora para o operariado ia prestes soar, que a
exploração do homem pelo homem breve acabava, que o reinado da justiça em pouco tempo seria um
facto.29
À crença no triunfo rápido do socialismo sucedeu-se a desilusão. Não o abandono do ideal, mas o
desânimo pela impossibilidade de conseguir o que parecia tão perto.
Os manipuladores de tabacos, tão importantes no seio da Fraternidade Operária, abandonaram-na
na sequência da derrota da greve da fábrica Luso-Britânica em 1873.30 Esta derrota fez com que os lideres
tabaqueiros tomassem consciência de que a estratégia reivindicativa e grevista até então seguida, havia
conduzido os trabalhadores a um beco sem saída. O processo de modernização da indústria prosseguia, a
introdução da mão-de-obra feminina lançava cada vez mais operários no desemprego, o capitalismo parecia
cada vez mais forte.
A crise que abalou o movimento operário nos anos seguintes correspondeu também a um período de
reflexão para alguns militantes. Os caminhos a seguir para que o socialismo triunfasse não podiam repetir os
erros da Fraternidade Operária. A euforia do início dos anos 70 deu lugar a uma acção que se pretendia mais
reflectida, mais realista, pelo menos na vertente do socialismo que predominou entre os manipuladores de
tabacos.
“Paz aos Homens”, O Pensamento Social, nº6, 1º ano, Março 1872, p.1.
Custódio Braz Pacheco, “Os operários”, A Voz do Operário, nº1, 1º ano, 11-10-1879, p.3.
27
“O 1º de Maio e os manipuladores de tabaco”, A Voz do Operário, nº1070, 21º ano, 29-4-1900, p.2. Comparar com as
palavras de S. Paulo in 2 Tim 2, 3-13.
28
“A situação do operariado perante as classes superiores”, A Voz do Operário, nº882, 17º ano, 20-9-1896, p.1.
29
“Palavras simples”, A Voz do Operário, nº935, 18º ano, 26-9-1897, p.1.
30
“Um esclarecimento”, A Voz do Operário, nº706, 14º ano, 7-5-1893, p.2.
25
26
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O socialismo reformista, com o acento tónico na luta económica, continuou a ser o discurso unificador
dos tabaqueiros, nomeadamente nos anos 80 e 90 do século XIX. Nesse período de resignação e aceitação, os
operários tomaram consciência de que a profecia socialista se não cumprira, o capitalismo parecia estar para
ficar. Mas a identidade de interesses entre patrões e operários que vimos nascer no período da administração
do Estado (1888-1891), não implicou que estes aceitassem a economia liberal.31 Nunca tendo pugnado pelo
radicalismo, os manipuladores de tabacos optaram por uma via mais negocial e reformista, que permitisse
melhorar de imediato a sua condição. A aceitação da partilha dos lucros poderá ser um sinal dos compromissos
feitos: os operários beneficiavam com a divisão da riqueza que eles próprios produziam, abdicando, pelo
menos no momento, de quaisquer ideias de subversão da sociedade. Com esses compromissos, escreveu um
operário, os tabaqueiros podiam não ter alcançado a felicidade, mas estavam melhor do alguma vez haviam
estado.32
Da mesma forma que a via negocial não destruiu a capacidade de luta, também achamos que não
impossibilitou que os operários dos tabacos continuassem a ter uma ideologia socialista. Mesmo não
esperando o triunfo da revolução para breve, o socialismo continuou a ser o discurso unificador, e serviu
de base ideológica à contestação sempre que o paternalismo foi posto em causa: a justiça, a igualdade e a
fraternidade (ou solidariedade), continuaram a ser parte integrante do discurso dos tabaqueiros pelo menos até
aos anos 30 do século passado.
III.
Contudo, a opção reformista implicava dificuldades no seio do movimento operário para quem
a escolhia. O seu desinteresse pela questão do poder político e a concentração dos seus esforços na luta
económica, provocavam polémica e a oposição dos que se consideravam os verdadeiros socialistas.
As divergências ideológicas entre a ala sindical e a ala política do movimento socialista são ineludíveis
e podem ser acompanhadas em sucessivos artigos publicados na Voz do Operário e no Protesto Operário.
Os defensores da corrente política acusavam os dirigentes associativos dos manipuladores de tabacos
de não terem uma posição ideológica bem definida, de cederem ao capitalismo. Em comentário a um artigo de
Braz Pacheco33 no qual que este se afirmava republicano na política e socialista na economia, escreve-se no
jornal do Partido Operário Socialista:
Quando se trata de política, é republicano, defende o capital, a supremacia burguesa; quando se trata
de operários é socialista, defende o trabalho e a supremacia do povo trabalhador. (…) republicanos
TODOS NÓS O SOMOS; mas que aqueles que só se contentam com a forma republicana, continuam
a querer na essência as coisas tais quais estão, isto é – a supremacia do capital; e que os que trabalham
pelo triunfo do socialismo querem não só a república, mas também a supremacia do trabalho, com todas
as suas consequências.34
Não havia conciliação possível – ou se era pelo trabalho ou pelo capital:
A aliança deste com aquele, é impossível; pois que dessa aliança resultaria a existência dos ricos e
pobres, de servos e patrões, de governados e governantes, tal qual hoje existe, e, portanto, a miséria, a
dependência e a servidão. Todo o partido, pois, que for pelo capital, será contrário aos operários, quer
ele seja republicano unitário, oportunista, federalista, radical, o que lhe chamarem; e assim, também,
todo o partido que for pelo trabalho, será contrário aos capitalistas, e só pode ser socialista.35
As posições assumidas pelos manipuladores de tabacos em relação ao movimento operário ajudaram
também a que se lançasse a suspeita sobre o valor da sua adesão ao socialismo.
As acusações de isolacionismo, de falta de solidariedade e de defesa de interesses corporativos,
31
A lei de 22 de Maio de 1888 consagrou direitos essenciais para os operários: os delegados dos operários seriam ouvidos
para a elaboração do regulamento fabril, estabeleceu-se uma caixa de reformas, a garantia de 8 horas de trabalho diário, a partilha
dos lucros, a necessidade de motivo justificado para o despedimento de um trabalhador, entre outras medidas.
32 “
A régie”, A Voz do Operário, nº516, 10º ano, 15-9-1889, pp.1-2.
33
Custódio Braz Pacheco foi um dos fundadores do jornal dos manipuladores de tabaco, A Voz do Operário, e membro
da sua redacção desde o primeiro número. Politicamente activo pelo menos desde 1860, desempenhou também vários cargos na
União Fraternal e na “associação de classe”. Faleceu em Dezembro de 1883.
34
“Os manipuladores de tabaco”, O Protesto Operário, nº29, II ano, 23-9-1883, p.1.
35
Idem.
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generalizaram-se ao longo das duas últimas décadas de Oitocentos.
Depois do perturbado Congresso das Associações de Classe de 1892 no Porto, jamais as associações de
manipuladores de tabacos voltaram a enviar delegados a qualquer congresso operário.36 Se bem que reconhecendo
“a conveniência da federação, que bem organizada é útil”, os dirigentes associativos consideravam haver
assuntos mais prementes a tratar e a Federação das Associações de Classe foi votada ao desprezo.37
A esta decisão juntava-se o desinteresse dos manipuladores de tabacos pela participação nas
comemorações do 1º de Maio organizadas pela União operária. Desde 1899, os manipuladores de tabaco
deixaram de nomear delegados à organização da manifestação e em 1900 não participaram mesmo no
desfile.38
Em contrapartida, os operários dos tabacos prestavam homenagem a Oliveira Martins, Augusto
Fuschini e Dantas Baracho, inaugurando os seus retratos na sede da “associação de classe”, em agradecimento
pelas suas intervenções em benefício dos operários no período da administração estatal, no parlamento ou no
tribunal arbitral.39 Não participavam nas manifestações do 1º de Maio, um “ritual da classe operária”, mas
incluíam-se nas cerimónias fúnebres do rei D. Luís ou exprimiam a intenção de se incorporar no cortejo cívico
em homenagem a Camões.40
Esta participação nos rituais cívicos revela o desejo de integração por parte deste sector da classe
operária, de obtenção de uma justiça mais simbólica do que real, pois durante essas cerimónias ser-lhe-ia
concedido reconhecimento e estatuto social e o seccionalismo do trabalho dissolver-se-ia na ordem social.
O crescente afastamento dos manipuladores dos tabacos em relação ao movimento operário foi criticado
pela Federação das Associações de Classe e por dirigentes do Partido Socialista Português (PSP) no início do
século XX.
Em resposta a um pedido de apoio formulado pelos manipuladores de tabaco do Porto preocupados
com as possíveis consequências negativas da renegociação do contrato de arrendamento do monopólio, o
socialista António Marques afirmou que “a classe dos manipuladores de tabaco tem fugido à acção colectiva do
operariado organizado na luta contra o capital. Sentiu-se bem com as garantias que lhe deu o antigo contrato e
isso bastou, para que fizesse causa à parte do resto da organização operária”. Por isso, e pela posição partidária
que seguia, rejeitava qualquer apoio aos manipuladores de tabaco que tencionavam entregar uma representação
ao Rei. Bento da Cruz classificou os tabaqueiros “de incoerentes e ingratos para com o partido operário, razão
porque nem a despeito do próprio espírito de solidariedade se colocará ao lado deles”.41
São tomadas de posição relativas aos tabaqueiros do Porto, mas que se podem generalizar aos da
capital. A estas críticas juntavam-se outras relativas às associações operárias que preferiam aproximar-se de
indivíduos que, por mais socialistas e amigos da classe operária que se dissessem, eram partes integrantes da
classe burguesa.
36
O Congresso das Associações de Classe de 1892 ficou marcado pelas divergências entre marxistas, possibilistas,
autonomistas e anarquistas, acerca da manifestação do 1º de Maio. Os representantes das associações do sul do País abandonaram
o Congresso e convocaram outro para Julho do mesmo ano, a realizar em Lisboa. Neste Congresso foi reafirmada a autonomia das
associações operárias em relação aos partidos políticos, em especial o Republicano e o Socialista.
37
“Classe dos manipuladores de tabacos”, A Voz do Operário, nº652, 13º ano, 24-4-1892, p.1. Na sessão da Federação
de 29 de Julho de 1895, estiveram presentes os redactores dos jornais A Obra, A Federação e A Voz do Operário, esta representada
por José António do Carmo. Cf. IAN/TT, Arquivo do PSP, Livro 1, “Livro de Ponto da Federação das Associações de Classe. 1895
e 1896”.
38
Sobre as participações dos manipuladores de tabacos nas comemorações do 1º de Maio, ver Fonseca (1990). Em 1900,
a ACMT decidiu apenas iluminar a fachada da sede no dia 1º de Maio. Cf. “Associação de Classe dos Manipuladores de Tabaco”,
A Voz do Operário, nº1069, 21º ano, 22-4-1900, p.1.
39
Oliveira Martins ganhou a simpatia dos tabaqueiros quando foi administrador geral dos tabacos entre 1889 e 1891. Ver
as cartas assinadas por Saul Pacoldino Fernandes e outros dirigentes da ACMT datadas de 7 de Novembro de 1893 e 15 de Março
de 1894 in Espólio de Oliveira Martins, Correspondência. Cartas a Oliveira Martins. 1367 e 1368. Ver ainda o elogio a Oliveira
Martins após a sua morte, “Oliveira Martins”, A Voz do Operário, nº775, 15º ano, 2-9-1894, p.1. Fuschini teve várias intervenções
no parlamento a favor dos manipuladores de tabacos, conseguindo que a garantia das 8 horas diárias ficasse consignada na lei de
1888, serviu em muitas ocasiões de conselheiro legal da ACMT e representou os operários no tribunal arbitral ao lado de Saul
Pacoldino Fernandes. No dia 24 Abril de 1898 foi alvo de mais uma homenagem com a inauguração do seu retrato na sede da
associação e a oferta de um quadro a óleo representando uma oficina de manipulação de tabaco, in “Associação de Classe dos
Manipuladores de Tabaco”, A Voz do Operário, nº965, 19º ano, 24-4-1898, p.1. Dantas Baracho interveio na Câmara dos Pares
em defesa dos interesses dos operários aquando do debate do novo contrato dos tabacos em 1906. O seu retrato foi inaugurado em
finais desse ano. Cf. “Classe dos manipuladores de tabaco”, A Voz do Operário, nº1410, 28º ano, 4-11-1906, p.2.
40
“Manipuladores de tabaco. Ainda a questão dos dias santificados”, A Voz do Operário, nº1651, 32º ano, 18-6-1911, p.2.
41
IAN/TT, Arquivo do PSP, Livro 8, “Actas da União do 1º de Maio. Março 1903 a Outubro 1905”, acta da Sessão de 10
de Outubro de 1904.
42
Eudóxio Azedo Gneco (1849-1911) – foi o principal dirigente da ala marxista do Partido Socialista. Em 1865 começou
a trabalhar como gravador na Casa da Moeda. Militou no Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas, pertenceu
à Maçonaria entre 1870 e 1873, tendo sido eleito Venerável da Loja Razão e Justiça. Em 1871 tornou-se membro da Internacional.
No ano de 1873, este Português de ascendência italiana, foi eleito secretário-geral da secção portuguesa da AIT.
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Foi esse o teor de uma intervenção de Azedo Gneco42 a propósito do anúncio da realização de um
congresso de associações de classe, de cujas teses os relatores seriam Augusto Fuschini, João de Meneses e
Sá Pereira:
Pois não vêem os senhores, aí pelas associações operárias estarem-se exaltando, glorificando burgueses,
que jamais prestaram serviços dignos de preito à classe trabalhadora, e deixarem-se no olvido tantos
e tão dedicados operários que têm levado a sua dedicação pela nossa causa até aos mais extremos
esforços? Pois então faz-se um congresso de associações operárias e chamam-se a relatores das teses
conselheiros de Estado e republicanos burgueses?43
Palavras que não sendo directamente dirigidas à ACMT, também a podiam incluir como alvo, dadas as
homenagens a que acima fizemos referência, e que reflectem a opção política dos manipuladores de tabacos
no sentido de fazerem alianças com quaisquer indivíduos, mesmo da burguesia, que pudessem auxiliar na luta
pela satisfação dos seus interesses materiais.
Anos mais tarde, em 1926, as críticas viriam de outro quadrante, dos partidários da Internacional Sindical
Vermelha, mas o conteúdo seria o mesmo: o alegado corporativismo dos manipuladores de tabacos.44
Este afastamento do movimento operário e socialista, não impediu os tabaqueiros de participar
activamente em greves gerais e de solidariedade com outras classes após a implantação da República, e de
receber a solidariedade dos ferroviários durante a greve na Primavera de 1918.45
Mas o seu discurso ideológico não se alterou apesar das condições de maior conflitualidade vividas sob
o regime republicano.
Na sessão associativa de 30 de Janeiro de 1912, Saul Pacoldino Fernandes considerou a greve geral
“o facto mais grandioso modernamente produzido pelo operariado português”.46 Defendeu o apoio à acção
da União dos Sindicatos Operários, mas alertava para os perigos da “falta de organização sólida e material”
do protesto e para o seu “carácter fugaz”. Este velho militante socialista ecoava a experiência dos anos 70
nas suas palavras: se a greve fosse vitoriosa, “será de extraordinária grandeza o passo dado na estrada do
porvir; se se perder, é incalculável o desastre moral nas fileiras proletárias”. O dirigente tabaqueiro Joaquim
José da Rocha, secundando as palavras de Saul, lembrou o exemplo da Fraternidade Operária e do papel que
as greves impensadas e mal dirigidas haviam desempenhado no seu desmoronamento. Alertou ainda para os
“especuladores políticos” que podiam aproveitar a greve geral em seu benefício.47
O receio de que as greves mal preparadas pudessem pôr de novo tudo em causa e a desconfiança em
relação à política, eram questões que se enquadravam no discurso socialista reformista que os tabaqueiros
defendiam.
Desde cedo que a recusa da mistura da política com a luta sindical fez parte do discurso dos manipuladores
de tabacos. Na apresentação de A Voz do Operário, afirmava-se a independência em relação aos partidos
políticos e dizia-se em relação ao periódico recém-nascido: “Não lhe ensinamos política porque para o mister
a que se propõe não precisa dela”.48
Neste aspecto, verifica-se uma grande coerência dos tabaqueiros. Apesar de elementos dirigentes da
“associação de classe” terem actividade política em agrupamentos próximos ou aderentes ao Partido Socialista,
a resistência à confusão dos campos económico e político foi constante. A propósito de uma reunião contra o
grémio dos tabacos em 1887 escreveu-se na Voz do Operário: “Em todos os trabalhos da comissão de Lisboa
43
IAN/TT, Arquivo do PSP, Livro 8, “Actas da União do 1º de Maio, Março de 1903 a Outubro de 1905”, acta da sessão
de 10 de Outubro de 1904.
44
“A questão dos tabacos”, A Internacional, nº65, ano III, 15-5-1926, pp.1,3.
45
A 1ª República Portuguesa durou entre 5 de Outubro de 1910 e 28 de Maio de 1926 e, nos seus primeiros anos, foi
marcada por uma forte conflitualidade operária. A República foi derrubada por um golpe de Estado militar que originou um
período de ditadura militar até 1933. Nesta data, com a entrada em vigor da nova Constituição, inicia-se o período do Estado Novo
que, sob a direcção de Salazar (1933-1968) e de Marcelo Caetano (1968-1974), perdurou até ao golpe militar de 25 de Abril de
1974 que restabeleceu a democracia.
46
Saul Pacoldino Fernandes, operário charuteiro, foi um dos mais importantes dirigente das associações de tabaqueiros.
Desde 1882 exerceu vários cargos na Associação União Fraternal, na Sociedade “A Voz do Operário”, na Associação de Classe
dos Manipuladores de Tabaco e na Associação de Socorros Mútuos União Fraternal. Em 1903 foi presidente da direcção da
Sociedade “A Voz do Operário” e entre 1912 e 1920 ocupou o cargo de presidente da comissão administrativa da “associação de
classe”. Foi eleito membro do Conselho Federal do Partido Socialista, com voto consultivo, e membro do Conselho Central, no 1º
Congresso realizado em 1877. Morreu em 1922.
47
“Manipuladores de tabaco”, A Voz do Operário, nº1684, 33º ano, 4-2-1912, p.3.
48
A Voz do Operário, nº1, 1º ano, 11-10-1879, p.1.
49
“A questão do tabaco e os manipuladores”, A Voz do Operário, nº409, 8º ano, 28-8-1887, pp.1-2.
50
Cf. Michelle Perrot (2001), p.643.
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houve sempre o cuidado de afastar os estranhos das suas reuniões por causa dos políticos que quisessem
especular com a questão”.49 Este desejo de autonomia reflecte o medo do operário de ser apanhado, desviado
do campo de luta que conhece – o das relações laborais -, forma elementar de consciência de si comum às
classes operárias ocidentais.50 A política era mal vista pelo operário manipulador de tabaco de Lisboa porque
era um factor de divisão, enquanto o económico e o social uniam. O exemplo vinha dos seus companheiros de
indústria no Porto que, deixando-se guiar por interesses políticos, acabavam por ser usados na luta pelo poder,
sofrendo na carne a repressão policial sem, no fim, ganharem nada com isso: “alguns manipuladores que
curavam mais dos interesses da política do que com os da classe, ou mesmo porque se tinham comprometido
para com os políticos, lançaram mão da vilania da companhia e arrastaram os seus companheiros à praça
pública a fazer arruaças que teve o desastroso fim que todo o público conhece, dos últimos acontecimentos do
Porto”.51
IV.
Tendo como matriz comum às suas variantes a procura da justiça social, o socialismo foi o discurso
de resposta ao processo de proletarização adoptado por vários sectores da classe operária que interiorizaram
os seus valores alternativos democráticos, igualitários e colectivistas. Fizeram-no porque o socialismo, sendo
uma construção social, como todas as ideologias, foi uma criação colectiva de que a teoria foi a fixação em
palavra escrita do que era sentido, vivido pelos indivíduos no seu quotidiano.
O socialismo foi, assim, o discurso unificador da classe operária na sua luta pela justiça. No entanto, a
elaboração do discurso é feita por “comunidades discursivas”52 que adequam o seu conteúdo de modo a tornarse inteligível, persuasivo e capaz de ajudar a consolidar e a preservar o grupo. Não podemos, por isso, falar
de um discurso comum a toda a classe operária, mas sim de um discurso com uma matriz comum, a justiça
social, adaptado aos indivíduos que compõem esse grupo e reflectindo os contextos sociais em que os seus
autores escrevem.
Os manipuladores dos tabacos são um exemplo de como o socialismo foi aplicado de forma criativa às
condições específicas da indústria, às relações sociais de produção e às relações com o Estado.
Como discurso unificador destes operários, isto é, como ideologia através do qual se mobilizaram e
lutaram pelos seus interesses, o socialismo foi elaborado pelos líderes da “associação de classe” que, nesse
sentido, funcionou como comunidade discursiva deste sector operário, como mediadora na interpretação
colectiva na base dos interesses partilhados. Foi a associação e não um partido político que liderou a contestação
à cultura hegemónica e aos interesses das classes dominantes. Os dirigentes associativos puseram os seus
conhecimentos teóricos ao serviço da elaboração de uma forma de socialismo cuja retórica, se bem que com
características universais, adquiriu formas particulares adaptadas ao contexto em que foram escritas.
Uma dessas características universais é a tradução dos problemas económicos enfrentados pelos operários
em questões ideológicas e políticas claras, definidas na linguagem de classe. Desse modo, o socialismo coloca
as queixas dos operários numa base moral de certo e errado, de justo e injusto. Faz também apelo a uma
retórica cristã, ao messianismo e à fé milenarista na libertação. É um exemplo de como os dominados podem
utilizar a linguagem dos dominadores de modo a reverter o seu significado.53 É ainda um exemplo de como a
religião se manteve como força cultural em interacção com outras áreas da vida, da civilização e da história,
de como os usos da crença religiosa se renovaram em vez de desaparecerem, como alegam os defensores da
tese do declínio irreversível da religião desde o século XVIII.54
Os manipuladores de tabacos adaptaram o socialismo à defesa dos seus interesses e à forma como viam
a sua relação com as classes dominantes e o Estado. A burguesia em si não era vista como uma inimiga. Pelo
contrário, os operários tabaqueiros procuraram aliados em personalidades que se auto-intitulavam socialistas,
como Fuschini e que, graças à posição que ocupavam no aparelho de Estado, podiam contribuir para proteger
aquele sector operário.
A indústria dos tabacos, pela sua especificidade no contexto económico e político de Portugal no
período considerado, levou os operários a verem no Estado uma força universal que incorporava o interesse
51
“A questão do tabaco e os manipuladores”, A Voz do Operário, nº409, 8º ano, 28-8-1887, pp.1-2. O movimento de
protesto dos tabaqueiros do Porto de Março de 1887, saldou-se pela prisão de vários operários e o despedimento de dezasseis.
Inicialmente estava previsto o despedimento de cento e cinquenta trabalhadores. Sobre as origens do movimento e as manobras
políticas, cf. Verdial, “Manifesto ao público e aos manipuladores de tabaco”, A Voz do Operário, nº408, 8º ano, 21-8-1887, pp.2-3.
52
Auslander (1993), p.161.
53
Cf. Pocock.
54
Cf. Nash (2004), p.309.
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BRÁS, R. M. A caminho da Terra Prometida socialista...
nacional e não os interesses de uma classe. Assim, o Estado não era um inimigo, mas um possível aliado
que tinha até obrigação moral de proteger os operários das consequências do sistema económico assente na
exploração do trabalho assalariado.
Na construção do discurso unificador dos manipuladores dos tabacos, os seus dirigentes associativos
tiveram em conta uma análise realista das condições objectivas e subjectivas dos contextos, e das forças e
fraquezas do próprio movimento operário. Eles souberam moderar ou radicalizar esse discurso consoante as
circunstâncias o exigiam ou permitiam. Integrados na corrente do socialismo reformista, os tabaqueiros deram
provas de um “profundo realismo” que funcionava como uma espécie de instinto de conservação socialmente
construído.55 Para estes trabalhadores a paixão devia dar lugar à razão na liderança do processo de emancipação
da classe operária. O caminho para a Terra Prometida seria, afinal, muito longo.
BRÁS, R. M. A caminho da Terra Prometida socialista...
A Batalha (1919-1926) – órgão da União Operária Nacional e mais tarde da Confederação Geral do
Trabalho.
A Federação (1856-1865) – “folha industrial dedicada às classes operárias”
A Internacional (1923-1931) – Propriedade do Comité Executivo dos partidários da Internacional Sindical
Vermelha.
O Pensamento Social (1872-1873) – órgão da Fraternidade Operária.
O Protesto (1876-1878, 1881-1882) – jornal socialista.
Fontes consultadas
1. Biblioteca Nacional
O Protesto Operário (1882-1894) – órgão do Partido Socialista. Resultou da fusão dos jornais O Protesto
(Lisboa) e O Operário (Porto).
A. Arquivo Histórico-Social
4. Publicações institucionais
Núcleo “Confederação Geral do Trabalho e Outros Organismos Sindicais”.
4.1. Inquéritos, legislação e estatísticas oficiais
Administração Geral dos Tabacos (1889), Leis, Decretos e Regulamentos, Lisboa, Imprensa Nacional.
Núcleo “Congressos Operários Nacionais” .
- (1889), Relatório do Conselho de Administração (1888-1889).
Núcleo “Educação e Cultura”.
- (1890), Relatório do Conselho de Administração (1889-1890).
- (1890), Regulamento Orgânico, Lisboa, Imprensa Nacional.
B. Espólio de Oliveira Martins
“Correspondência de Oliveira Martins. Cartas a Oliveira Martins”.
2. Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo
Arquivo do Partido Socialista Português
Livro nº1, “Livro de ponto da Federação das Associações de Classe. 1895-1896”.
Livro nº8, “Livro de actas da União do 1º de Maio. Março de 1903 a Outubro de 1905”.
3.1. Periódicos dos manipuladores de tabacos
A Voz do Operário (1879-1929) – órgão dos manipuladores de tabaco.
O Eco dos Tabacos (1932-1933) – órgão da Associação de Classe do Pessoal dos Tabacos.
3.2. Imprensa operária, sindicalista e partidária.
A Bandeira Vermelha (1919-1921) – órgão da Federação Maximalista Portuguesa.
73
5. Referências bibliográficas
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3. Publicações em série
55
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Sobre as Condições do Trabalho Manual nas Fábricas de Tabacos e Situação dos Respectivos Operários,
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“Entre a cólera e o ódio”: justiça popular e assassinatos no sudoeste do
Paraná (1920-1930)1
Aruanã Antonio dos Passos*
Resumo: O artigo discute a relação entre a justiça popular (linchamento e outras) e a violência na região
sudoeste do Paraná, nos anos anteriores à “efetiva” colonização da região (mais especificamente entre
1920-1930). Busca-se compreender de que forma, com quais condições e quais relações se estabeleceram
entre um sistema punitivo-repressivo (aparelho judiciário) que conviveu com a violência popular. Para
tanto, a análise do Processo contra um habitante da região e seu filho (Pacífico de Pinto Lima e José de
Pinto Lima) transcorrido em 1920 na Comarca de Clevelândia, é capaz de demonstrar as dificuldades que
o aparelho judiciário encontrou. Desse modo, as considerações de Michel Foucault sobre as instituições
punitivas e as de Hannah Arendt sobre a violência, são capazes de auxiliar na compreensão de uma
sociedade por vezes, estigmatizada pelo esquema de análise que compreende a violência na região como
reflexo e efeito da luta pela terra.
Palavras-chave: justiça popular, violência, sudoeste do Paraná.
Abstract: The article argues the relation between popular justice (lynching and others) and the violence
in the southwestern region of the Paraná, in the previous years to the “effective” settling of the region
(more specifically between 1920-1930). One searchs to understand of that it forms, with which conditions
and which relations if they had established between a punitive-repressive system (judiciary device) that it
coexisted the popular violence. For in such a way, the analysis of the Process against an inhabitant of the
e region its son (Pacifico de Pinto Lima and José de Pinto Lima) occurrence in 1920 in the Judicial district
of Clevelândia, is capable to demonstrate the difficulties that the judiciary device found. In this manner,
the consideration of Michel Foucault on the punitive institutions and of Hannah Arendt on the violence,
are capable to assist in the understanding of a society for times, interpreted for the project of analysis that
understands the violence in the region as reflected and effect of the fight for the land.
Key-words: popular justice, violence, southwest of the Paraná.
Para Suzana, Sergio, Hanaurã e Aline.
Ocupação e colonização: os lugares da violência
A história do sudoeste do Paraná possui em si mesma um estigma de violência e um curioso paradoxo.
Desde o momento em que se pode precisar a região foi motivo de desentendimento, exploração, cobiça e
sofrimento. Alguns estudos importantes buscaram analisar a relação entre os homens e a violência na região2.
No entanto, a maioria desses estudos se concentrou na relação da violência com a disputa pela terra que
remonta pelo menos ao século XIX. Argentinos, paranaenses, catarinenses, caboclos e índios já disputaram
* Discente da Universidade Federal do Paraná.
1
Este texto resulta, com algumas alterações, de parte de monografia de conclusão de curso a ser apresentada ao
Departamento de História da Universidade Federal do Paraná, e intitulada “Debaixo das Penas da Lei”: Justiça e Violência no
Sudoeste do Paraná (1920-1930)”.
2
Dentre eles: COLNAGHI, Maria Cristina. Colonos e Poder: a luta pela terra no sudoeste do Paraná. Curitiba/
Universidade Federal do Paraná (Dissertação de Mestrado): 1984. REGO, Rubem Murilo Leão. Terra da violência: estudo sobre a
luta pela terra no sudoeste do Paraná. São Paulo: Universidade de São Paulo (Dissertação de Mestrado): 1979.
75
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 63-75, 2007.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 76-88, 2007.
76
PASSOS, A. A. “Entre a cólera e o ódio”:...
BRÁS, R. M. A caminho da Terra Prometida socialista...
as terras do sudoeste do Paraná. No entanto, a face complementar do paradoxo consiste no fato de a região
por muito tempo não ter tido um controle por parte de governo algum. Ora pelas dificuldades de comunicação
ora pela distância mesma, que além de isolar tinha o efeito de tornar a região uma parte do todo, distante do
“centro”, isso fez com que a região ficasse praticamente esquecida (EL-KHATIB 1969: 75).
A partir de 1950 essa situação começa a se modificar. Neste ano o governador Bento Munhoz da Rocha
Neto cria os municípios de Pato Branco, Francisco Beltrão, Santo Antonio do Sudoeste, Capanema e Barracão,
desmembrados de Clevelândia. Esta ação visava a efetiva colonização do território do sudoeste, além de sua
estruturação política e material. Antes, “até 1950 só existiam na região os municípios de Mangueirinha e
Clevelândia e os Distritos de Pato Branco e Chopinzinho” (COLNAGHI 1991: 8). Em 1957 a chamada “Revolta
dos Colonos3” estabeleceu a violência na região para além da “ação governamental posterior” que “redundou
numa autêntica reforma agrária, comandada com êxito pelo GETSOP4” (COLNAGHI: 1991: 8). Os colonos
subverteram a ordem estabelecida, tomaram várias cidades, dentre elas Santo Antonio do Sudoeste, Capanema,
Pato Branco e Francisco Beltrão, além de terem destituído muitas autoridades do poder (COLNAGHI: 1991:
8). É inegável que, “as condições iniciais da ocupação da região Sudoeste do Paraná eram extremamente
favoráveis: disponibilidade de terras férteis, com rica reserva florestal, e regime de pequena propriedade com
obtenção de domínio sem ônus para o camponês” (COLNAGHI: 1991: 8-12). Mas como entender que, “a
ocupação das terras sudoestinas encontrou barreiras sólidas no caos administrativo resultante tanto do conflito
de interesses entre a União, o estado do Paraná e as companhias colonizadoras, como da morosidade e inércia
do aparelho judiciário” (COLNAGHI: 1991: 8)?
Inicialmente podemos destacar que a povoação da região foi incentivada de muitas formas, ora
divulgando-se a facilidade de se conseguir terras, ora a qualidade dessas terras etc. Motivadas muitas levas
populacionais migram, principalmente, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul se instalando no sudoeste
do Paraná. Já no sudoeste os caboclos vendiam a terra que:
Comparadas com as do Rio Grande do Sul, eram quase de graça, férteis, sem pedras, quase plainas. O
único problema, para os primeiros moradores, era a quantidade de pinheiros existente, pois queriam
trabalhar na agricultura. Por uma bagatela conseguia-se enormes áreas de terra, fáceis de cultivar,
cobertas de pinheiro e de mata de lei, que lá no Rio Grande tinham um valor comercial. No Paranaã
estão dando a terra de graça. Só com a madeira dá pra pagar e sobra! De boca em boca se alastrava a
noticia. (BOCCHESE 2004: 58).
Tendo em vista essas práticas é compreensível que a atração e o interesse pelo sudoeste tenha motivado
uma migração extremamente importante para a constituição étnica da população da região. Das primeiras
famílias que se tem conhecimento de terem chegado ao sudoeste sabe-se que a família de Felisbello José
Antonio teria chegado em 1903 vindo de Passo Fundo-RS, João Ribeiro Damasceno fazendeiro e criador
de gado vindo de Clevelândia chega a Villa Nova (hoje Pato Branco) em 1910; ainda em 1910 Francisco
Dambrowski (polonês), vindo também do Rio Grande do Sul, “de onde fugiu por estar jurado de morte pelos
ciganos, então, para se ver livre de ameaça, cruzou o rio Uruguai e encontrou um refugio distante e de difícil
acesso: Bom Retiro5” (BOCCHESE 2004: 61). Chegando e se apossando das terras da forma como bem
queriam esses migrantes,
Dissidentes do Contestado buscavam, além da terra, um refugio tranqüilo, para refazerem-se do
massacre sofrido nas lutas com o governo brasileiro. Nessa busca, aqueles que partiam do Rio Grande
do Sul procuravam um lugar para sobreviver e ao cruzar o rio Uruguai, as terras não tinham dono nem
lei, e não era preciso prestar contas a ninguém. (BOCCHESE 2004: 64).
Sob esse aspecto a formação populacional demonstra claramente o caráter de poucas políticas aplicadas
à uma organização e ocupação sistêmicas da região e quando esse projeto de legalização e distribuição da terra
é cogitado e levado a cabo os problemas alcançam grande efeito de violência e posterior repressão por parte
do governo6. A constituição da ocupação das terras do sudoeste encontra ainda fator relevante na migração de
3
A chamada Revolta dos Colonos de 1957 foi um movimento complexo que partiu dos colonos contra a Companhia de
terras CITLA (Clevelândia Industrial Territorial Ltda), uma das colonizadoras que teve ação na região.
4
GETSOP (Grupo Executivo para as Terras do Sudoeste do Paraná): criado pelo Presidente João Goulart teve grande
importância na desapropriação e na colonização das terras desapropriadas no sudoeste paranaense.
5
Observe-se que a Colônia Bom Retiro foi criada pelo governo em 1918, justamente para assentar os paranaenses da área
do Contestado. O território que corresponde hoje a Colônia Bom Retiro é o município de pato Branco.
6
Destaca-se aí o Levante dos colonos de 1957.
77
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 76-88, 2007.
famílias advindas de Palmas e Clevelândia e que iam se estabelecendo em Villa Nova que tomou corpo de vila
e ao final dos anos vinte já o era oficialmente7.
A locomoção era dificílima, demorando dias às vezes de uma localidade a outra no lombo do cavalo,
neste aspecto um detalhe importante se sobressai porque “os rudes e desamparados desbravadores, não podiam
perder tempo indo atrás dos direitos do cidadão. Nem adultos, em boa parte possuíam documentos. Muitos
foragidos não revelavam o nome para ninguém, assumiam um nome fictício que acabava sendo o nome das
famílias deles” (BOCCHESE 2004: 65-67). Não demorou muito para que acontecesse o “óbvio”: “Bom Retiro
estava se tornando um aldeamento de desagregados das Leis do país” (BOCCHESE 2004: 67). Dessa maneira,
fez-se necessário que se criasse em março de 1920 “o Districto Judiciário de Bom Retiro, com a possibilidade
de instalação de um cartório de registro na colônia pela Lei n. 1945”(BOCCHESE 2004: 67).
Pari passu a esta incipiente oficialização e estruturação de um corpo político e jurídico a violência
cotidiana conservava um campo de permanente tensão que poderia ser transposto “a qualquer momento”. Bom
exemplo desse campo relacional é narrado pela historiadora Néri França Fornari Bocchese:
Os caboclos e os colonos que chagavam em Villa Nova eram homens de muita fé. Rezar na capela
todos os domingos era uma obrigação que ninguém discutia. Como a população andava sempre armada,
também se ia às rezas com o facão, a faca, o revolver, a pistola ou a própria espingarda. Entrar na casa
de Deus armado não combinava, era consenso entre os moradores. Mas, as autoridades sabendo que não
conseguiriam desarmar os moradores, somente recomendavam prudência. O mais interessante era que,
ao chegarem à capela, todos indistintamente guardavam as suas armas debaixo do chapéu, em algum
lugar no assoalho, ou na escada da própria capela. O chapéu era a identificação do dono e a segurança de
que não seria mexida. O respeito era mutuo. Roubar nem passava pela cabeça. Terminada a reza, cada
um pegava o seu chapéu e sua arma e voltava às vidas diárias. (BOCCHESE 2004: 160).
Mas, não era apenas na casa de Deus que esse “respeito mútuo” se efetivava. A vida cotidiana de certo
modo era perpassada por essa tensão constante moderada por um lugar social de certo modo comum. Porém,
não raras vezes essa “tecnologia” pragmática de coexistência social, de tolerância comum era quebrada. Caso
de ruptura dessa membrana de ordem tênue é a história fixada no imaginário popular do “Bandido Guarapuava”
ocorrida em 1939, conta Bocchese que:
Naquele ano, no dia da festa [de São Pedro], às quatro horas da tarde, apareceu o mais temido pistoleiro
de Bom Retiro, o “desalmado Guarapuava”, acostumado a mandar e nunca pedir nada. Deu ordens a um
garoto para buscar na bodega uma garrafa de cachaça. O pai do menino interveio, dizendo ao garoto:
“Você não é nenhum servo para ser mandado desse jeito!” Do bate-boca ao uso da arma foi pra já, pois
todos os homens da vila, andavam armados e bem armados. Não respeitaram o padroeiro, e enfrentaram
o pistoleiro Guarapuava. (BOCCHESE 2004: 120).
Esse acontecimento demonstra a quebra dessa “lei” não escrita, não dita e não imposta da forma
como nosso senso orienta. Mas, para além da justificação do rompimento dessa ordem, outros motivos
podiam orientar essa violência de reação. A quebra do consenso podia perfeitamente - embora parece que a
sua violação não era freqüente – seguir a motivos particulares e até mesmo sórdidos. O abuso de poder por
parte de pistoleiros como os famosos Augusto Cella e Raul Teixeira (ladrões de cavalo), destoavam da ordem
social, porque eles pertencem a uma parcela social da população ativa na colonização do sudoeste e na sua
formação demográfica: os bandidos e foragidos da justiça. Até, pelo menos, 1950 se pode verificar alguns
casos da ação desses homens que contribuíram para o estabelecimento do respeito mútuo entre os “homens
de bem” de Villa Nova e legitimaram a violência enquanto mecanismo de defesa e de controle de uma ordem
manifesta e necessária à sobrevivência do grupo. E não apenas isso. Contribuíram também para o crescimento
de uma vontade de justiça que, em muito, serviu para a legitimação da aceitação e exigência, presença e ação
da instalação da aparelharem repressiva na região.
Capangas, ladrões, bandidos, foragidos da lei, caboclos, exploradores versus uma aparelhagem
jurídico-policial por se fazer, ainda frágil e com sérios problemas estruturais coexistiram desde os primeiros
tempos fazendo do sudoeste uma espécie de “far-west” caboclo no interior de um Paraná pujante, alçando a
partir dos anos 50 maior visibilidade nacional, principalmente através do café e que guardava em si mesmo as
7
O nome “Villa Nova” não aparece oficialmente nos documentos, era de uso popular.
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78
BRÁS, R. M. A caminho da Terra Prometida socialista...
contradições de todo o seu projeto modernizador.
BRÁS, R. M. A caminho da Terra Prometida socialista...
e daí veio o marvado que dizia é o caboclinho e assassino. Ele garro, pego queria dinheiro e queria
dinheiro e nóis não tinha e pra rouba ele garro e mato o casal e sobro o cunhado e a cunhada.
E daí o que ele roubo uma peça de algodão. Uma peça antigamente comprava peça de algodão, não
tenho lembrança de quantos metro dava, acho que foi uns 20 metro. Dinheiro ele não encontro lá no
momento. E daí essa... esse cliente saiu e antes de os dono vortá lá onde hoje bem dize é o cemitério
lá no que era a loja do Eurico Ponte ele foi esconde essa peça de ropa lá, aquele tempo bem dize era
saída da cidade, hoje tem muito mais cidade pra frente, então foi onde que descobriram esse cliente
que matou o casal que sabia ainda que ficou em casa. Foi que descobriu onde ele tava, era poca gente
né? poca cidade, encontraram facilmente esse cliente e fincaram na cadeia. Ah! Viro aquele alvoroço
imenso! e daí então garro e quando souberam que ele tava preso eles foram pra tira ele da cadeia e daí
o delegado disse, eu não posso dexa oceis tira ele da cadeia de forma nenhuma, me compromete eu,
compromete eu daí então, diz óia de tarde eu vo pega e vou leva ele pra Clevelandia, pra comarca. E
vocês querem pega ele memo, fiquem ali numa artura da rua na cidade ai e voceis (...) peguem ele tire
do jipe e façam o que quiserem.
Daí garraram e fizeram isso aí ficaram já de prontidão, mais ou menos sabiam a hora que saia de lá, o
delegado falou a hora que saia aí garro e esperaram no Banco do Brasil e por ai e quando vinha vindo
invadiram a rua e cercaram o jipe e foram garrando e estraçando ele mais que um cachorro pegando
um gato e foi uma... pau e paulada e tapa e soco e daí foi aquele alvoroço (...). mais ou menos cem
pessoas.
E daí tinha uma muié conheci ela fia mais velha do Luiz Bertoldo casada com Ivo Zancanarro ela veio
pra Pato Branco junto com minha irmã, que a minha irmã mora aqui, tem 75 ano ela foi almoça na casa
de um til dela, que era o Henrique Balancelli então na ocasião ela tá na praça e viu aquele alvoroço e só
garro e viu as costa do rapaz que tiraram do jipe e depois não viu mais nada... e desce do hotel Paraná
e choveu o povo imenso, tomo conta da praça e garraram soco e soco e até que mataram que daí onde
tava meu cunhado e pode encontra a foto eu posso reconhece ele. (...).
O marido da falecida garro e pego um canivete e por ultimamente garro e finco em cima da barriga e deu
um pisão em cima e interro o canivete na barriga do vivente e depois diz ela que viu pincharam numa
valeta, aquele tempo era estrada de chão (...) morreu e fico ali mesmo9.
Justiça popular e assassinatos: entre a cólera e o ódio
Mas, de que modo, o embate entre a fragilidade das estratégias e práticas da colonização e das
dificuldades na implementação do aparelho judiciário pôde se sobrepor à violência popular? É inegável que
há certa ruptura, uma mudança mesma na mentalidade e nas práticas da população em relação aos criminosos
e a criminalidade no sudoeste antes de 1940 e depois da estruturação da aparelhagem punitiva. É inegável
também que “os bandidos conhecidos pela população eram respeitados e ajudados por ela, com troca de
cavalos, pernoite nos paióis, alimentação, montarias aos comparsas. Havia também um respeito dos próprios
delinqüentes, com os protegidos do outro salafrário” (BOCCHESE 2004: 169). Tal atitude é compreensível se
observada à luz mesma daquele consenso e respeito mútuo de todos para com todos que pairava e objetivava
a continuidade da ordem contratual frente à fragilidade eminente do embrionário aparelho judiciário-policial.
Encontramos na emancipação da Vila e no nascimento da cidade de Pato Branco um documento
emblemático do tamanho do esforço político e da necessidade se constituir uma nova ordem de um poder que
encontra dificuldades de impor sua normalização, sua disciplinarização da população em “novos” termos.
Agora o poder busca sua instrumentalização, toma corpo e visibilidade, interfere na vida cotidiana, regulariza
ações e distribui no espaço-tempo a sua dominação. De certo modo, o Código de Posturas do Município
de Pato Branco (criado pela Lei nº 05/53, de 1º de fevereiro de 1953), possui esse caráter de “verdadeiro
catecismo cívico para os integrantes de uma sociedade emergente, destinada pelas circunstâncias a imprimir
á vida autônoma de Pato Branco o senso de ordem, do respeito, da harmonia, da civilidade, do progresso”
(VOLTOLINI 2004: 75).
Essa passagem de uma modelagem social onde imperava a incerteza e uma ordenação social licenciosa
sedimentada por uma membrana de ordem e respeito tênue, para uma ordenação gerida pela maquinaria estatal
político-repressiva não se deu de forma mecânica e/ou automática, nem mesmo instantânea. A imprensa, o
rádio, as lideranças, os atos governamentais, tudo isso contribuiu para que se moldasse esse tipo ideal de
sociedade civilizada e ordeira. A violência não encontrou seu fim ou sua rarefação na simples existência
de uma aparelhagem e de um código comportamental que lhe voltasse o olhar e lhe punisse. A violência se
sustentou na fragilidade dessa aparelhagem, em seus problemas e dificuldades em seu devir de densidade e
estruturação material que andou e contou com a ajuda extrema das outras vias de reforço de seu projeto.
Algumas histórias ilustram de modo exemplar a situação dessa aparelhagem “capenga” de policiamento e
repressão ao banditismo e delinqüência num movimento antinatural da própria configuração social demográfica
do sudoeste. Sabe-se que a primeira delegacia de Pato Branco se situava na principal Avenida de Pato Branco,
a Avenida Tupy, e “não oferecia segurança alguma, pois até as grades das janelas eram de madeira. A própria
guarda deixava o preso à vontade e ia para os balcões das bodegas” (VOLTOLINI 2004: 168).
Exemplo da relação entre as “autoridades” e a população é relatado pelo Sr. Rufato. Sabe-se que,
“o crime mais bárbaro de que se tem conhecimento em Pato Branco, foi praticado em 1948, estarrecendo o
povo que, numa reação violenta quanto inesperada, interveio no caso, fazendo justiça com as próprias mãos8”
(VOLTOLINI 2004: 121). Conta o Sr. Rufato a sua versão para o acontecimento:
A atitude do Delegado Nico Dom é bastante representativa. Ela denota uma realidade em que o
maquinário policial não tem condições de garantir a segurança do preso e muito menos conter o ódio e a
justiça popular, sua atitude é explicita no momento em que ele define sua posição de não poder deixar a
multidão invadir a cadeia já que ele seria comprometido. A seqüência desse acontecimento é também de grande
interesse, justamente por revelar uma prática contrária às ordens e valores convencionais da aparelhagem
jurídica. Segundo Voltolini:
Ante a ferocidade da turba na execução do criminoso, baixou feroz por aqui a Secretaria de Segurança do
Estado, com o então tenente Lapa designado Delegado Especial para o caso, personagem dado a condutas
truculentas e desmedidas em missões sob sua responsabilidade. Por indiretamente, ou diretamente,
tendo a famosa foto por suporte, Lapa saiu à busca dos identificados. Ordenou desarmamento geral da
população. Um magote de policiais num caminhãozinho, varreu a área, recolhendo armas de fogo e
armas brancas. Até facão de lavrador indo pra roça pegaram. Iniciaram-se as detenções e um fato novo
se inseriu na questão, determinando a severidade da pena aplicada: entre os indiciados presos figuravam
‘amigos e inimigos’ políticos. Para aqueles, a amenidade; para estes, o pau comeu solto. Diante disso,
uns implicados se mandaram de Pato Branco por um bom tempo, que ninguém estava a fim de levar
uma sumanta de cacetete. Três presos foram submetidos a desalmado tratamento vexatório. Obrigados a
ingerir elevada dose de purgante, amarrados de pés juntos e mãos para trás, foram deixados no centro da
vila, defronte da igreja matriz, na Praça Brasil, para fazê-los passar a maior vergonha do mundo, quando
o organismo não fosse capaz de conter a pressão intestinal. (VOLTOLINI 2004: 123-124).
Aquele causo que eu tava falando do meu cunhado que mataram lichado. Que lichado, nem lichado foi,
foi estraçado. Ele deve ta em torno de cinqüenta ano. E veio duas famia do Rio Grande e essas duas
famia veio e se acamparam embaixo do Hotel Paraná e vamo supor. Saiu eu e a muié dele pra cidade
8
Baseado em uma série de depoimentos orais, conta Sittilo Voltolini que: “Numa tarde de maio desse mesmo ano,
chegavam a Pato Branco mais duas famílias, para aqui fixarem residência e, como atividade principal, tencionavam montar uma
ferraria. Vinham de Passo da galinha, hoje General Carneiro. No entardecer daquele mesmo dia, lá pelas 19 horas, no entanto,
sobreveio-lhe a desgraça. Ainda no trabalho de acomodação da mudança e higiene da casa e pátios, o senhor Demétrio Hass fora
buscar água numa fonte próxima. Nesse local foi abatido por um tiro de espingarda de caça, tipo pica-pau, de grosso calibre, que
lhe abriu um rombo no peito. Da Luz, sua esposa, que estava limpando o pátio, teve a cabeça partida com um golpe de coronha
da arma com que fora morto Demétrio. Julgando-a morta, o assassino invadiu a casa de onde se encontrava Maria Mazurechen,
dando banho a um bebe de uns 15 dias. Avançou sobre ela a faca. Mortalmente ferida, com a criança no colo, suplicando que o
agressor não a matasse, tombou caindo sobre a criança, quebrando-lhe a espinha. No chão recebeu mais golpes. Dezessete ao todo.
(...) A noticia da chacina se espalhou rápido. (...) O crime consternou Pato Branco que saiu à procura do criminoso descrito pelos
meninos. Não só as autoridades...o povo se pôs a caça do autor do bárbaro morticínio. (...) ainda com as roupas sujas de sangue,
em Passo da Pedra, unharam o assassino, entregando-a às autoridades. Era homem de uns 30 anos, de nome Sebastião, empregado
do ex-dono da propriedade comprada pelas infortunadas famílias. Sabedor da data de chegada dos novos proprietários, supondo
que estivesse também com o dinheiro para pagamento das terras, para se apossar dele, invadiu o local, abatendo uma peça de
tecido de chita”. (In: VOLTOLINI 2004: 121-122).
79
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 76-88, 2007.
A reação do aparelho judiciário-repressivo foi imediata e seguiu certa lógica dentro do contexto em
que as coisas se passaram. A solução escolhida foi a de demonstrar que esse tipo de atitude popular, essa
justiça popular, não pode encontrar espaço na sociedade. Em muito porque o julgamento ocorre sem processo
RUFATO, Miguel. Entrevista realizada em 07/10/2005.
Michel Foucault ressalta que a partir do século XVIII e das reformas penais ocorridas na Europa diversas mudanças
teóricas sobre o regime do gerenciamento das penas fizeram com a estrutura de funcionamento da justiça assumisse grande parte
de seus elementos atuais. Nesse sentido a punição passa a se concentrar agora na representação da pena e não mais a sua aplicação
aos corpos dos criminosos. Para que a consciência do individuo seja cristalizada por uma justiça “invisível”, mas onipresente
e onipotente (bem ao gosto do universo penal kafkiano) donde o julgamento necessita uma racionalização seguindo um senso
comum. “Abandono, então das penas legais; rejeição da tortura, necessidade de uma demonstração completa para fazer uma
verdade justa, retirada de qualquer correlação entre os graus da suspeita e os da pena”. In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir.
29.ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p.82.
9
10
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 76-88, 2007.
80
BRÁS, R. M. A caminho da Terra Prometida socialista...
BRÁS, R. M. A caminho da Terra Prometida socialista...
contrariando um dos princípios do direito. Mas, também porque o julgar, processar e aplicar a pena em
sociedade se estabelece através de um órgão e um sistema próprios de produção/investigação/verificação de
verdade e de punição de excessos, infrações e imposturas10. Toda essa grande máquina tropeça frente aos casos
de linchamento e justiça popular porque de um modo geral, descarta a sua função – não, necessariamente por
ela não a conhecer, mas por ela não acontecer -, age pelo ódio e pela indignação motivada pelo momento. Ela
não solicita essa maquinaria, em seu momento de ação. Ela passa por cima de todos os preceitos humanistas
do criminoso. Todo o seu ódio e indignação se sustentam em função de dois pontos básicos: a justiça não raras
vezes falha; e segundo: o crime praticado não é tolerável e o criminoso não merece piedade. O suplício faz o
justiçado que tendo quebrado o consenso de não agressão merece seu destino11.
O processo contra pacífico: justiça e vingança, sangue e dor
Clevelândia, 1920: voltemos a ocupação do sudoeste. Vimos até então, como a organização social
do sudoeste antes da efetivação das políticas do Estado para a sua ocupação produziu formas específicas de
sociabilidades e de relações de poder, por um lado necessárias e sofisticadas, e por outro, relações delicadas,
tênues e de controle e repressão muito difíceis. “Os pioneiros” ao se fixarem na região a partir da década de
20, teriam chegado abrindo as chamadas “picadas”. E assim, “foram chegando Francisco Índio da América
Lima, João Ribeiro, José de Campos, a família Venâncio, Antonio Alves de Andrade, Pacífico Pinto de Lima,
João Macário dos Santos e muitos outros12” (KRÜGER 2004: 90).
Pacífico Pinto de Lima se encontra inserido neste contexto social, vivenciando essas relações,
participando delas. A história de sua vida e morte13 é de grande representatividade na demonstração dos
problemas, dos lapsos e da fragilidade em que o “consenso” (“pacto”, “contrato” etc.) exterior a uma
administração e regulação pelo Estado - em seu sentido estrito - de seu funcionamento. A historiadora Néri
França Fornari Bocchese afirma o seguinte sobre Pacífico de Pinto Lima (vale a longa citação).
O Senhor Osório Prates narrou à comissão do Projeto resgate Histórico que quando veio com o seu pai,
Antonio Rodrigues Prates, já residia em Villa Nova a família de Pinto de Camargo, antiga e numerosa,
uma das primeiras a se estabelecer nesse lugar. Essa família acabou se dividindo em duas: os Pinto
Brabos e os Pinto de Camargo. O sobrenome, muitas vezes, era dado de acordo com o modo de vida
que se levava.
Pacifico Pinto pertencia à família Pinto Brabos. Morava em Clevelândia onde tinha boas relações com
os políticos e trabalhava em Villa Nova. Nesta, chegou ao cargo de Inspetor. Foi um grande safrista,
malandro, sanguinário e temido. Intitulava-se proprietário de todas as terras da região de Fartura, de
Caçardozinho em Vitorino, até Mariópolis, ao longo do divisor d’água com Santa Catarina. Na área,
só ficava morando quem ele quisesse. Ninguém podia ser seu vizinho, pois, Pacifico largava a porcada
nas roças, e ai de quem reclamasse. Se fossem de outros moradores os animais soltos, estes, eram
incorporados ao patrimônio de Pacifico Pinto.
Caboclos eram contratados por Pacífico para derrubarem o mato. Eles eram vigiados para não fugir.
No último dia de trabalho, bem alimentados e felizes, iam fazer o acerto com o patrão, só que um dos
capangas os acompanhavam por uma picada pré-estabelecida. No trajeto, a certa altura do mato, havia
uma profunda cova disfarçada com folhas e vegetação rasteira. Ali mesmo, os capangas imobilizaram
os trabalhadores, enfiavam os dedos pelas narinas e puxavam a cabeça para trás degolando-os feito
bichos; ainda se mexendo eram jogados na vala.
Mais tarde, quando os caboclos começaram a descobrir as maldades cometidas a mando de Pacifico, ou
seja, as valas com os corpos, deixaram de trabalhar para ele.
Por isso, para fazer roças, Pacífico começou a trazer homens de Clevelandia, pois lá se comportava, era
todo como homem de bem, que empreitava o serviço de derrubada do mato. Terminada a derrubada,
fazia questão de que o pagamento fosse com testemunhas, dava um bom almoço e cachaça. Mas, quando
o trabalhador ia embora, a uma certa distancia das terras de Pacífico, ocorria novamente a chacina, os
11
Sobre esse aspecto é valido ressaltar o fato de que um determinado grupo social estabelecendo um pacto possui o
direito de exercer determinado poder sobre os indivíduos que o compõe, assim “o corpo, a imaginação, o sofrimento, o coração a
respeitar não são, na verdade, os do criminoso que deve ser punido, mas os dos homens que, tendo subscrito o pacto, têm o direito
de exercer contra ele o poder de se unir”. In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 29.ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p.77.
12
Consta ainda, segundo o autor, e baseando-se em pesquisa realizada pela Câmara Municipal de Pato Branco que
Pacífico Pinto de Lima teria sido o primeiro Subdelegado da Vila (KRÜGER 2004: 96).
13
Fundamentando-se na coleta de centenas de depoimentos pertencentes ao Projeto Resgate Histórico (que teve seu
desenvolvimento apoiado pelo CEFET/PR Unidade Pato Branco), que originou uma produção de obras acerca da história do
sudoeste e de Pato Branco, dentre elas a série RETORNO em quatro volumes escritos por Sittilo Voltolini, além do livro de
Néri França Fornari Bocchese. Ver: VOLTOLINI, Sittilo. Retorno: origens de Pato Branco. Dois Vizinhos, Artepres, 1996;
BOCCHESE, Neri França Fornari. Pato Branco sua história sua gente: história de Pato Branco. Pato Branco: Imprepel, 2004.
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capangas matavam o homem, jogavam o corpo no rio Pato Branco ou no rio Chopim, com umas pedras
amarradas no pescoço para que o corpo não flutuasse.
Somente a viúva, ou os familiares, vinha em busca do empreiteiro e acabavam convencidos por Pacifico
de que o trabalhador, portador de uma boa quantia de dinheiro, havia voltado para Santa Catarina ou
Rio Grande do Sul, deixando a viúva ou a família abandonadas. Somente no final da década de 20, um
capanga de Pacifico, compadecido com o desespero de uma viúva, delatou o fato dos desaparecimentos
dos empreiteiros.
Assim, em 1928 foram descobertos os crimes cometidos por Pacífico Pinto. E este foi levado a
julgamento, em Clevelandia. No dia do julgamento reuniram-se em Villa Nova quinze cavaleiros
chefiados por Pedro facão, da família Lemos do Amaral, moradores da Fazenda da Barra. Bateram em
Clevelândia e lá reuniram as famílias das vitimas, amigos e conhecidos e dirigiram-se para a Intendência
onde o julgamento havia começado. Como Pacífico tinha muito dinheiro, contratou dois advogados de
Curitiba. Ainda, avisou à comunidade de Clevelândia que compraria as testemunhas.
Quando Pedro Facão chegou com os seus homens, o tiroteio foi acirrado. Aa Intendência, que era a
prefeitura e também as demais dependências oficiais do município, ficou uma fumaceira só. O corpo
de Pacífico Pinto ficou irreconhecível. E os advogados gritando por clemência, agarrados um ao outro,
fugiram por entre a multidão, que fez justiça, cansada de presenciar as barbaridades e impunidade com
que Pacífico agia em Villa Nova14.
Exatamente em 1920, Pacífico de Pinto Lima e seu filho José de Pinto Lima são processados por
agressão. Esse documento, somado aos depoimentos orais, constitui as maiores “marcas”, os maiores vestígios
deixados por ele na história da região. Dessa forma, a análise e recomposição – mesmo fragmentária - dos
acontecimentos desse processo serão capazes de nos indicar uma perspectiva de observação. Sua importância
reside nas pistas e nas possibilidades que ele proporciona de compreensão da “ordem vigente” da região frente
ao posicionamento da aparelhagem judiciária e sua maquinaria de imposição e funcionamento específicos na
década de 1920 até pelo menos 1950.
Com uma duração de quase três meses o processo se inicia em 24/02/1920 com o exame de corpo
delito e os depoimentos no mesmo dia dos acusados (Pacífico de Pinto Lima e seu filho José de Pinto Lima).
No Auto do Exame de Corpo Delicto, redigido pelo Escrivão, Pedro Augusto Cardoso e “assegurado” pelo
Delegado, Lydio Albuquerque deveria responder a nove quesitos fundamentais, segundo o que se segue:
Primeiro: Si há offensa physica produzindo dôr ou alguma lesão no corpo, embora sem derramamento
de sangue. Segundo: Qual instrumento ou meio que a occasionou. Terceiro: Se foi occasionada por
veneno, substancia anesthesicas, incêndio, asphyxia, ou inundação; Quarto: Si por sua natureza e séde
pode ser causa efficiente da morte; Quinto: Si a constituição ou estado mórbido anterior do offendido
concorrem para tornal-o irremediavelmente mortal; Sexto: Si póde resultar a morte, não por ser mortal a
lesão, e sim por deixar o offendido de observar o regimen medico hygienico reclamado porr seu estado;
Setimo: Si resultou ou póde resultart mutilação ou amputação, deformidade ou privação permanente
de algum orgão ou membro; Oitavo: Si resultou ou póde resultar qualquer enfermidade incurável que
prive para sempre o offendido de poder exercer seu trabalho; Nono: si produziu incommodo de saude
que inhabiblite o offendido do serviço activo por mais de trinta dias15.
O início do processo traz no Auto de Corpo de Delito uma primeira avaliação dos efeitos da agressão
cometida através da análise dos peritos da gravidade, dos limites e das conseqüências para o “offendido”
(neste caso Joaquim Félix Rodrigues dos Santos) da agressão em si. Inicia-se já uma produção de verdade que
legitimará e institucionalizará a abertura de um processo conduzido pelos trâmites da justiça enquanto órgão
“à parte”, independente na sociedade. Na perícia realizada por Olympio Vergett e João Dario Pacheco constará
na redação do Auto pelo Escrivão Pedro Augusto Cardoso, que:
Em seqüência passaram os peritos a fazer o exame ordenado, como se segue: encontraram o punho do
braço direito destroncado em conseqüência de pauladas produzidas por instrumento contundente, e
que portanto respondem aos quesitos pela forma seguinte: ao primeiro; sim; ao segundo, instrumento
contundente, ao terceiro; quarto, quinto e sexto não; ao sétimo sim, ao oitavo sim, ao nono; não pode
exercer o serviço em trinta dias; e finalmente quanto ao valor dos danos causados que arbitraram em
duzentos mil reis. E são estas as declarações que em sua consciência e debaixo do juramento prestado
tem a fazêr16.
14
BOCCHESE, Neri França Fornari. Op. cit. p.81-83.
15
COMARCA DE PALMAS. JUÍZO DO TERMO DE CLEVELÂNDIA. Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e
José de Pinto Lima. 1920. p.4.
16
Idem, ibidem. p.5.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 76-88, 2007.
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BRÁS, R. M. A caminho da Terra Prometida socialista...
A relação de verdade constitutiva de uma ordem discursiva lógica em sua forma jurídica já se estabelece
no Auto de Exame de Corpo Delito por duas verificações. A primeira diz respeito à condição dos peritos na
condição de médicos e especialistas, detentores de um saber capaz de emitir um mapeamento da agressão; e a
segunda de que eles o fazem sob juramento e “consciência”, ou seja, estão ao fazer seu trabalho sob o signo do
juramento consciente sob pena de incorrer em crime de falso testemunho. Esse segundo ponto talvez assuma
uma importância mais que significativa na construção do principal mecanismo discursivo e estrutural de uma
lógica de verdade e psicologia do depoente em consciência da importância e gravidade de seus atos e palavras,
sendo que as conseqüências dos mesmos lhe são colocadas subjudice.
Ainda na Delegacia, como é de praxe, os envolvidos são ouvidos uma primeira vez. Abre-se um Auto
de perguntas ao “offendido” e aos “accusados”. Joaquim Félix (“offendido”), sendo que, quando:
Perguntado qual seu nome, edade, estado, filiação, naturalidade e profissão. Respondeu chamar-se
Joaquim Felix Rodrigues dos Santos, com desoito anos de edade, solteiro, filho de Luiz Felix, natural
do Rio Grande do Sul, jornaleiro. Perguntado como se tinha passado o facto em que sahiu o offendido.
Respondeu que no dia quinze do corrente pela tarde achava-se em casa de moradia de Pacifico de
Pinto Lima ajudando a assignalar uns porcos quando foi agredido a rabo de tatu por Pacifico de Pinto
Lima e seu filho José de Pinto Lima, que também se achava presente, que tendo José descarregado
uma pancada com o rabo de tatu, ele depoente, levou o braço para defender-se o que occasionou o
destroncamento do punho. Ele atribuiu o facto da agreção ao motivo de ter ido elle depoente em casa
de João de Quadros que é desafeto de Pacifico. E como nada mais lhe foi perguntado nem respondido,
assigna o presente auto o cidadão João Dario Pacheco, por não saber elle escrever, depois de lhe ser lido
e achado conforme, o qual vai também assignado pelo Delegado Lýdio Albuquerque; de que tudo dou
fé. Eu Pedro Augusto Cardoso, o escrivão o escrevi17.
BRÁS, R. M. A caminho da Terra Prometida socialista...
É de se pôr em relevo a habilidade visível do defensor dos acusados. Ele manipula muito bem a
sintaxe própria de um advogado. O Sr. Luiz Godoy utiliza uma estratégia muito peculiar e comum no universo
do direito. Ele aponta supostas irregularidades na ação movida contra Pacífico nos termos da lei. Cruzando
Código Civil e Penal o defensor arrola cinco questões que invalidariam o processo, todas versando sobre a
falha de natureza no processo e ainda, salientando nos primeiros itens que Severiano Barboza de Oliveira
autor da queixa fez-se advogado da vítima, transportou “disfarçadamente” a ação do âmbito penal para o civil,
além de que a ação tendo ultrapassado o prazo estabelecido por lei donde não se comprovou nenhum indício
de criminalidade. A argumentação é coerente e de estrema importância, como verificaremos, em sua última
cartada ao final do processo e que encontra pontos tangenciais na própria sentença do Juiz.
O processo chega ao seu percurso final, o prazo para a sentença está se esgotando. Há poucas ou
nenhuma prova testemunhal, há sim indícios. Um último lance, uma última cartada seca e ligeira: Ernesto
de Araújo Goés (Adjunto de Promotor) faz a seguinte requisição:”Em vista das provas dos autos, opino pela
condenação dos indiciados como incursos nas penas do art. 300 do código Penal da republica. Clevelândia 15
de Maio de 1920. O Adjunto de Promotor Publico. Ernesto de Araújo Goés19”.
Dado o lance e mostradas as cartas é a vez de extensamente se argumentar em favor da absolvição
dos réus. Luiz loureiro de Godoy Mello (defensor) muito bem municiado e sem negligenciar palavras,
categoricamente afirma o que se segue.
Meretissimo Sr.Dr. Juiz Julgador.
Desde o primeiro lance de vista as muitas páginas que compõe estes autos, bem circunstanciada ficou a
façanha vexatória da nova forma de conto do vigário, intentado por Severiano Barboza que, começando
com uma queixa a Policia, teve como resultado, o documento apreciável que se vê no mesmo, (...),
a sensaboria d’uma comedia, sem origem, engendrada pelo menor Joaquim Felix Rodrigues, que
representou no acto, papel de papagaio falante mal ensinado. O comparsa Severiano Barboza, que
levantou a lebre, foi mais longe, promovendo accusação sem comtudo dar a triste tragédia, uma origem
concebível e concludente.
(...).
De tudo o mais que dos autos consta, nem uma prova digna de sentença, existe contra os accusados, não
passando tudo de um Blaque em proveito próprio, da qual foram os protagonistas Severiano Barboza e
seu entiado Joaquim Felix Rodrigues. Fácil é conjeturar-se: não vai a tempos idos, neste mesmo termo,
houve uma utoridade que, quando engendrava suas maquiavélicas perseguições, espalhava a noticia de
um crime; depois intimava-os seus ouvintes a comparecerem em audiências, e ahi interrogados sobre o
que ouviram dizer a respeito, tanto foi que um bello dia certa testemunha distinguiu-se declarando só ter
ouvido daquella autoridade; eis o que se dá com o caso (...) Joaquim Felix Rodrigues aproveitando-se
de leves machucaduras, soube tira partindo, aludindo a boa fé de todos os que ouviram sua narrativa,
inclusive os peritos, bem fingindo o deslocamento do punho da mão direita, deixando porem a fragilidade
da mentira, bme palpável, na parte que diz não haver o mesmo ignorar os motivos que originaram a
aggressão de dois homens fortes e valentes contra um menor, que a pezar, teve a superioridade de lutar,
e agarrar-se com uma só mão a cerca e uma fazenda de criar (que todos sabem o que seja) escapando-se
a fúria dos aggressores. Que prodígio20!...
Esta é a versão do agredido Joaquim Félix e que assumirá densidade ao longo do processo. Por hora, o
que se sobressai destas afirmações é que a denúncia e a agressão estão, separadas por quase dez dias. O segundo
dado importante é de que Joaquim Félix estaria “ajudando assignalar uns porcos” quando ocorre a agressão,
ou seja, estava trabalhando para Pacifico; observe-se que o agredido denomina-se jornaleiro (trabalhador por
jornada). O terceiro dado importante é a causa da agressão afirmada por Joaquim: a ida dele a casa de um
“desafeto” de Pacifico.
O processo passa por uma série de entraves na localização e intimação de testemunhas, sendo que,
apenas no dia quatorze de maio a quinta e sexta testemunhas prestarão seus depoimentos. Antes disso, porém,
em sete de abril de mil novecentos e vinte Luiz Loureiro de Godoy, defensor dos acusados envia documento ao
Juiz Municipal, onde manipulando os diversos códigos jurídicos e interpretando-os a seu modo ele esforça-se
para travar o andamento do processo. Seus argumentos são os seguintes:
1º que no auto de corpo delicto foi arbitrado valor danno causado a suposta victima. 2º que a queixa
foi feita por Severiano Barboza de Oliveira, ainda que verbalmente, mas, instruiu-a conforme sua
afirmativa em denuncia deste juízo, pela qual tornou-se pessoa competente; constituiu advogado para
promover tudo quanto de direito lhe fosse permitido. 3º que, Severiano Barboza de Oliveira assim,
podendo, presumiu-se autor da causa, promovendo uma acção reipersicutoria (entre os Romanos Lei
aquilia). Procurando desfarçadamente demandar, não uma acção crime, mas uma acção toda civil, como
bem definiu Corrêa Telles, Doutrina das Acções § 438 nota 1 e 1 (a). 4º que tudo o sumario sido
promovido na forma do artigo 408 do Código Penal da República, ultrapassou em delonga ao estatuído
em lei, sem que, com tudo transparecesse o menor indicio de criminalidade aos accusados. 5º que sendo
uma acção toda cumulativa conforme Direito dos Decretais, Corrêa Telles, ensina, em a Doutrina das
Acções § 457 nota 2 e2 9a), que primeiro se deve conhecer da civil, por independêr da acção criminal,
não se cumula a acção criminal a civil. E como sendo uma acção de natureza prevista pela n.I do artigo
205, combinado com a primeira parte do n.I do artigo 210, o supplicante pede a V.S. que seja ao autor
lançado da accusação, por ter deixado corrêr a revelia, e julgada perempta a acção, depois mandar juntas
a presente aos autos18.
Depois dessa argumentação inicial que buscou desconstruir as indeterminações e incongruências nas
narrativas cruzadas entre si. A retórica e persuasão são admiráveis extremamente sintonizadas com o perfil de
um advogado profissional da área. Segue adiante a principal tese defendida por Luiz Loureiro. Segundo a qual
ele afirma que:
É inacreditável e no entanto procurou-se provar, isto-é o queixoso Joaquim Felix Rodrigues segundado
por seu pae adoptivo, procurou dar a tela cores que a não possuía, para receber, depois de provado,
indenização que garantisse-os para o futuro contra a precisão ou necessidade de trabalhar, cujos boatos
verídicos só a defeza teve conhecimento depois de inqueridas as testemunhas que disso têm sciencia
(...)21.
Tudo conspirando contra os inocentes, cobiçados pela avareza daqueles que desejavam se aproveitar
de sua fortuna. Autoridades, peritos, boatos e a “marcha do processo”. Tudo conspira em uma “trama” surreal
Idem, ibidem. p.42.
COMARCA DE PALMAS. JUÍZO DO TERMO DE CLEVELÂNDIA. Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e
José de Pinto Lima. 1920. p. 44.
21
Idem, ibidem. p.44.
19
Idem, ibidem. p.7.
18
COMARCA DE PALMAS. JUÍZO DO TERMO DE CLEVELÂNDIA. Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e
José de Pinto Lima. 1920. p.32.
17
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20
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para se tirar proveito de uma situação sem provas, de um processo contra inocentes. Um grande circo: essa é
a imagem construída pela defesa, habilmente manipulada em nome de uma pretensão injusta e absurda. Um
insulto à justiça.
No dia seguinte (17/maio/1920) a esta última cartada da defesa, o Juiz pronuncia sua sentença.
O Meritíssimo descreve o histórico do processo, seu início, suas causas, recorre aos códigos jurídicos,
demonstrando autoridade e “notório saber de causa”, aos moldes da lei e do sistema de produção de uma
verdade legítima apreensível ao “senso comum”. Em suas considerações específicas o Juiz argumenta que
pela vítima ter faltado ao exame de sanidade do 31º dia após o acontecido, podia se deduzir que esta já
se encontrava boa. Sua segunda consideração versa sobre os depoimentos testemunhais que segundo o seu
conceito não possuíram nenhuma prova de que o crime foi cometido pelos acusados sendo ainda que em suas
palavras, “não tendo sido provado nenhum outro facto que desabamos do modo de vida particular delles e
também para com a sociedade22”, sendo que, “portanto julgo improcedente a denuncia do ministério publico
para impronunciar sendo de facto impronunciado tenho Pacifico Pinto de Lima e José Pinto de Lima, usando
das athribuições que confere o juiz (...)23”.
No entanto apesar dessas considerações o que assume singular importância são as palavras iniciais do
Juiz ao proferir sentença.
O presente processo ultrapassou o prazo da lei para conclusão, por circunstancias insuperáveis. A razão
de ser este termo judiciário, embora pouco povoado ainda, mais tudo aproximadamente uns cento e
cincoenta qilometros de extensão, cuja extensão quase toda de certões e perigosos; termo que se confirma
com o Estado de santa Catharina e republica Argentina, dando isso logar a imperiosas difficuldaades
e demora em citação de testemunhas; realizando por vezes o official de justiça, no praso de um mais
antecessores no juizado “verdadeiras caçadas de testemunhas”, e outros tantos embaraços que só em
acontecer, concorrem para que a justiça por mais solicita e severa no cumprimento de seus deveres, não
possa, infelizmente, dar uma marcha mais rápida na punição dos criminosos e repressão ao crime.
É assim, que tenho o desprazer amargo de dizer, apezar de meus ingentes esforços em sentido contrário,
este processo com mas de dois mezes de inicio, somente agora veio a ponto de ser nelle proferido
sentença24.
Em sua “confissão” ao mesmo tempo reclamatória e justificadora, Antonio Ribeiro de Brito (juiz) põe à
mostra as principais dificuldades encontradas efetivamente para o estabelecimento e funcionamento orgânico
da justiça. Porém, uma camada muito sutil da sua fala e que de certo modo perpassa e secciona em muitos
pontos todo processo não se mostra inteira. A violência e os perigos da região não se dão necessariamente pela
sua extensão, mas pela população e sua organização e suas relações nesse espaço, pouco e de forma mutilada
gerenciado por uma aparelhagem que tenta se posicionar como gestora de uma ordem que destoa em muito
do “consenso” de não agressão que pairava por sobre a cabeça dos vivos. Obviamente que o processo contra
Pacifico e José (seu filho), demonstra aa relação entre uma justiça (dita formal) que tenta se estabelecer e esse
“consenso”, esse status quo social que regulava essa sociedade e que se constituiu historicamente através
de uma normalização paralela e que passou a coexistir com esse aparelho formal repressivo e regulador
característico do Estado (justiça).
Em outras palavras, é a luta de uma justiça que busca naturalizar-se em uma sociedade organizada
sobre o mesmo ou semelhante princípio de direito, mas que se realizava, se praticava por outros meios por
outras estratégias. É na ruptura desse, “pacto consensual” de todos para com todos que muitas vezes não se
escreve e não se diz, é que encontraremos pessoas recorrendo à justiça formal – o que certamente pode ser o
caso do processo contra Pacífico – por não possui outra alternativa ou por não ter condições de responder na
mesma moeda. É nesta relação – e a conclusão deste processo é exemplar nesse sentido – ou melhor, dizendo,
na falha desta mudança de comportamento que agora recorrerá à justiça institucional (estatal) que nascerá o
desejo, a vontade de justiça e a própria noção comum da “justiça cega”.
Se o linchamento ocorreu certamente este foi um mecanismo de ruptura de uma ordem em nome de
uma ordem anterior e, mais intrinsecamente, da noção de justiça. O fato de Pacifico ser linchado se encaixa
com a hipótese de ele ser culpado deste crime e de outros, sendo que a justiça através de suas ferramentas e
estratégias não conseguiu puni-lo a população mesma o fará e a seu modo. Na sentença do Juiz ficam claras as
22
COMARCA DE PALMAS. JUÍZO DO TERMO DE CLEVELÂNDIA. Processo-crime contra Pacifico Pinto de Lima e
José de Pinto Lima. 1920. p.50.
23
Idem, ibidem. p.50.
24
Idem, ibidem. p.49.
85
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dificuldades e a fragilidade desse sistema jurídico ainda embrionário e até mesmo rudimentar. Sua organização
demorará décadas para ocorrer. Porém, até a inscrição nos corpos de tais noções (de transferência da punição
a um órgão específico), a epígrafe usual nos processos destes tempos teria um sentido muito mais intenso
do que apenas o de uma função de nexo textual. É exatamente “debaixo das penas da lei”, nos subterrâneos
do cotidiano dessa sociedade que encontraremos Pacífico Pinto de Lima, suas ações, comportamentos e seu
fúnebre destino.
Outras histórias, outras violências, outro olhar
Vimos até aqui a forma com que a violência no sudoeste do Paraná se constituiu e se relacionou com
a sociedade que se formava antes da efetiva atenção concedida por parte do governo do Paraná e da gradual
implantação da aparelhagem judiciária na região. As conseqüências de tal relação fizeram com que a sociedade
se organizasse de tal modo que a violência passou a ser uma espécie de ferramenta de organização e controle
dos excessos e das irregularidades. A questão que se coloca era a de que, se não havia um órgão repressor,
de que modo uma irregularidade era determinada? A questão é apenas aparente porque os indivíduos dessa
sociedade necessitavam de um mínimo de respeito para que esse grupo social sustentasse um convívio, caso
contrário um espaço caótico seria deflagrado. Desse modo se, a violência era elemento de transgressão e
ao mesmo tempo regulação do social quais seriam os meios analíticos de se empreender um estudo sobre a
violência na região?
Sob essas questões é que se tornou um possível uma análise da violência no sudoeste do Paraná por
outra perspectiva. Um olhar que viu na violência não apenas a luta pela terra, mas também uma outra luta
pela terra, uma outra violência, uma violência que tinha uma função social: organizar e ordenar a sociedade
diante de duas questões. A primeira e mais evidente era a inoperância da aparelhagem judiciária e todo seu
instrumental (polícia, corpo burocrático etc.); a segunda e que se relaciona com a primeira é a da necessidade
de auto-regulação das injustiças e violências na região. Esse segundo aspecto fazia com que uma segunda
violência se justificasse em razão da primeira. Desse modo, é que o linchamento de Pacifico pode ser
compreendido enquanto um fenômeno de regulação social ao mesmo tempo em que veículo de vazão de
sentimentos populares como ódio, a vingança e o próprio senso de justiça transgredido.
Hannah Arendt nos afirma que “a violência freqüentemente advenha do ódio” (ARENDT 2001: 47), o
que parece ser o sentimento aplicável ao grupo de familiares e amigos das vítimas de Pacífico e responsável
em parte pelo seu linchamento. Muito provavelmente, porque essas pessoas tinham a impressão de que havia,
“razão para supor que as condições poderiam ser mudadas, mas não são” (ARENDT 2001: 47), ou seja, diante
da impunidade dos crimes praticados por Pacífico a população acabou fomentando um ódio que se materializou
no linchamento, porque “reagimos com ódio apenas quando nosso senso de justiça é ofendido (...)”(ARENDT
2001: 47), o que esclarece em muito o porque agir de forma tão extremada contra alguém, tendo em vista ainda
que “a violência – o agir sem argumentar, sem o discurso ou sem contar com as conseqüências – é o único
modo de reequilibrar as balanças da justiça” (ARENDT 2001: 48), talvez por isso a justiça popular no sudoeste
tenha sido a “tecnologia de organização social” efetivada por seus habitantes diante de tais circunstâncias e
acontecimentos. É neste sentido, que Arendt afirma que a violência coletiva possui um caráter atrativo, ela é o
vetor de transposição e exacerbação de interesses e vontades diante da oportunidade de vazão do ato violento.
Por isso, o ato “linchamento” no sudoeste não se encerra no caso de Pacífico, mas acontece novamente em
1946 na região, quando um latrocida encontrou dura sorte no que deveria ser a sua transferência da cidade
diante da revolta popular que não permitiu seu transporte.
Assim, é imprescindível que se estabeleça que o território e a população no caso de Pacífico estão
intrinsecamente relacionados com a segurança e a justiça na região sudoeste na década de 1920. Ou seja, neste
período a região começava a ser colonizada efetivamente através da migração de colonos do Rio Grande do Sul
e de Santa Catarina que se deu de forma ilegal e sem organização oficial dos aparelhos de controle do Estado,
acontecimento esse que só se intensificará na década de 1950 com as políticas do governo Bento Munhoz
da Rocha Neto. Em outras palavras, os mecanismos de controle e regulação da população, extremamente
relacionados com o território e sua configuração, não estavam estabelecidos de forma sistemática e operacional.
Daí o “vácuo” de justiça (formal) e de administração de punições para injustiças e crimes. Não havendo
Entendido aqui no sentido posto por Michel Foucault, onde o “governo’, num sentido amplo, seriam as, “técnicas e
procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens”. In: FOUCAULT, M. Resumo dos Cursos do Collège de France (19701982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p.101.
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saída para a população a única alternativa seria que o grupo social em maioria através de um conjunto de
concepções25 morais e éticas efetivasse um mecanismo de ordenação e normalização dos excessos de seus
indivíduos.
Resumidamente seria essa a forma com que o “governo dos homens” pode ser estabelecido em um
território “sem” aparelhagem de Estado, propriamente dita. No caso de Pacífico e os acontecimentos de violência
que se avolumaram em torno dos seus atos, é de fundamental importância que se leve em consideração a forma
com que esse mecanismo de segurança realizado pela população através do linchamento pôde ser legítimo e
justificável aos olhos de seus carrascos e juízes26.
No entanto, a violência está presente num campo empírico muito maior do que apenas nos atos de um
corpo institucional. Ela se verifica no cotidiano, no dia-a-dia, nas relações entre homens e mulheres e destes
com as crianças, há ainda a violência em nome de um destino manifesto, além da violência na política e suas
várias faces. Tendo isso em vista, este trabalho se concentrou em torno de “uma violência” que permanece por
se fazer: “trata-se dos pequenos incidentes violentos da vida cotidiana que constituem a vida social (...). Essa
violência endêmica é ainda mais interessante de estudar por fazer parte das tensões sociais ao mesmo tempo
– e isso paradoxalmente – que das formas de sociabilidade. Assim permite melhor compreender as sociedades
passadas nas relações que mantém com o sangue, a dor, o combate, as rixas, os conflitos” (FARGE 1993: 771),
ao mesmo tempo em que torna possível a análise de formas sutis que salientam que as sociedades repousam
também sobre o crime, o conflito, a crise “com tudo que isso provoca de horror, com tudo o que isso faz
nascer de solidariedades e contra-solidariedades” (FARGE 1993: 771), onde – e o caso de Pacífico comprova
– a violência é capaz de catalisar ao seu redor diversas manifestações de sensibilidades coletivas, emoções
capazes de motivar atitudes extremas em nome de seus sentimentos e impulsos27.
Se a violência pode ser entendida também como “instância central de definição de toda relação política
entre os homens” (DUARTE 2004:.35), essa relação não pode ser encarada como determinante da política,
porque para Hannah Arendt a política é a instância pública da preservação da vida e da promoção da felicidade
do homem. Assim, Arendt afirma que o poder enquanto poder é gerado mutuamente pelos cidadãos e a violência
isola e dispensa os indivíduos, enquanto o poder é um fim em si, a violência é “puramente instrumental, ou
seja, não é mais que um meio para atingir determinado fim através da coerção” (DUARTE 2004:35); ou seja,
para Arendt o poder “nace siempre, cuando los hombres se reunen y actúan juntos; su legitimidad no se basa
em los en los fines ni medios que un grupo asume; nace del poder que coincide con la fundación del grupo”
(ARENDT citado por: HEUER 2004: 79).
Em seu ensaio intitulado Sobre a Violência de 1969, Hannah Arendt de início faz uma distinção
fundamental entre a violência, o poder, a força e o vigor porque são palavras que implicam, para além de um
problema de gramática, em uma perspectiva histórica (DUARTE 2004: 36). Assim não são sinônimos porque
a violência é um fenômeno em si mesmo e se distingue “por seu caráter instrumental” (DUARTE 2004: 37).
Desse modo, “a violência pode ser justificável, mas nunca será legítima” (DUARTE 2004: 36), porque “sua
justificação perde em plausibilidade quando mais o fim almejado distancia-se no futuro” (DUARTE 2004:
40). Porém, para Arendt, assim como para Foucault, poder e violência aparecem freqüentemente juntos, desse
modo a idéia-comum de governo enquanto a dominação do homem pelo homem através da violência se
dissolve através da noção de que, a “violência sempre pode destruir o poder” (ARENDT 2001: 42).
A violência então, se encontra relacionada com os seus implementos, suas ferramentas num contexto
em que, “o domínio pela violência advém de onde o poder está sendo perdido” (ARENDT 2001: 42). Então,
não resta alternativa além do uso dos implementos da violência para o estabelecimento da dominação. Sob
estas considerações as agressões praticadas por Pacífico contra os caboclos da região parece condizerem com
essa relação de estabelecimento da dominação através do uso da violência diante do enfraquecimento do seu
poder. Dessa forma “poder e violência são opostos” (ARENDT 2001: 44), e se, por um lado, “a violência pode
destruir o poder; ela é absolutamente incapaz de criá-lo” (ARENDT 2001: 44). Mas, o que dizer do fato de que
a complexidade em se conceituar a violência advém justamente da capacidade que esta (a violência), possui
de criar novas formas de atuação e de efetivação em práticas diversas?
Assim, mesmo com uma lacuna documental pode-se especular que o linchamento de Pacifico se relaciona
intrinsecamente com o fato de a justiça e seu sistema interno de funcionamento não terem sido capazes de realizar justiça. Sendo
que, a população o fez a seu modo segundo sentimentos como o de indignação, ódio e cólera.
27
Porém, é necessário que não se confunda essa violência do sudoeste do Paraná em ato de violência e Estado de
violência. Porque “a inexistência de atos de violência pode coexistir pacificamente com um estado de violência” (PADILHA 1971:
181-2), e este, nos parece ser o caso do sudoeste do Paraná neste período. Nele residem atos de violência em nome de uma ordem
social, como demonstra o caso de Pacifico e seu filho.
26
87
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 76-88, 2007.
Assim, o problema desta violência criminosa (linchamento) de um grupo contra uma pessoa, pode
ser compreendido historicamente de que forma, com que instrumentos, por qual perspectiva? A análise do
processo de 1920 contra Pacifico nos levanta algumas possibilidades. O que se sobressai é que a inoperância
do aparelho judiciário que ao mesmo tempo legitima uma ação violenta em nome da justiça e ordem, também
motiva e alimenta os sentimentos populares capazes de agir violentamente.
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Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 76-88, 2007.
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Uma Leitura Possível da Crônica da Tomada de Ceuta, levando em conta a
Representação do Infante D. Henrique nessa obra de Zurara
André Luiz Bertoli*
Resumo: Nesse trabalho foi realizada uma análise sobre a primeira obra oficial do cronista-régio Gomes
Eanes de Zurara, a Crônica da Tomada de Ceuta (1449-50). Assim sendo, o recorte temporal e o tema
geral desse trabalho é o início da Expansão Atlântica Portuguesa na primeira metade do século XV, suas
estratégias políticas, meios de legitimação e, mais especificamente, como na obra de Zurara a imagem
de D. Henrique foi construída e representou os valores do cavaleiro cristão, ideal que permeou a nobreza
portuguesa e sua ação no Marrocos. Para a realização desse trabalho, procurou-se um método apropriado
para a análise de uma crônica medieval, na qual foi analisado um conjunto de valores representados em
um personagem. Então, se buscou na história cultural o cabedal teórico-metodológico pertinente a este
trabalho, já que se trabalhou com representações e valores sociais.
Palavras-chave: Crônica; Infante D. Henrique; historiografia; representação; Zurara.
Abstract: In this article we made an analysis about the first official chronicle of the chronicler Gomes
Eanes de Zurara, the Crônica da Tomada de Ceuta (1449-50). The period of time and the general subject
of this article is the beginning of the Portuguese Atlantic Expansion in the first half of XV century, its
political strategies and ways of legitimating, more specifically, how in the work of Zurara the image of
D. Henrique was made and how it represented the values of the cristian knight, ideal that continued in
the thought of Portuguese nobility and in its action in Marrocco. To do this work, we have searched an
appropriate method to analyze a medieval chronicle that has analyzed a group of values represented in
a carachter. Then, we have searched through the cultural history the theoretician and methodological
pertinent fundamentation to this article, since we have worked with representation and social values.
Key-words: Cronicle; Infante D. Henrique; historiography; representation; Zurara.
Introdução
No seguinte trabalho foi realizado uma análise da Crônica da Tomada de Ceuta de Gomes Eanes de
Zurara. Assim sendo, o recorte temporal e o tema geral foram o início da Expansão Atlântica Portuguesa na
primeira metade do século XV, suas estratégias políticas, meios de legitimação, e principalmente, como os
valores que estavam em vigor na nobreza foram representados na figura do Infante D. Henrique na citada obra
de Zurara.
Para o desenvolvimento deste trabalho foi necessário o uso de fontes históricas, as quais foram: o
Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa),1 escrito entre 1423 e 1438 pelo rei português D.
Duarte; e a Crônica da Tomada de Ceuta,2 escrita entre 1449-50 por Gomes Eanes de Zurara. Segue-se abaixo
Graduado em História; bolsista do CNPq 2005-2006; vinculado ao Núcleo de Estudos Mediterrâneos da UFPR; orientadora
Fátima Regina Fernandes, pesquisadora do CNPq e professora do Departamento de História da UFPR.
1
D. DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Edição diplomática. Lisboa: Editorial
Estampa, 1982.
2
ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica da Tomada de Ceuta. S/e. Sintra: Publicações Europa-América, 1992.
*
89
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 89-102, 2007.
BERTOLI, A. L. Uma Leitura Possível da Crônica da Tomada Ceuta...
uma breve apresentação dos autores e dos documentos.
D. Duarte (1391-1438) era filho do rei D. João I de Avis (1385-1433), sendo seu sucessor de 1433 a
1438. Antes de ser monarca D. Duarte esteve diretamente ligado aos feitos da conquista de Ceuta e aos planos
de manutenção dessa praça. Uma de suas obras é o Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte, uma fonte
narrativa contemporânea aos fatos que narra, pois é uma coletânea das memórias que D. Duarte redigiu ao
longo de sua vida.
Esse documento é composto de 97 capítulos, onde se encontram discussões sobre assuntos políticos,
militares, econômicos, sociais, culturais e religiosos. No entanto, só foram utilizados os trechos que trataram
sobre a guerra contra os mouros e, principalmente, dos valores e virtudes cristãs que permeavam a nobreza
do contexto no qual estava inserido D. Henrique. Destacam-se os capítulos 6, 8, 9, 10, 11, 20, 21, 22 e 52.
Ao trabalhar com esses capítulos do Livro da Cartuxa, foram expostos as dúvidas e os conflitos de interesses
dentro da monarquia portuguesa que determinaram a continuidade do movimento expansionista e de luta
contra o “infiel” no Marrocos após a conquista de Ceuta (1415), que teve como conseqüência direta o desastre
de Tânger (1437).
Já o cronista Gomes Eanes de Zurara, nasceu na década de 1410, pouco antes do feito de Ceuta, e
morreu cerca de 1473. Foi cronista-mor e guarda-mor da Torre do Tombo desde 1454, após Fernão Lopes.
Em suas obras procurou exaltar e lembrar as glórias e feitos exemplares dos nobres portugueses. Zurara é
considerado o primeiro “historiador” oficial dos descobrimentos.
A primeira obra oficial desse cronista foi a Crônica da Tomada de Ceuta, que narra a conquista dessa
praça marroquina, um dos feitos mais importantes no reinado de D. João I. Essa narrativa é composta de
105 capítulos, tendo sido terminada em 1450. Foram esboçados dentro de seu momento redacional quais
os aspectos e pessoas destacados pelo cronista, e buscou-se compreender porque Zurara deu mais atenção a
certos elementos e individualidades desse contexto, com destaque ao Infante D. Henrique.
Para isso, buscou-se descortinar os interesses que permearam a produção da Crônica da Tomada de
Ceuta e qual a ligação entre Zurara e o Infante D. Henrique. Primeiramente, foi questionado porque D. Henrique
foi o escolhido para representar a figura heróica de destaque na narrativa. Em seguida, buscou-se definir como
a figura de D. Henrique foi construída por Zurara e representou os valores que permeavam o imaginário da
nobreza, além de como estes valores tiveram influência nas ações portuguesas no início da expansão lusa e na
guerra contra o mouro.
Nota-se que a questão de maior importância proposta nesse trabalho diz respeito à construção acerca
da imagem do Infante D. Henrique, que foi um personagem de grande destaque na Crônica, principalmente,
no momento da batalha contra os mouros defensores de Ceuta. Por essa e outras razões, levantou-se a hipótese
de ele ser o personagem principal dessa Crônica, e não o rei D. João I. No decorrer da narrativa se nota a
construção de um perfil cavaleiresco para D. Henrique, sendo sua primeira representação oficial, que, séculos
depois, se tornaria o Navegador.
1. Revisão Bibliográfica
O método historiográfico escolhido para o desenvolvimento do seguinte trabalho, é condizente a
problemática de discutir e expor os aspectos culturais, os valores vigentes na sociedade portuguesa do século
XV, e a exposição desses pelo cronista Zurara na representação que construiu sobre D. Henrique. Como o
foco foi sobre essa representação, expor-se-á a opinião de alguns autores sobre a questão da representação.
Malerba3 a apresentou sob a ótica de Norbert Elias, onde o último propõe um conceito que se esquiva do
entendimento maniqueísta de mundo real versus mundo representado, ou seja, são dois mundos que se
imbricam, contribuindo para uma análise das representações culturais e políticas, que no caso da Crônica de
Zurara se cruzam organicamente.
Isso porque os valores expostos por Zurara, mesmo que não praticados cotidianamente pelos nobres
e pela sociedade portuguesa, permeavam seu imaginário e definiam seu comportamento. As representações
do ideário cristão e seus valores regulavam a sociedade, e pesavam ainda mais sobre os nobres que deveriam
exercer o papel do cavaleiro cristão, aquele que deveria lutar em nome de Deus, a favor da justiça, e contra os
inimigos da “verdadeira fé”.
3
MALERBA, Jurandir. Para uma teoria simbólica: conexões entre Elias e Bourdieu. In.: CARDOSO, Ciro Flamaryon; e,
MALERBA, Jurandir. Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. S/e. Campinas: Papirus, 2000.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 89-102, 2007.
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BERTOLI, A. L. Uma Leitura Possível da Crônica da Tomada Ceuta...
Da bibliografia mais especializada sobre a Expansão Portuguesa, foram utilizados autores clássicos
e atuais. Um deles é Jaime Cortesão, que escreveu na primeira metade do século XX, e buscou os traços
essenciais que marcaram o fenômeno dos Descobrimentos,4 explicando a expansão como resultado do
crescimento comercial do fim da Idade Média. Por outro lado, também associou o caráter religioso aos fatores
econômicos, e forneceu uma análise política da Revolução de Avis como um dos fatores responsáveis na
formação da origem nacional e centralização do reino, que facilitou o início da expansão. Esse autor chamou
atenção à conquista de Ceuta, destacando seu papel estratégico, militar e econômico, ajustado ao suposto
interesse luso pelo trigo daquela região. Também viu na conquista de Ceuta o primeiro passo de um projeto
português já definido: chegar ao Oriente. E para o autor D. Henrique foi mais um regulador da expansão do
que um conquistador.
Outra obra clássica utilizada foi Os Descobrimentos e a economia mundial, de Vitorino Magalhães
Godinho. Nessa obra o autor preocupou-se em destacar o papel dos fatores econômicos na gênese da expansão
ultramarina, centrando-se na análise das estruturas ao longo dos séculos XV e XVI.5 Godinho ressaltou o
caráter moderno da expansão portuguesa, mas não excluiu a contradição existente nesse processo: as tradições
medievais em oposição às orientações mercantis, notadas em um tipo social híbrido, denominado por Godinho
como “cavaleiro-mercador”. E, ao abordar a conquista de Ceuta, diferente da opinião de Cortesão, Godinho
observou que não bastava como justificativa o objetivo de abastecer o reino de trigo, pois se tratava de uma
questão muito mais complexa, uma vez que o cultivo de trigo era mais desenvolvido noutras regiões do
Marrocos.
Como contraponto a essas leituras clássicas, há a leitura de Luís Filipe Thomaz. Utilizou-se aqui parte
de seu livro De Ceuta a Timor, que se destaca por sua abordagem da história política. Em relação à tradicional
afirmação de que a expansão marítima foi resultado do desenvolvimento do comércio europeu, Thomaz
recomendou aos leitores desconfiarem do nexo de causalidade direta entre a expansão lusa e a expansão do
comércio europeu.6 Por isso, deve-se procurar definir as particularidades do caso português, como também as
características comuns ao restante da Europa.
Para Thomaz, Marrocos interessava fundamentalmente à nobreza militar que lá encontraria pilhagens,
prêmios e cargos, ou seja, interesses vinculados à realidade medieval7. Isso é acentuado pelo fato da classe
mercantil portuguesa, ter sido quem arcou com os pesados tributos destinados aos financiamentos necessários
das primeiras conquistas portuguesas fora da Península Ibérica.
Ele também é contrário à justificativa do trigo de Ceuta como outro elemento de incentivo a conquista,
já que o celeiro de trigo localizava-se ao sul do Marrocos. Mas, sua crítica mais forte recaiu sobre a explicação
teleológica de Antônio Sérgio e Jaime Cortesão do “plano das Índias”, pois esses autores reforçaram uma
definição precoce dos objetivos portugueses, que segundo eles almejavam alcançar um espaço geográfico
ainda desconhecido no início dos quatrocentos.
Thomaz também chamou a atenção para duas tendências no reino português: a Ibérica, que estava
diretamente vinculada aos interesses da nobreza portuguesa em Granada; e a Atlântica, que tinha seus
principais interesses no norte da África, e posteriormente, nas Ilhas Atlânticas. O que diferenciava essas duas
tendências era a política defendida por seus representantes frente a Coroa. Enquanto a tendência Ibérica era
voltada para o continente, apoiando o estreitamento dos laços com Castela e a possibilidade da conquista de
Granada, a tendência Atlântica foi caracterizada pelos interesses num alargamento das relações portuguesas
com a Inglaterra e Flandres.
Já Charles R. Boxer, historiador inglês, produziu livros dentro da temática abordada desde os anos 1930
até a década de 1980. Estando distante dos conflitos de ordem nacionalista que envolvia muitos historiadores
lusos de seu tempo, percebeu dificuldade em isolar as razões da expansão marítima, optando por apresentá-las
sem hierarquia, sugerindo antes uma imbricação de fatores religiosos, econômicos, estratégicos e políticos não
hierarquizados. 8
Em seu livro Império colonial português (1415-1825), Boxer propôs explicar o paradoxo histórico
de como um país pouco povoado, desprovido de uma frota importante e de uma praça comercial de primeiro
4
CORTESÃO, Jaime. Obras completas 1 e 2 – Os Descobrimentos Portugueses I e II. S/e. Lisboa: Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 1990. (original de 1958-60).
5
GODINHO, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. 2a edição. Lisboa: Editorial Presença,
1981-1985, vol. 1, p. 07.
6
THOMAZ, Luís Filipe F. R. De Ceuta a Timor. 2ª ed. Lisboa: Difel, 1994, p 3-15.
7
Id. Ibidem, p. 64.
8
BOXER, Charles R. Império colonial português (1415-1825). S/e. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 41.
91
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 89-102, 2007.
BERTOLI, A. L. Uma Leitura Possível da Crônica da Tomada Ceuta...
plano, manteve um vasto império por tanto tempo. O que interessa na obra de Boxer no presente trabalho é
sua análise do momento inicial da expansão lusa, marcada pela conquista de Ceuta, que deu a base para a
construção do futuro Império português.
Também foi utilizado o primeiro volume de A fundação do Império Português 1415-1580,9 onde
Bailey W. Diffie e George D. Winius elaboraram uma síntese do primeiro momento da expansão marítima
portuguesa. Nesse trabalho os autores não se aprofundaram na discussão historiográfica, pois preferiram
trabalhar diretamente com as fontes.
Na continuação, o texto de Fátima Regina Fernandes tem destaque no corrente trabalho, pois aborda as
continuidades e mudanças10 decorrentes da crise dinástica no final do século XIV, fim da dinastia de Borgonha e
ascensão de Avis. Nesse contexto, a autora deu destaque à mudança dos líderes de linhagens. Essa ascensão dos
segundos filhos da nobreza portuguesa se desenrolou junto aos conflitos internos do reino, que posteriormente
influenciaram na crise sucessória após a morte de D. Duarte (1438), como também no período da regência do
Infante D. Pedro (1439-1448).
Em Portugal en el Mundo, de Joaquim V. Serrão, nota-se uma abordagem da expansão portuguesa
e de sua política internacional. Entretanto, o destaque desse livro é a afirmação de um prematuro caráter
nacional do reino e do movimento ultramarino português. A posição de Serrão em relação à expansão marítima
portuguesa é que as raízes deste movimento já estavam postas no período da Reconquista Cristã, mas só
frutificaram depois da crise política de 1383-1385 e da paz firmada com Castela em 1411.11 Segundo Serrão,
sem assegurar a paz com o reino vizinho e conformar uma forte coesão interna, não seria possível Portugal
lançar-se na aventura atlântica.
2. Da conquista de Ceuta ao pós-Alfarrobeira
Para a continuidade do trabalho a contextualização se fez necessária. Um aspecto a ser destacado na
definição contextual é a pressão social interna em Portugal, tanto da nobreza (pressão que variava conforme os
interesses das facções nobiliárquicas)12 como dos Concelhos Municipais. Esse fator ajudava no desenvolvimento
ou entrave do movimento ultramarino, que dependia da soma de interesses dominantes e não unicamente da
Coroa.13
Também foram abordadas as relações portuguesas com os povos do Atlântico Norte e mediterrânicos,
como também as relações de Portugal com os reinos ibéricos, destacando as pressões castelhanas. Observar
as relações diplomáticas leva o leitor a pensar o espaço da expansão portuguesa, e notar a mudança da
estratégia de Portugal, que redirecionou seu objetivo da Península Ibérica para o Atlântico. Além disso, foram
averiguadas as dúvidas presentes na partida para Ceuta, e como essas influenciaram o repensar da continuidade
do Movimento Ultramarino.
Segundo Joaquim V. Serrão, após a definição das fronteiras portuguesa na Península Ibérica do século
XIII, o reino luso não conquistou mais territórios no período que se convencionou chamar de “Reconquista
Cristã”.14 Essa luta contra os “infiéis” foi à tônica ideológica da Baixa Idade Média luso-espanhola, e
permaneceu arraigada na mentalidade da nobreza para além do medievo. Depois desse precoce estabelecimento
das fronteiras de Portugal, a Coroa portuguesa se defrontou com vários problemas inter-relacionados: como
fazer frente às pretensões castelhanas de anexação dos territórios portugueses; a continuidade da expansão
em seguida da Reconquista já finalizada por Portugal; e a constante pressão da nobreza que buscava sua
legitimação e mercês.15
A necessidade de resolver esses problemas é multiplicada após a morte de D. Fernando de Borgonha,
rei de Portugal até 1383, ao qual sucedeu-se uma crise dinástica. Isso porque sua única herdeira, D. Beatriz, era
DIFFIE, Bailey W., e WINIUS, Gerge D. A fundação do Império Português 1415-1508. V. I. Lisboa: Vega, 1993.
FERNANDES, Fátima R. A participação da nobreza na expansão ultramarina portuguesa. In.: Revista de Estudos Ibero
Americanos. Ed. Especial: Brasil 500 anos. Porto Alegre, PUC/RS, 2000, p. 119.
11
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Portugal en el Mundo – un itinerário de dimensión universal. 1º edição, Madrid:
Editorial Mapfre, 1992, p. 57-8.
12
Já na década de 1430, sobre os interesses divergentes dos nobres lusos em torno da guerra contra os “infiéis” na
Península Ibérica ou no Marrocos, ver os capítulos 6, 8, 9, 10, 11, 20 e 22, de D. DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D.
Duarte. Op. Cit.
13
Como afirma Thomaz: “(...) as soluções adoptadas pelos Portugueses (...) foram fruto de uma sucessão de
compromissos, mais do que da concretização de um plano preconcebido”. THOMAZ, Luís Filipe F. R. Op. Cit., p. 205.
14
SERRÃO, J. V. Portugal en el Mundo. Op. Cit., p. 58.
15
FERNANDES, Op. Cit., p.116.
9
10
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92
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casada com D. João I, rei de Castela, que ameaçava a autonomia lusa por ter pretensões à Coroa portuguesa.
No entanto, houve uma alternativa frente à anexação de Portugal por Castela: D. João (1357-1433), o Mestre
de Avis, irmão ilegítimo do falecido rei D. Fernando.16
Esse período é considerado um momento de mutação na estrutura social lusa, já que a nobreza tradicional
perdeu seus direitos e senhorios ao apoiar a invasão de Castela, e foi substituída pelos filhos segundos das casas
senhoriais.17 Essa invasão foi frustrada com a derrota definitiva dos castelhanos na batalha de Aljubarrota, em
14 de agosto de 1385.
Notou-se que uma gama de interesses, principalmente as aquisições de privilégios por parte da nobreza,
foram determinantes no que se refere à ascensão da nova dinastia portuguesa. Somado a isso, também se
observou que diferente do que ocorria até então, o primeiro rei de Avis casou com uma nobre inglesa, Dona
Filipa de Lencastre, firmando uma aliança fora do âmbito ibérico. Com isso, os ingleses apoiaram a nova
dinastia lusa, fazendo frente à ameaça castelhano-francesa. Embora parte da historiografia tenha construído a
idéia de que D. João I foi “colocado” no poder por uma insurreição popular e burguesa, se constatou que, foi o
apoio da segunda nobreza que finalizou e definiu a ascensão da dinastia de Avis em Portugal no ano de 1385.
No que diz respeito à instabilidade política da Península Ibérica, apesar do contrato provisório de paz
assinado em 1411, Portugal e Castela continuavam em constante tensão. Isso determinou as ações da coroa
portuguesa no movimento de expansão, como uma saída preventiva18 à anexação por Castela, além de cercear
suas pretensões sobre os territórios no ultramar.
Para que houvesse resistência portuguesa, e sua reafirmação como um reino independente frente à
Castela, foram necessários um grande feito e uma base ideológica – como a fé, a honra e o proveito – que
incentivasse a participação da maioria dos nobres portugueses. 19 A expansão para além da Península Ibérica
foi uma das estratégias utilizadas, e objetivava convergir os interesses20 da nobreza lusa, até então mergulhada
em conflitos internos.
Esses fatores caracterizaram um “período de transição”, onde a política de centralização foi acompanhada
pela necessidade da manutenção do papel da nobreza guerreira. Segundo Fátima Fernandes, existiu uma
dialética de continuidade/mudança21 na política régia desse período. Continuidade no sentido de manutenção
da tradicional estrutura social lusa, marcada pela política senhorial. Entretanto, com a ascensão da dinastia
de Avis, essa política senhorial foi balanceada por uma mudança na base de apoio da monarquia, quando as
municipalidades favorecidas se aproximaram do monarca. O apoio dos nobres e das municipalidades facilitou
o direcionamento dos diversos interesses existentes em Portugal e, conseqüentemente, das ações régias. Assim,
pode-se concluir que a partida para o além-mar foi movida, entre outros fatores, por necessidades senhoriais,
sendo conduzida por reis que buscavam a centralização do poder, e financiada involuntariamente pelo Terceiro
Estado22 que não era isento das taxas como os nobres e o clero.
Essa política colocada em prática pelos monarcas de Avis, D. João I e D. Duarte, e também pelo
regente D. Pedro, pode ser chamada de “dinâmica” frente a tradicional política senhorial empreendida em
Portugal nos quatrocentos, já que a primeira se destinava à centralização do poder real, enquanto a segunda
dificultava a tentativa de centralizar e melhor governar o reino. Assim, no reinado de D. João I e subseqüentes,
nobres emergentes esperavam concessões e privilégios,23 e pela falta de possibilidade da guerra no continente
por conta da paz com Castela, a maioria da nobreza apoiou a idéia de combater os mouros no norte da África.
Dessa maneira, tentou-se pôr para fora de Portugal os conflitos senhoriais ao criar oportunidades de satisfazer
e justificar o papel dos nobres, amenizando as disputas e esboçando uma centralização do poder régio.
Em meio a este ambiente, a estratégia a ser seguida configurou-se na luta por Granada ou Ceuta. Como
Castela já tinha o reino de Granada em sujeição e considerava sua prerrogativa conquistá-lo, a opção portuguesa
foi Ceuta. Esse movimento contra uma praça marroquina, inicialmente não contou com a unanimidade das
forças sócio-políticas portuguesas.24 Essa disparidade pode ser notada tanto na classe mercantil, relacionada
BERTOLI, A. L. Uma Leitura Possível da Crônica da Tomada Ceuta...
aos financiamentos forçados para manter a expansão, como também na nobreza, dividida entre a guerra no
Marrocos ou a possibilidade da conquista de Granada após uma aproximação de Castela.
O interesse por Granada logo no início da Crônica foi descartado por Zurara, que por escrever em
1449-50 já sabia dos acertos entre Portugal e Castela em 1409.25 Na continuidade da narrativa, após a morte
da rainha Filipa, alguns nobres colocaram em questão se seria ou não “serviço de Deus” atacar Ceuta. Mas,
a pressão dos Infantes e dos que os apoiavam acabou por determinar o ataque a Ceuta.26 Caso semelhante foi
visto no capítulo LXII, quando alguns falaram a favor do retorno a Portugal, outros tentaram convencer o rei
a atacar a cidade de Gibraltar no Reino de Granada, mas, os favoráveis a filhar Ceuta, convenceram o rei a
continuar o projeto inicial.
Além desses trechos da primeira Crônica régia de Zurara, também há evidências que comprovam as
divergências de interesses entre os nobres através de cartas enviadas aos dois primeiros monarcas da dinastia
de Avis, já na década de 1430. Essas cartas e conselhos foram transcritos pelo rei D. Duarte no Livro da
Cartuxa.
Como se pode notar na leitura dessas, um grande número de nobres, dentre eles o Conde de Arraiolos,27
o Conde de Barcelos28 (D. Afonso, filho bastardo de D. João I), Conde de Ourém29 e outros, eram favoráveis a
atacar Granada. Quem esperava “fazer serviço a Deus” com a guerra contra os muçulmanos marroquinos era
D. Henrique30 e D. Fernando. E os que consideravam a guerra contra os “infiéis” de Granada e/ou do Magreb
como uma despesa muito cara, eram os infantes D. Pedro e D. João, sendo seu principal apoio os Concelhos
Municipais e um pequeno grupo de nobres. Mesmo assim, os partidos favoráveis à guerra contra os mouros
foram vitoriosos, e pela falta de possibilidade da guerra no continente por causa da paz com Castela, moveram
guerra aos mouros no norte da África, conquistando Ceuta e atacando outras praças posteriormente.
Todavia, para que as viagens iniciais para o ultramar fossem movidas pelos portugueses foi necessário
um ajustamento de forças que propiciasse condições favoráveis, das quais se destacaram o advento da dinastia
de Avis e a paz com o Reino de Castela em 1411, que foi reafirmada em 1421. Além disso, também houve
a necessidade de novas terras para cultivo e o ideal cruzadístico da luta contra o mouro “infiel”. Assim,
Marrocos, tido como terra fértil e opulenta, exerceu atração sobre os portugueses, que justificavam a agressão
por ser terra de “infiéis”.
Após a morte de D. João I, D. Duarte reinou brevemente (1433-1438), sendo em seu reinado que
ocorreu a travessia do Cabo Bojador (1434) e o ataque a Tânger (1437), onde os portugueses foram derrotados
e o Infante D. Fernando ficou como refém dos mouros até sua morte, em 1443. Em seguida, com a morte do rei
D. Duarte e a menoridade do herdeiro D. Afonso V (1432-1481), houve uma nova divisão das forças do reino:
de um lado os Infantes D. Pedro e D. João e a maioria das municipalidades; do outro, a rainha D. Leonor e D.
Afonso – então Conde de Barcelos – que lideravam as principais linhagens de Portugal, interessados numa
política régia voltada à nobreza.
No ano de 1440, D. Pedro foi eleito regente em detrimento da rainha D. Leonor. Essa regência foi
marcada por uma política, como dito acima, mais “dinâmica”. Nesse momento a guerra no Marrocos entrou
num período de estagnação até 1458. D. Pedro foi regente até a maioridade de D. Afonso V, que ao assumir
o trono em 1448 voltou-se para o partido a nobreza terratenente de Portugal, ou seja, a facção liderada por D.
Afonso, já Duque de Bragança. No ano seguinte aconteceu a batalha de Alfarrobeira (1449), na qual o grupo
mais “dinâmico” foi vencido pelo tradicional, resultando no reforço do senhorialismo31 promovido pelo rei D.
Afonso V, e também na perseguição e silêncio em torno da Casa do antigo regente D. Pedro.
A partir da leitura da bibliografia percebeu-se que com a soma dos acontecimentos acima, o Infante D.
Henrique32 viu-se impossibilitado de atacar frontalmente o Marrocos, e por isso renovou as viagens para o sul
do Bojador em 1441. Desta forma, os homens do Infante D. Henrique, então considerado “coordenador”33 das
viagens para o Ultramar, reproduziram ao sul do Bojador as atividades bélicas desenvolvidas no estreito de
SERRÃO, J. V. História de Portugal. V. I – Estado, Pátria e Nação (1080-1415). 3º edição, s/l: Editorial Verbo, 1979, p.
296 e 305-306.
17
FERNANDES, Op. Cit., p. 107.
18
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. A economia política dos descobrimentos. In: NOVAES, Adauto (Org.). A descoberta
do homem e do mundo. S/e. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 193.
19
SANTOS, João Marinho dos. A expansão pela espada e pela cruz. In: NOVAES, Adauto (Org.). Op. Cit, p. 150.
20
Interesses da grande nobreza.
21
FERNANDES, Op. Cit., p. 119.
22
Principal setor tributado para cobrir as despesas das empreitadas no ultramar.
23
SERRÃO, J. V. História de Portugal. V. II – A formação do Estado Moderno (1415-1495). 3ºedição. Lisboa: Editorial
Verbo, 1º de Março de 1980, p. 152-154.
25
Como se lê a seguir “... porquanto o reino de Grada lhe pareceu (ao rei D. João) mais azado para a guerra que outro
algum, fez saber a intenção ao Infante Dom Fernando, porquanto os reis de Castela têm assim aquele reino quase em sogeição,
dizendo que é da sua conquista.” ZURARA, Op. Cit., Capítulo VII, p. 54.
26
Id. Ibidem, Capítulo XLVII e Capítulo XLVIII.
27
Capítulo 8 – Carta do conde de Arraiolos. In.: D. DUARTE. Op. Cit., p. 56-64.
28
Capítulo 9 – Conselho do Conde de Barcelos. In.: Id. Ibidem, p. 65-68.
29
Capítulo 10 – Conselho do Conde d’Ourem. In.: Id. Ib., p. 69-73
30
Capítulo 20 – Conselho do Infante D. Henrique. In.: Id. Ib., p. 116-120
31
FERNANDES, Op. Cit., p. 111.
32
Segundo a historiografia tradicional, o infante D. Henrique – considerado um homem entregue aos ideais de Cruzada
– se tornou o grande responsável pelo arranque definitivo da expansão e pela manutenção de Ceuta.
33
CORTESÃO, Op. Cit.
16
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Gibraltar e no Marrocos. Realizavam ataques rápidos nos quais os territórios eram saqueados “honradamente”.
Sem esquecer a “guerra santa”, D. Henrique também “promoveu” a colonização dos arquipélagos de Madeira
e Açores e, em 1448, ordenou aos mareantes que comerciassem pacificamente com os habitantes das costas da
África.
Existiram diversas razões para que algumas autoridades do reino se interessassem por um movimento
para além do Bojador, dentre elas: causas estratégicas34 e geográficas, políticas e religiosas, econômicas e
sociais. Independente da postura contrária por parte da alta nobreza, as viagens de reconhecimento para o sul
do continente africano tiveram um impulso maior durante a regência de D. Pedro. Para isso, em 1443, o último
concedeu o monopólio dessas rotas em favor de D. Henrique, que controlava as rotas como um senhorio,
ganhando prestígio e rendas.
Por conta do interesse de combater os mouros e, no fim de sua vida, por ter incentivado o desenvolvimento
da cartografia náutica, muitos historiadores consideraram a hipótese de que D. Henrique tinha a idéia de
circundar o continente africano e chegar até à Índia das especiarias. Estudos mais recentes demonstram que,
inicialmente, o horizonte geográfico desse príncipe era muito mais limitado, pois além do Magreb só distinguia
o legendário reino cristão do Preste João, com o qual esperava firmar uma aliança contra a ameaça muçulmana,
o que nunca se concretizou.
Dos territórios mais ao sul chegaram novos produtos que, por interessarem aos europeus, acarretou no
alargamento mercantil e econômico português.35 Com o desenrolar das navegações foram atingidos o Cabo
Bojador em 1434, o Rio do Ouro em 1436, início do povoamento do Açores em 1439, Álvaro Fernandes
dobrou o Cabo Verde em 1444, Cadamosto descobriu algumas ilhas do Cabo Verde em 1456, e alcançaram
Serra Leoa em 1460, ano da morte do Infante D. Henrique.
Após visualizar a contextualização, o leitor pode notar que as condições no território luso foram
mutáveis ao longo do século XV. 36 Viu-se que se tornou definitiva a ascensão da nova dinastia, e de uma
nobreza que foi a base de seu poder, além de notar o estreitamento das relações entre o rei e o Terceiro Estado,
que, mesmo a contragosto, financiou as viagens para o ultramar.
3. O Infante D. Henrique e o cronista Gomes Eanes de Zurara
Como pode ser notado na Introdução, Zurara viveu durante os primeiros momentos da expansão
ultramarina e quando os conflitos internos marcavam a ascensão de D. Afonso V ao trono português. No
início desse reinado, marcado pela batalha de Alfarrobeira (1449), Zurara escreveu sua primeira Crônica por
encomenda do monarca, ainda antes de ser nomeado cronista régio.
Segundo Joaquim V. Serrão, Zurara começou a freqüentar a Corte de D. Afonso V cerca de 1446, por
sua proximidade do preceptor do monarca, Mateus Pisano,37 e ajuda de Fernão Lopes. Assim, já em 1449
guardava as escrituras régias no castelo de Lisboa. Além disso, esse pobre filho de cônego foi feito cavaleiro
da Ordem de Cristo38 – governada por D. Henrique –, e também nomeado no ano de 1454 como guardador das
escrituras da Torre do Tombo e cronista régio.
Além da Crônica da Tomada de Ceuta, Zurara também compôs outras obras, sendo elas: a Crônica
dos Feitos da Guiné (1452-53); a Crônica do Conde D. Pedro de Meneses, que governou a praça de Ceuta
entre 1415 a 1437; e a Crônica de D. Duarte de Meneses, fronteiro de Alcácer Ceguer no tempo de D. Afonso
V. Todas as suas obras tiveram caráter laudatório, enaltecendo os grandes nobres do reino, como o fez com a
figura do Infante D. Henrique na Crônica da Tomada de Ceuta e na Crônica da Conquista da Guiné. 39
Sobre o Infante D. Henrique, sabe-se que nasceu em 4 de março de 1394, foi o quinto filho de D. João
I e Filipa de Lencastre. Como os irmãos, foi criado em um ambiente de grande fé e moral católica, com forte
influência da corte inglesa de onde era sua mãe, e também do misticismo e moral militante da cavalaria.
No ano de 1408, com 14 anos, recebeu do rei D. João I Casa à parte com servidores, rendas, fidalgos e
escudeiros. Três anos depois, segundo afirmação de Zurara, D. Henrique foi o mais insistente a favor de mover
34
CAMPOS, Pedro Moacyr & HOLANDA, S. B. de. As etapas dos descobrimentos portugueses. In: HOLANDA, S. B.
de. (Dir.). História geral da civilização brasileira. S/e. São Paulo: Difel, 1968, p. 26.
35
Ver BOXER, Op. Cit., p. 41; GODINHO, Op. Cit., V. 1, p. 07; e, THOMAZ, Op. Cit., p. 64.
36
MARQUES, A. H. de Oliveira. Breve História de Portugal. Lisboa: Presença, 1995, p.170.
37
Humanista de Pisa chamado pelo regente D. Pedro para exercer o papel de preceptor do monarca D. Afonso V.
SERRÃO, J. V. Cronistas do Século XV posteriores a Fernão Lopes. 1º ed. Lisboa: ICP/SEIC/MEIC, 1977, p. 38-39.
38
Título anterior a sua nomeação como cronista régio e guarda da Torre do Tombo em 1454
39
CIDADE, Ernani, &, SELVAGEM, Carlos. Cultura Portuguesa. V. 2. S/l: Empresa Nacional de Publicidade, s/a, p.
137.
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BERTOLI, A. L. Uma Leitura Possível da Crônica da Tomada Ceuta...
um verdadeiro feito de armas frente aos “infiéis”. Desde então D. Henrique aparece como grande partidário
da política militar no Marrocos, influenciado pelo ideal cruzadístico e pela ambição de realizar grandes feitos
a “serviço de Deus e do reino”.40 Na obra de Zurara, o Infante D. Henrique foi o mais valoroso combatente no
ataque a Ceuta. Ao retornar a Portugal, ele recebeu o ducado de Viseu e o senhorio de Covilhã, sendo ele e seu
irmão D. Pedro, que recebeu o ducado de Coimbra, os primeiros duques de Portugal.
Com a decisão de manter Ceuta como domínio luso, em 1416 D. Henrique recebeu os cargos de vedor
e superintendente dos negócios de Ceuta e da defesa marítima da costa algarvia contra a pirataria berbere, e
para provê-lo dos recursos necessários para tal feito, D. João I, com anuência do papado, nomeou o Infante
D. Henrique governador e regedor da Ordem de Cristo no ano de 1418. No ano seguinte repeliu o cerco
mouro contra Ceuta, conseguindo impedir sua perda. Ali ficou algum tempo, levantando informações sobre
os domínios muçulmanas no norte da África, para a realização de outra conquista nesse território, o que não
vingou naquele momento.41
Após a morte de seu pai e o início do reinado de seu irmão D. Duarte, o Infante D. Henrique concentrou
seus esforços em um ataque a Tânger, para o qual D. Duarte e parte da alta nobreza foram relutantes, mas
aceitaram. As preparações foram feitas ao longo de 1436, e um ano depois foi realizado o ataque sob o
comando de D. Henrique. As conseqüências foram à derrota lusa e a permanência do Infante D. Fernando
como refém dos mouros. Um ano depois o rei D. Duarte faleceu e, em 1440, o Infante D. Pedro foi levantado
regente de Portugal. Nesse momento houve uma pausa aos ataques no Marrocos, mas navegações para o sul
da costa africana avançaram, sendo que, em 1442, D. Henrique recebeu do irmão e regente D. Pedro o direito
sobre o monopólio das navegações e comércio dos produtos encontrados, o que funcionou como um senhorio
marítimo.
Após a ascensão de D. Afonso V ao trono e a batalha de Alfarrobeira, em decorrência da política
senhorialista empreendida por esse rei, em meados da década de 1450, foram reanimados os projetos de
conquistas no Marrocos. O rei D. Afonso V, que já havia armado homens e uma frota para marchar contra os
turcos em Constantinopla, mas por impossibilidade de ir a tal cidade, foi aconselhado por D. Henrique a mudar
seus planos e dirigir suas tropas contra a praça de Alcácer-Ceger. Sob o comando de D. Henrique, os lusos
conquistaram essa praça em 1458.42
Em 13 de novembro de 1460 faleceu o Infante D. Henrique, considerado organizador das empresas
lusas no além-mar na primeira metade do século XV, o que não significa que era um mareante e descobridor.
Morreu endividado e sem alcançar seu objetivo de cercar e destruir as forças islâmicas. Todavia, deixou uma
enorme herança para o reino português, pois organizou e possibilitou, juntamente com o Infante D. Pedro, a
abertura de caminhos antes desconhecidos.43
Como se pode averiguar, Zurara foi feito cavaleiro e comendador da Ordem de Cristo pelo seu
governador, o Infante D. Henrique. O que levou a conclusão de que esses dois personagens tinham relações
em comum, na qual o cronista foi favorecido com um cargo importante dentro de uma ordem militar religiosa,
enquanto D. Henrique ganhou papel de destaque em um dos escritos mais importantes do período, o que lhe
aumentou seu prestígio como cavaleiro cristão português. Outro fator importante que justificou Zurara ter
exaltado D. Henrique, também foi o fato desse Infante ser uma das últimas testemunhas vivas e sãs que foram
consultadas pelo cronista. 44 Isso justificaria a omissão de Zurara quanto às ações de outros personagens, como
também o destaque que deu aos feitos desse príncipe português.
4. Possíveis análises sobre a Crônica da Tomada de Ceuta
A Crônica da Tomada de Ceuta é o relato oficial do ataque à dita praça marroquina. Tal Crônica foi
iniciada em 1449 e terminada no ano seguinte, ou seja, 35 anos após a conquista de Ceuta. Como se pode
notar, essa obra contém um discurso legitimador da política expansionista portuguesa empreendida após a
conquista de Ceuta e um elogio a grandes nobres do reino, dos quais o Infante D. Henrique foi especialmente
destacado.
Zurara justificou a falta de alguns fatos no relato, pois “nós (o autor) começamos de escrever trinta e quatro
SERRÃO, J. V. Portugal en el Mundo. Op. Cit., p. 65.
Id. Ib., p. 67.
42
MARQUES, Op. Cit., p. 125.
43
SERRÃO, J. V. Portugal en el Mundo. Op. Cit., p. 70.
44
ZURARA, Op. Cit. Capítulo II, p. 43..
45
Id. Ibidem, Capítulo II, p. 43.
40
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anos depois da sua tomada”45 e a maioria das pessoas que participaram do ataque a praça de Ceuta já haviam
falecido. Mas, no último parágrafo da página 43, afirmou que o Infante D. Henrique colaborou com ele ao
relatar suas memórias. E, no capítulo III, o cronista novamente falou do atraso no escrever a Crônica, já
encomendada pelo rei D. Duarte a Fernão Lopes, mas que foi repassada a Gomes Eanes de Zurara pelo rei D.
Afonso V, como se vê a seguir:
“(...) e porquanto o mui alto e mui excelente Príncipe e senhor el-Rei Dom Afonso, o quinto, ao
tempo que primeiramente começou de governar seus reinos soube como os feitos de seu avô ficavam
por acabar, considerando como o tempo escorregava cada vez mais (...) porém mandou a mim, Gomes
Eanes de Zurara, seu criado, que me trabalhasse de as ajuntar e escrever per tal guisa, que, ao tempo que
se houvessem de ordenar em crônica, fossem achadas sem falecimento (...)” 46
Nesse trecho foi mostrado ao leitor que D. Afonso V encomendou a Zurara escrever sobre a conquista
de Ceuta, ou seja, uma encomenda régia para a manutenção da lembrança dos feitos portugueses e seus
protagonistas. Esse estilo narrativo era padrão nas Crônicas oficiais, onde eram enaltecidos figuras de destaque
e seus grandiosos feitos. Zurara fez uma lista dos principais nobres que acompanharam o rei D. João I e seus
filhos na realização do ataque e conquista de Ceuta.47
Desta forma, o objetivo dessa narrativa pode ser notado na retórica do estilo cronístico, onde o autor
enalteceu D. João I, a cidade de Ceuta e o feito de sua conquista pelos portugueses. Conquista que, segundo o
cronista, foi realizada por Fé e teve como recompensa o proveito tirado da vitória. Por conseguinte, a guerra
feita pela “vontade de Deus” contra o “infiel” acarretou na conquista de uma praça marroquina muçulmana,
onde se acreditava ter riquezas e oportunidades.48
Observou-se na conclusão, quando Zurara agradeceu a Deus por ter terminado seu trabalho em louvor
de tão grande Rei e nobres portugueses, o cronista nomeou os protagonistas que tomaram parte naquela
empreitada, agradecendo o falecido rei D. Duarte e o ainda vivo Infante D. Henrique, respectivamente, pai e
tio de D. Afonso V.49 O cronista também fez um pedido para que os cristãos não se esquecessem do grande
favor prestado a Deus pelos lusos, pois foram eles os primeiros cristãos a conquistar uma praça marroquina
após séculos de domínio islâmico naquela região. Nessa obra também se encontra, representado por Zurara,
a descrição da cidade, uma curta história de sua fundação, a atenção ao seu valor comercial e estratégico,
as razões que levaram à execução da façanha, a forma de conquista e a determinação de mantê-la, além da
representação dos heróis e seus feitos naquela empreitada, tendo o último aspecto grande destaque.
Nomes como o Infante D. Henrique, o herdeiro D. Duarte, Conde D. Pedro de Meneses, e outros
nobres, foram exaltados por Zurara por realizarem serviços em nome de Deus, do rei, e de sua própria honra.
Nesse sentido, apontou-se na Crônica onde o pivô das ações portuguesas foi D. Henrique, dentre as quais, ter
sido nomeado o principal capitão dos primeiros homens a filharem terra por D. João I, e, conseqüentemente,
ter sido um dos primeiros a se bater contra os “infiéis”.50
Em relação a D. João I, dos 105 capítulos da Crônica somente na primeira metade a figura desse
monarca teve destaque, mas competindo com a atenção que o autor despendeu aos Infantes (D. Duarte, D.
Pedro e D. Henrique). Geralmente o papel do rei nessa Crônica foi na constante convocação do Conselho.
Assim, D. João foi representado por Zurara como um governante ciente da necessidade do apoio da nobreza
para a governação do reino e decisões de guerra.51
Um exemplo da atitude conciliativa do rei está no capítulo LXII, onde Zurara narrou o Conselho que
o rei teve após a primeira tentativa de aportar em Ceuta. Como afirmou Zurara na página 204, “foi o conselho
partido em três partes ss. uns disseram que era bem todavia tornar a Ceuta; outros disseram que filhassem
Gibraltar; outros que se tornassem para Portugal.” E no parágrafo seguinte, “dos que eram em conselho de
filharem Ceuta, principalmente foram os Infantes.” Por fim, a opinião da família régia prevaleceu, e o rei
determinou que atacassem Ceuta.
Como se pode notar, o rei não foi um personagem de grande destaque na ação, mas desenvolveu seu
papel de intermediador entre os nobres, e quase sempre teve a palavra final nos Conselhos. Isso se constatou
até o capítulo LXV, desse capítulo até o capítulo XCIV foi narrado o ataque e conquista de Ceuta, onde o rei
Id. Ib. Capítulo III, p. 44-45.
Id. Ib. Capítulo L, p. 78.
48 Id. Ib. Capítulo II, p. 41.
49 Id. Ib. Capítulo CV, p. 294-295.
50 Id. Ib. Capítulo LXIV, p. 209.
51
Id. Ib. Capítulo XLVII, p. 170.
46
47
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BERTOLI, A. L. Uma Leitura Possível da Crônica da Tomada Ceuta...
aparece como um personagem coadjuvante. Todavia, nesses capítulos, o herdeiro D. Duarte e o Infante D.
Henrique, com maior atenção ao segundo, foram os personagens que lideraram as forças lusas no conflito
contra os mouros. Assim sendo, o mérito da tomada de Ceuta na narrativa de Zurara recaiu, em sua maioria,
sobre D. Henrique, reduzindo o papel de seus irmãos D. Duarte e D. Pedro, além do próprio monarca D. João
I.
Essa constatação pode ser notada ao longo da obra de Zurara, mas o capítulo CI da Crônica da Tomada
de Ceuta a expõe claramente. A cena descrita nesse capítulo tem de entender-se no clima pós-Alfarrobeira, e
não no período da conquista da praça mauritana em 1415. Isso porque em decorrência dos conflitos intestinos
do reino português, na Corte de D. Afonso V foi manifestado um silêncio em torno do antigo regente D.
Pedro. O último e os seus partidários na nobreza foram considerados traidores do rei até 1456, quando houve
a reconciliação da família real.52
Diz-se que para escrever a Crônica da Tomada de Ceuta, Zurara utilizou papéis e anotações deixados
por Fernão Lopes. Esse é um dos motivos dos estudiosos dessa Crônica a considerar a terceira parte da
Crônica de Dom João I, as duas primeiras de Fernão Lopes. O outro motivo, é o fato de Zurara ter narrado
um dos principais feitos ocorridos no reinado de D. João I. Assim, partindo de uma pesquisa sobre o cronista
Zurara e sua narrativa, esboçou-se uma sugestão de resposta ao questionamento se essa seria, ou não, uma
Crônica a respeito da vida e feitos de D. João I. A conclusão a que se chegou é que o personagem principal
dessa obra é D. Henrique, e por isso, na Crônica foi analisada a representação do Infante D. Henrique feita por
Zurara.
Como escreveu Luís de Albuquerque53 no Dicionário de História de Portugal dirigido por Joel
Serrão, depois de seis séculos de construções e representações em torno de D. Henrique, como o ideal do
cavaleiro cristão, o herói português, o navegador, e outros, fica difícil desmistificar as construções em torno
desse personagem. E, pelo fato do Infante D. Henrique ter grande destaque na obra de Zurara, os leitores da
Crônica geralmente têm a idéia de que ele foi o primeiro e o principal homem na empreitada, o inspirador e
primeiro guia dos Descobrimentos. Ou seja, ao falar sobre o Infante D. Henrique, logo se lembra da Expansão
Ultramarina, e vice-versa.
Enquanto Henrique foi exaltado em demasia, seus irmãos mais velhos, D. Duarte e D. Pedro, não
tiveram o mesmo destaque na obra de Zurara. D. Duarte ainda foi exaltado, já D. Pedro teve uma participação
ínfima na Crônica. Isso porque, como já dito acima, esses elementos da Crônica têm de entender-se no clima
do pós-Alfarrobeira, e não durante a conquista de Ceuta em 1415.
Como pode ser notado na leitura da Crônica da Tomada de Ceuta, o personagem do Infante Henrique que
Zurara descreveu, de feição idealista e que se destacou na política ultramarina, foi o D. Henrique da fase pós1440, quando o seu prestígio e feitos fizeram dele a figura de proa da empresa ultramarina portuguesa. Por
isso, foi analisada na Crônica da Tomada de Ceuta a primeira construção de um perfil para D. Henrique.
Para isso, foram expostos os valores cristãos e cavaleirescos que permearam essa Crônica, onde se
buscou averiguar quais deles podem ser notados na representação do Infante D. Henrique. Trabalho semelhante
foi feito com o Livro da Cartuxa de D. Duarte, com ênfase na análise do capítulo 21, que tem como título
“Conselho espeçial que el rey noso senhor deu ao ifante dom anrrique quando se partio com a armada que foy
sobre Tanjer”.
Segundo Zurara, há dois caminhos a serem seguidos: o da virtude e o da deleitação (capítulo XLVI). O
segundo nos levaria direto ao Inferno, enquanto o primeiro definiria o bom e verdadeiro homem que iria para
junto de Deus e dos Santos, além de alcançar a honra entre os homens. Já os valores que definiriam o caminho
da virtude eram sete, divididas entre os cardeais e teologais.
Os Cardeais pertenciam ao encaminhamento da bem ordenada vida, e eram: a Justiça, a Prudência,
a Temperança e a Fortaleza. Já os Teologais pertenciam inteiramente à alma, e fariam parte dessas: a Fé,
a Caridade e a Piedade. As virtudes cavaleirescas eram ligadas às cristãs, mas eram diferenciadas em suas
práticas: a Contenença, a Lealdade, a Honra, a Determinação, a Grande e Boa Vontade de Coração, o Valor do
sangue, a Coragem, a Liderança, a Discrição.
Dessas, algumas apareceram pouco e outras muito. As de maior destaque na obra de Zurara foram às
ligadas aos feitos de guerra, ou seja, valores que o cavaleiro ideal deveria ter. E, ao longo da Crônica, prestando
atenção a determinados trechos, pode-se averiguar que a figura do Infante D. Henrique teve destaque como o
SERRÃO, J. V. História de Portugal. V. II. Op.Cit., p. 80.
SERRÃO, Joel (dir.) Dicionário de História de Portugal. S/e. Porto: Livraria Figueirinhas, 1984, p. 195-198.
54
ZURARA, Op. Cit. Capítulos II e XXIII, pp. 43 e 10.
52
53
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 89-102, 2007.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 89-102, 2007.
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cavaleiro cristão ideal, e dentre as suas virtudes que mais apareceram: duas vezes “avantagem de realeza”54;
quatro vezes “honra”55 e “fortaleza”56; seis vezes “fé, serviço de Deus, luta contra os “infiéis”57, “boa vontade”58,
“coragem”59, “liderança”60 e “lealdade”61; oito vezes “disposto aos feitos do corpo e da cavalaria”62.
Assim pode-se concluir, como já afirmado acima, que dentre as virtudes de D. Henrique destacadas
por Zurara em sua obra, as que tiveram maior ocorrência foram as que trataram dos feitos de guerra; da fé; da
boa vontade na realização de feitos que honrassem Deus, o rei, e o seu próprio nome; da coragem frente aos
inimigos e aos grandes perigos; da liderança em horas decisivas; mas também, da lealdade e obediência ao rei
e a seu irmão e herdeiro. Virtudes essas que Zurara afirmou ser de todos os homens cristãos honrados, mas que
eram destacadas em D. Henrique.
Já no capítulo 21 do Livro da Cartuxa, escrito pelo rei D. Duarte a seu irmão D. Henrique, pode-se
notar que era um conselho de como proceder no cerco e ataque à praça marroquina de Tânger. Esta carta é
datada de 10 de setembro de 1437, pouco antes das forças portuguesas lideradas pelo Infante D. Henrique
se dirigirem para a região marroquina. O que foi encontrado nesse capítulo, além de conselhos estratégicos,
foram conselhos sobre como se portar frente aos cristãos e aos mouros. Assim, D. Henrique foi aconselhado
por seu irmão a proceder com justiça e verdade, mantendo uma atitude que não se distanciasse da justiça e
vontade de Deus.63
Deveria manter a esperança em Deus, e ao obter o proveito, sempre o fazer com justiça. Ser bom
e prover os bons servidores, recompensando sua lealdade discretamente.64 Realizar todos os feitos com
perfeição, com a graça e vontade de Deus, e que fizessem seu serviço honradamente, pois as forças lideradas
por D. Henrique foram armadas por mando e serviço de Deus.65 Dessa forma, os homens deviam lealdade a
Deus, a D. Henrique – que representava o rei –, e a todos os capitães. Os feitos deveriam ser realizados com
esforço e fortaleza, por mais adversas que fossem as circunstâncias, pois eram serviços para Deus e para o rei
D. Duarte, manter e se esforçar no bom propósito do grande feito de luta contra os mouros e conquista de uma
cidade islâmica.66
Aconselhou a todos os homens a serem piedosos uns com os outros, perdoando uma injúria antiga
e não colocando sua própria honra acima da vontade de Deus e honra do rei.67 Assim, a luta feita por Deus
contra os infiéis era justa e bem feita, mas não a inimizade entre cristãos. E além da piedade com os outros,
também deveriam agir com misericórdia, principalmente no que envolvesse mulheres, moços e os cativos
que não representassem ameaça, não matando indiscriminadamente. Isso porque Deus não quer a morte do
pecador, mas sua conversão.68 Para isso, todos deveriam realizar e suportar seus feitos com valentia e coragem,
e também ter cuidado com o que chamavam de virtude da castidade, que agradava a Deus.69
As virtudes citadas e aconselhadas por D. Duarte a seu irmão D. Henrique eram constituintes de
uma moral cristã que permeava a cultura ibérica da época e, conseqüentemente, a mentalidade dos nobres
portugueses, ao menos como um ideal a ser seguido, mesmo que não fosse cotidianamente praticado.
O principal representante dessas virtudes na Crônica da Tomada de Ceuta foi o Infante D. Henrique.
Até o capítulo LXI as virtudes que foram destacadas eram mais ordeiras e não os valores do cavaleiro e
guerreiro cristão. A partir do capítulo citado acima, as virtudes destacadas foram às ligadas a uma atitude
guerreira. Alcançar e demonstrar tais virtudes na Cruzada, de preferência contra os mouros era o ideal da
cavalaria ainda no quatrocentos. No Livro da Cartuxa os conselhos dirigidos pelo monarca D. Duarte eram
para o mesmo D. Henrique, o qual é ressaltado como bom homem, grande nobre de Portugal, e valoroso
cavaleiro cristão.
Como se pode notar em ambas as fontes, os valores que se destacaram sempre eram ligados à fé, pois
55
56
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58
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61
62
Id. Ib. Capítulos XV, LXXVI, LXXVIII e LXXXV, pp. 78, 233, 236 e 251.
Id. Ib. Capítulos XXV, LXXVIII e LXXX, pp. 104-105, 236, 237 e 240.
Id. Ibidem, Capítulos XIII, XIV, LXIX, LXXVIII, LXXX e LXXXI, pp. 74, 218, 236, 240 e 243.
Id. Ib. Capítulos XV, XLI, LXIX, LXXV, LXXVIII e LXXXI, pp. 78, 154, 218, 232, 236 e 243.
Id. Ib. Capítulos XXV, LXVI, LXXVIII e LXXX, pp. 104-105, 212, 236-237 e 240.
Id. Ib. Capítulos XXV, LXVI, LXXIII, LXXVIII e C, pp. 137, 212, 228, 236 e 283.
Id. Ib. Capítulos XXXIX, LXVI, LXVI, LXXIII, LXXVIII e C, pp. 150, 212, 228, 236 e 283.
Id. Ib. Capítulos XV, XXV, XXXV, XLIX, LXVI, LXXV, LXXX e LXXXI, pp. 78, 104-105, 137, 176, 212, 232, 240
e 242.
63
D. DUARTE. Op. Cit., p. 121.
64
Id. Ibidem, p. 122.
65
Id. Ib., p. 123.
66
Id. Ib., p. 124.
67
Id. Ib., p. 125.
68
Id. Ib., p. 128.
69
Id. Ib., p. 132.
99
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BERTOLI, A. L. Uma Leitura Possível da Crônica da Tomada Ceuta...
até as virtudes guerreiras do cavaleiro cristão eram permeadas pela “vontade de Deus”. As idéias e valores
cristãos expostos nesses textos podem ser notados em outras fontes, principalmente aquelas que tratam da
cavalaria cristã. Destas pode-se citar o Livro del Orden de Caballeria de Ramón Llull, no qual esse homem
do século XIII traçou o perfil do cavaleiro cristão ibérico, destacando a perspectiva cruzadística, expansionista
e guerreira.
Segundo foi visto no texto70 de Ricardo da Costa, o pensamento e a obra de Ramón Llull permite
analisar a visão cristã da cavalaria peninsular diretamente envolvida no contato com o “outro”: o muçulmano.
Pode-se notar isso nas duas fontes utilizadas para a construção desse trabalho, mesmo que elas tenham sido
escritas aproximadamente um século e meio depois.
A partir do século XV o muçulmano aguerrido voltou a figurar como o grande inimigo português. Para
enfrentar essa antiga e constante ameaça, foi necessário reavivar costumes e idéias vigentes na memória
histórica ibérica que contribuíssem na movimentação da nobreza portuguesa contra o mouro “infiel”. Assim,
a “avantagem de realeza”, a “boa vontade”, a “honra”, a “disposição aos feitos da cavalaria”, a “coragem”, a
“fortaleza”, a “liderança”, a “lealdade e obediência”, todos permeados pela fé e pela idéia de estar realizando
um serviço para Deus na luta contra os “infiéis”, reforçou uma construção de longa data, o perfil do cavaleiro
cristão em Portugal.
Conclusão: para quem gosta de questões
Nessa conclusão deu-se atenção ao fato das questões abordadas poderem ser retomadas e reinterpretadas,
além de serem levantadas outras hipóteses, afinal de contas, ninguém é proprietário de questões intelectuais.
Outro motivo para a afirmação no subtítulo é por existirem outras fontes de Zurara disponíveis, com as quais
se pode desenvolver um trabalho mais acurado sobre suas funções como cronista, e a relação do seu fazer
cronístico com a figura do Infante D. Henrique.
Desta forma, esse é um trabalho que pode ser estendido, pois há uma porção de fontes relacionadas à
temática da expansão quatrocentista portuguesa que podem ser analisadas dentro das mais diversas perspectivas
e métodos historiográficos. Normalmente a Crônica da Tomada de Ceuta foi, e ainda é abordada por
historiadores a partir de uma perspectiva política e econômica. O que se pretendeu aqui, foi uma leitura dessa
fonte a partir de uma perspectiva cultural, buscando os valores e os personagens representados, dos quais se
destacou o nobre D. Henrique, Infante de Avis.
Isso porque na leitura da fonte notaram-se contínuos elogios a esse Infante, e na leitura da bibliografia
perceberam-se as relações entre o cronista e cavaleiro da Ordem de Cristo Gomes Eanes de Zurara, e D.
Henrique, governador da mesma ordem. Esses elogios demonstraram os valores exaltados na cavalaria cristã e
na nobreza, sendo D. Henrique o “principal” dentre os nobres, aquele com “avantagem de realeza”,o corajoso
e forte cavaleiro que em todos os momentos da Crônica buscou realizar o melhor a serviço de Deus na luta
contra os “infiéis”.
Assim, pode-se afirmar que diferente do que é proposto pela historiografia da expansão portuguesa,
a Crônica da Tomada de Ceuta de Zurara é muito mais uma elegia aos grandes feitos de D. Henrique do
que uma Crônica sobre D. João I e seus feitos. Tanto o é, que Zurara construiu o perfil do cavaleiro cristão
ideal para D. Henrique, e para nenhum outro. Essa constatação não contradiz o fato de que nessa Crônica foi
narrado um dos principais acontecimentos do reinado de D. João I, mesmo o último não sendo o personagem
de destaque da narrativa.
No segundo momento da análise apontou-se a representação de D. Henrique. Essa construção foi
permeada pela idéia de cavaleiro cristão ideal, vigente ainda no final do medievo. Os valores necessários
para alcançar esse ideal foram expostos tanto na Crônica da Tomada de Ceuta como no Livro da Cartuxa.
Desses valores foram destacados principalmente os que diziam respeito aos feitos de Fé e na guerra, sendo
o segundo profundamente relacionado ao primeiro. Nas duas fontes os valores do cavaleiro cristão foram
direcionados ao Infante D. Henrique, provando seu profundo envolvimento em mover guerra em “nome de
Deus” contra o muçulmano.
Assim sendo, concluiu-se que nessa narrativa de Zurara foram narrados e exaltados os feitos de um
personagem de destaque do período, e pode-se afirmar que o cronista construiu em sua Crônica a primeira
representação oficial de D. Henrique. E por ele ter grande destaque na obra de Zurara, os leitores de suas
70
http://www.geocities.com/Athens/Forum/5284/ricardo.html
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BERTOLI, A. L. Uma Leitura Possível da Crônica da Tomada Ceuta...
Crônicas ao falarem sobre o Infante, logo se lembram do movimento expansionista português, e vice-versa.
Mas, como se sabe, D. Henrique não foi o único a impulsionar a expansão lusa, houve outros homens que
também se destacaram por incentivá-la. Um deles é o Infante D. Pedro, relegado ao silêncio e ao anonimato
por ter caído em desgraça para o rei D. Afonso V. Assim, o cronista deu destaque a quem e ao que agradaria a
nobreza, a corte e ao rei.
Como já afirmado acima, na Crônica da Tomada de Ceuta o personagem do Infante Henrique que
Zurara descreveu foi o D. Henrique da fase pós-1440. Essa afirmação se apóia no fato de que a principal
testemunha dos feitos de Ceuta foi o D. Henrique de 1440, além do fato de Zurara ter em seu escrito endossado
o poder e prestígio desse Infante. Qual representação seria melhor para esse do que a de um líder nato, com
grandes feitos e glórias realizadas, e que na década de 1440 comandava toda uma rede de relações ligadas ao
movimento expansionista português.
Todos os historiadores que trabalham com a figura do Infante D. Henrique no momento inicial da
expansão portuguesa, devem ter em mente a afirmação de Luís de Albuquerque71 em relação à dificuldade
de desmistificar tal personagem depois de seis séculos de construções de sua imagem. O que pode ser dito a
respeito da representação criada por Zurara é que: o Infante Henrique foi um cavaleiro cristão permeado pela
mentalidade cavaleiresca e senhorial do final do medievo, e não o Navegador que construções posteriores
afirmaram que ele foi. E aproveitamos para concluir com uma das certezas sobre o conteúdo da Crônica da
Tomada de Ceuta, que também é um de seus grandes méritos: o fato dessa ser a mais antiga obra oficial da
história ultramarina portuguesa72, que tem como tema o marco inicial desse movimento, a conquista de Ceuta,
a primeira praça cristã na África após séculos de domínio muçulmano naquele território.
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71
72
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SERRÃO, J. V. CRONISTAS DO SÉCULO XV POSTERIORES A FERNÃO LOPES. OP. CIT., P. 28.
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Requalificação urbana e ordenamento dos trabalhadores informais
no centro tradicional de Salvador
Elisangela Silva dos Santos∗
Resumo: O presente artigo propõe caracterizar o processo recente de reforma urbana da área do Comércio da Cidade Baixa de Salvador, observando o seu impacto sobre a lógica de sobrevivência dos trabalhadores informais. Visa-se identificar os critérios e mecanismos de controle para o cumprimento das
regras, os quais são utilizados pela Prefeitura Municipal de Salvador com a finalidade de ordenar a vida
dos trabalhadores informais que executam atividades na área; conhecer a rotina desses trabalhadores
e como se processa sua permanência no local em função do projeto da prefeitura. Busca-se entender o
impacto do novo cenário urbano na espontaneidade e autenticidade do fazer, criar e inventar dos modos
de ser da vida cotidiana e nas formas de execução do trabalho desses indivíduos. Observamos que ,na
Rua Riachuelo, a política de revitalização urbana produziu a exclusão dos personagens que compõem o
cenário da vida cotidiana e identidade do Comércio da Cidade Baixa.
SOCIOLOGIA
Palavras-chave: Requalificação urbana, Cultura, Trabalhadores informais.
Abstract: The present article proposes characterizing the recent process of urban reform in Comércio
section of Salvador Low City , observing its impact on the informal workers survival logic. It aims to
identify the criteria and control mechanisms for the fulfilment of the rules, which are applied by Salvador
Municipal City hall with the purpose of ordering the informal workers’ life who execute their activities
in that area; to know the routine of these workers and how their permanence is processed in the place
functioning in the city hall project. It searchs to understand the impact of the new urban scenery in the
spontaneity and authenticity of doing, creating and inventing the manners of being the daily life and the
forms of these individuals work execution. We observe that, in Riachuelo Street, the politics of urban
revival produced exclusion of the personages who compose the scene of the daily life and the identity of
Low City on Comércio section.
Word-key: Urban qualification, Culture, Informal workers.
Introdução
Este é um trabalho que surge das discussões com o grupo de pesquisa “Cultura, cidade e democracia:
sociabilidade, representações e movimentos sociais” que tem como líder o Professor Doutor Gey Espinheira,
vinculado ao Centro de Recursos Humanos da Universidade Federal da Bahia, no qual se desenvolve o
projeto intitulado “Identidade de Salvador: signos e vida cotidiana - o turismo, a cultura e a vida social dos
estabelecidos e dos desafortunados II”. Surge também de muitas de minhas inquietações a respeito da vida
∗
Licenciada em Ciências Sociais/ Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/Ufba; Graduanda em Sociologia/ Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas, /Ufba
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SANTOS, E. S. Requalificação urbana e ordenamento...
cotidiana dos trabalhadores informais localizados na área do Comércio da Cidade Baixa.
Esse é um trabalho que vem sendo realizado no bairro desde o momento em que me tornei voluntária
de pesquisa, e que vem se estruturando tendo em vista a não-linearidade do cotidiano, que é composto de
ciclos. Ao mesmo tempo, tenta aproximar-se da realidade empírica e prática, avaliando situações objetivas
e concretas (apesar de estarmos trabalhando com o subjetivo e abstrato) que representam aspectos da vida
desses indivíduos. Nessa área, a cultura se faz presente, sendo criada na vida diária, numa diversidade e
multiplicidade de interações sociais.
O bairro do Comércio, antes um entreposto comercial em plena atividade, apresenta sua funcionalidade
alterada pelo tempo. É difícil acreditar que esse lugar, hoje esvaziado e que tem em sua paisagem a mistura de
prédios abandonados e estacionamentos de longa e pequena duração, já assegurou à cidade de Salvador o título
de mais importante entreposto comercial do Atlântico Sul. Esse local, inserido na área central de Salvador,
era caracterizado como centro comercial da cidade, concentrava grande parte das atividades comerciais,
financeiras e de serviços, além de gozar de uma localização estratégica como plataforma de articulação de
Salvador com o Recôncavo e as ilhas da Baía de Todos os Santos.
No século XIX, Salvador se caracterizava como uma cidade portuária com grande movimento na área
do Comércio da Cidade Baixa, local onde se encontravam armazéns, trapiches e muitos mercados. Havia
também uma grande mistura de ruídos oriundos do comércio, dos barcos no porto, dos vendedores ambulantes
que ocupavam todo e qualquer espaço que encontravam para oferecerem seus produtos, e dos carregadores
negros curvados sob as cargas pesadas como nos conta Mattoso: “Verdadeira cidade-porto, onde o mais
humilde acotovelava o mais insigne nos afazeres da vida cotidiana” (1992, p.438).
Tempos mais recentes ,como as décadas de 60 e 70 (do século XX) ,marcam um período de transição, em
que o governo resgatou o antigo projeto de 1942, do Escritório de Planejamento Urbano da Cidade de Salvador
(EPUCS), de ocupação de vales por avenidas. Esse projeto partiu da área do Comércio e foi implementado
às avenidas Contorno, Vasco da Gama, Barros Reis, Bonocô-dentre outras. Grandes investimentos foram
feitos no eixo Iguatemi - Centro Administrativo da Bahia (CAB). Este novo complexo contribuiu para o
esvaziamento funcional do centro comercial tradicional e diminuiu a congestão do mesmo na medida em que
muitas empresas procuraram melhores instalações, áreas para estacionamento e lugares mais próximos ao
local de moradia.
Ainda na década de 70, a Rua Portugal tinha como cenário a agitação decorrente do comércio em plena
atividade, com lojas de eletrodomésticos, moda, decoração, tabacarias e bancos, fazendo desse bairro um local
de visibilidade para quem pretendia comerciar.
O comércio moderno implanta-se a partir de meados da década de 70, com a chegada dos shoppings
centers e das grandes redes de supermercados. O final dessa mesma década é marcado pela construção do
Centro Industrial de Aratu e do Pólo Petroquímico de Camaçari. Ao longo do tempo, o bairro do Comércio
deixa de ser o centro financeiro da cidade, e o novo centro de poder comercial muda-se em direção ao Iguatemi
e Avenida Tancredo Neves.
O projeto de Revitalização do Comércio, criado pela Prefeitura Municipal de Salvador, numa parceria
com o Governo do Estado da Bahia, a Companhia de Docas do Estado da Bahia e a Associação Comercial,
tem como objetivo devolver a essa área as características dos tempos de glória, perdidas com o passar dos
anos. Isso visava a um ressurgimento da área como pólo de desenvolvimento comercial, industrial, de serviços
ou até mesmo como área residencial. Para isso, foi necessária a implementação de uma série de mecanismos
(melhorias na iluminação, transformações no espaço urbano, com obras de recuperação e restauração de
prédios antigos e semi-abandonados, disciplinamento das ruas exigindo a realocação dos ambulantes etc.) no
sentido de estabelecer a ordem e dinamizar cada vez mais o ambiente. Foram feitos alguns estudos na área
e diversos projetos de intervenção vêm sendo realizados pelo governo, visando ampliar a acessibilidade a
área, requalificar praças e outros espaços públicos, assim como promover a restauração de grande número de
edifícios arruinados ou subutilizados. Os projetos governamentais visam dar impulso à revitalização da área.
Dentre eles podemos citar o Projeto de Revitalização da área portuária de Salvador, o Projeto Via Náutica,
Requalificação da Praça Cayru, etc.
No final de 2004, muitas empresas receberam incentivos fiscais, para se instalarem no local, concedidos
pela Prefeitura Municipal de Salvador e do Governo do Estado da Bahia. Os interessados em se instalar no
bairro ou retomar as atividades empresariais pagavam apenas o condomínio e o Imposto Territorial Urbano
(IPTU), além de um valor simbólico de R$ 1,00 pelas salas comerciais. A Prefeitura facilitou a negociação de
débitos antigos com o fisco municipal e a lei Municipal 6325 oferecia isenção do IPTU e reduzia para 2% a
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SANTOS, E. S. Requalificação urbana e ordenamento...
alíquota do Imposto sobre Serviços (ISS).
Conforme depoimento do gestor do Escritório de Revitalização do Comércio, busca-se revitalizar
uma área especial da cidade, gerando milhares de novos empregos, com uma política de gestão planejada e
sustentável. A captação de investidores nacionais e internacionais, motivando-os a se instalarem no local é de
fundamental importância.
Nessa área de predominância comercial, milhares de pessoas exercem diversas atividades e funções.
Muitos deles executam suas atividades nas ruas e tentam sobreviver no mercado informal. Nos entornos das
ruas do Comércio, vive-se um cotidiano em que se constroem estratégias num entrelaçamento de sujeitos,
ocorrendo situações de conflito, de cooperação e de poder. É um espaço cuja cultura baiana é construída no
dia-a-dia, abrigando “ritmos” antigos que coexistem com novos ideais de vida urbana. Conforme comenta
Espinheira (2004) é uma região em transição para um novo papel urbano que não quer perder sua identidade
na dinâmica da pós-modernidade.
Tendo como base a revitalização do Pelourinho, estabelece-se como uma das hipóteses a supressão
dos personagens que construíram a identidade do lugar, para que sejam instaladas modificações voltadas
para a dinamização do comércio e turismo, influenciando na autenticidade da vida cotidiana e criando um
artificialismo produzido e padronizado, imposto como ideal de vida urbana. Esse projeto de renovação urbana
pode vir alterar significativamente a imagem e conteúdo desta parte da cidade da Bahia, que é um dos seus
signos mais fortes.
Desenvolvimento do trabalho
Propõe-se neste trabalho caracterizar o processo recente de reforma urbana da área do Comércio da
Cidade Baixa, buscando observar o seu impacto sobre a lógica de sobrevivência dos trabalhadores informais.
Identificar os critérios e mecanismos de controle para o cumprimento das regras os quais são utilizados
pela Prefeitura Municipal de Salvador com a finalidade de ordenar a vida dos trabalhadores informais que
executam suas atividades na área; bem como conhecer a rotina desses trabalhadores e de como se processa sua
permanência no local em função do projeto da prefeitura.
Busca-se, também, entender qual o impacto do novo cenário urbano na espontaneidade e autenticidade
do fazer, criar e inventar dos modos de ser da vida cotidiana e nas formas de execução do trabalho desses
indivíduos.
Dentre os vários trabalhadores de rua que ali estão situados foram escolhidos, para a análise da
situação, os camelôs, também conhecidos como vendedores ambulantes, e os amoladores de objetos, que
tentam sobreviver num espaço fluido tal como é a rua, onde a qualquer momento eles podem ser retirados, por
conta do Projeto de Revitalização do local.
Os vendedores ambulantes selecionados foram os que estão situados na Rua Riachuelo e Rua dos
Ourives, a maioria deles são vendedores de acessórios para celular, produtos importados como rádios
gravadores, CDs em geral, acessórios para o lar, como mangueira para fogão, etc. Alguns dos ambulantes
localizados nessas áreas já sofreram as conseqüências oriundas das mudanças implantadas pela Prefeitura
Municipal, decorrentes do processo de revitalização. Também foram escolhidos os amoladores de objetos
como tesouras e alicates, aqueles que ocupam a calçada ao lado do prédio dos Correios na Avenida Estados
Unidos. Apesar do prestígio da profissão no lugar, também são fiscalizados pela prefeitura. Caso os gestores
do projeto considerem necessário, aqueles também serão re-localizados.
A realocação desses trabalhadores para lugares de pouco movimento, travessas e becos de pouca
visibilidade promove a queda nas vendas, mas, segundo os gestores da prefeitura, é uma condição necessária
para a restauração do lugar, na medida em que causam transtornos à segurança pública. Eles são alvos da
fiscalização constante do poder público, mesmo os que possuem licença para exercer suas atividades no local.
Os que não possuem a licença são perseguidos pelo rapa que, muitas vezes, apreendem suas mercadorias. A
estigmatização e exclusão surtem efeito paralisante nos grupos de menor poder, mas podem se transformar em
“armas” nas tensões e conflitos ligados ao equilíbrio de poder; “armas” poderosas para que o grupo estabelecido
preserve sua identidade grupal e afirme sua superioridade. (ELIAS; SCOTSON, 2000).
Os vendedores ambulantes de outras ruas também podem sofrer repressão por parte do órgão competente
de fiscalização. No entanto, os da Rua Portugal, que começam a chegar por causa da alta rotatividade derivada
do novo posto do SETPS1, que surgiu com a implantação do projeto de revitalização da área, ainda não sofrem
1
Sindicato das empresas de transportes de passageiros de Salvador.
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SANTOS, E. S. Requalificação urbana e ordenamento...
os mesmos impactos que os situados nas ruas Riachuelo e dos Ourives vêm sofrendo. As baianas de acarajé
são vistas como atrativo para os turistas, sendo consideradas como a autêntica representação da cultura baiana.
Há menos fiscalização por parte do poder público e mais rivalidade entre as próprias comerciantes, como
observado no Mercado Modelo.
A análise da vida dos trabalhadores informais que ali chegaram após o surgimento de empresas (como
call center) e serviços que tiveram incentivos da prefeitura para funcionar no local, decorrentes do projeto da
PMS, não será feita nesta pesquisa.
Como parte da metodologia de pesquisa, foi utilizado o método de observação direta2, tentando
compreender o cotidiano dos indivíduos que ali trabalham no setor informal e suas formas de ser e estar no
mundo, por meio de levantamento etnológico.Eles deviam ser estranhados metodologicamente, sendo então
descritos como se fossem estranhos para que a banalidade dos fatos do cotidiano não mascarasse estilos,
modos de ser e estar no mundo cujas ações são carregadas de intenções e expressam visões de mundo.
Segundo Lefebvre3, o cotidiano é o insignificante que se une à modernidade. Salienta ainda que:
Tratando-se do cotidiano, trata-se, portanto, de caracterizar a sociedade em que vivemos, que gera a
cotidianidade (e a modernidade).Trata-se de defini-la, de definir suas transformações e suas perspectivas,
retendo, entre os fatos aparentemente insignificantes, alguma coisa de essencial, e ordenando os
fatos(1991, p.35).
Como técnicas de levantamento de dados foram utilizadas: gravação magnética de entrevistas, histórias
de vida e fotografias. Foram selecionados aqueles indivíduos retirados do local onde comerciavam anteriormente
ou que podem ser retirados do lugar de trabalho futuramente, e realizado entrevistas exploratórias. Foram
entrevistos, também, os gestores da Prefeitura Municipal de Salvador, tanto da SESP4 ,quanto do Escritório
de Revitalização do Comércio, visando a entender a lógica do poder público para o cumprimento das regras e
suas políticas de intervenção urbanas direcionadas a esses trabalhadores.
O surgimento de novos trabalhadores ligados ao tema central contribuirá, ainda mais, para o
esclarecimento de minhas indagações: estudar o controle social e ordenamento desses indivíduos por
parte do poder público que tem em vista um projeto de requalificação urbana. O estudo dos decretos e leis
regulamentados pela Prefeitura Municipal de Salvador permite o entendimento da lógica do poder público
para o controle sobre os trabalhadores que executam suas atividades nos logradouros públicos, o qual visa a
dar ordem e normatizar os espaços.
Uma análise da situação de vida dos ambulantes da Rua Riachuelo vem ocorrendo onde, inclusive, já
foram feitas entrevistas com diversos ambulantes buscando perceber os impactos sofridos pelos mesmos com
a re-localização para aquele local de pouca visibilidade. 5 Para a análise de vida dos trabalhadores (englobando
as três ruas) foi determinado o número de 25 (vinte e cinco) entrevistas, tendo como média inicial de estudo
um universo de 70(setenta) trabalhadores subdivididos em categorias e subcategorias. Seria feito um breve
mapeamento destas categorias e subcategorias, onde, a partir daí, seriam escolhidos 2(dois) indivíduos para
serem aplicadas entrevistas exploratórias. Para cada categoria seria escolhida uma história de vida em que se
buscaria fazer uma entrevista mais aprofundada. Essa metodologia foi mudada com o desenrolar do tempo e
a necessidade do próprio trabalho, pois, como foi salientado anteriormente, cada trabalhador não vende um
único produto. Sendo assim, foram entrevistos na Rua Riachuelo, 6(seis) ambulantes que foram selecionados,
após algumas incursões no local, através de entrevistas exploratórias entre Novembro de 2005 a Março de
2
Buscou-se fugir dos desvios de prática do trabalho de campo na cidade que são, tal como aponta Montoya Uriarte,
2003, mais participações-observantes do que observações-participantes.
3
O autor trabalha com o conceito de cotidianidade diferente daquele que provém da Filosofia (que não pode ser
compreendido sem ela; o conceito não vem do cotidiano, apenas exprime a transformação do cotidiano vista como possível em
nome da Filosofia e exprime uma realidade que é vista fora de si mesma). Para o autor, a cotidianidade é uma realidade parcial da
vida social, um conceito que pode ser tomado como fio condutor para conhecer a sociedade e situar o cotidiano no global-cultura,
técnica, Estado, etc. Na vida cotidiana se situa o núcleo racional, o centro real da práxis. Nas páginas 19-35 a discussão sobre
cotidianidade e cotidiano é aprofundada.
4
Secretaria de Serviços Públicos
5
Os Ambulantes localizados nesta rua desempenham atividades ligadas à venda de produtos diversos. Havia um
desejo inicial de fazer um pequeno mapeamento das categorias e subcategorias na pesquisa, entretanto, o trabalho em campo
mostrou-nos um problema devido ao fato de que a maioria deles não vende um único produto. Existem aqueles que se baseiam na
sazonalidade para a venda de produtos como guarda-chuvas, sombrinhas, etc. No âmbito geral, alguns ambulantes se dedicam à
venda de artigos eletrônicos como rádios-gravadores, brinquedos, discman, outros vendem CDs, DVDs,acessórios para aparelhos
celulares,etc.Existem aqueles que oferecem produtos do vestuário íntimo feminino como sutiã e calcinha,outros vendem artigos
para o lar,etc.A diversidade de produtos é bastante grande.No que diz a respeito a serviços podemos encontrar consertos de relógio
em geral,como troca de pilhas e pulseiras.
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SANTOS, E. S. Requalificação urbana e ordenamento...
2006. Existem trabalhadores, na rua em questão, que não foram re-localizados, era preciso selecionar apenas
aqueles que ocupavam outras ruas e foram colocados ali em função do projeto.
Processo de intervenção urbana
O estudo sobre as metrópoles e seu aparato produtivo, riqueza, poder e população, na grande maioria dos
países, adquiriu grande importância, na medida em que o processo de reestruturação produtiva vem contribuindo
para o crescimento, revitalização de seu papel e, também, para uma nova geografia e uma arquitetura produtiva
que qualifica e desqualifica os espaços em função de fluxos mundializados. Tais mudanças vêm impactando
sobre a morfologia territorial e social e funcionamento dessas grandes cidades. (CARVALHO; SOUZA;
PEREIRA, 2004).
O entendimento dos acontecimentos e transformações que se dão numa cidade como Salvador, uma
referência urbana importante no Brasil, não apenas pelo seu contingente populacional, mas também por sua
importância histórica (tendo sido fundada há mais de 450 anos), é de grande relevância. Segundo Espinheira
(1999, p.64), “Salvador foi, desde sua fundação, um lugar no mundo, um ponto de apoio para a globalização e
modernidade”. Como já foi salientado anteriormente, Salvador é uma cidade também marcada, historicamente,
como um lugar de comércio.6
Nos dias atuais, constatamos uma cidade bela, porém, que apresenta condições bastante adversas, na
qual muitos de seus moradores sofrem as mais duras privações e se submetem a terríveis situações cotidianas.
Espinheira (1999) ainda nos diz que “a cidade de todos é ao mesmo tempo a cidade de cada um, e isso dentro das
possibilidades mais concretas de consumo”. p.70. Os distanciamentos entre as classes sociais crescem e, cada
vez mais, os lugares são marcados socialmente, para poder comportar a diversidade dos tipos sociais, mesmo
quando eles são consumidores. A separação social se faz através de estilos excludentes que personalizam
lugares, requerendo, assim, identidades que nem todos podem portar ou assumir.
O processo de globalização que atinge o país, e mais especificamente, a cidade de Salvador produz
efeitos paradoxais que, de um lado, busca a acentuação do diferente e, de outro, propõe a padronização.
A requalificação de certas áreas da cidade, com embelezamento e melhorias de áreas públicas está em
conformidade com o processo generalizado de transformação das cidades, que possui três processos centrais
constitutivos, conforme Fernandes (2003, p.74-75), os quais concentram as principais características no que
diz respeito às intervenções nas cidades:
A constituição de novas centralidades no âmbito mundial e a necessidade de um espaço monumental;
a progressiva mobilidade de pessoas, combinada a um processo crescente de celebração de uma urbanidade
idealizada; a internacionalização das metodologias de intervenção nas cidades, aliada ao papel das agências
multilaterais na condução dos financiamentos internacionais (neste caso, particularmente para os países
pobres).
Com relação à constituição de novas centralidades, estão incluídas tanto a escala territorial de
abrangência das metrópoles como a recomposição de suas funções. Os programas políticos de intervenção nas
cidades são semelhantes entre si, aliando a busca de uma nova funcionalidade urbana à recuperação de espaços
centrais tornados decadentes ou ociosos na nova configuração das grandes cidades.
A expansão dos projetos como forma de reconquistar centralidade, promovendo dinamismo urbano,
tem como pressuposto o processo de competição entre as cidades, tendendo a homogeneizar as estratégias de
recuperação dos centros7. O discurso também se ancora na chamada qualidade de vida, desdobrando-se em
atributos urbanos, nos quais limpeza, regularidade, segurança e prazer dos espaços são condições necessárias
à evasão do cotidiano.
A ação dos organismos internacionais em corpos nacionais, processo constitutivo das reformas,
encontra-se cada vez mais vinculada à ação financeira; os critérios que balizam as intervenções nas cidades
convergem em avaliações essencialmente monetário-financeiras. A nova condição urbana atende às fortes
mudanças registradas no plano da organização econômica da produção, da distribuição e do consumo. 8
A renovação busca, tal qual nos aponta Bauman (1998), a purificação em que é preciso mudar a
Veja também Mattoso, 1992.
Os pressupostos do paradigma de planejamento urbano e seus instrumentos, considerando sua disseminação no Brasil,
são citados em Ribeiro e Santos Junior, 1997.
8
Sobre evolução e transformação da condição urbana inseparável das dinâmicas econômicas, ver Portas; Domingues;
Cabral, 2003.
6
7
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maneira como as coisas costumavam ser, criando uma nova ordem. Ele ainda nos diz:
No mundo pós-moderno de estilos e padrões livremente concorrentes, há ainda um severo teste de pureza
que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mostrar-se capaz de
ser reduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de
se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na mais inebriante experiência.
Nem todos podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são ‘sujeira’ da pureza pós-moderna
(1998, p.23).
No Brasil, a reestruturação produtiva e políticas neoliberais trouxeram várias mudanças não só
expressas nas altas taxas de desemprego e no aumento da concentração de riqueza, aprofundando ainda mais
as desigualdades sociais, mas, principalmente, na precarização do trabalho, a qual fez crescer o número de
atividades não regulamentadas e o trabalho informal.
A dinâmica da região metropolitana de Salvador, também, tem ensejado o crescimento de trabalhadores
por conta própria. A atividade informal em Salvador desenrolou-se, ao longo dos séculos, como uma forma
de sobrevivência e de inserção social precarizada, além de ter sido um degrau para o desenvolvimento
capitalista.
Muitos dos trabalhadores excluídos do mercado formal, considerados mão-de-obra excedente, têm
ocupado os espaços públicos da cidade com trabalho informal para garantir o seu sustento e o de suas famílias.
Esses indivíduos vivem o cotidiano num entrelaçamento de sujeitos em que acontecem situações de conflito,
cooperação e poder.
No que diz respeito ao planejamento, este sempre atuou como aquele que deve corrigir os problemas,
solucionando os conflitos, buscando sempre eliminar as tensões e afastar os elementos opositores. 9 No
entanto, o urbanismo soteropolitano não adota o princípio democrático. A luta política pela democracia não
é internalizada nos procedimentos urbanísticos. Ele continua pautado em critérios de funcionalidade e na
dependência dos agentes construtores da cidade legal, ou seja, os comerciantes, os industriais, os agentes
imobiliários e os exploradores da indústria cultural e do turismo.
As leis pontuais são feitas para satisfazer a aqueles que requerem usos vantajosos da cidade. Segundo
Lima (2004, p.319):
[...] no Brasil o sistema jurídico não reivindica uma origem ‘popular’ ou ‘democrática’. [...] Os modelos
jurídicos de controle social, portanto, não têm nem poderiam ter como origem ‘a vontade do povo’, como
reflexo de seu estilo de vida, mas são resultado dessas formulações legais especializadas, legislativa ou
judicialmente.
Temos como exemplo claro o Pelourinho, que teve o povo que ali habitava expulso, e os comerciantes
e empresários bem sucedidos convidados, com atraentes incentivos fiscais, a ocuparem o Centro Histórico,
não respeitando as tradições, nem os rituais do povo, muito menos a memória arquitetônica e social.
As incursões feitas na Rua Riachuelo revelaram algumas situações em que as relações cotidianas se
davam em clima de bastante insatisfação, desconforto, tensão e medo. Insatisfação proveniente da queda das
vendas - por estarem localizados num local de pouca visibilidade -, e tensão constante, na medida em que
são obrigados a conviver com a chamada Feira do rolo, na qual são vendidos produtos de origem duvidosa.
Segundo Dona Maria 10, vendedora de mercadorias importadas, há uma grande quantidade de “bandidos” que
transitam constantemente na área, impedindo o desenvolvimento e crescimento das vendas. Conta-nos ainda
que a polícia passa freqüentemente pelo local à procura dos infratores; sendo, assim, o medo uma conseqüência
direta. Ela reclama que vivem no meio dos ladrões, e conclui: “essa semana os policial chegaram com a
espingarda e disse ninguém entra e ninguém sai, ficamos aqui com os fregueses assustados”.
Dona Luiza diz: “eles são os roleiro,quando tem batida da polícia aqui todo mundo é encostado na
parede ,agente e os freguês”.
Os trabalhadores da Rua Riachuelo reclamam da falta de segurança no local e alegam que a feira
produz medo aos que passam por lá, o que promove a procura dos fregueses por ruas mais seguras e visíveis.
O horário de trabalho é reduzido, pude perceber que, a partir das 16 horas, alguns ambulantes começam a
recolher o material, preparando-se para se retirar mais cedo. Ao questionar o motivo pelo qual estavam agindo
Sobre a ideologia do planejamento baiano no passado, consultar Marcel, 2005.
Para uma maior segurança dos entrevistados os nomes originais foram modificados.
9
10
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daquela maneira Dona Augusta respondeu-me: “Ficar fazendo o quê aqui minha filha? Agente tá aqui porque
não tem jeito”.
Diariamente, os ambulantes da Rua Riachuelo são obrigados a conviver com o desconforto oriundo da
falta de recursos básicos de higiene, como sanitário público, local adequado para destinação do lixo etc. Eles
constantemente reclamavam do mau cheiro do lugar, intitulando-o como o Beco do mijo.
As ações da Prefeitura Municipal de Salvador para a organização dos espaços têm como principal órgão
executor a SESP. Um dos gestores da Prefeitura Municipal de Salvador, responsável pelo setor de fiscalização
dos logradouros públicos salienta que o objetivo da Secretaria da qual faz parte é executar atividades no
sentido de permitir, regulamentar, fiscalizar e controlar o exercício de determinadas ocupações. Segundo esse
gestor, tais atividades são respaldadas pela Lei 5503 de 1999, do Código da Polícia Administrativa que é
regulamentada pelo Decreto 12016, de 1998, que trata do comércio informal de ambulantes em logradouros
públicos. Ainda nos conta que a área do Comercio possui um grande fluxo financeiro e que comercio informal
está desordenado. É feita uma fiscalização diária ,apenas aos Sábados e Domingos há um recesso. Para ele,
é preciso intensificar a fiscalização ,com isso será possível a organização da cidade ,devolvendo a mesma à
comunidade de forma mais organizada,com fácil transito e com menos problemas. Os ambulantes devem
seguir as medidas estipuladas, pois o não cumprimento das mesmas acarreta em punição.
Uma série de medidas e ações do poder público é efetivada visando a controlar e inibir essa forma
de trabalho. Grupos sociais criam regras e tentam fazer com que elas sejam seguidas em certos momentos e
circunstâncias. Tais regras definem situações e tipos de comportamentos de acordo com elas, especificando
as ações como erradas, proibindo-as, e outras como certas. A pessoa que transgride essas regras é vista como
marginal ou desviante. O termo original de marginal adotado aqui, não tem, nesse contexto, qualquer relação
com a Teoria da Marginalidade, mas, sim, com a idéia de marginalidade em relação a limites socialmente
estabelecidos. (BECKER, 1977). Neste caso, as pessoas que podem impor suas regras aos outros detêm o
poder político e econômico.
Os sistemas simbólicos, também, cumprem a sua função como instrumentos de imposição ou de
legitimação da dominação de uma classe sobre a outra, enquanto instrumentos estruturados e estruturantes
de comunicação e de conhecimento, “dando o reforço da sua própria força às relações de forças que as
fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos dominados’”
(BOURDIEU, 2004, p.11).
Espinheira afirma o que se pode observar, diariamente, na cidade de Salvador:
Nenhuma democracia em relação ao povo em Salvador, mas o oposto, rígida hierarquização de seus
espaços. Ampla aplicação de penas de exílio e exclusão. Ordenar a cidade![...] Retirar ambulantes,
acabar com economia informal, impedir que os mais pobres tomem iniciativas e ocupem os espaços
estratégicos na cidade para o exercício de suas atividades, e tudo isso numa época de desemprego
agudo, de dificuldades de sobrevivência (1999, p.74).
Na busca pela recuperação física do lugar urbano há um esvaziamento progressivo da cultura e dos
significados, cuja padronização globalizante faz iguais os lugares diferentes. Segundo Augé (1994) a presença
do passado que ultrapassa e reivindica o presente é a essência da modernidade, colocando os ritmos antigos
dos lugares em segundo plano. A supermodernidade faz do antigo um espetáculo determinado, e é produtora
de não-lugares.
Conclusão
Na área do Comercio da Cidade Baixa a sociedade se organiza, organizando a cotidianidade segundo
uma ordem de desenvolvimento comercial e turístico. A ideologia dominante não tem nada de gratuito ou
desinteressado, ela faz parte de um jogo estratégico em que ganham os detentores de maior poder econômico
e status social. A vida cotidiana e as práticas sociais acabam sendo submetidas às pressões, normas e leis.
Deve-se ter um meio estável e regular para os atos dos indivíduos que trabalham nas ruas do Comércio.
A probabilidade dos acontecimentos não deve estar atribuída ao acaso e sim organizada seguindo uma
hierarquia, na qual os acontecimentos sejam completamente prováveis.
A questão urbana contemporânea depende de uma base econômica, e as tendências das economias
urbanas no contexto da economia global são, na maioria das vezes, socialmente desintegradoras e reprodutoras
da exclusão e da pobreza para um grande contingente de pessoas.
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A aptidão de participar do jogo consumista é considerada como critério de pureza. Os consumidores
falhos são aqueles deixados de fora, como sujeira que deve ser removida. São incapazes de responder aos
atrativos do mercado consumidor por falta de recursos requeridos, incapazes de serem indivíduos livres,
levando em conta o senso de liberdade definido em função do poder de escolha do consumidor. Por isso, são
considerados como objetos fora de lugar (BAUMAN, 1998).
Salvador se esmera em camuflar as mazelas e expor suas belezas culturais e naturais para o encantamento
dos turistas, visto que o turismo e a indústria cultural são ênfases deste começo de século.
Observamos que, pelo menos na Rua Riachuelo, local onde houve um maior aprofundamento da
pesquisa, a política de revitalização urbana produziu o efeito da exclusão, afastamento e violação da cultura
dos personagens que compõem o cenário da vida cotidiana e identidade do Comércio da Cidade Baixa.
Estes são colocados em entornos distantes, em nome da ordem e da modernidade, sendo obrigados
a ali permanecerem, pois, o não cumprimento das leis acarreta-lhes prejuízos (como aprisionamento das
mercadorias) que impedem a sua sobrevivência. O não cumprimento das regras impostas pela Prefeitura
Municipal também implica num desvio que caracterizará o infrator com rotulo de desviantes. O desvio pode
ser considerado como um produto de uma transação ocorrida entre algum grupo social e alguém que é encarado
por esse grupo como um infrator de regras.
Diferentes classes e frações estão envoltas numa luta simbólica para impor a definição de mundo social
conforme seus interesses. Buscam, também, impor o campo das tomadas de posições ideológicas, reproduzindo
em forma transfigurada o campo das posições sociais.
A imposição de normas nos logradouros públicos visa a dar uma maior organização ao espaço urbano
e melhor segurança no trânsito de pessoas. Entretanto, na medida em que as imposições e diretrizes são feitas
em nome da melhoria do coletivo, mas estão apenas privilegiando a poucos de forma camuflada, identificamos
um caráter antidemocrático.
É relevante não negar que esses processos de desenvolvimento urbano favorecem o crescimento e
progresso da sociedade soteropolitana. Em contrapartida, precisamos compreender de que forma e a que preço
se dão tais processos. Por todos os cantos do Brasil e do mundo difunde-se a idéia de que Salvador é a terra
da felicidade. No entanto, temos a comprovação clara de que as coisas não são bem assim como parecem, ou
como tentam mostrar aqueles que fazem a propaganda da cidade.
As transformações modernizadoras ocorridas na área do Comércio acabam gerando uma cidadania
do consumidor, cujo valor da pessoa tem como base o seu poder aquisitivo. A cidade de Salvador vem se
tornando cada vez mais turística, muito mais ofertada para os visitantes do que para seus próprios habitantes.
Há também uma perda dos significados dos lugares e das expressões da cultura do seu povo. A globalização
requer a acentuação do diferente ao mesmo tempo em que propõe a padronização. Existe, portanto, uma
padronização globalizante que tem efeitos paradoxais. Sendo assim, como manter a diversidade, permitindo
que os sentidos sejam criados na vida cotidiana quando normas são impostas direcionando as formas de ser e
de estar no mundo desses indivíduos?
O bairro do Comércio da Cidade Baixa é um lugar de sentido inscrito e simbolizado, sendo caracterizado
em sua marca histórica como uma área de comércio. O sentido precisa ser posto em ação, para que o lugar se
anime e os percursos se efetuem. A partir da atividade comercial executada por esses trabalhadores informais
são criados discursos e linguagens que se pronunciam e dão sentido ao lugar.
Há ainda muito a ser explorado no decorrer deste trabalho, tanto teórico quanto empiricamente, que
terá como finalidade última ser apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso de Sociologia na Faculdade
de Ciências Humanas pela Universidade Federal da Bahia. No que tange às questões ou assuntos a serem
esclarecidos futuramente, existe uma intenção de fazer uma análise das legislações, usadas pelo poder público,
que respaldam o ordenamento dos espaços públicos.
Ainda é necessário fazer muitas incursões, para seleção dos atores que sofrem impactos decorrentes
do Projeto de Revitalização do Comércio. A partir dos contatos com aqueles que são alvo da fiscalização e
foram re-localizados para locais determinados pela Prefeitura, como as ruas aqui citadas, poderão surgir novos
sujeitos que se identificam ao tema central em outras ruas ou não. Será levada em consideração a observação
do grau de satisfação das pessoas quanto a estarem num local como opção dos outros, ou seja, se sentem
melhor ou pior? Por quê? Como fazem para sobreviver nesses locais? A reflexão sobre os porquês que fazem
parte desta questão, em nossa opinião, não se encerram aqui.
SANTOS, E. S. Requalificação urbana e ordenamento...
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Cauê Fraga Machado*
Rodrigo Ciconet Dornelles**
Resumo: A proposta do presente artigo é efetivar uma análise acerca das relações entre o mundo do trabalho e a deficiência em sua dimensão sociocultural. A partir de dados etnográficos e de reflexão bibliográfica, visando à compreensão dos significados construídos e elaborados socialmente na fabricação das
identidades, o que se pretende é dar conta da articulação desse processo com a produção e a reprodução
das desigualdades sociais na sociedade capitalista – especificamente, o caso brasileiro. De modo que, a
arbitrariedade dos valores atribuídos às Pessoas Portadoras de Deficiência (PPD) e a sua condição de
classe promovem a sistemática exclusão desses sujeitos do mundo do trabalho.
Palavras-chave: Mundo do trabalho, deficiência, exclusão, desigualdade social.
Abstract: The main pourpose of the present article is to conclude an analisis about the relationships
betwen the jobs world and the handicapped in a social-cultural dimension. From etnographic datas
and from books references, seeking the understanding of the social built-elaborated meanings on the
identity formulation, what is intendet to be done is up keeping this process with the production and
the repreduction of the social unequality in the capitalist society- beeing more especific, the brasilian
issue. In a way that, the worth’s judgement capacity given to handicapped people and their social class
condition promote a sistematic exclusion of this people from the jobs world.
Word-key: jobs world, handicapped, exclusion, social desiquality.
Introdução
É o mundo fenomênico, o mundo onde percebemos a essência, através de sua expressão
fenomênica. Mas o fenômeno, apesar de se constituir da essência, não expressa esta de maneira concreta,
mas apenas superficial. A essência não se traduz totalmente no fenômeno, apesar de necessitar dele
para sua representação no real. Para se conhecer a essência, necessário se faz libertação dos reflexos
fenomênicos. Necessário se faz compreender o fenômeno e essa compreensão se dá através de um olhar
não setorial, não resumido, não iludido pelo “evidente”, mas através do todo, através do geral, através
de uma busca multifacetada, através da totalidade. E esta totalidade deve ser histórica, racional, não
subjetiva ou metafísica, deve ser concreta.
Karel Kosik
*
Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
**
113
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 104-113, 2007.
Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 114-124, 2007.
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MACHADO, C. F; DORNELLES, R. C. Deficiência ou diferença:...
Este artigo tem como objetivo discutir a importância do trabalho no cotidiano dos atores sociais,
e o estigma social carregado pelos portadores de deficiência1 – o que acarreta em maiores dificuldades para
entrar no mercado de trabalho, e quando entram, o fazem ocupando as posições (cargos) de menor prestígio
social; além de trabalho precarizado e/ ou informal. É claro que as exceções existem. Todavia pretendemos
discutir a situação predominante entre as pessoas portadoras de deficiência (PPD), no Brasil.
Para tal, o trabalho será considerado categoria ontologicamente central e fundamental
para o entendimento da sociedade. “[...] é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem,
independentemente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo
entre homem e natureza e, portanto, vida humana”. (MARX, 1971. p. 50). Tendo em vista que as identidades
sociais são construídas, centralmente, pela sua inter-relação com o trabalho2, o qual também tem uma relação
na construção das sociedades. É importante ressaltar que as identidades não são estáticas, mas sim acionadas
quando necessárias, e na relação que os sujeitos têm consigo e com os outros sujeitos. Dependendo da figuração
dos espaços, as mais diversas identidades podem ser acionadas3.
Lembrando que essas relações são dialéticas, já que o homem e a sociedade não são agentes passivos
nesse processo. Pelo contrário suas ações influenciam e modificam a forma como o mundo do trabalho – que
age sobre eles – se estrutura.
Na primeira parte do artigo será discutida a centralidade dessa categoria: trabalho. Já a segunda parte
deste artigo abordará a deficiência em sua dimensão sociocultural, e não em seus aspectos clínicos ou físicos.
De acordo com Ribas (1992), a deficiência é uma identidade social, cultural e institucionalmente construída.
Pretende-se diagnosticar na deficiência sua problemática sociológica, vislumbrando que, além das
“origens clínicas (congênita ou adquirida) e do tipo (física, sensorial ou mental), é preciso perceber sua
origem, inter-relação e mútuo condicionamento social” (RIBAS. 1992, p. 4). Reconhecendo que é através de
parâmetros socioculturais que a concepção de deficiência é construída como uma espécie de capital social
negativo. O deficiente só se enxerga como tal, na medida em que os outros o vêem como diferente, acarretando
em exclusão social, o que reflete nas relações no mundo do trabalho.
No mundo, aproximadamente, 600 milhões de pessoas são deficientes físicas. Segundo Organização
Mundial da Saúde (OMS), 80% dessas pessoas vivem nos países pobres ou em desenvolvimento. Deste número,
apenas 1% a 2% têm acesso a serviços de readaptação – o que ressalta as disparidades entre países ricos e
pobres e entre zonas urbanas e rurais. No Brasil, de acordo com o senso realizado em 2000, pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a relação numérica com os dados obtidos, determinou que há
cerca de 24,5 milhões de deficientes, ou seja, há 14,5% de pessoas vivendo com algum tipo de deficiência, em
um universo de, aproximadamente, 174 milhões de habitantes.
A deficiência relacionada com os aspectos do mundo do trabalho será o objeto da abordagem da
segunda parte. Portanto serão abarcadas as características específicas do mundo do trabalho que têm relação
com a deficiência.
Trabalho
Uma aranha executa operações semelhantes aquelas levadas a cabo pelo tecelão: a construção dos favos
de mel pelas abelhas poderia envergonhar, por sua perfeição, muitos arquitetos. Mas o que distingue o
pior arquiteto da mais hábil abelha é que o arquiteto ergue sua estrutura na imaginação antes de levantála na realidade.
Karl Marx
Na economia capitalista a desigualdade social é produzida e reproduzida como uma espécie de
necessidade, já que ela faz parte do sistema e os detentores do poder político e econômico têm interesses
criados na sua manutenção. De maneira que podemos - para fins de melhor entender quem tem interesse na
conservação das desigualdades sociais-, dividir a sociedade ocidental capitalista em dois grupos distintos, a
classe-que-vive-do-trabalho:
É uma categoria – construída socialmente – com vistas a marcar negativamente uma diferença. Sendo assim, sua
utilização é feita no sentido de desnaturalizar e marcar uma posição contrária ao seu uso pejorativo. Além disso, siglas referentes,
por exemplo, aos portadores de deficiência visual (PDV) cristalizam o uso dessa expressão.
2
Trabalho pensado como a relação dialética do homem com a natureza, e do homem consigo mesmo.
3
Assim, uma mesma pessoa pode ser “deficiente”, “portadora de necessidades especiais”, “aleijado” ou, ainda, em
espaços não estigmatizantes apenas médico, pai, faxineiro, advogado, cientista.
1
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MACHADO, C. F; DORNELLES, R. C. Deficiência ou diferença:...
Ela compreende a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua força
de trabalho, não se restringindo aos trabalhadores manuais diretos, incorporando também a totalidade
do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo que vende sua força de trabalho como mercadoria
em troca de salário. Ela incorpora tanto o núcleo central do proletariado industrial, os trabalhadores
produtivos que participam diretamente do processo de criação de mais-valia e da valorização do capital
[...] e abrange também os trabalhadores improdutivos, cujos trabalhos não criam diretamente maisvalia, uma vez que são utilizados como serviço seja para uso público, como os serviços públicos, seja
para uso capitalista. [...] também incorpora o proletariado rural, que vende sua força de trabalho para
o capital [...] e o proletariado precarizado, o proletariado moderno, fabril e de serviços, part-time,
que se caracteriza pelo vínculo de trabalho temporário, pelo trabalho precarizado, em expansão na
totalidade do mundo produtivo. Inclui, ainda, em nosso entendimento, a totalidade dos trabalhadores
desempregados. (ANTUNES E ALVES. 2004, p. 342).
Em contraposição à outra classe: a dos “gestores do capital, pelo papel central que exercem no
controle, na gestão e no sistema de mando do capital, [...] os pequenos empresários, a pequena burguesia
urbana e rural que é proprietária e detentora [...] dos meios da sua produção, [...] e aqueles que vivem de juros e
especulação” (Antunes e Alves, 2004. p. 343), que não fazem parte da classe trabalhadora. Mais genericamente
a distinção entre aqueles que detém os meios de produção e os que detêm apenas a mercadoria trabalho – ou
seja, o próprio corpo e a própria vida, como capital.
O trabalho é categoria fundante do homem como ser social, na medida que através dele o homem
relaciona-se não somente com a natureza, mas também consigo mesmo e com os outros homens e, ainda,
constrói a realidade subjetiva e objetivamente. A relação do ser com o seu trabalho tem como efeito uma relação
de grande importância: a da construção da sua identidade. De modo que no capitalismo (de maneira genérica),
no qual uma classe detém os meios de produção, e outra detém apenas seu trabalho como mercadoria4. Ou
melhor, a sua própria vida, já que toda ela é conformada com vistas na formação e manutenção do sujeito
enquanto trabalhador, ou seja, produtor de mais-valia. Deste modo, as identidades são construídas e percebidas
do mesmo modo com que o trabalhador relaciona-se com seu processo de trabalho: de maneira alienada.
Para melhor entender essa relação alienada do sujeito com o objeto, e do sujeito com o próprio
sujeito e os demais, faz-se necessário trazer à baila a noção de alienação, e seus dois níveis: a alienação
histórica e a alienação em sua dimensão ontológica. A alienação histórica, nos termos de Marx, seria a alienação
(estranhamento) do trabalhador em relação ao produto e em relação à própria atividade. E o segundo nível, a
alienação numa dimensão ontológica: aliena do homem a natureza e a si mesmo, aliena do homem o gênero.
Uma conseqüência do homem estar alienado do produto do seu trabalho, da sua atividade vital, do seu
ser genérico, é o homem estar alienado do homem. Quando o homem está frente a si mesmo, então o
outro homem está frente a ele [...] cada homem considera o outro segundo o critério e a relação na qual
ele mesmo se encontra como trabalhador. (MARX, 1983. p. 158. apud SILVEIRA, 1989.p. 43).
Somado a isso, a economia capitalista tem como apoio a ideologia (capitalista e liberal), que
juntamente com a alienação proporciona aos sujeitos a falsa idéia de liberdade e de conhecimento de si mesmos.
De maneira que no capitalismo, as desigualdades sociais são naturalizadas, e isso não permite a visualização
das dominações de classe, que se reafirmam na transformação dos homens em mercadorias – esses com
diferenças entre si que servem ao Capital.
Nas últimas décadas o que se tem observado é uma violenta desestruturação do mundo do trabalho,
aquele conhecido na sua relação clássica – patrão/ empregado com vínculo empregatício -, além do enorme
número de desempregados. O que vislumbramos ao analisar o mundo do trabalho hoje é a sua nova morfologia:
a precarização das relações nele contidas.
Constata-se que a precariedade está hoje por toda parte. No setor privado, mas também no setor público,
onde se multiplicam as posições temporárias e interinas, nas empresas industriais e também nas
instituições de produção e difusão cultural, educação, jornalismo, meios de comunicação etc., onde ela
produz efeitos sempre mais ou menos idênticos, que se tornam particularmente visíveis no caso extremo
dos desempregados: a desestruturação da existência, privada, entre outras coisas, de suas estruturas
4
Tendo em vista que o capitalismo acaba por transformar as relações qualitativas em quantitativas, e pretende
transformar todas as diferenças entre os sujeitos em desigualdade entre mercadorias – inclusive o trabalhador como mercadoria
-, como se fosse uma espécie de luta pela aniquilação das dimensões subjetivas visando relacionar coisas e coisas, e, não mais
homens e homens, e homens e coisas.
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temporais, e a degradação de toda a relação com o mundo e, como conseqüência, com o tempo e o
espaço. (BOURDIEU,1998, p. 120).
Somado a isso, as outras mutações que ocorreram no mundo do trabalho: trabalho terceirizado,
sub-contratados, trabalhadores part-time, e trabalho parcial, temporário, informalizado, além de enormes
níveis de desemprego5 e de trabalhadores desempregados. Afora isso, os fenômenos: aumento significativo de
trabalho feminino – apesar da desigualdade imposta pelo mundo do trabalho ao gênero feminino -, expansão
do setor de serviços; e ainda as tendências a excluir do mundo do trabalho os jovens, e os idosos (e adultos
acima de 40 anos); além do aumento do trabalho do terceiro setor, e para a inclusão precoce e criminosa de
crianças no mercado de trabalho, nas mais diversas áreas.
Assim, pretendemos demonstrar que ao contrário do que algumas correntes da sociologia apontam
como sendo o fim do trabalho como central na produção tanto da objetividade como das subjetividades, é na
verdade a reafirmação da sua centralidade. O trabalho não está acabando, mas sim passando por mutações e na
medida em que ele vai se precarizando, os direitos dos trabalhadores estão cada vez mais próximos do fim.
As mediações de segunda ordem do capital – isto é, os meios de produção alienados e suas
“personificações”: dinheiro; produção para troca; a diversidade de formação do Estado do capital em
seu contexto global; o mercado mundial - sobrepõem-se, na própria realidade, à atividade produtiva
essencial dos indivíduos sociais e à mediação primária existente entre eles. (Mészáros, 1995, p.17-18).
Em última instância analisaremos o trabalho como categoria ontologicamente central tendo em vista
como o trabalhador deficiente relaciona-se com ele. Analisaremos como o deficiente relaciona-se com o
sistema de produção vigente no Brasil e qual é a forma como ele é absorvido por aquilo que alguns denominam
de mercado de trabalho, já que as mutações do mundo do trabalho também interferem diretamente na vida
do sujeito que é o portador de algum tipo de deficiência. O dito mercado de trabalho necessita, de alguma
maneira, incluir esses trabalhadores, que são 600 milhões de pessoa, segundo Organização Mundial da Saúde
(OMS). O que representa, aproximadamente, 10% da população mundial, de pessoas portadoras de algum tipo
de deficiência física. Ou seja, o mundo do trabalho não pode desconsiderar tamanha quantidade de mão-deobra.
Deficiência
Digamos numa palavra que o anormal (e isso até o final do século XIX, talvez XX) [...] é no fundo um
monstro cotidiano, um monstro banalizado. O anormal vai continuar sendo, por muito tampo ainda,
algo como um monstro pálido.
Michel Foucault
Assim, podemos pensar o mundo do trabalho como o cerne das relações de dominação no modo
de produção capitalista. É claro que esse papel central relativo ao trabalho não é exclusivamente desempenado
na produção (seja ela material ou intelectual), mas, pelo contrário, para auxiliar e reforçar tais relações.
Ao aspecto econômico do trabalho somam-se as características socioculturais, que podem tanto
subverter a dominação econômica ou reafirmá-la e reforçá-la, pois são construídas dentro do processo
econômico. Entre essas características podemos pensar as mais diversas formas de dominação e opressão,
como a de gênero (o homem sobre a mulher) ou a étnico-racial (o “branco” sobre as outras etnias), por exemplo.
As quais encontram-se nas categorias de exclusão socialmente institucionalizadas daqueles considerados
diferentes, dentre os quais encontram-se os portadores de deficiência.
De modo que para dar continuidade à lógica do capital que é circular e acumular através do mercado
e da extração da mais-valia do trabalhador, as diferenças/ desigualdades sociais são úteis para potencializar
a lucratividade na extração da mais-valia. Somado a isso, o mercado produz para o diferente, e extraí dessa
relação (necessidade criada de consumir produtos/ bens distintos) mais lucro. Ou seja, o mercado pretende
transformar tudo em mercadoria; transformando, assim, todas as relações qualitativas em quantitativas.
Além disso, a categoria trabalho é ontologicamente central, já que o trabalho não produz apenas
5
No Brasil encontramos, segundo dados do IBGE, a seguinte disparidade: População Economicamente Ativa: 87165384
– População em Idade Ativa: 147204066.
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capital – ou é ele o próprio capital -, mas produz as identidades sociais e individuais. Além disso, as formas
modernas de trabalho têm invadido cada vez mais as diversas esferas da vida, o que dificulta o estabelecimento
de fronteiras entre trabalho e não-trabalho, de maneira que o tempo daquele que vive-do-trabalho quando
pensa e quando vive o trabalho é imensurável.
Se a nossa sociedade está dividida entre a classe-que-vive-do-trabalho e os que não fazem parte
dessa classe, e, por extensão, ideologicamente, entre dominantes e dominados, estas divisões acabam permeando
e sendo permeadas por todas as outras relações sociais. A respeito dos portadores de deficiência fica evidente
o quanto a posição de classe atravessa e é atravessada por outras desigualdades, “quando o deficiente está
posicionado numa classe social que o impede pela pobreza material de comprar aparelho, cadeira de rodas,
aprender o alfabeto Braile ou o manual, fazer reabilitação etc., ele estará sentenciado a ser sempre comandado
pela vida”. (RIBAS, 1983, p.30)
Como resultante da estrutura da sociedade brasileira, a maioria das pessoas deficientes localizase nas classes dominadas da população. É fácil de saber os porquês: porque a população mais pobre está
mais sujeita à carência de alimentação mínima necessária, porque há falta de higiene, porque há habitações
precárias, porque há falta de saneamento básico.
As pessoas estão mais expostas às doenças, a contaminações e a acidentes que podem trazer como
conseqüência o nascimento de crianças deficientes ou à aquisição da deficiência – são pessoas que moram em
barracos nas favelas ou em periferias distantes, em pequenos cômodos sujos dos cortiços. O quadro da saúde
da população agrava-se na medida em que sabemos que a maior parte dos trabalhadores conta apenas com
serviços do Sistema Único de Saúde, que na maioria das vezes não da demanda de atendimentos ou ainda
o faz de forma precária. Isso influi diretamente no processo de reabilitação de uma criança ou de um adulto
deficiente.
A isto devemos acrescentar o alto número de acidentes de trabalho. Cuja principal causa não é
a falha humana (do trabalhador), como se poderia supor. Pelo contrário, a causa primeira dos acidentes é
a falta de segurança e das (muitas vezes) precárias condições de trabalho. Acrescenta-se a isso a condição
de vida do trabalhador que o obriga a uma longa jornada de trabalho, além de ser obrigado a perfazer o seu
parco salário com excessivas horas extras, a ter as suas horas de sono restringidas por ter que pegar inúmeras
conduções (ônibus ou trem). Enfim, os acidentes de trabalho têm também origem no cansaço físico e metal
do trabalhador.
Devemos acrescentar que os valores culturais que a deficiência carrega são distintos nas diversas
sociedades, de modo que assim é possível reafirmar seu caráter social (construção), e identificar que o problema
(incômodo) causado pela deficiência não está em seu caráter físico, mas sim no estigma social6 carregado
pelo portador da deficiência – de modo que são os “normais” quem mais se incomodam com o deficiente. É
claro que o longo processo de interiorização do estigma produz no deficiente, e não somente nos “normais”,
a aceitação e a reprodução da exclusão e do incômodo como sendo causado pelo biológico. Entretanto esse
processo de socialização do biológico e de biologização do social serve mais para legitimar a exclusão de que
para de fato explicá-la.
Sobre uma dos nossos interlocutores, Ângela (Interlocutor 1) , afirma:
“Numa certa altura da vida, passei a não achar tão terrível o fato de não poder andar. Mas a pressão
social era tão grande que eu me sentia deprimida: tem que andar, tem que andar: incapaz, incapaz”.
Os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação,
fazendo-as assim ser vistas como naturais. O que pode levar a uma espécie de auto-depreciação ou até
de autodesprezo sistemáticos, principalmente visíveis. (Bourdieu, 2005. p. 46)
Ângela que é cadeirante e trabalha na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), afirma ter tido grandes dificuldades em concluir seus estudos, e passar a viver o mundo além
da sua casa, fora do núcleo familiar. Diz que para ela as coisas começaram tarde. Após passar anos na sua
juventude fazendo tratamento para voltar a andar chegou à conclusão:
“Depois de um tempo, achei que não valia a pena continuar o tratamento. Afinal, cadeira de rodas
6
Isto é o estigma. Toda pessoa considerada fora das normas e das regras estabelecidas é uma pessoa estigmatizada. Na
realidade, é importante perceber que o estigma não está na pessoa ou, neste caso, na deficiência que ela possa apresentar. Em
sentido inverso, são os valores culturais estabelecidos que permitem identificar quais pessoas são estigmatizadas. (RIBAS, 1983.
p. 16)
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não era a coisa mais terrível do mundo. Enfrenta-se algumas dificuldades, mas se acaba fazendo as mesmas
coisas. Mesmo em cadeira de rodas eu posso ter emprego, e conquistar minha independência”.
Ela vê, ainda, que a sociedade não está preparada para assimilar o deficiente: “quer obrigar os
diferentes a se tornarem iguais. É mais fácil excluir a diferença do que incluí-la, porque a diferença incomoda
os outros, incomoda todo mundo”. O problema, fundamentalmente, é da sociedade que não consegue aceitar
o diferente e o incluir nas relações sociais de forma harmônica. A deficiência não constitui um problema para
o deficiente; ela (a não-aceitação) é um problema da sociedade e não do diferente, do estigmatizado.
A nossa sociedade, capitalista, é discriminadora e excludente. Ela é assim porque as mulheres e os
homens, que nela relacionam-se, construíram historicamente e reproduzem divisões estruturais entre classes,
divisões essas permeadas por conflitos inconciliáveis, com desdobramentos múltiplos, que condicionam todas
as exclusões e discriminações efetuadas.
A deficiência é, sobretudo, uma identidade social, cultural e institucionalmente construída. As
pessoas que são portadoras de algum tipo de deficiência são deficientes na medida em que a sociedade ou a
cultura, da qual o portador faz parte, o enxergam não só como diferentes, mas também como pessoas excluídas
da ordem do social, o que em última instância significa da ordem do “normal”. Pois em qualquer sociedade
as pessoas têm inúmeras diferenças: cada indivíduo difere dos outros em muitos aspectos. No entanto nem
todas as diferenças são socialmente institucionalizadas a ponto de tornaram-se desigualdade social. Portanto,
é possível concluir, provisoriamente, que o conceito de deficiência é relativo, já que é relacionado a algum
parâmetro, que pode se inferir que tal ou qual característica é uma normalidade ou é uma deficiência.
Assim é que em qualquer sociedade existem valores culturais que se consubstanciam no modo como
a sociedade está organizada. São valores que se refletem imediatamente no pensamento e nas imagens
dos homens, e norteiam as suas ações. São valores que terminam por se refletir nas palavras com que
os homens se exprimem. Assim sendo, em todas as sociedades a palavra ‘deficiente’ adquire um valor
cultural segundo padrões, regras e normas estabelecidos no bojo de suas relações sociais. (RIBAS,
1983. p.12)
Ao usarmos palavras que estejam relacionadas, tais como “cego” e “surdo”, direta ou indiretamente,
aos portadores de deficiência nós já estamos as relacionando com as nossas concepções daquilo que estas
palavras significam. As palavras são significantes daquilo que cada sociedade designa como correspondente a
cada signo, ou seja, elas são, sobretudo, construções sociais.
Cada sociedade constrói o corpo como sua realidade normalizada e como depositário de princípios
de visão e divisão normalizantes, quer dizer: a construção da concepção de corpo, de cada sociedade, tem,
na sua essência, as valorações daquela determinada sociedade. Esse senso da sociedade de compreensão
incorporada estende-se a toda a sua visão de mundo e, antes de tudo, à própria percepção do corpo, ou seja,
a forma como o corpo é visto e entendido, em sua realidade biológica: é ele que constrói a diferença entre as
diferenças biológicas, conformando-as aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação
arbitrária de dominação dos não-deficientes sobre os deficientes, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho,
na realidade da ordem social. A diferença biológica entre esses dois “pólos”, isto é, entre o corpo “normal” e o
corpo “anormal”, e, especificamente, a diferença anatômica entre a “perfeição” e a “imperfeição” dos órgãos,
pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre eles e, principalmente,
da divisão social do trabalho.
No entanto, ao observar essa relação invertendo o prisma com o qual antes se observava, concluise que é a visão social que constrói a diferença anatômica e que é esta diferença socialmente construída que
se torna o fundamento, que em princípio é natural, da visão social que a embasa. Então se nota uma relação
circular que carrega o pensamento na evidência de relações de dominação inscritas ao mesmo tempo na
objetividade, sob forma de divisões objetivas, e na subjetividade, sob forma de esquemas cognitivos que,
organizados segundo essas divisões, organizam a percepção das divisões objetivas.
Falar de dominação, ou de violência simbólica, é dizer que, salvo uma revolta subversiva que conduza
à inversão das categorias de percepção e de avaliação, o dominado tende a assumir a respeito de si
mesmo o ponto de vista dominante: através, principalmente, do efeito de destino que a categorização
estigmatizante produz, e em particular do insulto, real ou potencial, ele pode ser assim levado a aplicar
a si mesmo a aceitar, constrangido e forçado, as categorias de percepção direitas [...]. (Bourdieu, 2005.
p. 144).
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A divisão entre os normais e os anormais, em um primeiro momento, parece ser algo “natural”, pois
ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas relações materiais, “em todo o mundo social e, em
estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes” (BOURDIEU, 2005. p. 17), ocorrendo como sendo
algo inerente à ação e ao aspecto subjetivo da ação. As estruturas que são construídas historicamente como
sendo pertencentes à normalidade são, muitas vezes, incorporamos, sob a forma de esquemas inconscientes
de percepção e apreciação, resultando, assim, em um entendimento do anormal através de categorias que
o definem e o reificam como desviante, ou seja, muitas vezes, recorremos, “para pensar essa dominação, a
modos de pensamento que são eles próprios produtos dessa dominação”. (BOURDIEU, 2005. p.13).
De acordo com Bourdieu, a força da ordem do normal (o não-deficiente) se evidencia por seu
caráter intrínseco à ordem vigente: a visão do “normal” impõe-se como neutra e não tem necessidade de se
enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica
que tende a ratificar a dominação do normal sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição
bastante estrita das atividades atribuídas a cada uma das duas categorias - o deficiente e o não-deficiente - de
seu local, seu momento, seus instrumentos.
A pessoa portadora de algum tipo de deficiência é alguém estigmatizado. O estigmatizado é aquele
que é considerado fora das normas, quer dizer: dos parâmetros/ das regras estabelecidas, ou seja, aquele que
não está integrado, mas também não é, sumariamente, excluído da sociedade. Ele vive na liminaridade.
Pela lógica dos valores sociais dominantes, uma pessoa estigmatizada deve tentar se parecer como
a mais “normal” possível. Ela deve se “normalizar”. Aqueles que fogem dos “padrões”, de certa forma agridem
a “normalidade” e se colocam à parte da sociedade. É por isso que se procura alcançar por qualquer meio e a
qualquer conseqüência alinhavar-se com esses “padrões”.
As pessoas estigmatizadas são pessoas que, muito embora tenham sido criadas nesta sociedade e
nesta cultura, não são reconhecidas nem por esta sociedade, nem por esta cultura. Existe um mecanismo social
muito bem feito que pende para a “exclusão” e ao mesmo tempo pende para a “integração”. Este mecanismo
social é altamente discriminador. Essa tentativa de integração acontece concretamente através de instituições.
Quais sejam: a escola, os hospitais psiquiátricos, as penitenciárias e mesmo os centros de reabilitação. O
mecanismo social que exclui e a um só momento pretende integrar o deficiente traz para ele e para todos
nós uma confusão muito grande de pensamentos, do que se conclui que ele age como integrador e como
excludente.
A educação elementar tende a inculcar maneiras de postar todo o corpo, ou tal ou qual de suas partes,
a maneira de andar, de erguer a cabeça ou os olhos, maneiras que estão prenhes de uma ética, de uma
política de uma cosmologia. (Bourdieu, 2005. p. 38).
O “desviante” é aquele que não está integrado, adaptado, que não se apresenta física e/ ou
intelectualmente normal e, portanto, encontra-se à parte das regras e das normas. Deste modo, o que mede o
“desvio” ou a “diferença” social são os parâmetros estabelecidos pela organização sociocultural.
De acordo com Ribas, o deficiente é recebido pela família e pela sociedade de maneiras que vão desde
o sentimento de pena, até o tratamento como um igual. Assim podemos observar o desenvolvimento histórico
das conquistas dos portadores de necessidades especiais: desde o tratamento como doente (“coitado”), incapaz
para qualquer atividade – já que requer cuidado constante -, até a construção da possibilidade de inclusão
social, recente, muito ancorada nas conquistas que os movimentos organizados tiveram principalmente nas
leis de inserção na escola e no mundo do trabalho.
O estigma não está na pessoa ou na deficiência que ela possa apresentar. Em sentido inverso, são
os valores culturais estabelecidos que permitem identificar quais pessoas são estigmatizadas. Uma pessoa traz
em si o estigma social da deficiência. Contudo, é estigmatizada porque se estabeleceu que ela possui no corpo
uma marca que a distingue pejorativamente das outras pessoas.
De acordo com os relatos de nossos interlocutores7 podemos observar o sofrimento causado pelo
estigma e não pela deficiência em si. Isso quando comentam que a deficiência, ou a sua particularidade não
os impede de realizar quase nenhuma atividade. “Quando me olham, não perguntam se eu consigo fazer isso
ou aquilo, simplesmente me consideram incapaz”8. Ex-pacientes mentais que têm uma certa limitação que
não imediatamente visível, nem sempre passam pelo mesmo processo. Os cegos, entretanto, são facilmente
notados, o que orienta um tipo especifico de ação daqueles que trabalham fazendo entrevistas de seleção
7
8
A não identificação dos nomes é devido a questões éticas.
Relato do Interlocutor 2 (Portador de Deficiência Visual – PDV), quando questionado sobre entrevistas de emprego.
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de emprego. De modo que a visibilidade é um fator crucial. Além disso, a informação cotidiana disponível
sobre ele é a base da qual ele deve partir para decidir qual plano de ação a empreender quanto ao estigma que
possui.
Muitos dos considerados “diferentes” introjetam essa divisão como se ela fosse absolutamente
natural. Aceitam a consideração de “diferentes” e admitem até a condição de “inferiores”.
É somente quando a pessoa deficiente introjeta as noções e regras socioculturais, que distinguem as
pessoas em deficientes e não-deficientes, somente neste momento nascem de fato os “problemas”. “Problema”,
assim como a deficiência, é algo relativo e também cultural. Para muitos deficientes as soluções possíveis e
viáveis para a sua deficiência já foram encontradas. Ás vezes parece que as pessoas querem imputar um
“problema” aos deficientes. Ás vezes, eles mesmo se imputem “problemas”. O que traz de fato “problemas”
para as pessoas deficientes são as coisas que decorrem de seu meio social de vida. Eles estão muito mais
ligados à organização sociocultural, do que à capacidade física das pessoas. A lógica da dominação é conhecida
e reconhecida tanto pelo dominador quanto dominado, pois ela é permeada por um emblema, pelo estigma.
“Problema” é não ter como melhorar a condição física e intelectual deste deficiente mental.
“Problema” é os deficientes não conseguirem emprego, escola, não terem dinheiro para fazer reabilitação, não
serem aceitos nos centros de reabilitação, morarem em favelas, não terem dinheiro sequer para comprar um
aparelho ortopédico, uma cadeira de rodas, um aparelho auditivo ou uma bengala. As pessoas acreditam que a
vida de um deficiente é uma vida absolutamente desprovida de significado e de qualquer perspectiva.
[...] acreditamos que não existem tarefas específicas dentro de uma empresa para cada subcategoria – de
pessoas surdas, deficientes físicas, mental ou cegas. Cada indivíduo, dentro de suas potencialidades,
pode vir a ocupar um lugar diferente daquele que lhe é destinado, de acordo com seus próprios desejos
e motivações. (MENDES, 2004, p. 27).
As pessoas deficientes não são, necessariamente, pessoas doentes. Essa relação entre deficiência
e doença é operada, muitas vezes, na nossa sociedade e, conseqüentemente, em nós mesmos. A doença é um
processo. Já a deficiência é um estado físico ou mental eventualmente limitador (as pessoas deficientes, salvo
algumas exceções, não são pessoas doentes). A relação existente entre a doença e a deficiência é que algumas
deficiências se originam em doenças, então: a deficiência, neste caso, é a seqüela trazida pela doença.
As aparências biológicas e os efeitos, bem reais, que um longo trabalho coletivo de socialização
do biológico e biologização do social produziu nos corpos e nas mentes conjugam-se para inverter as relações
entre as causas e os feitos e fazer ver uma construção social naturalizada (a diferença como habitus deficientes).
Portanto, a definição social elaborada com relações ao corpo e a o que é deficiência, muito antes de ser um
registro de do que é natural, ao contrário a essa percepção, é produto de uma construção efetuada com vistas
a escolhas orientadas, quer dizer, através da exaltação de certas diferenças, ou do aniquilamento de certas
semelhanças – as quais, muitas vezes, não são convenientes de serem ressaltadas.
No entanto, há um paradoxo, qual seja: as diferenças visíveis entre os corpos “normais” e corpos
“anormais” que, sendo percebidas e construídas segundo os esquemas práticos da percepção dominante, tornamse o penhor mais perfeitamente indiscutível de significações e valores que estão de acordo com os princípios
desta visão: não é a deficiência que é o fundamento dessa visão de mundo, e sim é essa visão de mundo que,
estando organizada segundo a divisão em não-deficientes e deficientes, pode instituir a “normalidade” física
e mental, construída em símbolo do natural e instituir a diferença entre esses dois “tipos” (não-deficientes e
deficientes), no sentido de corpos construídos como duas essências sociais hierarquizadas.
O trabalho de construção simbólica não se reduz a uma operação estritamente performativa de nominação
que oriente e estruture as representações, a começar pelas representações do corpo; ele se completa e se
realiza em uma transformação profunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros), isto é, em um trabalho
e por um trabalho de construção prática, que se impõe uma definição diferencial dos usos legítimos do
corpo. (Bourdieu, 2005. p. 33).
O não-deficiente e o deficiente existem (configuram-se) a partir de um sistema relacional, já que
cada um dos dois é produto do trabalho de construção diacrítica, ao mesmo tempo teórica e prática, que é
necessário à sua produção como corpo socialmente diferenciado do oposto, isto é, como habitus normal,
e portanto não anormal. Tais princípios de identidade constroem-se em uma relação antagônica, pois se
inscrevem sob forma de maneiras permanentes de se servir do corpo ou de manter a postura, que são como
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MACHADO, C. F; DORNELLES, R. C. Deficiência ou diferença:...
que a realização, ou melhor, a naturalização de uma ética.
Nos termos de Bourdieu, a primazia universalmente concedida aos não-deficientes se afirma na
objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas na divisão do trabalho
de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos não-deficientes a melhor parte, bem como nos
esquema imanentes a todos os habitus: moldados por tais condições. Portanto objetivamente concordes, eles
funcionam como matrizes de percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade,
como transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõe-se a cada agente como
transcendente. E os próprios deficientes aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações de poder em
que se vêem envolvidos esquemas de pensamento que são produto da incorporação dessas relações de poder
e que se expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica.
É importante explicitar (nas ciências sociais) ao estudar a deficiência que além das “origens
clínicas (congênita ou adquirida) e do tipo (física, sensorial ou mental), é preciso perceber sua origem, interrelação e mútuo condicionamento social”.(RIBAS. 1992, p. 4) Ribas contribui para pensarmos a deficiência
física de maneira sociocultural – não negando suas relações com a medicina, mas apontando para os aspectos
que proporcionam a certas condições de diferenciação do padrão serem socialmente valorizadas e outras não.
Além do condicionamento que a economia e a cultura podem dar a deficiência. Assim quem sofre um acidente
de trânsito pode tomar rumos diferentes em sua trajetória de vida devido as suas condições econômicas: pode
se recuperar, caso tenha condições financeiras para pagar pelo tratamento adequado, pode não se recuperar,
seja por ter de esperar por um atendimento que é precário no Sistema Único de Saúde (SUS), ou pelo fato de
não haver recuperação mesmo. E, ainda, não recuperado pode se adaptar melhor a sua nova condição com
a ajuda de recursos financeiros, ou pode se aposentar pela previdência pública e nunca mais conseguir se
reafirmar socialmente – sem contar o tempo de espera entre o pedido de aposentadoria e a sua efetivação.
Isto é o estigma. Toda pessoa considerada fora das normas e das regras estabelecidas é uma pessoa
estigmatizada. Na realidade, é importante perceber que o estigma não está na pessoa ou, neste caso,
na deficiência que ela possa apresentar. Em sentido inverso, são os valores culturais estabelecidos que
permitem identificar quais pessoas são estigmatizadas. (RIBAS, 1983. p. 16).
Ao analisar o número de vagas destinadas a deficientes como sendo maior que o número de procura,
Brumer (2004) indica a falta de especialização desse grupo de pessoas – que não buscam vagas para cargos
nos quais não tenham condições de desempenhar as atribuições. As políticas relacionadas à oportunidade de
especialização ainda são insuficientes, e pouco contribuem para reverter essa situação, ainda que recentemente
a política educacional do Brasil esteja pensando processos de inclusão educacionais que tenham eficácia
como forma de inserção social, cultural, educacional e também em última instância no mundo do trabalho. De
acordo com Brumer (2004), em Porto Alegre o número de vagas oferecidas9 aos portadores de deficiência é
maior que o número de inscritos, demonstrando que são urgentes a oportunidade de qualificação10 e a abertura
de vagas de emprego destinadas aos deficientes qualificados.
Os deficientes, como já foi referido ao longo do trabalho, vivem, sobretudo, nos chamados países
pobres ou em desenvolvimento, o que significa em números cerca de 300 milhões de pessoas, as quais, em
sua maioria, não contam com os serviços de reabilitação. Para ser mais preciso: apenas 1% a 2% tem acesso
a serviços de readaptação.
No Brasil, a pessoa portadora de deficiência (PPD) é, segundo o Decreto Federal n.º 914/93, “pessoa
que apresenta, em caráter permanente, perdas ou anomalias de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica
ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de atividades, dentro do padrão considerado normal
para o ser humano”. A Constituição da República de 1988 tenta assegurar normas que garantam a integração
do deficiente à vida social e ao mercado de trabalho, pretendendo a participação. Além da criminalização da
discriminação contra os PPDs, o que pretende a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e
critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; reserva de cargos públicos, a serem preenchidos
através de concurso, para pessoas portadoras de deficiência física; habilitação e reabilitação das pessoas
portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; adaptação dos logradouros, dos
edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas
portadoras de deficiência física.
9
10
Vagas que no caso dos cegos estão ligadas às funções de baixa qualificação, como vendedor e recepcionista.
A qualificação para os deficientes visuais é complexa muito devido ao fato de se encontrar pouco material em braile.
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Foi regulamentada a reserva de vagas a serem preenchidas através de concurso público na Carta
Constitucional: “Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado direito de se inscrever em concurso público
para provimento de cargos cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para
tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso”. Além de outras
Leis que foram sendo adotadas para garantir os direitos dos PPDs11.
No município de Porto Alegre são, de acordo com o Censo Demográfico de 2000, de 204.455, o
que representava na época 15% da população porto-alegrense. A partir desse dado, podemos concluir que é
impossível pensar o município sem a presença de tal contingente da população: o “mercado de trabalho” é
inviável sem a presença de tais pessoas, mesmo que ele integre-os de forma precarizada12.
Conclusão
O que vislumbramos ao estudar a situação do portador de deficiência no Brasil – capitalismo
específico com suas relações pessoais sempre permeando a impessoalidade do mercado –, é que a deficiência
em si não é um problema, mas sim a marca que a sociedade refere a ela. De modo, que o portador de deficiência
é, na maioria das vezes, estigmatizado, ou subincluído não só no mundo do trabalho, mas também nas mais
diversas esferas de sociabilidade.
A relação que se estabelece nesse tipo de sociedade com o deficiente dá condições para se pensar
em “subpessoas”, inseridas numa divisão entre desiguais na qual ser deficiente corresponde à impossibilidade
de ocupar cargos de maior prestígio social no mercado de trabalho. Isso porque o estigma carregado por essas
pessoas as identifica como incapazes para o desempenho de muitas atividades.
Para melhor dar conta da complexidade do capitalismo moderno e globalizado, o qual tem como
tendência precarizar cada vez mais as relações de trabalho, utilizamos os conceitos de classes antagônicas: a
classe-que-vive-do-trabalho em oposição a que não vive da venda da sua força de trabalho, e detém e gere o
capital e os meios de produção. Já que a utilização de certos conceitos (tais como burguesia e proletariado)
poderia parecer anacrônico para analisar a realidade do mundo do trabalho tal como está posta hoje.
Ainda, a posição social é fundamental para entender a realidade do portador de deficiência, visto
que a maior parte dos portadores de deficiências encontra-se na classe-que-vive-do-trabalho. Isso ocorre,
principalmente, devido às condições de vida – a seja pela falta de alimentação, seja pelo trabalho propenso
a altos índices de acidentes – que causam a deficiência tanto nos trabalhadores, quanto em seus filhos que já
nascem; seja quando em condições precárias de moradia e alimentação, com alguma deficiência. Somado a
isso, a classe-que-vive-do-trabalho tem acesso quase inexistente a alguma forma de reabilitação, já que nos
países subdesenvolvidos somente uma pequena parcela da população tem acesso à reabilitação.
De modo que as diferenças entre deficientes e não-deficientes são transformadas em desigualdades
sociais. Estigmatizado e sem acesso a informação e especialização para o trabalho, esses sujeitos, principalmente
os pertencentes a classe-que-vive-do-trabalho, quando inseridos no mercado de trabalho o são de forma
precária, nas posições menos prestigiadas. Em suma, a deficiência é utilizada, no mercado de trabalho, com
vistas a uma maior exploração do trabalho, reproduzindo as desigualdades de classe e produzindo a condição
de exclusão do deficiente.
MACHADO, C. F; DORNELLES, R. C. Deficiência ou diferença:...
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SILVEIRA, Paulo. Da Alienação ao Fetichismo: formas de subjetivação e de objetivação. In:
www.ibge.gov.br
Lei Federal nº 8.213, de 24 de julho de 1991, regulamentada pelo Decreto Federal nº 3.298 de 20 de dezembro de
1999, determina que toda a empresa com mais de cem empregados está obrigada a preencher de 2% a 5% de seus cargos com
beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: I até 200 empregados. 2%; II de
200 a 500 empregados. 3%; III de 501 a 1000 empregados. 4%; IV de 1001 em diante. 5%.
Decreto Federal nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, através dos Artigos 37 a 43, garante à pessoa portadora de
deficiência o direito de inscrever-se em concurso público, em igualdade de condições com os demais candidatos, para provimento
de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência que é portador.
Lei Federal nº 8.859, de 23 de março de 1994, autoriza órgãos da Administração Pública e instituições de ensino a
aceitar, como estagiários, alunos regularmente matriculados e que venham freqüentando, efetivamente, cursos vinculados à
estrutura regular do ensino, incluindo as escolas especiais.
Lei Estadual nº 10.228, de 06 de julho de 1994, assegura às pessoas portadoras de deficiências o direito à inscrição
em concurso público para provimento em cargo, a considerar no mínimo 10% do número de vagas, cujas atribuições sejam
compatíveis com a deficiência de que são portadoras.
Decreto Estadual nº 38375, de 07 de abril de 1998, autoriza a administração estadual a considerar, no mínimo, 10% do
número de vagas em estágios às pessoas portadoras de deficiências. Só haverá fixação quando a cota do órgão estadual for igual
ou superior a 10 vagas. (INCLUSÃO SOCIAL. 2005, p. 26).
12
O centro da capital do estado do Rio Grande do Sul está repleto de trabalhadores – do dito mercado informal – que são
portadores de algum tipo de deficiência.
11
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A Revista Sociedade em Estudos não veicula conteúdos racistas, sexistas ou que firam a integridade dos
indivíduos. Ela se define enquanto espaço aberto, democrático, plural e crítico, sem concessão interesses
de cunho partidário, ideológico ou de restrito sentido social. Seu objetivo não é doutrinar, mas divulgar e
compartilhar idéias, favorecendo o debate intelectual e o aprendizado permanente.
Os artigos publicados não expressam necessariamente as opiniões do coletivo da revista. Os autores,
considerados individualmente, são responsáveis por suas opiniões e posições.
Revista Sociedade em Estudos
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Revista serão enviados para dois pareceristas anônimos (conselho consultivo), que poderão aceitar, solicitar
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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS TRABALHOS
1. Aspectos gerais
Para facilitar o trabalho de análise dos consultores, os textos enviados para publicação
deverão:
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pertence (ou pertenceu), situação da formação acadêmica (graduando ou formado), curso de habilitação e
e-mail para contato. Para aqueles que já concluíram a graduação, indicar ainda o ano de conclusão. E indicar
o orientador e seu respectivo e-mail.
• Ser digitados em editor de texto “word for windows” 6.0 ou posterior, fonte “Times New
Roman”, tamanho 12, com espaçamento 1,5 cm entre linhas;
• Os textos devem ser enviados para a sua apreciação exclusivamente em português ou
espanhol, acompanhados de resumo com versões em português e em inglês;
• A página deve estar configurada com margens de 2 cm e papel A-4;
• O tamanho dos artigos deve ter como limite 48 mil caracteres (com espaço e
incluindo as notas de rodapé e bibliografia) ou 20 páginas, no formato indicado.
• O texto deve ser enviado por e-mail, ou entregue em mídia, formato Word em anexo.
2. Títulos e resumos
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asterisco). Ex.:
Normas de Publicação Revista Sociedade em Estudos
Bruno Bolognesi
Em caso de pesquisas financiadas por órgãos de amparo à pesquisa, deve-se registrar, em
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6) Não será publicado artigo do (a) mesmo (a) autor em edições seguidas.
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seguido de unitermos em ambas as línguas.
7) As chamadas para artigos e as normas para publicação estarão disponíveis no site da Revista: www.
sociedadeemestudos.ufpr.br.
3. Texto
125
126
Quanto ao texto, pede-se:
Dissertação/Tese
• Revisão e correção gramatical;
CODATO, Adriano Nervo ; PERISSINOTTO, R. M. . The State and Contemporary Political Theory:
Lessons From Marx. In: Stanley Aronovitz; Peter Bratsis. (Org.). State Theory Reconsidered: Paradigm
Lost. Minneapolis, 2002.
• Sobre as citações:
Nas citações textuais o sobrenome do autor deverá ser escrito somente com a primeira
letra maiúscula, seguido do ano da publicação da literatura utilizada, como no exemplo:
Bobbio (1995);
Caso o nome do autor e o ano estejam entre parênteses, deverão estar separados por
vírgula, em letras maiúsculas como no exemplo: (DAEMON, 1974);
Artigos de Periódico
PAIVA, Denise; SOUZA, Marta Rovery & LOPES, Gustavo de Faria. “As percepções sobre Democracia,
Cidadania e Direitos”. In: Revista Opinião Pública, Vol X., no. 02, Campinas 2004. (p. 368-376).
Anais de Eventos
As citações que contenham até três (3) linhas não serão destacadas em blocos,
devendo permanecer com a mesma fonte do texto e entre aspas. Deverão, também,
conter a indicação do sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido do ano de
publicação e da página utilizada, como no exemplo: (BOBBIO, 1995, p. 10);
SOUZA, Nelson Rosário de ; PERISSINOTTO, R. M. ; FUKS, Mario . Participação e
processo decisório em conselhos gestores de Curitiba. In: 4o Encontro Nacional da
Associação Brasileira de Ciência Política, 2004, Rio de Janeiro. 4o Encontro Nacional da
Asssociação Brasileira de Ciência Política, 2004. v. 1. p. 73-73.
As citações de mais de três (3) linhas deverão vir destacadas em blocos e recuadas,
coincidindo a margem esquerda com a entrada de parágrafo e a margem direita com o
texto; deverá ser usada a mesma fonte do texto, porém em tamanho menor,(10) sem aspas e
espaçamento simples;
Artigos de Jornal
•Sobre o uso de notas de rodapé:
Documentos federais, estaduais e municipais
As notas devem ser apenas de caráter explicativo. Da bibliografia devem constar
apenas as obras efetivamente utilizadas.
RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Educação e Cultura. Programa estadual de
Sociologia – 1987/1990. Rio de Janeiro: SEEC-RJ, 1987. Mimeografado.
VARGAS, Getulio. Proclamação ao povo brasileiro (Lida no Palácio Guanabara e irradiada para todo o país
na noite de 10 de novembro de 1937). In: A nova política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938,
Vol. V: O Estado Novo (10 de novembro de 1937 a 25 de julho de 1938). p. 15-32.
•Sobre imagens, gráficos e outros:
Imagens, gráficos e demais ilustrações devem ser enviadas como anexos e as
indicações deverão ser feitas pelo autor durante o texto para que se possa localizar no
corpo textual onde o anexo se encaixa.
4. Referências bibliográficas
As referências, contendo somente os autores citados no trabalho, deverão ser apresentadas
em ordem alfabética ao final do trabalho. Todos os autores citados devem constar na lista de referência.
Sugere-se não ultrapassar o limite de 20 referências.
PERISSINOTTO, R. M.; CODATO, Adriano Nervo; Silva, Angelo J. da; Burmester, Ana M. História e
Memória. Curitiba: Gazeta do Povo, 2002 (Organização de encarte comemorativo dos 90 anos da UFPR).
Documentos eletrônicos
ZAVERUCHA, JORGE. Poder militar: entre o autoritarismo e a democracia. São Paulo Perspec., Dez 2001,
vol.15, no.4, p.76-83. ISSN 0102-8839. [artigo científico]. 2001. Disponível em: < http://www.scielo.br/cgibin/wxis.exe/iah/> . Acesso em: 24 fev. 2006.
5. Avaliação
Livro
Os trabalhos serão avaliados por consultores, podendo ser aprovados, devolvidos aos autores para eventuais
alterações, que deverão devolver o artigo reformulado num prazo máximo de 10 dias, ou não recomendados.
A “Revista Sociedade em Estudos” deterá, entretanto, o direito de publicar, com exclusividade, nos
dois primeiros casos. A veiculação em outras revistas brasileiras poderá ocorrer após a publicação neste
periódico, entretanto a fonte deverá ser citada.
BABBIE, Earl. “Métodos de Pesquisas de Survey”. Belo Horizonte : Ed. UFMG. 1999.
6. Responsabilidade
Capítulo de Livro
Os artigos publicados e as referências mencionadas nesta revista serão de inteira
responsabilidade de seus autores.
Exemplos:
PERISSINOTTO, R. M. . Representation of Interest and State Autonomy in the São Paulo
Agro-Export Economy (1889-1930). In: Renato Monseff Perissinotto. (Org.). Entrepreneurs, State and
Interest Representation in Brazil. 1 ed. New York, 2003, cap. 1, p. 1-26.
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21040-361-RIO DE JANEIRO-RJ.
1811-BP-UNIVERSIDADE CATOLICA DE BRASILIA - UNIVERSA
BIBLIOTECA CENTRAL / SECAO DE PERIODICOS E INTERCAMBIO
QS.07 LOTE 01 - EPCT BAIRRO AGUAS CLARAS
72030-170-TAGUATINGA-DF.
2030-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE SAO CARLOS-CENTRO DE EDUCACAO E
CIENCIAS HUMANAS - CURSO DE GRAD. EM CIENCIAS SOCIAIS
VIA WASHINGTON LUIS, KM 235
CAIXA POSTAL 676
13565-905-SAO CARLOS-SP.
2050-BP-UNIOESTE-UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANA
BIBLIOTECA DO CAMPUS DE MARECHAL CANDIDO RONDON
RUA PERNAMBUCO, 1777
CAIXA POSTAL 1008
85960-000-MARECHAL CANDIDO RONDON-PR.
2090-BP-IPEA. INSTITUTO DE PESQUISA ECONOMICA APLICADA
DIRETORIA DE PESQUISA / SERVICO DE DOCUMENTACAO
AV. PRESIDENTE ANTONIO CARLOS, 51 - 16 ANDAR
20020-010-RIO DE JANEIRO-RJ.
2122-BP-REVISTA DEP
CAIXA POSTAL 2431
70842-970-BRASILIA-DF.
2140-BP-FUNDACAO GETULIO VARGAS - CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTACAO
DE HISTORIA CONTEMPORANEA DO BRASIL / SETOR DE DOCUMENTACAO
132
PRAIA DE BOTAFOGO, 190, 14 A. /1401 - SALA DE CONSULTA
BOTAFOGO
22253-900-RIO DE JANEIRO-RJ.
2142-BP-UNICAMP
NUCLEO DE ESTUDOS ESTRATEGICOS
CIDADE UNIVERSITARIA “ZEFERINO VAZ”
13081-970-CAMPINAS-SP.
2147-BP-UNICAMP / NEPA
NUCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM ALIMENTACAO
AV. ALBERTO EINSTEIN 291
13083-852-CAMPINAS-SP.
2169-BP-CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS SUPERIORES LATINO-AMERICANOS
CEBELA - BIBLIOTECA
RUA HERMENEGILDO DE BARROS, 29
GLORIA
20241-040-RIO DE JANEIRO-RJ.
2172-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE ESTUDOS POS-GRADUACAO EM POLITICA SOCIAL
CAMPUS UNIVERSITARIO DO GRAGOATA
BLOCO E, 3. ANDAR
24210-006-NITEROI-RJ.
2202-BP-UNIVERSIDADE DE SAO PAULO
FFLCH - DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA - REVISTA “TEMPO SOCIAL”
AV. PROF. LUCIANO GUALBERTO, 315
05508-900-SAO PAULO-SP.
2216-BE-UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP/CAMP. DE ARARAQUARA
FACULDADE DE CIENCIAS E LETRAS - DEPARTAMENTO DE ECONOMIA
RODOVIA ARARAQUARA JAU, KM 1
CAIXA POSTAL 174
14800-901-ARARAQUARA-SP.
2325-BP-UNIVERSIDADE CATOLICA DE PELOTAS
ESCOLA DE SERVICO SOCIAL - REVISTA “SOCIEDADE EM DEBATE”
RUA FELIX DA CUNHA, 412
96010-000-PELOTAS-RS.
2345-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - CEG/ICHF/PPGACP
REVISTA ANTROPOLITICA
CAMPUS DO GRAGOATA, BL 0 SALA 301
SAO DOMINGOS
24210-350-NITEROI-RJ.
2346-BP-UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP/FAC. DE CIENCIAS E
LETRAS / DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA-PROG. DE POS-GRAD.SOCIOL
ROD. ARARAQUARA-JAU KM.1
CAIXA POSTAL 174
14800-901-ARARAQUARA-SP.
2473-BP-EDITORA E LIVRARIA ANITA GARIBALDI
REVISTA “PRINCIPIOS”
RUA DOS FRANCESES, 04
BELA VISTA
01329-010-SAO PAULO-SP.
2477-BE-INSTITUTO DE DIREITO CONSTITUCIONAL E CIDADANIA - IDCC
BIBLIOTECA
RUA PARA, 1122, SALA N. 53
CENTRO
86010-450-LONDRINA -PR.
2540-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CURSO DE POS-GRADUACAO EM CIENCIAS SOCIAIS
CAMPUS UNIVERSITARIO
PREDIO 20, SALA 4109
97119-900-SANTA MARIA-RS.
2263-BE-CENTRO DE ESTUDOS ESTRATEGICOS
CENTRO DE DOCUMENTACAO E REFERENCIA - CDR
SPO - AREA 5 QUADRA 3 BLOCO “A” TERREO
70610-200-BRASILIA-DF.
2627-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIAS
FACULDADE DE CIENCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
DEPARTAMENTO DE CIENCIAS SOCIAIS
CAIXA POSTAL 131
74001-970-GOIANIA-GO.
2278-BE-UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP/FAC. FIL. E CIENCIAS
SERVICO DE BIBLIOTECA E DOCUMENTACAO - SATI
AV. HYGINO MUZZI FILHO, 737
CAIXA POSTAL 420 / CAMPUS DE DE MARILIA
17525-900-MARILIA-SP.
2628-BP-FUNDACAO SEADE
GERENCIA DE ATENDIMENTO E DISSEMINACAO
AV. CASPER LIBERO, 478
CAIXA POSTAL 8223
01033-000-SAO PAULO-SP.
2283-BE-CEBELA - CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS LATINO-AMERICANO
REVISTA “COMUNICACAO & POLITICA”
R. HERMENEGILDO DE BARROS, 29
GLORIA
20241-04-RIO DE JANEIRO-RJ.
2705-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
NUCLEO DE EDITORACAO MULTIMIDA
PREDIO 21 - SALA 5240
CIDADE UNIVERSITARIA CAMOBI
97105-900-SANTA MARIA -RS.
133
134
2711-BE-INSTITUTO UNIVERSITARIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO
IUPERJ - REVISTA “ CONTRIBUTIONS...”
RUA DA MATRIZ, 82
BOTAFOGO
22260-100-RIO DE JANEIRO-RJ.
2753-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
IFCH - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
AV. BENTO GONÇALVES, 9500, PREDIO 43111, SALA 104,
91509-900-PORTO ALEGRE-RS.
2780-BP-UNIVERSIDADE DE BRASILIA
CENTRO DE ESTUDOS AVANCADOS MULTIDISCIPLINARES
CAMPUS DARCY RIBEIRO, ED. MULTIUSO 1 - BLOCO A / ASA NORTE
CAIXA POSTAL 04611
70919-970-BRASILIA-DF.
2825-BP-PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE SAO PAULO - NEILS
FACULDADE DE CIENCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE ESTUDOS POS-GRADUACAO EM CIENCIAS SOCIAIS
RUA MINISTRO GODOI, 969, 4. ANDAR - PERDIZES
05015-001-SAO PAULO-SP.
2904-BP-TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO - 3. REGIAO
ESCOLA JUDICIAL
RUA CURITIBA, 835, 11. ANDAR
30170-120-BELO HORIZONTE -MG.
2929-BP-POLIS INSTITUTO DE ESTUDOS, FORMACAO E ASSESSORIA EM
POLITICAS SOCIAIS / CENTRO DE DOCUMENTACAO E INFORMACAO
RUA ARAUJO, 124
CENTRO
01220-020-SAO PAULO-SP.
3001-BP-INSTITUTO DE ESTUDOS DA RELIGIAO - ISER
SECRETARIA DA REVISTA RELIGIAO E SOCIEDADE
RUA DO RUSSEL, 76
22210-010-RIO DE JANEIRO-RJ.
4-BE-UNIVERSIDADE NORTE DO PARANA - UNOPAR
BIBLIOTECA
CAMPUS DE ARAPONGAS -PR 218 - KM 1
CAIXA POSTAL 560
86702-180-ARAPONGAS-PR.
5-BP-UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP
FACULDADE DE CIENCIAS E LETRAS - BIBLIOTECA
AV. DOM ANTONIO, 2100
CAIXA POSTAL 331
19806-900-ASSIS-SP.
11-BP-MUSEU PARAENSE EMILIO GOELDI-DOC
BIBLIOTECA - DPTO. DE INFORMACAO E DOCUMENTACAO
135
AV. PERIMETRAL - CAMPUS DE PESQUISA
CAIXA POSTAL 399
66017-970-BELEM-PA.
31-BP-UNIVERSIDADE CATOLICA DOM BOSCO
BIBLIOTECA PE. FELIX ZAVATTARO
AV. TAMANDARE, 6000
CAIXA POSTAL 100
79117-010-CAMPO GRANDE-MS.
33-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPA
BIBLIOTECA CENTRAL
CAMPUS UNIVERSITARIO MARCO ZERO DO EQUADOR
BAIRRO ZERAO
68902-280 -MACAPA -AP.
35-BE-FUNDACAO FACULDADE ESTADUAL DE FILOSOFIA, CIENCIAS E LETRAS
BIBLIOTECA
AV. PORTUGAL, 340
CAIXA POSTAL - 66
86300-000-CORNELIO PROCOPIO-PR.
37-BE-FACULDADE DE CIENCIAS SOCIAIS APLICADAS
BIBLIOTECA
RUA D, S/N CX. POSTAL 961
85867-530-FOZ DO IGUACU -PR.
42-BP-CASA DA MEMORIA
BIBLIOTECA
RUA SAO FRANCISCO, N.319
80020-190-CURITIBA-PR
.
43-BE-FACULDADE DE CIENCIAS HUMANAS DE PATO BRANCO
BIBLIOTECA
ROD. PR. 469, KM. 1
CP. 379
85503-390-PATO BRANCO-PR.
47-BE-FUNDACAO FACULDADE ESTADUAL DE FIL. CIENCIAS E LETRAS
BIBLIOTECA
RUA COMEMDADOR CORREIA JR. , 117
83203-280-PARANAGUA-PR.
56-BE-UNIOESTE-UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANA
BIBLIOTECA - CAMPUS DE FRANCISCO BELTRAO
RUA MARINGA, 1200
CAIXA POSTAL 1200
85605-010-FRANCISCO BELTRAO-PR.
61-BP-UNIVERSIDADE DE IJUI
BIBLIOTECA CENTRAL
RUA SAO FRANCISCO, 501
136
CAIXA POSTAL 560
98700-000-IJUI-RS.
78-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
BIBLIOTECA CENTRAL
CAIXA POSTAL 1524
CAMPUS UNIVERSITARIO
59072-970-NATAL-RN.
91-BP-FUNDACAO JOAQUIM NABUCO
BIBLIOTECA CENTRAL
RUA DOIS IRMAOS, 92 - APIPUCOS
52071-440-RECIFE-PE.
99-BP-UNIVERSIDADE DE SAO PAULO - FFLCH
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
AV. PROF. LUCIANO GUALBERTO, 315
CIDADE UNIVERSITARIA
05508-900-SAO PAULO-SP.
104-BE-INSTIRUTO DO PATRIMONIO HISTORICO E ARTISTICO NACIONAL
CENTRO NACIONAL DE FOLCLORE E CULTURA POPULAR
DIFUSAO CULTURAL
RUA DO CATETE, 179
22220-000-RIO DE JANEIRO-RJ.
107-BP-FUNAI - MUSEU DO INDIO
BIBLIOTECA
RUA DAS PALMEIRAS 55 - BOTAFOGO
22270-070-RIO DE JANEIRO-RJ.
108-BP-MUSEU NACIONAL - UFRJ
BIBLIOTECA - SETOR DE PERMUTA E EXPEDICAO
AV. GAL. HERCULANO GOMES, S/N
HORTO BOTANICO - QUINTA DA BOA VISTA - SAO CRISTOVAO
20941-360-RIO DE JANEIRO-RJ.
119-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIENCIAS SOCIAIS E HUMANAS - BIBLIOTECA
RUA FLORIANO PEIXOTO, 1184
CIDADE UNIVERSITARIA
97015-372-SANTA MARIA-RS.
139-BP-UNIVERSIDADE DE SAO PAULO
FACULDADE DE EDUCACAO - BIBLIOTECA
AV. DA UNIVERSIDADE, 308 05508-049-SAO PAULO-SP.
148-BE-FACULDADE ESTADUAL DE FILOSOFIA CIENCIAS E LETRAS DE
UNIAO DA VITORIA / BIBLIOTECA
PRACA CEL. AMAZONAS, S/N
CENTRO
84600-000-UNIAO DA VITORIA-PR.
137
155-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
BIBLIOTECA CENTRAL-SECAO DE INTERCAMBIO
CAMPUS UNIVERSITARIO A.C. SIMOES - TABULEIRO DOS MARTINS
57072-970-MACEIO-AL.
304-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE DIREITO - BIBLIOTECA
AV. JOAO PINHEIRO, 100, SALA 1206
CENTRO
30130-180-BELO HORIZONTE-MG.
661-BP-UNIVERSIDADE METODISTA DE SAO PAULO
BIBLIOTECA ECUMENICA
CAIXA POSTAL 5150
RUDGE RAMOS
09731-970-SAO BERNARDO DO CAMPO-SP.
954-BP-UNIVERSIDADE DE SAO PAULO
MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA - BIBLIOTECA
AV.PROF. ALMEIDA PRADO, 1466
CIDADE UNIVERSITARIA
05508-070-SAO PAULO-SP.
1176-BE-UNIVRSIDADE DE SAO PAULO - FFLCH / DEPTO. DE ANTROPOLOCIA
PROGRAMA DE POS-GRAD. EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
REVISTA CADERNOS DE CAMPOS
AV. PROF. LUCIANO GUALBERTO, 315
05508-900-SAO PAULO-SP.
1297-BP-UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E MISSOES
CENTRO DE PUBLICACOES / PERMUTA
AV. ASSIS BRASIL, 709
CAIXA POSTAL 184
980400-000-FREDERICO WESTPHALEN -RS.
1629-BE-UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANA / CAMPUS DE JACAREZINHO
BIBLIOTECA
AV. MANOEL RIBAS, 711
CAIXA POSTAL 103
86400-000-JACAREZINHO-PR.
2017-BE-BIBLIOTECA MARIO DE ANDRADE
SETOR DE ACERVOS ESPECIAIS E PERIODICOS
RUA DA CONSOLACAO 94 - 15º ANDAR
01302-000-SAO PAULO-SP.
2265-BP-UNIVERSIDADE DE CUIABA
BIBLIOTECA CENTRAL
AV. BEIRA RIO, 3100
JARDIM EUROPA
78015-480-CUIABA-MT.
138
2415-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
NEPI
CAIXA POSTAL 476
CAMPUS UNIVERSITARIO TRINDADE
88040-900-FLORIANOPOLIS-SC.
2552-BE-PROFA. NEIDE ESTERCI
REVISTA “BOLETIM REDE AMAZONIA”
RUA VIUVA LACERDA, 300/ 101
hUMAITA
22261-050-RIO DE JANEIRO-RJ.
2572-BE-UNIOESTE-UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANA
BIBLIOTECA
RUA JARDIM UNIVERSITARIO, 2069
CAIXA POSTAL 711
85806-970-CASCAVEL-PR.
2645-BP-CENTRO PASTORAL, EDUCACIONAL A ASSISTENCIAL DOM CARLOS
BIBLIOTECA UNIVERSITARIA
RUA DR. BERNARDO RIBEIRO VIANA, 903
CAIXA POSTAL 221
85555-000-PALMAS-PR.
2661-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO - CENTRO DE FIL. E CIEN.
HUMANAS - DEP. DE CIEN. SOCIAIS / POS-GRAD. EM ANTROPOLOG.
AV. PROF. MORAES REGO, 1235, 13. ANDAR
CIDADE UNIVERSITARIA
50670-901-RECIFE-PE.
2668-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL - IFCH
PROGR. DE POS-GRAD. EM ANTROP. SOCIAL / “HORIZ. ANTROPOL.”
AV. BENTO GONCALVES, 9500
BAIRRO AGRONOMIA
91509-900-PORTO ALEGRE-RS.
2681-BE-BIBLIOTECA PUBLICA MUNICIPAL “CRUZ E SOUZA”
SRA. ELISETE LENZI FERNANDES
PRAÇA ARTHUR SIEWERDT, N. 01
CENTRO
89176-000-TROMBUDO CENTRAL -SC.
2709-BE-INSTITUTO DE ESTUDOS SUPERIORES DA AMAZONIA - IESAM
SISTEMA DE BIBLIOTECA - SIBIESAM
AV. GOV. JOSE MALCHER, 1128, ANEXO 01
BAIRRO NAZARE
66055-260-BELEM -PA.
2721-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
MUSEU DE ARQUEOLOGIA DO XINGO - REVISTA “CANINDE”
CIDADE UNIVERSITARIA “PROF. JOSE ALOISIO DE CAMPOS”
JARDIM ROSA ELZE
49100-000-SAO CRISTOVAO -SE.
139
2881-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CFCH - BIBLIOTECA / SETOR DE PERIODICOS
AV. PASTEUR, 250 - PREDIO ANEXO DA DECANIA DO CFCH
PRAIA VERMELHA
22295-900-RIO DE JANEIRO-RJ.
2942-BP-ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
BIBLIOTECA RODOLFO GARCIA
AV. PRESIDENTE WILSON, 231. 2. ANDAR
CASTELO
20030-021-RIO DE JANEIRO-RJ.
2974-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA - BIBLIOTECA
RUA CORONEL ALVES, 55
CENTRO
35400-000-OURO PRETO-MG.
2999-BE-LABORATORIO DE IMAGEM E SOM EM ENTROPOLOGIA - LISA
RUA DO ANFITEATRO, 181, CONJ. COLMEIAS, FAVO 08
CIDADE UNIVERSITARIA
05508-060-SAO PAULO-SP.
3000-BE-NUCLEO DE HISTORIA INDIGENA E DO INDIGENISMO
RUA DO ANFITEATRO, 181, CONJ. COLMEIA, FAVO, 08
CIDADE UNIVERSITARIA
05508-060-SAO PAULO -SP.
3001-BP-INSTITUTO DE ESTUDOS DA RELIGIAO - ISER
SECRETARIA DA REVISTA RELIGIAO E SOCIEDADE
RUA DO RUSSEL, 76
22210-010-RIO DE JANEIRO-RJ.
3004-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE
DEPTO. DE CIENCIAS SOCIAIS
CAIXA POSTAL 500
CAMPUS UNIVERSITARIO REITOR AULIO GELIO ALVES DE SOUZA
69915-900-RIO BRANCO-AC.
3005-BE-UNIVERSIDADE CATOLICA DOM BOSCO - NEPPI
NUCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS DAS POPULACOES INDIGENAS
AV. TAMANDARE. 6000
CAIXA POSTAL 100
79117-010-CAMPO GRANDE -MS.
3007-BE-ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLITICA DE SAO PAULO
BIBLIOTECA CENTRAL
RUA CESARIO GALENO, 448
03071-000-SAO PAULO -SP.
3008-BE-FUNAI - FUNDACAO NACIONAL DO INDIO
BIBLIOTECA CURT NIMUENDAJÚ
140
SEPS 702/902 - ED. LEX 1º ANDAR
70340-904-BRASILIA-DF.
CAIXA POSTAL 858
98025-810-CRUZ ALTA-RS.
3009-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIAS
MUSEU ANTROPOLOGICO
CAIXA POSTAL 131
74605-010-GOIANIA-GO.
39-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
BIBLIOTECA CENTRAL - HEMEROTECA
RUA FERNANDO CORREA , S/N
78060-900-CUIABA-MT.
3010-BE-ANPOCS - ASSOCIACAO NACIONAL DE POS-GRADUACAO E PESQUISA
EM CIENCIAS SOCIAIS
RUA PROF. LUCIANO GUALBERTO, 315 - SALA 11 6
CIDADE UNIVERSITARIA
05508-900-SAO PAULO -SP.
44-BP-INSTITUTO HISTORICO GEOGRAFICO E ETNOGRAFICO
PARANAENSE / BIBLIOTECA
RUA JOSE LOUREIRO, 43
80010-000-CURITIBA-PR.
3015-BE-UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA
CENTRO DE LETRAS E CIENCIAS HUMANAS - BIBLIOTECA
CAIXA POSTAL 6001
CAMPUS UNIVERSITARIO
86051-990-LONDRINA-PR.
2-BP-ASSOCIACAO EDUCATIVA EVANGELICA
BIBLIOTECA CENTRAL
AV. UNIVERSITARIA, KM. 3,5
CAIXA POSTAL 122 / 901
75070-290-ANAPOLIS-GO.
3-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CENTRO UNIVERSITARIO DE AQUIDAUANA - BIBLIOTECA
PRACA N.S. DA CONCEICAO, 163
CX. POSTAL 135
79200-000-AQUIDAUANA-MS.
17-BP-UNI-BH - CENTRO UNIVERSITARIO DE BELO HORIZONTE
BIBLIOTECA-UNI-BH CAMPUS DIAMANTINA
RUA DIAMANTINA, 567
BAIRRO LAGOINHA
31110-320-BELO HORIZONTE-MG.
34-BP-UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
BIBLIOTECA CENTRAL - SECAO DE INTERCAMBIO
RUA FRANCISCO GETULIO VARGAS, 1130
CAIXA POSTAL 1352 - BAIRRO PETROPOLIS
95001-970-CAXIAS DO SUL-RS.
36-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CAMPUS DE CORUMBA / CPCO / BIBLIOT. POETA MANOEL BANDEIRA
AV. RIO BRANCO, 1270
CAIXA POSTAL 252
79304-020-CORUMBA-MS.
38-BP-UNIVERSIDADE DE CRUZ ALTA / UNICRUZ
BIBLIOTECA VISCONDE DE MAUA
RUA ANDRADE NEVES, 308
141
48-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
BIBLIOTECA DO CENTRO UNIVERSITARIO DE DOURADOS
RUA JOAO ROSA GOES, 1761
CAIXA POSTAL 322
79825-070-DOURADOS-MS.
50-BP-UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA - CAMPUS DE ERECHIM
BIBLIOTECA
AV. 07 DE SETEMBRO, 1621
CAIXA POSTAL 743
99700-000-ERECHIM-RS.
53-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
NUCLEO DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES SOBRE O ENVELHECIMENTO
RUA RAMIRO BARCELOS, 2600 - SALA 201
90035-003-PORTO ALEGRE -RS.
57-BP-UNIVERSIDADE CATOLICA DE GOIAS - BIBLIOTECA CENTRAL
DIVISAO DE PROCESSO TECNICO / SECAO DE INTERCAMBIO
RUA 226 C/235 SETOR UNIVERSITARIO
CAIXA POSTAL 86
74610-130-GOIANIA-GO.
62-BE-FUNDACAO FAC. FIL. CIENCIAS E LETRAS DE MANDAGUARI
BIBLIOTECA CENTRAL
RUA RENE TACCOLA, 151 - CENTRO
CAIXA POSTAL 100
86975-000-MANDAGUARI-PR.
64-BE-UNIVERSIDADE DA REGIAO DE JOINVILLE
BIBLIOTECA UNIVERSITARIA - PERIODICOS
CAIXA POSTAL 246
89201-972-JOINVILLE-SC.
65-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
BIBLIOTECA CENTRAL
CAMPUS UNIVERSITARIO MARTELOS
36036-330-JUIZ DE FORA-MG.
72-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
BIBLIOTECA CENTRAL - INTERCAMBIO
142
AV. DR. RODRIGO OTAVIO J. RAMOS 3000
69077-000-MANAUS-AM.
AV. JOAO NEVES DE AVILA, 2121, BLOCO 3 C
SANTA MONICA
38408-100-UBERLANDIA-MG.
78-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
BIBLIOTECA CENTRAL
CAIXA POSTAL 1524
CAMPUS UNIVERSITARIO
59072-970-NATAL-RN.
177-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE LAVRAS
BIBLIOTECA CENTRAL (SECAO DE INTERCAMBIO)
CAIXA POSTAL 3037
37200-000-LAVRAS-MG.
85-BE-CASA DE CULTURA MARIO QUINTANA
BIBLIOTECA LUCILIA MINSSEN
RUA DOS ANDRADAS, 736 - 5. ANDAR
90020-004-PORTO ALEGRE-RS.
184-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE VICOSA
BIBLIOTECA CENTRAL / SETOR DE SELECAO E AQUISICAO
CAMPUS UNIVERSITARIO
36571-000-VICOSA-MG.
88-BP-INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAFICO DO RIO GRANDE DO SUL
RUA RIACHUELO, 1317 - 1. ANDAR
90010-271-PORTO ALEGRE-RS.
195-BP-IPARDES.
SETOR DE DOCUMENTACAO / SEDOC
RUA MAXIMO JOAO KOPP, 274, BLOCO 2
SANTA CANDIDA
82630-900-CURITIBA-PR.
92-BP-UNIVERSIDADE CATOLICA DE PERNAMBUCO
BIBLIOTECA CENTRAL
RUA DO PRINCIPE, 526 - BOA VISTA
50050-900-RECIFE-PE.
124-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE SAO CARLOS
BIBLIOTECA CENTRAL
VIA WASHINGTON LUIS, KM. 235
CAIXA POSTAL 676
13565-905-SAO CARLOS-SP.
128-BP-INSTITUTO ANCHIETANO DE PESQUISAS
RUA BRASIL, 725
CAIXA POSTAL 275
93001-970-SAO LEOPOLDO-RS.
130-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHAO - BIBLIOTECA CENTRAL
SERVICO DE CONTROLE E FORMACAO DO ACERVO / INTERCAMBIO
AV. DOS PORTUGUESES S/N
CAMPUS UNIVERSITARIO-BACANGA
65085-580-SAO LUIS-MA.
136-BP-UNIVERSIDADE DE SAO PAULO
MUSEU PAULISTA - BIBLIOTECA
PARQUE DA INDEPENDENCIA, IPIRANGA
CAIXA POSTAL 42.403
04218-970-SAO PAULO-SP.
144-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUI
BIBLIOTECA CENTRAL-SECAO DE INTERC. E AQUIS.
BIBLIOTECA COMUNITARIA - UFPI
CAMPUS DA ININGA
64049-550-TERESINA-PI.
147-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLANDIA
BIBLIOTECA CAMPUS SANTA MONICA - S. DE INTERC. E PERMUTA
143
211-BP-UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
BIBLIOTECA CENTRAL
CAMPUS UNIVERSITARIO - BAIRRO SAO JOSE
CAIXA POSTAL 611
99001-970-PASSO FUNDO-RS.
654-BP-INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAFICO BRASILEIRO
“REVISTA DO INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAFICO BRASILEIRO”
AVENIDA AUGUSTO SEVERO, 8 - 10. ANDAR
GLORIA
20021-040-RIO DE JANEIRO-RJ.
684-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPA - COLEGIADO DE HISTORIA
BIBLIOTECA SETORIAL LABORATORIO DE ARQUEOLOGIA
RODOVIA JUSCELINO KUBITSCHEK DE OLIVEIRA KM 02
BAIRRO ZERAO
68902-280-MACAPA -AP.
710-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
BIBLIOTECA CENTRAL
FAIXA DE CAMOBI, KM.9
CAMPUS UNIVERSITARIO
97105-900-SANTA MARIA-RS.
976-BP-UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARA
BIBLIOTECA CENTRAL
AV. PARANJANA, 1700 - CAMPUS DO ITAPERI
CAIXA POSTAL 1531
60740-000-FORTALEZA-CE.
987-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
NDC - DIVISAO DE SERVICOS TECNICOS
AV. BENTO MARIA DA COSTA, 115A - JURUJUBA
144
24251-970-NITEROI-RJ.
1057-BP-REVISTA DE HISTORIA
PROF. LUCIANO FIGUEIREDO
RUA DEBRET, N. 23 / 1306
CENTRO
20020-080-RIO DE JANEIRO-RJ
1138-BP-CENTRO UNIVERSITARIO DE BRASILIA - UNICEUB
BIBLIOTECA CENTRAL
SEPN 707/907 - ASA NORTE
70790-075-BRASILIA-DF.
1213-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE TOCANTINS
BIBLIOTECA
AV. NS. 15, ALCNO 14, BLOCO IV
77020-120-PALMAS -TO.
1220-BP-UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA - UNISUL
BIBLIOTECA UNIVERSITARIA - SETOR DE PERIODICOS
AV. JOSE ACACIO MOREIRA, 787
DEHON
88704-970-TUBARAO-SC.
1270-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDONIA
BIBLIOTECA CENTRAL
CAMPUS UNIVERSITARIO “ JOSE RIBEIRO FILHO “
BR 364, Km 9,5
78900-500-PORTO VELHO-RO.
1286-BE-UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PIAUI
BIBLIOTECA CENTRAL
RUA JOAO CABRAL, S/N
BAIRRO PIRAJA
64002-150-TERESINA-PI.
1293-BE-MUSEU PARANAENSE
BIBLIOTECA
RUA KELLERS, 289
ALTO SAO FRANCISCO
80410-100-CURITIBA-PR.
1318-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
BIBLIOTECA CENTRAL
DIVISAO DE PROCESSOS TECNICOS
CAIXA POSTAL 353
49100-000-SAO CRISTOVAO-SE.
1596-BP-FUNDACAO MEMORIAL DA AMERICA LATINA
CENTRO DE ESTUDOS DA AMERICA LATINA / BIBLIOTECA LATINO-AMER
AV. MOURA SOARES DE MOURA ANDRADE, 664
BARRA FUNDA
01156-001-SAO PAULO-SP.
145
1627-BP-UTFPR - CAMPUS CURITIBA
BIBLIOTECA
AV. SETE DE SETEMBRO, 3165
80230-901-CURITIBA-PR.
1672-BE-SESC DA ESQUINA
BIBLIOTECA
RUA VISCONDE DO RIO BRANCO, 969 - 3. ANDAR
80410-001-CURITIBA-PR.
1704-BP-FIPE-FUNDACAO INSTITUTO DE PESQUISAS ECONOMICAS
DEPARTAMENTO DE PUBLICACOES
AV. PROF. LUCIANO GUALBERTO, 908
CIDADE UNIVERSITARIA
05508-900-SAO PAULO-SP.
1751-BP-UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP
FCL - DEPARTAMENTO DE HISTORIA - REVISTA POS-HISTORIA
AV. DOM ANTONIO 2100
CAIXA POSTAL 335
19800-000-ASSIS-SP.
1856-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE
BIBLIOTECA CENTRAL
BR. 364 KM.4, CAMPUS UNIVERSITARIO
CAIXA POSTAL 500
69915-900-RIO BRANCO-AC.
2029-BP-UNIVERSIDADE PARANAENSE - UNIPAR
BIBLIOTECA - A/C. DIRETORA DA BIBLIOTECA
PRACA MASCARENHAS DE MORAES, S/N.
87502-210-UMUARAMA-PR.
2035-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
CURSO DE POS-GRADUACAO EM HISTORIA
AV. BENTO GONCALVES, 9500
BLOCO 3, PREDIO A, SALA 114
91540-000-PORTO ALEGRE-RS.
2050-BP-UNIOESTE-UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANA
BIBLIOTECA DO CAMPUS DE MARECHAL CANDIDO RONDON
RUA PERNAMBUCO, 1777
CAIXA POSTAL 1008
85960-000-MARECHAL CANDIDO RONDON-PR.
2170-BP-UNIOESTE-UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANA
BIBLIOTECA -CAMPUS UNIVERSITARIO DE TOLEDO
RUA DA FACULDADE, 2550 - CAIXA POSTAL 520
JARDIM LA SALLE
85903-000-TOLEDO-PR.
2174-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
146
BIBLIOTECA DE CIENCIAS SOCIAIS - SECAO DE INTERCAMBIO
RUA CORONEL ALBERTO ROSA, 154, 3. ANDAR
96010-770-PELOTAS-RS.
2269-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FAC. DE FIL. E CIENCIAS HUMANAS - SETOR DE PUBLICACOES
AV. ANTONIO CARLOS, 6627 - PAMPULHA
CAIXA POSTAL 253
31270-901-BELO HORIZONTE-MG.
2278-BE-UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP/FAC. FIL. E CIENCIAS
SERVICO DE BIBLIOTECA E DOCUMENTACAO - SATI
AV. HYGINO MUZZI FILHO, 737
CAIXA POSTAL 420 / CAMPUS DE DE MARILIA
17525-900-MARILIA-SP.
2290-BP-UNIVERSIDADE COMUNITARIA REGIONAL DE CHAPECO-UNOCHAPECO
UNOCHAPECO - BIBLIOTECA CENTRAL
RUA SENADOR ATTILIO FONTANA, 591-E / BAIRRO EFAPI
CAIXA POSTAL 747
89809-000-CHAPECO-SC.
2398-BE-ANPUH
PRESIDENTE - PROFA. LANA LAGE
CAMPUS DO GRAGAOTA, BLC. 0, 5. ANDAR
24000-000-NITEROI-RJ.
2399-BE-BIBLIOTECA PUBLICA MUNICIPAL SCHARFFENBERG DE QUADROS
Praça 8 de janeiro, 120
83005-110-SAO JOSE DOS PINHAIS-PR.
2400-BP-ARQUIVO NACIONAL
COACE / COCAC / BIBLIOTECA
RUA AZEREDO COUTINHO, 77 SALA 412
CENTRO
20230-170-RIO DE JANEIRO-RJ.
2402-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS/BIBLIOTECA
R. PROF. ARISTIDES NOVIS, 197
ESTRADA DE SAO LAZARO - SAO LAZARO
40210-730-SALVADOR-BA.
2403-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS SOCIAIS - BIBLIOTECA
LARGO SAO FRANCISCO DE PAULA, N. 1- TERREO
CENTRO
20051-070-RIO DE JANEIRO-RJ.
2404-BE-REVISTA NOSSA HISTORIA
AV. TREZE DE MAIO 44 - 5. ANDAR
20031-007-RIO DE JANEIRO-RJ.
147
2405-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - POS-GRADUACAO EM HISTORIA,
ANTROPOLOGIA E CIENCIA POLITICA / BIBLIOTECA
RUA VISCONDE DO RIO BRANCO, S/N.
CAMPUS DO GRAGOATA / SAO DOMINGOS
24250-350-NITEROI-RJ.
2408-BP-UNICAMP - IFCH
NUCLEO DE ESTUDOS DE GENERO - PAGU
CAIXA POSTAL 6110
13083-970-CAMPINAS-SP.
2424-BE-FUNDACAO CULTURAL DE CURITIBA
DIRETORIA DO PATRIMONIO HISTORICO, ARTISTICO E CULTURAL
RUA SAO FRANCISCO, 319
80020-190-CURITIBA-PR.
2538-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
NUCLEO DE HISTORIA REGIONAL
CAMPUS UNIVERSITARIO
36036-330-JUIZ DE FORA-MG.
2572-BE-UNIOESTE-UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANA
BIBLIOTECA
RUA JARDIM UNIVERSITARIO, 2069
CAIXA POSTAL 711
85806-970-CASCAVEL-PR.
2573-BE-UNICAMP. IFCH / CECULT
COLECAO VARIAS HITORIAS
CAIXA POSTAL, 6110
CIDADADE UNIV. ZEFERINO VAZ - DISTRITO DE BARAO GERALDO
13083-970-CAMPINAS -SP.
2584-BP-CENTRO UNIVERSITARIO NOVE DE JULHO - UNINOVE
BIBLIOTECA
RUA DIAMANTINA, 302
VILA MARIA
02117-010-SAO PAULO-SP.
2601-BE-FUNDACAO INSTITUTO DE ENSINO PARA OSASCO - UNIFIEO
BIBLIOTECA - SETOR DE PERIODICOS
AV. FRANZ VOEGELI, 300 BLOCO MARROM - SUBSOLO
06020-190-OSASCO-SP.
2612-BP-UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA
DEPARTAMENTO DE HISTORIA - “REVISTA DE HISTORIA REGIONAL”
PRACA SANTOS ANDRADE, S/N. - BLOCO B
84010-330-PONTA GROSSA-PR.
2681-BE-BIBLIOTECA PUBLICA MUNICIPAL “CRUZ E SOUZA”
SRA. ELISETE LENZI FERNANDES
PRAÇA ARTHUR SIEWERDT, N. 01
CENTRO
148
89176-000-TROMBUDO CENTRAL -SC.
2685-BE-UNIVERSIDADE PARANAENSE - UNIPAR / CEUV.
BIBLIOTECA
RUA RUI BARBOSA, 611, CX. POSTAL 4515
JARDIM CRISTAL
85810-240-CASCAVEL-PR.
2798-BE-UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE / CAMPUS DE IRATI
BIBLIOTECA
BR 153 - KM. 07 / BAIRRO RIOZINHO
CAIXA POSTAL 21
84500-000-IRATI-PR.
2829-BP-CENTRO UNIVERSITARIO FILADELFIA
BIBLIOTECA
RUA ALAGOAS, 2050
CAIXA POSTAL 196
86020-430-LONDRINA-PR.
2834-BP-REVISTA “PROJECOES”
A/C. Pe. ZDZISLAW MALCZEWSKI
CAIXA POSTAL, 4033
82501-970-CURITIBA-PR.
2881-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CFCH - BIBLIOTECA / SETOR DE PERIODICOS
AV. PASTEUR, 250 - PREDIO ANEXO DA DECANIA DO CFCH
PRAIA VERMELHA
22295-900-RIO DE JANEIRO-RJ.
2966-BP-UNICAMP - CENTRO DE MEMORIA
UNICAMP
RUA SERGIO BUARQUE DE HOLANDA, 800
CAIXA POSTAL 6023
13083-970-CAMPINAS-SP.
2974-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA - BIBLIOTECA
RUA CORONEL ALVES, 55
CENTRO
35400-000-OURO PRETO-MG.
3002-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA / NUCLEO DE ESTUDOS
“ARTE CULTURA E SOCIEDADE NA AMERICA LATINA E CARIBE” MUSA
CAMPUS TRINDADE
990040-900-FLORIANOPOLIS-SC.
3003-BE-UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
NUCLEO DE ESTUDOS RACIAIS - NUER
CAIXA POSTAL 5245
CAMPUS UNIVERSITARIO TRINDADE
88010-970-FLORIANOPOLIS-SC.
149
3024-BP-UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO - RONDONOPOLIS
BIBLIOTECA REGIONAL - SECAO DE INTERCAMBIO
RODOVIA RONDONOPOLIS - GUIRATINGA KM. 06
CAIXA POSTAL, 186
78735-901-RONDONOPOLIS-MT.
EXTERIOR
49-EE-UNIVERSITY OF ILLINOIS
LATIN AMARICAN & CARIBBEAN LIBRARY
1408 WEST GREGORY DRIVE
IL.61801-URBANA -USA
171-EP-INSTITUTO UNIVERSITARIO DE DESARROLLO Y COOPERACIO - UCM
REVISTA ESPANOLA DE DESARROLLO Y COOPERACON
DONOSO CORTES, 65, 6. DCHA
28015-MADRID-ESPANHA
338-EP-UNIVERSIDAD DE LA HABANA
DIRECCION DE INFORMACION CIENTIFICA Y TECNICA
EDIFICIO BIBLIOTECA CENTRAL “RUBEN MARTINEZ VILLENA”
SAN LAZARO Y CALLE L, VEDADO
10400-HAVANA 4-CUBA
339-EP-BIBLIOTECA NACIONAL
CANJE INTERNACIONAL DE PUBLICACIONES
PASEO DE RECOLETOS, 20
28071-MADRID-ESPANHA
340-EP-AGENCIA ESPANOLA DE COOPERACION INTERNACIONAL
BIBLIOTECA HISPANICA - SECCION CANJE
AVDA. DE LOS REYES CATOLICOS, 4
28040-MADRID-ESPANHA
343-EP-UNIVERSIDAD DE SALAMANCA
SERVICIO DE BIBLIOTECAS - INTERCAMBIO EDITORIAL
CAMPUS MIGUEL DE UNAMUNO
APARTADO 597
E-37080-SALAMANCA-ESPANHA
344-EP-UNIVERSIDADE DE SANTIAGO DE COMPOSTELA
SERVIZO DE PUBLICACIONS E INTERCAMBIO CIENTIFICO
CAMPUS UNIVERSITARIO SUR
E-15782-SANTIAGO DE COMPOSTELA-ESPANHA
349-EP-BIBLIOTHEQUE NATIONALE FRANCE
SERVICE DES ECHANGES INTERNATIONAUX
QUAI FRANCOIS MAURIAC
F 75706 - CEDEX 13-PARIS-FRANCA
351-EP-UNIVERSITE DE PARIS
150
INSTITUT DES HAUTES ETUDES DE L’AMERIQUE LATINE
CENTRE DE DOCUMENTATION/SERVICE DES PERIODIQUES
28, RUE SAINT-GUILLAUME
75007-PARIS-FRANCA
358-EE-CENTRO LUSO-BRASILEIRO
UNIVERSIDADE SOFIA
7-1 KIOICHO, CHIOYODA-KU
102-TOKIO-JAPAO
362-EP-EL COLEGIO DE MEXICO - BIBLIOTECA
DEPARTAMENTO DE DESARROLLO DE COLLECCIONES
CAMINO AL AJUSCO, N. 20 - COL PEDREGAL DE STA. TERESA
APARTADO POSTAL 20-671
01000-MEXICO DF-MEXICO
375-EP-FUNDACAO CALOUSTE GULBENKIAN
SERVICO DE BIBLIOTECAS E APOIO A LEITURA
AVENIDA DE BERNA 56
1067-001-LISBOA-PORTUGAL
377-EP-LATINAMERIKA - INSTITUTET
LIBRARY
S-106 91-STOCKHOLM-SUECIA
381-EP-UNIVERSITY OF NEW MEXICO
ZIMMERMAN LIBRARY - SERIALS EXCHANGE
MSC05 3020
NM 87131-0001-ALBUQUERQUE-USA
382-EE-UNIVERSITY OF TEXAS AT AUSTIN
GENERAL LIBRARY / BENSON LATIN AMERICAN COLLECTION
SID RICHARDSON HALL 1.106
TX 78713-8916-AUSTIN-USA
433-EE-CORNELL UNIVERSITY - ALBERT R. MANN LIBRARY
ACQUISITIONS DIVISION/1ABN2438 - SERIALS UNIT
NY 14853-4301-ITHACA-USA
487-EP-CAMBRIDGE PHILOSOPHICAL SOCIETY
LIBRARY
BENET STREET
CB2 3PY-CAMBRIDGE-INGLATERRA
525-EE-UNIVERSIDAD NACIONAL AUTONOMA DE MEXICO
HEMEROTECA LATINOAMERICANA / SUBD. DE SERV. ESPECIALIZ.
DIRECCION GENERAL DE BIBLIOTECAS - ANEXO (ANTES CICH)
APARTADO POSTAL 20-281
01000-MEXICO DF-MEXICO
556-EP-CENTRO DE COMUNICACION CIENTIFICA CON IBERO-AMERICA
DENZENBERGSTR. 35
D-72074-TUBINGEN-ALEMANHA
151
670-EP-INSTITUTO MATIAS ROMERO DE ESTUDIOS DIPLOMATICOS
BIBLIOTECA
AV. PERALVILLO 124, COL. CUAUHTEMOC
C. P. 06200
-MEXICO DF-MEXICO
783-EP-DUKE UNIVERSITY
PERKINS LIBRARY - EXCHANGE DEPARTMENT
BOX 90187
NC 27708-0187-DURHAM-USA
817-EP-SMITHSONIAN INSTITUTION LIBRARIES
ACQUISITIONS / EXCHANGE/NHB 25-MRC 154
PO BOX 37012
DC 20013-7012-WASHINGTON DC-USA
966-EE-UNIVERSITY OF CALIFORNIA, BERKELEY
EXCHANGE DIVISION
132 DOE LIBRARY #
CA 94720-6000-BERKELEY-USA
1124-EE-NUEVA SOCIEDAD
CANJES
DEFENSA 1111, 1. A
C1065 AAU-BUENOS AIRES-ARGENTINA
1169-EE-UNIVERSIDAD DE BUENOS AIRES
FACULTAD DE DERECHO
AV. FIGUEROA ALCORTA, 2263 1o p.
1425-BUENOS AIRES-ARGENTINA
1170-EE-FONDATION NATIONALE DES SCIENCES POLITIQUES
SERVICES DES PERIODIQUES ET ANNUAIRES
27, RUE SAINT-GUILLAUME
75337-PARIS-FRANCA
1353-EE-UNIVERSIDAD AUTONOMA METROPOLITANA- UNIDAD XOCHIMILCO
DEPTO. DE POLITICA Y CULTURA - REV. “ POLITICA Y CULTURA”
CALZADA DEL HUESO 1100
COL. VILLA QUIETUD
04960-MEXICO DF-MEXICO
1361-EE-BRITISH LIBRARY ACQUISITIONS UNIT (SRIS)
BOSTON SPA, WETHERBY
LS23 7BQ-WEST YORKSHIRE-INGLATERRA
1750-EE-UNIVERSITE DE LA SORBONNE NOUVELLE - PARIS III
BIBLIOTHEQUE - ETUDES PORTUGAISES ET BRESILIENNES ET
D’AFRIQUE LUSOPHONE
17, RUE DE LA SORBONNE
75005-PARIS-FRANCA
152
2006-EP-SERVICIO DE CANJE -BIBLIOTECA DE LA UNIVERSIDAD COMPLUTENSE
CIUDAD UNIVERSITARIA
28040-MADRID-ESPANHA
2264-EP-CENTRO DE ESTUDOS DE ANTROPOLOGIA SOCIAL
REVISTA “ETNOGRAFICA”
I.S.C.T.E - AV. DAS FORCAS ARMADAS
1600-LISBOA-PORTUGAL
2045-EP-UNIVERSIDAD NACIONAL DE COLOMBIA
BIBLIOTECA CENTRAL - SECCION CANJE
APARTADO AEREO 14490
-BOGOTA-COLOMBIA
2289-EE-FLACSO - FACULTAD LATINOAMERICANA DE CIENCIAS SOCIALES
AYACUCHO, 551
C. P. C1026
-BUENOS AIRES-ARGENTINA
2055-EP-CONSEJO SUPERIOR DE INVESTIGACIONES CIENTIFICAS
INSTITUTO DE ESTUDIOS SOCIALES AVANZADOS - BIBLIOTECA
CALLE ALFONSO XII, 18
28014-MADRID-ESPANHA
2308-EP-UNIVERSIDAD NACIONAL AUTONOMA DE MEXICO
CENTRO COORDINADOR Y DIFUSOR DE ESTUDIOS LATINOAMERICANOS
BIBLIOTECA SIMON BOLIVAR
TORRE DOS DE HUMANIDADES PISO, 8 PISO, CD. UNIVERSITARIA
CP: 04510-MEXICO DF-MEXICO
2065-EE-UNIVERSITY OF PITTSBURGH
UNIVERSITY LIBRARY SYSTEM
GIFT AND EXCHANGE, ROOM 121
7500 THOMAS BOULEVARD
PA 15260-PITTSBURGH-USA
2095-EE-OEA - ORGANIZATION OF AMERICAN STATES
EDITOR / INTER-AMERICAN REVIEW OF BIBLIOGRAPHY
17TH STREET AND CONSTITUTION AVE
DC 20006-WASHINGTON-USA
2105-EP-UNIVERSIDAD DEL ZULIA - FAC. DE CIENCIAS ECON. Y SOCIALES
BIBLIOTECA - SERVICIO DE DITR. PARA CANJE Y DONACION
NUCLEO HUMANISTICO. AVEIDA GOAJIRA, SECTOR ZIRUMA APDO. 526
-MARACAIBO-VENEZUELA
2136-EE-CAMBRIDGE SCIENTIFICABSTRACTS - WESTERN REGION OFFICE
SERIALS ACQUISIITION MANAGER - SOCIOLOGICAL ABSTRACTS
P.O.BOX 22206
CA 92122-0206-SAN DIEGO-USA
2139-EP-UNIVERSIDAD PONTIFICIA DE SALAMANCA
FACULDAD DE CIENCIAS POLITICAS Y SOCIOLOGIA “LEON XIII”
PASEO DE JUAN XXIII, 3
CIUDAD UNIVERSITARIA
28040-MADRID-ESPANHA
2199-EP-GIUFFRE EDITORE
VIA BUSTO ARSIZIO, 40
20151-MILANO-ITALIA
2230-EP-UNIVERSIDAD AUTONOMA DE PUEBLA
CENTRO DE ESTUDIOS DE POLITICA COMPARADA, A.C
PLAYA ERENDIRA, 19
SANTIAGO SUR, DELEG. IZTACALCO
08800-MEXICO DF-MEXICO
153
2324-EP-UNIVERSIDADE DO MINHO - INSTITUTO DE EDUCACAO E PSICOLOGIA
“REVISTA PORTUGUESA DE EDUCACAO”
RUA ABADE DE LOUREIRA
CAMPUS DE GUALTAR
4710-057-BRAGA-PORTUGAL
2384-EP-UNIVERSIDAD NACIONAL DE QUILMES
“REVISTA DE CIENCIAS SOCIALES”
ROQUE SAENZ PENA, 180
BERNAL
(1876)-BUENOS AIRES-ARGENTINA
2471-EP-UNIVERSIDAD NACIOBAL DE TUCUMAN
INSTITUTO DE ESTUDIOS SOCIO-ECONOMICOS / PROF. DANIEL CAMPI
FACULDAD DE CIENCIAS ECONOMICAS
CASILLA DE CORREO 379
40000-SAN MIGUEL DE TUCUMAN-ARGENTINA
2569-EE-UNIVERSIDAD CATOLICA “NSTRA. SENORA DE LA ASUNCION”
CEADUC - CENTRO DE ESTUDIOS ANTROPOLOGICOS
CASILLA DE CORREO 1718
-ASUNCION-PARAGUAY
2613-EP-UNIVERSIDAD DE CHILE / FACULDAD DE ARQUITETURA Y URBANISMO
INSTITUTO DE LA VIVIENDA - CENTRO DE DOCUMENTACION
PORTUGAL 84
6510285-SANTIAGO-CHILE
2622-EE-LIBRARY OF CONGRESS
HISPANIC DIVISION
101 INDEPENDENCE AVE., SE.
20540-4850-WASHINGTON-USA
2623-EE-IBSS EDITORIAL OFFICE
LIONEL ROBBINS BUILDING
10 PORTUGAL STREET
WC2A 2HD-LONDRES-INGLATERRA
154
2624-EE-INTERNATIONAL POLITICAL SCIENCE ABSTRACTS/DOCUMENTATION
POLITIQUE INTERNATIONALE
27, RUE SAINT-GUILLAUME
75337-PARIS-FRANCA
2748-EP-UNIVERSIDAD AUTONOMA DEL ESTADO DE MEXICO
CENTRO DE INVESTIGACION Y ESTUDIOS AVANZADOS DE LA POBLACION
TORRA ACADEMICA, PRIMER PISO
CERRO DE COATEPEC, CIUDAD UNIVERSITARIA
50100-TOLUCA-MEXICO
2809-EP-CENTER FOR LATINAMERICA STUDIES - CLAS
BYG. 463
JENS CHR. SKOVSVEJ 5 - LOK. 428
8000-ARHUS C-DINAMARCA
2823-EP-UNIVERSIDAD NACIONAL DE GENERAL SAN MARTIN
REVISTA DE LA ESCUELA DE ECONOMIA Y NEGOCIOS
TUCUMAN, 2250
PCIA. DE BUENOS AIRES
-SAN MARTIN-ARGENTINA
2922-EP-UNIVERSITY OF FLORIDA
GEORGE A. SMATHERS LIBRARIES -GIFTS & EXCHANGES PROGRAM
PO BOX 117007
FL 32611-GAINESVILLE-USA
2955-EE-UNIVERSIDAD DE CALDAS -FAC. DE CIENCIAS JURIDICAS Y SICIALES
DEPTO. DE ANTROPOLOGIA Y SOCIOLOGIA PISO 3
CARRERA 23 N. 58-65
-MANJZALES -COLOMBIA
2975-EE-COLUMBIA UNIVERSITY LIBRARY
LEHMAN LIBRARY
INTL. AFFAIRS BLDG.
420 WEST 118TH STREET
NY 10027-NEW YORK-USA
3006-EE-NEW YORK PUBLIC LIBRARY
PERIODICAS DIVISION
GRAND CENTRAL STA
POB 7740
10163-2240-NEW YORK -USA
3030-EP-UNIVERSIDAD AUTONOMA DE BUCARAMANGA - FAC. DE DERECHO
CENTRO DE INVESTIGACIONES SOCIO-JURIDICAS
CALLE 48 - N. 39-234
APARTADO AEREO 1111542
-BUCARAMANGA -COLOMBIA
68-EE-UNIVERSIDAD DE BUENOS AIRES
FACULDADE DE CIENCIAS SOCIALES, BIBLIOTECA
155
MARCELO T. DE ALVEAR, 2230
(1122) -BUENOS AIRES-ARGENTINA
76-EE-UNIVERSIDAD DE LA REPUBLICA.
FACULDAD DE HUMANIDADES Y CIENCIAS DE LA EDUCACION
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA SOCIAL Y CULTURAL
MAGALLANES 1577
-MONTEVIDEO-URUGUAY
77-EE-LE PERESSEUX / E.R.E.A. -C.N.R.S
EQUIPE DE RECHERCHE EN ETHNOLOGIE AMERINDIENNE
BP.8
RUA GUY MOQUET
94801-VILLEJUIF CEDEX-FRANCA
81-EE-INSTITUTO AUSTRIACO PARA AMERICA LATINA
BIBLIOTHEK
SCHLICKGASSE 1
1090-VIENA-AUSTRIA
101-EE-INSTITUT DES HAUTES ETUDES D´AMERIQUE LATIN
BIBLIOTHEQUE
28, RUE SAINT-GUILLAUME
75007-PARIS -FRANCA
103-EE-MICHIGAN STATE UNIVERSITY
CENTER FOR LATIN AMERICA
206 INTERNATIONAL CENTER
MI 48824-1035-EAST LANSING -USA
114-EE-UNIVERSIDADE DO ALGARVE
CENTRO DE ESTUDOS ATAIDE OLIVEIRA
ESTUDOS DE LITERATURA ORAL
8000-FARO-PORTUGAL
179-EE-UNIVERSIDAD DE LOS ANDES - FAC. DE CIENCIAS SOCIALES
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA - REVISTA “ANTIPODA”
CRA. 1ª. N. 18A-10
-BOGOTA-COLOMBIA
180-EE-SURVIVAL INTERNATIONAL - SECTION FRANCAISE
ETHNIES
45 RUE DU FAUBORGH DU TEMPLE
75010-PARIS-FRANCA
193-EE-UNIVERSIDAD DE CHILE
FACULDAD DE CIENCIAS SOCIALES
P.O. BOX, 10115
CORREO CENTRAL
-SANTIAGO-CHILE
197-EE-INSTITUTO COLOMBIANO DE CULTURA
BIBLITOECA
APARTADO AEREO 407
-BOGOTA -COLOMBIA
155
198-EE-HISPANIC AMERICAN PERIODICALS INDEX
LATIN AMERICAN CENTER
405 HILGARD AVENUE
90024-1447-LOS ANGELES-USA
220-EE-WESTFALLISCHE WILHELMS UNIVERSITAT MUNSTER
LATEINAMERIKA ZENTRUM / CENTRO LATINOAMERICANO
SCHARNHORST-STR. 121
D48151-MUNSTER -ALEMANHA
229-EE-UNIVERSIDAD DE LA FRONTEIRA
INSTITUTO DE ESTUDIOS INDIGENAS
CASILLA 54-D
-TEMUCO-CHILE
240-EE-UNIVERSITY OF TEXAS
LIBRARY SERIALS
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TX 78249-SAN ANTONIO-USA
248-EE-RAUTENSTRAUCH-JOEST-MUSEUM
MUSEUM FUR VOLKERKUNDE
UBIERRING, 45
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293-EE-INSTITUTO DE ANTROPOLOGIA DE BARCELONA
BIBLIOTECA
MELCHOR DE PAULAU, 145
T-4 08014-BARCELONA -ESPANHA
306-EE-INSTITUTE DE L´INFORMATION SCIENTIFIQUE TECHNIQUE
SCIENCES HUMAINES ET SOCIALES
54, BOULEVARD RASPAIL
BP 14006-PARIS -FRANCA
320-EE-SCHOOL OF ARTS AND SCIENCES
DEPARTMENT OF ANTHROPOLOGY
33 SPRUCE STREETS
PA 19104-6398-PHILADELPHIA-USA
323-EE-INSTITUTO DE INVESTIGACIONES ANTROPOLOGICAS
MUSEO ETNOGRAFICO MUNICIPAL “DAMASO ARCE”
SAN MARTIN 2862
7400-OLAVARRIA-ARGENTINA
341-EP-CONSEJO SUPERIOR DE INVESTIGACIONES CIENTIFICAS
DEPARTAMENTO DE PUBLICACIONES DEL CSIC
SECCION DE REVISTAS
VITRUVIO, 8
E-28006-MADRID-ESPANHA
342-EP-MUSEO DE AMERICA
156
BIBLIOTECA
AVDA. REYES CATOLICOS, 6
CIUDAD UNIVERSITARIA
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SOCIAL AND HUMAN SCIENCES DOC. CENTRE
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GENERAL LIBRARY / BENSON LATIN AMERICAN COLLECTION
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TECHNICAL SERVICES DEPARTMENT
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384-EE-UNIVERSITE DE MONTREAL
B.L.S.H. - SERVICES INTERNES PERIODIQUES
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H3C3J7-SUCC CENTRE-VILLE-CANADA
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WATSON LIBRARY
1425 JAYHAWK BLWD. RM. 210 S
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DEPARTMENT OF SOCIAL ANTHROPOLOGY
ST. ANDREWS, FIFE
KY 16 9AL-SCOTLAND-INGLATERRA
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1860 E 22 STREET
O 44115-2403-CLEVELAND-USA
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SERIALS UNIT - LIBRARY
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12 MAIN LIBRARY/EXCHANGES
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157
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BIBLIOTECA
CALLE 12, N.2-38
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SERVICE DES PUBLICATIONS
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DIRECCION DE BIBLIOTECAS, DOCUMENTACION Y ARCHIVO
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UNIVERSITY LIBRARY SYSTEM
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NANTERRE
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COORDINACION DE SERVICIOS DOCUMENTALES - HEMEROTECA
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DEPARTMENT OF SOCIAL ANTHROPOLOGY
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SOCIETE D’AMERICANISTES
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BIBLIOTHEK
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SISTEMA DE BIBLIOTECAS, DOCUMENT. E INFORM. SECCION CANJE
CIUDAD UNIVERSITARIA RODRIGO FACIO
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CANJE INTERNACIONAL DE PUBLICACIONES
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160
SERVIZO DE PUBLICACIONS E INTERCAMBIO CIENTIFICO
CAMPUS UNIVERSITARIO SUR
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BIBLIOTECA FRANCISCO XAVIER CLAVIGERO-ADQUIS.-HEMEROTECA
PROLONGACION PASEO DE LA REFORMA N. 880
COL. LOMAS DE SANTA FE
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BIBLIOTECA CENTRAL - SECCION CANJES
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LARGO CONEGO JOSE MARIA GOMES
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CASELLA POSTAL 12
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EDITOR / INTER-AMERICAN REVIEW OF BIBLIOGRAPHY
17TH STREET AND CONSTITUTION AVE
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RUA DA MAE DE DEUS
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CAHIERS DU BRESIL CONTEMPORAIN
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162
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