MANUEL BANDEIRA: O TRADUTOR Alan Caldas Simões

Transcrição

MANUEL BANDEIRA: O TRADUTOR Alan Caldas Simões
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
MANUEL BANDEIRA: O TRADUTOR
Alan Caldas Simões (UFES)1
Resumo: O presente artigo tem como objetivos gerais pesquisar e refletir sobre a tradução poética. Visa, dentro desta
perspectiva, analisar, através da interpretação e comparação entre os textos-fonte e os textos-terminais, os poemas I Never Saw a
Moor; I Die For Beauty e My Life Closed Twice – escritos pela poetisa americana Emily Dickinson (1830-1886) e traduzidos por
Manuel Bandeira (1886-1968). Analisamos ainda nesta pesquisa aspectos da trajetória de Manuel Bandeira como tradutor e suas
concepções e ações sobre a mesma utilizando autores como Stefan Buciu (1966) e José Paulo Paes (1990). Por fim, discutimos
aspectos que concernem à transposição criativa de uma língua/cultura para outra e questões referentes à traduzibilidade poética
(JAKOBSON, 1971).
Palavras-chave: Tradução poética, Tradução de poesias, Manuel Bandeira.
Introdução
O que significa traduzir um texto? Quais são as perdas e os ganhos nesta atividade? Quem é o
tradutor? Quem é o autor? Estas são questões que surgem quando começamos a estudar e a pesquisar sobre
tradução e, principalmente, quando iniciamos uma tradução. Mas, afinal, o que significa traduzir? De acordo
com J. C. Catford, um dos teóricos mais conhecidos e divulgados no Brasil, a tradução é a “substituição do
material textual de uma língua pelo material textual equivalente em outra língua” (CATFORD, 1980, p. 22).
Uma tradução, de modo geral, representa uma ponte entre uma cultura e outra. O que seria da humanidade
se não fosse o trabalho dos primeiros tradutores? Se hoje podemos ler Homero ou Aristóteles é porque suas
obras foram traduzidas. Nida (1975) explica o processo de tradução através de uma imagem analógica: ele
compara a tradução ao transporte de cargas feito por vagões de um trem. Nesse contexto, o mais
importante é que a carga chegue ao seu destino, não de qualquer modo, mas, na medida do possível,
intacta, ilesa dos possíveis “solavancos” da viagem.
A ordem dos vagões em que a carga é transportada não, necessariamente, importa. O mais
importante é a carga alcance o seu destino: “[...] o fundamental no processo de tradução é que todos os
componentes significativos do original alcancem a língua-alvo, de tal forma que possam ser usados pelos
receptores” – acrescenta Arrojo (1986, p. 12) sobre a imagem apresentada por Nida. Quando Arrojo (1986)
retoma Catford (1980) e Nida (1975) ela critica a visão essencialista desses teóricos sobre a tradução. Nessa
concepção, o texto (língua de partida) a ser traduzido para outra língua encontrará uma “equivalência”
direta e perfeita na outra língua (língua alvo). O tradutor, dentro dessa concepção, deve afastar seus
próprios valores ideológicos e culturais para que se possa chegar aos significados depositados pelo autor no
texto de partida – o texto é visto como um objeto “estável” que mantém suas características através dos
tempos e da cultura. Pressupõe-se uma unicidade da leitura, o que nos leva a existência de apenas uma
interpretação válida ou possível para cada texto a ser traduzido. O tradutor tem a tarefa de transportar o
significado, supostamente inerente ao original, sem inferir ou interpretá-lo para a língua-alvo.
Arrojo defende uma visão não-essencialista da tradução. A tradução é vista como um processo
de recriação onde a ênfase é dada à recepção do texto traduzido na língua alvo e às situações que envolvem
o tradutor durante o processo tradutório. Sem propor regras essa concepção teórica sobre a tradução busca
definir o papel do tradutor como agente ativo no processo tradutório. O texto é considerado uma unidade
polissêmica que admite várias possibilidades de tradução, condicionadas sempre ao contexto cultural e a
Instituição: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Formação: Licenciado em Música (2006-2010).
Email: [email protected]
Orientador: Lillian DePaula (UFES).
1
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
72
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
época. Cada tradutor realizará sua tradução condicionando o texto da língua de partida à realidade da
língua/cultura de chegada, procurando ser fiel à intenção do texto da língua de partida e às intenções do
autor ali expressas.
Sobre a tradução poética
A tradução poética é vista por alguns tradutores como uma das mais difíceis de serem realizadas,
pois o poema em si representa uma estrutura coesa e repleta de significados. Muitos autores e poetas, como
Robert Frost (1874-1963) (Cf. apud ARROJO, 1986, p. 26), não acreditam na traduzibilidade do texto poético:
para ele o que se perde na tentativa de se traduzir um texto poético é a essência da poesia. Outros autores,
como o poeta italiano Giacomo Leopardi (1798-1837) (Cf. apud ARROJO, 1986, p. 29) definem as idéias
contidas em uma poesia como se as palavras fossem pedras preciosas gravadas em um anel. Essas palavras
representariam a alma do poema, se a transmutássemos para um novo corpo ela, invariavelmente, perderia
muito de seu brilho e não seria mais a mesma. As idéias são, segundo ele, inseparáveis das palavras.
Voltando a imagem analógica criada por Nida (Cf. 1975) – onde a tradução é vista como um transporte de
cargas feito por vagões de trem – podemos revisitá-la, ampliando sua imagem central, ao acrescentarmos
alguns aspectos sobre a tradução poética. A tradução poética seria o transporte de uma carga especial, onde
a ordem dos vagões e o condicionamento de cada carga nos vagões é bastante importante. Isso não quer
dizer que na tradução literária em prosa, ou na tradução de textos técnicos, a ordem não seja importante,
mas que na tradução poética ela é imprescindível. Dentro de um poema o tradutor deve se preocupar: com a
sonoridade, com o acento dos vocábulos, com o aspecto visual, com a harmonia das rimas, com o
comprimento e o ritmo dos versos, com a composição das estrofes que representam seu conteúdo e forma
ao mesmo tempo (Cf. RÓNAI, 1981, p. 129).
O poema representa uma semente que possui seu significado não explícito, mas em potência. De
acordo com cada leitor/tradutor o significado vai se revelando e mostrando aspectos mais profundos de sua
estrutura e significância, assim como uma flor que desabrocha e mostra toda sua beleza quando bem
cultivada. Mas, ao levar essa semente de um país para outro, podemos nos deparar com situações
desconfortáveis. Podemos, por exemplo, perceber que o clima do local onde a semente será plantada é
muito diferente de seu lugar de origem, e, portanto, a semente terá dificuldades para germinar e crescer
vigorosa como ocorreria em sua terra natal. Nessa etapa entra o trabalho do experiente jardineiro (tradutor)
que trabalhará duro para que a semente cresça e se desenvolva, atingindo seu potencial natural esperado.
Se for necessário o jardineiro (tradutor) utilizará estufas, adubos especiais ou acessórios do gênero, mas de
modo algum se poderá conceber que de uma semente de manga nasça um ramo de algodão...
Os poemas traduzidos não serão integralmente iguais aos originais, pois os textos não são
“receptáculos de conteúdos estáveis e mantidos sob controle, que podem ser repetidos na íntegra” (ARROJO,
1986, p. 38). Arrojo desenvolve melhor essa idéia com o conceito de texto-palimpsesto. Palimpseto vem do
grego e significa “raspado novamente”. O palimpseto era um material muito escasso e de alto preço
utilizado para confecção de pergaminhos na Roma antiga. Ele era utilizado várias vezes mediante a
raspagem do texto anterior nele registrado. Dessa forma, o texto, segundo o conceito de texto-palimpseto
utilizado por Arrojo, nunca poderá ser original. “O texto que se apaga, em cada comunidade cultural e em
cada época, passa a dar lugar à outra escritura (ou interpretação, ou leitura, ou tradução) do ‘mesmo’
original” (ARROJO, 1986, p.80) Desse modo, como enfatiza Paz, todo texto é ao mesmo tempo um original e
uma tradução, primeiramente porque cada texto, seja ele qual for, é uma tradução intersemiótica do mundo
não verbal para o mundo verbal e todos os textos são originais porque cada tradução é única. (Cf. PAZ, 1991,
p. 150).
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
73
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
A tradução poética, talvez mais do que em outros tipos de tradução, requer do tradutor uma
habilidade sensível para compreender a língua de chegada e produzir um texto que cause no leitor as
mesmas sensações que o texto original causaria. Para Jakobson “Toda experiência cognitiva pode ser
traduzida e classificada em qualquer língua existente” (JAKOBSON, 1971, p. 68). Em certos casos, a língua de
chegada não apresenta formalmente correspondência a certas características e estruturas formais existentes
na língua de partida, assim a tradução poética se torna possível através da transposição criativa – nesta
concepção o tradutor interfere, participa e recria com base no texto original (Cf. JAKOBSON, 1971).
A tradução, acima de tudo, representa um ato de criação – criação textual por excelência – que
transporta um universo cultural lingüístico de um lugar para outro. Na opinião de Haroldo de Campos (Cf.
1996, p. 33), quanto maior for o grau de intraduzibilidade de um texto mais sedutor ele se apresentará para
o tradutor, pois apresentará maiores possibilidades de recriação aberta. A criação textual da qual fala
Campos (1996) e Jakobson (1971) não significa recriação textual livre. O leitor/tradutor de poesia tem o
direito de realizar as devidas transformações no texto de chegada para que, mesmo se distanciando do texto
original, em alguns momentos, possa transpor a poesia de uma realidade cultural para outra mantendo a
fidelidade de significância frente à mesma.2
A seguir apresentaremos alguns exemplos de tradução poética através de um poema de
Giuseppe Ungaretti (1888-1970) sob a análise e interpretação de Bassnett (Cf. 2003, p. 163-167):
Poema-fonte:
Un’ altra notte,
In quest’ oscuro
colle mani
gelate
distinguo
il mio viso
Mi vedo
Abbandonato nell’ infinito
(Vallone, 20 Apriu 1917)
Como traduções, apresentamos duas versões: a primeira, chamaremos de versão “A”, feita por
Patrick Creagh; e a segunda chamaremos de versão “B”, produzida por Charles Tomlinson.
(A) In this dark
with frozen hands
I make out
my face
I see myself
adrift in infinite space.
(B) In this dark
with hands
frozen
I make out
my face
I see myself
abandoned in the infinite.
Segundo Cesar (1999, p. 412), os poemas curtos podem ser encarados “como a forma literária
mais condensada que existe” – um desafio para o tradutor. Dessa forma, as melhores traduções de poemas
curtos “são aquelas que: 1) procuram reduzir a taxa de inflação ao mínimo3; 2) tentam absorver o esforço
original de dar condensação ao poema; e 3) procuram encontrar mais equivalências para esse esforço
específico do que para o significado original” (CESAR, 1999, p. 412).
Como comenta Bassnet (2003), no poema produzido por Ungaretti a espacialidade faz parte da
estrutura global do poema e deve ser preservada. O poema versão “A” possui seis versos, a versão “B” possui
Conferir a análise da tradução do poema “Roma”, escrito por Cecília Meireles e traduzido por Edoardo Bizzarri, em Rónai (1981).
Termo utilizado por Cesar para descrever um dos problemas práticos enfrentados pelos tradutores. Representa a relação entre:
“Preservar e perder. Perder para preservar.” (CESAR, 1999, p. 413).
2
3
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
74
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
sete versos e o original possui oito versos – o que se deve à propositada regularização da sintaxe inglesa no
segundo verso. Na versão “B” o tradutor distorce a sintaxe da língua de chegada para manter o adjetivo
frozen isolado no terceiro verso paralelamente ao original gelate. O problema da configuração espacial do
poema se agrava ainda mais na versão “B”, pois o tradutor decidiu utilizar normas de língua italiana em
uma estrutura de língua inglesa e devido a natureza dos versos livres – a configuração tem um significado
próprio. No texto original a regularidade da ordem vocabular é um aspecto de sua significância; enquanto
em inglês, para atingir o mesmo efeito, depende da estranheza das estruturas. Ambas as versões enfatizam
o pronome pessoal I; enquanto que na frase em italiano ele pode ser dispensado. Ambas optam por traduzir
distinguo por make out, o que altera o registro em inglês. Apesar da aparente simplicidade dos versos
originais eles escondem um recurso chamado ostranenie – tornar estranho, ou conscientemente adensar a
linguagem de uma obra individual de forma a intensificar a sua percepção (Cf. BENNT, 1979, apud,
BASSNETT, 2003, p. 166). Neste sentido a versão “B” é mais próxima do original, pois recorre a artifícios
retóricos como a inversão da estrutura frásica; ao contrário da versão “A” que opta pela “normalidade”.
Bassnett conclui a análise dos poemas afirmando que todas as traduções “envolvem necessariamente
transformações expressivas à medida que o tradutor se esforça por combinar a sua leitura pragmática com
os ditames do sistema cultural de chegada” (BASSNETT, 2003, p. 167).
O tradutor de poesia se vale de vários artifícios para chegar a uma versão do poema original na
língua de chegada. Ele pode, em nome da fidelidade, alterar algumas estruturas para melhor transpô-las
para outra cultura. Não existem poemas intraduzíveis, o que existe são diferentes níveis de traduzibilidade –
o intraduzível é aquilo que ainda não foi traduzido (Cf. LARANJEIRA, 1993).
Podemos pensar que o melhor tradutor de poesia seria um poeta, mas como comenta Paz “[...]
na realidade poucos são os poetas que são bons tradutores. Isso porque quase sempre usam o poema alheiro
como ponto de partida para escreverem o seu poema.” (PAZ, 1991, p. 155). O tradutor de poesia deve ser
um poeta em potencial e se afastar do poema apenas para seguí-lo mais de perto. Cada poema a ser
traduzido terá um novo universo lingüístico a ser desvendado que levará em conta a época, o contexto em
que foi produzido e os critérios que se utilizou o tradutor individualmente. Cada tradução será única, mas se
mostra totalmente possível. Como comenta Laranjeira:
Colocamos a tradução poética como possível e capaz de produzir um poema tão perfeito ou
tão perfectível, tão perene ou tão perecível quanto qualquer outro poema. Isto significa que
colocamos a intradutibilidade da poesia - se houver - não como metafísica, não como uma
natureza, mas como circunstancial, factual, pontual, circunscritível, histórica.” (LARANJEIRA,
1993, p. 11-12). [E acrescenta como conclui em seu livro “Poética da tradução”] [...]“Não se
trata, em tradução poética, de traduzir o ‘sentido’ do poema original e acrescentar-lhe uma
forma poética. Traduzir um poema é traduzir sua significância [...] só a tradução que atinge
este último nível, que opera na gramática da significância, é capaz de gerar um poema.
(LARANJEIRA, 1993, p. 147)
O poema a ser traduzido será traduzido por outro poema, não somente que transmita a mesma
imagem e sentido do original, mas que encerre uma nova estrutura tão complexa quanto a original O
poema em si – sua composição visual, semiótica, semântica, sintáxica e fonológica – deve significar (tornarse significativo), levando-nos ao seu sentido original. A tradução poética não é uma atividade fácil e exige
muita dedicação daquele que se propõe a fazê-la. O resultado final estará longe de ser definitivo, mas é uma
possibilidade neste mar de possibilidades que se abre sobre a leitura de um poema e sua tradução4.
Para mais exemplos de traduções de poesia e sua análise conferir: ARROJO (1986); CESAR (1999); HARGREAVES (2002);
BASSNETT (2003); BARBOSA (2004).
4
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
75
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Manuel Bandeira poeta
Manuel Carneiro de Souza Bandeira5 Filho nasceu no Recife (Pernambuco) em 1886 e morreu no
Rio de Janeiro em 1968. Passou sua infância no Recife, tendo se mudado para o Rio de Janeiro com sua
família quando adolescente. Veio para São Paulo cursar a Escola Politécnica, que abandonou em 1904, aos
dezoito anos, por causa da tuberculose. Em 1912, estando na Suíça a tratamento, familiarizou-se com a
poesia simbolista e pós-simbolista de língua francesa. Esse contato influenciou muito a sua produção
poética, notadamente os seus primeiros livros: Carnaval (1919) e Cinza das Horas (1917). Voltando
definitivamente para o Rio de Janeiro, travou amizade com os escritores Ronald de Carvalho e Graça Aranha.
Junto a eles, participou das mudanças literárias que culminaram no Modernismo brasileiro. Empregando o
verso livre (sem métrica) e branco (sem rima), além da ironia, foi chamado por Mário de Andrade, fazendo
justiça a seu papel precursor, de o “São João Batista” do movimento Modernista. Não participou
pessoalmente da Semana de Arte Moderna (1922), porém seu poema “Os Sapos”, nítida crítica aos
parnasianos, foi apresentado na primeira noite do evento por Ronald de Carvalho, sob vaias. Sua vida esteve
sempre ligada à literatura, quer como autor de poesias, crônicas literárias, obras didáticas de nível superior e
traduções, quer como professor do colégio Pedro II e da Universidade do Brasil.
Manuel Bandeira foi o percussor de uma série de inovações poéticas, que tiveram início no
movimento Modernista. Dentre tais inovações temos o uso do verso livre – como forma criadora de imagens
e de sobreposição de idéias –, a adoção de ritmo pessoal, a utilização da temática cotidiana nacional, a
valorização da língua pátria, a figurativização e a crítica social, que, dentre outros elementos inovadores,
vieram a incorporar-se no conceito de poesia modernista e concreta, consolidando-se como parte da
identidade nacional e cultural brasileira – alicerçada em temáticas simples feita ao gosto e aos modos
brasileiros (Cf. BOSCO, 2002). Bandeira fez amplo uso dos versos livres e, em sua poesia, explorou o poemapiada – com invenção e humor –, a sátira debochada, a paródia e o poema montagem, construídos a partir
de versos de outros poetas. Segundo Davi Arrigucci Jr. (Cf. 1990) a utilização do verso livre no quadro da
literatura brasileira foi resultado, em grande parte, dos esforços realizados por Bandeira que consolidou esta
forma de fazer poesia e a desenvolveu criando os chamados, segundo o mesmo autor, “versos
polimétricos”6, ou, em outras palavras, versos sujeitos ao senso da medida.
Avançando em tais técnicas, a obra de Bandeira foi, em quase sua totalidade, realizada em
versos livres, abandonando a mecânica tradicional (forma simbolista e parnasiana). Além dessas inovações a
poesia banderiana se caracterizou por um estilo humilde que buscava elevar as cenas do cotidiano brasileiro
e por uma poética do dia-a-dia que buscava a poesia em coisas simples. Para Bandeira “a poesia está em
tudo – tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas” (Cf. BANDEIRA,
1979, p. 24). Desse processo em busca de relacionar a poesia com o dia-a-dia temos as invocações: de
sonhos ou trechos de sonhos (“Palinódia” e “O lutador”); de prosa literária; notícias de jornal (“O homem e a
morte”, “Poema tirado de uma notícia de jornal”, “Namorados” e “Pneumotórax”); além do uso de frases da
fala nacional, propaganda de produtos, letras de samba, frases pertencentes ao universo infantil e tantos
outros elementos do dia-a-dia utilizados pelas pessoas comuns (Cf. BOSCO, 2002).
Como exemplo do estilo peculiar de Bandeira, apresentaremos abaixo o poema “Pneumotórax” 7
(1930). Neste poema, através de formas nitidamente modernistas – versos brancos e livres – Bandeira
mesclou o diálogo com frases afirmativas e recursos gráficos, empregando toda sua auto-ironia melancólica.
Segundo Emanuel de Mores (1979), em nota escrita para o livro “Seleta em prosa e verso”,
Mais informações sobre a vida e obra de Manuel Bandeira podem ser conferidas em “Seleta em prosa e verso”, organizado por
Emanuel de Moraes (1979), e “Itinerário de Pasárgada” (1966b).
6 Tais versos correspondem ao desenvolvimento progressivo no domínio do verdadeiro verso livre, com sua cadência rítmica irregular e
rimas aleatórias, buscando a união entre a sintaxe e o sentido do poema. (Cf. ARRIGUCCI, 1990)
7 Conferir em BANDEIRA (1966a).
5
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
76
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
[...] a realização deste poema é uma das mais perfeitas sob o ponto de vista do verso livre.
Sons e processos sintáticos estabelecem um determinado ritmo, ora destacando o verso em
cada palavra, ora lhe dando prolongada ondulação, num movimento que põe em destaque o
sentido da frase-verbo, e criando o poético mesmo no diálogo com palavras do mais
cotidiano linguajar. (BANDEIRA, 1979, p. 112)
Apesar de toda sua obra e realizações no campo da literatura brasileira, Bandeira se considerava
um “poeta menor” (BANDEIRA, 1966b, p. 24). Mesmo diante de sua modéstia, podemos considerá-lo um
dos grandes nomes da poesia brasileira cujo “estilo maduro” (ARRIGUCCI JR, 2000, p. 11) pode ser esboçado
em uma poesia de “transe”, de “alumbramento”, de desabafo e de confissão.
Manuel Bandeira tradutor
Além de poeta, cronista e antologista, Manuel Bandeira atuou como tradutor. Problemas
financeiros, causados pelo baixo nível dos honorários pagos aos escritores no Brasil, principalmente na
década de 1930 a 1940, levaram o poeta a produzir e trabalhar em variadas traduções. A biografia de
Bandeira como tradutor começou com seu aprendizado de línguas estrangeiras. Ainda aos quinze anos de
idade, como podemos observar em uma passagem de sua “biografia literária” (Itinerário de Pasárgada), o
poeta manifestou a sua aversão a seu professor de grego – talvez por isso nunca tenha traduzido nenhum
poema ou livro do grego para o português. Bandeira, durante o seu período escolar, teve contato com
diversos idiomas, como: francês, inglês, alemão e espanhol (Cf. BANDEIRA, 1966b). Por volta de 1913,
Bandeira teve a oportunidade de aperfeiçoar o seu francês e reaprender o alemão, que havia aprendido nos
bancos de escola por conta do tratamento contra tuberculose que realizara na cidade de Clavadel na Suíça.
Assim relata: “Essa estada de pouco mais de um ano em Clavadel quase nenhuma influência
exerceu sobre mim literariamente, senão que me fez reaprender o alemão, que eu aprendera no Pedro II,
mas tinha esquecido” (BANDEIRA, 1966b, p. 49).
Dentre as principais obras literárias em prosa que traduziu para o português podemos listar: (a)
Nômade do Norte, de T. O. Curwood; (b) O calendário, de E. Wallace; (c) Tudo se Paga, de Elinor Glyn; (d) O
tesouro de Tarzan, de E. R. Burroughs –; (e) A vida de Shelley, de André Maurois; (f) Aventuras do Capitão
Corcoran, de A. Assolant; (g)Gengis-khan, de Hans Dominik; (h) A Educação da vontade, de J. des Vignes
Rouges; (i) A Aversão no Matrimônio, de Van der Velde; (j) Minha cama não foi de Rosas, de O. W.; (k) Um
Espírito que se Achou a si Mesmo, de Clifford Beers; (l) Mulher de brio, de Michael Arlen; (m) A vida secreta de
D’Annunzio, de Antongini; (n) O Túnel, de Bernard Kellermann; e (o) As Grandes Cartas da História, de M.
Lincoln Schuster.8
Dentre as peças que traduziu para o português podemos citar: (a) El divino Narciso, de Sóror
Juana Inés de La Cruz (1949); (b) Maria Stuart, de Schiller (1955); (c) Macbeth, de Shakespeare (1956); (d) La
Machine Infernale, de Jean Cocteau (1956); (e) June and Paycock, de Sean O’Casey (1957); (f) The Rainmaker,
de N. Richard Nash (1957); (g) Colóquio-sinfonieta, de Jean Tardieu (1958); (h) The Matchmaker, de Thornton
Wilder (1959); (i) D. Juan Tenório, de Zorrilla (1960); (j)O advogado do diabo, de Morris West (1964); (k) Tis
Pity She’s a Whore, de John Ford (1964); (m) Os verdes campos do Édén, de Antônio Gala (1965); (n) A
fogueira feliz, de J. N. Descalzo (1965); e (o) Edith Stein na câmara de gás, de Frei Gabriel Cacho (1965).
Bandeira também traduziu para o português o poemas dos seguintes poetas: Mistral (1961), Carl
Spitteler (1962), Goethe, Salvador Díaz Mirón, Manuel Gutiérrez Nájera, José Asunción Silva, Dirk Rafaelsz,
São Francisco de Assis, Heine, Rilke, Liliencron, Rúben Dário, García Lorca, Víctor Londoño, Juana Inês De La
8
Os livros aqui listados foram traduzidos por Bandeira a pedido das editoras Civilização Brasileira e Editora Nacional.
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
77
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Cruz, Bashô, Hölderlin, Elizabeth Barrett Browning, Christina Rossetti, Emily Dickinson, Baudelaire, Adelaide
Crapsey eVerlaine.9
Muitas das traduções realizadas por Bandeira eram solicitações de editoras ou de amigos.
Observamos grande número de poemas traduzidos de autores de língua espanhola, em sua maioria da
América latina, pois Bandeira foi docente de literatura hispano-americana e colaborador de um suplemento,
nos anos 40-50, dedicado à divulgação dessa literatura10. Convém destacar ainda a variedade de autores
traduzidos por Bandeira, o que marca o seu anseio em apresentar poetas e novos autores, ainda
desconhecidos para os leitores brasileiros.
Manuel Bandeira tradutor de Emily Dickinson
Dentre esses autores encontramos a poetisa norte-americana Emily Dickinson11 (1830-1886),
que já teve versos traduzidos para o português por nomes como Augusto de Campos, Décio Pignatari e Paulo
Henriques Britto. Nascida em Amherst, Massachusetts, onde viveu toda a sua vida, Emily é vista como
excêntrica e em torno dela se criou um mito acerca de sua personalidade solitária. Quando tinha cerca de 30
anos, encerrou-se na casa dos pais, de onde nunca saía. Retirava-se quando chegavam visitas e só era vista
em trajes brancos. Embora avessa ao contato social, escrevia muitas cartas e poemas. De seus poemas
somente sete foram publicados durante sua vida; os demais foram publicados em 1890, 1891 e 1896 –- no
total são 1775 poemas e 1000 cartas. Inovadora na linguagem, ela desenvolveu formas originais de
expressão, valendo-se de temas como vida, natureza, morte, tempo e eternidade. Dentre outras
características poéticas de sua obra podemos destacar: o uso freqüente de travessões, que serviam como
marcações rítmicas; as estrofes de quatro versos, que dão uma sonoridade típica de canções populares do
século XV; a utilização de versos livres; a utilização esporádica de substantivos com letras maiúsculas no
meio dos versos; as metáforas pouco convencionais e a quebra de rima.
Bandeira traduziu cinco poemas escritos por Dickinson que receberam os seguintes títulos: À
Porta de Deus, Beleza e Verdade, Nunca vi um campo de urzes, Cemitério e Minha vida acabou duas vezes. O
poema I never saw a Moor, ao lado de I’m nobody! Who are you? E The soul selects her own society, um dos
poemas mais conhecidos de Dickinson. Abaixo o apresentamos juntamente com a tradução realizada por
Bandeira12:
I never saw a moor
(Emily Dickinson)
Nunca vi um campo de urzes
(Manuel Bandeira)
I never saw a Moor -I never saw the Sea -Yet know I how the Heather looks
And what a Billow be.
Nunca vi um campo de urzes.
Também nunca vi o mar.
No entanto sei a urze como é,
Posso a onda imaginar.
I never spoke with God
Nor visited in Heaven -Yet certain am I of the spot
As if the Checks were given --
Nunca estive no Céu,
Nem vi Deus. Todavia
Conheço o sítio como se
Tivesse em mãos um guia.
9 A maior parte dos poemas traduzidos por Bandeira podem ser encontrados no livro “Alguns Poemas Traduzidos” (2007) e “Estrela da
vida inteira” (1966a).
10 Foram realizadas por Bandeira cerca de 130 traduções de poetas de língua espanhola para o português (Cf. BANDEIRA, 1966a).
11 As informações presentes neste artigo sobre a vida e obra de Emily Dickinson foram retiradas do site: www.americanpoems.com.
Para mais informações sobre a obra poética de Dickinson conferir AMARAL (1995) e FERNANDES (2006).
12 Todos os poemas, presentes aqui, traduzidos por Bandeira, foram retirados da obra “Alguns poemas traduzidos” (2007) e os poemas
de Dickinson do site: www.americanpoems.com.
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
78
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
O poema trata da relação entre a crença e a percepção dos sentidos. Como pode alguém
acreditar em algo que nunca viu? Ao mesmo tempo em que nunca se viu Deus e nunca se visitou o paraíso
temos uma vaga certeza de sua existência – dessa forma, a certeza da existência de um criador. No segundo
verso da primeira estrofe podemos ler: I never saw the sea. Nesse verso, encontramos toda a força poética de
Dickinson que, em uma simples frase – carregada de significância –, manifesta seu desejo de ver o mar e,
conseqüentemente, como podemos inferir, de se aproximar e conhecer Deus, apesar de intuir sobre a
existência dos mesmos – o que justifica a crença nas coisas não perceptíveis aos sentidos.
Na tradução realizada por Bandeira observamos que as rimas não foram mantidas conforme o
poema-fonte. Bandeira utilizou o esquema de rimas interpoladas: ABCB (mar/imaginar; todavia/guia). Já no
poema de Dickinson o esquema de rimas é cruzado: ABAB (primeira estrofe: Moor/looks, Sea/be;segunda
estrofe: God/spot, Heaven/given). Observamos ainda que Bandeira não manteve a pontuação conforme o
texto-origem – aspecto este que caracteriza o estilo poético dickinsoniano - utilização de travessões para
marcar o ritmo e a respiração do poema.
No primeiro e segundo verso da segunda estrofe do texto-fonte podemos ler I never spoke with
God /Nor visited in Heaven, traduzido por Nunca estive no Céu/Nem vi Deus. Todavia – o que assinala uma
mudança semântica causada pela inversão dos versos em relação ao poema-fonte. Bandeira traduziu este
verso colocando os acontecimentos na ordem natural dos fatos: primeiro visitar o céu (representado por
“estive”) e depois ter a oportunidade de conhecer/falar com Deus (representado por “Nunca vi”). Em uma
tradução literal13 desses versos podemos ler: “Eu nunca falei com Deus/Nem visitei o paraíso”. Podemos
realizar a leitura crítica de tais versos da seguinte maneira: nunca falei com Deus porque nunca fui a sua casa
(paraíso/céu), logo não o conheço; ou não conheço Deus, porque não sei onde é sua casa, de posse desta
informação, eu poderia visitá-lo, e, conseqüentemente, conhecê-lo. No poema de Dickinson este segundo
verso parece justificar o primeiro – nunca falei com Deus porque nunca o visitei – em certo tom de ironia.
Bandeira tenta compensar14 esta carga semântica invertendo a estrutura sintática do segundo verso da
segunda estrofe, além de acrescentar um ponto final entre as palavras Deus e Todavia – substituindo o
travessão utilizado por Dickinson no final do verso.
Conforme afirma Paz (Cf. 1991, p. 155), citado anteriormente, existe a tendência dos poetas
tradutores em tomar o poema fonte como ponto de partida para construírem seu próprio poema. Na
tradução de Bandeira constatamos que mesmo diferenciando-se em alguns aspectos do poema-fonte,
conservou-se a imagem central apresentada por Dickinson, mantendo-se fiel ao texto-origem.
Outro poema traduzido por Bandeira e escrito por Dickinson foi o poema I Died For Beauty traduzido também por Augusto de Campos (2008), sob o título Morri pela Beleza. Segue abaixo a tradução
feita por Bandeira e o poema-fonte:
I Died For Beauty (Emily Dickinson)
Beleza e Verdade (Manuel Bandeira)
I died for beauty -- but was scarce
Adjusted in the tomb,
When one who died for truth was lain
In an adjoining room --
Morri pela beleza, mas apenas estava
Acomodada em meu túmulo.
Alguém que morrera pela verdade.
Era depositado no carneiro contíguo.
He questioned softly why I failed?
“For beauty”, I replied --
Perguntou-me baixinho o que me matara:
– A beleza, respondi.
13 Aubert (1987, apud BARBOSA, 2004, p. 65) considera a tradução literal como “aquela em que se mantém uma fidelidade semântica
estrita, adequando, porém a morfo-sintaxe às normas gramaticais da língua terminal.”
14 A compensação consiste em deslocar um recurso estilístico utilizado no texto-língua-origem, quando não é possível reproduzi-lo no
mesmo ponto do texto-língua-terminal. Assim, busca-se, o efeito de equivalência em outro ponto do texto para garantir o equilíbrio
estilístico. (Cf. BARBOSA, 2004, p. 69)
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
79
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
“And I for truth – The two are one -We brethren are”, He said --
– A mim, a verdade – é a mesma coisa,
Somos irmãos.
And so as Kinsmen met a-night -We talked between the rooms -Until the moss had reached our lips -And covered up our names --
E assim, como parentes que uma noite se encontraram,
Conversamos de jazigo a jazigo15,
Até que o musgo alcançou os nossos lábios
E cobriu os nossos nomes.
O poema é escrito em versos livres16 e brancos17 que narram o diálogo entre dois personagens
que estão lado a lado em suas tumbas frente à morte. Inicia-se uma amistosa conversação e o nascimento
de uma inusitada “familiaridade”. O primeiro morrera pela beleza e o segundo pela verdade. Bandeira
traduz o título do poema I died for beauty como Beleza e Verdade – fugindo da tradução literal do mesmo18.
As duas primeiras estrofes são traduzidas, em sua maior parte, literalmente. No segundo verso da primeira
estrofe lê-se: Adjusted in the tomb traduzido como Acomodada em meu túmulo. Ao utilizar a palavra
acomodada Bandeira define o gênero da mesma, conferindo ao verso um caráter feminino – assim podemos
inferir, inicialmente, que o poema trata da história de dois personagens femininos: “a” Beleza e “a” Verdade.
No verso somos irmãos, localizado ao fim da segunda estrofe, Bandeira retoma a voz masculina presente no
poema-fonte. Dessa forma, sua tradução deixa aparente a ambigüidade quanto ao gênero dos personagens
envolvidos no poema-terminal.
No último verso da primeira estrofe, room foi traduzido por carneiro – lugar onde se colocam os
corpos (carnes). No poema de Dickinson room remete a um tom familiar que se confirma ao fim da segunda
estrofe pelo verso We brethren are, He Said. No segundo verso da terceira estrofe, Bandeira traduz We talked
between the rooms por Conversamos de jazigo a jazigo o que configura uma equivalencia19 no contexto do
poema.
Comparando a tradução realizada por Manuel Bandeira (2007) e Augusto de Campos (2008) do
mesmo poema podemos observar os seguintes aspectos:
Morri pela beleza (Augusto de campos)
Beleza e Verdade (Manuel Bandeira)
Morri pela Beleza – e assim que no Jazigo
Meu Corpo foi fechado,
Um outro Morto foi depositado
Num Túmulo contíguo –
Morri pela beleza, mas apenas estava
Acomodada em meu túmulo.
Alguém que morrera pela verdade.
Era depositado no carneiro contíguo.
“Por que morreu”? murmurou sua voz.
“Pela Beleza” – retruquei –
“Pois eu – pela Verdade – É o Mesmo. Nós
Somos Irmãos. É uma só lei” –
Perguntou-me baixinho o que me matara:
– A beleza, respondi.
– A mim, a verdade – é a mesma coisa,
Somos irmãos.
E assim Parentes pela Noite, sábios –
Conversamos a Sós –
Até que o Musgo encobriu nossos lábios –
E – nomes – logo após –
E assim, como parentes que uma noite se encontraram,
Conversamos de jazigo a jazigo,
Até que o musgo alcançou os nossos lábios
E cobriu os nossos nomes.
“1. Abertura na terra em que se coloca o corpo da pessoa que morreu: campa, cova, sepulcro, sepultura, túmulo; 2. Construção em
que se enterram as pessoas da mesma família.” (MATTOS, 1996)
16 Versos de ritmo solto cuja sílaba acentuada não se fixa em uma mesma posição e cujo ritmo varia conforme a leitura ou o leitor. (Cf.
GOLDSTEIN, 2008)
17 Versos regulares que não apresentam rimas. (Cf. GOLDSTEIN, 2008)
18 Emily não deu título aos seus poemas. Convencionalizou-se recorrer ao primeiro verso da primeira estrofe do poema para identificá-lo
– na primeira edição publicada de seus poemas estes foram numerados.
19 “A equivalência consiste em substituir um seguimento de texto da língua-origem por um outro segmento da língua-terminal que não o
traduz literalmente, mas lhe é funcionalmente equivalente.” (BARBOSA, 2004, p. 67)
15
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
80
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Campos mantém a pontuação utilizada no poema fonte e acrescenta em sua tradução uma rima
interpolada que obedece o esquema ABBA na primeira estrofe ( jazigo/contíguo; fechado/depositado) e
uma rima cruzada na forma ABAB nas demais estrofes (- segundo verso: voz/nós; retruquei/lei - terceira
estrofe: sábios/lábios; sós/após). Isto acrescenta uma carga semântica ao poema que, à medida que os
personagens vão se aproximando, as rimas se aproximam uma das outras formando pares – o que reafirma
a idéia de parentesco criada por Dickinson. Observamos ainda que o verso É uma só lei, presente no fim da
segunda estrofe, foi utilizado para atender ao esquema de rimas criado por Campos. Entendendo a tradução
como um processo de recriação ou de transformação textual podemos defini-la como atividade
essencialmente “produtora de significados” (Cf. ARROJO, 1986). Não pretendemos, ao colocar as duas
traduções acima apresentadas lado a lado, realizar um julgamento de valores sobre as mesmas, pois “Todas
as traduções refletem a leitura, a interpretação e a seleção de critérios operados pelos tradutores individuais
e determinadas pelo conceito de função quer da tradução quer do texto original” (BASSNETT, 2003 p. 163).
Cada tradução corresponde, dessa forma, a uma “seleção de critérios” que variam individualmente
conforma a época e a cultura em que estão inseridos os tradutores, bem como por suas concepções sobre as
mesmas.
O poema de Dickinson “My life closed twice before its close” foi traduzido por Bandeira da
seguinte maneira:
My life closed twice before its close
(Emily Dickinson)
Minha vida acabou duas vezes
(Manuel Bandeira)
My life closed twice before its close -It yet remains to see
If Immortality unveil
A third event to me
Já morri duas vezes, e vivo.
Resta-me ver em fim
Se terceira vez na outra vida
Sofrerei assim
So huge, so hopeless to conceive
As these that twice befell.
Parting is all we know of heaven,
And all we need of hell.
Dor tão funda e desesperada,
O pungir cotidiano e eterno.
Só sabemos do Céu que é adeus,
Basta a saudade como inferno.
O poema tem como temas principais a morte e o pós-morte. A imortalidade é representada
como um “véu” incerto que cobre de dúvidas a vida dos homens, incitando-os a refletir sobre a existência do
céu e do inferno – representado pelo castigo divino do purgatório. Bandeira traduz este poema mantendo
os versos livres e as rimas interpoladas que seguem o esquema ABCB do texto-fonte (poema fonte: a)
primeira estrofe see/me; segunda estrofe befell/hell –; b) poema-terminal: primeira estrofe fim/assim;
segunda estrofe eterno/inferno). Observamos ainda que a palavra third, presente no último verso da
primeira estrofe se encontra no penúltimo verso da mesma estrofe na tradução de Bandeira – para
adequação ao esquema de rimas, não comprometendo o sentido em relação ao poema de Dickinson. No
segundo verso da segunda estrofe podemos ler: So huge, so hopeless to conceive traduzido por O pungir
cotidiano e eterno. Ao utilizar a palavra pungir em sua tradução Bandeira faz referência ao primeiro e ao
último verso desta mesma estrofe – referindo-se ao sofrimento (desespero) no purgatório, lugar onde as
almas se purificam para poder entrar no céu. Bandeira transporta para o português a mesma imagem
descrita originalmente no poema em inglês, visto que tais inquietudes sobre a vida em oposição à morte
concernem a todos os seres humanos em diversas épocas – garantindo, dessa forma, a fidelidade ao textofonte.
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
81
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Conclusões
Manuel Bandeira, apesar de tradutor de diversos poemas, afirmava que a poesia, em essência, é
intraduzível (Cf. PAES, 1990, p. 35). Que contradições permeiam este poeta tradutor? O que sabemos sobre
sua vida e sua obra que pode nos auxiliar na busca de respostas para essas questões? Segundo Abgar
Renault (apud BUCIU, 1986, p. 83, grifo nosso)
São das páginas mais consideráveis de Manuel Bandeira as traduções de alguns poemas
ingleses, que podem ser incorporados à sua obra como produção própria, sem embargo
da fidelidade ao original, tal a assimilação e absorção dos textos estrangeiros, da sua forma,
da sua técnica e do seu espírito à forma, à técnica, ao espírito do tradutor.
Milton (Cf. 1998, p. 11), entretanto, considera que as traduções de Bandeira distanciam-se do
texto-fonte, dando a impressão de ser sua própria poesia. Para melhor entender como atuava o tradutor
Bandeira precisamos primeiramente entender o que pensava o poeta Bandeira sobre poesia. Em seu livro
Itinerário de Pasárgada Bandeira revela alguns aspectos de seu modo peculiar de fazer poesia, expressando:
A última Canção do Beco é o melhor poema para exemplificar como em minha poesia tudo
resulta de um jogo de intuições. Não faço poesia quando quero e sim quando ela, poesia
quer. E ela quer às vezes em horas impossíveis: no meio da noite, ou quando estou em cima
da hora para ir dar uma aula na Faculdade de Filosofia ou sair para um jantar de cerimônia
[...] (BANDEIRA, 1966b, p. 121, grifo nosso)
Na eloqüência e na simplicidade das palavras do poeta podemos observar como trabalhava.
Todas as suas poesias eram concebidas pela intuição, apesar de ser racional em diversos momentos e de
possuir profundo conhecimento das formas e normas da construção poética. “Um poema é uma impressão
intelectualizada, ou uma idéia convertida em emoção, comunicada a outros por meio de um ritmo”, este foi
um apontamento assinado por Fernando Pessoa (1987) e publicado no volume Páginas de Estética e de
Teoria Crítica Literária, em data provável de 1923. Entendemos esta impressão intelectualizada – que é o
poema – como algo singular que, aliado a um ritmo e a formas características, se torna único na língua e na
cultura em que foram criados.
Para Arrigucci (1990, p. 128) as noções de poesia de Bandeira então ligadas “à experiência do
momentâneo, através de imagens, elas próprias desentranhadas da memória de sua infância, como ‘raros
momentos’ de uma emoção diferente.” Em outra passagem do livro Itinerário de Pasárgada Bandeira adota
a definição de Schiller sobre o que é poesia, ao ter que escrever um livro didático sobre literatura. Assim,
define que a “poesia seria a ponte entre o subconsciente do poeta e o subconsciente do leitor” (BANDEIRA,
1979, p. 28). Mesmo avesso a definições, principalmente sobre poesia, Bandeira, ao assumir tal definição,
justifica esta como sendo a que melhor esclarece os processos que envolvem o poeta, a poesia e o leitor –
colocando, assim, a poesia no campo da “inspiração”.
Bandeira afirmava que somente traduzia bem “os poemas que gostaria de ter feito”, ou seja, os
poemas que expressam coisas que já estavam nele presente, porém informuladas (Cf. BUCIU, 1966, p. 83).
Paes (Cf. 1990) comenta esta afirmação ressaltando que nem sempre o poeta traduzia apenas “os poemas
que gostaria de ter feito”, pois, como se sabe, trabalhou muitos anos como tradutor comercial para diversas
editoras. Para Bandeira grande parte das soluções julgadas pelos críticos como geniais em suas traduções,
por mais sutis e cavadas que possam parecer são resultado de um processo subconsciente, pois elas lhe
saiam “ao correr do lápis”. Seus “achados” em traduções, assim como em seus originais, são resultado
sempre de intuições (Cf. BANDEIRA, apud PAES, 1990). Ao iniciar a tradução de um poema Bandeira
costumava deixar o poema flutuar em seu “espírito” e observar os pontos de fixação, que concernem à
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
82
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
estrutura global do mesmo. Em carta a Alphonsus Guimarães Filho o poeta oferece um conselho sobre
traduções de poesia:
Sempre que você quiser traduzir um poema, faça um estudo preliminar no sentido de apurar
o que é essencial nele e o que foi introduzido por exigência da técnica, sobretudo de rima e
métrica.” Em outra passagem diz: “As rosas podem ser substituídas por lírios. Não importa
que seja esta ou aquela flor, se era preciso uma flor de nome masculino, por causa da rima...
(apud LARANJEIRA, 1993, p. 108, grifo nosso)
Dessa forma, podemos inferir que Bandeira utilizava, dentre outros procedimentos de tradução,
a técnica de tradução por equivalência (Cf. BARBOSA, 2004) aliada à busca por reproduzir na língua-terminal
a significância do poema-fonte (Cf. LARANJEIRA, 1993). Em algumas de suas traduções Bandeira explorou a
criação poética a partir do poema-fonte. Tal aspecto podemos observar em sua tradução, do português para
o português, do poema Adeus de Teresa20 de Joaquim Manuel de Macedo. Esta tradução busca transportar o
texto “romântico” fonte para o universo “moderno”.
O poeta, antologista, ensaísta, cronista e tradutor Manuel Bandeira, ao longo de sua vida,
contribuiu para o enriquecimento da literatura no Brasil e no mundo. Seu modo peculiar de escrever poesias,
com simplicidade e utilizando imagens simples do cotidiano popular, conferiram-lhe um lugar especial
junto a Academia Brasileira de Letras (1940). Existem diversas pesquisas no campo da literatura e estudos
literários que investigam a obra poética banderiana; mas, como podemos observar, ainda é reduzido o
número destas que buscam penetrar no universo do tradutor Bandeira, buscando desvendar aspectos de sua
atividade como tradutor – visto que traduziu cerca de 20 livros literários em prosa, 15 peças de teatro e
diversos poemas do francês, inglês, alemão e espanhol para o português.
Compreendemos a tradução poética como uma área que envolve vastas pesquisas no campo da
lingüística e da tradução. Manuel Bandeira como poeta-tradutor se configura como relevante objeto de
estudo para aprofundar as relações que envolvem o autor/tradutor de poesias e a transposição criativa de
uma língua/cultura para outra. Dessa forma, observamos perspectivas de continuação da pesquisa por hora
aqui apresentada sabendo da importância que podem assumir estudos dessa natureza para as pesquisas em
tradução.
REFERÊNCIAS:
AMARAL, Ana Luísa Ribeiro Barata do. Emily Dickinson: uma poética do excesso. 1995. 533f. Tese (doutorado em literatura
norte-americana) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto.
ARRIGUCCI, Davi Júnior. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das letras, 1990.
ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. São Paulo: Editora Ática S.A., 1986.
BANDEIRA, Manuel. Alguns poemas traduzidos. Rio de Janeiro: José Olímpio Editora, 2007.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olímpio Editora, 1966a.
BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: editora do autor, 1966b.
BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. Rio de Janeiro: Editora Pongetti, 1930.
Originalmente publicado em 1925 na seção “Mês modernista” do jornal carioca A noite. Pode ser conferido, tradução e poema-fonte,
em PAES (1990, p. 60).
20
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
83
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
BANDEIRA, Manuel. Poesias completas. Rio de Janeiro: José Olímpio Editora, 1955.
BANDEIRA, Manuel. Seleta em prosa e verso. Rio de janeiro: José Olímpio Editora, 1979.
BARBOSA, Heloísa Gonçalves. Procedimentos técnicos da tradução: Uma nova proposta. 2. ed. Campinas; São Paulo: Pontes,
2004.
BASSNETT, Susan. Estudos de tradução: fundamentos de uma disciplina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
BOSCO BREVIGLIERI, Etiene M.. Manuel Bandeira e suas inovações na criação poética. Revista UNORP, v. 1, n. 1, p. 21-40, dez.
2002.
BUCIU, Stefan. Manuel Bandeira de corpo inteiro. Rio de Janeiro: José Olímpio editora, 1966.
CAMPOS, Haroldo de. Das estruturas dissipatórias à constelação: a transcriação do lance de dados de Mallarmé. In: COSTA, L. A..
Limites da traduzibilidade. Salvador: EDUFBA, 1996.
CATFORD, J. C.. Uma teoria lingüística da tradução. São Paulo: Cultrix, 1980.
CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Ática, 1999.
DICKINSON, Emily. Não sou ninguém, poemas. Tradução de Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.
EMILY Dickinson poems. Disponível em: <http://www.americanpoems.com/poets/emilydickinson>. Acesso em: 20 jul. 2010.
FERNANDES, Gleicienne. (Org.). Poesia feminina de língua inglesa: Dickinson, Plath e Moore. Belo Horizonte: Viva Voz, 2010.
FERNANDES, Moíza de Castro. Emily Dickinson e Cecília Meireles: entre o eterno e o efêmero, duas vozes femininas em dois
diferentes séculos de poesia. 2006. 87f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Centro de
Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de Fora.
GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 2008.
HARGREAVES, Luiz Eduardo Saldanha. Os limites da traduzibilidade. Revista de Mestrado em Lingüística Aplicada do DLET
da Universidade de Brasília, Brasília, ano 1, v. 1, n. 1, p. 64-78, 2002.
JAKOBSON, Roman. Aspectos lingüísticos da tradução. In: JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein
e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1971. p. 63-72.
LARANJEIRA, Mário. Poética da tradução: do sentido à significância. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.
(Criação Crítica, 12)
MATTOS, Geraldo. Dicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 1996.
MILTON, John. Tradução: teoria e prática. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
NIDA, Eugene. Language structure and translacion. Califórnia: Stanford University Press, 1975.
PAES. José Paulo. Tradução a ponte necessária: aspectos e problemas da arte de traduzir. São Paulo: Ática S. A., 1990.
PAZ, Octávio. Convergências: ensaio sobre arte e literatura. Tradução de Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Nova Aguilar, 1987.
RÓNAI, Paulo. A tradução vivida. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1981.
Seção Estudos, Uberlândia, ano 3, n. 6, p. 72-84, jul./dez. 2010
84