Que boca enorme você tem, senhor Lobo!
Transcrição
Que boca enorme você tem, senhor Lobo!
XINELÁGI QUE BOCA ENORME VOCÊ TEM, SR. LOBO! Nada era mais previsível em meu dia a dia do que olhar para Sandra, menina doce, linda, jovial. Loirinha destemida, sem papas na língua, daquelas que não leva desaforo para casa. Corpulenta, mas sensual, sexual. Meu Deus, que preciosidade vitruviana na forma corpórea. Eva não seria tão equilibrada; Adão seria subjugado por sua beleza. Na realidade, Adão seria um menino bobo que perdera o doce; criança ingênua. Meus sentidos estão dominados por ela; meus pensamentos não saem de dentro dela. Meu pai me chama: — Douglas, tu tá bem? Notei que anda em outro mundo. — Estou bem, pai. Muitas provas — declaro entredentes. — Acho que não é isso. Namoradinha? — Não! Bem capaz... — É sim. Marta, teu filho arranjou uma namoradinha. Minha mãe vem da cozinha trazendo o almoço. — Marta, teu filho está de enrosco com uma menina. Tem o olhar perdido. — Deixa o menino, Carlos — retruca minha mãe. — Já é um homem. Só toma cuidado com essas coisas do coração. — Certo pai. O restante da refeição passa despercebido por mim. Memória, suor, escola. Uma profusão de sentidos e sentimentos aflora em torno de mim. Sinestesia pura. Vou para meu quarto; fecho a porta e me olho no espelho ao lado de minha cama. Espelho, espelho meu! Na névoa diante de meus olhos, que se esvai, a figura de Sandra retorna diante de mim. Esbelta, envolta numa luminescência cardíaca. Desejo e desilusão se misturam no liquidificador de minha alma. Eu aceno para ela e ela, para mim. Atiro-me na cama e pego o livro que tenho de ler para a escola: Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Fantástico e, ao mesmo tempo, mixórdia de olhares para uma sociedade distópica. Leio por uma meia hora e decido ir para rua. Vou até a praia. Talvez o vento suavizante do litoral acabe com as brumas em meu pensamento. Passo de cabeça baixa pelo bar do Tio Lucas, um velho bonachão que sempre me dava XINELÁGI doces quando era menor. Apesar de simples, o recanto ao entardecer parecia uma gruta iluminada pelos raios esvaídos do pôr-do-sol, e em seu recinto já dominado pela negritude do anoitecer há o reflexo das sombras dos clientes às paredes caiadas. À minha frente, performático em suas ondulações constantes e espumosas, o mar adriático de meus sonhos. Meus passos contabilizados pela minha mente revoltam-se à medida que me aproximo daquela imensidão litorânea: diante de meus olhos a maresia escorre pela superfície marinha. Minha pele se eriça, meus cabelos brincam na revolução do vento. No horizonte, o sol se escondia numa coloração alaranjada vespertina; a praia está vazia àquela hora, somente há uns poucos pescadores tentando resgatar o prato de comida do dia seguinte. Sento-me na areia e aprecio a tranquilidade que ressoa em minha volta. Ouço o suspiro suave do vento; ouço o murmúrio das ondas quebrando na praia; ouço o verde-piscina do mar, ostentando toda sua grandiloquência. Quantos desbravaram esses horizontes terrenos sem saber aonde iam dar? O que seria da História do mundo sem os desbravadores do mar? O que seria do turismo sem o mar? Perpetuo essas divagações em minha cabeça, quando algo brilhante, uma estrela cristalina, trespassa a linha do horizonte. Vem em minha direção; olhos vorazes cruzam os meus; perco-me em idolatria. Passo a passo, o avanço daquela imagética silhueta hipnotiza-me, rasga-me por dentro, esquarteja minha reclusão de órgãos. Meu coração dispara, meus sentidos se aguçam, minha voz se embarga. Naquela imensidão, ela se destaca, me persegue, me agarra. A grande Iemanjá das ondas desgarra-se do quadro ondulado. Diante de mim, percebo que quer me abraçar, me beijar. Sem pensar no que pretendo fazer, retiro aos poucos os tênis e as meias; meu olhar está fixo naquela sereia que inunda meus ouvidos com sua voz cativante, sibilante. Decido-me entrar no mar; a areia molhada afaga e afoga meus pés; sinto a água gélida de outono bater em meus tornozelos. Preciso entrar naquele oceano efervescente de volúpias e banhar-me naqueles braços que parecem me chamar. De repente, ouço sua voz: — Douglas, tu está aqui? — Sim, vim tomar um pouco de ar, espairecer — digo satisfeito por ela saber meu nome. XINELÁGI — O mar está ótimo, agradável. Não acha? Percebo que a água já bate em minha cintura e decido não avançar mais. Peço que ela venha mais para perto de mim — na realidade, não falo isso; resmungo palavras, de forma que só meu ouvido consiga captar os sons de minha voz. Ah, como a amo!!!! Será que sou correspondido? Sou, claro que sou! Ela se aconchegou em meus braços e ficamos abraçados um tempo no vai-e-vem das ondas. Com a escuridão do céu e o brilho das primeiras estrelas, me despeço, e ela também. Prometemos nos encontrar mais tarde. Ao retornar para casa, vejo um casal andando de mãos dadas: dois rapazes felizes com seu relacionamento, promovendo carícias nos rostos; o amor não tem sexo, nunca teve. A sociedade é que rotula, o preconceito besta e machista ainda impera. E isso fica muito visível quando vejo Márcio, o cara mais escroto da escola, vindo em nossa direção — na minha e na daquele casal de enamorados. Junto ao machão, seus colegas — galinhos de briga — andam contando suas desventuras no mundo que só eles recriam. Ao avistálos, gelo, congelo, petrifico; o casal continua em seus passos delicados e frutificados no néctar do amor. Márcio, que não suporta homossexuais, grita algo a eles: — Viados, sem-vergonhas! Sem se fazer de rogado, o menino mais alto do casal ouve e é aconselhado a não responder por seu companheiro; nova explosão dos brutamontes amigos de Márcio: — Bixinhas, vão para o inferno! — gritam em coro. Nesse momento, o rapaz pega uma pedra no chão e joga na cabeça de Márcio. Aquela explosão de raiva contra o preconceito aflora no seu peito arfante, e eu só assisto à cena sem me mexer; pareço completamente imobilizado com o horror que vem a seguir: uma chuva de socos e pontapés caem sobre o casal, que não tem tempo de correr. Caídos e sangrados, os garotos pedem ajuda aos céus para que saiam vivos daquela animalesca e dantesca luta a favor da liberdade. Márcio e seus amigos só vão embora quando veem as luzes de uma viatura se aproximar da praia. Passam correndo por mim sem me notarem em sua fuga. Na areia molhada pela água do mar e pelo sangue, os garotos são resgatados pelos policiais que despacham outras viaturas com o intuito de prender os agressores, que já se encontram distantes. XINELÁGI Saio do meu transe e me dirijo para casa, assustado: essa cena me faz lembrar de várias situações semelhantes: um menino homossexual que não conta a seus parentes que namora um rapaz há um ano, mas publica em seu facebook fotos sobre o relacionamento; a marcha a favor da liberdade sexual, evento gigantesco que reúne pessoas homossexuais e simpatizantes. Em todas elas, a mensagem é clara: todos somos iguais, não interessa nossa opção sexual; mas por trás disso aparece a cara de Márcio e seus colegas. Sinto calafrio só de pensar; no entanto, vejo que essa violência tem de acabar e decido voltar à praia e falar com os garotos; já há uma ambulância se aproximando da praia; quando olho na penumbra praiana, os policiais ainda estão tentando resolver o problema: chego perto e digo tudo que vi; ainda informo o endereço de Márcio. Pergunto como os rapazes estão; o policial afirma que estão bem, mas com diversas fraturas. A revolta em meu peito vibra, num movimento de afirmação, de que fiz a coisa certa! Retorno para a casa, com a promessa de ir à delegacia prestar depoimento. Entro em casa, cumprimento meus pais e vou para meu quarto, feliz com minha ousadia. Sandra ficaria orgulhosa de mim: um herói destemido! Olho novamente o espelho-espelho-meu de meu quarto. Novamente lá está ela, sorridente! Ela faz um aceno com a cabeça, um sinal de que tudo ficará bem, de que eu fiz realmente um ato correto, civilizado. Viro para meu guarda roupa e dentro de mim um grito bate suas asas; pego o vestido vermelho que comprei para Sandra, que iria lhe dar de presente. Fecho as janelas de meu quatro e chaveio a porta: coloco o vestido, o salto alto, passo a maquiagem; olho no espelho como ficou a pintura: perfeita! Chega! Sandra, é hora de enfrentar seus temores e te abrir para o mundo. Tu és perfeita, meu raio de sol. Abro a porta do quarto e vou até a sala: vão ter de aceitar, custe o que custar. O lobo engoliu a ingenuidade e o medo: é hora da Chapeuzinho sair e se libertar!!!!