O DIA QUE RAPTARAM O PAPA
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O DIA QUE RAPTARAM O PAPA
O DIA QUE RAPTARAM O PAPA Texto de João Bethencourt PERSONAGENS PAPA SAM SARA IRVING MIRIAM RABINO CARDEAL PERSONAGENS EM OFF XERIFE GENERAL SARGENTO LOCUTORES I, II E III ATO I CENA I Ainda no escuro, portanto, depois das pancadas de Molière, entra som de Jornal Falado. Ruídos de guerra e depois, voz de locutores. (Eventualmente haverá uma tela, sobre a qual se projetarão imagens correspondentes ao que está sendo dito.). LOCUTOR I – E as guerras prosseguem: o homem continuará a matar o homem para sempre, até o fim dos tempos. LOCUTOR II – Manchetes de hoje: Guerra no sudeste Asiático. Combates no Oriente Médio. Revolução na Bolívia. Execuções no Irã. LOCUTOR I – Mas há também o Papa em Nova York. Apesar do mau tempo, Sua Santidade o Papa Alberto IV foi calorosamente festejado pela população desta capital, desfilando em carro oficial, ao lado do Prefeito e do Cardeal O’Hara, recebendo depois, as chaves da cidade, sob geral aclamação. Alberto IV, conhecido pela sua extrema bondade e humanidade, e que dentro de poucos dias completará 77 anos, pôde assim verificar o quanto é querido em Nova York. LOCUTOR II – Nova York é a última etapa de uma programação estafante nos EEUU. Sua Santidade terá direito agora a dois dias de descanso. (As luzes sobem sobre uma sala-cozinha de uma casa americana, semi-rural. Tem o seu porch (varanda), seus três quartos e banheiro, no andar de cima. Embaixo é a sala ligada à cozinha, despensa (pantry), etc. O jardim-gramado se estenderia para além do cenário, mas, de alguma maneira, é preciso sugerir que no caso, trata-se de um pouco mais. O jardim tem canteiros e horta. Um galinheiro pequeno. Algumas árvores frutíferas. Pelo fato de se encontrar num subúrbio de Brooklyn, que já é um subúrbio, Sam, o dono da casa, pôde dar-se ao luxo de um pouco mais de terra, e certa distância da rodovia principal. Mobiliário simples. Sobre um móvel, com certo destaque, foto de um jovem de uns 22 anos, fardado, farda do Exército Americano. Ao subir o pano, ouvimos vozes, e a porta da casa, à esquerda do primeiro plano, que dá para a varanda se abre, surgindo Sam, homem de seus cinqüenta e poucos anos, forte, com um revólver na mão. Sam está de capa de chuva molhada e boné de chofer.). SAM (Bastante ameaçador) – Por aqui, por aqui. (Entra o Papa Alberto IV, um velhinho muito simpático, robusto ainda, inteligente, bom. Veste-se como o Papa mesmo, mas não totalmente paramentado, e tem por cima uma capa de chuva, pois está chovendo.). PAPA – Já lhe disse para guardar o revólver. Eu sigo o senhor de boa vontade. Não precisa ficar me apontando ele, a cada instante. SAM – Também não está carregado, portanto, eu posso apontá-lo o quanto eu quiser. (Abriu a porta da despensa e indica o caminho.). PAPA (Rumando na direção de Sam) – Nunca se deve apontar uma arma de fogo, mesmo quando não está carregada. Onde estamos? SAM – Pra que quer saber? Estamos num subúrbio de Brooklyn, que é um subúrbio de Nova York. A estrada fica a mais de 50m e a casa mais próxima também, portanto, não adianta o senhor gritar. PAPA – Não tenho a menor intenção de gritar. SAM – Por aqui. (Volta a indicar o caminho da despensa.). PAPA – Motorista de táxi, normalmente, costuma ser assaltado, e não, ser assaltante. Por que foi que o senhor me raptou? SAM – Quer fazer o favor de entrar aí? PAPA – Já lhe disse que não me apontasse a arma. O que é que é aí? SAM – A despensa. PAPA – O senhor vai me guardar na despensa? SAM – É por pouco tempo. PAPA – Se Deus quiser. (Ao entrar na despensa, o Papa passa por um quadro pendurado na parede com uns dizeres. Para ganhar ainda um pouco de tempo, o Papa pára ante o quadro e lê o que está escrito.). PAPA (Lendo) – “Ah, se ao menos por um dia no mundo o homem deixasse de assaltar, roubar, matar o próprio homem.” Muito oportuna a citação. Assinado: Samuel Leibowitz. Quem é Samuel Leibowitz? SAM – Sou eu. (Empurra-o, sem brutalidade, para dentro da despensa, e tranca a porta. Passa a chave e pendura-a num prego, do lado de fora. Tira o seu chapéu, a sua capa. Tira o jornal do bolso da capa. Fecha a janela, porque o vento estava soprando a chuva para dentro. Entra Sara, molhada, trazendo embrulhos do supermercado, guarda-chuva na mão, protetor de nylon na cabeça, para não molhar os cabelos. Sara, mulher de Sam, mãe judia, uns 45 anos.). SARA – Ué, você já está aí? Poucos passageiros hoje? SAM (Abrindo o jornal e se aboletando) – Um só, mas grande. (Sara foi para a cozinha e vai descarregando os embrulhos, tirando a capa e se envolvendo nos afazeres normais de preparação da janta, já que a esta altura, devem ser umas seis, seis e meia.). SARA – Você já ouviu? SAM – O que? SARA – Raptaram o Papa. SAM – É? SARA – O rádio está dando. SAM – Meu rádio está quebrado. SARA – Liga a TV. SAM – Estou lendo o jornal. SARA – Mas o jornal não dá as notícias mais recentes. SAM – Pra que eu quero saber as notícias mais recentes, se eu ainda não sei as outras? (Sara ligou a TV.). LOCUTOR I (Sara pegou a notícia no meio) -... Sabe-se que Sua Santidade desceu por um dos elevadores do Waldorf a fim de embarcar no carro oficial à sua espera. Sua Santidade não chegou a entrar neste carro. Receia-se, que na confusão do temporal que caiu esta tarde; Alberto IV tenha saído por uma porta lateral, perdendo-se dos agentes de segurança, e se expondo a ser seqüestrado. O Cardeal O’Hara notou sua ausência e deu o alarme. (Entra comercial. Sara desliga a TV.). SARA – Só Deus sabe onde estará. SAM – Eu também sei. SARA – Onde? SAM – Obviamente com o seu raptor. SARA – Raptor... Ou raptores? SAM – Por que raptores? SARA – Claro que só podem ser raptores: uma empreitada dessas não pode ser feita por um homem só. SAM (Bastante orgulhoso) – Você acha? SARA – Sam: você já imaginou raptar o Papa? SAM – Já. SARA – Uma pessoa que é superprotegida, supervigiada, superfiscalizada. Aliás, não é pra menos: com tanto maluco solto em Nova York. SAM – Obrigado. SARA – Hein? SAM – Nada. (Põe-se a assobiar.). SARA – O que é que você tem? Tá muito alegre hoje. SAM (Levantou-se) – Tenho meus motivos. SARA – Ora, ainda bem. SAM (Mal se contendo, anda em volta de Sara) – Sara: você jura que não vai dizer a ninguém? Você jura que não vai contar pra pessoa nenhuma nesse mundo? SARA – Mas de que se trata? SAM – Jura primeiro. SARA – Juro. SAM – Pela tua mãe. SARA – Pela minha mãe. SAM – Pelos teus filhos. SARA – Pelos meus filhos. SAM – Por Deus. SARA – Chega homem. Conta o que é que há. SAM – Vem cá. (Chama-a para junto da despensa.) Vem olhar pelo buraco da fechadura. (Sara olha.). SARA – Não vejo nada. Tá um breu lá dentro. SAM – Ah: esqueci de acender interruptor. Sara olha de novo.). a luz. (Aciona o SARA – O que é que este homem está fazendo na nossa despensa? SAM – Você conhece ele? SARA – Nunca vi mais gordo. SAM – Olha de novo. (Sara olha.). SARA – É o Joe Greenbow da loja de ferragem? SAM (Chateado) – Que Joe Greenbow. Você parece louca. Olha direito. SARA (Olha de novo) – Ah, é o teu primo Harry, de Chicago. Por que você trancou ele na despensa? SAM – Que Harry o quê. Pelo amor de Deus: olha, olha! (Sara olha mais uma vez.). SARA – Tem umas roupas esquisitas, parece padre... Pelo amor de Deus! Não pode ser! SAM (Radiante) – Mas é. SARA – O Papa! SAM (No mesmo) – Ao vivo. SARA – Você... Mas então você... Você raptou o Papa? SAM (Orgulhoso) – Raptei. SARA – Não. Não é verdade. Não acredito. Sam Leibowitz, você raptou o Papa e guardou ele na nossa despensa? SAM – Isso mesmo. SARA – Não. Não pode ser. Pelo amor de Deus, diga-me que não pode ser. Essa desgraça não me aconteceu. Mas Deus, diz que eu estou sonhando. Faz um sinal para mim, para dizer que estou sonhando. SAM – Você não está sonhando. SARA (Começa a bater nele com os punhos. Sam procura segurar-lhe as mãos) – Mas você é um doido, um doido de pedra! Todo ano você faz uma loucura para desgraçar a minha família. No ano passado você jogou a minha avó, que tem noventa anos, na piscina, para ver se ela boiava. No aniversário do meu pai, você ficou nu em pelo, em cima do bolo. Depois desfilou com os hippies e tirou as calças para protestar contra Biafra. Quando eu estava grávida de oito meses, com uma barriga deste tamanho, você me apresentava como “minha noiva”! SAM – Escuta aqui... SARA – Você enche o jardim de explosivos e diz que são minas contra a formiga. Você tira as calças no prédio da Dupont, para protestar contra a poluição. SAM – No prédio da Dupont eu estava procurando o banheiro. SARA – E agora você vai e me rapta o Papa! SAM – Eu não vejo por que você se exalta dessa maneira... SARA – Sabe quantos católicos eu vou ter contra mim? Todos. Todos. A Igreja Católica toda. Já não bastam os Leibowitz, que nos odeiam desde que você explodiu uma bomba de fabricação caseira no jardim deles; já não chega o Martin Kohn e a mulher, que nos invejam, Deus sabe por quê; já não basta sermos acusados de matar o Cristo... Você agora vai e joga contra nós o mundo católico inteiro? Sabe quantos católicos tem só na Itália? 100%. Todos são católicos na Itália. É onde está o Papa. SAM – Estava. Agora ele está aqui. SARA – E por que ele está aqui? Por que você raptou o Papa, Sam? SAM – Porque a oportunidade se ofereceu. SARA – Como a oportunidade se ofereceu? SAM – O homem entrou no meu carro, mandou que eu o levasse para o Convento das Carmelitas. Chovia torrencialmente. O Convento das Carmelitas é caminho da nossa casa. Eu olhei o camarada pelo espelho e o reconheci pelo sotaque. SARA – Mas pra quê, pra quê, pra quê, pra quê, pra fazer o quê com ele? SAM – Pra pedir um resgate. SARA – Ô seu paranóico irresponsável: você não sabe que a esta altura, deve ter cem mil policiais de Nova York revirando cada pedra do caminho, para encontrar o Papa? SAM – Eles podem revirar quantas pedras quiserem que o homem não estará debaixo de nenhuma. SARA – E se ele ficar doente, se ele tiver um troço? SAM – A gente chama o Dr. Gruenbaum. SARA – E se ele tiver um enfarte e morrer? Nós vamos todos para a cadeira elétrica. Todos nós. Você, eu e os nossos filhos. SAM – Deixa de ser pessimista. Por que é que haveria de ter um enfarte, logo aqui em casa, um dos ambientes mais sem tensão que eu conheço? SARA – Ah, como minha mãe tinha razão! Ah, como o meu pai tinha razão! Um louco! Não casa com Samuel Leibowitz, porque ele é louco. Todo mundo sabe que ele é louco. Desde criança que ele só faz coisas diferentes, que ele é diferente de todo mundo! É pacifista! Desfila com negros! Tira as calças na ONU. Mata formiga com explosivos! Mas não! Eu tive que ir atrás da minha fixação sexual. Eu tive que ir atrás desta minha maldita libido. Toma, pra aprender, toma! (Se esbofeteia.). SAM – Pois eu estou muito satisfeito comigo mesmo. Executei sozinho um plano que custaria, à Máfia, mais de cento e sessenta mil dólares, e que não daria certo. Há coisas que uma pequena Empresa faz muito melhor que uma grande. (Entra Irving, filho dos dois. Tem uns dezoito anos. Traz sapatos de basquete nas mãos e alguns livros.). IRVING – Alô papai, alô mamãe! SAM – Ô meu filho: como foi o jogo? IRVING – Ganhamos de 57 a 13. SAM – Genial. geladeira.). (Irving foi à cozinha assaltar a SARA – Quantas vezes eu já te disse pra não entrar sem enxugar os pés? IRVING – Desculpe mamãe, mas excitadíssimo. Já ouviram a notícia? é que estou SARA – Que notícia? IRVING – Raptaram o Papa. SARA – Já. Já ouvimos a notícia. IRVING – Não é sensacional? Legalérrimo! Sabe que eles já descobriram quem foi? SARA (Um pouco alarmada) – Quem foi? IRVING – O Partido Comunista. SAM – Não brinca. IRVING – Palavra de honra. E sabe pra quê? SAM – Não. IRVING – Pra obrigar os judeus a saírem do Sinai. SARA – Não diga. IRVING – Deu no rádio. SAM – É uma possibilidade. IRVING (Rumando para a despensa) – Sabe onde ele está agora? SARA – Tenho uma vaga idéia. IRVING – Num avião da Aeroflot, rumando para a Sibéria. Vão guardá-lo lá, até os judeus recuarem para as fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias. (Tentou abrir a porta.) Trancaram a despensa? (Foi procurar a chave.). SARA – Teu pai. SAM – O que é que você quer na despensa? IRVING – Uma maçã. (Irving abre a porta da despensa, entra, volta com uma maçã. Anda dois passos mordendo a maçã. Pára. pensa.) Escuta aqui: não tem um cara sentado na nossa despensa? SARA – Tem. IRVING – Quem é? SARA – O Papa. (Irving cai sentado numa poltrona. Entra Miriam, filha do casal, irmã de Irving. Miriam tem uns dezesseis anos.). MIRIAM – Ôba, pessoal. SARA – Não deixe de enxugar os pés. MIRIAM – Sabe o que aconteceu? SARA – Raptaram o Papa. MIRIAM – Vocês já ouviram? SARA – O que é que você acha? MIRIAM (Para Irving, que continua esbugalhado) – O que é que há contigo? IRVING – Não sei. MIRIAM – Vocês ganharam? IRVING – Não sei. MIRIAM – Tá maluco? Eu, hein? (Foi beijar o pai.) Estou morrendo de fome. IRVING – Come uma maçã. MIRIAM – Não. Prefiro um biscoito. IRVING (Se interpondo) – Não. Coma uma maçã. MIRIAM – Não tenho a mínima vontade de comer uma maçã. IRVING – Você não sabe o quanto vale a pena você comer uma maçã. MIRIAM – Eu acho que você está maluco mesmo. IRVING – Miriam: vai lá na despensa e apanha uma maçã, pra ver o que te acontece. MIRIAM – Por quê? O que pode me acontecer? IRVING – Vai lá pra você ver. (Miriam entra na despensa. Demora um tempo e sai com uma maçã. Começa a comer. Vai tirando a sua capa de chuva. Irving espantado.) Você... Não te aconteceu nada? MIRIAM – Não. IRVING – Você não viu ninguém na despensa? MIRIAM – Vi. IRVING – Quem? MIRIAM – Nosso primo Harry de Chicago. Cumprimenteio. Disse: alô, Harry... IRVING – E o que é que ele respondeu? MIRIAM – Qualquer coisa em italiano. (Pausa.) Ei: por que é que o primo Harry falou italiano comigo? (Volta e espia pelo buraco da fechadura.) Irving. IRVING – Hein? MIRIAM – Não é o primo Harry. IRVING – Claro que não é. MIRIAM – Eu já vi esse camarada na televisão. (Durante esse diálogo todo, Sam mantivera-se lendo o jornal, fora ao banheiro para fazer xixi, voltara, sentara e retomara o jornal. Sara, por sua vez, foi para a cozinha preparar o jantar.). SARA (Trazendo as coisas para a mesa) – Vamos lavar as mãos, meus filhos, que está na hora do jantar. MIRIAM – Quem é esse homem na nossa despensa, papai? SAM – O Papa. MIRIAM (Estarrecida) – O Papa? SARA – Seu pai raptou o Papa. (Miriam estarrecida.) Vai lavar as mãos. Quem come sopa? olha IRVING – Eu. MIRIAM – Papai: o senhor raptou o Papa? SAM (Baixando o jornal) – Raptei, raptei, mas já estou arrependido. Nunca vi gente pra fazer tanta onda. SARA – Ainda se zanga. SAM – Claro que me zango, pipocas. Nunca ninguém aprova nada do que faço nesta casa. Sou sempre o maluco, o errado, o azarão. Tô cheio ouviram: tô cheio. (Atira o jornal para o lado, cheio de raiva, e sai da sala.). MIRIAM (Para o Irving) – Tá vendo o que você fez? IRVING – Eu? SARA – Vamos pra mesa. A sopa está servida. MIRIAM – Eu não quero sopa. SARA – Pois agora vai comer, porque eu já servi. Quando perguntei você não disse nada. Vai chamar o Papa. (Isto é para o Irving.). IRVING – Eu? SARA – Claro. Pergunta a ele se não quer sopa? (O pai vem voltando, enxugando as mãos.). SAM – E não quero mais falar nisso. Assunto encerrado! (Irving tinha entrado na despensa. Agora volta.). IRVING – Como se diz sopa em italiano? MIRIAM – Ele fala a nossa língua, idiota! (Irving some na despensa.). SARA (Para Sam) – Senta e come e não briga; que faz mal pra digestão. (Surge Irving, abrindo a porta da despensa, e deixa passar o Papa. O Papa entra. O jantar pára. Os grupos se olham. Pausa.) Eu sou Sara Leibowitz, mulher do raptor. Esta é minha filha, Miriam, aquele é meu filho Irving. O senhor foi raptado por Samuel Leibowitz, motorista de praça, 52 anos, mecânico e louco. PAPA – Muito prazer. Eu sou o Papa Alberto IV. SARA – Já ouvimos falar muito do senhor. Aceita um pouco de sopa? PAPA – Aceito, sim senhora. SARA – Mas... é Kosher. (Diz-se de comida preparada de acordo com a lei judaica.). PAPA – Gosto muito de Kosher. Como muita comida Kosher na casa de um amigo meu, o Rabino Reuben Loew. SARA (Para Sam) – E você tem a coragem de raptar um Papa desses? (Escurece.). INTERMEZZO Entre a Cena I e a Cena II do Ato I, portanto no escuro, ouvimos, de novo, prefixo de noticiário de TV, ruídos de guerra, e depois as falas dos locutores. LOCUTOR I – Flashes de personalidade. LOCUTOR II – A intensa programação do Papa Alberto IV nos EEUU foi planificada e executada pelo Cardeal O’Hara, de Nova York, também conhecido como o Cardeal de Ferro, pela sua dedicação ao trabalho e auto-disciplina. O Papa vai completar 77 anos. Considerou-se, ao cabo de uma semana, exausto. LOCUTOR I – Alberto IV, que goza de extrema simpatia popular, é também uma figura humana curiosa. Gosta de passear incógnito, conversar com as pessoas, livre do cerimonial, a fim de conviver melhor e compreender a gente do seu tempo. CENA II Ao se acenderem as luzes, estamos no meio do jantar. Considerável animação. PAPA – Excelente Gefuellte Fisch (cozido de peixe recheado na sua própria pele. Mais comum desde a Segunda Guerra Mundial e são tipicamente consumidos no Shabat, e feriados como a Páscoa, embora, possa ser consumido durante todo o ano.), Madame Leibowitz. SARA – Pode me chamar de Sara. PAPA – Onde conseguiu o peixe, Sara? SARA – No mercadinho. Hoje estava especial. PAPA – Adoro um peixe fresquinho. Sabe que uma das minhas paixões é a pesca? IRVING – Deformação profissional. (Todo mundo olha para ele.). MIRIAM – Mais um pouquinho de vinho, Santidade? PAPA – Um pouquinho só: tá ótimo. MIRIAM – É Manischewitz. (Manischewitz é uma marca líder de produtos kosher, nos Estados Unidos. Fundada em 1888 e sob controle da família até 1990, é a maior fabricante mundial matzo – pãozinho ázimo - e vinhos da América kosher.). SAM – Eu vou buscar mais. (Levanta-se. Ruma para a despensa. Ao passar por Irving, este lhe pergunta, à meia-voz, mas com certa impaciência.). IRVING – Papai, o senhor não vai falar no resgate? (Infelizmente é daqueles momentos que ninguém estava falando, portanto, todo mundo ouviu.). SARA – Irving: isto é assunto para se discutir durante o jantar? MIRIAM – Até parece de propósito, querendo agredir Sua Santidade. IRVING – Eu, hein? MIRIAM – Há cinco minutos atrás, você começou a dissertar sobre os tesouros do Vaticano. Agora fala em resgate. IRVING – E o que é que tem? Todo mundo sabe que o Vaticano tem uma cacetada de tesouros acumulados. SARA – Todo mundo sabe, todo mundo sabe. Todo mundo sabe que os judeus têm muito dinheiro. Agora eu pergunto: se a gente tivesse muito dinheiro, a gente estaria comendo borscht (sopa de ucranianos, popular no leste e muitos países da Europa Central. Na maioria destes países, é feita com beterraba como ingrediente principal.) de lata? IRVING – Primo Saul tem muito dinheiro. SARA – Porque entrou na Máfia, aprendeu a falar italiano, preparando talharim e tudo. PAPA – Irving: a maioria dos tesouros do Vaticano são obras de arte expostas em galerias, que são visitadas por milhares de turistas o ano inteiro. SARA – Tá vendo? O Vaticano, pelo menos, é mais inteligente que nosso primo, que põe tudo em ações da IBM. Que turista ia gastar seu tempo percorrendo galerias cheias de ações da IBM? Tô certa ou tô errada? IRVING – Mamãe: a senhora está querendo me convencer que o Papa aí, não vale um milhão de dólares? SARA (Sacudindo a cabeça) – Que falta de educação: um filho meu falar assim. IRVING (Comendo) – E como é que a senhora quer que fale o filho do homem que raptou o Papa? SARA – Nunca com a boca cheia. IRVING (Para o Papa) – O senhor acha muito um milhão de dólares? PAPA (Comedido) – Não, não acho muito um milhão de dólares... SARA – Claro que ele acha muito um milhão de dólares. Pois eu acho muito um milhão de dólares. Seria o Gefuellte Fisch mais caro da história. Ninguém dirá que Sara Leibowitz cobrou um milhão de dólares por duas porções de Gefuellte Fisch e um prato de borscht. PAPA – O que eu acho, é que já que se raptou um Papa, o seu referido resgate deveria ser muito mais do que qualquer dinheiro. SARA (Espantada) – O senhor acha? MIRIAM – Eu também acho. Mesmo porque a gente não poderia receber o dinheiro nunca, que a polícia sempre dá um jeito de seguir pista do dinheiro e prender os raptores. IRVING (Para Miriam) – A gente não ia cobrar um milhão de dólares diretamente. A gente não precisa nem receber em dólar. MIRIAM – Como é que a gente faz, então? IRVING – A gente vende o Papa aos russos. MIRIAM – E o que os russos vão fazer com o Papa? IRVING – Revendê-lo com um lucro de 50%. SARA (Servindo mais peixe ao Papa) – Idéias ele tem. PAPA (Se referindo à foto do jovem fardado) – Seu filho mais velho. SARA – Como sabe? PAPA – Parecido com a senhora. Está no Vietnam? IRVING – Enterrado. PAPA (Um tanto chocado) – Como? Morreu no Vietnam? IRVING – Claro. Se tivesse morrido aqui, não iríamos mandá-lo pra ser enterrado no Vietnam. Pro Vietnam a gente só manda os que estão vivos. É a política do Governo. SARA – Mas voce é grosso, hein? (Para o Sam, que vem voltando, com o vinho.) Vê o exemplo que você dá aos seus filhos? SAM (Espantado) – O que foi que eu fiz? SARA (Para o Papa, enquanto Sam serve o vinho) – Vossa Santidade não deve ligar para esta falta de respeito dos jovens. Eu também não ligo. Sabe por quê? Porque os jovens de hoje serão os velhos de amanhã. Aí é que eu vou rir: quando eles forem chamados de quadrados, conservadores, reacionários, como eles chamam a gente. Ah, como eu vou rir, como eu vou rir dentro da minha cova, rá, rá, rá, rá, rá... MIRIAM – Taí: isso eu quero ver. A senhora rindo dentro de sua cova é um espetáculo que eu não quero perder. PAPA – É natural que os jovens andem revoltados: há muito coisa no mundo que precisa de conserto. IRVING – Tudo. SAM – O mal deles, é que eles não precisam ganhar o seu sustento, como eu e Vossa Santidade: têm pais que trabalham para eles. Se eu fosse Governo, decretava: todo cidadão é obrigado a trabalhar para ganhar seu sustento, especialmente os que têm menos de trinta anos. O senhor podia propor isso à ONU. PAPA – Bem: é preciso que eu possa chegar à ONU primeiro. SAM – Mas isto para o senhor, é facílimo... (Compreendendo.) Ah, o senhor quer dizer, porque o senhor é nosso prisioneiro... SARA – Meu, ele não é. Meu, ele é hóspede. Livre de ir, quando quiser. SAM – Livre, livre... Também não é assim. Você também não pode dispor assim, do fruto do meu trabalho. SARA – Que trabalho? Rapto agora é trabalho? IRVING – É trabalho sim, mamãe. É o trabalho que a ONU deve decretar para os jovens com menos de trinta anos. MIRIAM – Boa. SAM – Boa o quê? Deixa de ser idiota. IRVING – Acho muito engraçado o papai falar em sustento, tendo que raptar o Papa para sustentar a família. SAM – E quem foi que disse que eu raptei o Papa pra sustentar a família? Não preciso do Papa pra sustentar a minha família. Não preciso de ninguém pra sustentar minha família. Não preciso nem da minha família. Preciso do meu carro, e é só. Sabe o quanto eu ganho como motorista de praça? SARA – Pouco. IRVING – Então por que o senhor raptou o Papa, se não foi pelo resgate? SAM – Pelo resgate. IRVING – Então estamos conversados. SAM – Ô pedaço de imbecil: e quem foi que te disse que o resgate é dinheiro? IRVING – Não é dinheiro? MIRIAM – São ações? SAM – Não são nem ações nem dinheiro. MIRIAM – O que é então? IRVING – Obras de arte. SAM – Você vai ver quando a televisão noticiar. IRVING – A conversa: o senhor nem teve tempo de pedir o resgate, ainda. SAM – Mas não, hein? Escrevi o resgate num papel de embrulhar pepinos. No caminho para cá parei junto duma caixa de correio do Brooklyn e meti o envelope sobrescrito: Resgate do Papa. IRVING – Mas qual é o resgate do Papa? SARA – Vocês são de uma indelicadeza incrível: olhem; o Papa se encheu tanto com esta conversa besta, que adormeceu. (De fato, o Papa está afundado em sua cadeira, dormindo placidamente.). MIRIAM – Foi o vinho. IRVING – Foi um tal de Cardeal O’Hara, responsável pela programação dele. SAM – Vamos deitá-lo no sofá e cobri-lo. (Sam, ajudado por Irving e Miriam, recolhe o Papa, durante o diálogo a seguir, e o carrega para o sofá.). SARA – Com certeza está muito cansado. Também, com o dia que teve: aclamado na Quinta Avenida, recepcionado pelo Prefeito, raptado por Samuel Leibowitz... É dose para elefante. Vou guardar um pedaço de torta para ele. MIRIAM – Ele tem uma cara tão boa, tão bondosa. IRVING – Perseguiu a gente por dois mil anos. MIRIAM – Esse aí? Vai completar 77 anos agora. IRVING – Estou falando figurativamente. SAM – Não falo nem figurativamente, nem desfigurativamente, tá? Traz um cobertor. (Sara passa um pratinho com um pedaço de bolo ao Sam. Miriam ruma para a mesa para se servirem. Irving traz o cobertor e cobre o Papa.). SARA (Enquanto isso, examinando o Papa) – Espero que seja apenas cansaço. (Sam vai e põe a mão na testa do Papa.). SAM – Febre ele não tem. SARA – Pode estar doente sem ter febre. SAM – Por que é que ele vai ser diferente das outras pessoas? SARA – Porque ele é diferente das outras pessoas. SAM – Como? SARA – Ele é o representante de Deus na Terra... SAM – Nem por isso deixaria de ter febre, se estivesse doente. Mas a respiração está cansada... SARA – Preocupado, hein? Confessa! SAM – O quê? SARA – Que você fez uma enorme asneira. SAM – Eu fiz uma enorme asneira. SARA – Você devia ter levado ele ao Convento das Carmelitas. SAM – Eu devia ter levado ele ao Convento das Carmelitas. SARA – Por que você não leva ele ao Convento das Carmelitas? SAM – Agora é tarde. SARA – Tarde por quê? SAM – O Convento fecha às oito. SARA – Tá bom, Sam. (Toca a campainha. Sam olha para Sara. Miriam pára de comer o bolo. Irving tinha saído pelos fundos.). SAM – Você espera alguém? (A campainha toca de novo. Surge Irving vindo dos fundos, cochichando, alarmado.). IRVING – Papai: é o Rabino. SAM – O Rabino? O Meyer? O que é que ele vem fazer aqui a essa hora? IRVING – Eu vou dizer que o senhor já deitou. SARA – Não adianta. SAM – Como não adianta? SARA – Fui eu que mandei chamá-lo. (Espanto geral.) Entrei em pânico àquela hora, chamei para consultá-lo sobre o que deveríamos fazer. SAM – Mas logo o Meyer, Sara. Um intrometido, um inquiridor, está sempre perguntando o porquê de tudo. MIRIAM – Só lê romance policial. SARA (Para Sam) – Mas é teu parente. SAM – E daí? Pra que chamar um Rabino? SARA – Eu já não te disse que entrei em pânico? SAM – E por que você entrou em pânico? SARA – Porque você já trouxe de tudo no seu táxi, ao voltar para casa: espantalho, sabão em pó, canário belga, mas Papa é a primeira vez que você traz. (Voz do Rabino bem de perto; obviamente, ele subiu a varanda.). RABINO (Voz fora) – Boa noite: sou eu, o Rabino Meyer. SARA (Urgência) – Cobre ele bem, apaga esta luz, e vamos recebê-lo na cozinha. (Falando alto.) Por favor, entre pelos fundos, Meyer. SAM (Resmungando, enquanto as coisas são preparadas para a recepção de Meyer) – Pronto: já não basta um Papa, vou ter que raptar um Rabino também. Se me aparecer um Pastor Protestante, eu inauguro um Conselho Ecumênico. SARA – Não vai precisar de Ecumênico nenhum. Fica calmo. (Alto.) Já estou abrindo, Rabino. (Sai pelos fundos, enquanto, em primeiro plano, Irving e Miriam agem, cobrindo o Papa, apagando a luz e arrumando a sala.). SAM (Nervoso) – Calma. IRVING – Eu estou calmo, o senhor é que está nervoso. (O Papa mexe-se no seu sonho e resmunga algo.). SAM – O que foi que ele disse? Ele falou em latim? IRVING – Eu entendi “meshuge”. (Vozes da entrada dos fundos; chegando. Está de capa de chuva. de ar esperto, olhos vivos, que não (louco em iídiche.) e o Rabino vem É um homenzinho param.). RABINO – Vejo que cheguei um pouco cedo, ainda estavam jantando. SARA – Não, não, já tínhamos acabado. (Cumprimentos gerais.). RABINO – Como vai, meu caro Samuel? SAM – Vou levando. SARA – Senta Meyer. (O Rabino percebe o vulto sobre o sofá.). RABINO – Oh! Estão com pessoa doente em casa? SARA – Não, não: é um primo de meu marido. Chegou de Chicago. Está muito cansado. Deitou-se. RABINO – Ahn. SARA – O senhor não se incomoda da gente conversar aqui na cozinha mesmo? RABINO – Absolutamente. (Sam vai ter com o Rabino e Sara. Miriam e Irving fingem-se ocupados, talvez lendo uma revista ou indo ao banheiro e voltando, mas atentos na conversa dos três. Rabino para Sam.) Queria conversar comigo, Samuel? SAM – Eu não! (Os três sentaram.). SARA – Fui eu que telefonei Meyer, mas na verdade não há nada. Àquela hora tinha surgido um pequeno problema, mas felizmente já passou. RABINO – Qual era o problema? SARA – Nada. Uma bobagem. RABINO – Qual era a bobagem? SARA – Nada... Uma loucura de meu marido, mas já passou. RABINO – Qual era a loucura? SARA – Bem... (O Rabino continua a olhá-la, fixamente. Sara não sabe o que dizer.) Raptar o Papa. (E, constrangida, dá uma risada. O Rabino começa a rir. Todo mundo ri.). RABINO – Por que estamos rindo? (Todo mundo fica sério.) Depois que raptaram o Papa, ficou todo mundo com vontade de raptar o Papa. É por culpa dos meios de comunicações em massa. SAM – Falta de originalidade. RABINO – É muito triste raptar um homem como o Papa, para trocá-lo por dinheiro. SAM – Como sabe que é por dinheiro? RABINO – Por que seria então? SAM – Não sei. Mas pode não ser por dinheiro. (Sam se levanta para apanhar uma cerveja na geladeira. Miriam e Irving se retiraram aos poucos, para o segundo plano, ou para fora de cena. Miriam foi ouvir a TV num quarto no andar térreo mesmo.). RABINO (Para Sara) – Quer dizer que você não quer me dizer por que me chamou aqui. SARA – Ué: mas eu lhe disse. RABINO – Sara Leibowitz: não vá me convencer que você me chamou aqui, só porque seu marido teve, de repente, a idéia de raptar o Papa. SARA – Foi sim. (Baixinho, só para o Rabino.) Você sabe como ele anda, desde que o nosso filho morreu... RABINO (No mesmo tom) – Ele teve mais um ataque daqueles? (Sara faz sim, com a cabeça.). SARA – Chorou, gritou, quis até me bater... RABINO – Ton, ton, ton. SAM (Voltando com a cerveja) – O que é que vocês estão cochichando aí? RABINO – Nada, nada: falando mal de você. SAM – Logo vi. (Serve o Rabino de cerveja e se serve também.). RABINO – Com o quê, então, você chegou mais cedo hoje do trabalho? SAM (Espantado) – cheguei. Como é que você sabe? RABINO – Porque eu vi você passar. SAM – Viu? RABINO – Vi. SARA – É: não teve mais passageiros, então ele se recolheu mais cedo. RABINO – Não teve mais passageiros em dia de chuva? Normalmente, em dias de chuva, o que não se tem é táxi. (Sam bebe a cerveja. Sara olha para os lados. O Rabino é uma figura estranha, seus olhos não param, ele não perde nada.) Em todo o caso, um passageiro você teve, para trazer bem perto de sua casa. (Sam engasga e cospe a cerveja.). SAM – Como? RABINO – Não tinha um passageiro no seu táxi? SAM – Tinha. RABINO – Ah bom, pensei que eu andava agora a imaginar coisas. SARA – Como vão os romances policiais, Rabino? RABINO – Bem. Quer dizer que o levou até a casa do Padre Flanagan? SAM (Alarmado) – Quem? RABINO – Seu passageiro. SAM – Por que à casa do Padre Flanagan? RABINO – Não era um Padre o seu passageiro? SAM (Estarrecido) – Como sabe? RABINO – Reparei. Pareceu-me assim, com um ar de clérigo. SAM (Embaraçado) – De fato: era um Padre que ia visitar o Padre Flanagan. RABINO – Estrangeiro. SAM (Estarrecido) – Como sabe isso também? RABINO – Elementar, meu caro Sam. Padre, normalmente, não tem muito dinheiro. Se ele fosse daqui, ele não iria de Manhattan, onde você faz ponto, ao Brooklyn de táxi, porque é muito caro. Donde ele só poderia ser de fora, provavelmente estrangeiro. SARA – Fantástico. Você é genial, Meyer. (O Rabino faz um ar modesto.). SAM (Rindo. Tom meio de desafio de brincadeira) – Agora só falta adivinhar a nacionalidade do Padre que eu trouxe. RABINO – Italiano. (Sam tem um choque.). SARA (Tremendo) – Como sabe? RABINO – É muito fácil. Os padres, em maior número nesta área, são irlandeses ou italianos. O Padre Flanagan, que é irlandês, está naturalmente brigado com a maioria de seus colegas; portanto, se um padre o visita, deve ser italiano. (O Papa se remexe no sofá e murmura algo. Rabino aguçando os ouvidos.) O que foi que ele disse? SARA – Quem? RABINO – Seu primo de Chicago. SAM – Não sei, não entendi. RABINO – Este não é o seu primo Harry Grossaman, o açougueiro? SAM – Exatamente. RABINO – Então, por que quando ele dorme, ele fala em latim? SAM – Ele falou em latim? RABINO – Foi o que me pareceu. SARA – Deve ter sido iídiche. RABINO – Qual é o equivalente em iídiche de Dominus Vobiscum? SAM – Não deve ter. RABINO – Então é por isso que ele o disse em latim. (Pausa.) Excelente cerveja. SARA – Gosta? RABINO – Muito. Mas então você levou o Padre italiano à casa do Padre Flanagan, e depois voltou para casa. SAM – Foi. RABINO – E aí apanhou seu primo Harry na rodoviária, e trouxe para cá. SAM – Isso. RABINO – Mas você não me disse que se recolheu mais cedo? SAM – Hein? RABINO – O que é que você está escondendo, Sam? SAM – Nada. RABINO – Quem é esse homem gemendo em latim, no seu sofá? SAM – Harry Grossaman. RABINO – E por que ele tem meio metro menos que Harry? SAM – Não sei. Acho que talvez o Harry esteja diminuindo com a idade. RABINO – Onde você esteve na tarde de 23 de agosto? SAM – Quando foi 23 de agosto? RABINO – Hoje. SAM – Que horas? RABINO – Às cinco. SAM – Aqui. RABINO – E tua mulher? SAM – Também. RABINO – E com quem você a encontrou ao voltar para casa inesperadamente mais cedo? SAM – Hein? RABINO – Com ele! (Aponta para o Papa.). SAM – Como? RABINO – Você chegou em casa inesperadamente mais cedo, encontrou tua mulher com este homem, e lhe deu uma surra. SAM (Agarra o Rabino) – Surra você vai é levar; se não se puser no olho da rua imediatamente! (Começa a arrastá-lo para fora.). RABINO (Se debatendo) – Momento. Eu disse “conversando”. Eu disse: você encontrou sua mulher “conversando” com esse homem. Você não me entendeu! SAM – Entendi perfeitamente! Você chamou minha mulher de uma coisa horrível e a mim de coisa pior. (Vai puxando-o.). RABINO (Resistindo) – “Conversando”... Eu disse “conversando”... Você bateu nele porque você é muito desconfia... SAM (Já arrastou o Rabino metade do caminho) – Sou muito desconfiado, sim. Desconfio que você só veio aqui, pra encher o saco da gente... (Trovoada. Começa a cair uma chuva forte lá fora.). RABINO (Gritando e se debatendo) – Você está me botando pra fora, pra eu não ver a cara desse camarada... SAM (Parando um instante) – Por quê? O que é que tem a cara desse camarada? RABINO – Deve ser alguém que eu conheço... SAM (Retomando a expulsão do Rabino) – Rua, seu intrometido, seu fofoqueiro... IRVING (Irrompendo do quarto) – A televisão... A televisão está dando... MIRIAM (Surge com uma TV enorme) – As condições do resgate... A polícia encontrou a mensagem com as condições do resgate... SARA – O quê? SAM (Puxando o Rabino) – Vem... Vem apanhar chuva... RABINO – Me larga... Prepotente... Não amarrota minha roupa. Me larga. Eu vou sozinho, grosseirão... (Durante a fala dos locutores, os dois sairão pela entrada da frente.). LOCUTOR I – O seqüestro do Papa, que abalou o mundo inteiro, é agora seguido de mensagem do raptor. LOCUTOR II – Mensagem ou... mensagens? Até o presente momento, o Cardeal O’Hara recebeu uma dezena de mensagens exigindo os mais absurdos resgates. LOCUTOR I – Trata-se de cartas escritas por personalidades psicopatas, mobilizadas pelo impacto do evento. Leremos algumas dessas mensagens, para que o telespectador sinta como anda o mundo. (Durante as falas, o Papa, acordado pelo ruído, foi à mesa juntarse aos que viam a TV. Sara obriga Irving ceder o lugar ao Papa.) Para devolver o Papa, uma carta exige dois milhões e quinhentos mil dólares... em uísque escocês. LOCUTOR II – Outra carta exige... uma viagem à Lua. LOCUTOR I – Outra carta exige uma Lei liberando, imediatamente, o uso de tudo que é droga o estupefaciente, cocaína, ópio, haxixe, etc. LOCUTOR II – E, finalmente uma, que ganha o prêmio de originalidade: a suspensão de todas as matanças no mundo, durante 24h. Para que o Papa seja devolvido é preciso que durante 24h no mundo nenhum homem mate o seu semelhante. LOCUTOR I – Diz o autor da missiva: “se vocês quiserem o Papa de volta, tratem de suspender as vossas estúpidas guerras, revoluções, execuções e agressões e cuidem de não matar ninguém durante um dia inteiro, a começar das 18h de amanhã.” LOCUTOR II – Esta última mensagem, meus amigos, veio até com restos de pepino junto, e com um sobrescrito: Resgate do Papa. Eis o papel. (Durante estas últimas falas Sam tinha entrado já sem o Rabino e com um ar bastante satisfeito. Todos olham para ele.). SARA – Este não é aquele saco que eu te dei pra embrulhar pepinos? SAM – É. IRVING – Então o senhor me joga fora uma chance dessas de faturar um milhão? SAM (Muito satisfeito) – Joguei fora um milhão, e um Rabino: precipitei-o no ônibus que o carregou. SARA – Vou querer meu saco de volta. MIRIAM – Psiu! LOCUTOR I – A polícia de Nova York e a FBI intensificam suas buscas, esperando-se a qualquer momento uma pista do raptor. (A chuva se intensifica. É um toró.). SARA (Meio apavorada) – Me ajuda a fechar as janelas, Miriam. Vai molhar tudo. MIRIAM (Grudada na TV) – Já vou. LOCUTOR II – Toda e qualquer mensagem só será considerada autêntica, se confirmada por um bilhete do Papa. LOCUTOR I – Repetimos: as autoridades esperam um bilhete de Sua Santidade, dando um sinal de vida e reiterando os termos do resgate. PAPA – Ao menos, Sam, de todos os resgates, o seu é o único para o qual eu daria uma colaboração. IRVING (Enfiando uma caneta e um papel sob o nariz do Papa) – Então aproveita. Pode escrever. (O Papa hesita um instante. Irving enfia-lhe a caneta na mão.) Escreve um bilhete: o Cardeal O’Hara deve estar morrendo de inquietação... SAM – Quer fazer o favor de não encher o santo saco do Papa? PAPA (Começando a escrever) – O’Hara Cardinalis, frater in domine nostro... (De repente, o Papa levanta os olhos. O Rabino tinha entrado sub-repticiamente pelos fundos. Vem molhado até os ossos. Sam e Irving também olham e o percebem.). RABINO (Vindo para o primeiro plano, sorrindo largo) – Ahn; agora sim: está esclarecido o mistério. (Inclinase.) Como dizia Vossa Santidade há pouco: dominus vobiscum. PAPA – Shalom. FIM DO PRIMEIRO ATO ATO II CENA I No escuro, antes de começar a ação, ouvimos prefixo e noticiário da TV. LOCUTOR I – Organização das Nações Unidas, urgente: ao receber confirmação dos termos do resgate, através de um bilhete do Papa, a Assembléia Geral foi convocada esta manhã, em caráter extraordinário e urgente. LOCUTOR II – Os debates, em torno do resgate do Papa, vêm se processando desde cedo, esperando-se para qualquer momento um comunicado oficial. LOCUTOR I – Notícias oficiosas veiculam que a fim de não colocar em perigo a vida de Sua Santidade, a Assembléia tentará satisfazer as exóticas exigências do raptor. O seqüestro de ontem à tarde comoveu o mundo: de todas as partes chegam mensagens de solidariedade, mesmo de países não membros da ONU, como a China Popular. LOCUTOR II – Caso sejam aceitas as condições do resgate, o Dia da Paz - como foi apelidado pelo New York Times, ou seja, às 24h durante as quais ninguém poderá matar o seu semelhante - deverá iniciar-se hoje às seis da tarde. Aguardem para qualquer momento novas notícias. (Após o jornal falado sobem as luzes, e estamos no mesmo cenário do Ato I. Apenas é dia, um bonito dia de sol, e a casa está arrumada, em função deste horário. Entra Sara pelos fundos, trazendo numa cesta, batatas e rabanetes.). SARA (Rumando para a mesa da cozinha) – Por aqui, Vossa Santidade. (Surge o Papa, vindo da mesma direção, suado, batina arregaçada, despido, pois, dos acessórios de indumentária que lhe dão sua pompa, ara de quem também trabalhou na horta, trazendo uma cesta cheia de pepinos recém colhidos.). PAPA – Onde quer que ponha os pepinos, Sara? SARA – Aí, em qualquer lugar. Por favor, sente-se. Não se canse. Já vou lhe dar o seu café da manhã. PAPA – Café da manhã à uma da tarde: sinto-me até envergonhado. Normalmente estou de pé, às seis. SARA – Ótimo. De vez em quando um descanso desses é necessário. Quer dizer que dormiu bem? PAPA – Eu diria o sono dos justos, se não parecesse pretensioso. (Sentou-se.) Como consegue pepinos tão grandes na sua horta? SARA – É o meu marido: adora jardinagem. O senhor não viu ele, agora mesmo, plantando aquelas bombas antiformiga de fabricação caseira? Adora cavoucar a terra. PAPA – Ele mata formiga com explosivo? SARA – É de sua invenção. Foi sapador na Segunda Guerra. (O Papa, entrementes, serviu-se de água.). PAPA – Quer? (Sara aceita e os dois bebem.) Meu pai cultivava hortaliças e frutas. Tinha uma lojinha em Livorno. SARA (Preparou o prato com as batatas e a faquinha para descascá-las. Irá servir o desjejum do Papa ao mesmo tempo em que ele, intensivamente, irá ajudála no descascar as batatas. Enquanto isto: conversam.) – Era quitandeiro, seu pai? PAPA – Quitandeiro e agricultor. Toda a minha família é de agricultores: só eu que saí Papa. Sou a ovelha negra. SARA – Já a família de meu marido é toda de rabinos e professores: só ele deu para raptor. Mas a sua paixão é a terra, as máquinas e os explosivos. PAPA – Compreendo. SARA – Samuel é bom sujeito, mas um tanto destrambelhado. O senhor está com muita raiva dele, porque lhe raptou? PAPA – Eu, hoje em dia, penso muito antes de ter raiva de alguém. SARA – Depois que morreu o nosso filho mais velho, o pobre do Sam piorou muito. Ele era unha e carne com esse filho. PAPA – E a senhora? SARA – Eu, Vossa Santidade, quando falo nisso é como se eu fosse outra pessoa. É a única maneira que tenho de agüentar: pensar que não foi comigo. É que há nisso tudo alguma finalidade, algo que eu não compreendo, mas que existe. O senhor acredita num Ente Superior? PAPA – Sim, normalmente eu acredito. SARA – O senhor não pode deixar de acreditar, sendo um profissional. PAPA – Pelo contrário: às vezes para um profissional é muito mais difícil conservar a espontaneidade. SARA (Reparando que o Papa, a esta altura, já descasca uma batata depois da outra, com grande destreza) – Escuta, Santidade, o senhor não precisa... PAPA – Deixa, Sara. Faz-me um grande bem trabalhar com as mãos, pode crer. (Entra Sam trazendo uns restos de fio.). SAM – Você ficou mechugo? Botando Sua Santidade para descascar batatas? Foi pra isso que eu raptei o Papa: pra ele descascar batatas na minha casa? SARA – Mas Sam... SAM – Por favor: perdoa-a, que ela não sabe o que faz. SARA – Mas foi Sua Santidade que se ofereceu. PAPA – Foi sim, Sam, ninguém me obrigou, não. Como vão suas minas? SAM – Quase prontas. Aumentei a dosagem: agora servem contra formigas e contra gente também. PAPA – Contra gente? Para quê? SAM – Não custa estar prevenido. SARA – Tenho pavor dessas coisas. Depois você se esquece, vai na horta colher uma cenoura, e em vez disso você puxa um fio e explode. SAM – Pode deixar; que tem um dispositivo de segurança. (Surge Irving, também com ar de quem está trabalhando. Fios na mão, fita isolante, chave de fenda e um binóculo no pescoço.). IRVING (Para o Papa) – Agora é outro. SAM – Ah é? (Os dois vêm para a porta da frente, para a varanda, e espiam na direção da estrada, apontando.). IRVING – Este está de bicicleta. PAPA – O que é que há? SARA – A partir das dez e meia, onze horas, começaram a passar policiais lá na estrada, espiando aqui pra casa. Primeiro passou um, depois outro, depois passou um carro, agora tai um de bicicleta. SAM (Observando o policial lá longe) – Olham... Olham... Depois vão embora. IRVING – Será que estão desconfiando de alguma coisa? SAM – Eles, eu não sei, mas eu estou. Por isto que aumentei as cargas. Fica vigiando. (Retorna à sala onde vai apanhar um alicate, em cima de um móvel, e mais fios na despensa.) Não devia ter soltado o Rabino Meyer. Não tenho a menor confiança nele. SARA – Mas ele é seu parente, Sam. SAM – Por isso mesmo. SARA – Ele deu a palavra de honra que não ia falar com ninguém. SAM – Há uma recompensa de 20.000 dólares para quem der uma pista. Meyer está louco para conseguir uma bolsa de estudos em religião comparada. (Olha as horas.) Ele não ficou de aparecer à uma hora? PAPA – Ficou de vir jogar xadrez comigo. SAM – Mmm... (Sai desconfiado pela porta da frente, passando por Irving.). SARA – Irving: vem lavar a louça. IRVING – Não posso. Tenho que vigiar a estrada, que papai mandou. SARA – Você pode lavar a louça e vigiar a estrada ao mesmo tempo. Deixa de conversa. (Miriam vem do quarto onde, como sempre, estivera ouvindo a TV. Ouve-se, em segundo plano, o Locutor, porque Miriam deixou a porta do quarto aberta, mas não se entende o que ele diz.). MIRIAM (Rumando para a cozinha) – Mao Tse Tung telegrafou à ONU, dizendo que topa: se houver o Dia da Paz, ele não executa mais amanhã, os 22 revisionistas reacionários burgueses. Ainda tem café? SARA – Ali no bule. IRVING – Executa quando? MIRIAM – Depois de amanhã. Quer café? IRVING – Me traz aqui. SARA – Irving: eu não disse pra você vir lavar a louça? IRVING – Mais um policial... num Chevrolet marrom. Ah, é o Rabino. A gente podia fazer uma brincadeira com ele: ligamos a chave das bombas, o Rabino abre o portão e explode. (Miriam levou o café ao Irving.). MIRIAM – A Bolívia também aderiu: um golpe militar programado para hoje, acaba de ser adiado por 24h. (Entra o Rabino pela frente.). RABINO – Bom dia para todos. Como vai, Irving? IRVING – Já recuperou da surra e da chuva? RABINO – Você sempre muito espirituoso. Ah, Vossa Santidade já acordou? Está com uma cara ótima. PAPA – Este seqüestro está me fazendo um bem. IRVING – Viu muito policial aí pela estrada? RABINO (Vagamente) – Não, não. Por quê? Aconteceu alguma coisa? IRVING – Raptaram o Papa. (Miriam foi para o quarto com a xícara de café. Deixa a porta do quarto semiaberta.). RABINO – Por onde anda o Sam? SARA – Colocando suas minas. RABINO – Que excelente cheiro de talharim, Sara. O que é que você está cozinhando? SARA – Talharim. RABINO – Vim cobrar aquele nosso compromisso de ontem de Vossa Santidade. PAPA – O tabuleiro está armado. (Rumam para a sala, onde está armado o tabuleiro de xadrez. Irving saiu pela frente. Sara se ocupa na cozinha. Os jogadores de xadrez tomam seus postos.). RABINO – Vossa Santidade tem renome de grande enxadrista. PAPA – Há muito tempo que não jogo. RABINO – Conheço este papo. (Ouvimos o Locutor da TV pela porta entreaberta do quarto de Miriam.). LOCUTOR I – O Primeiro Ministro Fidel Castro declarou que, apesar de não morrer de amores pelo Papa, garantiu que no Dia da Paz, em Cuba, ninguém mataria ninguém. PAPA – Muito obrigado. LOCUTOR II – O Embaixador do Haiti assegurou ao plenário da ONU que em seu país, nunca se mata ninguém, mas que neste Dia da Paz, caso fosse proclamado, haveria um cuidado ainda maior do Governo, com a vida dos cidadãos. SARA – Quer baixar essa droga? MIRIAM (Surgindo na porta) – Eu acho que vão aprovar. Já imaginou: pela primeira vez na vida, uma idéia do papai vai dar certo. SARA – Então aprova mais baixo. (Miriam fecha a porta.). RABINO (Jogando) – Aprovar é uma coisa, executar é outra. PAPA (Jogando) – Veremos senhor Meyer. RABINO – O senhor acha que o mundo vai agüentar 24h sem matar ninguém? PAPA – Eu acredito em milagres. RABINO – Porque é obrigado, mas eu não. (Num tom confidencial.) Eu, acredito em medidas pragmáticas, em providências que dão resultado imediato. (O tom empenhado e feroz do Rabino faz o Papa levantar os olhos do jogo.). PAPA – O que quer dizer com isso? RABINO (Jogando) – Ora, o que eu quero dizer com isso: o óbvio. PAPA – O senhor falou com alguém? RABINO – Claro que falei. PAPA – O senhor falou que eu estava aqui? RABINO – O que é que o senhor pensa? PAPA – Com quem falou? RABINO – Deixei um bilhete anônimo na Caixa Postal do Xerife. PAPA – O quê? RABINO – Não podemos permitir que uma pessoa da importância de Vossa Santidade fique à mercê de um louco, de um megalômano. Vossa Santidade, com mil deveres, mil obrigações, está aflito para sair daqui, mas não pode nem deve arriscar sua preciosa vida, contra um demente, como o Sam. PAPA – Pelo contrário: estava até descansando um pouco da programação do O’Hara. RABINO – Esta sua reação confirma, uma vez mais, a sua fama como ser humano e generoso, porém eu sei o que custa ao mundo, ficar sem o seu Papa: aflito e desnorteado. PAPA – Obrigado por se preocupar tanto comigo. RABINO – Não se preocupe Vossa Santidade: dentro em breve, certamente, o xerife deverá vir buscá-lo e agirá com o maior tato e discrição. PAPA – Já notei a discrição do xerife. Desde onze da manhã que os policiais passam pela estrada, e espiam ostensivamente a casa. Xeque Mate. RABINO – Ué? (Miriam sai do quarto para levar a xícara de café. Novamente ouve-se a TV.). LOCUTOR I – Atenção para as declarações do Primeiro Ministro Brejnev, da União Soviética. SARA (Que se movimenta entre a cozinha e a área de saída dos fundos) – Miriam! MIRIAM – Calma, poxa! (Ouvimos algumas palavras em russo, e depois, em primeiro plano a voz do locutor.). LOCUTOR I – Irradiamos diretamente do plenário da ONU. Com a palavra o Primeiro Ministro Brejnev, que diz o seguinte: a União Soviética tudo fará em seu poder, para salvar a figura humaníssima do Papa Alberto IV. O rapto de Sua Santidade prova, mais uma vez, o estado de desleixo e esculhambação em que se encontra o Capitalismo. (Miriam, no final desta fala, volta para o quarto, fechando a porta, enquanto Sam surge da entrada da frente.). SAM (Para o Rabino) – Ah, muito bem, enfim chegou. (O tabuleiro vai sendo arrumado para nova partida.). RABINO – Pois claro que cheguei, eu te disse que voltava. SAM – Isto não seria motivo suficiente. RABINO (Para o Papa) – As brancas são suas. (O tabuleiro é girado de acordo.). SAM – Viu muito policial aí pela estrada? RABINO (Vago) – Não... SAM – Então precisam mandar examinar sua vista. Só por aqui, já passaram uns 10, todos metendo o olhômetro. Entrou na drugstore? RABINO (Espantado) – Hein? SAM – Não viu lá o cartaz da recompensa? RABINO – Que recompensa? SAM – Pra quem der uma pista do Papa... RABINO – Não... Não... (Finge concentrar-se no jogo.). SAM – Não seja mentiroso: você já escolheu até a Universidade onde vai estudar... RABINO – Que idéia, Sam! SAM – Eu sempre me perguntei como deveria sentir-se o Judas. Agora sei: como você. RABINO – Você não tem o direito de suspeitar assim de mim. SAM – Não tenho, mas suspeito. RABINO – Eu te dei a minha palavra de honra que não ia falar com ninguém. E não falei. SAM – Não falou? RABINO – Não falei. SAM – Então que outro meio de comunicação você usou? RABINO – Mas por que é que você acha que eu... SAM – Porque está na cara. Você dormiu aqui por causa da chuva, e saiu daqui às nove e meia da manhã. Até lá tudo estava normal. Aí, uma hora depois, começam a aparecer policiais espiando ostensivamente a casa. O que é que você quer que eu pense? RABINO – Que eles iam acabar descobrindo a tua pista, de qualquer maneira, porque assim como eu te vi ontem com um clérigo no táxi, alguém mais deve ter te visto também. SAM – Pois então vamos combinar o seguinte: se você me traiu, você vai ser o único assassinado no Dia da Paz. MIRIAM (Irrompe do quarto) – Olhe o Projeto! Olhe o Projeto para o Dia da Paz! Olha como vai ser; se for aprovado! (E já ouvimos o prefixo do Jornal Falado, e os locutores da TV, cujo estardalhaço atrai a atenção do Papa. O Rabino e Sam, aos poucos se juntarão à porta semi-aberta do quarto. Dali, eles espiarão a TV. Alguns, talvez, como o Papa e o Rabino entrem mesmo no quarto. Sam é o que fica mais na sala, porque adiante terá uma cena com Irving.). LOCUTOR I – Projeto da Delegação Indiana para o Dia da Paz, que se for aprovado se iniciará ainda hoje, a partir das 18 horas. LOCUTOR II – A partir das 18 horas de hoje estarão suspensos, em todo o planeta, por 24 horas, quaisquer forma de luta armada. LOCUTOR I – Os governos locais, municipais, estaduais ou federais se esforçarão ao máximo, para que durante 24 horas não se sucedam crimes de morte, sequer de caráter pessoal. LOCUTOR II – Uma intensa publicidade deverá solicitar a colaboração dos homens e das mulheres do mundo inteiro, no sentido de exaltar a solidariedade e de evitar a violência. LOCUTOR I – “Ame hoje o próximo!” “Espere: o crime pode esperar”! “Recorde histórico nunca antes atingido: 24 horas sem matar. Colabore.” LOCUTOR II – Estes são alguns slogans que correrão mundo, caso seja aprovada a proposta indiana. (A TV continua, agora já sem se entendê-la nitidamente, enquanto que em primeiro plano, entra Irving, vindo da entrada da frente.). IRVING (Para Sam) – Temos novidade. SAM – Ahn? IRVING – Tá com pinta que a polícia descobriu. SAM – Descobriu o quê? IRVING – Que o Papa está aqui. SAM – Por quê? IRVING – Porque o xerife está desembarcando com alguns homens. SAM – Quantos? IRVING – Cem. SAM – O quê? IRVING – Fecharam a estrada com dez carros e estão armando ninhos de metralhadoras. (Sam e Irving saem disparados pela frente, enquanto Miriam surge do quarto. Atrás dela, o Rabino e o Papa.). MIRIAM – Não seria maravilhoso se a proposta indiana fosse aprovada? Vou até botar uma roupa bacana para festejar. (Sobe as escadas, enquanto o Papa e o Rabino rumam para o tabuleiro de xadrez.). PAPA – Olhe senhor Meyer: eu não tenho nada com isso, mas se eu fosse o senhor, eu me mandava. RABINO – Por quê? PAPA – Porque talvez por sua causa, não haja um Dia de Paz. (Os dois tomaram seus lugares em torno do tabuleiro. Enquanto isso, Sam e Irving vêm voltando pela frente, e Sara surge dos fundos, todos apressados.). SARA – Sam, a polícia está à porta. SAM – Você está enganada. SARA – Mas eu vi, acabo de vê-los... SAM (Cortando) – Não é a polícia, é o Exército. (Ruma apressado para a saída dos fundos.). SARA (Atrás dele) – Ei, aonde você vai? SAM (Saindo) – Ligar o sistema defensivo. (Já surge Irving da despensa, trazendo duas pistolas velhas, uma espingarda idem: todos modelos velhos. Vai distribuindo as armas para o Papa e o Rabino. Com cada pistola lhes dá um punhado de balas.). IRVING – Toma. Temos pouca munição. Só atirem quando virem o branco de seus olhos. RABINO – Tá maluco. IRVING (Para a mãe) – Ferve água, prepare gaze, algodão, mertiolato. SARA – Hein? IRVING – Vamos fazer a guerra, para acabar com todas as guerras. MIRIAM (Descendo as escadas, estarrecida, talvez no meio da mudança de roupa) – Mamãe: está cheio de polícia lá fora. SARA – Não é a polícia, é o Exército. (Já entram pelos alto-falantes espalhados pela polícia na estrada, portanto vindo de fora, ruídos de estática, microfonia, depois uma voz.). VOZ (Fora) – Alô, alô... Alô... Alô... Testando: um, dois, três... Testando: um, dois, três... (Sara ruma apressada para a despensa.). MIRIAM – Onde é que você vai? O que é que você está fazendo? SARA – Vou preparar uma sopa. MIRIAM – Agora? A esta hora? SARA – Não interessa. Vou preparar uma sopa. (Sara some na despensa. Miriam vai atrás. Irving subiu as escadas. O Rabino e o Papa foram-se postar no umbral da entrada da frente, ansiosos. Enquanto isso, o alto-falante continua.). VOZ (Fora) – Testando: um, dois, três... Atenção Samuel Leibowitz... (Desce Irving as escadas com um microfone, alto-falante, pedaços de seu sistema de Hi-Fi, ao mesmo tempo em que Sam volta dos fundos, com dois coldres na cintura e um chapéu de soldado da guerra hispano-americana. Talvez seu uniforme de sapador da Segunda Guerra Mundial.). SAM – Trouxe? IRVING – Estou montando... (Vão montando o conjunto na sala. O Papa sai de seu posto da varanda e se aproxima curioso.). PAPA – Phillips? IRVING – Telefunken. (O Rabino saiu pela frente.). VOZ (Fora) – Atenção Samuel Leibowitz... Atenção Samuel Leibowitz... Aqui é Schultz, o xerife... (Sam e Irving experimentam a aparelhagem deles.). SAM – Atenção testando: um, dois, três... VOZ (Fora) – Atenção... Samuel Leibowitz... Não disfarça que eu sei que você está aí dentro... SAM (Falando para dentro do microfone, que está montado num pedestal) – E eu estou disfarçando, sua besta? Estou montando esta geringonça aqui pra quê? Pra falar contigo! VOZ (Fora) – Como? Como? Você entendeu alguma coisa... Atenção Samuel Leibowitz: nós sabemos que você está em casa... SAM (No microfone) – Claro que estou em casa, pois meu carro está na porta. Todo mundo sabe que quando meu carro está na porta eu não estou trabalhando: eu estou em casa. (O Rabino reapareceu, voltando da entrada da frente e se aproxima para ver Sam e Irving operando.). VOZ (Fora) – Atenção Samuel Leibowitz! Nós sabemos também que Sua Santidade, o Papa está aí com você. SAM (No microfone) – Ah é? Quem foi que te disse isso? XERIFE (Pelo alto-falante) – Recebemos um bilhete anônimo escrito pelo Rabino Meyer Feldman. SAM – O quê? (Agarra o Rabino.). RABINO (Se debatendo) – Socorro! Socorro! SAM (Sacudindo-o) – Eu mato esse miserável, esse Judas!... RABINO – Não fui eu... É uma mentira... É uma calúnia... Não fui eu... XERIFE (Espantado, pelo alto-falante) – Rabino Feldman, o que é que o senhor está fazendo aí? O seu lugar não é aí! SAM (Sacudindo-o) – O lugar dele é no inferno, e é pra lá que ele vai. (Todo mundo caiu em cima do Sam, para livrar o Rabino. Todo mundo, no caso, é o Papa, mais Sara e Miriam, que vieram correndo da despensa. Irving não se mexe.). RABINO (Aos berros) – Socorro! Estão me matando! XERIFE (Pelo alto-falante dando ordens urgentes) – É uma emergência! Temos que invadir a casa imediatamente, para salvar os dois servos de Deus!... SARA (Procurando tirar Sam de cima do Rabino) – Não faça isso, Sam. MIRIAM – O senhor está matando ele, papai. PAPA – Sam: a justiça é do Senhor. SARA – Não piore a nossa situação, Sam. SAM – Vou piorar a dele! A dele vai ficar muito pior que a minha! PAPA – Calma, meu filho, o homem só tem um corpo. SAM – Mas têm mil línguas, todas de víbora! Víbora! IRVING (Enquanto isso, sempre de palito na boca, tinha rumado para a entrada da frente. Agora ele se volta para o pai) – Papai: eles estão se preparando para invadir a casa... SAM (Largando o Rabino e agarrando o microfone) – Olha xerife cabeça de sardinha: o terreno está minado. Eu fui sapador da Segunda Guerra Mundial. Avisa teus homens que o terreno está minado. Botei bomba em tudo que é isca de formiga. O primeiro que entrar salta pelos ares. (No que Sam largou o Rabino, ele foi recolhido pelas mulheres e pelo Papa, e levado ao sofá, onde recupera o fôlego, lívido e assustado. O Papa traz-lhe um copo d’água. Sam para o Rabino.) Você não perde por esperar. XERIFE (Pelo alto-falante) – Você está blefando, Sam. Como sempre, você está blefando! SAM – Então paga pra ver! (Corneta tocando para o ataque, lá fora.). XERIFE (Pelo alto-falante, falando com alguém) – Sargento: vá com três homens e pule o muro, junto da macieira! VOZ DO SARGENTO – Eu? VOZ DO XERIFE – Claro que é você: anda! VOZ DO SARGENTO (Resmungando) – Por que eu? (Durante estas falas ouvidas pelo alto-falante, Sam se precipitou para fora, pelos fundos e volta com um painel cheio de chaves e ligações. Irving observa com um binóculo na entrada da frente, a manobra do inimigo.). IRVING – A patrulha está se aproximando da macieira... Atenção... (Mais cornetas em off. Sam prepara freneticamente o painel. Irving sempre de binóculos como um general inglês.) Atenção: vêm se esgueirando junto ao muro... Vão pular o muro... Pularam! (Sam liga uma chave e ouve-se, lá fora, uma bruta explosão.). XERIFE (Pelo alto-falante aos berros) – Miserável! (Sara, Papa, Miriam saltam apavorados com a explosão.). TODOS – O que foi isso? (Correm para a entrada da frente.). IRVING (Sempre de binóculo) – Objetivo atingido. Dois homens correm segurando as calças. O terceiro caiu... Já se levantou... VOZ DO SARGENTO (Pelo alto-falante, esbaforido) – Eu não vou mais lá! Manda outro! Quase morri! Quase morremos! XERIFE (Pelo alto-falante, morto de raiva, falando com Sam) – Você é um louco! Você é um louco! Atenção: toque de recuar. Área minada! Toque de recuar! (Toque de corneta urgente e insistente.). IRVING (Aperta a mão de Sam, satisfeito) – Bravos! Bravos! Papai! SAM – Ganhamos o primeiro round. Esse xerife é estúpido demais. XERIFE (Pelo alto-falante) – Estúpido é a vovozinha! SAM (Bem humorado, pelo microfone, falando com o xerife) – Ei Schultz: quando é que você vai me pagar os 20 dólares que você me deve? Ro, ro, ro.... (Sam ri satisfeito, e bate no ombro do filho.). XERIFE (Pelo alto-falante, mortificado) – Isto é hora de cobrar dívidas de pôquer? SAM (Entrementes se voltara para o Rabino, que estava se recuperando em cima do sofá) – E agora você! RABINO (Salta alarmado) – O quê? MIRIAM – Papai, o que é que você vai fazer com ele? (Sam se aproxima do Rabino, ameaçador.). RABINO – Não... Não... SAM – Não o quê? Ainda não disse nada? RABINO – Sim, era pelo bem de você, era por você que eu fazia... (Sam agarra-o. O Rabino dá um berro de pavor.). MIRIAM – Mamãe: papai vai matar o Rabino de novo. RABINO (Se debatendo) – Eu te dou metade da recompensa: 10.000 dólares. SAM – Você pode pegar metade da recompensa e enfiar no tuches! Irving: leve o Rabino para o banheiro e bota pra tomar um banho de chuveiro frio! RABINO – Não! IRVING – Sim. SAM – Ligue o chuveiro no mais gelado e coloque este Judas debaixo dele por quinze minutos. RABINO – Não, não, não. Banho frio, não. Inventa outra coisa, Sam... SAM – Vá tomar banho, já! IRVING – Vamos traidor! (Sai empurrando-o. O Rabino se lamentado e se voltando ainda para Sam, para pedir clemência.). RABINO – Não faça isso comigo, Sam. (Enquanto o Rabino está sendo empurrado para o banheiro, surge Sara furiosa. Sara saíra pela frente com o Papa, para ver os resultados da explosão.). SARA – Você vai devolver Sua Santidade imediatamente. SAM – O quê? SARA – Você é louco: quer destruir o meu jardim todo? Você acabou de estraçalhar a minha macieira! SAM – Você queria que eu deixasse o inimigo entrar? SARA – Vou acabar com essa guerra, já. Já! (Sara apanha o microfone.) Alô Schultz... XERIFE (Pelo alto-falante) – Como vai, dona Sara? SARA – Que negócio é esse de arrebentar com o meu jardim? XERIFE (Pelo alto-falante) – Ué? Não sou eu. É o seu marido. SARA – Pode vir apanhar o Papa imediatamente. Chega desse esculacho na minha casa! Acabou! XERIFE (Pelo alto-falante, pouco receoso) – Mas o seu marido não vai explodir as minas? SAM – Vou. SARA – Eu te divorcio! SAM – Não tem importância! Serei só! Os mais fortes são os que estão mais sós! SARA (Furiosa, saindo de novo pela frente) – Eu vou buscar o Papa! (Chamando.) Santidade, por favor, venha imediatamente falar com meu marido! (Sai.). IRVING (Que se mantivera impávido de binóculo em punho observando o front) – Atenção: o xerife tirou a camisa... SAM – O quê? IRVING – O xerife passou a camisa ao sargento... O sargento amarra a camisa do xerife num guarda-chuva... Um policial apanha a camisa do xerife e vem vindo para cá... SAM (Ao microfone) – Schultz: por que você está nos mandando a sua camisa? XERIFE (Pelo alto-falante) – É uma bandeira branca, imbecil. SAM – Imbecil e você: tua camisa é laranja. XERIFE (Pelo alto-falante) – Ele está te levando um bilhete meu... SAM – Não vai conseguir entrar. Lê pelo alto-falante. XERIFE (Pelo alto-falante) – Mas é particular. SAM – Não faz mal: lê assim mesmo... XERIFE (Lendo pelo alto-falante) – O Cardeal O’Hara acaba de chegar de Nova York... SAM – Não o conheço... XERIFE (Pelo alto-falante) – Sua Eminência exige que você entregue o Papa imediatamente... SAM – Ah é? Então diga a Sua Eminência que ele pode fazer já, sabe o quê? (Volta Sara com o Papa, mandando brasa.). SARA – O Papa vai falar com o xerife. (Arranca o microfone das mãos de Sam, e passa-o ao Papa, não sem antes apresentá-lo.) Schultz: você conhece o Papa? XERIFE (Pelo alto-falante) – Só da TV. É uma honra, Santidade. PAPA – Prazer, senhor Schultz. XERIFE (Pelo alto-falante) – Vossa Santidade está passando bem? PAPA – Otimamente. XERIFE (Pelo alto-falante) – Vossa Santidade está sendo bem tratado? PAPA – Não poderia ser melhor. Dona Sara cozinha admiravelmente. SARA (Feliz, encabulada) – Por quem sois: Santidade? SAM (Pelo microfone) – Está vendo seu xerife de bosta? Aqui em casa é assim: raptado ou não, o camarada passa bem. (Cochichos pelo alto-falante.). XERIFE (Pelo alto-falante) – E agora uma pergunta do repórter do New York Times. VOZ DO REPÓRTER (Pelo alto-falante) – Como está se sentindo neste seu contato mais direto com o povo americano? PAPA – Maravilhosamente bem. É um povo simples, gentil, hospitaleiro. SAM (Para o xerife) – Está vendo, sua besta? VOZ DO REPÓRTER (Pelo alto-falante) – Pretende ainda viajar pelos EEUU, ou encerrar sua viagem com Nova York? PAPA – Pretendia ainda conhecer o Oeste, logo que... Logo que puder. VOZ DO REPÓRTER (Pelo alto-falante) – Quando será isso? PAPA – Bem, não depende só de mim... XERIFE (Pelo alto-falante) – Depende de nós e no que depender de nós, Sua Santidade ficará livre dentro de poucos instantes... Você não vai perder por esperar, Sam! SAM – Vem: experimente... Mandou buscar reforços? Que venham os reforços! VOZ DO REPÓRTER (Pelo alto-falante) – Xerife: não acha que empregando a força bruta o senhor poderá levar o raptor a um gesto de desespero?... XERIFE (Pelo alto-falante) – Agora é tarde: o gesto de desespero ele já o cometeu! PAPA – Senhor Schultz: a fim de evitarmos atritos mais graves, sugiro esperarmos a decisão da ONU. Se houver um Dia de Paz, no fim dele Sam, por certo, me levará de volta ao meu hotel. Não é Sam? XERIFE (Com certa hesitação na voz) – Bem, se Vossa Santidade está sendo bem tratado... UMA VOZ (Que cochicha com energia pelo altofalante) – Não faça isso! XERIFE (Cochichando também) – O quê? VOZ NOVA (Pelo alto-falante) – Como você sabe que o Papa não está sendo coagido a dizer o que diz? XERIFE (Pelo alto-falante) – Como? VOZ NOVA (Cochicho enérgico continua) – Quem lhe diz que Sua Santidade não está com um revólver apontado às costas?... E obrigado a repetir tudo que mandam, hein?... PAPA – Ah, meu Deus: é o Cardeal O’Hara! VOZ NOVA – Hein? Já pensou nisso, hein? XERIFE (Pelo alto-falante) – Bem... PAPA (Pelo microfone) – Eduardo... Eduardo... VOZ NOVA (Pelo alto-falante) – Sou eu mesmo, Santidade... Vossa Santidade reconheceu minha voz? PAPA – Reconheci seu cochicho, Eduardo. CARDEAL (Preocupado) – Como está Vossa Santidade? (Com raiva.) Esses malfeitores, esses criminosos lhe dão um tratamento humano, decente? PAPA – Dão Eduardo, muito bom. Estão me tratando muito bem... CARDEAL (Cochichando para o xerife, pelo altofalante) – Percebeu a vacilação na voz dele? XERIFE (Pelo alto-falante) – Eu não percebi vacilação nenhuma. PAPA – Eu não estou sendo coagido a nada, Eduardo. CARDEAL (Pelo alto-falante, cochichando para o xerife) – Notou? Notou a hesitação? Este homem está com uma arma apontada... PAPA – Pelo amor de Deus... CARDEAL (Pelo alto-falante alarmado) – Preste atenção, xerife: o homem está apavorado... (Durante este diálogo, a atenção de Sara se voltara mais e mais para a cozinha, onde Miriam prossegue com a tarefa de preparar a sopa. Agora, ao ajudá-la a apanhar uma pilha de pratos tropeça num fio e...). MIRIAM – Não! (E lá se vão os pratos.). CARDEAL (Pelo alto-falante) – O que foi isto? Ouviu isso, xerife? Um grito de dor! Estão torturando Sua Santidade! PAPA – Eduardo... CARDEAL (Pelo alto-falante aos berros) – Parem com isso, miseráveis! É uma maldade fazer isso com um ancião! PAPA (Danado) – Ancião? CARDEAL (Pelo alto-falante) – Eu vou lá, xerife! Eu preciso ir lá pra ver como tratam o Papa! XERIFE (Pelo alto-falante) – Sam: você autoriza Sua Eminência a ir aí falar com o Papa? CARDEAL (Pelo alto-falante) – Vou e me ofereço a trocar de lugar com Ele. SAM – Deus me livre. SARA (Preparando a sopa) – Quem é que vem agora? SAM – Um Cardeal. SARA – Primeiro um Papa, depois um Cardeal. Só falta Jesus Cristo descer pra tomar sopa com a gente. IRVING (De novo a postos com o binóculo. Talvez o Papa ao seu lado) – Pegou na camisa do xerife. Vem vindo para cá... MIRIAM (Que tinha voltado a olhar a TV pela porta semi-aberta) – Papai: estamos na TV. Mamãe: olha a gente na TV! (Sara corre para a porta do quarto. Sam olha curioso, enquanto uma nova voz de locutor se faz ouvir.). LOCUTOR III – Localizado pela denuncia anônima do Rabino Meyer Feldman, sabe-se que Sua Santidade, o Papa Alberto IV, se encontra detido numa casa isolada, num subúrbio do Brooklyn. SARA (Desapontada) – Ora: é só a casa da gente, de longe. LOCUTOR III – As estradas estão bloqueadas, o acesso praticamente vedado à reportagem. O receio de ferir o Papa detém a polícia às portas do jardim da casa, enquanto que o raptor e as autoridades parlamentam sobre o destino do Santo Padre... (Volta o Rabino. O banho lhe fez um bem imenso. Parece outro homem. Limpo, penteado, ar agradável, até a roupa parece que foi passada.). MIRIAM – Puxa! SARA – Vejam só! IRVING (Arriscando um olho) – Quem te viu e quem te vê. SAM – Você está uma beleza, Meyer. RABINO – Deus castigará você, Sam. SAM – O dedo duro é você, mas quem vai ser castigado sou eu. Bela noção de justiça você tem. LOCUTOR III – Atenção: o Cardeal O’Hara, de Nova York, dispôs-se a trocar de lugar com o Papa, e está se encaminhando para a casa do raptor... Foi negociada uma trégua de alguns minutos, enquanto o Cardeal se aproxima da casa... MIRIAM (Olhando a TV) – Não se vê nada... SARA – É aquele ponto andando... PAPA – Parece uma paisagem lunar... (O Papa saíra da entrada da frente, para vir olhar a TV.). LOCUTOR III – Sua Eminência, o Cardeal de Nova York vai entrar na casa, para parlamentar com os raptores... Aproxima-se. Sobe os degraus da varanda... Vai entrar... Entrou o Cardeal! (O Cardeal surge na porta de entrada.). SAM – Como é? Quedê a arma apontada nas costas do Papa? (O Cardeal avança, ajoelha junto do Papa e lhe beija a mão.). PAPA – Está bem, meu caro Eduardo. CARDEAL (Erguendo-se e passando os olhos pela casa) – É triste. É triste que uma viagem tão programada termine nesta espelunca. Isto nos dá uma medida de como andam as coisas no mundo. SARA – O que foi que ele disse? IRVING – Chamou tua casa de espelunca. SARA – O quê? CARDEAL – Se algum desses patifes fez mal a Vossa Santidade, se tocaram num só fio de cabelo que seja de Vossa Santidade... SAM – Hein? IRVING – Olha: tá chamando o senhor de patife. PAPA – Ninguém me fez mal, Eduardo. CARDEAL – Torturadores de Cristo! SAM – Reacionário! PAPA – Eduardo, por favor! CARDEAL – Como sempre, Vossa Santidade é bondoso demais com os marginais, os extremistas, os delinqüentes. SAM – Delinqüente é você, pau vestido. CARDEAL – Vocês pagarão por isso, não se preocupem. A justiça tarda, mas chega. Não sei como Vossa Santidade tem tolerância para com uma gente tão reles, tão vil! Então, isso se faz? (Para Sam.) Você comprometeu nosso país perante o mundo inteiro. SAM – Ele já anda mais do que comprometido. CARDEAL – Um hóspede do povo americano; e o senhor faz isso com ele? Some com o Papa, abusa da sua vontade, do bom coração de um homem já idoso, de seu preciosíssimo e curtíssimo tempo... SAM – O que é que você está falando? O Papa gostou daqui, não gostou? Ele gostou de ficar com a gente. Descascou batata com minha mulher, que nem a Cinderela. CARDEAL – O quê? MIRIAM – Colheu pepinos na horta. CARDEAL – Cafajestes! Vocês abusaram da extrema bondade, da bondade até sobre-humana de um homem que é tão bom, que chega, às vezes, a não saber o que faz... PAPA – Está me chamando de gagá. CARDEAL (Para Sam) – O senhor devia ser fuzilado. SAM – Então fuzila. CARDEAL – Seus filhos deviam ser mandados para um reformatório. PAPA – Eduardo. IRVING – Hein? CARDEAL (Para o Rabino) – E o senhor devia sumir de vergonha, fazer isto com um colega de profissão... RABINO – O quê? PAPA – Escuta Eduardo... CARDEAL (Referindo-se ao Rabino) – A obrigação dele era de prevenir as autoridades, avisar a polícia. RABINO – Mas foi exatamente o que eu fiz: eu os denunciei. CARDEAL – Ah é? Então o senhor é o pior de todos: Judas! RABINO – Preso por ter cão, preso por não ter... PAPA – Eduardo... CARDEAL – O senhor também é um pouco culpado, Santidade. O senhor se aventura demais. O senhor não tem o direito de se arriscar assim, no posto que ocupa. (Para Sam.) Sua Santidade vem comigo, agora, e você não oporá a menor resistência, se você tem algum amor à sua família: mulher e filhos! SAM – Eu vou opor todas as resistências, porque eu não gosto deste tom comigo. Você vai levantar a tua voz na cara de quem quiser, mas aqui não. A pessoa me tratando bem me leva até a camisa do corpo, mas no que engrossou: se estrepou. Eu talvez soltasse o Papa, embora Ele estivesse gostando daqui, tirando umas férias, de gente como você. Mas agora não solto mesmo. Agora nós vamos ficar aqui com ele até o fim do Dia da Paz, que eu inventei na loucura, mas que agora estou sentindo que até que é uma idéia legal. Falei e tá falado: pode se mandar! IRVING – Muito bem, papai, falou como homem. SARA – Falou como homem. Agora quem vai ter que reconstruir o jardim, depois, é a mulher. (O Cardeal olha para todos, como maior rancor.). PAPA – Eduardo: vem cá. (O Papa leva o Cardeal para a varanda, em primeiro plano. Em segundo plano fica a família entregue aos seus afazeres. A luz baixa sobre eles, um pouco.) Vamos esperar um dia mais, o que é que custa? Era meu dia de descanso, mesmo. Posso descansar tão bem aqui, como no hotel. Tenha paciência, vai lá, acalma o xerife e as autoridades, e diga-lhes que eu estou bem e contente. CARDEAL – Como Papa respeito-o, mas como Sacerdote, eu faço a Vossa Santidade as mais graves restrições. PAPA – Já tinha notado Eduardo. CARDEAL – Vossa Santidade se comporta abaixo da dignidade do seu cargo. Vossa Santidade não tem austeridade bastante, a pompa, a importância, a autoridade. Conversa com qualquer um, atende qualquer um, sai incógnito pelas ruas, parece ter vergonha da projeção de seu cargo, parece hesitar em se assumir como Papa. PAPA – Será verdade isso, Eduardo? CARDEAL – Está vendo? Sempre evasivo, sempre duvidoso, fingindo que não tem a autoridade que tem. Para quê? Nostalgia da humildade? Por que Vossa Santidade foi seqüestrado? Por sua culpa, na verdade. Porque para não ser reconhecido e homenageado, Vossa Santidade preferiu sair pela porta dos fundos, e trocar o carro oficial por um táxi qualquer. Eis o resultado. PAPA – Eduardo: eu não tinha direito a dois dias de descanso, na sua programação? Então. No fundo, trata-se apenas de escolher o lugar em que desejo descansar. O lugar é este. Vá e diga isto às autoridades militares. CARDEAL (Lábios cerrados) – Está bem. PAPA – Eu exerço o cargo à minha maneira, O’Hara. Quando me escolheram sabiam como eu era. Quando você for Papa, você o será ao seu modo. CARDEAL – Não se trata disso, Vossa Santidade. PAPA – Eu sei Eduardo, eu sei. Procure perdoar-me por eu ser tão diferente de você. (O Cardeal desce da varanda e some. Sam e Irving tinham saído para investigar as fortificações. O Rabino ficou vendo TV. Sara e Miriam se atarefaram na cozinha. Agora, enquanto voltam as luzes a sala, e o Papa volta, ouvimos o locutor da TV.). LOCUTOR I – Continuam as manifestações em todo mundo, de líderes e chefes de Estado, em prol do Dia da Paz. Agora uma declaração do senhor Salvatore Mangini, industrial de Chicago. LOCUTOR II – O senhor Salvatore Mangini é um dos três capos mais altos da Máfia nos Estados Unidos. VOZ EM OFF (Com leve sotaque) – Agradecido, mas sou apenas um modesto homem de negócios. Em todo caso, desejo garantir a todos e ao meu país, que estamos de acordo com que no período proposto para o Dia da Paz, que colaboraremos amplamente, paralisando de modo integral nossas atividades durante 24 horas... (As luzes acabaram de subir. O Papa está na cozinha. Irving retoma seu posto de binóculo em punho. Sam volta puxando mais uns fios e liga ao painel.). PAPA – Então, como está a sopa, dona Sara? SARA – Quase pronta. IRVING (Comunicando) – O Cardeal caminha em direção ao xerife. (O Rabino, enquanto isso põe a sua paramenta, busca o candelabro e vai acendendo as sete velas.). SAM – O que ficou combinado? PAPA – Vamos ter um dia tranqüilo. SARA – Graças a Deus. MIRIAM – E ao Seu representante. (Estática, microfonia, e depois, a voz do xerife pelo altofalante.). XERIFE (Pelo alto-falante) – OK Sam: o que é que ficou combinado? SAM (Pelo microfone) – Ué: o Cardeal não te falou? XERIFE (Pelo alto-falante) – Tá chegando agora. Então, Eminência, como foi o encontro? CARDEAL (Voz clara e feroz) – Sua Santidade deseja ser libertado imediatamente! XERIFE (Pelo alto-falante) – O quê? CARDEAL (Pelo alto-falante) – Conversei com Sua Santidade e Sua Santidade deseja a sua libertação imediata. PAPA – Mas é um louco! SAM – O senhor não disse que... PAPA – É um maníaco da ordem e da disciplina! XERIFE (Pelo alto-falante) – Soa o ataque! Toque a corneta! Reúne os reforços! Preparar para invadir o campo inimigo! PAPA – Está vendo, dona Sara? Agora fiquei com raiva! SAM – Então descarregue sua raiva junto com isso! (E passa-lhe um revólver. Cornetas. Comandos gritados pelo ar. Ruídos. Preparativos. Tambores.). XERIFE (Pelo alto-falante) – Vamos salvar o Papa! Vamos libertar o Papa! É a guerra santa! Abaixo os infiéis! SAM – Distribuam as armas! Defendam as seteiras! Fervam a água! Louvem a Deus e passem a munição! Sua Santidade, por favor, vigie os fundos! (O Papa se coloca.). IRVING (Binóculo em punho) – Três sapadores avançam rumo ao portão, com suas varas magnéticas antiminas! LOCUTOR III – As negociações foram bruscamente rompidas. O xerife se apresta em atacar o reduto dos raptores do Papa! SAM – Preparar a chave da primeira bateria de minas!... XERIFE (Pelo alto-falante) – Se entregue, Samuel, antes que eu destrua o teu lar! SAM – Vem miserável, vem me pegar! LOCUTOR – O ataque dos policiais se concentra na entrada principal do jardim da casa do motorista louco Samuel Leibowitz. SARA – Alguém vai querer sopa agora? IRVING – Atenção Primeira Bateria!... SAM – Atenção Primeira Bateria!... (Sirene. Cornetas. Tiros.). LOCUTOR – Foi dado o sinal de ataque! IRVING – Agora! (Sam liga a chave, mas não dá em nada. O Rabino acaba de acender as velas do Sabbaoth.). RABINO – Atenção, hein? Vou rezar a chegada do sábado. IRVING – Anda: os sapadores estão entrando. SAM – Não está funcionando, não está funcionando, não sei o que há! IRVING – Já ligou a chave? SAM – Já liguei. As armas anti-magnéticas devem ter neutralizado a espoleta! (Cornetas.). XERIFE (Pelo alto-falante) – Avançar pela segunda linha da frente, junto à varanda... Junto a casa!... LOCUTOR – Rompida a primeira linha de defesas inimigas, os soldados da polícia penetram no jardim da casa de Samuel Leibowitz, o raptor louco... SAM – Por que é que esse cara insiste em me chamar de louco? IRVING – O fio! O senhor esqueceu-se de ligar o positivo! SAM – É mesmo! (Completa a ligação. Ouve-se uma explosão. Sam e Irving se rejubilam.) Deu certo! Deu certo! (Sam liga outra chave. Outra explosão. Júbilo dos dois.). IRVING – Olha como correm. Olha como correm. RABINO – Vai começar o sábado. Quem for judeu está proibido de trabalhar. Sam: suspende a guerra! SAM – Suspende uma ova: esse tempo já passou. Prorroga o sábado. Ouviu isso, Santidade? PAPA – Maravilhoso Sam. Você é um gênio. SARA – Pessoal: a sopa vai esfriar. LOCUTOR III – Desbaratada a ofensiva da polícia. Os patrulheiros correm atordoados com os explosivos de fabricação caseira preparados pelo motorista que raptou o Papa. SAM – Não disse louco. LOCUTOR III – Um louco! XERIFE (Pelo alto-falante) – Assestar as metralhadoras. Retomar o ataque imediatamente. Sargentos Cooper, Morrison e James, pelos fundos da casa. Anderson e Clayton cobrindo a Infantaria, a toque de caixa. Vai! (Mais clarins.). IRVING – Agora é sua área, Santidade. PAPA – Deixa comigo! Deixa comigo! IRVING – Preparar as baterias do fundo. SAM – Preparar as baterias do fundo! Atenção para o ataque... PAPA – Estão escalando o muro... IRVING – Estão escalando o muro... PAPA – Pisaram na grama do jardim... IRVING – Confirmada a grama do jardim... PAPA – Fogo! (Sam liga nova chave. Nova explosão. Rejúbilo dos defensores. Agora saraivada de tiros de fora. Caem objetos na sala.). SAM – Cuidado. Estão atirando aqui dentro. Abaixa Meyer. RABINO – Estou rezando o sábado. Eles que se danem. (Sara que se tinha atirado ao chão, levanta e puxa o Rabino.). SARA – Não banca o herói, Meyer. (Mais cornetas.). IRVING – Voltando o ataque pela frente... PAPA – Quantas linhas de baterias você tem?... SAM – Dá pra resistir algumas horas... IRVING – Olha um General chegando num carro do Exército... SAM – O quê? IRVING – Está correndo para falar com o xerife... Atenção para novo ataque pela frente... SAM – Atenção baterias da segunda linha do portão... LOCUTOR – O General MacHendrick, da Divisão da Costa, acaba de chegar e correu para o xerife... (Discussão pelo alto-falante.). VOZ DO GENERAL – O que aconteceu? O que aconteceu? XERIFE – Avancem meus bravos... Isso!... VOZ DO GENERAL – Xerife: estou falando consigo... XERIFE – O que é que há? Quem é o senhor? SAM – Atenção na bateria: estão avançando... VOZ DO GENERAL – General MacHendrick, Comandante da Costa. Eu lhe ordeno que cesse imediatamente as hostilidades. XERIFE – Ficou louco? Estamos salvando o Papa. VOZ DO CARDEAL – Estamos salvando o Papa, General! IRVING – Já! (Sam liga a chave. Nova explosão. A casa treme.). MIRIAM (Jubilosa irrompendo com a TV) – Foi aprovado! Foi aprovado! Há uma hora atrás. Em todo o mundo! Suspenderam as hostilidades, as brigas, a violência em todo o mundo. Foi aprovada por vinte e quatro horas, a paz! TODOS – Hein? MIRIAM – Tá aqui! Estava dizendo agora! Tá aqui! LOCUTOR I – Desde ás 6 horas estão suspensas as hostilidades no mundo inteiro! (Cornetas.). XERIFE (Pelo alto-falante) – De novo! Atacar! Pra frente! VOZ DO GENERAL – Parem com isso! Começou o Dia da Paz! Estão suspensos todos os combates armados no mundo inteiro! O Presidente assinou! XERIFE – Como? CARDEAL – Mas o Papa! Temos que salvar o Papa! VOZ DO GENERAL – O Papa que se dane... O Governo americano se comprometeu... Todos os governos se comprometeram... Até no Vietnam cessaram as hostilidades... Toque a retirada... É uma Ordem do Presidente Nixon, Comandante em Chefe de todas as tropas americanas... Toque a retirada... XERIFE (Chateado) – Toque a retirada... CARDEAL – Não toque a retirada coisa nenhuma... GENERAL – Quem é essa múmia? XERIFE – O Cardeal de Nova York. GENERAL – O senhor manda nos seus filhos, nos meus soldados quem manda é eu! (Aos berros pelo altofalante.) Toque a retirada, corneteiro, ou eu lhe taco uma Corte Marcial! (O som dos clarins rompe o ar.). IRVING (Jubiloso) – Estão se retirando... estão se retirando... LOCUTOR III – A polícia acaba de suspender o cerco à casa o raptor louco e recua para suas posições iniciais... (Todos começam a cantar e a dançar.). TODOS – Ganhamos! Ganhamos! (Todos se abraçam, até o Rabino.). SARA (Caindo nos braços de Sam) – Oh Sam, você é um louco de pedra! Você é um maravilhoso louco de pedra! SAM – Mas até você, Sara? (Música. Escurece. A música festiva deste final de cena se transforma em prefixo de noticiário. Eventualmente, poderá descer uma tela mostrando imagens correspondentes ao que está sendo narrado.). LOCUTOR I – Toda a Terra acompanha em suspense crescente o Dia da Paz. Conseguirão os homens passar 24 horas seguidas sem cometer, uma única vez, o crime de matar o seu semelhante? LOCUTOR II – Cada país, cada província, cada cidade, toma cuidados extremos, anda pisando em ovos, para que não seja cometido ali, o crime que desonraria para sempre aquele lugar. O Chanceler da Alemanha Ocidental declarou: “matar um homem é hoje um crime de lesahumanidade”. LOCUTOR I – Na décima terceira hora deste extraordinário dia, a humanidade inteira levou um susto enorme. O sueco Jans Nordhol tentou o suicídio, atirando-se nas águas revoltas do Mar Báltico. Depois de uma luta insana, ele foi recuperado e dorme, no momento, numa clínica de Stockholm. LOCUTOR II – O medo de arriscar a vida de um homem velho e bom desencadeou este milagre: o milagre da fraternidade e do respeito humano. Por toda a parte se vê o maior cuidado na maneira das pessoas se tratarem, a maior deferência: ninguém se empurra nas filas, ninguém passa na frente do outro para tomar a condução, os táxis e os garçons atendem com a maior cordialidade, os motoristas dirigem com extremo cuidado. Nunca se viu tanta delicadeza e boa educação no mundo... LOCUTOR I – Ninguém está bebendo demais; as brigas foram adiadas, o governo francês pediu encarecidamente a todos os casais que adiassem os eventuais encontros clandestinos... A paz reina no mundo. (Música.). CENA II Tarde do dia seguinte. Cenário o mesmo. Sara passando roupa. Sam meio quieto, andando de um lado para o outro. Irving no seu posto na porta da entrada da frente. Miriam como sempre vendo televisão. MIRIAM (Irradiando) – Tem um enorme placar em Times Square, com estatísticas: Inglaterra, vinte acidentes de carro, nenhum morto. Itália, cinco brigas numa partida de futebol em Milano, nenhum morto. Espanha, um homem encontrou sua mulher com outro, mas não a matou. Ela está apenas em observação no hospital. Revolução na Síria – dez militares presos e condenados à morte. Execução adiada por um dia. SARA – Chega Miriam, tá? Seu pai está nervoso. (Miriam se recolhe.). IRVING – Não é pra menos: o xerife está no portão queimando de impaciência. No que bater seis horas, ele invade isso aqui, pra levar todo mundo em cana. SAM – Todo mundo não, só a mim. IRVING – A mim também, que eu também colaborei. SAM – Neste caso ele vai ter que levar até Sua Santidade, pois o Papa defendeu o front do Leste. SARA – Falta muito ainda? IRVING – Poucos minutos. (O Rabino vem descendo a escada.). SAM – Como é? RABINO – Tão discutindo à beça, mas parece que o Papa já dobrou ele. Ele vai fazer o que o Papa quiser. SAM – E o que é que o Papa quer? RABINO – Não sei. SAM – Informar você sabe. RABINO – Eu não fui lá em cima pra ficar espionando. Fui pra fazer xixi. Não sou espião. SAM – Então mudou muito. SARA – Deixa ele, Sam. (Irving, subitamente, dá uma banana.) O que é isso? IRVING – É pro xerife, que lá do portão estava me mostrando umas algemas e apontando as horas. SARA (Abraçando Sam) – Oh Sam. SAM – Calma mulher. SARA – Seremos crucificados. SAM – Só por que não matamos o Papa? IRVING – Ainda é tempo. (Desce o Cardeal O’Hara com um ar solene.). SAM (Ansioso) – O que é que ficou resolvido? CARDEAL – Sobre o quê? SAM – Não sei. (O Cardeal vai até a porta. Olha.). CARDEAL – Por que o xerife está me apontando umas algemas? SAM – É pra mim. CARDEAL – Ahn. MIRIAM (Ressurgindo) – Na Suíça uma vaca caiu em cima de um homem. CARDEAL – Como? MIRIAM – De um barranco. Mas nenhum dos dois morreu. (Desce o Papa, todo paramentado. Um instante de silêncio.). PAPA – Bem, parece que está na hora. IRVING – O senhor está é bonito: parece o Papa mesmo. PAPA (Abraçando Sam) – Adeus, meu caro Samuel. SAM (Se ajoelha) – Santidade... (O Rabino tem um ataque de tosse. Sam para o Rabino.) Calma: é apenas homenagem de amigo. (Para o Papa.) Embora, no seu caso - o senhor é tão bom que com o senhor eu até me converteria. (O Rabino volta a tossir.). PAPA (Rumando para a sala) – Sara. (Abraça-a.). SARA – O senhor tem certeza que não ficou... com raiva da gente? PAPA – Claro que não. SARA – Quando chegar lá fora, não vai mudar de idéia e ficar com raiva? PAPA – Pelo contrário: quanto mais penso mais gosto de vocês. (Tira do bolso uma corrente e pendura em Sara.). SARA – Uma corrente... Com a estrela de David? PAPA – Recebi-a do Rabino de Jerusalém: é sua. SARA – Oh. IRVING – Este Papa é genial. PAPA – Doutor Feldman. (Aperto de mão.). RABINO – Muito prazer e desculpe qualquer coisa. PAPA – Espero-o em Roma, com o tabuleiro em riste. CARDEAL (Um pouco impaciente) – Está na hora, Santidade. Temos uma entrevista coletiva com a imprensa na ONU. PAPA – Já falou com ele? CARDEAL – Vou falar agora. (Miram surgiu da porta do quarto.). PAPA – Miriam. MIRIAM – Houve um terremoto no Japão, bem pequenininho, ninguém morreu. (O Papa beija Miriam.). MIRIAM – Me manda um cartão. PAPA – Mando sim. Obrigado por tudo. MIRIAM – Leva um pepino. (Dá-lhe o pepino.). PAPA – Vou comê-lo no almoço. (Miriam dá-lhe o prato todo.). MIRIAM – Aproveita e faz uma salada. (Microfonia. Ruídos de estática.). VOZ DO XERIFE (Pelo alto-falante) – Atenção Samuel Leibowitz. Falta um minuto para o término do prazo. Dentro de um minuto entramos pra te buscar. CARDEAL (Que se colocou ante o microfone, para Sam) – Está funcionando? SAM – Pode falar. CARDEAL – Atenção xerife. XERIFE – Quem está falando? CARDEAL – Sou eu, o Cardeal O’Hara. Sua Santidade, o Papa, pede para que os policiais aglomerados no portão da casa sejam retirados. VOZ DO XERIFE – Retirados? O senhor está delirando? Nós vamos entrar já e já vamos prender este motorista louco. CARDEAL – Não vai não, xerife. XERIFE – Vamos prendê-lo pelo crime de seqüestro e cárcere privado da pessoa de Sua Santidade, o Papa. PAPA (Ao microfone) – Não houve seqüestro, xerife. XERIFE – Como? CARDEAL – Sua Santidade apenas descansou dois dias na casa de velhos amigos. VOZ DO XERIFE – Como é isso? SARA – Sam. (Toma-lhe a mão.). PAPA – Xerife, o Cardeal O’Hara lerá para você a declaração oficial do Vaticano, que será entregue aos jornalistas na ONU. CARDEAL (Lendo) – Sua Santidade, o Papa Alberto IV, passou dois dias em recolhimento espiritual e repouso na casa de velhos amigos. Este fato desencadeou uma série de mal entendidos e boatos de um seqüestro, do qual teria sido vítima. O Papa admite que se tornou conivente com estes boatos, por omissão, ao ver que desencadeava uma inesperada união e solidariedade entre os homens. Reitera, porém, que nunca esteve detido contra a sua vontade, na residência do motorista Samuel Leibowitz, de quem é velho admirador e amigo. VOZ DO XERIFE – Mas que mentiroso! CARDEAL – Não houve rapto. Houve apenas uma sincera e aflita tentativa de apressar a paz entre os homens, que terá de vir um dia. (Sinos festivos.). MIRIAM – Acabou! Acabou o Dia da Paz! Ninguém matou ninguém! PAPA – Ajoelha Samuel Leibowitz... (Sam ajoelha. O Papa estende a mão e recebe do Cardeal um colar com uma cruz. Papa colocando-lhe o colar.) E ergue-te Cavalheiro da Ordem de São Sebastião. SAM (Comovidíssimo) – Papa! PAPA (Abraçando-o) – Meu filho. SAM – Eu, Samuel Leibowitz, condecorado pelo Papa! (Sara abraça Samuel.). SARA – Sam. PAPA – Você merece mais do que isto, Sam. (Vira-se e ruma para a saída. Passa por Irving, acaricia-lhe o rosto e sai. Sara foi abraçar Sam.). SARA – Sam. MIRIAM – Papai. IRVING (Da porta) – Cara legal! (Súbito ruído de tiros e sirenes pela televisão. Os sinos passam para segundo plano. A família reage.). LOCUTOR – E atenção para as notícias destes primeiros minutos após o Dia da Paz: combates encarniçados no Sudeste Asiático; Revolução na Bolívia; executados dez conspiradores na Síria; louco mata cinco e foge em Chicago. MIRIAM (Indo para a TV) – O que é isso? IRVING (Enfiando um palito na boca) – Nada. É o mundo que volta ao normal. FIM