HUMANISMO: fundamentos para uma outra socialidade

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HUMANISMO: fundamentos para uma outra socialidade
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HUMANISMO: fundamentos para uma outra socialidade
Alexandre Silva Virginio1
Y me cuesta trabajo entender por qué la enseñansa hoy, de un lado y del otro, del
lado de quien enseña y del lado de quien aprende, no está cumpliendo lo que debe
conceberse como la misión fundamental de la escuela: formar personas. Más que
formar abogados o ingenieros o financistas, o economistas o publicitarios o todo
eso, la gran tarea deberia ser formar personas (Saramago, 2002: p. 31).
Em tempos hodiernos, é possível reconhecer que a legitimidade da ação Estado ainda
é uma questão irresolvida. Vivemos um tempo de separação entre economia e sociedade,
entre os mecanismos de mercado, sem limites, e as organizações políticas, sociais e
culturais, cuja atuação e capacidade de diálogo e complementaridade apresentam, ainda,
alcance reduzido. Aqueles que decidem o fazem com atenção maior à eficácia econômica do
que com o desenlace social ou ambiental. O espaço público , bem como a cidadania, tem sua
essência cada vez mais associada a capacidade de consumo2. Não obstante, debates de
natureza pública são privatizados, ainda que sem exclusividade 3, pelos que tem poder. Em
outras palavras, o poder, de quem decide, encontra-se apartado da política, daqueles que,
mesmo que decidam, não tem acordo sobre o que seja de interesse público (BAUMAN,
2000; SANTOS, 2006; TOURAINE, 2006).
Podemos aceitar, nesta intersecção entre milênios, que, até bem pouco tempo, o
mundo que existia era o que aparecia na TV, tanto quanto nossos sonhos de consumo
estavam atrelados a necessidades familiares. Em paralelo, as indústrias culturais,
amplificaram o acesso aos bens e divertimentos culturais, apesar de levar a efeito a cultura
da obsolescência dos mesmos. Mais recentemente, a sociedade informacional substituiu o
mass media pelo self mídia. Agora todos (sites, blogs, fóruns comunitários, redes sociais,
celulares ...) podem produzir conteúdo cultural. A cultura, em realidade, se deslocalizou,
desregulou, descarrilhou. No ‘cibermundo hipertélico’ todos tem a liberdade de se projetar
como, quando e onde quiser.
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Segunda versão.
Doutor em Sociologia/UFRGS; Professor do Depto. de Sociologia/UFRGS; Colaborador externo do Grupo de
Investigação de Pedagogia Social e Educação Ambiental da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade
de Santiago de Compostela – Galicia/Espanha e da Ong Povoacão: Educação Cidadã. Contato e-mail:
[email protected] Fones: 51-33685034 e 51-99711942.
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A compulsividade pelo consumo, que pode ser identificada como uma inclinação emocional para a repetição,
fragiliza os laços com a moralidade e com a consciência de nossa interdependência social e ambiental
(GIDDENS, 1997).
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Não é desconhecido, neste sentido, o potencial político que o mundo virtual pode significar. Para além das
possibilidades de emergência de uma inteligência coletiva, com real impacto das „infovias‟ na vida política ou o
desenvolvimento de novas formas de comunicação, regulação ou cooperação (LÉVY, 1994), a „primavera árabe‟
é o exemplo mais recente de sua dimensão objetiva.
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O problema é que esta liberdade ilimitada vem acompanhada pela hiperabundância
que deixa o sujeito desorientado. A questão que se coloca, em uma sociedade que está
preocupada com o que pode ser comercial e não com a formação de espíritos, em produzir e
consagrar estrelas e celebridades (o que, para alguns, significa, tão somente, tornar-se
conhecido, sem qualquer outro mérito particular!) do que elevar o nível cultural dos sujeitos,
é como educar em um mundo com informações em excesso (LIPOVETSKY & SERROY, 2011).
O mais preocupante é que, enquanto os públicos desta cultura em profusão se
formam em ambientes condicionantes cada vez mais complexos, as políticas culturais e
escolas formam leitores de livros que, o mais das vezes, são incompatíveis com a embriaguez
provocada pela telemania, pelo mundo das marcas, pela moda policentrada, pela múltipla
gastronomia, pelas diversas práticas expressivas, pela solidão compensada pela literatura de
auto-ajuda e pelos bichos de estimação. Em realidade, assistimos o campo da cultura, cada
vez mais, submetido aos interesses do mercado, das corporações, dos monopólios e das
transnacionais.(LIPOVETSKY & SERROY, 2011; YÚDICE, 2010; CANCLINI, 2008).
Esta realidade, já não tão recente, desencadeia mudanças nas relações sociais e
culturais contribuindo, sobremaneira, para intensificar e diversificar o consumo. Nas
organizações a hierarquia vertical dos que comandam a organização do trabalho passa a ser
paulatinamente suplantada pelos que detém as informações. A autoridade é substituída pela
meritocracia e o consumo é orientado segundo a publicidade quanto ao que se produz e
como se produz. A marca deste novo modelo é a inovação cultural. Estas inovações
encontraram um campo com poucas resistências e com alterações nas idéias morais
explicando, assim, a existência de um clima de liberalismo e permissividade 4. Quanto às
relações de dominação, as empresas e seus dirigentes, os tecnocratas, reforçam seu papel
político, tomando decisões, quando não impondo políticas e legislação ao Estado e
exercendo poder por sobre os assalariados (TOURAINE, 1988).
Em síntese, o contexto acima é produto da equação do que Santos (1997) chamou de
tensão entre regulação e emancipação na definição da conotação dos processos de
construção de subjetividades e sociabilidades. Neste sentido, o contexto atual é revelador de
um excesso de regulação que, através da normalização tecno-científica, da burocratização da
política e da colonização das subjetividades pelo princípio do mercado, sobrepõe-se à
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A vida social é cada vez mais marcada por movimentos diários e frívolos em busca da satisfação „aqui e
agora‟, própria de um hedonismo radical. Vivemos o tempo da agregação social pela emoção e pela conjunção
de elementos sensuais, da valorização da aparência e daquilo que é festivo, do lúdico, pois que o „estar-junto‟
com os outros é que define a pertinência de nossas escolhas e a conotação de nossa socialização. Trata-se de um
modo de vida e de um mundo da vida cuja unicidade deve ser tomada a partir da forma, do simulacro, da
estética, sobretudo corporal, porquanto banal, efêmero e superficial. Em suma estamos mergulhados em um
inconsciente coletivo marcado pelo senso comum intuitivo onde a socialidade se dá pelo desejo de imitar o
outro, de ser como o outro. Ou seja, seríamos algo como „pensados‟ e não „pensantes‟. Em decorrência, a
identidade entre o „eu-sozinho‟ e o „eu-coletivo‟ ocorre, mesmo que não absolutamente, em um continente de
conformismo e inconseqüência (BAUMAN, 2008; MAFFESOLI, 2005; 2007).
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possibilidade de emancipação a partir da racionalização e da secularização da vida coletiva,
seja através do direito, da ciência ou mesmo das artes.
O que é mais inquietante talvez seja o fato de que o cognitivismo instrumental e/ou
positivista da ciência 5 colonizou outras formas de racionalidade sufocando, seja a reflexão
filosófica, seja o significado da democracia de massas. Como nunca antes, o conhecimento e
a informação, e suas múltiplas articulações, passam ser utilizados para se definir os
encaminhamentos que conduzem o sistema social. Daí a ascensão do setor de informação e
impulso da informática. Nesta medida, a decadência das ciências sociais, bem como do
humanismo, encontra paralelo no distanciamento da idéia de formação no sentido cultural,
como instrumento de criação de capacidades de expressão, de sentir, de imaginar, de atuar,
de inaugurar a partir de critérios de autonomia, liberdade, racionalidade, respeito, bom
senso, bem comum (SACRISTAN, 2007; MORIN, 2000).
Não é insensato reconhecermos que vivemos em uma sociedade da incerteza
e do risco (GIDDENS, 1997; GIDDENS, 1999) onde arriscar, diante de um mundo em
constante e veloz transformação dos processos produtivos e sociais, passa a ser, muitas
vezes, decidir entre a inclusão e a exclusão social, entre o fazer o que se precisa e o que se
gosta, entre o prazer individual e a indiferença social, entre o manter-se vivo e o ter
cidadania, entre a vida e o abandono da mesma, entre a dominação e a emancipação social.
Em outras palavras, A modernidade, como resultado da interconexão das influências
globalizantes, principalmente da mídia, e as disposições pessoais é que tem provocado a
oscilação entre a confiança e o risco.
Em acréscimo, temos que reconhecer que este é um risco “fabricado”. Os impactos
sócio-ambientais – poluição, contaminação e/ou degradação do solo, da água e do ar em
enlace com a reprodução das várias formas de pobreza (material, cognitiva e política) revelam a socialização da natureza, não como identificação de uma relação complementar
mas, o que pode ser devastador e irreversível, como uma intervenção na própria geração
espontânea da natureza (WALLERSTEIN, 2002; GIDDENS, 1999). Vivemos o contraditório de
caminharmos para uma ordem cada vez mais humana e que cada vez mais compromete sua
própria reprodução, quando não a biosfera inteira do planeta (JONAS, 2006; GIDDENS,
1997). As passagens a seguir nos ajudam a compreender o cenário em causa.
A crise moral de nosso tempo é uma crise do pensamento iluminista. Porque,
embora esse possa de fato ter permitido que o homem se emancipasse “da
comunidade e da tradição da Idade Média em que sua liberdade individual estava
submersa”, sua afirmação do “eu sem Deus” no final negou a si mesmo, já que a
razão, um meio, foi deixada, na ausência da verdade de Deus, sem nenhuma meta
espiritual ou moral. Se a luxúria e o poder são “os únicos valores que não precisam
da luz da razão para ser descobertos”, a razão tinha de se tornar um mero
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Convertida em força produtiva no capitalismo.
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instrumento para subjugar os outros [...] A nossa sociedade produz esquizofrênicos
da mesma maneira como produz o xampu Prell ou os carros Ford, com a única
diferença de que os esquizofrênicos não são vendáveis. (HARVEY, 1989, p. 47-57)
Hoje em dia, as ações cotidianas de um indivíduo produzem conseqüências globais.
Minha decisão de comprar uma determinada peça de roupa, por exemplo, ou um
tipo específico de alimento, tem múltiplas implicações globais. Não somente afeta
a sobrevivência de alguém que vive do outro lado do mundo, mas pode contribuir
para um processo de deterioração ecológica que em si tem conseqüências para
toda a humanidade. Esta extraordinária – e acelerada – relação entre as decisões
do dia-a-dia e os resultados globais, juntamente com seu reverso, a influência das
ordens globais sobre a vida individual, compõem o principal tema da nova agenda.
(GIDDENS, 1997, p. 75)
Em resumo, o que as interpretações acima assinalam é que a perspectiva teleológica
da existência humana encontra-se confinada no arquipélago da técno-ciência e cuja
dinâmica de reificação não é outra, para além do diálogo com outros subsistemas, senão a
reinvenção permanente. Ou seja, a tecnologia, parte inseparável da evolução humana,
desfilia-se desta e passa a existir como um fim em si mesma. Neste compasso, a atuação
antrópica fica refém do que pode aportar à ciência, de modo que a mesma lhe propicie o
que ainda não existe. Em confluência, o consumismo, o hedonismo radical, a subjetividade
superficial e permissiva, revelam um modo de vida cuja felicidade, pessoal e presente, não
resiste às juras de um outro presente que está logo ali, no futuro, com a promessa de ser
mais dinâmico, ainda que também portador, em suas entranhas, do que seja venenoso e/ou
deletério.
Interdependência de saberes: Ciência se produz em sociedade.
A prática científica nos leva à irresponsabilidade e à inconsciência total. O que nos
salva é que, felizmente, temos uma vida dupla, uma vida tripla; não somos só
cientistas, também somos pessoas em particular, também somos pessoas em
particular, também somos cidadãos [...], então, podemos, nas nossas outras vidas,
ter imperativos morais [...] (MORIN, 2000a).
Este contexto não está, no entanto, preso a determinismos. Entrementes, despertar
a preocupação com as conseqüências que comprometem a sobrevivência da vida, isto é,
atender o princípio da prudência, requer, dentre outras questões, evitar que o saber
previdente continue a ser ofuscado pelo saber técnico; reconhecer nossa ignorância e a
necessidade de controlar nosso excesso de poder; ter coragem de ter medo; compreender
que toda natureza é cultura, ou ainda, da superação da dicotomia ciências naturais-ciências
sociais, bem como da aproximação do discurso científico dos discursos artístico e literário,
quando não e sobretudo, humanístico (JONAS, 2006; SANTOS, 2000).
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Tal empresa é tão mais plausível se consideramos que há certo grau de influência dos
fatores sócio-culturais e históricos no desenvolvimento da ciência – inclusive daqueles que
impediram tal desenvolvimento - reconhecendo os efeitos de uma base existencial na
determinação do conhecimento. Na perspectiva Mertoniana, a produção científica é
interdependente de outras esferas, como por exemplo, a econômica, a moral e a religiosa
(LIMA, 1994). No que se refere a isto podemos aceitar que há incidência do contexto sóciocultural, tanto na definição dos problemas a resolver, quanto sobre o pensamento e as
escolhas dos cientistas (KUHN, 2003; BOURDIEU, 1983).
Tendo isto em conta, a tarefa em causa refere-se a possibilidade da emancipação
social. Sua configuração cumpre a expectativa de ser resultado de subjetividades individuais
e coletivas capazes de, além de constituí-la, lutar por ela. Esta é uma das questões que
levaram Santos (2000; 2004) a assinalar a necessidade de rompimento com o paradigma
cartesiano de modo que se possa, uma vez livre do princípio de causalidade linear, delinear
novas e impensadas perspectivas analíticas que venham a culminar na construção de
perspectivas plurais, porquanto profundamente cosmopolitas e radicalmente democráticas,
aptas a congregar energias suficientes para fazer ganhar realidade, um outro ethos de vida,
um outro conceito de emancipação social.
Esta emancipação social, pelo que expusemos até aqui, possui um cáriz singular. Ela
diz respeito a constituição de uma determinada socialidade. A socialidade deve ser pensada
como todas as formas de relação ou de interação que favoreçam a constituição do indivíduo
social, isto é, do ser sujeito. Em essência, seriam aquelas trocas ou situações interpessoais, e
com o mundo, marcadas por uma profunda identidade entre a esfera privada e a esfera
pública. A emergência deste sujeito sugere que reconheçamos nele a indiferenciação entre
individualidade e socialidade, entre dever e querer, entre indivíduo e humanidade, entre
homem e natureza, cuja autonomia de ser sujeito estaria condicionada pela consciência
sensível da reciprocidade de sua intervenção na realidade, seja esta social ou natural. Esta
autoconsciência seria responsável pelo cuidado simultâneo para com o oicos e com a pólis.
A construção desta socialidade ou emancipação do indivíduo significa que o mesmo,
para emergir, cumpre superar os obstáculos colocados a sua automediação e
autodeterminação com a realidade pela sociedade capitalista. Este objetivo exige que
tarefas estratégicas e de longa duração, capazes de desencadear mudanças múltiplas,
complexas e processuais, venham a desembocar na insubmissão ao interesse utilitário, na
intersecção entre interesses individuais e interesses coletivos. Este objetivo tem sido
perseguido, ainda que por vezes imperceptível, em todas as formas de crítica e de
resistência à instrumentalidade capitalista, quando não de natureza contra-hegemônica.
Nesta perspectiva, a ampliação dos espaços públicos de poder surge como premissa
estratégica na tentativa de reaproximar indivíduo e sociedade (CASTEL, 1998; SANTOS, 2002;
MESZÁROS, 2006; TOURAINE, 2006).
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Esta definição sugere discernir o significado deste espaço público, tanto quanto os
elementos necessários a um projeto humanístico destinado a superar a fragmentação e
isolamento do saber científico, seja de outros saberes, seja das conseqüências insustentáveis
de sua utilidade.
Reinventar o espaço público
Todo colectivo tiene que disponer de un espacio en La esfera pública para existir
privadamente (VIDAL-BENEYTO, 2006, p. 19).
A clareza não procede do grau de estudo ou do conhecimento teórico sobre
determinado assunto, mas brota da própria convicção que, por sua vez, tem a ver
com as limitações e necessidades sentidas no cotidiano (STRECK, 2005, P. 109).
O atual ‘estágio das forças produtivas’ tem alargado o alcance dos progressos da
modernidade ao mesmo tempo em que, inversamente, tem convivido com ausência das
condições de cidadania para uma grande maioria da população mundial. Em realidade, o
emblemático desta nova realidade política talvez seja, ao contrário do que se previa a bem
pouco tempo atrás, a submissão dos governos aos interesses do ‘governante supra-estatal
privado’ que, além de se beneficiar diretamente dos recursos públicos1, esperar que o
Estado cumpra sua função, dentre outras, de criar espaços econômicos para a atividade
privada e de atender os excluídos do bem estar econômico de modo que o sistema siga seu
curso ‘normal’ (MAURIEL, 2010; CANCLINI, 2008a; GARRETON, 2003).
No entanto, o que a dinâmica societária tem demonstrado é que somos chamados a
dialogar com o mundo das possibilidades com poucas certezas no bolso. De acordo com
Daniel Bensaïd (2008), vivemos uma época de grande transição. Trata-se, segundo ele, de
um grande intervalo entre um curto século XX inaugurado pela Primeira Guerra Mundial e
pela Revolução Russa e encerrado pela queda do Muro de Berlim e pela desintegração da
URSS. Desde então vive-se sobre um intervalo entre o ‘não mais’ e o ‘ainda não’, em que o
antigo ainda não acabou e o novo sofre para emergir. Mais do que um tempo de falência de
utopias o que se vê é a indeterminação de seu conteúdo e a ignorância sobre os meios de
atingi-la. Conforme sustenta (2008, p. 22):
Eis que embarcamos em uma transição incerta, em que o velho agoniza
sem ser abolido, o novo pena para eclodir, entre um passado não ultrapassado e a
descoberta balbuciante de um novo mundo em gestação. Nessa passagem difícil, a
tentação de se apegar a poucas conquistas de eficácia comprovadamente polêmica
seria tão estéril quanto aquela tabula rasa, que pretenderia (re)começar tudo a
partir do nada. É como antigo que realmente se faz o novo.
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Em realidade, o que este autor, de forma razoavelmente lúcida, antepõe à hipostasia
da desesperança, do egoísmo desenfreado, do cinismo dos vencedores e do hedonismo
triunfante são alguns teoremas da resistência dos quais destacamos a centralidade do
pensar estratégico diante da estetização da política, incapaz de oferecer respostas às
pressões do horror econômico e à erosão da cidadania. Um dos desafios colocados à
necessidade histórica de construir passos em direção a um futuro menos incerto seria
pensar o que é possível e ainda não realizado. Nas palavras de Bensaïd (2008, p. 28,29,31):
A arte da decisão, do momento propício, da bifurcação aberta para a
esperança é uma arte estratégica possível. Não o sonho de uma possibilidade
abstrata, em que tudo que não é impossível seria possível, mas a arte de uma
possibilidade determinada pela situação concreta: sendo cada situação singular, o
momento da decisão é sempre relativo a essa situação, adaptado ao objetivo a ser
atingido. Indo além das antinomias formais do sujeito e do objeto, da estrutura e
do acontecimento, do material e do simbólico, do previsível e do imprevisível, a
razão estratégica é a arte da resposta apropriada. Ela não domina a situação. Não a
sobrevoa. Não a sobrepuja. Enraíza-se nela para novamente pôr em questão as
regras e as normas estabelecidas [...]
A dialética da emancipação não é uma marcha inevitável rumo a um fim
garantido: as aspirações e as expectativas populares são variadas, contraditórias,
freqüentemente divididas entre uma exigência de liberdade e uma demanda de
segurança. A função específica da política consiste em articulá-las e conjugá-las por
meio de um futuro histórico cujo fim continua incerto.
Em meio às ilusões de um futuro fechado e a sensação de viver sob o mito do eterno
retorno, a função da educação talvez seja fazer ver que vivemos uma época de crise histórica
e que, como toda crise, apresenta uma positividade intrínseca, qual seja, de que o mal-estar
vivido pela cultura e pela civilização abre brechas em direção a não fatalidade do futuro e à
irrupção de acontecimentos não premeditados ou imprevisíveis. Um certo curso ‘natural’
das manifestações da natureza é razoável considerar inaudível aos nossos possíveis
descontentamentos. Quando muito podemos estudar e apreender suas probabilidades de
modo a melhor poder lidar com seus desdobramentos. Inversamente, no âmbito do mundo
social podemos definir sua conotação a partir de nossas interpretações, escolhas e ações.
Em outras palavras, “[...] aquilo que podemos compreender plenamente, porque foi nós – ou
seja, os que foram ou são como nós – quem o ‘fizemos’, também podemos transformar ou
reformar de acordo com projetos que compartilhamos” (SAVATER, 2004, p. 132).
Com efeito, a recuperação do espaço público como espaço de atuação política do
sujeito-cidadão, em contraposição sujeito-consumidor/hedonista, pretende representar o
que pode ser um antídoto a este contexto. Se a privatização do espaço público tem
avançado sobre todas as esferas do Estado e da Vida, as instituições educacionais
democráticas tem um desafio enorme no sentido de fortalecer a cultura dos cidadãos de
modo que estes possam aprofundar sua capacidade de interpretação da realidade, senão de
fazer a crítica da mesma, de modo a poder discernir que interesses as decisões políticas
institucionais estão a atender, e de modo a tornar mais visível, o poder inerente a soberania
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popular. Esta perspectiva está ancorada na premissa de que o acesso e a construção do
conhecimento estão intimamente relacionados com os efeitos de poder 6.
Esta perspectiva talvez possa elucidar, em nossa contemporaneidade, a magnitude
do desafio que envolve o acesso à educação como um direito. Qual seja, menos como
cálculo formal de acesso ao mundo das letras ou de um trânsito pelo mundo da
expressividade, e mais como o pressuposto sem o qual o desenvolvimento pessoal e social
se distancia das múltiplas, instáveis e incertas, e talvez impensáveis, variáveis que o mundo
das possibilidades oferece. Mais do que isto, a educação como processo de humanização
pressupõe a inserção dos indivíduos na ‘humanidade’, edificada nas experiências da
linguagem, na escrita, na música, na literatura, nas artes7 ... Hannah Arendt (1995, p. 59)
sugeria que
[...] nenhuma atividade pode tornar-se excelente se o mundo não proporciona
espaço para o seu exercício. Nem a educação, nem a engenhosidade, nem o
talento pode substituir os elementos constitutivos da esfera pública, que fazem
dela o local adequado para a excelência humana.
A crise da esfera pública - como, de resto, de uma certa relação com a política decorre do fato de que o status e a recompensa social foram objetificados e unificados pelo
dinheiro. Aqui reside a pertinência da perspectiva de Pontual no sentido da abertura de
novas esferas de participação, diálogo e deliberação na constituição do que ele (2010, p 2)
chamou de “[...] processo progressivo de publicização do Estado e de desestatização da
sociedade”. Trata-se, segundo ele, de reconhecer as propriedades da contribuição da
sociedade civil para a proliferação de práticas participativas nos espaços públicos 8. Seu
significado se funda na idéia de que o que é de interesse comum, tanto a definição de seu
conteúdo, quanto nas perspectivas dispostas para o seu desenvolvimento, não cabem mais
no diálogo ‘ou/ou’, ou pertinente ao Estado, ou afeta à sociedade. O que as emergentes
práticas de cidadania ativa e/ou participação cidadã demandam é uma outra equação, ‘e-e’,
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Os saberes e as relações construídas a partir da maior ou menor familiaridade com os conhecimentos científicos
interfere, o mais das vezes, como filtro teórico de análise da realidade. Em outras palavras condiciona o enfoque
interpretativo da sociedade. [...] O poder de conhecimento especializado está no fato de não ser apenas
conhecimento. As idéias funcionam para modelar a maneira como participamos como indivíduos ativos e
responsáveis. Tal fusão do conhecimento público/pessoal que disciplina nossas escolhas e possibilidades pode
ser pensada como os efeitos de poder (POPKEWITZ apud DEMO, 2002, p. 72).
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O mundo do texto é um dos mecanismos que podem contribuir sobremaneira para desestruturar os consensos
da e na vida cotidiana, intensificando as contradições internas dos sujeitos no sentido de alargar a relação que faz
do mundo da realidade com o mundo das possibilidades (RICOEUR, 1977). Em sentido congruente, a literatura
é uma forma de apreensão do real que estabelece uma ruptura com a linguagem cotidiana. Através da ficção
perspectivas outras, distintas das presentes na vida cotidiana, abrem-se à possibilidade de ser-no-mundo. A
ficção e a poesia são aríetes potentes no trabalho de levar o mundo das possibilidades para o interior do real. O
universo da expressão incide não mais somente sobre o ser dado, mas sobre o poder-ser. Nas palavras de
Ricoeur, . . . a realidade cotidiana se metamorfoseia em favor daquilo que poderíamos chamar de variações
imaginativas que a literatura opera sobre o real (1977, p. 57).
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Podemos atribuir a participação cidadã os efeitos de vários organizações da sociedade civil, dos movimentos
sociais às ONGs. Suas ações e demandas tem potencializado a necessidade de controle e incidência sobre a
conotação das políticas públicas e/ou estatais. No caso de Porto Alegre/RS, que nos parecer que o movimento
“Massa crítica” - Movimento de celebração da bicicleta como forma de transporte - talvez possa ser invocado
como um exemplo digno de nota.
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onde a gestão do que seja público congrega o conteúdo da comunicação democrática entre
comunidade e sociedade política.
A demanda por uma formação humanística
Talvez todos nós necessitemos de um limite inelutável de nossa expectativa de vida
para nos incitar a contar os nossos dias e fazer com que eles contem para nós
(JONAS, 2006, p. 59).
Nestes termos, quem sabe a intersecção entre o espaço público e o contexto privado
possa merecer outras iniciativas, ancorada e capitaneadas por um outro diálogo cultural
envolvendo e reconhecendo, em princípio, a contribuição do humanismo para a formação
humana, edificada na necessidade do fortalecimento do espírito democrático e cooperativo,
no estímulo à participação e ao protagonismo, na centralidade do diálogo para o exercício da
boa convivência, na valorização de saberes distintos e no significado dos direitos humanos
para a dignidade humana e sobrevida do planeta.
No que respeita a natureza do espírito democrático e cooperativo podemos invocar
as contribuições de Karl Mannheim e de Marcos Arruda. Em outra oportunidade já
atribuímos relevo as suas contribuições (VIRGINIO, 2012). Mannheim (1962; 1972), registra o
potencial que pode ser aportado à imaginação e à criação de oportunidades por uma
educação fundada em valores democráticos, premissa para que o indivíduo possa
desenvolver a liberdade, a autodeterminação ativa, germe da mudança social. Neste
sentido, a formação humana requer criar as condições para a emergência de uma
consciência e personalidades democráticas de modo a interferir na conotação dos termos
que definem os processos de socialização. A perspectiva considerada aqui é a de que a
socialização ocorre em um contexto intersubjetivo, portanto como um processo sem fim
onde o indivíduo pode negar a integração normativa, ou ainda os padrões de ação e de
personalidade básicas, e assumir outro modelo de atuação tendo por alicerce outras razões
para sua ação.
No entendimento de Mannheim (1972), esta outra sociabilidade estaria ancorada
numa idéia de cidadão cuja personalidade, modo de vida e idéias manifestaria uma
disposição em cooperar, em respeitar a personalidade do outro 9, em primar pela política em
9
Na relação com o outro – em especial o mais fraco – temos uma relação de reciprocidade, sobretudo de
reconhecimento, senão de dependência, visto que o que somos decorre de nossas relações sociais. A
intensificação de nosso intercâmbio social significa a potencialização de nós mesmos. Siempre necesitamos a
alguien que nos necesita (TODOROV, 2008, p. 150). Em outras palavras, não pode haver plenitude fora da
relação com os outros, base da felicidade. Com efeito, nossa existência é sempre em referência ao „tu‟. Nestes
termos, assumir a responsabilidade pela existência do outro é uma questão ontológica, uma questão ética. Ética,
mormente, pois que envolve a escolha de assumir a responsabilidade por ter responsabilidade para com este
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detrimento da manipulação, da violência ou do exercício do poder pela força, que busca a
integração contínua de diferentes propósitos e que, ao fazê-lo, mostra-se permeável ou,
quando muito, de divergir simpaticamente, de apresentar outros objetivos e alvos expressos
na vida em comum. O progresso democrático decorreria então de uma educação para a
participação democrática, para a divisão de responsabilidades e para o fomento à
espontaneidade e a supressão das inibições da inteligência. Aqui temos o fundamento para
as descobertas intelectuais, para as novidades criadoras, para soluções mais adequadas,
para outras possibilidades de experiência de vida.
Viver em cooperação, aliás, é da natureza humana. A consciência do fluxo
interdependente entre o ser humano e o cosmos realça o peso das escolhas humanas sobre
o desenrolar da vida. A emergência desta consciência não deixam a competição e o egoísmo
livre de restrições. Como atributos humanos, a inteligência, a vontade, a emoção, os
sentidos não materiais, a consciência reflexiva desafiam para a construção de planos
superiores de existência. O julgamento moral que fazemos das injustiças e das violências de
toda ordem revelam nossa propensão à cooperação. É justamente a relação de
complementaridade com o outro o fato que suscita o sentido da alteridade. A própria
evolução da humanidade só foi possível em função dos crescentes processos de partilha,
cooperação e solidariedade consciente (ARRUDA, 2003).
Por decorrência, a percepção de que toda a sociedade humana é de fato baseada no
altruísmo recíproco é desafio colocado à educação, sobretudo no ato de fazer dos sujeitos
co-autores em sua evolução. Se inteligência e comunicação podem ser consideradas como
predisposições humanas, há que se reconhecer que são passíveis de potencialização. Esta é a
tarefa da educação, desenvolver nossos sentidos e reforçar as tendências de socialização e
ultra-humanização. Neste processo, nossas diferenças e/ou conflitos podem ser
equacionados a partir da construção de um outro núcleo da ética, também empreendimento
projetado à educação. Uma ética fundada na colaboração, na solidariedade, reafirmando o
direito a todos a um seguro comunitário diante dos erros, das incertezas e das desventuras
pertinentes à dinâmica da vida individual, tanto quanto na comunhão profunda em relação
ao nosso destino (BAUMAN, 2003). Em nosso juízo, beira a insensatez não reconhecer o
valor das humanidades para a educação e/ou formação humana. Conforme Arruda (2003, p.
247), seu potencial está, no que se refere aos que estão em processo de aprendizagem, em:
ajudá-los a libertar-se de si mesmos, a identificar-se plenamente com os outros e o
mundo como parceiros do conhecimento até o ponto de ‘despertar-se do próprioEu’ e adotar uma intencionalidade ‘sem-intenção’. Esta é a arte não apenas de ‘ser
profissional’ em qualquer coisa mas, mais ampla e profundamente que tudo, esta é a
arte de viver. E, [...] a única forma de ensiná-la é vivendo-a.
outro. Fazer aprender esta responsabilidade, uma vez que não é resultado natural das relações sociais, faz-se
desafio colocado à educação (BAUMAN, 2009).
11
Esta vivência remete aos méritos da participação, do protagonismo, da cidadania
ativa. A formação humanística serve, amiúde, para instigar o trabalho de imaginar formas
alternativas de organização da vida em sociedade que podem, em certa medida, fazer
prosperar a autonomia, a autoria e o diálogo horizontal dos sujeitos com a tecnologia, com
outros saberes e com o mundo. Sua efetividade, por sua vez, depende da capacidade das
pessoas em exercer seu protagonismo (VIRGINIO, 2012). Não é por outra razão que a
natureza deste novo espaço público não pode prescindir da oferta de espaços e tempos de
formação, porquanto participação é aprendizado constante. Outrossim, desta participação e
formação deve brotar o entendimento de que não há poder que não tenha sido delegado de
baixo para cima.
Algumas idéias poderiam, ex ante, estar associadas a esta perspectiva. Com razoável
desejo de êxito, podemos sugerir que participação refere-se a ser sujeito e não objeto de
desenvolvimento. Tem a ver com auto-promoção, crescente conquista de participação na
solução de problemas. É sentir à vontade para dizer sua palavra. Está associada a autogestão
e co-gestão. É auto-sustentação, antídoto ao assistencialismo. É um existir como conquista,
um constante vir a ser e que, como tal, será tanto melhor se produto da consciência e do
compromisso para com sua formação. Participação demanda diálogo aberto entre e com
todos os interessados. Tal participação faculta organizar-se par se ter vez e voz. É garantia
de que as divergências serão negociadas de igual para igual. É fazer-se cidadão, consciente
das injustiças e dos modos de superá-las. Mais do que isto, é gerir seu próprio destino
(DEMO, 1996).
Em suma, a participação em sentido pleno é caracterizada pela mobilização efetiva
dos esforços individuais para a superação de atitudes de acomodação, de alienação, da
marginalidade, e reversão desses aspectos pela eliminação de comportamentos
individualistas, pela construção de espírito de equipe, visando a efetivação de objetivos
sociais e institucionais que são adequadamente entendidos e assumidos por todos. É nela
que se funda a execução democrática do poder, a vivência da noção de direitos e deveres e a
fiscalização sobre o papel e as ações do Estado. Como processo de qualificação da
intervenção e do poder das pessoas, é pedra angular na construção da cultura democrática.
Quanto mais não seja, oportuno não esquecer o que assevera Morin. Para ele ”(2000a, p.
324): “Todos os nossos fantásticos mitos que nos garantem uma vida além da morte, vêm de
nossa resistência de sujeitos a nosso destino de objetos.”
A contribuição da participação nos ‘fóruns formativos’, dos e entre os sujeitos, pouco
significa se não estiver associada ao que pode acrescer o diálogo. Pelo contrário, ela correria
o risco de ser inefetiva. Nesta perspectiva, gostaríamos de sustentar que o diálogo em forma
de palavra é apenas uma das maneiras de ele existir. Tendo como pressuposto a presença
de um emissor e um receptor de uma mensagem, portanto de uma idéia ou conjunto de
idéias, cujo sentido e significado é compartilhado por ambos, o diálogo pode se manifestar
12
de várias maneiras. Assim, dialogamos através do olhar, de um gesto, de um suspiro, de um
grito, de um toque, do afeto, enfim, de toda uma hexis corporal (BOURDIEU, 1996).
De toda forma, parece-nos inconfundível que o diálogo, dependendo das condições
em que se efetiva, é fator de estímulo à reflexão e ao pensamento. O diálogo permite
escutar, divergir, debater, criticar, negociar, deliberar, estabelecer consensos, contraargumentar, expor dúvidas e confirmar certezas, contrastar, valorizar e buscar respostas,
edificar responsabilidade, construir credibilidade e confiança, como também é parteiro da
novidade, do pensamento inusitado, da criação do novo a partir do conhecimento e da
crítica do velho. Ou ainda, em outras palavras, o diálogo é própria manifestação da
comunicação, do diverso e do controverso, da assertiva e da contrariedade, da denúncia e
do anúncio, do ato de comunhão de saberes que propicia o movimento e o momento da
gênese do que até então habitava o impensado ou o imemorial.
Portanto, talvez mudar a nossa forma de pensar seja a questão central a que o
diálogo procura conferir uma possibilidade de resposta. Para que ocorra o diálogo, portanto,
será preciso que suspendamos temporariamente nossos pressupostos de modo que aqueles
que dialogam possam duvidar do que estão pensando, que possam visualizar o que estão
pensando e os resultados de seu pensamento. O grupo de diálogo funciona para o indivíduo
como se fosse seu espelho de modo que o mesmo perceba suas intenções. À esta suspensão
de pressupostos pelos sujeitos Bohm (2005) chamou de ‘propriocepção do pensamento’, o
que significa auto-percepção. Por decorrência, a função precípua do diálogo seria a
construção de significados comuns que, uma vez compartilhados, conferem identidade
cultural ao grupo. De acordo com este autor, a congruência dos significados concorre para a
emergência de uma outra cultura, demarcadamente genuína.
No entanto, o sucesso do diálogo, como mecanismo de partilha de opiniões e de
construção de significados comuns, exige a transposição de algumas dificuldades. De acordo
com Bohm, temos que limitar a fala reiterada daqueles que tem necessidade de se autoafirmar, favorecer a fala dos que sofrem de baixa auto-estima, frear aqueles que já querem
decidir sem dialogar o suficiente. Para estas dificuldades talvez a garantia de que todos
falem possa contornar a situação. “Um grupo de diálogo não julgará ou condenará:
simplesmente olhará para todas opiniões e pressupostos e deixará que eles venham à
superfície. E creio que uma vez lá eles podem se modificar” (BOHM, 2005, p. 86).
Da mesma forma, os signos e as palavras pelos quais se expressa o diálogo tem que
possuir uma mesma significação para quem dialoga. Se aquele que pretende contribuir para
a aprendizagem do outro não se faz entender não temos diálogo, temos somente o anúncio
unilateral de uma certa visão de mundo. Visão esta que não pode ser nunca impositiva ou
fechada à questionamentos. Associada à formação humanística é a decifração, de quem
13
escuta, da mensagem de quem espera ser entendido em sua comunicação 10. Somente se
conseguimos dar significação ao significado podemos interpretar a mensagem,
compreendê-la, talvez criticá-la e, no momento em que o faz, criar a possibilidade de recriála.
A tarefa de quem dialoga é construir um processo comunicativo onde os signos e/ou
palavras do diálogo tenham um significado comum aos sujeitos que se comunicam.
Comunicação é co-participação dos sujeitos no ato de pensar (FREIRE, 1977). Neste diálogo,
assim construído, encontramos o reconhecimento da diferença em seu conteúdo
emancipatório, pois que revela já a possibilidade de que todos tenham voz para apresentar
sua interpretação sobre o significado da realidade o que, muitas vezes, define as razões e a
qualidade da disputa política e da luta (SANTOS, 2002). Muitas vezes para esta possibilidade
ter lugar haverá, sobretudo para aqueles acostumados a emitir sua mensagem, autoregulação e sensibilidade de modo a permitir que o silêncio possa ‘falar’. Como sustenta
Rosa (2002, p. 33).
[...] hemos que forzarnos a vivir momento de silencio (y ES muy difícil callarse), y
esperar que salte La chispa em cualquier parte del grupo, para de ahí todo va
rodado, se CREA paulatinamente um nuevo clima de participación grupal y
entonces lo difícil es callar a la gente que por tanto tiempo estuvo callada.
Some-se a isto o desafio de buscar, no diálogo, uma partilha tal de percepções da
realidade na qual os saberes que entram no curso das frases que se cruzam vão se recriando
na medida mesmo que vão se refazendo a partir da ressignificação produzida pelo
desassossego que permeia o confronto, ou até mesmo o reforço de idéias e pensamentos.
Revela-se numa variação contínua cujo objeto é o (re)conhecimento do conhecimento que
se conhece. Tudo isto produzido por um ambiente de paciência e tolerância, na qual o
objetivo não é fazer o outro ser simplesmente como nós, mas, precisamente e a partir do
reconhecimento do direito de ser do outro, construir momentos de interação e integração
permeados pela satisfação de estar sendo e vivendo a dinâmica da vida em ambiente
regado por uma curiosidade que nos faz, ao mesmo tempo, querer e ser mais. Afinal de
contas, não dialogamos para ficar satisfeitos, pois que ficamos satisfeitos porque
dialogamos.
Estamos, a partir de tudo que falamos ou fazemos, revelando nossos estilos de vida,
nossas visões de mundo, nossas ideologias. Estas são forjadas nas relações sociais, relações
10
Vem-nos à memória o diálogo de Heidegger (2003) com um japonês a cerca de determinado diálogo com um
conde japonês de nome Kuki. Para Heidegger o diálogo entre os dois, ele e o senhor Kuki, não conseguiu
apreender todas as substâncias sobre aquilo do qual conversavam devido ao fato de que tentavam dialogar em
língua européia – possivelmente o alemão ou o inglês – o que, segundo o filósofo alemão, destruía a
possibilidade de se dizer o que se queria discutir.
14
que definem as conotações que envolvem estas mesmas relações, se de competição ou de
cooperação, se de liberdade ou de dominação, se de emancipação ou de alienação. São
produto de relações sociais construídas a partir de escolhas, de opções, de opções políticas.
Esta noção nos parece inconfundível com a concepção de emancipação social – e de
cidadania – como uma relação cuja afirmação depende da transformação do conjunto de
relações entre os indivíduos no espaço público (SADER, 2002). Espaço este que deve receber
e acolher o protagonismo político, pelo exercício comunitário e conflitivo do debate, da
reflexão e da deliberação sobre um mundo comum (PAOLI, 2002).
Por conseqüência, poderemos sustentar que o grau de dinamismo e de
correspondência simétrica entre o diálogo, a democracia e a participação conspiram para
que a partilha do saberes ocorra de maneira que todos aprendam na medida mesmo que
todos ensinam. Acreditamos que um dos principais mecanismos para relacionar saberes, e,
com efeito, construir nossa identidade, está nas relações face a face (BERGER & LUCKMANN,
1985). Outrossim, cabe ressaltar que o avanço na construção do conhecimento não poderia
estar circunscrita a uma relação dialógica onde quem dialoga não está receptivo e/ou
aberto ao argumento do outro. Neste caso teríamos uma situação onde estar-se-ia
relativisando opiniões e não relacionando saberes, premissa para uma aproximação em
relação à totalidade, de um movimento em direção à verdade (MANNHEIM, 1972).
As propriedades do diálogo como estão expostas acima implicam considerar a
necessidade de aproximação entre ciências naturais e ciências sociais, ou mesmo de
superação da separação entre ciência e cultura (NICOLESCU, 1999), haja visto a
interdependência e comunicabilidade entre suas categorias, resultados ou condicionantes.
Por decorrência, o conteúdo da ciência deve ser apreendido em seu aspecto processual, ou
seja, na busca ininterrupta de superação do erro. A ciência, como forma de conhecimento,
tem membranas permeáveis. Ela é uma equação entre procura, erro e aprendizado. Desta
forma, enquanto expressão de uma interpretação ‘em curso’, dialoga com outras
percepções da realidade, com outras razões. Neste diálogo está, ademais, o enlace
progressivo do pensamento. Além do mais, a própria complexidade da realidade recomenda
que o conhecimento aprecie as propriedades de seus processos biológicos, físico-químicos e
psico-sociais (VIRGINIO, 2006).
Isto posto, a emergência de uma nova forma de apreender a realidade requer que o
conhecimento científico conviva com outras formas de conhecimento ou o reconhecimento
da existência de sistemas incompletos, num movimento espiral de enriquecimento
recíproco. Neste sentido, Santos (1987) ressaltou a aproximação e entrelaçamento que deve
haver entre conhecimento científico e senso comum. Segundo ele, existem várias formas de
percepção e apreensão da realidade, cada qual com seu volume de conhecimento e
ignorância. Conforme Santos (2000, p. 78), no contexto do paradigma emergente, temos que
considerar que;
15
Todo o conhecimento implica uma trajetória, uma progressão de um ponto ou
estado A, designado por ignorância, para um ponto ou estado B, designado por
saber. As formas de conhecimento distinguem-se pelo modo como caracterizam
os dois pontos e a trajetória que conduz de um ao outro. Não há, pois, nem
ignorância em geral nem saber em geral. Cada forma de conhecimento reconhecese num certo tipo de saber a que contrapõe um certo tipo de ignorância, a qual,
por sua vez, é reconhecida como tal quando em confronto com este tipo de saber.
Todo o saber é saber sobre uma certa ignorância e, vice-versa, toda a ignorância é
ignorância de um certo saber. Em resultado, isto insinua a pensar sobre direitos e
liberdade não mais exclusivamente a partir de seu ponto de vista, mas
considerando-o como um dos possíveis dentre um conjunto inexaurível de
perspectivas.
Nesta perspectiva, a ciência moderna não pode mais ser considerada a única
explicação possível da realidade. Esta compreensão não é imatura entre nós. Mannheim,
em meados do século passado, chamava atenção sobre a não exclusividade da razão
científica diante do desafio de compreender e explicar a realidade. Conforme ele (1962a, p.
181)
[...] nosso desenvolvimento científico moderno, baseado no pensamento
‘inventivo’ e em última análise nas necessidades da técnica, tende a obscurecer o
fato de que o contato físico e psíquico e a percepção de um objeto proporcionam
uma fonte de conhecimento igualmente válida. Não é, absolutamente, verdade
que estes não proporcionem conhecimento – o conhecimento que obtemos
através deles é apenas um tipo de conhecimento totalmente diferente do
conhecimento abstrato inventivo, que procura ‘produzir’ e ‘usar’ o objeto, e
portanto o concebe em termos funcionais. [...] O conhecimento baseado na
intuição, por outro lado, mantém-se muito próximo do objeto e tenta obter suas
informações do objeto tal como o encontra.
Com efeito, existem outros saberes e modos de conhecimento – as próprias práticas
sociais, por exemplo - não redutíveis ao conhecimento científico (NUNES, 2004). De acordo
com esta visão, a ciência deve se valer das virtudes inerentes ao senso comum – unidade
entre causa e intenção; prático, pragmático e espontâneo; contemporâneo e complementar
à experiência cotidiana; evidente; interdisciplinar e imetódico – de maneira que a vida da
experiência esteja condicionada, senão dirigida, pela necessidade da experiência da vida.
Esta questão remete-nos ao cuidado que temos que ter quanto ao perigo que
corremos - enquanto pretensamente intelectuais - de utilizarmo-nos de categorias analíticas
inadequadas e/ou privilegiar generalizações. Ao desconsiderarmos toda a diversidade e
profundidade implícitas na e da vida cotidiana, nos distanciamos, afetivamente, de uma
interpretação que considere, mais fielmente, saberes outros produzidos e/ou gestados no
dia a dia da prática social (SANTOS, 1997). Entretanto, não podemos confundir diálogo e
troca de saberes com a substituição de um saber pelo outro. À realidade, em toda sua
infinita complexidade não pode ser apreendida a partir de uma única perspectiva ao mesmo
tempo em que não pode prescindir dela.
16
Diante um mundo permeado por incertezas e injustiças, pondera Wallerstein, temos
que estabelecer pontes entre as mais variadas perspectivas e saberes de modo a termos
mais segurança quando de nossas escolhas ou decisões. E estes saberes têm que circular
num ambiente de igualdade. De acordo com ele (2002, p. 300).
. . . o saber envolve escolhas – as escolhas de todos são importantes, e é claro as
escolhas dos atores sociais, entre eles os estudiosos. Toda escolha envolve
decisões sobre o que é materialmente racional. Não podemos mais sequer fingir
que estudiosos possam ser neutros, isto é, despojados de sua realidade social. Mas
isto não quer dizer que tudo pode. Significa, isto sim, que temos que pesar todos
os fatores cuidadosamente, em todos os domínios, para tentar chegar a decisões
ótimas. E isto significa, por sua vez, que temos de conversar uns com os outros, e
fazê-lo como iguais. Sim, alguns de nós têm saberes mais específicos do que outros
sobre áreas de interesse específicas, mas ninguém, nenhum grupo, tem todo o
saber necessário para tomar decisões materialmente racionais, mesmo em
domínios relativamente limitados, sem levar em consideração o saber dos outros,
fora desses domínios. Sim, não há dúvida, se precisasse de uma neurocirurgia, eu
ia querer o neurocirurgião mais competente. Mas neurocirurgia competente
envolve igualmente certos aspectos jurídicos, éticos, filosóficos, psicológicos e
sociológicos. E uma instituição como o hospital precisa combinar esses saberes
numa visão materialmente racional. Por outro lado, as opiniões do paciente não
são irrelevantes. Mais do que ninguém, é o neurocirurgião que precisa sabê-lo,
como o sociólogo e o poeta. Habilidades não se dissolvem num vazio informe, mas
são sempre parciais e precisam ser integradas com outras habilidades parciais.
O diálogo entre estas outras opiniões e os saberes científicos é que dão azo a
perspectiva da ecologia de saberes. A ecologia dos saberes, portanto, tem como princípio
que todas as formas de saber são prenhas de incompletude 11. O que há são saberes que, em
diálogo e confrontados à realidade, vão definindo sua validade sem precisar se desprender
dos saberes momentaneamente desnecessários. Esta forma de pensar reconhece a
pluralidade de saberes erguidos a partir de práticas sociais heterogêneas e não somente
aquelas atinentes à lógica científica, ou mesmo à reprodução capitalista. Entrementes, o
objetivo é conferir status a formas de conhecimento que possam construir uma justiça
cognitiva, premissa para a justiça social. Neste novo cenário, o saber científico não é
desprezado, sendo utilizado como recurso no desafio de pensar práticas científicas
alternativas em benefício da emancipação social (SANTOS, 2006; VIRGINIO, 2006).
11
Num de seus últimos, e talvez um de seus principais escritos, Paulo Freire (1996) sustenta que a segurança do
educador se funda na certeza de que sabe algo e de que ignota outro tanto. Esta certeza é compartilhada com a
convicção de que, como ser humano e como educador, pode vir a conhecer melhor o que já sabe e a reduzir o
espaço da ignorância a partir da capacidade de aprender sobre aquilo que não se sabe. Segundo ele, é a
consciência de nossa inconclusão que funda a abertura necessária para se colocar no e a caminho para conhecer
mais.
17
O desenho desta ‘comunicação horizontal’ tem sua nitidez associada a maior ou
menor capacidade social de colocar obstáculos ao individualismo 12. Este individualismo se vê,
não poucas vezes, influenciado pelas leis do mercado como, também, pelas políticas
públicas. Em resultado, as preferências e interesses mais particulares se opõem, tanto às
regras da vida coletiva, quanto à observação nesta dos direitos mais fundamentais. Só é
possível falarmos em cidadania quando reconhecemos o outro sob os parâmetros da
modernidade, qual seja, enquanto sujeito de direitos civis e políticos, sociais e culturais. Só
se fala em dignidade humana porque os diferentes grupos e enlaces culturais são tratados, a
partir de suas diferenças, como inferiores e desiguais (TOURAINE, 2006). Daí a
substantividade da noção de direitos humanos tão bem sintetizada na Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948.
Construída ainda sob os escombros da segunda guerra mundial, a DUDH fez-se pedra
angular no sentido sócio-político e ético da e na existência humana. Ela reclama a
legitimidade dos direitos nas lutas contra os abusos, a opressão, as arbitrariedades, as
injustiças, as desigualdades, a barbárie. A observação dos direitos humanos remete, desta
forma, considerar valores universais, baseados na igualdade, na justiça, na segurança, na
participação cidadã, na proteção social, na educação, no direito ao desenvolvimento e no
direito a ter direitos como pressupostos de uma sociedade democrática e responsável,
socialmente e ambientalmente. O direito à educação aparece como chave política para o
conteúdo social e institucional desta sociedade (CARIDE GÓMEZ, 2009). Ela significa,
segundo Caride Gómez (2009, p. 33), um importante aporte
[...] al entendimento, la solidariedad y la tolerancia entre los indivíduos y entre
grupos étnicos, sociales, culturales y religiosos, fomentando conocimientos,
valores, actitudes y aptitudes favorables al respeto a los derechos humanos y al
compromisso activo con respecto a la defensa de tales derechos y a la
construcción de una cultura de paz y democracia, así como al desarrollo
sostenible.
O nítido aspecto político dos direitos humanos adverte sobre a necessidade de
políticas públicas destinadas a garantia destes direitos, bem como a formação dos indivíduos
e grupos sociais de modo que as soluções, senão o teor sócio-político destas políticas,
resultem a favor de condições cidadãs, emancipatórias de existência. Cabe à educação
oferecer ferramentas para que se possa apreender a liberdade e a dignidade e um
12
Especialmente em sua conotação negativa que, se por um lado, sugere a existência de um indivíduo senhor de
seus empreendimentos, independente, autônomo e resistente às formas coletivas de enquadramento, por outro,
temos um indivíduo - cujo paradigma é o vagabundo - que não consegue inserir-se em nenhum coletivo, tão
completamente despossuído, quanto desligado de relações de dependência e de interdependência que sustentam a
sociedade. Este individualismo é negativo porque marcado pela falta, seja de consideração, seguridade, de bens
garantidos ou mesmo de vínculos estáveis. Em resultado, temos o indivíduo „individualizado‟ e exposto a um
mundo sem referências, de inseguranças e precariedades, sem suportes em relação ao trabalho, ao capital
familiar, à possibilidades de construir um futuro (CASTEL, 1998)
18
desenvolvimento tal, insuspeito em sua relação de reciprocidade social e ambiental. Aqui se
sublinha “*...+ la importância de las políticas educativas em la implementación de propuestas
que realcen la ‘centralidad de los derechos humanos em todas la actividades’ (CARIDE
GÓMEZ, 2009, p.49)”.
Pelo exposto até aqui não deve restar dúvida de que a qualidade da vida cotidiana
está associada ao desenvolvimento do espírito democrático e cooperativo, do protagonismo
e da participação exercitados no diálogo tolerante, mormente em relação ao outro, quando
não em relação a outros saberes. A garantia e/ou consecução destes valores é, ipso facto,
processo e produto da conquista e manutenção dos direitos humanos. Considerar estes
elementos como forma e conteúdo, sempre inexaurível, de uma formação humanística é
reconhecer que o potencial crítico e criativo do ser humano não pode transitar sem par ao
conceito de comunidade ética. Tal ética funda-se em compromissos de longo prazo, de
direitos inalienáveis e obrigações inabaláveis, de uma lógica produzida por compromissos
baseados no compartilhamento fraterno, reafirmando o direito de todos a um seguro
comunitário diante dos erros, das incertezas e das desventuras, principalmente se
considerarmos as relações assimétricas de poder, pertinentes à dinâmica da vida individual e
coletiva (BAUMAN, 2003).
Arranjos (in)conclusivos
Se a construção de uma ponte não enriquece a consciência daqueles que nela
trabalham, que essa ponte não seja construída, que os cidadãos continuem a
atravessar o rio a nado ou de canoa. A ponte não deve cair de paraquedas, não
deve ser imposta por um deus ex machina ao panorama social, mas, ao contrário,
deve sair dos músculos e do cérebro dos cidadãos (FANON, 2005, p. 232).
Terminou a jornada, aqui estou de volta – mais rico pela experiência adquirida,
mais pobre pelas convicções destruídas e pelas certezas espatifadas. Pois as
convicções e certezas são freqüentemente o outro lado da ignorância ... Ponho-me
a caminho sabendo, ou achando que sei, como os homens devem viver, como
devem ser governados, como serão educados. Tenho minhas opiniões em todas as
esferas da vida. Mas quando volto sinto-me despido de todas essas certezas
reconfortantes. Quanto mais se entenda o significado de qualquer questão, mais
difícil fica respondê-la. Todo aquele que dá muita importância às suas opiniões
deve permanecer em casa (ALDOUS HUXLEY)
Por emancipação entendemos as diferentes formas de pensar e proceder, senão
como processos de resistência e de inovação, no sentido da negação da dependência, da
submissão, da alienação, da opressão, da dominação, da estigmatização, do abandono, da
marginalização, da ausência de perspectivas, do dogmático ou determinista. Uma formação
humanística não pode distar muito da tarefa de percorrer os diálogos que auxiliam a
19
apreender o valor da paz, da ecologia, da participação democrática, do direito à vida, do
direito a ter direitos.
Por implicação, ponderar sobre o significado da perspectiva humanista para a
formação humana é destacar, senão avançar, nas possibilidades da sociedade refletir sobre
si própria, senão conferir sentido a sua perspectiva emancipatória. Isto requer o
fortalecimento de iniciativas direcionadas para a reconfiguração e/ou ampliação do espaço
público. Mais do que isto, a noção de espaço público há que quebrar as fronteiras do Estado
como espaço restrito de decisão e onde alguns ‘únicos’ decidem. Da mesma forma, a julgar
pelos resultados da ‘produção destrutiva’ do modo de vida hegemônico, a vida privada não
pode mais ficar seqüestrada pela vida privada, corrompida que está pelo consumismo e/ou
pela publicidade.
Nesta perspectiva, a construção de um espaço social que destaque não o
consumidor, mas o cidadão, não somente as demandas do mercado, mas o respeito pela
pessoa humana, passa pela potencialização da democracia. A configuração desta cultura
democrática requer investimento na formação de um homem público capaz de conferir
energias e tempo às escolhas sociais cujo conteúdo envolva relações de poder e princípios
éticos. Por outras palavras, sociedade política e sociedade civil são chamadas ao desafio da
construção de ‘espaços-tempos’ formativos que propiciem aprender a combinar
racionalidade, liberdade e identidade onde, neste processo e como premissa, todos possam
ter o direito a manifestação livre de saberes, sentimentos e valores e à ação criadora e
responsável (ARENDT, 1995).
Para Adorno (1995), o grande desiderato da educação seria pensar, além da escola,
pensar a sociedade. Não qualquer pensar, mas um pensar que signifique resistência à
adaptação ao conformismo onipresente, e que, ao mesmo tempo, seja a manifestação de
uma ‘consciência verdadeira’, como uma exigência política e um estímulo à espontaneidade
e à inventividade. Trata-se, portanto, de assumir a possibilidade de pensar subversivamente
e construir a aptidão à experiência, a viver o que ‘ainda-não-é’ e, ao experimentá-lo, ampliar
e desencadear outros níveis de reflexão. Dito de outro modo, saber pensar é sair do que se
é, é saber fazer experiências.
Neste sentido, a responsabilidade que este desígnio sugere é que associa a formação
humanística - sem esquecer o significado de alguns de seus predicados: democracia,
cooperação, participação, diálogo, ecologia cognitiva e direitos humanos - com a reinvenção
dos espaços públicos. Sobre o humanismo recai, conforme Said (2007), a expectativa de
distanciamento da informação descontextualizada, do exercício da reflexão, da necessidade
de atentar para a intuição e para a compreensão, de desafiar os horizontes predominantes,
da percepção de mundos ‘múltiplos’, de apreender as idéias e valores circulantes, nesta ou
noutra sociedade, de propor questões de responsabilidade e valores àqueles portadores de
cegueira moral. É ele que justifica, entrementes, por que atuar no espaço público, de modo
20
que os saberes gestados na ‘rica experiência de vida’ dos povos não sejam invisibilizados
pelo vocabulário homogeneizador dos que controlam o poder.
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