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ANDREI JAN HOFFMANN ULLER A MÚSICA ÍTALO-TRENTINA NOS MUNICÍPIOS DE NOVA TRENTO, RIO DOS CEDROS E RODEIO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA E A ATUALIDADE DESTA MANIFESTAÇÃO. FLORIANÓPOLIS - SC 2008 UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA CENTRO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MÚSICA ANDREI JAN HOFFMANN ULLER A MÚSICA ÍTALO-TRENTINA NOS MUNICÍPIOS DE NOVA TRENTO, RIO DOS CEDROS E RODEIO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA E A ATUALIDADE DESTA MANIFESTAÇÃO. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito para obtenção do título de Licenciatura em Música. Orientadora: Tereza Mara Franzoni FLORIANÓPOLIS-SC 2008 ANDREI JAN HOFFMANN ULLER A MÚSICA ÍTALO-TRENTINA NOS MUNICÍPIOS DE NOVA TRENTO, RIO DOS CEDROS E RODEIO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA E A ATUALIDADE DESTA MANIFESTAÇÃO. Trabalho de Conclusão de Curso aprovado como requisito parcial para obtenção do grau de licenciado, no curso de Graduação em Música do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. Banca Examinadora Orientadora: ___________________________________________________ Membro: ___________________________________________________ Profª Ms. Tereza Mara Franzoni Universidade do Estado de Santa Catarina Prof. Dr. Marcos Tadeu Holler Universidade do Estado de Santa Catarina Membro: ___________________________________________________ Prof. Dr. Pedro Martins Universidade do Estado de Santa Catarina Florianópolis, 08/07/2008 Para Dorival Uller e Matilde Hoffmann Uller, à minha noiva Jusciele Nicolladelli e a todos os meus antepassados. AGRADECIMENTOS A minha Família, pelo apoio de sempre e também por ter oferecido a oportunidade em estudar o que gosto (Música). A Orientadora Tereza Mara Franzoni, uma das principais responsáveis na concretização deste trabalho concretizado. A professora da Universidade de Trento Maria Rossana Dalmonte, pelo contato e também o livro cedido. Ao Sr. Afonso Prates Silva e Srª. Maria Salete Santos Silva, responsáveis pelas traduções da língua italiana para a língua portuguesa. A Luiz Giovanella Neto e Joana Giovanella, pela atenção, recepção, hospitalidade e ricas informações trocadas. A Jonas Cadorin, por toda atenção e informações cedidas do grupo Pargoleti. A Isaías Girardi pela atenção e pelas informações do grupo Vecchio Scarpone. Ao professor Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas, pelas disciplinas ministradas de Harmonia, Análise Musical, História da Música, Música e Mídia e todas as aulas que transmitiu seu conhecimento. A todos os professores do departamento de música que me ajudaram diretamente ou indiretamente no meu desenvolvimento musical. A Rafael Tomazoni e família, pelos documentos cedidos. A Daniel Priori, pelo empréstimo da tese de doutorado. Ao presidente do Círculo Trentino de Nova Trento, Júlio Feller, pelas informações dos grupos musicais. Ao coordenador do grupo de jovens trentinos de Rio dos Cedros, Andrei Taffner, pelas informações e fitas K7 cedidas. A todo corpo administrativo dos Círculos Trentinos de Nova Trento, Rio dos Cedros e Rodeio. A todos aqueles que incentivam e divulgam as manifestações artísticas e culturais que valorizam a história e a dignidade das pessoas. Em especial, agradeço aos círculos trentinos e seu esforço neste sentido. “A arte não é assim um luxo para ser apreciado por uma minoria de estetas, mas sim um comportamento social necessário no qual todo o ser humano deve tomar parte” (HAVILAND apud BATALHA). RESUMO A presente pesquisa tem como assunto principal a música ítalo-trentina tocada e cantada por grupos musicais nos municípios de Nova Trento, Rio dos Cedros e Rodeio. O objetivo foi relatar que este tipo de manifestação musical ocorre pautado pela memória sobre a vida na região de Trentino-Alto Adige antes da colonização italiana no Brasil do século XIX e, posterior a ela, pela própria situação do migrante durante a diáspora e em terra estrangeira. É também objetivo indicar como esta manifestação musical pode sofrer modificações de acordo com as influências externas que a rodeiam. Tais modificações podem ser observadas nas diferenças entre as partituras musicais de algumas canções nas referências italianas e nas publicações brasileiras. Além do estudo das canções ítalo-trentinas, que em sua maior parte se manifestam nas principais festividades comemorativas da colonização italiana no Brasil, também foi dada ênfase da contextualização histórica relacionada aos temas tratados nas canções, tais como, guerras, imigração, paisagens geográficas, gastronomia, religião, entre outros. Como os grupos musicais são comumente chamados de folclóricos, apresento alguns conceitos sobre este termo e sobre a forma como a antropologia da arte e a etnomusicologia vem trabalhando com estas manifestações. A metodologia utilizada envolveu: entrevistas com alguns participantes de grupos musicais que tocam a chamada música ítalo-trentina nestes municípios; pesquisa bibliográfica, principalmente no que se refere as informações históricas; análise de alguns documentos cedidos pelos informantes e análise de algumas músicas e partituras tocadas pelos grupos. Palavras-Chave: migração italiana, música ítalo-trentina, grupos musicais, etnomusicologia. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 01 – Programação do folheto de divulgação da 18ª festa Trentina do município de Rio dos Cedros Ilustração 02 – Programação do folheto de divulgação da 19ª festa La Sagra do município de Rodeio Ilustração 03 – Atual Itália e suas Regiões Ilustração 04 – Região de Trentino-Alto Adige e as províncias de Trento e Bolzano. Ilustração 05 – Alpes da região Trentino-Alto Adige. Ilustração 06 – Alpes da região Trentino-Alto Adige. Ilustração 07 – Trento sob ocupação austríaca Ilustração 08 – Primeiras colônias italianas de SC Ilustração 09 – Estado de Santa Catarina e os atuais municípios de Nova Trento, Rio dos Cedros e Rodeio. Ilustração 10 – Capa do folheto de divulgação da 18ª festa trentina, município de Rio dos Cedros Ilustração 11 – Capa do folheto de divulgação da 19ª festa La Sagra, município de Rodeio Ilustração 12 – Canção Monte Grappa tu sei la mia Patria Ilustração 13 – Canção Noi siam Partiti Ilustração 14 – Canção Valsugana Ilustração 15 – Canção Valsugana Ilustração 16 – Capa do disco do grupo Compagni Trentini – “Cantavano Cosi” Ilustração 17 – Contra capa do disco do grupo Compagni Trentini - “Cantavano Cosi” Ilustração 18 - Capa do disco do grupo Vecchio Scarpone Ilustração 19 - Contra capa do disco do grupo Vecchio Scarpone SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................................................... 10 1 A NOÇÃO DE FOLCLORE E A MÚSICA ÍTALO-TRENTINA ........................ 12 1.1 AS NOÇÕES DE FOLCLORE E IDENTIDADE.................................................. 15 1.2 RELAÇÃO ENTRE IDENTIDADE E MANIFESTAÇÕES EXPRESSIVAS ....... 19 1.3 MÚSICA ÍTALO-TRENTINA? POR QUÊ? ........................................................... 22 2 A IMIGRAÇÃO TRENTINA PARA SANTA CATARINA ................................ 28 2.1 OS MOTIVOS DA EMIGRAÇÃO ....................................................................... 31 2.2 A FORMAÇÃO DAS COLÔNIAS....................................................................... 36 2.3 A RELIGIÃO DO ÍTALO-TRENTINO ................................................................ 42 3 AS MANIFESTAÇÕES EXPRESSIVAS MUSICAIS ......................................... 44 3.1 AS PESQUISAS SOBRE A MÚSICA TRENTINA DE TRADIÇÃO ORAL........ 47 3.2 A MÚSICA ÍTALO-TRENTINA NOS MUNICÍPIOS DE NOVA TRENTO, RIO DOS CEDROS E RODEIO ................................................................................................ 62 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 76 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 77 10 INTRODUÇÃO A situação sócio-econômica da Itália durante a segunda metade do século XIX era bastante difícil, a população aumentara significativamente e a quantidade de camponeses agricultores - principal atividade da época - sem propriedade de terra e trabalho era significativa. Tais condições, somadas ao avanço da revolução industrial e a queda da produção agrícola devido as pestes, resultaram em um processo de emigração em grande escala. A esperança de condições de vida melhores foi aproveitada pelas agências de migração. No caso do Brasil, isto resultou na entrada de ítalos-trentinos em vários estados do país, entre eles Santa Catarina. Nele os migrantes italianos constituíram colônias e se espalharam pela região. Estes migrantes trouxeram em sua bagagem cultural: costumes, hábitos e manifestações artísticas diversas, entre as quais a Música, foco principal da pesquisa. A música continua sendo atualmente uma manifestação importante entre aqueles de se dizem herdeiros dos migrantes italianos da segunda metade do século XIX, principalmente nas festividades que comemoram a migração italiana para o Brasil. A questão que iniciou este trabalho foi: por quais motivos existem pessoas ou grupos musicais que cantam e tocam um tipo de música cuja referência é o processo migratório, a terra de origem e a situação de deslocamento. Um tipo de música chamada de música italiana, música trentina ou música ítalo-trentina? Na busca de algumas respostas, foram feitas leituras sobre o assunto, assim como entrevistas com os principais responsáveis dos grupos musicais dos municípios estudados. Os motivos que me levaram a escolher o tema música ítalo-trentina em Santa Catarina, são tanto de ordem acadêmica como pessoal. Primeiramente a idéia surgiu de minhas observações das festividades italianas e das manifestações musicais realizadas em alguns municípios do estado. A partir daí procurei algum material escrito que descrevesse a música tradicional italiana em Santa Catarina. Ao encontrar pouco material, logo veio a indagação sobre por que não existiam materiais em português sobre o assunto. Além disto, a própria restrição da 11 divulgação deste tipo de música às festividades italianas e a ausência do estudo deste tipo de música em meu percurso na universidade, foram também motivos para a escolha do tema. No primeiro capítulo, proponho uma discussão sobre a noção de folclore e suas implicações, tendo como ponto de partida para a discussão os termos “folclórico” e “folclorístico” que adjetivam tanto os grupos musicais quanto a música cantada e tocada nas festividades ítalo-trentinas. Neste, procuro introduzir a concepção de identidade e grupo étnico, assim como a relação entre identidade e manifestação expressiva. Também procurei situar geograficamente a região que os migrantes trentinos habitavam e a qual se referem em suas músicas. No segundo capítulo falo um pouco sobre a imigração trentina para Santa Catarina, os motivos que levaram a este acontecimento, a formação das primeiras colônias ítalo-trentinas e a importância de religiosidade para estes imigrantes. Neste capítulo procuro contextualizar historicamente a migração italiana deste período apontando relações com os temas de algumas canções. No terceiro e último capítulo, apresento alguns relatos e notas sobre as manifestações musicais que ocorriam na região Trentino-Alto Adige. Em seguida, proponho uma análise comparativa de partituras registradas por autores catarinenses, enfatizando as transformações que uma determinada melodia pode ter e as contribuições das novas tecnologias e do estudo da etnomusicologia para compreensão destas transformações. É neste capítulo que apresento alguns grupos musicais que tocam músicas ítalo-trentinas e descrevo os resultados das entrevistas que realizei com os principais responsáveis por estes grupos, procurando identificar aspectos que justificam a existência deste tipo de manifestação musical. 12 1 A NOÇÃO DE FOLCLORE E A MÚSICA ÍTALO-TRENTINA Para estudar as manifestações atuais da música ítalo-trentina1 no Estado, um momento privilegiado é a festa pública de comemoração da imigração italiana para Santa Catarina. Este tipo de festa ocorre em vários municípios e nelas apresentam-se vários conjuntos musicais que tocam e cantam o que aqui estamos chamando de música ítalo-trentina. É também nestas festas que podemos visualizar uma variedade de atores sociais compondo o cenário no qual se apresentam estas manifestações: Prefeituras Municipais, associações civis de cunho cultural e esportivo, empresas privadas realizando exposições e negócios, artistas profissionais do circuito comercial e os grupos musicais e corais que se auto nomeiam (ou que por vezes são assim identificados no contexto da festa) com os adjetivos folclórico, folclorístico, tradicional e folk. A própria festa, muitas vezes, é identificada com a idéia de tradição (ver ilustração 01 e 02) Optou-se pelo itálico para esta expressão e seus correlatos: música trentina, música italiana de tradição oral, música folclórica italiana, música tradicional italiana, para indicar que esta é uma expressão utilizada pelos grupos estudados e pela literatura da área, para identificação de uma música cuja referência remete a região Trentino-Alto Adige, sendo portanto categoria genérica de uso corrente e não um conceito que delimita e descreve as características deste tipo de música. 1 13 Ilustração 01: Programação da 18ª festa Trentina do município de Rio dos Cedros Fonte: (Folheto da 18ª Festa Trentina, Elaborado pelo Círculo Trentino de Rio dos Cedros, 2007). 14 Ilustração 02: Programação da 19ª Festa La Sagra do município de Rodeio. Fonte: (Folheto da 19ª Festa La Sagra, Elaborado pelo Círculo Trentino de Rodeio, 2007). Assim como os grupos, a música ítalo-trentina tocada e cantada nestas festas tem sido geralmente identificada com a idéia de folclore, o que, via de regra remete não só para a noção de algo que pertence ao passado como para algo cujo lugar é a memória cristalizada no tempo. É sobre esta noção, e suas implicações que discuto a seguir neste primeiro capítulo. O intuito aqui é não só compreender melhor as implicações teóricas práticas do uso deste termo, mas também introduzir a discussão sobre as noções de identidade e manifestações expressivas, assim como a contribuição destas para uma melhor compreensão da música ítalo-trentina estudada. 15 1.1 AS NOÇÕES DE FOLCLORE E SUAS IMPLICAÇÕES O termo folclore, de acordo com a publicação de Rossini Tavares de Lima (1972), surge no início do século XIX através de uma carta que o arqueólogo inglês William John Thoms enviou a uma revista, e está relacionado ao estudo das antiguidades do povo inglês. Dentre os estudos que Thoms explorava estavam as tradições populares, baladas lendárias, provérbios locais, ditos vulgares, superstições e antigos costumes, entre outros aspectos. Os estudos sobre estes temas contudo, antecedem a formulação de Thoms: “Muito antes de haver surgido o nome “folclore”, havia historiadores, literatos, músicos, arqueólogos, sociólogos, e outros, estudando os costumes e as tradições populares, a que mais tarde se deu o nome de folclore” ( BRANDÃO apud TEIXEIRA, 1991 , pág.02) Segundo Thompson, os estudos surgem devido a distinção cultural e subordinada dos pebleus perante aos patrícios. Devido ao mantimento dos costumes, ritos e hábitos da plebe, alguns estudiosos passaram a investigar e registrar tais elementos que sobreviveram a transformação que a urbanização provocara. O surgimento do termo folclore se fez presente e esses costumes, ritos e hábitos já eram vistos como antiguidades ou resíduos do passado, subordinados e inferiores a modernidade e aos grupos hegemônicos. Quando Isabel Aretz, uma das participantes do primeiro Congresso Interamericano de Etnomusicologia2 e Folclore, realizado em 1983, discorda do uso da expressão “cultura popular tradicional”, para identificar o que até então era chamado de folclore (CARVALHO, 1991). Ela está justamente defendendo a concepção criticada por Thompson, explica Carvalho: O folclore, que ela prefere denomina de “cultura oral tradicional” seria o “que afunda suas raízes no tempo e que é a autêntica cultura produzida pelo povo”, enquanto cultura popular seria a “que anda entre o povo e que este assimila”, sem haver interferido no seu processo de criação (1991, pág. ) Este tipo de concepção acabou fundamentando a separação entre a cultura popular, vista como influencia externa assimilada e folclore, vista como cultura pura do povo. “Etnomusicologia: um ramo da Musicologia em que se dá ênfase ao estudo da música em seu contexto cultural; a antropologia da música. Teve origem durante o final do séc. XIX, na Europa e nos EUA, com os trabalhos de Carl Stumpf, Erich M. von Hornsbostel, Curt Sachs, Alexander J. Ellis, Jesse Walter Fewkes, Franz Boas e outros. Os primeiros trabalhos tratavam na maior parte de psicologia da música, reconstrução da história mundial da música, classificação dos estilos e instrumentos musicais e, nos EUA, da análise da música indígena norte-americana. A pesquisa moderna combina as técnicas antropológicas de trabalhos de campo e etnografia com uma grande variedade de abordagens humanistas, especialmente a partir da musicologia e da estética” (SADIE, 1994, pág. 305). 2 16 Considera-se nesta concepção que nos tempos passados existiam povos com culturas essencialmente autênticas, ou seja, que não estavam sujeitas as alterações e transformações. Outros teóricos do folclore, no entanto já haviam apontado para a dinamicidade do fenômeno. Este é o caso Edson Carneiro: O folclore é, portanto, dinâmico na sua essência – está em constante transformação, dialeticamente é e não é o mesmo fenômeno ao mesmo tempo, como em geral acontece com todos os fenômenos sociais. Estas ações e reações são recíprocas e simultâneas e sempre dão em resultado um terceiro produto, uma síntese, que , dependendo do vigor dos choques contrários, pode ser completamente diferente dos elementos que a formaram. Em constante transformação – eis como devemos encarar o fato folclórico (1965, pág.13 e 14). O complicante neste caso é o fato de que esta dinamicidade é vista como algo próprio do contexto atual, do processo de urbanização e racionalização moderna. Este pressuposto de fundo mantém a idéia de folclore como um tipo de costume anterior a urbanização, reforçando os complicantes próprios da idéia de sobrevivência já citados. Em uma nova reunião em 1987, Nestor Garcia Canclini propõe uma nova concepção: Como conseqüência da heterogeneidade e da dinâmica do momento presente Canclini propõe descartar a escorregadia noção de autenticidade, presente na conceituação de vários autores, e sugere o critério de “representatividade sociocultural: não importa tanto os objetos, música e hábitos tradicionais por sua capacidade de permanecerem “puros”, iguais a si mesmos, como porque representam o modo de conceber e viver daqueles que os produzem e usam”(1987:9). A intenção de Canclini, que coincide com a da maioria dos participantes daquele Congresso, é praticamente acabar com a distinção entre popular e folclórico, ou melhor, tudo passaria a cair dentro da noção de “culturas populares” (CARVALHO, 1991, pág. 7). Os meios de comunicação, assim como a indústria cultural são vistos como grandes aceleradores das transformações, assim como a urbanização e as opções religiosas e espirituais de cada grupo humano, ou de cada indivíduo. Estes fatores levariam a dissolução de delimitações rígidas entre diferentes áreas da cultura. Segundo Carvalho devido a esses aspectos próprios da modernidade, aquilo que chamamos de cultura clássica, cultura erudita, cultura popular e outras estariam sujeitas a constante dissolução e redefinição: O grande herdeiro da tradição clássica alemã e das sofisticadas culturas da Viena fin-de-siécle e da Repúlica de Weimar, encontra a própria cultura da elite ocidental de hoje como desintegrada, desfeita, em vias de descaracterização e apresentando graves sintomas de perda de memória. Tanto os folcloristas como os filósofos críticos apontam para a crise das culturas “autênticas” (a clássica e a folclórica) e se 17 lamentam do fato de que é a intermédia que está mais viva: a cultura popular urbana e a cultura de massa (CARVALHO, 1991, pág. 10). Neste sentido, mesmo o que Carvalho chama de cultura de massa, termo utilizado para denominar a cultura que se difunde pelos meios de comunicação, atingindo uma grande parte da população. Poderia para este autor, ser visto em seus aspectos positivos no que se refere a revitalização de manifestações ligadas a tradição.3 A crítica ao conceito de folclore gerou uma série de outros conceitos que procuravam, por um lado, delimitar as especificidades dos costumes e manifestações produzidas por um determinado setor da população, por outro, diferenciar estes dos outros setores. A utilização do conceito de cultura adjetivado de palavras que buscavam diferenciar os setores a que se referiam, tais como: cultura popular, cultura de massa, cultural de elite, etc; trouxe um outro tipo de problema. Conforme aponta Thompson, a idéia de cultura poderia sugerir a concepção de uma concordância de idéias e opiniões, um “sistema consensual” de “valores compartilhados”, suprimindo novamente a idéia de mudança, disputa e conflito (1998, pág. 17). Na visão deste autor este foi um dos principais problemas do uso do termo “cultura popular”. E que, poderíamos também estender aos termos “cultura de elite”, “cultura de massa”, etc. As implicações advindos do uso destes e de outros conceitos e as tentativas em resolver os problemas daí advindos, faz com que os estudiosos das manifestações artísticas também busquem sua própria nomenclatura e adjetivem os fenômenos estudados ora de uma forma ora de outra. Bernardi (1999), por exemplo, vai falar do “hibridismo” entre o “alto” referindo-se aqui a chamada “música clássica”, e o “baixo”, ou seja, a chamada “música popular”: 3 Explica Carvalho: por exemplo, o vertiginoso crescimento de uma vertente mais comercial e kitsch da música “sertaneja” no Brasil (análoga ao estilo country comercial nos Estados Unidos) tem contribuído enormemente para que as grandes obras da canção sertaneja tradicional sejam reabilitadas e revalorizadas (a ponto de elas do serem agora chamadas de “clássicos” sertanejos pelos cultores do gênero tipicamente comercial) (CARVALHO, 1991, pág. 9). [O caso da música sertaneja, citado por Carvalho, é um exemplo de que apesar da mídia divulgar músicas com interesses estritamente comerciais, elas dialogam com outras expressões musicais, ligadas a tradição. Outro exemplo de como o folclórico, o popular e o clássico podem se misturar, pode ser visto na obra literária de Goethe. Segundo Carvalho, a formação de Goethe é mista: aprendera a arte das marionetes como um autêntico “mestre folk” e chegou a conhecer todo o repertório tradicional das histórias, em seguida trabalhou mais de cinqüenta anos na construção de uma obra literária que unia a mitologia grega, a tradição cristã e uma lenda folclórica. O resultado segundo Carvalho, é sempre o movimento] Simplificando, pois, a descrição de um processo histórico sumamente complexo, pode-se dizer que desde então, as duas tradições “puras” (a popular e a clássica) foram se diluindo paulatinamente, misturando-se às vezes entre si, transformando-se ao longo desse processo. Isto quer dizer que tão logo Goethe conseguiu plasmar essa “perfeita” esfera da cultura, ela começou outra vez a estilhaçar-se, não já em duas, mas em inúmeras partes, gerando uma multiplicidade de formas, tanto orais como escritas e, finalmente eletrônicas (como a cultura de massa circulando pelas várias camadas sociais da população dos países europeus e latino americanos até os dias de hoje (CARVALHO, 1991, pág. 12). 18 Nas canções populares italianas transmitidas por tradição oral, como um lembrete constante, o elemento híbrido está presente: por um lado, os seus textos-poemas se aproximam do “alto” quanto ao uso da métrica versificada; por outro, aproximamse do “baixo” ao incorporarem temáticas do cotidiano de um grupo social campesino (BERNARDI, 1999, pág. 118). Macchiarella destacando a observação de Bolognini, sem questionar propriamente a idéia de tradição, ressalta o aspecto dinâmico, mutante e transformador das chamadas “canções populares”, sugerindo que, o que observamos hoje é uma intensificação das transformações, e que tais transformações aconteciam também no passado, onde uma das influências é a decorrência do avanço das tecnologias: De resto as transformações na cultura e na música tradicional não são uma novidade da nossa época. Disto, como é visto, se lamentava a cerca de um século atrás Nepomuceno Bolognini, cujo interesse pelas tradições populares era pelo apontamento dos mesmos, motivado pelo medo de seu desaparecimento por causa da invasão apressada dos povos que vem num percurso desenfreado nos postos de terceira classe das ferrovias e dos bondes a vapor ou a cavalo que seja (MACCHIARELLA, 1999, pág. 113, traduzido por Maria Salete Santos Silva).4 O intuito é mostrar que as manifestações expressivas musicais vão se modificando ao longo dos anos, podendo sobressair algumas de suas características, possibilitando que um sujeito, de algum lugar e de alguma maneira classifique estas manifestações em diferentes gêneros. Não é minha intenção questionar a utilização dos termos folk, folclórico e tradição nos folhetos de divulgação das festividades. Ao contrário, a intenção é compreendê-las e mostrar que também elas dialogam com a produção científica, ora se apropriando de categorias deste meio, ora fornecendo a matéria prima necessária à produção conceitual. As festas comemorativas da colonização italiana, em alguma medida remetem para o passado e para um vínculo histórico e identitário, cujo apelo tem ressonância nos municípios nos quais se realizam. Neste sentido os termos citados parecem remeter para a idéia de uma “origem comum” e de “história” e “valores” compartilhados. Por outro lado, a festa também dialoga com manifestações e valores contemporâneos presentes em outras apresentações, mas “Del resto le trasformazioni nella cultura e nella musica tradizionali non sono certo uma novità della nostra epoca. Di esse, come visto, si lagnava circa un secolo fa Nepomuceno Bolognini il cui interesse verso le tradizioni popolari era per l`appunto motivato dal timore della loro scomparsa a causa dell` invadente affratellamento dei popoli che viene, viene a corsa sfrenata nei posti di terza classe delle ferrovie e dei tram a vapore o a cavalli che sia” (MACCHIARELLA, 1999, pág. 113). 4 19 incorporados e ressignificados pelos grupos ditos folclóricos. desenvolver no último capítulo deste trabalho. Aspecto que procurarei 1.2 RELAÇÃO ENTRE IDENTIDADE E MANIFESTAÇÕES EXPRESSIVAS Quando as pessoas constroem uma identidade, tem a intenção de se diferenciar, seja esta diferenciação de caráter positivo (idéia de superioridade) negativo (de inferioridade), ou apenas comparativo (de percepção da diferença). Neste sentido a construção de uma identidade, seja individual ou coletiva, é um processo relacional, que diz respeito à tentativa de diferenciação do outro. dimensões desta diferenciação é o âmbito cultural. Segundo Seyferth: Uma das Barth chamou a atenção para a ação recíproca que marca as relações interétnicas, afirmando que a identidade étnica não é algo imutável, mas situacionalmente variável e em permanente negociação, daí sua ênfase na fronteira intergrupal e na interação dos atores sociais através dela (2004, pág. 190). Utilizando o conceito de Barth, Seyferth vai procurar mostrar como a identidade étnica dos “teuto-brasileiro”, em especial de uma parcela da população colonial letrada, foi se construindo a partir dos cantos, poesias, romances e crônicas, publicados em periódicos da região. Uma literatura que vai justamente florescer no contexto interétnico do contato entre alemães, brasileiros e outros colonos, entre os quais italianos. A proposta de Barth, onde a constituição de grupos étnicos, e conseqüentemente da identidade só se dá num contexto relacional e, como mostra Seyferth, eminentemente conflituoso, encontra eco na maior parte da produção antropológica. No entanto, tanto nos estudos identificados com a idéia de folclore, como naqueles que falam das manifestações tradicionais, conforme já foi dito, também a identidade tende a ser descrita com características fixas. A própria Seyferth num texto publicado há 18 anos atrás sugeria fatores que podem definir um tipo de identidade étnica, sendo eles a língua materna, a religião, a cultura de origem, a capacidade de trabalho, a endogamia e os hábitos alimentares. Estes foram também, via de regra, critérios utilizados por vários autores para caracterizar os colonos ítalotrentinos e seus descendentes: a língua e o dialeto; a maneira de se expressar com a fala e com as mãos; a voz com intensidade alta ao conversar; a religiosidade; os hábitos alimentares 20 como a polenta, vinho, massas em geral; o jogo de cartas, mora e bocha e até mesmo traços físicos e psicológicos, como no caso da citação abaixo: O povo trentino italiano é descrito como de índole séria, freqüentemente severa, laboriosa, com uma acentuada aversão à improvisação fácil, à aventura espiritual ou econômica. Portanto, conservador. [...] Ele [o ítalo-trentino] pareça muito fechado em si mesmo e no seu mundo, mas é inteligente e perspicaz, constante e voluntarioso, quieto e arisco aos entusiasmos excessivos, robusto fisicamente e espiritualmente sadio; fortemente ligado à família, à casa, a seu povoado e a seus vales. [...] Tudo o que é tradicional é seguro e bom; o novo deve ser cautelosamente avaliado: este é o pensamento oculto mas sempre presente na mente do homem trentino. [...] O homem trentino do século XIX é descrito como de temperamento sangüíneo-bilioso. Tem altura mediana, cabelo escuro, cor vivaz, musculatura forte e definida, um tórax bem desenvolvido, ombros largos e quadrados e pescoço curto. A cabeça geralmente grande, de olhar vivo e penetrante e tem uma expressão do rosto grave e sagaz (BONATTI; LENZI, 2006, pág. 24 e 25). Assim como no caso das manifestações culturais tratadas como folclore, a própria “identidade” foi vista como algo que podia ser descrito através de características físicas, psicológicas e sócio culturais fixas que independeriam do contexto relacional no qual o grupo em questão estava inserido. Assim como o conceito de cultura muitas vezes trouxe consigo a idéia de um sistema consensual e sem conflitos, os conceitos de identidade, etnicidade e grupo étnico, trouxeram consigo, a idéia de raça e de determinismo biológico, conforme aponta Franzoni: Ainda que, nas formulações de Barth (1998) estivesse presente não só a idéia de uma interação contextual, negociada, construída sob bases simbólicas e cujos processos estariam em constante reconstrução, pressupondo um saber cultural compartilhado, a questão que parece estar colocada na polêmica sobre a etnicidade e seus limites enquanto categoria antropológica, é justamente a acusação em torno da essencialização do conceito, “assombrado” pelas idéias de “raça” e de “herança”. Tanto a acusação feita por Kuper, quanto a suspeita de Poutignat e Streife-Fenart remetem a dificuldade de tratar estas categorias como categorias e não como fatos, por si só, explicativos, ou seja, como premissas das quais parte a análise. Dificuldade muitas vezes colocada em função das trajetórias destes conceitos nos contextos políticos nacionais e internacionais em que são produzidos e significados (2004, pág.9). Muitos estudos têm procurado chamar atenção para o contexto relacional das manifestações culturais, sejam elas consideradas tradicionais ou não, apontando para os conflitos e as formas de negociação das identidades, para a relação entre elementos escolhidos e contexto político. Assim como para as relações entre história e cultura. O estudo de Thompson (1999) sobre “a cultura popular tradicional” inglesa, o estudo de Seyferth (2004) 21 sobre a literatura teuto-brasileira o início do séc. XX e o estudo de Martins (2007) sobre “estratégias de inserção social de grupos migrantes” em Portugal, são exemplos neste sentido. No caso deste último, vale chamar atenção para o conceito de manifestações expressivas utilizado por Martins: “Entendo como manifestações expressivas todas as manifestações capazes de exprimir uma forma ou conteúdo estético aliados a qualquer conteúdo identitário” (MARTINS, 2007, pág.2). Com este conceito o autor define algumas das manifestações culturais de migrantes caboverdianos em Portugal tradicionalmente tratadas como “manifestações folclóricas”. Seu objetivo é compreender como estas manifestações servem como “instrumento” de integração destes migrantes tanto no contexto português quanto no mercado de trabalho como enquanto estratégia de reconstrução da identidade pessoal e social. Neste trabalho, as transformações estéticas são analisadas no contexto relacional, assim como a própria identidade caboverdiana que só é possível em Portugal. As manifestações expressivas: o Funaná, o Batuque e o Kolá San Jon, assim como o rap, o break dance e o grafite são analisadas no contexto da diáspora, ou seja de grupos que migraram ou descendem daqueles que migraram e cujas referências culturais estão marcadas pelo deslocamento. 22 1.3 MÚSICA ÍTALO-TRENTINA? POR QUÊ? Quando falamos em música ítalo-trentina, como assim ficou conhecida uma determinada tradição musical de alguns dos municípios do Estado de Santa Catarina, estamos nos referindo a uma manifestação musical cujo apelo identitário de seus participantes e apreciadores remete para o processo de colonização italiana em SC, no século XIX, não só identificando-se com a nacionalidade de origem, no caso a italiana, mas com uma região específica da Itália, a região de Trento. Situo a seguir esta região: Atualmente, esta região é conhecida como Trentino-Alto Adige e situa-se ao norte da Itália. Na divisão política administrativa atual deste país a região constitui a maior parte político territorial de divisão interna, sendo subdividida em províncias. A região Trentino- Alto Adige, possui atualmente duas províncias, a província de Trento com 223 municípios e a província de Bolzano com 116 municípios. 23 Região Capital 02 – Piemonte Torino 01 – Valle d'Aosta 03 – Lombardia 04 – Trentino-Alto Adige 05 - Friuli-Venezia Giulia 06 – Vêneto 07 – Ligúria 08 - Emilia-Romagna 09 – Toscana 10 – Marche 11 – Úmbria 12 – Lazio 13 – Abruzzo 14 – Molise 15 – Campânia 16 – Puglia 17 – Basilicata 18 – Calábria 19 - Sicília 20 – Sardegna Aosta Milano Trento Trieste Venezia Genova Bologna Firenze Ancona Perugia Roma L'Aquila Campobasso Napoli Bari Potenza Catanzaro Palermo Cagliari Ilustração 03: Atual Itália e suas regiões. Fonte: http://pinoulivi.com/verpor/territor2.htm, acesso em 09/08/2007. 24 Como mostra a ilustração 03, a região Trentino-Alto Adige está situada ao Norte da Itália e possui como regiões vizinhas o território de Vêneto e a Lombardia. Também faz fronteira com a Áustria ao Norte. Região 04 Províncias Siglas Trentino-Alto Adige TRENTO Bolzano TN BZ Províncias Siglas Municípios TRENTO TN 223 Bolzano BZ 116 339 Ilustração 04: Região de Trentino-Alto Adige e as províncias de Trento e Bolzano. Fonte: http://pinoulivi.com/verpor/territor2.htm, acesso em 09/08/2007. O ambiente geográfico desta região se caracteriza principalmente pela quantidade de montanhas, onde nos mais altos picos há a concentração de neve. Tal característica física do solo indica que não é um dos melhores lugares para a agricultura conforme afirma Grandi citado por Silva: A região trentina caracteriza-se por ser “única de montanha, praticamente privada de território plano além dos 100 metros acima do mar, o que significa que, quando se fala da utilização da sua superfície, se faz no sentido vertical sendo que 69,9% do território situa-se além dos 1.000 metros, isto determina um forte limite à superfície agrária cultivável (2001, pág. 19). 25 As ilustrações 05 e 06 procuram dar visibilidade à descrição anterior. Ilustração 05: Alpes da região Trentino-Alto Adige. Fonte: http://www.italytraveller.com/images/home_trentino.jpg, acesso em 05/02/2008. Ilustração 06: Alpes da região Trentino-Alto Adige. Fonte: www.italytraveller.com/it/r/trentino/a/dolomiti, acesso em 05/02/2008. 26 Apesar desta característica limitante para o cultivo na região Trentino-Alto Adige, a maioria da população que lá vivia no século XIX, período da emigração para a América, trabalhava na agricultura. Estas características, tanto da geografia como o fazer e o trabalho cotidiano da gente trentina, foram frequentemente tematizadas nas canções que são objeto do presente trabalho. Esta região, foi muito disputada entre os impérios, estando até 1918 sob o domínio da Áustria, sendo chamada de Tirol5. De acordo com a publicação Provincia Autonoma di Trento Assessorato A`ll Emigrazione Gli ultimi duecento anni, esta região foi anexada à Itália há apenas 90 anos, antes e durante 114 anos, foi província da Áustria: de 1803 a 1918 (PROVINCIA Autonoma di Trento Assessorato A`ll Emigrazione, 1990, pág. 24). Ilustração 07: Trento sob ocupação austríaca Fonte: (PROVINCIA AUTONOMA DI TRENTO, 1994, pág. 17). 5 Também chamado de Tirol Meridional ou Tirol Italiano (GROSSELLI, 1987, pág. 31). 27 Parte dos migrantes que vieram desta região para Santa Catarina, estavam situados em território austríaco e não italiano, motivo pelo qual são denominados de tiroleses, ainda que pertencessem a região e fizessem parte do Trentino. Devido à própria atribuição do império austríaco, os habitantes que emigrassem perdiam momentaneamente sua cidadania austríaca: A emigração provocará automaticamente a perda da cidadania austríaca e do incolato. ( O incolato era o direito que cada cidadão austríaco tinha à residência e obrigava os municípios a assistir aos cidadãos indigentes que não pudessem fazer frente à satisfação de suas exigências vitais da família )” ( GROSSELLI apud BONATTI; LENZI, 2006, pág. 37). Conforme Vicenzi (2000) os próprios habitantes não se consideravam austríacos, sendo o italiano a língua dominante ao sul do Tirol (Trentino), enquanto na região norte do Tirol (Alto Adige), que está mais próxima de Innsbruck, capital do estado do Tirol, foi o alemão que esteve e está presente ainda hoje. Além da presença destas duas línguas, também há uma terceira língua, a ladina6: Nesta região ocorreram diversas guerras, entre elas podemos citar a Guerra da Criméia que teve o seu fim em 1855, Guerra contra Savóia em 1859, Guerra da Prússia contra a Áustria em 1866, Guerra Franco-Prussiana em 1870 onde a Itália se unificou e a 1ª Grande Guerra Mundial que iniciou em 1914 e teve seu fim em 1918. Algumas destas também foram tematizadas nas canções, como por exemplo, a canção Bella Ciao. O principal aspecto a ser destacado aqui é que a região Trentino-Alto Adige foi palco de uma considerável diversidade cultural, resultado das disputas entre as nações austríacas e italianas e também do fato de ser esta região, um portal de acesso aos exércitos de outros países. Faz-se importante chamar atenção para este aspecto, pois evidencia uma região em violenta transformação com intensas trocas culturais. As manifestações artísticas aí produzidas por certo participaram deste rico e violento diálogo cultural e se hoje nos parecem manifestações “cristalizadas”, que “afundam suas raízes no tempo”, a história aponta para um processo criativo bem mais dinâmico. “Ladino, ladin (ladinisch): língua românica preservada em alguns vales do Südtirol e Trentino. Sua origem remonta à latinização imposta pelos romanos aos celtas da Gália Cisalpina no século II a.C.; no século VII recebeu alguma influência do médio-alto alemão. É uma das mais antigas línguas faladas na Europa, sem ter sofrido grandes transformações nos últimos 1500 anos. A minoria ladina conta hoje com várias publicações e estudos de sua língua, dividida nos seus dialetos, entre eles: Anpezan, Badiot, Dolomitan, Fodom, Gadertal, Gherdëina e Fascian” http://www.grupotirol.com/frames.php?pag=regiao.htm, acesso em 05/02/2008. 6 28 2 A IMIGRAÇÃO TRENTINA PARA SANTA CATARINA Para falar sobre a imigração trentina para Santa Catarina, faz-se necessário contar um pouco da história do estado catarinense assim como também da história externa que levou estas pessoas a atravessarem o oceano à procura de novas terras. Sabe-se que antes das campanhas migratórias do século XIX, habitavam o território catarinense, povos indígenas e brasileiros que descendiam predominantemente de portugueses e de vários povos africanos. Entre os povos indígenas estavam os Xokléng, mais conhecidos como botocudos, os Kaigang, os povos dos Sambaquis7 e os Guarani, no litoral. Além dos indígenas, existiam também os caboclos, que eram parte da população negra e mestiça: Inicialmente [Santa Catarina] foi povoada por indígenas, cujos primeiros vestígios, segundo a arqueologia, datam de aproximadamente 5.500 anos a. C. Em época mais recente, quando das primeiras incursões de brancos pela região (entre 1542 e 1775), ela encontrava-se habitada principalmente por tribos Kaingang, além de se registrar a presença de tribos Xokleng e Guarani. A segunda fase de povoamento se dá com a presença de caboclos ou sertanejos, que ocuparam a terra no sistema de “posse”. Entre eles inclui-se parte de população negra e mestiça, sobre a qual se dispõe de poucos dados, face à inexistência desse tipo de estudo para a região. Sabe-se, entretanto, que tanto do litoral quando do oeste catarinense afluiu este tipo de população ( SILVA, 2001, pág. 44). Quando da chegada dos imigrantes italianos, a região era ainda dominada pela mata virgem, e o único meio de locomoção era via fluvial ou através das estreitas “picadas”, a maioria feitas pelos próprios caboclos (SILVA, 2001). Estas serviram como auxílio para o processo de ocupação dos colonos europeus. “No entanto, ele afirma que aonde o italiano chegou, primeiro chegou o caboclo, abrindo, deste modo, o caminho das futuras picadas.” (SILVA, 2001, pág. 58 e 59). Neste processo realizou-se uma dupla exclusão, ou seja, inicialmente a terra foi ocupada por indígenas e depois caboclos, porém quando se iniciou a imigração no século XIX, os indígenas migraram cada vez mais para o interior do estado e assim também ocorreu com os caboclos. Apesar da chegada em uma terra praticamente virgem, nada aparenta ter sido fácil para os imigrantes trentinos, desde a viajem, onde ficavam dias ao navio com poucos recursos de 7 Sambaquis é o monte de conchas com vestígios humanos deixados pelos povos que antecederam os guaranis 29 higiene e alimentação, resultando em epidemias onde muitas pessoas viam a falecer durante a viajem, principalmente os mais fracos, crianças e idosos. No ponto de chegada, pisando em terra firme, as dificuldades continuaram. Recepcionados através de barracões com piso de barro batido (ver canção Noi Siam Partiti), muitos haviam de dormir uma ou duas semanas no chão. Em seguida estava a longa jornada que os mesmos tinham que fazer para chegar no respectivo lote de terra, onde o caminho por eles percorridos eram através de estreitas picadas entre a mata e horas via fluvial através de jangadas. Unindo todas estas dificuldades estão inseridos também os próprios animais que viviam na mata, ameaçando a sobrevivência: insetos transmissores de doenças, onças, cobras, entre outros. E ainda aos ataques dos indígenas, que ao verem seus locais sendo apropriados, não exitaram de roubar utensílios dos colonos e até matar. Após anos de luta a sobrevivência alimentado pelo desejo de se estabelecerem tranquilamente, as dificuldades surgiram no âmbito político e governamental, caracterizado no período do Estado Novo (1937-1945) e a presidência de Getúlio Vargas. A campanha de Nacionalização tinha como objetivo a padronização da identidade nacional brasileira, e prezava para que vários artefatos culturais estrangeiros fossem eliminados do país. Dentre eles a língua de origem, os jogos, as canções, a grade curricular das escolas, as associações, tudo o que representasse ser de identidade estrangeira: A campanha de nacionalização, de certa forma, eliminou os canais formais de atualização da etnicidade da maioria dos grupos, ao proibir instituições como a escola primária com ensino em língua estrangeira, a publicação de jornais, revistas, almanaques, ao fechar muitas das sociedades culturais e recreativas, etc. O objetivo da campanha de nacionalização era forçar a assimilação por meio da obrigatoriedade do ensino em português, supondo que isto teria como resultado uma utilização cada vez menor das línguas de origem. E ao proibir qualquer publicação, festa, atividades recreativas, de cunho étnico, esperava impor valores nacionais brasileiros que viesse substituir o sentimento de pertencer a outras nacionalidades (SEYFERTH, 1990, pág. 90). Com isso não apenas os italianos sofreram, mas também os imigrantes alemães e japoneses. Na obra de Cátia Dalmolin e o seu presente texto sobre imigrantes e descendentes no período do Estado Novo de Santa Maria e Região, quem falasse em língua italiana, cantasse canções folclóricas em italiano, jogasse cartas, mora ou bocha8, durante este período era denunciado e preso: “Em todo mundo e portanto também no Brasil os Italianos apresentam 3 tipos de jogos que se constituem num folclore característico: a) o jogo da MORA; b) o jogo das BOCHAS; c) o jogo de CARTAS” (CORRADIN, 1972, pág. 233). 8 30 Certamente, dentre todos os casos de prisões efetuadas naquele período, dois merecem uma atenção especial. Estranhamente ambos não foram divulgados pela imprensa e encontram-se registrados somente na memória popular da Quarta Colônia. O primeiro foi a prisão de 19 pessoas de Dona Francisca, em junho de 1943, em Cachoeira do Sul. O motivo, segundo Alfredo Segabinazzi, que foi um dos presos na época, teria sido um baile na casa de Lino Tessele, onde cantavam algumas músicas que faziam referência às canções do folclore italiano, como Quel mazzolin dei fiori e La Bela Bruneta (DALMOLIN, 2005, pág. 87) Segundo Dalmolin, através de entrevistas e depoimentos, alguns eram torturados e até morriam na prisão: Em Vale Vêneto, hoje distrito de São João do Polêsine, também foram efetuadas prisões. O caso mais conhecido é o de Serafim Moro, que foi detido também em Cachoeira do Sul, vindo a falecer na prisão, no dia 19 de fevereiro de 1943 [...] Não se sabe ao certo o que aconteceu na prisão para que tal pessoa viesse a falecer [...] Moradores da Quarta Colônia e, especialmente, de Vale Vêneto, comentam que tal óbito aconteceu em razão das torturas e maus-tratos que ele sofrera na prisão (DALMOLIN, 2005, pág. 88) Outro caso retratado por Dalmolin: No interior de Faxinal do Soturno, em Santos Anjos, uma professora que lecionava na localidade era a principal responsável pelas denúncias. Na vila chegaram a ser detidos, também em Cachoeira do Sul, os senhores Aquiles Dalasta e o italiano Antônio Ceretta. Este último, segundo depoimentos, também faleceu na prisão (DALMOLIN, 2005, pág. 89). Logo, além de passarem por dificuldades de sobrevivência, também passaram por dificuldades étnicas e culturais, sendo completamente discriminados. Portanto para os que vivenciaram o período da campanha de nacionalização, cantar seus cantos de origem, falar sua língua materna e observar associações e festividades italianas sendo concretizadas hoje, talvez tenha um significado muito mais relevante do que para as novas gerações que não conheceram e vivenciaram esta história. 31 2.1 OS MOTIVOS DA EMIGRAÇÃO Em relação ao trabalho e atividades que a população da região trentina ou tirolesa exercia na região Trentino-Alto Adige, Silva apresenta a seguinte nota: ainda esclarece que uma estatística relativa ao ano de 1890 revelava que 71,10% da população ativa dessa região tinha como profissão a agricultura, e mais 10%, “profissão primária”, diversa daquela, mas ligada ao mundo rural. Em 1889, o número de emigrados legais além-mar chegava a 25.000. No início dos anos 90, 90,7% da população estava além-mar e 8% emigrara temporariamente. A agricultura e a criação constituíam-se na principal fonte de renda da população (SILVA, 2001, pág. 19). Porém nem todos os camponeses possuíam suas próprias terras para a subsistência da família na região Trentino-Alto Adige. Muitas vezes trabalhavam em propriedade alheias, sendo que alguns camponeses, em época de crise migravam, à procura de trabalho, a outros países. Aproximadamente 25.000 famílias da região Trentino-Alto Adige emigraram para a América. Tal emigração foi um fato que na época satisfazia os interesses das três partes: a Itália, o camponês e o Brasil. Para resolver a crise econômica da Itália, era necessário que diminuísse o número de habitantes: “Foi a própria emigração que constituiu um futuro possível para quem ficou” (SILVA, 2001, pág. 234). Afirma Silva e acrescenta: A expulsão maciça era um fato que permitiu a um autor da época afirmar que “a emigração, para a Itália, é uma necessidade. Precisamos que partam de 200 a 300 mil indivíduos por ano, para que possam encontrar trabalho os que ficam (LONGHITANO apud SILVA, 2001, pág. 28). Por parte dos camponeses, era o interesse de sair da miséria, da exploração dos donos de grandes propriedades de terras; além de livrar seus herdeiros de terem que combater nos campos de guerra. Neste sentido, o sonho da América, reunia para os camponeses, várias realizações, a propriedade de terra, a fuga da guerra e fuga da exploração por parte dos grandes proprietários . Era, no dizer de Silva, a possibilidade de rebelar-se contra a situação que viviam: De fato, a “fuga” para a “Mérica” manifestava um certo espírito de rebelião, uma forma de rebelar-se contra os siori – senhores donos de terra. A raiva camponesa, embora contida devido à moral e ética católicas que permeavam as do campônio, aparecia em cartas enviadas da América e canções populares. A própria América “se transformou em ‘sonho’ porque representava a verdadeira liberdade, (...) Neste sonho estava presente tudo o que a classe camponesa anelava: a terra em abundância e sobretudo de propriedade, mas também a falta de ricos e do seu sistema social, e enfim a promessa que a família camponesa teria sido finalmente 32 unida e que seu chefe ou o filho não teriam sido enviados cada quatro ou cinco anos a combater na guerra. Uma extensão de terra suficientemente grande, livre de qualquer vínculo, em que pudessem manter a própria família, era o centro essencial das esperanças camponesas. Esta terra era virgem, não conhecia organizações sociais, o camponês não teria encontrado aí os ‘ricos’, suas leis e também isso era importante para quem tinha sido libertado da servidão da gleba havia menos de trinta anos e que desde sempre tinha sido considerado seu inferior ( 2001, pág. 32). Já por parte do Império Brasileiro, o interesse era justamente o desenvolvimento do próprio país, que segundo a visão de alguns idealizadores, só seria possível com a inserção de pessoas brancas: As razões para o estabelecimento de uma política de imigrações estrangeiras não se resumiam ao setor econômico: havia razões de ordem cultural e étnica. A preocupação das elites brasileiras com a proporção excessivamente grande de negros e de “pessoas de cor” na composição da população brasileira – vistos como um obstáculo ao desenvolvimento do País – levou ao desenvolvimento da “ideologia do branqueamento”, no interior da qual se defendia a importação de brancos, estes, sim, preparados para o trabalho sério e produtivo. Uma política de imigração era vista como a única possibilidade de livrar o Brasil da degradação (SILVA, 2001, pág. 62). Além desta idéia de que o país só poderia se desenvolver mediante a inserção da raça branca, a imigração também seria importante para fazer a ligação entre o interior do estado e o litoral, assim como defender o local de invasões de outros países. Daí porque a escolha feita pelo governo imperial das áreas a serem colonizadas. Assim a necessidade de proteção do território das pretensões argentinas e a necessidade de abrir vias de comunicação, determinou as áreas a serem colonizadas (SILVA, 2001, pág. 64) Os únicos que não demonstravam interesse e foram de certa forma prejudicados com esta política de imigração, foram os indígenas e caboclos. Tanto que os próprios indígenas eram considerados uma ameaça para os colonos europeus, pois os mesmos, percebendo que as terras onde viviam iam sendo apossadas pelos colonos e tendo que moverem-se cada vez mais para o interior do estado, acabaram por fazer parte de um conflito, cujas conseqüências duram até hoje. Tais conflitos resultaram em perdas de ambas as partes. Em Santa Catarina, antes da entrada dos trentinos ou tiroleses, vieram os alemães, sendo que a primeira colônia alemã foi São Pedro de Alcântara (1829) (GROSSELLI, 1987, pág. 275). Porém foi a colônia alemã Blumenau (1850) que teve maior influência junto aos tiroleses e trentinos que chegaram. O grande idealizador desta colônia foi Dr. Hermann Otto Blumenau, que tinha como objetivo dividir os lotes de terras e instalar os imigrantes alemães. Depois da chegada dos trentinos e tiroleses no porto de Itajaí, os migrantes se instalavam na sede da colônia Blumenau. Como as terras melhores ficaram para os que chegaram primeiro, 33 os trentinos e tiroleses tiveram que enfrentar a longa caminhada através das picadas ou via fluvial para adquirirem novos lotes de terras, este desbravamento era destinado para as margens de Blumenau, ou seja, hoje cidades próximas de Blumenau, isto se deve a um ponto de vista estratégico do próprio Dr. Blumenau, pois como nas margens haviam indígenas, os mesmos eram uma ameaça para a própria colônia. Os trentinos e tiroleses, neste caso serviram literalmente de escudo para os que haviam chegado primeiro na região (SILVA, 2001). Dentre as causas da emigração para a América vale ressaltar as constantes disputas entre o império austríaco e italiano, o que fez com que muitos trentinos se alistassem no serviço militar para a defesa e conquista do Trentino. As guerras eram freqüentes: O serviço militar na Itália era obrigatório para todos os jovens, durante 6 ou 8 anos. Ela [Itália] também não ficou isenta dessas convulsões políticas e de guerras quase seguidas, especialmente na fase de 1830 a 1870 ( VICENZI, 2000, pág. 35 e 36 ). As quedas da produção da seda e da uva também contribuíram para a emigração. A maioria da população era constituída de agricultores, a queda do cultivo da seda e da uva devido a doenças, tais como a epidemia pebrina e a criptógama, fez aumentar o interesse em emigrar para procurar uma vida melhor que propiciasse a própria propriedade de terra sem estar sujeito a exploração dos sioris9. A transformação econômica causada pela revolução industrial foi outro fator importante. Como o grande responsável para a emigração em massa a transformação que a industrialização capitalista causou. Neste sentido, o processo migratório deve ser analisado no contexto do crescimento do capitalismo mundial (SILVA, 2001). Como os camponeses na maioria das vezes produziam para a sua própria subsistência, sendo que alguns não possuíam suas próprias terras para cultivo, trabalhando assim para os latifúndios, chamados de sioris, donos de terras; grande parte da produção agrícola permanecia aos proprietários, restando pouco para a família do trabalhador camponês. Por isto, muitos agricultores migravam a países vizinhos a procura de um trabalho com maiores rendimentos: A emigração era um fenômeno conhecido pelas populações camponesas trentinas também em épocas anteriores à segunda metade do século XIX. O camponês, especialmente quando homem, adulto e apto para o trabalho, sabia o que significava deixar a própria casa em busca de uma ocupação que lhe permitisse atingir àquela 9 Sioris (Ricos) era o nome que os agricultores trentinos chamavam para aqueles que detinham o poder, tanto políticos como econômicos. (GROSSELI, 1987, pág. 99) 34 renda mínima necessária à sobrevivência. [...] Em fins de outono muitos homens abandonando os campos, desciam em direção a Itália ou atravessavam os Alpes. Dirigiam-se, de preferência, para as regiões italianas limítrofes da Lombardia e do Vêneto, mas muitos se aventuravam mais ao sul, na Emília, Romanha, Toscana, Estados pontifícios. Outros se dirigiam para o Tirol alemão e para a Suíça (GROSSELLI, 1987, pág. 75). A emigração, portanto não é simplesmente a procura pelo melhor e sim também um ato de oposição às transformações econômicas que aconteciam, tais aspectos também são descritos em algumas canções ítalo-trentinas: ...como última resposta, a emigração, que mesmo sendo uma fuga da miséria cruel que devastava algumas regiões da Itália, não deixou de ter um caráter político. Esse aspecto é nítido nas canções e poesias populares [grifo meu] que acompanhavam os viajantes sem volta: nelas se vê claramente que a emigração não era só a busca do Eldorado, mas uma recusa em continuar sob exploração (SILVA, 2001, pág. 30). A exploração da mão de obra do agricultor também foi uma influência para o êxodo. Tal indignação dos agricultores trentinos devido à exploração que se sujeitavam dos latifundiários, está descrito em um canto, depoimento citado por Vicenzi sobre a chegada dos primeiros trentinos ao porto de Itajaí: Após quase dois meses de viagem, chegavam finalmente ao seu destino. O ponto final estava à vista. Itajaí se aproximava...Reanimados por tão grato evento, saudavam incessantemente com vivas de alegria a nova terra dos seus sonhos. – “La Merica”, como eles a chamavam, estava próxima. “Viva la Merica...Ecco la liberta...Ecco la nostra speranza!...” Uns choravam emocionados, outros agitavam sues lenços e outros entoavam cantos. – “Quando saremo in Merica, in Merica vederemo: I siori i mena grassa e lê siore lê zapa sù...” – Quando chegarmos na América, na América haveremos de ver, os senhores (do Tirol) carregando esterco e as senhoras a capinar...( VICENZI, 2000, pág. 45 e 47 ). Grosselli também apresenta que muitos cantos foram criados devido ao descontentamento entre a classe de agricultores e a burguesia que possuíam as terras: “Aos ricos do Tirol/ nós lhe daremos a enxada/ a enxada e também a pá/ depois iremos ao Brasil/ a beber o bom vinho./ Os ricos a conduzir os bois/ as ricas o arado/ e os camponeses na América / a beber o vinho novo” (GROSSELLI, 1987). Acrescenta ainda que esta canção é conhecida ainda hoje nas zonas de emigração de Santa Catarina, onde foi acrescentado uma nova estrofe que fala da vontade de fazer dos bigodes dos senhores (patrões) muitas escovas para ilustrar as botas dos camponeses. O 35 grande aspecto a ser destacado que Grosselli está demonstrando é o caráter composicional da música, agricultores trentinos criando novas estrofes para a canção em terras catarinenses. A publicidade a respeito dos locais que ofereciam o estabelecimento de migrantes foi também uma grande influencia no aumento do interesse por parte daqueles que desejavam emigrar. As agências de colonização representavam ser a América como um perfeito Éden, onde o mel escorria das árvores e a terra produzia por si só. Além disto, prometiam gratuitamente a habitação de lotes de terras com ferramentas para trabalho e sementes para a agricultura (LEDRA, 1989). Um dos motivos que aumentou a intensificação da imigração de italianos em Santa Catarina, foi o contrato firmado entre o Império Brasileiro e Joaquim Caetano Pinto Júnior no ano de 1874, tinha por objetivo introduzir em um prazo de 10 anos a quantidade de 100.000 imigrantes europeus, dentre eles estavam Alemães, Austríacos, Suíços, Italianos do norte, Bascos, Belgas, Suecos, Dinamarqueses e Franceses. E segundo Piazza em termos de política imigratória, talvez tenha sido o maior contrato havido na História do Brasil. (PIAZZA, 1982). 36 2.2 A FORMAÇÃO DAS COLÔNIAS Não é possível afirmar que as primeiras colônias trentinas são as atuais cidades de Nova Trento, Rio dos Cedros e Rodeio. Pois se sabe que a ocupação do estado, assim como as divisões político administrativas foram se delimitando com o passar do tempo, é o que demonstra a ilustração 08 os migrantes chegavam nos portos do estado e assim se dirigiam para o interior, ou se estabeleciam no lugar de chegada. 37 Ilustração 08: Primeiras colônias italianas de SC. Fonte: (PIAZZA,1982). Em 1875, início da imigração trentina na maior parte do Brasil, muitas famílias devido ao cansaço da viagem transoceânica, se estabeleceram em outras regiões, demonstrado no trecho a seguir: 38 O navio que trazia o 1º grupo de imigrantes ítalo-trentinos, zarpou do porto de Trieste, em vésperas de Natal de 1874. [...] Depois de três dias de folga, o navio já bem abastecido, fez-se ao largo. Ao chegar às costas do Espírito Santo, o comandante mandou entrar no porto de Vitória, para corrigir pequenas avarias do barco. Em Vitória desembarcaram duas famílias. Dirigiram-se para a fazenda Santa Teresa, onde se haveriam de empregar e dar início à sua nova vida. [...] Em Santos atracou novamente. Neste ponto desembarcaram três famílias. Eram os Tafner, os Slomp e os Perini, que se dirigiram para São Paulo, mas logo em seguida haveriam de voltar para Santa Catarina, em Rio dos Cedros, junto com aquele 1º grupo, com o qual viajaram. De santos para diante, a viagem transcorreu num clima de profunda nostalgia. Os passageiros estavam cansados e aborrecidos. O números deles havia diminuído com a permanência de diversas famílias em Vitória e em Santos (VICENZI, 2000, pág. 45 e 47). O mesmo processo aconteceu no Estado Catarinense, pois muitas famílias trentinas se dirigiram para regiões próximas de sua chegada, o que impossibilita afirmar com certeza de qual colônia se formou primeiro. O livro História de Santa Catarina, de Oswaldo Rodrigues Cabral, demonstra que antes de 1875 houve uma tentativa de colonização italiana, sendo esta considerada a segunda colônia, Nova Trento: A primeira tentativa do estabelecimento de colonos italianos na Província data de 1836, com a fundação da Colônia Nova Itália ou Don Afonso, nas proximidades de Freguesia de São João Batista, então pertencendo ao município de São Miguel. [...] Cento e oitenta colonos sardos foram encaminhados para as referidas terras – e nisto ficou todo o movimento, que não foi seguido por nenhuma outra entrada de imigrantes. A firma não cumpriu as cláusulas do contrato e, em concessão caduca, quando grande parte dos colonos daquela única leva já se havia retirado para outros lugares, muitos deles desanimados com as incursões dos silvícolas, bem como em conseqüência de uma grande enchente, ocorrida em 1838. [...] Foi esta a primeira e única tentativa verificada na primeira metade do século XIX. Nova Trento foi a segunda colônia italiana constituída em Santa Catarina e os seus começos só se verificariam no início do último quartel do século passado. Situada no vale do rio Tijucas, a sua instalação, entretanto, liga-se intimamente à vida da Colônia Brusque (CABRAL, 1970, pág. 118). Na tese de doutorado de Bernardi a respeito da imigração italiana de Santa Catarina, divide em quatro momentos, sendo os dois primeiros relacionados com a formação da primeira tentativa de imigração italiana (colônia Nova Itália) e da formação dos municípios de Nova Trento, Rio dos Cedros e Rodeio: O primeiro momento foi a chegada de um grupo de imigrantes oriundos da ilha de Sardenha, em 1836, que formou a colônia Nova Itália, no vale do Rio Tijucas. No segundo momento, em decorrência da política imperial de colonização com imigrantes europeus, especialmente em função de contrato com Joaquim Caetano Pinto Júnior, em 1875, aportaram imigrantes italianos que fundaram a Colônia Blumenau (nos atuais municípios de Rio dos Cedros, Rodeio, Ascurra, Apiúna etc.) 39 e, em 1875, a Colônia Brusque (atualmente Botuverá, Nova Trento, Luiz Alves etc.) (BERNARDI, 2003, pág. 52). Logo, como também demonstrado na ilustração 09, os migrantes ítalo-trentinos que foram em direção a colônia Blumenau, movimentaram-se para regiões vizinhas que hoje constituem novos municípios, dentre eles Rio dos Cedros e Rodeio. Já para aqueles que se dirigiram para a colônia Brusque, também se movimentaram para região vizinha, que também constituíram novos municípios, dentre eles Nova Trento. A ilustração a seguir procura retratar a descrição anterior: Ilustração 09: Estado de Santa Catarina e os atuais municípios de Nova Trento, Rio dos Cedros e Rodeio. A importância é que estes três municípios, Nova Trento, Rio dos Cedros e Rodeio, são fortemente caracterizados como colônias italianas, sejam em sua maioria da população migrantes trentinos, tiroleses ou até mesmo de outras regiões da Itália. Isto está claramente visível nas festividades que os mesmos municípios fazem a cada ano. Alguns exemplos de divulgação da festa estão mostrados a seguir: 40 Ilustração 10: Folheto de divulgação da 18ª festa trentina, município de Rio dos Cedros Fonte: (Folheto da 18ª Festa Trentina, elaborado pelo Círculo Trentino de Rio dos Cedros, 2007). 41 Ilustração 11: Folheto de divulgação da 19ª festa La Sagra, município de Rodeio Fonte: (Folheto da 19ª Festa La Sagra, elaborado pelo Círculo Trentino de Rodeio, 2007). 42 2.3 A RELIGIÃO DO ÍTALO-TRENTINO A religião católica esteve fortemente caracterizada entre os imigrantes ítalo-trentinos como demonstra Silva: A moral camponesa [trentina] era a moral católica, e a única verdadeira autoridade reconhecida pelo camponês [trentino] se identificava com a hierarquia eclesiástica. A autoridade estatal era pura contingência histórica: não era o Kaiser a suprema autoridade, mas o Papa de Roma (GROSSELLI apud SILVA, 2001). Mas a falta de uma representação religiosa oficial (padre) fora significativa logo após a chegada dos imigrantes ítalo-trentinos em Santa Catarina. Com a intenção de preencher este vazio religioso, os próprios imigrantes construíam suas capelas, sendo que as primeiras capelas foram construídas com folhas de guaricanas (espécie de palmito) e somente depois substituídas por madeira e alvenaria. Como no início não havia a presença de um padre, os próprios ítalo-trentinos elegiam uma pessoa para improvisar a celebração de uma cerimônia religiosa (missa), geralmente a pessoa escolhida pelo grupo era considerada a mais instruída e inteligente: (...) era costume, como faziam em suas comunas na Itália, escolher um homem virtuoso e idôneo para presidir as funções religiosas. Era chamado de prevosto, que em português seria “capelão”. Rezavam todas as orações em latim e em italiano. Os cânticos eram quase todos em italiano e outros em latim, como as ladainhas, Veni Creator, Miserere, Magnificat. (...) Assim paramentado, estava também sempre presente aos sepultamentos. Cantava-se o Miserere, Libera Me e recitava-se o De Profundis [grifos meus] (SILVA, 2001, pág. 79). Como é notado na citação anterior, durante a cerimônia os cantos eram reproduzidos em língua italiana e também em latim, que fazem parte dos cantos específicos da liturgia romana. Segundo Pargolesi citado por Macchiarella (ver citação página 47), que faz uma descrição genérica de algumas características musicais do canto tradicional no Trentino, os cantos tradicionais trentinos recordam certos cantos litúrgicos da igreja. Possivelmente os cantos criados fora dela (cantos tradicionais), foram influenciados pelos cantos litúrgicos. Outros títulos de cantos também são citados por Silva através das cerimônias religiosas: A Semana Santa dos colonos era comemorada solenemente: no Domingo havia a procissão de ramos, com cantos entoados do melhor modo possível. Nos últimos dias rezava-se o Ofício das Trevas, sendo os salmos executados com melodia 43 simplificada; as imagens encontravam-se cobertas e em lugar dos sinos e campainhas, soava a matraca – a ‘racola’ dos colonos. Na Sexta-Feira Santa havia a Via-Crucis solene e o beijo da cruz. O domingo de Páscoa pouco diferia dos demais domingos [...] Em diversos lugares o padre leigo [não oficial] celebrava também a missa dominical: A piedade audiovisual do imigrante pouco tinha a dizer quanto ao cunho teológico-jurídico da cerimônia, interessando-lhe sobretudo o aspecto externo. O padre-leigo surgia paralelamente e, após o sinal da cruz, em latim, fazia as orações iniciais da missa, às quais seguiam-se o Kyrie, o Glória, o Credo, o Sanctus e o Agnus Dei, cantados pelo coro e entremeados de outras orações [grifos meus], além do sermão. Não havia consagração e comunhão, mas dava-se a benção final e a assembléia sentia-se satisfeita com a solenidade, que se encerrava com o Dio sia benedetto (SILVA, 2001, pág. 81) Em um depoimento a respeito da construção de uma nova igreja, são apontados por Silva outros títulos de cantos: A instalação da igreja foi realizada solenemente em abril de 1915 pelo padre Modestino Oeschtering. De acordo com Deretti, “toda a população estava presente, entoando Te deum Laudamos, Lodate Maria, Dolce Cuor del mio Gesú e outros cânticos italianos [grifos meus]. O padre Modestino proferiu breve alocução em italiano, felicitando a população” (SILVA, 2001, pág. 93 e 94). Os religiosos oficiais que existiam no início da imigração ítalo-trentina eram os de origem alemã (franciscanos). E as escolas paroquiais eram os principais locais responsáveis pela educação da comunidade. Devido as divergências entre os franciscanos e os ítalo- trentinos, causadas pela reformulação educacional dos franciscanos e também por questões culturais, houve conflitos entre ambas as partes que preocupava as autoridades. Para resolver esta situação o governo italiano em 1916 interveio com o envio de padres italianos (salesianos) que segundo Bonatti e Lenzi foram quatro padres: “ Já em outubro do mesmo ano [1916] era confirmado o embarque de quatro padres salesianos, que iriam atender os fiéis das paróquias de população italiana no Vale do Itajaí ” (BONATTI; LENZI, 2006, pág. 124). A partir da chegada (1916) dos salesianos, foram os mesmos os principais responsáveis pelas cerimônias religiosas e também pela educação das novas gerações ítalobrasileiras em Santa Catarina. 44 3 AS MANIFESTAÇÕES EXPRESSIVAS MUSICAIS Como é notado no primeiro capítulo, vale ressaltar que as análises feitas neste trabalho são de certa forma delimitadoras pela identificação da música estudada com um certo território e com uma história comum por parte daqueles que cantam e se identificam com este tipo de música. No entanto concordamos com Carvalho, para quem, a atribuição de limites não passa de um hábito do pensamento diz ele: “quando se pensa o mundo a partir de um centro, postula-se a existência de uma fronteira: paradoxalmente, essa fronteira parece esfumar-se quando dela tentamos nos aproximar” (CARVALHO, 1994, pág. 4). Além da delimitação territorial, o trabalho também está focado em uma determinada identificação étnica, a italiana. A disciplina que relaciona música e etnia é a Etnomusicologia. Esta disciplina, segundo Bernardi surgiu recentemente: “Em 1956, uma convenção de estudiosos da Filadélfia decidiu renomear a disciplina Musicologia Comparada por Etnomusicologia, atribuindo-lhe, como objeto específico, o estudo das músicas originadas em tradição oral” (2003, pág.115). Segundo Bruno Nettl, era de costume os etnomusicólogos da primeira metade do séc. XX considerarem a música como fenômeno estático, ausente de mudanças, sem estar sujeita a transformações com o passar do tempo: De fato, poderia descrever a atitude da profissão de etnomusicólogo mais ou menos assim: a Etnomusicologia era o estudo das músicas estáticas, que não mudavam, a não ser se induzidas por forças externas, e os resultados da mudança deveriam ser ignorados (NETTL, 2006, pág.13). O contrário ocorria com a Musicologia histórica, que visava mudanças e inovações em um determinado estilo musical. Nettl afirma que este tipo de concepção acabava por excluir aqueles que não inovavam. Já a partir de 1950, as concepções mudam, os etnomusicólogos passam a considerar o fator dinâmico que a própria música carrega, sendo o principal tópico para os etnomusicólogos e os historiadores em Música que não deixam de visar as mudanças. A preservação, então, passa a ser destaque nos estudos de fontes primárias. Como a mudança passa a ser um dos principais focos do estudo etnomusicológico, várias indagações surgiram a 45 respeito afirma Nettl: “o que muda (ou é mudado)? Como abordar os vários tipos de mudança? O que faz com que as pessoas mudem (ou não) sua música? Como a mudança musical se relaciona com a mudança cultural?” (NETTL, 2006, pág. 14) Também ´varios pesquisadores procuraram elaborar formulações teóricas sobre a mudança. Segundo Alan Merriam citado por Nettl, o ponto de partida estaria em fazer a distinção entre a mudança que ocorre devido ao contato com outras culturas e a mudança devido a fatores internos da cultura. Após 1970 os etnomusicólogos passam a focar a mudança que ocorre devido o contato com as demais culturas. Os pesquisadores passaram a sugerir tipologias de mudanças. Nettl apresenta um conceito que se chama ‘energia musical’: [...] sugeri um conceito que chamei de ‘energia musical’, como uma constante dentro da qual mudanças e continuidades de estilo, repertório, tecnologia e aspectos dos componentes sociais da música são manipuladas por uma sociedade, a fim de acomodar as necessidades tanto de mudança quanto de continuidade (NETTL, 2006, pág. 16). Um ponto interessante destaque nas experiências de Nettl, é que o próprio conceito de mudança pode possuir valores e funções diferentes dependendo de cada contexto cultural. Sobre mudança musical através de quatro contextos culturais distintos: os Black Foot (PéPreto, povo nativo da planície central da América do Norte), a música carnática de Madras, a Escola de Música da Universidade de Illinois e a música de Teerã na Pérsia. Algumas conclusões afirmadas por Nettl: “essas quatro culturas pensam de modo diferente sobre o que constitui principalmente a mudança musical [...]. A estabilidade e a mudança musicais constituem valores estéticos e talvez éticos” (NETTL, 2006, pág. 21) Para os Black Foot a mudança musical ocorre pelo acréscimo de novas canções, a expansão do repertório que segundo o informante questionado por Nettl cerca de 100 novas músicas chegam a reserva e somente substituem as antigas. Já a mudança musical da Escola de Música da Universidade de Illinois, ocorre pelo acréscimo de novos elementos estilísticos, que segundo Nettl genericamente não é uma característica desta escola mas sim da cultura musical acadêmica da América do Norte. Já em Madras, o informante considera a mudança musical aquela que é alterada pela influencia de elementos que constituem uma outra cultura, no caso a fusão com a harmonia da música ocidental por exemplo, vindo a alterar a prática interpretativa. Segundo o informante questionado por Nettl, instrumentos musicais ocidentais na música carnática são aceitáveis desde que a música soe como eles (povo nativo da região) queiram. Para a música Persa algumas mudanças musicais são destacadas: o sistema básico (radif), experimentação de modos e sub-modos diferentes, sons tipicamente ocidentais, novas 46 teorias, ensino da música em diversas instituições distintas, menos improvisação, mudança da afinação para a escala cromática. Segundo Nettl essas mudanças musicais para os Black Foot e os acadêmicos da Escola de Música da Universidade de Illinois não eram vistos de forma negativa, sendo considerada a mudança algo natural. Para os persas as mudanças ocorreram para preservar o sistema básico. Já para o informante de Madras a mudança é vista como algo ruim. Neste capítulo procurei identificar algumas pesquisas que foram realizadas sobre as manifestações expressivas musicais no século XIX e início do século XX no território trentino, pois foi o período em que ocorreu o êxodo para a América. De acordo com as estatísticas de Piazza, foi aproximadamente de 1870 até 1930 o período mais significativo da imigração italiana. Diante disto apresentarei algumas características da música deste período para mais adiante fazer uma comparação com as manifestações musicais observadas no Brasil. 47 3.1 AS PESQUISAS SOBRE A MÚSICA TRENTINA DE TRADIÇÃO ORAL Ignazio Macchiarella, na obra Introduzione al Canto di Tradizione Orale nel Trentino(1999), realiza uma análise da bibliografia que vai do século XIX até a última década do século XX, sobre a música popular no Trentino-Alto Adige. Este autor faz também uma proposta de análise musical e de transcrição musical. As pesquisas sobre a música de tradição oral da região Trentino-Alto Adige iniciaram-se já no início do século XIX, neste período a região pertencia ao Império Austro-Húngaro10. Porém tais pesquisas relatavam em grande parte observações individuais dos cantos, instrumentos musicais e coleta dos textos verbais; não havia muitas informações a respeito da execução musical. O principal objetivo era a coleta dos textos dos cantos, pois para os pesquisadores do século XIX, canto popular equivalia à poesia popular, sem grandes considerações a respeito da execução musical: Como é conhecido o interesse dos folcloristas do século XIX no estudo do canto popular é endereçado exclusivamente ao texto verbal dos cantos, tanto que a mesma definição canto popular equivale a poesia popular e não tem nenhuma consideração a execução musical (MACCHIARELLA, 1999, pág 25, traduzido por Maria Salete Santos Silva). 11 O fato da região estar sobre domínio do império Austro-Húngaro até 1918, fez com que algumas pesquisas, fossem feitas por estudiosos e pesquisadores austríacos, sendo que tais pesquisas sobre a região Trentino-Alto Adige, que hoje pertence à Itália, são de propriedade austríaca (MACCHIARELLA, 1999). Uma das pesquisas foi a coordenada pelo austríaco Joseph Von Sonnleithner (MACCHIARELLA, 1999), o método que ele utilizou foi o envio de um questionário para as autoridades trentinas, perguntando sobre quais eram os cantos, melodias e danças mais freqüentes na região. A pesquisa não obteve muitos resultados, devido à falta de colaboração por parte de algumas autoridades. Porém os resultados obtidos se encontram em quatro fascículos onde em um deles está o primeiro registro documental sobre a música popular desta região: Tais documentos, hoje conservados em quatro fascículos no arquivo da Gesellschaft der Musikfreunde de Viena (n. XXI, XXII, XXIII e XXIV della Sonnleithner- Sammlung) transformam-se em importante valor documentário. O primeiro fascículo (n. XXI) foi estudado e reproduzido por Antonio Carlini. Trata“Após muitos séculos, mais de um milênio de lutas políticas, a Áustria e a Hungria se uniram e formaram, em 1867, um império dual com parlamentos e governo próprios, o Império Austro-Húngaro” (BONATTI; LENZI, 2006, pág. 21) 11 “como è noto, l`intereese dei folkloristi ottocenteschi nello studio del canto popolare è indirizzato esclusivamente al texto verbale dei canti, tanto che la stessa definizione canto popolare equivale a poesia popolare e non tiene in nessuna considerazione l`esecuzione musicale” (MACCHIARELLA,1999, pág 25). 10 48 se de uma coleção de vinte e uma melodias certamente desunte12 da execução, isto é apresentada ao vivo e não copiada da origem impressa [...] [que] constitui o primeiro núcleo documentado da música popular e de uso popular no Trentino. As melodias guardam verdadeiramente execuções violinísticas sem acompanhamento (MACCHIARELLA, 1999, pág 22 e 23, traduzido por Maria Salete S. Silva).13 Na segunda metade do século XIX, um dos pesquisadores mais significativos foi Nepomuceno Bolognini (MACCHIARELLA, 1999) que teve como foco a forma da canção Maitinade. A Maitinade é uma canção de romance, uma serenata onde o namorado cantor e os instrumentistas ficam tocando abaixo da janela onde está situada a bela dama. Seus relatos afirmam que este tipo de canção é semelhante a outras regiões da Itália: Concluindo seu estudo Bolognini afirma: A maior parte strambotti maitinade temos também em comum nós [trentinos] com todas as províncias italianas iguais aquelas que são cantadas na Sicília, em Nápoles, na Toscana, Piemonte, Romagna, Veneto etc... com pouca diferença de forma ( MACCHIARELLA, 1999, pág 27, traduzido por Maria Salete S. Silva).14 Uma das características que os pesquisadores apresentam nos estudos sobre os cantos que ocorriam no Trentino, é a atribuição de categorias para os mesmos, isto está demonstrado nas obras e é o caso do trabalho de Bolognini que conforme indica Macchiarella: Tais materiais são subdivididos em oito categorias: maitinade; cantos de recrutas; cantos de amor e de paquera; cantos narrativos e dançados; cantos de trabalho masculinos; cantos femininos referentes a fiação; cantos referentes a gravidez, ao parto e a infância; enfim cançonetas e estorinhas de paqueras ( MACCHIARELLA, 1999, pág 30, traduzido por Maria Salete S. Silva ).15 O mesmo acontece no trabalho de Albino Zenatti e de sua mãe Fanny Cipriani Zenatti: Algumas palavras nesta e em citações seguintes foram mantidas em italiano. “Tali documenti, oggi conservati in quattro fascicoli presso l`Archivio della Gesellschaft der Musikfreunde di Vienna (n. XXI, XXII, XXIII e XXIV della Sonnleithner- Sammlung) reivestono tuttavia um importante valore documentario. Il primo fascicolo (n. XXI) è stato attentamente studiato e riprodotto da Antonio Carlini. Si tratta di una collezione di ventuno melodie da ballo “sicuramente desunte da esecuzioni, cioè tratte “dal vivo” e non copiate da fonti a stampa [...] [che] costituiscono il primo núcleo documentario della musica popolare e di uso popolare in Trentino” Le melodie riguardano verosimilmente esecuzioni violinistiche senza accompagnamento” ( MACCHIARELLA, 1999, pág 22 e 23 ). 14 “Concludendo la sua trattazione Bolognini afferma che “la massima parte degli strambotti (maitinade) li avremmo anche noi [trentini] comuni com tutte le provincie italiane, eguali e quelli che vengono cantati nella Sicilia, e nel Napoletano, e in Toscana, Piemonte, Romagna, Veneto ecc., com poche differenze di forma”( BOLOGNINI apud MACCHIARELLA, 1999, pág 27 ). 15 “Tale materiale viene suddiviso in otto categorie: maitinade; canti dei coscritti; canti d`amore e del corteggiamento; canti narrativi e ballate; canti del lavoro maschili, canti femminili connessi alla filatura; canti connessi alla gravidanza, al parto e all`infanzia; ed infine canzoncine, storielle, filastrocche, ecc” ( MACCHIARELLA, 1999, pág 30 ). 12 13 49 Os textos são claramente regulados e ordenados em cinco capítulos: I. Maitinade, II. Estória religiosa orações e cantos de questuanti, III. Cantilenas de namoricos, de jogos, de sortilégio, invocações, esconjuros, IV. Adivinhações, V. Cantos e provérbios com alusões políticas (MACCHIARELLA, 1999, pág 30, traduzido por Maria Salete S. Silva ).16 Também é o caso do trabalho de Silvio Pedrotti, Canti popolari trentini, que segundo Macchiarella separa as cento e sessenta e sete canções que constituem o volume em categorias possivelmente ligados aos temas dos textos verbais das canções: O volume do conjunto apresenta cento e sessenta e sete cantos: Paqueras e cantos de infância de roda; cantos dos recrutas militares; cantos dos encarceirados, dos profughi , dos emigrantes; cantos de trabalho; cantos de amor; cantos da vida familiar; cantos de malttia; cantos espirituais e congratulatórios; bailados, brincadeiras e argumentos vários. A razão de tal organização não são explicitadas embora resulte evidente que tenham em consideração somente o conteúdo dos textos verbais ( MACCHIARELLA, 1999, pág 69, traduzido por Maria Salete S. Silva).17 Atualmente esta categorização para os cantos permanece, é o que está demonstrado através dos registros fonográficos do Museu dos Usos e Costumes da Gente Trentina, situado na cidade de San Michele All` Adige18, que estão disponíveis gratuitamente em seu próprio site da internet. Os sons e as canções de tradição oral de uma parte da região Trentino-Alto Adige estão divididas nas seguintes categorias: Alpina (Alpini), Autoria (Autore) Cantahistórias (Cantastorie), Canto (Cantinela), Canto Narrativo (Canto Narrativo), Canção (Canzone), Carnaval (Carnavale), Conscrição (Coscrizione), Canção Acumulativa (Canzone Cumulativa), Duplos Sentidos (Doppi Sensi), Emigração (Emigrazione), Filastrocca, Guerra (Guerra), Adivinhação (Indovinello), Em função (In Funzione), Hino (Inno), Lamento (Lamento), Louvor (Lauda), Lírico monostrófico (Lirico-Monostrofico), Manfrina, Militar (Militare), Monacazione, Montanha (Montagna), Ninar (Ninna Nanna), Absurdas (Nonsense), Oração (Orazione), Patriótico (Pattriotico), Polka (Polka), Religioso (Religioso), Chamado (Richiamo), Ritual (Rito), Romance (Romanza), Satírico (Satirico), Estrofe (Strofette), Instrumental (Strumentale), Tratomarzo (Trato Marzo), Valsa (Valsa). Este tipo de “i testi sono chiaramente regolarizzati ed ordinati in cinque capitoli: I. Mattinate, II. Storie religiose preghiere e canti di questuanti, III. Cantilene, filastrocche giuochi di sorteggio invocazioni e scongiuri, IV. Indovinelli, V. Canti e proverbi con allusioni politiche” ( MACCHIARELLA, 1999, pág 30 ). 17 “Il volume presenta complessivamente centosessantasette canti. Questi sono ordinati in: Filastrocche e canti dell`infanzia; canti dei militari; canti di carcerati, di profughi e di emigranti; canti del lavoro; canti d`amore; canti della vita familiare; canti di malttia; canti spirituali e augurali; ballate, scherzi e argomenti varii. Le ragioni di tale ordinamento non sono esplicitate comunque risulta evidente che tengono in considerazione solamente il contenuto dei testi verbali” ( MACCHIARELLA, 1999, pág 69). 18 http://www.museosanmichele.it/, acesso em 31/10/2007 16 50 classificação segundo Macchiarella, é um interessante projeto de pesquisa sobre repertório vocal e música instrumental do mesmo museu que teve início a mais de 20 anos, resultando na obra Identità musicale della Val dei Mòcheni. plurilíngüe, de Renato Morelli: Culture e canti di uma comunità Nos primeiros anos de oitenta o museu dos usos e costumes da gente trentina de San Michele all`Adige da um andamento de um interessante projeto de documentação etnomusicológica tudo agora em desenvolvimento. Na primeira fase a atividade se concentra em torno do patrimônio do “Valle dei Mocheni” constituído de um rico conjunto de repertórios vocais e de músicas instrumentais conectado a vários tipos de dança. Esta procura que vem abalizada por Renato Morelli na parte musical e Plácido Staro na parte coreutica tem trazido à uma realização de vasta documentação que consiste em várias centenas de trechos sonoros e filmados em vídeo realizada em prática em todos os vilarejos do Vale e depositadas junto ao museu. O resultado da pesquisa sobre repertórios vocais são ilustrados no volume de Renato Morelli: Identidade musical do Val dei Mocheni Cultura e canto de uma comunidade plurilinguística. Outro a constituir a mais substancial contribuição sobre a música tradicional de uma específica zona trentina cheio de mais de trezentas transcrições musicais a respeito de uma minuciosa seleção de documentos dos mais significativos e de numerosas fontes do arquivo relativo ao passado e compreende também um interessante estudo antropológico preliminar (MACCHIARELLA, 1999, pág 81, traduzido por Maria Salete S. Silva).19 De alguma maneira este tipo de classificação para as canções repercutiu também nas publicações brasileiras, é o caso do livro ...E Cantavam – Coleção de Cantos Populares da Região de imigração Italiana no Rio Grande do Sul, que possui os cantos divididos em seis categorias: Saudades da pátria; Cantos da Vida Militar; Amor e Juventude; Vinho e Brincadeiras; Cantos Religiosos e Cantigas de Crianças. Na obra estão as letras dos cantos e também a melodia escrita em notação tradicional (partituras). O mesmo acontece para as obras de José Acácio Santana, Folclore Catarinense – Caderno 1 – Canções Italianas onde o autor separa os cantos religiosos dos demais cantos e dispõe também escritos na partitura. Na tese de doutorado de Paulo Bernardi entitulada Canção do Imigrante Italiano: sua leitura a partir de uma localidade rural catarinense, o mesmo fez uma pesquisa de campo na linha de “Nei primi anni Ottanta il Museo degli Usi e Costumi della Gente Trentina di San Michele all` Adige dà il via ad um interessante progetto di documentazione etnomusicologica tutt`ora in corso. Nella prima fase l`attività si concentra intorno al patrimonio della Valle dei Mòcheni costituito da um ricco insieme di repertori vocali e di musiche strumentali connesse a vari tipi di balli. Tale ricerca , che viene affidata a Renato Morelli per la parte musicale e a Placida Staro per la parte coreutica, ha portato alla realizzazione di una vasta documentazione, consistente in diverse centinaia di brani sonori e filmati video, realizzata in pratica in tutti i paesi della Valle e depositata presso la sede del Museo. I resultati della ricerca sui repertori vocali sono illustrati nel volume di Renato Morelli, Identità musicale della Val dei Mòcheni. Culture e canti di uma comunità plurilíngüe. Il volume, oltre a costituire il più corposo contributo documentario sulla musica tradizionale di una specifica zona del Trentino – ricco di più di trecento trascrizioni musicali che riguardano uma accurata selezione dei documenti più significativi, e di numerose fonti d`archivio relative al passato- comprende anche um interessante studio antropologico preliminare” ( MACCHIARELLA, 1999, pág 81). 19 51 Lajeado dos Pintos, a três mil metros do centro da cidade de Concórdia, separou as canções em doze grupos temáticos: infantil; rituais; trabalho; comida, bebida e lazer; soldado e guerra; migração; natureza; humor; cotidiano; narrativas; eventos sociais e locais; mar. Percebe-se que tais publicações tiveram focos em locais distintos, no estado do Rio Grande do Sul e em um município do oeste catarinense, demonstrando assim de como os trentinos se dispersaram desde sua primeira chegada. Em relação às características musicais relatadas pelos estudiosos do séc. XIX, Macchiarella cita a primeira antologia musical feita na província de Trento em 1892, Canto Popolari trentini per Canto e Pianoforte, sob autoria de Coronato Pargolesi, apresentando as seguintes descrições sobre o canto tradicional trentino: Muito interessante é a breve descrição das características gerais do canto tradicional trentino: A maior parte dos cantos são realizados à duas ou três vozes ( primeiro tenor , segundo tenor e baixo); nas audições cantadas também em uníssono outras agora com som e coro ou simplesmente em solo em forma de serenata. Nos seus cantos o povo tentou os versos mais usados do cenário hendecassílabo se encontra pelo menos na mattinate ou como dizem em Rendena: maittinade ou no vale de Laguna: macinade. Este verso é musicado por todos tanto na parte de cima como abaixo da mesma maneira. O primeiro hendecassílabo é uma onda a girar-se em torno a tônica superior , o segundo marca invés uma lenta, talvez tortuosa descida dominante sobre qual se fecha: o terceiro é igual ao primeiro, o quarto igual ao segundo e assim segue alternando até o fim da estrofe. De tal modo à formar uma espécie de salmodia que recorda certos cantos litúrgicos da Igreja ( PARGOLESI apud MACCHIARELLA, 1999, pág 34, traduzido por Maria Salete S. Silva).20 No ano de 1919, outra antologia fora publicada, Canti di Soldati, elaborado por Piero Jahier, que ficou responsável pela coleta dos textos verbais, e Vittorio Gui, responsável pela harmonização (MACCHIARELLA, 1999). A respeito das características musicais, a harmonização é a quatro vozes, as duas vozes superiores procedem por terça paralela e correspondem a linha melódica dos cantos tradicionais. As duas vozes inferiores foram construídas com o intuito de enquadrar os cantos no sistema da harmonia tonal (MACCHIARELLA, 1999). “Molto interessante è la breve descrizione delle caratteristiche generali del canto tradizionale trentino: La maggior parte dei [...] canti sono eseguiti dal popolo a dueparti, o a tre (tenori 1mi, tenori 2ndi e bassi); ne uddi cantati a due parti, o a tre (tenori 1mi, tenori 2di e bassi); ne udii cantati anche all`unisono altri ancora com a soli e coro [...] o semplicemente a solo, in forma di serenata [...] Ne`suoi canti il popolo tentò i versi più usitati, dal senario all`endecasillabo si riscontra per lo più nelle mattinate, o come dicono in Rendena: maitinade, ò nella val Lagarina: macinade. Questo verso è musicato da per tutto, su per giù, alla stessa maniera. Il primo endecassilabo è um vago aggirarsi intorno alla tonica superiore, il secondo segna invece una lenta, talvolta tortuosa discesa alla dominante, sulla quale si ferma; il terzo è eguale al primo, il quarto al secondo, e cosi via alternando sino alla fine della strofa. In tal guisa formasi una specie di salmodia che ricorda certi canti liturgici della Chiesa.” ( PARGOLESI apud MACCHIARELLA, 1999, pág 34). 20 52 Outra obra que demonstra as características musicais dos cantos tradicionais trentinos é a dissertação de Franco Sartori, Intorno alla natura musicale del popolo trentino, 1925. Segundo Macchiarella, Sartori conclui: Tenho visto cantar os nossos camponeses e tenho dito para mim mesmo: eis a natureza musical. Tenho escutado tocar uma ocarina21, uma harmônica um violão tocar no baile e tenho dito pra mim. Eis a natureza rítmica do nosso povo rude e são. Vejo com emoção operários e trabalhadores de todas as artes vencer a fadiga e o sono para bem figurar na banda do vilarejo, no coro, no círculo bandolinístico. Ouvi um rude camponês, instrutor na capela de sua aldeia, falar da sonata em lá bemol de Beethoven ao piano, que dizia nunca senti uma música mais sólida e máscula do que esta: mas este homem não faz música ele constrói montanhas são palavras suas. É dado à este povo o nutrimento espiritual de que precisa. Assim a nossa região não será só terra de silêncio mas também de vida de arte de cantos e de ecos sonoros entre pulos e saltos ( SARTORI apud MACCHIARELLA, 1999, pág 44, traduzido por Maria Salete S. Silva).22 Além de uma descrição genérica das manifestações musicais em Sartori, estão também alguns instrumentos musicais utilizados: ocarina, acordeão, violão e bandolim. Além desta citação precedida, a respeito dos instrumentos musicais presentes nas manifestações musicais da região Trentino-Alto Adige, são várias as indicações feitas por Macchiarella, dentre eles estão: tambor, acordeão, flauta, violão, violino, clarineta, timbale, cítara, clarins e contrabaixo. Ainda na primeira metade do século XX, em 1935 Giovanni Zanettin elabora Canti popolari già in uso a Cembra racolti e armonizzati. Segundo Macchiarella se trata de uma coleção de transcrições dos cantos coletados entre 1920 e 1935. Neste trabalho há transcrições de cantos que estavam esquecidos entre o povo, não se cantavam mais, logo o próprio autor declara que as transcrições não foram baseadas através de execuções musicais ao vivo e sim na sua memória auditiva, através das canções que escutou durante sua juventude (MACCHIARELLA,1999). As características musicais demonstradas por Macchiarella são: “Ocarina: uma flauta-vaso na forma de uma cabaça oval alongada, oca e geralmente feita de barro. Em um dos lados há um tubo achatado com um orifício na base; o intérprete sopra pelo tubo e, assim, através do orifício, colocando em vibração a massa de ar dentro do instrumento. A ocarina ocidental padrão foi provavelmente inventada por Giuseppe Donati, de Budrino, Itália, c. 1860, com oito orifícios para os dedos na parte frontal e doi para os polegares na parte posterior; a altura só é afetada pelo número de orifícios abertos. É comum como instrumento infantil no Ocidente, e algumas variantes são usadas na música folclórica” (SADIE, 1994, pág. 665). 22 “Ho sentito cantare i nostri contadini; e ho detto tra me: ecco la natura musicale. Ho sentito un`ocarina, una fisarmonica, una chitarra suonare da ballo e ho detto tra me: ecco la natura ritmica del nostro popolo ignaro e sano. Vedo con commozione operai e lavoratori di tutte le arti vincere la fatica e il sonno per ben figurare nella banda del villaggio, nel coro, nel circolo mandolinistico. Ho udito un rozzo contadino, istruttore della Cappella del suo paese, dire della sonata in la bemolle di Beethoven per pianoforte: “mai ho sentito una musica più solida e maschia di questa: ma quest`uomo non fa della musica; egli costruisce montagne!” Sono parole sue. Ma date a questo popolo il nutrimento spirituale di cui abbisogna [...] cosi la nostra regione non sara solo terra di silenzio e di eroi; ma anche di vita, di arte, di canti e di echi sonori tra balza e balza” ( SARTORI apud MACCHIARELLA, 1999, pág 44). 21 53 A notação é sobre dois pentagramas em clave de violino e de baixo e é articulada quase sempre na parte vocal. Normalmente no pentagrama superior são escritas as duas partes que procedem em forte igualdade de ritmo [homoritmia] por intervalo de terça paralela. Os perfis melódicos destes delineados passam ser considerados no todo como atendíveis transcrições dos cantos tradicionais se bem que evidentemente regularizados por quanto se refira ao ritmo. Falta alguma indicação sobre a lógica e os elementos executados enquanto o andamento é indicado através da expressão consoante da gramática culta: moderato, andante, alegro etc (MACCHIARELLA, 1999, pág. 52, Maria Salete S. Silva).23 Assim como repercuti o modo de classificação das canções, também aparecem nas publicações brasileiras algumas das características que estão apresentadas na obra de Macchiarella, tais como o canto a mais vozes: “La notazione è su due pentagrammi, in chiave di violino e di basso, ed è articolata quase sempre in tre parti vocali. Di norma nel pentagramma superiore sono scritte le due parti che procedono in rigida omoritmia per intervalli di terza parallela. I profili melodici da esse delineati possono essere considerati nel complesso come attendibili trascrizioni di canti tradizionali, sebbene evidentemente regolarizzati per quanto riguarda il ritmo. Manca qualsiasi indicazione circa l`agogica e gli elementi esecutivi, mentre l`andamento è indicato attraverso le consuete espressioni della grammatica colta: moderato, andante, allegro eccetera” (MACCHIARELLA, 1999, pág. 51 e 52). 23 54 Ilustração 12: Canção Monte Grappa tu sei la mia Patria Fonte: (CORRADIN, 1972, pág. 50). 55 As terças paralelas em homoritmia: Ilustração 13: Canção Noi Siam Partiti Fonte: (SANTANA, 1982). 56 Além desta característica musical, interessante também notar como a letra retrata a idéia da emigração para a América. Através da tese de doutorado de Bernardi há uma interessante análise da letra retratando o contexto histórico da emigração: [...] influências da propaganda de agentes de emigração, conjugada com um estado de carência em termos materiais e financeiros: siamo partiti col nostro onore – partimos (apenas) com nossa honra; prolongada viagem terrestre e naval em reduzidas condições humanas: trenta sei giorni di macchina e vapore – trinta e seis dias de máquina (trem, carro) e de navio; o desencanto ao chegar à sonhada América, com a percepção de outras formas de privação no lugar da cuccagna [um lugar dos sonhos onde a vida não encontra dificuldades] e da fartura imaginadas na saudosa Italia bella (All`América noi siamo arrivati – À América temos chegado/ no abbiam trovato ni paglia e ni fieno – Não encontramos nem palha nem feno/ abbiam dormito sul nudo terreno - dormimos sobre a terra nua / come lê bestie abbiamo riposà!- repousamos como animais); a construção de uma vida real e de uma nova identidade: abbiamo formato paesi e città – formamos vilas e cidades (BERNARDI, 2003) Porém apesar das publicações brasileiras apresentarem características musicais que se assemelham com os estudos no Trentino-Alto Adige, existe muitas diferenças entre uma versão e outra de um mesmo canto, demonstro aqui uma mesma canção presente em dois livros catarinenses: 57 Ilustração 14: Canção Valsugana Fonte: (VICENZI, 1970, pág. 174). 58 Ilustração 15: Canção Valsugana Fonte: (SANTANA, 1982). 59 Tanto a gravação sonora, a escrita musical como qualquer tipo de notação musical, são formas parciais de registro da música implicando uma certa cristalização do momento estudado. Neste sentido, as partituras demonstram um momento estático da música, onde o autor por meio da grafia musical convencional, considerada culta, intelectual, “fotografa” uma melodia de caráter folclórico, executada pelo povo. Estes mesmos autores apresentam diferentes características musicais em relação a uma mesma canção. Podemos observar as seguintes diferenças entre elas: a altura em que a melodia está escrita é diferente entre uma versão e outra. Mesmo se transpuséssemos a melodia de uma versão na mesma altura que a outra, em alguns compassos a melodia é diferente. Outra questão a ser apontada é que o primeiro exemplo (ilustração 14) está escrito apenas uma linha melódica, enquanto o segundo exemplo (ilustração 15) está escrito em duas linhas melódicas (duas vozes). Outra distinção claramente notada é a maneira como o texto está inserido na melodia; no último verso da primeira estrofe (a veder come la sta), no primeiro exemplo (ilustração 14) a palavra veder se repete, já no segundo exemplo (ilustração 15) é outra palavra que se repete, come. Estes aspectos indicam uma incerteza e imprecisão em relação à origem das canções, ou seja, não se sabe quem as criou, a letra original da canção, muito menos as frases melódicas e rítmicas, que de um cantor a outro podem ser executadas de diferentes maneiras. Devido a esta imprecisão e ausência de fidelidade com que apresentam os registros escritos sobre determinada expressão musical, o fonógrafo (gravador sonoro) foi uma grande ferramenta que influenciou e ainda influencia o estudo da música, e teve grande repercussão para a música popular do século XX, sendo uma ferramenta fundamental para o estudo da etnomusicologia: Em consonância com a diversidade do panorama musical na primeira metade do século XX, as diferenças nacionais continuaram a ser sublinhadas; com efeito, a maior rapidez das comunicações contribuiu inicialmente para acentuar ainda mais os contrastes entre culturas. As práticas musicais nacionalistas do século XX diferem em vários aspectos das do século XIX. Procedeu-se a um estudo muito mais sistemático do material popular e com métodos científicos rigorosos. A música popular deixou de ser recolhida pelo processo rudimentar, que consistia em tentar transcreve-la em notação convencional, para passar a sê-lo com a fidelidade que a utilização do fonógrafo e do gravador tornou possível; os espécimes recolhidos foram analisados objetivamente, com técnicas desenvolvidas no âmbito da nova disciplina da etnomusicologia, permitindo descobrir a verdadeira natureza da música, em vez de ignorar as suas “irregularidades” ou de tentar enquadra-las nas regras da música erudita, como tantas vezes haviam feito os românticos. Este conhecimento mais rigoroso levou a um maior respeito pelas características próprias da música de tradição oral. Em vez de procurarem incluir o vocabulário da 60 música popular em estilos mais ou menos tradicionais, os compositores utilizaramno na criação de novos estilos, em particular no alargamento do campo da tonalidade (GROUT, 1988, pág. 698). O fonógrafo passou a existir a pouco tempo, através do cientista Thomas Alva Edison, em 1877 foi elaborado o primeiro fonógrafo. Este utensílio que reproduz com maior fidelidade uma execução sonora, através do seu desenvolvimento hoje temos o gravador sonoro. A vantagem que o gravador sonoro possui para o estudo da música é que ao gravar uma execução sonora, a mesma poderá ser reproduzida várias vezes, o que facilita na compreensão e elaboração de uma análise interpretativa da música, para então tentar enquadrá-la em uma grafia musical que represente com maior fidelidade possível. Como já exposto anteriormente, a etnomusicologia é uma disciplina recente, sendo que sua principal ferramenta para seu estudo é o gravador sonoro, logo as gravações também são recentes. Na Itália a fita magnética passou a existir depois de 1948: “Como é visto na Itália o uso de registro magnético no campo só vem depois de 1948 graças a obra pioneira de Giorgio Nataletti e da então Eliar, muito depois se comparado aos outros países europeus” (CARPITELLA apud MACCHIARELLA, 1999, pág 60, traduzido por Maria Salete S. Silva).24 O ponto de partida para a pesquisa etnomusicológica no Trentino só se iniciou com as gravações feitas por Alan Lomax e Diego Carpitella, de 1954 a 1955. Sendo assim, anteriormente não havia referência de gravações sonoras sobre as maneiras de como uma melodia era cantada ou tocada da região Trentino-Alto Adige, logo a idéia de como eram executados os cantos e os instrumentos musicais, se constrói baseada em relatos e descrições dos estudiosos e pesquisadores, sendo que em momento algum pode se considerar como uma fiel representação. Algumas descrições e relatos foram apresentados anteriormente, principalmente os que apresentavam características musicais semelhantes àquelas encontradas nas publicações brasileiras que falam sobre a música ítalo-trentina. Apesar da importância da coleta de dados musicais através dos primeiros registros fonográficos sobre uma determinada canção ou canções, a execução musical atual da mesma canção, ou das canções, podem conter características musicais distintas das que eram tocadas e cantadas em tempos passados, onde a diferença pode aparecer na melodia, ritmo, texto verbal, andamento, entre outros. Uma mesma melodia pode se transformar, mudar, ou seja, a “Como è noto in Itália l`avvio di registrazioni magnetiche su campo avviene solo dopo il 1948, grazie all`opera pionieristica di Giorgio Nataletti e della allora Eliar, molto in ritardo respetto agli altri paesi europei” ( CARPITELLA apud MACCHIARELLA, 1999, pág 60 ). 24 61 dinamicidade que a própria música está sujeita. Esta dinamicidade, além de demonstrada nas partituras anteriores das publicações catarinenses, está enfatizada na obra de Macchiarella como cita a seguir: Como se nota a tradição oral não é fixa, mas continuamente se transforma, segundo o processo que fogem de uma definição precisa e atualizando continuamente o próprio repertório baseado no gosto comum de seus intérpretes (MACCHIARELLA, 1999, pág. 136, traduzido por Maria Salete S. Silva).25 Tais indícios indicam que as manifestações expressivas musicais da Região Trentino- Alto Adige, assim como dos migrantes ítalo-trentinos que tocam em SC possuem influências diversas. Sendo que algumas manifestações expressivas musicais carregam consigo características de canções austríacas, estando algumas inclusive com a letra da canção em alemão. Porém, como já comentei, a maneira de estabelecer limites entre culturas, tem sido, muitas vezes um meio de defesa e identidade da própria nação, fortemente caracterizado pelas idéias românticas durante o século XIX. As manifestações expressivas estão sujeitas a muitas mudanças e, neste sentido, apresentam características de diversas culturas. Quando são classificadas dentro de determinados gêneros, isto geralmente decorre da escolha de alguma ou de algumas destas características, que se sobressaem em relação as demais. Tal ponto comum serve de referência para as manifestações expressivas musicais de outras regiões do mesmo país, o que resultará em posse, uma barreira cujo objetivo é a diferenciação das demais nações. Este aspecto demonstra a dinamicidade que as características musicais podem ter de acordo com o passar dos anos, ou seja, transformam, dialogam com outros gêneros e mudam em algo que pode não condizer com as características musicais do passado. Este caráter dinâmico, não é algo que acontece exclusivamente no canto de tradição oral no Trentino como cita Macchiarella, atualmente presencia-se na música em geral como comenta Bastos: [...] o que se passa no cenário mundial da música deste século e o caso brasileiro é paradigmático a esse respeito evoca com extrema felicidade o episódio dos livros conversantes de Borges: o maxixe dialoga com o tango, que conversa com a habanera, que proseia com o blues, com o foxtrote, que troca idéias com Chopin, Satie, Ravel, Debussy, com o flaminco, com o fado, com a valsa, com a polca, com o schottische (chóte), com a ópera..., tudo isto configurando uma série enterminável de gêneros, registros e autores conversantes, num processo de dálogo no qual a delimitação de fronteiras atende simultaneamente às setas contrastiva e inclusiva (BASTOS, 1994, pág.3). Come è noto la tradizione orale non è fissa, ma continuamente si evolve, trasformandosi secondo processi che sfuggono ad uma precisa definizione, ed attualizzando continuamente i propri repertori in base al gusto comune dei suoi interpreti” (MACCHIARELLA, 1999, pág. 136). 25 62 3.2 A MÚSICA ÍTALO-TRENTINA NOS MUNICÍPIOS DE NOVA TRENTO, RIO DOS CEDROS E RODEIO. O chamado “canto popular”, apontado como sendo o mais característico da execução musical tanto descrito na obra de Macchiarella como também nas publicações brasileiras, é um dos itens que constitui a chamada “cultura popular”. Diz Taylor citado por Brandão e Teixeira : “ [...] a cultura popular compreende as narrativas tradicionais como os cantos populares, os mitos, lendas, costumes tradicionais preservados e transmitidos oralmente de uma geração à outra, e ainda as formas populares de linguagens, seus dialetos e ditos” (1994). Para este mesmo autor o surgimento da cultura popular é incerto: É uma criação pessoal. Alguém fez, em um dia de algum lugar. Mas a sua reprodução ao longo do tempo tende a ser coletivizada, e a autoria cai no chamado domínio público. De um ponto de vista rigoroso, são as toadas, cantos, lendas, mitos, altos populares, danças folclóricas, saberes que, no correr de sua própria reprodução de pessoa a pessoa, de geração a geração, foram incorporadas ao modo de vida e ao repertório coletivo da cultura de uma determinada comunidade: pescadores, camponeses, lavradores, bóias-frias, gente da periferia da cidade (BRANDÃO; TEIXEIRA, 1994, pág. 2). A dificuldade em determinar o surgimento, a autoria, ou mesmo a “origem” está também no fato de que a renovação é um fator predominante da cultura popular, conforme explica Brandão (1994). Para este autor: Enquanto resiste a desaparecer e, preservando uma mesma estrutura básica, a todo o momento se modifica. O que significa que a todo o momento se recria. E é a sociedade maior responsável por essas mudanças nas tradições. O ser humano é basicamente criativo e recriador e os artistas populares que lidam com o canto, a dança, o artesanato modificam continuamente aquilo que um dia aprenderam a fazer (BRANDÃO, 1994, pág.2). A idéia de algo que preserva determinados elementos ao mesmo tempo que se renova e se recria, que é vivido como tradição e memória no próprio ato em que é transmitido e modificado, é o que me parece mais próximo do que observei na música ítalo-trentina. Por algum motivo alguns conjuntos musicais fazem questão de executarem a música trentina, seja como uma forma de assumir uma identidade, seja talvez por admiração a uma determinada história, que também pode estar relacionado a busca de um refúgio seguro, de uma “origem” que o informe e diga quem é: 63 Manter algum tipo de identidade – étnica. Local ou regional – parece ser essencial para que as pessoas se sintam seguras unidas por laços inoportunos a seus antepassados, a um local, a uma terra, a costumes e hábitos que lhe dão segurança, que lhes informam quem são e de onde vêm, enfim, para quem não se percam no turbilhão de informações, mudanças repentinas etc (BRANDÃO; TEIXEIRA, 1994 pág.3). Para coletar informações a respeito de quais grupos musicais tocam ou já tocaram música ítalo-trentina nos municípios de Nova Trento, Rio dos Cedros e Rodeio, foi realizado um primeiro contato com os círculos trentinos26 de cada município. No município de Nova Trento, de acordo com as informações do presidente do círculo Trentino di Nova Trento, Júlio Feller, é uma cidade com freqüentes manifestações musicais, possuindo os seguintes grupos que tocam música ítalo-trentina: o grupo Pargoleti (tradução: meninos), constituído de coralistas e também instrumentistas; a banda Padre Sabbatini, que toca somente música instrumental e o Grupo Vocale I-Grisi (tradução: os grisalhos), que só realiza execuções vocais, ou seja, coral. Em entrevista com Jonas Cadorin, fundador do grupo Pargoleti, o grupo iniciou suas atividades no ano de 2007 e os motivos para a criação do grupo foi o de gravar músicas natalinas em dialeto italiano que eram cantadas por grupos de serenata antigamente, cerca de 40 ou mais anos atrás. O nome do grupo foi sugerido por Jonas Cadorin inspirado na expressão “Divino Pargoleto” (Tradução: Divino Menino)27 encontrado na letra Tu scendi dalle Stelle (Tradução: Tu desces das Estrelas). O grupo ensaia na sede do círculo trentino de Nova Trento e também na casa de Jonas Cadorin. Os integrantes que constituem o grupo e seus respectivos instrumentos musicais são: Samoel Tomasoni (clarinetista), Sálvio Cecatto (1ª voz), Filinto Marchi (clarinetista, 2ª voz), Fernando Piva (baixo vocal), João Cadorin (2ª voz, clarinetista e gaita de boca), Vinicius Dalri Kaspar (bombardino), Martinho Machado (violão, guitarra, cavaco, arranjo e mixagem) e Jonas Cadorin (violão e 1ª voz). Como Jonas Cadorin é responsável pelas relações públicas e também democraticamente pelo repertório, logo é considerado líder do grupo. O grupo não possui coreografias ensaiadas, porém Cadorin complementa que cada um pode ficar a vontade para gesticular se quiser durantes as apresentações. O grupo possui um Cd gravado com o título “Un Ricordo di Natale” constituindo 11 músicas natalinas cantadas em italiano em serenatas Círculos trentinos: é um órgão responsável em representar e reativar a cultura de origem trentina. Atualmente existem várias cidades que possuem o círculo trentino, principalmente aquelas em que a imigração trentina fora significativa. 27 Tradução por Jonas Cadorin. Os termos “Divino Pargoleto” referem-se ao menino Jesus. 26 64 da cidade. A respeito das letras, segundo Cadorin, expressam sentimentos de namorados, traição, blasfêmias, embriaguês, mulheres... Em geral os instrumentistas tocam mais de um instrumento musical, e segundo Cadorin o tempo médio em que os instrumentistas levam para aprender a tocar é de dois anos de aulas teóricas e práticas na sede da banda de música28 ou como autodidatas. A respeito da aquisição dos instrumentos musicais, alguns são de uso pessoal e outros são tomados emprestados da banda de música. Para afinação dos instrumentos, geralmente utilizam afinadores ou se baseiam em um dos instrumentos musicais que já está afinado. O grupo procura utilizar os mesmos instrumentos musicais utilizados em serenatas na cidade em tempos passados. Os instrumentos que tocam a base de acompanhamento são o violão, clarineta, bombardino, gaita de boca e pandeiro meia lua. Segundo Cadorin na cidade de Nova Trento não existe pessoas que fabricam instrumentos musicais. Os cantores cantam tanto em uníssono como também a mais vozes com a intenção de não cansar o público ouvinte. A disposição do grupo nas apresentações é a seguinte seqüência em semicírculo: 2ª voz, baixo, 1ª voz e instrumentos musicais. O grupo quando consegue partituras, utilizam para tocar e em algumas situações fazem suas próprias partituras. Além de o grupo interpretar as músicas, também compõe músicas próprias e arranjos; as músicas são adaptadas ao grupo com arranjos musicais elaborados pelo próprio grupo, e possui no momento duas músicas de composição própria e está se preparando para a gravação de um Cd com músicas para animar festas e danças. Para as apresentações o grupo não possui agenda fixa e está aberto para convites em festas de tradição, restaurantes, festas de igreja, entre outros. Para Cadorin o mais importante nas apresentações é a afinação e animação para conquistar o público, que nem sempre entende o que o grupo está cantando, isto devido ao dialeto e o gramatical não ser a língua corrente em boa parte dos locais que se apresentam. O grupo faz o que faz porque segundo Cadorin os próprios integrantes gostam de cantar e se reunir para preparar para as pessoas, também para matar a saudade porque cantar em italiano permite sentir sensações que é peculiar, pois os integrantes cresceram ouvindo seus pais e avós manifestando seus sentimentos através da língua, que já é pouco cultivada atualmente, embora ainda seja significativa e admirada pelas pessoas que ouvem o grupo. 28 Banda musical Padre Sabbatini 65 Em contato com o círculo trentino de Rio dos Cedros, descobri que atualmente existem dois grupos musicais: o grupo Compagni Trentini e o grupo coral Colibri. O primeiro, Compagni Trentini, também possui coralistas, porém há também instrumentos musicais, como o saxofone, acordeão, violão elétrico, que servem como acompanhamento harmônico e o toque de melodias nas canções. Já o grupo Colibri, é somente coral. Em uma entrevista pessoal com Luís Giovanella Neto, regente musical do grupo Compagni Trentini, obtive algumas informações sobre o grupo. O Compagni Trentini se formou em 1992 com o encerramento das atividades de um outro grupo musical, chamado Santa Notte29. Faziam parte do grupo os seguintes integrantes: Luís Giovanella e Joana Giovanella (esposa), Alcides Kretzer, Laurinda Longo, Elsevir Nardelli e Isolde Nardelli(esposa), Erci Menestrina, Osvaldino Osti e Maria do Carmo Almeida. Os fundadores do grupo foram Alcides Kretzer e Osvaldo Osti e os motivos para sua criação foi segundo Giovanella continuar o folclore a tradição e a cultura ítalo-trentina, constituindo na época o único grupo musical com estas características no município de Rio dos Cedros. O criador do nome foi Osvaldo Osti, o mesmo fez uma lista contendo diversos nomes em italiano, através de uma votação entre os integrantes foi decidido o nome Compagni Trentini, que em português significa Companheiros Trentinos. Os locais de ensaio foram diversos, atualmente acontecem na Casa típica italiana30, situada no Parque de eventos prefeito Valmor Busarello31. Atualmente os integrantes do grupo e suas respectivas funções são Luís Giovanella como apresentador, contador de piadas em dialeto trentino, acordeonista e maestro, sendo os demais cantores Joana Giovanella, Alcides Kretzer, Laurinda Longo, Elsevir Nardelli, Isolde Nardelli, Erci Menestrina, Osvaldino Osti e Maria do Carmo Almeida. Quanto à descendência, Giovanella explica que nem todos são descendentes de imigrantes trentinos. Luís Giovanella foi um dos responsáveis em transmitir as melodias das canções para os demais cantores, sendo também considerado o líder do grupo. Como resultado desta prática musical o grupo Compagni Trentini lançou um Cd com o título Cantavano Cosi, Segundo Giovanella este grupo também executava músicas italianas trentinas, o encerramento das atividades deste grupo fez com que alguns integrantes do mesmo formassem o Compagni Trentini. 30 Segundo Taffner a casa típica foi inaugurada em 2005. Essa casa típica, chamada anteriormente pelos imigrantes de la baita [que servia de depósito para os utensílios de trabalho] é atualmente a reconstrução de uma antiga casa existente na cidade há mais de 100 anos. A casa antiga foi desmanchada do lugar onde se encontrava, e depois de reformada, foi reconstruída. Além dos ensaios que acontecem do grupo Compagni Trentini, a Casa típica também é Sede Social do Círculo Trentino de Rio dos Cedros. 31 Segundo Taffner, o Parque de eventos prefeito Valmor Busarello foi inaugurado na data de 03 de agosto de 1991. A Festa Trentina ocorre desde 1989, sendo que de 1989 a 1990, a festa foi realizada nas dependências externas (pátio) da Igreja matriz de Rio dos Cedros. A partir de 1991, todas as festas trentinas realizadas aconteceram no parque de eventos. 29 66 (Cantavam assim). O repertório deste Cd é constituído pelas seguintes músicas: Inno al Trentino, Marinariello, Vinassa Vinassa, Mèrica Mérica, Bella me Done un Bacio, Doman C`è Festa, La Montanara, Romagna Mia, Quel Mazzolin di Fiori, Noi Siam Partiti, La Moricella, Le Rose Bianchi, Richetto Va Nell`Orto. Nas apresentações, além do grupo executar o repertório que está no Cd, o grupo executa canções italianas populares dos anos 50 e 60 (Tornerò, por exemplo). Segundo Giovanella os cantos ítalos-trentinos falam sobre filhos que foram para a guerra, estórias de vida, peripécias, aventuras, romances e paixões. A respeito do repertório, já houve casos em que o grupo tocou tango, samba e marcha alemã. Para estes gêneros o grupo realizou coreografia específica com a intenção de melhor representar a cultura do determinado gênero. O acordeão é o principal instrumento utilizado, porém o grupo já utilizou contrabaixo, teclado, pistão32, violão, guitarra, saxofone e bateria; complementa Giovanella que contratava instrumentistas para certas apresentações do grupo. Em relação ao aprendizado de música Luís Giovanella começou a tocar com 10 anos de idade, aprendeu um pouco de música no colégio dos padres salesianos do município de Ascurra e seguiu adiante como autodidata. O acordeão33 de Giovanella foi comprado por conta própria através de sua esposa, um presente, já o acordeão34 que era para ser herdado do pai, foi perdido na enchente no município de Rio do Sul em 1983. Durante as apresentações quando não havia outros instrumentos musicais, somente o acordeão tocava a base de acompanhamento harmônico. A maioria das músicas executadas pelo grupo é em uníssono35 e duas vozes, porém há também músicas que são cantadas a quatro vozes. A disposição do grupo nas apresentações, Giovanella virado de frente para o público sendo que logo atrás estavam os coralistas dispostos em duas filas (mulheres dispostos a frente e homens atrás), um integrante ao lado do outro e as vozes divididas da seguinte maneira, ao lado direito de Giovanella (virado de frente para o público) contraltos e baixos, ao seu lado esquerdo, sopranos e tenores. Porém durante a coordenação de regência, em determinados momentos Giovanella virava para os coralistas. Os demais instrumentos musicais, quando havia, ficavam geralmente na mesma linha que os coralistas no lado esquerda do coro. Nas apresentações para algumas músicas o grupo utiliza “pistão: Nos instrumentos da família dos metais, o componente móvel de uma válvula de pistão (em oposição a válvulas rotativas). A corneta de pistões, ou cornet à pistons, às vezes é chamada simplesmente de ‘pistom’ ou ‘piston’ (o que também ocorre, em português, com o trompete; daí chamar-se às vezes de pistonista o executante do trompete) [...]” (SADIE, 1994, pág.727). 33 O acordeão referido é da marca Todeschini 120 baixos super 7. 34 Conta Giovanella que o acordeão a ser herdado era um de marca Universal 120 baixos. 35 Único som; uma única melodia cantada igualmente pelos cantores. 32 67 partituras, tais como Ave Maria do Morro, Va Pensiero, Signore de Licine. O grupo não possui composições próprias, porém algumas piadas contadas em dialeto trentino durante as apresentações são de criações próprias. Segundo Giovanella no município de Rio dos Cedros, não conhece alguém que fabrica algum instrumento musical. Geralmente o grupo se apresenta nas festividades italianas e nos eventos organizados pelos círculos trentinos. Os círculos trentinos não estão somente em atividade no Brasil, uns exemplos são os casos das apresentações musicais que o grupo Compagni Trentini realizou nas cidades de Corrientes e Entre Rios através do Círculo Trentino da Argentina. O mais importante nas apresentações para Giovanella é agradar, envolver e ganhar o público, assim como mostrar “o valor cultural”, porque acredita que a “música folclórica italiana” possui valores e, como ele mesmo aponta, apesar das mudanças os valores persistem, pois “mexe com a identidade das pessoas”. Possivelmente, os motivos que levam estes músicos a tocarem a música ítalo-trentina, vão mais além da idéia de preservação da tradição, pois além do cultivo cultural, estão também as apresentações que se constroem como resultado de ensaios, amizade, companheirismo como atos de sociabilidade. Logo, o motivo genérico, endereçado ao público, é o cultivo da tradição, porém além deste, existem também motivos pessoais para a construção do conjunto musical, baseados na rede de sociabilidade e na própria construção das identidades individuais e coletivas. As evidências destas motivações contudo, vão aparecer em outro depoimento, sobre o qual falo adiante. Interessante notar que anterior a origem do grupo Compagni Trentini, existia o grupo Santa Notte. Este dado indica que anteriormente a valorização e a preservação da cultura ítalo-trentina, através da música, também esteve presente na região. Nas ilustrações abaixo, estão representadas a capa e contra capa do disco do grupo Compagni Trentini: 68 Ilustração 16: Capa do disco do grupo Compagni Trentini – “Cantavano Cosi” Fonte: (Fita K7 Compagni Trentini, 1996). A forma como o grupo se apresenta indica a ilustração que deseja passar ao público. Várias características parecem apontar para o passado como no caso dos trajes utilizados. As garrafas de vinho sobre a mesa, fazem referência à relação entre italianos e a produção da uva, assim como ao próprio vinho, bebida que no caso do Brasil, foi produzida principalmente por migrantes de descendência italiana. Quanto ao acordeão este parece ser também o instrumento musical que acompanhou as famílias italianas que vieram para o Brasil. A prática deste instrumento parece ter sido também cultivada nas escolas onde padres italianos lecionavam. Tendo este dado aparecido também nos depoimentos coletados. 69 Ilustração 17: Contra capa do disco do grupo Compagni Trentini - “Cantavano Cosi” Fonte: (Fita K7 Compagni Trentini, 1996). O que mais chama atenção na ilustração 17 é justamente a mensagem que o grupo deseja transmitir, além de um agradecimento às pessoas que tornaram possível o registro fonográfico, está também à valorização dos hábitos e costumes do passado que conforme afirmam foram fundamentais para a construção de uma “nova civilização”, “...por entenderem que os valores do passado contribuíram o progresso dos povos”. Compartilham, nesta mensagem, com a visão de que os europeus foram a parcela das “raças” que contribuíram com o progresso da América. As imagens do presente e do passado mesclam-se, num conjunto de múltiplas referências. Seja qual for o grupo, tanto musical como de dança, de jogo (cartas, mora ou bocha), que têm como objetivos preservar e transmitir a cultura italiana, estes podem encontrar possibilidades de vínculos com diversos órgãos que apóiam a valorização cultural: círculos trentinos, consulado italiano, embaixada da Itália, entre outros. Tal valorização étnica e cultural é encontrada também nas próprias políticas de Estado,que, nos últimos anos teve a 70 intenção de promover a idéia de um Estado multicultural em Santa Catarina. Um exemplo recente é a canção Mérica Mérica que se tornou a canção oficial da imigração italiana para Santa Catarina: Governo de SC declara a música “Mérica, Mérica, Mérica” tema da colonização italiana no Estado. O Circolo Trentino de Nova Trento informa que a popular canção “Mérica, Mérica, Mérica” agora é considerada oficialmente tema da colonização italiana no Estado de Santa Catarina. A escolha foi aprovada pela Assembléia Legislativa e sancionada pelo governador Luiz Henrique da Silveira, sendo instituída, posteriormente, pela Lei Número 14.239, de cinco de dezembro de 2007. A determinação passa a fazer parte das comemorações dos 130 anos de colonização italiana em Santa Catarina. O texto integral da música e a sua partitura podem ser encontrados na página 2 do Diário Oficial de SC, edição de número 18.261, de 5/12/2007.36 A dissertação de mestrado de Patrícia Ruon (2005), apresenta em uma das partes de um capítulo sobre os corais e grupos folclóricos que cantam e tocam música ítalo-trentinas. No texto de Ruon, fica claro o conjunto de relações institucionais e políticas intra e extra locais nas quais estão envolvidos estes grupos: A cidade de Rio dos Cedros dispõe de um grupo folclórico ativo, criado em 1989 e lançado na primeira Festa Trentina na cidade. É o Grupo Folclórico Colibri que está à disposição da Prefeitura, mas é independente dela, sendo mantido por promoções próprias, com o patrocínio de empresas da região para o transporte, alimentação e hospedagem. O grupo também tem apoio do Círculo Trentino para a aquisição de trajes típicos, viagens para apresentações e outras coisas necessárias para se manter. O nome do grupo folclórico foi escolhido pelo padre João Baptista Delsale e “significa a liberdade de cantar e dançar a história, transmitindo alegria a todos os povos”, segundo a coordenadora Marialva Longo. O primeiro CD do grupo foi lançado em 2002, intitulado “Brasil-Brasiliano”, lembrando a fusão dos povos italiano e brasileiro, com canções nas duas línguas; em 2004 foi lançado o segundo CD, com músicas cantadas em português. Até 1997 também havia participação de meninos, mas hoje o grupo é composto por 37 meninas de origens diversas, com idade entre seis e 17 anos, que ensaiam todas as terças e quintasfeiras. Com isto, juntaram-se os grupos mirim, infantil e juvenil dos Pequenos Cantores de Rio dos Cedros, existentes até 1996. [...] (2005, pág. 100 e 101). Outro aspecto importante apresentado na tese de Ruon, é a respeito da busca dos trajes típicos na tradição de origem (Itália), onde a tradição não está ligada com a concepção de pobreza: Para o diretor da Associazione Trentini nel Mondo, Rino Zandonai, a adoção de trajes típicos desta forma, sem pesquisa, reflete um problema; ele diz que não é fácil encontrar materiais que permitem conhecer e reproduzir fielmente os costumes 36 http://www.trentini.com.br/?pagina=noticiaslocais_item&id=524&unidade=26&idioma=port, acesso em 09/04/2008. 71 da tradição e que o círculo pode ajudar, mas não tem e não encontra muitos instrumentos para fazer isto, seja porque não há um acervo na Itália que reúne isto, seja porque quando ainda existe um costume típico na Itália, é fruto de uma tradição de riqueza, nunca de pobreza, o traje típico que vestiam as pessoas é muito caro. (2005, pág. 102) Já no município de Rodeio segundo informações de Laura Scoz, secretária do círculo trentino de Rodeio, existe um grupo coral onde os integrantes se reúnem informalmente, e também um grupo de dança que se chama Folktrentino di Rodeio onde o mesmo possui músicos para a realização da dança. Apesar de hoje não haver um grupo musical sólido para a cidade de Rodeio, existiam dois grupos musicais, o Giro in Itália e o grupo Vecchio Scarpone. Entretanto estes dois grupos não estão mais em atividade. Em entrevista realizada com um dos fundadores do grupo Vecchio Scarpone, as atividades do grupo se iniciaram no ano de 1997. O grupo foi fundado por Isaías Girardi e Mário Piccinini, que eram integrantes de um outro grupo musical italiano, o Giro in Itália. O motivo principal pela criação do grupo foi o de montar um conjunto que executassem somente músicas italianas, já que o Giro in Itália da qual Isaías e Mário faziam parte, executavam também músicas de outros gêneros além da italiana. O responsável pela atribuição do nome ao grupo foi o sogro do Mário Piccinini, Desidério Perón (dono da revista Insieme37). O nome Vecchio Scarpone é de uma música cujo autor é desconhecido e que fez uma poesia olhando para uma velha bota usada na guerra. O local de ensaio era na casa do pai de uma das cantoras. Os integrantes que constituíam o grupo e seus respectivos instrumentos musicais de domínio eram Mário Piccinini (Guitarrista), Antonio Zonta (Baixista), Ajuir Frainer (Baterista), Isaías Girardi (Teclado e Acordeão), Leonardo Bertoldi ( Teclado e Acordeão), Almir Venturi, Arcanjo Cristofolini, Jair Tessarollo, Josemari Frainer, Popa Frainer e Gisela Perón Piccinini (Cantores). Segundo Isaías Girardi, todos os integrantes são descendentes de imigrantes trentinos. Mário Piccinini era considerado líder do grupo. O grupo possui um Cd gravado com a mensagem Tributo alla memoria italiana, constitui um repertório de 14 músicas: Vecchio Scarpone, Simpatici Italiani, La Bella Moriccella, Mechimecomica, La Piccinina, Il Geghege, Fiori Trasteverini, Felicita, Samba Italiano, Paesanella, L`imigrante Italiano, La Tramontana, Vita di Campagna, Bella Pastora, Una Vecchia Canzone Italiana. Insieme é uma revista publicada pelo Organo Ufficiale dell’ Associazione Stampa Italiana in Brasile –ASIB,, que trata sobre assuntos gerais como por exemplo eventos culturais, festas, acordos bilaterais, serviços para reconhecimento da cidadania italiana, entre outros. 37 72 Não existia uma coreografia específica para o grupo, entretanto, enquanto executavam as músicas o grupo realizava pequenos movimentos. Além dos instrumentos musicais citados, o grupo utilizava também bandolim, cavaquinho, violão, castanholas e gaita de boca. Os cantores em determinadas canções cantavam em uníssono e outras a quatro vozes, soprano, contralto, tenor e baixo. Segundo Girardi, dentre os ritmos tocados pelo grupo estavam a tarantella, mazurka, valsa, polka, marcha e outras essencialmente do folclore e popular da Itália. Cada instrumentista possuía sua pasta de músicas com as respectivas escalas para os instrumentos. Para a afinação dos instrumentos, os instrumentistas utilizavam afinador eletrônico. Em algumas músicas o grupo utilizava partituras, principalmente quando havia solo de acordeão. Segundo Girardi, no município de Rodeio, durante a década de 50 e 60, a família Frainer fabricava acordeões, hoje apenas dois irmãos restauram acordeões na cidade. Em relação ao aprendizado de música, Isaías Girardi aprendeu no colégio dos padres Salesianos. A disposição dos instrumentistas durante as apresentações eram os seis cantores na frente, logo atrás os demais instrumentistas e o baterista atrás de todos. As apresentações eram realizadas sempre em finais de semana, o grupo se apresentou de 1998 até 2005 e dentre este período chegou a apresentar nos Estados do Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, sendo que no ano de 1997 o grupo se dedicou apenas aos ensaios. O mais importante nas apresentações para Girardi era manter a alegria, o grupo se apresentar afinado e interagir tanto com o público como com os próprios integrantes. O grupo fez o que fez devido a todos os integrantes serem amantes da música italiana, infelizmente se desfez no final de 2005, no auge, por problemas envolvendo o trabalho de cada um, com falta de tempo, por ser muito cansativo. Porém Isaías complementa que o recado foi dado e atualmente tem saudades das viagens, das grandes apresentações, algumas delas para mais de 15.000 espectadores, da amizade e companheirismo. Após isso cada integrante seguiu o seu rumo na vida. 73 Nas ilustrações abaixo estão representadas a capa e contra capa do disco do grupo Vecchio Scarpone: Ilustração 18: Capa do disco grupo Vecchio Scarpone Fonte: (Cd do grupo Vecchio Scarpone, 2002). Alguns aspectos importantes que fazem relação com a cultura de origem estão retratados através da ilustração 18, o nome do próprio grupo, as cores verde branca e vermelha (cores da bandeira italiana), os trajes típicos, o mapa italiano e também a própria mensagem em bilíngüe da capa, Tributo alla Memoria Italiana- Tributo à Memória Italiana. Outro aspecto importante demonstrado na capa, é a idéia de continuidade do trabalho do grupo, representado como Volume 1. 74 Ilustração 19: Contra capa do disco do grupo Vecchio Scarpone Fonte: (Cd do grupo Vecchio Scarpone, 2002). Já na ilustração 19 (contracapa da ilustração 18) apresenta características que não somente remete para a concepção tradicional, mas sim a ênfase em que o grupo se encontra além do tradicional, mais recentes, aspectos modernos, onde a transmite a idéia de uma concepção de um grande show musical para uma grande quantidade de pessoas, o tamanho do palco, os instrumentos e utensílios desenvolvidos com o avanço da tecnologia que fazem parte de uma época mais recente, tais como a iluminação, os microfones e instrumentos musicais elétricos que são amplificados seus sons através de caixas acústicas. Isto com o objetivo de ampliar a capacidade de intensidade sonora (volume), fazendo com que atinja um maior número de ouvintes. Também o elemento dinâmico está bem caracterizado em um título de 75 uma das músicas que constituem o Cd, a faixa Samba Italiano. Ambos os termos, tanto o Samba como o Italiano, devido a um hábito de pensamento remetem a características que não possuem relações, porém está comprovado que ambos podem se misturar. 76 CONSIDERAÇÕES FINAIS Há muito que fazer no que diz respeito ao estudo das manifestações musicais no estado de Santa Catarina, pois o mesmo é palco de diversas culturas distintas além da ítalotrentina. É fundamental salientar que este projeto poderá ser ampliado em futuras pesquisas. Foi esta uma das principais intenções acadêmicas para a elaboração do mesmo; um bom alicerce para futuros projetos de pesquisa, sejam eles tanto de especialização e mestrado quanto de doutorado. Algumas idéias que podem constituir novos projetos são: a obtenção de dados através de registros fonográficos, pesquisas sobre os grupos musicais existentes ou já extintos, composição de arranjos musicais para este tipo de manifestação, entre outras. Como estas manifestações expressivas musicais são em parte produto de uma origem setentrional italiana, outra lacuna a ser preenchida é a tradução para a língua portuguesa dos materiais escritos sobre este tipo de manifestação. A pesquisa em fontes históricas na região Trentino-Alto Adige também pode ser um viés interessante para comparação com as manifestações existentes no Brasil. Além disto existem diversas redes políticas econômicas e culturais que envolvem estas manifestações artísticas. Muitos dos materiais e depoimentos a que tive acesso apontam neste sentido. O próprio círculo trentino existe numa tênue relação entre o plano local onde concretamente se realizam estas manifestações e o plano global ou internacional que envolvem estados nacionais e suas implicações. As publicações bilíngües, algumas das quais citadas neste TCC, também indicam uma relação muito próxima e profícua de troca entre os países para os quais se destinaram os migrantes ítalo-trentinos do século XIX. Estas relações por certo influenciam nas manifestações musicais nestes países e no diálogo destes com a referência de “origem”. Neste sentido o trabalho, mais do que chegar a uma conclusão propriamente dita, procurou fundamentar o estudo sobre estas manifestações musicais em relação a algumas de suas implicações, abrindo assim, caminhos para novas pesquisas. 77 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATALHA, Luís. Antropologia uma perspectiva holística. Universidade Técnica de Lisboa - Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas: Lisboa, 2005. BERNARDI, Paulo. 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