Teatro do Oprimido na Saúde Mental

Transcrição

Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
R i o d e J a n e i r o | B r a s i l | 2 010
Diretor Presidente Jean Maciel Xavier
Vice-Presidente Marilene de souza
Av. Men de Sá, 31 - Lapa - Rio de Janeiro - RJ
CEP: 20.230-150 - BRASIL
Telefax: 55 21 2232-5826 - 2215-0503
www.cto.org.br
Desde 2006
Pólo Litoral SP
Multiplicadores: Adalgiza Luz, Érica Santos Pontes, Fabrício Gobetti
Leonardi, Izilda Lourenço Rosa e Lucia Frigério Paulo.
Coordenação Municipal de Saúde Mental de Santos: Sandra Murat
Pólo Guarulhos
Multiplicadores: Gilmara Azenha, Maria Regina Stefanini Araújo, Mirian
de Fátima Chinen, Rosemeire de Almeida.
Coordenação Municipal de Saúde Mental de Guarulhos: Eva Santos
PROJETO TEATRO DO OPRIMIDO NA SAÚDE MENTAL
Direção Artística Augusto Boal (in memorium) e Helen Sarapeck
Coordenação Geral Geo Britto
Curingas Alessandro Conceição, Claudia Simone, Monique Rodrigues,
Kelly DiBertolli e Yara Toscano
Produção Cultural Licia Rosa e Raul Araújo
Profissional de Imagem Cachalote Mattos
Profissional de Som Roni Valk
Assessoria de Comunicação Ney Motta
Projeto Gráfico Alexandre de Castro
Criação da Logomarca Paulo Rodrigues
Desenho Original da logomarca Samy Ferreira
Profissional de Vídeo Alexandre Gwaz e Bastien Viltart
Colaboração Bárbara Santos, Claudete Felix, Flavio Sanctum, Claudia
Simone , Graça Silva e Olivar Bendelak
Coordenação Editorial Bárbara Santos
Conselho Editorial Geo Britto e Helen Sarapeck
Colaboradores Alessandro Conceição, Claudia Simone, Monique Rodrigues,
Ney Motta e Olivar Bendelak
Projeto Gráfico e Edição de Arte Alexandre de Castro
Revisão Português Selma Monteiro Correia
Revisão Espanhol Lorena Pastor Rubio
Tradução Espanhol/Português Martha Moreira Lima
Tradução Inglês/Português Kátia Meiras de Vasconcelos
Fotos Anik Pólo, Carola Pagani, Bárbara Santos, Bastien Viltart, Christoph
Leucht, Flavio Sanctum, Geo Britto, Helen Sarapeck, Íris Oliver , María Laura
Corvalan, Naldo Lourenço, Noélia Albuquerque, Andrea Mendes e arquivos:
CTO, GTO-Santo André e Metoca
Impressão Master Print Gráfica e Editora
Pólo Rio de Janeiro
Multiplicadores: Ana Paula Rosa, Andréa Midore Puchol Kono, Julio
César da Silva Alves Pereira, Nelson Falcão de U. Cruz.
Coordenação Municipal de Saúde Mental de Macaé: Maria Luiza
Pólo Sergipe
Coordenação Municipal de Saúde Mental de Aracaju/Multiplicadores:
Camille Arruda, Kátia Maria Menezes de Aragão, Silvia Maria Góis,
Wagner Mendonça de Moraes, Claudine Aguiar e Joelma dos Santos
Apoio local: Tarcisio Santos
Municípios Beneficiados: RJ: Belford Roxo, Campos, Caxias, Macaé,
Niterói, Paulo de Frontin, Queimados e Rio de Janeiro; SP: Cubatão,
Guarujá, Guarulhos, Itanhaém , Praia Grande, Santos, São Paulo, São
Vicente; SE: Aracaju, Barra dos Coqueiros, Itaporanga, Itabaianinha,
Nossa Senhora das Dores e Poço Verde.
Parcerias: Prefeituras: RJ – Macaé e Niterói; Sergipe – Aracaju,
Itabaianinha, Barra dos Coqueiros; São Paulo – Guarulhos, Santos,
Guarujá, Praia Grande e Governo do Estado de Sergipe.
Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro da Saúde José Gomes Temporão
Coordenação Nacional Saúde Mental Pedro Gabriel Delgado
Equipe: Karime Fonseca, Francisco Cordeiro, Tania Grigolo, Cristina
Hoffman, Ana Ferraz, Tania Kolker, Mayara Santos, Karine Cruz, Taciane
Monteiro, Milena Pacheco, Rubia Persequini, June Scafuto, Márcia
Totugui, Miriam Di Giovanni, Karine Cruz, Marcelo Kimati, Giselle Sodré,
Kelly Costa e Silva, Renata Weber, Cleide Souza, Sâmara Rodrigues e
Ana Carla Mello
SER & NÃO SER
Editorial
CENTRO DE TEATRO DO OPRIMIDO
Bárbara Santos, editora da revista Metaxis e Curinga Internacional do CTO.
Vivemos o presente. Lembramos o passado. Imaginamos o futuro.
Parece simples, óbvio e estruturado.
Mas, às vezes, esquecemos o passado. O vivido é apagado da
memória.
Com um passado esquecido, é possível significar o presente?
No sentido inverso, pode acontecer que determinadas experiências
de vida transformem o passado em um eterno presente. E, se o
presente parece não sair do passado, seria ainda possível imaginar
o futuro?
E nos casos em que a conexão com o presente parece destroçada,
seria possível relacionar o passado da memória com o futuro da
imaginação?
A relação que temos com o tempo é construída a partir de experiências práticas e condições objetivas. Violência, pobreza, abuso,
solidão, falta de perspectivas... O mundo objetivo, internalizado,
torna-se subjetividade.
Além disso, tempo é convenção social. Convencionamos viver
num tempo simultâneo: o lugar social de SER. Temos que viver o
mesmo hoje, estar no mesmo agora para nos sentirmos e sermos
considerados normais.
Entretanto, nesse agora convencionado, muitas pessoas vivem
outros tempos. Outros “agora” não reconhecidos. Pessoas que, simultaneamente, se relacionam com interlocutores presentes e com (as
vozes de) interlocutores não presentes, de um outro tempo/espaço.
Estes últimos são irreais para o (tempo convencionado) agora, mas
são reais nesse outro tempo/espaço, lugar fora do controle social,
lugar de NÃO SER.
Tempos, relações e espaços não convencionados, não reconhecidos,
não aceitos. Sujeitos que transitam entre Ser e Não Ser, desorganizando normas, são considerados loucos e incapazes e, como tais,
alijados de seus direitos.
O Centro de Teatro do Oprimido começou a atuar na Saúde Mental
em 1994, no Rio de Janeiro, na Casa das Palmeiras, da Dra. Nise da
Silveira, no Hospital Psiquiátrico Dom Pedro II, com o grupo “As Princesas de Dom Pedro”, e depois no Hospital Psiquiátrico Jurujuba, com
o grupo “Pirei na Cenna”. Experiências que levaram Augusto Boal e
os/as Curingas do CTO a investigar se e como as formas delirantes da
arte (delírio artístico), poderiam ajudar a entender e a dialogar com
delírios patológicos. E se, também nesse contexto, a experiência
estética seria motor de transformação da realidade.
Entre 2004 e 2010, essa pesquisa foi aprofundada graças ao
compromisso de Multiplicadores que incorporaram o TO à atuação
profissional, provocando mudanças efetivas junto com usuários,
familiares e outros profissionais.
Esta Metaxis apresenta experiências de utilização do Teatro do
Oprimido na Saúde Mental, no Brasil e no mundo, com resultados
terapêuticos, sociais, institucionais e políticos, a partir de encontros
criativos entre Ser e Não Ser.
Notas:
1 Grupo em atividade.
2 Em outras palavras, se os delírios da atividade artística, exercício saudável de criatividade, poderiam ajudar na relação com
os delírios patológicos, expressão de doença mental.
Primeiras Palavras
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
5 Primeiras Palavras
15 Brasil Adentro
34 Mundo Afora
48 Ações Concretas
54 Ponto de Vista
64 Canal Aberto
69 Método
78 Estética
80 Glossário
Delírio! Delírio! Delírio!
Pinto sons, escrevo cores, declamo esculturas!
Do lixo, palavras, questionamentos, pedagogia
Possibilidade de sentir tudo que se toca
De ver tudo que se olha e estimular todos os sentidos
Sinto minha voz, ouço meu corpo, vejo minha mente
Minha visão de “raios X”
Atravessa preconceitos, visualiza transformação
Minhas “pernas elásticas”
Ultrapassam barreiras, diminuem distâncias
Sociabilizo minhas descobertas
E, nas dos outros, percebo que o mundo sabe mais que o indivíduo
De qual mundo falo com meus Neurônios estéticos?
Do “mundo adentro” ou do “mundo afora”?
Caminho “mundo adentro”, percebo “mundo afora”
Delírio! Delírio! Delírio!
Delírio Estético que produz Arte
Que cuida e recria o sujeito
Pra doença mental: Médicos!
Pra saúde mental: Estética!
Estética do pobre, do louco, das mulheres, do preso
Das Crianças, do ser humano negro
Liberdade de ser sujeito, verbo e não apenas adjetivo
De ser presente na ação do coletivo
Em São Paulo, pergunto ao usuário:
- E o Curinga, quem é?
Ele sem duvidar: - Um safado!
Quer matar o Batman, meu herói amado!
Delírio! Delírio! Delírio!
Cachalote Mattos, cenógrafo profissional e consultor de imagem do CTO.
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Primeiras Palavras
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Teatro do Oprimido
em Eaubonne
Cecília Boal, psicanalista.
Foi em Eaubonne (Água Boa), localidade próxima a Paris, que uma colega e eu,
finalmente, conseguimos convencer o diretor do hospital psiquiátrico a aceitar uma
oficina de teatro com os pacientes. Nossa prévia e longa peregrinação nos permitia constatar o quanto o teatro provocava resistência e medo no meio psiquiátrico
francês.
O espaço teatral estava simbolicamente representado com nossa chegada. Trabalhávamos duas vezes por semana, durante três horas, com cerca de vinte participantes, entre dezoito e trinta e cinco anos. O atelilê respondia ao desejo de investigar,
particularmente com os pacientes psicóticos, as relações existentes entre criação
teatral e processo terapêutico.
Sabemos que o ato teatral pode ter, em certas condições, uma função catártica.
Como na tragédia grega: libertar os espectadores da “harmathia”, a falha trágica.
Sabe-se que, em Epidauro1 , os doentes - e particularmente os doentes mentais - eram
levados ao teatro com claro objetivo terapêutico. Em um espaço preparado, num dos
lados do recinto, os doentes relatavam seus sonhos antes do espetáculo.
Mas qual será o nosso objetivo hoje, quando utilizamos as técnicas teatrais: a
catarse ou a elaboração? O teatro tanto pode permitir a simples descarga emocional
quanto a elaboração dos conteúdos que se colocam em cena, e é precisamente nesse
último aspecto que consiste o seu interesse principal.
Através de que meios o teatro permite a elaboração dos conteúdos inconscientes?
O ato teatral supõe a criação de uma linguagem e de um sistema de relações sim-
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bólicas no seio de um grupo: ele mobiliza o mundo
subterrâneo, colocando em movimento a atividade
fantasmática através do corpo e da verbalização, é
o seu próprio mundo interno que o ator coloca em
cena, dando-lhe forma no espaço e no tempo através
da relação com o outro.
Nessa perspectiva, podemos afirmar que a criação artística constitui um modo não racional de
conhecimento. No espaço teatral, um lugar deve ser
deixado em aberto para que algo de mais opaco se
manifeste, que poderá ser retomado posteriormente,
em outro contexto. O espaço do teatro deve propor
outra forma de linguagem que incorpore ritmo, corpo, som. Ali se processa o redescobrimento do corpo
como elemento de linguagem, descobre-se também
que é possível vivenciar situações, personagens e
lugares diferentes da realidade imediata. O teatro
propõe um conhecimento da realidade que objetiva
transformá-la.
Quando propomos a atividade teatral no hospital
psiquiátrico, uma questão foi a técnica mais adequada para favorecer uma expressão livre e flexível,
posto que não queríamos aprisionar os participantes
em um sistema demasiado rígido, como uma “mise
en scène” convencional de um texto. Escolhemos as
técnicas do Teatro do Oprimido que estavam sendo
desenvolvidas na França em oficinas das quais eu
mesma participava. Devido a minha formação teatral, priorizamos as improvisações, mesmo conhecendo os riscos que a proposta representava.
O jogo teatral² necessita da articulação de dois
planos: simbólico e imaginário. Quando um desses
planos se encontra comprometido, a capacidade de
jogo desaparece. Fazer de conta é diferente de fazer.
O plano imaginário vai permitir, no momento do
ato teatral, um jogo completo com os significantes.
O paciente psiquiatrizado parece carecer dessa possibilidade de fazer jogar os significantes. No nível
da linguagem, tudo se apresenta como cristalizado,
petrificado, um significante colado a um significado.
Como se não houvesse possibilidade de transformação. A criação é aquilo que podemos imaginar
a partir dos significantes. Podemos citar o exemplo
de Freud, retomado por Lacan: “O gato faz au au,
o cachorro miau miau...” O riso se desencadeia a
partir do prazer que causa esse jogo possível com os
significantes.
Primeiras Palavras
O teatro também torna possível esse jogo: um
roteiro se constrói a partir de fantasias, devaneios,
porém, uma vez colocado em cena, permite ao paciente tomar distância com relação à sua própria
criação, debilitando a certeza e introduzindo algo
da ordem de uma crítica.
Por outra parte, na representação teatral existe
uma dimensão de presença-ausência, que é permanentemente convocada. Durante as improvisações,
os lugares, as pessoas e os objetos que evocamos
encontram-se ausentes, sendo apenas representados
por um “suporte”: os outros participantes - que aceitam encarnar as personagens - e os objetos reais que
tomam o lugar dos imaginários: uma cadeira pode ser
um cavalo. Nesta dinâmica de ausência e de presença,
que reenvia ao caráter paradoxal de toda atividade
teatral, vai-se criar um circuito de representações
e simbolizações. O jogo permite a construção de
substitutos dos objetos ausentes e a sua apropriação,
oferecendo suporte à simbolização da falta.
O que será que permite esta “entrada em jogo”,
esta aceitação de que “isto é teatro, não é verdade”,
este reconhecimento da existência de duas áreas bem
diferenciadas, a área do jogo e a da realidade?
A atividade teatral está sustentada por um conjunto de normas preestabelecidas sem as quais o jogo
deixa de existir. Trata-se de normas rígidas, dentro
das quais tudo é permitido. Na improvisação, posso
inventar o meu texto, porém não posso abandonar
a personagem que me foi atribuída, uma vez que a
aceitei. Ela tem um limite no tempo. Quando a improvisação acaba, abandono a minha personagem
para tornar a ser eu mesmo. Todo mundo sabe,
como sabíamos, quando crianças, quando estávamos
“brincando” e quando era “de verdade”. Trata-se de
um código antigo, que toma força de ritual. Quando
digo: “vou fazer teatro”, instaura-se um silêncio de
teatro, um tempo de teatro, um espaço de teatro.
O teatro é algo sério, e eu já sei disso quando
aceito jogar. Através do jogo, e apesar do que ele
tem de lúdico, algo grave acontece comigo, mobiliza
as minhas emoções, as minhas lembranças, o meu
corpo, por dentro e por fora. Minha boca fica seca,
meu coração bate mais forte, posso tremer, ficar assustado, sabendo que me exponho ao olhar do outro.
Meu corpo, olhado, se “faliciza”, minha palavra
ressoa e é escutada. No entanto, quando, em cena,
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Primeiras Palavras
eu jogo de verdade, quando não “faço de conta”,
é para mim que eu o faço, embora a dimensão do
outro nunca esteja ausente. Eu jogo para mim, entro
em contato comigo de uma maneira única, feita de
prazer e medo, como nas brigas e no amor.
O gozo do teatro inscreve-se também em um
para além do gozo fálico. No entanto, a rigidez do
seu universo codificado permite a manifestação do
pulsional sem autorizar o seu transbordamento. O
teatro é um convite para o ato, nunca para a passagem ao ato. De fato, é muito raro - quase se poderia
afirmar, impossível - que se produza uma passagem
ao ato num ensaio teatral ou durante uma sessão de
improvisações. Esse primeiro elemento de contenção
funciona como barreira contra o gozo ilimitado: os
rituais que precedem qualquer encenação. O ato
teatral é uma cerimônia. Atores se preparam para a
cena, considerando-se “cena” qualquer espaço convencionado de representação; usam acessórios que
indiquem mudança de personagem, às vezes também
com máscaras ou maquiagem.
O segundo elemento de contenção é o grupo. O
teatro é, fundamentalmente, uma tarefa que devo
realizar com outros. O sucesso da representação
requer o concurso de todos, sem o qual esta se
desmorona. Essa exigência funciona também como
barra de contenção do gozo, liberando o prazer do
jogo. No teatro, o imaginário e o pulsional estão
rigidamente enquadrados por um universo simbólico,
que funciona como garantia para que o meu desejo
possa se manifestar.
Estas reflexões foram feitas a posteriori da experiência. Eu e minha colega tínhamos tanto medo
quanto os psiquiatras que se negaram a nos acolher.
Medo de que o teatro convocasse nos pacientes mais
“loucura”, um “a mais” para além do que seria possível suportar. Que liberasse demônios de maneira
definitiva e descontrolada. No entanto, minha experiência como atriz já tinha me demonstrado que os
demônios gostam de teatro e convivem muito bem
com as luzes da cena.
Qual seria a justificativa desse receio, desse medo
de que, com os pacientes psicóticos, fosse diferente?
Qual a razão desse preconceito que encontramos
em tantos lugares? Nosso ateliê nos ensinou que, no
teatro, todo mundo pode se autorizar a ser louco, o
que permite um descolamento, uma descristalização
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Teatro do Oprimido na Saúde Mental
do paciente desse lugar de cronicidade, que funciona
como condenação.
O teatro pode-se revelar como instrumento eficaz
no tratamento das psicoses na medida em que se
oferece como suplência possível para a ausência da
metáfora paterna, ausência específica da estrutura
psicótica, segundo a tese sustentada por J. Lacan ao
longo da sua obra. Essa suplência se realiza através
do estimulo à criação, à manifestação do universo
interno do participante, de forma estética. O que provoca um duplo prazer: poder se expressar buscando
dar a esses conteúdos uma forma que se integre numa
produção coletiva destinada a ser apresentada, ou
seja, a ser reconhecida pelos outros, oferecendo assim
a possibilidade de uma inscrição. O ato teatral cria
um elo entre os participantes e, posteriormente, um
vínculo com os espectadores que, de alguma maneira,
veem ali ser representado o conjunto da sociedade.
Vimos como o teatro pode favorecer duas ordens de “descolamentos”, nos planos simbólico e
imaginário. No registro do simbólico, estimula a
possibilidade de um jogo com os significantes, relativizando a colagem entre significante e significado.
Na improvisação, eu sei que sou eu, mas faço de
conta que sou um outro. É esse jogo que, a partir
do registro do imaginário, vai favorecer um descolamento no simbólico.
O teatro instala de imediato o ator no registro
da metáfora. No registro do imaginário, o teatro
permite introduzir uma distância entre o paciente e a
personagem na qual se encontra cristalizado: aquele
que não tem jeito, um ser depositado no hospital,
talvez para sempre, oferecendo a possibilidade de
encarnar outros personagens.
O teatro nos permitiu imaginar pacientes levando
uma vida possível fora do hospital, na medida em
que não pensávamos neles como doentes, pensávamos neles como atores. Durante o tempo do ateliê,
tentamos ir ao encontro das pessoas, sem tentar conhecer os diagnósticos sob os quais se encontravam
classificadas nos arquivos do hospital. Esta forma de
utilização do teatro nos parecia adequada para tentar
favorecer a saída dos pacientes do hospital.
No entanto, em que medida permitimos à doença
se manifestar? Não teríamos, ao contrário, sugerido
que ela fosse deixada no vestiário? Dito de outra
maneira: o nosso ateliê, que funcionou como se os
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Primeiras Palavras
participantes não fossem pacientes de um hospital, teve o estatuto de uma verdadeira suplência ou de uma
mera prótese? Posto que é função do diretor teatral dirigir, o que será que acontece quando o diretor se ausenta, quando o ateliê acaba e os atores se encontram novamente entregues aos seus próprios fantasmas?
Essa é uma questão que está no cerne do trabalho com pacientes psicóticos: o estatuto da suplência, a sua
eficácia, a real possibilidade da sua existência como tal. Por isso, penso que, se o trabalho teatral é aconselhável num hospital psiquiátrico, ele não deverá ser realizado na ausência de um trabalho em equipe com
os terapeutas que se ocupam dos pacientes. O teatro não pode tomar o lugar de outras formas terapêuticas
baseadas na palavra, mas, sim, funcionar como elemento que favoreça a emergência de um material a ser
retomado e re-trabalhado no contexto de outro tipo de vínculo transferencial, diferente daquele que se manifesta no momento dos ensaios.
O ateliê de Eaubonne me permitiu constatar, mais uma vez, a importância do teatro na sua vertente
simbólica, para além do caráter eminentemente imaginário que lhe é sempre prioritariamente atribuído. E
ainda, com isso, confirmar, através de uma prática concreta, com uma surpresa sempre renovada e uma
emoção muito forte, a importância da cerimônia, o poder estruturante dos rituais, posto que neles se encontra
inscrita a tentativa de dar resposta às questões mais enigmáticas e urgentes de todos os humanos - questões
de vida e morte -, que tentam organizar um sentido para que a existência não seja apenas um mero espelho
despedaçado. ◘
Referências:
BOAL, A. Teatro do Oprimido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
LACAN, J. Le Séminaire, livre III, Les Psychoses. Paris: Seuil, 1981.
______. Le Séminaire, livre V, Les Formations de l’Inconscient, seminário inédito. Paris 1957-1958.
LECLAIRE, S. A la recherche des principes d’une psychothérapie des psicoses. Evolution Psychiatrique, Paris, n. 2,
1956.
OURY, J. Thérapeutique institutionnelle. In: Encyclopédie Médico-Chirurgicale, “Psychiatrie”,1972.
PANKOW, G. L’homme et sa psychose. Paris: Aubier-Montaigne, 1969.
STANISLAVSKI, C. Building a character. New York: Theatre Arts Books, 1949.
WINNICOTT, D.W. Jeu et réalité. Paris: Gallimard, 1971.
Notas:
1 Epidauro: cidade da Grécia antiga, cujo anfiteatro era um dos maiores de seu tipo e de seu tempo.
2 Neste texto, utilizo as palavras “jogo” e “jogar” no sentido do francês “jeu” e “jouer”, que me parecem mais adequadas que
“interpretar” ou “representar”.
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Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Dois Monólogos
Tim Wheeler, diretor artístico e cofundador do grupo “Mind The Gap”.
No final de 1980, eu trabalhava em um hospital de internação de pacientes psiquiátricos, no sudoeste da Inglaterra. Era uma grande instituição vitoriana situada
na zona rural, distante da cidade mais próxima. Estava lá como artista de teatro
para trabalhar com um grupo de pacientes. Eu era recém-formado e achava que
seria importante que o grupo compartilhasse a compreensão das origens do teatro.
Comecei com uma palestra, falei sobre a Grécia antiga:
“- No princípio, era o Coro; um grupo de pessoas cantando juntas ao ar livre.
Em seguida veio Thespis e separou uma pessoa do Coro. Esta passou a falar e todos
os outros a escutar. Naquele momento, o “monólogo” foi inventado. Monólogo é
quando uma pessoa fala e as outras ouvem. Será que isso faz sentido?” Eles concordaram. Continuei.
“- Em seguida veio Ésquilo, e ele separou outra pessoa do Coro. E ambas começaram a falar independentemente do Coro. Falavam em turnos. Então, como
chamamos isso, quando nos revezamos para falar?” Silêncio! Rostos sem expressão.
Um homem, um paciente atrás do grupo, levantou a mão com hesitação e disse:
“- Dois monólogos?”
Todos riram. Imaginei que o homem não havia me entendido. Eu gostaria que ele
respondesse “diálogo”. Mas talvez ele tenha levantado uma questão mais profunda.
Será que o diálogo realmente existe? Podemos estar em diálogo uns com os outros
através do teatro? Passei os últimos 20 anos tentando descobrir.
Estima-se que 1 em 4 pessoas no Reino Unido experimentará algum tipo de doença
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mental em algum momento de sua vida. A Organização Mundial de Saúde calcula que há cerca de 450
milhões de pessoas no mundo que têm problema de
saúde mental. Praga da solidão e do isolamento da
mente ocidental. A saúde mental é uma preocupação
global significativa.
Minha própria experiência com saúde mental
começou quando ainda era criança. Meu pai e dois
irmãos passaram um tempo em hospitais psiquiátricos, como pacientes. Desde a adolescência, eu fui
um visitante regular dessas alas e participante de
sessões de terapias em família. Mais tarde, enquanto
eles estavam no Manicômio, fui para a Faculdade
de Arte.
As drogas eram uma característica em ambas as
instituições. Assim também eram a rotina, as atividades disciplinadas, o ambiente de clausura “liminar”
separado da vida cotidiana, o estímulo para refletir
sobre sua própria experiência, a adaptação do que é
considerado socialmente ou esteticamente aceitável e
a dificuldade de reintegração. A principal diferença:
eu estava lá por escolha; eles, não.
O termo “sobrevivente” tem sido usado no setor
de saúde mental do Reino Unido para se referir às
pessoas que passaram pelo sistema de saúde mental
e conseguiram sair e viver para contar. O movimento
“Sobreviventes” nasceu de um movimento de antipsiquiatria nos anos 1960. Este se desenvolveu nos
movimentos de “crítica” e “liberação” da psicologia
de hoje. Os sobreviventes são pessoas que se envolveram com serviços de saúde mental voluntariamente
ou, algumas vezes, contra a sua vontade. Claro que,
no que tem a ver com saúde mental, as coisas nunca
são muito claras. O termo sobrevivente é controverso
como também o são os termos Interno, Cliente, Usuário ou, mais comumente, Maluco, Lunático, Doido.
O idioma torna-se uma maneira de rotular as pessoas: as que estão no poder – a quem Freud chamava “o
bem infeliz” – usam tais termos para definir limites
para o que é sensato ou um comportamento razoável.
Aqueles subjugados para experiência ou “cura” são
marcados pela sociedade. A rotulagem de loucura é
um ato ideológico. A loucura é política.
Em 1993, o “Mind The Gap” foi contratado
pela autoridade em Saúde de Leeds para trabalhar
em hospitais-dias psiquiátricos. Trabalhamos com
um grupo de oito usuários do centro, durante um
Primeiras Palavras
mês, para criar algumas cenas de Teatro-Fórum.
Uma delas foi sobre uma jovem chamada Stacey. Ela
cuidava de sua mãe, que tinha problemas de saúde
mental. Vimos Stacey sofrer abuso sexual por parte
do padrasto, vimos seu declínio em saúde mental, seu
próprio filho ser levado aos cuidados das autoridades
locais. A história termina com Stacey preparada para
assumir sua própria vida. Esse foi o cenário que mais
chamou a atenção dos espectadores. Não porque
fosse o mais fácil de resolver. Pelo contrário, houve
muitas reviravoltas na cena, que a tornou particularmente difícil para o fórum resolver. Havia algo sobre
a história dela que tocava profundamente as pessoas;
e elas ficaram frustradas quando não encontramos
uma solução. A obra chamou a atenção e provocou
uma profunda reflexão dos internos, sobreviventes,
psiquiatras e assistentes sociais. As conversas continuaram para além do teatro.
Os participantes ficaram entusiasmados com a
experiência e a força do Teatro-Fórum. Eles queriam
ir mais longe. Alguns decidiram que, em vez de executar um projeto do Serviço Social, eles desejavam
formar sua própria companhia de teatro. Foi assim
que surgiu o grupo “Um em Quatro”. Esse nome
reflete a estatística que mencionei anteriormente. E
também tem a ver com um declive gradual, como
um sinal de estrada no Reino Unido: uma montanha
alta para subir, como Sísifo, que foi condenado a
empurrar um rochedo até o alto de uma montanha,
de onde o rochedo rolava colina abaixo, e Sísifo tinha
de repetir tudo novamente, indefinidamente. Assim
como a viagem de Sísifo, é a descida da colina que
é mais importante, porque há tempo para refletir,
falar e aprender.
Os membros do “Um em Quatro” estavam ansiosos para desenvolver a história de Stacey e começaram por desenvolver a personagem da mãe. Nós
percebemos que a questão talvez tenha surgido antes
de Stacey nascer, como questões não resolvidas podem acompanhar gerações. “Um em Quatro” seguiu
levando o fórum através do Reino Unido. Em 1999,
o grupo participou de um simpósio internacional
de Cultura, Saúde e Arte, onde Augusto Boal fez a
palestra principal. “Um em Quatro” segue fazendo
teatro, embora não use mais o Teatro-Fórum.
A forma médico-psiquiátrica de ler a deficiência e
a doença mental tende a promover a ideia de que é o
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Primeiras Palavras
indivíduo que tem o problema. Loucos ou deficientes
mentais teriam adquirido seu distúrbio em virtude de
um acidente ou teriam nascido assim. Esse modelo
médico tende a ver a deficiência ou a doença mental
como uma tragédia pessoal.
No Reino Unido, o movimento de sobreviventes
defende uma outra perspectiva, um modelo social,
no qual se considere as estruturas e o indivíduo na
sociedade para que se perceba essas estruturas pobremente projetadas e os serviços prestados como
o problema, e não as pessoas. A saúde mental vista
através da lente social torna-se uma conseqüência
de forças sociais opressivas; uma resposta sã para
um mundo louco. As pessoas doentes unem-se
em uma campanha contra a segregação forçada e
o tratamento abusivo. Esse movimento busca um
modelo social de liberação da opressão social. Essa
forma está mais sintonizada com os componentes do
Teatro do Oprimido.
Nos últimos anos surgiu a necessidade de uma
terceira forma de pensamento crítico sobre a loucura. Não um modelo como tal, mas uma maneira
de pensar que coloca a ideia de cultura e diferença
cultural no contexto, junto com outros fatores. Os
efeitos dessa nova forma de pensar têm levado as
pessoas a se concentrar no significado e no valor da
loucura dentro de um contexto cultural, em vez de
centrada no aspecto médico ou nas condições sociais
que envolvem a pessoa deficiente. Temos visto o
crescimento do movimento “Orgulho Louco”, que
promove o orgulho da identidade e celebra a contribuição original para o mundo. Essa visão é crucial
para as construções médica e social e vê a liberação
da opressão como uma etapa necessária em direção
à participação cultural. É mais sobre uma questão
estética do que um efeito médico ou social; sobre uma
experiência compartilhada, paixão e compaixão.
Com todo o trabalho do “Mind The Gap” nosso
objetivo é fugir de problemas resolvidos com soluções
fáceis. Tentamos afastar as pessoas de um triângulo dramático, que coloca a pessoa ou no papel de
opressora, ou de oprimida, ou de aliada. Desejamos
ajudar as pessoas a descolar-se, a estar em diálogo,
sim, mas indo mais longe, para comungar umas com
as outras em um nível mais profundo. Isso significa
que a maioria dos nossos fóruns envolveu grupos
que, no início, tinham perspectivas muito diferentes.
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M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Às vezes, é um processo difícil, cheio de movimentos
ousados e grandes afirmações; em outras ocasiões,
é um processo delicado, que necessita de uma negociação sensível.
Após alguns fóruns, eu fico com uma sensação
desconfortável de que me envolvi com monólogos
interligados. Ocasionalmente, tenho vislumbrado
momentos de verdadeira mudança. São momentos de
verdadeira beleza. Agora eu desejo saber se é possível
ir mais longe. Uma vez que estamos em diálogo, é
possível ir mais à frente com uma conexão mais
profunda, para comungar com outros através do
teatro? Não de uma maneira mística, mas, sim, de
forma que nossos pensamentos e sentimentos estejam
juntos, partilhando a força. ◘
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Primeiras Palavras
A Política Nacional
de Saúde Mental, os CAPS
e o Teatro do Oprimido
Pedro Gabriel Delgado, coordenador Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde de
2000 a 2010 e Professor de Psiquiatria da UFRJ.
Notas:
1-Diretor artístico e cofundador do grupo “Mind The Gap”,
com base no Reino Unido. Ele esteve envolvido na prática
do Teatro Oprimido por mais de 20 anos. “Mind The Gap”
trabalha com a aprendizagem das pessoas com deficiência e
internos e sobreviventes do sistema de saúde mental do Reino
Unido. Neste artigo, Tim Wheeler reflete sobre o trabalho da
companhia e pensa sobre o seu futuro.
2-Instituto Nacional de Estatística (2001).
3-Organização Mundial de Saúde (2001).
A Reforma Psiquiátrica Brasileira tem gerado intensos debates sobre o modelo de
atenção em saúde mental no país. Nos últimos anos, num contexto de avanços políticos e assistenciais, os desafios se ampliaram e se tornaram ainda mais complexos.
As práticas de atenção psicossocial na comunidade estão no centro das preocupações, assim como a ampliação do cuidado para grupos específicos – como crianças,
adolescentes e usuários com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas
–, os determinantes sociais da saúde e as novas exigências políticas e éticas para um
novo modelo de cuidado.
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são serviços de saúde mental de base
territorial, que têm como missão garantir o acesso e o cuidado em saúde mental na
comunidade, tornando-se referência para a população com necessidades de cuidado
em saúde mental. Constituem-se em dispositivos estratégicos para a consolidação
do modelo comunitário e para a ampliação da responsabilidade pública brasileira
na atenção integral da população.
O processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira acompanha a tendência mundial e
as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e se destaca no continente
americano pela reorientação do modelo assistencial, que tem promovido o deslocamento da atenção dos hospitais psiquiátricos para o cuidado comunitário das pessoas
com transtornos mentais.
A atual política de saúde mental instituiu outros dispositivos comunitários e de
M E TA X I S
13
Primeiras Palavras
desinstitucionalização além dos CAPS. Dessa forma,
constrói uma rede integrada de ofertas de cuidado e
não apenas um único lugar para a atenção em saúde
mental. Assim, essa rede também é composta por outros dispositivos e ações, como Serviços Residenciais
Terapêuticos (SRTs), o Programa De Volta pra Casa e
o Programa de Reorientação Hospitalar (PRH), que
compõem o tripé da estratégia de desinstitucionalização da Política Nacional de Saúde Mental, que visa
possibilitar a saída das pessoas com internações de
longa duração para a convivência em comunidade e
o restabelecimento de seus direitos de cidadania.
Esses dispositivos de desinstitucionalização, juntamente com a implantação de leitos em hospitais
gerais, os CAPS, os Núcleos de Apoio à Saúde da
Família (NASF) e o Programa de Saúde da Família
(PSF), possibilitam que a atenção em saúde mental
se aproxime da população e dos territórios.
Essa trajetória, que é de expansão das ações e
serviços em saúde mental, nos compromete concomitantemente com a qualificação e efetividade
dessas ofertas.
A integração dos serviços em uma rede de atenção psicossocial; a articulação com as Equipes de
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Saúde da Família (ESF); a qualificação e avaliação
permanente das ações de saúde mental, bem como
o aprofundamento teórico e prático da clínica da
atenção psicossocial, são desafios e responsabilidades
da política de saúde mental, mas também são tarefas
para muitos autores. As parcerias com as associações
de usuários, familiares e outras entidades da sociedade civil são fundamentais.
O Centro do Teatro do Oprimido tem sido desses
interlocutores e parceiros efetivos que buscam contribuir para a qualificação dos CAPS, colocando à disposição sua metodologia, o teatro, a arte, formando
Multiplicadores, profissionais, usuários, familiares e
a comunidade em geral, emprestando ao cotidiano
institucional leveza e sensibilidade para cuidar.
Neste momento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, estas são parcerias fundamentais. Seguindo
a estrela de Augusto Boal, o CTO se coloca como
instrumento para a construção de possibilidades de
cuidado e de vida para outras pessoas. Os CAPS e a
Reforma Psiquiátrica Brasileira agradecem. ◘
Teatro do Oprimido
na Saúde Mental
Geo Britto, Curinga do CTO e coordenador do projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental.
O movimento de saúde mental tem contribuído com
a democratização do Brasil, trazendo à tona a situação do usuário de saúde mental como uma questão
eminentemente política. Assim surge o movimento da
Reforma Psiquiátrica, que questiona o modelo clássico
e o paradigma da psiquiatria, ou seja, o modelo manicomial, que, com sua lógica excludente e autoritária,
classifica usuários como sujeitos incapazes e não
detentores de direitos.
Uma das propostas da Reforma Psiquiátrica é implantar uma rede de serviços territoriais de atenção
psicossocial, como a dos CAPS , que trabalhe em rede
de forma comunitária. Mesmo sendo uma iniciativa
fundamental, isoladamente, não provoca mudança de
paradigma. Descentralizar e acabar com os grandes
hospitais é importante; ao mesmo tempo, não se pode
ignorar que o modelo manicomial continua internalizado na subjetividade de profissionais, usuários,
familiares e diversos segmentos da sociedade. Excluir
ainda parece mais fácil que cuidar, e bater, mais efetivo
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M E TA X I S
Brasil Adentro
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
que dialogar.
Tanto no Brasil quanto no mundo, existe um processo de “patologização” da normalidade, ou seja,
um discurso carregado de uma ideologia normativa
que utiliza um saber “científico” para transformar
singularidades em anomalias e atos espontâneos em
desvios. Isso leva à criação de regras sociais e normas
de conduta utilizadas para classificar, etiquetar e punir,
que, na maioria das vezes, não considera as particularidades do sujeito.
O Centro de Teatro do Oprimido aceitou o desafio
de trabalhar mais sistematicamente na área da saúde
mental em 2004, no Rio de Janeiro, com o apoio
do Ministério da Saúde (Coordenação Nacional de
Saúde Mental). A proposta foi capacitar profissionais
como Multiplicadores do Teatro do Oprimido, para
facilitar, por exemplo, o enfrentamento de conflitos
entre práticas manicomiais e antimanicomiais. Os
cursos tiveram aplicação prática nas unidades, no
trabalho com usuários, familiares e profissionais,
M E TA X I S
15
Brasil Adentro
com a produção de cenas sobre: a rejeição da carteira
de gratuidade no transporte; familiares usurpadores
de benefícios, carência de medicamentos nos CAPS,
discriminação, racismo, entre outros temas, mostrando
como o Teatro do Oprimido poderia contribuir com o
trabalho desenvolvido nessas instituições.
A equipe do CTO começava sua aventura na saúde
mental, trazendo novas questões, dúvidas, receios para
serem teatralizados e analisados em seus laboratórios
e seminários internos. Como teatralizar a “loucura” e
buscar, junto com os Multiplicadores, as alternativas?
Como a arte poderia ajudar na construção de uma
proposta não excludente, dialogal?
Na segunda etapa, a experiência foi ampliada para
São Paulo, incluindo, além dos CAPS, os CECCOs e
UBS, trabalhando a saúde mental através de situações
do cotidiano do Agente Comunitário de Saúde. A partir daí, o Teatro do Oprimido passa a ser incorporado
pelos corpos – literalmente e metaforicamente – da
unidade não somente como oficina, mas também
como instrumento de análise e de ação para discussão
do serviço em si.
Na última etapa, encerrada em 2010, além de São
Paulo e Rio de Janeiro, ampliamos nossa ação para
Sergipe. Os Multiplicadores formados nas etapas
anteriores participaram ativamente do processo de
capacitação dos novos Multiplicadores, construindo
junto com o CTO o programa de formação, apoiando
nas visitas e se tornando referência local na relação
com o poder público. Foram mais de 300 profissionais
capacitados.
O aprofundamento da utilização da metodologia
vem sendo continuamente analisado teórica e esteticamente, tanto pela equipe do CTO, internamente,
quanto pela equipe do projeto, junto com os Multiplicadores. Há um diálogo permanente sobre o desafio
de implementar o projeto como política pública, sem
perder a dimensão do desenvolvimento artístico, e
buscar meios para mensurar os resultados práticos de
uma experiência ousada e complexa.
Uma das riquezas desse projeto está no envolvimento dos profissionais e no intercâmbio de conhecimentos
sensíveis e simbólicos: de um lado, o Teatro do Oprimido, com seus princípios metodológicos, e do outro
as especificidades temáticas relacionadas aos saberes
ligados à saúde mental.
Dialogando, aprendemos e ensinamos mutuamente
16
M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
e, assim, nos fortalecemos. Um grupo de profissionais
de um CAPS-AD teatraliza a situação de um usuário
de maconha fumando na unidade. A situação é analisada esteticamente. Quais alternativas? Como falar?
Como agir? Muitas cenas como esta foram teatralizadas e debatidas em diversas unidades.
Por outro lado, quando um usuário cria uma cena
e observa a si próprio, ele se vê refletido na sua Arte,
torna-se Sujeito da sua criação, recriando-se ao criar
sua obra. Boal dizia “a frase ‘Sou capaz de fazer isto...
no teatro!’ contém uma importante revelação: ‘Sou
capaz de fazer isto!’”. Nas palavras de uma usuária:
“A personagem faz coisas que eu não seria capaz de
fazer. Mas ela entra na minha cabeça e vai em frente
e faz. Depois, eu entro em mim e percebo que tenho
capacidade de fazer.” A usuária percebe estética e subliminarmente – ou em plena consciência – que, se é
capaz de representar uma Personagem, pode também
integrar a Personagem, ou algumas de suas características, à sua própria Personalidade.
O Teatro do Oprimido pode ajudar a descobrir
novos caminhos para solucionar velhos problemas.
A metodologia não é uma caixa fechada, mas é viva
e se transforma com o diálogo cotidiano de novas
questões que surgem. A pesquisa da Estética do Oprimido, por exemplo, revela novas perguntas e mostra
que usuários, profissionais e familiares, além de fazer
teatro, podem também pintar, dançar, fazer música
e artes plásticas. O Teatro do Oprimido propõe a
extrapolação: “o delírio cênico deve se aproximar,
metafórica ou realisticamente, do real e nunca dele se
distanciar, para que a ele possa retornar e transformálo” (Augusto Boal).
Por isso, não nos limitamos a temas relacionados
somente à saúde mental. Usuários, doentes, pacientes,
portadores de necessidades especiais, profissionais e
familiares são cidadãos com os mesmos direitos de
quaisquer outros, além de alguns direitos mais específicos. É necessário teatralizar e discutir todas as
temáticas que afetam nossa vida como seres humanos
que somos. Racismo, trabalho, homofobia, opressão
contra a mulher, violência, entre muitos outros temas
que nos interessam, são analisados. Não somos apenas da saúde mental, somos do mundo que queremos
transformar.
O Teatro do Oprimido está dentro dos CAPS, UBS,
CECCOs e unidades de saúde, debatendo suas estru-
Brasil Adentro
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
turas de funcionamento – deficiências e qualidades – e
seus processos democráticos: assembleias de usuários,
familiares e profissionais; supervisões internas; encontros de coordenadores e outras instâncias. Fora dessas
instituições, através das cenas produzidas, mostra a
loucura como uma experiência do cotidiano em espaços diversos. Essa movimentação é muito facilitada
quando se pode contar com o apoio das Coordenações
dos Municípios e as das Unidades envolvidas.
Nesse processo, o projeto tem gerado políticas
públicas em alguns municípios. Conquistas que são
fruto de trabalho artístico e político do CTO, de
Multiplicadores, usuários, familiares e coordenações.
Nas Conferências de Saúde Mental – municipais,
estaduais e nacional – de 2010, por exemplo, tivemos
profissionais, familiares e, principalmente, usuários
como delegados. Como disse um deles, “o Teatro do
Oprimido desenvolve a voz, na hora da conferência
pode-se falar o que se está sentindo, falar da sua
vida, falar com capacidade de raciocínio e defender
seus direitos”.
Temos muito a caminhar, construindo diálogos
estéticos, ensaios terapêuticos e produzindo transformações políticas. O teatro é essencial não porque
seja melhor que outras artes, mas porque é a soma de
todas! Usuários, familiares e profissionais podem se
apropriar dos meios de produção artística, não sendo
apenas reféns de imagens, sons e palavras impostas.
Em diálogo com a sociedade, podem criar, inventar,
brincar com novos léxicos e construir um novo mundo.
Mundo sem manicômios, com liberdade, democracia
e beleza. O Teatro do Oprimido sozinho não muda
nada. Quem provoca a mudança são as pessoas organizadas. ◘
Referências:
SUS de A-Z.
Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/
sus_3edicao_completo.pdf
CAPS: Revolução Silenciosa da Saúde Mental – Pedro Gabriel
Delgado. Disponível em http://saudementales.files.wordpress.
com/2007/06/caps.pdf
"Minha homenagem e gratidão a Geraldo Lopes
(in memorium), meu pai, que me apoiou a fazer
o que mais gosto: arte e política e, por isso, se
tornou um parceiro do CTO."
M E TA X I S
17
Eva Geslaine Medina dos Santos, gestora de Política
Municipal de Saúde Mental, Guarulhos/SP.
Em 2006, quatro unidades participaram do projeto Teatro do Oprimido
na Saúde Mental: CAPS Osório César, CAPS Tear, CAPS Álcool e Drogas e
Ambulatório da Criança. Duas cenas foram montadas sobre “Mulher com
transtorno mental aprisionada em casa por familiares” e “Mulher com
anorexia que questiona os padrões de beleza e os caminhos de tratamento
para seu transtorno”. Começava assim o enovelamento entre o Teatro do
Oprimido e os usuários e profissionais da Saúde Mental, uma dança com
passos ora coordenados, ora desarticulados.
Essa primeira fase resultou na articulação de profissionais que formaram
o Grupo TOGRU, com cinco mulheres que mantiveram acesa a LUZ do TO em
Guarulhos: Rose, Miriam, Regina, Meire e Gilmara. A segunda fase do Projeto
teve início em 2008, sendo prevista sua duração até 2010.
Para nós, no município, colocou-se a necessidade de transformar um
Projeto em Política Pública, e para isso nos apoiamos na Missão do CTO –
Promover o fortalecimento da cidadania e a justiça social através do Teatro
do Oprimido, como meio democrático na transformação da sociedade; na
sua Visão de Mundo – de atuar para que as camadas oprimidas e marginalizadas da sociedade se afirmem como produtoras de sua própria arte e
protagonistas de suas vidas; e nos seus Valores – Vida, Ética, Solidariedade,
Estética e Diálogo. Essas foram as primeiras compreensões que tivemos do
Teatro do Oprimido: profundamente singular, local, radicalmente humano.
Propomos que cada Sujeito seja um ator ou atriz e traga em si o ato de
teatralizar, permitindo que todos atuem, transformem as suas opressões
através de linguagens singulares, plurais, mas, principalmente, de forma
pública e coletiva.
Esse fato é o que nos tem permitido aproximar o Teatro do Oprimido
dos usuários da saúde mental – crianças, adolescentes, adultos e idosos;
homens e mulheres com seus sofrimentos. Ao experimentarem o jogo, o
lugar do outro, o contar sua história, a estética do oprimido, o diálogo, vão se
reconhecendo, percebendo seus corpos, seus imaginários, o estranhamento
das suas opressões. Possibilidades de manifestar-se, o reconhecimento de
suas vivências, opressões, apontando novas possibilidades de respostas,
desencadeando processos internos e externos de mudanças. As respostas já
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M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
não precisam ser dos especialistas, dos acadêmicos; as respostas surgem da e
pela perspectiva deles e delas. Pela sua atuação transformadora, tornam-se
seus produtores e destinatários.
O número de Multiplicadores capacitados foi três vezes maior que o
previsto. Formamos 21 grupos do Teatro do Oprimido com a participação
de usuários e profissionais, com 13 ativos e os demais em maturação. A
supervisão dos grupos foi feita pelas 4 Multiplicadoras supervisoras e uma
Curinga do CTO. Tivemos 26 agentes comunitários de Saúde, 1 atendente
SUS, 6 assistentes sociais, 3 auxiliares de enfermagem, 8 psicólogas, 3
educadores físicos, 3 terapeutas ocupacionais, 2 fonoaudiólogas, 2 auxiliares
administrativos, 2 enfermeiras, 1 arteterapeuta, 1 socióloga e 12 outros
profissionais.
Produzimos 20 peças de Teatro-Fórum, com 46 apresentações, entre
as quais: Dia Mundial da Saúde Mental; CARNACAPS; Dia Mundial do Teatro
do Oprimido, Dia Nacional de Luta Antimanicomial, Diálogos Cênicos, Semana Municipal da Não Violência contra a Mulher, Semana de Combate a
Exploração e Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes, Semana Municipal
em Homenagem à Lei Maria da Penha e o destaque da II Mostra do Teatro
do Oprimido na Saúde Mental, lotando por dois dias o Teatro Adamastor,
de 700 lugares.
A tessitura constituída e consolidada por gestores, gerentes, usuários e
comunidades cria novos tons e pontos de conexões. As opressões são debatidas em locais públicos: gênero, violências intrafamiliares, loucura, gravidez
na adolescência, abuso sexual contra criança, entre outros. Na II Mostra,
houve uma Sessão do Teatro Legislativo com a peça “Cena de Casamento”,
que trata da violência doméstica contra a mulher, com 71 proposições que
resultaram em 5 principais eixos para Discussão de Políticas Públicas.
Ampliamos as parcerias com a Coordenadoria da Mulher, Coordenadoria
da Igualdade Racial, Secretaria da Assistência e Cidadania, diversos Fóruns,
Redes e Organizações Não Governamentais. Ousamos ir além. Percebemos
as fragilidades e dificuldades que nos acompanham na difícil trajetória
de transformar um projeto em política pública. No entanto, aprendemos
com a Teoria da Flexibilidade que, frente a novos problemas, os sujeitos,
através de seus conhecimentos e indagações, constroem novas respostas
e possibilidades.
Nesse período fecundo de ações conjuntas entre o Centro do Teatro
do Oprimido e serviços, usuários e profissionais de Saúde, apoiadores e
amigos da Saúde Mental, população de Guarulhos e a Secretaria da Saúde,
transformamos e fomos transformados.
Nasceu o Núcleo de Saúde e Cultura “Augusto Boal”, o grupo Mulheres
em Ação, e o Teatro do Oprimido vai se consolidando nas unidades básicas
de saúde, nos CAPS, nas programações. Diálogos improváveis vão se
estabelecendo.
Chegamos a um novo ponto de partida. Os desafios são maiores. Hoje,
em Guarulhos, somos muitos, ainda não milhares, mas já somos corações e
mentes de centenas. Acreditamos que estamos, através do Teatro do Oprimido, construindo outras perguntas, outras formas de manifestações, em que
o teatro está no meio dos grandes grupos, de populações que geralmente
não são reconhecidas como construtoras de cultura, das transformações
entre os opressores e oprimidos. O desafio continua... ◘
Brasil Adentro
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
sentação – segura, com intervenções da plateia – foi comovente.
Olhando as apresentações e conhecendo as pessoas que integram os
grupos, vejo como os usuários podem se transformar, falar alto e interpretar
personagens complexos, sendo atentos, cuidadosos e negando tutela.
Opinam sobre cenografia, constroem acessórios, criam cenas. Presentes,
transformados, transformando. Vivos! Ocupando com responsabilidade e
propriedade lugares sociais que são seus, reafirmando “Oprimidos nunca
mais!” ◘
Macaé - RJ
Guarulhos - SP
Brasil Adentro
Maria Luiza Quaresma, assistente social / gerente do
Aracaju-SE
Programa Municipal de Saúde Mental, Macaé/RJ.
Assistente Social que sou, acredito na ocupação dos espaços urbanos
e sociais por todos os cidadãos com a derrubada dos muros, por vezes,
invisíveis, mas nem por isso mais fáceis de transpor. Mesmo com as novas
políticas em saúde mental, devemos estar atentos ao perigo de retorno às
práticas manicomiais, ideia ainda viva na sociedade de que é necessário
isolar para tratar, excluir para cuidar, processo de “limpeza” que ainda
persiste. O paradigma do “louco bom é o louco institucionalizado” e “lugar
de louco é no manicômio” ainda se faz presente.
Meu primeiro contato com o Teatro do Oprimido foi há oito anos, num
curso de DSTs e Saúde Mental feito em Macaé, por Claudia Simone. Lembro
de chegar em casa cansada, mas animada, relatando os depoimentos, e de
ter tentado guardar mentalmente as técnicas utilizadas nesse curso. O tempo
passou, e o Teatro do Oprimido ficou ali, no cantinho afetivo da memória.
Com alegria, presenciei o “retorno” do Teatro do Oprimido no trabalho
com profissionais da saúde mental em Macaé, dessa vez mais consolidado,
com novas propostas de sensibilização e Multiplicadores capacitados.
Nesse período, grupos foram criados nas diversas instituições, com variadas
apresentações públicas e eventos marcantes, além de um grupo de Multiplicadores que assume a continuidade através da formação do Núcleo de
Teatro do Oprimido de Macaé.
No evento Diálogos em Saúde Mental, sobre Teatro do Oprimido,
houve apresentação de Teatro-Fórum. Poucas pessoas presentes, mas
um vereador na plateia. No grupo de teatro, pessoas com diagnóstico de
transtorno mental severo e persistente. O que fizeram, como reagiram?
Apresentaram brilhantemente a cena. E mais: questionaram o vereador
com consistência, educação, pensamento lógico. Solicitaram direitos. Opa,
não eram doidos?
Conferência Municipal de Saúde Mental Intersetorial: na organização,
sugerimos a apresentação do grupo Capazes, Iguais e Idealistas. Plateia de
400 pessoas. O usuário Edílson fez chover numa regência linda! E a apre-
Coletivo Gestor da REAP, Rede de Atenção Psicossocial de
Aracaju/SE.
“... Que a arte aponte uma resposta, e
que ninguém ouse complicar, pois é preciso
simplicidade para fazê-la florescer...”
(Oswaldo Montenegro)
Em março de 2007, em Aracaju, houve um redimensionamento
importante no modelo de gestão em saúde mental, tendo como meta
central produzir qualificação ao cuidado oferecido. Assim, investiu-se no
fortalecimento da diretriz da educação permanente, mediante a oferta de
capacitações, oficinas, encontros e, principalmente, construção de espaços
de interferência no cotidiano dos serviços, potencializando análises coletivas
de valores, saberes e fazeres e, desse modo, implementando e mudando
práticas.
Esse modelo de gestão, que supera a lógica centrada nas instituições
de atendimento, investe maciçamente no fortalecimento de ações que
extravasem os CAPS e que potencializem a produção de redes de cuidado
M E TA X I S
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Brasil Adentro
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Brasil Adentro
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
em saúde mental. Desse objetivo surge a parceria com outras instituições, como o Centro do Teatro do Oprimido. Assim, o município consolida a formação¹
de Multiplicadores em Teatro do Oprimido para trabalhadores de saúde mental da capital, bem como para outros de municípios do interior do Estado, a
fim de desenvolverem ações que busquem a transformação de demandas decorrentes do cotidiano do serviço e de suas vidas, utilizando o teatro como
manifestação artística e também como ferramenta de produção de vida.
Durante os dois anos do projeto, observamos aspectos importantes para a análise da gestão da Rede de Atenção Psicossocial. O projeto disponibilizou
uma nova e eficiente ferramenta de trabalho, que permite apoiar, debater e aprofundar as propostas da reforma psiquiátrica. Ampliou o olhar dos trabalhadores nas estratégias de apoio matricial, mediação de conflitos, planejamentos de serviços, proposição de grupos e oficinas especificas.
Em relação aos usuários, observamos a produção do protagonismo através de qualificação da assembleia dos serviços de saúde mental, maior implicação
no próprio tratamento, formação de grupalidade e aproximação de familiares não só do tratamento, como também dos eventos do Teatro do Oprimido.
O investimento em educação permanente que a REAP/Aracaju vem priorizando conquistou forte parceria com o projeto de formação de Multiplicadores
do CTO, sobretudo pelo caráter de reafirmar a sustentabilidade do SUS e da política municipal de saúde mental, utilizando a arte como uma ferramenta de
qualificação do cuidado. Por isso, essa relação precisa ser reiterada e ampliada para outros espaços da rede de saúde de Aracaju. Como diria Sérgio Sampaio,
a sensação desse coletivo gestor é de “eu quero é botar meu bloco na rua...”. ◘
Santos - SP
Notas:
1 Formação de dois anos para os trabalhadores do CAPS Liberdade, CAPS Primavera (AD), CAPS Jael, CAPS Artur, CAPS David,
CAPS i, Programa de Redução de Danos, Residências terapêuticas, Referências ambulatoriais em saúde mental.
Sandra Murat, coordenadora de Saúde Mental, na Secretaria
de Saúde do Município de Santos / SP.
Em 2009, o Departamento de Especialidades e a Coordenadoria de Saúde
Mental decidiram apoiar integralmente o projeto Teatro do Oprimido na
Saúde Mental, do CTO, e incorporá-lo formalmente como proposta nas
unidades CAPS. A Secretaria de Saúde do Município de Santos – SP, com essa
decisão, demonstrou sua firme intenção de assumir a prática do Teatro do
Oprimido como estratégia de política pública. A ação foi incluída no projeto
terapêutico dos pacientes atendidos nas diversas unidades de assistência.
A definição de um espaço para reuniões do grupo técnico, ensaio e
apresentação das cenas (Seção Lar Abrigo ); o incentivo, ainda que “mínimo”, à organização de eventos; bem como a valorização do elemento
musical inserido para incrementar a qualidade dos contextos representados
denotaram a motivação da gestão municipal em estimular a continuidade
da proposta.
A aceitação do projeto não foi fácil por parte de alguns profissionais
20
M E TA X I S
e chefias das diferentes unidades de assistência. A aplicação da técnica
centrada apenas naqueles técnicos capacitados talvez não conseguisse, a
priori, suprir o pouco conhecimento e o entendimento do custo-benefício
do tempo disponibilizado por eles para esse tipo de atividade, sendo interpretado como se outros procedimentos entendidos como prioritários
no cotidiano da unidade fossem deixados “a descoberto”. A proposta, no
entanto, foi tomando força à medida que se passou a observar a adesão
dos pacientes à dinâmica e seus resultados: melhor socialização, melhora
na autoestima, conseguir “suportar” melhor os limites para a fala e a escuta
de si mesmo e do outro.
Hoje, a coordenação entende que essa construção coletiva favorece
novas e diferentes soluções para todos. Assim, reforça nosso intuito
de implementá-la institucionalmente, estendendo as oficinas a novos
técnicos e chefias das Unidades, implementando a supervisão técnica e
agregando efetivamente outros elementos estéticos que venham aprimorar
o trabalho. ◘
Nosso processo
pedagógico
Yara Toscano, Curinga do CTO, gestora da ONG Mudança de Cena e integrante do GTO-São Paulo.
O aprendizado do Teatro do Oprimido (TO) segue
um ritmo próprio. Sua representação é uma árvore
que se reproduz pela presença de um polinizador – o
passarinho multiplicador –, que pode um dia tornar-se
Curinga. ¹ A semente cai no solo, germina dentro da terra. Apesar de não serem perceptíveis, as transformações
internas ocorrem, e as percebemos quando despontam
na superfície. Pequena planta, frágil às intempéries do
mundo, já traz sua potência. Leva tempo para crescer
e se fortalecer, seguindo etapas de aprendizado. Não
adianta apressar. E como tudo que possui ritmo, às
vezes, se descompassa.
Entre 2006 e 2010, no projeto Teatro do Oprimido
na Saúde Mental, capacitamos cerca de 70 profissionais
– agentes comunitários de saúde; psicólogos; assistentes
sociais; auxiliares de enfermagem; educadores; terapeutas ocupacionais; fonoaudiólogas; auxiliares administrativos; enfermeiras; arteterapeutas e sociólogas – para
se tornarem Multiplicadores do Método. Visões diversificadas: do mundo, da saúde e da saúde mental.
Experimentar o arsenal do TO é um passo fundamental na proposta pedagógica de qualificação. Além
da leitura dos livros, é preciso experimentar o TO
para entendê-lo – de forma simbólica e sensível, para
perceber/entender o que suscita em nós e nos outros, o
que revela sobre relações sociais e como potencializa
necessidade e desejo de mudança.
O passo seguinte é manejar esse arsenal, compartilhar o aprendido, aplicar os jogos no trabalho prático
com coletivos. Entender de outra maneira a lógica do
jogo e suas regras, se ater aos passos a serem seguidos,
planejar oficinas em parceria. É sempre melhor que a
multiplicação seja partilhada, em duplas ou trios que
exercitem a reflexão do aprendizado e da multiplicação,
que planejem as estratégias de formação de grupos comunitários. Ensinar nos faz aprender, fixar e ampliar
conhecimentos. A experiência prática potencializa o
aprendizado intelectual e sensorial.
Na aplicação dos jogos, o Multiplicador é desafiado
a ampliar sua visão para enxergar o outro, os membros
M E TA X I S
21
Brasil Adentro
do grupo. Sair do conhecimento do eu em relação para
conhecer o outro em relação. É um processo investigativo, de descoberta sobre as pessoas: como interagem,
como lidam com a linguagem teatral, como entendem
os jogos e a proposta do TO. Importante também é
observar como outros Multiplicadores aplicam os jogos,
o que falam, como se posicionam, a escuta, a entonação
da voz, os questionamentos para os participantes do
grupo e da plateia. Aprendemos ensinando, continuamente. Esse é o fundamento da Maiêutica² no TO, que
se utiliza de questões simples, direcionadas aos grupos e
com a orientação de serem conjugadas no modo subjuntivo. Dessa forma, aprendemos a perguntar, a ouvir e a
perguntar novamente como método de criação.
Em seu livro A Estética do Oprimido, Boal explica:
O Teatro conjuga a realidade no tempo presente
do modo indicativo – “Eu faço!” – ou no gerúndio – “Estou fazendo.” A TV e a publicidade
no modo imperativo – “Faça!” No Teatro do
Oprimido, a realidade é conjugada no modo
subjuntivo, em dois tempos: no pretérito imperfeito – “...e se eu fizesse?” – ou no futuro – “...e
se eu fizer?”
No momento de escolher as histórias – as próprias
histórias do grupo – para transformá-las em espetáculo,
é fundamental ser maiêutico e conjugar no pretérito
imperfeito ou no futuro do modo subjuntivo. Quanto
mais aprendermos a dialogar assim, mais permitimos
que o grupo crie integralmente tudo que envolve a
construção de suas cenas. Como Multiplicadores, somos
parte integrante desse grupo, criamos junto, compartilhamos criações, mas, fundamentalmente, estamos
compartilhando a criação dos outros.
Quando o Multiplicador dirige uma cena, deve ser
maiêutico, saber que isso é fundamental para o aprendizado que nunca se desconecta da ação, da atuação,
do fazer e da práxis do trabalho. Essa é nossa utopia,
nosso horizonte, que avança na mesma medida em que
avançamos em direção a eles. Os ritmos do grupo e do
projeto vão indicar o tempo de criação de uma peça. O
processo é tão importante quanto o produto.
O processo de escolha de histórias é delicado, forte e
gerador de crise para o grupo. É o momento de trabalhar
nossas dores ou as dores de outras pessoas. Momento
de exposição pessoal, necessário para gestar confiança
e transformação. É escuta. A experiência no arsenal
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M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
de jogos e técnicas que antecede essa fase é primordial
para que a confiança e a exposição dos conflitos possam
acontecer de forma generosa.
Entre 2009 e 2010, em Guarulhos/SP, mais de 25
Unidades de Saúde conheceram o Teatro do Oprimido.
Foram formados 21 grupos, beneficiando cerca de 320
participantes de todas as faixas etárias (a partir de 10
anos) entre usuários e profissionais, com a produção
de 20 espetáculos de Teatro-Fórum, apresentados em
quase 50 eventos públicos, e de dezenas de obras da
Estética do Oprimido – esculturas, pinturas individuais
e coletivas, poesias, músicas. Cerca de 5 mil pessoas
tiveram contato com a experiência.
Trabalhamos também com profissionais e usuários,
juntos, o que foi fundamental para a quebra de preconceitos e o fortalecimento do aprendizado de como
interagir com pessoas com sofrimento psíquico. Muitos
profissionais da atenção básica do município nunca
tinham convivido com usuários de um CAPS. Muito
menos haviam compartilhado um processo criativo
com eles como seres humanos, em que suas funções não
estivessem em jogo. Quando lidamos com populações
marginalizadas, nem sempre nos damos conta que corremos o risco de também nos guiarmos pelo senso comum e seus preconceitos. Entretanto, quando fazemos
arte junto com esses grupos, percebemos que podemos
compartilhar de um saber/fazer, atentamos aos detalhes
escondidos e óbvios – que, em outras situações, não podemos enxergar - e construímos outro significado para
o que chamamos de “loucura”. O Teatro do Oprimido,
como um novo saber no sistema de saúde, democratizou
os saberes criativos entre essas pessoas.
As peças criadas em Guarulhos abordaram, na
maioria, a temática de gênero: mulheres oprimidas em
hospitais psiquiátricos; oprimidas por gravidez indesejada; agredidas por seus “companheiros”; isoladas pelo
marido em virtude de seu transtorno mental; e exploradas e agredidas na infância. As peças possibilitaram
a ampliação da discussão sobre opressão e violência
contra a mulher no município. Em Guarulhos, a maioria
era de mulheres multiplicando. Nos grupos, a maioria
era de mulheres participando.
O passo seguinte ao processo estético é a construção
de um produto artístico: transformar a história contada em espetáculo de Teatro-Fórum. Esse pode ser um
momento de crise, para o grupo e para o Multiplicador.
O/a Multiplicador/a é referência importante nesse mo-
Brasil Adentro
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
mento para agregar o grupo, estimular e desenvolver a
confiança, entendendo que a crise é parte do processo
e pode se transformar em oportunidade.
A apresentação externa, apesar de não ser obrigatória para o grupo, é fundamental para o crescimento
do coletivo. A opção de apresentar para um grupo
desconhecido é e deve ser sempre do grupo. O Multiplicador pode incentivar. Quando for feita a opção
pela apresentação, o Multiplicador avança em mais um
desafio: ajudar a construir e dirigir essa cena, ajudar a
elaborar sua proposta estética e mediar essa cena na
sessão de Fórum. Antes de apresentar a cena para uma
plateia desconhecida, exercitamos o Fórum (o diálogo
teatral) dentro do próprio grupo e em diálogos teatrais
com outros grupos.
Na sessão de Fórum, “o inesperado” é elemento
essencial. As alternativas da plateia para transformar
o conflito apresentado criam abertura de participação.
No caso de usuários da saúde mental, a introdução do
inesperado pode ser ainda mais marcante, pela forma
muito própria das opressões que representam.
Como Multiplicadores, além de experimentar os
jogos e as técnicas, orientar participantes de grupos,
observar outros Multiplicadores em ação, observar os
membros dos grupos, fazer a leitura da realidade local,
aprender a questionar os participantes e a compartilhar,
construir uma cena, criar imagens para ela e mediar um
Fórum, podemos ainda contribuir com a qualificação
de novos Multiplicadores.
Essa fase necessita de todo o aprendizado acumulado
e avança para produções de conhecimento pautadas no
estudo da poética do Teatro do Oprimido, e no desejo
de compartilhar esse saber com outros aprendizes, de
investigar outras linguagens estéticas, de se articular
com outros grupos artísticos e políticos. O solo depende do ritmo da fertilização, necessita da presença de
outros polinizadores e de tempo para a germinação,
para que a pequena árvore cresça e se fortaleça. Não
adianta apressar.
Boal nos dizia que a loucura é uma quebra de nosso
ritmo corporal e mental em relação ao meio social em
que vivemos. Tudo que possui ritmo, às vezes, se desequilibra para re-equilibrar. Assim é com o processo
pedagógico do Teatro do Oprimido: nunca está pronto
ou acaba quando termina. O tempo atua produzindo
novos começos. ◘
Referências:
BOAL, A. A Estética do Oprimido. RJ: Garamond, 2008.
Notas:
1 Curinga é um especialista no método do Teatro do Oprimido; artista com função pedagógica; praticante, pesquisador,
estudioso/a em constante processo de formação; e que ensina
aprendendo e vice-versa.
2 A Maiêutica Socrática é o momento do “parto” intelectual, da
procura da verdade no interior do ser humano. Sócrates conduzia esse parto em dois momentos: levava os seus discípulos ou
interlocutores a duvidar de seu próprio conhecimento a respeito
de determinado assunto; em seguida, os levava a conceber, de si
mesmos, uma nova opinião sobre o assunto em questão. Por meio
de questões, inseridas num contexto determinado, a Maiêutica
dá à luz ideias complexas. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Maiêutica.
M E TA X I S
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Brasil Adentro
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
A Potência do Eu, o
Fortalecimento do Outro
Adriana Araújo , auxiliar de enfermagem e Monica Silva, auxiliar administrativa - multiplicadoras do CAPSi Recriar
No início de 2008, o CAPSi Recriar¹ integrou a
capacitação do Teatro do Oprimido na Saúde Mental.
Naquele momento, a maioria dos profissionais não acreditava na potência desse método, por desconhecimento
da proposta ou por medo do novo. A equipe achava que
não funcionaria. Depois de muita discussão, aceitamos
enfrentar o desafio.
De repente, nós duas, uma auxiliar de enfermagem
e uma auxiliar administrativa, teríamos que formar
e coordenar um grupo no CAPSi. Proposta absolutamente nova, uma vez que todos os outros grupos
tinham sempre a coordenação de técnicos, sejam
psicólogos(as), assistentes sociais, terapeutas ocupacionais ou enfermeiros(as). Diferentemente dos Multiplicadores do projeto, que foram capacitados em encontros
específicos, nós entramos em contato com o Teatro do
Oprimido, seus propósitos e objetivos, com os jogos e
o Teatro-Fórum participando ativamente de um grupo
de usuários do serviço de saúde mental. Foi no CAPS
Tear, onde Rose Almeida, Multiplicadora do TO desde
24
M E TA X I S
2006, nos apoiou e orientou nesse processo.
A ida uma vez por semana ao grupo do Tear foi uma
conquista, pois, apesar de a equipe de profissionais do
Recriar ter aceitado a proposta do projeto, sair acabava
se tornando uma dificuldade, às vezes sentida por nós
como falta de apoio. Muitas vezes ouvíamos: “Isso é
brincadeira”, “Será que isso vai dar certo?” ou “Como
assim, já vão passear de novo?” Além da descrença com
relação ao retorno da ação do TO no serviço, havia
também o conflito com o trabalho que já tínhamos
de fazer em face da alta demanda de usuários, o que
se acentua com a ausência de uma profissional, o que
dirá de duas.
Na primeira vez que fomos a uma oficina de TO,
estávamos apreensivas, era tudo novo. Até então, nossa
experiência tinha sido apenas com crianças e adolescentes, e a capacitação seria feita em um serviço de saúde
mental com adultos. Como implantaríamos a proposta,
se estávamos sendo capacitadas num grupo de adultos?
Aos poucos, percebemos que o método poderia ser
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
aplicado em qualquer serviço, com adultos ou com adolescentes. Os encontros mensais coordenados por Yara
Toscano e a troca com Multiplicadores supervisores de
Guarulhos reforçaram nossa confiança.
Aproximadamente um ano depois ainda não estávamos fazendo a oficina. Sabíamos da importância de
começar o nosso grupo, mas não tínhamos apoio da
equipe e fomos adiando, até que um dia, conversando
com um assistente social, fomos incentivadas e ganhamos coragem para começar na semana seguinte. Em
reunião, anunciamos aos profissionais que poderiam
encaminhar seus pacientes; a princípio, os adolescentes,
por não sabermos como seria trabalhar com crianças.
Na primeira oficina tivemos apenas um adolescente
e dois profissionais. Aí, percebemos que sem o apoio
da equipe seria difícil. Por isso, seguimos insistindo, o
que resultou no encaminhamento de mais adolescentes.
Como seria a aceitação dos usuários?
Uma paciente, ao vir para a instituição, tinha uma
queixa de ansiedade que a fazia arrancar os cabelos.
A proposta foi atendimento semanal com a psicóloga, mas a jovem não aderiu. Por isso, a estratégia foi
encaminhá-la para nós, na tentativa de criar vínculo.
Nas primeiras oficinas, a jovem ficava sempre quieta;
pouco participativa e muito desconfiada, fazia os jogos
somente quando convocada. Agora, a diferença é grande: tornou-se mais participativa, aderiu ao atendimento
individual e fez novos amigos.
Outro paciente que nos chamou a atenção foi O.,
que caçoava dos colegas e dos jogos propostos, o que
comprometia o andamento do grupo. Então, problematizamos sua postura com todos. Os outros jovens
entendiam que, cada vez que caçoava de um colega, O.
dava permissão para que os outros também zombassem
dele. Com o passar do tempo, o jovem passou a mostrar
mais respeito pelo espaço dos outros dentro do grupo.
Mesmo depois de haver completado a maioridade e
ter sido encaminhado a outro serviço de saúde mental,
continua a vir à instituição nos dias de oficina.
A. é uma paciente que não se comunica verbalmente
com ninguém, a não ser em casa, com sua tia. Tem
sempre as mãos no rosto, numa postura de intenso
retraimento e isolamento. Começou a fazer Teatro do
Oprimido e, numa oficina, no jogo “Quantos as”²,
nos surpreendeu. A. foi intensa em sua participação
nesse jogo, procurando expressar-se com o grupo, e
percebemos que em um dos momentos ela quase deixou
Brasil Adentro
que ouvíssemos sua voz. Apesar de ainda não falar, não
fica mais com as mãos no rosto, se comunica através
do olhar e do sorriso, e isso faz com que percebamos o
que quer. E tanto se comunicou sensivelmente que até
arrumou um namorado.
Todos os usuários que participam do grupo tiveram
uma melhora significativa. E, com isso, o coletivo ganhou força e se constituiu num grupo sólido, constituído
de amigos.
O dia do Teatro do Oprimido no Recriar tornou-se
um ponto de encontro para além do espaço de tratamento. Lugar possibilitador de convivência e troca, que
combina responsabilidade e liberdade. Entre eles se
decidem em que horário chegar e o que fazer. O CAPSi
se tornou um espaço de fortalecimento, autonomia e
empoderamento. E a partir do grupo do TO, novas
ideias surgiram para os momentos coletivos, como o
Cine-Clube.
Hoje, o grupo do TO no CAPSi Recriar é entendido como ferramenta importante no atendimento dos
adolescentes. É uma oficina aberta que tem, em média,
20 usuários e 7 profissionais, mas isso só se efetivou
quando nossa própria equipe passou a acreditar no
trabalho. Entendemos que é imprescindível o apoio da
equipe de profissionais para a efetivação de grupos nos
serviços, pois são necessários o respaldo, a solidariedade
e a crença na ação de formação para que a efetivação
da proposta seja possível.
Podemos dizer que esse é um exemplo de como o
Teatro do Oprimido transforma a vida daqueles que o
fazem, mas também é uma possibilidade de transformar
a instituição na qual está inserido e, consequentemente,
os seus trabalhadores, proporcionando um diálogo que
envolve conflitos, os quais, trabalhados de forma ética
e solidária, podem ativar ações transformadoras para
todas e todos os envolvidos. ◘
Notas:
1 O CAPSi Recriar é um serviço de atendimento psicossocial
infanto-juvenil que atende crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes (São Paulo).
2 “O jogo propõe que um ator vá até o centro do círculo e
exprima um sentimento, sensação, emoção ou ideia usando
somente um dos muitos sons da letra “a”, com todas as inflexões,
movimentos ou gestos com que for capaz de se expressar. Todos
os outros atores, no círculo, repetirão o som e a ação duas vezes,
tentando sentir também aquela emoção, sensação, sentimento
ou ideia que originou o movimento e o som. Vários atores, um
de cada vez, fazem novas propostas para a mesma letra. Depois
experimentam-se as outras vogais, em seguida palavras habitualmente usadas e, finalmente, utilizam-se frases inteiras.”
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Brasil Adentro
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Princesas... Rainhas...
Loucas mulheres...
Claudete Felix , Curinga do Centro de Teatro do Oprimido.
“Um nome para o grupo? Que tal... ‘As Princesas de Dom Pedro’?”
A ideia surge no Hospital Psiquiátrico Dom Pedro II, Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. Eu me surpreendo, nada falo, mas penso: “Que título inteligente para um grupo de
mulheres usuárias de Saúde Mental.”
1994. Ano em que eu e Geo Britto trabalhávamos no Mandato do Vereador Augusto
Boal. Entre outros projetos, o Teatro Legislativo. O mandato criara a lei sobre atendimento
geriátrico obrigatório nas unidades de saúde da rede pública municipal do Rio de Janeiro.
A lei veio de um grupo de terceira idade, que recebia atendimento nesse mesmo hospital.
Dessa vez a direção do hospital queria utilizar o Teatro do Oprimido com usuários da
saúde mental que, semanalmente, recebiam acompanhamento psicológico. O grupo era
formado basicamente de mulheres. Só as mulheres enlouquecem? Ou são as que se tratam
mais? Muitas já ficaram internadas e, agora, após a alta, visitam semanalmente a unidade
para receberem medicamentos e acompanhamento psicológico. A proposta era que o TO
fosse uma injeção de possibilidades e um estimulante para mente e corpo. Um remédio
a mais? Qual posologia seria benéfica para tantos fantasmas? Aprendi com elas que as
pílulas não acabam com os tormentos, apenas adormecem os monstros e os gritos viram
sussurros. Além de provocar certa lentidão no ver, no sentir, no agir.
Entre jogos, exercícios e técnicas teatrais, as integrantes do grupo saíam da rotina da
casa, do trabalho e do hospital e podiam ser: rainhas, cantoras, mulheres outras que não
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M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
elas mesmas, famosas e visíveis à sociedade. Para aplicar
os jogos, era preciso mais tempo, as vozes lentas, às
vezes, trôpegas ou ininteligíveis que vinham dos efeitos
dos medicamentos. Para quem via de fora, os olhares
eram de um ritmo a se acostumar, ora lento, ora dinâmico. Ou nós nos adaptamos ou elas mudaram, só sei
que depois de umas semanas essa diferença não existia,
e nós alcançamos um mesmo jeito de falar, um modo
de olhar e um movimento ritmado em busca de contar
as histórias, tirar de dentro os personagens e vê-los nas
cenas que nasciam de cada uma delas. Não as chamo
mais de usuárias, têm nomes e nos chamamos por nomes: Claudete, Edite, Anita, Eunice... Mulheres.
Cada jogo parecia significar anos de desbloqueios.
Havia alegria em cada olhar, toque, som. O corpo
saindo do mecanismo obrigatório da normalidade.
Corpo tolhido à base de remédios e acusações conjugais:
“Você está nervosa, é maluca, toma seus remédios,
não sabe cuidar dos filhos, não sabe lavar uma roupa,
só vive dormindo”. Eunice não podia se aborrecer ou
reclamar de alguma coisa que logo vinha o remédio,
trazido e engolido com xingamentos que faziam sua
estima escorregar pelo chão do casebre onde morava,
em Anchieta, bairro do subúrbio do Rio. A miséria
tem a ver com loucura? A miséria e a fome provocam
loucuras? A pobreza cercava aquelas mulheres e seus
vestidos e sorrisos surrados...
Eunice: marido violento, pais autoritários, família
e vizinhos caçoando da “maluquez”, além da barriga
vazia e cheia de vergonha... Quem é normal nessa situação? Ser normal é aceitar as regras sem questioná-las?
Então, Eunice era louca, sim.... Seus sonhos? “Casar de
vestido branco, numa igreja iluminada, que o marido
falasse baixinho e as pessoas não a olhassem como
diferente”.
A peça de Teatro-Fórum teve como base as opressões de uma mulher que, por mais que se cuidasse, as
pessoas sempre lhe lembravam o quanto era esquisita,
anormal, diferente, incomum. No início, o casamento
da protagonista que acreditava que seria feliz com o homem amado. Inesquecível o olhar radiante nos ensaios
Brasil Adentro
toda vez que Eunice colocava o simples vestido branco
de seu figurino e dizia “sim” à sua colega de teatro,
que fazia o padre. Eunice feliz era apenas Eunice. Nem
louca, nem sã, mas tão feliz nesses poucos minutos em
que o Teatro lhe dava a possibilidade de realizar sonhos
e destruir opressões. Por que não?
A Arte torna visível o invisível. Com o Teatro, Eunice
tornou-se visível. Era a atriz em cena, não a doente, a
velha, a torta. Ela dialogava seu texto decorado, andava
os passos ensaiados na marcação do palco. Tinha o
olhar de quem é notada por outras pessoas. Encheu-se
dos aplausos. A Arte é o canal, o artista possibilita o
contato com um mundo que fragmenta os preconceitos.
Surge a liberdade de ser tão humano em seus anseios:
inteiro, capaz, perfeito em si mesmo.
Preconceituosamente, às vezes eu falava assim
“tatibitate” com as “Princesas”, como se elas não
entendessem a explicação do jogo. Aprendi a explicar
de maneira mais clara, afinal não tinha que florear e
encontrar palavras exclusivas. Aprendi também que
compreendem o mundo através da lógica do tempo: o
remédio toma-lhes muito mais do raciocínio; agir ou
falar pode ser demorado para quem está sempre com
pressa e usa medicamentos que os inibam. Os remédios
dopam, mas os fantasmas continuam, apenas adormecem, mas não se extinguem de suas mentes.
Para quem aguarda o outro chegar, devagar, só vale
a pena... Eis o espetáculo com oito atrizes de um grupo
cujo nome foi escolhido criativamente: “Claudete, nós
somos as Princesas de Dom Pedro.” Eunice percebeu
meu espanto, viu meu queixo cair e eu me revelar ignorante sobre seu raciocínio. Ela, sabiamente, fica feliz
com sua descoberta e seu trocadilho divertido: tamanha
consciência e lucidez. Elas sorriram inteiras. Não, não
eram apenas princesas, eram rainhas de reinado próprio
e verdadeiro. Agradeço por me ensinarem a ensinar e
aprender como aprender. Eu pensava o quanto o Teatro
do Oprimido pode transformar a vida das pessoas,
melhorar sua atuação no mundo. Na verdade, minha
maneira de ver em torno se transformou, e penso que
melhorei como pessoa. ◘
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Brasil Adentro
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Tecendo Cenas,
Lançando Jogos,
Criando Ondas...
Rosemeire de Almeida , coordenadora da Oficina de TO, CAPS II Projeto Tear, Guarulhos-SP.
A proposta do Teatro do Oprimido no Projeto Tear
teve início em 2006. De lá para cá, inúmeros desafios
foram suplantados, e hoje temos a realidade de um
trabalho mais amplo e difuso na cidade de Guarulhos,
tanto nos CAPS como em serviços de Atenção Básica
em Saúde. Inúmeros são os profissionais envolvidos,
tanto os de saúde mental (psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais) quanto agentes comunitários
de saúde, atendentes SUS, auxiliares de enfermagem,
auxiliares administrativos, entre outros.
Quando surgiu a proposta do Teatro do Oprimido
no Projeto Tear, a equipe não sabia muito bem do que se
tratava e qual era a perspectiva do trabalho no projeto.
Para enfrentar o desafio da Reforma Psiquiátrica, para
além da implantação de novos serviços, há que se romper com a lógica dos manicômios, internalizada em cada
um de nós; há que se criar novas formas de cuidado para
que não trabalhemos em instituições totais reprodutoras
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de conceitos e normas há tanto estabelecidas.
Na capacitação com o CTO, a sensação de que o
Teatro do Oprimido nos possibilitaria discutir questões
que permaneciam silenciadas ou na subjetividade, relativas às estruturas de poder que excluem a participação,
à soberania de um saber técnico advindo de bancos
universitários que, muitas vezes, contrapõe profissionais
“técnicos” a auxiliares de enfermagem, cozinheiros, ajudantes de limpeza, monitores de oficina, entre outros.
Em sua ampla discussão acerca do poder em nossa
sociedade, Foucault aponta para como a ética do cuidado de si é prática de liberdade e cuidado com o outro:
“aquele que cuida adequadamente de si mesmo, é, por
isso mesmo, capaz de se conduzir adequadamente em
relação aos outros e para os outros”. No arsenal do
Teatro do Oprimido, uma série de jogos e exercícios que
visam à desmecanização do corpo, do olhar, da mente.
Infinitas possibilidades de experimentar e conhecer
nossos próprios limites e potencialidades.
Após a capacitação inicial, o desafio da implantação
foi grande. A primeira ação prática foi tornar a equipe
conhecedora da proposta; para isso, uma oficina de
apresentação com jogos, demonstração de TeatroFórum e a leitura do texto “A loucura no espelho”, de
Augusto Boal.
Se as palavras, sozinhas, nos confundem – quem
é normal, quem não: a loucura e o gênio, terapia
e castigo – podemos usar outros instrumentos
de diálogo como traço e cor, o som e o silêncio,
o espaço e o tempo – a Arte.
No entanto, mudanças e imprevistos no caminho
não faltam nos serviços de atendimento; agendas
cheias e conflitantes impingiram ao TO mudanças, e,
de imediato, a primeira oficina com os participantes do
projeto foi desmarcada. Angustiante momento gerou
crise. Mas, se crise é perigo, é também oportunidade! E
como era semana de capacitação com o CTO, tivemos
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
a oportunidade de trabalhar o conflito que vivíamos
através de uma cena de Teatro-Fórum: dificuldades de
implantação da proposta no serviço.
Cena montada entre os Multiplicadores, fizemos
a apresentação, e eu estava curingando. No fórum,
algumas alternativas foram feitas, e dentro de mim,
num crescendo, a vontade de experimentar uma alternativa. Eu curingando a cena e pensando: “Quero
tentar”. E quando já íamos mudar para a outra cena,
eu expresso: “Preciso tentar uma alternativa, pois
efetivamente viverei essa situação amanhã”. Entrei na
cena no momento da reunião de equipe e expus minha
angústia acerca da mudança, a sensação de atropelo,
a necessidade de melhor organizarmos e planejarmos
nossas ações! Silêncio, ninguém fala... Procuro firmar
nosso compromisso com os clientes quando combinamos, o cuidado que devemos ter para não invertermos
nossas prioridades. Na cena, vivenciei uma alternativa
e, no outro dia, na realidade, intervim.
Para meu espanto, reproduziu-se na realidade o que
eu vivera na cena. Porém, na realidade, uma diferença
substancial: eu tinha uma aliada. No meio do silêncio
da equipe, a fala da consultora clínica, que me ajudou
a perguntar a todos sobre os desejos com relação ao
Teatro do Oprimido no Tear, sobre a necessidade de
nos comunicarmos, combinarmos e respeitarmos nossos
combinados. Soube também na reunião que, inclusive,
o horário da oficina de TO já havia sido recombinado
com os participantes sem meu conhecimento ou do
outro Multiplicador. Nós, que faríamos a oficina, não
fomos sequer comunicados quanto à mudança, quanto
mais consultados.
É essencial para um Multiplicador vivenciar a intervenção na sua vida real a partir do ensaio no TeatroFórum. Com todas as letras, sons e imagens, pude dialogar com os participantes atendidos pelo serviço sobre
a possibilidade de intervenção na nossa própria vida.
Vivi e atuei na minha realidade, podendo levar para a
mesa de discussão as relações de poder estabelecidas em
nosso espaço de trabalho, os desafios do processo de
implantação da reforma psiquiátrica e a necessidade de
ousadia na busca de novas formas de cuidar.
A primeira cena do grupo “Tecendo Cenas” do
Tear contava a história de uma participante que ficara
trancada por um mês dentro de sua própria casa. Sua
irmã, na ânsia do cuidar e proteger, a exilou. Anos após
o ocorrido, as duas irmãs que moravam sob o mesmo
Brasil Adentro
teto nunca haviam conversado sobre o fato. Na cena, a
mulher oprimida na vida real fazia o papel da opressora,
ou seja, de sua irmã. A irmã foi assistir à apresentação
e fez uma intervenção, substituindo a oprimida. Ali,
no meio do saguão, as duas irmãs atuaram com seus
papéis invertidos, começando um diálogo trancado
dentro de cada uma.
Após essa primeira apresentação, a participante do
projeto que vivenciou essa opressão disse-nos que foi
como se um monstro tivesse saído de dentro dela, que
nunca conseguira tocar no assunto com a irmã e que
ainda havia conflitos entre ambas, mas elas conseguiam
conversar e se entender melhor. O Teatro do Oprimido
propõe que possamos dialogar com o outro.
Hoje o CAPS II – Projeto Tear, com sua oficina de
Teatro do Oprimido, é referência para o município e
para outras oficinas dos outros serviços. Em julho de
2010, fui contratada exclusivamente para coordenar
a proposta do TO na cidade. Possibilidades conquistadas, que contribuem para a efetivação do Método
como política pública da saúde mental no município
de Guarulhos.
Como desafios não cessam, pois estamos sempre na
caminhada, agora é momento de consolidação e busca
de conhecimentos acerca da promoção cultural de saúde
que este movimento representa. ◘
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Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Da Periferia para o Mundo
Armindo Pinto ¹ , diretor do Grupo Revolução Teatral e do GTO IAUNESP.
Reconhecido em todo mundo – e por muitos considerado tão importante quanto Brecht –, Augusto Boal é o
único brasileiro nomeado Embaixador Mundial do Teatro pela UNESCO (2009), além de indicado ao Prêmio
Nobel da Paz (2008). Vivenciou em Santo André, nos
anos de 1960, um dos momentos que o inspiraram na
construção do Teatro do Oprimido: o trabalho desenvolvido com metalúrgicos. Depois, fugindo das garras
do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), ocupou o
Teatro de Alumínio. Na década de 1990, após o exílio,
retornou à cidade para desenvolver um projeto junto ao
Poder Público, o Programa de Teatro do Oprimido, na
Prefeitura de Santo André (1997 a 2008).
Quando eu disse a ele que a Câmara Municipal
queria lhe entregar o título de cidadão honorário, Boal
não se interessou pela homenagem. Mas, quando lhe
lembrei que ele citava Santo André pelo menos 12 vezes
na biografia Hamlet e o Filho do Padeiro, ele sorriu e
disse: “Doze? Então eu quero esse título!”
A partir de 1997, já no primeiro ano do governo
Celso Daniel, Boal e a equipe do CTO desenvolveram
30
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um programa de formação de servidores, cujo objetivo
era estimular e ampliar a participação popular na gestão
do município. Memorável foi, por exemplo, o Desfile
do Orçamento Participativo, em que formando alas,
como em uma escola de samba, a população entregou
ao Prefeito Celso Daniel, simbolicamente, a Peça Orçamentária Popular.
Várias Secretarias se utilizaram das técnicas do Teatro do Oprimido para a formação cidadã dos próprios
servidores e para fomentar o diálogo administração x
população. A partir daí formaram-se, além do “grupo
mãe” protagonizado por servidores, grupos populares
de Teatro-Fórum. Durante 12 anos o programa atuou
nas regiões mais carentes da cidade e também com
pessoas com necessidades especiais, pessoas com sofrimento psíquico, jovens em situação de risco, idosos e
mães da periferia, entre outros.
Para se ter noção da importância dada ao Teatro do
Oprimido na administração municipal, o prefeito João
Avamileno, sucessor de Celso Daniel, instituiu por lei,
a partir da reforma administrativa enviada à Câmara
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Municipal, o cargo de Supervisor Técnico de Teatro do
Oprimido, magnificando e mostrando a importância
dos resultados obtidos a partir das técnicas de Boal.
No entanto, com a mudança de governo nas eleições
de 2008, deu-se a extinção do programa, mostrando
a que veio a nova administração. Mas a semente já
havia germinado. E a prova, entre outras, é um grupo que resolveu mostrar resistência e passou a atuar
sem a colaboração ou ajuda de órgãos públicos ou do
terceiro setor, fazendo teatro como filosofia de vida: o
Revolução Teatral.
Formado por jovens da periferia mais carente da
cidade, proibido de usar as salas do próprio Centro
Comunitário em que nasceu, o grupo passou a ensaiar
na quadra esportiva desse mesmo Centro. Quadra dos
fundos, onde estão traficantes e usuários, além de
skatistas, ciclistas e outras tribos. Ali ensaiou, durante
dois anos e em meio a essa balbúrdia. Dali, seguiu para
um quintal, ou qualquer espaço onde fosse possível
atuar, até ocupar, em 2010, um barracão comunitário
abandonado na Favela dos Eucaliptos. O grupo foi
recebido de braços abertos pela comunidade, iniciando
um trabalho com crianças, jovens e adolescentes, e tenta
constituir um Clube de Mães.
Faz um teatro engajado na luta, para que cada um
perceba suas potencialidades, as quais ampliarão sua
Brasil Adentro
visão de mundo. Engajado na luta por um mundo mais
solidário, por uma política de Paz. Contra qualquer tipo
de opressão. Teatro e ação política. Ação tida por muitos
como datada, mas, como dizia Boal, “enquanto houver
opressão, haverá Teatro do Oprimido”.
Na Argentina, atuando na abertura do Encontro
Internacional de Teatro Comparado, em Bahia Blanca;
ou em Jujuy, no Encontro Latino Americano de Teatro
do Oprimido (2010); no Uruguai, atuando e fazendo
formação de Multiplicadores, assim como em Pernambuco e na Paraíba, atuando em feiras, escolas e sítios, o
Revolução Teatral constrói sua história.
Santo André recebeu a visita de mais de 30 pessoas
de vários países para conhecer esta experiência tão alternativa quanto moderna. Fomos ao Senegal, a Cuba,
Portugal, Uruguai, Argentina, Itália e Canadá como
convidados, para mostrar a experiência andreense com
as técnicas de Boal. Jovens de favelas foram a alguns
desses países levando nosso modo de fazer TO.
Se nos dói a ausência de Boal, nos acalenta ver Jane
e Douglas, oriundos da favela, aos 18 anos, trabalhando e multiplicando a experiência do grupo; o rapper
P.O. colocando Teatro do Oprimido em seus shows;
jovens oriundos do Revolução dirigindo grêmios estudantis; alunos da rede pública fazendo trabalhos
escolares usando o teatro de Boal e debatendo com os
M E TA X I S
31
Brasil Adentro
professores questões da História do Brasil e não mais
aceitando tudo pronto. Uma pequena revolução se faz
na periferia. Daniela, Luciana, Rodolfo, Valter, Paulo,
Franciele, Marcele e tantos outros jovens e adolescentes
estão construindo e contando para o mundo uma nova
história de resistência, de fazer artístico, de criação, de
crença em novos sonhos e possibilidades. Como Boal,
caminham na contracorrente, constroem um novo
discurso, pregam um novo modo de ver o mundo e
enfrentar seus opressores, a partir do teatro.
Em relação à estética, trabalhamos na síntese entre
o Método de Boal e o de Laban. Cada ator (pessoas
que nunca ou pouco foram ao teatro) torna-se coreógrafo, autor, ator, diretor, Multiplicador. Se, para Boal,
“qualquer um pode fazer teatro, até os atores” e, para
Laban, “os movimentos humanos são constituídos dos
mesmos elementos seja na arte, no trabalho, na vida
cotidiana”, para o Revolução a síntese é o caminho a
ser pesquisado.
O Revolução Teatral utiliza justamente os movimentos espontâneos do corpo que interpreta fatos e opressões do dia a dia de cada um como elementos para a
construção teatral. Com a busca pela dança que parte da
espontaneidade, com o Método Laban e com o Teatro
Imagem de Boal, trabalhamos a reciclagem do corpo;
a busca do corpo que atua na vida e no palco, com
prazer. Não mais só o corpo vigiado, mecanizado para
o trabalho repetitivo e para o sexo. Não mais a repetição
do mito de Sísifo. Dessa maneira, jovens e adolescentes
aprendem as possibilidades gozosas do corpo, criando
eles próprios as coreografias que estão nos espetáculos,
compreendendo sua própria sensibilidade e ampliando
as áreas de atuação enquanto humanos.
Nas encenações, a provocação é o embate com a
cultura de massa e suas imagens vorazes e repetitivas,
que não permitem leituras, interpretações, fantasia e
imaginação. Abolindo total ou parcialmente o verbo,
a partir de partituras corporais, provoca o espectador a
“completar a imagem” e ter a possibilidade de uma leitura polissêmica. A reflexão pelo lúdico. A fala do corpo.
Brecht, circo, poesia, rap e cultura popular, fazem parte
do repertório desenvolvido pelo grupo, lutando contra
a força destrutiva da TV e da cultura de massas. “O
Teatro escolhe, o Revolução acolhe”: assim, qualquer
pessoa que chegue ao grupo é incorporado ao espetáculo
vigente, sempre com o constante debate e a procura da
compreensão do que deseja falar a peça.
Outra característica é o sistema Curinga desen-
32
M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
volvido por Boal, que permite que os atores façam
todos os papéis, inclusive o de protagonista. Outra
vez na contracorrente das regras da sociedade, nunca
escolhemos o “melhor” ator para ser o protagonista.
Trabalhamos para que cada um seja protagonista. No
palco e na vida. Característica do Teatro do Oprimido
é a construção coletiva, a escolha do tema a partir das
realidades do grupo, texto sempre construído a partir
de improvisações e do Teatro Imagem. Os oprimidos de
qualquer classe social representam a si mesmos. Com
esses elementos, o grupo leva a sociedade à reflexão – divertindo como pregava Brecht – e vai além, procurando
a transformação, como queria Boal, em sua crença no
ser humano.
Outra frente de atuação é o REVOLUNESP, junção
com o GTO IAUNESP (Instituto de Artes da UNESP),
que procura derrubar os muros entre a universidade e
a favela. Os integrantes do grupo desenvolvem oficinas
com os alunos de Licenciatura em Teatro, os atores se
juntam para apresentações, os alunos vão ao barracão,
o Revolução vai à universidade. A realização de um
Encontro Latino Americano de Dança e Teatro do
Oprimido, que aconteceu na UNESP com organização
conjunta, foi o mais recente fruto dessa junção.
Com um repertório de seis espetáculos, o grupo
conquista autonomia. Enquanto dois componentes vão
a Belém do Pará participar do congresso internacional
IDEA, o restante faz a abertura de um Encontro Internacional de Educação Popular e ministra oficinas, sem
a presença do diretor.
Pelo segundo ano consecutivo, o grupo atua no projeto Se liga no Teatro, do SESC de Santo André. Jane e
Douglas, aos 18 anos, fazem formação de jovens da sua
idade. Rodolfo e Wesley são assistentes. Prova inequívoca da capacidade do Teatro do Oprimido em formar,
mais que artistas, atores sociais. Com o reconhecimento
profissional desses jovens, com a inserção no mercado
de trabalho, o ciclo se fecha. O que era sonho se transforma em realidade: um trabalho que alia sobrevivência,
alegria e multiplicação... dos sonhos. ◘
Nota:
1 É aluno do 4º ano de Licenciatura em Teatro, do Instituto de Artes
da UNESP. Foi coordenador do Programa de Teatro do Oprimido, da
Prefeitura de Santo André. Sua formação em Teatro do Oprimido se
deu com o próprio Augusto Boal e o Centro de Teatro do Oprimido.
Brasil Adentro
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Cuidando do
Cuidador
Edna Francisca dos Santos e Vandeiziana Alves da Silva ,
multiplicadoras do Teatro do Oprimido do CAPS de Itabaianinha/SE
O Teatro do Oprimido chegou a Itabaianinha¹, e eu
imaginei que iria realizar um antigo desejo, fazer teatro.
Encenar uma peça de teatro como atriz. Logo percebi
que, com o Teatro do Oprimido, meu sonho iria muito
além. Me descobri como orientadora do processo de
montagem de um espetáculo, e essa experiência me
fez evoluir como pessoa. Até então, não conhecia essa
minha potencialidade, não me imaginava capaz de ter
o domínio de estar à frente de um grupo de pessoas
oriundas de realidades tão distintas.
Começamos a trabalhar com usuários da saúde mental e depois também com seus familiares; quando vimos,
até os funcionários estavam pedindo para entrar no
grupo: “Eu também quero fazer teatro!” Por isso, nosso
grupo conta com a participação de gente tão diferente.
Por incrível que possa parecer, às vezes, os familiares
estão mais frágeis que os usuários. Mais incrível ainda
é constatar que, muitas vezes, são os funcionários os
mais sensíveis e necessitados de Teatro do Oprimido.
Essa conjunção tão particular na composição do grupo
é um dos fatores essenciais de seu sucesso.
Nossa apresentação na Conferência Municipal de
Saúde Mental conseguiu mobilizar quase toda a cidade.
Quem dizia que em Itabaianinha não tinha teatro, se
surpreendeu. Provocamos a discussão sobre Saúde Mental muito além de suas fronteiras e também para além
das fronteiras da cidade. Ninguém mais nos segurou.
Participamos da mostra Teatro do Oprimido na capital
do estado e também da Conferência Nacional de Saúde
Mental, na capital do país, debatendo com mais de 2
mil profissionais a política pública de Saúde Mental.
Não imaginávamos chegar tão longe.
Os familiares contam com orgulho os benefícios que
o Teatro do Oprimido já trouxe para suas vidas. Um
exemplo singelo foi trazido por alguns deles, ao dizerem
que, antes de conhecer esse teatro, só usavam roupas
escuras, sem vida, sem cor. Com a participação no
grupo, perceberam que a vida sem cor é tristeza e, como
teatro é vida, adotaram cores vivas, alegres. As filhas de
uma participante solicitaram que não deixássemos sua
mãe sair do grupo, pois já sentiam o quanto ela estava
melhor depois do Teatro do Oprimido.
Agora, temos diversos familiares planejando transformar outras histórias reais em peças de Teatro-Fórum,
a fim de que alternativas sejam investigadas para a
resolução dos problemas cotidianos que enfrentam.
Temos orgulho pelo reconhecimento recebido do
secretário de saúde da cidade, dos colegas de outras
cidades e também pelo reconhecimento que chega
através dos diversos convites para nos apresentarmos.
Temos orgulho de sermos Multiplicadoras deste projeto.
Através dessa experiência, podemos entender melhor o
que cada um passa em sua vida. Para compreender mais
e julgar menos. ◘
Notas:
1 Cidade de 30 mil habitantes situada no sertão de Sergipe, Nordeste do Brasil.
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Mundo Afora
Como Flores
en el Desierto
34
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Como Flores
no Deserto
Fernando Adrián Ferraro, GTO-Rosario (Argentina).
Fernando Adrián Ferraro, do GTO-Rosario (Argentina).
En el año 2005 realicé una capacitación integral con
el Centro de Teatro del Oprimido en Río de Janeiro,
Brasil, donde además participé en el intenso proceso
de trabajo del grupo “Pirei na Cenna”, formado por
Usuari@s de la Salud Mental, familiares y simpatizantes
de la lucha antimanicomial. La experiencia se convirtió
en piedra fundamental para el trabajo que desarrollamos con el GTO-Rosario¹ en el “Hospital Psiquiátrico
Abelardo Freire” (Oliveros), desde el 2006.
En ese proceso pude vivir de cerca el trabajo colectivo, la realidad de sus integrantes y sus particulares
modos de vida, así como conocer prejuicios y opresiones
con las cuales conviven diariamente. Fui descubriendo
al mismo tiempo, mis propios prejuicios y miedos incorporados de forma a-crítica. Con el intercambio de
experiencias, el ‘fantasma del loco’, imagen producida
socialmente, limitadora de percepciones y relaciones,
fue desmontada en mí. Pude cruzar esa barrera, hacer
estallar esa imagen, me vi reflejado en sus miradas, me
vinculé con ell@s, sentí el dolor de esa exclusión.
Em 2005, realizei uma formação abrangente com
o Centro de Teatro do Oprimido, no Rio de Janeiro,
Brasil. Participei do intenso processo de trabalho do
grupo Pirei na Cenna, formado por usuários de Saúde
Mental, familiares e simpatizantes da luta antimanicomial. A experiência se tornou pedra angular no trabalho
que desenvolvemos com o GTO-Rosario,¹ no Hospital
Psiquiátrico Abelardo Freire (Oliveros), desde 2006.
Nesse processo, pude viver de perto o trabalho coletivo e, também, a realidade dos seus membros e seus
particulares estilos de vida. Pude conhecer preconceitos
e opressões com os quais convivem diariamente, descobrindo, ao mesmo tempo, meus próprios preconceitos
e medos, incorporados de forma acrítica. Com a convivência, o “fantasma de louco” – imagem produzida
socialmente, limitadora de percepções e de relações – foi
desmantelado em mim. Pude atravessar essa barreira,
fazer explodir essa imagem, ver-me refletido em seus
olhares, vincular-me e sentir a dor dessa exclusão.
Essa experiência alimentou minha crença, meu dese-
M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Esta experiencia alimentó mí creencia, deseo y compromiso ideológico de cambiar y transformar la realidad. Creo que el Teatro del Oprimido expande nuestra
capacidad de relacionarnos socialmente y generar puentes para la transformación social, proporcionando un
espacio donde podemos encontrarnos, vernos en acción
desde un otro ángulo -estético, crítico, propositivo y
dialógico- que nos permite reflexionar y proyectar el
futuro de las relaciones de una forma más humana y
colectiva. Nos estimula a abrir puertas para trabajar en
comunidades que antes, por haber asumido una mirada
social que segrega, quedaban lejos de nuestro imaginario, de nuestro poder hacer. El Teatro del Oprimido
propone que nos vinculemos sensiblemente, buscando lo
común en lo diferente para descubrir, a través del arte,
relaciones opresivas y dinamizar nuestra capacidad de
organización y lucha por nuestros derechos.
La práctica del GTO-Rosario es realizada en el hospital psiquiátrico “Abelardo Freire” que se ubica a más
de 60 kilómetros de la ciudad de Rosario y a varios de
la localidad más próxima. Actualmente se encuentran
internas cerca de 400 personas que están a kilómetros de
sus familias. Provienen en su mayoría de los sectores más
empobrecidos de la sociedad, con escasas posibilidades
de acceso al mundo del trabajo y de espacios sociales de
intercambio. De cada una de las diez salas que integran
el hospital, son pocas las personas que salen a caminar,
a vincularse con otros espacios. La mayoría desarrolla
sus vidas entre cuatro paredes, con poca actividad
física, cultural e intelectual. Sentadas en sus lugares,
distanciadas de los demás, estas personas pasan los días
en sus espacios solitarios, con sus monólogos interiores,
lejos de quien les pueda prestar atención, estimular,
comunicar. ¿Por qué? ¿Quienes son responsables de
que esto ocurra? ¿Puede un ser humano desarrollar su
salud mental en este contexto?
La aceptación de una política continuada de empobrecimiento y exclusión social del loco, del pobre, del
negro, del campesino, del diferente, adormece nuestros
sentidos, nuestra capacidad de pensar y crear, nos aísla,
nos hace cómplices. La naturalización del aislamiento
-como propone el manicomio- contribuye a desmovilizar, generar más prejuicios en torno al sufrimiento
psíquico, a dejar de ver en el otro a un semejante con los
mismos derechos, dejar de mirarlo, escucharlo, sentirlo.
Naturalización que propone indiferencia y muerte.
Dentro y fuera del hospital conviven prácticas que
Mundo Afora
jo e compromisso ideológico de mudar e transformar a
realidade. Acredito que o Teatro do Oprimido expande
nossa capacidade de nos relacionar socialmente e criar
pontes para a transformação social, proporcionando
um espaço onde podemos nos encontrar, nos ver em
ação a partir de outro ângulo – estético, crítico, propositivo e dialógico –, e que nos permite refletir e projetar
o futuro das relações de uma forma mais humana e
coletiva. O TO nos estimula a abrir portas para trabalhar em comunidades que antes, por conta de um olhar
segregador, ficavam bem longe do nosso imaginário, de
nosso poder fazer. O TO propõe que nos vinculemos
sensivelmente, na busca do comum na diferença, para
descobrirmos, através da arte, as relações opressivas e
para dinamizarmos nossa capacidade de organização
e luta por direitos.
A prática do GTO-Rosario é realizada no Hospital
Psiquiátrico Abelardo Freire, instalado a mais de 60 km
da cidade de Rosario e a vários quilômetros da cidade
mais próxima, onde hoje estão internadas cerca de
400 pessoas. Internadas a milhas de distância de suas
famílias, provenientes em sua maioria dos setores mais
empobrecidos da sociedade, com escassas possibilidades
de acesso ao mundo do trabalho e de espaços sociais
de intercâmbio. De cada uma das dez habitações que
compõem o hospital, são poucas as pessoas que saem
para caminhar ou visitar outras áreas. A maioria passa
sua vida entre quatro paredes, com pouca atividade
física, cultural ou intelectual. Sentadas em seus lugares,
distanciadas das outras pessoas, passam os dias no
quarto sozinhas, cercadas por monólogos interiores,
longe de quem possa lhes prestar atenção, estimular,
comunicar. Por quê? Quem são os responsáveis por
isso? Pode um ser humano desenvolver sua saúde mental
nesse contexto?
A aceitação de uma política continuada de empobrecimento e exclusão social do louco, do pobre, do negro,
do agricultor, do diferente entorpece nossos sentidos,
nossa capacidade de pensar e criar, nos isola, nos faz
cúmplices. A naturalização do isolamento – como propõe o manicômio – contribui para desmobilizar, gerar
mais preconceitos sobre o sofrimento mental, deixar de
se ver no outro um semelhante com os mesmos direitos,
deixar de olhar para ele, escutá-lo, senti-lo. Naturalização que propõe indiferença e morte.
Dentro e fora do hospital convivem práticas que
sustentam a política manicomial junto com outras que
M E TA X I S
35
Mundo Afora
sostienen la política manicomial junto a otras que intentan humanizar las relaciones a partir de una política
antimanicomial, a partir de la cual nos posicionamos. El
Teatro del Oprimido tiene entre sus objetivos centrales
la construcción del diálogo como medio para encontrar
alternativas a las situaciones de opresión. Desarrollar y
estimular la capacidad de diálogo es nuestra meta como
facilitadotes del método. Por esa razón, el GTO-Rosario
propone profundizar las instancias de diálogo entre los
diferentes actores de la Colonia Psiquiátrica de Oliveros
a partir de la metodología del TO, para problematizar la
realidad manicomial y crear espacios de intercambio y
producción de salud mental entre usuarios, trabajadores,
familiares y comunidad.
El aislamiento nos lleva al encierro y a la inmovilidad. Crear espacios de diálogo es un modo de intervenir
el aislamiento, de atravesar miedos y prejuicios que
existen en torno al sufrimiento psíquico que separa
usuari@s de trabajador@s, cuartos, oficinas y el hospital
de la comunidad.
La creación de otros espacios, a través del arte, está
íntimamente ligada a nuestro posicionamiento objetivo
y subjetivo, a nuestra actitud para relacionarnos. El
manicomio despersonaliza cruelmente; en él no hay
espejos, no hay miradas. Contar con otros que nos miren
y podamos mirar, que nos escuchen y podamos escuchar, que nos toquen y podamos tocar es esencial para
la convivencia y el desarrollo humano. El manicomio,
a través de sus prácticas concretas, destruye todos estos
canales de vínculo. Nuestra lucha desde el Teatro del
Oprimido es hacer latir y renacer cada vínculo a través
de los múltiples canales de expresión y comunicación.
Dentro de la lógica manicomial, la tendencia cotidiana es pasar del silencio al grito, de la expresión
reprimida a la explosión. Por ello, considero necesario
amplificar nuestra capacidad de escucha, para reconocer
tanto en el “grito” como en el “silencio” una expresión
más sutil. Atender esas manifestaciones para poder oír
la voz que traen consigo, ensayar otros pasajes, puentes
y matices y convertirlos en nuevas formas para relacionarnos. Ingresar al trabajo desde un estado de atención
especial, agudizando nuestros sentidos, nos llevaron a
descubrir puertas de acceso para la creación de vínculos
con l@s integrantes del grupo, inimaginables en una
primera instancia.
Buscamos fundamentalmente reconocer particularidades, modos de actuar y reaccionar. Reconocer proce36
M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
tentam humanizar as relações a partir de uma política
antimanicomial, a partir da qual nos posicionamos. O
Teatro do Oprimido tem, entre seus objetivos centrais,
a construção do diálogo como meio para encontrar
alternativas às situações de opressão. Desenvolver e
estimular a capacidade de diálogo é a nossa meta como
facilitadores do método. Por essa razão, o GTO-Rosario
propõe aprofundar as instâncias de diálogo entre os
diferentes atores da Colônia Psiquiátrica de Oliveros,
a partir da metodologia do TO, para problematizar a
realidade manicomial e criar espaços de intercâmbio e
produção de saúde mental entre usuários, trabalhadores,
familiares e comunidade.
O isolamento leva ao confinamento e à imobilidade.
Criar espaços de diálogo é uma forma de intervir sobre
o isolamento, uma maneira de atravessar medos e preconceitos que existem em torno do sofrimento psíquico,
que separam usuari@s de trabalhador@s, quartos,
escritórios e o hospital da comunidade.
A criação de outros espaços, através da arte, está
intimamente ligada ao nosso posicionamento objetivo
e subjetivo, à nossa atitude de nos relacionarmos. O
hospício despersonaliza cruelmente; nele não há espelhos, nem olhares. Contar com outros que nos olhem,
para os quais possamos também olhar, que nos ouçam
e que nós possamos ouvir, que nos toquem e que nós
possamos tocar é essencial para a convivência e o
desenvolvimento humanos. O manicômio, através de
suas práticas, destrói os canais de vínculo. Nossa luta
com o Teatro do Oprimido é provocar o renascer de
vínculos através dos múltiplos canais de expressão e
de comunicação.
Dentro da lógica manicomial, a tendência diária é
passar do silêncio ao grito, da expressão reprimida à
explosão. Por isso, considero necessário ampliar nossa
capacidade de escuta, conseguindo reconhecer, tanto
no “grito” quanto no “silêncio”, uma expressão mais
sutil. É preciso atender a essas manifestações para poder
ouvir a voz que eles trazem, ensaiando outras passagens,
pontes e nuances para que essas não sejam as únicas
maneiras de vínculo. Ingressar no trabalho a partir
de um estado de atenção especial, aguçar os sentidos,
leva-nos a descobrir acessos para a criação de ligações
com os integrantes do grupo, inimagináveis em uma
primeira instância.
Buscamos reconhecer particularidades, modos
de agir e reagir. E reconhecer processos expressivos,
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
sos expresivos, posibilidades de escritura, de lectura, de
memoria, de movimiento físico; sus acciones y placeres
cotidianos, sus preguntas, sus deseos. La constancia del
trabajo, el compartir distintas experiencias consolida
el entendimiento mutuo, nos ofrece matices. Hablar
con cada un@, compartir experiencias colectivas, nos
devuelve el espejo múltiple de los otr@s, nos permite
buscarnos en el otro, provocándonos movimiento.
Nuestra función es la de un buscador del ritmo que
nos haga danzar, de la palabra que nos nombra, del
abrazo que tiene corazón. Somos referentes en nuestro
accionar: la atención sensible, el afecto, la escucha, la
pregunta, la curiosidad, como guías para la dinamización colectiva; la actitud para trascender prejuicios,
muros institucionales, como impulso básico para comunicar e interrelacionarnos con otros; la visualización
de objetivos cortos y realizables, nacidos y descubiertos
en el vínculo para potenciar el intercambio; el desafío
permanente de la construcción colectiva y solidaria para
no ser presas del aislamiento.
Trabajando en una sala con 54 abuelas y abuelos
(que viven desde hace más de 40 años la cronificación
de su estado dentro de la institución), intentando que
circule la palabra, buscando que cada cual se presente,
me encontré que vari@s de ell@s no respondían a la propuesta y que tanto sus compañer@s como enfermer@s
no sabían cuales eran sus nombres.
Al pasar los días, llevé música e instrumentos musicales. Much@s de los que no habían participado hasta el
momento lo hicieron: cantando, bailando, aplaudiendo
y esbozando una sonrisa. Mientras la música sonaba, reconocí un movimiento singular en una de las abuelas: al
escuchar música española danzaba en su silla de ruedas,
su posición casi rígida se ablandó, algo estaba pasando.
Intenté hablar con ella, preguntarle qué había sentido,
pero no tuve respuesta. Aquello quedó resonando dentro
de mí, empecé a buscar qué hacer, preguntándome como
estimular ese movimiento que había percibido.
Decidí llevar las castañuelas de mi bisabuela al próximo encuentro. Al ofrecérselas, ella abrió lentamente
sus manos, levantó suavemente la cabeza, me miró por
primera vez, empezó a tocar y a balbucear una canción. Algo de su historia estaba poniéndose en juego.
Cuando terminó de tocar me acerqué emocionado, la
miré agradeciéndole su música y le pregunté su nombre:
“Erminia”, me dijo.
Muchas veces, incluso trabajando entre militantes de
Mundo Afora
possibilidades de escritura, de leitura, de memória, de
movimento físico; suas ações e prazeres diários, suas dúvidas, seus desejos. A constância do trabalho e a partilha
de diferentes experiências consolidam o entendimento
mútuo, nos oferecem nuances. Falar com cada um@
e compartilhar experiências coletivas devolvem-nos o
espelho múltiplo dos outr@s, permitem que nos busquemos no outro, nos colocando em movimento.
Nossa função é a de um pesquisador do ritmo que
nos faz dançar, da palavra que é nome, do abraço que
tem coração. São referências em nossas ações: a atenção
sensível, o carinho, a escuta, a pergunta, a curiosidade,
como guias para a dinamização coletiva; a atitude para
transcender o preconceito, as paredes institucionais,
como impulso para se comunicar e interagir com os
outros; a visualização de objetivos realizáveis, nascidos
e descobertos no vínculo para reforçar o intercâmbio; o
desafio da construção coletiva e da organização solidária, para não sermos prisioneiros do isolamento.
Trabalhando em uma sala com 54 idosos, homens e
mulheres (que vivem há mais de 40 anos a cronicidade
de seu estado dentro da instituição), estimulamos que a
palavra circulasse para a apresentação de cada pessoa.
Mas nem todos responderam à proposta, mesmo que
tanto colegas quanto enfermeiras não soubessem seus
nomes.
Com o passar dos dias, introduzimos música e instrumentos musicais. Muit@s que não haviam participado, finalmente, o fizeram: cantando, dançando, batendo
palmas e esboçando um sorriso. Enquanto a música
tocava, reconheci um movimento singular em uma das
senhoras: ao som da música espanhola, ela dançava na
sua cadeira de rodas, sua posição quase rígida amolecia, algo acontecia. Tentei falar com ela, perguntar-lhe
o que tinha sentido... Mas não houve resposta verbal.
Fiquei com isso dentro de mim, procurando o que fazer,
perguntando-me como incentivar esse movimento que
eu havia percebido...
Decidi levar as castanholas de minha bisavó para o
encontro e oferecê-las. A tal senhora lentamente abriu as
mãos e gentilmente levantou a cabeça, olhou para mim
pela primeira vez, começou a balbuciar e a tocar uma
música. Algo de sua história, foi envolvente. Quando terminou de tocar, fui animado, olhei, agradecendo a sua
música, e perguntei seu nome: “Erminia”, ela falou.
Muitas vezes, mesmo trabalhando entre militantes
da luta antimanicomial, pode-se acreditar que não faz
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Mundo Afora
38
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
la lucha antimanicomial, uno puede creer que no tiene
mucho sentido lo que hacemos, que el “enfermo mental”
internado en un hospital psiquiátrico no tiene muchas
alternativas de sanación, ni de generar lazos. Creo que
este pensamiento es dado por una mirada distante,
fomentada por las maquinas sociales expulsivas, una
mirada con cierto grado de distorsión, de pérdida de
detalles, de no detenerse en lo pequeño.
Quienes trabajamos por el desarrollo humano,
sabemos que cada gesto es valioso, cada experiencia
deja huellas imborrables e indimensionables. Por ello
gran parte de nuestra acción, se dedica a recuperar, a
valorar cada proceso. Apostamos por seguir sembrando,
agrietando muros, uniendo fuerzas para transformar
cualquier espacio de encierro en un espacio para el
diálogo. “Arte es el camino” propone Boal en su último
libro “La Estética del Oprimido”... como flores en el
desierto, la expresión humana se manifiesta sorpresiva
y contundente dentro de los muros que propone el manicomio. ¡Abre, toca, moviliza y alegra! ◘
sentido o que fazemos, que o “doente mental” internado
num hospital psiquiátrico não tem muitas alternativas
de cura, de criar laços. Acho que esse pensamento é
devido a um olhar distante promovido pelas máquinas
sociais excludentes. Um olhar com algum grau fora de
foco, que perde o detalhe, que não se concentra no que
parece pequeno.
Aqueles que trabalham para o desenvolvimento
humano devem saber que cada gesto é valioso, cada
experiência deixa uma marca indelével e imensurável.
Por isso, grande parte da nossa atuação é dedicada a
recuperar, a valorar cada processo. Apostamos em manter a semeadura, rachaduras das paredes, a unir forças
para transformar qualquer espaço de confinamento
em espaços para o diálogo. “A arte é o caminho”, Boal
propõe em seu último livro A Estética do Oprimido...
Como flores no deserto, a expressão humana se manifesta surpresa e forte dentro dos muros que propõe o
asilo. Abre, toca, movimenta e alegra! ◘
Nota:
1 Grupo que desde 2006 se dedica à pesquisa, produção, multiplicação e difusão da metodologia do Teatro do Oprimido, da
cidade de Rosario.
Contato: [email protected] , www.gtorosario.com.ar
Nota:
1 Grupo que, desde 2006, se dedica à pesquisa, à produção, à multiplicação e à difusão da metodologia do Teatro do Oprimido, na cidade
de Rosario.
Contato: [email protected] , www.gtorosario.com.ar
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Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Mundo Afora
La mirada
de Alex
O olhar
de Alex
Antonio Masegosa, diretor artístico Pallapupas – Barcelona / Espanha
Antonio Masegosa, diretor artístico Pallapupas – Barcelona / Espanha
Nadie sabe donde se perdió esa mirada, pero todos
intentamos que vuelva. Durante los dos años de trabajo
con Alex desgasté mis pupilas clavándolas en las suyas
para intentar conseguir una mínima respuesta, no fue
nada fácil. Sin embargo, hoy día Alex confía en ciertas
miradas y a menudo puede sorprenderte levantando
sus ojos, siempre distraídos, para clavarlos en los tuyos
buscando una sonrisa o un gesto de aprobación.
Alex no sale de la clase de teatro sin darme un
abrazo. Espera a que sus compañeros salgan de la sala
mientras remolonea dando pequeños paseos en círculo
hasta encontrarme solo, entonces mira a su alrededor y
busca el momento para decirme tras un silencio nervioso y entrecortado por sonrisas: “Antonio, me gusta el
teatro”. Algunas veces incluso me mira sincero y sonríe,
entonces yo le correspondo y el se va llevándose el mejor
de los aprendizajes, mientras yo me quedo disfrutando
del mejor regalo: la mirada de Alex.
Por esta y otras razones cada miércoles, durante
estos dos últimos años, mis pasos se han encaminado
Ninguém sabe onde foi que esse olhar se perdeu,
porém todos tentamos que volte. Durante os dois anos
de trabalho com Alex, desgastei minhas pupilas cravando-as nas dele, para tentar conseguir uma mínima
resposta. Não foi nada fácil. No entanto, hoje em dia,
Alex confia em certos olhares e frequentemente pode te
surpreender levantando seus olhos, sempre distraídos,
para cravá-los nos seus, buscando um sorriso ou um
gesto de aprovação.
Alex não sai da aula de teatro sem me dar um abraço. Espera os companheiros saírem da sala enquanto
disfarça, dando pequenos passeios em círculos até que
eu esteja sozinho, e então olha ao seu redor e procura o
momento para me dizer, depois de um silêncio nervoso
e entrecortado por sorrisos: “Antonio, gosto de teatro”.
Algumas vezes, inclusive, me olha sincero e sorri, então
eu correspondo e ele vai embora, levando consigo o
melhor dos aprendizados, enquanto eu fico desfrutando
do melhor presente: o olhar de Alex.
Por essa e outras razões, a cada quarta-feira, duran-
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Mundo Afora
desde el centro de Barcelona hasta el barrio de Sarriá
para encontrarme con ellos. Un encuentro que surge
antes de llegar, que nace en mi mente al tomar el tren
de cercanías que me dejará en este barrio de altas verjas
y grandes casas. Es por esto que el momento del tren se
ha convertido en algo sagrado, ya que como un ritual,
es el puente que me conduce de la lógica agotadora del
día a día, a la libertad más sincera: las dos horas que
comparto con el grupo. Este momento de conexión
acaba cuando el pasillo de la estación me devuelve de
golpe al paseo de la Bonanova.
Al volver a la luz anaranjada de la tarde mis sentidos
se predisponen a investigar en los túneles del convoy.
Durante el camino hasta llegar a la residencia voy experimentando con los olores, las miradas de la gente que
deambula por las aceras, el sonido de las obras e incluso
imagino lo que esconden dentro de las altas verjas, las
grandes casas. Al terminar de subir la calle empinada
esquivando a mujeres perfumadas y niños con mochilas
de carro, aparece, como siempre destartalada, la casona
de Albatros.
Si cierras los ojos puedes encontrarla guiándote por el
oído. Desde la empinada cuesta es fácil escuchar algún
remix de gritos que se alterna con las letras musicales
de Camela procedentes de las habitaciones más altas de
la residencia, que a modo de las torres de las mezquitas
musulmán, van resonando desde la radio de cualquiera
de los usuarios. Al ingresar, puedo descifrar como será
la sesión del día, porque el revuelo del pasillo informa
a gritos en qué estado se encuentran los habitantes de
la residencia Albatros.
Se recoge la carpeta de seguimiento, se toma la llave,
saludas a los seis o siete usuarios que te encuentras por
el camino y se desciende por la escalera casi hospitalaria
hasta el piso de abajo. Atravesando pasillos estrechos
con luces blancas y frías taquillas salimos al patio del
gimnasio donde realizamos la actividad de teatro. En
la puerta me espera la mayoría del grupo que pregunta
ansioso por la ausencia de algún voluntario, por mi estado de salud o por un pequeño agujerito que descubren
en el cuello de mi camiseta.
Recuerdo que el primer día entendí que ese lugar,
a pesar del caos, era el espacio donde quería trabajar.
Mientras esperaba con Eva Hernandez, quien fue mi
compañera durante el primer año de formación en el
proyecto ¿Y tú que miras?, iban apareciendo los participantes del nuevo grupo dando alaridos de alegría
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M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
te os últimos dois anos, meus passos se encaminham
desde o centro de Barcelona até o bairro de Sarriá para
me encontrar com eles. Um encontro que surge antes
de chegar, que nasce na minha mente ao tomar o trem
que me deixará nesse bairro de altas grades e grandes
casas. É por isso que a viagem de trem tem se convertido
em algo sagrado, já que, assim como em um ritual, é
a ponte que me conduz da lógica esgotadora do dia a
dia à liberdade mais sincera: as duas horas que passo
com o grupo. Essa conexão acaba quando o corredor
da estação me devolve repentinamente para o “Paseo
de la Bonanova”.
Ao voltar à luz alaranjada da tarde, meus sentidos
se predispõem a investigar nos túneis. No caminho
até a oficina, experimento odores, olhares das pessoas
que perambulam pelas calçadas, o som das obras e,
inclusive, imagino o que escondem as grandes casas de
altas grades. Ao terminar de subir a rua empinada, me
esquivando de mulheres perfumadas e crianças com
mochilas, aparece, como sempre desorganizadamente,
o casarão de Albatros.
Se fechar os olhos, é possível deixá-lo me guiar pelos
ouvidos. A partir da ladeira é fácil escutar algum remix
de gritos que se alterna com as letras musicais de Camela, procedentes dos quartos mais altos da residência,
que, como as torres das mesquitas muçulmanas, vão
ressoando no rádio de qualquer um dos usuários. Ao entrar, posso decifrar como será a sessão do dia, porque a
confusão do corredor informa aos gritos em que estado
se encontram os habitantes da residência Albatros.
Após pegar o fichário de acompanhamento, pega-se
a chave, cumprimenta-se seis ou sete pessoas no caminho e desce-se pela escada, quase hospitaleira, até o
andar de baixo. Atravessando corredores estreitos com
luzes brancas e armários frios, saímos para o pátio do
ginásio, onde realizamos a atividade teatral. A maioria
do grupo me espera na porta e pergunta ansiosa pela
ausência de algum voluntário, por meu estado de saúde
ou por um furinho que descobrem no alto da minha
camiseta.
Recordo que, no primeiro dia, entendi que este
lugar, apesar do caos, era o espaço onde queria trabalhar. Enquanto esperava com Eva Hernandez – minha
companheira durante o primeiro ano de formação no
projeto ¿Y tú que miras? – iam aparecendo os participantes do novo grupo, dando alaridos de alegria ou
talvez de vergonha, nunca soube, interessando-se por
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
o tal vez de pena, nunca lo supe, interesándose por
aquellas dos personas que llegaban, y que viniesen a lo
que viniesen, venían de fuera.
Nos mostrábamos amables y curiosos al ver a cada
uno de los que aparecían, quienes rápidamente se
ponían en cola para saludarnos, para acribillarnos de
preguntas, entre ellas si habíamos traído chocolates,
como era el caso de Gemma. Era mi primer contacto
con discapacidad intelectual, al menos planteada en un
grupo de trabajo. Sin embargo, sus actitudes receptivas
no me resultaron tan distintas a las de los usuarios de
salud mental del hospital psiquiátrico Don José Dolores
Fletes de Managua donde compartí una gran experiencia con el Teatro del Oprimido durante julio de 2005.
Tenía la seguridad y sabía donde estaba, por eso
me mostraba cauto pero dispuesto, expectante pero
decidido y por las risas de complicidad que se nos
escapaban, creo que Eva tenía la misma actitud. De
aquel día mantengo nítidamente una imagen en la que
aparecen los chicos y chicas por la rampa que accede
al patio, saludando aun sin vernos, compartiendo
sonrisas frente a desconocidos que como novedad ese
día habían aparecido ante ellos. Aun así la confianza
estaba ganada, veníamos del exterior de esa residencia
donde ellos viven y donde se ha relizado este proyecto
desde 2005 a 2010.
La programación de esa sesión se orientaba a “el
conocer”, descubrir hacia donde podía hacernos viajar
el Teatro del Oprimido. Se mostraban receptivos y
se les planteó un nuevo juego en el que todos podían
participar. Aparecieron al instante los primeros rechazos, las primeras relaciones, las primeras risas y la
tranquilidad de saber que eran capaces de afrontar el
trabajo teatral, de disfrutarlo y de realizar todo lo que
nos propusiésemos como grupo. En ese momento los
miedos se acabaron: había mucho que trabajar, era la
hora de lanzarse, desde el respeto, la paciencia, el cariño,
la hora de lanzarse.
Saber quiénes somos, éste era uno de los objetivos
que me planteé claramente. Saber quiénes eran ellos,
no quería conformarme con haber leído el informe de
cada uno en el que decía: síndrome de Down, mentiroso compulsivo, cuarenta y dos años, le gusta pasear
por los parques, no puede tomar sal por la tensión, etc.
Quería que ellos se describiesen a sí mismos, que me
hablen de su familia, de cómo llegaron a Albatros o de
qué les parece su trabajo, el compartir habitación con
Mundo Afora
aquelas duas pessoas que chegavam e que, viessem pelo
que viessem, vinham de fora.
Nos mostrávamos amáveis e curiosos ao ver cada um
dos que apareciam e que, rapidamente, faziam fila para
nos cumprimentar, para nos amontoar de perguntas, entre elas se tínhamos trazido chocolates, como era o caso
de Gemma. Era meu primeiro contato com a deficiência
intelectual, pelo menos em uma situação de um grupo
de trabalho. No entanto, suas atitudes receptivas não
me pareceram tão distintas da dos pacientes de saúde
mental do hospital psiquiátrico Don José Dolores Fletes
de Managua, onde passei por uma grande experiência
com o Teatro do Oprimido, em julho de 2005.
Sentia-me seguro e sabia onde estava, por isso me
mostrava cauteloso porém disposto, com expectativas
porém decidido, e, a julgar pelos risos de cumplicidade
que nos escapavam, creio que Eva tinha a mesma atitude. Daquele dia mantenho nitidamente uma imagem
na qual eles e elas aparecem pela rampa que dá acesso
ao pátio, cumprimentando mesmo sem nos ver, distribuindo sorrisos diante de desconhecidos, que eram a
novidade do dia. Mesmo assim, a confiança estava ganha, vínhamos de fora dessa residência onde eles vivem
e onde se realizou este projeto de 2005 a 2010.
A programação dessa sessão estava direcionada para
“o conhecer”, descobrir até onde o Teatro do Oprimido podia nos fazer viajar. Mostravam-se receptivos,
e propusemos um novo jogo em que todos podiam
participar. Apareceram imediatamente as primeiras
rejeições, as primeiras relações, os primeiros risos e a
tranquilidade de saber que eram capazes de enfrentar
o trabalho teatral, de desfrutá-lo e de realizar tudo o
que nos propuséssemos como grupo. Nesse momento
os medos se acabaram: havia muito trabalho, era a
hora de se lançar, a partir do respeito, da paciência, do
carinho... A hora de se lançar.
Saber quem éramos: esse foi um dos objetivos que
coloquei para mim claramente. Saber quem eram eles:
não queria me conformar com a leitura do relatório
de cada um, que dizia: síndrome de Down, mentiroso
compulsivo, quarenta e dois anos, gosta de passear pelos
parques, não pode comer sal por causa da pressão etc.
Queria que eles mesmos se descrevessem, que me falassem da sua família, de como chegaram a Albatros ou o
que pensavam do seu trabalho, de dividir o quarto com
três pessoas a mais ou o fato de não poder comer sal.
Não podia me conformar com as caras descritas pelas
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Mundo Afora
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Teatro do Oprimido na Saúde Mental
tres personas más o el no poder tomar sal. No podía
conformarme con las caras que describían las fotos de
los informes, quería ver sus músculos faciales activos,
su expresión. Eran tiempos de acabar con los rostros de
la foto, con los estereotipos y con personalidades que
entran dentro de una estructura de seguimiento.
Por esta y otras razones incluimos la conversación
inicial dentro de la dinámica de las sesiones del taller,
para que pudieran expresarse con libertad, hablar de sí
mismos y de los otros, contar los baches, las alegrías y
las pequeñas anécdotas que ocurrían en su vida durante
la semana. Esto era lo que había que contar al público,
de nada serviría aprender complejos textos o ser falsos
Romeos y Julietas si no nos conocíamos primero.
De esta forma empecé a trabajar con el Teatro del
Oprimido la discapacidad y la salud mental. El sabor
de aquella primera sesión no me dejó dormir aquella
noche rara de octubre, por lo menos eso creo recordar.
Sin embargo hoy, cinco años y medio después del comienzo de este proyecto, seguimos sobre el escenario
contando historias nuestras de las que los Montescos y
Capuletos sentirían envidia, no por la magnitud de la
tragedia, sino por la sinceridad con la que este grupo
de chicos y chicas las cuentan. ◘
fotos dos relatórios, queria ver seus músculos faciais
ativos, sua expressão. Havia chegado o momento de
acabar com os rostos da foto, com os estereótipos e com
personalidades que entram dentro de uma estrutura de
acompanhamento.
Por essa e outras razões, incluímos a conversa inicial
na dinâmica das sessões da oficina, para que pudessem
se expressar com liberdade, falar de si mesmos e dos outros, falar sobre os problemas, as alegrias e as pequenas
anedotas que ocorriam em sua vida durante a semana.
Era isso que deveria ser contado ao público. De nada
serviria aprender textos complexos ou ser falsos Romeus
e Julietas, se não nos conhecêssemos primeiro.
Dessa forma, comecei a trabalhar a deficiência e
a saúde mental com o Teatro do Oprimido. O sabor
daquela primeira sessão não me deixou dormir naquela noite estranha de outubro, pelo que me lembro.
No entanto hoje, cinco anos e meio depois do começo
desse projeto, continuamos contando nossas histórias
no palco. Histórias de dar inveja aos Montesquieux e
Capuletos não pela magnitude da tragédia, e, sim, pela
sinceridade com a qual este grupo de meninos e meninas
as contam. ◘
►Fotografías: Carola Pagani / Proyecto ¿y tú que miras? - T.O para
personas con discapacidad intelectual. Barcelona
►Fotografias: Carola Pagani / Projeto ¿Y tú que miras? - TO para
pessoas com deficiência intelectual. Barcelona.
M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Mundo Afora
Teatro del
Teatro do
Oprimido en Oprimido na
Guatemala
Guatemala
Stephane Gué y Lorena Roffé , METOCA¹.
Stephane Gué y Lorena Roffé , METOCA¹.
“Para participar en el taller es importante empezar
por conocer ciertos derechos que tenemos: Derecho a
fallar, a ser tont@s, ridícul@s y fe@s. Todos aquellos
derechos que luchamos no existan en la vida diaria,
es importante se cumplan en el taller. Sólo haciendo
valer estos derechos podremos explorar, reflexionar
y crear”.
Así comenzamos cada taller de Teatro del Oprimido
en Guatemala. Un país donde “derecho” es una palabra
gastada que pierde muchas veces su sentido. Trabajamos
principalmente con población indígena y analfabeta
para la cual el español es su segundo idioma.
Las miradas al escuchar “los derechos” son de
desconcierto, curiosidad pero también tentadoras. El
permitirse fallar como primer paso, perderle el miedo
y descubrir que tal vez en ese “fallar” se puede encontrar una nueva manera de expresar. Expresarse para la
mayoría de las personas con las que trabajamos no es
algo cotidiano. Se ha desvalorizado esta capacidad –
“no hablan bien español”-se las ha silenciado durante
“Para participar da oficina, é importante começar
por certos direitos que temos: direito a falhar, a ser
bobos, ridículos e feios. O que evitamos na vida quotidiana tem o seu lugar aqui. Só fazendo valer esses
direitos, poderemos explorar, refletir e criar”.
Assim começamos as oficina de Teatro do Oprimido
na Guatemala, país onde “direito” é palavra gasta,
que, muitas vezes, perde seu sentido. Trabalhamos
principalmente com população indígena e analfabeta,
para a qual o espanhol é segundo idioma.
Ao escutar “os direitos”, os olhares são de desconcerto, curiosidade e expectativa. Permitir-se falhar é
um primeiro passo: perder o medo de fazê-lo e, quem
sabe, descobrir nesse ato de “falhar” uma maneira de
expressão. Expressar-se publicamente, para a maioria das pessoas com as quais trabalhamos, não é algo
cotidiano. A capacidade de expressão é desvalorizada: “Não falam bem espanhol”... Foram silenciadas
durante dezenas de anos, ensinadas a ser submissas aos
interlocutores e a deixar de lado suas opiniões sobre as
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Mundo Afora
decenas y decenas de años, y se las hizo sentir que
deben comunicar lo que agrade al oído de quien escucha, en lugar de la verdad. Mirarse a los ojos es algo
extraordinario, emitir sonidos en volumen alto (fuera
de las peleas domésticas) es casi impensable. Mover el
cuerpo, expresar con él, está fuera del imaginario de
lo posible.
“El arte” es de otros y otras, de ladinos (como se
llama a las personas no-indígenas en Guatemala), de
ricos, de quienes tienen acceso. “No puedo” escuchamos
una y otra vez, y les recordamos su derecho a fallar. En
más de una ocasión, al comenzar con un nuevo grupo
(especialmente con jóvenes en una aldea Kaqchikel,
muy retirada y conservadora, y con uno de indígenas
viviendo con VIH) la sensación es de estar proponiendo
algo imposible. Encontramos miradas a la pared y no a
los ojos de las personas, cuerpos cerrados y la negativa
a participar. Así comprendimos la importancia de una
gran cantidad de juegos y ejercicios que creímos demasiado básicos para un proceso teatral “serio” y que
finalmente fueron los que nos ayudaron a avanzar. Se
trató de aflojar cuerpos y corazones. De jugar y actuar
sin tener casi conciencia de estar haciéndolo. Y poco
a poco, como por arte de magia, comenzar a crear,
disfrutar, reflexionar y denunciar.
Opresiones. Primero tuvimos que “traducir” el concepto ya que era incomprensible. Luego ir lenta y cuidadosamente hacia el proceso de explorarlas y expresarlas.
Trabajamos con diversos grupos, y las opresiones que
surgieron fueron diferentes, aunque hubo un denominador común que nos llamó mucho la atención.
En el grupo de líderes comunitarios indígenas de
una comunidad arrasada por el huracán Stan y vuelta
a construir en gran parte por autogestión de estos líderes, la opresión que surgió fue la de ser utilizad@s por
las ong’s para implementar sus proyectos y a la vez ser
totalmente silenciad@s e ignorad@s por ellas a la hora
de decidir. “Tal vez porque no hablamos bien español,
o porque no nos vestimos como ell@s”, son las razones
que encuentran a la discriminación que viven y al uso
del que son objeto. El grupo no se atrevió a presentar la
pieza de foro frente al público ajeno al taller, finalmente,
dependen de las ong’s extranjeras para poder desarrollar
sus comunidades.
En el grupo de jóvenes indígenas queqchí, la opresión
era la imposibilidad de estudiar para las mujeres de la
familia. Los gritos fueron eufóricos cuando una espec44
M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
coisas. Para elas, olhar nos olhos é algo extraordinário,
usar a voz com volume alto (fora das brigas domésticas) é quase impensável. Mover o corpo e expressar-se
com ele está fora do possível imaginável.
“A arte” é de outros e outras. Dos “ladinos” (como
são chamadas as pessoas não indígenas na Guatemala). Dos ricos, os que têm acesso. Escutamos repetidas vezes “Não posso” e lhes recordamos o direito
de falhar. Frequentemente, ao iniciar o trabalho (especialmente com jovens de uma aldeia Kaqchikel interiorana, conservadora e com um indígena com HIV),
a sensação é de estar propondo algo impossível. Nos
deparamos com olhares esquivos para a parede, em
vez de olhos nos olhos, e com corpos detidos com a
recusa em participar. Assim, compreendemos a importância de uma grande quantidade de jogos e exercícios,
que acreditávamos ser excessivamente básicos para um
processo teatral “sério” e que, finalmente, foram o que
nos ajudou a avançar. Tentamos relaxar os corpos e os
corações, jogar e atuar sem quase ter consciência de
estar fazendo isso. Assim, pouco a pouco, começamos
a criar, desfrutar, refletir e denunciar.
Opressões. Primeiro tivemos que traduzir o conceito.
Do contrário, seria incompreensível. Depois iniciamos
o processo em que começamos a explorar as opressões
e a expressá-las lenta e cuidadosamente. Trabalhamos
com diversos grupos e surgiram diferentes opressões
muito embora tenha havido um elemento comum que
nos chamou muito a atenção.
No grupo de líderes comunitários indígenas de uma
comunidade arrasada pelo furacão Stan, reconstruída,
em grande parte, pela autogestão desses líderes, a
opressão que surgiu foi o fato de se sentirem utilizados
pelas ONGs para implementar seus projetos e serem,
ao mesmo tempo, totalmente silenciados e ignorados
por estas na hora de decidir. “Talvez seja porque não
falemos bem espanhol ou porque não nos vistamos
como eles” – estas são as razões que encontram para a
discriminação que sofrem e a sensação de se sentirem
usados. O grupo não se atreveu a apresentar o Fórum
diante de um público de fora da oficina, talvez pelo
temor de perder o apoio das ONGs estrangeiras que
oferecem ajuda para o desenvolvimento das comunidades.
Em um grupo de jovens indígenas queqchí, a opressão era a impossibilidade das mulheres da família poderem estudar. Os gritos foram eufóricos quando uma
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
tactriz logró enfrentar a “su padre” y explicarle que
negarle los estudios no la alejaría de un embarazo prematuro sino lo contrario, y que ella no quería terminar
como su mamá. El grupo de jóvenes indígenas tzutujiles
y kakchikeles presentó como opresión la imposibilidad
de vivir un noviazgo en libertad en sus conservadoras
comunidades. Lo común en estos casos es que el joven
y la joven, en general entre quince y dieciséis años, se
escapan juntos una noche y a la mañana siguiente el
pueblo los considera “unidos” –equivalente a ‘casados’-.
La niña se va a vivir a casa de sus suegros, se convierte
en esclava –literalmente- de la suegra, debe dejar sus
estudios y generalmente está embarazada inmediatamente o al muy poco tiempo. Dicen que es la opción
que encuentran a la prohibición de relacionarse, la otra
es el suicidio.
Durante las intervenciones con el Teatro Foro, vimos
mucha dificultad en los y las jóvenes de admitir sus
deseos. La primera reacción es “hay que escuchar a los
padres” cuando en la realidad, nadie lo hace. Ese es el
fenómeno: decir lo que se cree que hay que decir, y no
lo que se piensa. Luego alguna muchacha se atreve a
intervenir, a hablar con sus padres, se avanza un poco
en la situación, hasta que se encuentra una nueva problemática: quien decidirá finalmente si tendrán relaciones
sexuales o no, si se escapan, cuándo, cómo y dónde.
Será el novio. La joven carece de poder de decisión y
éso, pocas se atreven a decir. De hecho, solo las que ya
lo han sufrido lo expresan. “Pero asi es acá” nos dicen,
con un sentimiento mucho más cercano a la resignación
que a la lucha.
El grupo de personas indígenas quichés, que viven
con VIH, no mencionan el virus durante la primera
etapa de compartir opresiones. Contaban “me dejó”
“me encerraron” “me discriminaron” sin mencionar la
relación de opresión con el hecho de ser personas que
viven con VIH. Están tan acostumbradas a que “de eso
no se habla” que lo ocultan automáticamente. Luego
de procesar lo que estaba ocurriendo pudimos agregar
a casi todas las opresiones el “porque tengo VIH”. Esa
frase es la más compleja de decir en voz alta y la que
repiten una y otra vez durante el foro, en un proceso
intenso y transformador.
El grupo aún se niega a presentarse como “grupo
de personas que viven con VIH”, la discriminación que
sufren en sus comunidades es tal, que la mayoría ni se lo
cuenta a sus familias. Pero a pesar de eso, suben al esce-
Mundo Afora
espect-atriz conseguiu enfrentar « seu pai » e explicar
que não deixá-la estudar não diminuiria a possibilidade de uma gravidez precoce, muito pelo contrário,
e que ela não queria terminar como a sua mãe. Um
grupo de jovens indígenas tzutujiles e kakchikeles
apresentou como opressão a impossibilidade de viver
um namoro livremente em suas conservadoras comunidades. O comum nesses casos é que os jovens entre
15 e 16 anos escapem juntos uma noite e, na manhã
seguinte, o povo os considere “unidos” – equivalente
a casados. A menina vai viver na casa de seus sogros,
em escrava – literalmente – de sua sogra, deve deixar
os estudos e, geralmente, já está grávida. Dizem que é a
opção que encontram á proibição de relacionarem-se,
a outra é o suicídio.
Nas intervenções no Teatro-Fórum, observamos
muita dificuldade dos jovens em admitir seus desejos. A primeira reação é “tem que ouvir os pais”, na
realidade não fazem nada. Esse é o fenômeno: dizer
o que se acredita que deva ser dito, e não o que se
pensa. Então uma moça se atreve a intervir, a falar com
os pais, e a situação avança, até que se depara com
uma nova problemática: quem decidirá finalmente se
devem ter relações sexuais ou não, se fogem, quando,
como e para onde. Será o namorado. A jovem não tem
poder de decisão, e poucas se atrevem a dizer. De fato,
somente as que já sofreram isso o expressam. “É assim
aqui”, nos dizem, com um sentimento muito mais
próximo da resignação do que da luta.
O grupo de indígenas quichés, que vivem com HIV,
não mencionam o vírus durante a primeira etapa em
que compartilham as opressões. Diziam: “Me deixou”,
“me trancaram”, “me discriminaram”, sem relacionar
a opressão com o fato de serem pessoas que vivem com
o HIV. Tão acostumadas com o fato de que “disso não
se fala” que ocultam automaticamente. Assim que foi
possível processar o que estava acontecendo, acrescentou-se à causa de quase todas as opressões o “porque
tenho HIV”. Essa frase é a mais complexa de dizer em
voz alta e a que repetem uma vezes ou outra durante o
Fórum, em um processo intenso e transformador.
O grupo ainda se nega a se apresentar como o
“grupo de pessoas que vivem com HIV”. A discriminação que sofrem em suas comunidades é de tal ordem
que a maioria não conta para suas famílias. Porém,
apesar de tudo, continuam subindo no palco e, dentro
de seus personagens, até gritam: “Tenho HIV!”. Esse
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Mundo Afora
nario una vez tras otra y dentro de sus personajes hasta
gritan “tengo VIH”. Este foro rompe la hipocresía.
Terminada la obra, todos y todas en la audiencia
están en contra de la discriminación, pero a la hora de
subir a intervenir para luchar contra ella, la refuerzan.
O sea, las propuestas se centran en descubrir cómo se
infectó la protagonista. Esto saca a luz la discriminación que se basa en un juicio moral sobre las diferentes
formas de infección, en su mayoría relacionadas con la
sexualidad. Como si el derecho a una vida digna o no
dependiera de la vía por la que se infectó y no del simple
hecho de ser un ser humano.
Ver la realidad así, tan cruda en escena, provoca
acciones de coraje y entusiasmo en los y las participantes
del grupo que distan de los impulsos que se permiten
en su vida diaria En el Congreso de “Indígenas y VIH”
en el que participamos, la mayoría de personas que
supuestamente apoyan las luchas de esta población,
dieron la espalda al teatro foro y quienes lo presenciaron, no pudieron proponer ninguna alternativa a
la situación. Esto generó en el grupo sentimientos de
rabia e indignación que paradójicamente impulsaron la
construcción de la dignidad del grupo frente a quienes
l@s discriminan e ignoran.
Y ver la realidad así, tan cruda en escena, hace que
actrices y actores reaccionen honestamente desde lo
más profundo, como no podrían hacerlo, ni soñarlo, en
la realidad. Y poco a poco en este grupo el “ni poder
soñar con reaccionar así en la realidad” se convierte en
hechos concretos de la vida cotidiana. Se convierte en
la oprimida enfrentando a una jueza (con todo lo que
eso implica a nivel de status social: indígena-ladina,
analfabeta-profesional, mujer del campo- mujer de la
ciudad), y diciéndole, como muchas veces durante el
foro: “qué importa cómo me infecté? Lo importante
es que me están discriminando y eso es contra la ley”.
Esta mujer diciendo estas palabras es mucho más de
lo que podíamos imaginar que podrias hacer, cuando
empezamos hace ocho meses este proceso.
El denominador común que encontramos en todos
los grupos fue el de la poca conciencia de la posibilidad
real de transformar las situaciones de opresión.
A nivel estético fue muy claro. Al hacer el ejercicio
“el canto de la sirena” – donde con ojos cerrados cada
persona debe emitir un sonido que expresa la opresión
que siente- todos, sin excepción- fueron sonidos de resignación, de silencio, de dolor que se calla. Al hacerlo con
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M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Fórum rompe a hipocrisia: no final da peça, todos e
todas no público estão contra a discriminação, mas na
hora de subir e intervir para lutar contra ela, as alternativas apresentadas acabam por reforçá-la. Ou seja,
as propostas se concentram em descobrir como a protagonista foi infectada. Isto revela que a discriminação
se baseia em um juízo moral sobre as diferentes formas
de infecção, que em sua maioria estão relacionadas a
questões de sexualidade. Como se o direito a uma vida
digna ou não dependesse da forma como a pessoa foi
infectada e não do simples fato de se tratar de um ser
humano.
Ver a realidade assim tão crua em cena provoca
ações de coragem e entusiasmo nos participantes do
grupo, que diferem dos impulsos que se permitem
em sua vida diária. Pouco a pouco, essas reações que
não se sentiam capazes de ter convertem-se em fatos
concretos na vida cotidiana. Por exemplo, no caso de
uma das atrizes do grupo, que enfrentou uma juíza
(com tudo o que isso significa em termos de nível e
status social: indígena-ladina, analfabeta-profissional,
mulher do campo-mulher da cidade) e lhe disse, como
muitas vezes durante o Fórum: “Que importância tem
saber como eu me infectei? O importante é que estou
sendo discriminada, e isso é contra a lei”. Essa mulher
dizendo essas palavras representa muito mais do que
poderíamos imaginar há 8 meses, quando começamos
este processo.
Com os diversos grupos indígenas, as opressões
que surgiram foram diferentes, porém o denominador comum que encontramos em todos foi o da pouca
consciência da possibilidade real de transformar essas
situações. Em termos estéticos, foi bem claro. Ao fazer
o exercício “o canto da sereia”, no qual, com os olhos
fechados, cada pessoa deve emitir um som que expresse
a opressão que sente, todos, sem exceção, foram sons
de resignação, de silêncio, da dor de quem se cala. Ao
fazê-lo com outras populações, havia mais variedade,
mais luta, mais raiva, mais volume. Aqui, não. Todos
acreditavam que a única reação possível seria a resignação ou a dor. É por isso que fazemos este trabalho.
Para conseguir, pouco a pouco, transformar essa resignação dolorosa em uma luta digna que fortaleça os
oprimidos e desarme opressões.
E como vemos que essa realidade que experimentamos na Guatemala se repete em vários países da América Central, decidimos fazer o possível (e o impossível,
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
otras poblaciones había más variedad, más lucha, más
enojo, más volumen. Aquí no. Lo común a tod@s es el
creer que la única reacción posible es la resignación o el
dolor. Allí el sentido y razón del trabajo que hacemos,
para lograr, poco a poco, transformar esa resignación
dolorosa en una lucha digna que fortalezca a oprimid@s
y desarme opresiones.
Al ver que esta realidad que experimentamos en
Guatemala se repite en varios países de Centroamérica,
decidimos hacer lo posible (y lo imposible también) para
multiplicar la herramienta en la región. Para que sean
más y más las poblaciones oprimidas que tengan acceso
a este espacio de expresión y transformación. Ese es el
sueño: comenzar en noviembre un proceso de un año,
y que al final haya por lo menos 10 nuevos grupos de
Teatro del Oprimido, transformando Centroamérica.
Recién empezamos y hay mucho por hacer, pero eso
más que asustarnos, nos estimula. ◘
1 Multiplicación y Exploración del Teatro del Oprimido en CentroAmérica
www.me-to-ca.blogspot.com
Mundo Afora
também) para multiplicar o TO na região. Para que
as populações oprimidas tenham cada vez mais acesso
a este espaço de expressão e transformação. Esse é
o sonho: começar, em novembro de 2010, um processo de 1 ano, que ao final, resulte em pelo menos 10
novos grupos de Teatro do Oprimido transformando
a América Central. Acabamos de começar, e há muito
que fazer, porém isso, em vez de nos assustar, nos estimula.◘
1 Multiplicación y Exploración del Teatro del Oprimido en CentroAmérica.
www.me-to-ca.blogspot.com
M E TA X I S
47
Ações Concretas
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
O
T
FO
Um grupo chamado
LIBERARTE!
Monique Rodrigues , Curinga do CTO e acadêmica em Sociologia.
Desde 2006 atuo no projeto Teatro do Oprimido na Saúde
Mental, que me possibilitou entender o louco como sujeito,
com especificidades e potencialidades. Descobertas e reflexões
trazidas pela prática: Rio de Janeiro, São Paulo e Sergipe. No
Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, tive uma experiência
recheada de desafios e vitórias. Compartilho um pouco desses
três anos de trabalho.
As maneiras de atuação do Estado em sua função coercitiva - formas oficiais de punição - estão diretamente ligadas
à moral e às teorias presentes em determinada época. Os
métodos punitivos acompanham seu tempo histórico e suas
transformações. Assim também ocorreu com a forma de tratar
o louco e, mais especialmente, o louco infrator.
Inicialmente, os indivíduos presentes nessa categoria eram
internados em instituições psiquiátricas, o que, na avaliação de
alguns, criava um ambiente hostil no local. Esse fato, atrelado
às necessidades sociais e às novas concepções ideológicas da
época, fundamentou a criação do Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, primeiro Manicômio Judiciário criado no Brasil, em 1921, representante da
48
M E TA X I S
conjugação entre direito e psiquiatria. O sujeito louco infrator
torna-se duplo objeto de saber, conjugado em um duplo estigma. A instituição, híbrida em sua essência, assume seu caráter
prisional; nela, a “cultura do cadeião” é vista em toda parte:
desde a estrutura física com seus altos muros e “enfermarias
celas” (gradeadas), até a rotina com seus rígidos horários,
controles de efetivo e entrada de material. Nesse contexto de
dupla exclusão, não se tarda a pensar que o sujeito enquanto
detentor de diretos e provedor de discursos é extinto, abrindo
espaço para que este se coloque como objeto seja do saber
psiquiátrico ou do saber jurídico. Muitas eram as reuniões,
seminários e congressos que discutiam a relação da custódia
com o tratamento psiquiátrico, escassas as representatividades
desse grupo.
Como trabalhar nesse contexto? O Teatro do Oprimido
pode ser uma ferramenta de transformação dessa realidade?
Eu e Alessandro¹ tínhamos certeza que sim. Iniciamos a
oficina, submergidos pelos olhares desconfiados de guardas e
equipe técnica. Grupo formado: nasce o Liberarte. Momento
de contar histórias: uma chuva de opressões: escassez de ser-
Ações Concretas
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
viços, problemas na visita, cantina, refeitório, atendimento,
família, processo, dentre muitas questões. O espaço de diálogo
foi sendo instalado. Em uma instituição onde as hierarquias
apresentam-se de forma exacerbada, na qual a cultura do
“Sim, senhor! Não, senhor!” é fundamental para se estabelecer
categorias, a criação de um espaço em que esse indivíduo tenha
oportunidade de trocar e discutir ideias era quase inimaginável.
Logo vieram as retaliações. Muitos diziam que as histórias
não passavam de surtos delirantes. Como acreditávamos em
indivíduos despossuídos de credibilidade? Quem eram eles e
elas para criticar o estabelecido como norma?
Investigamos os temas discutidos. Verificamos a veracidade
das histórias contadas: verdade nua e crua. Sabíamos que o
Teatro do Oprimido não daria conta de toda a problemática
vivida naquele contexto. Era preciso estabelecer um foco na
opressão mais latente e urgente. Percebemos que a lentidão dos
processos judiciais, fruto da alta burocratização do aparato
judiciário, estava na base de quase todas as opressões relatadas,
podendo estender o tempo de internação por 30, 40 ou até 50
anos. Nessa estrutura, é comum que os sujeitos dessa engrenagem se familiarizem com o que é posto como regra. Cada
um em seu papel trabalha para que a indústria da custódia
continue a funcionar. Sair desse lugar não é fácil. Desânimo e
conformismo são cotidianos.
Surgiu a peça “Anseios de Liberdade”, com personagens
representantes dos diversos atores sociais dessa engrenagem:
defensores, técnicos, guardas, promotores e internos. As primeiras apresentações foram recheadas de polêmica. Técnicos
e guardas se identificavam com as personagens ali colocadas.
O Teatro do Oprimido provocou certo estranhamento com
relação às opressões que pareciam naturalizadas, com as quais
todos estavam de certo modo familiarizados. Cada fórum
foi essencial para a discussão e investigação de caminhos
possíveis.
Uma das apresentações emblemáticas foi feita para juízes,
promotores e defensores. Muitos dos convidados não sabiam
da proposta de diálogo entre palco e plateia. Esperavam um
espetáculo tradicional, algo descolado da realidade. Durante a
apresentação, o choque foi intenso. Internos, através do Teatro
do Oprimido, discutiam e questionavam a função social dos
que ali estavam como espectadores. Vozes há tempos amordaçadas davam seu grito de liberdade. Momento do fórum: silêncio ensurdecedor. Silêncio de significados. Revolta, surpresa,
diálogo. Considero esse um momento divisor de águas.
Surgem convites para apresentações externas. Na primeira
saída, surge o desafio do aparato de segurança para deslocamento dos presos-pacientes. Atores e atrizes transportados
em camburões e algemados. Entretanto, a instituição, por
seu caráter híbrido, permite que seus internos transitem entre
dois mundos: o do direito, que os entende como presos, e
o da saúde mental, que os classifica como pacientes. Como
presos, puderam reivindicar seu lugar de pacientes e, como
tais, ser transportados em ambulâncias. Um novo olhar sobre
os internos aparecia. Nas apresentações seguintes, atrizes e
atores se dividiram em ambulâncias e Kombis. O camburão?
Conduziu apenas o cenário.
Evoluímos até o ponto em que as ambulâncias foram
dispensadas, e homens e mulheres do elenco passaram a
seguir juntos para as apresentações externas no mesmo
tipo de transporte destinado aos funcionários do sistema.
A alteração do meio de transporte representa um pouco das
transformações individuais e estruturais provocadas por esse
trabalho. Nessa ação concreta, presos-pacientes assumiram
o lugar de sujeitos.
Hoje, a maioria do elenco está desinternada, respirando
outros ares. O caminho trilhado por eles e elas, de presospacientes a cidadãos, foi fundamental para que retomassem
sua caminhada em uma vida pós-Manicômio.
O Heitor Carrilho não é mais um local de entrada de novos
internos. O Rio de Janeiro, que antes possuía três Manicômios
Judiciários, hoje tem apenas um. Mesmo havendo ainda muitos
desinternados sem vínculo social, pela escassez de instituições,
como as residências terapêuticas, o avanço é inegável.
O Teatro do Oprimido, conjugado ao trabalho de outros
setores que atuam para a transformação dessa realidade,
contribuiu concretamente para que a Reforma Psiquiátrica –
bem-sucedida na desativação de hospitais psiquiátricos e na
criação de CAPs, mas que permanecia tímida com relação
aos Hospitais de Custódia - pudesse adentrar esse espaço
para iniciar mais uma etapa na luta por uma sociedade sem
Manicômios. ◘
Referências:
BOAL, A. A Estética do Oprimido. RJ: Garamond, 2008.
________. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. RJ:
Civilização Brasileira, 2005.
________. Jogos para Atores e não-atores. RJ: Civilização Brasileira, 2006.
CERQUEIRA CORREIA, L. Avanços e impasses na garantia dos
direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de
delito. Dissertação Mestrado. Universidade Federal da Paraíba.
Centro de Ciências Jurídicas. 2007.
DAHMER PEREIRA, T.; DANTAS, R. Compreender a relação
de custódia: notas reflexivas para o exercício profissional – o caso
do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico in “Ética e
Direito”. Coletânea Nova de Serviço Social II. Rio de Janeiro.
Editora Lumen Juris.
Notas:
1 Alessandro Conceição é Curinga do CTO e integrante da equipe
TO na Saúde Mental.
M E TA X I S
49
Ações Concretas
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
De objeto a sujeito: uma
trajetória de humanização
Claudia Simone, Curinga do CTO e do projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental.
Pirei na Cenna é um grupo de Teatro do Oprimido, com dez anos de história, formado por profissionais e usuários da saúde mental e seus familiares. Em seu percurso,
reúne diversos exemplos de superação e de transformação, tanto individuais quanto
coletivas. E incontáveis intervenções sociais que forjaram a humanização de realidades
injustas e opressivas. Aqui, um exemplo terno.
Enéas,² um dos participantes mais antigos do grupo, em resposta à solicitação de
busca de locais para apresentação, fez a seguinte proposta:
– Gostaria de apresentar nosso espetáculo na escola onde eu estudei, que fica no
meu bairro.
Aceitamos a sugestão de imediato. Ainda assim, quisemos saber o motivo da escolha. Por que o desejo de voltar à escola primária? Então, Enéas nos contou um pouco
mais de sua história pessoal:
–No meu bairro, todo mundo me joga pedra e me chama de maluco. Quase ninguém me chama pelo nome. Muitos se dirigem a mim pelo nome do personagem
do nosso espetáculo: Dalua. A diretora dessa escola ainda é a mesma que me dizia
que eu nunca seria alguém, que não conseguiria ser nada, que não poderia fazer
muita coisa na vida, por ser usuário de saúde mental. Eu desejo voltar lá e mostrar
para eles que me transformei em ator, que, apesar de maluco, consegui fazer muita
coisa na vida, até uma peça que fala sobre loucura e AIDS. Imagino que isso tenha
valor para eles. Imagino que, sabendo disso, eles vão me respeitar.
50
M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Enéas ficou responsável pela produção do evento.
Fez os contatos oficiais a partir de uma carta de
apresentação e de um folheto do grupo. A escola
agendou uma data para a apresentação. Com tudo
certo, providenciamos convite para a comunidade.
Chegamos na escola no dia marcado. Enéas,
produtor do evento, estava ansioso e muito nervoso,
suava frio. Os outros integrantes do grupo, conscientes da história do companheiro com a escola e da importância dessa apresentação para ele, demonstravam
toda a solidariedade.
O pátio da escola estava lotado. Jovens, crianças,
adultos, velhos, amigos e vizinhos do Enéas. Conhecidos e também desconhecidos para ele e para o
grupo. Antes de iniciarmos a apresentação, ouvimos
sussurros tímidos e provocadores:
– Dalua! Maluco! Dalua! O que você tá fazendo
aí? Sai daí, maluco!
Até que... tudo virou silêncio. A peça É Melhor
Prevenir que Remédio Dar começava. Na encenação,
o grupo aborda a loucura, a prevenção de DST/AIDS
e o preconceito aos usuários de saúde mental, com
uma teatralidade encantadora. Paralisada e surpresa,
a plateia acompanha, cada vez mais concentrada, a
encenação. Pareciam não acreditar no que viam.
Quando Éneas entrou em cena, fazendo o pai de
uma das personagens, o silêncio foi solene. Nesse
momento, seria possível ouvir até uma agulha cair no
chão. Silêncio sucedido de choro. A diretora, no meio
da plateia, parecia não conseguir acreditar que aquele
louco, alvo de pedras e ofensas, era um louco artista...
ou um artista louco? Terminada a peça, só se ouvia
“Enéas, Enéas, Enéas!” E Enéas dizia baixinho:
– Eles lembraram do meu nome!
A diretora, em prantos, subiu ao palco e publicamente pediu desculpas a Enéas. Ela assumiu que
havia dito a ele que não seria nada, que não faria
nada diferente por tomar remédio de maluco. Naquele
momento, ela pôde verificar que ele, apesar de todas
as limitações que tinha, poderia, sim, fazer muita
coisa, tanto que fez. Fazia teatro, um teatro diferente,
questionador e propositivo. Um teatro que atuava a
dúvida como elemento transformador. O Teatro do
Oprimido. Um teatro em que Enéas podia ser ele
mesmo, e se vendo atuar, descobria-se melhor do que
Ações Concretas
supunha, se dava conta de suas potencialidades.
Passada uma semana da apresentação na escola,
Enéas chega empolgado e diz:
– Ninguém me chama mais de maluco ou de
Dalua na minha rua. Agora me chamam de
Enéas e até de Artista. Dizem que fui muito
bem e que querem ver a peça de novo e mostrar
para quem não viu. Eles querem até vir assistir
aqui no hospital. Voltei a ser Enéas, agora eu
sou gente de novo, e ninguém me joga pedra.
Com o Teatro do Oprimido, eu pude mostrar
que sou diferente, mas igual. Que não sou uma
coisa que se pode jogar fora, que sou uma pessoa,
um cidadão.
Uma das primeiras perdas impostas a grupos socialmente marginalizados é a da identidade. Pessoas
passam a ser números, casos, índices, objetos de
estudo. Perdem o direito à identidade singular: nome,
particularidades, individualidade. Enéas tinha sido
alijado do direito humano fundamental ao nome, passando de substantivo próprio a substantivo comum.
De sujeito a objeto. De protagonista a coadjuvante
de sua própria história. Como negro, pobre e usuário
da saúde mental, teoricamente, não poderia esperar
por muito mais.
Entretanto, na realidade da vida prática, apesar de
todas as dificuldades, teve condições de questionar
a sua “sina” e não aceitou o “destino” que lhe foi
oferecido. Apropriou-se do leme da vida e mudou
o rumo dos acontecimentos “previstos”. Quando
propôs voltar à sua escola primária, onde aprendeu
a ser discriminado e desrespeitado, demonstrou toda
a sua generosidade e consciência. Não voltou por
vingança, mas, sim, por necessidade de transformar
sua realidade.
Além de ter contribuído para a humanização daquela escola – diretora, alunos, professores e comunidade –, fez sua própria trajetória de humanização.
Não aceitou o lugar de objeto das frustrações alheias
e ocupou o espaço de cidadão, que atua para fazer
valer seus desejos e necessidades e conquistar seus
direitos. ◘
Nota:
1 Enéas, ator do grupo Pirei na Cenna, morreu em 2010.
A ele, nossa homenagem!
M E TA X I S
51
Ações Concretas
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Direito à boca,
aos dentes,
à voz!
“O teatro deve ser um ensaio para a ação na vida
real, e não um fim em si mesmo.”
(Augusto Boal)
“Não basta interpretar a realidade, é necessário
transformá-la.”
(Karl Marx)
Kelly di Bertoli, Curinga do CTO e do Projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental.
Sou Curinga do projeto Teatro do Oprimido na Saúde, no Litoral Paulista. São muitas
as estórias e as transformações individuais e coletivas que observamos, acompanhando
13 grupos em unidades de saúde mental, com usuários, profissionais, familiares e comunidade. Nosso objetivo: introduzir o Teatro do Oprimido como política pública. Nossos
Multiplicadores: psicólogos, terapeutas, assistentes sociais, enfermeiras, fonoaudiólogos.
Lutamos por uma sociedade sem manicômios. Nossa arma: o Teatro do Oprimido!
Nosso teatro não faz milagres. Entretanto, provoca questionamentos e profundas
mudanças pessoais e coletivas. Ação social concreta continuada está no topo da árvore
do Teatro do Oprimido. Nas raízes dessa árvore: ética, estética e solidariedade. Almejamos fazer teatro como política. O "se ver agindo" que o teatro nos proporciona pode
revolucionar ações e posturas perante a sociedade. Atuar de forma consciente no palco
da vida.
Objetivamos que o teatro possa ser utilizado como linguagem e como voz para a
comunicação daqueles que são privados do seu direito de falar. No caso da Saúde Mental, a falta de autonomia dos usuários para buscar seus direitos, que não são garantidos
satisfatoriamente, limita suas vozes.
O SELAB (Serviço de Lar Abrigo/ Residência Terapêutica para portadores de doenças
mentais), em Santos, é uma casa de saúde, de portões fechados, onde moram usuários
da saúde mental classificados como casos severos, que não têm contato com familiares.
Muitos são remanescentes do antigo Hospital Psiquiátrico Anchieta.¹ No SELAB, como
em outros equipamentos de saúde onde atuamos, profissionais que trabalham em equipe
52
M E TA X I S
Ações Concretas
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
buscam humanizar o tratamento psiquiátrico, sem
camisa de força, choque elétrico ou tortura.
Num dia de oficina de Teatro do Oprimido no
SELAB, os usuários estavam espalhados pelos cantos
e cômodos da casa. Aproximadamente 20 se reuniram
em círculo para o primeiro exercício, um passando o
comando do jogo para o outro. Como qualquer grupo
de iniciantes, muitas vezes, trocavam a ordem das coisas, mas, aos poucos, avançavam na concentração.
Após o exercício, tentamos criar uma cena de
Teatro-Fórum. Havia certa dificuldade em compreender o que seria “uma cena”. Em vez de insistirmos na
construção da cena, propusemos uma improvisação:
pacientes e médicos.
Cada dupla entende o comando do seu jeito. Perguntado sobre quem faz o médico e quem faz o paciente,
Marco Antônio responde: – Sou o acomodado.
E Zé Luís completa: – E eu sou o preguiçoso.
Seria devaneio ou forma particular de entender uma
relação tão conhecida?
Numa outra dupla surge a improvisação entre
dentista e paciente:
Paciente: – Doutor, eu preciso arrumar meus dentes.
Com dentes estragados assim ninguém vai querer me
beijar!
Dentista: – Não! Não dá, é muito caro.
Paciente: – Mas eu preciso arrumar os dentes! (Ao
dizer isso, mostra os dentes apodrecidos ao dentista.)
O ator que improvisa o dentista, inesperadamente,
vira-se para mim e mostra seus próprios dentes, ou
melhor, tocos de dentes podres, e diz:
Dentista (que se transforma temporariamente em
paciente para se dirigir a mim): – Eu também estou
com os dentes podres, olha aqui os meus dentes! Eu
também quero ir ao dentista!
Quando percebi, estava criado um grande círculo
em volta de nós, como se estivéssemos atuando em
arena. Logo, aparece outra usuária fazendo uma
médica e leva os dois pacientes para seu consultório
imaginário.
Médica: – Eu posso tratar seus dentes, só que é
muito caro.
Paciente: – Então, não dá.
Outro paciente: – Mas isso aqui não é um lugar
público?
Dentista: – Não, aqui é meu consultório particular.
De graça, não tem jeito!
Como eu nunca havia reparado naqueles dentes?
Entendi muito sobre as dificuldades de expressão: rebaixamento cognitivo, longos anos de tratamento, uso
de medicamentos controlados, quadros psiquiátricos
associados a quadros neurológicos, perdas advindas
dos períodos de crise, falta de dentes. Uma dentição
saudável poderia melhorar as possibilidades de articulação verbal, favorecer a comunicação e, consequentemente, criar maior possibilidade de autonomia. Os
direitos à cidadania, à saúde e os direitos humanos são
essenciais a todos e todas.
Perguntei se queriam ir ao dentista, e quase todos
levantaram as mãos e mostraram os dentes apodrecidos, as bocas vazias, os sorrisos vazios. Era necessário
promover uma ação social concreta continuada, para
além das improvisações teatrais: dentista para os usuários internos da residência terapêutica. Pelo direito de
comer, de falar, de ter saúde!
Os usuários ganham benefício mensal e também
moram em uma casa de responsabilidade pública.
Nossas improvisações extrapolam a oficina e repercutem na sala da coordenadora, que, junto com seus
funcionários, providencia a ida dos pacientes internos
do SELAB ao dentista. O psicólogo e Multiplicador
de Teatro do Oprimido nos informa que diversos
pacientes iniciaram tratamento dentário após as reivindicações ocorridas.
Improvisamos a realidade para ensaiar como
transformá-la, através de ações sociais concretas e
continuadas. O teatro começa na sala de ensaio e segue
intervindo na vida real. ◘
Nota:
1 Primeiro Hospital Psiquiátrico em Santos fechado pela
Reforma Psiquiátrica.
M E TA X I S
53
Ponto de Vista
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Por uma História
Que Saia do Papel
Gladyson Stelio Brito Pereira, mestre em história/UFF, multiplicador de TO e militante do MST.
A história como disciplina acadêmica e curso
universitário se consolidou, durante o século XIX,
sob a influência da chamada História “positivista”
ou metódico-documental, que pesquisava e analisava
documentos escritos e oficiais. A História estaria no
passado, resultando numa História contada do ponto de
vista do poder. O meio de divulgação era um documento escrito: monografias, dissertações, teses... Algumas
transformadas em livros.
A partir de 1929, os historiadores franceses March
Bloch e Lucien Febvre, “Escola dos Annales”, propõem
o uso de todo e qualquer resquício humano. “A diversidade dos testemunhos [históricos] é quase infinita. Tudo
o que o ser humano diz, escreve ou toca pode informar
a seu respeito”¹ . História de todos os homens no tempo.
Afirmavam que havia uma diferença entre o “passado”
e o “conhecimento do passado”. O “passado” não
muda, mas o que pensamos sobre ele muda; cada nova
geração tem um novo jeito de pensar, novas dúvidas,
novas perguntas. Os vestígios humanos precisam ser
interrogados a cada nova geração, ou, como Lucien Febvre afirmou: “A História é filha do seu tempo”. Apesar
das críticas, o meio de divulgação do resgate histórico
54
M E TA X I S
continuou sendo documentos escritos: monografias,
dissertações, teses...
Na década de 1970, outro grupo de historiadores
franceses, a “Nova História”, passou a usar como
documentos históricos: fotografia, pintura, cinema,
música, livros de contos de fadas, televisão etc. Dentre
esses, Marc Ferro propôs os filmes como documentos
históricos e como forma de divulgar a pesquisa histórica. Porém, o resultado desse esforço inovador, com
exceção dos filmes de Marc Ferro, foram documentos
escritos: monografias, dissertações, teses...
Na Itália, historiadores como Carlo Ginsburg investigaram a história de “sujeitos coletivos”, chamando a
atenção para o poder que têm as “micro-histórias” (a
história da vida de uma pessoa, uma vila etc.) de clarear
as relações sociais mais amplas. Anda assim prevaleceram monografias, dissertações, teses...
Se o resultado de uma pesquisa historiográfica pode
se materializar em filmes como os de Marc Ferro, por
que não poderia também produzir peças teatrais?
A partir de experiências de 2008,² iniciei um trabalho de socialização dos jogos e exercícios teatrais e de
produção de fóruns relâmpagos (cenas feitas para uso
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
imediato nos encontros e cursos) no MST de Alagoas.
Ao resgatar a história de vida de um trabalhador (sua
micro-história), passo necessário para a produção de
uma peça de TO, percebi que findava por reconstruir,
por amostragem, a história de vida dos trabalhadores
de determinada região. Mais que isso, recuperava essa
História com uma riqueza ímpar de detalhes, pois
resgatava os sentimentos e os processos de assimilação
física da opressão.
Os trabalhadores revivem as histórias de empregados
das fazendas e as comparam com a condição de não
terem mais patrão, percebem em que essa mudança
alterou ou não a forma de pensar e de sentir o mundo.
O historiador-Curinga conduz o processo incorporando
informações e provocando o debate com questionamentos. Assim encarnado, o Teatro do Oprimido deixa de
ser um instrumento auxiliar de processos didáticos e se
torna fonte de enriquecimento estético, e a história, um
fazer vivo que se abre ao coletivo.
Num diálogo virtual com Augusto Boal (que produzia a “A Estética do Oprimido”), escrevi: “Um companheiro relatou que, nas oficinas com os acampados, eles
riram e se divertiram muito. Disse: ‘Gladyson, a coisa
mais importante que trouxe foi a alegria, nosso povo
precisa disso!’. Só esse exercício de desbloquear o corpo,
desafiar os sentidos e provocar a interação já foi libertador, pois a maioria do nosso povo, desde criança, está
acostumado mais ao sofrimento e à dor que à alegria
e ao prazer. Eles têm clareza de quem é o opressor e o
oprimido, a luta pela terra não deixa dúvidas. Às vezes,
o desafio é superar os costumes de uma vida oprimida
(viver o sofrimento como natural, tratar com rudeza
a si e os outros, não se permitir brincar etc.). Aquela
questão da opressão interiorizada.”
Boal retrucou: “Caro Gladyson, você tem toda
razão quando diz que ‘o maior desafio é o de como
superar os costumes de uma vida oprimida (viver o
sofrimento como algo natural)’. Um grande abraço,
Augusto Boal.”
Realizei também experiências de resgate histórico
com outros grupos sociais em dois projetos de extensão,³
um em União dos Palmares/AL, com estudantes da
Universidade Estadual de Alagoas, na busca de compreender a devastação ambiental e humana na Mata
Atlântica, e outro por meio da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia, com professoras rurais de
Amargosa/BA, resgatando histórias de opressão na
Ponto de Vista
educação rural.
Essas experiências foram me conduzindo a refletir
cada vez mais sobre a relação entre Teatro do Oprimido
e História. Enclausurados nas universidades, o impacto
dos historiadores na vida social é livresco e mínimo. O
TO pode abrir novas possibilidades para o fazer historiográfico. O resgate histórico é um momento inerente
à preparação das peças de Teatro do Oprimido. O que
hoje em historiografia chamamos de “micro-histórias”
é um passo necessário à constituição das peças e dos
fóruns. Situações que revelam, em pequena escala,
problemas vivenciados por uma sociedade inteira em
certa época.
A constatação da naturalização do embrutecimento
dos sentidos me fez adicionar ao exercício do Teatro do
Oprimido a ação desnaturalizadora do resgate histórico
na luta pela libertação dos sentidos, seja reconstituindo
com os trabalhadores a robotização de seus movimentos
corporais (no interesse de quem?), seja recuperando com
os estudantes universitários a trajetória da expansão
da cana, que devasta vidas humanas e florestas, seja
rememorando “pequenas” tragédias na vida de quem
se dedica a educar no campo.
Como resultado desse esforço de resgate histórico,
têm-se peças teatrais participativas, atraentes e populares, que estimulam pensamento simbólico e sensível,
acessíveis a todas e todos. A História pulsa na tensão de
um teatro que resgata o passado, coloca os problemas
no presente e se abre para o futuro no devir. Como foi,
como está e como poderá vir a ser a nossa História. ◘
Referências:
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Notas:
1 Bloch, Marc. 2002, p.79
2 Em 2008, já morando em Alagoas, duas experiências fora
do MST aprofundaram minha convicção no potencial da relação Teatro do Oprimido/Movimento de Massas/História: o II
Encontro Internacional de Teatro e Educação, em Barcelona,
onde fui a convite de Julian Boal, e, em particular, a breve,
porém intensa convivência em Paris com Julian Boal e Jeanne
Dosse, que me apresentaram ao “Jana Sanscrit”, que tem no TO
seu instrumento central de ação. Ainda em 2008, participei, com
mais 4 militantes do MST de Alagoas, do projeto “Fábrica de
Teatro Popular Nordeste”, promovido pelo Centro de Teatro do
Oprimido – CTO e que tinha como proposição a formação de
Multiplicadores de Teatro do Oprimido. Foi fundamental para
meu aprofundamento nas técnicas e na filosofia do TO.
3 Projetos de extensão coordenados pela professora Silvana
Lúcia da Silva Lima.
M E TA X I S
55
Ponto de Vista
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
TO para
dialogar sobre
Diversidade
Sexual
Leandro Loppes¹, professor, educador e multiplicador
do Teatro do Oprimido - CTO.
A utopia está no horizonte:
Quando caminho dois passos, ela se afasta dois passos;
Eu caminho dez passos, e ela está dez passos mais longe...
Para que serve a utopia?
Serve para isso, para caminhar! ( Eduardo Galeano )
O Teatro do Oprimido (TO) é feito pelos, para e
sobre os oprimidos. E quem são eles? Há controvérsias!
Oprimido é aquele que sofre opressão; humilhado,
vexado. Opressão é o ato ou efeito de oprimir. É o
exercício exagerado de poder ou de violência sobre
indivíduos ou grupos; tirania, segundo o Aurélio
Buarque de Holanda.
Para Paulo Freire, oprimidos são os excluídos dos
bens culturais, os sem teto, sem escola, sem comida,
sem educação, sem arte. No TO é quem sofre opressão
e luta para superá-la.
Ainda entendendo os conceitos: Identidade. Tem a
ver com o como eu me coloco diante da sociedade, com
quais grupos, representações e imagens me identifico
e me reconheço.
Na pós-modernidade, as identidades deixam de
ser unificadas em redor de um eu coerente, havendo
dentro do sujeito identidades contraditórias empurrando em diferentes direções (...) somos confrontados
por uma multiplicidade desconcertante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos
56
M E TA X I S
nos identificar, ao menos temporariamente² . Essa
concepção nos leva a entender que a identidade na
contemporaneidade é fragmentada e flutuante...
O TO parte do princípio de que determinados grupos sociais são oprimidos, acreditando que o método
auxilia no processo de desvendamento e de rompimento dessas opressões. Esses grupos são constituídos
por pessoas que só podem lutar pela transformação
da realidade opressora caso se reconheçam nessas
identidades.
Duas experiências me trouxeram a necessidade dessas reflexões. Primeiro, a indignação de um doutor em
teatro frente ao meu pré-projeto de mestrado sobre o
TO. O referido doutor retrucou ofendido, aos trechos
do meu trabalho que apontava mulheres, negros e
homossexuais, entre outros, como oprimidos. Eu não
sou oprimido, não sou gay, nem negro, sou muito bem
remunerado, e muito bem sucedido, sou ser humano e
não quero me encaixar nesses estereótipos... declarou
irritado após a leitura do meu texto.
Outra situação: Uma aluna de um curso que eu
ministrava para o supletivo tivera que preencher uma
ficha de cadastro e devia declarar a cor de sua pele. A
aluna se declarou branca.
Tanto o doutor como a aluna eram negros.
Como posto anteriormente, o sentimento de
pertencimento é imprescindível para o processo de
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
construção das identidades, porém o fato de não
nos sentirmos pertencentes a determinado grupo,
necessariamente, não nos exclui dele. Nem o fato de
estarmos em constante processo de construção como
sujeitos sociais.
Nosso comportamento, maneira de falar e vestir,
a cor do nosso cabelo, e da nossa pele, entre outros
sinais, são “lidos” pelo olhar do outro que mesmo
contra a nossa vontade, nos identifica com um determinado grupo, que pode ser dominante ou marginalizado, que pode ser estigmatizado, mesmo que bem
remunerado. O outro é outro gênero, é outra cor, é
outra sexualidade, é outra etnia, é outra nacionalidade, o outro é outro corpo³ .
O projeto Diversidade Sexual na Escola, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, busca a promoção
da cultura de diversidade sexual no espaço escolar
utilizando o TO para provocar o diálogo sobre essa
questão entre alunos das escolas públicas da cidade
do Rio de Janeiro. Para iniciar esse projeto, buscamos
criar um grupo composto por pessoas que tivessem
orientação homossexual, saídas da escola há pouco
tempo.
Eis o problema identitário novamente!
Montamos o espetáculo Coisas de Menina com
jovens heterossexuais e homossexuais que queriam
discutir suas sexualidades a partir do Teatro.
A peça conta a história de Zezé, uma menina que
gosta de jogar futebol e é repreendida pela diretora da
escola, que chama a mãe da aluna para uma reunião
com a finalidade de apontar seus desvios e ressaltar a
má influência que a menina representa. Dona Cleide
leva um cartão vermelho da diretora, e é aconselhada a conversar com a filha e transformá-la em uma
menina de verdade. Ao final, Zezé é metamorfoseada
em fantoche, vestida de rosa, enquadrada no modelo
esperado pela sociedade.
O que incomoda a diretora da escola não é somente o fato de a menina jogar futebol. É também,
e principalmente, a transgressão no comportamento
de gênero cometido pela aluna. A personagem vestese como menino e não tem interesse pelas atividades
atribuídas às mulheres. A mãe da menina, pressionada
pela diretora e não suportando a pressão social da
família, dos vizinhos e agora da escola, sucumbe a
esse discurso e deixa-se influenciar. Zezé não tem a
identidade esperada para as pessoas de seu sexo.
Ponto de Vista
Entre 2008 e 2010, o espetáculo foi apresentado
para centenas de estudantes. A experiência nas escolas
reforçou a percepção de que ainda se perpetua uma
educação heteronormativa4 , onde o comportamento
de cada sexo é atribuído à natureza e não a construções socioculturais. Essa visão biologizante sobre o
comportamento de homens e mulheres permite, por
exemplo, a tolerância em relação à agressividade dos
meninos (considerada normal), em contrapartida a
uma exigência de um bom comportamento das meninas que devem ser menos competitivas e não participar
de atividades destinadas aos homens. Desconsidera a
orientação sexual dos alunos como se essa questão não
influísse em todas as relações sociais: consigo mesmos,
no trabalho, na família e entre os amigos.
A percepção e expressão dos jovens sobre masculinidades e feminilidades hoje é muito diferente do que
se via há uma década. A construção das identidades
sexuais na contemporaneidade subverte muito mais
os limites entre os gêneros, o que não significa necessariamente que a orientação sexual vá pelo mesmo
caminho. A mudança de paradigmas, no entanto, não
se dá de forma absoluta, nem poderia. Forças em sentidos opostos entram em conflito para que determinada
mudança seja realizada atendendo a necessidades de
expressão de cada grupo.
Há muito tempo que vivemos a “ditadura do rosa
e do azul”. Desde o nascimento, aprendemos que rosa
é cor de menina e azul de menino. Basta uma observação mais atenta para perceber como a cor passa a
ser obrigatória em guarda-roupas femininos de muitas
mulheres de todas as idades. Nada de mais, se essa
simples preferência não ganhasse conotações sexuais
diversas. Rosa virou sinônimo de feminilidade, de fragilidade, de doçura, características inadmissíveis para
os homens e obrigatórias para mulheres. E quem não
se encaixa nesses perfis fica estigmatizado. Rosa virou
uma preferência natural das mulheres. Em festinhas,
nove entre dez meninas vestem rosa, e apesar de a cor
ter caído na graça de alguns homens, identificados
por metrossexuais5 , ainda é pouco tolerada quando
invade os guarda-roupas masculinos.
Não é por acaso que em muitos espetáculos de TO
que tratam das opressões contra mulheres ou versam
sobre questões de gênero ou homossexualidade esse
recurso é tão utilizado. “Rosa ou azul, boneca ou bola,
casa ou rua, ih, não importa” canta o grupo DiversiM E TA X I S
57
Ponto de Vista
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Ponto de Vista
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
dade EnCena numa referência aos comportamentos
sociais atribuídos a cada sexo.
Entender a fragmentação e, paradoxalmente, fortalecer as identidades pode ser o caminho para uma
sociedade que não violente pessoas coagindo-as a se
encaixarem em formas humanas homogeneizadas, em
que determinados padrões são aceitos e outros rechaçados. Onde, só é permitido o que está na moda.
Apoderar-se da estética, da palavra, da imagem e
do som, para rasgar arquétipos de comportamento e
desestabilizar o status quo é o que se pretende. Para
isso clama-se que os espectadores invadam os palcos,
e transformem as imagens que vêem e não desejam,
em imagens de uma sociedade justa e convivial6 ,
ensaiando no palco a transformação da vida . Eis a
utopia! ◘
Referências:
1-BOAL, Augusto. O Teatro como Arte Marcial. RJ: Garamond, 2003
2-BORTOLINI, Alexandre. Diversidade Sexual na Escola. 2ª
ed. RJ: Pró-Reitoria de Extensão/ UFRJ, 2008
3-FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 13ª Ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1983.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 5ª
edição. RJ: DP&A, 2001
4-SILVA, Tomaz Tadeu, HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. (Orgs.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000
5-http://pt.wikipedia.org/wiki/Heteronormatividade
6-http://pt.wikipedia.org/wiki/Metrossexual
Notas:
1 Foi coordenador e Curinga do grupo Diversidade
EnCena que integra o Projeto Diversidade Sexual na
Escola, da UFRJ.
2 HALL, Stuart, 2001, p.25
3 SILVA, Tomaz Tadeu, 2007, P.97
4 Heteronormatividade ou heterocentrismo se refere a atitude
de pessoas que enxergam a heterossexualidade como única
forma de orientação sexual (do grego hetero, “diferente”, e
norma, “esquadro” em latim) é um termo usado para descrever
situações nas quais variações da orientação heterossexual são
marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais,
crenças ou políticas.
5 Metrossexual é um termo originado nos finais dos anos
90, pela junção das palavras metropolitano e heterossexual,
sendo uma gíria para um homem heterossexual urbano excessivamente preocupado com a aparência, gastando grande parte
do seu tempo e dinheiro em cosméticos, acessórios e roupas de
marca.
6 BOAL, Augusto, 2003, p. 117
58
M E TA X I S
O Caso de Jonas
Fabrício Gobetti Leonardi, multipllicador do Teatro do Oprimido – Santos /SP.
Jonas entra em cena. Adentra num espaço de livre
criação. Tudo é possível. O tablado, improvisado
numa pequena sala de oficinas, não é utilizado para
que expresse apenas a sua própria individualidade.
Jonas está dentro de um almoço que acontece no
NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial – Santos/SP),
onde ele realiza tratamento e que frequenta duas ou
três vezes por semana.
Percebe-se que o espaço estético em que mergulha
Jonas traz uma relação de identificação e afastamento. Ao mesmo tempo em que revela seu próprio ser,
com seus sentimentos, fragilidades, emoções, atitudes
perante as situações etc., ele se descola da situação
real e adentra na plasticidade do palco, mostrando-se
em cena. Como diria Boal, “o protagonista age e se
observa agindo, mostra e observa mostrando, fala e
ouve o que diz”.
A situação da cena foi revelada pelos participantes
do grupo numa discussão criada durante o almoço
dos usuários que frequentam a instituição. Segundo o relato, a copeira havia se negado a servir uma
usuária que acabara de chegar e não participara das
atividades da manhã. O fato motivou outros a se solidarizarem, e eles se recusaram a comer, como forma
de protesto. A copeira argumentava que a usuária
não estava na lista de frequência do dia.
A situação contada costumava acontecer habitualmente. Jonas sentiu-se identificado com ela. Estava
entre aqueles que fomentavam as grandes discussões
e conflitos, às vezes chegando à agressão física. Sua
impulsividade e agressividade levavam a um afastamento tanto de funcionários quanto de outros
usuários, que o viam com forte antipatia. Seu diagnóstico (transtorno de comportamento) referendava
o isolamento, dentro e fora do NAPS.
Jonas, nesse Teatro-Fórum, toma o lugar do
protagonista, mesmo sabendo que as regras não o
favorecem. Pega seu prato rindo e mexendo com os
outros que já estão sentados. Chega para a copeira de
forma intimidadora e a obriga a servi-lo. A copeira
argumenta que não é seu dia de atividades. O tom
anuncia uma lei intransponível: “Regra é regra”. Jo-
M E TA X I S
59
Ponto de Vista
nas levanta a voz e a ameaça. A cena é interrompida,
e ele vangloria-se de seu desempenho de ator.
Todos debatem a alternativa de Jonas e concluem
que não conseguiu almoçar porque sua postura havia
sido demasiado dura, como de costume na vida real.
Claudio argumenta que via a copeira como a verdadeira oprimida da cena. Jonas ouve em silêncio, sua
reflexão parece ir além do espaço da oficina.
Pede, então, para tentar novamente. Na nova proposta, chega mais calmo para conversar. A copeira
não permite que almoce e o repreende. Novamente,
se exalta e a ameaça. Outro usuário o convida para
dividir seu prato de comida. Ele se senta à mesa e não
dá mais ouvidos às reclamações dela.
Todos comentam o acontecido, a nova cena apimenta a discussão. Houve transformação? Alguns
concluíam que a copeira era a oprimida ainda e que
as atitudes do protagonista a justificavam. Alguém
disse que o usuário que ofereceu dividir seu prato
estava referendando um folgado. Outro opinou que
a copeira deveria tê-lo servido e evitado a confusão
(o que acontece também).
Segundo Boal, o espaço estético é dicotomizante,
pois o protagonista torna-se sujeito e objeto da ação,
além de permitir que ele observe o eu-antes, que em
parte subsiste no eu-agora, que é, de certa forma, o
eu-ainda. O processo de se auto-observar e de ser
observado é revelador.
Outro usuário propõe nova alternativa. Entra em
cena e aborda a copeira com cautela, explicando que
haveria de ficar na parte da tarde e que não teria a
oportunidade de almoçar. Além disso, os problemas
sociofinaceiros que possui não permitem que compre
algo para comer na rua. A copeira, desconcertada,
mantém a postura de que não dá para servir o almoço, pois ele vem contado. Alguém diz que não é verdade e que a comida geralmente sobra. O usuário toma
a palavra e resolve chamar o técnico de referência.
Eliana (psicóloga multiplicadora) rapidamente coloca
alguém para improvisar o técnico, que entra em ação.
Os acontecimentos são esclarecidos ao técnico, que
entende o caráter excepcional da situação e concede
o almoço. A cena encerra-se.
Jonas, que observava, permaneceu quieto enquanto os outros comentavam a postura do novo protago-
60
M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
nista, elogiando sua habilidade de resolver o problema
sem que houvesse uma disputa que pudesse chegar
às vias de fato. Foram comparadas as alternativas,
e as reflexões faziam link com os fatos vivenciados
diariamente, sendo que ambos, copeira e usuário,
poderiam assumir o papel de opressores, dependendo
do direcionamento de suas atitudes, dependendo do
seu manejo frente ao conflito, situação recorrente.
Nosso jovem foi embora pensativo, quase fugindo.
Parece que aquele momento tinha significado para
Jonas a possibilidade de ouvir críticas e de pensar
sobre suas atitudes, o que era quase impossível de ser
realizado cotidianamente. As propriedades estéticas
e sensoriais da cena, e, mais especificamente, da entrada em cena, produziam a possibilidade de juntar
conhecimentos sobre si mesmo, sobre a dinâmica
institucional e suas falhas.
Em uma oficina posterior, ouvimos o comentário
de Jonas: “Eu sei quando eu causo confusão”, como
um desabafo não forçado e com um tom de tristeza.
Não daquela tristeza sombria que leva à inércia e
à paralisação. Jonas estava tomando contato com
outras possibilidades de vivenciar sua experiência, objetivando novos saberes. Parecia um pouco envergonhado ao dizê-lo, mas não abatido. Reconhecer seus
próprios limites, sua própria fragilidade e incoerência
era pré-requisito para que se sentisse mais fortalecido
e aceito. Era condição para que conseguisse assumir
o seu papel de Sujeito e lutar contra as opressões que
se operam na vida social.
Jonas continua participando das oficinas e contribui com o processo coletivo que vem sendo construído
no NAPS III e também em outras unidades de Saúde
Mental da Baixada Santista. Participa dos “diálogos
teatrais” em que apresenta os trabalhos desenvolvidos
por seu grupo, troca informações com outros participantes do TO e discute temas urgentes para todos.
Dedica-se especialmente aos trabalhos da estética,
produzindo poemas, pinturas etc.
Para cada passo conquistado, um novo desafio
surge. O trabalho não se finaliza, assim como no
término das cenas de Teatro-Fórum. É necessário ir
adiante, pois há muito que fazer. Nesse sentido, o Jonas mostra que o TO pode ser um instrumento eficaz
na busca da compreensão e da transformação. ◘
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Ponto de Vista
Também
sou Menino de Rua
Janna Salamandra, multipllicadora do Teatro do Oprimido – CTO
Sou de família
pobre e religiosa
e por isso acredito
que nada na vida é
por acaso.
Conheci o Centro de Teatro do Oprimido através de uma amiga de trabalho, que
por sua vez era amiga de Maura de Souza (que, na época, era fotógrafa do Mandato de
Boal). Minha amiga Cíntia foi convidada a participar de uma solenidade na Câmara
dos Vereadores, onde Boal ia homenagear um religioso. Como andava meio pra baixo, me sentindo muito só nesta Cidade Maravilhosa, saindo de uma separação e com
a minha mãe insistindo que eu fosse para um lugar que odiava, Cíntia me convidou
para acompanhá-la.
Fui porque ela insistiu! Sempre achei que política era uma coisa para políticos pilantras se darem bem à custa de pobres ignorantes, que, por não terem conhecimento
de seus direitos, se deixavam levar e convencer por cestas básicas, dentaduras, falsas
promessas de melhorias que nunca chegariam. Mesmo assim, fui. Nunca tinha entrado
na Câmara de Vereadores. Pra dizer a verdade, tinha medo até de passar na porta e
ser presa por invasão de espaço elitizado.
Depois da cerimônia, fomos ao CTO, onde havia um grupo ensaiando. Assistimos
ao ensaio. Fiquei fascinada. Eu havia feito Teatro na escola, mas nunca tinha visto
algo igual. Aquela metodologia era a minha cara! Eu descobri que não era a única
do contra, como dizia minha avó e meu pai, para quem eu era o avesso do avesso. Eu
era como uma pedra no sapato, principalmente de meu pai! Ele tinha até vergonha de
dizer que eu era filha dele, porque eu questionava tudo.
Não entrava na minha cabeça que mulher tem de aceitar ser tratada pelo marido
M E TA X I S
61
Ponto de Vista
como uma escrava, a qual podia espancar cada vez
que se sentisse contrariado. Vi muitas vezes meu pai
espancar minha madrasta com fio de ferro! Eu me
dizia: “Se fosse comigo, o mataria.” Quando perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, dizia:
“Policial, pra prender marido que bate em mulher.”
Meu pai sabia que eu falava para ele. Chegou a me
proibir sair do quarto quando tinha visitas.
Lembro-me de uma vez em que um pastor de
uma igreja evangélica muito famosa foi lá em casa
convidá-lo para ser pastor (nessa época, essa igreja
estava no começo, ainda não era tão rica e tão grandiosa como é hoje). O tal pastor me perguntou: “Oi,
você sabia que Deus ama as crianças? O que acha de
ser uma ovelhinha de Jesus e nos ajudar a montar
um rebanho?” Eu tinha uns 10 anos, respondi: “Se
Jesus me quisesse como ovelha, não teria me feito
um ser humano!” Meu pai me fuzilou com os olhos.
O pastor falou que eu estava possuída pelo Diabo.
Eu falei: “Não disse que Deus me ama? Como é
deixou o Diabo me possuir? Minha mãe diz que,
quem ama, cuida!” O pastor ficou mudo e os olhos
de meu pai fumegavam de raiva. Fiquei de castigo
por cinco meses.
Cresci achando que era uma anormal, porque não
aceitava o que achava injusto e questionava o que
me parecia errado. Aos 8 anos, meu pai passou a me
acordar às 4h da manhã para trabalhar na feira com
meus irmãos. Ficava furiosa quando ele me levava
para feiras perto de praças, onde eu via crianças da
minha idade brincando enquanto eu era obrigada a
trabalhar. Eu só podia brincar aos domingos depois
de voltar da igreja, por apenas 2 horas. Na adolescência, ouvi duas moças conversando no ônibus.
Uma dizia pra outra que só se tornou livre da tirania
dos pais depois que casou. Pensei: “Tenho que me
casar logo!!”
Conheci o pai dos meus 9 filhos aos 15 anos, e a
primeira coisa que falei pra ele, quando decidimos
morar junto, foi “NUNCA LEVANTE A MÃO PRA
MIM! Pois, se fizer isso, trate de não dormir, pois vou
te matar com óleo quente!” Acho que ele ficou com
medo que eu fizesse isso mesmo. Quando foi pedir à
minha mãe para morarmos juntos, ela lhe indagou:
“Você tem certeza que quer isso mesmo? Minha filha
não é ‘flor que se cheire’ e eu não aceito devolução!
Ela não é do tipo de mulher doméstica, não abaixa a
62
M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
cabeça pra ninguém, não leva desaforo pra casa, não
sei como ainda não apanhou na cara pelas ruas, de
tão atrevida que é.” Até hoje meu marido diz: “Bem
que minha sogra me avisou...”
Mas no dia em que eu conheci o Centro de Teatro
do Oprimido, descobri que tinha razão. Eu não era
do mundo em que vivia! Era, sim, daquele mundo
que Boal, com o CTO, tentava transformar! Um
mundo no qual as mulheres têm direito de opinar,
de ser respeitadas como profissionais, de ser vistas e
tratadas como seres humanos que também são. Um
mundo onde crianças devem brincar e estudar e não
trabalhar como um adulto, onde negros têm direito
ao respeito como cidadãos que são! Onde as pessoas
têm o direito de ser como são e de ter sua orientação
sexual respeitada. Onde pobres e ricos têm as mesmas
oportunidades. Esse era o meu mundo! O mundo
pelo qual eu ansiava.
Ao descobrir o Teatro do Oprimido, tive a sensação de ter vivido 29 anos de minha vida como um
burro de canga na cara. Só via o que era posto à
minha frente ou permitido por meus donos. Conhecer
o Teatro do Oprimido foi como, pela primeira vez,
poder enxergar o mundo como ele era realmente.
Com seus dilemas, suas injustiças, suas belezas, suas
nobrezas e suas pobrezas. O melhor foi descobrir
que não estava só, tinha pessoas empenhadas em
transformá-lo.
Assim como aquele cara que, para mim, na
época, parecia um político meio “hiponga”,¹ que
acreditava no ser humano e que, por amor ao seu
próximo, criara uma forma fantástica de ajudar este
seu povo, massacrado pela opressão, a transformar
esse mundinho em que vive em um mundão de justiças e igualdade. E sua única regra para tanto era
a ética. Esse cara era um praticante da boa política.
Augusto Boal não era religioso, eu sei! Ele dizia não
crer em Deus. Mas, para mim, foi um grande praticante de dois de seus mandamentos, através de sua
Arte: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”
e “Dai pão a quem tem fome, água a quem tem sede
e agasalho a quem tem frio”.
O Teatro do Oprimido é a prova de amor de Boal
pelas pessoas, tanto que, até o seu último suspiro,
trabalhou para nos deixar a “Estética do Oprimido”. Boal nos deu o Pão da metodologia do Teatro
do Oprimido, a fonte do líquido da justiça, com o
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Teatro Legislativo, e nos agasalhou com o Centro
de Teatro do Oprimido.
Quando fui indicada por Helen Sarapeck, Coordenadora do CTO, para trabalhar na ONG Childhope Brasil, com meninos de rua, fiquei receosa e
fui pedir a opinião de Boal, que me disse: “Lembra
de um texto que você escreveu sobre como ficou
impressionada com uma ação policial aqui na Lapa?
Você dizia que queria poder fazer mais que pular
na frente do menino que o policial ameaçara com
uma arma, lembra?” “Sim”, respondi. Ele me falou:
“Então qual é sua dúvida? Ainda não aprendeu que
o caminho é feito pelo caminhante ao caminhar?
Caminhe e descubra por você mesma o que tanto
queria fazer! Se precisar de ajuda ou tiver dúvidas,
estaremos aqui, eu e os Curingas para ajudá-la. Vá
em frente, você é uma mulher muito inteligente e
saberá tomar a decisão certa.” Foi a primeira vez
que alguém me disse que eu era inteligente e capaz
de realizar algo!
Quanto à experiência com os meninos em situação
de rua, o que posso dizer é que, com esse trabalho,
descobri que eu sempre fui um menino em situação
de rua, mesmo morando em casa com minha família.
Ouvindo as histórias desses meninos, os motivos que
os levaram a sair da segurança de suas casas, lembrei
que, aos 9 anos, fugi de casa por 24 horas. Morava
em Recife, Casa Amarela, com meu pai. Era Natal,
e ele tinha montado uma linda árvore na sala, na
qual nos proibiu de tocar. Eu estava brincando de
correr atrás da cachorrinha Laysa e, ao entrar na
sala, escorreguei no tapete, caí sobre a árvore,
que tombou contra a parede e quebrou uma
de suas bolas. Fiquei com tanto medo de
apanhar que fugi.
Fiquei vagando pelas ruas. Ao ver
uma vizinha, me escondi no cemitério, saciei minha fome com os
deliciosos jambos vermelhos
e doces que havia lá, dos
quais ainda posso sentir o
sabor. Quando começou o
cair da noite, entrei em
pânico com medo dos
mortos e dos vivos.
Queria poder sumir, queria minha
Ponto de Vista
mãe. Voltei pra perto de casa e me escondi em uma
casa abandonada, em frente à casa de meu pai, e fui
encontrada no outro dia por um vizinho enquanto
dormia.
Sei que muitos jovens são vítimas, assim como
seus pais, de uma cultura escravocrata, baseada na
violência. Crianças acuadas buscam na fuga de casa
a solução de suas vidas, ou pior, aceitam a violência
como realidade e se entregam a caminhos ainda mais
violentos, como o tráfico, achando que só podem
vencer seus opressores com a lei do mais forte. Na
verdade, descobri com este trabalho que esses meninos têm coragem para encarar a rua sozinhos, em
busca de uma chance de viver em um lugar menos
injusto que suas casas. ◘
Nota:
1 Designação dada pejorativamente a seguidor do movimento
hippie, que floresceu nas décadas de 1950 e 1960 (Dicionário
Aulete Digital), ou a alguém com aparência ou estilo de vida
semelhante ao de um hippie.
M E TA X I S
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Canal Aberto
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Canal Aberto
Um Teatro que
É uma Loucura
Eliana Guimarães, atriz do GTO Pirei na Cenna.
Pirei na Cenna
Transformando o Cenário da Loucura
“Se ator pode ficar maluco; o maluco pode virar ator.”
(Augusto Boal)
Poucos imaginariam que, de um estágio de psicopedagogia, poderia surgir um grupo de
Teatro do Oprimido. Cláudia Simone imaginou, e por isso, em 1997, convidou usuários do
Hospital Psiquiátrico Jurujuba para terem o primeiro “surto cênico”: o esquete “HIVida”.
Daí em diante, outros delírios artísticos em forma de peças de teatro surgiram, com foco
na questão da sexualidade e prevenção das DSTs/AIDS no universo da loucura. Assim surgiu
o grupo Pirei na Cenna, que rompeu os muros do hospital para dialogar com a sociedade.
O grupo se pauta no lema da luta antimanicomial: “cuidar sim, excluir não”. No Pirei na
Cenna, propomos que as pessoas rompam com a normalidade da loucura, instituída na reclusão, e lutem por uma saúde mental humanizada, em sintonia com o movimento da Reforma
Psiquiátrica do Brasil.
Desde a criação do grupo, constatam-se diminuição do número de internações, aumento
da adesão aos medicamentos, expansão das redes sociais e aumento da autoestima de seus
integrantes. A história do grupo também inspirou o CTO a desenvolver o projeto Teatro do
Oprimido na Saúde Mental e serviu de referência para a criação do grupo Liberate, do Manicômio Judiciário. ◘
64
M E TA X I S
Minha
História
Enéas Lúcio da Silva foi artesão e ator do GTO Pirei na
Cenna, de 1997 até 2010, quando faleceu.
Eu sempre fui normal. Cresci, trabalhei, até que um dia fui
trabalhar na antiga estação no Morro do Cavalão, quando levei
um tiro no braço e desmaiei. Chamaram a ambulância, fizeram
os primeiros socorros e me levaram ao Antônio Pedro [hospital de
Niterói]. Voltei para casa e fiquei fazendo tratamento no hospital
São Francisco. Fiquei um pouco nervoso, alterado por consequência
do tiro. Aí, me encaminharam para a Casa de Saúde de Niterói, onde
eu fiquei durante dois anos da minha vida.
Lá, me ensinaram a fazer tapete. De lá com a minha alta, tive
várias criatividades de fazer cestas, ônibus, porta-joias, bicicletas
etc. Passei a ter crises de nervoso de dois em dois meses. Nessas
crises, me levaram ao Jurujuba [Hospital Psiquiátrico], onde investiram em mim, dando-me a oportunidade de trabalhar na portaria,
em que tive compromisso. Fazendo o tratamento e trabalhando,
me senti alegre, não faltava. Mas comecei a ter tonteiras por causa
dos fortes remédios.
No Jurujuba, me apresentaram à Cláudia Simone, que me convidou pra fazer teatro. Isso me beneficiou, trazendo alegria pra quem
vivia na solidão. Fazer teatro com os exercícios me fez sentir melhor,
não tive mais crise nervosa, sou alegre, tenho responsabilidade.
Cláudia é amiga amável. Obrigado, Cláudia Simone, por ter me
ensinado a ser melhor e mostrar que nós, com sistema nervoso,
temos capacidade. ◘
Eu trabalhava na cantina do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba,
quando a diretora do grupo Pirei na Cenna convidou a mim e a Lúcia
para entrarmos no grupo.
Antes de fazer Teatro do Oprimido, eu tinha preconceito comigo
mesma, tinha vergonha de ser usuária de Saúde Mental, tinha
vergonha de falar com as pessoas, achava que elas sempre iam
me discriminar. Sempre que possível, escondia que já tinha sido
internada. Eu não me alimentava direito, gostava de ficar deitada
no tapete da sala e dava graças a Deus quando anoitecia para
sonhar com meus filhos, que estavam distante em Minas Gerais,
São Paulo...
Depois do Teatro do Oprimido, deixei de esperar pela noite
para dormir. Queria que o dia fosse longo, para poder mostrar
para as pessoas que, quem se trata, também pode produzir, pode
criar, pode pintar, levar uma vida normal. Eu que vivia deitada no
tapete, pensando que não seria nada, hoje falo da minha história
de vida e do Teatro do Oprimido, que é diferente dos outros teatros
porque propõe transformar a realidade, e a minha mudou. Agora
falo abertamente que sou usuária de Saúde Mental, porque quero
mudar o preconceito que as pessoas têm com elas mesmas e mostrar
que todos têm direito a ser feliz.
Com a minha primeira crise, passei a ter medo de multidão. Ia
comprar algo e voltava para casa dizendo que a rua estava muito
cheia, porque tinha medo das pessoas. Através do teatro, viajei para
outros estados, conheci pessoas, me identifiquei com o mundo, me
tornei sociável. Assim como a loucura transforma as pessoas, vejo
que o Teatro do Oprimido está transformando a minha vida. ◘
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Teatro do Oprimido na Saúde Mental
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Canal Aberto
Com 22 anos eu fiquei “22” 
Sérgio Lima, ator do GTO Pirei na Cenna.
Meu nome é Sérgio Lima. Nasci na Paraíba e, com 8 anos, vim com toda a minha
família morar no Rio de Janeiro, no Morro do Preventório, bairro de Charitas, em Niterói.
Com 10 anos arrumei meu primeiro trabalho: três vezes por semana estava numa feira,
onde vendia de tudo. Com 15 anos, fui trabalhar para uma família muito especial. Ela
me dava de tudo (roupas, comida), e eu fiquei trabalhando lá até completar 22 anos. E
foi exatamente nesta época, em 1997, que eu fiquei “22”. Tive meu primeiro surto e fui
internado no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, que fica pertinho de onde eu moro.
Foi um momento muito difícil. Eu me lembro de não conseguir controlar minhas
ações, mas, ao mesmo tempo, podia entender tudo o que se passava a minha volta,
inclusive os maus-tratos que sofri. Mas foi lá no Jurujuba que eu conheci o Grupo Pirei
na Cenna. Eu estava internado. Soube que estava tendo teatro no hospital e pedi para
entrar.
Desde 1997, muita coisa mudou na minha vida. No Pirei na Cenna eu sou feliz, porque
o grupo é minha segunda família. Já viajei o Brasil inteiro apresentando nossas peças.
Eu amo estar no palco. Sempre sonhei viajar de avião e ser conhecido pelo meu trabalho
como ator e, no Pirei na Cenna, eu consegui. Posso não ter fama, mas tenho talento.
Quero agradecer ao grande mestre Augusto Boal, por ter criado o Teatro do Oprimido, e à Cláudia Simone, por ter criado o Pirei na Cenna. Sou Sérgio Lima, surtei aos 22!
Hoje sou “22” do Hospital Psiquiátrico Jurujuba, do grupo Pirei na Cenna e do Teatro
do Oprimido. ◘
1 “22” forma pejorativa de denominação do portador de transtorno mental. Referente
ao antigo Artigo 22 da CLT (Consolidação das Leis de Trabalho) da década de 60.
Fazendo Teatro, Me Sinto na Lua
Fui convidada por Cláudia Simone para fazer parte do grupo
Pirei na Cenna em 2003. Me interessei, fiquei contente. Quando
comecei, na peça “É melhor prevenir que remédio dar”, fazia um
pequeno papel até interpretar a personagem Eterno Delírio, mãe
do Dalua.
Mudou muito a minha vida fazer teatro, pois não tive mais
internações e também passei a ser mais sociável, me comunicando
melhor com as pessoas. Depois participei da peça “Saúde Mental
Positiva”, sobre a AIDS na saúde mental.
Nestes seis anos de teatro, participei de vários congressos de
saúde mental e tive a oportunidade de conhecer vários lugares
que não conhecia. Conheci Salvador, São Paulo, Brasília, Florianópolis, Piauí, São João Del Rey e Londrina. Conheci o Augusto
Boal. Atualmente, estou participando da peça “Doidinho para trabalhar” e faço o papel da enfermeira, que se chama doutora Doids.
Estou feliz em estar participando. Como é bom fazer teatro! Passa
tempo, passa hora e a gente não tem hora para parar.
Teatro para mim é uma arte mundial. Me sinto na Lua quando
estou fazendo teatro. ◘
66
M E TA X I S
Lúcia Santana, atriz do GTO Pirei na Cenna.
De Menina Atriz
a Mulher
Multiplicadora
Eloana Gentil, atriz do GTO Pirei na Cenna e multiplicadora do
Teatro do Oprimido.
O sonho da menina de 14 anos, que queria ser atriz de novela,
se realizou num grupo de teatro de malucos, tendo como “palco”
um hospital psiquiátrico. Mas não importava a classificação do
grupo, e, sim, o sonho a ser realizado. Aos 17 anos, a menina se
tornou Curinga comunitária. Ensinou, aprendeu e aprimorou-se
na metodologia do Teatro do Oprimido. Foi nesse período que
percebeu que não estava num grupo só de malucos, mas de seres
humanos que transformam suas limitações em arte.
E foi aí que essa menina começou a querer mais. Então, foi
trabalhar com Teatro do Oprimido com jovens, idosos e até num
grupo de mulheres, em que se discutia justamente a opressão
contra a mulher. Nesse período, descobriu que ser mulher é ter
uma relação forte com a culpa e com neuras que podem nos
desestabilizar completamente. Se surpreendeu com mulheres dos
quatro cantos do país, além de Argentina e Portugal, que lutam
pela transformação.
A menina se tornou mulher e aprendeu ainda mais com o
Teatro do Oprimido, que para ela é como transformação e descoberta de ser humano. Ela aprendeu que não adianta fazer parte de
um grupo ou movimento de Teatro do Oprimido se não entender
a essência da metodologia. Antes, para ela era ótimo subir no
palco, receber aplausos da plateia e, vez ou outra, atuar com um
desconhecido na intervenção. Era maravilhoso para ela, pois podia
exibir seu talento de atriz. Depois se perguntou o porquê de estar
fazendo tudo aquilo. Nos muitos hospitais psiquiátricos que se
apresentou, pôde compreender que, mais do que estar na cena da
peça, era preciso estar na cena da vida e atuar para a transformação de um mundo melhor. Daí, percebeu a plenitude do Teatro do
Oprimido. E constatou que a vida é feita de escolhas, e essas escolhas é que nos fazem viver e lutar por um mundo melhor. Escolheu
o Teatro do Oprimido.
Hoje, essa menina egoísta, inflexível e cheia de esperança se
tornou uma mulher, mãe de dois filhos e muito responsável. E
tudo isso graças ao grupo de malucos, ou melhor, de seres humanos que a ajudaram a realizar seu sonho de ser atriz. Foi nele que
ela aprendeu a ouvir, a pensar e dialogar. Nele entrou menina e se
tornou mulher: o Grupo de Teatro do Oprimido Pirei na Cenna. ◘
“Se Eu Não Puder
Mais Pirar na Cena,
Eu Vou Pirar na Vida”
Entrevista com Wanderson Pacheco, ator do GTO Pirei na Cenna
Como foi para você entrar no Grupo de Teatro do Oprimido
Pirei na Cenna?
Mudou tudo. Eu não estudava. Agora estudo. Não conhecia
nenhum lugar, passei a conhecer: São Paulo, Brasília, Bahia... Eu
gosto muito de fazer parte do grupo. É um divertimento. Antes,
as pessoas só me viam como doido, como maluco. Elas diziam:
“Ah, você não pode trabalhar.”, “Wanderson, não sabe ver dinheiro. Não pode andar na rua sozinho.” E antigamente eu dava
ataque. Agora, tudo mudou para mim. Muitas pessoas falaram
para a minha mãe que eu era inútil. Hoje, me respeitam mais e
percebem que posso fazer muitas coisas. Tudo graças ao Teatro
do Oprimido.
Como você se sente fazendo teatro?
Eu me sinto o tal, porque as pessoas estão batendo palmas para
mim. É um trabalho prazeroso. Eu me sinto bem de fazer.
Como foi conhecer Augusto Boal?
Foi um divertimento trabalhar com Boal. As coisas que ele falava...
Eu ficava prestando atenção – tanto que eu fazia perguntas, eu
ficava observando as coisas que ele falava. Era tudo com certeza.
Tudo com verdade...
Você já se imaginou sem o Pirei na Cenna?
Eu já me imaginei, sim. Mas agora eu nem imagino mais. Se eu
sair do Pirei, vou viver do quê? Imagina se eu não puder mais pirar
na cena... Aí eu vou pirar na vida.
O que você espera com o Teatro do Oprimido?
Eu quero ser mais do que ator. Além de trabalhar no Pirei, eu quero
trabalhar em outros lugares. Eu quero crescer mais, eu quero produzir mais. As coisas que eu já produzi, eu quero produzir mais...
M E TA X I S
67
Canal Aberto
Transformado
na cena,
transformado
na vida
Alessandro Conceição, Curinga do CTO e do GTO Pirei na Cenna.
Não vou esquecer quando adentrei um hospital
psiquiátrico pela primeira vez, em 2001, e vi pessoas
me implorando cigarro, café e dinheiro. Um susto.
Pensei que fossem me agredir. Até que a Curinga
Cláudia Simone abriu a porta do auditório do hospital
em Jurujuba, para eu assistir ao ensaio do grupo Pirei
na Cenna:
– Alessandro, é por aqui. Ah, quando te pedirem
alguma coisa, basta falar “Não tenho”.
Contrariar maluco não era perigoso? Um simples
“não tenho” poderia funcionar? Essa foi minha primeira desmistificação na saúde mental.
Dentro do auditório, vi pessoas maquiadas e com
figurinos, ensaiando uma peça num cenário interessante. Uma das atrizes me impressionou em especial,
se entregando com toda verdade numa cena de muita
comoção. Ao final, soube que, dos sete atores em cena,
apenas uma não era usuária de saúde mental. Tive um
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M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
choque que abalou meus preconceitos – ou nenhum
conceito. Descobrir que usuários podiam atuar, sim,
e muito bem, foi outro susto.
A partir daí, virei responsável pelo cenário e depois
me tornei sonoplasta, para, logo depois, ser incluído na
comitiva que se apresentou num congresso sobre DST/
AIDS em Cuiabá, no Mato Grosso. Foi a primeira vez
que viajei de avião!
Em 2002, o grupo começou a trabalhar com o
Teatro-Fórum. Me ofereci para atuar, mas Cláudia
achou melhor eu continuar onde estava. Mas, na
primeira oportunidade, quando um dos atores faltou,
entrei em cena. Esse evento provisório se estendeu por
seis anos, até que me tornei Curinga comunitário
do grupo, participando ativamente da produção dos
espetáculos “É melhor Prevenir que remédio dar”,
sobre sexualidade na saúde mental, e “Saúde mental
positiva” e, também, da montagem do Teatro-FórumMusical “CAPScitando”, com atores de outros grupos
comunitários do CTO.
Conheci Augusto Boal em 2003, quando ele foi ao
Hospital Psiquiátrico de Jurujuba para assistir pela
primeira vez ao Pirei na Cenna. Ficamos nervosos,
mas nos concentramos e conseguimos nos apresentar.
Depois do fórum, ficou conosco numa longa e prazerosa conversa. Mais tarde, nos dirigiu na criação da
“Dança do Cotidiano”, atividade da Estética do Teatro
do Oprimido.
Nesses anos, tive oportunidade de me desenvolver
no Teatro do Oprimido. A experiência me permitiu avançar na multiplicação com adolescentes em
Niterói até, junto com Monique Rodrigues, criar o
grupo Liberarte, formado por internos do Hospital
de Custódia Heitor Carrilho. Além disso, desde 2006,
integro a equipe do projeto Teatro do Oprimido na
Saúde Mental, do CTO.
A partir dessa jornada com o Pirei na Cenna, me
tornei Curinga do CTO, estudante de jornalismo e, o
mais importante, um cidadão consciente da necessidade de lutar para transformar este nosso mundo num
lugar melhor e mais justo, num lugar mais humano.
Pirando na cena, muito lúcido na vida, me considero
um militante do Teatro do Oprimido. ◘
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Método
Dramaturgia do Teatro-Fórum
Bárbara Santos, editora da revista Metaxis e Curinga Internacional do CTO.
O Teatro do Oprimido é um método teatral que propõe a abertura de espaços de
diálogo na busca de alternativas para a resolução de conflitos reais. Buscar alternativas
não significa apaziguar conflitos. Trata-se de revelá-los para entendê-los e, a partir da
compreensão de suas implicações, poder encontrar meios concretos de superá-los.
Nosso teatro se dedica à investigação de situações de opressão, cujo sentido aqui
está intrinsecamente ligado ao de injustiça, ao de desequilíbrio de poder e de falta de
equidade no acesso a recursos e a oportunidades. Citando Julian Boal², as relações de
opressão não dizem respeito a escolhas individuais ou fatalidades que colocam uns na
condição de oprimidos e outros na de opressores. Investigamos relações reforçadas e
estimuladas por grupos socais aos quais estes e aqueles pertencem e/ou representam.
Cada um de nós é um: únicos. Somos indivíduos particulares, singulares. Entretanto, cada individualidade é fruto das muitas relações sociais travadas ao longo de
nossas vidas. Através delas, entendemos o mundo a partir de uma perspectiva, assimilamos crenças, colecionamos preconceitos e aprendemos uma certa forma de viver
em sociedade. Mesmo nas situações mais particulares, essas experiências coletivas nos
acompanham. Como se centenas de pessoas estivessem sempre conosco, influenciando
nossas ações e reações; as coisas que falamos e as que não temos coragem de dizer;
como interpretamos o dito e o silenciado; nossa aceitação, recusa e expectativa sobre
o comportamento alheio. Enfim, nossas vidas.
Numa situação de conflito, ambas as partes envolvidas têm, nas relações sociais
vivenciadas, a referência de como agir diante do problema partilhado. Sem investigar
M E TA X I S
69
Método
o contexto social – que agrega aspectos políticos, sociais, culturais, econômicos e religiosos, entre outros
–, pode-se passar a impressão equivocada de que o
que se desenrola num conflito específico só acontece
ali: naquele lugar, com aquelas pessoas, por questões
individuais. A falta de compreensão da contextualização, que insere e determina essas relações, pode
dificultar e até inviabilizar mudanças efetivas.
É exatamente na ausência dessa perspectiva que
reside a insuficiência mais comum nos modelos de
Fórum: o problema encenado acaba circunscrito à
relação pessoal e maniqueísta entre dois indivíduos, o
protagonista – muitas vezes caracterizado pelo pobre
oprimido bonzinho – e o antagonista – frequentemente representado como o opressor mau e desumano.
Para a nossa dramaturgia, é fundamental que a
questão particular (retratada no modelo de Fórum)
represente os pressupostos sobre os quais estão alicerçados os comportamentos que, na cena, parecem
individuais. Apesar de a encenação apresentar uma
situação privada, da vida de alguém, essa especificidade individual deve, necessariamente, nos remeter
aos fatores sociais que forjam a situação em questão.
Isso de modo que se possa perceber que as condições
objetivas (estrutura / conjuntura social) que a influenciaram ou determinaram, do mesmo modo, produzem outras especificidades com conflitos semelhantes,
no cotidiano de muitos indivíduos.
A inclusão de contextualização na dramaturgia
do Teatro-Fórum é um desafio estético e uma necessidade ética e política, que exige do grupo uma compreensão ampliada do problema para a preparação
do modelo. Esse movimento investigativo do micro
(situação particular) em direção ao macro (conjuntura
social) foi definido por Boal como ASCESE, exercício
fundamental tanto na preparação do modelo quanto
na sessão de Fórum. Para Boal, sem Ascese, o Fórum
não chega a se estabelecer plenamente.
Um coletivo de Teatro do Oprimido deve utilizar
todas as possibilidades para construir esse conhecimento. Associar laboratórios teatrais, seminários
teóricos, centros de estudos e atividades da Estética
do Oprimido é uma alternativa eficaz para a produção artística de um modelo de Fórum.
O ponto de partida desse processo de criação é o
conflito, que deve representar uma pergunta ainda
em aberto para o grupo que vai encená-lo, seu desejo
70
M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
e necessidade de transformar sua realidade. Conflito
que seja suficientemente claro e objetivo, para que a
plateia possa compreendê-lo. Mesmo que não exista
um conflito objetivo sem aspectos subjetivos, é necessário estar atento para que a subjetividade seja fator
de enriquecimento e de complexidade desafiadora, e,
não, de obscurantismo ou dispersão.
Cada coletivo vivencia uma variedade de conflitos, antagônicos (quando as partes envolvidas estão
em campos opostos e é imperativo para o oprimido
encontrar meios de desarticular as estratégias do
opressor) ou não antagônicos (quando, apesar da
situação conflituosa, as partes buscam o entendimento conciliatório). Dentro de cada grupo, existem
conflitos mais relevantes para uns que para outros.
Entretanto, a escolha de um conflito central para um
modelo de Fórum precisa se constituir num processo
coletivo (estético e de discussão) que revele as questões
mais relevantes para o grupo como um todo. Relevância que seja capaz de mobilizar esse coletivo em
torno de ações sociais concretas e continuadas para
a transformação da realidade indesejada.
A produção deve associar relevância, desejo e necessidade. Desejo sem necessidade pode se constituir
rapidamente em caridade, em favor. A necessidade
traz concretude, mostra a urgência da transformação,
estimula o avanço da luta. Por outro lado, necessidade
sem desejo de mudança pode expressar apenas sinais
de depressão. Estar ciente de uma injustiça social e
da necessidade de mudança não garante a realização
da luta: é preciso ter desejo, vontade, esperança, confiança na possibilidade de transformação. Desejo e
necessidade garantem a motivação das personagens
para a luta.
Na dramaturgia do Teatro-Fórum, a motivação é
fator crucial, pois é a expressão da vontade da personagem, expressão de seu “querer”, guia de suas ações
e estratégias. A caracterização é a maneira como a
personagem demonstra esse querer: grosseira, romântica, engraçada, séria etc. As personagens podem
ter comportamentos distintos para fazer valer sua
vontade, mas o fundamental é que essa vontade esteja
definida. Caracterização, mesmo bem desenvolvida,
sem uma motivação consistente transforma a personagem num corpo invertebrado. Importa saber quem
são e como são as personagens, entretanto identificar
o que querem é o ponto essencial tanto para o modelo
Método
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
quanto para a sessão de Fórum.
O modelo deve começar oferecendo à plateia condições de perceber o contexto social que circunscreve
o conflito e a motivação (desejo e necessidade) que
impulsiona a protagonista a lutar. Denominamos de
contrapreparação esse momento de representação
no qual a protagonista tem esperança e confiança
em sua capacidade de conquistar o que deseja. Momento que antecede o desenvolvimento da trama em
direção à crise, garantindo tempo e espaço para a
plateia perceber a justiça da questão encenada e se
identificar com a protagonista e com sua luta. Esses
serão fatores fundamentais para a tomada de posição
dos espect-atores no Fórum.
No desenrolar das ações dramáticas, o modelo
deve explicitar, com objetividade, as estratégias usadas pela protagonista para conquistar seus objetivos e
realizar seus desejos. É a representação de sua forma
de lutar que permitirá que as e os espect-atores percebam as artimanhas do opressor para desarticular
as estratégias e provocar o fracasso. Analisando a
situação, podem-se imaginar outras possibilidades de
enfrentamento do problema que sejam mais eficientes
frente às armas do opressor e de seus aliados.
A “crise chinesa” é o ápice do conflito, auge do
confronto, quando a protagonista se vê diante do perigo iminente da derrota, mas ainda há oportunidade
de saída. Entretanto, na nossa dramaturgia, a falha
da protagonista é necessária. Diante do perigo, não
percebe ou não consegue aproveitar a oportunidade,
que, por menor que seja, deve existir. O fracasso da
protagonista é possibilidade de reflexão/ação para
a plateia.
O Fórum propõe uma atitude investigativa e
propositiva à plateia: “O modelo mostrou como
aconteceu, como foi que se passaram as coisas na
vida da protagonista. Mas, e SE não fosse assim,
como poderia ter sido? As estratégias usadas não
funcionaram para alcançar as metas desejadas. Mas,
e SE fossem outras, qual teria sido o resultado? Experimentemos!”
Se a plateia compreende a pergunta formulada
pelo modelo, reconhece sua relevância e, de alguma
forma, se identifica, mesmo que por analogia, ou se
solidariza com o problema encenado. A sessão de
Fórum tem os ingredientes necessários para se converter em uma experiência coletiva de produção de
conhecimento e de busca de alternativas. Em especial,
se a função Curinga for desempenhada adequadamente, com estímulo à participação propositiva,
mediação de diálogo crítico, promoção de Ascese e
aproveitamento das possibilidades de realização de
ações sociais, concretas e continuadas. ◘
Notas:
1 Esse texto é um fragmento do ensaio intitulado “Dramaturgia no Teatro do Oprimido”, retirado do livro que está
sendo produzido pela autora.
2 Curinga do Teatro do Oprimido que integra o GTO-Paris e
atua internacionalmente. Em seu artigo “Opressão”, publicado
na Metaxis 6, aborda o conceito.
M E TA X I S
71
Método
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Boal se apropria do conceito de aura utilizado por
Benjamin como “a projeção que faz o observador sobre o objeto” (Boal, 2009, p. 41), portanto para ele a
aura é produzida pelo espectador ou religioso, após o
objeto ser construído. Durante sua produção o objeto
pode criar expectativas e alimentar a energia que irá
fortalecer a criação de sua aura, mas somente depois,
na presença do observador, essa aura toma existência.
Claro que o objeto em si já carrega um poder, mas
com a complementação do olhar do outro é que a aura
se instala. E esse poder áureo pode ser transpassado
tanto para o artista, quando pensamos numa obra
de arte, como para um sumo religioso, se pensarmos
em objetos ditos sagrados. E esse é o ponto principal
do aspecto político da aura para Boal, pois, com a
possibilidade de ela se expandir para o artista ou o
religioso, uma relação de poder se inicia.
A Aura da Multiplicação
Flavio Sanctum, Curinga do CTO, pedagogo, diretor teatral, escritor e mestrando em Ciência da Arte pela UFF.
No livro A Estética do Oprimido, Augusto Boal nos leva a uma viagem literária por
aspectos políticos, artísticos, filosóficos e até científicos. Destaco aqui sua abordagem
sobre a transformação social da arte através dos tempos, a partir de um ensaio¹ de
Walter Benjamin, no qual o filósofo alemão fala do fim da Aura na obra de arte.
Para Benjamin, alguns objetos e obras de arte possuem um halo, uma aura que é
criada a partir de sua produção ou do magnetismo que o observador lhe imprime. Vários
elementos são necessários para que essa aura exista: pode ser a ligação de algum objeto
ou obra artística com a religiosidade, tradição, mitos e mistérios, ou mesmo alguma
particularidade em torno do artista que a produziu. E Benjamin conceitua aura como
“uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única
de uma coisa distante, por mais perto que esteja.” (Benjamin, 1985, p. 170)
Boal discorre sobre o pensamento benjaminiano dizendo que, no período das pinturas rupestres, a arte tinha uma função ritualística ou utilitária, estando a serviço
da religiosidade ou das ações cotidianas, como estratégias de caça e combates. Os
homens das cavernas desenhavam animais em suas paredes para poder estudá-los e
depois capturá-los. Os deuses eram esculpidos ou estavam representados na natureza
a fim de serem adorados. Nesse período, e se estendendo para muitos anos depois, a
arte tinha uma função ritualística ligada ora à religiosidade, ora às necessidades diárias
de sobrevivência.
72
M E TA X I S
A substância da aura é o Saber e o Mistério.
Ela se densifica como o acúmulo de tradições,
histórias, conhecimentos e experiências vividas,
que são o Saber; com mitos, esperanças, lendas,
delírios e alucinações, que são o Mistério. O
sacerdote, ao guardar (esconder) o objeto,
apropria-se dos poderes mágicos, místicos e
rituais de que a coisa, objeto de adoração, é
possuidora. [...] Nos rituais da igreja católica,
os sacerdotes escondiam o significado de suas
missas em latim. A democratização da fé operada pelo Concílio Vaticano II, ao permitir que as
missas fossem celebradas em línguas locais dos
fiéis, deu volta atrás com o recente papa Bento
XVI que, se não obrigou, ao menos permitiu
que outra vez fosse usado latim diante dos
fiéis, intimidados por essa língua, hoje solene.
[...] Latim tem aura; vernáculo é chão. Latim é
aura das palavras incompreensíveis pelo vulgo
ao qual, hipnoticamente, são destinadas. O
uso de uma língua estranha aumenta a aura e
esconde significados. [...] Aura é arma. (Boal,
2009, p. 44)
Então, para Boal, um dos perigos da aura é a utilização do poder político e antidemocrático que ela pode
causar, através das religiões, que tratam os indivíduos
como ovelhas acompanhando um rebanho guiado por
pastores. A suposta sabedoria fica nas mãos de poucos
Método
escolhidos, enquanto a maioria precisa seguir sem
questionar os dogmas divinos, a vontade de Deus.
No campo artístico, esse tipo de tomada de poder
acontece através de construções comerciais da arte,
que nos fazem consumir o que a indústria cultural
define como melhor. Revistas, filmes, jornais e músicas são criados com fins lucrativos e com qualidade
artística construída, validada, mesmo que a mesma
não exista:
“Auras, nestes tempos neoliberais, têm sido
comercialmente construídas pela mídia como
forma de acrescentar valor – dinheiro e fama –
a certas obras que nem sempre o têm.” (Boal,
2009, p. 45)
Com a possibilidade de reprodução técnica e em
série das obras de arte, Benjamin considera que a aura
desapareça, fazendo com que as obras percam sua autenticidade ou valor de culto. Fenômenos tecnológicos
fazem com que cinema, fotografia e música possam
ser reproduzidos em muitas cópias, perdendo-se, dessa
forma, um original autêntico. Todas as cópias de um
filme são o filme. Como diferenciar uma foto original
de sua cópia reproduzida com os mesmos padrões
técnicos de qualidade?
Para Benjamin, a função ritual da arte se esvanece,
pois não está mais ligada a sua origem ou tradição,
pois através dessa reprodução de obras e objetos a
aura se perde. Nesse processo de multiplicar o produto
artístico, quanto mais pessoas entram em contato com
determinada obra, mais lucro ela garante aos seus
criadores e maior é a sua interferência no tecido social.
Ao mesmo tempo em que a autenticidade da arte, antes preservada, não está mais em voga, a reprodução
desenfreada de determinadas obras artísticas, deixam
a sociedade mais alienada e antiprodutiva.
O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse
processo é sintomático, e sua significação vai
muito além da esfera da arte. Generalizando,
podemos dizer que a técnica da reprodução
destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica
a reprodução, substitui a existência única da
M E TA X I S
73
Método
obra por uma existência serial. (Benjamin,
1985, p. 168)
Boal complementa Benjamin refletindo sobre uma
esfera contemporânea:
Não só as obras são cobertas com auras mediáticas, mas os próprios artistas, através dos
meios de comunicação de massa – quanto mais
valorizados por esses meios, maior a aura que
os envolve. Tudo tem preço – arte e artistas.
Tudo tem seu momento e lugar: auras religiosas, esportivas, comerciais... e auras dos novos
tempos. (Boal, 2009, p. 46)
O que ocorre não é a democratização da arte,
como desejava Benjamin, mas, sim, a massificação
das obras de arte, que se transformam em mercadorias de consumo. O espectador vira consumidor e a
obra mercadoria.
Walter Benjamin assumia uma posição otimista, pois considerava que a sociedade industrial
levara à reprodução das obras de arte (livro,
artes gráficas, fotografia, rádio e cinema) e
que isso permitiria à maioria das pessoas o
acesso a criações que, até então, apenas uns
poucos podiam conhecer e fruir. Em outras
palavras, Benjamin esperava que a reprodução técnica das obras de arte promovesse a
democratização da cultura e das artes. (Chauí,
2009, p. 290)
No meu texto “Indústria Cultural – Monopólio
Estético”, publicado na Metaxis 06, digo que essa
reprodução da arte não oportuniza que mais pessoas
possam fruir ou produzir arte, mas, sim, massifica e
monopoliza essa produção. O fim da aura nas obras
de arte, verificada por Benjamin, nos revela um movimento diferente ao qual o pensador alemão aludiu.
Em vez de proporcionar uma maior democratização
da arte, abrindo espaço para novos artistas, novas
formas de representação estética e maior fruição de
diferentes públicos, a reprodutibilidade técnica da
arte nos encaminha para uma massificação cultural. Arte produzida para massas, sem autenticidade,
produzida em série, com interesses econômicos e sem
74
M E TA X I S
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
respeito à individualidade do espectador.
O que Boal sugere é a multiplicação de artistas.
Que cada indivíduo reencontre sua sonoridade interna, seu ritmo, o timbre de seu coração, de seus
órgãos, de seu corpo. Para criar ritmos e música. Não
apenas copiar o que lhe é arremessado como arte,
mas poder descobrir. Que domine a linguagem das
imagens para entender o mundo a seu redor e tirar
proveito dele. A utilização da linguagem imagética
nas práticas do Teatro do Oprimido tem o objetivo
de facilitar a abstração e a criação de metáforas da
realidade, para uma reflexão dessa mesma realidade
e sua transformação. Que utilize a Palavra, uma das
maiores criações do ser humano, para se expressar,
ampliar sua comunicação e organizar o mundo através de conceitos.
Som, Imagem e Palavra: pilares estéticos dos quais
devemos nos reapropriar.
Através da Estética do Oprimido, Boal oferece
ferramentas para que o indivíduo possa revisitar suas
potências artísticas e conscientemente tenha capacidade de compartilhar o que descobriu com outras
pessoas. Não se trata de reprodução de artistas, cada
um tem sua individualidade, sua unicidade. Trata-se
da multiplicação dos artistas natos, do artista que
cada ser humano é, buscando não uma arte massificada e reproduzida em série, mas o novo, o belo,
em consonância com a vivência e a experiência de
cada oprimido e oprimida. Cada qual com sua aura,
individual, mas também coletiva. Uma aura solidária
baseada na Ética. ◘
Essa moderna aura não é misteriosa. É saber
sem mistério. É aura da verdade descoberta,
não do segredo escondido. Aura do futuro, não
só do passado revoluto. (Boal, 2009, p. 47)
Referências:
1-BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política. São
Paulo:Ed. Brasiliense, 1985.
2-BOAL, A. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro:Editora
Garamond, 2009.
3-CHAUÍ, M. Convite a Filosofia. São Paulo:Ática, 2009.
Notas:
1 A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica (1985)
Método
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
UM TEATRO
SUBJUNTIVO
“A dor deste ser me transtorna. Pois, contudo,
poderia haver uma saída para ele.”
(Bertold Brecht)
“Vários outros mundos são possíveis.”
(Augusto Boal)
Julian Boal, integra o GTO-Paris, foi assistente de Augusto Boal
por muitos anos e hoje atua internacionalmente.
Ao fazer teatro, os oprimidos recuperam intelectual e fisicamente a possibilidade que lhes é
negada de produzirem suas próprias representações. Escapam, pelo menos em parte, da identidade
imposta pelo outro, o opressor. É uma recuperação
e, também, necessariamente, uma pesquisa, uma
investigação. A construção de uma representação
própria passa necessariamente pelo desencadeamento de uma crise das representações dominantes.
É inevitável lutar contra “a invasão dos cérebros”,
descrita por Augusto Boal em A Estética do Oprimido. Essa preocupação em não mais delegar nada
a especialistas, em fazer com que um saber marginalizado venha à tona, é a mesma que tem Foucault
por ocasião das ‘investigações-intolerâncias’ promovidas por ele dentro do Grupo de Informação
sobre as Prisões, do qual é um dos fundadores:
Essas investigações não são feitas de fora,
por um grupo de técnicos: os investigadores,
aqui, são os próprios investigados. Cabe a eles
tomar a palavra, derrubar os muros, formular o intolerável, e deixar de tolerá-lo. Cabe a
eles se encarregar da luta que impedirá que a
opressão se exerça.¹
A possibilidade de todos fazermos teatro só é realizável porque já fazemos teatro, ou ao menos uma
forma, a que meu pai chamava teatro essencial:
Mas o que é o teatro? No sentido mais arcaico
do termo, o teatro é a capacidade que têm os
seres humanos – e não os animais! – de observar
a si-mesmos em ação. Os humanos são capazes
de se ver no ato de ver, de pensar suas emoções,
de se deixar emocionar por seus pensamentos.
Podem se ver aqui e se imaginar lá; se ver como
são hoje e imaginar como serão amanhã [...]
Todos os seres humanos são atores (agem!) e
espectadores (observam!). Todos nós somos
espect-atores.²
Essa não adesão de si a si-mesmo, às vezes, significa uma capacidade outra que não a de fazer teatro:
a capacidade de pensar. Essa dicotomia entre ator e
espectador nos convida a pensar outras dicotomias: a
falha entre o que fazemos e o que somos ou podemos
nos tornar; uma falha entre as pessoas e os papéis
que representam, as funções que executam, os papéis
que preenchem. Dizer que cada um é teatro significa
dizer que podemos todos escapar de nós-mesmos e dos
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Método
lugares que supostamente devemos ocupar. Logo, é
coerente que o teatro, como prática da representação
imaginada por Augusto Boal, seja solidário a esse
teatro – capacidade propriamente humana de se ver
em ação – no qual ele apostava.
Formas teatrais não podem fornecer uma imagem
estática do mundo, trata-se de um processo infinitamente aberto:
O que deveria ser eliminado no teatro, que é
uma fixação de uma imagem da sociedade, é
esta tendência ao imobilismo, do “é assim que as
coisas são”. No Teatro do Oprimido, é necessário
mostrar que as coisas não são, elas estão sendo.
Nada é, tudo está sendo. E para isto, quanto
mais dúvidas e incertezas forem criadas, mais
alternativas, potencialmente, teremos”.³
As formas de teatro criadas por Augusto Boal são
as de um teatro integralmente voltado para a exploração minuciosa do real, no intuito de extrair daí todas
as possibilidades negadas pela ordem dominante, de
um teatro “subjuntivo”.4 Teatro que não é aquele da
certeza ditada pelo indicativo, mas que pode abrir
campos em que hipóteses, opiniões, fatos irreais –
considerados ou imaginados – podem se expressar.
Quando Augusto Boal declara, em entrevistas e textos, que o que devemos sobretudo deplorar, no atual
estado das coisas, é a espoliação dos oprimidos de sua
capacidade de criar metáforas, ele não está falando
enquanto artista preocupado apenas em partilhar com
as massas as alegrias da criação. Pelo contrário, está
apostando no fato de que, só quando os oprimidos
puderem imaginar alternativas possíveis (imaginação
que não é apenas um exercício do espírito, mas que
exige ações absolutamente concretas), eles poderão se
opor a seus opressores. Se este mundo é incapaz de
ser interpretado, então é impossível mudá-lo. Se, ao
inventar o acrônimo TINA – There Is No Alternative
–, Margareth Thatcher estivesse de fato com razão,
não haveria neste mundo lugar para o Teatro do
Oprimido.
Confesso que, muitas vezes, subestimei a coerência
contínua do pensamento de meu pai, que definiu o
Teatro-Fórum, nos anos 1970, como uma análise
concreta da situação concreta5 para, 30 anos depois,
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Teatro do Oprimido na Saúde Mental
maravilhar-se diante de uma integrante de grupo popular que, após uma representação de Teatro-Fórum,
se pôs a chorar frente ao espelho por se ver, pela primeira vez, como mulher – quando antes só conseguia
se enxergar como empregada doméstica. É sempre a
mesma recusa obstinada da ditadura do real como
sendo o único real possível; sempre aquela vontade
de fraturar a aparência inquebrantável do cotidiano.
É buscar no presente todas as possibilidades, abandonadas pelos oprimidos ou negadas pelos opressores,
para considerá-las como sendo momentos suscetíveis
de desencadear rupturas.
O Teatro do Oprimido é um teatro da esperança,
que vê no presente não a repetição eterna de um tempo “homogêneo e vazio”, mas um momento em que
contradições se imbricam e, com suas dinâmicas, nos
deixam entrever possíveis vitórias contra opressões.
Tentativa de nos libertarmos, pelo teatro, da ideia
de que só há um mundo possível, para estudarmos a
existência de possibilidades paralelas. Teatro experimental no sentido atribuído por Brecht, “não é o caso
de algumas experiências formais, mas da necessidade
de fazer com que se conceba, pelo teatro, a vida social
em sua totalidade como uma experiência”. Brecht,
cujas teorias e práticas constituíram fonte de inspiração
para Augusto Boal:
...o prazer para os homens consiste em deixar
de aceitar sem outra forma de processo o
mundo que os rodeia [..]; consiste em brincar
com ele, fazer experiências com ele, ou seja:
executar sobre ele transformações que pareçam favoráveis. É por isto que o público, em
face deste espetáculo, começa a completar a
representação imaginando outras modalidades
de comportamento e outras situações, antes de
opô-las, seguindo o desenrolar da ação, àqueles
e àquelas aos quais o teatro dá prioridade. Assim, o público se converte em narrador.6
Talvez pelo fato de Augusto Boal ter o espírito de
um dialeticista, por demais consciente dos processos
que transformam incessantemente o mundo, ele jamais
tenha desejado elaborar uma definição globalizante
do Oprimido, do Opressor ou da Opressão. Não encontramos em seus livros nenhuma descrição lapidar
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
desses termos, aos quais no entanto sempre se refere.
Nenhum “retrato por inteiro”, mas pinturas feitas por
toques sucessivos em seus escritos. Às vezes, curtos
trechos nos lembram que, se for absolutamente necessário nos atermos a essas palavras, elas não poderão
ser reduzidas a uma visão maniqueísta do mundo.
Um trabalhador oprimido pela exploração capitalista
também pode ser um marido opressor que bate na
mulher. Os oprimidos não são os portadores de uma
verdade: “a cabeça dos oprimidos já é tão inundada
por pensamentos que não lhes pertencem”;7 tampouco
são heróis positivos sem falhas, “todo oprimido é um
subversivo submisso”.8
Os próprios opressores se dividem entre aqueles que
têm coroas sobre suas cabeças e aqueles que não têm
nada a ganhar no exercício de sua opressão.9 Dizer
que existem oprimidos e opressores não é, como se costuma dizer com muita frequência, uma simplificação
do mundo. Pelo contrário, significa problematizá-lo,
ir além de uma simples moral que oporia seres bons a
seres que possuem uma essência maligna. É aceitar que
as identidades não são fixas, mas que estão em constante movimento, pois “o oprimido não se define em
relação a si-próprio, mas em relação a seu opressor”.10
Uma única coisa continua certa: “Se a Opressão existe,
é preciso acabar com ela!”11
E para acabar com ela, o teatro sozinho não será
suficiente. Pode se tornar um instrumento poderoso
para contestar a ordem estabelecida, por ser o lugar
onde os oprimidos criam suas próprias representações
do mundo e, ao fazê-lo, se desvencilham da identidade
que lhes é atribuída: a de serem incapazes de representar. Mas essa força não basta, a representação da
greve importa menos que a greve em si: “O teatro
não é superior à ação. É uma fase preliminar. Ele não
pode substituí-la. A greve trará mais ensinamentos”.12
O ensinamento que um Teatro-Fórum produz é importante, mas aquele que a experiência real de uma
luta oferece é ainda mais. O teatro deve resultar em
uma ação concreta, o ator em cena deve se tornar um
ativista nas ruas, é o jeito de criar plenamente este
teatro – que não se contenta mais com uma interpretação do mundo, mas contribui efetivamente para sua
transformação.
Os livros de Augusto Boal, também sua experiência,
se propagaram mundo afora. Existem grupos de Teatro do Oprimido em dezenas de países. Alguns deles
Método
reduziram o Teatro do Oprimido a um conjunto de
técnicas; outros souberam se inspirar nos textos para
fundar experiências absolutamente apaixonantes.
Quando vivo, Augusto Boal já alertava para que as
traições imperdoáveis não fossem confundidas com
as heresias criativas. Manter a fidelidade a Augusto
Boal não significa preservar uma pureza, evitar máculas. É pensar que as propostas formuladas por ele
continuam globalmente válidas para nos ajudar a
entender o mundo e a transformá-lo; que ignorá-las
nos levaria indubitavelmente ao abandono de qualquer
perspectiva de mudança concreta da nossa realidade.
A qual critério poderíamos nos fixar para julgar nossa
fidelidade? Talvez possamos encontrar uma resposta
nas primeiras linhas do primeiro livro escrito por meu
pai, Categorias de teatro popular:
As elites consideram que o teatro não pode e
nem deve ser popular. Contrariamente a isto,
nós pensamos que não é somente o teatro que
pode ser popular; o resto todo também deve
se tornar popular: em particular o Poder e o
Estado, os alimentos, as fábricas, as praias, as
universidades, a vida.13
Talvez seja neste ponto que se encontre o caráter
essencial capaz de fazer com que saibamos se estamos
ou não fazendo Teatro do Oprimido. Além das formas,
das representações, dos contextos e das conjunturas:
buscar, sempre, fazer com que a recuperação do palco
por todos se articule com a recuperação por todos do
mundo. ◘
Notas:
1-FOUCAULT, M. Dits et Écrits. Paris:Gallimard, 2001. p.364.
2-BOAL, A. Jeux pour Acteurs et Non-acteurs. Paris:La Découverte, 2004. p.16-21.
3-Idem, p.40.
4-Idem, p.10.
5-A análise concreta da situação concreta é uma citação que Augusto Boal tomou de empréstimo a Lênin para definir o que é um
Teatro-Fórum.
6-BRECHT, B. Théâtre Épique, Théâtre Dialectique. Paris:L’arche,
1999. p.184.
7-BOAL, A. Lê Théâtre de l’Opprimé, outil d’émancipation. In:
Théâtre et développement. Liège :Colophon.
8- _____. L’arc en Ciel du Désir, Op.cit., p.49.
9- _____. Estética do Oprimido. Rio de Janeiro:Garamond, 2010.
10- _____. Jeux pour Acteurs et Non-acteurs, Op.cit., p. 293.
11-_____. Jeux pour Acteurs et Non-acteurs, Op. cit., p.25.
12-_____. Lê Théâtre de l’Opprimé, Op.cit., p. 186.
13-_____. Categorias de teatro popular. Buenos Aires:Ediciones
CEPE, 1972. p.9.
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Estética
imagem
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Estética
é linguagem
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Glossário
Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Projeto desenvolvido pelo CTO para capacitação de trabalhadores da Saúde Mental
como Multiplicadores do Teatro do Oprimido. O TO é utilizado como instrumento
lúdico, político e pedagógico para que trabalhadores da saúde, usuários e seus
familiares possam discutir a temática da loucura e do próprio sistema de saúde nas
unidades, criando alternativas para democratizar e humanizar o tratamento em
Saúde Mental no Brasil.
Saúde mental
A Organização Mundial de Saúde afirma que não existe definição "oficial" de Saúde
Mental. Diferenças culturais, julgamentos subjetivos e teorias relacionadas concorrentes afetam o modo como a "saúde mental" é definida.
Saúde mental é um termo usado para descrever o nível de qualidade de vida cognitiva
ou emocional. A saúde mental pode incluir a capacidade de um indivíduo apreciar a
vida e procurar um equilíbrio entre as atividades e os esforços para atingir a resiliência
psicológica. Admite-se, entretanto, que o conceito de saúde mental é mais amplo
que a ausência de transtornos mentais.
Fonte:http://www.saude.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.
php?conteudo=1059.
Reforma Psiquiátrica
É a ampla mudança do atendimento público em Saúde Mental que garante o acesso
da população aos serviços e o respeito a seus direitos e liberdade. É amparada pela lei
10.216/2001, conquista de uma luta social que durou 12 anos. Ela significa a mudança
do modelo de tratamento: no lugar do isolamento, o convívio com a família e a comunidade. O atendimento é feito em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Residências
Terapêuticas, Ambulatórios, Hospitais Gerais, Centros de Convivência. As internações,
quando necessárias, são feitas em hospitais gerais ou nos CAPS/24 horas. Os hospitais
psiquiátricos de grande porte vão sendo progressivamente substituídos.
Fonte: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=33929.
CAPS
Centros de Atenção Psicossocial são serviços de Saúde Mental destinados a prestar
atenção diária a pessoas com transtornos mentais severos e persistentes. São compostos por equipes multiprofissionais, com a presença obrigatória de psiquiatra,
enfermeiro, psicólogo e assistente social, aos quais se somam outros profissionais
do campo da saúde. A estrutura física deve ser compatível com o acolhimento, o
desenvolvimento de atividades coletivas e individuais, a realização de oficinas de
reabilitação e outras atividades necessárias a cada caso em particular.
Fonte: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.
cfm?idtxt=33882.
Centros de Convivência e Cooperativa
São unidades de saúde não assistenciais que têm como objetivo promover a reinserção
social e a integração no mercado de trabalho de pessoas que apresentam transtornos
mentais, pessoas com deficiência física, idosos, crianças e adolescentes em situação
de risco social e pessoal. As ações ocorrem por meio de atividades diversificadas –
como oficina de arte, música, esporte, marcenaria e costura – e são desenvolvidas,
preferencialmente, em espaços públicos.
Fonte:http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/pessoa_com_deficiencia/programas_e_servicos/saude/index.php?p=12458.
UBS
Unidade Básica de Saúde/Unidades de Atenção à Saúde/Unidades de Saúde da
Família. Realizam atendimentos voltados para a atenção primária à saúde: Clínica
Geral, Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia, Odontologia, Psicologia, Serviço Social
e Enfermagem. Programas de saúde: puericultura, criança e adolescente, doenças
respiratórias na infância, adulto e idoso, hipertensão arterial, diabetes, esquistossomose, prevenção do câncer, climatério (pré-natal), saúde do escolar, planejamento
familiar.
Fonte: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/sus_3edicao_completo.
pdf.
CAPS AD
Serviços para pessoas com problemas pelo uso de álcool ou outras drogas, geralmente
disponíveis em cidades de médio porte. Funcionamento diurno.
Fonte: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.
cfm?idtxt=33882.
Usuário
Pacientes, pessoas atendidas pelo Sistema Único de Saúde.
Fonte: http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/SM_Sus.pdf.
Homenagem ao contador de piadas...
Baluarte do Pirei na Cenna, Enéas Lúcio começou no Grupo em 1997
e participou de 7 produções do grupo. Antes, trabalhou em farmácia,
marcenaria e no almoxarifado do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba. Sua
habilidade permitia que fizesse objetos com maços de cigarro e latas de
óleo. Porém, seu maior hobby era contar piadas. A cada ensaio, a cada encontro, a cada apresentação tinha uma piada para contar. Quem visitava
o grupo não saía sem antes ouvir uma anedota de Enéas. Seu repertório
parecia interminável, às vezes tinha até algumas engraçadas!
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