Teatro do Oprimido na Saúde Mental
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Teatro do Oprimido na Saúde Mental
Teatro do Oprimido na Saúde Mental R i o d e J a n e i r o | B r a s i l | 2 010 Diretor Presidente Jean Maciel Xavier Vice-Presidente Marilene de souza Av. Men de Sá, 31 - Lapa - Rio de Janeiro - RJ CEP: 20.230-150 - BRASIL Telefax: 55 21 2232-5826 - 2215-0503 www.cto.org.br Desde 2006 Pólo Litoral SP Multiplicadores: Adalgiza Luz, Érica Santos Pontes, Fabrício Gobetti Leonardi, Izilda Lourenço Rosa e Lucia Frigério Paulo. Coordenação Municipal de Saúde Mental de Santos: Sandra Murat Pólo Guarulhos Multiplicadores: Gilmara Azenha, Maria Regina Stefanini Araújo, Mirian de Fátima Chinen, Rosemeire de Almeida. Coordenação Municipal de Saúde Mental de Guarulhos: Eva Santos PROJETO TEATRO DO OPRIMIDO NA SAÚDE MENTAL Direção Artística Augusto Boal (in memorium) e Helen Sarapeck Coordenação Geral Geo Britto Curingas Alessandro Conceição, Claudia Simone, Monique Rodrigues, Kelly DiBertolli e Yara Toscano Produção Cultural Licia Rosa e Raul Araújo Profissional de Imagem Cachalote Mattos Profissional de Som Roni Valk Assessoria de Comunicação Ney Motta Projeto Gráfico Alexandre de Castro Criação da Logomarca Paulo Rodrigues Desenho Original da logomarca Samy Ferreira Profissional de Vídeo Alexandre Gwaz e Bastien Viltart Colaboração Bárbara Santos, Claudete Felix, Flavio Sanctum, Claudia Simone , Graça Silva e Olivar Bendelak Coordenação Editorial Bárbara Santos Conselho Editorial Geo Britto e Helen Sarapeck Colaboradores Alessandro Conceição, Claudia Simone, Monique Rodrigues, Ney Motta e Olivar Bendelak Projeto Gráfico e Edição de Arte Alexandre de Castro Revisão Português Selma Monteiro Correia Revisão Espanhol Lorena Pastor Rubio Tradução Espanhol/Português Martha Moreira Lima Tradução Inglês/Português Kátia Meiras de Vasconcelos Fotos Anik Pólo, Carola Pagani, Bárbara Santos, Bastien Viltart, Christoph Leucht, Flavio Sanctum, Geo Britto, Helen Sarapeck, Íris Oliver , María Laura Corvalan, Naldo Lourenço, Noélia Albuquerque, Andrea Mendes e arquivos: CTO, GTO-Santo André e Metoca Impressão Master Print Gráfica e Editora Pólo Rio de Janeiro Multiplicadores: Ana Paula Rosa, Andréa Midore Puchol Kono, Julio César da Silva Alves Pereira, Nelson Falcão de U. Cruz. Coordenação Municipal de Saúde Mental de Macaé: Maria Luiza Pólo Sergipe Coordenação Municipal de Saúde Mental de Aracaju/Multiplicadores: Camille Arruda, Kátia Maria Menezes de Aragão, Silvia Maria Góis, Wagner Mendonça de Moraes, Claudine Aguiar e Joelma dos Santos Apoio local: Tarcisio Santos Municípios Beneficiados: RJ: Belford Roxo, Campos, Caxias, Macaé, Niterói, Paulo de Frontin, Queimados e Rio de Janeiro; SP: Cubatão, Guarujá, Guarulhos, Itanhaém , Praia Grande, Santos, São Paulo, São Vicente; SE: Aracaju, Barra dos Coqueiros, Itaporanga, Itabaianinha, Nossa Senhora das Dores e Poço Verde. Parcerias: Prefeituras: RJ – Macaé e Niterói; Sergipe – Aracaju, Itabaianinha, Barra dos Coqueiros; São Paulo – Guarulhos, Santos, Guarujá, Praia Grande e Governo do Estado de Sergipe. Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministro da Saúde José Gomes Temporão Coordenação Nacional Saúde Mental Pedro Gabriel Delgado Equipe: Karime Fonseca, Francisco Cordeiro, Tania Grigolo, Cristina Hoffman, Ana Ferraz, Tania Kolker, Mayara Santos, Karine Cruz, Taciane Monteiro, Milena Pacheco, Rubia Persequini, June Scafuto, Márcia Totugui, Miriam Di Giovanni, Karine Cruz, Marcelo Kimati, Giselle Sodré, Kelly Costa e Silva, Renata Weber, Cleide Souza, Sâmara Rodrigues e Ana Carla Mello SER & NÃO SER Editorial CENTRO DE TEATRO DO OPRIMIDO Bárbara Santos, editora da revista Metaxis e Curinga Internacional do CTO. Vivemos o presente. Lembramos o passado. Imaginamos o futuro. Parece simples, óbvio e estruturado. Mas, às vezes, esquecemos o passado. O vivido é apagado da memória. Com um passado esquecido, é possível significar o presente? No sentido inverso, pode acontecer que determinadas experiências de vida transformem o passado em um eterno presente. E, se o presente parece não sair do passado, seria ainda possível imaginar o futuro? E nos casos em que a conexão com o presente parece destroçada, seria possível relacionar o passado da memória com o futuro da imaginação? A relação que temos com o tempo é construída a partir de experiências práticas e condições objetivas. Violência, pobreza, abuso, solidão, falta de perspectivas... O mundo objetivo, internalizado, torna-se subjetividade. Além disso, tempo é convenção social. Convencionamos viver num tempo simultâneo: o lugar social de SER. Temos que viver o mesmo hoje, estar no mesmo agora para nos sentirmos e sermos considerados normais. Entretanto, nesse agora convencionado, muitas pessoas vivem outros tempos. Outros “agora” não reconhecidos. Pessoas que, simultaneamente, se relacionam com interlocutores presentes e com (as vozes de) interlocutores não presentes, de um outro tempo/espaço. Estes últimos são irreais para o (tempo convencionado) agora, mas são reais nesse outro tempo/espaço, lugar fora do controle social, lugar de NÃO SER. Tempos, relações e espaços não convencionados, não reconhecidos, não aceitos. Sujeitos que transitam entre Ser e Não Ser, desorganizando normas, são considerados loucos e incapazes e, como tais, alijados de seus direitos. O Centro de Teatro do Oprimido começou a atuar na Saúde Mental em 1994, no Rio de Janeiro, na Casa das Palmeiras, da Dra. Nise da Silveira, no Hospital Psiquiátrico Dom Pedro II, com o grupo “As Princesas de Dom Pedro”, e depois no Hospital Psiquiátrico Jurujuba, com o grupo “Pirei na Cenna”. Experiências que levaram Augusto Boal e os/as Curingas do CTO a investigar se e como as formas delirantes da arte (delírio artístico), poderiam ajudar a entender e a dialogar com delírios patológicos. E se, também nesse contexto, a experiência estética seria motor de transformação da realidade. Entre 2004 e 2010, essa pesquisa foi aprofundada graças ao compromisso de Multiplicadores que incorporaram o TO à atuação profissional, provocando mudanças efetivas junto com usuários, familiares e outros profissionais. Esta Metaxis apresenta experiências de utilização do Teatro do Oprimido na Saúde Mental, no Brasil e no mundo, com resultados terapêuticos, sociais, institucionais e políticos, a partir de encontros criativos entre Ser e Não Ser. Notas: 1 Grupo em atividade. 2 Em outras palavras, se os delírios da atividade artística, exercício saudável de criatividade, poderiam ajudar na relação com os delírios patológicos, expressão de doença mental. Primeiras Palavras Teatro do Oprimido na Saúde Mental 5 Primeiras Palavras 15 Brasil Adentro 34 Mundo Afora 48 Ações Concretas 54 Ponto de Vista 64 Canal Aberto 69 Método 78 Estética 80 Glossário Delírio! Delírio! Delírio! Pinto sons, escrevo cores, declamo esculturas! Do lixo, palavras, questionamentos, pedagogia Possibilidade de sentir tudo que se toca De ver tudo que se olha e estimular todos os sentidos Sinto minha voz, ouço meu corpo, vejo minha mente Minha visão de “raios X” Atravessa preconceitos, visualiza transformação Minhas “pernas elásticas” Ultrapassam barreiras, diminuem distâncias Sociabilizo minhas descobertas E, nas dos outros, percebo que o mundo sabe mais que o indivíduo De qual mundo falo com meus Neurônios estéticos? Do “mundo adentro” ou do “mundo afora”? Caminho “mundo adentro”, percebo “mundo afora” Delírio! Delírio! Delírio! Delírio Estético que produz Arte Que cuida e recria o sujeito Pra doença mental: Médicos! Pra saúde mental: Estética! Estética do pobre, do louco, das mulheres, do preso Das Crianças, do ser humano negro Liberdade de ser sujeito, verbo e não apenas adjetivo De ser presente na ação do coletivo Em São Paulo, pergunto ao usuário: - E o Curinga, quem é? Ele sem duvidar: - Um safado! Quer matar o Batman, meu herói amado! Delírio! Delírio! Delírio! Cachalote Mattos, cenógrafo profissional e consultor de imagem do CTO. M E TA X I S 5 Primeiras Palavras Teatro do Oprimido na Saúde Mental Teatro do Oprimido em Eaubonne Cecília Boal, psicanalista. Foi em Eaubonne (Água Boa), localidade próxima a Paris, que uma colega e eu, finalmente, conseguimos convencer o diretor do hospital psiquiátrico a aceitar uma oficina de teatro com os pacientes. Nossa prévia e longa peregrinação nos permitia constatar o quanto o teatro provocava resistência e medo no meio psiquiátrico francês. O espaço teatral estava simbolicamente representado com nossa chegada. Trabalhávamos duas vezes por semana, durante três horas, com cerca de vinte participantes, entre dezoito e trinta e cinco anos. O atelilê respondia ao desejo de investigar, particularmente com os pacientes psicóticos, as relações existentes entre criação teatral e processo terapêutico. Sabemos que o ato teatral pode ter, em certas condições, uma função catártica. Como na tragédia grega: libertar os espectadores da “harmathia”, a falha trágica. Sabe-se que, em Epidauro1 , os doentes - e particularmente os doentes mentais - eram levados ao teatro com claro objetivo terapêutico. Em um espaço preparado, num dos lados do recinto, os doentes relatavam seus sonhos antes do espetáculo. Mas qual será o nosso objetivo hoje, quando utilizamos as técnicas teatrais: a catarse ou a elaboração? O teatro tanto pode permitir a simples descarga emocional quanto a elaboração dos conteúdos que se colocam em cena, e é precisamente nesse último aspecto que consiste o seu interesse principal. Através de que meios o teatro permite a elaboração dos conteúdos inconscientes? O ato teatral supõe a criação de uma linguagem e de um sistema de relações sim- 6 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental bólicas no seio de um grupo: ele mobiliza o mundo subterrâneo, colocando em movimento a atividade fantasmática através do corpo e da verbalização, é o seu próprio mundo interno que o ator coloca em cena, dando-lhe forma no espaço e no tempo através da relação com o outro. Nessa perspectiva, podemos afirmar que a criação artística constitui um modo não racional de conhecimento. No espaço teatral, um lugar deve ser deixado em aberto para que algo de mais opaco se manifeste, que poderá ser retomado posteriormente, em outro contexto. O espaço do teatro deve propor outra forma de linguagem que incorpore ritmo, corpo, som. Ali se processa o redescobrimento do corpo como elemento de linguagem, descobre-se também que é possível vivenciar situações, personagens e lugares diferentes da realidade imediata. O teatro propõe um conhecimento da realidade que objetiva transformá-la. Quando propomos a atividade teatral no hospital psiquiátrico, uma questão foi a técnica mais adequada para favorecer uma expressão livre e flexível, posto que não queríamos aprisionar os participantes em um sistema demasiado rígido, como uma “mise en scène” convencional de um texto. Escolhemos as técnicas do Teatro do Oprimido que estavam sendo desenvolvidas na França em oficinas das quais eu mesma participava. Devido a minha formação teatral, priorizamos as improvisações, mesmo conhecendo os riscos que a proposta representava. O jogo teatral² necessita da articulação de dois planos: simbólico e imaginário. Quando um desses planos se encontra comprometido, a capacidade de jogo desaparece. Fazer de conta é diferente de fazer. O plano imaginário vai permitir, no momento do ato teatral, um jogo completo com os significantes. O paciente psiquiatrizado parece carecer dessa possibilidade de fazer jogar os significantes. No nível da linguagem, tudo se apresenta como cristalizado, petrificado, um significante colado a um significado. Como se não houvesse possibilidade de transformação. A criação é aquilo que podemos imaginar a partir dos significantes. Podemos citar o exemplo de Freud, retomado por Lacan: “O gato faz au au, o cachorro miau miau...” O riso se desencadeia a partir do prazer que causa esse jogo possível com os significantes. Primeiras Palavras O teatro também torna possível esse jogo: um roteiro se constrói a partir de fantasias, devaneios, porém, uma vez colocado em cena, permite ao paciente tomar distância com relação à sua própria criação, debilitando a certeza e introduzindo algo da ordem de uma crítica. Por outra parte, na representação teatral existe uma dimensão de presença-ausência, que é permanentemente convocada. Durante as improvisações, os lugares, as pessoas e os objetos que evocamos encontram-se ausentes, sendo apenas representados por um “suporte”: os outros participantes - que aceitam encarnar as personagens - e os objetos reais que tomam o lugar dos imaginários: uma cadeira pode ser um cavalo. Nesta dinâmica de ausência e de presença, que reenvia ao caráter paradoxal de toda atividade teatral, vai-se criar um circuito de representações e simbolizações. O jogo permite a construção de substitutos dos objetos ausentes e a sua apropriação, oferecendo suporte à simbolização da falta. O que será que permite esta “entrada em jogo”, esta aceitação de que “isto é teatro, não é verdade”, este reconhecimento da existência de duas áreas bem diferenciadas, a área do jogo e a da realidade? A atividade teatral está sustentada por um conjunto de normas preestabelecidas sem as quais o jogo deixa de existir. Trata-se de normas rígidas, dentro das quais tudo é permitido. Na improvisação, posso inventar o meu texto, porém não posso abandonar a personagem que me foi atribuída, uma vez que a aceitei. Ela tem um limite no tempo. Quando a improvisação acaba, abandono a minha personagem para tornar a ser eu mesmo. Todo mundo sabe, como sabíamos, quando crianças, quando estávamos “brincando” e quando era “de verdade”. Trata-se de um código antigo, que toma força de ritual. Quando digo: “vou fazer teatro”, instaura-se um silêncio de teatro, um tempo de teatro, um espaço de teatro. O teatro é algo sério, e eu já sei disso quando aceito jogar. Através do jogo, e apesar do que ele tem de lúdico, algo grave acontece comigo, mobiliza as minhas emoções, as minhas lembranças, o meu corpo, por dentro e por fora. Minha boca fica seca, meu coração bate mais forte, posso tremer, ficar assustado, sabendo que me exponho ao olhar do outro. Meu corpo, olhado, se “faliciza”, minha palavra ressoa e é escutada. No entanto, quando, em cena, M E TA X I S 7 Primeiras Palavras eu jogo de verdade, quando não “faço de conta”, é para mim que eu o faço, embora a dimensão do outro nunca esteja ausente. Eu jogo para mim, entro em contato comigo de uma maneira única, feita de prazer e medo, como nas brigas e no amor. O gozo do teatro inscreve-se também em um para além do gozo fálico. No entanto, a rigidez do seu universo codificado permite a manifestação do pulsional sem autorizar o seu transbordamento. O teatro é um convite para o ato, nunca para a passagem ao ato. De fato, é muito raro - quase se poderia afirmar, impossível - que se produza uma passagem ao ato num ensaio teatral ou durante uma sessão de improvisações. Esse primeiro elemento de contenção funciona como barreira contra o gozo ilimitado: os rituais que precedem qualquer encenação. O ato teatral é uma cerimônia. Atores se preparam para a cena, considerando-se “cena” qualquer espaço convencionado de representação; usam acessórios que indiquem mudança de personagem, às vezes também com máscaras ou maquiagem. O segundo elemento de contenção é o grupo. O teatro é, fundamentalmente, uma tarefa que devo realizar com outros. O sucesso da representação requer o concurso de todos, sem o qual esta se desmorona. Essa exigência funciona também como barra de contenção do gozo, liberando o prazer do jogo. No teatro, o imaginário e o pulsional estão rigidamente enquadrados por um universo simbólico, que funciona como garantia para que o meu desejo possa se manifestar. Estas reflexões foram feitas a posteriori da experiência. Eu e minha colega tínhamos tanto medo quanto os psiquiatras que se negaram a nos acolher. Medo de que o teatro convocasse nos pacientes mais “loucura”, um “a mais” para além do que seria possível suportar. Que liberasse demônios de maneira definitiva e descontrolada. No entanto, minha experiência como atriz já tinha me demonstrado que os demônios gostam de teatro e convivem muito bem com as luzes da cena. Qual seria a justificativa desse receio, desse medo de que, com os pacientes psicóticos, fosse diferente? Qual a razão desse preconceito que encontramos em tantos lugares? Nosso ateliê nos ensinou que, no teatro, todo mundo pode se autorizar a ser louco, o que permite um descolamento, uma descristalização 8 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental do paciente desse lugar de cronicidade, que funciona como condenação. O teatro pode-se revelar como instrumento eficaz no tratamento das psicoses na medida em que se oferece como suplência possível para a ausência da metáfora paterna, ausência específica da estrutura psicótica, segundo a tese sustentada por J. Lacan ao longo da sua obra. Essa suplência se realiza através do estimulo à criação, à manifestação do universo interno do participante, de forma estética. O que provoca um duplo prazer: poder se expressar buscando dar a esses conteúdos uma forma que se integre numa produção coletiva destinada a ser apresentada, ou seja, a ser reconhecida pelos outros, oferecendo assim a possibilidade de uma inscrição. O ato teatral cria um elo entre os participantes e, posteriormente, um vínculo com os espectadores que, de alguma maneira, veem ali ser representado o conjunto da sociedade. Vimos como o teatro pode favorecer duas ordens de “descolamentos”, nos planos simbólico e imaginário. No registro do simbólico, estimula a possibilidade de um jogo com os significantes, relativizando a colagem entre significante e significado. Na improvisação, eu sei que sou eu, mas faço de conta que sou um outro. É esse jogo que, a partir do registro do imaginário, vai favorecer um descolamento no simbólico. O teatro instala de imediato o ator no registro da metáfora. No registro do imaginário, o teatro permite introduzir uma distância entre o paciente e a personagem na qual se encontra cristalizado: aquele que não tem jeito, um ser depositado no hospital, talvez para sempre, oferecendo a possibilidade de encarnar outros personagens. O teatro nos permitiu imaginar pacientes levando uma vida possível fora do hospital, na medida em que não pensávamos neles como doentes, pensávamos neles como atores. Durante o tempo do ateliê, tentamos ir ao encontro das pessoas, sem tentar conhecer os diagnósticos sob os quais se encontravam classificadas nos arquivos do hospital. Esta forma de utilização do teatro nos parecia adequada para tentar favorecer a saída dos pacientes do hospital. No entanto, em que medida permitimos à doença se manifestar? Não teríamos, ao contrário, sugerido que ela fosse deixada no vestiário? Dito de outra maneira: o nosso ateliê, que funcionou como se os Teatro do Oprimido na Saúde Mental Primeiras Palavras participantes não fossem pacientes de um hospital, teve o estatuto de uma verdadeira suplência ou de uma mera prótese? Posto que é função do diretor teatral dirigir, o que será que acontece quando o diretor se ausenta, quando o ateliê acaba e os atores se encontram novamente entregues aos seus próprios fantasmas? Essa é uma questão que está no cerne do trabalho com pacientes psicóticos: o estatuto da suplência, a sua eficácia, a real possibilidade da sua existência como tal. Por isso, penso que, se o trabalho teatral é aconselhável num hospital psiquiátrico, ele não deverá ser realizado na ausência de um trabalho em equipe com os terapeutas que se ocupam dos pacientes. O teatro não pode tomar o lugar de outras formas terapêuticas baseadas na palavra, mas, sim, funcionar como elemento que favoreça a emergência de um material a ser retomado e re-trabalhado no contexto de outro tipo de vínculo transferencial, diferente daquele que se manifesta no momento dos ensaios. O ateliê de Eaubonne me permitiu constatar, mais uma vez, a importância do teatro na sua vertente simbólica, para além do caráter eminentemente imaginário que lhe é sempre prioritariamente atribuído. E ainda, com isso, confirmar, através de uma prática concreta, com uma surpresa sempre renovada e uma emoção muito forte, a importância da cerimônia, o poder estruturante dos rituais, posto que neles se encontra inscrita a tentativa de dar resposta às questões mais enigmáticas e urgentes de todos os humanos - questões de vida e morte -, que tentam organizar um sentido para que a existência não seja apenas um mero espelho despedaçado. ◘ Referências: BOAL, A. Teatro do Oprimido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. LACAN, J. Le Séminaire, livre III, Les Psychoses. Paris: Seuil, 1981. ______. Le Séminaire, livre V, Les Formations de l’Inconscient, seminário inédito. Paris 1957-1958. LECLAIRE, S. A la recherche des principes d’une psychothérapie des psicoses. Evolution Psychiatrique, Paris, n. 2, 1956. OURY, J. Thérapeutique institutionnelle. In: Encyclopédie Médico-Chirurgicale, “Psychiatrie”,1972. PANKOW, G. L’homme et sa psychose. Paris: Aubier-Montaigne, 1969. STANISLAVSKI, C. Building a character. New York: Theatre Arts Books, 1949. WINNICOTT, D.W. Jeu et réalité. Paris: Gallimard, 1971. Notas: 1 Epidauro: cidade da Grécia antiga, cujo anfiteatro era um dos maiores de seu tipo e de seu tempo. 2 Neste texto, utilizo as palavras “jogo” e “jogar” no sentido do francês “jeu” e “jouer”, que me parecem mais adequadas que “interpretar” ou “representar”. M E TA X I S 9 Primeiras Palavras Teatro do Oprimido na Saúde Mental Dois Monólogos Tim Wheeler, diretor artístico e cofundador do grupo “Mind The Gap”. No final de 1980, eu trabalhava em um hospital de internação de pacientes psiquiátricos, no sudoeste da Inglaterra. Era uma grande instituição vitoriana situada na zona rural, distante da cidade mais próxima. Estava lá como artista de teatro para trabalhar com um grupo de pacientes. Eu era recém-formado e achava que seria importante que o grupo compartilhasse a compreensão das origens do teatro. Comecei com uma palestra, falei sobre a Grécia antiga: “- No princípio, era o Coro; um grupo de pessoas cantando juntas ao ar livre. Em seguida veio Thespis e separou uma pessoa do Coro. Esta passou a falar e todos os outros a escutar. Naquele momento, o “monólogo” foi inventado. Monólogo é quando uma pessoa fala e as outras ouvem. Será que isso faz sentido?” Eles concordaram. Continuei. “- Em seguida veio Ésquilo, e ele separou outra pessoa do Coro. E ambas começaram a falar independentemente do Coro. Falavam em turnos. Então, como chamamos isso, quando nos revezamos para falar?” Silêncio! Rostos sem expressão. Um homem, um paciente atrás do grupo, levantou a mão com hesitação e disse: “- Dois monólogos?” Todos riram. Imaginei que o homem não havia me entendido. Eu gostaria que ele respondesse “diálogo”. Mas talvez ele tenha levantado uma questão mais profunda. Será que o diálogo realmente existe? Podemos estar em diálogo uns com os outros através do teatro? Passei os últimos 20 anos tentando descobrir. Estima-se que 1 em 4 pessoas no Reino Unido experimentará algum tipo de doença 10 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental mental em algum momento de sua vida. A Organização Mundial de Saúde calcula que há cerca de 450 milhões de pessoas no mundo que têm problema de saúde mental. Praga da solidão e do isolamento da mente ocidental. A saúde mental é uma preocupação global significativa. Minha própria experiência com saúde mental começou quando ainda era criança. Meu pai e dois irmãos passaram um tempo em hospitais psiquiátricos, como pacientes. Desde a adolescência, eu fui um visitante regular dessas alas e participante de sessões de terapias em família. Mais tarde, enquanto eles estavam no Manicômio, fui para a Faculdade de Arte. As drogas eram uma característica em ambas as instituições. Assim também eram a rotina, as atividades disciplinadas, o ambiente de clausura “liminar” separado da vida cotidiana, o estímulo para refletir sobre sua própria experiência, a adaptação do que é considerado socialmente ou esteticamente aceitável e a dificuldade de reintegração. A principal diferença: eu estava lá por escolha; eles, não. O termo “sobrevivente” tem sido usado no setor de saúde mental do Reino Unido para se referir às pessoas que passaram pelo sistema de saúde mental e conseguiram sair e viver para contar. O movimento “Sobreviventes” nasceu de um movimento de antipsiquiatria nos anos 1960. Este se desenvolveu nos movimentos de “crítica” e “liberação” da psicologia de hoje. Os sobreviventes são pessoas que se envolveram com serviços de saúde mental voluntariamente ou, algumas vezes, contra a sua vontade. Claro que, no que tem a ver com saúde mental, as coisas nunca são muito claras. O termo sobrevivente é controverso como também o são os termos Interno, Cliente, Usuário ou, mais comumente, Maluco, Lunático, Doido. O idioma torna-se uma maneira de rotular as pessoas: as que estão no poder – a quem Freud chamava “o bem infeliz” – usam tais termos para definir limites para o que é sensato ou um comportamento razoável. Aqueles subjugados para experiência ou “cura” são marcados pela sociedade. A rotulagem de loucura é um ato ideológico. A loucura é política. Em 1993, o “Mind The Gap” foi contratado pela autoridade em Saúde de Leeds para trabalhar em hospitais-dias psiquiátricos. Trabalhamos com um grupo de oito usuários do centro, durante um Primeiras Palavras mês, para criar algumas cenas de Teatro-Fórum. Uma delas foi sobre uma jovem chamada Stacey. Ela cuidava de sua mãe, que tinha problemas de saúde mental. Vimos Stacey sofrer abuso sexual por parte do padrasto, vimos seu declínio em saúde mental, seu próprio filho ser levado aos cuidados das autoridades locais. A história termina com Stacey preparada para assumir sua própria vida. Esse foi o cenário que mais chamou a atenção dos espectadores. Não porque fosse o mais fácil de resolver. Pelo contrário, houve muitas reviravoltas na cena, que a tornou particularmente difícil para o fórum resolver. Havia algo sobre a história dela que tocava profundamente as pessoas; e elas ficaram frustradas quando não encontramos uma solução. A obra chamou a atenção e provocou uma profunda reflexão dos internos, sobreviventes, psiquiatras e assistentes sociais. As conversas continuaram para além do teatro. Os participantes ficaram entusiasmados com a experiência e a força do Teatro-Fórum. Eles queriam ir mais longe. Alguns decidiram que, em vez de executar um projeto do Serviço Social, eles desejavam formar sua própria companhia de teatro. Foi assim que surgiu o grupo “Um em Quatro”. Esse nome reflete a estatística que mencionei anteriormente. E também tem a ver com um declive gradual, como um sinal de estrada no Reino Unido: uma montanha alta para subir, como Sísifo, que foi condenado a empurrar um rochedo até o alto de uma montanha, de onde o rochedo rolava colina abaixo, e Sísifo tinha de repetir tudo novamente, indefinidamente. Assim como a viagem de Sísifo, é a descida da colina que é mais importante, porque há tempo para refletir, falar e aprender. Os membros do “Um em Quatro” estavam ansiosos para desenvolver a história de Stacey e começaram por desenvolver a personagem da mãe. Nós percebemos que a questão talvez tenha surgido antes de Stacey nascer, como questões não resolvidas podem acompanhar gerações. “Um em Quatro” seguiu levando o fórum através do Reino Unido. Em 1999, o grupo participou de um simpósio internacional de Cultura, Saúde e Arte, onde Augusto Boal fez a palestra principal. “Um em Quatro” segue fazendo teatro, embora não use mais o Teatro-Fórum. A forma médico-psiquiátrica de ler a deficiência e a doença mental tende a promover a ideia de que é o M E TA X I S 11 Primeiras Palavras indivíduo que tem o problema. Loucos ou deficientes mentais teriam adquirido seu distúrbio em virtude de um acidente ou teriam nascido assim. Esse modelo médico tende a ver a deficiência ou a doença mental como uma tragédia pessoal. No Reino Unido, o movimento de sobreviventes defende uma outra perspectiva, um modelo social, no qual se considere as estruturas e o indivíduo na sociedade para que se perceba essas estruturas pobremente projetadas e os serviços prestados como o problema, e não as pessoas. A saúde mental vista através da lente social torna-se uma conseqüência de forças sociais opressivas; uma resposta sã para um mundo louco. As pessoas doentes unem-se em uma campanha contra a segregação forçada e o tratamento abusivo. Esse movimento busca um modelo social de liberação da opressão social. Essa forma está mais sintonizada com os componentes do Teatro do Oprimido. Nos últimos anos surgiu a necessidade de uma terceira forma de pensamento crítico sobre a loucura. Não um modelo como tal, mas uma maneira de pensar que coloca a ideia de cultura e diferença cultural no contexto, junto com outros fatores. Os efeitos dessa nova forma de pensar têm levado as pessoas a se concentrar no significado e no valor da loucura dentro de um contexto cultural, em vez de centrada no aspecto médico ou nas condições sociais que envolvem a pessoa deficiente. Temos visto o crescimento do movimento “Orgulho Louco”, que promove o orgulho da identidade e celebra a contribuição original para o mundo. Essa visão é crucial para as construções médica e social e vê a liberação da opressão como uma etapa necessária em direção à participação cultural. É mais sobre uma questão estética do que um efeito médico ou social; sobre uma experiência compartilhada, paixão e compaixão. Com todo o trabalho do “Mind The Gap” nosso objetivo é fugir de problemas resolvidos com soluções fáceis. Tentamos afastar as pessoas de um triângulo dramático, que coloca a pessoa ou no papel de opressora, ou de oprimida, ou de aliada. Desejamos ajudar as pessoas a descolar-se, a estar em diálogo, sim, mas indo mais longe, para comungar umas com as outras em um nível mais profundo. Isso significa que a maioria dos nossos fóruns envolveu grupos que, no início, tinham perspectivas muito diferentes. 12 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental Às vezes, é um processo difícil, cheio de movimentos ousados e grandes afirmações; em outras ocasiões, é um processo delicado, que necessita de uma negociação sensível. Após alguns fóruns, eu fico com uma sensação desconfortável de que me envolvi com monólogos interligados. Ocasionalmente, tenho vislumbrado momentos de verdadeira mudança. São momentos de verdadeira beleza. Agora eu desejo saber se é possível ir mais longe. Uma vez que estamos em diálogo, é possível ir mais à frente com uma conexão mais profunda, para comungar com outros através do teatro? Não de uma maneira mística, mas, sim, de forma que nossos pensamentos e sentimentos estejam juntos, partilhando a força. ◘ Teatro do Oprimido na Saúde Mental Primeiras Palavras A Política Nacional de Saúde Mental, os CAPS e o Teatro do Oprimido Pedro Gabriel Delgado, coordenador Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde de 2000 a 2010 e Professor de Psiquiatria da UFRJ. Notas: 1-Diretor artístico e cofundador do grupo “Mind The Gap”, com base no Reino Unido. Ele esteve envolvido na prática do Teatro Oprimido por mais de 20 anos. “Mind The Gap” trabalha com a aprendizagem das pessoas com deficiência e internos e sobreviventes do sistema de saúde mental do Reino Unido. Neste artigo, Tim Wheeler reflete sobre o trabalho da companhia e pensa sobre o seu futuro. 2-Instituto Nacional de Estatística (2001). 3-Organização Mundial de Saúde (2001). A Reforma Psiquiátrica Brasileira tem gerado intensos debates sobre o modelo de atenção em saúde mental no país. Nos últimos anos, num contexto de avanços políticos e assistenciais, os desafios se ampliaram e se tornaram ainda mais complexos. As práticas de atenção psicossocial na comunidade estão no centro das preocupações, assim como a ampliação do cuidado para grupos específicos – como crianças, adolescentes e usuários com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas –, os determinantes sociais da saúde e as novas exigências políticas e éticas para um novo modelo de cuidado. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são serviços de saúde mental de base territorial, que têm como missão garantir o acesso e o cuidado em saúde mental na comunidade, tornando-se referência para a população com necessidades de cuidado em saúde mental. Constituem-se em dispositivos estratégicos para a consolidação do modelo comunitário e para a ampliação da responsabilidade pública brasileira na atenção integral da população. O processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira acompanha a tendência mundial e as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e se destaca no continente americano pela reorientação do modelo assistencial, que tem promovido o deslocamento da atenção dos hospitais psiquiátricos para o cuidado comunitário das pessoas com transtornos mentais. A atual política de saúde mental instituiu outros dispositivos comunitários e de M E TA X I S 13 Primeiras Palavras desinstitucionalização além dos CAPS. Dessa forma, constrói uma rede integrada de ofertas de cuidado e não apenas um único lugar para a atenção em saúde mental. Assim, essa rede também é composta por outros dispositivos e ações, como Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), o Programa De Volta pra Casa e o Programa de Reorientação Hospitalar (PRH), que compõem o tripé da estratégia de desinstitucionalização da Política Nacional de Saúde Mental, que visa possibilitar a saída das pessoas com internações de longa duração para a convivência em comunidade e o restabelecimento de seus direitos de cidadania. Esses dispositivos de desinstitucionalização, juntamente com a implantação de leitos em hospitais gerais, os CAPS, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) e o Programa de Saúde da Família (PSF), possibilitam que a atenção em saúde mental se aproxime da população e dos territórios. Essa trajetória, que é de expansão das ações e serviços em saúde mental, nos compromete concomitantemente com a qualificação e efetividade dessas ofertas. A integração dos serviços em uma rede de atenção psicossocial; a articulação com as Equipes de Teatro do Oprimido na Saúde Mental Saúde da Família (ESF); a qualificação e avaliação permanente das ações de saúde mental, bem como o aprofundamento teórico e prático da clínica da atenção psicossocial, são desafios e responsabilidades da política de saúde mental, mas também são tarefas para muitos autores. As parcerias com as associações de usuários, familiares e outras entidades da sociedade civil são fundamentais. O Centro do Teatro do Oprimido tem sido desses interlocutores e parceiros efetivos que buscam contribuir para a qualificação dos CAPS, colocando à disposição sua metodologia, o teatro, a arte, formando Multiplicadores, profissionais, usuários, familiares e a comunidade em geral, emprestando ao cotidiano institucional leveza e sensibilidade para cuidar. Neste momento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, estas são parcerias fundamentais. Seguindo a estrela de Augusto Boal, o CTO se coloca como instrumento para a construção de possibilidades de cuidado e de vida para outras pessoas. Os CAPS e a Reforma Psiquiátrica Brasileira agradecem. ◘ Teatro do Oprimido na Saúde Mental Geo Britto, Curinga do CTO e coordenador do projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental. O movimento de saúde mental tem contribuído com a democratização do Brasil, trazendo à tona a situação do usuário de saúde mental como uma questão eminentemente política. Assim surge o movimento da Reforma Psiquiátrica, que questiona o modelo clássico e o paradigma da psiquiatria, ou seja, o modelo manicomial, que, com sua lógica excludente e autoritária, classifica usuários como sujeitos incapazes e não detentores de direitos. Uma das propostas da Reforma Psiquiátrica é implantar uma rede de serviços territoriais de atenção psicossocial, como a dos CAPS , que trabalhe em rede de forma comunitária. Mesmo sendo uma iniciativa fundamental, isoladamente, não provoca mudança de paradigma. Descentralizar e acabar com os grandes hospitais é importante; ao mesmo tempo, não se pode ignorar que o modelo manicomial continua internalizado na subjetividade de profissionais, usuários, familiares e diversos segmentos da sociedade. Excluir ainda parece mais fácil que cuidar, e bater, mais efetivo 14 M E TA X I S Brasil Adentro Teatro do Oprimido na Saúde Mental que dialogar. Tanto no Brasil quanto no mundo, existe um processo de “patologização” da normalidade, ou seja, um discurso carregado de uma ideologia normativa que utiliza um saber “científico” para transformar singularidades em anomalias e atos espontâneos em desvios. Isso leva à criação de regras sociais e normas de conduta utilizadas para classificar, etiquetar e punir, que, na maioria das vezes, não considera as particularidades do sujeito. O Centro de Teatro do Oprimido aceitou o desafio de trabalhar mais sistematicamente na área da saúde mental em 2004, no Rio de Janeiro, com o apoio do Ministério da Saúde (Coordenação Nacional de Saúde Mental). A proposta foi capacitar profissionais como Multiplicadores do Teatro do Oprimido, para facilitar, por exemplo, o enfrentamento de conflitos entre práticas manicomiais e antimanicomiais. Os cursos tiveram aplicação prática nas unidades, no trabalho com usuários, familiares e profissionais, M E TA X I S 15 Brasil Adentro com a produção de cenas sobre: a rejeição da carteira de gratuidade no transporte; familiares usurpadores de benefícios, carência de medicamentos nos CAPS, discriminação, racismo, entre outros temas, mostrando como o Teatro do Oprimido poderia contribuir com o trabalho desenvolvido nessas instituições. A equipe do CTO começava sua aventura na saúde mental, trazendo novas questões, dúvidas, receios para serem teatralizados e analisados em seus laboratórios e seminários internos. Como teatralizar a “loucura” e buscar, junto com os Multiplicadores, as alternativas? Como a arte poderia ajudar na construção de uma proposta não excludente, dialogal? Na segunda etapa, a experiência foi ampliada para São Paulo, incluindo, além dos CAPS, os CECCOs e UBS, trabalhando a saúde mental através de situações do cotidiano do Agente Comunitário de Saúde. A partir daí, o Teatro do Oprimido passa a ser incorporado pelos corpos – literalmente e metaforicamente – da unidade não somente como oficina, mas também como instrumento de análise e de ação para discussão do serviço em si. Na última etapa, encerrada em 2010, além de São Paulo e Rio de Janeiro, ampliamos nossa ação para Sergipe. Os Multiplicadores formados nas etapas anteriores participaram ativamente do processo de capacitação dos novos Multiplicadores, construindo junto com o CTO o programa de formação, apoiando nas visitas e se tornando referência local na relação com o poder público. Foram mais de 300 profissionais capacitados. O aprofundamento da utilização da metodologia vem sendo continuamente analisado teórica e esteticamente, tanto pela equipe do CTO, internamente, quanto pela equipe do projeto, junto com os Multiplicadores. Há um diálogo permanente sobre o desafio de implementar o projeto como política pública, sem perder a dimensão do desenvolvimento artístico, e buscar meios para mensurar os resultados práticos de uma experiência ousada e complexa. Uma das riquezas desse projeto está no envolvimento dos profissionais e no intercâmbio de conhecimentos sensíveis e simbólicos: de um lado, o Teatro do Oprimido, com seus princípios metodológicos, e do outro as especificidades temáticas relacionadas aos saberes ligados à saúde mental. Dialogando, aprendemos e ensinamos mutuamente 16 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental e, assim, nos fortalecemos. Um grupo de profissionais de um CAPS-AD teatraliza a situação de um usuário de maconha fumando na unidade. A situação é analisada esteticamente. Quais alternativas? Como falar? Como agir? Muitas cenas como esta foram teatralizadas e debatidas em diversas unidades. Por outro lado, quando um usuário cria uma cena e observa a si próprio, ele se vê refletido na sua Arte, torna-se Sujeito da sua criação, recriando-se ao criar sua obra. Boal dizia “a frase ‘Sou capaz de fazer isto... no teatro!’ contém uma importante revelação: ‘Sou capaz de fazer isto!’”. Nas palavras de uma usuária: “A personagem faz coisas que eu não seria capaz de fazer. Mas ela entra na minha cabeça e vai em frente e faz. Depois, eu entro em mim e percebo que tenho capacidade de fazer.” A usuária percebe estética e subliminarmente – ou em plena consciência – que, se é capaz de representar uma Personagem, pode também integrar a Personagem, ou algumas de suas características, à sua própria Personalidade. O Teatro do Oprimido pode ajudar a descobrir novos caminhos para solucionar velhos problemas. A metodologia não é uma caixa fechada, mas é viva e se transforma com o diálogo cotidiano de novas questões que surgem. A pesquisa da Estética do Oprimido, por exemplo, revela novas perguntas e mostra que usuários, profissionais e familiares, além de fazer teatro, podem também pintar, dançar, fazer música e artes plásticas. O Teatro do Oprimido propõe a extrapolação: “o delírio cênico deve se aproximar, metafórica ou realisticamente, do real e nunca dele se distanciar, para que a ele possa retornar e transformálo” (Augusto Boal). Por isso, não nos limitamos a temas relacionados somente à saúde mental. Usuários, doentes, pacientes, portadores de necessidades especiais, profissionais e familiares são cidadãos com os mesmos direitos de quaisquer outros, além de alguns direitos mais específicos. É necessário teatralizar e discutir todas as temáticas que afetam nossa vida como seres humanos que somos. Racismo, trabalho, homofobia, opressão contra a mulher, violência, entre muitos outros temas que nos interessam, são analisados. Não somos apenas da saúde mental, somos do mundo que queremos transformar. O Teatro do Oprimido está dentro dos CAPS, UBS, CECCOs e unidades de saúde, debatendo suas estru- Brasil Adentro Teatro do Oprimido na Saúde Mental turas de funcionamento – deficiências e qualidades – e seus processos democráticos: assembleias de usuários, familiares e profissionais; supervisões internas; encontros de coordenadores e outras instâncias. Fora dessas instituições, através das cenas produzidas, mostra a loucura como uma experiência do cotidiano em espaços diversos. Essa movimentação é muito facilitada quando se pode contar com o apoio das Coordenações dos Municípios e as das Unidades envolvidas. Nesse processo, o projeto tem gerado políticas públicas em alguns municípios. Conquistas que são fruto de trabalho artístico e político do CTO, de Multiplicadores, usuários, familiares e coordenações. Nas Conferências de Saúde Mental – municipais, estaduais e nacional – de 2010, por exemplo, tivemos profissionais, familiares e, principalmente, usuários como delegados. Como disse um deles, “o Teatro do Oprimido desenvolve a voz, na hora da conferência pode-se falar o que se está sentindo, falar da sua vida, falar com capacidade de raciocínio e defender seus direitos”. Temos muito a caminhar, construindo diálogos estéticos, ensaios terapêuticos e produzindo transformações políticas. O teatro é essencial não porque seja melhor que outras artes, mas porque é a soma de todas! Usuários, familiares e profissionais podem se apropriar dos meios de produção artística, não sendo apenas reféns de imagens, sons e palavras impostas. Em diálogo com a sociedade, podem criar, inventar, brincar com novos léxicos e construir um novo mundo. Mundo sem manicômios, com liberdade, democracia e beleza. O Teatro do Oprimido sozinho não muda nada. Quem provoca a mudança são as pessoas organizadas. ◘ Referências: SUS de A-Z. Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/ sus_3edicao_completo.pdf CAPS: Revolução Silenciosa da Saúde Mental – Pedro Gabriel Delgado. Disponível em http://saudementales.files.wordpress. com/2007/06/caps.pdf "Minha homenagem e gratidão a Geraldo Lopes (in memorium), meu pai, que me apoiou a fazer o que mais gosto: arte e política e, por isso, se tornou um parceiro do CTO." M E TA X I S 17 Eva Geslaine Medina dos Santos, gestora de Política Municipal de Saúde Mental, Guarulhos/SP. Em 2006, quatro unidades participaram do projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental: CAPS Osório César, CAPS Tear, CAPS Álcool e Drogas e Ambulatório da Criança. Duas cenas foram montadas sobre “Mulher com transtorno mental aprisionada em casa por familiares” e “Mulher com anorexia que questiona os padrões de beleza e os caminhos de tratamento para seu transtorno”. Começava assim o enovelamento entre o Teatro do Oprimido e os usuários e profissionais da Saúde Mental, uma dança com passos ora coordenados, ora desarticulados. Essa primeira fase resultou na articulação de profissionais que formaram o Grupo TOGRU, com cinco mulheres que mantiveram acesa a LUZ do TO em Guarulhos: Rose, Miriam, Regina, Meire e Gilmara. A segunda fase do Projeto teve início em 2008, sendo prevista sua duração até 2010. Para nós, no município, colocou-se a necessidade de transformar um Projeto em Política Pública, e para isso nos apoiamos na Missão do CTO – Promover o fortalecimento da cidadania e a justiça social através do Teatro do Oprimido, como meio democrático na transformação da sociedade; na sua Visão de Mundo – de atuar para que as camadas oprimidas e marginalizadas da sociedade se afirmem como produtoras de sua própria arte e protagonistas de suas vidas; e nos seus Valores – Vida, Ética, Solidariedade, Estética e Diálogo. Essas foram as primeiras compreensões que tivemos do Teatro do Oprimido: profundamente singular, local, radicalmente humano. Propomos que cada Sujeito seja um ator ou atriz e traga em si o ato de teatralizar, permitindo que todos atuem, transformem as suas opressões através de linguagens singulares, plurais, mas, principalmente, de forma pública e coletiva. Esse fato é o que nos tem permitido aproximar o Teatro do Oprimido dos usuários da saúde mental – crianças, adolescentes, adultos e idosos; homens e mulheres com seus sofrimentos. Ao experimentarem o jogo, o lugar do outro, o contar sua história, a estética do oprimido, o diálogo, vão se reconhecendo, percebendo seus corpos, seus imaginários, o estranhamento das suas opressões. Possibilidades de manifestar-se, o reconhecimento de suas vivências, opressões, apontando novas possibilidades de respostas, desencadeando processos internos e externos de mudanças. As respostas já 18 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental não precisam ser dos especialistas, dos acadêmicos; as respostas surgem da e pela perspectiva deles e delas. Pela sua atuação transformadora, tornam-se seus produtores e destinatários. O número de Multiplicadores capacitados foi três vezes maior que o previsto. Formamos 21 grupos do Teatro do Oprimido com a participação de usuários e profissionais, com 13 ativos e os demais em maturação. A supervisão dos grupos foi feita pelas 4 Multiplicadoras supervisoras e uma Curinga do CTO. Tivemos 26 agentes comunitários de Saúde, 1 atendente SUS, 6 assistentes sociais, 3 auxiliares de enfermagem, 8 psicólogas, 3 educadores físicos, 3 terapeutas ocupacionais, 2 fonoaudiólogas, 2 auxiliares administrativos, 2 enfermeiras, 1 arteterapeuta, 1 socióloga e 12 outros profissionais. Produzimos 20 peças de Teatro-Fórum, com 46 apresentações, entre as quais: Dia Mundial da Saúde Mental; CARNACAPS; Dia Mundial do Teatro do Oprimido, Dia Nacional de Luta Antimanicomial, Diálogos Cênicos, Semana Municipal da Não Violência contra a Mulher, Semana de Combate a Exploração e Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes, Semana Municipal em Homenagem à Lei Maria da Penha e o destaque da II Mostra do Teatro do Oprimido na Saúde Mental, lotando por dois dias o Teatro Adamastor, de 700 lugares. A tessitura constituída e consolidada por gestores, gerentes, usuários e comunidades cria novos tons e pontos de conexões. As opressões são debatidas em locais públicos: gênero, violências intrafamiliares, loucura, gravidez na adolescência, abuso sexual contra criança, entre outros. Na II Mostra, houve uma Sessão do Teatro Legislativo com a peça “Cena de Casamento”, que trata da violência doméstica contra a mulher, com 71 proposições que resultaram em 5 principais eixos para Discussão de Políticas Públicas. Ampliamos as parcerias com a Coordenadoria da Mulher, Coordenadoria da Igualdade Racial, Secretaria da Assistência e Cidadania, diversos Fóruns, Redes e Organizações Não Governamentais. Ousamos ir além. Percebemos as fragilidades e dificuldades que nos acompanham na difícil trajetória de transformar um projeto em política pública. No entanto, aprendemos com a Teoria da Flexibilidade que, frente a novos problemas, os sujeitos, através de seus conhecimentos e indagações, constroem novas respostas e possibilidades. Nesse período fecundo de ações conjuntas entre o Centro do Teatro do Oprimido e serviços, usuários e profissionais de Saúde, apoiadores e amigos da Saúde Mental, população de Guarulhos e a Secretaria da Saúde, transformamos e fomos transformados. Nasceu o Núcleo de Saúde e Cultura “Augusto Boal”, o grupo Mulheres em Ação, e o Teatro do Oprimido vai se consolidando nas unidades básicas de saúde, nos CAPS, nas programações. Diálogos improváveis vão se estabelecendo. Chegamos a um novo ponto de partida. Os desafios são maiores. Hoje, em Guarulhos, somos muitos, ainda não milhares, mas já somos corações e mentes de centenas. Acreditamos que estamos, através do Teatro do Oprimido, construindo outras perguntas, outras formas de manifestações, em que o teatro está no meio dos grandes grupos, de populações que geralmente não são reconhecidas como construtoras de cultura, das transformações entre os opressores e oprimidos. O desafio continua... ◘ Brasil Adentro Teatro do Oprimido na Saúde Mental sentação – segura, com intervenções da plateia – foi comovente. Olhando as apresentações e conhecendo as pessoas que integram os grupos, vejo como os usuários podem se transformar, falar alto e interpretar personagens complexos, sendo atentos, cuidadosos e negando tutela. Opinam sobre cenografia, constroem acessórios, criam cenas. Presentes, transformados, transformando. Vivos! Ocupando com responsabilidade e propriedade lugares sociais que são seus, reafirmando “Oprimidos nunca mais!” ◘ Macaé - RJ Guarulhos - SP Brasil Adentro Maria Luiza Quaresma, assistente social / gerente do Aracaju-SE Programa Municipal de Saúde Mental, Macaé/RJ. Assistente Social que sou, acredito na ocupação dos espaços urbanos e sociais por todos os cidadãos com a derrubada dos muros, por vezes, invisíveis, mas nem por isso mais fáceis de transpor. Mesmo com as novas políticas em saúde mental, devemos estar atentos ao perigo de retorno às práticas manicomiais, ideia ainda viva na sociedade de que é necessário isolar para tratar, excluir para cuidar, processo de “limpeza” que ainda persiste. O paradigma do “louco bom é o louco institucionalizado” e “lugar de louco é no manicômio” ainda se faz presente. Meu primeiro contato com o Teatro do Oprimido foi há oito anos, num curso de DSTs e Saúde Mental feito em Macaé, por Claudia Simone. Lembro de chegar em casa cansada, mas animada, relatando os depoimentos, e de ter tentado guardar mentalmente as técnicas utilizadas nesse curso. O tempo passou, e o Teatro do Oprimido ficou ali, no cantinho afetivo da memória. Com alegria, presenciei o “retorno” do Teatro do Oprimido no trabalho com profissionais da saúde mental em Macaé, dessa vez mais consolidado, com novas propostas de sensibilização e Multiplicadores capacitados. Nesse período, grupos foram criados nas diversas instituições, com variadas apresentações públicas e eventos marcantes, além de um grupo de Multiplicadores que assume a continuidade através da formação do Núcleo de Teatro do Oprimido de Macaé. No evento Diálogos em Saúde Mental, sobre Teatro do Oprimido, houve apresentação de Teatro-Fórum. Poucas pessoas presentes, mas um vereador na plateia. No grupo de teatro, pessoas com diagnóstico de transtorno mental severo e persistente. O que fizeram, como reagiram? Apresentaram brilhantemente a cena. E mais: questionaram o vereador com consistência, educação, pensamento lógico. Solicitaram direitos. Opa, não eram doidos? Conferência Municipal de Saúde Mental Intersetorial: na organização, sugerimos a apresentação do grupo Capazes, Iguais e Idealistas. Plateia de 400 pessoas. O usuário Edílson fez chover numa regência linda! E a apre- Coletivo Gestor da REAP, Rede de Atenção Psicossocial de Aracaju/SE. “... Que a arte aponte uma resposta, e que ninguém ouse complicar, pois é preciso simplicidade para fazê-la florescer...” (Oswaldo Montenegro) Em março de 2007, em Aracaju, houve um redimensionamento importante no modelo de gestão em saúde mental, tendo como meta central produzir qualificação ao cuidado oferecido. Assim, investiu-se no fortalecimento da diretriz da educação permanente, mediante a oferta de capacitações, oficinas, encontros e, principalmente, construção de espaços de interferência no cotidiano dos serviços, potencializando análises coletivas de valores, saberes e fazeres e, desse modo, implementando e mudando práticas. Esse modelo de gestão, que supera a lógica centrada nas instituições de atendimento, investe maciçamente no fortalecimento de ações que extravasem os CAPS e que potencializem a produção de redes de cuidado M E TA X I S 19 Brasil Adentro Teatro do Oprimido na Saúde Mental Brasil Adentro Teatro do Oprimido na Saúde Mental em saúde mental. Desse objetivo surge a parceria com outras instituições, como o Centro do Teatro do Oprimido. Assim, o município consolida a formação¹ de Multiplicadores em Teatro do Oprimido para trabalhadores de saúde mental da capital, bem como para outros de municípios do interior do Estado, a fim de desenvolverem ações que busquem a transformação de demandas decorrentes do cotidiano do serviço e de suas vidas, utilizando o teatro como manifestação artística e também como ferramenta de produção de vida. Durante os dois anos do projeto, observamos aspectos importantes para a análise da gestão da Rede de Atenção Psicossocial. O projeto disponibilizou uma nova e eficiente ferramenta de trabalho, que permite apoiar, debater e aprofundar as propostas da reforma psiquiátrica. Ampliou o olhar dos trabalhadores nas estratégias de apoio matricial, mediação de conflitos, planejamentos de serviços, proposição de grupos e oficinas especificas. Em relação aos usuários, observamos a produção do protagonismo através de qualificação da assembleia dos serviços de saúde mental, maior implicação no próprio tratamento, formação de grupalidade e aproximação de familiares não só do tratamento, como também dos eventos do Teatro do Oprimido. O investimento em educação permanente que a REAP/Aracaju vem priorizando conquistou forte parceria com o projeto de formação de Multiplicadores do CTO, sobretudo pelo caráter de reafirmar a sustentabilidade do SUS e da política municipal de saúde mental, utilizando a arte como uma ferramenta de qualificação do cuidado. Por isso, essa relação precisa ser reiterada e ampliada para outros espaços da rede de saúde de Aracaju. Como diria Sérgio Sampaio, a sensação desse coletivo gestor é de “eu quero é botar meu bloco na rua...”. ◘ Santos - SP Notas: 1 Formação de dois anos para os trabalhadores do CAPS Liberdade, CAPS Primavera (AD), CAPS Jael, CAPS Artur, CAPS David, CAPS i, Programa de Redução de Danos, Residências terapêuticas, Referências ambulatoriais em saúde mental. Sandra Murat, coordenadora de Saúde Mental, na Secretaria de Saúde do Município de Santos / SP. Em 2009, o Departamento de Especialidades e a Coordenadoria de Saúde Mental decidiram apoiar integralmente o projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental, do CTO, e incorporá-lo formalmente como proposta nas unidades CAPS. A Secretaria de Saúde do Município de Santos – SP, com essa decisão, demonstrou sua firme intenção de assumir a prática do Teatro do Oprimido como estratégia de política pública. A ação foi incluída no projeto terapêutico dos pacientes atendidos nas diversas unidades de assistência. A definição de um espaço para reuniões do grupo técnico, ensaio e apresentação das cenas (Seção Lar Abrigo ); o incentivo, ainda que “mínimo”, à organização de eventos; bem como a valorização do elemento musical inserido para incrementar a qualidade dos contextos representados denotaram a motivação da gestão municipal em estimular a continuidade da proposta. A aceitação do projeto não foi fácil por parte de alguns profissionais 20 M E TA X I S e chefias das diferentes unidades de assistência. A aplicação da técnica centrada apenas naqueles técnicos capacitados talvez não conseguisse, a priori, suprir o pouco conhecimento e o entendimento do custo-benefício do tempo disponibilizado por eles para esse tipo de atividade, sendo interpretado como se outros procedimentos entendidos como prioritários no cotidiano da unidade fossem deixados “a descoberto”. A proposta, no entanto, foi tomando força à medida que se passou a observar a adesão dos pacientes à dinâmica e seus resultados: melhor socialização, melhora na autoestima, conseguir “suportar” melhor os limites para a fala e a escuta de si mesmo e do outro. Hoje, a coordenação entende que essa construção coletiva favorece novas e diferentes soluções para todos. Assim, reforça nosso intuito de implementá-la institucionalmente, estendendo as oficinas a novos técnicos e chefias das Unidades, implementando a supervisão técnica e agregando efetivamente outros elementos estéticos que venham aprimorar o trabalho. ◘ Nosso processo pedagógico Yara Toscano, Curinga do CTO, gestora da ONG Mudança de Cena e integrante do GTO-São Paulo. O aprendizado do Teatro do Oprimido (TO) segue um ritmo próprio. Sua representação é uma árvore que se reproduz pela presença de um polinizador – o passarinho multiplicador –, que pode um dia tornar-se Curinga. ¹ A semente cai no solo, germina dentro da terra. Apesar de não serem perceptíveis, as transformações internas ocorrem, e as percebemos quando despontam na superfície. Pequena planta, frágil às intempéries do mundo, já traz sua potência. Leva tempo para crescer e se fortalecer, seguindo etapas de aprendizado. Não adianta apressar. E como tudo que possui ritmo, às vezes, se descompassa. Entre 2006 e 2010, no projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental, capacitamos cerca de 70 profissionais – agentes comunitários de saúde; psicólogos; assistentes sociais; auxiliares de enfermagem; educadores; terapeutas ocupacionais; fonoaudiólogas; auxiliares administrativos; enfermeiras; arteterapeutas e sociólogas – para se tornarem Multiplicadores do Método. Visões diversificadas: do mundo, da saúde e da saúde mental. Experimentar o arsenal do TO é um passo fundamental na proposta pedagógica de qualificação. Além da leitura dos livros, é preciso experimentar o TO para entendê-lo – de forma simbólica e sensível, para perceber/entender o que suscita em nós e nos outros, o que revela sobre relações sociais e como potencializa necessidade e desejo de mudança. O passo seguinte é manejar esse arsenal, compartilhar o aprendido, aplicar os jogos no trabalho prático com coletivos. Entender de outra maneira a lógica do jogo e suas regras, se ater aos passos a serem seguidos, planejar oficinas em parceria. É sempre melhor que a multiplicação seja partilhada, em duplas ou trios que exercitem a reflexão do aprendizado e da multiplicação, que planejem as estratégias de formação de grupos comunitários. Ensinar nos faz aprender, fixar e ampliar conhecimentos. A experiência prática potencializa o aprendizado intelectual e sensorial. Na aplicação dos jogos, o Multiplicador é desafiado a ampliar sua visão para enxergar o outro, os membros M E TA X I S 21 Brasil Adentro do grupo. Sair do conhecimento do eu em relação para conhecer o outro em relação. É um processo investigativo, de descoberta sobre as pessoas: como interagem, como lidam com a linguagem teatral, como entendem os jogos e a proposta do TO. Importante também é observar como outros Multiplicadores aplicam os jogos, o que falam, como se posicionam, a escuta, a entonação da voz, os questionamentos para os participantes do grupo e da plateia. Aprendemos ensinando, continuamente. Esse é o fundamento da Maiêutica² no TO, que se utiliza de questões simples, direcionadas aos grupos e com a orientação de serem conjugadas no modo subjuntivo. Dessa forma, aprendemos a perguntar, a ouvir e a perguntar novamente como método de criação. Em seu livro A Estética do Oprimido, Boal explica: O Teatro conjuga a realidade no tempo presente do modo indicativo – “Eu faço!” – ou no gerúndio – “Estou fazendo.” A TV e a publicidade no modo imperativo – “Faça!” No Teatro do Oprimido, a realidade é conjugada no modo subjuntivo, em dois tempos: no pretérito imperfeito – “...e se eu fizesse?” – ou no futuro – “...e se eu fizer?” No momento de escolher as histórias – as próprias histórias do grupo – para transformá-las em espetáculo, é fundamental ser maiêutico e conjugar no pretérito imperfeito ou no futuro do modo subjuntivo. Quanto mais aprendermos a dialogar assim, mais permitimos que o grupo crie integralmente tudo que envolve a construção de suas cenas. Como Multiplicadores, somos parte integrante desse grupo, criamos junto, compartilhamos criações, mas, fundamentalmente, estamos compartilhando a criação dos outros. Quando o Multiplicador dirige uma cena, deve ser maiêutico, saber que isso é fundamental para o aprendizado que nunca se desconecta da ação, da atuação, do fazer e da práxis do trabalho. Essa é nossa utopia, nosso horizonte, que avança na mesma medida em que avançamos em direção a eles. Os ritmos do grupo e do projeto vão indicar o tempo de criação de uma peça. O processo é tão importante quanto o produto. O processo de escolha de histórias é delicado, forte e gerador de crise para o grupo. É o momento de trabalhar nossas dores ou as dores de outras pessoas. Momento de exposição pessoal, necessário para gestar confiança e transformação. É escuta. A experiência no arsenal 22 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental de jogos e técnicas que antecede essa fase é primordial para que a confiança e a exposição dos conflitos possam acontecer de forma generosa. Entre 2009 e 2010, em Guarulhos/SP, mais de 25 Unidades de Saúde conheceram o Teatro do Oprimido. Foram formados 21 grupos, beneficiando cerca de 320 participantes de todas as faixas etárias (a partir de 10 anos) entre usuários e profissionais, com a produção de 20 espetáculos de Teatro-Fórum, apresentados em quase 50 eventos públicos, e de dezenas de obras da Estética do Oprimido – esculturas, pinturas individuais e coletivas, poesias, músicas. Cerca de 5 mil pessoas tiveram contato com a experiência. Trabalhamos também com profissionais e usuários, juntos, o que foi fundamental para a quebra de preconceitos e o fortalecimento do aprendizado de como interagir com pessoas com sofrimento psíquico. Muitos profissionais da atenção básica do município nunca tinham convivido com usuários de um CAPS. Muito menos haviam compartilhado um processo criativo com eles como seres humanos, em que suas funções não estivessem em jogo. Quando lidamos com populações marginalizadas, nem sempre nos damos conta que corremos o risco de também nos guiarmos pelo senso comum e seus preconceitos. Entretanto, quando fazemos arte junto com esses grupos, percebemos que podemos compartilhar de um saber/fazer, atentamos aos detalhes escondidos e óbvios – que, em outras situações, não podemos enxergar - e construímos outro significado para o que chamamos de “loucura”. O Teatro do Oprimido, como um novo saber no sistema de saúde, democratizou os saberes criativos entre essas pessoas. As peças criadas em Guarulhos abordaram, na maioria, a temática de gênero: mulheres oprimidas em hospitais psiquiátricos; oprimidas por gravidez indesejada; agredidas por seus “companheiros”; isoladas pelo marido em virtude de seu transtorno mental; e exploradas e agredidas na infância. As peças possibilitaram a ampliação da discussão sobre opressão e violência contra a mulher no município. Em Guarulhos, a maioria era de mulheres multiplicando. Nos grupos, a maioria era de mulheres participando. O passo seguinte ao processo estético é a construção de um produto artístico: transformar a história contada em espetáculo de Teatro-Fórum. Esse pode ser um momento de crise, para o grupo e para o Multiplicador. O/a Multiplicador/a é referência importante nesse mo- Brasil Adentro Teatro do Oprimido na Saúde Mental mento para agregar o grupo, estimular e desenvolver a confiança, entendendo que a crise é parte do processo e pode se transformar em oportunidade. A apresentação externa, apesar de não ser obrigatória para o grupo, é fundamental para o crescimento do coletivo. A opção de apresentar para um grupo desconhecido é e deve ser sempre do grupo. O Multiplicador pode incentivar. Quando for feita a opção pela apresentação, o Multiplicador avança em mais um desafio: ajudar a construir e dirigir essa cena, ajudar a elaborar sua proposta estética e mediar essa cena na sessão de Fórum. Antes de apresentar a cena para uma plateia desconhecida, exercitamos o Fórum (o diálogo teatral) dentro do próprio grupo e em diálogos teatrais com outros grupos. Na sessão de Fórum, “o inesperado” é elemento essencial. As alternativas da plateia para transformar o conflito apresentado criam abertura de participação. No caso de usuários da saúde mental, a introdução do inesperado pode ser ainda mais marcante, pela forma muito própria das opressões que representam. Como Multiplicadores, além de experimentar os jogos e as técnicas, orientar participantes de grupos, observar outros Multiplicadores em ação, observar os membros dos grupos, fazer a leitura da realidade local, aprender a questionar os participantes e a compartilhar, construir uma cena, criar imagens para ela e mediar um Fórum, podemos ainda contribuir com a qualificação de novos Multiplicadores. Essa fase necessita de todo o aprendizado acumulado e avança para produções de conhecimento pautadas no estudo da poética do Teatro do Oprimido, e no desejo de compartilhar esse saber com outros aprendizes, de investigar outras linguagens estéticas, de se articular com outros grupos artísticos e políticos. O solo depende do ritmo da fertilização, necessita da presença de outros polinizadores e de tempo para a germinação, para que a pequena árvore cresça e se fortaleça. Não adianta apressar. Boal nos dizia que a loucura é uma quebra de nosso ritmo corporal e mental em relação ao meio social em que vivemos. Tudo que possui ritmo, às vezes, se desequilibra para re-equilibrar. Assim é com o processo pedagógico do Teatro do Oprimido: nunca está pronto ou acaba quando termina. O tempo atua produzindo novos começos. ◘ Referências: BOAL, A. A Estética do Oprimido. RJ: Garamond, 2008. Notas: 1 Curinga é um especialista no método do Teatro do Oprimido; artista com função pedagógica; praticante, pesquisador, estudioso/a em constante processo de formação; e que ensina aprendendo e vice-versa. 2 A Maiêutica Socrática é o momento do “parto” intelectual, da procura da verdade no interior do ser humano. Sócrates conduzia esse parto em dois momentos: levava os seus discípulos ou interlocutores a duvidar de seu próprio conhecimento a respeito de determinado assunto; em seguida, os levava a conceber, de si mesmos, uma nova opinião sobre o assunto em questão. Por meio de questões, inseridas num contexto determinado, a Maiêutica dá à luz ideias complexas. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/ Maiêutica. M E TA X I S 23 Brasil Adentro Teatro do Oprimido na Saúde Mental A Potência do Eu, o Fortalecimento do Outro Adriana Araújo , auxiliar de enfermagem e Monica Silva, auxiliar administrativa - multiplicadoras do CAPSi Recriar No início de 2008, o CAPSi Recriar¹ integrou a capacitação do Teatro do Oprimido na Saúde Mental. Naquele momento, a maioria dos profissionais não acreditava na potência desse método, por desconhecimento da proposta ou por medo do novo. A equipe achava que não funcionaria. Depois de muita discussão, aceitamos enfrentar o desafio. De repente, nós duas, uma auxiliar de enfermagem e uma auxiliar administrativa, teríamos que formar e coordenar um grupo no CAPSi. Proposta absolutamente nova, uma vez que todos os outros grupos tinham sempre a coordenação de técnicos, sejam psicólogos(as), assistentes sociais, terapeutas ocupacionais ou enfermeiros(as). Diferentemente dos Multiplicadores do projeto, que foram capacitados em encontros específicos, nós entramos em contato com o Teatro do Oprimido, seus propósitos e objetivos, com os jogos e o Teatro-Fórum participando ativamente de um grupo de usuários do serviço de saúde mental. Foi no CAPS Tear, onde Rose Almeida, Multiplicadora do TO desde 24 M E TA X I S 2006, nos apoiou e orientou nesse processo. A ida uma vez por semana ao grupo do Tear foi uma conquista, pois, apesar de a equipe de profissionais do Recriar ter aceitado a proposta do projeto, sair acabava se tornando uma dificuldade, às vezes sentida por nós como falta de apoio. Muitas vezes ouvíamos: “Isso é brincadeira”, “Será que isso vai dar certo?” ou “Como assim, já vão passear de novo?” Além da descrença com relação ao retorno da ação do TO no serviço, havia também o conflito com o trabalho que já tínhamos de fazer em face da alta demanda de usuários, o que se acentua com a ausência de uma profissional, o que dirá de duas. Na primeira vez que fomos a uma oficina de TO, estávamos apreensivas, era tudo novo. Até então, nossa experiência tinha sido apenas com crianças e adolescentes, e a capacitação seria feita em um serviço de saúde mental com adultos. Como implantaríamos a proposta, se estávamos sendo capacitadas num grupo de adultos? Aos poucos, percebemos que o método poderia ser Teatro do Oprimido na Saúde Mental aplicado em qualquer serviço, com adultos ou com adolescentes. Os encontros mensais coordenados por Yara Toscano e a troca com Multiplicadores supervisores de Guarulhos reforçaram nossa confiança. Aproximadamente um ano depois ainda não estávamos fazendo a oficina. Sabíamos da importância de começar o nosso grupo, mas não tínhamos apoio da equipe e fomos adiando, até que um dia, conversando com um assistente social, fomos incentivadas e ganhamos coragem para começar na semana seguinte. Em reunião, anunciamos aos profissionais que poderiam encaminhar seus pacientes; a princípio, os adolescentes, por não sabermos como seria trabalhar com crianças. Na primeira oficina tivemos apenas um adolescente e dois profissionais. Aí, percebemos que sem o apoio da equipe seria difícil. Por isso, seguimos insistindo, o que resultou no encaminhamento de mais adolescentes. Como seria a aceitação dos usuários? Uma paciente, ao vir para a instituição, tinha uma queixa de ansiedade que a fazia arrancar os cabelos. A proposta foi atendimento semanal com a psicóloga, mas a jovem não aderiu. Por isso, a estratégia foi encaminhá-la para nós, na tentativa de criar vínculo. Nas primeiras oficinas, a jovem ficava sempre quieta; pouco participativa e muito desconfiada, fazia os jogos somente quando convocada. Agora, a diferença é grande: tornou-se mais participativa, aderiu ao atendimento individual e fez novos amigos. Outro paciente que nos chamou a atenção foi O., que caçoava dos colegas e dos jogos propostos, o que comprometia o andamento do grupo. Então, problematizamos sua postura com todos. Os outros jovens entendiam que, cada vez que caçoava de um colega, O. dava permissão para que os outros também zombassem dele. Com o passar do tempo, o jovem passou a mostrar mais respeito pelo espaço dos outros dentro do grupo. Mesmo depois de haver completado a maioridade e ter sido encaminhado a outro serviço de saúde mental, continua a vir à instituição nos dias de oficina. A. é uma paciente que não se comunica verbalmente com ninguém, a não ser em casa, com sua tia. Tem sempre as mãos no rosto, numa postura de intenso retraimento e isolamento. Começou a fazer Teatro do Oprimido e, numa oficina, no jogo “Quantos as”², nos surpreendeu. A. foi intensa em sua participação nesse jogo, procurando expressar-se com o grupo, e percebemos que em um dos momentos ela quase deixou Brasil Adentro que ouvíssemos sua voz. Apesar de ainda não falar, não fica mais com as mãos no rosto, se comunica através do olhar e do sorriso, e isso faz com que percebamos o que quer. E tanto se comunicou sensivelmente que até arrumou um namorado. Todos os usuários que participam do grupo tiveram uma melhora significativa. E, com isso, o coletivo ganhou força e se constituiu num grupo sólido, constituído de amigos. O dia do Teatro do Oprimido no Recriar tornou-se um ponto de encontro para além do espaço de tratamento. Lugar possibilitador de convivência e troca, que combina responsabilidade e liberdade. Entre eles se decidem em que horário chegar e o que fazer. O CAPSi se tornou um espaço de fortalecimento, autonomia e empoderamento. E a partir do grupo do TO, novas ideias surgiram para os momentos coletivos, como o Cine-Clube. Hoje, o grupo do TO no CAPSi Recriar é entendido como ferramenta importante no atendimento dos adolescentes. É uma oficina aberta que tem, em média, 20 usuários e 7 profissionais, mas isso só se efetivou quando nossa própria equipe passou a acreditar no trabalho. Entendemos que é imprescindível o apoio da equipe de profissionais para a efetivação de grupos nos serviços, pois são necessários o respaldo, a solidariedade e a crença na ação de formação para que a efetivação da proposta seja possível. Podemos dizer que esse é um exemplo de como o Teatro do Oprimido transforma a vida daqueles que o fazem, mas também é uma possibilidade de transformar a instituição na qual está inserido e, consequentemente, os seus trabalhadores, proporcionando um diálogo que envolve conflitos, os quais, trabalhados de forma ética e solidária, podem ativar ações transformadoras para todas e todos os envolvidos. ◘ Notas: 1 O CAPSi Recriar é um serviço de atendimento psicossocial infanto-juvenil que atende crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes (São Paulo). 2 “O jogo propõe que um ator vá até o centro do círculo e exprima um sentimento, sensação, emoção ou ideia usando somente um dos muitos sons da letra “a”, com todas as inflexões, movimentos ou gestos com que for capaz de se expressar. Todos os outros atores, no círculo, repetirão o som e a ação duas vezes, tentando sentir também aquela emoção, sensação, sentimento ou ideia que originou o movimento e o som. Vários atores, um de cada vez, fazem novas propostas para a mesma letra. Depois experimentam-se as outras vogais, em seguida palavras habitualmente usadas e, finalmente, utilizam-se frases inteiras.” M E TA X I S 25 Brasil Adentro Teatro do Oprimido na Saúde Mental Princesas... Rainhas... Loucas mulheres... Claudete Felix , Curinga do Centro de Teatro do Oprimido. “Um nome para o grupo? Que tal... ‘As Princesas de Dom Pedro’?” A ideia surge no Hospital Psiquiátrico Dom Pedro II, Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. Eu me surpreendo, nada falo, mas penso: “Que título inteligente para um grupo de mulheres usuárias de Saúde Mental.” 1994. Ano em que eu e Geo Britto trabalhávamos no Mandato do Vereador Augusto Boal. Entre outros projetos, o Teatro Legislativo. O mandato criara a lei sobre atendimento geriátrico obrigatório nas unidades de saúde da rede pública municipal do Rio de Janeiro. A lei veio de um grupo de terceira idade, que recebia atendimento nesse mesmo hospital. Dessa vez a direção do hospital queria utilizar o Teatro do Oprimido com usuários da saúde mental que, semanalmente, recebiam acompanhamento psicológico. O grupo era formado basicamente de mulheres. Só as mulheres enlouquecem? Ou são as que se tratam mais? Muitas já ficaram internadas e, agora, após a alta, visitam semanalmente a unidade para receberem medicamentos e acompanhamento psicológico. A proposta era que o TO fosse uma injeção de possibilidades e um estimulante para mente e corpo. Um remédio a mais? Qual posologia seria benéfica para tantos fantasmas? Aprendi com elas que as pílulas não acabam com os tormentos, apenas adormecem os monstros e os gritos viram sussurros. Além de provocar certa lentidão no ver, no sentir, no agir. Entre jogos, exercícios e técnicas teatrais, as integrantes do grupo saíam da rotina da casa, do trabalho e do hospital e podiam ser: rainhas, cantoras, mulheres outras que não 26 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental elas mesmas, famosas e visíveis à sociedade. Para aplicar os jogos, era preciso mais tempo, as vozes lentas, às vezes, trôpegas ou ininteligíveis que vinham dos efeitos dos medicamentos. Para quem via de fora, os olhares eram de um ritmo a se acostumar, ora lento, ora dinâmico. Ou nós nos adaptamos ou elas mudaram, só sei que depois de umas semanas essa diferença não existia, e nós alcançamos um mesmo jeito de falar, um modo de olhar e um movimento ritmado em busca de contar as histórias, tirar de dentro os personagens e vê-los nas cenas que nasciam de cada uma delas. Não as chamo mais de usuárias, têm nomes e nos chamamos por nomes: Claudete, Edite, Anita, Eunice... Mulheres. Cada jogo parecia significar anos de desbloqueios. Havia alegria em cada olhar, toque, som. O corpo saindo do mecanismo obrigatório da normalidade. Corpo tolhido à base de remédios e acusações conjugais: “Você está nervosa, é maluca, toma seus remédios, não sabe cuidar dos filhos, não sabe lavar uma roupa, só vive dormindo”. Eunice não podia se aborrecer ou reclamar de alguma coisa que logo vinha o remédio, trazido e engolido com xingamentos que faziam sua estima escorregar pelo chão do casebre onde morava, em Anchieta, bairro do subúrbio do Rio. A miséria tem a ver com loucura? A miséria e a fome provocam loucuras? A pobreza cercava aquelas mulheres e seus vestidos e sorrisos surrados... Eunice: marido violento, pais autoritários, família e vizinhos caçoando da “maluquez”, além da barriga vazia e cheia de vergonha... Quem é normal nessa situação? Ser normal é aceitar as regras sem questioná-las? Então, Eunice era louca, sim.... Seus sonhos? “Casar de vestido branco, numa igreja iluminada, que o marido falasse baixinho e as pessoas não a olhassem como diferente”. A peça de Teatro-Fórum teve como base as opressões de uma mulher que, por mais que se cuidasse, as pessoas sempre lhe lembravam o quanto era esquisita, anormal, diferente, incomum. No início, o casamento da protagonista que acreditava que seria feliz com o homem amado. Inesquecível o olhar radiante nos ensaios Brasil Adentro toda vez que Eunice colocava o simples vestido branco de seu figurino e dizia “sim” à sua colega de teatro, que fazia o padre. Eunice feliz era apenas Eunice. Nem louca, nem sã, mas tão feliz nesses poucos minutos em que o Teatro lhe dava a possibilidade de realizar sonhos e destruir opressões. Por que não? A Arte torna visível o invisível. Com o Teatro, Eunice tornou-se visível. Era a atriz em cena, não a doente, a velha, a torta. Ela dialogava seu texto decorado, andava os passos ensaiados na marcação do palco. Tinha o olhar de quem é notada por outras pessoas. Encheu-se dos aplausos. A Arte é o canal, o artista possibilita o contato com um mundo que fragmenta os preconceitos. Surge a liberdade de ser tão humano em seus anseios: inteiro, capaz, perfeito em si mesmo. Preconceituosamente, às vezes eu falava assim “tatibitate” com as “Princesas”, como se elas não entendessem a explicação do jogo. Aprendi a explicar de maneira mais clara, afinal não tinha que florear e encontrar palavras exclusivas. Aprendi também que compreendem o mundo através da lógica do tempo: o remédio toma-lhes muito mais do raciocínio; agir ou falar pode ser demorado para quem está sempre com pressa e usa medicamentos que os inibam. Os remédios dopam, mas os fantasmas continuam, apenas adormecem, mas não se extinguem de suas mentes. Para quem aguarda o outro chegar, devagar, só vale a pena... Eis o espetáculo com oito atrizes de um grupo cujo nome foi escolhido criativamente: “Claudete, nós somos as Princesas de Dom Pedro.” Eunice percebeu meu espanto, viu meu queixo cair e eu me revelar ignorante sobre seu raciocínio. Ela, sabiamente, fica feliz com sua descoberta e seu trocadilho divertido: tamanha consciência e lucidez. Elas sorriram inteiras. Não, não eram apenas princesas, eram rainhas de reinado próprio e verdadeiro. Agradeço por me ensinarem a ensinar e aprender como aprender. Eu pensava o quanto o Teatro do Oprimido pode transformar a vida das pessoas, melhorar sua atuação no mundo. Na verdade, minha maneira de ver em torno se transformou, e penso que melhorei como pessoa. ◘ M E TA X I S 27 Brasil Adentro Teatro do Oprimido na Saúde Mental Tecendo Cenas, Lançando Jogos, Criando Ondas... Rosemeire de Almeida , coordenadora da Oficina de TO, CAPS II Projeto Tear, Guarulhos-SP. A proposta do Teatro do Oprimido no Projeto Tear teve início em 2006. De lá para cá, inúmeros desafios foram suplantados, e hoje temos a realidade de um trabalho mais amplo e difuso na cidade de Guarulhos, tanto nos CAPS como em serviços de Atenção Básica em Saúde. Inúmeros são os profissionais envolvidos, tanto os de saúde mental (psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais) quanto agentes comunitários de saúde, atendentes SUS, auxiliares de enfermagem, auxiliares administrativos, entre outros. Quando surgiu a proposta do Teatro do Oprimido no Projeto Tear, a equipe não sabia muito bem do que se tratava e qual era a perspectiva do trabalho no projeto. Para enfrentar o desafio da Reforma Psiquiátrica, para além da implantação de novos serviços, há que se romper com a lógica dos manicômios, internalizada em cada um de nós; há que se criar novas formas de cuidado para que não trabalhemos em instituições totais reprodutoras 28 M E TA X I S de conceitos e normas há tanto estabelecidas. Na capacitação com o CTO, a sensação de que o Teatro do Oprimido nos possibilitaria discutir questões que permaneciam silenciadas ou na subjetividade, relativas às estruturas de poder que excluem a participação, à soberania de um saber técnico advindo de bancos universitários que, muitas vezes, contrapõe profissionais “técnicos” a auxiliares de enfermagem, cozinheiros, ajudantes de limpeza, monitores de oficina, entre outros. Em sua ampla discussão acerca do poder em nossa sociedade, Foucault aponta para como a ética do cuidado de si é prática de liberdade e cuidado com o outro: “aquele que cuida adequadamente de si mesmo, é, por isso mesmo, capaz de se conduzir adequadamente em relação aos outros e para os outros”. No arsenal do Teatro do Oprimido, uma série de jogos e exercícios que visam à desmecanização do corpo, do olhar, da mente. Infinitas possibilidades de experimentar e conhecer nossos próprios limites e potencialidades. Após a capacitação inicial, o desafio da implantação foi grande. A primeira ação prática foi tornar a equipe conhecedora da proposta; para isso, uma oficina de apresentação com jogos, demonstração de TeatroFórum e a leitura do texto “A loucura no espelho”, de Augusto Boal. Se as palavras, sozinhas, nos confundem – quem é normal, quem não: a loucura e o gênio, terapia e castigo – podemos usar outros instrumentos de diálogo como traço e cor, o som e o silêncio, o espaço e o tempo – a Arte. No entanto, mudanças e imprevistos no caminho não faltam nos serviços de atendimento; agendas cheias e conflitantes impingiram ao TO mudanças, e, de imediato, a primeira oficina com os participantes do projeto foi desmarcada. Angustiante momento gerou crise. Mas, se crise é perigo, é também oportunidade! E como era semana de capacitação com o CTO, tivemos Teatro do Oprimido na Saúde Mental a oportunidade de trabalhar o conflito que vivíamos através de uma cena de Teatro-Fórum: dificuldades de implantação da proposta no serviço. Cena montada entre os Multiplicadores, fizemos a apresentação, e eu estava curingando. No fórum, algumas alternativas foram feitas, e dentro de mim, num crescendo, a vontade de experimentar uma alternativa. Eu curingando a cena e pensando: “Quero tentar”. E quando já íamos mudar para a outra cena, eu expresso: “Preciso tentar uma alternativa, pois efetivamente viverei essa situação amanhã”. Entrei na cena no momento da reunião de equipe e expus minha angústia acerca da mudança, a sensação de atropelo, a necessidade de melhor organizarmos e planejarmos nossas ações! Silêncio, ninguém fala... Procuro firmar nosso compromisso com os clientes quando combinamos, o cuidado que devemos ter para não invertermos nossas prioridades. Na cena, vivenciei uma alternativa e, no outro dia, na realidade, intervim. Para meu espanto, reproduziu-se na realidade o que eu vivera na cena. Porém, na realidade, uma diferença substancial: eu tinha uma aliada. No meio do silêncio da equipe, a fala da consultora clínica, que me ajudou a perguntar a todos sobre os desejos com relação ao Teatro do Oprimido no Tear, sobre a necessidade de nos comunicarmos, combinarmos e respeitarmos nossos combinados. Soube também na reunião que, inclusive, o horário da oficina de TO já havia sido recombinado com os participantes sem meu conhecimento ou do outro Multiplicador. Nós, que faríamos a oficina, não fomos sequer comunicados quanto à mudança, quanto mais consultados. É essencial para um Multiplicador vivenciar a intervenção na sua vida real a partir do ensaio no TeatroFórum. Com todas as letras, sons e imagens, pude dialogar com os participantes atendidos pelo serviço sobre a possibilidade de intervenção na nossa própria vida. Vivi e atuei na minha realidade, podendo levar para a mesa de discussão as relações de poder estabelecidas em nosso espaço de trabalho, os desafios do processo de implantação da reforma psiquiátrica e a necessidade de ousadia na busca de novas formas de cuidar. A primeira cena do grupo “Tecendo Cenas” do Tear contava a história de uma participante que ficara trancada por um mês dentro de sua própria casa. Sua irmã, na ânsia do cuidar e proteger, a exilou. Anos após o ocorrido, as duas irmãs que moravam sob o mesmo Brasil Adentro teto nunca haviam conversado sobre o fato. Na cena, a mulher oprimida na vida real fazia o papel da opressora, ou seja, de sua irmã. A irmã foi assistir à apresentação e fez uma intervenção, substituindo a oprimida. Ali, no meio do saguão, as duas irmãs atuaram com seus papéis invertidos, começando um diálogo trancado dentro de cada uma. Após essa primeira apresentação, a participante do projeto que vivenciou essa opressão disse-nos que foi como se um monstro tivesse saído de dentro dela, que nunca conseguira tocar no assunto com a irmã e que ainda havia conflitos entre ambas, mas elas conseguiam conversar e se entender melhor. O Teatro do Oprimido propõe que possamos dialogar com o outro. Hoje o CAPS II – Projeto Tear, com sua oficina de Teatro do Oprimido, é referência para o município e para outras oficinas dos outros serviços. Em julho de 2010, fui contratada exclusivamente para coordenar a proposta do TO na cidade. Possibilidades conquistadas, que contribuem para a efetivação do Método como política pública da saúde mental no município de Guarulhos. Como desafios não cessam, pois estamos sempre na caminhada, agora é momento de consolidação e busca de conhecimentos acerca da promoção cultural de saúde que este movimento representa. ◘ M E TA X I S 29 Brasil Adentro Teatro do Oprimido na Saúde Mental Da Periferia para o Mundo Armindo Pinto ¹ , diretor do Grupo Revolução Teatral e do GTO IAUNESP. Reconhecido em todo mundo – e por muitos considerado tão importante quanto Brecht –, Augusto Boal é o único brasileiro nomeado Embaixador Mundial do Teatro pela UNESCO (2009), além de indicado ao Prêmio Nobel da Paz (2008). Vivenciou em Santo André, nos anos de 1960, um dos momentos que o inspiraram na construção do Teatro do Oprimido: o trabalho desenvolvido com metalúrgicos. Depois, fugindo das garras do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), ocupou o Teatro de Alumínio. Na década de 1990, após o exílio, retornou à cidade para desenvolver um projeto junto ao Poder Público, o Programa de Teatro do Oprimido, na Prefeitura de Santo André (1997 a 2008). Quando eu disse a ele que a Câmara Municipal queria lhe entregar o título de cidadão honorário, Boal não se interessou pela homenagem. Mas, quando lhe lembrei que ele citava Santo André pelo menos 12 vezes na biografia Hamlet e o Filho do Padeiro, ele sorriu e disse: “Doze? Então eu quero esse título!” A partir de 1997, já no primeiro ano do governo Celso Daniel, Boal e a equipe do CTO desenvolveram 30 M E TA X I S um programa de formação de servidores, cujo objetivo era estimular e ampliar a participação popular na gestão do município. Memorável foi, por exemplo, o Desfile do Orçamento Participativo, em que formando alas, como em uma escola de samba, a população entregou ao Prefeito Celso Daniel, simbolicamente, a Peça Orçamentária Popular. Várias Secretarias se utilizaram das técnicas do Teatro do Oprimido para a formação cidadã dos próprios servidores e para fomentar o diálogo administração x população. A partir daí formaram-se, além do “grupo mãe” protagonizado por servidores, grupos populares de Teatro-Fórum. Durante 12 anos o programa atuou nas regiões mais carentes da cidade e também com pessoas com necessidades especiais, pessoas com sofrimento psíquico, jovens em situação de risco, idosos e mães da periferia, entre outros. Para se ter noção da importância dada ao Teatro do Oprimido na administração municipal, o prefeito João Avamileno, sucessor de Celso Daniel, instituiu por lei, a partir da reforma administrativa enviada à Câmara Teatro do Oprimido na Saúde Mental Municipal, o cargo de Supervisor Técnico de Teatro do Oprimido, magnificando e mostrando a importância dos resultados obtidos a partir das técnicas de Boal. No entanto, com a mudança de governo nas eleições de 2008, deu-se a extinção do programa, mostrando a que veio a nova administração. Mas a semente já havia germinado. E a prova, entre outras, é um grupo que resolveu mostrar resistência e passou a atuar sem a colaboração ou ajuda de órgãos públicos ou do terceiro setor, fazendo teatro como filosofia de vida: o Revolução Teatral. Formado por jovens da periferia mais carente da cidade, proibido de usar as salas do próprio Centro Comunitário em que nasceu, o grupo passou a ensaiar na quadra esportiva desse mesmo Centro. Quadra dos fundos, onde estão traficantes e usuários, além de skatistas, ciclistas e outras tribos. Ali ensaiou, durante dois anos e em meio a essa balbúrdia. Dali, seguiu para um quintal, ou qualquer espaço onde fosse possível atuar, até ocupar, em 2010, um barracão comunitário abandonado na Favela dos Eucaliptos. O grupo foi recebido de braços abertos pela comunidade, iniciando um trabalho com crianças, jovens e adolescentes, e tenta constituir um Clube de Mães. Faz um teatro engajado na luta, para que cada um perceba suas potencialidades, as quais ampliarão sua Brasil Adentro visão de mundo. Engajado na luta por um mundo mais solidário, por uma política de Paz. Contra qualquer tipo de opressão. Teatro e ação política. Ação tida por muitos como datada, mas, como dizia Boal, “enquanto houver opressão, haverá Teatro do Oprimido”. Na Argentina, atuando na abertura do Encontro Internacional de Teatro Comparado, em Bahia Blanca; ou em Jujuy, no Encontro Latino Americano de Teatro do Oprimido (2010); no Uruguai, atuando e fazendo formação de Multiplicadores, assim como em Pernambuco e na Paraíba, atuando em feiras, escolas e sítios, o Revolução Teatral constrói sua história. Santo André recebeu a visita de mais de 30 pessoas de vários países para conhecer esta experiência tão alternativa quanto moderna. Fomos ao Senegal, a Cuba, Portugal, Uruguai, Argentina, Itália e Canadá como convidados, para mostrar a experiência andreense com as técnicas de Boal. Jovens de favelas foram a alguns desses países levando nosso modo de fazer TO. Se nos dói a ausência de Boal, nos acalenta ver Jane e Douglas, oriundos da favela, aos 18 anos, trabalhando e multiplicando a experiência do grupo; o rapper P.O. colocando Teatro do Oprimido em seus shows; jovens oriundos do Revolução dirigindo grêmios estudantis; alunos da rede pública fazendo trabalhos escolares usando o teatro de Boal e debatendo com os M E TA X I S 31 Brasil Adentro professores questões da História do Brasil e não mais aceitando tudo pronto. Uma pequena revolução se faz na periferia. Daniela, Luciana, Rodolfo, Valter, Paulo, Franciele, Marcele e tantos outros jovens e adolescentes estão construindo e contando para o mundo uma nova história de resistência, de fazer artístico, de criação, de crença em novos sonhos e possibilidades. Como Boal, caminham na contracorrente, constroem um novo discurso, pregam um novo modo de ver o mundo e enfrentar seus opressores, a partir do teatro. Em relação à estética, trabalhamos na síntese entre o Método de Boal e o de Laban. Cada ator (pessoas que nunca ou pouco foram ao teatro) torna-se coreógrafo, autor, ator, diretor, Multiplicador. Se, para Boal, “qualquer um pode fazer teatro, até os atores” e, para Laban, “os movimentos humanos são constituídos dos mesmos elementos seja na arte, no trabalho, na vida cotidiana”, para o Revolução a síntese é o caminho a ser pesquisado. O Revolução Teatral utiliza justamente os movimentos espontâneos do corpo que interpreta fatos e opressões do dia a dia de cada um como elementos para a construção teatral. Com a busca pela dança que parte da espontaneidade, com o Método Laban e com o Teatro Imagem de Boal, trabalhamos a reciclagem do corpo; a busca do corpo que atua na vida e no palco, com prazer. Não mais só o corpo vigiado, mecanizado para o trabalho repetitivo e para o sexo. Não mais a repetição do mito de Sísifo. Dessa maneira, jovens e adolescentes aprendem as possibilidades gozosas do corpo, criando eles próprios as coreografias que estão nos espetáculos, compreendendo sua própria sensibilidade e ampliando as áreas de atuação enquanto humanos. Nas encenações, a provocação é o embate com a cultura de massa e suas imagens vorazes e repetitivas, que não permitem leituras, interpretações, fantasia e imaginação. Abolindo total ou parcialmente o verbo, a partir de partituras corporais, provoca o espectador a “completar a imagem” e ter a possibilidade de uma leitura polissêmica. A reflexão pelo lúdico. A fala do corpo. Brecht, circo, poesia, rap e cultura popular, fazem parte do repertório desenvolvido pelo grupo, lutando contra a força destrutiva da TV e da cultura de massas. “O Teatro escolhe, o Revolução acolhe”: assim, qualquer pessoa que chegue ao grupo é incorporado ao espetáculo vigente, sempre com o constante debate e a procura da compreensão do que deseja falar a peça. Outra característica é o sistema Curinga desen- 32 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental volvido por Boal, que permite que os atores façam todos os papéis, inclusive o de protagonista. Outra vez na contracorrente das regras da sociedade, nunca escolhemos o “melhor” ator para ser o protagonista. Trabalhamos para que cada um seja protagonista. No palco e na vida. Característica do Teatro do Oprimido é a construção coletiva, a escolha do tema a partir das realidades do grupo, texto sempre construído a partir de improvisações e do Teatro Imagem. Os oprimidos de qualquer classe social representam a si mesmos. Com esses elementos, o grupo leva a sociedade à reflexão – divertindo como pregava Brecht – e vai além, procurando a transformação, como queria Boal, em sua crença no ser humano. Outra frente de atuação é o REVOLUNESP, junção com o GTO IAUNESP (Instituto de Artes da UNESP), que procura derrubar os muros entre a universidade e a favela. Os integrantes do grupo desenvolvem oficinas com os alunos de Licenciatura em Teatro, os atores se juntam para apresentações, os alunos vão ao barracão, o Revolução vai à universidade. A realização de um Encontro Latino Americano de Dança e Teatro do Oprimido, que aconteceu na UNESP com organização conjunta, foi o mais recente fruto dessa junção. Com um repertório de seis espetáculos, o grupo conquista autonomia. Enquanto dois componentes vão a Belém do Pará participar do congresso internacional IDEA, o restante faz a abertura de um Encontro Internacional de Educação Popular e ministra oficinas, sem a presença do diretor. Pelo segundo ano consecutivo, o grupo atua no projeto Se liga no Teatro, do SESC de Santo André. Jane e Douglas, aos 18 anos, fazem formação de jovens da sua idade. Rodolfo e Wesley são assistentes. Prova inequívoca da capacidade do Teatro do Oprimido em formar, mais que artistas, atores sociais. Com o reconhecimento profissional desses jovens, com a inserção no mercado de trabalho, o ciclo se fecha. O que era sonho se transforma em realidade: um trabalho que alia sobrevivência, alegria e multiplicação... dos sonhos. ◘ Nota: 1 É aluno do 4º ano de Licenciatura em Teatro, do Instituto de Artes da UNESP. Foi coordenador do Programa de Teatro do Oprimido, da Prefeitura de Santo André. Sua formação em Teatro do Oprimido se deu com o próprio Augusto Boal e o Centro de Teatro do Oprimido. Brasil Adentro Teatro do Oprimido na Saúde Mental Cuidando do Cuidador Edna Francisca dos Santos e Vandeiziana Alves da Silva , multiplicadoras do Teatro do Oprimido do CAPS de Itabaianinha/SE O Teatro do Oprimido chegou a Itabaianinha¹, e eu imaginei que iria realizar um antigo desejo, fazer teatro. Encenar uma peça de teatro como atriz. Logo percebi que, com o Teatro do Oprimido, meu sonho iria muito além. Me descobri como orientadora do processo de montagem de um espetáculo, e essa experiência me fez evoluir como pessoa. Até então, não conhecia essa minha potencialidade, não me imaginava capaz de ter o domínio de estar à frente de um grupo de pessoas oriundas de realidades tão distintas. Começamos a trabalhar com usuários da saúde mental e depois também com seus familiares; quando vimos, até os funcionários estavam pedindo para entrar no grupo: “Eu também quero fazer teatro!” Por isso, nosso grupo conta com a participação de gente tão diferente. Por incrível que possa parecer, às vezes, os familiares estão mais frágeis que os usuários. Mais incrível ainda é constatar que, muitas vezes, são os funcionários os mais sensíveis e necessitados de Teatro do Oprimido. Essa conjunção tão particular na composição do grupo é um dos fatores essenciais de seu sucesso. Nossa apresentação na Conferência Municipal de Saúde Mental conseguiu mobilizar quase toda a cidade. Quem dizia que em Itabaianinha não tinha teatro, se surpreendeu. Provocamos a discussão sobre Saúde Mental muito além de suas fronteiras e também para além das fronteiras da cidade. Ninguém mais nos segurou. Participamos da mostra Teatro do Oprimido na capital do estado e também da Conferência Nacional de Saúde Mental, na capital do país, debatendo com mais de 2 mil profissionais a política pública de Saúde Mental. Não imaginávamos chegar tão longe. Os familiares contam com orgulho os benefícios que o Teatro do Oprimido já trouxe para suas vidas. Um exemplo singelo foi trazido por alguns deles, ao dizerem que, antes de conhecer esse teatro, só usavam roupas escuras, sem vida, sem cor. Com a participação no grupo, perceberam que a vida sem cor é tristeza e, como teatro é vida, adotaram cores vivas, alegres. As filhas de uma participante solicitaram que não deixássemos sua mãe sair do grupo, pois já sentiam o quanto ela estava melhor depois do Teatro do Oprimido. Agora, temos diversos familiares planejando transformar outras histórias reais em peças de Teatro-Fórum, a fim de que alternativas sejam investigadas para a resolução dos problemas cotidianos que enfrentam. Temos orgulho pelo reconhecimento recebido do secretário de saúde da cidade, dos colegas de outras cidades e também pelo reconhecimento que chega através dos diversos convites para nos apresentarmos. Temos orgulho de sermos Multiplicadoras deste projeto. Através dessa experiência, podemos entender melhor o que cada um passa em sua vida. Para compreender mais e julgar menos. ◘ Notas: 1 Cidade de 30 mil habitantes situada no sertão de Sergipe, Nordeste do Brasil. M E TA X I S 33 Mundo Afora Como Flores en el Desierto 34 Teatro do Oprimido na Saúde Mental Como Flores no Deserto Fernando Adrián Ferraro, GTO-Rosario (Argentina). Fernando Adrián Ferraro, do GTO-Rosario (Argentina). En el año 2005 realicé una capacitación integral con el Centro de Teatro del Oprimido en Río de Janeiro, Brasil, donde además participé en el intenso proceso de trabajo del grupo “Pirei na Cenna”, formado por Usuari@s de la Salud Mental, familiares y simpatizantes de la lucha antimanicomial. La experiencia se convirtió en piedra fundamental para el trabajo que desarrollamos con el GTO-Rosario¹ en el “Hospital Psiquiátrico Abelardo Freire” (Oliveros), desde el 2006. En ese proceso pude vivir de cerca el trabajo colectivo, la realidad de sus integrantes y sus particulares modos de vida, así como conocer prejuicios y opresiones con las cuales conviven diariamente. Fui descubriendo al mismo tiempo, mis propios prejuicios y miedos incorporados de forma a-crítica. Con el intercambio de experiencias, el ‘fantasma del loco’, imagen producida socialmente, limitadora de percepciones y relaciones, fue desmontada en mí. Pude cruzar esa barrera, hacer estallar esa imagen, me vi reflejado en sus miradas, me vinculé con ell@s, sentí el dolor de esa exclusión. Em 2005, realizei uma formação abrangente com o Centro de Teatro do Oprimido, no Rio de Janeiro, Brasil. Participei do intenso processo de trabalho do grupo Pirei na Cenna, formado por usuários de Saúde Mental, familiares e simpatizantes da luta antimanicomial. A experiência se tornou pedra angular no trabalho que desenvolvemos com o GTO-Rosario,¹ no Hospital Psiquiátrico Abelardo Freire (Oliveros), desde 2006. Nesse processo, pude viver de perto o trabalho coletivo e, também, a realidade dos seus membros e seus particulares estilos de vida. Pude conhecer preconceitos e opressões com os quais convivem diariamente, descobrindo, ao mesmo tempo, meus próprios preconceitos e medos, incorporados de forma acrítica. Com a convivência, o “fantasma de louco” – imagem produzida socialmente, limitadora de percepções e de relações – foi desmantelado em mim. Pude atravessar essa barreira, fazer explodir essa imagem, ver-me refletido em seus olhares, vincular-me e sentir a dor dessa exclusão. Essa experiência alimentou minha crença, meu dese- M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental Esta experiencia alimentó mí creencia, deseo y compromiso ideológico de cambiar y transformar la realidad. Creo que el Teatro del Oprimido expande nuestra capacidad de relacionarnos socialmente y generar puentes para la transformación social, proporcionando un espacio donde podemos encontrarnos, vernos en acción desde un otro ángulo -estético, crítico, propositivo y dialógico- que nos permite reflexionar y proyectar el futuro de las relaciones de una forma más humana y colectiva. Nos estimula a abrir puertas para trabajar en comunidades que antes, por haber asumido una mirada social que segrega, quedaban lejos de nuestro imaginario, de nuestro poder hacer. El Teatro del Oprimido propone que nos vinculemos sensiblemente, buscando lo común en lo diferente para descubrir, a través del arte, relaciones opresivas y dinamizar nuestra capacidad de organización y lucha por nuestros derechos. La práctica del GTO-Rosario es realizada en el hospital psiquiátrico “Abelardo Freire” que se ubica a más de 60 kilómetros de la ciudad de Rosario y a varios de la localidad más próxima. Actualmente se encuentran internas cerca de 400 personas que están a kilómetros de sus familias. Provienen en su mayoría de los sectores más empobrecidos de la sociedad, con escasas posibilidades de acceso al mundo del trabajo y de espacios sociales de intercambio. De cada una de las diez salas que integran el hospital, son pocas las personas que salen a caminar, a vincularse con otros espacios. La mayoría desarrolla sus vidas entre cuatro paredes, con poca actividad física, cultural e intelectual. Sentadas en sus lugares, distanciadas de los demás, estas personas pasan los días en sus espacios solitarios, con sus monólogos interiores, lejos de quien les pueda prestar atención, estimular, comunicar. ¿Por qué? ¿Quienes son responsables de que esto ocurra? ¿Puede un ser humano desarrollar su salud mental en este contexto? La aceptación de una política continuada de empobrecimiento y exclusión social del loco, del pobre, del negro, del campesino, del diferente, adormece nuestros sentidos, nuestra capacidad de pensar y crear, nos aísla, nos hace cómplices. La naturalización del aislamiento -como propone el manicomio- contribuye a desmovilizar, generar más prejuicios en torno al sufrimiento psíquico, a dejar de ver en el otro a un semejante con los mismos derechos, dejar de mirarlo, escucharlo, sentirlo. Naturalización que propone indiferencia y muerte. Dentro y fuera del hospital conviven prácticas que Mundo Afora jo e compromisso ideológico de mudar e transformar a realidade. Acredito que o Teatro do Oprimido expande nossa capacidade de nos relacionar socialmente e criar pontes para a transformação social, proporcionando um espaço onde podemos nos encontrar, nos ver em ação a partir de outro ângulo – estético, crítico, propositivo e dialógico –, e que nos permite refletir e projetar o futuro das relações de uma forma mais humana e coletiva. O TO nos estimula a abrir portas para trabalhar em comunidades que antes, por conta de um olhar segregador, ficavam bem longe do nosso imaginário, de nosso poder fazer. O TO propõe que nos vinculemos sensivelmente, na busca do comum na diferença, para descobrirmos, através da arte, as relações opressivas e para dinamizarmos nossa capacidade de organização e luta por direitos. A prática do GTO-Rosario é realizada no Hospital Psiquiátrico Abelardo Freire, instalado a mais de 60 km da cidade de Rosario e a vários quilômetros da cidade mais próxima, onde hoje estão internadas cerca de 400 pessoas. Internadas a milhas de distância de suas famílias, provenientes em sua maioria dos setores mais empobrecidos da sociedade, com escassas possibilidades de acesso ao mundo do trabalho e de espaços sociais de intercâmbio. De cada uma das dez habitações que compõem o hospital, são poucas as pessoas que saem para caminhar ou visitar outras áreas. A maioria passa sua vida entre quatro paredes, com pouca atividade física, cultural ou intelectual. Sentadas em seus lugares, distanciadas das outras pessoas, passam os dias no quarto sozinhas, cercadas por monólogos interiores, longe de quem possa lhes prestar atenção, estimular, comunicar. Por quê? Quem são os responsáveis por isso? Pode um ser humano desenvolver sua saúde mental nesse contexto? A aceitação de uma política continuada de empobrecimento e exclusão social do louco, do pobre, do negro, do agricultor, do diferente entorpece nossos sentidos, nossa capacidade de pensar e criar, nos isola, nos faz cúmplices. A naturalização do isolamento – como propõe o manicômio – contribui para desmobilizar, gerar mais preconceitos sobre o sofrimento mental, deixar de se ver no outro um semelhante com os mesmos direitos, deixar de olhar para ele, escutá-lo, senti-lo. Naturalização que propõe indiferença e morte. Dentro e fora do hospital convivem práticas que sustentam a política manicomial junto com outras que M E TA X I S 35 Mundo Afora sostienen la política manicomial junto a otras que intentan humanizar las relaciones a partir de una política antimanicomial, a partir de la cual nos posicionamos. El Teatro del Oprimido tiene entre sus objetivos centrales la construcción del diálogo como medio para encontrar alternativas a las situaciones de opresión. Desarrollar y estimular la capacidad de diálogo es nuestra meta como facilitadotes del método. Por esa razón, el GTO-Rosario propone profundizar las instancias de diálogo entre los diferentes actores de la Colonia Psiquiátrica de Oliveros a partir de la metodología del TO, para problematizar la realidad manicomial y crear espacios de intercambio y producción de salud mental entre usuarios, trabajadores, familiares y comunidad. El aislamiento nos lleva al encierro y a la inmovilidad. Crear espacios de diálogo es un modo de intervenir el aislamiento, de atravesar miedos y prejuicios que existen en torno al sufrimiento psíquico que separa usuari@s de trabajador@s, cuartos, oficinas y el hospital de la comunidad. La creación de otros espacios, a través del arte, está íntimamente ligada a nuestro posicionamiento objetivo y subjetivo, a nuestra actitud para relacionarnos. El manicomio despersonaliza cruelmente; en él no hay espejos, no hay miradas. Contar con otros que nos miren y podamos mirar, que nos escuchen y podamos escuchar, que nos toquen y podamos tocar es esencial para la convivencia y el desarrollo humano. El manicomio, a través de sus prácticas concretas, destruye todos estos canales de vínculo. Nuestra lucha desde el Teatro del Oprimido es hacer latir y renacer cada vínculo a través de los múltiples canales de expresión y comunicación. Dentro de la lógica manicomial, la tendencia cotidiana es pasar del silencio al grito, de la expresión reprimida a la explosión. Por ello, considero necesario amplificar nuestra capacidad de escucha, para reconocer tanto en el “grito” como en el “silencio” una expresión más sutil. Atender esas manifestaciones para poder oír la voz que traen consigo, ensayar otros pasajes, puentes y matices y convertirlos en nuevas formas para relacionarnos. Ingresar al trabajo desde un estado de atención especial, agudizando nuestros sentidos, nos llevaron a descubrir puertas de acceso para la creación de vínculos con l@s integrantes del grupo, inimaginables en una primera instancia. Buscamos fundamentalmente reconocer particularidades, modos de actuar y reaccionar. Reconocer proce36 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental tentam humanizar as relações a partir de uma política antimanicomial, a partir da qual nos posicionamos. O Teatro do Oprimido tem, entre seus objetivos centrais, a construção do diálogo como meio para encontrar alternativas às situações de opressão. Desenvolver e estimular a capacidade de diálogo é a nossa meta como facilitadores do método. Por essa razão, o GTO-Rosario propõe aprofundar as instâncias de diálogo entre os diferentes atores da Colônia Psiquiátrica de Oliveros, a partir da metodologia do TO, para problematizar a realidade manicomial e criar espaços de intercâmbio e produção de saúde mental entre usuários, trabalhadores, familiares e comunidade. O isolamento leva ao confinamento e à imobilidade. Criar espaços de diálogo é uma forma de intervir sobre o isolamento, uma maneira de atravessar medos e preconceitos que existem em torno do sofrimento psíquico, que separam usuari@s de trabalhador@s, quartos, escritórios e o hospital da comunidade. A criação de outros espaços, através da arte, está intimamente ligada ao nosso posicionamento objetivo e subjetivo, à nossa atitude de nos relacionarmos. O hospício despersonaliza cruelmente; nele não há espelhos, nem olhares. Contar com outros que nos olhem, para os quais possamos também olhar, que nos ouçam e que nós possamos ouvir, que nos toquem e que nós possamos tocar é essencial para a convivência e o desenvolvimento humanos. O manicômio, através de suas práticas, destrói os canais de vínculo. Nossa luta com o Teatro do Oprimido é provocar o renascer de vínculos através dos múltiplos canais de expressão e de comunicação. Dentro da lógica manicomial, a tendência diária é passar do silêncio ao grito, da expressão reprimida à explosão. Por isso, considero necessário ampliar nossa capacidade de escuta, conseguindo reconhecer, tanto no “grito” quanto no “silêncio”, uma expressão mais sutil. É preciso atender a essas manifestações para poder ouvir a voz que eles trazem, ensaiando outras passagens, pontes e nuances para que essas não sejam as únicas maneiras de vínculo. Ingressar no trabalho a partir de um estado de atenção especial, aguçar os sentidos, leva-nos a descobrir acessos para a criação de ligações com os integrantes do grupo, inimagináveis em uma primeira instância. Buscamos reconhecer particularidades, modos de agir e reagir. E reconhecer processos expressivos, Teatro do Oprimido na Saúde Mental sos expresivos, posibilidades de escritura, de lectura, de memoria, de movimiento físico; sus acciones y placeres cotidianos, sus preguntas, sus deseos. La constancia del trabajo, el compartir distintas experiencias consolida el entendimiento mutuo, nos ofrece matices. Hablar con cada un@, compartir experiencias colectivas, nos devuelve el espejo múltiple de los otr@s, nos permite buscarnos en el otro, provocándonos movimiento. Nuestra función es la de un buscador del ritmo que nos haga danzar, de la palabra que nos nombra, del abrazo que tiene corazón. Somos referentes en nuestro accionar: la atención sensible, el afecto, la escucha, la pregunta, la curiosidad, como guías para la dinamización colectiva; la actitud para trascender prejuicios, muros institucionales, como impulso básico para comunicar e interrelacionarnos con otros; la visualización de objetivos cortos y realizables, nacidos y descubiertos en el vínculo para potenciar el intercambio; el desafío permanente de la construcción colectiva y solidaria para no ser presas del aislamiento. Trabajando en una sala con 54 abuelas y abuelos (que viven desde hace más de 40 años la cronificación de su estado dentro de la institución), intentando que circule la palabra, buscando que cada cual se presente, me encontré que vari@s de ell@s no respondían a la propuesta y que tanto sus compañer@s como enfermer@s no sabían cuales eran sus nombres. Al pasar los días, llevé música e instrumentos musicales. Much@s de los que no habían participado hasta el momento lo hicieron: cantando, bailando, aplaudiendo y esbozando una sonrisa. Mientras la música sonaba, reconocí un movimiento singular en una de las abuelas: al escuchar música española danzaba en su silla de ruedas, su posición casi rígida se ablandó, algo estaba pasando. Intenté hablar con ella, preguntarle qué había sentido, pero no tuve respuesta. Aquello quedó resonando dentro de mí, empecé a buscar qué hacer, preguntándome como estimular ese movimiento que había percibido. Decidí llevar las castañuelas de mi bisabuela al próximo encuentro. Al ofrecérselas, ella abrió lentamente sus manos, levantó suavemente la cabeza, me miró por primera vez, empezó a tocar y a balbucear una canción. Algo de su historia estaba poniéndose en juego. Cuando terminó de tocar me acerqué emocionado, la miré agradeciéndole su música y le pregunté su nombre: “Erminia”, me dijo. Muchas veces, incluso trabajando entre militantes de Mundo Afora possibilidades de escritura, de leitura, de memória, de movimento físico; suas ações e prazeres diários, suas dúvidas, seus desejos. A constância do trabalho e a partilha de diferentes experiências consolidam o entendimento mútuo, nos oferecem nuances. Falar com cada um@ e compartilhar experiências coletivas devolvem-nos o espelho múltiplo dos outr@s, permitem que nos busquemos no outro, nos colocando em movimento. Nossa função é a de um pesquisador do ritmo que nos faz dançar, da palavra que é nome, do abraço que tem coração. São referências em nossas ações: a atenção sensível, o carinho, a escuta, a pergunta, a curiosidade, como guias para a dinamização coletiva; a atitude para transcender o preconceito, as paredes institucionais, como impulso para se comunicar e interagir com os outros; a visualização de objetivos realizáveis, nascidos e descobertos no vínculo para reforçar o intercâmbio; o desafio da construção coletiva e da organização solidária, para não sermos prisioneiros do isolamento. Trabalhando em uma sala com 54 idosos, homens e mulheres (que vivem há mais de 40 anos a cronicidade de seu estado dentro da instituição), estimulamos que a palavra circulasse para a apresentação de cada pessoa. Mas nem todos responderam à proposta, mesmo que tanto colegas quanto enfermeiras não soubessem seus nomes. Com o passar dos dias, introduzimos música e instrumentos musicais. Muit@s que não haviam participado, finalmente, o fizeram: cantando, dançando, batendo palmas e esboçando um sorriso. Enquanto a música tocava, reconheci um movimento singular em uma das senhoras: ao som da música espanhola, ela dançava na sua cadeira de rodas, sua posição quase rígida amolecia, algo acontecia. Tentei falar com ela, perguntar-lhe o que tinha sentido... Mas não houve resposta verbal. Fiquei com isso dentro de mim, procurando o que fazer, perguntando-me como incentivar esse movimento que eu havia percebido... Decidi levar as castanholas de minha bisavó para o encontro e oferecê-las. A tal senhora lentamente abriu as mãos e gentilmente levantou a cabeça, olhou para mim pela primeira vez, começou a balbuciar e a tocar uma música. Algo de sua história, foi envolvente. Quando terminou de tocar, fui animado, olhei, agradecendo a sua música, e perguntei seu nome: “Erminia”, ela falou. Muitas vezes, mesmo trabalhando entre militantes da luta antimanicomial, pode-se acreditar que não faz M E TA X I S 37 Mundo Afora 38 Teatro do Oprimido na Saúde Mental la lucha antimanicomial, uno puede creer que no tiene mucho sentido lo que hacemos, que el “enfermo mental” internado en un hospital psiquiátrico no tiene muchas alternativas de sanación, ni de generar lazos. Creo que este pensamiento es dado por una mirada distante, fomentada por las maquinas sociales expulsivas, una mirada con cierto grado de distorsión, de pérdida de detalles, de no detenerse en lo pequeño. Quienes trabajamos por el desarrollo humano, sabemos que cada gesto es valioso, cada experiencia deja huellas imborrables e indimensionables. Por ello gran parte de nuestra acción, se dedica a recuperar, a valorar cada proceso. Apostamos por seguir sembrando, agrietando muros, uniendo fuerzas para transformar cualquier espacio de encierro en un espacio para el diálogo. “Arte es el camino” propone Boal en su último libro “La Estética del Oprimido”... como flores en el desierto, la expresión humana se manifiesta sorpresiva y contundente dentro de los muros que propone el manicomio. ¡Abre, toca, moviliza y alegra! ◘ sentido o que fazemos, que o “doente mental” internado num hospital psiquiátrico não tem muitas alternativas de cura, de criar laços. Acho que esse pensamento é devido a um olhar distante promovido pelas máquinas sociais excludentes. Um olhar com algum grau fora de foco, que perde o detalhe, que não se concentra no que parece pequeno. Aqueles que trabalham para o desenvolvimento humano devem saber que cada gesto é valioso, cada experiência deixa uma marca indelével e imensurável. Por isso, grande parte da nossa atuação é dedicada a recuperar, a valorar cada processo. Apostamos em manter a semeadura, rachaduras das paredes, a unir forças para transformar qualquer espaço de confinamento em espaços para o diálogo. “A arte é o caminho”, Boal propõe em seu último livro A Estética do Oprimido... Como flores no deserto, a expressão humana se manifesta surpresa e forte dentro dos muros que propõe o asilo. Abre, toca, movimenta e alegra! ◘ Nota: 1 Grupo que desde 2006 se dedica à pesquisa, produção, multiplicação e difusão da metodologia do Teatro do Oprimido, da cidade de Rosario. Contato: [email protected] , www.gtorosario.com.ar Nota: 1 Grupo que, desde 2006, se dedica à pesquisa, à produção, à multiplicação e à difusão da metodologia do Teatro do Oprimido, na cidade de Rosario. Contato: [email protected] , www.gtorosario.com.ar M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental Mundo Afora La mirada de Alex O olhar de Alex Antonio Masegosa, diretor artístico Pallapupas – Barcelona / Espanha Antonio Masegosa, diretor artístico Pallapupas – Barcelona / Espanha Nadie sabe donde se perdió esa mirada, pero todos intentamos que vuelva. Durante los dos años de trabajo con Alex desgasté mis pupilas clavándolas en las suyas para intentar conseguir una mínima respuesta, no fue nada fácil. Sin embargo, hoy día Alex confía en ciertas miradas y a menudo puede sorprenderte levantando sus ojos, siempre distraídos, para clavarlos en los tuyos buscando una sonrisa o un gesto de aprobación. Alex no sale de la clase de teatro sin darme un abrazo. Espera a que sus compañeros salgan de la sala mientras remolonea dando pequeños paseos en círculo hasta encontrarme solo, entonces mira a su alrededor y busca el momento para decirme tras un silencio nervioso y entrecortado por sonrisas: “Antonio, me gusta el teatro”. Algunas veces incluso me mira sincero y sonríe, entonces yo le correspondo y el se va llevándose el mejor de los aprendizajes, mientras yo me quedo disfrutando del mejor regalo: la mirada de Alex. Por esta y otras razones cada miércoles, durante estos dos últimos años, mis pasos se han encaminado Ninguém sabe onde foi que esse olhar se perdeu, porém todos tentamos que volte. Durante os dois anos de trabalho com Alex, desgastei minhas pupilas cravando-as nas dele, para tentar conseguir uma mínima resposta. Não foi nada fácil. No entanto, hoje em dia, Alex confia em certos olhares e frequentemente pode te surpreender levantando seus olhos, sempre distraídos, para cravá-los nos seus, buscando um sorriso ou um gesto de aprovação. Alex não sai da aula de teatro sem me dar um abraço. Espera os companheiros saírem da sala enquanto disfarça, dando pequenos passeios em círculos até que eu esteja sozinho, e então olha ao seu redor e procura o momento para me dizer, depois de um silêncio nervoso e entrecortado por sorrisos: “Antonio, gosto de teatro”. Algumas vezes, inclusive, me olha sincero e sorri, então eu correspondo e ele vai embora, levando consigo o melhor dos aprendizados, enquanto eu fico desfrutando do melhor presente: o olhar de Alex. Por essa e outras razões, a cada quarta-feira, duran- M E TA X I S 39 Mundo Afora desde el centro de Barcelona hasta el barrio de Sarriá para encontrarme con ellos. Un encuentro que surge antes de llegar, que nace en mi mente al tomar el tren de cercanías que me dejará en este barrio de altas verjas y grandes casas. Es por esto que el momento del tren se ha convertido en algo sagrado, ya que como un ritual, es el puente que me conduce de la lógica agotadora del día a día, a la libertad más sincera: las dos horas que comparto con el grupo. Este momento de conexión acaba cuando el pasillo de la estación me devuelve de golpe al paseo de la Bonanova. Al volver a la luz anaranjada de la tarde mis sentidos se predisponen a investigar en los túneles del convoy. Durante el camino hasta llegar a la residencia voy experimentando con los olores, las miradas de la gente que deambula por las aceras, el sonido de las obras e incluso imagino lo que esconden dentro de las altas verjas, las grandes casas. Al terminar de subir la calle empinada esquivando a mujeres perfumadas y niños con mochilas de carro, aparece, como siempre destartalada, la casona de Albatros. Si cierras los ojos puedes encontrarla guiándote por el oído. Desde la empinada cuesta es fácil escuchar algún remix de gritos que se alterna con las letras musicales de Camela procedentes de las habitaciones más altas de la residencia, que a modo de las torres de las mezquitas musulmán, van resonando desde la radio de cualquiera de los usuarios. Al ingresar, puedo descifrar como será la sesión del día, porque el revuelo del pasillo informa a gritos en qué estado se encuentran los habitantes de la residencia Albatros. Se recoge la carpeta de seguimiento, se toma la llave, saludas a los seis o siete usuarios que te encuentras por el camino y se desciende por la escalera casi hospitalaria hasta el piso de abajo. Atravesando pasillos estrechos con luces blancas y frías taquillas salimos al patio del gimnasio donde realizamos la actividad de teatro. En la puerta me espera la mayoría del grupo que pregunta ansioso por la ausencia de algún voluntario, por mi estado de salud o por un pequeño agujerito que descubren en el cuello de mi camiseta. Recuerdo que el primer día entendí que ese lugar, a pesar del caos, era el espacio donde quería trabajar. Mientras esperaba con Eva Hernandez, quien fue mi compañera durante el primer año de formación en el proyecto ¿Y tú que miras?, iban apareciendo los participantes del nuevo grupo dando alaridos de alegría 40 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental te os últimos dois anos, meus passos se encaminham desde o centro de Barcelona até o bairro de Sarriá para me encontrar com eles. Um encontro que surge antes de chegar, que nasce na minha mente ao tomar o trem que me deixará nesse bairro de altas grades e grandes casas. É por isso que a viagem de trem tem se convertido em algo sagrado, já que, assim como em um ritual, é a ponte que me conduz da lógica esgotadora do dia a dia à liberdade mais sincera: as duas horas que passo com o grupo. Essa conexão acaba quando o corredor da estação me devolve repentinamente para o “Paseo de la Bonanova”. Ao voltar à luz alaranjada da tarde, meus sentidos se predispõem a investigar nos túneis. No caminho até a oficina, experimento odores, olhares das pessoas que perambulam pelas calçadas, o som das obras e, inclusive, imagino o que escondem as grandes casas de altas grades. Ao terminar de subir a rua empinada, me esquivando de mulheres perfumadas e crianças com mochilas, aparece, como sempre desorganizadamente, o casarão de Albatros. Se fechar os olhos, é possível deixá-lo me guiar pelos ouvidos. A partir da ladeira é fácil escutar algum remix de gritos que se alterna com as letras musicais de Camela, procedentes dos quartos mais altos da residência, que, como as torres das mesquitas muçulmanas, vão ressoando no rádio de qualquer um dos usuários. Ao entrar, posso decifrar como será a sessão do dia, porque a confusão do corredor informa aos gritos em que estado se encontram os habitantes da residência Albatros. Após pegar o fichário de acompanhamento, pega-se a chave, cumprimenta-se seis ou sete pessoas no caminho e desce-se pela escada, quase hospitaleira, até o andar de baixo. Atravessando corredores estreitos com luzes brancas e armários frios, saímos para o pátio do ginásio, onde realizamos a atividade teatral. A maioria do grupo me espera na porta e pergunta ansiosa pela ausência de algum voluntário, por meu estado de saúde ou por um furinho que descobrem no alto da minha camiseta. Recordo que, no primeiro dia, entendi que este lugar, apesar do caos, era o espaço onde queria trabalhar. Enquanto esperava com Eva Hernandez – minha companheira durante o primeiro ano de formação no projeto ¿Y tú que miras? – iam aparecendo os participantes do novo grupo, dando alaridos de alegria ou talvez de vergonha, nunca soube, interessando-se por Teatro do Oprimido na Saúde Mental o tal vez de pena, nunca lo supe, interesándose por aquellas dos personas que llegaban, y que viniesen a lo que viniesen, venían de fuera. Nos mostrábamos amables y curiosos al ver a cada uno de los que aparecían, quienes rápidamente se ponían en cola para saludarnos, para acribillarnos de preguntas, entre ellas si habíamos traído chocolates, como era el caso de Gemma. Era mi primer contacto con discapacidad intelectual, al menos planteada en un grupo de trabajo. Sin embargo, sus actitudes receptivas no me resultaron tan distintas a las de los usuarios de salud mental del hospital psiquiátrico Don José Dolores Fletes de Managua donde compartí una gran experiencia con el Teatro del Oprimido durante julio de 2005. Tenía la seguridad y sabía donde estaba, por eso me mostraba cauto pero dispuesto, expectante pero decidido y por las risas de complicidad que se nos escapaban, creo que Eva tenía la misma actitud. De aquel día mantengo nítidamente una imagen en la que aparecen los chicos y chicas por la rampa que accede al patio, saludando aun sin vernos, compartiendo sonrisas frente a desconocidos que como novedad ese día habían aparecido ante ellos. Aun así la confianza estaba ganada, veníamos del exterior de esa residencia donde ellos viven y donde se ha relizado este proyecto desde 2005 a 2010. La programación de esa sesión se orientaba a “el conocer”, descubrir hacia donde podía hacernos viajar el Teatro del Oprimido. Se mostraban receptivos y se les planteó un nuevo juego en el que todos podían participar. Aparecieron al instante los primeros rechazos, las primeras relaciones, las primeras risas y la tranquilidad de saber que eran capaces de afrontar el trabajo teatral, de disfrutarlo y de realizar todo lo que nos propusiésemos como grupo. En ese momento los miedos se acabaron: había mucho que trabajar, era la hora de lanzarse, desde el respeto, la paciencia, el cariño, la hora de lanzarse. Saber quiénes somos, éste era uno de los objetivos que me planteé claramente. Saber quiénes eran ellos, no quería conformarme con haber leído el informe de cada uno en el que decía: síndrome de Down, mentiroso compulsivo, cuarenta y dos años, le gusta pasear por los parques, no puede tomar sal por la tensión, etc. Quería que ellos se describiesen a sí mismos, que me hablen de su familia, de cómo llegaron a Albatros o de qué les parece su trabajo, el compartir habitación con Mundo Afora aquelas duas pessoas que chegavam e que, viessem pelo que viessem, vinham de fora. Nos mostrávamos amáveis e curiosos ao ver cada um dos que apareciam e que, rapidamente, faziam fila para nos cumprimentar, para nos amontoar de perguntas, entre elas se tínhamos trazido chocolates, como era o caso de Gemma. Era meu primeiro contato com a deficiência intelectual, pelo menos em uma situação de um grupo de trabalho. No entanto, suas atitudes receptivas não me pareceram tão distintas da dos pacientes de saúde mental do hospital psiquiátrico Don José Dolores Fletes de Managua, onde passei por uma grande experiência com o Teatro do Oprimido, em julho de 2005. Sentia-me seguro e sabia onde estava, por isso me mostrava cauteloso porém disposto, com expectativas porém decidido, e, a julgar pelos risos de cumplicidade que nos escapavam, creio que Eva tinha a mesma atitude. Daquele dia mantenho nitidamente uma imagem na qual eles e elas aparecem pela rampa que dá acesso ao pátio, cumprimentando mesmo sem nos ver, distribuindo sorrisos diante de desconhecidos, que eram a novidade do dia. Mesmo assim, a confiança estava ganha, vínhamos de fora dessa residência onde eles vivem e onde se realizou este projeto de 2005 a 2010. A programação dessa sessão estava direcionada para “o conhecer”, descobrir até onde o Teatro do Oprimido podia nos fazer viajar. Mostravam-se receptivos, e propusemos um novo jogo em que todos podiam participar. Apareceram imediatamente as primeiras rejeições, as primeiras relações, os primeiros risos e a tranquilidade de saber que eram capazes de enfrentar o trabalho teatral, de desfrutá-lo e de realizar tudo o que nos propuséssemos como grupo. Nesse momento os medos se acabaram: havia muito trabalho, era a hora de se lançar, a partir do respeito, da paciência, do carinho... A hora de se lançar. Saber quem éramos: esse foi um dos objetivos que coloquei para mim claramente. Saber quem eram eles: não queria me conformar com a leitura do relatório de cada um, que dizia: síndrome de Down, mentiroso compulsivo, quarenta e dois anos, gosta de passear pelos parques, não pode comer sal por causa da pressão etc. Queria que eles mesmos se descrevessem, que me falassem da sua família, de como chegaram a Albatros ou o que pensavam do seu trabalho, de dividir o quarto com três pessoas a mais ou o fato de não poder comer sal. Não podia me conformar com as caras descritas pelas M E TA X I S 41 Mundo Afora 42 Teatro do Oprimido na Saúde Mental tres personas más o el no poder tomar sal. No podía conformarme con las caras que describían las fotos de los informes, quería ver sus músculos faciales activos, su expresión. Eran tiempos de acabar con los rostros de la foto, con los estereotipos y con personalidades que entran dentro de una estructura de seguimiento. Por esta y otras razones incluimos la conversación inicial dentro de la dinámica de las sesiones del taller, para que pudieran expresarse con libertad, hablar de sí mismos y de los otros, contar los baches, las alegrías y las pequeñas anécdotas que ocurrían en su vida durante la semana. Esto era lo que había que contar al público, de nada serviría aprender complejos textos o ser falsos Romeos y Julietas si no nos conocíamos primero. De esta forma empecé a trabajar con el Teatro del Oprimido la discapacidad y la salud mental. El sabor de aquella primera sesión no me dejó dormir aquella noche rara de octubre, por lo menos eso creo recordar. Sin embargo hoy, cinco años y medio después del comienzo de este proyecto, seguimos sobre el escenario contando historias nuestras de las que los Montescos y Capuletos sentirían envidia, no por la magnitud de la tragedia, sino por la sinceridad con la que este grupo de chicos y chicas las cuentan. ◘ fotos dos relatórios, queria ver seus músculos faciais ativos, sua expressão. Havia chegado o momento de acabar com os rostos da foto, com os estereótipos e com personalidades que entram dentro de uma estrutura de acompanhamento. Por essa e outras razões, incluímos a conversa inicial na dinâmica das sessões da oficina, para que pudessem se expressar com liberdade, falar de si mesmos e dos outros, falar sobre os problemas, as alegrias e as pequenas anedotas que ocorriam em sua vida durante a semana. Era isso que deveria ser contado ao público. De nada serviria aprender textos complexos ou ser falsos Romeus e Julietas, se não nos conhecêssemos primeiro. Dessa forma, comecei a trabalhar a deficiência e a saúde mental com o Teatro do Oprimido. O sabor daquela primeira sessão não me deixou dormir naquela noite estranha de outubro, pelo que me lembro. No entanto hoje, cinco anos e meio depois do começo desse projeto, continuamos contando nossas histórias no palco. Histórias de dar inveja aos Montesquieux e Capuletos não pela magnitude da tragédia, e, sim, pela sinceridade com a qual este grupo de meninos e meninas as contam. ◘ ►Fotografías: Carola Pagani / Proyecto ¿y tú que miras? - T.O para personas con discapacidad intelectual. Barcelona ►Fotografias: Carola Pagani / Projeto ¿Y tú que miras? - TO para pessoas com deficiência intelectual. Barcelona. M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental Mundo Afora Teatro del Teatro do Oprimido en Oprimido na Guatemala Guatemala Stephane Gué y Lorena Roffé , METOCA¹. Stephane Gué y Lorena Roffé , METOCA¹. “Para participar en el taller es importante empezar por conocer ciertos derechos que tenemos: Derecho a fallar, a ser tont@s, ridícul@s y fe@s. Todos aquellos derechos que luchamos no existan en la vida diaria, es importante se cumplan en el taller. Sólo haciendo valer estos derechos podremos explorar, reflexionar y crear”. Así comenzamos cada taller de Teatro del Oprimido en Guatemala. Un país donde “derecho” es una palabra gastada que pierde muchas veces su sentido. Trabajamos principalmente con población indígena y analfabeta para la cual el español es su segundo idioma. Las miradas al escuchar “los derechos” son de desconcierto, curiosidad pero también tentadoras. El permitirse fallar como primer paso, perderle el miedo y descubrir que tal vez en ese “fallar” se puede encontrar una nueva manera de expresar. Expresarse para la mayoría de las personas con las que trabajamos no es algo cotidiano. Se ha desvalorizado esta capacidad – “no hablan bien español”-se las ha silenciado durante “Para participar da oficina, é importante começar por certos direitos que temos: direito a falhar, a ser bobos, ridículos e feios. O que evitamos na vida quotidiana tem o seu lugar aqui. Só fazendo valer esses direitos, poderemos explorar, refletir e criar”. Assim começamos as oficina de Teatro do Oprimido na Guatemala, país onde “direito” é palavra gasta, que, muitas vezes, perde seu sentido. Trabalhamos principalmente com população indígena e analfabeta, para a qual o espanhol é segundo idioma. Ao escutar “os direitos”, os olhares são de desconcerto, curiosidade e expectativa. Permitir-se falhar é um primeiro passo: perder o medo de fazê-lo e, quem sabe, descobrir nesse ato de “falhar” uma maneira de expressão. Expressar-se publicamente, para a maioria das pessoas com as quais trabalhamos, não é algo cotidiano. A capacidade de expressão é desvalorizada: “Não falam bem espanhol”... Foram silenciadas durante dezenas de anos, ensinadas a ser submissas aos interlocutores e a deixar de lado suas opiniões sobre as M E TA X I S 43 Mundo Afora decenas y decenas de años, y se las hizo sentir que deben comunicar lo que agrade al oído de quien escucha, en lugar de la verdad. Mirarse a los ojos es algo extraordinario, emitir sonidos en volumen alto (fuera de las peleas domésticas) es casi impensable. Mover el cuerpo, expresar con él, está fuera del imaginario de lo posible. “El arte” es de otros y otras, de ladinos (como se llama a las personas no-indígenas en Guatemala), de ricos, de quienes tienen acceso. “No puedo” escuchamos una y otra vez, y les recordamos su derecho a fallar. En más de una ocasión, al comenzar con un nuevo grupo (especialmente con jóvenes en una aldea Kaqchikel, muy retirada y conservadora, y con uno de indígenas viviendo con VIH) la sensación es de estar proponiendo algo imposible. Encontramos miradas a la pared y no a los ojos de las personas, cuerpos cerrados y la negativa a participar. Así comprendimos la importancia de una gran cantidad de juegos y ejercicios que creímos demasiado básicos para un proceso teatral “serio” y que finalmente fueron los que nos ayudaron a avanzar. Se trató de aflojar cuerpos y corazones. De jugar y actuar sin tener casi conciencia de estar haciéndolo. Y poco a poco, como por arte de magia, comenzar a crear, disfrutar, reflexionar y denunciar. Opresiones. Primero tuvimos que “traducir” el concepto ya que era incomprensible. Luego ir lenta y cuidadosamente hacia el proceso de explorarlas y expresarlas. Trabajamos con diversos grupos, y las opresiones que surgieron fueron diferentes, aunque hubo un denominador común que nos llamó mucho la atención. En el grupo de líderes comunitarios indígenas de una comunidad arrasada por el huracán Stan y vuelta a construir en gran parte por autogestión de estos líderes, la opresión que surgió fue la de ser utilizad@s por las ong’s para implementar sus proyectos y a la vez ser totalmente silenciad@s e ignorad@s por ellas a la hora de decidir. “Tal vez porque no hablamos bien español, o porque no nos vestimos como ell@s”, son las razones que encuentran a la discriminación que viven y al uso del que son objeto. El grupo no se atrevió a presentar la pieza de foro frente al público ajeno al taller, finalmente, dependen de las ong’s extranjeras para poder desarrollar sus comunidades. En el grupo de jóvenes indígenas queqchí, la opresión era la imposibilidad de estudiar para las mujeres de la familia. Los gritos fueron eufóricos cuando una espec44 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental coisas. Para elas, olhar nos olhos é algo extraordinário, usar a voz com volume alto (fora das brigas domésticas) é quase impensável. Mover o corpo e expressar-se com ele está fora do possível imaginável. “A arte” é de outros e outras. Dos “ladinos” (como são chamadas as pessoas não indígenas na Guatemala). Dos ricos, os que têm acesso. Escutamos repetidas vezes “Não posso” e lhes recordamos o direito de falhar. Frequentemente, ao iniciar o trabalho (especialmente com jovens de uma aldeia Kaqchikel interiorana, conservadora e com um indígena com HIV), a sensação é de estar propondo algo impossível. Nos deparamos com olhares esquivos para a parede, em vez de olhos nos olhos, e com corpos detidos com a recusa em participar. Assim, compreendemos a importância de uma grande quantidade de jogos e exercícios, que acreditávamos ser excessivamente básicos para um processo teatral “sério” e que, finalmente, foram o que nos ajudou a avançar. Tentamos relaxar os corpos e os corações, jogar e atuar sem quase ter consciência de estar fazendo isso. Assim, pouco a pouco, começamos a criar, desfrutar, refletir e denunciar. Opressões. Primeiro tivemos que traduzir o conceito. Do contrário, seria incompreensível. Depois iniciamos o processo em que começamos a explorar as opressões e a expressá-las lenta e cuidadosamente. Trabalhamos com diversos grupos e surgiram diferentes opressões muito embora tenha havido um elemento comum que nos chamou muito a atenção. No grupo de líderes comunitários indígenas de uma comunidade arrasada pelo furacão Stan, reconstruída, em grande parte, pela autogestão desses líderes, a opressão que surgiu foi o fato de se sentirem utilizados pelas ONGs para implementar seus projetos e serem, ao mesmo tempo, totalmente silenciados e ignorados por estas na hora de decidir. “Talvez seja porque não falemos bem espanhol ou porque não nos vistamos como eles” – estas são as razões que encontram para a discriminação que sofrem e a sensação de se sentirem usados. O grupo não se atreveu a apresentar o Fórum diante de um público de fora da oficina, talvez pelo temor de perder o apoio das ONGs estrangeiras que oferecem ajuda para o desenvolvimento das comunidades. Em um grupo de jovens indígenas queqchí, a opressão era a impossibilidade das mulheres da família poderem estudar. Os gritos foram eufóricos quando uma Teatro do Oprimido na Saúde Mental tactriz logró enfrentar a “su padre” y explicarle que negarle los estudios no la alejaría de un embarazo prematuro sino lo contrario, y que ella no quería terminar como su mamá. El grupo de jóvenes indígenas tzutujiles y kakchikeles presentó como opresión la imposibilidad de vivir un noviazgo en libertad en sus conservadoras comunidades. Lo común en estos casos es que el joven y la joven, en general entre quince y dieciséis años, se escapan juntos una noche y a la mañana siguiente el pueblo los considera “unidos” –equivalente a ‘casados’-. La niña se va a vivir a casa de sus suegros, se convierte en esclava –literalmente- de la suegra, debe dejar sus estudios y generalmente está embarazada inmediatamente o al muy poco tiempo. Dicen que es la opción que encuentran a la prohibición de relacionarse, la otra es el suicidio. Durante las intervenciones con el Teatro Foro, vimos mucha dificultad en los y las jóvenes de admitir sus deseos. La primera reacción es “hay que escuchar a los padres” cuando en la realidad, nadie lo hace. Ese es el fenómeno: decir lo que se cree que hay que decir, y no lo que se piensa. Luego alguna muchacha se atreve a intervenir, a hablar con sus padres, se avanza un poco en la situación, hasta que se encuentra una nueva problemática: quien decidirá finalmente si tendrán relaciones sexuales o no, si se escapan, cuándo, cómo y dónde. Será el novio. La joven carece de poder de decisión y éso, pocas se atreven a decir. De hecho, solo las que ya lo han sufrido lo expresan. “Pero asi es acá” nos dicen, con un sentimiento mucho más cercano a la resignación que a la lucha. El grupo de personas indígenas quichés, que viven con VIH, no mencionan el virus durante la primera etapa de compartir opresiones. Contaban “me dejó” “me encerraron” “me discriminaron” sin mencionar la relación de opresión con el hecho de ser personas que viven con VIH. Están tan acostumbradas a que “de eso no se habla” que lo ocultan automáticamente. Luego de procesar lo que estaba ocurriendo pudimos agregar a casi todas las opresiones el “porque tengo VIH”. Esa frase es la más compleja de decir en voz alta y la que repiten una y otra vez durante el foro, en un proceso intenso y transformador. El grupo aún se niega a presentarse como “grupo de personas que viven con VIH”, la discriminación que sufren en sus comunidades es tal, que la mayoría ni se lo cuenta a sus familias. Pero a pesar de eso, suben al esce- Mundo Afora espect-atriz conseguiu enfrentar « seu pai » e explicar que não deixá-la estudar não diminuiria a possibilidade de uma gravidez precoce, muito pelo contrário, e que ela não queria terminar como a sua mãe. Um grupo de jovens indígenas tzutujiles e kakchikeles apresentou como opressão a impossibilidade de viver um namoro livremente em suas conservadoras comunidades. O comum nesses casos é que os jovens entre 15 e 16 anos escapem juntos uma noite e, na manhã seguinte, o povo os considere “unidos” – equivalente a casados. A menina vai viver na casa de seus sogros, em escrava – literalmente – de sua sogra, deve deixar os estudos e, geralmente, já está grávida. Dizem que é a opção que encontram á proibição de relacionarem-se, a outra é o suicídio. Nas intervenções no Teatro-Fórum, observamos muita dificuldade dos jovens em admitir seus desejos. A primeira reação é “tem que ouvir os pais”, na realidade não fazem nada. Esse é o fenômeno: dizer o que se acredita que deva ser dito, e não o que se pensa. Então uma moça se atreve a intervir, a falar com os pais, e a situação avança, até que se depara com uma nova problemática: quem decidirá finalmente se devem ter relações sexuais ou não, se fogem, quando, como e para onde. Será o namorado. A jovem não tem poder de decisão, e poucas se atrevem a dizer. De fato, somente as que já sofreram isso o expressam. “É assim aqui”, nos dizem, com um sentimento muito mais próximo da resignação do que da luta. O grupo de indígenas quichés, que vivem com HIV, não mencionam o vírus durante a primeira etapa em que compartilham as opressões. Diziam: “Me deixou”, “me trancaram”, “me discriminaram”, sem relacionar a opressão com o fato de serem pessoas que vivem com o HIV. Tão acostumadas com o fato de que “disso não se fala” que ocultam automaticamente. Assim que foi possível processar o que estava acontecendo, acrescentou-se à causa de quase todas as opressões o “porque tenho HIV”. Essa frase é a mais complexa de dizer em voz alta e a que repetem uma vezes ou outra durante o Fórum, em um processo intenso e transformador. O grupo ainda se nega a se apresentar como o “grupo de pessoas que vivem com HIV”. A discriminação que sofrem em suas comunidades é de tal ordem que a maioria não conta para suas famílias. Porém, apesar de tudo, continuam subindo no palco e, dentro de seus personagens, até gritam: “Tenho HIV!”. Esse M E TA X I S 45 Mundo Afora nario una vez tras otra y dentro de sus personajes hasta gritan “tengo VIH”. Este foro rompe la hipocresía. Terminada la obra, todos y todas en la audiencia están en contra de la discriminación, pero a la hora de subir a intervenir para luchar contra ella, la refuerzan. O sea, las propuestas se centran en descubrir cómo se infectó la protagonista. Esto saca a luz la discriminación que se basa en un juicio moral sobre las diferentes formas de infección, en su mayoría relacionadas con la sexualidad. Como si el derecho a una vida digna o no dependiera de la vía por la que se infectó y no del simple hecho de ser un ser humano. Ver la realidad así, tan cruda en escena, provoca acciones de coraje y entusiasmo en los y las participantes del grupo que distan de los impulsos que se permiten en su vida diaria En el Congreso de “Indígenas y VIH” en el que participamos, la mayoría de personas que supuestamente apoyan las luchas de esta población, dieron la espalda al teatro foro y quienes lo presenciaron, no pudieron proponer ninguna alternativa a la situación. Esto generó en el grupo sentimientos de rabia e indignación que paradójicamente impulsaron la construcción de la dignidad del grupo frente a quienes l@s discriminan e ignoran. Y ver la realidad así, tan cruda en escena, hace que actrices y actores reaccionen honestamente desde lo más profundo, como no podrían hacerlo, ni soñarlo, en la realidad. Y poco a poco en este grupo el “ni poder soñar con reaccionar así en la realidad” se convierte en hechos concretos de la vida cotidiana. Se convierte en la oprimida enfrentando a una jueza (con todo lo que eso implica a nivel de status social: indígena-ladina, analfabeta-profesional, mujer del campo- mujer de la ciudad), y diciéndole, como muchas veces durante el foro: “qué importa cómo me infecté? Lo importante es que me están discriminando y eso es contra la ley”. Esta mujer diciendo estas palabras es mucho más de lo que podíamos imaginar que podrias hacer, cuando empezamos hace ocho meses este proceso. El denominador común que encontramos en todos los grupos fue el de la poca conciencia de la posibilidad real de transformar las situaciones de opresión. A nivel estético fue muy claro. Al hacer el ejercicio “el canto de la sirena” – donde con ojos cerrados cada persona debe emitir un sonido que expresa la opresión que siente- todos, sin excepción- fueron sonidos de resignación, de silencio, de dolor que se calla. Al hacerlo con 46 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental Fórum rompe a hipocrisia: no final da peça, todos e todas no público estão contra a discriminação, mas na hora de subir e intervir para lutar contra ela, as alternativas apresentadas acabam por reforçá-la. Ou seja, as propostas se concentram em descobrir como a protagonista foi infectada. Isto revela que a discriminação se baseia em um juízo moral sobre as diferentes formas de infecção, que em sua maioria estão relacionadas a questões de sexualidade. Como se o direito a uma vida digna ou não dependesse da forma como a pessoa foi infectada e não do simples fato de se tratar de um ser humano. Ver a realidade assim tão crua em cena provoca ações de coragem e entusiasmo nos participantes do grupo, que diferem dos impulsos que se permitem em sua vida diária. Pouco a pouco, essas reações que não se sentiam capazes de ter convertem-se em fatos concretos na vida cotidiana. Por exemplo, no caso de uma das atrizes do grupo, que enfrentou uma juíza (com tudo o que isso significa em termos de nível e status social: indígena-ladina, analfabeta-profissional, mulher do campo-mulher da cidade) e lhe disse, como muitas vezes durante o Fórum: “Que importância tem saber como eu me infectei? O importante é que estou sendo discriminada, e isso é contra a lei”. Essa mulher dizendo essas palavras representa muito mais do que poderíamos imaginar há 8 meses, quando começamos este processo. Com os diversos grupos indígenas, as opressões que surgiram foram diferentes, porém o denominador comum que encontramos em todos foi o da pouca consciência da possibilidade real de transformar essas situações. Em termos estéticos, foi bem claro. Ao fazer o exercício “o canto da sereia”, no qual, com os olhos fechados, cada pessoa deve emitir um som que expresse a opressão que sente, todos, sem exceção, foram sons de resignação, de silêncio, da dor de quem se cala. Ao fazê-lo com outras populações, havia mais variedade, mais luta, mais raiva, mais volume. Aqui, não. Todos acreditavam que a única reação possível seria a resignação ou a dor. É por isso que fazemos este trabalho. Para conseguir, pouco a pouco, transformar essa resignação dolorosa em uma luta digna que fortaleça os oprimidos e desarme opressões. E como vemos que essa realidade que experimentamos na Guatemala se repete em vários países da América Central, decidimos fazer o possível (e o impossível, Teatro do Oprimido na Saúde Mental otras poblaciones había más variedad, más lucha, más enojo, más volumen. Aquí no. Lo común a tod@s es el creer que la única reacción posible es la resignación o el dolor. Allí el sentido y razón del trabajo que hacemos, para lograr, poco a poco, transformar esa resignación dolorosa en una lucha digna que fortalezca a oprimid@s y desarme opresiones. Al ver que esta realidad que experimentamos en Guatemala se repite en varios países de Centroamérica, decidimos hacer lo posible (y lo imposible también) para multiplicar la herramienta en la región. Para que sean más y más las poblaciones oprimidas que tengan acceso a este espacio de expresión y transformación. Ese es el sueño: comenzar en noviembre un proceso de un año, y que al final haya por lo menos 10 nuevos grupos de Teatro del Oprimido, transformando Centroamérica. Recién empezamos y hay mucho por hacer, pero eso más que asustarnos, nos estimula. ◘ 1 Multiplicación y Exploración del Teatro del Oprimido en CentroAmérica www.me-to-ca.blogspot.com Mundo Afora também) para multiplicar o TO na região. Para que as populações oprimidas tenham cada vez mais acesso a este espaço de expressão e transformação. Esse é o sonho: começar, em novembro de 2010, um processo de 1 ano, que ao final, resulte em pelo menos 10 novos grupos de Teatro do Oprimido transformando a América Central. Acabamos de começar, e há muito que fazer, porém isso, em vez de nos assustar, nos estimula.◘ 1 Multiplicación y Exploración del Teatro del Oprimido en CentroAmérica. www.me-to-ca.blogspot.com M E TA X I S 47 Ações Concretas Teatro do Oprimido na Saúde Mental O T FO Um grupo chamado LIBERARTE! Monique Rodrigues , Curinga do CTO e acadêmica em Sociologia. Desde 2006 atuo no projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental, que me possibilitou entender o louco como sujeito, com especificidades e potencialidades. Descobertas e reflexões trazidas pela prática: Rio de Janeiro, São Paulo e Sergipe. No Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, tive uma experiência recheada de desafios e vitórias. Compartilho um pouco desses três anos de trabalho. As maneiras de atuação do Estado em sua função coercitiva - formas oficiais de punição - estão diretamente ligadas à moral e às teorias presentes em determinada época. Os métodos punitivos acompanham seu tempo histórico e suas transformações. Assim também ocorreu com a forma de tratar o louco e, mais especialmente, o louco infrator. Inicialmente, os indivíduos presentes nessa categoria eram internados em instituições psiquiátricas, o que, na avaliação de alguns, criava um ambiente hostil no local. Esse fato, atrelado às necessidades sociais e às novas concepções ideológicas da época, fundamentou a criação do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, primeiro Manicômio Judiciário criado no Brasil, em 1921, representante da 48 M E TA X I S conjugação entre direito e psiquiatria. O sujeito louco infrator torna-se duplo objeto de saber, conjugado em um duplo estigma. A instituição, híbrida em sua essência, assume seu caráter prisional; nela, a “cultura do cadeião” é vista em toda parte: desde a estrutura física com seus altos muros e “enfermarias celas” (gradeadas), até a rotina com seus rígidos horários, controles de efetivo e entrada de material. Nesse contexto de dupla exclusão, não se tarda a pensar que o sujeito enquanto detentor de diretos e provedor de discursos é extinto, abrindo espaço para que este se coloque como objeto seja do saber psiquiátrico ou do saber jurídico. Muitas eram as reuniões, seminários e congressos que discutiam a relação da custódia com o tratamento psiquiátrico, escassas as representatividades desse grupo. Como trabalhar nesse contexto? O Teatro do Oprimido pode ser uma ferramenta de transformação dessa realidade? Eu e Alessandro¹ tínhamos certeza que sim. Iniciamos a oficina, submergidos pelos olhares desconfiados de guardas e equipe técnica. Grupo formado: nasce o Liberarte. Momento de contar histórias: uma chuva de opressões: escassez de ser- Ações Concretas Teatro do Oprimido na Saúde Mental viços, problemas na visita, cantina, refeitório, atendimento, família, processo, dentre muitas questões. O espaço de diálogo foi sendo instalado. Em uma instituição onde as hierarquias apresentam-se de forma exacerbada, na qual a cultura do “Sim, senhor! Não, senhor!” é fundamental para se estabelecer categorias, a criação de um espaço em que esse indivíduo tenha oportunidade de trocar e discutir ideias era quase inimaginável. Logo vieram as retaliações. Muitos diziam que as histórias não passavam de surtos delirantes. Como acreditávamos em indivíduos despossuídos de credibilidade? Quem eram eles e elas para criticar o estabelecido como norma? Investigamos os temas discutidos. Verificamos a veracidade das histórias contadas: verdade nua e crua. Sabíamos que o Teatro do Oprimido não daria conta de toda a problemática vivida naquele contexto. Era preciso estabelecer um foco na opressão mais latente e urgente. Percebemos que a lentidão dos processos judiciais, fruto da alta burocratização do aparato judiciário, estava na base de quase todas as opressões relatadas, podendo estender o tempo de internação por 30, 40 ou até 50 anos. Nessa estrutura, é comum que os sujeitos dessa engrenagem se familiarizem com o que é posto como regra. Cada um em seu papel trabalha para que a indústria da custódia continue a funcionar. Sair desse lugar não é fácil. Desânimo e conformismo são cotidianos. Surgiu a peça “Anseios de Liberdade”, com personagens representantes dos diversos atores sociais dessa engrenagem: defensores, técnicos, guardas, promotores e internos. As primeiras apresentações foram recheadas de polêmica. Técnicos e guardas se identificavam com as personagens ali colocadas. O Teatro do Oprimido provocou certo estranhamento com relação às opressões que pareciam naturalizadas, com as quais todos estavam de certo modo familiarizados. Cada fórum foi essencial para a discussão e investigação de caminhos possíveis. Uma das apresentações emblemáticas foi feita para juízes, promotores e defensores. Muitos dos convidados não sabiam da proposta de diálogo entre palco e plateia. Esperavam um espetáculo tradicional, algo descolado da realidade. Durante a apresentação, o choque foi intenso. Internos, através do Teatro do Oprimido, discutiam e questionavam a função social dos que ali estavam como espectadores. Vozes há tempos amordaçadas davam seu grito de liberdade. Momento do fórum: silêncio ensurdecedor. Silêncio de significados. Revolta, surpresa, diálogo. Considero esse um momento divisor de águas. Surgem convites para apresentações externas. Na primeira saída, surge o desafio do aparato de segurança para deslocamento dos presos-pacientes. Atores e atrizes transportados em camburões e algemados. Entretanto, a instituição, por seu caráter híbrido, permite que seus internos transitem entre dois mundos: o do direito, que os entende como presos, e o da saúde mental, que os classifica como pacientes. Como presos, puderam reivindicar seu lugar de pacientes e, como tais, ser transportados em ambulâncias. Um novo olhar sobre os internos aparecia. Nas apresentações seguintes, atrizes e atores se dividiram em ambulâncias e Kombis. O camburão? Conduziu apenas o cenário. Evoluímos até o ponto em que as ambulâncias foram dispensadas, e homens e mulheres do elenco passaram a seguir juntos para as apresentações externas no mesmo tipo de transporte destinado aos funcionários do sistema. A alteração do meio de transporte representa um pouco das transformações individuais e estruturais provocadas por esse trabalho. Nessa ação concreta, presos-pacientes assumiram o lugar de sujeitos. Hoje, a maioria do elenco está desinternada, respirando outros ares. O caminho trilhado por eles e elas, de presospacientes a cidadãos, foi fundamental para que retomassem sua caminhada em uma vida pós-Manicômio. O Heitor Carrilho não é mais um local de entrada de novos internos. O Rio de Janeiro, que antes possuía três Manicômios Judiciários, hoje tem apenas um. Mesmo havendo ainda muitos desinternados sem vínculo social, pela escassez de instituições, como as residências terapêuticas, o avanço é inegável. O Teatro do Oprimido, conjugado ao trabalho de outros setores que atuam para a transformação dessa realidade, contribuiu concretamente para que a Reforma Psiquiátrica – bem-sucedida na desativação de hospitais psiquiátricos e na criação de CAPs, mas que permanecia tímida com relação aos Hospitais de Custódia - pudesse adentrar esse espaço para iniciar mais uma etapa na luta por uma sociedade sem Manicômios. ◘ Referências: BOAL, A. A Estética do Oprimido. RJ: Garamond, 2008. ________. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. RJ: Civilização Brasileira, 2005. ________. Jogos para Atores e não-atores. RJ: Civilização Brasileira, 2006. CERQUEIRA CORREIA, L. Avanços e impasses na garantia dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de delito. Dissertação Mestrado. Universidade Federal da Paraíba. Centro de Ciências Jurídicas. 2007. DAHMER PEREIRA, T.; DANTAS, R. Compreender a relação de custódia: notas reflexivas para o exercício profissional – o caso do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico in “Ética e Direito”. Coletânea Nova de Serviço Social II. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris. Notas: 1 Alessandro Conceição é Curinga do CTO e integrante da equipe TO na Saúde Mental. M E TA X I S 49 Ações Concretas Teatro do Oprimido na Saúde Mental De objeto a sujeito: uma trajetória de humanização Claudia Simone, Curinga do CTO e do projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental. Pirei na Cenna é um grupo de Teatro do Oprimido, com dez anos de história, formado por profissionais e usuários da saúde mental e seus familiares. Em seu percurso, reúne diversos exemplos de superação e de transformação, tanto individuais quanto coletivas. E incontáveis intervenções sociais que forjaram a humanização de realidades injustas e opressivas. Aqui, um exemplo terno. Enéas,² um dos participantes mais antigos do grupo, em resposta à solicitação de busca de locais para apresentação, fez a seguinte proposta: – Gostaria de apresentar nosso espetáculo na escola onde eu estudei, que fica no meu bairro. Aceitamos a sugestão de imediato. Ainda assim, quisemos saber o motivo da escolha. Por que o desejo de voltar à escola primária? Então, Enéas nos contou um pouco mais de sua história pessoal: –No meu bairro, todo mundo me joga pedra e me chama de maluco. Quase ninguém me chama pelo nome. Muitos se dirigem a mim pelo nome do personagem do nosso espetáculo: Dalua. A diretora dessa escola ainda é a mesma que me dizia que eu nunca seria alguém, que não conseguiria ser nada, que não poderia fazer muita coisa na vida, por ser usuário de saúde mental. Eu desejo voltar lá e mostrar para eles que me transformei em ator, que, apesar de maluco, consegui fazer muita coisa na vida, até uma peça que fala sobre loucura e AIDS. Imagino que isso tenha valor para eles. Imagino que, sabendo disso, eles vão me respeitar. 50 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental Enéas ficou responsável pela produção do evento. Fez os contatos oficiais a partir de uma carta de apresentação e de um folheto do grupo. A escola agendou uma data para a apresentação. Com tudo certo, providenciamos convite para a comunidade. Chegamos na escola no dia marcado. Enéas, produtor do evento, estava ansioso e muito nervoso, suava frio. Os outros integrantes do grupo, conscientes da história do companheiro com a escola e da importância dessa apresentação para ele, demonstravam toda a solidariedade. O pátio da escola estava lotado. Jovens, crianças, adultos, velhos, amigos e vizinhos do Enéas. Conhecidos e também desconhecidos para ele e para o grupo. Antes de iniciarmos a apresentação, ouvimos sussurros tímidos e provocadores: – Dalua! Maluco! Dalua! O que você tá fazendo aí? Sai daí, maluco! Até que... tudo virou silêncio. A peça É Melhor Prevenir que Remédio Dar começava. Na encenação, o grupo aborda a loucura, a prevenção de DST/AIDS e o preconceito aos usuários de saúde mental, com uma teatralidade encantadora. Paralisada e surpresa, a plateia acompanha, cada vez mais concentrada, a encenação. Pareciam não acreditar no que viam. Quando Éneas entrou em cena, fazendo o pai de uma das personagens, o silêncio foi solene. Nesse momento, seria possível ouvir até uma agulha cair no chão. Silêncio sucedido de choro. A diretora, no meio da plateia, parecia não conseguir acreditar que aquele louco, alvo de pedras e ofensas, era um louco artista... ou um artista louco? Terminada a peça, só se ouvia “Enéas, Enéas, Enéas!” E Enéas dizia baixinho: – Eles lembraram do meu nome! A diretora, em prantos, subiu ao palco e publicamente pediu desculpas a Enéas. Ela assumiu que havia dito a ele que não seria nada, que não faria nada diferente por tomar remédio de maluco. Naquele momento, ela pôde verificar que ele, apesar de todas as limitações que tinha, poderia, sim, fazer muita coisa, tanto que fez. Fazia teatro, um teatro diferente, questionador e propositivo. Um teatro que atuava a dúvida como elemento transformador. O Teatro do Oprimido. Um teatro em que Enéas podia ser ele mesmo, e se vendo atuar, descobria-se melhor do que Ações Concretas supunha, se dava conta de suas potencialidades. Passada uma semana da apresentação na escola, Enéas chega empolgado e diz: – Ninguém me chama mais de maluco ou de Dalua na minha rua. Agora me chamam de Enéas e até de Artista. Dizem que fui muito bem e que querem ver a peça de novo e mostrar para quem não viu. Eles querem até vir assistir aqui no hospital. Voltei a ser Enéas, agora eu sou gente de novo, e ninguém me joga pedra. Com o Teatro do Oprimido, eu pude mostrar que sou diferente, mas igual. Que não sou uma coisa que se pode jogar fora, que sou uma pessoa, um cidadão. Uma das primeiras perdas impostas a grupos socialmente marginalizados é a da identidade. Pessoas passam a ser números, casos, índices, objetos de estudo. Perdem o direito à identidade singular: nome, particularidades, individualidade. Enéas tinha sido alijado do direito humano fundamental ao nome, passando de substantivo próprio a substantivo comum. De sujeito a objeto. De protagonista a coadjuvante de sua própria história. Como negro, pobre e usuário da saúde mental, teoricamente, não poderia esperar por muito mais. Entretanto, na realidade da vida prática, apesar de todas as dificuldades, teve condições de questionar a sua “sina” e não aceitou o “destino” que lhe foi oferecido. Apropriou-se do leme da vida e mudou o rumo dos acontecimentos “previstos”. Quando propôs voltar à sua escola primária, onde aprendeu a ser discriminado e desrespeitado, demonstrou toda a sua generosidade e consciência. Não voltou por vingança, mas, sim, por necessidade de transformar sua realidade. Além de ter contribuído para a humanização daquela escola – diretora, alunos, professores e comunidade –, fez sua própria trajetória de humanização. Não aceitou o lugar de objeto das frustrações alheias e ocupou o espaço de cidadão, que atua para fazer valer seus desejos e necessidades e conquistar seus direitos. ◘ Nota: 1 Enéas, ator do grupo Pirei na Cenna, morreu em 2010. A ele, nossa homenagem! M E TA X I S 51 Ações Concretas Teatro do Oprimido na Saúde Mental Direito à boca, aos dentes, à voz! “O teatro deve ser um ensaio para a ação na vida real, e não um fim em si mesmo.” (Augusto Boal) “Não basta interpretar a realidade, é necessário transformá-la.” (Karl Marx) Kelly di Bertoli, Curinga do CTO e do Projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental. Sou Curinga do projeto Teatro do Oprimido na Saúde, no Litoral Paulista. São muitas as estórias e as transformações individuais e coletivas que observamos, acompanhando 13 grupos em unidades de saúde mental, com usuários, profissionais, familiares e comunidade. Nosso objetivo: introduzir o Teatro do Oprimido como política pública. Nossos Multiplicadores: psicólogos, terapeutas, assistentes sociais, enfermeiras, fonoaudiólogos. Lutamos por uma sociedade sem manicômios. Nossa arma: o Teatro do Oprimido! Nosso teatro não faz milagres. Entretanto, provoca questionamentos e profundas mudanças pessoais e coletivas. Ação social concreta continuada está no topo da árvore do Teatro do Oprimido. Nas raízes dessa árvore: ética, estética e solidariedade. Almejamos fazer teatro como política. O "se ver agindo" que o teatro nos proporciona pode revolucionar ações e posturas perante a sociedade. Atuar de forma consciente no palco da vida. Objetivamos que o teatro possa ser utilizado como linguagem e como voz para a comunicação daqueles que são privados do seu direito de falar. No caso da Saúde Mental, a falta de autonomia dos usuários para buscar seus direitos, que não são garantidos satisfatoriamente, limita suas vozes. O SELAB (Serviço de Lar Abrigo/ Residência Terapêutica para portadores de doenças mentais), em Santos, é uma casa de saúde, de portões fechados, onde moram usuários da saúde mental classificados como casos severos, que não têm contato com familiares. Muitos são remanescentes do antigo Hospital Psiquiátrico Anchieta.¹ No SELAB, como em outros equipamentos de saúde onde atuamos, profissionais que trabalham em equipe 52 M E TA X I S Ações Concretas Teatro do Oprimido na Saúde Mental buscam humanizar o tratamento psiquiátrico, sem camisa de força, choque elétrico ou tortura. Num dia de oficina de Teatro do Oprimido no SELAB, os usuários estavam espalhados pelos cantos e cômodos da casa. Aproximadamente 20 se reuniram em círculo para o primeiro exercício, um passando o comando do jogo para o outro. Como qualquer grupo de iniciantes, muitas vezes, trocavam a ordem das coisas, mas, aos poucos, avançavam na concentração. Após o exercício, tentamos criar uma cena de Teatro-Fórum. Havia certa dificuldade em compreender o que seria “uma cena”. Em vez de insistirmos na construção da cena, propusemos uma improvisação: pacientes e médicos. Cada dupla entende o comando do seu jeito. Perguntado sobre quem faz o médico e quem faz o paciente, Marco Antônio responde: – Sou o acomodado. E Zé Luís completa: – E eu sou o preguiçoso. Seria devaneio ou forma particular de entender uma relação tão conhecida? Numa outra dupla surge a improvisação entre dentista e paciente: Paciente: – Doutor, eu preciso arrumar meus dentes. Com dentes estragados assim ninguém vai querer me beijar! Dentista: – Não! Não dá, é muito caro. Paciente: – Mas eu preciso arrumar os dentes! (Ao dizer isso, mostra os dentes apodrecidos ao dentista.) O ator que improvisa o dentista, inesperadamente, vira-se para mim e mostra seus próprios dentes, ou melhor, tocos de dentes podres, e diz: Dentista (que se transforma temporariamente em paciente para se dirigir a mim): – Eu também estou com os dentes podres, olha aqui os meus dentes! Eu também quero ir ao dentista! Quando percebi, estava criado um grande círculo em volta de nós, como se estivéssemos atuando em arena. Logo, aparece outra usuária fazendo uma médica e leva os dois pacientes para seu consultório imaginário. Médica: – Eu posso tratar seus dentes, só que é muito caro. Paciente: – Então, não dá. Outro paciente: – Mas isso aqui não é um lugar público? Dentista: – Não, aqui é meu consultório particular. De graça, não tem jeito! Como eu nunca havia reparado naqueles dentes? Entendi muito sobre as dificuldades de expressão: rebaixamento cognitivo, longos anos de tratamento, uso de medicamentos controlados, quadros psiquiátricos associados a quadros neurológicos, perdas advindas dos períodos de crise, falta de dentes. Uma dentição saudável poderia melhorar as possibilidades de articulação verbal, favorecer a comunicação e, consequentemente, criar maior possibilidade de autonomia. Os direitos à cidadania, à saúde e os direitos humanos são essenciais a todos e todas. Perguntei se queriam ir ao dentista, e quase todos levantaram as mãos e mostraram os dentes apodrecidos, as bocas vazias, os sorrisos vazios. Era necessário promover uma ação social concreta continuada, para além das improvisações teatrais: dentista para os usuários internos da residência terapêutica. Pelo direito de comer, de falar, de ter saúde! Os usuários ganham benefício mensal e também moram em uma casa de responsabilidade pública. Nossas improvisações extrapolam a oficina e repercutem na sala da coordenadora, que, junto com seus funcionários, providencia a ida dos pacientes internos do SELAB ao dentista. O psicólogo e Multiplicador de Teatro do Oprimido nos informa que diversos pacientes iniciaram tratamento dentário após as reivindicações ocorridas. Improvisamos a realidade para ensaiar como transformá-la, através de ações sociais concretas e continuadas. O teatro começa na sala de ensaio e segue intervindo na vida real. ◘ Nota: 1 Primeiro Hospital Psiquiátrico em Santos fechado pela Reforma Psiquiátrica. M E TA X I S 53 Ponto de Vista Teatro do Oprimido na Saúde Mental Por uma História Que Saia do Papel Gladyson Stelio Brito Pereira, mestre em história/UFF, multiplicador de TO e militante do MST. A história como disciplina acadêmica e curso universitário se consolidou, durante o século XIX, sob a influência da chamada História “positivista” ou metódico-documental, que pesquisava e analisava documentos escritos e oficiais. A História estaria no passado, resultando numa História contada do ponto de vista do poder. O meio de divulgação era um documento escrito: monografias, dissertações, teses... Algumas transformadas em livros. A partir de 1929, os historiadores franceses March Bloch e Lucien Febvre, “Escola dos Annales”, propõem o uso de todo e qualquer resquício humano. “A diversidade dos testemunhos [históricos] é quase infinita. Tudo o que o ser humano diz, escreve ou toca pode informar a seu respeito”¹ . História de todos os homens no tempo. Afirmavam que havia uma diferença entre o “passado” e o “conhecimento do passado”. O “passado” não muda, mas o que pensamos sobre ele muda; cada nova geração tem um novo jeito de pensar, novas dúvidas, novas perguntas. Os vestígios humanos precisam ser interrogados a cada nova geração, ou, como Lucien Febvre afirmou: “A História é filha do seu tempo”. Apesar das críticas, o meio de divulgação do resgate histórico 54 M E TA X I S continuou sendo documentos escritos: monografias, dissertações, teses... Na década de 1970, outro grupo de historiadores franceses, a “Nova História”, passou a usar como documentos históricos: fotografia, pintura, cinema, música, livros de contos de fadas, televisão etc. Dentre esses, Marc Ferro propôs os filmes como documentos históricos e como forma de divulgar a pesquisa histórica. Porém, o resultado desse esforço inovador, com exceção dos filmes de Marc Ferro, foram documentos escritos: monografias, dissertações, teses... Na Itália, historiadores como Carlo Ginsburg investigaram a história de “sujeitos coletivos”, chamando a atenção para o poder que têm as “micro-histórias” (a história da vida de uma pessoa, uma vila etc.) de clarear as relações sociais mais amplas. Anda assim prevaleceram monografias, dissertações, teses... Se o resultado de uma pesquisa historiográfica pode se materializar em filmes como os de Marc Ferro, por que não poderia também produzir peças teatrais? A partir de experiências de 2008,² iniciei um trabalho de socialização dos jogos e exercícios teatrais e de produção de fóruns relâmpagos (cenas feitas para uso Teatro do Oprimido na Saúde Mental imediato nos encontros e cursos) no MST de Alagoas. Ao resgatar a história de vida de um trabalhador (sua micro-história), passo necessário para a produção de uma peça de TO, percebi que findava por reconstruir, por amostragem, a história de vida dos trabalhadores de determinada região. Mais que isso, recuperava essa História com uma riqueza ímpar de detalhes, pois resgatava os sentimentos e os processos de assimilação física da opressão. Os trabalhadores revivem as histórias de empregados das fazendas e as comparam com a condição de não terem mais patrão, percebem em que essa mudança alterou ou não a forma de pensar e de sentir o mundo. O historiador-Curinga conduz o processo incorporando informações e provocando o debate com questionamentos. Assim encarnado, o Teatro do Oprimido deixa de ser um instrumento auxiliar de processos didáticos e se torna fonte de enriquecimento estético, e a história, um fazer vivo que se abre ao coletivo. Num diálogo virtual com Augusto Boal (que produzia a “A Estética do Oprimido”), escrevi: “Um companheiro relatou que, nas oficinas com os acampados, eles riram e se divertiram muito. Disse: ‘Gladyson, a coisa mais importante que trouxe foi a alegria, nosso povo precisa disso!’. Só esse exercício de desbloquear o corpo, desafiar os sentidos e provocar a interação já foi libertador, pois a maioria do nosso povo, desde criança, está acostumado mais ao sofrimento e à dor que à alegria e ao prazer. Eles têm clareza de quem é o opressor e o oprimido, a luta pela terra não deixa dúvidas. Às vezes, o desafio é superar os costumes de uma vida oprimida (viver o sofrimento como natural, tratar com rudeza a si e os outros, não se permitir brincar etc.). Aquela questão da opressão interiorizada.” Boal retrucou: “Caro Gladyson, você tem toda razão quando diz que ‘o maior desafio é o de como superar os costumes de uma vida oprimida (viver o sofrimento como algo natural)’. Um grande abraço, Augusto Boal.” Realizei também experiências de resgate histórico com outros grupos sociais em dois projetos de extensão,³ um em União dos Palmares/AL, com estudantes da Universidade Estadual de Alagoas, na busca de compreender a devastação ambiental e humana na Mata Atlântica, e outro por meio da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, com professoras rurais de Amargosa/BA, resgatando histórias de opressão na Ponto de Vista educação rural. Essas experiências foram me conduzindo a refletir cada vez mais sobre a relação entre Teatro do Oprimido e História. Enclausurados nas universidades, o impacto dos historiadores na vida social é livresco e mínimo. O TO pode abrir novas possibilidades para o fazer historiográfico. O resgate histórico é um momento inerente à preparação das peças de Teatro do Oprimido. O que hoje em historiografia chamamos de “micro-histórias” é um passo necessário à constituição das peças e dos fóruns. Situações que revelam, em pequena escala, problemas vivenciados por uma sociedade inteira em certa época. A constatação da naturalização do embrutecimento dos sentidos me fez adicionar ao exercício do Teatro do Oprimido a ação desnaturalizadora do resgate histórico na luta pela libertação dos sentidos, seja reconstituindo com os trabalhadores a robotização de seus movimentos corporais (no interesse de quem?), seja recuperando com os estudantes universitários a trajetória da expansão da cana, que devasta vidas humanas e florestas, seja rememorando “pequenas” tragédias na vida de quem se dedica a educar no campo. Como resultado desse esforço de resgate histórico, têm-se peças teatrais participativas, atraentes e populares, que estimulam pensamento simbólico e sensível, acessíveis a todas e todos. A História pulsa na tensão de um teatro que resgata o passado, coloca os problemas no presente e se abre para o futuro no devir. Como foi, como está e como poderá vir a ser a nossa História. ◘ Referências: BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Notas: 1 Bloch, Marc. 2002, p.79 2 Em 2008, já morando em Alagoas, duas experiências fora do MST aprofundaram minha convicção no potencial da relação Teatro do Oprimido/Movimento de Massas/História: o II Encontro Internacional de Teatro e Educação, em Barcelona, onde fui a convite de Julian Boal, e, em particular, a breve, porém intensa convivência em Paris com Julian Boal e Jeanne Dosse, que me apresentaram ao “Jana Sanscrit”, que tem no TO seu instrumento central de ação. Ainda em 2008, participei, com mais 4 militantes do MST de Alagoas, do projeto “Fábrica de Teatro Popular Nordeste”, promovido pelo Centro de Teatro do Oprimido – CTO e que tinha como proposição a formação de Multiplicadores de Teatro do Oprimido. Foi fundamental para meu aprofundamento nas técnicas e na filosofia do TO. 3 Projetos de extensão coordenados pela professora Silvana Lúcia da Silva Lima. M E TA X I S 55 Ponto de Vista Teatro do Oprimido na Saúde Mental TO para dialogar sobre Diversidade Sexual Leandro Loppes¹, professor, educador e multiplicador do Teatro do Oprimido - CTO. A utopia está no horizonte: Quando caminho dois passos, ela se afasta dois passos; Eu caminho dez passos, e ela está dez passos mais longe... Para que serve a utopia? Serve para isso, para caminhar! ( Eduardo Galeano ) O Teatro do Oprimido (TO) é feito pelos, para e sobre os oprimidos. E quem são eles? Há controvérsias! Oprimido é aquele que sofre opressão; humilhado, vexado. Opressão é o ato ou efeito de oprimir. É o exercício exagerado de poder ou de violência sobre indivíduos ou grupos; tirania, segundo o Aurélio Buarque de Holanda. Para Paulo Freire, oprimidos são os excluídos dos bens culturais, os sem teto, sem escola, sem comida, sem educação, sem arte. No TO é quem sofre opressão e luta para superá-la. Ainda entendendo os conceitos: Identidade. Tem a ver com o como eu me coloco diante da sociedade, com quais grupos, representações e imagens me identifico e me reconheço. Na pós-modernidade, as identidades deixam de ser unificadas em redor de um eu coerente, havendo dentro do sujeito identidades contraditórias empurrando em diferentes direções (...) somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos 56 M E TA X I S nos identificar, ao menos temporariamente² . Essa concepção nos leva a entender que a identidade na contemporaneidade é fragmentada e flutuante... O TO parte do princípio de que determinados grupos sociais são oprimidos, acreditando que o método auxilia no processo de desvendamento e de rompimento dessas opressões. Esses grupos são constituídos por pessoas que só podem lutar pela transformação da realidade opressora caso se reconheçam nessas identidades. Duas experiências me trouxeram a necessidade dessas reflexões. Primeiro, a indignação de um doutor em teatro frente ao meu pré-projeto de mestrado sobre o TO. O referido doutor retrucou ofendido, aos trechos do meu trabalho que apontava mulheres, negros e homossexuais, entre outros, como oprimidos. Eu não sou oprimido, não sou gay, nem negro, sou muito bem remunerado, e muito bem sucedido, sou ser humano e não quero me encaixar nesses estereótipos... declarou irritado após a leitura do meu texto. Outra situação: Uma aluna de um curso que eu ministrava para o supletivo tivera que preencher uma ficha de cadastro e devia declarar a cor de sua pele. A aluna se declarou branca. Tanto o doutor como a aluna eram negros. Como posto anteriormente, o sentimento de pertencimento é imprescindível para o processo de Teatro do Oprimido na Saúde Mental construção das identidades, porém o fato de não nos sentirmos pertencentes a determinado grupo, necessariamente, não nos exclui dele. Nem o fato de estarmos em constante processo de construção como sujeitos sociais. Nosso comportamento, maneira de falar e vestir, a cor do nosso cabelo, e da nossa pele, entre outros sinais, são “lidos” pelo olhar do outro que mesmo contra a nossa vontade, nos identifica com um determinado grupo, que pode ser dominante ou marginalizado, que pode ser estigmatizado, mesmo que bem remunerado. O outro é outro gênero, é outra cor, é outra sexualidade, é outra etnia, é outra nacionalidade, o outro é outro corpo³ . O projeto Diversidade Sexual na Escola, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, busca a promoção da cultura de diversidade sexual no espaço escolar utilizando o TO para provocar o diálogo sobre essa questão entre alunos das escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro. Para iniciar esse projeto, buscamos criar um grupo composto por pessoas que tivessem orientação homossexual, saídas da escola há pouco tempo. Eis o problema identitário novamente! Montamos o espetáculo Coisas de Menina com jovens heterossexuais e homossexuais que queriam discutir suas sexualidades a partir do Teatro. A peça conta a história de Zezé, uma menina que gosta de jogar futebol e é repreendida pela diretora da escola, que chama a mãe da aluna para uma reunião com a finalidade de apontar seus desvios e ressaltar a má influência que a menina representa. Dona Cleide leva um cartão vermelho da diretora, e é aconselhada a conversar com a filha e transformá-la em uma menina de verdade. Ao final, Zezé é metamorfoseada em fantoche, vestida de rosa, enquadrada no modelo esperado pela sociedade. O que incomoda a diretora da escola não é somente o fato de a menina jogar futebol. É também, e principalmente, a transgressão no comportamento de gênero cometido pela aluna. A personagem vestese como menino e não tem interesse pelas atividades atribuídas às mulheres. A mãe da menina, pressionada pela diretora e não suportando a pressão social da família, dos vizinhos e agora da escola, sucumbe a esse discurso e deixa-se influenciar. Zezé não tem a identidade esperada para as pessoas de seu sexo. Ponto de Vista Entre 2008 e 2010, o espetáculo foi apresentado para centenas de estudantes. A experiência nas escolas reforçou a percepção de que ainda se perpetua uma educação heteronormativa4 , onde o comportamento de cada sexo é atribuído à natureza e não a construções socioculturais. Essa visão biologizante sobre o comportamento de homens e mulheres permite, por exemplo, a tolerância em relação à agressividade dos meninos (considerada normal), em contrapartida a uma exigência de um bom comportamento das meninas que devem ser menos competitivas e não participar de atividades destinadas aos homens. Desconsidera a orientação sexual dos alunos como se essa questão não influísse em todas as relações sociais: consigo mesmos, no trabalho, na família e entre os amigos. A percepção e expressão dos jovens sobre masculinidades e feminilidades hoje é muito diferente do que se via há uma década. A construção das identidades sexuais na contemporaneidade subverte muito mais os limites entre os gêneros, o que não significa necessariamente que a orientação sexual vá pelo mesmo caminho. A mudança de paradigmas, no entanto, não se dá de forma absoluta, nem poderia. Forças em sentidos opostos entram em conflito para que determinada mudança seja realizada atendendo a necessidades de expressão de cada grupo. Há muito tempo que vivemos a “ditadura do rosa e do azul”. Desde o nascimento, aprendemos que rosa é cor de menina e azul de menino. Basta uma observação mais atenta para perceber como a cor passa a ser obrigatória em guarda-roupas femininos de muitas mulheres de todas as idades. Nada de mais, se essa simples preferência não ganhasse conotações sexuais diversas. Rosa virou sinônimo de feminilidade, de fragilidade, de doçura, características inadmissíveis para os homens e obrigatórias para mulheres. E quem não se encaixa nesses perfis fica estigmatizado. Rosa virou uma preferência natural das mulheres. Em festinhas, nove entre dez meninas vestem rosa, e apesar de a cor ter caído na graça de alguns homens, identificados por metrossexuais5 , ainda é pouco tolerada quando invade os guarda-roupas masculinos. Não é por acaso que em muitos espetáculos de TO que tratam das opressões contra mulheres ou versam sobre questões de gênero ou homossexualidade esse recurso é tão utilizado. “Rosa ou azul, boneca ou bola, casa ou rua, ih, não importa” canta o grupo DiversiM E TA X I S 57 Ponto de Vista Teatro do Oprimido na Saúde Mental Ponto de Vista Teatro do Oprimido na Saúde Mental dade EnCena numa referência aos comportamentos sociais atribuídos a cada sexo. Entender a fragmentação e, paradoxalmente, fortalecer as identidades pode ser o caminho para uma sociedade que não violente pessoas coagindo-as a se encaixarem em formas humanas homogeneizadas, em que determinados padrões são aceitos e outros rechaçados. Onde, só é permitido o que está na moda. Apoderar-se da estética, da palavra, da imagem e do som, para rasgar arquétipos de comportamento e desestabilizar o status quo é o que se pretende. Para isso clama-se que os espectadores invadam os palcos, e transformem as imagens que vêem e não desejam, em imagens de uma sociedade justa e convivial6 , ensaiando no palco a transformação da vida . Eis a utopia! ◘ Referências: 1-BOAL, Augusto. O Teatro como Arte Marcial. RJ: Garamond, 2003 2-BORTOLINI, Alexandre. Diversidade Sexual na Escola. 2ª ed. RJ: Pró-Reitoria de Extensão/ UFRJ, 2008 3-FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 5ª edição. RJ: DP&A, 2001 4-SILVA, Tomaz Tadeu, HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. (Orgs.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000 5-http://pt.wikipedia.org/wiki/Heteronormatividade 6-http://pt.wikipedia.org/wiki/Metrossexual Notas: 1 Foi coordenador e Curinga do grupo Diversidade EnCena que integra o Projeto Diversidade Sexual na Escola, da UFRJ. 2 HALL, Stuart, 2001, p.25 3 SILVA, Tomaz Tadeu, 2007, P.97 4 Heteronormatividade ou heterocentrismo se refere a atitude de pessoas que enxergam a heterossexualidade como única forma de orientação sexual (do grego hetero, “diferente”, e norma, “esquadro” em latim) é um termo usado para descrever situações nas quais variações da orientação heterossexual são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais, crenças ou políticas. 5 Metrossexual é um termo originado nos finais dos anos 90, pela junção das palavras metropolitano e heterossexual, sendo uma gíria para um homem heterossexual urbano excessivamente preocupado com a aparência, gastando grande parte do seu tempo e dinheiro em cosméticos, acessórios e roupas de marca. 6 BOAL, Augusto, 2003, p. 117 58 M E TA X I S O Caso de Jonas Fabrício Gobetti Leonardi, multipllicador do Teatro do Oprimido – Santos /SP. Jonas entra em cena. Adentra num espaço de livre criação. Tudo é possível. O tablado, improvisado numa pequena sala de oficinas, não é utilizado para que expresse apenas a sua própria individualidade. Jonas está dentro de um almoço que acontece no NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial – Santos/SP), onde ele realiza tratamento e que frequenta duas ou três vezes por semana. Percebe-se que o espaço estético em que mergulha Jonas traz uma relação de identificação e afastamento. Ao mesmo tempo em que revela seu próprio ser, com seus sentimentos, fragilidades, emoções, atitudes perante as situações etc., ele se descola da situação real e adentra na plasticidade do palco, mostrando-se em cena. Como diria Boal, “o protagonista age e se observa agindo, mostra e observa mostrando, fala e ouve o que diz”. A situação da cena foi revelada pelos participantes do grupo numa discussão criada durante o almoço dos usuários que frequentam a instituição. Segundo o relato, a copeira havia se negado a servir uma usuária que acabara de chegar e não participara das atividades da manhã. O fato motivou outros a se solidarizarem, e eles se recusaram a comer, como forma de protesto. A copeira argumentava que a usuária não estava na lista de frequência do dia. A situação contada costumava acontecer habitualmente. Jonas sentiu-se identificado com ela. Estava entre aqueles que fomentavam as grandes discussões e conflitos, às vezes chegando à agressão física. Sua impulsividade e agressividade levavam a um afastamento tanto de funcionários quanto de outros usuários, que o viam com forte antipatia. Seu diagnóstico (transtorno de comportamento) referendava o isolamento, dentro e fora do NAPS. Jonas, nesse Teatro-Fórum, toma o lugar do protagonista, mesmo sabendo que as regras não o favorecem. Pega seu prato rindo e mexendo com os outros que já estão sentados. Chega para a copeira de forma intimidadora e a obriga a servi-lo. A copeira argumenta que não é seu dia de atividades. O tom anuncia uma lei intransponível: “Regra é regra”. Jo- M E TA X I S 59 Ponto de Vista nas levanta a voz e a ameaça. A cena é interrompida, e ele vangloria-se de seu desempenho de ator. Todos debatem a alternativa de Jonas e concluem que não conseguiu almoçar porque sua postura havia sido demasiado dura, como de costume na vida real. Claudio argumenta que via a copeira como a verdadeira oprimida da cena. Jonas ouve em silêncio, sua reflexão parece ir além do espaço da oficina. Pede, então, para tentar novamente. Na nova proposta, chega mais calmo para conversar. A copeira não permite que almoce e o repreende. Novamente, se exalta e a ameaça. Outro usuário o convida para dividir seu prato de comida. Ele se senta à mesa e não dá mais ouvidos às reclamações dela. Todos comentam o acontecido, a nova cena apimenta a discussão. Houve transformação? Alguns concluíam que a copeira era a oprimida ainda e que as atitudes do protagonista a justificavam. Alguém disse que o usuário que ofereceu dividir seu prato estava referendando um folgado. Outro opinou que a copeira deveria tê-lo servido e evitado a confusão (o que acontece também). Segundo Boal, o espaço estético é dicotomizante, pois o protagonista torna-se sujeito e objeto da ação, além de permitir que ele observe o eu-antes, que em parte subsiste no eu-agora, que é, de certa forma, o eu-ainda. O processo de se auto-observar e de ser observado é revelador. Outro usuário propõe nova alternativa. Entra em cena e aborda a copeira com cautela, explicando que haveria de ficar na parte da tarde e que não teria a oportunidade de almoçar. Além disso, os problemas sociofinaceiros que possui não permitem que compre algo para comer na rua. A copeira, desconcertada, mantém a postura de que não dá para servir o almoço, pois ele vem contado. Alguém diz que não é verdade e que a comida geralmente sobra. O usuário toma a palavra e resolve chamar o técnico de referência. Eliana (psicóloga multiplicadora) rapidamente coloca alguém para improvisar o técnico, que entra em ação. Os acontecimentos são esclarecidos ao técnico, que entende o caráter excepcional da situação e concede o almoço. A cena encerra-se. Jonas, que observava, permaneceu quieto enquanto os outros comentavam a postura do novo protago- 60 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental nista, elogiando sua habilidade de resolver o problema sem que houvesse uma disputa que pudesse chegar às vias de fato. Foram comparadas as alternativas, e as reflexões faziam link com os fatos vivenciados diariamente, sendo que ambos, copeira e usuário, poderiam assumir o papel de opressores, dependendo do direcionamento de suas atitudes, dependendo do seu manejo frente ao conflito, situação recorrente. Nosso jovem foi embora pensativo, quase fugindo. Parece que aquele momento tinha significado para Jonas a possibilidade de ouvir críticas e de pensar sobre suas atitudes, o que era quase impossível de ser realizado cotidianamente. As propriedades estéticas e sensoriais da cena, e, mais especificamente, da entrada em cena, produziam a possibilidade de juntar conhecimentos sobre si mesmo, sobre a dinâmica institucional e suas falhas. Em uma oficina posterior, ouvimos o comentário de Jonas: “Eu sei quando eu causo confusão”, como um desabafo não forçado e com um tom de tristeza. Não daquela tristeza sombria que leva à inércia e à paralisação. Jonas estava tomando contato com outras possibilidades de vivenciar sua experiência, objetivando novos saberes. Parecia um pouco envergonhado ao dizê-lo, mas não abatido. Reconhecer seus próprios limites, sua própria fragilidade e incoerência era pré-requisito para que se sentisse mais fortalecido e aceito. Era condição para que conseguisse assumir o seu papel de Sujeito e lutar contra as opressões que se operam na vida social. Jonas continua participando das oficinas e contribui com o processo coletivo que vem sendo construído no NAPS III e também em outras unidades de Saúde Mental da Baixada Santista. Participa dos “diálogos teatrais” em que apresenta os trabalhos desenvolvidos por seu grupo, troca informações com outros participantes do TO e discute temas urgentes para todos. Dedica-se especialmente aos trabalhos da estética, produzindo poemas, pinturas etc. Para cada passo conquistado, um novo desafio surge. O trabalho não se finaliza, assim como no término das cenas de Teatro-Fórum. É necessário ir adiante, pois há muito que fazer. Nesse sentido, o Jonas mostra que o TO pode ser um instrumento eficaz na busca da compreensão e da transformação. ◘ Teatro do Oprimido na Saúde Mental Ponto de Vista Também sou Menino de Rua Janna Salamandra, multipllicadora do Teatro do Oprimido – CTO Sou de família pobre e religiosa e por isso acredito que nada na vida é por acaso. Conheci o Centro de Teatro do Oprimido através de uma amiga de trabalho, que por sua vez era amiga de Maura de Souza (que, na época, era fotógrafa do Mandato de Boal). Minha amiga Cíntia foi convidada a participar de uma solenidade na Câmara dos Vereadores, onde Boal ia homenagear um religioso. Como andava meio pra baixo, me sentindo muito só nesta Cidade Maravilhosa, saindo de uma separação e com a minha mãe insistindo que eu fosse para um lugar que odiava, Cíntia me convidou para acompanhá-la. Fui porque ela insistiu! Sempre achei que política era uma coisa para políticos pilantras se darem bem à custa de pobres ignorantes, que, por não terem conhecimento de seus direitos, se deixavam levar e convencer por cestas básicas, dentaduras, falsas promessas de melhorias que nunca chegariam. Mesmo assim, fui. Nunca tinha entrado na Câmara de Vereadores. Pra dizer a verdade, tinha medo até de passar na porta e ser presa por invasão de espaço elitizado. Depois da cerimônia, fomos ao CTO, onde havia um grupo ensaiando. Assistimos ao ensaio. Fiquei fascinada. Eu havia feito Teatro na escola, mas nunca tinha visto algo igual. Aquela metodologia era a minha cara! Eu descobri que não era a única do contra, como dizia minha avó e meu pai, para quem eu era o avesso do avesso. Eu era como uma pedra no sapato, principalmente de meu pai! Ele tinha até vergonha de dizer que eu era filha dele, porque eu questionava tudo. Não entrava na minha cabeça que mulher tem de aceitar ser tratada pelo marido M E TA X I S 61 Ponto de Vista como uma escrava, a qual podia espancar cada vez que se sentisse contrariado. Vi muitas vezes meu pai espancar minha madrasta com fio de ferro! Eu me dizia: “Se fosse comigo, o mataria.” Quando perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, dizia: “Policial, pra prender marido que bate em mulher.” Meu pai sabia que eu falava para ele. Chegou a me proibir sair do quarto quando tinha visitas. Lembro-me de uma vez em que um pastor de uma igreja evangélica muito famosa foi lá em casa convidá-lo para ser pastor (nessa época, essa igreja estava no começo, ainda não era tão rica e tão grandiosa como é hoje). O tal pastor me perguntou: “Oi, você sabia que Deus ama as crianças? O que acha de ser uma ovelhinha de Jesus e nos ajudar a montar um rebanho?” Eu tinha uns 10 anos, respondi: “Se Jesus me quisesse como ovelha, não teria me feito um ser humano!” Meu pai me fuzilou com os olhos. O pastor falou que eu estava possuída pelo Diabo. Eu falei: “Não disse que Deus me ama? Como é deixou o Diabo me possuir? Minha mãe diz que, quem ama, cuida!” O pastor ficou mudo e os olhos de meu pai fumegavam de raiva. Fiquei de castigo por cinco meses. Cresci achando que era uma anormal, porque não aceitava o que achava injusto e questionava o que me parecia errado. Aos 8 anos, meu pai passou a me acordar às 4h da manhã para trabalhar na feira com meus irmãos. Ficava furiosa quando ele me levava para feiras perto de praças, onde eu via crianças da minha idade brincando enquanto eu era obrigada a trabalhar. Eu só podia brincar aos domingos depois de voltar da igreja, por apenas 2 horas. Na adolescência, ouvi duas moças conversando no ônibus. Uma dizia pra outra que só se tornou livre da tirania dos pais depois que casou. Pensei: “Tenho que me casar logo!!” Conheci o pai dos meus 9 filhos aos 15 anos, e a primeira coisa que falei pra ele, quando decidimos morar junto, foi “NUNCA LEVANTE A MÃO PRA MIM! Pois, se fizer isso, trate de não dormir, pois vou te matar com óleo quente!” Acho que ele ficou com medo que eu fizesse isso mesmo. Quando foi pedir à minha mãe para morarmos juntos, ela lhe indagou: “Você tem certeza que quer isso mesmo? Minha filha não é ‘flor que se cheire’ e eu não aceito devolução! Ela não é do tipo de mulher doméstica, não abaixa a 62 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental cabeça pra ninguém, não leva desaforo pra casa, não sei como ainda não apanhou na cara pelas ruas, de tão atrevida que é.” Até hoje meu marido diz: “Bem que minha sogra me avisou...” Mas no dia em que eu conheci o Centro de Teatro do Oprimido, descobri que tinha razão. Eu não era do mundo em que vivia! Era, sim, daquele mundo que Boal, com o CTO, tentava transformar! Um mundo no qual as mulheres têm direito de opinar, de ser respeitadas como profissionais, de ser vistas e tratadas como seres humanos que também são. Um mundo onde crianças devem brincar e estudar e não trabalhar como um adulto, onde negros têm direito ao respeito como cidadãos que são! Onde as pessoas têm o direito de ser como são e de ter sua orientação sexual respeitada. Onde pobres e ricos têm as mesmas oportunidades. Esse era o meu mundo! O mundo pelo qual eu ansiava. Ao descobrir o Teatro do Oprimido, tive a sensação de ter vivido 29 anos de minha vida como um burro de canga na cara. Só via o que era posto à minha frente ou permitido por meus donos. Conhecer o Teatro do Oprimido foi como, pela primeira vez, poder enxergar o mundo como ele era realmente. Com seus dilemas, suas injustiças, suas belezas, suas nobrezas e suas pobrezas. O melhor foi descobrir que não estava só, tinha pessoas empenhadas em transformá-lo. Assim como aquele cara que, para mim, na época, parecia um político meio “hiponga”,¹ que acreditava no ser humano e que, por amor ao seu próximo, criara uma forma fantástica de ajudar este seu povo, massacrado pela opressão, a transformar esse mundinho em que vive em um mundão de justiças e igualdade. E sua única regra para tanto era a ética. Esse cara era um praticante da boa política. Augusto Boal não era religioso, eu sei! Ele dizia não crer em Deus. Mas, para mim, foi um grande praticante de dois de seus mandamentos, através de sua Arte: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” e “Dai pão a quem tem fome, água a quem tem sede e agasalho a quem tem frio”. O Teatro do Oprimido é a prova de amor de Boal pelas pessoas, tanto que, até o seu último suspiro, trabalhou para nos deixar a “Estética do Oprimido”. Boal nos deu o Pão da metodologia do Teatro do Oprimido, a fonte do líquido da justiça, com o Teatro do Oprimido na Saúde Mental Teatro Legislativo, e nos agasalhou com o Centro de Teatro do Oprimido. Quando fui indicada por Helen Sarapeck, Coordenadora do CTO, para trabalhar na ONG Childhope Brasil, com meninos de rua, fiquei receosa e fui pedir a opinião de Boal, que me disse: “Lembra de um texto que você escreveu sobre como ficou impressionada com uma ação policial aqui na Lapa? Você dizia que queria poder fazer mais que pular na frente do menino que o policial ameaçara com uma arma, lembra?” “Sim”, respondi. Ele me falou: “Então qual é sua dúvida? Ainda não aprendeu que o caminho é feito pelo caminhante ao caminhar? Caminhe e descubra por você mesma o que tanto queria fazer! Se precisar de ajuda ou tiver dúvidas, estaremos aqui, eu e os Curingas para ajudá-la. Vá em frente, você é uma mulher muito inteligente e saberá tomar a decisão certa.” Foi a primeira vez que alguém me disse que eu era inteligente e capaz de realizar algo! Quanto à experiência com os meninos em situação de rua, o que posso dizer é que, com esse trabalho, descobri que eu sempre fui um menino em situação de rua, mesmo morando em casa com minha família. Ouvindo as histórias desses meninos, os motivos que os levaram a sair da segurança de suas casas, lembrei que, aos 9 anos, fugi de casa por 24 horas. Morava em Recife, Casa Amarela, com meu pai. Era Natal, e ele tinha montado uma linda árvore na sala, na qual nos proibiu de tocar. Eu estava brincando de correr atrás da cachorrinha Laysa e, ao entrar na sala, escorreguei no tapete, caí sobre a árvore, que tombou contra a parede e quebrou uma de suas bolas. Fiquei com tanto medo de apanhar que fugi. Fiquei vagando pelas ruas. Ao ver uma vizinha, me escondi no cemitério, saciei minha fome com os deliciosos jambos vermelhos e doces que havia lá, dos quais ainda posso sentir o sabor. Quando começou o cair da noite, entrei em pânico com medo dos mortos e dos vivos. Queria poder sumir, queria minha Ponto de Vista mãe. Voltei pra perto de casa e me escondi em uma casa abandonada, em frente à casa de meu pai, e fui encontrada no outro dia por um vizinho enquanto dormia. Sei que muitos jovens são vítimas, assim como seus pais, de uma cultura escravocrata, baseada na violência. Crianças acuadas buscam na fuga de casa a solução de suas vidas, ou pior, aceitam a violência como realidade e se entregam a caminhos ainda mais violentos, como o tráfico, achando que só podem vencer seus opressores com a lei do mais forte. Na verdade, descobri com este trabalho que esses meninos têm coragem para encarar a rua sozinhos, em busca de uma chance de viver em um lugar menos injusto que suas casas. ◘ Nota: 1 Designação dada pejorativamente a seguidor do movimento hippie, que floresceu nas décadas de 1950 e 1960 (Dicionário Aulete Digital), ou a alguém com aparência ou estilo de vida semelhante ao de um hippie. M E TA X I S 63 Canal Aberto Teatro do Oprimido na Saúde Mental Teatro do Oprimido na Saúde Mental Canal Aberto Um Teatro que É uma Loucura Eliana Guimarães, atriz do GTO Pirei na Cenna. Pirei na Cenna Transformando o Cenário da Loucura “Se ator pode ficar maluco; o maluco pode virar ator.” (Augusto Boal) Poucos imaginariam que, de um estágio de psicopedagogia, poderia surgir um grupo de Teatro do Oprimido. Cláudia Simone imaginou, e por isso, em 1997, convidou usuários do Hospital Psiquiátrico Jurujuba para terem o primeiro “surto cênico”: o esquete “HIVida”. Daí em diante, outros delírios artísticos em forma de peças de teatro surgiram, com foco na questão da sexualidade e prevenção das DSTs/AIDS no universo da loucura. Assim surgiu o grupo Pirei na Cenna, que rompeu os muros do hospital para dialogar com a sociedade. O grupo se pauta no lema da luta antimanicomial: “cuidar sim, excluir não”. No Pirei na Cenna, propomos que as pessoas rompam com a normalidade da loucura, instituída na reclusão, e lutem por uma saúde mental humanizada, em sintonia com o movimento da Reforma Psiquiátrica do Brasil. Desde a criação do grupo, constatam-se diminuição do número de internações, aumento da adesão aos medicamentos, expansão das redes sociais e aumento da autoestima de seus integrantes. A história do grupo também inspirou o CTO a desenvolver o projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental e serviu de referência para a criação do grupo Liberate, do Manicômio Judiciário. ◘ 64 M E TA X I S Minha História Enéas Lúcio da Silva foi artesão e ator do GTO Pirei na Cenna, de 1997 até 2010, quando faleceu. Eu sempre fui normal. Cresci, trabalhei, até que um dia fui trabalhar na antiga estação no Morro do Cavalão, quando levei um tiro no braço e desmaiei. Chamaram a ambulância, fizeram os primeiros socorros e me levaram ao Antônio Pedro [hospital de Niterói]. Voltei para casa e fiquei fazendo tratamento no hospital São Francisco. Fiquei um pouco nervoso, alterado por consequência do tiro. Aí, me encaminharam para a Casa de Saúde de Niterói, onde eu fiquei durante dois anos da minha vida. Lá, me ensinaram a fazer tapete. De lá com a minha alta, tive várias criatividades de fazer cestas, ônibus, porta-joias, bicicletas etc. Passei a ter crises de nervoso de dois em dois meses. Nessas crises, me levaram ao Jurujuba [Hospital Psiquiátrico], onde investiram em mim, dando-me a oportunidade de trabalhar na portaria, em que tive compromisso. Fazendo o tratamento e trabalhando, me senti alegre, não faltava. Mas comecei a ter tonteiras por causa dos fortes remédios. No Jurujuba, me apresentaram à Cláudia Simone, que me convidou pra fazer teatro. Isso me beneficiou, trazendo alegria pra quem vivia na solidão. Fazer teatro com os exercícios me fez sentir melhor, não tive mais crise nervosa, sou alegre, tenho responsabilidade. Cláudia é amiga amável. Obrigado, Cláudia Simone, por ter me ensinado a ser melhor e mostrar que nós, com sistema nervoso, temos capacidade. ◘ Eu trabalhava na cantina do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, quando a diretora do grupo Pirei na Cenna convidou a mim e a Lúcia para entrarmos no grupo. Antes de fazer Teatro do Oprimido, eu tinha preconceito comigo mesma, tinha vergonha de ser usuária de Saúde Mental, tinha vergonha de falar com as pessoas, achava que elas sempre iam me discriminar. Sempre que possível, escondia que já tinha sido internada. Eu não me alimentava direito, gostava de ficar deitada no tapete da sala e dava graças a Deus quando anoitecia para sonhar com meus filhos, que estavam distante em Minas Gerais, São Paulo... Depois do Teatro do Oprimido, deixei de esperar pela noite para dormir. Queria que o dia fosse longo, para poder mostrar para as pessoas que, quem se trata, também pode produzir, pode criar, pode pintar, levar uma vida normal. Eu que vivia deitada no tapete, pensando que não seria nada, hoje falo da minha história de vida e do Teatro do Oprimido, que é diferente dos outros teatros porque propõe transformar a realidade, e a minha mudou. Agora falo abertamente que sou usuária de Saúde Mental, porque quero mudar o preconceito que as pessoas têm com elas mesmas e mostrar que todos têm direito a ser feliz. Com a minha primeira crise, passei a ter medo de multidão. Ia comprar algo e voltava para casa dizendo que a rua estava muito cheia, porque tinha medo das pessoas. Através do teatro, viajei para outros estados, conheci pessoas, me identifiquei com o mundo, me tornei sociável. Assim como a loucura transforma as pessoas, vejo que o Teatro do Oprimido está transformando a minha vida. ◘ M E TA X I S 65 Canal Aberto Teatro do Oprimido na Saúde Mental Teatro do Oprimido na Saúde Mental Canal Aberto Com 22 anos eu fiquei “22” Sérgio Lima, ator do GTO Pirei na Cenna. Meu nome é Sérgio Lima. Nasci na Paraíba e, com 8 anos, vim com toda a minha família morar no Rio de Janeiro, no Morro do Preventório, bairro de Charitas, em Niterói. Com 10 anos arrumei meu primeiro trabalho: três vezes por semana estava numa feira, onde vendia de tudo. Com 15 anos, fui trabalhar para uma família muito especial. Ela me dava de tudo (roupas, comida), e eu fiquei trabalhando lá até completar 22 anos. E foi exatamente nesta época, em 1997, que eu fiquei “22”. Tive meu primeiro surto e fui internado no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, que fica pertinho de onde eu moro. Foi um momento muito difícil. Eu me lembro de não conseguir controlar minhas ações, mas, ao mesmo tempo, podia entender tudo o que se passava a minha volta, inclusive os maus-tratos que sofri. Mas foi lá no Jurujuba que eu conheci o Grupo Pirei na Cenna. Eu estava internado. Soube que estava tendo teatro no hospital e pedi para entrar. Desde 1997, muita coisa mudou na minha vida. No Pirei na Cenna eu sou feliz, porque o grupo é minha segunda família. Já viajei o Brasil inteiro apresentando nossas peças. Eu amo estar no palco. Sempre sonhei viajar de avião e ser conhecido pelo meu trabalho como ator e, no Pirei na Cenna, eu consegui. Posso não ter fama, mas tenho talento. Quero agradecer ao grande mestre Augusto Boal, por ter criado o Teatro do Oprimido, e à Cláudia Simone, por ter criado o Pirei na Cenna. Sou Sérgio Lima, surtei aos 22! Hoje sou “22” do Hospital Psiquiátrico Jurujuba, do grupo Pirei na Cenna e do Teatro do Oprimido. ◘ 1 “22” forma pejorativa de denominação do portador de transtorno mental. Referente ao antigo Artigo 22 da CLT (Consolidação das Leis de Trabalho) da década de 60. Fazendo Teatro, Me Sinto na Lua Fui convidada por Cláudia Simone para fazer parte do grupo Pirei na Cenna em 2003. Me interessei, fiquei contente. Quando comecei, na peça “É melhor prevenir que remédio dar”, fazia um pequeno papel até interpretar a personagem Eterno Delírio, mãe do Dalua. Mudou muito a minha vida fazer teatro, pois não tive mais internações e também passei a ser mais sociável, me comunicando melhor com as pessoas. Depois participei da peça “Saúde Mental Positiva”, sobre a AIDS na saúde mental. Nestes seis anos de teatro, participei de vários congressos de saúde mental e tive a oportunidade de conhecer vários lugares que não conhecia. Conheci Salvador, São Paulo, Brasília, Florianópolis, Piauí, São João Del Rey e Londrina. Conheci o Augusto Boal. Atualmente, estou participando da peça “Doidinho para trabalhar” e faço o papel da enfermeira, que se chama doutora Doids. Estou feliz em estar participando. Como é bom fazer teatro! Passa tempo, passa hora e a gente não tem hora para parar. Teatro para mim é uma arte mundial. Me sinto na Lua quando estou fazendo teatro. ◘ 66 M E TA X I S Lúcia Santana, atriz do GTO Pirei na Cenna. De Menina Atriz a Mulher Multiplicadora Eloana Gentil, atriz do GTO Pirei na Cenna e multiplicadora do Teatro do Oprimido. O sonho da menina de 14 anos, que queria ser atriz de novela, se realizou num grupo de teatro de malucos, tendo como “palco” um hospital psiquiátrico. Mas não importava a classificação do grupo, e, sim, o sonho a ser realizado. Aos 17 anos, a menina se tornou Curinga comunitária. Ensinou, aprendeu e aprimorou-se na metodologia do Teatro do Oprimido. Foi nesse período que percebeu que não estava num grupo só de malucos, mas de seres humanos que transformam suas limitações em arte. E foi aí que essa menina começou a querer mais. Então, foi trabalhar com Teatro do Oprimido com jovens, idosos e até num grupo de mulheres, em que se discutia justamente a opressão contra a mulher. Nesse período, descobriu que ser mulher é ter uma relação forte com a culpa e com neuras que podem nos desestabilizar completamente. Se surpreendeu com mulheres dos quatro cantos do país, além de Argentina e Portugal, que lutam pela transformação. A menina se tornou mulher e aprendeu ainda mais com o Teatro do Oprimido, que para ela é como transformação e descoberta de ser humano. Ela aprendeu que não adianta fazer parte de um grupo ou movimento de Teatro do Oprimido se não entender a essência da metodologia. Antes, para ela era ótimo subir no palco, receber aplausos da plateia e, vez ou outra, atuar com um desconhecido na intervenção. Era maravilhoso para ela, pois podia exibir seu talento de atriz. Depois se perguntou o porquê de estar fazendo tudo aquilo. Nos muitos hospitais psiquiátricos que se apresentou, pôde compreender que, mais do que estar na cena da peça, era preciso estar na cena da vida e atuar para a transformação de um mundo melhor. Daí, percebeu a plenitude do Teatro do Oprimido. E constatou que a vida é feita de escolhas, e essas escolhas é que nos fazem viver e lutar por um mundo melhor. Escolheu o Teatro do Oprimido. Hoje, essa menina egoísta, inflexível e cheia de esperança se tornou uma mulher, mãe de dois filhos e muito responsável. E tudo isso graças ao grupo de malucos, ou melhor, de seres humanos que a ajudaram a realizar seu sonho de ser atriz. Foi nele que ela aprendeu a ouvir, a pensar e dialogar. Nele entrou menina e se tornou mulher: o Grupo de Teatro do Oprimido Pirei na Cenna. ◘ “Se Eu Não Puder Mais Pirar na Cena, Eu Vou Pirar na Vida” Entrevista com Wanderson Pacheco, ator do GTO Pirei na Cenna Como foi para você entrar no Grupo de Teatro do Oprimido Pirei na Cenna? Mudou tudo. Eu não estudava. Agora estudo. Não conhecia nenhum lugar, passei a conhecer: São Paulo, Brasília, Bahia... Eu gosto muito de fazer parte do grupo. É um divertimento. Antes, as pessoas só me viam como doido, como maluco. Elas diziam: “Ah, você não pode trabalhar.”, “Wanderson, não sabe ver dinheiro. Não pode andar na rua sozinho.” E antigamente eu dava ataque. Agora, tudo mudou para mim. Muitas pessoas falaram para a minha mãe que eu era inútil. Hoje, me respeitam mais e percebem que posso fazer muitas coisas. Tudo graças ao Teatro do Oprimido. Como você se sente fazendo teatro? Eu me sinto o tal, porque as pessoas estão batendo palmas para mim. É um trabalho prazeroso. Eu me sinto bem de fazer. Como foi conhecer Augusto Boal? Foi um divertimento trabalhar com Boal. As coisas que ele falava... Eu ficava prestando atenção – tanto que eu fazia perguntas, eu ficava observando as coisas que ele falava. Era tudo com certeza. Tudo com verdade... Você já se imaginou sem o Pirei na Cenna? Eu já me imaginei, sim. Mas agora eu nem imagino mais. Se eu sair do Pirei, vou viver do quê? Imagina se eu não puder mais pirar na cena... Aí eu vou pirar na vida. O que você espera com o Teatro do Oprimido? Eu quero ser mais do que ator. Além de trabalhar no Pirei, eu quero trabalhar em outros lugares. Eu quero crescer mais, eu quero produzir mais. As coisas que eu já produzi, eu quero produzir mais... M E TA X I S 67 Canal Aberto Transformado na cena, transformado na vida Alessandro Conceição, Curinga do CTO e do GTO Pirei na Cenna. Não vou esquecer quando adentrei um hospital psiquiátrico pela primeira vez, em 2001, e vi pessoas me implorando cigarro, café e dinheiro. Um susto. Pensei que fossem me agredir. Até que a Curinga Cláudia Simone abriu a porta do auditório do hospital em Jurujuba, para eu assistir ao ensaio do grupo Pirei na Cenna: – Alessandro, é por aqui. Ah, quando te pedirem alguma coisa, basta falar “Não tenho”. Contrariar maluco não era perigoso? Um simples “não tenho” poderia funcionar? Essa foi minha primeira desmistificação na saúde mental. Dentro do auditório, vi pessoas maquiadas e com figurinos, ensaiando uma peça num cenário interessante. Uma das atrizes me impressionou em especial, se entregando com toda verdade numa cena de muita comoção. Ao final, soube que, dos sete atores em cena, apenas uma não era usuária de saúde mental. Tive um 68 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental choque que abalou meus preconceitos – ou nenhum conceito. Descobrir que usuários podiam atuar, sim, e muito bem, foi outro susto. A partir daí, virei responsável pelo cenário e depois me tornei sonoplasta, para, logo depois, ser incluído na comitiva que se apresentou num congresso sobre DST/ AIDS em Cuiabá, no Mato Grosso. Foi a primeira vez que viajei de avião! Em 2002, o grupo começou a trabalhar com o Teatro-Fórum. Me ofereci para atuar, mas Cláudia achou melhor eu continuar onde estava. Mas, na primeira oportunidade, quando um dos atores faltou, entrei em cena. Esse evento provisório se estendeu por seis anos, até que me tornei Curinga comunitário do grupo, participando ativamente da produção dos espetáculos “É melhor Prevenir que remédio dar”, sobre sexualidade na saúde mental, e “Saúde mental positiva” e, também, da montagem do Teatro-FórumMusical “CAPScitando”, com atores de outros grupos comunitários do CTO. Conheci Augusto Boal em 2003, quando ele foi ao Hospital Psiquiátrico de Jurujuba para assistir pela primeira vez ao Pirei na Cenna. Ficamos nervosos, mas nos concentramos e conseguimos nos apresentar. Depois do fórum, ficou conosco numa longa e prazerosa conversa. Mais tarde, nos dirigiu na criação da “Dança do Cotidiano”, atividade da Estética do Teatro do Oprimido. Nesses anos, tive oportunidade de me desenvolver no Teatro do Oprimido. A experiência me permitiu avançar na multiplicação com adolescentes em Niterói até, junto com Monique Rodrigues, criar o grupo Liberarte, formado por internos do Hospital de Custódia Heitor Carrilho. Além disso, desde 2006, integro a equipe do projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental, do CTO. A partir dessa jornada com o Pirei na Cenna, me tornei Curinga do CTO, estudante de jornalismo e, o mais importante, um cidadão consciente da necessidade de lutar para transformar este nosso mundo num lugar melhor e mais justo, num lugar mais humano. Pirando na cena, muito lúcido na vida, me considero um militante do Teatro do Oprimido. ◘ Teatro do Oprimido na Saúde Mental Método Dramaturgia do Teatro-Fórum Bárbara Santos, editora da revista Metaxis e Curinga Internacional do CTO. O Teatro do Oprimido é um método teatral que propõe a abertura de espaços de diálogo na busca de alternativas para a resolução de conflitos reais. Buscar alternativas não significa apaziguar conflitos. Trata-se de revelá-los para entendê-los e, a partir da compreensão de suas implicações, poder encontrar meios concretos de superá-los. Nosso teatro se dedica à investigação de situações de opressão, cujo sentido aqui está intrinsecamente ligado ao de injustiça, ao de desequilíbrio de poder e de falta de equidade no acesso a recursos e a oportunidades. Citando Julian Boal², as relações de opressão não dizem respeito a escolhas individuais ou fatalidades que colocam uns na condição de oprimidos e outros na de opressores. Investigamos relações reforçadas e estimuladas por grupos socais aos quais estes e aqueles pertencem e/ou representam. Cada um de nós é um: únicos. Somos indivíduos particulares, singulares. Entretanto, cada individualidade é fruto das muitas relações sociais travadas ao longo de nossas vidas. Através delas, entendemos o mundo a partir de uma perspectiva, assimilamos crenças, colecionamos preconceitos e aprendemos uma certa forma de viver em sociedade. Mesmo nas situações mais particulares, essas experiências coletivas nos acompanham. Como se centenas de pessoas estivessem sempre conosco, influenciando nossas ações e reações; as coisas que falamos e as que não temos coragem de dizer; como interpretamos o dito e o silenciado; nossa aceitação, recusa e expectativa sobre o comportamento alheio. Enfim, nossas vidas. Numa situação de conflito, ambas as partes envolvidas têm, nas relações sociais vivenciadas, a referência de como agir diante do problema partilhado. Sem investigar M E TA X I S 69 Método o contexto social – que agrega aspectos políticos, sociais, culturais, econômicos e religiosos, entre outros –, pode-se passar a impressão equivocada de que o que se desenrola num conflito específico só acontece ali: naquele lugar, com aquelas pessoas, por questões individuais. A falta de compreensão da contextualização, que insere e determina essas relações, pode dificultar e até inviabilizar mudanças efetivas. É exatamente na ausência dessa perspectiva que reside a insuficiência mais comum nos modelos de Fórum: o problema encenado acaba circunscrito à relação pessoal e maniqueísta entre dois indivíduos, o protagonista – muitas vezes caracterizado pelo pobre oprimido bonzinho – e o antagonista – frequentemente representado como o opressor mau e desumano. Para a nossa dramaturgia, é fundamental que a questão particular (retratada no modelo de Fórum) represente os pressupostos sobre os quais estão alicerçados os comportamentos que, na cena, parecem individuais. Apesar de a encenação apresentar uma situação privada, da vida de alguém, essa especificidade individual deve, necessariamente, nos remeter aos fatores sociais que forjam a situação em questão. Isso de modo que se possa perceber que as condições objetivas (estrutura / conjuntura social) que a influenciaram ou determinaram, do mesmo modo, produzem outras especificidades com conflitos semelhantes, no cotidiano de muitos indivíduos. A inclusão de contextualização na dramaturgia do Teatro-Fórum é um desafio estético e uma necessidade ética e política, que exige do grupo uma compreensão ampliada do problema para a preparação do modelo. Esse movimento investigativo do micro (situação particular) em direção ao macro (conjuntura social) foi definido por Boal como ASCESE, exercício fundamental tanto na preparação do modelo quanto na sessão de Fórum. Para Boal, sem Ascese, o Fórum não chega a se estabelecer plenamente. Um coletivo de Teatro do Oprimido deve utilizar todas as possibilidades para construir esse conhecimento. Associar laboratórios teatrais, seminários teóricos, centros de estudos e atividades da Estética do Oprimido é uma alternativa eficaz para a produção artística de um modelo de Fórum. O ponto de partida desse processo de criação é o conflito, que deve representar uma pergunta ainda em aberto para o grupo que vai encená-lo, seu desejo 70 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental e necessidade de transformar sua realidade. Conflito que seja suficientemente claro e objetivo, para que a plateia possa compreendê-lo. Mesmo que não exista um conflito objetivo sem aspectos subjetivos, é necessário estar atento para que a subjetividade seja fator de enriquecimento e de complexidade desafiadora, e, não, de obscurantismo ou dispersão. Cada coletivo vivencia uma variedade de conflitos, antagônicos (quando as partes envolvidas estão em campos opostos e é imperativo para o oprimido encontrar meios de desarticular as estratégias do opressor) ou não antagônicos (quando, apesar da situação conflituosa, as partes buscam o entendimento conciliatório). Dentro de cada grupo, existem conflitos mais relevantes para uns que para outros. Entretanto, a escolha de um conflito central para um modelo de Fórum precisa se constituir num processo coletivo (estético e de discussão) que revele as questões mais relevantes para o grupo como um todo. Relevância que seja capaz de mobilizar esse coletivo em torno de ações sociais concretas e continuadas para a transformação da realidade indesejada. A produção deve associar relevância, desejo e necessidade. Desejo sem necessidade pode se constituir rapidamente em caridade, em favor. A necessidade traz concretude, mostra a urgência da transformação, estimula o avanço da luta. Por outro lado, necessidade sem desejo de mudança pode expressar apenas sinais de depressão. Estar ciente de uma injustiça social e da necessidade de mudança não garante a realização da luta: é preciso ter desejo, vontade, esperança, confiança na possibilidade de transformação. Desejo e necessidade garantem a motivação das personagens para a luta. Na dramaturgia do Teatro-Fórum, a motivação é fator crucial, pois é a expressão da vontade da personagem, expressão de seu “querer”, guia de suas ações e estratégias. A caracterização é a maneira como a personagem demonstra esse querer: grosseira, romântica, engraçada, séria etc. As personagens podem ter comportamentos distintos para fazer valer sua vontade, mas o fundamental é que essa vontade esteja definida. Caracterização, mesmo bem desenvolvida, sem uma motivação consistente transforma a personagem num corpo invertebrado. Importa saber quem são e como são as personagens, entretanto identificar o que querem é o ponto essencial tanto para o modelo Método Teatro do Oprimido na Saúde Mental quanto para a sessão de Fórum. O modelo deve começar oferecendo à plateia condições de perceber o contexto social que circunscreve o conflito e a motivação (desejo e necessidade) que impulsiona a protagonista a lutar. Denominamos de contrapreparação esse momento de representação no qual a protagonista tem esperança e confiança em sua capacidade de conquistar o que deseja. Momento que antecede o desenvolvimento da trama em direção à crise, garantindo tempo e espaço para a plateia perceber a justiça da questão encenada e se identificar com a protagonista e com sua luta. Esses serão fatores fundamentais para a tomada de posição dos espect-atores no Fórum. No desenrolar das ações dramáticas, o modelo deve explicitar, com objetividade, as estratégias usadas pela protagonista para conquistar seus objetivos e realizar seus desejos. É a representação de sua forma de lutar que permitirá que as e os espect-atores percebam as artimanhas do opressor para desarticular as estratégias e provocar o fracasso. Analisando a situação, podem-se imaginar outras possibilidades de enfrentamento do problema que sejam mais eficientes frente às armas do opressor e de seus aliados. A “crise chinesa” é o ápice do conflito, auge do confronto, quando a protagonista se vê diante do perigo iminente da derrota, mas ainda há oportunidade de saída. Entretanto, na nossa dramaturgia, a falha da protagonista é necessária. Diante do perigo, não percebe ou não consegue aproveitar a oportunidade, que, por menor que seja, deve existir. O fracasso da protagonista é possibilidade de reflexão/ação para a plateia. O Fórum propõe uma atitude investigativa e propositiva à plateia: “O modelo mostrou como aconteceu, como foi que se passaram as coisas na vida da protagonista. Mas, e SE não fosse assim, como poderia ter sido? As estratégias usadas não funcionaram para alcançar as metas desejadas. Mas, e SE fossem outras, qual teria sido o resultado? Experimentemos!” Se a plateia compreende a pergunta formulada pelo modelo, reconhece sua relevância e, de alguma forma, se identifica, mesmo que por analogia, ou se solidariza com o problema encenado. A sessão de Fórum tem os ingredientes necessários para se converter em uma experiência coletiva de produção de conhecimento e de busca de alternativas. Em especial, se a função Curinga for desempenhada adequadamente, com estímulo à participação propositiva, mediação de diálogo crítico, promoção de Ascese e aproveitamento das possibilidades de realização de ações sociais, concretas e continuadas. ◘ Notas: 1 Esse texto é um fragmento do ensaio intitulado “Dramaturgia no Teatro do Oprimido”, retirado do livro que está sendo produzido pela autora. 2 Curinga do Teatro do Oprimido que integra o GTO-Paris e atua internacionalmente. Em seu artigo “Opressão”, publicado na Metaxis 6, aborda o conceito. M E TA X I S 71 Método Teatro do Oprimido na Saúde Mental Teatro do Oprimido na Saúde Mental Boal se apropria do conceito de aura utilizado por Benjamin como “a projeção que faz o observador sobre o objeto” (Boal, 2009, p. 41), portanto para ele a aura é produzida pelo espectador ou religioso, após o objeto ser construído. Durante sua produção o objeto pode criar expectativas e alimentar a energia que irá fortalecer a criação de sua aura, mas somente depois, na presença do observador, essa aura toma existência. Claro que o objeto em si já carrega um poder, mas com a complementação do olhar do outro é que a aura se instala. E esse poder áureo pode ser transpassado tanto para o artista, quando pensamos numa obra de arte, como para um sumo religioso, se pensarmos em objetos ditos sagrados. E esse é o ponto principal do aspecto político da aura para Boal, pois, com a possibilidade de ela se expandir para o artista ou o religioso, uma relação de poder se inicia. A Aura da Multiplicação Flavio Sanctum, Curinga do CTO, pedagogo, diretor teatral, escritor e mestrando em Ciência da Arte pela UFF. No livro A Estética do Oprimido, Augusto Boal nos leva a uma viagem literária por aspectos políticos, artísticos, filosóficos e até científicos. Destaco aqui sua abordagem sobre a transformação social da arte através dos tempos, a partir de um ensaio¹ de Walter Benjamin, no qual o filósofo alemão fala do fim da Aura na obra de arte. Para Benjamin, alguns objetos e obras de arte possuem um halo, uma aura que é criada a partir de sua produção ou do magnetismo que o observador lhe imprime. Vários elementos são necessários para que essa aura exista: pode ser a ligação de algum objeto ou obra artística com a religiosidade, tradição, mitos e mistérios, ou mesmo alguma particularidade em torno do artista que a produziu. E Benjamin conceitua aura como “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que esteja.” (Benjamin, 1985, p. 170) Boal discorre sobre o pensamento benjaminiano dizendo que, no período das pinturas rupestres, a arte tinha uma função ritualística ou utilitária, estando a serviço da religiosidade ou das ações cotidianas, como estratégias de caça e combates. Os homens das cavernas desenhavam animais em suas paredes para poder estudá-los e depois capturá-los. Os deuses eram esculpidos ou estavam representados na natureza a fim de serem adorados. Nesse período, e se estendendo para muitos anos depois, a arte tinha uma função ritualística ligada ora à religiosidade, ora às necessidades diárias de sobrevivência. 72 M E TA X I S A substância da aura é o Saber e o Mistério. Ela se densifica como o acúmulo de tradições, histórias, conhecimentos e experiências vividas, que são o Saber; com mitos, esperanças, lendas, delírios e alucinações, que são o Mistério. O sacerdote, ao guardar (esconder) o objeto, apropria-se dos poderes mágicos, místicos e rituais de que a coisa, objeto de adoração, é possuidora. [...] Nos rituais da igreja católica, os sacerdotes escondiam o significado de suas missas em latim. A democratização da fé operada pelo Concílio Vaticano II, ao permitir que as missas fossem celebradas em línguas locais dos fiéis, deu volta atrás com o recente papa Bento XVI que, se não obrigou, ao menos permitiu que outra vez fosse usado latim diante dos fiéis, intimidados por essa língua, hoje solene. [...] Latim tem aura; vernáculo é chão. Latim é aura das palavras incompreensíveis pelo vulgo ao qual, hipnoticamente, são destinadas. O uso de uma língua estranha aumenta a aura e esconde significados. [...] Aura é arma. (Boal, 2009, p. 44) Então, para Boal, um dos perigos da aura é a utilização do poder político e antidemocrático que ela pode causar, através das religiões, que tratam os indivíduos como ovelhas acompanhando um rebanho guiado por pastores. A suposta sabedoria fica nas mãos de poucos Método escolhidos, enquanto a maioria precisa seguir sem questionar os dogmas divinos, a vontade de Deus. No campo artístico, esse tipo de tomada de poder acontece através de construções comerciais da arte, que nos fazem consumir o que a indústria cultural define como melhor. Revistas, filmes, jornais e músicas são criados com fins lucrativos e com qualidade artística construída, validada, mesmo que a mesma não exista: “Auras, nestes tempos neoliberais, têm sido comercialmente construídas pela mídia como forma de acrescentar valor – dinheiro e fama – a certas obras que nem sempre o têm.” (Boal, 2009, p. 45) Com a possibilidade de reprodução técnica e em série das obras de arte, Benjamin considera que a aura desapareça, fazendo com que as obras percam sua autenticidade ou valor de culto. Fenômenos tecnológicos fazem com que cinema, fotografia e música possam ser reproduzidos em muitas cópias, perdendo-se, dessa forma, um original autêntico. Todas as cópias de um filme são o filme. Como diferenciar uma foto original de sua cópia reproduzida com os mesmos padrões técnicos de qualidade? Para Benjamin, a função ritual da arte se esvanece, pois não está mais ligada a sua origem ou tradição, pois através dessa reprodução de obras e objetos a aura se perde. Nesse processo de multiplicar o produto artístico, quanto mais pessoas entram em contato com determinada obra, mais lucro ela garante aos seus criadores e maior é a sua interferência no tecido social. Ao mesmo tempo em que a autenticidade da arte, antes preservada, não está mais em voga, a reprodução desenfreada de determinadas obras artísticas, deixam a sociedade mais alienada e antiprodutiva. O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da M E TA X I S 73 Método obra por uma existência serial. (Benjamin, 1985, p. 168) Boal complementa Benjamin refletindo sobre uma esfera contemporânea: Não só as obras são cobertas com auras mediáticas, mas os próprios artistas, através dos meios de comunicação de massa – quanto mais valorizados por esses meios, maior a aura que os envolve. Tudo tem preço – arte e artistas. Tudo tem seu momento e lugar: auras religiosas, esportivas, comerciais... e auras dos novos tempos. (Boal, 2009, p. 46) O que ocorre não é a democratização da arte, como desejava Benjamin, mas, sim, a massificação das obras de arte, que se transformam em mercadorias de consumo. O espectador vira consumidor e a obra mercadoria. Walter Benjamin assumia uma posição otimista, pois considerava que a sociedade industrial levara à reprodução das obras de arte (livro, artes gráficas, fotografia, rádio e cinema) e que isso permitiria à maioria das pessoas o acesso a criações que, até então, apenas uns poucos podiam conhecer e fruir. Em outras palavras, Benjamin esperava que a reprodução técnica das obras de arte promovesse a democratização da cultura e das artes. (Chauí, 2009, p. 290) No meu texto “Indústria Cultural – Monopólio Estético”, publicado na Metaxis 06, digo que essa reprodução da arte não oportuniza que mais pessoas possam fruir ou produzir arte, mas, sim, massifica e monopoliza essa produção. O fim da aura nas obras de arte, verificada por Benjamin, nos revela um movimento diferente ao qual o pensador alemão aludiu. Em vez de proporcionar uma maior democratização da arte, abrindo espaço para novos artistas, novas formas de representação estética e maior fruição de diferentes públicos, a reprodutibilidade técnica da arte nos encaminha para uma massificação cultural. Arte produzida para massas, sem autenticidade, produzida em série, com interesses econômicos e sem 74 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental respeito à individualidade do espectador. O que Boal sugere é a multiplicação de artistas. Que cada indivíduo reencontre sua sonoridade interna, seu ritmo, o timbre de seu coração, de seus órgãos, de seu corpo. Para criar ritmos e música. Não apenas copiar o que lhe é arremessado como arte, mas poder descobrir. Que domine a linguagem das imagens para entender o mundo a seu redor e tirar proveito dele. A utilização da linguagem imagética nas práticas do Teatro do Oprimido tem o objetivo de facilitar a abstração e a criação de metáforas da realidade, para uma reflexão dessa mesma realidade e sua transformação. Que utilize a Palavra, uma das maiores criações do ser humano, para se expressar, ampliar sua comunicação e organizar o mundo através de conceitos. Som, Imagem e Palavra: pilares estéticos dos quais devemos nos reapropriar. Através da Estética do Oprimido, Boal oferece ferramentas para que o indivíduo possa revisitar suas potências artísticas e conscientemente tenha capacidade de compartilhar o que descobriu com outras pessoas. Não se trata de reprodução de artistas, cada um tem sua individualidade, sua unicidade. Trata-se da multiplicação dos artistas natos, do artista que cada ser humano é, buscando não uma arte massificada e reproduzida em série, mas o novo, o belo, em consonância com a vivência e a experiência de cada oprimido e oprimida. Cada qual com sua aura, individual, mas também coletiva. Uma aura solidária baseada na Ética. ◘ Essa moderna aura não é misteriosa. É saber sem mistério. É aura da verdade descoberta, não do segredo escondido. Aura do futuro, não só do passado revoluto. (Boal, 2009, p. 47) Referências: 1-BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo:Ed. Brasiliense, 1985. 2-BOAL, A. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro:Editora Garamond, 2009. 3-CHAUÍ, M. Convite a Filosofia. São Paulo:Ática, 2009. Notas: 1 A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica (1985) Método Teatro do Oprimido na Saúde Mental UM TEATRO SUBJUNTIVO “A dor deste ser me transtorna. Pois, contudo, poderia haver uma saída para ele.” (Bertold Brecht) “Vários outros mundos são possíveis.” (Augusto Boal) Julian Boal, integra o GTO-Paris, foi assistente de Augusto Boal por muitos anos e hoje atua internacionalmente. Ao fazer teatro, os oprimidos recuperam intelectual e fisicamente a possibilidade que lhes é negada de produzirem suas próprias representações. Escapam, pelo menos em parte, da identidade imposta pelo outro, o opressor. É uma recuperação e, também, necessariamente, uma pesquisa, uma investigação. A construção de uma representação própria passa necessariamente pelo desencadeamento de uma crise das representações dominantes. É inevitável lutar contra “a invasão dos cérebros”, descrita por Augusto Boal em A Estética do Oprimido. Essa preocupação em não mais delegar nada a especialistas, em fazer com que um saber marginalizado venha à tona, é a mesma que tem Foucault por ocasião das ‘investigações-intolerâncias’ promovidas por ele dentro do Grupo de Informação sobre as Prisões, do qual é um dos fundadores: Essas investigações não são feitas de fora, por um grupo de técnicos: os investigadores, aqui, são os próprios investigados. Cabe a eles tomar a palavra, derrubar os muros, formular o intolerável, e deixar de tolerá-lo. Cabe a eles se encarregar da luta que impedirá que a opressão se exerça.¹ A possibilidade de todos fazermos teatro só é realizável porque já fazemos teatro, ou ao menos uma forma, a que meu pai chamava teatro essencial: Mas o que é o teatro? No sentido mais arcaico do termo, o teatro é a capacidade que têm os seres humanos – e não os animais! – de observar a si-mesmos em ação. Os humanos são capazes de se ver no ato de ver, de pensar suas emoções, de se deixar emocionar por seus pensamentos. Podem se ver aqui e se imaginar lá; se ver como são hoje e imaginar como serão amanhã [...] Todos os seres humanos são atores (agem!) e espectadores (observam!). Todos nós somos espect-atores.² Essa não adesão de si a si-mesmo, às vezes, significa uma capacidade outra que não a de fazer teatro: a capacidade de pensar. Essa dicotomia entre ator e espectador nos convida a pensar outras dicotomias: a falha entre o que fazemos e o que somos ou podemos nos tornar; uma falha entre as pessoas e os papéis que representam, as funções que executam, os papéis que preenchem. Dizer que cada um é teatro significa dizer que podemos todos escapar de nós-mesmos e dos M E TA X I S 75 Método lugares que supostamente devemos ocupar. Logo, é coerente que o teatro, como prática da representação imaginada por Augusto Boal, seja solidário a esse teatro – capacidade propriamente humana de se ver em ação – no qual ele apostava. Formas teatrais não podem fornecer uma imagem estática do mundo, trata-se de um processo infinitamente aberto: O que deveria ser eliminado no teatro, que é uma fixação de uma imagem da sociedade, é esta tendência ao imobilismo, do “é assim que as coisas são”. No Teatro do Oprimido, é necessário mostrar que as coisas não são, elas estão sendo. Nada é, tudo está sendo. E para isto, quanto mais dúvidas e incertezas forem criadas, mais alternativas, potencialmente, teremos”.³ As formas de teatro criadas por Augusto Boal são as de um teatro integralmente voltado para a exploração minuciosa do real, no intuito de extrair daí todas as possibilidades negadas pela ordem dominante, de um teatro “subjuntivo”.4 Teatro que não é aquele da certeza ditada pelo indicativo, mas que pode abrir campos em que hipóteses, opiniões, fatos irreais – considerados ou imaginados – podem se expressar. Quando Augusto Boal declara, em entrevistas e textos, que o que devemos sobretudo deplorar, no atual estado das coisas, é a espoliação dos oprimidos de sua capacidade de criar metáforas, ele não está falando enquanto artista preocupado apenas em partilhar com as massas as alegrias da criação. Pelo contrário, está apostando no fato de que, só quando os oprimidos puderem imaginar alternativas possíveis (imaginação que não é apenas um exercício do espírito, mas que exige ações absolutamente concretas), eles poderão se opor a seus opressores. Se este mundo é incapaz de ser interpretado, então é impossível mudá-lo. Se, ao inventar o acrônimo TINA – There Is No Alternative –, Margareth Thatcher estivesse de fato com razão, não haveria neste mundo lugar para o Teatro do Oprimido. Confesso que, muitas vezes, subestimei a coerência contínua do pensamento de meu pai, que definiu o Teatro-Fórum, nos anos 1970, como uma análise concreta da situação concreta5 para, 30 anos depois, 76 M E TA X I S Teatro do Oprimido na Saúde Mental maravilhar-se diante de uma integrante de grupo popular que, após uma representação de Teatro-Fórum, se pôs a chorar frente ao espelho por se ver, pela primeira vez, como mulher – quando antes só conseguia se enxergar como empregada doméstica. É sempre a mesma recusa obstinada da ditadura do real como sendo o único real possível; sempre aquela vontade de fraturar a aparência inquebrantável do cotidiano. É buscar no presente todas as possibilidades, abandonadas pelos oprimidos ou negadas pelos opressores, para considerá-las como sendo momentos suscetíveis de desencadear rupturas. O Teatro do Oprimido é um teatro da esperança, que vê no presente não a repetição eterna de um tempo “homogêneo e vazio”, mas um momento em que contradições se imbricam e, com suas dinâmicas, nos deixam entrever possíveis vitórias contra opressões. Tentativa de nos libertarmos, pelo teatro, da ideia de que só há um mundo possível, para estudarmos a existência de possibilidades paralelas. Teatro experimental no sentido atribuído por Brecht, “não é o caso de algumas experiências formais, mas da necessidade de fazer com que se conceba, pelo teatro, a vida social em sua totalidade como uma experiência”. Brecht, cujas teorias e práticas constituíram fonte de inspiração para Augusto Boal: ...o prazer para os homens consiste em deixar de aceitar sem outra forma de processo o mundo que os rodeia [..]; consiste em brincar com ele, fazer experiências com ele, ou seja: executar sobre ele transformações que pareçam favoráveis. É por isto que o público, em face deste espetáculo, começa a completar a representação imaginando outras modalidades de comportamento e outras situações, antes de opô-las, seguindo o desenrolar da ação, àqueles e àquelas aos quais o teatro dá prioridade. Assim, o público se converte em narrador.6 Talvez pelo fato de Augusto Boal ter o espírito de um dialeticista, por demais consciente dos processos que transformam incessantemente o mundo, ele jamais tenha desejado elaborar uma definição globalizante do Oprimido, do Opressor ou da Opressão. Não encontramos em seus livros nenhuma descrição lapidar Teatro do Oprimido na Saúde Mental desses termos, aos quais no entanto sempre se refere. Nenhum “retrato por inteiro”, mas pinturas feitas por toques sucessivos em seus escritos. Às vezes, curtos trechos nos lembram que, se for absolutamente necessário nos atermos a essas palavras, elas não poderão ser reduzidas a uma visão maniqueísta do mundo. Um trabalhador oprimido pela exploração capitalista também pode ser um marido opressor que bate na mulher. Os oprimidos não são os portadores de uma verdade: “a cabeça dos oprimidos já é tão inundada por pensamentos que não lhes pertencem”;7 tampouco são heróis positivos sem falhas, “todo oprimido é um subversivo submisso”.8 Os próprios opressores se dividem entre aqueles que têm coroas sobre suas cabeças e aqueles que não têm nada a ganhar no exercício de sua opressão.9 Dizer que existem oprimidos e opressores não é, como se costuma dizer com muita frequência, uma simplificação do mundo. Pelo contrário, significa problematizá-lo, ir além de uma simples moral que oporia seres bons a seres que possuem uma essência maligna. É aceitar que as identidades não são fixas, mas que estão em constante movimento, pois “o oprimido não se define em relação a si-próprio, mas em relação a seu opressor”.10 Uma única coisa continua certa: “Se a Opressão existe, é preciso acabar com ela!”11 E para acabar com ela, o teatro sozinho não será suficiente. Pode se tornar um instrumento poderoso para contestar a ordem estabelecida, por ser o lugar onde os oprimidos criam suas próprias representações do mundo e, ao fazê-lo, se desvencilham da identidade que lhes é atribuída: a de serem incapazes de representar. Mas essa força não basta, a representação da greve importa menos que a greve em si: “O teatro não é superior à ação. É uma fase preliminar. Ele não pode substituí-la. A greve trará mais ensinamentos”.12 O ensinamento que um Teatro-Fórum produz é importante, mas aquele que a experiência real de uma luta oferece é ainda mais. O teatro deve resultar em uma ação concreta, o ator em cena deve se tornar um ativista nas ruas, é o jeito de criar plenamente este teatro – que não se contenta mais com uma interpretação do mundo, mas contribui efetivamente para sua transformação. Os livros de Augusto Boal, também sua experiência, se propagaram mundo afora. Existem grupos de Teatro do Oprimido em dezenas de países. Alguns deles Método reduziram o Teatro do Oprimido a um conjunto de técnicas; outros souberam se inspirar nos textos para fundar experiências absolutamente apaixonantes. Quando vivo, Augusto Boal já alertava para que as traições imperdoáveis não fossem confundidas com as heresias criativas. Manter a fidelidade a Augusto Boal não significa preservar uma pureza, evitar máculas. É pensar que as propostas formuladas por ele continuam globalmente válidas para nos ajudar a entender o mundo e a transformá-lo; que ignorá-las nos levaria indubitavelmente ao abandono de qualquer perspectiva de mudança concreta da nossa realidade. A qual critério poderíamos nos fixar para julgar nossa fidelidade? Talvez possamos encontrar uma resposta nas primeiras linhas do primeiro livro escrito por meu pai, Categorias de teatro popular: As elites consideram que o teatro não pode e nem deve ser popular. Contrariamente a isto, nós pensamos que não é somente o teatro que pode ser popular; o resto todo também deve se tornar popular: em particular o Poder e o Estado, os alimentos, as fábricas, as praias, as universidades, a vida.13 Talvez seja neste ponto que se encontre o caráter essencial capaz de fazer com que saibamos se estamos ou não fazendo Teatro do Oprimido. Além das formas, das representações, dos contextos e das conjunturas: buscar, sempre, fazer com que a recuperação do palco por todos se articule com a recuperação por todos do mundo. ◘ Notas: 1-FOUCAULT, M. Dits et Écrits. Paris:Gallimard, 2001. p.364. 2-BOAL, A. Jeux pour Acteurs et Non-acteurs. Paris:La Découverte, 2004. p.16-21. 3-Idem, p.40. 4-Idem, p.10. 5-A análise concreta da situação concreta é uma citação que Augusto Boal tomou de empréstimo a Lênin para definir o que é um Teatro-Fórum. 6-BRECHT, B. Théâtre Épique, Théâtre Dialectique. Paris:L’arche, 1999. p.184. 7-BOAL, A. Lê Théâtre de l’Opprimé, outil d’émancipation. In: Théâtre et développement. Liège :Colophon. 8- _____. L’arc en Ciel du Désir, Op.cit., p.49. 9- _____. Estética do Oprimido. Rio de Janeiro:Garamond, 2010. 10- _____. Jeux pour Acteurs et Non-acteurs, Op.cit., p. 293. 11-_____. Jeux pour Acteurs et Non-acteurs, Op. cit., p.25. 12-_____. Lê Théâtre de l’Opprimé, Op.cit., p. 186. 13-_____. Categorias de teatro popular. Buenos Aires:Ediciones CEPE, 1972. p.9. M E TA X I S 77 Estética imagem Teatro do Oprimido na Saúde Mental Teatro do Oprimido na Saúde Mental Estética é linguagem 78 M E TA X I S M E TA X I S 79 Glossário Teatro do Oprimido na Saúde Mental Projeto desenvolvido pelo CTO para capacitação de trabalhadores da Saúde Mental como Multiplicadores do Teatro do Oprimido. O TO é utilizado como instrumento lúdico, político e pedagógico para que trabalhadores da saúde, usuários e seus familiares possam discutir a temática da loucura e do próprio sistema de saúde nas unidades, criando alternativas para democratizar e humanizar o tratamento em Saúde Mental no Brasil. Saúde mental A Organização Mundial de Saúde afirma que não existe definição "oficial" de Saúde Mental. Diferenças culturais, julgamentos subjetivos e teorias relacionadas concorrentes afetam o modo como a "saúde mental" é definida. Saúde mental é um termo usado para descrever o nível de qualidade de vida cognitiva ou emocional. A saúde mental pode incluir a capacidade de um indivíduo apreciar a vida e procurar um equilíbrio entre as atividades e os esforços para atingir a resiliência psicológica. Admite-se, entretanto, que o conceito de saúde mental é mais amplo que a ausência de transtornos mentais. Fonte:http://www.saude.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo. php?conteudo=1059. Reforma Psiquiátrica É a ampla mudança do atendimento público em Saúde Mental que garante o acesso da população aos serviços e o respeito a seus direitos e liberdade. É amparada pela lei 10.216/2001, conquista de uma luta social que durou 12 anos. Ela significa a mudança do modelo de tratamento: no lugar do isolamento, o convívio com a família e a comunidade. O atendimento é feito em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Residências Terapêuticas, Ambulatórios, Hospitais Gerais, Centros de Convivência. As internações, quando necessárias, são feitas em hospitais gerais ou nos CAPS/24 horas. Os hospitais psiquiátricos de grande porte vão sendo progressivamente substituídos. Fonte: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=33929. CAPS Centros de Atenção Psicossocial são serviços de Saúde Mental destinados a prestar atenção diária a pessoas com transtornos mentais severos e persistentes. São compostos por equipes multiprofissionais, com a presença obrigatória de psiquiatra, enfermeiro, psicólogo e assistente social, aos quais se somam outros profissionais do campo da saúde. A estrutura física deve ser compatível com o acolhimento, o desenvolvimento de atividades coletivas e individuais, a realização de oficinas de reabilitação e outras atividades necessárias a cada caso em particular. Fonte: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto. cfm?idtxt=33882. Centros de Convivência e Cooperativa São unidades de saúde não assistenciais que têm como objetivo promover a reinserção social e a integração no mercado de trabalho de pessoas que apresentam transtornos mentais, pessoas com deficiência física, idosos, crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal. As ações ocorrem por meio de atividades diversificadas – como oficina de arte, música, esporte, marcenaria e costura – e são desenvolvidas, preferencialmente, em espaços públicos. Fonte:http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/pessoa_com_deficiencia/programas_e_servicos/saude/index.php?p=12458. UBS Unidade Básica de Saúde/Unidades de Atenção à Saúde/Unidades de Saúde da Família. Realizam atendimentos voltados para a atenção primária à saúde: Clínica Geral, Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Enfermagem. Programas de saúde: puericultura, criança e adolescente, doenças respiratórias na infância, adulto e idoso, hipertensão arterial, diabetes, esquistossomose, prevenção do câncer, climatério (pré-natal), saúde do escolar, planejamento familiar. Fonte: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/sus_3edicao_completo. pdf. CAPS AD Serviços para pessoas com problemas pelo uso de álcool ou outras drogas, geralmente disponíveis em cidades de médio porte. Funcionamento diurno. Fonte: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto. cfm?idtxt=33882. Usuário Pacientes, pessoas atendidas pelo Sistema Único de Saúde. Fonte: http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/SM_Sus.pdf. Homenagem ao contador de piadas... Baluarte do Pirei na Cenna, Enéas Lúcio começou no Grupo em 1997 e participou de 7 produções do grupo. Antes, trabalhou em farmácia, marcenaria e no almoxarifado do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba. Sua habilidade permitia que fizesse objetos com maços de cigarro e latas de óleo. Porém, seu maior hobby era contar piadas. A cada ensaio, a cada encontro, a cada apresentação tinha uma piada para contar. Quem visitava o grupo não saía sem antes ouvir uma anedota de Enéas. Seu repertório parecia interminável, às vezes tinha até algumas engraçadas! 80 M E TA X I S