CONTA-ME OUTROS FADOS

Transcrição

CONTA-ME OUTROS FADOS
CONTA-ME O TEU FADO
Espetáculo Pluridisciplinar
Ideia e roteiro original Tela Leão | Direção e Dramaturgia Pedro Ramos e Tela Leão | Interpretação e Coreografia Adriana Castro | Cantora e
Atriz Catarina Viegas | Arranjos e Acompanhamentos Helder Viegas | Ator e Apresentador Pedro Ramos | Produção Pedro
Nascimento | Luz, Som e Operação Técnica Valter Alves | Figurino de cantora Bruno Guerra, confeção Mª Luísa Fernandes.
PREAMBULO
Desde a entrada de público no foyer ouve-se uma seleção de músicas africanas, árabes e íbero americanas. As
duas últimas canções dão início ao espetáculo. Todo o preambulo acontece a meia-luz, e pode ser usado em
parte para se terminar de arrumar os espectadores na sala de espetáculos.
Em cena estarão sempre presentes um MÚSICO, uma BAILARINA, uma CANTORA e um ATOR, sentados em
cadeiras alinhadas em paralelo com a densa cortina vermelha de veludo drapeado, que nos atira para o universo
do teatro, do espetáculo, das histórias contadas, da ilusão.
MÚSICO e BAILARINA
Ao som do CAPRICHO ÁRABE de Francisco Tárrega, a Bailarina inicia uma coreografia que utiliza uma
das cadeiras de cena como uma nau.
O ATOR diz um excerto do poema NAVEGAR É PRECISO de Fernando Pessoa
ATOR
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito desta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a minha alma a lenha desse fogo.
1
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
A CANTORA adianta-se para a lateral de cena e canta OS ARGONAUTAS de Caetano Veloso, enquanto
a BAILARINA continua a sua coreografia na cadeira feita Nau bem no meio do palco.
O Barco!
Meu coração não aguenta
Tanta tormenta, alegria
Meu coração não contenta
O dia, o marco, meu coração
O porto, não!...
Navegar é preciso
Viver não é preciso...(2x)
O Barco!
Noite no teu, tão bonito
Sorriso solto perdido
Horizonte, madrugada
O riso, o arco da madrugada
O porto, nada!...
Navegar é preciso
Viver não é preciso (2x)
O Barco!
O automóvel brilhante
O trilho solto, o barulho
Do meu dente em tua veia
O sangue, o charco, barulho lento
O porto, silêncio!...
Navegar é preciso
Viver não é preciso...(3x)
O ATOR passa a apresentar o espetáculo assim que termina a canção anterior.
ATOR
Senhoras e senhores muito boa noite. Hoje falaremos e cantaremos o fado. Não apenas a música que todos
conhecem como Fado português, mas outras música que tem o fado como sinónimo de destino, de sina, ou fado
como história de vida de alguém. O Flamenco, a Morna, o Tango, a Música Popular Brasileira. Mas antes de se
poder começar a cantar o fado há uma condição imprescindível. O silêncio. Por isso vamos começar a ensaiar
desde já esse silêncio. Sempre que ouvirem a expressão “Silêncio que vai se cantar o fado” tem que se criar aqui
um silêncio sepulcral… Vamos ensaiar!
2
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
O “ensaio” prossegue com a plateia até se conseguir o silêncio
A CANTORA recebe do ATOR um xaile de fadista e ocupa o centro da área cénica, sendo iluminada
com destaque, e passa a interpretar MEU FADO MEU de Paulo de Carvalho.
Trago um fado no meu canto
Canto a noite até ser dia
Do meu povo trago pranto
No meu canto a Mouraria
Tenho saudades de mim
Do meu amor, mais amado
Eu canto um país sem fim
O mar, a terra, o meu fado
Meu fado, meu fado, meu fado, meu fado
De mim só me falto eu
Senhora da minha vida
Do sonho, digo que é meu
E dou por mim já nascida
Trago um fado no meu canto
Na minh'alma vem guardado
Vem por dentro do meu espanto
A procura do meu fado
Meu fado, meu fado, meu fado, meu fado
Assim que a cantora termina o ATOR adianta-se para explicar:
O fado do povo Português foi sair para o mundo e foi buscar nos cantinhos por onde andou, África, Brasil e quem
sabe o oriente, a inspiração que juntou à musica tradicional portuguesa, que já tinha em si alguma influência
árabe, criando assim no início do século XIX, o Fado.
Mas há quem diga que o Fado é genuinamente português, baseado apenas nas músicas e no romanceiro
tradicional. Fado fala das coisas do dia-a-dia, do amor, da paixão, da dor, do amor, da traição, da saudade, da
desgraça, da sorte, do destino e da má vida. E foi na má-vida, nas tascas frequentadas por mulheres da vida e
homens da noite, boémios, rufias, vadios, enfim, todos os marginais, que o fado nasceu.
É claro que as pessoas de bem, as de boas famílias, não gostavam nada disto. Tirando é claro, os boêmios, ou seja,
as suas ovelhas negras. Mas o facto é que o fado começou a crescer, e a aparecer também nas festas populares e
no teatro de revista e mais tarde na rádio e foi, pouco a pouco, passando a fazer parte do quotidiano da vida de
todos os portugueses.
3
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
Existem vários tipos de Fado: o de Coimbra, o de Lisboa, o fado menor, o fado corrido, o fado mouraria, o fado
marceneiro, o fado vadio, o fado falado, o fado alfacinha, o fado castiço, o fado canção, o fado brejeiro, o fado
bailado, o fado de faca e alguidar, o Fado Alcântara, o Fado aristocrata, o Fado Batê, o Fado experimental, o Fado
Lopes, o Fado da Meia-noite, Fado Pintadinho, o Fado Tango, o Fado Tamanquinhas, o Fado Marialva e até … o
Fado Tropical…
O ATOR e a CANTORA assumem em conjunto a personagem Matias de Albuquerque da peça Calabar de Chico
Buarque, e interpretam o FADO TROPICAL de Chico Buarque e Ruy Guerra, que é dançado pela BAILARINA em
evocações de linguagem coreográfica que lembrarão, em alguns momentos, danças do repertório étnico
brasileiro, como o xaxado por exemplo, e no final a coreografia assume movimentações típicas de muitas danças
do folclore português, como o vira ou o fandango.
Oh musa do meu fado, ohh minha mãe gentil,
te deixo consternado no primeiro Abril.
Mas não sê tão ingrata, não esquece quem te amou
e em tua densa mata se perdeu e se encontrou.
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal,
ainda vai tornar-se um imenso Portugal.
Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo. Além da
sífilis, é claro. Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha
os olhos e, sinceramente, chora.
Com avencas na catinga alecrins no canavial,
licores na moringa e um vinho tropical,
e a linda mulata com rendas do Alentejo,
de quem, numa bravata, arrebato um beijo.
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
e ainda vai tornar-se um imenso Portugal.
Meu coração tem um sereno jeito e as minhas mãos o golpe duro e presto, de tal maneira que, depois de feito,
desencontrado, eu mesmo me contesto. Se trago as mãos distantes do meu peito, éque há distância entre intenção
e gesto, e se meu coração nas mãos estreito me assombra a súbita impressão de incesto. Quando me encontro no
calor da luta ostento a aguda empunhadura à proa, mas o meu peito se desabotoa e se a sentença se anuncia,
bruta, mais que depressa a mão cega executa pois que senão o coração perdoa.
4
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
No final desta canção a BAILARINA, ao som de um solo de guitarra portuguesa onde o MÚSICO interpreta
VERDES ANOS de Carlos Paredes, mudará de roupa, em movimentos coreografados que preparam a próxima
cena.
ATOR atuando novamente como apresentador:
Os fados das pessoas são contados em canções de um lado e do outro do oceano. Em 1954 os brasileiros Piratini e
Caco Velho criaram uma canção que contava a tragédia dos escravos africanos no Brasil: "Mãe preta".
O texto foi proibido em Portugal. David Mourão-Ferreira escreveu outro texto para a música que Amália Rodrigues
tornou mundialmente famosa. No texto português a tragédia do pescador e as preocupações da sua amada
tinham substituído a tragédia da exploração e do racismo.
CANTORA e BAILARINA interpretam sucessivamente as canções MÃE PRETA de Piratini e Caco Velho, e BARCO
NEGRO de David Mourão Ferreira. A BAILARINA evoca todos os escravos africanos e termina a coreografia com
os braços para cima e as mãos sobrepostas, como se atadas.
Pele encarquilhada carapinha branca
Gandôla de renda caindo na anca
Embalando o berço do filho do sinhô
Que há pouco tempo a sinhá ganhou
Era assim que mãe preta fazia
criava todo o branco com muita alegria
Porém lá na senzala o seu pretinho apanhava
Mãe preta mais uma lágrima enxugava
Mãe preta, mãe preta
Enquanto a chibata batia no seu amor
Mãe preta embalava o filho branco do sinhô
De manhã, que medo, que me achasses feia!
Acordei, tremendo, deitada n'areia
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.[Bis]
Vi depois, numa rocha, uma cruz,
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas:
São loucas, são loucas
5
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
Eu sei, meu amor,
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor,
Me diz qu'estás sempre comigo.[Bis]
No vento que lança areia nos vidros;
Na água que canta, no fogo mortiço;
No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo.
ATOR
Fado africano… outro tipo de fado. E já que estamos em África, aproveitamos para falar de uma música
tradicional de Cabo Verde. A Morna, que tem a sua origem no lundu, um ritmo angolano, influências de música
argelina e diversos géneros musicais europeus e latino-americanos. E pelos vistos os cabo-verdianos sofrem muito
do mesmo mal que os portugueses… a saudade!
A BAILARINA desmancha a personagem da escrava fazendo descer as mãos num meneio de morna, e seu rosto
transforma-se de sofrimento em prazer. A CANTORA interpreta SODADE de Cesária Évora, acompanhada pelas
vozes masculinas do ATOR e do MÚSICO que cantam o refrão.
Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Quem mostra'bo
Ess caminho longe?
Ess caminho
Pa Sao Tomé
Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau
Si bô 'screvê' me
'M ta 'screvê be
Si bô 'squecê me
'M ta 'squecê be
6
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
Até dia
Qui bô voltà
Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau
ATOR
A influência africana esteve também na origem da música popular brasileira. O samba uma dança de raízes
africanas inicialmente praticada pelos escravos libertos no Brasil e que rapidamente incorporou outros gêneros
musicais urbanos como a polca, o maxixe, o lundu, adquirindo um caráter singular. Com o passar dos anos
apareceram diversas vertentes que ganharam nomes próprias, como o choro, o samba-de-breque, o sambacanção, o samba-rock, o pagode, a bossa nova…
A CANTORA interpreta MODINHA de Tom Jobim e Vinicius de Moraes ao som de um arranjo e interpretação do
violonista brasileiro Yamandu Costa
Não!
Não pode mais meu coração
Viver assim dilacerado
Escravizado a uma ilusão
Que é só desilusão
Ah, não seja a vida sempre assim
Como um luar desesperado
A derramar melancolia em mim
Poesia em mim
Vai, triste canção, sai do meu peito
E semeia a emoção
Que chora dentro do meu coração
Coração
No final da música o ATOR junta-se à CANTORA, e ainda ao som dos últimos acordes da canção, começa a contar
a sua história:
7
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
Em cada coração há uma janela para outros corações. Os corações não ficam separados como os corpos que os
contém, mas, assim como as lâmpadas que são acesas lado a lado, a sua luz une-se num só feixe”
Foi numa expedição a Ababil que Lailah conheceu Halim filho de Yasmina. Conheceram-se enquanto Halim era
chefe ou “shamir” de uma das caravanas que levavam peregrinos até à “Cidade Santa”.
Lailah apaixonou-se pelo condutor de caravanas. E não foi menor o amor que Lailah fez nascer no coração de
Halim. Trocaram juras de amor e decidiram que se casariam assim que Halim voltasse da sua próxima viagem a
Meca.
Essa viagem encheu de inquietação o coração de Lailah. Halim ia visitar algumas cidades muito cheias de vida e de
alegria e ela temia que o noivo encontrasse uma jovem irresistível que o seduzisse e o prendesse para sempre.
Desesperava-se ao imaginar que perderia o amor de Halim.
Lailah foi procurar um feiticeito que vivia nos arredores da cidade, na esperança que ele pudesse fazer uma
“baraka”, um encantamento… capaz de prender, para sempre o seu namorado. Lailah foi recebida pelo bruxo na
sua tenda de mágico, cheia de horripilantes objetos: caveiras, corujas empalhadas, ossos de avestruz, peles de
cobra…
Cheia de ilusões, a ingénua menina contou a intranquilidade em que vivia e perguntou o que devia fazer para
prender para sempre o amor de seu amado.
“E qual é o nome desse jovem tão venturoso?”, indagou o velho intrujão. “Chama-se Halim, é o “shamir” da
caravana!”, respondeu a jovem. Abrindo os olhos de espanto, sorriu sinistramente o miserável feiticeiro,
esfregando as mãos.“Não te assustes! São infundados os teus receios. Conheço o teu namorado.Tudo terminará
bem”.
O coração do feiticeiro enchera-se de ódio ao ouvir o nome de Halim filho de Yasmina. Lembrou-se do tempo em
que se enamorara da delicada Yasmina. Por três vezes a pedira em casamento. Implorou. Humilhou-se. Mas
Yasmina três vezes o repeliu. Ao relembrar esses factos perdidos no passado, o feiticeiro era invadido por ondas de
furor. Mas chegara, afinal, o momento da vingança.
O bruxo intrujão fingiu que meditava. Riscou figuras cabalísticas no chão. Tomou numa das mãos cinco pedrinhas
coloridas, atirou-as ao acaso. Permaneceu calado fingindo que decifrava um sortilégio qualquer. Finalmente disse,
aflautando a voz, com ar glacial:
“Infelizmente, menina, as pedras do teu destino revelaram que a sombra de terrível desgraça paira sobre a tua
cabeça. Vais perder o teu noivo!
8
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
Amedrontou-se Lailah. “O que deverei fazer?”, indagou a jovem cheia de medo. Respondeu o embusteiro,
iluminado por um satânico pensamento:
“Deves fazer a ele uma exigência: Halim deverá trazer-te o coração da sua própria mãe!” Ou cumpres o que disse,
ou perderás, para sempre, o amor de Halim!”
Lailah voltou ao seu amado sem saber como fazer tão desgraçado pedido. Vendo-a aflita, é o próprio Halim que se
oferece para fazer tudo o que ela quiser!!!
O bater de um coração desperta a BAILARINA e a CANTORA, que cantará CORAÇÃO MATERNO de Vicente
Celestino. A BAILARINA usa o corpo do ATOR, inerte centro do palco em posição de oração islâmica, como
suporte coreográfico, a contar a história de um coração materno que mesmo arrancado do peito da mãe, fala
com o seu filho e o consola
Disse um campônio à sua amada: "Minha idolatrada, diga o que quer
Por ti vou matar, vou roubar, embora tristezas me causes mulher
Provar quero eu que te quero, venero teus olhos, teu corpo, e teu ser
Mas diga, tua ordem espero, por ti não importa matar ou morrer"
E ela disse ao campônio, a brincar: "Se é verdade tua louca paixão
Parte já e pra mim vá buscar de tua mãe inteiro o coração"
E a correr o campônio partiu, como um raio na estrada sumiu
E sua amada qual louca ficou, a chorar na estrada tombou
Chega à choupana o campônio
Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar
Rasga-lhe o peito o demônio
Tombando a velhinha aos pés do altar
Tira do peito sangrando da velha mãezinha o pobre coração
E volta à correr proclamando: "Vitória, vitória, tens minha paixão"
Mas em meio da estrada caiu, e na queda uma perna partiu
E à distância saltou-lhe da mão sobre a terra o pobre coração
Nesse instante uma voz ecoou: "Magoou-se, pobre filho meu?
Vem buscar-me filho, aqui estou, vem buscar-me que ainda sou teu!
ATOR
O amor materno é mesmo incondicional… e as histórias de alguns fados correm o mundo. A história árabe que
acabei de contar é milenar, e foi contada muitas e muitas vezes, sempre após o por do sol, porque segundo a
antiga crendice árabe só se podia contar histórias quando o ouvinte não pudesse mais distinguir um fio preto de
um fio branco. Assim, de serão em serão e atravessando o mar, a história voltou a ser contada no Brasil em
9
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
meados do século XX, pelo cantor e compositor Vicente Celestino. O Fado conta histórias que vão do trágico ao
cómico, ou traduz sentimentos que são tão comuns a tantas culturas que poderiam ter sido escritos em
qualquer lugar do mundo. A falar do tempo… da vida…
Para ilustrar essa afirmação a CANTORA, acompanhada apenas pela guitarra portuguesa, interpreta
a canção VOLTA ATRÁS VIDA VIVIDA de João de Freitas e Filipe Pinto.
Volta atrás vida vivida
Para eu tornar a ver
Aquela vida perdida
Que nunca soube viver
Voltar de novo quem dera
A tal tempo, que saudade
Volta sempre a primavera
Só não volta a mocidade
A vida começa cedo
Mas assim que ela começa
Começamos por ter medo
Que ela se acabe depressa
O tempo vai-se passando
E a gente vai-se iludindo
Ora rindo ora chorando
Ora chorando ora rindo
Meu Deus, como o tempo passa
Dizemos de quando em quando
Afinal, o tempo fica
A gente é que vai passando
ATOR Ainda ao som dos últimos acordes, o ator volta a assumir o papel de apresentador:
Falemos agora do FLAMENCO, uma expressão artística de raízes cigana, característica da Andaluzia em Espanha,
aqui muito perto, que junta o cante, o baile e o toque, e que traz uma forte influência da música árabe. Existem
muitos estilos de Flamenco com diferentes ritmos e formas de dançar.
10
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
A BAILARINA interpreta, ao som da canção GRANADA EN FLOR de Paco Peña, a sua versão de Flamenco, numa
leitura contemporânea intercalada com movimentos de capoeira e músicas urbanas. Sentados como numa
formação de espetáculo de Flamenco, a CANTORA, ATOR e MÚSICO acompanham as palmas e incentivam a
BAILARINA com gritos.
Na sequência desse flamenco, a CANTORA interpreta a Canção EL TORO Y LA LUNA de Carlos Castellano Gómez,
enquanto a BAILARINA transforma-se num touro bravio.
La luna se está peinando
En los espejos del río.
Y un toro la está mirando
Entre la jara escondido.
Cuando llega la alegre mañana
Y la luna se escapa del río
El torito se mete en el agua
Embistiendo al ver que se ha ido.
Ese toro enamorado de la luna
Que abandona por la noche la maná'
Es pintado de amapola y aceituna
Y le puso campanero el mayoral.
Los remeros de los montes
Le besan la frente,
Las estrellas de los cielos
Le bañan de plata
Y el torito que es bravío
De casta valiente
Abanicos de colores
Parecen sus patas.
La luna viene esta noche
Con una bata de cola
Y el toro la está esperando
Entre la jara y las sombras.
11
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
En la cara del agua del río
Donde duerme la luna lunera
El torito celoso perdío
La vigila como un centinela.
ATOR
E já que estamos em castelhano não podemos deixar de falar do TANGO, que nasceu de uma miscelânea de
imigrantes europeus, de descendentes de africanos que foram para Buenos Aires na Argentina e dos crioulos
nativos da região, mesclando muitos costumes, crenças e rituais que geraram uma identidade cultural distinta. A
música e dança do tango formam a encarnação mais reconhecida dessa identidade.
ATOR e CANTORA interpretam o romance da conhecida dupla Conde Drácula e Lucy, ao som do
TANGO DEL VAMPIRO de Daniel Melingo e Luis Alposta
Escucho a un fueye que me asegura
que ya es de noche y es noche oscura.
Hoy su rezongo suena a sirena
que está anunciando que hay luna llena.
Este es el tango que con voz ronca
le canto a Lucy al salir del jonca.
¡Lucy! ¡Mi Lucy! Que no hay collares
con que se oculten tus yugulares.
Desde hace siglos no siento el hambre
y hoy sólo quiero beber tu sangre.
¡Conde! ¡Mi Conde!
¡Mi amor prohibido!
Ya desde el día en que la has bebido
mi sangre toda te corresponde.
Si me has herido,
mi flor de anemia
12
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
No es esta noche lo que me apremia,
sino la llama que has encendido.
Si algo me quieres,
sólo por eso,
abre la boca con que me hieres
con que me hieres y hoy dame un beso.
El mismo fueye, como si hablara,
me está diciendo que es noche clara.
Ya no es rezongo, ni es la guadaña.
Ni es esa historia de Transilvania.
Este es el tango con voz quebrada
que ahora le canto a mi enamorada.
¡Pero carajo!... ¡Pero carajo!...
¡Quién trajo el ajo!... ¡Quién trajo el ajo!...
¡Tan justo ahora, que sin collares
Lucy me muestra sus yugulares!
mas no final a CANTORA repele o seu Conde, jurando nunca mais cantar tais fados, através da canção O FADO
NÃO É MAU, de Pedro da Silva Martins, ao som do qual o ATOR e a BAILARINA dançam e se namoram.
Ai tristeza!,
eu jurei
nunca mais cantar o fado.
Foi por amor
que o calei,
por amor ao meu namorado.
Que o fado é mau,
corrompe a alma com demónios,
13
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
manjericos, Santo Antónios
amores vagos e episódios
de faca e alguidar.
Ainda para mais é um negócio
de direita
que esta malta aproveita
para se vangloriar.
-"Fica aí no teu cantinho!"
- diz-me assim, com carinho,
meu amor, para não cantar.
-"Meu amor, mas o destino
não se roga." E fez ouvidos
moucos ao que eu fiz jurar.
-"Aqui me tens a confessar:
-foi apenas o destino
que é cruel e pequenino
e nos quis vir separar...
Ai tristeza!,
podem ir ver
quebrada aqui já a promessa.
E esta voz
canta a doer
sem fado nem amor. Que resta?
O fado não é mau,
não é um crime ou um defeito.
É um emaranhado de cordões
que nos entrelaça o peito
e precisa de ser solto.
Corre o risco de sufoco
quem prende o fado na voz
e anda ali com aqueles nós
a apertarem na garganta.
14
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
É mais rico quem o canta;
pobre, quem lhe dá prisões.
Tu e eu não somos dois...
Meu amor, tens de pensar
que isto é pegar ou largar,
são estas as condições:
tu e eu e as canções.
Um peito que canta o fado
tem sempre dois corações!
Entrando num despique com a CANTORA, o ATOR resolve contar a história de amor do Chico e da Glória,
interpretando o FADO GAGO de Sergio Godinho.
Fado triste, fado negro das vielas
onde, agora é que são elas
encomendaram-me este fado
"...- Mas só se for falado..."
Fado falado? Pagam bem e dão trocado
o fado é pago!
Mas eu que sou gago só consigo balbuciar...
(melhor cantar:)
Mãos caprichosas que sebosas mimoseiam a guitarra
mimoseando o fado nefando que se entranha nas vielas
mãos tagarelas indecentes mãos tão juntas, tão ardentes
os dedos quentes insolentes só se amainam na guitarra
Espera aí
já compreendi que entoando mesmo falando, mesmo falando
se falar como que em verso não gaguejo e até converso
(como as tais mãos na guitarra...)
Eram assim essas mãos mãos de ferro e mãos de farra
desse Chico de má-vida que (p´ra ser fiel à história)
andava na boa-vida com a Glória
e está bom de ver que o mulherio de Alfama
que é todo de alta linhagem
achava aquilo suspeito: vem de viagem
esse Chico marinheiro, todo feito
e vai dependurar a âncora na varanda da pequena
(Estão a ver a cena...)
15
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
E está bom de imaginar (mesmo sem ver)
que dentro desse lugar o que tinha a mercearia mesmo em frente
tudo era transparente
o Chico, quando dormia era marinheiro em terra
era a paz depois da guerra, a sua Glória
por isso dormiam juntos sem divisória
Mãos muito sábias tantas lábias nas linhas das quatro palmas
são duas almas irmanadas pelas sinas da paixão
corpo na mão mão que esvoaça e amordaça a sensatez
e cada vez que o fado canta esqueço tanta da gaguez
Mas um dia - há sempre um dia (Moeda ao ar!)
a cara e a coroa viram a sorte mudar
vamos lá explicar
É que o Chico, co´a memória de ter amor de mulher vez à vez, em cada porto
não cuidou de amar a Glória
foi-se à fruta no pomar deixou a planta no horto
ou seja:
resolveu catrafilar toda a mulher que passava na rua por onde a Glória
- e aqui vai mas desta história - espreitava
Ah! Que a Glória é mulher tesa...
quando viu o Chico rua abaixo, rua acima
atracado a uma ´pirua´ uma garina de resto bem conhecida
daquelas que faz p´la vida
e ela toda pimpante
e ele todo galante
Veio-lhe à boca o ciúme e a navalha foi lume brilhando de raiva
todo este bairro, que saiba que os dois que ali vão ter de morrer
ai, vai correr muito sangue eu esfolo, estrafego
eu pego nos dois atiro as carcaças ao rio e nem olho p´ra trás
tudo isto faz alarido e o Chico já ferido só tenta dizer:
- Glória, que fazes? Que morro sem quase ter tempo de me arrepender
dá-me uma oportunidade e nesta cidade eu prometo ser teu
eu quero morrer no mar alto e depois ir p´ró céu
Mãos homicidas amanticidas assim eram se não fosse
o olhar doce por um instante desse homem tão inconstante
mãos que da Glória têm o nome e em seu nome vão amar
eu fico gago com o afago que essas mãos souberam dar
16
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
E o afagar dessas mãos já desenha na pele a promessa futura
- Jura, vá jura que és todo meu ´té ao fim todo, todo de mim
- Glória, vou desembarcar dessa vida em que andava à deriva no amor
- Chico, os meus braços de mar dão-te abrigo e calor
E assim acaba esta história o Chico e a Glória está bom de se ver
ambos com vidas atrás vão atrás de uma vida em que é tudo viver
quem fala assim não é gago (não quero voltar a um assunto encerrado)
mas... digam-me lá se eu não sou gago e canto o fado
Continuando em clima de despique e mergulhando num universo cómico, a CANTORA, através da canção O
SENHOR EXTRATERRESTRE de Carlos Paião contará a história de um ET que em visita ao quintal de uma prosaica
dona de casa, acaba por ficar seu amigo, ganhando presentes e até um copo de vinho quando finalmente se
despede para voltar à sua casa num outro planeta qualquer…
Vou contar-vos uma história
que não me sai da memória,
foi p'ra mim uma vitória
nesta era espacial.
Noutro dia estremeci
quando abri a porta e vi
um grandessíssimo ovni
pousado no meu quintal.
Fui logo bater à porta,
veio uma figura torta,
eu disse: se não se importa
poderia ir-se embora,
tenho esta roupa a secar
e ainda se vai sujar
se essa coisa aí ficar
a deitar fumo p'ra fora.
E o senhor extraterrestre
viu-se um pouco atrapalhado,
quis falar mas disse pi,
estava mal sintonizado.
17
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
Mexeu lá o botãozinho
e pôde contar-me então
que tinha sido multado
por o terem apanhado
sem carta de condução.
O senhor desculpe lá,
não quero passar por má,
pois você onde está
não me adianta nem me atrasa.
O pior é que a vizinha
que parece que adivinha
quando vir que estou sozinha
com um estranho em minha casa.
Mas já que está aí de pé
venha tomar um café,
faz-me pena, pois você
nem tem cara de ser mau
e eu queria saber também
se na terra donde vem
não conhece lá ninguém
que me arranje bacalhau.
E o senhor extraterrestre
viu-se um pouco atrapalhado,
quis falar mas disse pi,
estava mal sintonizado.
Mexeu lá no botãozinho,
disse para me pôr a pau,
pois na terra donde vinha
nem há cheiro de sardinha
quanto mais de bacalhau.
18
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
Conte agora novidades:
É casado? Tem saudades?
Já tem filhos? De que idades?
Só um? A quem é que sai?
Tem retratos com certeza,
mostre lá… Ai que riqueza,
não é mesmo uma beleza,
tão verdinho… sai ao pai.
Já está de chaves na mão?
Vai voltar p’ro avião?
Espere, que já ali estão
umas sandes p’ra viagem
e vista também aquela
camisinha de flanela
p’ra quando abrir a janela
não se constipar co’a aragem.
E o senhor extraterrestre
viu-se um pouco atrapalhado,
quis falar mas disse pi,
estava mal sintonizado.
Mexeu lá no botãozinho
e pôde-me então dizer
que quer que eu vá visitá-lo,
que acha graça quando eu falo
ou ao menos p’ra escrever.
E o senhor extraterrestre
viu-se um pouco atrapalhado,
quis falar mas disse pi,
estava mal sintonizado.
Mexeu lá no botãozinho
só p’ra dizer: Deus lhe pague.
19
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
Eu dei-lhe um copo de vinho
e lá foi no seu caminho
que era um pouco em ziguezague.
CANTORA e MÚSICO
O espetáculo evolui para terminar em loucura, através da canção interpretada em conjunto pelo
ATOR, a BAILARINA, a CANTORA e o MÚSICO, BALADA PARA UN LOCO de Astor Piazzola e Horacio Ferrer
que conta a história de um louco que andava pelas ruas de Buenos Aires com meio melão à cabeça à guisa de
chapéu, e uma bandeirinha de táxi a dizer LIVRE em cada mão, evocando-se num final grandioso
essa liberdade dos loucos que inventaram o amor…
1
Os fins de tarde em Buenos Aires têm aquele… não sei que.. estão a ver?
Eu saio de casa pela Arenales, o mesmo de sempre na rua, e em mim...
Quando, de repente, por trás de uma árvore, aparece ele.
Combinação rara de último vagabundo
e primeiro clandestino numa viagem a Venus.
Meio melão na cabeça,
as riscas da camisa desenhadas na pele,
duas meias solas cravadas nos pés
e um sinal de táxi livre levantado em cada mão.
Parece que só eu o vejo,
Porque ele passa pelas ruas e os manequins das montras,
e os semáforos dão-lhe três luzes celestiais
e as laranjeiras das avenidas
atiram-lhe as suas flores.
E assim, meio dançando, meio voando, ,
ele tira o melão da cabeça,
dá-me um sinal de táxi livre e diz-me:
(Cantado)
Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao...
No ves que va la luna rodando por Callao,
1
Trechos em português traduzido por Pedro Ramos e Inês Sottomayor
20
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
que un corso de astronautas y niños, con un vals,
me baila alrededor... ¡Bailá! ¡Vení! ¡Volá!
Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao...
Yo miro a Buenos Aires del nido de un gorrión
y a vos te vi tan triste... ¡Vení! ¡Volá! ¡Sentí!...
el loco berretín que tengo para vos.
¡Loco! ¡Loco! ¡Loco!
Cuando anochezca en tu porteña soledad,
por la ribera de tu sábana vendré
con un poema y un trombón
a desvelarte el corazón.
¡Loco! ¡Loco! ¡Loco!
Como un acróbata demente saltaré,
sobre el abismo de tu escote hasta sentir
que enloquecí tu corazón de libertad...
¡Ya vas a ver!
(Recitado)
E dizendo isso o louco convida-me
a andar na sua ilusão topo de gama desportiva
e vamos a voar pelos beirais
com uma andorinha no motor!
De todo lado nos aplauden: "Viva! Viva!",
os loucos que inventaram o Amor,
e um anjo, um soldado e uma menina
dançam ao nosso redor.
vem nos cumprimentar pessoas lindas...
E o louco, e eu, sei lá eu!:
faz os sinos tocaram com seu riso,
e por fim, olha para mim, sorri, e diz-me a meia voz:
(Cantado)
Quereme así, piantao, piantao, piantao...
Trepate a esta ternura de locos que hay en mí,
ponete esta peluca de alondras, ¡y volá!
¡Volá conmigo ya! ¡Vení, volá, vení!
21
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012
Quereme así, piantao, piantao, piantao...
Abrite los amores que vamos a intentar
la mágica locura total de revivir...
¡Vení, volá, vení! ¡Trai-lai-la-larará!
¡Viva! ¡Viva! ¡Viva!
Loca el y loca yo...
¡Locos! ¡Locos! ¡Locos!
¡Loca el y loca yo
As luzes baixam até escuro total.
Nas mãos da CANTORA, num coração de cerâmica2, pulsa uma luz encarnada ao som do bater de um coração.
2
(design de Lígia Carteiro)
22
Roteiro de Tela Leão produzido pelo Teatro Al-Masrah e Artistas Associados em Tavira, 2012

Documentos relacionados