- ANNA NERY - Revista de Enfermagem

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A amamentação para a primípara
Rafael EV et al
O SIGNIFICADO DA AMAMENTAÇÃO
PARA A MULHER PRIMÍPARA
The meaning of breastfeeding
for the primipary woman
El significado de la lactancia
para la mujer primípara
Eremita Val Rafael
Raimunda Magalhães da Silva
Maria Socorro Pereira Rodrigues
Resumo
Estudo sob abordagem qualitativa-descritiva, cujo objetivo é identificar o significado atribuído à amamentação, segundo
a percepção e visão de mundo da primípara. Dados coletados por meio de observação livre e entrevista semi-estruturada,
com 11 mulheres, no período de abril a 30 de junho de 2002, na Unidade Materno-Infantil do Hospital Universitário da
Universidade Federal do Maranhão. A análise dos dados, realizada à luz do interacionismo simbólico, apoiou-se na
premissa de que a mulher age, em relação ao aleitamento materno, segundo o significado da amamentação para ela.
Além disso, ficou evidenciado que, para essa mulher, a amamentação é dever e ato de afetividade recíproca do amor e da
auto-realização, bem como é importante para o desenvolvimento emocional da criança. Amamentar é um papel socialmente
concebido por ela e para ela, com base na cultura e no significado da amamentação. Portanto, o papel da mulher na
sociedade e o valor atribuído à infância são aspectos considerados significativos nessa elaboração.
Palavras-chave: Amamentação. Mulher Primípara. Interacionismo Simbólico.
Abstract
Resumen
Work done by descriptive qualitative approaching which had
the aim to identify the meaning attributed to breastfeeding,
according to a primipary woman perception and own
worldview. Data collected by free observation and a semistructured interview with 11 women, in the period of April
to June of 2002. The data’s interpretative analyzing was
proceeded by the symbolic interaction, followed by Hebert
Blumer’s perspective, and based on the belief that the
woman acts relying to he breast milk, are connected to
meaning of breastfeeding for her. Besides that, it was
evidenced that, for this woman, the breastfeeding is a duty
and a reciprocal affection act of love, affection and selfaccomplishment, as also, is important to the child’s
emotional development. Breastfeeding is a social
responsibility created by her and for her, based on the culture
and breast-feeding meaning. Therefore, the woman’s
function in the society and the childhood’s attributed value
are meaningful aspects in this process.
Estudio cualitativo, de carácter descriptivo. Objetivo: identificar
el significado atribuido a la lactancia, según la visión del mundo
de la mujer primípara. Los datos fueron cogidos a través de
observación libre y entrevista semiestructurada, con 11
mujeres, en el periodo de abril a junio de 2002, en la Unidad
Materno-Infantil del Hospital Universitario de la Universidad
Federal de Maranhão - Brasil. El análisis de los datos realizada
en la visión la interacción simbólica, se apoyó en la premisa de
que la mujer actua, en relación al amamantamiento materno,
según el significado del amamantamiento para Ella. Además
de eso, se evidenció que, para esa mujer, el amamantamiento
es deber y acto de afectividad recíproca del amor y de la
autorealización, así como es impor tante para el
desenvolvimiento emocional del niño. Amamantar es un papel
socialmente concebido por ella y para ella, con base en la
cultura y en el significado de la amamantación. Por tanto, el
papel de la mujer en la sociedad y atribuido a la infancia son
aspectos considerados significativos en esa construcción.
Keywords:
Breastfeeding. Primipara Woman. Symbolic Interaction.
Palabras clave:
Amamantación. Mujer Primípara. Interacción Simbólica.
Esc Anna
2005
Esc Anna Nery R Enferm
2005Nery
ago;R9Enferm
(2): 221
- 8. ago; 9 (2): 221 - 8.
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INTRODUÇÃO
A simbologia do feminino tem passado por várias
representações ao longo dos tempos. A própria
formulação do significado de ser mãe permeia sentimentos
tais como: amor, sofrimento, dor e sacrifício. Ao se tornar
mãe, a mulher normalmente incorpora o papel mítico do
amor sem medidas, abre mão da sexualidade, do corpo,
da realização profissional e pessoal; tudo isso para viver
um papel socialmente construído por ela e para ela,
baseado, ao longo da história, na abnegação e na doação.
A exemplo do que é citado na Bíblia Sagrada, destacando
Eva, a primeira mulher, enganada pela serpente ao provar
do fruto do bem e do mal, é condenada a parir com dor 1.
No século XVIII, a mulher, ao utilizar-se de conhecimentos
adquiridos de mãe para filha, aplicava-os no tratamento
de doenças do próprio corpo e de seus filhos, e passou a
ser perseguida e sacrificada em nome da ira divina. Essa
circunstância vulnerabilizou a mulher ao jugo da Igreja
Católica, rotulada de feiticeira, capaz de debelar
manifestações satânicas.
Com o evoluir dos tempos, na sociedade patriarcal, a
mulher com seu corpo feminino, estereótipo de pecadora,
passa por adequações ao adotar a postura de mulher do
lar, no que envolve o dever de ser mãe, seguindo, assim,
de alguma forma, o exemplo de Maria, a mãe amantíssima,
na representação de uma mulher sofrida, abnegada 2.
Esse novo papel lhe impõe então a amamentação,
fenômeno que, até então, não necessariamente, estava
inserido no papel de ser mãe.
Conforme relata a história do aleitamento materno, os
portugueses, ao chegarem no Brasil, admiraram-se com
o fato de as índias amamentarem os filhos, uma vez que
as mulheres nobres de sua etnia, substituídas pelas amasde-leite, já haviam abolido essa prática.
A partir da influência desses, em 1921, as indústrias
leiteiras, estabelecendo uma cruel e acirrada luta na busca
de espaço no mercado com a clara finalidade de angariar
lucros, ingressam na procura de consumidores dos seus
produtos, criando necessidades para eles3, iniciam, no
Brasil, a fabricação de leite em pó.
O resgate à prática da amamentação teve início nos
anos 80 do século XX, com a criação do Programa Nacional
de Incentivo ao Aleitamento Materno (PNIAM), o qual, ainda
em vigência, trabalha com a meta de aumentar as taxas
de prevalência e duração do aleitamento materno exclusivo
(AME), por seis meses, e do aleitamento complementar,
por dois anos4. Muitos são os reflexos deixados na mulher
pelos acontecimentos relativos à nutrição de uma criança
recém-nascida. Esses podem ser percebidos pelo
profissional quando se aproxima da mulher no ciclo
A amamentação para a primípara
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reprodutivo e na lactação, ao observar as dificuldades
dessas, que variam desde os problemas biológicos, do
tipo fissura de mamilo, abscesso, ingurgitamento mamário,
passando por empecilhos de natureza cultural, com
alegações, por parte da mulher, de que o seu “leite fraco,
não sustenta”; é “em pouca quantidade”; é “salgado”; é
“ralo”, indo até aos aspectos de insegurança, por
desconhecimento, ao afirmarem que o seu leite não é
capaz de suprir as necessidades de alimentação do bebê.
Haja em vista, por tanto, essa contextualização
histórica, na qual se confrontam os vários estereótipos
femininos frente aos aspectos modernos das questões
de concepção, parturição e amamentação - requerendo
da mulher um enfrentamento em termos da necessidade
de criar o seu concepto, o mais saudável possível centramos este estudo na vivência da mulher que
experiencia a amamentação pela primeira vez; visto ainda
que, no tocante à amamentação, muitos são os fatores
que podem interferir na decisão da mulher para
amamentar, os quais extrapolam o aspecto do instinto
maternal, envolvem a necessidade de conhecimentos
sobre tecnologia, vantagens e importância dessa
prática, desafiadora, para grande número de mães,
EM ESPECIAL AS PRIMÍPARAS.
O ato de amamentar, para a mulher, não é somente
instintivo, mas também requer, como qualquer outra
atividade humana, um aprendizado sobre suas técnicas,
o desenvolvimento do vínculo afetivo, do aconchego. Visto
que transcende questões biológicas, importante também
é o conhecimento sobre como usufruir da proteção
trabalhista e a aproximação da rede social de apoio
disponível para essa mulher. Mesmo sendo a amamentação
um ato “natural”, “instintivo”, é necessário considerar que
existe, além das mamas e do bebê, uma mulher com os
próprios anseios, sua história, suas inseguranças, medos e
frustrações, suas crenças e valores.
Assim, pois, a prática do aleitamento materno5, para
que o aprendizado da amamentação pela nutriz seja
efetivo, necessita esforço constante dos profissionais e
dos membros familiares, a fim de que a amamentação
aconteça com êxito, respeitando os sentimentos e os
significados atribuídos pela mulher que amamenta. Entre
as relações favoráveis ao ato da amamentação, destacase o papel da avó materna do recém-nascido – a mãe da
nova mãe – visto que ela exerce influência significativa quanto
à percepção e ao desempenho das funções maternas.
Uma vez que os valores são estabelecidos de acordo
com a visão de mundo de cada mulher e esse fato ocorre
na interação das experiências presentes e passadas, a
mulher indica o significado da amamentação a partir da
simbologia desse ato refletido com base no meio social
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A amamentação para a primípara
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no qual está inserida. Amamentar é um comportamento
mutável, conforme a época e os costumes6, um ato impregnado
por condicionantes sociais. O fato de não amamentar pode
ser considerado por algumas mulheres como uma situação de
dor e padecimento, por constituir, muitas vezes, um desejo
inserido, também, no papel social de “ser mãe”7.
Ao entrar em contato com uma mulher em dificuldade
com a amamentação, o profissional de saúde nem sempre
contextualiza essa dificuldade com a sua história de vida
e poderá não perceber a intercessão do significado com
a amamentação, hoje, contextualização social e
econômica, reforçada pelos valores culturais.
Entender a amamentação a partir da percepção da
mulher constitui um resgate histórico, elaborado e
simbolizado pela própria mulher como sujeito co-partícipe
do processo. As comunidades, assim como os próprios
instrumentos promotores, nem sempre conseguem estar
afinados com as particularidades que circundam todo esse
processo. A MÍDIA, por exemplo, parece apenas se
preocupar com o que está mais visível, não percebendo
determinados aspectos mais sensíveis. Observa-se isso
por meio de cartazes que apresentam chamadas durante
campanhas de amamentação, os quais destacam somente
o bebê sugando o peito da mãe, enquanto a imagem da
mulher em si é omitida da cena. O contexto aparenta
envolver apenas um bebê e um seio, equivalendo a
dizer que se separam corpo, alma e espírito do ser
mãe – a provedora – a quem, praticamente, cabe a
decisão sobre o ato de amamentar.
O aleitamento materno precisa ser analisado sob o
contexto de fatores sociais, econômicos e culturais.
Obviamente que, por si só, o leite materno não garante a
saúde das crianças, conforme pretendem apregoar certas
campanhas pró-amamentação. As vantagens como fator
de proteção à saúde e de sobrevida para a criança são,
sem dúvida, incontestáveis. A partir do momento em
que a amamentação é suspensa, contudo, torna-se
indispensável à família dispor de recur sos e
conhecimentos básicos para manter uma dieta compatível
com as necessidades nutricionais dessa criança.
Com base nessas reflexões e na dimensão do
relacionamento do ser mulher que amamenta e do ser
mãe primípara, alguns questionamentos nos vieram à
mente, tais como: qual o significado do ato de
amamentar para essa mulher; e como esse significado
direciona as motivações dessa mãe?
Considerando a complexidade do aleitamento,
buscamos analisar o significado da amamentação para
a mãe primípara, enfatizando sua maneira de agir ante
a nova condição de ser mulher.
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MÉTODO
Na perspectiva de compreender qualitativamente a
amamentação segundo a óptica das mulheres e de
descobrir o não dito em palavras, optamos pela abordagem
interacionista, visto ser esta a técnica que pode
transcender o quantificável, ampliando a compreensão do
significado do comportamento da nutriz pela primeira vez.
O foco está centrado no comportamento – no ato social,
nas dimensões observáveis e naquelas demonstradas
por gestos ou sinais referentes à experiência de
vivenciar a amamentação8.
Para Blumer8, as observações autênticas dificilmente
são conseguidas com os procedimentos da pesquisa
tradicional, seja por questionários, escalas ou variáveis.
O autor ressalta a importância de o pesquisador estar
alerta para a necessidade de testar constantemente o
próprio referencial imaginário, as crenças, valores e
concepções relacionadas à área em estudo, a fim de não
cair no erro de tomar como referência as próprias imagens,
ao invés das do outro. Efetivamos essas observações
por entendermos a mulher como atriz e autora da sua
existência e experiência.
O presente estudo foi realizado na Unidade MaternoInfantil do Hospital Universitário da Universidade Federal
do Maranhão (HUUMI). É um hospital de ensino e de
grande porte, referência naquela UF, que atende pelo
Sistema Único de Saúde (SUS).
Participaram 11 primíparas, com idade superior a 19
anos, com filhos entre zero a seis meses. Esse número
foi definido conforme o critério de saturação ou
repetição das falas das entrevistadas e das
observações necessárias ao estudo.
As primíparas foram acompanhadas por um período
de três meses, sendo quatro identificadas e acompanhadas
a partir da maternidade, e outras sete, a partir das
consultas ambulatoriais no Setor de Puericultura do
Hospital e, posteriormente, em encontros mensais
nas consultas de retorno.
A coleta de informações foi realizada durante três
meses, utilizando-se as técnicas de observação livre e de
entrevista, com a seguinte questão norteadora: o que
significa para você a amamentação?
Vale ressaltar que as informações foram coletadas de
forma descontraída, com especial atenção à mãe e ao seu
modo de agir, de forma a obter fidedignidade na gravação
em fita cassete e nos dados para as anotações no diário de
campo9. Ao mesmo tempo era reiterada a observação de
que o caso da introdução de outro alimento para o filho não
deveria constituir critério para afastar a mãe da pesquisa.
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Os resultados foram organizados de acordo com as
semelhanças e divergências das falas e agrupados
conforme o método de análise de conteúdo, priorizando
a técnica de análise temática10.
Após leituras atentas dos dados, esses foram
classificados em unidades de significados de acordo com
as experiências das mulheres. Assim, foi possível a
identificação dos significados e da compreensão de como
as mulheres agiam no seu contexto de vida diante do ato
de amamentar. A análise dos resultados foi realizada de
forma descritiva, considerando-se a seqüência de
significados com base na reflexão sobre a teoria e na
prática da relação mãe e filho.
O estudo recebeu parecer favorável da Comissão de
Ética do Hospital Universitário da Universidade Federal
do Maranhão. Foram respeitados os aspectos éticos
determinados pela Resolução nº196/96, do Conselho
Nacional de Saúde, entre os quais está o uso de
pseudônimos para garantia do anonimato das
participantes, tendo em vista a obtenção dos dados, após
o esclarecimento sobre o estudo e a assinatura do termo
de consentimento livre e esclarecido.
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Conforme indicativos da pesquisa, afetividade e dever
materno surgiram como temática básica no que se
relaciona ao significado da amamentação para a mulher,
que age, em relação ao aleitamento materno, baseada
no significado ou entendimento que tem sobre o
aleitamento, tanto para ela quanto para o bebê,
reorganizando sua própria conduta, valorizando atitudes,
e não, simplesmente, respondendo a estímulos externos.
Conceitos anteriores, valores e pormenores
relacionados à amamentação, que permeiam sua própria
história de vida, muito contribuem para o entendimento
da mulher. Esses irão determinar as tomadas de decisão
dessa mulher, ao reinterpretar as próprias experiências
quanto ao ato de amamentar, no sentido de transformar
decisões em ações significativas.
O interacionismo simbólico privilegia o comportamento
humano, suas experiências e o significado dessas
experiências para as pessoas em seu próprio ambiente
natural e a forma como a pessoa age, interpreta e
transforma esse significado8.
Em todas as falas das mulheres entrevistadas, o significado
afetivo da amamentação esteve presente, deixando
transparecer que essa conduta é a mais natural na sociedade
de hoje, e que a maternidade tem um valor inestimável.
A amamentação para a primípara
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A mulher compreende a amamentação como uma
troca, uma reciprocidade, uma vez que o ato de
amamentar e o próprio posicionamento físico da mulher e
da criança já predispõem ao abraço, ao estar junto,
aconchegados, o que chega a corresponder, praticamente,
a um ato de dar e receber amor, o que é expresso por
Lenita da seguinte forma:
Ah! Eu sou feliz. ... Às vezes, ela tá chorando, eu pego
ela, boto aqui no meu peito... Ela fica assim... Se
aconchegando mais pra mim, eu fico feliz... É um ser
humano, assim, uma coisinha tão sensível... Transmite
amor na hora que a gente vai amamentar ela.
A atitude da mulher no que concerne à amamentação
está ligada à percepção de si mesma na qualidade de
nutriz, que passa a ser atriz de sua história, podendo
visualizar-se de forma semelhante àquela que os outros
já vêem. São papéis que podem ser expressos pela linguagem
verbal e não verbal, ou seja, por palavras, gestos, olhares,
modo de falar, de tocar, de fazer carinho, pelo choro e pela
expressão corporal, ao posicionar-se de pé ou sentada11.
É sempre fácil observar a diferença entre a disposição
interior de uma pessoa tensa, apressada, e que não olha em
volta, e de outra ativa, mas tranqüila e sorridente, com gestos
agradáveis e com a atenção dividida entre os presentes.
Durante a pesquisa, principalmente por ocasião dos
encontros com a mulher, no alojamento conjunto, foram
percebidas, observadas e relatadas as seguintes
dificuldades: acreditar que seu leite é eficaz e suficiente;
dificuldade em aprender a colocar o bebê em posição
adequada para a amamentação - inclusive posicionando
a boca do bebê no peito - mamas ingurgitadas, fissuras,
entre outras, nem sempre comuns às mulheres. Só após
vencidas essas primeiras dificuldades pertinentes à
amamentação, foi possível perceber na mulher gestos
de afetividade e comunicabilidade com o bebê e com
os demais do ambiente.
Era fácil perceber, entretanto, que essas mulheres se
encontravam em condição de completo embevecimento,
em estado de graça. É bem verdade que essa
circunstância é corroborada pelo efeito da ocitocina, um
hormônio secretado em quantidades moderadas durante
a última fase da gravidez e em grande quantidade durante
o parto. Além de promover a contração do útero para a
expulsão da criança, esse promove a ejeção do leite
durante a amamentação12.
A mulher significa o vivenciar da amamentação como
uma forma de auto-doação ao filho, cujo procedimento
de nutrir deve ser gerado por ela. Essa vivência reverteEsc Anna Nery R Enferm 2005 ago; 9 (2): 221 - 8.
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lhe um estado de suprema realização, dando a esse ato
um sentido singular e de completude à própria vida.
Parece despertar na mulher sentimentos de ter o filho
ligado a si própria, o que traz a ela um prazer pueril,
desprovido de sensualidade, de felicidade plena que a
aproxima do Sagrado.
Na grande maioria dos casos, esse sentimento
acompanhará a mulher para o resto da vida, como sinal
de satisfação, conforme expressado:
Amamentar é um gesto de amor, carinho, de
compreensão. Eu já pensava em amamentar na
gravidez. (Mila).
Emoção. Da primeira vez que ela pegou o peito,
não tem nem explicação, não sei nem definir
assim, sei lá. (Luzinéa).
No século XVI, amamentar significava perder
moralmente o filho, e o prazer que a mulher sentia ao
amamentar era considerado ilícito. Em nossa constatação
atual, para a mulher, o que a amamentação reverte em
termos de afetividade representa, praticamente, um ideal
de vida, pois ela parece ver brotar de si mesma um objeto
de união dual – mãe e filho - que se transforma em um
significado para a própria vida4.
Outro ponto de relevo, vislumbrado nos depoimentos
das entrevistadas, é o fato de a mulher entender que a
amamentação não se constitui somente de uma fonte de
nutrientes, mas, também, influencia positivamente no
desenvolvimento emocional da criança. A importância
da amamentação 13 na nutrição, em particular, nos
primeiros estádios de desenvolvimento da criança,
contribui, ao mesmo tempo, para a solidificação das
relações interpessoais, facilitando a sobrevida e a
caminhada do ser em formação, bem como sua própria
maturidade física e emocional.
A mulher parece interpretar a amamentação como um
papel a ser desempenhado por ela, revestido de afetividade,
mas também de obrigação, o qual se lhe apresenta envolvido
por uma aura de emoções, prazeres e realizações.
Apesar disso, há dores no desempenho desse papel,
abraçado por ela como natural, que a levam a suportar,
conforme refere Estrela:
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de amor, envolve desvelo, renúncias e sacrifícios, tendose por exemplos a dor por ocasião do parto e a que está
ligada ao aleitamento materno.
A partir de nossa própria experiência em aleitamento
materno, sabemos que, no ato da amamentação – desde
que seja feita a devida orientação à mãe sobre a técnica
da “pega do mamilo” pelo bebê ainda durante o pré-natal
– a dor poderá ser evitada, sem ser percebida como normal
e suportável, nem tendo que ser aceita com resignação.
A mãe deve ser orientada a apoiar a boca de seu bebê
em grande parte da aréola do seu peito e não somente
no mamilo, pois, apesar do que expressa Estrela - “é assim
mesmo” - amamentar não deve causar dor.
Conforme a literatura4, 14, 3, 6, 15, o amor materno é um
sentimento condicionado a determinantes sociais,
psicológicos e culturais. O instinto materno biologicamente
inexiste no ser humano. O mito da mãe perfeita é
vivenciado quando essa, apesar de suas duplas e até triplas
jornadas de trabalho, está sempre incansável, sempre
disponível a atender às necessidades dos filhos e do
marido, sejam essas de ordem afetiva ou não, e a assumir
com a mesma disponibilidade todas as suas próprias
“obrigações” domésticas.
O fato de a grande maioria dos profissionais de saúde
ser constituída por mulheres repercute no reforço do
paradigma da disponibilidade irrestrita das mães ao
aleitamento materno. É muito comum esses se dirigirem
a uma lactante, fazendo-lhes solicitações sérias sobre o
seu próprio bebê, de tal forma que parecem esquecer,
por vezes, as múltiplas atribuições dessa mulher, e isso,
cer tamente, pelo fato de as mulheres terem um
entendimento pessoal sobre dimensão da importância
daquele compromisso para com esse pequeno cidadão.
A reação da mulher, no entanto, frente às exigências que
lhe são feitas, é significada nos termos interpretados por Nívea:
Sinto-me feliz, sinto-me mais mulher. Ficaria triste se
não pudesse amamentar.
Fabrícia, no entanto, mesmo evidenciando o sacrifício,
destaca a gratificação que sente, entendendo o significado
da amamentação como uma doação sem medidas, e
reconhece os benefícios para a criança:
Meu peito ficou ferido, dói muito amamentar, mas
tem que dar, né?
É gratificante a capacidade de alimentar uma criança com
o próprio sangue, o leite. O sacrifício de amamentar uma
criança à noite é recompensado pelas vantagens.
Conforme o paradigma social vigente, a simbologia
da maternidade materializa o amor materno que, além
De forma geral, as mães são conscientes das vantagens
e da importância do aleitamento materno, seja em relação
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à nutrição em si ou à prevenção e proteção contra doenças
diversas, tanto do aparelho digestivo ou respiratório,
alergias, entre outras. É comprovado por pesquisas o
fato de que o leite materno é considerado alimento
completo, particularmente, pela presença de células
protetoras importantíssimas nele encontradas.
Alguns grupos dessas células têm a capacidade de
fagocitar microorganismos, enquanto outro grupo produz
substâncias químicas que for talecem a resposta
imunológica da criança. Esses anticorpos são sintetizados
pela mãe, quando ingere, inala ou entra em contato com
agentes causadores de doenças. Os mais importantes,
também chamados de IgG e IgA, são imunoglobulinas
capazes de impedir que microorganismos penetrem o
intestino do bebê. Outra particularidade é que bebês
amamentados produzem maior quantidade de anticorpos
em resposta às vacinas14.
Fabrícia chega ao ponto de comparar seu leite com o
próprio sangue, ao declarar o seu sentimento de prazer
por amamentar o filho, uma vez que, para ela, as duas
substâncias são praticamente equivalentes, pois, no caso,
a própria imunização ocorre de forma passiva.
Conforme as entrevistas com as mulheres, percebemos
que essas se reconhecem guiando as próprias ações, em
relação a si mesmas e ao filho. Isso as caracteriza como
sujeito da ação, vindo cor roborar as bases do
Interacionismo Simbólico, nas quais o ser humano age e
reage de acordo com os significados, a natureza da
interação social e a interpretação de suas ações, visando
a mudanças comportamentais.
A interação social é caracterizada pelo processo de
enviar e receber mensagem codificada, sendo o
entendimento do significado a condição sine qua non para
o processo de decodificação8. A mulher pode, portanto,
reagir positiva ou negativamente à amamentação, baseada
na interação simbólica que estabelece com o meio no qual
está inserida. A interação simbólica, no caso, está
diretamente ligada à comunicação. Assim, quando as
mulheres atribuem significados à amamentação, elas estão
reagindo a estímulos sociais por meio do uso de símbolos,
os quais têm sentido, justamente, pela interação que os
membros de um grupo estabelecem entre si.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A amamentação constitui um ato, visto por nós como
aparentemente simples para qualquer mamífero. Para a
mulher, todavia, se torna um processo que pode afetar
sua totalidade, isso porque envolve o físico, o espírito e o
emocional, extrapolando o biológico, atingindo diversos
A amamentação para a primípara
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fatores de natureza sentimental e perceptiva, envolvendo
ansiedade, angústias e desejos.
Amamentar é, então, procedimento interativo no qual
a mulher, mediante percepções e significados, acumulados
ao longo da vida - tenha sido como lactente, como filha,
irmã, vizinha ou como usuária dos serviços de saúde interpreta e orienta sua conduta e elabora, também, um
significado para a vida de seu(ua) filho(a). Para essa
direção, apresentam-se como fundamentais os significados
que têm para ela o ser mãe/mulher/trabalhadora/nutriz,
assim como o significado atribuído à criança.
O Interacionismo Simbólico aparece como uma teoria
de primeira escolha ao se lidar com a formulação de
significados. Ficaram bastante claras, nos discursos das
mulheres, a relação interação/significados e a correlação entre
ações praticadas e mudanças de comportamento, haja vista
as perspectivas de vida nos aspectos socioculturais.
Na medida em que avançávamos na leitura dos
discursos das mulheres, os significados iam se revelando
à luz do Interacionismo Simbólico, assim como a importância
das relações sociais na vida de cada uma, demonstrando
que a mudança de comportamentos está diretamente
relacionada à intencionalidade das ações humanas.
Dessa forma, fica evidenciado que a mulher age, no
que concerne à amamentação, baseada no significado
que essa tem para ela. Embutido nesse significado, está
inserida sua percepção de que afetividade e dever maternos
são esperados de toda aquela que se torna mãe.
Estigmas do tipo: “criança saudável é aquela que mama
no peito”, “mãe que não amamenta é negligente”, “toda
boa mãe tem o dever e obrigação de amamentar”, entre
outros, são freqüentemente observados na sociedade.
Destacamos o fato de que as mães, ao vencerem as
dificuldades de medo ou insegurança, passam a se sentir
felizes e a considerar a experiência agradável.
As ações de incentivo ao aleitamento materno devem,
invariavelmente, abranger o enfoque da integralidade, com
ênfase especial na afetividade - o que muito poderá
contribuir para reduzir conflitos e promover o bem-estar
mãe-filho. Essas ações devem incluir orientações e
esclarecimentos sobre a importância do leite materno para
o bebê, sobre a garantia desse nutrimento como suprimento
alimentar do bebê e sobre a promoção de cuidados, visando
a reduzir dores ou desconfortos outros na mãe ou nutriz.
Daí ser de fundamental importância o papel dos
profissionais de saúde como conscientizadores das mães
sobre a importância da amamentação, quer seja mediante
campanhas de aleitamento materno ou orientação
individual no cotidiano da prática, seja em maternidades
ou no domicílio, quer seja, ainda, por ocasião de
intervenções direcionadas à mãe ou à criança. Devem
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A amamentação para a primípara
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eles estar embasados em pesquisas, experiências e
tecnologias, no estabelecimento de planos e métodos, de
forma a oferecer às mães orientações e técnicas
competentes e consistentes, seja na dimensão físicabiológica, social e subjetiva, sendo a última envolvendo o cuidado
da emoção, que valoriza a humanidade do corpo/sujeito16.
Vale destacar, por oportuno, que a tecnologia é
considerada instrumento de importância social no cuidado
de enfermagem, e suas conseqüências dependem da
forma e da pessoa que a utiliza no cuidado 17 ,
especificamente, com a mulher na vivência da primeira
experiência de amamentação.
É fundamental que os profissionais trabalhem visando
o incentivo aos órgãos públicos para o estabelecimento
de políticas. Particularizando o aspecto de as mães
poderem dispor de um sistema de acompanhamento no
cuidado domiciliar, após a alta hospitalar mãe-bebê, para
que a amamentação não seja restringida em tempo e
conteúdo, ou seja, interrompida antes dos seis meses
exclusivos e com o complemento até os dois anos. Para
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assegurar a prática da amamentação, é necessário que o
significado elaborado pela mulher esteja associado ao
conhecimento da importância sobre as propriedades do
leite materno e sua influência no crescimento e
desenvolvimento da criança18.
A formação do vínculo afetivo 19 é ensejada pelo contato
pele a pele entre mãe e filho durante a prática do
aleitamento materno, favorecendo a resistência fisiológica
a infecções e o desenvolvimento cognitivo e psicomotor.
É necessário reforçar o fortalecimento do vínculo afetivo
mãe-filho, procurando fazer com que a mãe eleve sua
percepção quanto à própria importância na manutenção
da saúde do bebê, bem como zele pelo provimento de
condições reais de humanização, conforme o padrão
cultural de cada mãe durante a hospitalização; e levar a
mãe a entender as limitações do atendimento, quando for
o caso, visto que nem sempre é possível coadunar normas
com determinadas solicitações da clientela. Os
prestadores de serviços de saúde devem associar, sempre,
conhecimento, sentimentos e emoção.
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A amamentação para a primípara
Rafael EV et al
Sobre as Autoras
Eremita Val Rafael
Enfermeira, Mestra pela UFC. Docente do Centro Universitário do
Maranhão. Enfermeira assistencial do Hospital Universitário da
Universidade Federal do Maranhão. e-mail: [email protected]
Raimunda Magalhães da Silva
Enfermeira, Doutora, Pesquisadora do CNPq. Coordenadora
do Mestrado em Educação em Saúde da Universidade de
For taleza (UNIFOR).
Maria Socorro Pereira Rodrigues
Enfermeira. Doutora. Programa de Pós-Graduação. Universidade
Federal do Ceará.
Recebido em 12/04/2004
Reapresentado em 29/07/2005
Aprovado em 03/08/2005
Esc Anna Nery R Enferm 2005 ago; 9 (2): 221 - 8.