a revolução cubana e a busca pela democracia em cuba
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a revolução cubana e a busca pela democracia em cuba
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC Centro Sócio Econômico – CSE Departamento de Ciências Econômicas e Relações Internacionais A REVOLUÇÃO CUBANA E A BUSCA PELA DEMOCRACIA EM CUBA FERNANDA DA ROSA DUARTE FLORIANÓPOLIS, 2013 2 FERNANDA DA ROSA DUARTE A REVOLUÇÃO CUBANA E A BUSCA PELA DEMOCRACIA EM CUBA Monografia submetida ao Departamento de Ciências Econômicas para obtenção da carga horária na disciplina CNM 5420 – Monografia, como requisito obrigatório para a aquisição do grau de Bacharelado. Orientador: Professor Nildo Domingos Ouriques FLORIANÓPOLIS, 2013 3 FERNANDA DA ROSA DUARTE A REVOLUÇÃO CUBANA E A BUSCA PELA DEMOCRACIA EM CUBA Monografia apresentada como requisito obrigatório para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Área de concentração: Economia. Data da aprovação: A Banca Examinadora resolveu atribuir nota 9,0 à aluna Fernanda da Rosa Duarte na disciplina CNM 5420 – Monografia, pela apresentação deste trabalho. Banca Examinadora: ------------------------------------------------Prof. Dr. Nildo Domingos Ouriques Universidade Federal de Santa Catarina -------------------------------------------------Prof. Dr. Waldir José Rampinelli Universidade Federal de Santa Catarina ------------------------------------------------Prof. Daniel Corrêa da Silva Universidade Federal de Santa Catarina 4 RESUMO A Revolução Cubana e o sistema político adotado em Cuba a partir de 1959 é motivo de muita polêmica acerca da questão de se tratar ou não de uma democracia. Para compreender o que aconteceu na ilha, vamos conceituar brevemente o que é dependência e como ela é construída a partir do colonialismo e do neocolonialismo. Em seguida será feita uma análise do período pré-revolucionário e de como foram criadas as condições para uma revolução social. Estabelecido o governo revolucionário, verificamos as mudanças sofridas na economia e na política do país. Trataremos dos conceitos de democracia liberal e socialista para que a partir deles possamos caracterizar o sistema político cubano. Palavras-chave: Revolução Cubana; Democracia. 5 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 6 1.1. Tema e problema ..................................................................................................... 6 1.2. Objetivos ................................................................................................................... 7 1.2.1. Objetivo Geral ...................................................................................................... 7 1.2.2. Objetivos Específicos ............................................................................................ 7 1.3. Justificativa .............................................................................................................. 7 1.4. Metodologia .............................................................................................................. 8 2. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO ................................................. 9 3. A REVOLUÇÃO CUBANA .................................................................................... 15 3.1. Cuba Pré-Revolucionária ..................................................................................... 15 3.1.1 Período Colonial .................................................................................................. 15 3.1.2 Período pós-independência - Neocolonial .......................................................... 19 3.2 A tradição de luta do povo cubano ....................................................................... 25 3.3 Greve Geral ............................................................................................................. 30 3.4 Cuba Revolucionária .............................................................................................. 32 3.4.1 Transição para a etapa socialista ....................................................................... 35 3.4.2 A política estadunidense de hostilidade a Cuba................................................ 38 3.4.3 O governo revolucionário ................................................................................... 40 4. DEMOCRACIA ........................................................................................................ 47 4.1 Democracia Liberal ................................................................................................ 47 4.2. Democracia Socialista............................................................................................ 54 5. CARACTERIZAÇÃO DO SISTEMA POLÍTICO CUBANO ............................ 57 6. CONCLUSÕES......................................................................................................... 62 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 64 ANEXO .......................................................................................................................... 66 6 1. INTRODUÇÃO 1.1. Tema e problema A democracia é uma questão bastante polêmica e controversa, especialmente quando debatida com profundidade e atenção. O que é democracia? Quais regimes políticos podem ser considerados democráticos? Não pretendo aqui esgotar o assunto, mas abordar como uma revolução social pôde promover mudanças políticas e econômicas tão radicais em um país. Para fazer compreender o que significa a Revolução Cubana, em primeiro lugar foi necessário entender Cuba desde sua colonização, quando o país serviu à Espanha e depois, já independente, como os Estados Unidos conseguiram manter a ilha em uma relação neocolonial que servia apenas ao seu interesse, e aos interesses de uma burguesia cubana que, por sua vez era fraca - como toda burguesia nascida em países dependentes -, incapaz de tomar as rédeas de sua própria economia frente a uma exploração estrangeira. Cuba se transformou em uma grande feitoria de açúcar à disposição dos Estados Unidos; não tinha nem mesmo uma razoável diversificação na produção, tendo, portanto, que importar não apenas bens de consumo, mas até mesmo alimentos. Os Estados Unidos impunham a Cuba uma política oposta a praticada em seu território, onde a diversificação sempre foi uma preocupação, afinal afeta diretamente a liberdade do país: quanto maior a autossuficiência em manter as necessidades básicas da população, menos vulnerável ele se torna. A situação em Cuba era muito crítica para a maioria da população, o que motivou os movimentos populares, que ganharam o respaldo dos cubanos em geral, de tal forma – me arrisco a dizer – poucas vezes vista na periferia. Quando, através da guerrilha o movimento revolucionário chega ao poder, derrubando o exercito e a ditadura de Fulgêncio Batista, se iniciam as mudanças estruturais no país. A revolução foi feita pelo povo, portanto deveria servir fundamentalmente ao interesse do povo. As relações comerciais que Cuba mantinha com os Estados Unidos eram incompatíveis com os interesses da nação, sofrendo, portanto, alterações. Entretanto, os Estados Unidos não costumam tolerar a soberania alheia e, em função disso, romperam relações diplomáticas com Cuba e implementaram um bloqueio econômico que perdura até os dias atuais trazendo enormes prejuízos econômicos, 7 políticos e culturais para o povo cubano. O caráter socialista da revolução é assumido quando o governo revolucionário percebe que dentro do capitalismo não é possível atender às demandas da população. A democracia liberal não seria capaz de garantir as reformas necessárias no país e muitos menos assegurar as conquistas sociais criadas pelo movimento revolucionário. Vamos conceituar brevemente as duas formas de democracia conhecidas na contemporaneidade, a liberal e a socialista. E, finalmente, caracterizar o sistema político cubano, sempre com a intenção de responder à pergunta: trata-se de uma democracia? 1.2. Objetivos 1.2.1. Objetivo Geral Analisar a Revolução Cubana e o direcionamento político e econômico tomado ao substituir o capitalismo pelo socialismo. 1.2.2. Objetivos Específicos Identificar o processo de evolução do colonialismo ao neocolonialismo, que leva posteriormente ao estabelecimento da situação de dependência do país. Analisar as motivações da Revolução Cubana e descrever como ocorreu o processo revolucionário em Cuba. Caracterizar o sistema político cubano a partir dos conceitos de democracia liberal e socialista. 1.3. Justificativa A Revolução Cubana não tem o espaço merecido nas pesquisas acadêmicas, sendo absolutamente intrigante a análise dos fatores que possibilitaram, e ainda possibilitam, a despeito de toda hostilidade, a sustentação de uma revolução de cunho socialista em um mundo capitalista. Existe muita especulação a respeito do sistema econômico cubano e de como vive, desde 1959 até os dias de hoje, a população em Cuba. As informações que 8 recebemos da grande mídia - que, por sua vez, alimenta o senso comum - não correspondem aos índices de qualidade de vida dos cubanos, nem mesmo aos relatos de quem conhece o país, fato que terminou por motivar minha pesquisa. 1.4. Metodologia O presente trabalho de pesquisa constitui-se em uma revisão bibliográfica sobre a Revolução Cubana, a partir de autores marxistas, bem como a análise dos conceitos de colonialismo, neocolonialismo e dependência. É feita a caracterização do sistema político cubano conquistado através da revolução e sua comparação com os conceitos de democracia liberal e socialista. 9 2. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO Nas fases iniciais do desenvolvimento colonial, onde não havia mão de obra suficiente para dar conta da produção de cana-de-açúcar, algodão e tabaco, a escravidão foi a única forma possível de o grande capitalista praticar a monocultura extensiva em grande escala, através do estabelecimento de uma organização social e econômica composta por exploradores e explorados. Portanto, a escravidão não aconteceu em condições normais, mas sim por motivos econômicos, de forma que possibilitasse esse sistema exploratório. “A escravidão não nasceu do racismo: pelo contrário, o racismo foi consequência da escravidão. O trabalho forçado no novo mundo foi vermelho, branco, preto e amarelo; católico, protestante e pagão.” 1. No Novo Mundo, o indígena foi o primeiro escravo, em seguida substituído pelo escravo branco e pobre, que trabalhavam em troca do próprio sustento. O negro substituiu os escravos brancos e indígenas por ter maior capacidade de trabalho e resistência, sendo assim considerado muito superior em capacidade produtiva. (...) a escravidão negra foi apenas uma solução, em certas circunstâncias históricas, para o problema de mão de obra no Caribe. Açúcar significava mão de obra – às vezes essa mão de obra foi escrava, outras vezes foi nominalmente livre; às vezes negra, outras vezes branca, indígena ou amarela. A escravidão não implicava de maneira nenhuma e em nenhuma acepção científica a inferioridade do negro. Sem ela, o grande desenvolvimento das fazendas canavieiras do Caribe, entre 1650 e 1850, teria sido impossível. 2 Através da escravidão e do monopólio, o capitalismo mercantil desenvolveu a riqueza da Europa no século XVIII, colaborando com a criação do capitalismo industrial do século XIX, que em momento oportuno, acabou com a escravidão e com todo o sistema mercantil. A ascensão e queda do mercantilismo significaram também ascensão e queda da escravidão. E a crise do sistema escravista inicia a partir do momento em que a produção escravista se tornou mais cara que o produto do trabalho livre. Observou-se que, além da mão de obra escrava não ser qualificada, trabalhava com relutância e sem motivação -, por não consumir e ser resumida a uma propriedade. “O 1 2 WILLIAMS, 2012, p. 34. WILLIAMS, 2012, p. 62. 10 trabalho escravo é mais caro do que o livre sempre que exista uma abundância de trabalho livre.” 3 O levantamento da questão da falta de consumo do escravo provocou um conflito estrutural entre os interesses da sociedade industrial nascente e a manutenção de um sistema escravista, onde o número de consumidores é reduzido, já que escravos não recebiam salário. Esse processo histórico cria condições para o surgimento do trabalho assalariado e é fundamental para o desenvolvimento do capitalismo. O trabalhador livre, já separado dos meios de produção, não tem outra forma de manter seu sustento senão vendendo sua mão de obra ao capitalista. Com o salário, gera consumo para a indústria nascente, e o capitalista ainda se apropria da mais-valia de seu trabalho. O único insumo que produz valor é o trabalho. Portanto, o trabalho livre é um grande negócio em pelo menos três sentidos: (i) a qualidade do trabalhador livre; mais preocupado com sua própria qualificação, se torna superior a do trabalho escravo, (ii) não é mais preciso comprá-lo; o trabalhador livre está disponível no mercado gratuitamente, e libera o contratante de arcar com o seu sustento, transferindo para si o que antes era preocupação de quem tinha sua posse. E, finalmente, (iii) amplia o consumo, tendo nos antigos escravos um novo mercado consumidor. Como o trabalhador está separado dos meios de produção, tem que se sujeitar ao salário pago pelo capitalista se quiser sobreviver, se alimentar, subsistir. O Neocolonialismo é o conceito que define a situação do continente africano, quando foi literalmente repartido entre países centrais, e que também utilizado para explicar a condição de colônia que se perpetua nos países latino-americanos, mesmo após suas respectivas declarações formais de independência. O país é classificado como dependente quando perde a soberania e tem sua política e sua economia regidas de fora para dentro, em função de interesses externos. Constitui-se, portanto, uma relação imperialista, onde o país dependente é utilizado em benefício dos países centrais. No caso de Cuba, o neocolonialismo aconteceu na mudança de status de colônia espanhola para país declarado independente, mas que na verdade estava se tornando dependente dos Estados Unidos. Produzindo - de acordo com as determinações dos Estados Unidos, conforme os interesses da nova metrópole - bens de baixo valor agregado e comprando dos Estados Unidos - bens de maior valor agregado, como manufaturas. 3 WILLIAMS, 2012, p. 33 apud H. Merivale, Lectures on Colonization and Colonies, 1928, p. 303. 11 Um fator decisivo para a manutenção da dependência é a questão da acumulação de capital da periferia sempre permanecer alguns estágios atrás, em nível de industrialização e tecnologia, em relação aos países centrais. Isso acontece devido a três grandes fatores – mercado interno reduzido, exército de reserva imenso e maquinaria obsoleta. O mercado interno nos países dependentes tem um tamanho bastante reduzido. A população não tem poder de compra relevante, então a produção tem que se voltar ao mercado externo, tornando-se mais vulnerável a problemas internacionais. Contudo, o problema mais grave é que se organiza uma economia que não se apoia desenvolvendo o mercado interno de massas, tornando-se incapaz de suprir às próprias demandas básicas. O grande exército de reserva que faz com que os salários sejam baixos. Como há um grande número de desempregados e também um enorme mercado de trabalho informal com elevado grau de exploração da força de trabalho, os salários tornam-se mais baixos nos países dependentes, afinal o “preço” do trabalhador, ou seu salário, segue às regras de oferta e demanda: quanto mais trabalhadores disponíveis, mais baixa será a remuneração oferecida; esta situação coloca o trabalhador da periferia em desvantagem, com um salário abaixo do que é pago nos países centrais. Ademais, a tendência à industrialização com tecnologia ultrapassada impossibilita os países periféricos de competir em caráter de igualdade com países centrais. Além disso, em função desse atraso tecnológico, a periferia acumula dívidas ao adquirir máquinas dos países imperialistas, na tentativa de se desenvolver economicamente. Existe, portanto, transferência de valor – da periferia para o centro também através do pagamento dos juros gerados nessas dívidas. Outro problema ligado à situação de dependência é a ausência de uma produção diversificada, que prejudicou o abastecimento de alimentos nos países periféricos. Seu papel na economia internacional foi a prática do monocultivo, conforme os interesses imperialistas: Uma extensão de terra cada vez maior é utilizada para o cultivo de produtos agrícolas destinados à exportação, para satisfazer as necessidades das metrópoles e não das populações locais; só na África a produção de café aumentou em 300% entre 1959 e 1967. A crescente proletarização do campo e o subemprego e desemprego cada vez maiores criam um hiato crescente entre a produtividade potencial e a produtividade média do trabalho na terra. 4 4 MANDEL, 1985, p. 264. 12 A maior parte do sobreproduto social nos países coloniais e semicoloniais não foi utilizada para fins produtivos. A acumulação nesses países consistia em capital estrangeiro e capital monetário investido, em geral, improdutivamente, no lugar de capital industrial. A situação neocolonial dos países periféricos pode ser resumida pela falta de direcionamento da produção ao mercado interno e pela estagnação tecnológica. E caracterizado por uma troca desigual, de quantidades desiguais de trabalho. No mercado mundial a hora de trabalho do país central é considerada mais produtiva e intensiva que a da nação dependente, ocasionando uma “(...) transferência de valor resultante da troca de quantidades desiguais de trabalho no mercado mundial.” 5. Colônia produtora de metais preciosos e gêneros exóticos, a América Latina contribuiu em um primeiro momento com o aumento do fluxo de mercadorias e a expansão dos meios de pagamento, que, ao mesmo tempo em que permitiam o desenvolvimento do capital comercial e bancário na Europa, sustentaram o sistema manufatureiro europeu e propiciaram o caminho para a criação da grande indústria. 6 A América Latina involuntariamente ajudou a financiar o desenvolvimento industrial europeu com metais preciosos extraídos de suas terras e levados à Europa, e em seguida auxiliou na manutenção dessa estrutura, exportando bens primários em troca de manufaturas de consumo e contraindo dívidas com a metrópole para financiar a diferença gerada na balança comercial, causada por esse tipo de troca. A compensação da perda de renda gerada pela troca desigual entre nações no comércio internacional (especialmente quando se trocam bens primários por manufatura, mas também quando a troca ocorre entre produtos industriais) é feita através de uma maior exploração do trabalhador. Ao mesmo tempo, esse mecanismo faz com que aumente a mais-valia relativa 7 nos países industriais, pois com o preço do alimento reduzido, diminui o valor dos “bens-salário”, ou seja, o tanto necessário à reprodução do trabalhador, aumentando, portanto o excedente produzido. 8 Na periferia a produção de alimentos precisa ser ampliada para que se consiga produzir valor o suficiente para pagar pelas manufaturas importadas. Esse excesso de produção de alimentos reduz seu preço, possibilitando esse aumento da mais-valia relativa nos países centrais. Ao mesmo tempo, o trabalhador da periferia sofre uma 5 MANDEL, 1985, p. 255. MARINI, 2005, p. 140. 7 Desvalorização dos bens-salário. Barateamento das mercadorias que entram na composição do consumo individual do trabalhador. 8 Dados: MARINI, 2005. 6 13 maior exploração de sua força de trabalho pela impossibilidade se compensar a troca desigual de outra forma, senão através desse aumento de produção. Não havendo condições de aumentar a produção através do incremento de sua capacidade produtiva, a saída encontrada é o aumento da intensidade do trabalho. Essa acumulação é baseada na superexploração do trabalhador. A industrialização latino-americana, quando ocorre, não é para atender à demanda interna, afinal a população não tem renda para isso. Ao mesmo tempo em que nos países centrais a produção abastecia o comércio interno com bens de consumo, a periferia seguiu produzindo alimentos e bens primários, mesmo após atingir certo nível de industrialização. A industrialização latino-americana não cria, portanto, como nas economias clássicas, sua própria demanda, mas nasce para atender a uma demanda préexistente, e se estruturará em função das exigências de mercado procedentes dos países avançados. 9 O aumento do lucro não é buscado através da demanda interna, e sim no “aumento da massa de lucro em função do preço unitário do produto.” 10 E a forma encontrada para efetivar esse aumento no lucro é reduzindo os salários. (...) dado que o baixo nível tecnológico faz com que o preço de produção seja determinado fundamentalmente pelos salários, o capitalista industrial valerse-á do excedente de mão de obra criado pela própria economia exportadora e agravado pela crise que esta atravessa (crise que obriga o setor exportador a liberar mão de obra), para pressionar os salários no sentido descendente. Isso lhe permitirá absorver grandes massas de trabalho, o que, acentuado pela intensificação do trabalho e pela prolongação da jornada de trabalho, acelerará a concentração de capital no setor industrial. 11 Não sendo capaz de criar uma demanda interna por bens supérfluos, que na periferia esse consumo se restringe às camadas altas e aos capitalistas, a América Latina se tornou dependente de expandir seu mercado para o exterior, centrando mais uma vez sua produção a partir do mercado mundial, e não em função do mercado interno. A exportação de manufaturas, tanto de bens essenciais quanto de produtos supérfluos, converte-se então na tábua de salvação de uma economia incapaz de superar os fatores desarticuladores que a afligem. Desde os projetos de integração econômica regional e sub-regional até o desenho de políticas agressivas de competição internacional, assiste-se em toda a América Latina à ressurreição do modelo da velha economia exportadora. 12 9 MARINI, 2005, p. 170. MARINI, 2005, p. 171. 11 MARINI, 2005, p. 171. 12 MARINI, 2005, p. 179. 10 14 A herança deixada pelo colonialismo e neocolonialismo é uma economia dependente e subordinada à dinâmica de acumulação dos países industriais. Nas economias dependentes, foi criado um abismo entre produção e circulação a partir da existência de um mercado interno que não consome. E estabelecida a superexploração que é o próprio fundamento da dependência - da classe operária, uma categoria social formada por trabalhadores cuja remuneração é sempre inferior ao valor do produto de seu trabalho. Neste contexto, a referência mais importante para a elaboração deste trabalho final foi a teoria marxista da dependência, desafio lançado originalmente por Ruy Mauro Marini e que conta também com autores marxistas importantes, como Ernest Mandel quem, em sua vasta obra, também tratou temas como a dependência, o neocolonialismo e o imperialismo. 15 3. A REVOLUÇÃO CUBANA 3.1. Cuba Pré-Revolucionária 3.1.1 Período Colonial Invadida pela Espanha em 1492, onde viviam os índios Siboneys 13 , Cuba se tornou uma colônia espanhola, mas não muito importante. Após a extração do pouco ouro e madeiras preciosas que existiam na ilha, o interesse básico girou em torno de sua posição geográfica estratégica, localizada entre outras colônias espanholas, e perto do México e das Américas Central e do Sul. Dessa forma auxiliava na logística da Espanha, especialmente para o transporte de armamento utilizado para auxiliar na manutenção da dominação das colônias. Os principais bens produzidos na ilha no período colonial eram o café, o tabaco e o açúcar. O café, introduzido em Cuba em 1768, rendeu investimentos em mão de obra escrava, uma necessidade do produto, que exigia maior quantidade de pessoas envolvidas em seu cultivo. Mas o produto que obteve destaque foi o açúcar, que logo consumiu a maior parte dos investimentos, das terras e dos escravos. Os colonizadores criaram uma organização tecnológica e de infraestrutura para a realização do cultivo mercantil do açúcar. Florestan cita algumas mudanças: (...) introdução da maquinaria a vapor nos trapiches cubanos, em 1820; aprofunda-se com a construção de estradas de ferro, (...) invenção dos trilhos de aço e o consequente barateamento dos custos: as vias férreas ligam entre si as várias partes do engenho ou as zonas de açúcar com os portos de armazenagem e de embarque (...). 14 Essa tecnologia entrou em choque com o sistema colonial direto. Contrastava com a quantidade de escravos, cada vez maior. (...) el numero de esclavos llegados a la isla cresce em forma extraordinaria: pasó de unos 3271 anuales en el período 1796 – 1800, a el promedio de 17000 anuales, o sea, alredor de médio millón de esclavos em la primera mitad del siglo XIX. 15 13 HARNECKER, 2000. FERNANDES, 2007, p. 56. 15 PIERRE-CHARLES, 1985, p. 19 - 20. 14 16 A época em que chegam escravos em grande quantidade em Cuba é a mesma em que acontece a revolução do Haiti (1789 – 1804), até então maior produtor mundial de açúcar. A revolução haitiana retirou o país desse mercado quando rompeu com a monocultura em sua busca por uma mudança estrutural, de diversificação de produção. Então um amplo capital estrangeiro se instalou em Cuba, e a ilha passou a substituir o Haiti como o principal abastecedor de açúcar mundial. O clima quente e úmido de Cuba favorecia a plantação de cana, que acabou devastando fauna e flora e prejudicando a fertilidade da terra, por se tratar de uma monocultura. O monocultivo empobrece o solo e expõe o país à cotação mundial; quando o produto tem o preço em queda muitas vezes cria uma grave crise financeira no país, por ser sua principal e praticamente única fonte de renda. Quando o preço sobe muito, os produtores enriquecem e prejudica parte da população, que chega a passar fome por não poder pagar pelo aumento de preço gerado no produto e em seus derivados. E ainda impossibilita uma produção diversificada, mantendo o país dependente até mesmo para obter a alimentação básica. Os Estados Unidos se interessaram pelo açúcar cubano e passaram a comercializar com o país. Em 1818 a Espanha autorizou formalmente o comércio livre entre sua colônia e os Estados Unidos, que em meados do século XIX já tinham investimentos na ilha em créditos de açúcar. Com esse dinheiro Cuba investia em maquinaria e na compra de escravos. A produção de açúcar demandava tecnologia e ao mesmo tempo mão de obra escrava. A convivência entre introdução tecnológica e a manutenção do trabalho escravo vai colaborar mais adiante com o despertar crítico e revolucionário dos trabalhadores. Nessa época existiam duas correntes contrárias ao império espanhol: a reformista, composta por parte da oligarquia mais poderosa, unida através do Partido Liberal (depois chamado de Partido Liberal Reformista) e o independentismo, que era composto por um grupo revolucionário, entre eles estavam Antonio Maceo y Grajales, Máximo Gómez, Juan Gualberto Gómez, Calixto García e José Martí, posteriormente membros do Partido Revolucionário Cubano. A primeira luta independentista contra a invasão espanhola, em Cuba, foi a Guerra dos Dez Anos, ente 1868 a 1878, quase 400 anos após o continente ser “descoberto”. Foi iniciada por Carlos Manuel de Céspedes, um latifundiário cubano que tentou provocar a independência de Cuba dando liberdade a seus escravos, na fazenda 17 La Demajagua, localizada na província de Oriente. Em seguida, o mesmo foi feito por Francisco Vicente Aguilera, Maceo Osório, entre outros, em descontentamento com o regime colonial espanhol. Entretanto, essa guerra foi repudiada pela maior parte dos latifundiários, que temiam o fim da escravidão e que o controle político do país ficasse nas mãos de grupos de orientação democrática. Devido o teor radical assumido pelo movimento, que buscava uma emancipação nacional, provavelmente seriam alteradas as posições sociais, econômicas e políticas privilegiadas. E o desejo desses latifundiários em se manter nos altos estamentos da sociedade era maior que o de ter uma nação independente. Dessa forma, a guerra foi encerrada com o Pacto de Zanjón, em 1878, um acordo firmado entre a burguesia cubana e o império. Os Estados Unidos auxiliaram a Espanha nesse acordo, para evitar uma emancipação nacional – o que quase nunca interessa aos estadunidenses, quando não se trata deles mesmos - que prejudicaria seus interesses na ilha. A localização e a situação fragilizada despertou a possibilidade de transformar Cuba em uma feitoria agroindustrial moderna. E para isso era conveniente que houvesse a permanência da colônia, a mantendo distante de qualquer independência nacional. Esse interesse era justificado em função do açúcar ter sido um dos produtos mais importantes para o comércio da Europa, na América colonial. Assim como o ouro e a prata, também ajudou a impulsionar o desenvolvimento industrial de países como a Holanda, França, Inglaterra, e depois, Estados Unidos. 16 Em 1880 os Estados Unidos passaram a investir diretamente na colônia espanhola através da indústria refinadora e em minério. Estimasse um investimento estadunidense em Cuba, em 1895, em torno de 50 milhões de dólares 17 . A relação de dependência estava sendo fortemente construída. De 1880 a 1886, 62% das exportações cubanas foram para os Estados Unidos. 18 Houve um aumento expressivo na produção de açúcar e ao mesmo tempo uma redução dos engenhos, demonstrando uma significativa concentração produtiva: em 1877, a safra de açúcar foi de 520 mil toneladas, com 1.119 engenhos. A safra de 1894 16 Dados: GALEANO, 2010. Dados: FERNANDES, 2007, p. 64. 18 Dados: PIERRE-CHARLES, 1985, p. 22 apud Julio Le Riverend, Historia económica de Cuba, 1967, p.186. 17 18 foi de mais de 1 milhão de toneladas, com 450 engenhos. Essa produção correspondia a 85% das exportações cubanas. 19 No fim do século XVIII as plantações de fumo foram reduzidas, produtos como café e charque, antes exportados pela ilha, tiveram suas produções suspensas em função do açúcar, e passaram a ser importados. O país se tornou o principal comprador de madeira dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que florestas eram queimadas para dar lugar à cana. Milhares de riachos secaram por causa do desmatamento. 20 O movimento popular, contrário a essa política da monocultura se firmou nas massas construindo a própria estratégia e organização, centralizando as forças no Partido Revolucionário Cubano, fundando por José Martí em abril de 1892. Tratava-se de um projeto de caráter anti-imperialista, que defendia não apenas a independência de Cuba, mas a libertação de toda a América Latina. Em fevereiro de 1895 iniciou a Guerra da Independência, assim como a Guerra dos Dez Anos também de caráter independentista. Durante um combate, em 19 de maio de 1985, morre José Martí, herói e inspiração da Revolução Cubana. De abril a agosto de 1898 aconteceu a Guerra Hispânico-Americana, quando os Estados Unidos decidem intervir nas relações entre Cuba e Espanha sob o pretexto de garantir a independência de Cuba. Diferentemente da Guerra dos Dez Anos, onde a Espanha teve apoio estadunidense para evitar uma emancipação nacional de Cuba, que naquele momento não convinha a eles. Contudo, durante a Guerra da Independência Cuba já estava sob o domínio indireto dos Estados Unidos em função de sua penetração econômica na ilha, estabelecida através dos negócios que envolviam a produção de açúcar. O poder militar, político e econômico possibilitava aos Estados Unidos manter Cuba sob seu comando de forma indireta - vantajosa por evitar uma simples ocupação e formalizar diplomática e legalmente a dominação, que de fato já acontecia. Essa dominação bastava para impedir qualquer soberania nacional e poupava os Estados Unidos dos custos e das responsabilidades quem envolvem uma dominação direta. Em outras palavras, Cuba independente satisfazia seus interesses de maneira mais prática, não sendo necessário evitar sua independência formal. 19 Dados: PIERRE-CHARLES, p. 24 apud Oscar Pino Santos, História de Cuba, aspectos fundamentales, La Habana, Editora nacional de Cuba, 1964, p. 208. 20 Dados: GALEANO, 2010. 19 Os Estados Unidos receberam o apoio de políticos cubanos e da maior parte da burguesia local, a quem também não interessava um efetivo projeto nacional, afinal, pela maneira como as relações foram estabelecidas, dependia dos Estados Unidos na mediação dos negócios para obter sua parcela da riqueza. Assim, a revolução dentro da ordem colonial não se extingue pela negação em seu contrário, a revolução nacional. Ela se redefine e se reconfigura graças ao aparecimento de um poder externo, bastante forte para absorver aquela revolução dentro da ordem colonial em uma inexorável “expansão de fronteiras” e para impor a dominação indireta na forma de uma tutela institucional, aceita e legitimada constitucionalmente pelos cubanos 21. Cuba e Porto Rico foram suas últimas colônias da Espanha que, já decadente, resistiu sem êxito. Em 1898 Cuba torna-se independente da Espanha e passa a ser uma (neo) colônia estadunidense. “El poderio imperialista se asienta sobre la isla que ingresa así a una nueva forma de coloniaje.” 22 3.1.2 Período pós-independência - Neocolonial Em primeiro de janeiro de 1899 um governo militar estadunidense foi instalado no país, apoiado pelos setores estrategistas da burguesia, aqueles vinculados ao açúcar, iniciando o período neocolonial de Cuba. Os Estados Unidos criaram instrumentos jurídicos para que a dependência cubana fosse oficializada através de acordos, como a Emenda Platt e Tratado de Reciprocidade Comercial. A Emenda Platt 23 foi um adendo à constituição cubana, aprovada em dois de março de 1901, que permitia aos Estados Unidos intervir nos assuntos internos do país e fixar bases militares em território cubano. O Tratado de Reciprocidade Comercial, de 1902, continha um regime tarifário a ser praticado entre eles e também permitia a participação de capital estadunidense na indústria açucareira cubana, o que possibilitou aos Estados Unidos a obtenção do controle dos setores mais importantes de Cuba. Em 1903 esses acordos foram incorporados ao Tratado Permanente entre Cuba e os Estados Unidos. Essas manobras na constituição cubana formalizaram o direito dos Estados Unidos em interferir na soberania nacional do país, inclusive adquirindo o poder de 21 FERNANDES, 2007, p. 65. PIERRE-CHARLES, 1985, p. 88. 23 A versão integral da Emenda Platt consta em anexo a este trabalho. 22 20 arrendar e até mesmo de vender terras pertencentes ao território cubano. Em 23 de fevereiro de 1903 foi dada a concessão da Bahia de Guantánamo para a instalação de base naval estadunidense. Apesar da revogação da Emenda Platt ter ocorrido em 1934, junto com o tratado comercial estabelecido em 1903, um novo acordo manteve a Bahia de Guantánamo sob o poder estrangeiro. A condição para alteração seria um consenso entre as partes. Como isso nunca aconteceu, os Estados Unidos seguem ocupando parte do território cubano até os dias atuais, baseados no contrato de arrendamento feito no momento da ocupação. 24 Pequenas e médias propriedades foram extintas para dar lugar à formação dos monopólios, que utilizavam as terras para os cultivos relativos ao setor de exportação, dando continuidade ao processo de estabelecimento da monocultura do açúcar, iniciado ainda no período colonial. Como resultado, houve um aumento significativo na produção de açúcar em Cuba logo nos primeiros anos da fase neocolonial. Em 1900 a produção foi de 360.289 toneladas. No ano seguinte saltou para 655.186. Em 1903 passou para 1.028.205 toneladas 25. Mais adiante, o crescimento do investimento estadunidense na indústria açucareira cubana também aumentou de maneira considerável; entre 1913 e 1928 pelo aumento das exportações causado em função da Primeira Guerra Mundial. Em 1928 os engenhos estadunidenses foram responsáveis por 75% da produção do açúcar cubano, enquanto que em 1906 produziram 15%. De 1913 a 1924 a participação norteamericana na produção açucareira passou de 39 para 60,3%. 26 Os Estados Unidos controlavam nesse período, como proprietários ou arrendatários, 47,5% das terras dedicadas ao cultivo de açúcar, possuíam cerca de 75% da terra cultivável, a terça parte das ferrovias e a maioria dos portos. 27 Oitenta e cinco por cento dos pequenos agricultores cubanos pagam renda e vivem sob a constante ameaça de serem expulsos de suas parcelas. Mais da Dados: 300 Perguntas, 300 Respostas – Jorge Lezcano Pérez, 2002, p. 56 - 57. “Como uma prova das condições abusivas daquele convênio, o mencionado acordo suplementar estipulava que os Estados Unidos pagariam à República de Cuba pelo arrendamento de 11.760 hectares que incluem grande parte de uma das melhores baías do país – a soma de 2000 dólares anuais, que na atualidade ascendem a 4085 dólares por ano, quer dizer 34,7 centavos por hectare pagos em cheques anuais, que Cuba, por dignidade e absoluto desacordo com o que ocorre nesse espaço do território nacional, tem se negado a receber. Os cheques são depositados no Tesouro Nacional da República de Cuba, Instituição que há muito não mais existe.” 25 Dados: PIERRE-CHARLES, p. 25 apud Bohemia. Reciprocidad comercial y domínio yanqui de la economia cubana, 1974, p. 11. 26 Dados: PIERRE-CHARLES, p. 27. 27 Dados: PIERRE-CHARLES, p. 36. 24 21 metade das melhores terras cultivadas está em mãos estrangeiras. Em Oriente, que é a província mais larga, as terras da United Fruit Company e da West Indian unem a costa norte com a costa sul. Há duzentas mil famílias camponesas que não possuem um palmo de terra onde semear culturas para alimentar seus filhos famintos. No entanto, permanecem incultas, em mãos de interesses poderosos, cerca de trezentas mil caballerías de terras produtivas. 28 Em contrapartida às exportações aos Estados Unidos - cerca de 60% de sua produção – Cuba importava deles de 75 a 80% do seu consumo, incluindo a alimentação básica. Além de não ter controle da própria produção, não podia comercializar livremente com outros países. 29 Salvo umas quantas indústrias alimentícias, madeireiras e têxteis, Cuba continua como uma feitoria produtora de matéria-prima. Exporta-se açúcar para importar caramelos, exporta-se couro para importar sapatos, exporta-se ferro para importar arados... Todo mundo concorda que é urgente industrializar o país, que são necessárias indústrias metalúrgicas, indústria de papel, indústria química; que é preciso melhorar a pecuária, os cultivos, a técnica e a elaboração de nossas indústrias alimentícias, a fim de que possam resistir à concorrência ruinosa que lhes fazem as indústrias europeias de queijo, leite condensado, licores e azeites, e as de conservas norteamericanas; que necessitamos de navios mercantes; que o turismo poderia ser uma enorme fonte de riquezas. 30 Na década de 1920 foi vivenciada em Cuba uma das graves consequências de uma economia baseada na monocultura. Houve uma baixa no preço do açúcar agravada pela crise de 1929, e que se prolongou até 1959. As exportações caíram bruscamente safra de 1932-1933 correspondeu a apenas 50% da safra de 1922 -, o que levou a uma catástrofe na economia, com a quebra de bancos e de pequenos negócios. 31 Em 1920, com o açúcar a 22 centavos a libra, Cuba bateu o recorde mundial de exportação por habitante, superando até a Inglaterra, e teve a maior renda per capita da América Latina. Mas nesse mesmo ano, em dezembro, o preço do açúcar caiu quatro centavos, e em 1921 se desencadeou o furacão da crise: quebraram numerosas centrais açucareiras, que foram adquiridas por interesses norte americanos, e todos os bancos cubanos e espanhóis, inclusive o próprio Banco Nacional. Sobreviveram apenas as sucursais dos bancos dos Estados Unidos. 32 Em meio à crise os engenhos controlados pelos Estados Unidos aumentaram de 35 para 55% e foi instituída uma lei que reduzia a compra de açúcar cubano por parte dos Estados Unidos com a finalidade de estimular a produção em outras partes do 28 CASTRO, 1979, p. 52. Dados: PIERRE-CHARLES, 1985, p. 35 - 36. 30 CASTRO, 1979 p. 52. 31 Dados: PIERRE-CHARLES, 1985, p. 62. 32 GALEANO, 2010 p. 100 apud René Dumont, Intento de crítica construtiva, 1965. 29 22 continente. Essa redução foi de 50% do total consumido no país para 28,6%. Ao mesmo tempo, a participação dos Estados Unidos nas importações cubanas aumentou de 56,2 em 1934 para 71,3% em 1938. 33 O que mostra que a crise sofrida por Cuba não afetou os Estados Unidos, pelo contrário, estimulou seus negócios na ilha. A configuração estrutural que se tinha nesse momento, de dupla subordinação bens de consumo importados e açúcar exportado – e domínio do aparelho produtivo por estrangeiros, impossibilitava a diversificação da agricultura e deixava o aparato financeiro submetido ao capital norte-americano. A liberdade de um país tem relação direta com a capacidade interna de suprir as necessidades básicas de sua população. Implica na diversificação de produção, especialmente alimentícia, evitando vulnerabilidade a pressões internacionais. Os Estados Unidos não abriam mão de sua própria diversificação. Mas impuseram o contrário em suas relações internacionais, pois sabiam que para sua própria industrialização e desenvolvimento, precisavam de fornecedores de matéria prima. Não destruiriam a própria terra e diversidade para produzir açúcar em larga escala, por exemplo. Para isso utilizaram Cuba, que dessa forma permaneceu agrícola. Porém, um país agrícola monocultor, que exportava um único produto e comprava de fora todo o resto. Essa relação dependente tinha um efeito descapitalizador para Cuba, pelo crescimento para fora, ou seja, servindo para a ampliação capitalista externa, através de uma estrutura monoprodutora e de grande dominação financeira, mantida graças à inserção imperialista no aparato produtivo, e com isso impedindo o próprio desenvolvimento. En conclusión, las fuerzas productivas de Cuba experimentaron durante cierto período un gran auge; pero ese desarrollo fue unilateral, hipertrofiándose el sector exportador azucarero, y deformándose la economía del país. Ésta no pudo desarrollarse de manera equilibrada y acorde con las necesidades de crecimiento de una burguesía propia, trabadas como estaban las posibilidades de desarrollo de la agricultura, por la existencia del latifundismo, y obstaculizadas las industrias por el dominio del mercado ejercido por la producción norteamericana.34 A produção latifundiária possuía as melhores terras e com o desaparecimento da economia agrícola de subsistência, a sazonalidade da produção açucareira deixava os trabalhadores do campo durante parte do ano desempregados ou produzindo em terras 33 34 Dados: PIERRE-CHARLES, 1985, p. 65. PIERRE-CHARLES, 1985, p. 34. 23 arrendadas a altos preços. Frequentemente agricultores pertencentes à pequena burguesia rural transformavam-se em campesinos pobres e proletários em função da submissão aos latifundiários. Cuba não teve uma burguesia forte, que desenvolvesse um capitalismo nacional ou tivesse disposição em buscar alianças com o proletariado, assim como teve a Europa na Revolução Burguesa. Como toda a burguesia dependente, foi um simples instrumento do capitalismo internacional. A burguesia deixou que o poder ficasse inteiramente em mãos estrangeiras, e, consequentemente a economia do país também. Os “donos do poder”, a partir de dentro e a partir de fora, possuem o mesmo interesse. Sufocar todo fermento revolucionário em seu nascedouro. Uma burguesia dependente não é só instrumental para com seus interesses conservadores “nacionais”; ela também é instrumental para com os interesses conservadores externos, “internacionais”, ou seja, ela atua em permanente aliança com o imperialismo e dele recebe parte de sua força econômica, cultural e política. 35 Nestas condições, a burguesia participava como “sócio menor ou simplesmente como satélite dentro da constelação imperialista.” 36. Parte dela era sócia de empresas norte-americanas ou dependia delas para obter equipamentos e matérias-primas. Apenas uma pequena parcela da burguesia local não participava da monocultura e buscava crescer diversificando a produção agrícola. Foi incapaz de ser independente aos estrangeiros e formar uma burguesia nacional que fortalecesse o país. A produção era determinada pelos Estados Unidos, para atender parte de sua demanda. Além de produzir apenas um bem, atendia um único cliente, que tomava as decisões de produção. (...) por el mismo caráter de la vinculación entre Cuba y los Estados Unidos, la burguesía se integra al papel subordinado como simples prolongación funcional del capital monopolístico. Su práctica política se fue ejerciendo en un marco de sometimiento a la estructura de poder extranjero. Por ello, le resultaba imposible plantear las reivindicaciones de la nación; quedaba más bien identificada con la anti-nación. 37 Como a economia cubana cresceu em torno da indústria açucareira, cujo monopólio pertencia aos Estados Unidos, o país tornou-se dependente também através de setores fundamentais, como o de transporte, comunicação e energia, que tinham o 35 FERNANDES, 1981, p. 50 - 51. PIERRE-CHARLES, 1985, p. 47. 37 PIERRE-CHARLES, 1985, p. 92. 36 24 financiamento de origem estadunidense pela necessidade de infraestrutura que desse suporte aos seus negócios em Cuba. O capital estrangeiro se mobiliza com o fim de ajudar-se a si próprio. O capital privado estrangeiro é o capital em excesso num país, que se transporta para um outro país onde os salários são mais baixos, as condições de vida e as matérias-primas mais baratas, de modo a obter melhores lucros. 38 Cuba neocolonial tinha problemas econômicos e sociais graves, a maioria da população vivia próxima à miséria. A riqueza tem um preço que é pago por quem não a usufrui. A Europa se desenvolveu graças à exploração da América Latina, e também da África, da qual não trataremos aqui, mas que também ainda sofre as consequências do imperialismo. Os metais preciosos saqueados do continente latino-americano foram utilizados como capital para a acumulação primitiva europeia. Mais tarde a América Latina se tornou fornecedora de matéria-prima e consumidora de manufatura. De Cuba retiraram riquezas como madeira e ouro. Transformaram-na em uma grande fábrica de açúcar, impedindo na origem a diversidade produtiva e dessa forma levando à escassez de alimentos. A população já não tinha mais acesso a bens de primeira necessidade. (...) as relações da América Latina com os centros capitalistas europeus se inserem em uma estrutura definida: a divisão internacional do trabalho, que determinará o sentido do desenvolvimento posterior da região. Em outros termos, é a partir de então que se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. 39 A quantidade de imigrantes trabalhadores recebidos nos primeiros 30 anos do século XX superou a quantidade de escravos recebidos em todo o período colonial cubano. 40 Isso resultou, em Cuba, em altas taxas de mais-valia absoluta, que se caracterizam por baixos salários, longas jornadas de trabalho; condições semelhantes à época da escravidão. Assim, é exercida uma maior exploração do trabalhador. É a forma encontrada pelos países dependentes de compensar a perda de mais-valia ao se relacionar com os países centrais, já que não é possível incrementar a capacidade produtiva de outra forma senão através de mais exploração. 38 GUEVARA, 1980, p. 27. MARINI, 2005, p. 141. 40 GALEANO, 2010, p. 29. 39 25 3.2 A tradição de luta do povo cubano Aqui pretendemos mostrar como foi construída a veia revolucionária cubana. O movimento operário organizado começou a ser articulado no século XIX. Nessa época o país tinha duas indústrias destacadas, de açúcar e de tabaco. A indústria açucareira utilizava trabalho escravo. Já a indústria do tabaco, por dispor de técnicas mais avançadas de produção, era mantida pelo trabalho livre, cuja condição “livre” os possibilitou que fossem mais politizados e constituíssem uma classe de trabalhadores mais esclarecida. Quando acontece a abolição da escravidão em Cuba, em 1886, os trabalhadores dessa indústria se uniram aos escravos, que apesar de nesse momento ainda não terem uma consciência de classe, colaboraram na construção de uma união proletária. As ideias de Marx e Engels foram difundidas pelo país através da circulação de revistas de conscientização dos trabalhadores, como El Procurador (de Havana), El Obrero (de Cienfuegos), El Comunista (de teor marxista-leninista) e dos jornais revolucionários clandestinos Son los mismos e El acusador. Os comunistas também tinham uma emissora de rádio, a Mil Diez. No exílio o movimento também trabalhou, a exemplo de José Martí e Carlos Baliño. 41 Conviene apuntar, que en ningún país de América Latina, correspondió al proletariado organizado estar presente y participar como en Cuba en la misma constitución del estado nacional. En ninguna, el proletariado participo tanto como en Cuba en la formación de la conciencia antimperialista, así como en la orientación de los combates políticos. 42 É iniciado em Cuba um processo de criação de uma infinidade de partidos. 43 Em 29 de março de 1899 Diego Vicente Tejera lança um manifesto contendo as ideias para fundação do Partido Socialista Cubano e meses depois o partido é fundado. Em 1904 é fundado o Partido Obrero de Cuba. Por iniciativa de Carlos Baliño, do movimento operário, em 1905 o Partido Obrero de Cuba se integra à Internacional Socialista e muda seu nome para Partido Obrero Socialista. Em 1906 acontece a fusão do Partido Obrero Cubano e do Partido Socialista Internacional em Partido Socialista de Cuba. Em 1907, de fevereiro a julho, acontece um movimento grevista dos produtores de tabaco chamado “huelga de la moneda”, que exigia o pagamento em moeda 41 Dados: PIERRE-CHARLES, 1985, p. 114 - 115. PIERRE-CHARLES, 1985, p. 94. 43 Dados sobre os partidos: PIERRE-CHARLES, 1985. 42 26 americana, já que a moeda nacional sofria constantes desvalorizações. Em 1914 o movimento proletário lutava também contra a alta do custo de vida e pela diminuição da jornada de trabalho. No ano seguinte, um congresso dos trabalhadores aprofundou a consciência proletária, compreendendo aos poucos, com a ajuda das ideias de José Martí, o pensamento marxista. A partir de 1917 aconteceram uma série de greves e manifestações em caráter de greve geral. Em dezembro de 1918 uma intervenção norte-americana provocou uma revolta e em 1919 iniciou um movimento grevista dos trabalhadores do açúcar que culmina em uma greve geral. Em 18 de maio de 1923 foi criado o primeiro grupo comunista de Havana, onde Carlos Baliño era vice-secretário geral. Os congressos de Cienfuegos e Camaguey resultam na criação da Confederación Nacional Obrera de Cuba (CNOC), em 1925, e no mesmo ano é criado o Partido Comunista de Cuba. É construída uma união de forças entre o Partido Comunista de Cuba, a CNOC, o Diretório Estudantil Universitário (onde atuava Julio Antonio Mella, do movimento estudantil) e o Sindicato Nacional de los Obreros de la Industria Azucarera (SNOIA). Em função da crise de 1929, em 20 de março de 1930 a terceira parte da força de trabalho da época, ou seja, 200 mil trabalhadores fez uma paralisação de 24 horas no país, convocada pela Confederación Nacional Obrera de Cuba (CNOC), reivindicando melhores salários e respeito aos direitos democráticos do povo. Em agosto de 1933 a luta revolucionária obteve algumas vitórias, como a revogação da Emenda Platt, jornada de trabalho de 8 horas. A Constituição de 1940 avançou no plano social, porém maior parte dela não foi posta em prática. Em 10 de março de 1952, faltando 80 dias para as eleições, das quais participaria Roberto Agramante, do Partido Ortodoxo, após o trágico suicídio de Eduardo Chibás, líder do partido e revolucionário de ideias anti-imperialistas, Fulgêncio Batista, o homem de confiança de Washington, em resposta a uma campanha anticomunista devido ao aumento do movimento proletário pela conscientização da população, desembarcou de viagem a Miami e aplicou um golpe de Estado, frente a iminente vitória do partido Ortodoxo – fortemente respaldado pelas massas. O Partido Ortodoxo foi incapaz de combater Batista, e alguns de seus membros chegaram a se colocar a disposição do ditador. Como a classe operária se negava a participar do sindicalismo corporativo dessa ditadura, o Partido Socialista Popular – criado em 1944 a partir do Partido Revolucionário Cubano, que por sua vez era uma 27 junção entre o Partido Comunista com o Partido de União Revolucionaria - passou para a ilegalidade. 44 Batista, com apoio político, econômico e militar estadunidense suspendeu a constituição de 1940 e rompeu relações diplomáticas com a União Soviética. Quando aconteceu uma crise gerada pela queda do preço do açúcar, em 1952, o governo utilizou dinheiro público para o fortalecimento do setor privado, através de reservas de divisas e de empréstimos no exterior, o que colaborou para que o país entrasse em uma crise permanente. Um grupo de revolucionários se reuniu com a intenção de derrubar o governo de Fulgêncio Batista em uma tentativa de tomada das bases militares do país, na operação que ficou conhecida como Assalto ao quartel de Moncada, em 26 de Julho de 1953. Tinha Fidel Castro no comando, que justificava o levante pela inconstitucionalidade e ilegalidade daquele governo, que chegou ao poder através de um golpe de Estado, sem que o povo tenha-o elegido, e dessa forma criando condições para governar despoticamente. As influências ideológicas dos dirigentes revolucionários foram o patriotismo intransigente, nacionalismo revolucionário e humanismo. 45 O principal objetivo do grupo era a soberania do povo e queria, em primeiro lugar, a proclamação da constituição de 1940 até que o próprio povo decidisse modificá-la ou substituí-la. Ao movimento revolucionário caberia, enquanto soberano momentâneo, legislar, executar e julgar de acordo com essa constituição. Quanto aos direitos dos trabalhadores, seria pleiteada a participação de 30% nos lucros aos empregados das grandes empresas industriais, mercantis, mineiras e açucareiras. Aos colonos a participação em 55% dos rendimentos da cana de açúcar e cota mínima de 40 mil arrobas aos pequenos colonos estabelecidos há pelo menos três anos. 46 Pretendiam sancionar a lei do confisco que previa “a confiscação total dos bens de todos os dilapidadores dos bens públicos de todos os governos e dos seus coniventes e herdeiros, tanto dos bens percebidos por testamento ou sem testamento de maneira fraudulenta”. 47 O movimento também tinha como objetivo resolver outros problemas graves de Cuba ignorados pelo governo de Batista, como da moradia, desemprego, educação – 44 Dados: PIERRE-CHARLES, 1985. Segundo PIERRE-CHARLES, 1985. 46 Dados: CASTRO, 1979. 47 CASTRO, 1979, p. 50. 45 28 com a reforma integral do ensino -, saúde, falta de industrialização, reforma agrária, nacionalização do truste de eletricidade e do truste telefônico, para cumprir o que dizia a própria constituição do país. Nem uma única iniciativa corajosa foi tomada. Batista vive entregue de pés e mãos aos grandes negócios, e não podia ser de ouro modo, por sua mentalidade, pela carência total de ideologia e de princípios, pela ausência absoluta de fé, de confiança e de apoio das massas. Foi uma simples mudança de mãos e uma repartição do botim entre os amigos, parentes cúmplices e a malta de parasitas vorazes que integram o séquito político do ditador. Quantas afrontas fizeram o povo sofrer para que um grupelho egoísta que não sente pela pátria a menor consideração possa encontrar na coisa pública um modus vivendi fácil e cômodo. 48 Apesar do levante dos guerrilheiros ser absolutamente legítimo, o grupo fracassou em seu objetivo de tomada do quartel e foi preso. Após a derrota o movimento se tornou mais radical. A participação popular aumentou em função da revolta gerada pela ditadura de Fulgêncio Batista, especialmente pelo assassinato de dezenas de jovens combatentes e pela repressão geral criada em resposta ao assalto à Moncada. Enquanto Fidel Castro e outros guerrilheiros estavam presos em função do assalto ao quartel de Moncada, foi criado o Movimento 26 de Julho, em 1954. Inicialmente o grupo era composto por estudantes e profissionais liberais, mas em seguida também foi aderido pelas classes operária e camponesa. Buscavam fazer um trabalho de conscientização na sociedade, da necessidade de mudança. As intenções do movimento eram bastante divulgadas através dos manifestos e o povo sempre convidado a apoiar. O Movimento 26 de Julho utilizou como programa o discurso de Fidel Castro A História me Absolverá - escrito enquanto Fidel estava preso pelo assalto de Moncada, para sua própria defesa nos tribunais da ditadura de Batista, dispensando advogados para tal. Nesse discurso ele questionou o poder ditatorial e toda a ação do governo de Batista. Segundo Vania Bambirra, o Movimento tinha um caráter pequeno burguês 49 e reformista. Objetivava aumentar a participação dos operários nos ganhos, reforma 48 CASTRO, 1979, p. 91. O pequeno burguês pertence a uma classe social que obtém vantagens com o domínio da burguesia, ficando em uma espécie de classe intermediária, e por isso adota um comportamento simpático a ela. O pensamento pequeno burguês é uma dominação econômica e cultural que serve à ascensão da burguesia enquanto classe social. 49 29 agrária, mas não pretendia romper por completo a relação de dominação que existia entre o país e as burguesias nacional e estrangeira. Mas isso não foi um problema na luta revolucionária. Pelo contrário. Para o momento histórico em que o país se encontrava, foi uma evolução da postura dos movimentos sociais diante do combate ao domínio sofrido por Cuba. O descontentamento da população trouxe a discussão sobre a situação do país e o questionamento das atitudes que seriam eficientes para resolver os problemas sociais e econômicos naquele momento. As medidas preconizadas não põem em causa as bases e o funcionamento do capitalismo dependente cubano. Visam, sobretudo, uma redemocratização do sistema, uma maior justiça econômica e social. Não se encara ainda o imperialismo como inimigo e nem sequer se faz referência aos interesses oligárquicos nacionais. Entre as classes revolucionárias definidas através da categoria povo, sobressaem os operários, os camponeses e a pequena burguesia, mas tampouco se explicita a que classe corresponderá a hegemonia no processo revolucionário. 50 Uma das inspirações do Movimento 26 de Julho foi José Martí, que segundo Vania, apesar de lutar contra a dominação imperialista espanhola e estadunidense sobre Cuba, não tinha um pensamento radical, de rompimento com o capitalismo. A luta de classes, portanto, não era um meio: Impedir que as simpatias revolucionárias em Cuba se desviem e escravizem por qualquer interesse de grupo, para preponderância de uma classe social ou da autoridade desmedida de um agrupamento militar ou civil, nem de uma região determinada, nem de uma raça sobre a outra.51 Mesmo que a idéia de José Martí não tenha sido o fim da relação imperialista, seu pensamento foi um salto no comportamento revolucionário. A concepção de unidade da América Latina segue seus pressupostos. Supera o pensamento democrático burguês evoluindo para o antiimperialismo radical pequeno burguês latino-americano. 52 Ruy Mauro Marini, no prefácio do livro A Revolução Cubana – Uma Reinterpretação discorda dessa caracterização pequeno-burguesa do movimento revolucionário defendida por Vania Bambirra. Marini define como Revolução Popular, por ter a participação de classes sociais opostas. A burguesia que fazia parte da composição do movimento estava lá por mera falta de alternativa de combate ao poder ditatorial. Entretanto isso não significa que o movimento tivesse caráter burguês. 50 BAMBIRRA, 1975, p. 58 - 59. BAMBIRRA, 1975, p. 62 apud José Martí, Pensamiento Revolucionario Cubano, 1971, p. 77. 52 BAMBIRRA, 1975. 51 30 Uma importante tentativa de tomada de poder ficou conhecida como Desembarco del Granma, ocorrida em 2 de dezembro de 1956. Granma era o nome do iate que trazia do México um grupo de revolucionários exilados, entre eles Fidel Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos. Pretendiam desembarcar na província de Oriente com o objetivo de acabar com a ditadura de Batista. Porém o grupo foi derrotado em uma emboscada, submetido a bombardeio aéreo, e teve a maior parte da expedição perdida nessa batalha. Os sobreviventes fugiram para a Sierra Maestra, uma região serrana de Cuba, onde se formou o Exército Rebelde, constituindo outra vertente revolucionária, a guerrilha rural, muito bem recebida pela população. 3.3 Greve Geral A greve geral, que aconteceu em abril de 1958, foi encorajada por ter sido, em diversos momentos, um bom instrumento de protesto e de mudança, tanto em Cuba quanto em outros processos revolucionários. A ditadura de Machado foi derrubada com uma greve geral em 1933. Na Revolução Russa também se utilizou desse expediente. Por isso, e pela determinação em tirar Batista do poder, o povo tinha bastante simpatia pela idéia da greve geral. Dessa forma, o Movimento 26 de Julho tentou pô-la em prática. No entanto, a mobilização não aconteceu como se esperava. Foi dispersa e sem o apoio popular suficiente, tanto urbano quanto rural. Faltou um trabalho prévio maior de conscientização e mobilização das massas. Muitos trabalhadores nem tomaram conhecimento dela, por ter sido convocada repentinamente, de última hora. O Movimento 26 de Julho ainda não era a vanguarda e o Partido Socialista Popular, que era a maior influência dos operários até então não estava comprometido com a greve, um dos maiores motivos para a desmobilização da população naquele momento. O Partido Socialista Popular “era, dentre as forças de esquerda, a que possuía uma base orgânica operária mais sólida, produto de anos de experiência de luta, de militância e disciplina partidária.” 53. Embora meses depois fosse diferente, em abril de 1958 o movimento ainda não estava maduro o suficiente. Vania compara a postura do Movimento 26 de Julho à 53 BAMBIRRA, 1975. 31 estratégia putschista54 - a greve geral de abril estava saturada dessa concepção. Rosa Luxemburgo, ao comentar a Revolução Russa, falou sobre a falta de mobilização, tal qual posteriormente aconteceu em Cuba, na aplicação inoportuna da greve geral. Se algo nos ensina a Revolução Russa é, antes de tudo, que a greve de massas não é, nem feita artificialmente, nem acordada ou propagada nas nuvens, antes é um fenômeno histórico que se produz num dado momento por uma necessidade histórica surgida das condições sociais. (...) na realidade, não é a greve de massas que produz a Revolução, é a Revolução que produz a greve de massas. 55 A repressão aumentou após o fracasso da greve geral de abril, mas a guerrilha conseguiu superar os ataques contrarrevolucionários de Fulgêncio Batista, mesmo tendo menos soldados. A cada batalha vencida aumentavam o arsenal revolucionário, pois tomavam armamentos do exército de Batista. Quando o movimento conquistou a serra, ou seja, a parte rural do país, criou condições para uma greve geral ter sucesso. Na segunda metade de 1958 o movimento recebeu a incorporação massiva da classe operária graças à colaboração do Partido Socialista Popular na luta contra a ditadura. Em dezembro de 1958 a greve foi novamente convocada, por Fidel e pela Frente Operária Nacional Unida (FONU). Paralisou o país por quatro dias e a participação de massa criou condições para as forças rebeldes vencerem os ditadores e ocuparem os dois quartéis mais importantes de Cuba: Cabaña e Columbia. Com toda essa mobilização, a ditadura de Batista foi derrotada e ele foge da ilha na madrugada do dia 1 de janeiro de 1959. 56 Vania atribui a quatro fatores fundamentais o êxito da estratégia vitoriosa da guerrilha nesse momento: (i) Decomposição do exército de Batista: derrotado em sete meses, não teve alta combatividade. Não lutava apenas contra os guerrilheiros, lutava também contra a vontade de mudança de toda uma população. Os guerrilheiros chegaram a conquistar alguns soldados da ditadura de Batista, por lhes prestar ajuda humanitária quando precisaram. Tinham motivações mais estimulantes que às dos soldados da tirania. (ii) Apoio e participação popular: os revolucionários tinham propostas melhores. Conquistaram trabalhadores rurais e o campesinato pela promessa de terra e os operários com a possibilidade de auxiliá-los a enfrentar a indústria açucareira nas reivindicações. A população civil no geral tinha na revolução a esperança 54 Os putschistas tinham como procedimento de tomada do poder o golpe, sem prévia conscientização da população. 55 BAMBIRRA, 1975, p. 160 apud Rosa Luxemburgo. 56 Dados: BAMBIRRA, 1975. 32 da melhoria de qualidade de vida. E na verdade nem tinham motivos para apoiar ao exército de Batista. Ao contrário, repudiavam a arbitrariedade desse governo. (iii) Caráter amplo e nacional da luta, inclusive com a participação da classe média e pequeno-burguesa: a classe média e pequena burguesia tinham objetivos convergentes com os do movimento revolucionário, como o de derrubar o governo corrupto e antidemocrático. E sozinhas essas classes não conseguiriam articular um levante. Para o movimento, por sua vez, não é inteligente dispensar forças que estejam dispostas a lutar pelo mesmo objetivo. (iv) A utilização e combinação de várias formas de luta: a junção de duas estratégias, parte na planície, que foi a guerrilha urbana, e parte na serra, que foi a guerrilha rural. A utilização das greves, a participação das classes campesina, operária, da população em geral, e com o apoio da pequena burguesia, formou um conjunto de forças. A exclusão de qualquer forma de apoio poderia significar a derrota da revolução. A greve geral de abril de 1958 é um exemplo. Muito provavelmente não vingou por falta de engajamento do Partido Socialista Popular. Logo, é perceptível a diferença que faz uma única forma de luta para o conjunto. O apoio popular foi fundamental, seja no mais simples ato de ato de quem prestou assistência aos combatentes, fornecendo-lhes mantimentos, por exemplo, ou de quem lutou diretamente na guerrilha. Seja fazendo campanha de conscientização da população, escrevendo ou divulgando manifestos defendendo o movimento. Cada um a sua forma. A revolução estava presente em todo o território cubano colaborando para que o exército revolucionário dominasse o exército de Batista. A guerrilha mobilizou a massa e possibilitou a abertura para as forças sociais revolucionárias, tornando-as eficaz. As aspirações econômicas, sociais e políticas dos trabalhadores seriam garantidas a partir de então, quebrando com uma crença de que as revoluções, para serem vitoriosa, precisavam ser feitas pela classe dominante e em benefício delas. 3.4 Cuba Revolucionária Cuba revolucionária é dividida em duas etapas: a social-democrática e a socialista. Segundo Vania, a revolução cubana foi estabelecida numa concepção democrático-burguesa, o que significa que teve um caráter reformista e sem a pretensão de romper com o imperialismo. Portanto a primeira etapa teve esse caráter, que 33 perdurou até a primeira metade do ano de 1960. Partindo da análise do Partido Socialista Popular, Vania destacou que: (...) tais forças sociais, como se sabe, ainda que não se submetam ao imperialismo e lhe oponham resistência, defendendo os seus interesses e a independência nacional, não se decidem por uma luta revolucionária contra o imperialismo, vacilam ante as medidas econômicas e sociais que se devem adotar para levar adiante a libertação nacional, o desenvolvimento econômico e o progresso social. Estas forças estão limitadas na sua orientação antiimperialista e revolucionária pelo seu afã de conservarem a todo o transe o regime capitalista. 57 A intenção dos revolucionários, a princípio, não era o socialismo. Observando os discursos de Fidel Castro, Vania entende que o líder revolucionário defendia uma “Revolução democrática, humanista e justiceira”, e que isso não significava necessariamente um rompimento com os Estados Unidos e nem que pretendiam implantar o socialismo no país. Fidel dizia: É possível progredirmos em Cuba se caminharmos juntos com os Estados Unidos. (...) Não sou comunista, nem estou de acordo com o comunismo (...) A democracia e o comunismo não são uma e a mesma coisa para mim. Chamamos humanistas aos nossos ideais, porque não queremos apenas dar liberdade ao povo, mas também proporcionar-lhe os meios de viver e conseguir comida. 58 Entretanto, seus objetivos eram insolúveis dentro do sistema capitalista. Seria possível apenas manter algumas das propostas, mas não resolver as questões estruturais do país. A população não teria seus problemas resolvidos dentro do capitalismo dependente, no qual o país subsistia. O capital estrangeiro tinha o controle das indústrias, o que impedia o desenvolvimento de uma burguesia nacional industrial. O país subsidiava os interesses secundários dos Estados Unidos, e isso não mudaria dentro de uma revolução democrático-burguesa. Como o compromisso era com o povo operário, camponês, trabalhador industrial, que era a maior parte da população, a revolução cubana foi reformista até o momento em que se percebeu que, para cumprir com os objetivos propostos seria necessário romper com o sistema capitalista. Foi o resultado necessário de um processo revolucionário que preconizava o humanismo, o desenvolvimento econômico, a justiça social e a democracia política. E estes não podem conseguir-se nos quadros do capitalismo e muito menos nos do capitalismo dependente. Por isso, a revolução para ser 57 BAMBIRRA, 1975, p. 235. BAMBIRRA, 1975, p. 251 – 252 apud Fidel Castro, discurso pronunciado no Central Park de New York, em 24 de Abril de 1959, p. 140. 58 34 consequente com seus postulados básicos, que de início assumiram a forma de democráticos, teve de romper com a democracia burguesa até as suas últimas consequências, teve de transformar-se em socialista. 59 Houve o esgotamento dessa formação social, do capitalismo dentro de uma ordem neocolonial, para então haver a transição ao socialismo. O governo revolucionário tinha os instrumentos necessários fazer a transição para o socialismo: controle do aparelho estatal, exército rebelde fortalecido, domínio da superestrutura jurídico-político social e posse de parte fundamental da base econômica, agrícola, industrial, comercial e financeira de Cuba. Cuba seguiu o caminho do socialismo não porque houvesse essa intenção desde o início do movimento, mas porque existiu, de fato, a tentativa pela via socialdemocrática, mas que se mostrou incapaz de cumprir os objetivos revolucionários. Esse é um ponto divergente entre dois dos autores aqui estudados. Florestan discorda de Vania quanto ao caráter da revolução cubana, e consequentemente, quanto o papel da guerrilha. Segundo ele, uma nacionalização democrático-burguesa não seria possível em Cuba uma vez que o polo forte da ordem social neocolonial estava fora do país, nos Estados Unidos. Nesse caso ele descarta uma intenção de revolução dentro da ordem. (...) é conveniente salientar que a guerrilha não era e nem podia ser neutra com referência ao destino da ordem social neocolonial. Esta devia ser destruída inteiramente e até o fim, o que punha a guerrilha em luta direta com os Estados Unidos. Ao buscar o apoio frontal das classes trabalhadoras e da população pobre, ela não procurava uma retaguarda firme para sua luta armada contra a ditadura de Batista. Isso seria um exagero. Ela preparava o terreno para o confronto mais árduo e difícil com o imperialismo. 60 A revolução aconteceu em Cuba a despeito do regime de classes pouco avançado, tal qual ocorre nos países centrais. A atividade da guerrilha se adequou a essa situação, surgindo como expressão da vontade da população já que o desenvolvimento capitalista dentro de uma ordem social neocolonial prejudicou tanto a classe trabalhadora, impossibilitando que a grande maioria da população conseguisse viver razoavelmente bem. E a guerrilha foi a forma encontrada de lutar contra esse sistema. A guerrilha, portanto, subverteu a orbita das relações e conflitos de classes, conferindo às classes trabalhadoras e destituídas a possibilidade (antes inconcebível) de enfrentar as tarefas políticas que a situação revolucionária e 59 60 BAMBIRRA, 1975, p. 261. FERNANDES, 2007, p. 118. 35 a guerra civil lhes impunham. E o regime de classes, antes de tornar-se “maduro”, explodiu. 61 O caráter explorador da relação com os Estados Unidos impedia que Cuba avançasse. Portanto, não teria alternativa senão o enfrentar, ocasionando o rompimento das relações, que partiu dos norte-americanos, já que outra relação não serviria a seus interesses econômicos e políticos. Os serviços públicos, companhias elétricas, companhias telefônicas, eram propriedade de monopólios norte-americanos. (...) Uma grande parte da banca, uma grande parte do comércio de importação, as refinarias de petróleo, a maior parte da produção açucareira, as melhores terras de Cuba e as indústrias mais importantes em todas as ordens, eram propriedade de companhias norte-americanas. A balança de pagamentos entre Estados Unidos e Cuba, nos últimos dez anos, de 1950 a 1960, tinha sido favorável aos Estados Unidos em 1.000 milhões de dólares. 62 O questionamento que pode ficar é se os revolucionários pensavam que uma revolução dentro da ordem seria o suficiente para a solução dos problemas que se propuseram resolver ou se desde o princípio já sabiam que teriam que romper com a ordem. Fidel declarava que não tinha a intenção de romper com os Estados Unidos. Creio que de fato não queria isso. O objetivo era construir uma economia e sociedade soberana, com liberdade para governar de acordo com os interesses da própria nação. As relações internacionais poderiam continuar, porém sem que prejudicasse Cuba, como acontecia até então. A questão é: seria possível ter soberania sem romper com o império? Os revolucionários provavelmente já sabiam a resposta dessa pergunta. 3.4.1 Transição para a etapa socialista A estratégia de desenvolvimento do governo revolucionário se concentrou na política agrária e na industrialização. Houve uma diversificação da produção agrícola, afinal era preciso fortalecer o mercado interno. Cuba importava quase tudo que consumia dos Estados Unidos. E a compensação era a exportação de açúcar. Com o rompimento e o consequente bloqueio econômico promovido pelos Estados Unidos (tema que será tratado em seguida), foi necessário modificar essa estrutura e começar a produzir para o consumo próprio e, posteriormente, também para exportação. 61 FERNANDES, 2007, p. 117. BAMBIRRA, 1975, p. 289 apud Fidel Castro, Discurso na Organização das Nações Unidas (ONU), p. 11. 62 36 No entanto, as divisas necessárias à importação de máquinas para manter o setor primário e financiar os projetos industriais vinham justamente da venda de açúcar, cuja produção foi reduzida. Mesmo assim, o governo revolucionário assumiu uma política social muito forte, com altos investimentos em educação, saúde, cultura. Embora essa primeira estratégia tenha causado um déficit no balanço de pagamentos, foi uma atitude necessária, visto o cenário deixado após uma longa história de dependência, onde não havia intenção de fortalecimento da economia de Cuba. O país até então tinha sido utilizado apenas para fortalecer a Espanha e depois os Estados Unidos. Cuba também sofreu com escassez de mão de obra especializada no início do processo de transição para o socialismo. Para superar essa situação o país optou por fazer investimentos sociais, mesmo sendo difícil devido às condições econômicas. Não há como superar uma situação sem enfrentá-la. São, nas palavras de Fidel, os “sacrifícios da revolução”. Para corrigir os problemas gerados na primeira estratégia de desenvolvimento houve algumas mudanças no processo de planificação da economia: (i) Racionalização dos gastos sociais: continuou sendo prioridade, porém melhor estudados. E a política de salários foi reestruturada, com aumentos mais moderados. Antes existia um aumento salarial, mas a produção não acompanhava. Logo, criava-se um processo inflacionário, pois o dinheiro perdia poder de compra. Um aumento muito alto, nesse caso, não resolveria nada. (ii) Política agrária: especialização regional das culturas e aumento de investimento para o setor, que antes tinha como prioridade a indústria. Nacionalização de propriedades e formação de grandes fazendas estatais. (iii) Linhas gerais de desenvolvimento: açúcar, como principal produto, aumentando 50% a sua produção, além de fortalecimento do níquel e da pecuária. 63 Foi nesse contexto que a Revolução teve seu êxito; colaboração geral da população, frente a uma situação insustentável tanto para os trabalhadores, que estavam vivendo em péssimas condições, quanto para a burguesia, que não conseguia avançar sob o império estadunidense, na condição de colônia. A situação do país melhorou consideravelmente. Graças ao socialismo, apenas em 20 anos, Cuba: 1º. Livrou-se da condição de “nação-problema”, que o levara ao beco sem saída em que se encontrava; 2º. Realizou uma reforma agrária que se inscreve na história das grandes 63 Dados: FERNANDES, 2007. 37 realizações que ocorreram na América Latina no século 20; 3º. Retirou a maioria de sua população, os setores mais pobres dos proletários rurais e urbanos, da situação crônica de condenados da terra, assegurando-lhes meios permanentes de trabalho, um padrão sóbrio mas decente de vida, e a possibilidade de viver como gente; 4º. Suplantou um dos mais terríveis cercos capitalistas e deixou definitivamente para trás o complexo colonial e a complacência da burguesia compradora64. A socialização da agricultura, através da reforma agrária, foi o início da formação de base material da revolução, base essa que focava no aumento da produção de alimentos, na diferenciação da produção agrícola e no incremento do excedente, para exportação. Além disso, mobilizava politicamente os trabalhadores. O INRA (Instituto Nacional de Reforma Agrária), criado através da lei de 17 de maio de 1959, foi a principal entidade relativa à reforma agrária. Autônoma e com personalidade jurídica, tinha as cooperativas agrária e as zonas de desenvolvimento agrário como subordinadas, a fim de auxiliá-la no processo de reforma. Em maio de 1960 Cuba estabeleceu relações econômicas com a União Soviética. Os empréstimos feitos a Cuba foram investidos em empresas cubanas, e não em multinacionais, que tem a cultura de enviar dividendos para fora do país onde investe. Além disso, a URSS emprestava dinheiro a Cuba a juros mais baixos e firmou acordo de compra do açúcar cubano, e de venda, com o preço 33% abaixo do mercado, do petróleo soviético. A suspensão de compra de açúcar cubano por parte dos Estados Unidos, em julho de 1960, juntamente com os ataques dos Estados Unidos a Cuba na Organização dos Estados Americanos (OEA) e com as sabotagens promovidas pelos grandes produtores daquele país, fez com que o governo revolucionário confiscasse as centrais açucareiras com suas terras, e as explorações agrícolas de propriedade estrangeira e da burguesia cubana. Jersey, Shell e Texaco, empresas estadunidenses em território cubano, foram nacionalizadas sem compensação, quando se negaram a refinar petróleo soviético. Nesse mês de julho de 1960, Cuba já tinha conquistado o monopólio do comércio externo. Companhias norte-americanas (as refinarias de petróleo, 36 centrais açucareiras, companhias telefônicas e elétricas) foram nacionalizadas em agosto. No mês seguinte anunciaram o estabelecimento de relações com a China, ruptura do tratado militar com os Estados Unidos e nacionalização dos bancos norte-americana em Cuba. Em outubro foram nacionalizados quase todos os bancos - com exceção dos canadenses 64 FERNANDES, 2007, p. 149 – 150. 38 - e grandes empresas de diversos ramos: açucareiras, indústrias têxteis, ferroviárias, cadeias cinematográficas, estabelecimentos comerciais, moinhos de arroz, fábricas de bebidas e de leite condensado, torrefações de café, armazéns comerciais. As empresas norte-americanas restantes em Cuba também foram nacionalizadas. Fidel Castro, em seu primeiro discurso na Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou que é dessa forma, com a destruição da base material de dominação que se busca a independência econômica, pré-requisito para a independência política. 3.4.2 A política estadunidense de hostilidade a Cuba A decisão do governo revolucionário de modificar as relações comerciais que mantinham Cuba dependente implicou em prejuízo no relacionamento com os Estados Unidos, que se empenharam na tentativa de desestabilizar a revolução. Em 3 de janeiro de 1961 romperam as relações diplomáticas com Cuba. Iniciaram o bloqueio econômico ao país, suspendendo a compra da cota de açúcar cubano e praticando outros tantos boicotes, como campanha midiática de difamação do governo cubano, praticando atentados, espionagens, e forçando outros países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) a também romperem as relações com Cuba. Em 15 de abril de 1961, houve uma tentativa de ocupação do território cubano para o estabelecimento de um governo provisório, episódio conhecido como ataque a Playa Girón, projetado pela CIA e executado a mando dos Estados Unidos. Foi derrotado pelo regime revolucionário e no dia seguinte foi proclamado o caráter socialista da revolução cubana. Como demonstração da hostilidade à soberania cubana, os Estados Unidos tomou uma série de medidas contra o país: 65. - 2 de fevereiro de 1962: bloqueio econômico. O bloqueio vai além do contexto bilateral da relação norte-americana com Cuba: (i) Empresas de outros países foram proibidas de exportar para Cuba produtos com componentes ou materiais estadunidenses ou reexportar mercadorias originárias dos Estados Unidos. (ii) Proibição aos bancos de outros países de manter contas em dólar para Cuba ou em nome de qualquer cidadão cubano, e às empresas em utilizar a moeda em seus negócios em contas com Cuba. (iii) Proibição às instituições financeiras internacionais de conceder de crédito a Cuba. 65 Dados a seguir: PÉREZ, 2002. 39 - março de 1962: proibição da entrada nos Estados Unidos de produtos de origem cubana, mesmo que produzido parcialmente em Cuba. - julho de 1963: proibição de transações de ativos entre Cuba e Estados Unidos e congelamento dos valores de posse de cubanos ou do Estado cubano nos Estados Unidos. - julho de 1963: os estadunidenses foram proibidos de viajar para Cuba. Entre 1979 e 1982 a proibição foi suspensa, pois o então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter não renovou esta regulamentação. Mas em 1982 tornou a vigorar e permanece até os dias atuais. O cidadão estadunidense que viajar a Cuba sem uma licença especial do Departamento de Estado está sujeito a uma multa de 250 mil dólares e a cumprir 10 anos de prisão. Em 2009 Barack Obama autorizou apenas a viagem de cidadãos cubano-americanos à ilha. Os estadunidenses permanecem proibidos de viajar para Cuba. - maio de 1964: proibição do embarque de medicamentos e alimentos com destino a Cuba, determinado pelo Departamento de Comércio dos Estados Unidos. - Lei Torricelli, de 1992: pune países que colaborem com Cuba e amplia o embargo. - Lei Helms-Burton, de 1996: possibilitou aos Estados Unidos processar empresas nacionais e estrangeiras que tivessem relações comerciais com Cuba, contrariando as regras do direito internacional. Essa lei ocasionou a Cuba “perdas diretas e indiretas acima de 121 bilhões de dólares. Estima-se que todo o dano equivale a 15 vezes o nível de exportação de 1989, o mais alto da história, o que corresponde a cercear 15 anos de desenvolvimento em Cuba.” 66. Em novembro de 1966 foi criada a Lei de Ajuste Cubano: (...) estabelece que qualquer cubano que chegue a território norte-americano, mesmo que ilegalmente, e que ali viva durante dois anos (posteriormente se reduziu para um ano, que é o vigente hoje), pode receber o Promotor Geral (na prática do INS) a condição de Residente Permanente nos Estados Unidos. 67 Essa lei é uma aberração, considerando o tratamento que é dado a qualquer imigrante, especialmente de países pobres que chagam aos Estados Unidos. Os únicos 66 67 PÉREZ, 2002, p. 59. PÉREZ, 2002, p. 60. 40 que recebem automaticamente o visto de autorização de permanência no país são os cubanos. Uma política claramente intencional em desestruturar a revolução. 3.4.3 O governo revolucionário Após a declaração do caráter socialista da revolução, o governo revolucionário se deparou com o grande desafio de adaptar a economia cubana às normas ideais do socialismo. “O futuro não está ao alcance das mãos! Um povo não pode livrar-se, em pouco mais de um decênio, do fardo de uma herança pesada, deixada por 5 séculos de colonialismo e de neocolonialismo!” 68 diz Florestan. Com a Revolução não foi possível acabar de imediato com a monocultura do açúcar. Primeiro foi preciso utilizar as divisas geradas pelo produto para se investir na diversificação da produção e nas demais indústrias. O açúcar financiou o fim da monocultura. Houve escassez de produtos, pois a demanda aumentou, afinal antes poucos tinham acesso a certos bens de consumo e até mesmo a certos alimentos. Cuba teve que se adequar a produzir para suprir essa demanda, e felizmente não faltava mão de obra para tal. Também Cuba continua dependendo de modo incontornável, de suas vendas de açúcar, mas a partir da reforma agrária de 1959, foi iniciado um intenso processo de diversificação da economia da ilha, mudança que pôs um ponto final no desemprego: os cubanos já não trabalham apenas cinco meses por ano, durante as safras, mas no ano todo, ao longo da ininterrupta e por certo difícil construção de uma sociedade nova. 69 A economia era dependente da produção e exportação de açúcar, sofria com secas, oscilações na cotação, especulação financeira, demanda e oferta, crises externas, etc. Era inviável enfrentar simultaneamente uma revolução agrícola e uma revolução industrial. Após o fracasso da safra de 1970, Cuba entrou para o Conselho de Ajuda Mútua70 em julho de 1972 e formou acordos de cooperação com a União Soviética. A prioridade era o desenvolvimento industrial. A aproximação de Cuba com a URSS não foi produto de uma opção ideológica, mas uma imposição dos fatos: a política de hostilidade dos Estados Unidos – como no 68 FERNANDES, 2007, p. 197. GALEANO, 2010, p. 94. 70 Conselho de Ajuda Mútua Econômica (CAME), foi composto por países socialistas liderados pela URSS, fundado em 1972 e extinto em 1991. 69 41 bloqueio econômico e o ataque à Playa Girón - frente às decisões de cunho nacionalista do governo revolucionário cubano que correspondiam às exigências das massas foi a real motivação dessa aliança entre Cuba e União Soviética. Algumas medidas de apoio da URSS a Cuba: (i) Acordo de pagamento firmado a preços superiores para os principais produtos cubanos: açúcar e níquel. (ii) Auxilio na mecanização da colheita do açúcar, modernização da exploração do níquel, produção de eletricidade, refino de petróleo, produção têxtil, nas metalúrgicas, nos serviços de planificação e computação. (iii) Prorrogação de mais 13 anos no pagamento da dívida. (iv) Crédito para suprir o déficit no balanço de pagamento. (v) Criação do Controle Econômico (CE), com o intuito da aplicação do 1º Plano Quinquenal, para que Cuba estabelecesse uma planificação centralizada mais rigorosa, bem como os países socialistas devem fazer. Política social era um luxo na situação econômica em que Cuba se encontrava. O país não tinha estabilidade suficiente para isso. No entanto, houve uma preocupação na humanização das condições de vida das pessoas e a política social foi tratada como prioridade, a despeito das dificuldades. Ao mesmo tempo, havia uma preocupação com o desenvolvimento econômico. Cuba não tinha muitos recursos, então não era possível atender de forma plena às demandas do desenvolvimento do país e simultaneamente às necessidades da população. A postura tomada pelo governo revolucionário foi de assumir essas duas responsabilidades, sem resignação. O grande desafio foi superar o neocolonialismo e o veto estadunidense. A esperança do povo foi fundamental. A credibilidade no governo revolucionário, na superação do capitalismo e construção do socialismo. Para isso, era necessário ter uma sociedade cada vez mais consciente e almejando mudança. A sociedade é o ponto de partida da promoção de uma mudança estrutural do regime sob o qual se está estabelecido. Sem apoio popular se trona inviável tal superação. A alienação talvez seja, portanto, o primeiro desafio. Em Cuba a busca da população em melhorar as péssimas condições em que vivia construiu a maturidade para que se acreditasse que era possível superar o subdesenvolvimento. Fernandes via a sociedade cubana dessa forma: “Fica claro, então, que Cuba é uma sociedade revolucionária, suficientemente madura para dar densidade histórica à filosofia política revolucionária e bastante consolidada para tornar-se socialista”. 71 71 FERNANDES, 2007, p. 212. 42 Fidel Castro dizia que o instrumento de mobilização das massas deve ser fundamentalmente moral, apesar de também ser necessário utilizar um estímulo material, mas de forma correta. O fato de a revolução triunfar num país e proclamar a intenção de edificar a nova sociedade não garante, de per se, que isto chegue a ser realidade. Para chegar ao socialismo e ao comunismo é necessário combinar dois fatores essenciais: o desenvolvimento de um homem novo, com uma consciência e uma atitude novas diante da vida, e o avanço da técnica, capaz de multiplicar a produtividade e gestar a abundância de bens. Para alcançar esta meta elevada da sociedade humana é preciso exercer uma política consequente com os princípios do marxismo-leninismo 72 O governo revolucionário encontrou um sistema educacional precário e acessível a uma pequena parcela da população. para poucos. Optou por priorizar a educação de base, ensinos primário e médio. Na implantação do socialismo ocorreu inicialmente um declínio proporcional do ensino superior em relação ao ensino de base, depois foi estabelecido um novo equilíbrio. Dois grandes problemas iniciais foram a falta de estrutura na rede educacional, no que se refere a professores e a profissionais habilitados a auxiliar na construção de um novo sistema de ensino, e a troca da filosofia educacional básica, da capitalista para a socialista. A situação da educação antes da revolução se traduzia em mais de um milhão de analfabetos na população maior de 10 anos (25%) enquanto que 66% da população entre 5 e 24 anos não tinham assistência escolar. Para cada mil habitantes, apenas 3 concluíram o ensino médio e as escolas eram concentradas nos principais centros urbanos. 73 Imediatamente após a revolução a porcentagem da população matriculada em alguma instituição de ensino subiu 12,5% entre 1958 e 1959. E 37,1% de 1977 a 1978. A matrícula no ensino primário triplicou, no nível médio aumentou dez vezes e no ensino superior oito vezes. O orçamento apenas destinado à educação no ano de 1973 foi de 700 milhões de pesos, superior ao orçamento total da república antes de 1959. 74 O governo também criou alguns incentivos aos trabalhadores - como pagamento adicional, aproveitamento em ocupações mais complexas e ascensão na escala de promoções – para que completassem seus estudos e tivessem acesso à cultura e, consequentemente condições intelectuais para uma formação política. De 1972 a 1973 72 FERNANDES, 2007, p. 219 apud Fidel Castro, Socialismo y comunismo, p. 170. Dados: FERNANDES, 2007, p. 232 - 235. 74 Dados: FERNANDES, 2007, p. 232. 73 43 aumentou o número de trabalhadores estudando, sendo em curso de formação para adultos ou treinamento técnico, de 166.021 para 517.803. 75 “A revolução concentrou-se no trabalhador. Ele é o alfa e o ômega, portanto, da revolução educacional em curso – como sujeito-objeto, como produto e como o agente previsível da consolidação da própria revolução ou do socialismo.” 76. Quanto ao recrutamento de militantes e a mobilização das massas, existia um cuidado especial na forma como o povo seria engajado, procurando-se evitar a formação de “um exército de revolucionários domesticados e amestrados” 77 O Partido Unido da Revolução Socialista (PURS) auxiliou nesses dois objetivos. Deste ângulo, o homem novo e a sociedade nova passaram de marco utópico do “idealismo revolucionário” a produtos e fatores interdependentes de uma nova situação hitórico-social. Exprimem e fazem parte de práticas coletivas concretas, que redefinem o significado humano da revolução. Ou seja, na medida em que uma “revolução para os trabalhadores” se transforma em uma revolução dos trabalhadores, pelos trabalhadores e para os trabalhadores, o que era uma aspiração de chegar ao socialismo passa a ser o socialismo em marcha e dele está brotando uma nova Cuba, Cuba socialista. 78 A participação do povo nas decisões vindas “de cima” foi levada até a fábrica, para que os trabalhadores pudessem de fato dar suas contribuições. O trabalhador foi, de certa forma, incorporado em todas as tarefas, para uma construção coletiva da política nacional. A revolução atinge, aqui, sua etapa mais construtiva, na qual ela própria suscita o fim do governo revolucionário, liga-se “para baixo” a todos os estratos do povo e assume um caráter democrático-popular, institucionalizando-se como poder popular organizado. Portanto, esta é uma década de colheita de frutos mas, também, de lançamento dos pilares do Estado socialista e de conquista do futuro. 79 A revolução tinha um poder de mobilização muito grande e precisava convertêlo em participação política dos trabalhadores. A legitimidade do governo revolucionário é dada justamente a partir do momento em que é capaz de promover o engajamento geral da população. Essa preocupação fica sempre muito clara, e a participação é possibilitada através do apoio às organizações revolucionárias, de dedicação ao trabalho 75 Dados: FERNANDES, 2007, p. 236. FERNANDES, 2007, p. 236. 77 FERNANDES, 2007, p. 271 apud M. Harnecker, p. 17 78 FERNANDES, 2007, p. 261. 79 FERNANDES, 2007, p. 265. 76 44 e à sua formação educacional. Dessa forma desempenha-se uma política socialista. “Poder da maioria, pela a maioria e para maioria.” 80. O Partido Unido da Revolução Socialista (PURS) auxiliou na mobilização das massas. Cuba levou quase 15 anos para passar da problemática da organização do partido para a problemática da organização do Estado. Foi estabelecida uma ditadura do proletariado após solucionar problemas referentes ao desenvolvimento econômico, à defesa militar e à atuação dos militantes e dos trabalhadores no auxílio ao estabelecimento dessa estrutura socialista. A ditadura do proletariado ou Estado proletário “resulta que essa “força especial de repressão” do proletariado pela burguesia, de milhões de trabalhadores por um punhado de ricos, deve ser substituída por uma “força especial de repressão” da burguesia pelo proletariado.” 81. Lenin, a partir da teoria de Marx e Engels, defendia a ideia do fim do Estado. Mas isso, segundo ele, deve acontecer através de seu definhamento, e não com uma extinção compulsória, como propõem os anarquistas. O primeiro passo seria a substituição do Estado burguês pelo Estado proletário, consequentemente levando à ditadura do proletariado. O desenvolvimento pacífico da democracia é uma ilusão e cabe somente para alimentar ideias reformistas. Esse processo é possível, segundo Lenin, apenas através de uma revolução violenta. Com um Estado proletário, o Estado se dissolverá por si próprio, afinal ele existe apenas enquanto existe luta de classes, para intermediar as relações de domínio de uns sobre os outros. O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis. 82 Por esse motivo é necessário, primeiramente, essa transição do Estado burguês para o Estado proletário, no qual o proletariado estará organizado como classe dominante, para que, dai sim, possa haver o desaparecimento do Estado, que existe apenas enquanto alguma classe é subjugada. No Estado burguês essa classe é o proletariado, e no Estado proletário, é a burguesia. 80 FERNANDES, 2007. LENIN, 2007, p. 35. 82 LENIN, 2007, p. 25. 81 45 As classes exploradoras precisam da dominação política para a manutenção da exploração, no interesse egoísta de uma ínfima minoria contra a imensa maioria do povo. As classes exploradas precisam da dominação política para o completo aniquilamento de qualquer exploração, no interesse da imensa maioria do povo contra a ínfima minoria dos escravistas modernos, ou seja, os proprietários fundiários e os capitalistas. 83 O Estado é inútil e impossível numa sociedade onde não existam os antagonismos de classe. A luta de classes existe para promover uma transição para a extinção de todas as classes até que se chegue a uma sociedade sem classe. O estado proletário, ou ditadura do proletariado, é necessário em todo o período que separa o capitalismo da “sociedade sem classes”, do comunismo. Ora, uma vez que é a própria maioria do povo que oprime os seus opressores, já não há necessidade de uma “força especial” de repressão! É nesse sentido que o Estado começa a definhar. Em lugar de instituições especiais de uma minoria privilegiada (funcionários civis, chefes do exército permanente), a própria maioria pode desempenhar diretamente as funções do poder político, e, quanto mais o próprio povo assumir essas funções, tanto menos se fará sentir a necessidade desse poder. 84 E quem deve enfrentar e derrotar a dominação burguesa é o proletariado, que se encontra organizado e concentrado pelo próprio regime burguês. Em virtude do seu papel econômico na grande produção, só o proletariado é capaz de ser o guia de todos os trabalhadores e de todas as massas que, embora tão exploradas, escravizadas e esmagadas quanto ele, e mesmo mais do que ele, não são aptas para lutar independentemente por sua emancipação. 85 A função da ditadura do proletariado é quebrar o velho aparelho do Estado e substituí-lo por um novo. Não se trata simplesmente de tomar o poder, de trocar de mãos o poder do Estado. Marx nos ensina a evitar esses dois erros: ele nos ensina a destruir ousadamente toda velha máquina do Estado, e a colocar ao mesmo tempo a questão concreta; em algumas semanas, a Comuna pôde começar a construir uma nova máquina, uma máquina de Estado proletária, aplicando as medidas assinaladas, para ampliar a democracia e suprimir a burocracia. Aprendamos, pois, com os comunardos, a audácia revolucionária, vejamos nas suas medidas práticas um esboço das reformas fundamentais e imediatamente realizáveis, e, seguindo esse caminho, chegaremos à supressão completa da burocracia. 86 83 LENIN, 2007, p. 43. LENIN, 2007, p. 61. 85 LENIN, 2007, p. 44. 86 LENIN, 2007, p. 136. 84 46 O Estado enquanto autoridade política desaparecerá transformando as funções públicas apenas em funções administrativas, a serviço dos interesses sociais, perdendo o caráter político. No momento em que a opressão é invertida, da minoria para a maioria, a existência do Estado passa a não fazer mais sentido. E o fim do Estado, nesse sentido, significa o auge da democracia. Uma sociedade sem a necessidade de haver submissão de uma parte da população à outra. “Para salientar esse elemento de adaptação, Engels fala da nova geração “educada em uma nova sociedade de homens livres e iguais” e que “poderá livrar-se de todo aparato governamental”, de qualquer forma de Estado, inclusive a República democrática.” 87. O Estado democrático-popular deve nascer a partir de duas etapas, primeiro acabando com a sociedade de classes – através da ditadura do proletariado - para logo depois pôr fim à classe revolucionária, colocando em prática a política democrática popular, que é de fato o objetivo da revolução, a evolução social. Cuba já conquistou a primeira fase. 87 LENIN, 2007, p. 99. 47 4. DEMOCRACIA A Revolução Cubana pretendia uma radical mudança social e econômica. O país vivia uma ditadura que perdurou por muito tempo, mas esse não era o único problema. Existia uma relação imperialista absolutamente nociva ao país. A desconstrução dessa relação passou pela mudança da ordem social; afinal, a conquista de uma democracia nos moldes liberais – a única possível dentro do capitalismo - não seria suficiente. Nesse capítulo vamos abordar dois tipos de democracia: a liberal, existente nos países de economia capitalista, e a democracia socialista, vigente em Cuba. O conceito básico de democracia é o governo do povo para o povo. Ela pode ser simplesmente interpretada como a garantia de igualdade jurídica e de liberdade de expressão, ou como um desafio ao governo de classes. Nesse caso, “não se trata apenas de um sistema específico de relações de poder, mas também da relação constitutiva de um processo social distinto, a dinâmica da acumulação e da autoexpansão do capital.” 88 . 4.1 Democracia Liberal A democracia nasce como um contraponto a formas de governos autocráticos, como a monarquia e a oligarquia. O direito natural, cuja doutrina é o pressuposto filosófico do Estado liberal, diz que: (...) todos os homens, indiscriminadamente, tem por natureza e, portanto, independentemente de sua própria vontade, e menos ainda da vontade de alguns poucos ou de apenas um, certos direitos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à segurança, à felicidade – direitos esses que o Estado, ou mais concretamente aqueles que num determinado momento histórico detêm o poder legítimo de exercer a força para obter a obediência a seus comandos devem respeitar, e portanto não invadir, e ao mesmo tempo proteger contra toda possível invasão por parte dos outros. 89 A democracia liberal, direta e representativa, é um acordo “(...) entre indivíduos inicialmente livres que convencionam estabelecer os vínculos estritamente necessários a uma convivência pacífica e duradoura.” 90, de igualdade jurídica, de liberdade perante a 88 WOOD, 2003, p. 211. BOBBIO, 1994, p. 11. 90 BOBBIO, 1994, p. 14. 89 48 lei. É entendida pelo direito a liberdade de expressão e extensão dos direitos políticos a todos os cidadãos maiores de idade, não os limitando apenas aos proprietários, como acontecia antes da existência da democracia. O direito político “(...) é a participação direta ou indireta dos cidadãos, do maior número de cidadãos, na formação das leis.” 91 Essa participação é exercida através do voto, por se tratar de um sistema representativo. (...) deve-se observar que a participação no voto pode ser considerada um correto e eficaz exercício de um poder político, isto é, o poder de influenciar a formação das decisões coletivas, apenas caso se desenvolva livremente, quer dizer, apenas se o indivíduo se dirige às urnas para expressar o próprio voto goza das liberdades de opinião, de imprensa, de reunião, de associação, de todas as liberdades que constituem a essência do Estado liberal, e que enquanto tais passam por pressupostos necessários para que a participação seja real e não fictícia. 92 A apesar do “princípio da igualdade diante da lei como recusa da sociedade por estamentos e, assim, ainda uma vez, como afirmação da sociedade em que os sujeitos originários são apenas os indivíduos uti singuli.” 93 , a característica de uma sociedade estamental permanece dentro da democracia liberal através das classes sociais. Perante a lei, todos são iguais, porém não há uma igualdade de oportunidades, de possibilidades e de acesso. Bobbio nos adianta que os princípios de igualdade do Estado liberal não dizem respeito ao aspecto econômico. E avisa: “que se tome o termo “democracia” em seu significado jurídico-institucional e não no ético, ou seja, num significado mais procedimental do que substancial.” 94 Apesar de tratá-la como igualdade de liberdade. (...) liberalismo e democracia são antitéticos, no sentido de que a democracia levada às suas extremas consequências termina por destruir o Estado liberal (como sustentam os liberais conservadores) ou pode se realizar plenamente apenas num Estado social que tenha abandonado o ideal do Estado mínimo (como sustentam os democratas radicais). 95 A busca por uma democracia igualitária, ou mais próxima disso, resultaria em “tirania da maioria”, cujo efeito final é o despotismo. O autor entende por ideal igualitário “(...) uma sociedade composta tanto quanto possível por indivíduos semelhantes nas aspirações, nos gostos, nas necessidades e nas condições.” portando 91 BOBBIO, 1994, p. 43. BOBBIO, 1994, p. 44. 93 BOBBIO, 1994, p. 40 e 41. 94 BOBBIO, 1994, p. 37. 95 BOBBIO, 1994, p. 53. 92 49 “(...) os germes do novo despotismo, sob a forma de um governo centralizado e onipresente.” 96 E no socialismo, vê a confirmação do Estado coletivista que “daria vida a uma sociedade de castores e não de homens livres”. 97 Gastos públicos que atenderiam a demanda da maioria, em certos momentos, inclusive, violam os princípios da democracia liberal. A separação da condição cívica da situação de classe nas sociedades capitalistas tem, assim, dois lados: de um, o direito de cidadania não é determinado por posição socioeconômica – e, neste sentido, o capitalismo coexiste com a democracia formal -, de outro, a igualdade cívica não afeta diretamente a desigualdade de classe, e a democracia formal deixa fundamentalmente intacta a exploração de classe. 98 Do ponto de vista liberal, o Estado é um “mal necessário”. Portanto deve ser mínimo, limitado a garantir a igualdade jurídica dos cidadãos. A democracia liberal, que se criou junto com o capitalismo, não era possível nas sociedades pré-capitalistas, onde a apropriação e a exploração eram inseparavelmente ligadas ao poder jurídico, político e militar. Essa liberdade convencionada de “igualdade de oportunidades” separou os trabalhadores dos meios de produção, já na sociedade capitalista, e é uma forma de manter as relações de dominação e exploração, e de inibir possíveis alterações nesse cenário, promovendo um alcance limitado da cidadania, sem a necessidade de limites constitucionais para tal. Em certo sentido, a criação da soberania individual foi o preço pago pela multidão trabalhadora para entrar na comunidade política, ou, para ser mais preciso, no processo histórico que gerou a ascensão do capitalismo e do trabalho assalariado “livre e igual” que se juntou ao corpo de cidadãos, foi o mesmo processo em que os camponeses foram despossuídos e desenraizados, arrancados de sua propriedade e de sua comunidade, com seus direitos comuns e costumeiros. 99 A manutenção da democracia liberal é feita pela classe dominante, que é composta pelas burguesias nacional e externa (dos países centrais). Impõe uma cultura que facilita a manipulação das massas com a submissão da grande mídia, que age como cliente do capital, e tem o respaldo da máquina estatal, que por sua vez trabalha para manter essa ordem. O objetivo é estabelecer uma ordem política enfraquecida para, assim, impedir mudanças no status quo. Tanto a burguesia nacional quanto a 96 BOBBIO, 1994, p. 59. BOBBIO, 1994, p. 60 apud Tocqueville. 98 WOOD, 2003, p. 123. 99 WOOD, 2003, p. 181. 97 50 imperialista tem interesses em manter o colonialismo disfarçado de democracia em que vive a América Latina. O ponto crucial da questão, no que respeita a países nos quais a vanguarda interna da luta contra o colonialismo era recrutada nos estratos mais privilegiados dos estamentos dominantes, vem a ser que estes estamentos e suas elites não possuíam interesse algum em revolucionar as estruturas sociais e econômicas vigentes – e, quanto às estruturas legais e políticas, só queriam modificá-las revolucionariamente de forma localizada: a independência perante a metrópole, de um lado, e a plenitude política de sua hegemonia social no plano interno, de outro. 100 A relação de dependência é mantida pelo tripé burguesia nacional, Estado e multinacionais. Executivo, Legislativo, Judiciário tornaram-se instrumentos do governo arbitrário de minorias poderosas. (...) Esse governo arbitrário, que se arroga o caráter de uma variante “liberal” do regime representativo e de contrapesos, deu continuidade a formas absolutistas de controle estatal e impediu com êxito que a democracia restrita fosse de fato ameaçada pelas pressões de “rebeldes esclarecidos” e, principalmente, das massas populares. 101 Uma democracia burguesa real é aquela onde a burguesia nacional não depende dos países centrais. As burguesias latino-americanas não se autossustentam, o que torna ainda mais danoso para os países dependentes uma democracia liberal. Tampouco tem capacidade de se manter sem os países centrais. A revolução burguesa em atraso não possui envergadura para enfrentar e resolver tarefas que a revolução burguesa “clássica” só solucionou parcialmente, na Europa e nos EUA, em um contexto histórico produzido em grande parte pelo poder coletivo de ação inovadora e construtiva da burguesia em ascensão ou em consolidação como classe dominante. 102 A esquerda política no cenário da democracia liberal se mostra frágil, e muitas vezes um instrumento utilizado a favor da burguesia, auxiliando na manutenção do capitalismo. De que forma é possível que a esquerda cumpra com seus preceitos sem o rompimento com a ordem? Pois estando no poder, essa esquerda não avança em grandes mudanças, pelo menos não dentro da ordem. “Em vez das aparições universalistas do socialismo e da política integradora da luta contra a exploração de classe, temos uma 100 FERNANDES, 1981, p. 81. FERNANDES, 1981, p. 47. 102 FERNANDES, 1981, p. 103. 101 51 pluralidade de lutas particulares isoladas que terminam na submissão ao capitalismo.” 103 . A esquerda é incapaz de reconhecer que as várias identidades ou grupos de interesse se situam em posições diferentes em relação à estrutura dominante, reconhecem menos essa diferença que a simples pluralidade. E demonstra a fragilidade na América Latina de um pensamento socialista revolucionário e de teoria revolucionária para pautar os movimentos sociais e partidos políticos. A postura da esquerda e dos movimentos sociais deveria ser justamente a de combater a resignação, que é quase tão perigosa quanto a atuação da direita, pois enquanto acreditamos estar lutando, não começamos, de fato, a lutar. “As contradições que não são aproveitadas ativamente pelo movimento sindical e operário são drenadas pelo sistema capitalista de poder e convertidas em apatia das massas, ou seja, em submissão dirigida.” 104. O poder centralizado do capitalismo proporciona à minoria dominante a possibilidade de exercer uma ditadura por meios legais, governando a seu próprio favor. É uma forma de dominar, corromper, controlar e manter o poder sob sua rédea com maior segurança e facilidade. “Os traços e tendências pré-fascistas somente se convertem em forças políticas efetivas quando esse tipo de polarização não pode ser resolvido por “acordos entre cavalheiros”, “dentro da ordem” ou mesmo civilizadamente”. 105 Pode-se dizer que o capitalismo por natureza é contra a democracia, no sentido de se autofundamentar em sua própria vontade despótica, das duas condições básicas para a sua existência: acumulação de riqueza e acumulação de força de trabalho separada dos meios de produção. Há uma separação entre o político e o econômico na democracia liberal. Permite ao capitalismo deslocar para si fatores como controle de produção, apropriação e alocação do trabalho e dos recursos sociais, e isola o produtor dos meios de produção. Uma organização social que estabelece uma relação de poder através da exploração. Separa a prática intelectual de todo e qualquer movimento político, o marxismo da política operária, por exemplo, dificultando a consciência revolucionária da classe operária com essa substituição da luta de classes pela atividade intelectual. 103 WOOD, 2003, p. 223. FERNANDES, 1981, p. 107. 105 FERNANDES, 1981, p. 28. 104 52 Essas características são inerentes ao sistema capitalista. Sem educação e com esse controle que o aparato liberal dispõe em nome de sua democracia, impede a formação de uma consciência política sólida da população, controlando uma sociedade de massas através de uma sociedade separada por classes. O fim dessa relação centro-periferia acontece somente através de nacionalismo ou socialismo revolucionário. A criação de uma política nacional está, por isso mesmo, ligada intimamente à existência e funcionamento de uma estrutura democrática: a característica antinacional está, precisamente, na inexistência de estrutura democrática, na vigência de formas ditatoriais de governo. (...) São as forças econômicas antinacionais que geram as formas políticas e as formas culturais antinacionais; para manter aquelas, é absolutamente necessário suprimir as liberdades que condicionam a democracia e a cultura. 106 Os movimentos esquerdistas deveriam perceber que os impulsos emancipatórios fortes e promissores, muitas vezes não agem no centro da vida social, no coração da sociedade capitalista. Por exemplo, os estudantes lutando no movimento estudantil enquanto que os trabalhadores, que representam o motor, o combustível, que são os que possibilitam a existência do capitalismo, permanecem passivos. A população é transformada em massa, com a mera função reprodutora desse sistema, sem ter um fim em si mesma. Não existe um capitalismo governado pelo poder popular, não há capitalismo em que a vontade do povo tenha precedência sobre os imperativos do lucro e da acumulação, não há capitalismo em que as exigências de maximização dos lucros não definam as condições mais básicas da vida. [...] Toda prática humana que é transformada em mercadoria deixa de ser acessível ao poder democrático. Isso significa que a democratização deve seguir pari passu com a “destransformação em mercadoria”. Mas tal destransformação significa o fim do capitalismo. 107 Um modo de produção é um fenômeno social. “não somente uma tecnologia, mas uma organização social da atividade produtiva; e um modo de exploração é uma relação de poder.” 108 A igualdade política formal na democracia liberal - que podemos chamar de democracia capitalista, afinal é o único sistema democrático possível no capitalismo - não somente coexiste com as desigualdades socioeconômicas e de classe, como as mantém fundamentalmente intactas. 106 SODRÉ, 1990, p. 58. WOOD, 2003, p. 8. 108 WOOD, 2003, p. 33. 107 53 As forças de classe e os poderes do Estado possibilitam a manutenção da propriedade privada da produção em favor do capitalista, dando a ele o controle e expropriando o produtor direto, o isolando dos meios de produção. A base produtiva capitalista é estabelecida na propriedade e pela dominação, com o respaldo das formas políticas, sociais e jurídicas. Pela necessidade de acessar os meios de produção, o trabalhador, dito livre, não tem alternativa senão transferir mais-valia ao capitalista. É livre para, na melhor das hipóteses, escolher com qual capitalista irá estabelecer essa relação. Não se trata de trabalhar apenas para sobreviver. Trata-se de trabalhar para sobreviver e dar condições ao capitalista permanecer acumulando riqueza em proveito próprio. O capitalismo é constituído pela exploração de classe, mas é mais que um mero sistema de opressão de classe. É um processo totalizador cruel que dá forma a nossa vida em todos os aspectos imagináveis, e em toda parte, não apenas na relativa opulência do Norte capitalista. Entre outras coisas, mesmo sem considerar o poder direto brandido pela riqueza capitalista tanto na economia quanto na esfera política, ele submete toda vida social às exigências abstratas do mercado, por meio da mercantilização da vida em todos os seus aspectos, determinando a alocação de trabalho, lazer, recursos, padrões de produção, de consumo, e a organização do tempo. E assim se tornam ridículas todas as nossas aspirações à autonomia, à liberdade de escolha e ao autogoverno democrático. 109 A esfera econômica tem em si uma dimensão jurídica e política. “Nesses sentidos, são as leis “autônomas” da economia e do capital “em abstração” que exercem o poder, e não a imposição voluntária pelo capitalista de sua autoridade pessoal sobre o trabalhador.” 110. A relação de transferência de poder político para a propriedade privada gera certa privatização do poder público. O direito a propriedade privada é garantido pelo capitalismo, ao mesmo tempo em que o direito do trabalhador ao excedente gerado por sua força de trabalho lhe é negado. A apropriação que o capitalista faz do que é retirado da terra, do conhecimento que foi socialmente construído é considerado legitimo pela lógica capitalista, enquanto que o acesso ao excedente que o trabalhador produziu, não. O capital é o motivo e a finalidade da produção. Seu ponto final e inicial. E o trabalhador obrigado a se sujeitar a essa lógica. 109 110 WOOD, 2003, p. 224. WOOD, 2003, p. 44. 54 4.2. Democracia Socialista Uma das principais consequências do impulso capitalista é a capacidade - e a necessidade - de expulsar outras formas sociais, ou de lhes impor sua lógica. A democracia socialista vem como um caminho de combate às premissas autovalidadoras do capitalismo. Atende à necessidade de uma crítica que explique o que a economia política aceita como dado. O materialismo histórico foi a mais produtiva das críticas ao capitalismo e o marxismo atribuiu força determinante à luta de classe. O primeiro principio do materialismo histórico não é a classe , nem a luta de classes, mas a organização da vida material e da reprodução social. A classe entra no quadro quando o acesso às condições de existência e aos meios de apropriação é organizado em formas de classe, ou seja, quando algumas pessoas são sistematicamente compelidas pelo acesso diferenciado aos meios de produção ou de apropriação a transferir para outros a mais-valia. 111 A necessidade econômica torna a transferência de mais-valia condição inseparável ao acesso da classe trabalhadora aos meios de subsistência e de reprodução, onde é obrigada a transferir parte de seu trabalho ou de seu produto para a classe capitalista. Ainda mais significativa é a visão de Marx de que o objetivo particular da mudança tecnológica no capitalismo é próprio desse sistema, sendo diferente de todo objetivo universal que pudesse ser atribuído à humanidade em geral, como a “economia de esforços” ou o “alívio do trabalho duro”. Marx insiste repetidamente que o desenvolvimento capitalista das forças produtivas não visa reduzir o “tempo de trabalho necessário para a produção material em geral”, mas aumentar o “tempo de trabalho excedente das classes trabalhadoras” 112. No que concerne ao capital , a produtividade não aumenta por economia de trabalho vivo em geral, mas somente por meio da economia da parte paga do trabalho vivo (...) 113 Além de uma categoria política, a democracia deve ser tratada como um regulador econômico, “(...) baseada na reintegração da “economia” à vida política da comunidade, que se inicia pela sua subordinação à autodeterminação democrática dos próprios produtores.” 114. 111 WOOD, 2003, p. 99. WOOD, p. 112 - 113 apud Karl Marx, O Capital III, p. 264. 113 WOOD, p. 112 - 113 apud Karl Marx, O Capital III, p. 262. 114 WOOD, 2003, p. 242. 112 55 A democracia liberal deixa intocada toda esfera de dominação e coação criada pelo capitalismo. É governada pelos poderes da propriedade, pelo imperativo da maximização do lucro e pelas leis do mercado. O capitalismo é incompatível com alguns bens extraeconômicos, como por exemplo, a paz mundial, a preservação ecológica. Não é sustentável, produz consumo descartável, preza a eficiência do aumento do capital, e não uma eficiência produtiva real. Gera investimentos equivocados. Diferente do socialismo, (...) um sistema que não é movido pelos imperativos da maximização dos lucros, da acumulação e do chamado “crescimento”, com seu desperdício e sua degradação – material, humana e ecológica-, um sistema cujos valores e impulsos relativos não são limitados pelas noções restritivas do progresso tecnológico. 115 A democracia é um caminho para a verdadeira liberdade. Nasce para combater sistemas absolutistas. Da forma liberal evolui para socialista, e, quando madura, definha. A democracia tem uma enorme importância na luta da classe operária por sua emancipação. Mas a democracia não é um limite que não possa ser ultrapassado, e sim uma etapa no caminho que vai do feudalismo ao capitalismo e do capitalismo ao comunismo. 116 A democracia socialista é a primeira fase, ou fase inferior, segundo Marx, da sociedade comunista. É o período de transição para o comunismo. Segundo Lênin, “só o comunismo está em condições de realizar uma democracia realmente perfeita, e, quanto mais perfeita for, mais depressa se tornará supérflua e por si mesma se eliminará.” 117. Na primeira fase da sociedade comunista ainda subsiste o “direito burguês”, onde os membros da sociedade recebem conforme o que produzem, e não de acordo com o que necessitam. Apesar da obrigatoriedade do trabalho para obter o sustento, não existe uma distribuição baseada na produção individual. É preservada a igualdade de trabalho e igualdade de repartição. E o Estado nesse momento garante esse “direito burguês”, inevitável econômica e politicamente, segundo Marx, numa sociedade recémsaída do capitalismo. Em sua expressão superior, ou seja, como governo das maiorias, a democracia supõe o socialismo, na qualidade de modo de organização social que, por se basear na propriedade coletiva dos meios de produção, assegura a 115 WOOD, 2003, p. 126. LENIN, 2007, p. 117. 117 LENIN, 2007, p. 107 - 108. 116 56 igualdade política à massa de produtores – ainda que, como destacou Marx, não lhes garanta, ainda, a igualdade econômica. Outro elemento: a democracia plena não somente tem o socialismo como premissa, mas conduz a ele. Isso só não ocorreria se fosse possível conceber uma maioria governando para o benefício da minoria, ou seja, contra si mesma. 118 Socialismo não significa necessariamente uma democracia, por exemplo, em regimes socialistas ditatoriais. Além disso, sendo o socialismo a ditadura do proletariado, ocorre a imposição de uma classe pela outra. A democracia plena é atingida somente quando não existe mais opressão de uns sobre os outros, eliminando assim a sociedade de classes. Mas, para que isso aconteça, primeiramente é preciso se fazer uma inversão de domínio, a maioria precisa tomar o poder e dominar a minoria, para depois evoluir para a eliminação das classes sociais, e consequentemente para o fim da dominação de uns sobre os outros. 118 MARINI, 2005, p. 207 - 208. 57 5. CARACTERIZAÇÃO DO SISTEMA POLÍTICO CUBANO Rousseau não acreditava na possibilidade de existência de um governo verdadeiramente democrático, por considerar “contra a ordem natural que o grande número governe e o pequeno seja governado”. 119 Cuba se aproxima dos requisitos necessários a essa tal democracia intangível, por ele descrita: Aliás, quantas coisas difíceis de reunir não supõe esse governo! Primeiramente um Estado muito pequeno, onde o povo possa ser reunido facilmente e onde cada cidadão possa conhecer os outros facilmente, em segundo lugar, uma grande simplicidade de costumes que evite a acumulação de questões e as discussões espinhosas; ainda, muita igualdade nas posições e nas fortunas, sem o que a igualdade não poderia subsistir durante muito tempo nos direitos e na autoridade, finalmente, nenhum ou pouco luxo, pois o luxo é o efeito das riquezas ou as torna necessárias, corrompe, ao mesmo tempo, o rico e o pobre, um pela posse, outro pela cobiça: vende a pátria à lassidão, à vaidade, subtrai do Estado todos os cidadãos para subjugá-los uns aos outros, e todos à opinião. 120 Através dos órgãos institucionais a continuidade da revolução e, consequentemente, do poder popular, é garantida. É discutida e criada uma nova constituição proclamada no dia 24 de fevereiro de 1976, a qual: (...) preceitua que Cuba é “um Estado socialista de operários e camponeses e demais trabalhadores manuais e intelectuais” (art. 1), no qual “todo o poder pertence ao povo trabalhador que exerce por meio das assembléias po Poder Popular e demais orgãos do Estado que derivam dela, ou então diretamente” (art. 4). O cap. VII da constituição (“Os órgãos supremos do poder popular”), em seu art. 67, estabelece: “A Assembléia Nacional do Poder Popular é o órgão supremo do poder do Estado. Representa e expressa a vontade soberana de todo o povo trabalhador”. O único órgão com potestade constituinte e legislativa do país; nele se insere e dele propana, por sua vez, o poder executivo. 121 O centralismo não possibilita a liberdade de discussão. E as instituições que auxiliaram a revolução, ao serem criadas, exigiram certa centralização. Portanto, posteriormente foi necessário superar esse centralismo. Para isso, em 1976 houve uma reorganização territorial, com o aumento do número de províncias, de 6 passam para 14, a eliminação do nível regional da administração criando nos municípios unidades de 119 ROUSSEAU, 1981, p. 76. ROUSSEAU, 1981, p. 77. 121 FERNANDES, 2007, p. 288. 120 58 produção e serviços e, dessa forma, colocando o cidadão comum ativamente na participação política. Dessa forma se criou em Cuba um processo de descentralização política com o objetivo de construir uma relação dialética entre a população e o Estado: a população obteve poder sobre o Estado e o Estado recebeu a população como alicerce e motor de sua nova estrutura. Foram estabelecidas Assembleias de três níveis: municipal, provincial e nacional, nas quais são eleitos os delegados – municipais e provinciais -, e os deputados. Esses cargos que tem por objetivo promover a discussão junto à comunidade das demandas da população. 122 No quadro abaixo está demonstrada a estrutura das assembleias. 123 ASSEMBLÉIA NACIONAL Presidente Conselho de Estado Conselho de Ministros ASSEMBLÉIAS PROVINCIAIS Comitê Executivo ASSEMBLÉIAS MUNICIPAIS Comitê Executivo ↑ MINISTÉRIOS NACIONAIS, AGÊNCIAS E INSTITUTOS ↓ DEPARTAMENTOS ADMINISTRATIVOS ↓ DEPARTAMENTOS ADMINISTRATIVOS ↓ POVO Cada município cubano tem uma Assembleia municipal, onde são eleitos os delegados municipais, que tem como função servir às demandas da cidade que representa. Os candidatos surgem nas organizações de bairro, onde a própria população indica quem deve concorrer, não sendo permitida a autocandidatura. Nas assembleias provinciais, os delegados são indicados dentre os delegados municipais. Tanto as eleições dos delegados municipais como provinciais são votadas diretamente pelo povo. A Assembleia Nacional é composta por deputados, indicados por organizações, como a Federação das Mulheres, o Movimento Estudantil. Essas organizações indicam os candidatos que irão para votação popular. 122 Colaboração do deputado cubano Antonio Becali Garrido nas informações a respeito do sistema político de Cuba, através de uma entrevista informal realizada por mim, aproveitando sua visita a Florianópolis em função das Jornadas Bolivarianas, em abril de 2013. 123 Dados: FERNANDES, 2007, p. 297. 59 A campanha eleitoral acontece de forma homogênea para todos os candidatos. Cada candidato recebe o mesmo espaço para se apresentar, e tem seu currículo divulgado em locais públicos, como em murais de farmácias e hospitais, onde consta uma foto, suas informações e propostas. Não existe campanha política da forma que conhecemos nas democracias capitalistas, com panfletagem, carro de som, apelo visual e sonoro. O candidato não precisa de patrocinadores para concorrer em igualdade com os demais, - isso nem existe em Cuba - o que reduz a chance de existir candidatos que tenham o interesse de utilizar o poder público em benefício próprio. O presidente de Cuba é eleito pelos deputados, não passando por votação popular. Como todo o processo eleitoral é construído a partir de uma base muito descentralizada e popular, a população é representada de forma bastante direta, dentro dos limites de uma democracia representativa, sendo, dessa forma, representada pelos deputados que participam em nome do povo nas eleições presidenciais. A atividade política não é remunerada em Cuba. Os delegados e deputados eleitos não recebem salário para desempenhar as funções políticas, e continuam em suas atividades profissionais normalmente. Quando necessário, se ausentam do posto de trabalho para se dedicar às atividades relativas ao cargo político. E isso não lhes confere algum benefício além do que recebe qualquer outro trabalhador. Apenas o status moral de desempenhar tarefas tão importantes para o país. E estão sujeitos a perder o cargo caso seja constatado que não estejam cumprindo adequadamente com as suas obrigações. Havendo afastamento, ocorrem novas eleições. A revolução cubana articula a democracia estabelecendo uma descentralização do poder, criando um sistema político que possibilita a participação popular com maior efetividade. Em Cuba existe apenas um partido político – o Partido Comunista de Cuba - e isso é motivo de crítica, colocando em questão a própria democracia. No entanto há eleições, as pessoas são indicadas pela própria população a serem candidatas. Não funciona como na democracia burguesa onde o candidato precisa de dinheiro para fazer sua campanha, e depois de eleito se sente a vontade para governar para quem o financiou. Eliminando os partidos, se elimina disputas e interesses partidários. O partido único existe porque não há necessidade de outros. É uma questão delicada para uma democracia liberal. Entretanto, no socialismo, da forma que foi instituído em Cuba, o partido único não trás prejuízos à democracia cubana. Com socialismo está estabelecido, a disputa partidária faria sentido apenas para beneficiar um grupo em detrimento do outro. O objetivo de todos é o mesmo, o bem da 60 população, e não a disputa de poder que tem por motivação privilegiar uma parcela. Os partidos políticos disputam o poder para atender cada um o seu próprio interesse, ou de um grupo. Não é, então, impossível imaginar que aquele que escolhe a profissão de político rapidamente aceite as propostas de Fausto e “venda a sua alma ao demônio” da fetichização usando o exercício do poder para seus próprios fins, pessoais ou de grupo. Assim, nasce a política como “profissão” e os partidos políticos como “maquinarias eleitorais” que impões seus candidatos burocratizados em benefício do próprio partido. É a fetichização do poder mediante a corrupção da subjetividade do político. 124 Todos tendo o mesmo objetivo, não há essa necessidade. Nesse caso o partido único protege o país do oportunismo grupos que possam surgir querendo sanar interesses individuais através da política, em detrimento do interesse geral da população. Dussel diz que os governantes são “pilotos eleitos” e não o “corpo administrativo ou burocrático da sociedade política”. Cabe aos governantes alterar as estruturas políticas caso convenha a população, e não devem se limitar a fazer a manutenção do sistema. Mandar obedecendo de forma positiva, e não exercer o poder fetichizado, onde os responsáveis por governar seguem a lógica de mandar mandando. “(...) não atua desde si como fonte de soberania e autoridade última, mas sim como delegado e quanto a seus objetivos deverá trabalhar sempre em favor da comunidade, escutando suas exigências e reclamações.” 125. A Revolução Cubana se mostra como uma esperança, “revela a natureza íntima da revolução em avanço, que tem de desagregar e de destruir toda a ordem preexistente até ao fundo e até ao fim, para lançar as bases da formação e da evolução históricas de um novo padrão de civilização.” 126. O fermento político revolucionário procedia da consciência social que os proletários adquirissem, coletivamente, de que tinham de desenvolver-se como classe independente; enfrentar, reduzir e abater a supremacia burguesa; e conquistar o poder da burguesia. Essa vinha a ser a ótica comunista do socialismo. Ora, é óbvio que não se pode transferir para a periferia do mundo capitalista. Sem mais esta nem aquela, semelhante visão articulada da luta de classes. Ela é o produto de uma longa evolução social. 127 124 DUSSEL, 2007, p. 38. DUSSEL, 2007, p. 39. 126 FERNANDES, 1981, p. 104. 127 FERNANDES, 1981, p. 105. 125 61 Florestan observa, “Para ocorrer, a liberação nacional tem de tornar-se antiburguesa, antiimperialista e anticapitalista. A alternativa para a violência das minorias estaria na contra-violência revolucionária, em um socialismo revolucionário “made in Latin America”.” 128 Como combater a violência sofrida senão por um meio igualmente violento? A exemplo da revolução burguesa, a guerrilha foi uma forma dolorosa de se fazer a revolução socialista, porém necessária. Os excluídos não devem ser incluídos (seria como introduzir o Outro no Mesmo) no antigo sistema, mas devem participar como iguais em um novo momento institucional (a nova ordem política). Não se luta pela inclusão, mas sim pela transformação – contra Iris Young, J. Habermas e tantos outros que falam de “inclusão”. 129 Segundo Che Guevara 130, a guerrilha é viável somente quando as possibilidades de luta pacífica são esgotadas, ou seja, quando o país está sob um governo ditador. Antes disso não se encontra apoio popular suficiente que sustente a guerrilha. O conformismo das pessoas é um grande inimigo da guerrilha. Além de ser um instrumento de luta de quem não tem poder, de quem está a mercê de um Estado que governa para uma minoria, que não tem de fato o direito a seu favor. Ou seja, uma luta difícil, especialmente na parte que consiste em conscientizar o povo de não admitir tamanha exploração. Cuba retirou a burguesia do centro de decisões e buscou uma alternativa anticapitalista. Por isso a revolução aconteceu. E o que caracteriza uma revolução é o exercício de se pensar novas instituições e sistemas econômicos que permitam benefícios ao ser humano, e não à reprodução do capital. 128 FERNANDES, 1981, p. 55. DUSSEL, 2007, p. 110. 130 GUEVARA, 1980. 129 62 6. CONCLUSÕES A transformação promovida pela Revolução Cubana por si só responde a pergunta: trata-se de uma democracia? Cuba lidera a lista de países com desenvolvimento elevado 131 no Relatório de Desenvolvimento Humano. Na classificação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) 2012, publicada no mesmo relatório, Cuba está na 59ª posição. Entre os países latino-americanos fica atrás apenas da Argentina (45º lugar). Contudo, mais adequada seria a comparação com outro país caribenho, como o Haiti, por exemplo, que está no 161º lugar. Talvez fosse a situação de Cuba, caso não houvesse uma revolução. Apesar da política de hostilidade estadunidense, que é estendido a outros países, e de se tratar de um pequeno país, o governo consegue manter as premissas revolucionárias, especialmente importante no que diz respeito à soberania nacional. Sobretudo, os cubanos têm acesso garantido à educação, saúde, alimentação básica e moradia. O mérito é também da população, que colabora, e que graças à educação, hoje em dia tem plena consciência coletiva e condições de compreender a importância de manter o atual sistema político, porém sempre buscando melhorias. A revolução foi uma construção coletiva, nascida da necessidade de mudança frente ao sofrimento da população, deixada de lado no favorecimento de interesses externos e da burguesia. Conheci Cuba em outubro de 2012. Os cubanos vivem muito bem. De forma simples, é claro, mas não falta nada. São educados, cultos, apreciam literatura. A maioria com quem conversei fala mais de um idioma – diferente do que vejo no Brasil, por exemplo, onde conhecimento é privilégio da elite. Aparentam ser muito felizes. Compreendem muito bem a o que significa a revolução e o sistema político em que vivem. Comparando com a democracia em que vivemos no Brasil, a diferença é enorme, no nível de esclarecimento da população e no acesso que tem a cultura e às necessidades básicas. A solidariedade chega a gerar estranheza. Assim como a falta de publicidade pela cidade, que livra o ambiente daquela poluição visual. A televisão também gera 131 Dados: Relatório de Desenvolvimento Humano 2013. O agrupamento dos países é feito em quatro níveis de desenvolvimento humano: muito elevado, elevado, médio e baixo. Essa lista é baseada no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o Rendimento Bruto Nacional (RBN), onde Cuba figura na 44ª posição. 63 muita estranheza a quem não está acostumado. São transmitidos programas educativos, os telejornais fazem debates profundos e de qualidade. Escolas de idiomas, balé, universidades, hospitais, tudo é público. Na farmácia os remédios custam centavos. O transporte público é gratuito, apesar de que quem quiser pode pagar, para colaborar. Existe o que melhorar, certamente, mas é impressionante como a população é bem tratada e compreende o que se passa com eles e com outros países. São muito bem informados. O que é democracia? No capitalismo, todos esses serviços não são plenamente garantidos pela democracia. O direito ao lucro e a transformação da educação, da saúde e de outras necessidades básicas em mercadoria são garantidos e tratados como prioridades. Não compreendo uma democracia que coloca o direito a propriedade privada na frente do direito à moradia, à saúde, à educação, à vida. O que acontece em Cuba me parece muito mais democrático. Contudo, a ciência política liberal considera Cuba uma ditadura ou um regime “não-democrático” mesmo garantindo uma quantidade imensa de serviços que nenhum país latino-americano pode assemelhar-se. Em oposição, países potencialmente muito ricos, como o Brasil, não somente não possui cobertura universal em vários serviços públicos como quando existente, exibem péssima qualidade. A saúde, a educação, o transporte coletivo são de qualidade baixa, mas os cientistas políticos liberais consideram o país uma democracia. Nossa crítica supera o conceito liberal de democracia e traz para o debate e reflexão um esquecido tema da democracia socialista, ou seja, o exercício da soberania nacional, o atendimento das necessidades básicas e a prática de um sistema político em que todos possam influenciar diretamente o funcionamento da democracia. 64 REFERÊNCIAS BAMBIRRA, Vania. A revolução cubana – uma reinterpretação. Coimbra: Centelha Editora, 1975. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. CASTRO, Fidel. A história me absolverá. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1979. DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. São Paulo: Expressão Popular, 2007. FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2007. FERNANDES, Florestan. Poder e contrapoder na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM Editores, 2010. GUEVARA, Che. Textos econômicos. 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Cuba sem bloqueio. São Paulo: Radical Livros, 2012. SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e a revolução burguesa no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990. WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. 66 ANEXO A Emenda Platt Considerando que o Congresso dos Estados Unidos da América, por uma lei aprovada 02 de março de 1901, dispunha: Desde ainda, que, em cumprimento da declaração contida na resolução conjunta aprovada em 20 de abril de 1898, intitulado "Para o reconhecimento da independência do povo de Cuba, exigindo que o Governo da Espanha abandone a sua autoridade e governo na ilha de Cuba, e retire da sua terra e águas cubanas as forças navais, e direcionando o Presidente dos Estados Unidos de usar a terra e as forças navais dos Estados Unidos para realizar essas resoluções em vigor ", o Presidente fica autorizado a "deixar o governo e o controle da ilha de Cuba para seu povo", tão logo um governo deve ter sido estabelecido na referida ilha sob uma constituição que, seja como parte, ou em uma portaria agregada, deverá definir o futuro das relações dos Estados Unidos com Cuba, substancialmente como se segue: "I. Que o governo de Cuba nunca entre em qualquer tratado ou outro compacto com qualquer poder ou poderes que irá prejudicar ou tendam a prejudicar a independência de Cuba, nem de qualquer forma autorizar ou permitir que qualquer potência ou potências estrangeiras obter por colonização ou para fins militares ou naval ou de outra forma, apresentação ou controle sobre qualquer parte da referida ilha. " "II. Este governo não assumirá ou contrairá qualquer dívida pública para pagamento de juros e amortização quando, após o custeio das despesas correntes do Governo, as receitas ordinárias sejam insuficientes para o cumprimento de tal dívida. " "III. Que o governo de Cuba consente que os Estados Unidos podem exercer o direito de intervir para a preservação da independência cubana, a manutenção de um governo adequado para a proteção da vida, propriedade e liberdade individual, e para o 67 cumprimento das obrigações com relação a Cuba, imposta aos Estados Unidos pelo Tratado de Paris, e que devem agora a ser assumida e realizada pelo governo de Cuba. " "IV. Que todos os atos dos Estados Unidos em Cuba durante a sua mesma ocupação militar sejam ratificados e validados, e que todos os direitos legais adquiridos no presente âmbito sejam mantidos e protegidos." "V. Que o governo de Cuba executará, e na medida do necessário estenderá os planos já concebido ou em outros planos a serem mutuamente acordados, para o saneamento das cidades da ilha, a fim de que a recorrência da epidemia e doenças infecciosas possam ser evitadas, garantindo assim total proteção às pessoas e ao comércio de Cuba, bem como para o comércio dos portos do sul dos Estados Unidos e as pessoas que residem nele. " "VI. A Ilha de Pinos fica omitida dos limites de Cuba propostos pela Constituição, deixando para um futuro tratado a fixação de sua adesão." "VII. Para permitir que os Estados Unidos mantenha a independência de Cuba, e para proteger o povo cubano, bem como para sua própria defesa, o governo de Cuba venderá e arrendará aos Estados as terras necessárias para estabelecer nelas estações carvoeiras ou navais em certos pontos especificados a serem acordados com o presidente dos Estados Unidos ". "VIII. O governo de Cuba inserirá as disposições anteriores em um Tratado permanente com os Estados Unidos." Considerando que a Convenção Constituinte de Cuba, em 12 de junho de 1901, adotou uma resolução agregada à Constituição da República de Cuba, que foi aprovada em 21 de fevereiro de 1901, um apêndice que contém palavra por palavra e letra por letra os oito artigos enumerados da Lei Congresso dos Estados Unidos acima mencionada; E que, com o estabelecimento do governo independente e soberano da República de Cuba, nos termos da Constituição promulgada em 20 de maio de 1902, que abraçou a condição anterior, e pela retirada do Governo dos Estados Unidos como uma 68 intervenção poder, na mesma data, tornou-se necessário incorporar as disposições acima citadas em um Tratado Permanente entre os Estados Unidos da América e a República de Cuba; Os Estados Unidos da América ea República de Cuba, sendo desejosos de realizar as condições anteriores, têm para o efeito designado como plenipotenciários para concluir um tratado para esse fim. O Presidente dos Estados Unidos da América, Herbert G. Squires, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário em Havana, E o Presidente da República de Cuba, Carlos de Zaldo y Beurmann, Secretário de Estado e Justiça, - que depois de comunicar uns com os outros os seus plenos poderes reconhecidos em boa e devida forma, convieram nos seguintes artigos: ARTIGO I. O Governo de Cuba nunca entrará em qualquer tratado ou pacto com qualquer poder ou poderes que possa prejudicar ou tendam a prejudicar a independência de Cuba, nem de maneira alguma autorizará ou permitirá que qualquer potência estrangeira obtenha poderes para colonização ou para propósitos navais ou militares ou para fins de guerra, ou de outra forma, apresentação ou controle sobre qualquer parte da referida ilha. ARTIGO II. O Governo de Cuba não assumirá ou contrairá qualquer dívida pública para pagamento de juros e principal quando, depois de custear as despesas correntes do Governo, as receitas ordinárias da Ilha de Cuba sejam insuficientes para honrar tal dívida. ARTIGO III. O Governo de Cuba consente que os Estados Unidos possa exercer o direito de intervir para a preservação da independência cubana, a manutenção de um governo adequado para a proteção da vida, propriedade e liberdade individual, e para cumprimento das obrigações com relação a Cuba, imposta aos Estados Unidos pelo Tratado de Paris, e que devem agora ser assumidas e cumpridas pelo Governo de Cuba. 69 ARTIGO IV. Todos os atos realizados pelos Estados Unidos em Cuba durante a sua ocupação destes militares serão ratificados e validados, e todos os direitos legais adquiridos no seu âmbito serão mantidos e protegidos. ARTIGO V. O Governo de Cuba executará, e, tanto quanto necessário, ampliará os planos já elaborados, ou outros planos a serem mutuamente acordados, para o saneamento das cidades da ilha, a fim de que a recorrência de epidemias e doenças infecciosas possam ser evitadas, assegurando proteção às pessoas e ao comércio de Cuba, bem como ao comércio dos portos do sul dos Estados Unidos e as pessoas que residem nele. ARTIGO VI. A Ilha de Pinos fica omitida dos limites de Cuba estabelecidos pela Constituição, deixando para um futuro tratado a fixação de sua adesão. ARTIGO VII. Para pôr em condições os Estados Unidos de manter a independência de Cuba, e para proteger o povo da mesma, bem como para sua própria defesa, o Governo de Cuba venderá ou arrendará aos Estados Unidos as terras necessárias para estabelecer carvoeiras ou estações navais em determinados pontos, a ser acordado com o Presidente dos Estados Unidos. ARTIGO VIII. O presente Tratado deverá ser ratificada por cada uma das partes, em conformidade com as respectivas Constituições dos dois países, e as ratificações serão trocadas na cidade de Washington no prazo de oito meses a partir desta data. Em testemunho do que, nós, os respectivos plenipotenciários, assinam o mesmo em 70 duplicado, em Inglês e Espanhol, em Havana, Cuba, em vinte e dois de maio, no ano de mil novecentos e três. De acordo com o Protocolo adicional, assinado em Washington em 20 de janeiro de 1904, aprovado pelo Senado da República de Cuba em 8 de junho do mesmo ano, foram trocadas as ratificações nesta cidade de Washington no primeiro dia de julho de 1904. H.G. Squiers [SEAL.] CARLOS DE Zaldo [SEAL.]