Bem-vindo ao deserto do real!

Transcrição

Bem-vindo ao deserto do real!
Que constelação ideológica mantém essa “busca da felicidade”? A bem-conhecida e bemsucedida série The Land Before Time [Em busca do vale encantado], produzida por Steven
Spielberg, oferece o que talvez seja a mais clara articulação da ideologia multiculturalista
liberal hegemônica. A mesma mensagem é repetida vezes sem conta: somos todos diferentes
– alguns de nós são grandes, outros são pequenos; alguns sabem lutar outros sabem como
fugir –, mas precisamos aprender a viver com essas diferenças, entendê-las como algo que
torna mais ricas as nossas vidas (deve-se lembrar os ecos dessa atitude nos recentes relatórios
sobre o tratamento dado aos prisioneiros da Al-Qaeda em Guantánamo: recebem comida
adequada às suas necessidades culturais e religiosas específicas, têm permissão para rezar...).
Externamente parecemos ser todos diferentes, mas por dentro somos todos iguais – indivíduos
assustados, perdidos no mundo, carentes de ajuda do próximo. Numa das canções, os grandes
dinossauros malvados explicam que quem é grande pode desobedecer a todas as regras,
comportar-se mal, pisar nos pequenos e indefesos:
Quem é grande/ tudo pode/ Os pequenos em volta/ Olham para cima/ e
você para baixo.../ As coisas são melhores para quem é grande.../ Todas
as regras feitas pelos grandes não se aplicam a você.
A resposta dos pequenos oprimidos na canção seguinte não é brigar com os grandes,
mas entender que, por trás daquele exterior violento, eles não são diferentes de nós –
secretamente temerosos, como sua própria quota de problemas:
Têm sentimentos como você/ Também têm problemas./ A gente pensa que
porque são grandes/ Eles não têm, mas têm./ São mais barulhentos e
mais fortes/ e agitam mais,/ mas lá no fundo/ acho que são como nós.
A conclusão óbvia é o elogio das diferenças:
Precisamos de todos/ Para fazer um mundo/ Dos baixos e dos altos/
Pequenos e grandes/ Para encher um lindo planeta/ de amor e risos./
Fazê-lo bom para morar/ Amanhã e depois de amanhã./ Precisamos de
todos/ Sem dúvida/ tolos e sábios de todos os tamanhos/ Para fazer tudo
o que tem de ser feito/ Para dar alegria à nossa vida.
É natural que a mensagem final dos filmes seja a da sabedoria pagã: a vida é um ciclo
eterno em que as gerações mais velhas são substituídas pelas mais novas, em que tudo que
aparece tem de desaparecer mais cedo ou mais tarde... O problema, evidentemente, é: até onde
devemos chegar? São necessários todos os tipos – isso quer dizer os bons e os brutais, os ricos
e os pobres, vítimas e torturadores? A referência ao reino dos dinossauros é especialmente
ambígua neste caso, dado o caráter brutal de espécies animais que se devoram umas às outras
– seria essa também uma das coisas a serem “feitas para dar alegria à nossa vida”? A própria
inconsistência interna dessa divisão paradisíaca da “terra antes do tempo” demonstra como a
mensagem da colaboração na diferença é ideologia em alto estado de pureza – por quê?
Exatamente porque toda noção de antagonismo “vertical” que atravesse o corpo social é
rigidamente censurada, substituída por e/ou transformada em uma noção inteiramente distinta
de diferenças “horizontais” com as quais temos de aprender a viver, porque cada uma
complementa as outras. A visão ontológica subjacente aqui é a da pluralidade irredutível de
constelações particulares, cada uma delas múltipla e deslocada em si mesma, que nunca será
subsumida em nenhum contingente universal neutro. No momento em que nos encontrarmos
nesse plano, Hollywood encontra a crítica pós-colonial mais radical da universalidade
ideológica: o problema central é visto como o da universalidade impossível. Em vez de impor
nossa noção de universalidade (direitos humanos universais, etc.) a universalidade – o espaço
compartilhado de compreensão entre culturas diferentes – deve ser entendida como uma tarefa
sem fim de tradução, uma constante reorganização da posição particular de cada um. Seria
necessário acrescentar que essa noção de universalidade como um trabalho infinito de
tradução nada tem a ver com os momentos mágicos em que a universalidade efetiva faz sua
violenta aparição na forma de um ato ético-político destruidor? A verdadeira universalidade
não é o nunca conquistado espaço neutro da tradução de uma determinada cultura em outra,
mas, pelo contrário, a violenta experiência de como, através do divisor cultural, temos o
mesmo antagonismo em comum. (p. 83-85)
Bem-vindo ao deserto do real!
Slavoj Zizek
Boitempo Editorial
191 p.
R$ 39,00
À venda na Livraria Subversos
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