A Arteterapia Cuidando do Cuidador: O resgate da criança interior

Transcrição

A Arteterapia Cuidando do Cuidador: O resgate da criança interior
Unp – Universidade Potiguar
Alquimy Art
Pró-Reitoria de Pós-Graduação Latu Senso
Curso de Especialização em Arteterapia
A ARTETERAPIA CUIDANDO DO CUIDADOR: O RESGATE DA
CRIANÇA INTERIOR
Regina Sandra Rodrigues de Melo
Goiânia
2004
REGINA SANDRA RODRIGUES DE MELO
A ARTETERAPIA CUIDANDO DO CUIDADOR: O RESGATE DA
CRIANÇA INTERIOR
Monografia apresentada à Universidade Potiguar,
RN e ao Alquimy Art, de São Paulo como parte
dos requisitos para a obtenção do título de
Especialista em Arte Terapia.
Orientadora: Flora Elisa Fussi.
Goiânia
2004
MELO, Regina Sandra Rodriges de
A Arteterapia Cuidando do Cuidador: O resgate da criança interior
Regina Sandra Rodrigues de Melo – Goiânia; [s.n], 2004 – 48 p.
Monografia (Especialização em Arteterapia)
- Universidade Potiguar: Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação Latu-Sensu.
Alquimy Art.
1. Arteterapia
GO/BGSF
2. Terapia
cdv.51
Unp – Universidade Potiguar – RN
Alquimy Art
Pró –Reitoria de Pós-Graduação Latu Senso
Curso de especialização em Arteterapia
A ARTETERAPIA CUIDANDO DO CUIDADOR:
O RESGATE DA CRIANÇA INTERIOR
Monografia apresentada pela aluna Regina Sandra Rodrigues de Melo ao curso de
Especialização em Arteterapia
em ___/___/____ e recebendo a avaliação da Banca
Examinadora constituída pelos professores
___________________________________
Prof. Dra. Cristina Dias Alessandrinni,
Coordenadora da Especialização
______________________________
Prof. Flora Elisa Carvalho Fussi,
Supervisora
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente à Deus por ter me dado tantas oportunidades de
crescimento. Oportunidade de estudar e poder exercer essa profissão tão bonita e importante,
apesar de não ser ainda valorizada. Agradeço ainda por ter colocado em meu caminho a
arteterapia.
Agradeço aos meus pais por terem me dado a vida e tudo o que puderam para que
eu me tornasse a pessoa que sou.
Agradeço ao meu esposo, companheiro e cúmplice fiel de todos os momentos,
pela força, incentivo e pelo seu amor que me faz crescer a cada dia.
Às minhas filhas Isabella e Isadora por serem a luz maior da minha existência,
flores que alegram o jardim do meu viver.
Aos colegas do curso pelos momentos de alegria e crescimento compartilhados.
Aos professores por terem compartilhado conosco um pouco do saber que
possuem, em especial à Flora pela dedicação e carinho que sempre nos dedicou.
Aos clientes do estágio por terem me permitido fazer parte de suas vidas.
A Nefroclínica por terem me possibilitado o espaço para a prática do estágio.
DEDICATÓRIA
Ao meu pai Belchior Rodrigues de Paula (in memoriam) sempre
presente em meu coração. Onde estiver sei que se alegrará com
mais esta conquista.
SUMÁRIO
RESUMO ...........................................................................................8
ABSTRACT .......................................................................................9
INTRODUÇÃO ................................................................................11
1 – SER TERAPEUTA .....................................................................14
1.1 – Ser Arteterapeuta .......................................................................18
1.2 – Primeiro encontro: o barro .........................................................20
1.3 – Outros encontros ........................................................................22
1.4 – Fazer máscaras (ou arrancar máscaras?).....................................23
2 – O ESTÁGIO ................................................................................27
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................42
BIBLIOGRAFIA................................................................................47
RESUMO
A presente monografia conta minha trajetória no curso de especialização em
Arteterapia. Traz a posição de vários autores de diferentes abordagens que enfatizam a
importância do terapeuta passar pelo processo de terapia para que tenha condições favoráveis
de auxiliar no crescimento de seus clientes. Dessa forma, as vivências, workshops, o estágio,
as supervisões, as leituras , aliados ao processo psicoterapeutico individual realizados no
decorrer do curso de especialização em arteterapia, se constituíram num instrumento
potencializador de crescimento pessoal e profissional. Possibilitando o resgate da minha
criança interior, ou de atitudes que são próprias da criança e que são necessárias ao
arteterapeuta, como a espontaneidade e autenticidade. Assim como no mito de Quíron, o
terapeuta ao mesmo tempo que favorece a cura de seus clientes, mobiliza recursos curativos
internos em si mesmo. O que faz desta uma profissão muito importante e que exige muito do
profissional, estudo, terapia, supervisão e dedicação permanentes.
ABSTRACT
This monograph describes the trajectory of my specialization studies in Art
Therapy. It shows the perspective of several authors, which hold different approaches,
emphasizing the importance of the therapist going through the therapy process, thus, having
proper conditions to assist in the growth of its patients.
This way, life experiences, workshops, internships, supervisions, and readings
complied to the individual psychotherapeutic process that were made along the specialization
studies in Art Therapy, had became a potential instrument of personal and professional
growth.
Thus, making possible the inner child rescue or attitudes that are proper of the
child and that are necessary to the Art Therapist, such as spontaneity and authenticity. Like in
the myth of Quíron, the therapist that at the same time favors the cure of his patients also
mobilizes internal cures in himself. Hence, making of this activity an extremely important
profession, and demanding from the professional constant study, therapy, supervision, and
devotion.
INTRODUÇÃO
A Outra Língua
Três dias após o meu nascimento, estava em meu berço forrado
de seda olhando com um desalento incrível para o novo mundo
à minha volta quando minha mãe veio conversar com a ama de
leite, perguntando:
- Como está o meu filho?
E ela respondeu:
- Está muito bem, senhora. Alimentei-o três vezes e nunca vi
uma criança tão alegre, apesar de tão pequena.
Fiquei indignado e gritei:
- Não é verdade mãe! Minha cama é dura, o leite que mamei é
amargo em minha boca, o cheiro do seio é desagradável às
minhas narinas e sou a mais infeliz das criaturas.
Mas minha mãe não entendeu, nem a ama, pois a língua que eu
falava era aquela do mundo de onde eu tinha vindo.
No vigésimo primeiro dia de minha vida, quando eu estava
sendo batizado, o padre disse à minha mãe:
- Deve estar muito feliz, senhora, por seu filho ter nascido
cristão.
Eu fiquei surpreso e disse ao padre:
- Então sua mãe lá no Céu, deve estar infeliz, pois o senhor
não nasceu cristão.
Mas o padre também não entendeu a minha língua.
Depois de sete luas, um adivinho olhou para mim certo dia e
disse à minha mãe:
- Seu filho vai ser um estadista e grande líder de homens.
E eu gritei:
- Essa profecia é falsa, pois vou ser músico, e nada além de
músico eu serei.
Mas nem com essa idade minha língua foi compreendida, e
grande foi a minha surpresa.
Mas, depois de trinta e três anos, ao longo dos quais minha
mãe, a ama de leite e o padre tinham todos morrido (que o
espírito deles esteja à sombra de Deus), o adivinho ainda está
vivo. Ontem me encontrei com ele perto da sombra do templo; e,
enquanto conversávamos, ele disse:
- Eu sempre soube que você se tornaria um grande músico.
Previ o seu futuro quando você ainda era um bebê.
E eu acreditei nele, pois eu também havia esquecido a língua
daquele outro mundo.
Gibran Khalil Gibran (2003).
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Uma criança saudável do ponto de vista psicológico é um ser autêntico,
espontâneo, alegre, diz o que sente sem se preocupar com o que o outro vai pensar, confia nas
pessoas e sempre acredita que o bem vence o mal, resolve até mesmo os problemas mais
difíceis com simplicidade e de forma natural.
No entanto, com o passar dos anos, em nome da socialização, muitas vezes esta
criança vai deixando para trás estas qualidades como a autenticidade e espontaneidade e vai se
escondendo por trás de uma máscara, e às vezes se torna um adulto rígido e que às vezes
carrega em si grandes marcas de situações difíceis pelas quais passou no decorrer de seu
desenvolvimento e que não foram elaboradas.
Neste poema Khalil Gibran se refere a esse processo de deixar de ser criança,
através do esquecimento da linguagem do mundo de onde veio, ou seja a perda do contato
com a essência, utilizando assim uma linguagem superficial, não-autêntica a qual é entendida
e compartilhada pelos adultos.
O que acontece com este adulto se ele resolve ser um terapeuta, um ser cujo
objeto de estudo e instrumento de trabalho é outro ser humano que também foi machucado e
que também perdeu em grande parte essa espontaneidade, e que o procura para ajudá-lo a
reencontrar o brilho perdido, para curar as feridas ou amenizar suas dores?
Segundo o mito de Quíron, o terapeuta é aquele que traz em si uma grande
ferida e não conseguindo encontrar um antídoto para sua dor dedica sua vida a ajudar a curar a
ferida do outro.
Pretendemos neste trabalho mostrar como a arteterapia pode contribuir para o
resgate dessas atitudes que são inerentes à criança (espontaneidade, autenticidade, alegria de
viver...) para que o terapeuta possa estar em condições de realizar este trabalho que muitas
vezes consiste em ouvir o outro e acolher a sua dor, fazendo desse exercício uma fonte de
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satisfação e crescimento pessoal ao invés de um espelho onde ele olha para o outro e enxerga
sua própria dor.
A arteterapia sendo
uma oportunidade de nos expressarmos sem nenhuma
expectativa a ser cumprida, revelou-se no decorrer dos dois anos de duração do curso de
especialização em arteterapia, um instrumento facilitador do encontro e diálogo entre a
psicóloga e futura arteterapeuta com sua criança, e ao final possibilitou o resgate dessa criança
interior.
De tantos conhecimentos obtidos durante a graduação na faculdade de psicologia,
um dos mais importantes ou o mais importante de todos eles foi aquele trazido por Carl
Rogers, que é a tendência realizadora. O autor postula que “em cada organismo, não importa
em que nível, há um fluxo subjacente de movimento em direção à realização construtiva das
possibilidades que lhe são inerentes. Há também nos seres humanos uma tendência natural a
um desenvolvimento mais completo e mais complexo.” (ROGERS, 1987, p. 40).
Este conhecimento deu um novo rumo à minha vida e me fez perceber que eu
realmente estava no lugar certo, pois isso veio ao encontro das minhas crenças, de que o ser
humano tem em si naturalmente essa capacidade de evoluir, crescer, crescer infinitamente.
Dessa forma a terapia ou a psicoterapia deixa de ser apenas aquele momento de
50 minutos que passamos no consultório, e passa a ser um estado de alma que encontra
sentido até mesmo nas mínimas coisas da vida e faz delas um potencializador desse
crescimento que é inerente à natureza humana.
Para uma pessoa que se reveste deste estado de alma “terapêutico”, dessa atitude
de abertura diante da vida, as coisas mais simples tendem a se tornar mais significativas´.
Acredito que foi a partir desse estado de alma, que o curso de arteterapia tornou-se um potente
instrumento de resgate da criança interior, ou das atitudes desta para a pessoa adulta
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possibilitando ainda, algo que nunca havia sido cogitado por mim: poder trabalhar com
crianças.
Durante a graduação sempre fugi de disciplinas relacionadas a crianças com a
certeza de que não gostaria de atender essa clientela. Parece que eu sentia uma dor muito
grande ao entrar em contato com o sofrimento delas. E no decorrer da especialização em arte
terapia pude ir ao encontro da minha criança, acolhendo-a, reconhecendo suas dores e curando
suas feridas.
Hoje, ao me deparar com uma criança em situação de sofrimento, sinto o desejo
de ajudar, de acolher e isso não me causa sofrimento como antes. Inclusive no meu trabalho
atual sou responsável por atender crianças de 07 a 12 anos, individualmente ou em grupo,
utilizando a arteterapia.
1 - SER TERAPEUTA
Quando o meu estado é ótimo, seja como facilitador de grupo ou como
terapeuta, descubro outra característica. Quando consigo aproximar-me ao
máximo do meu íntimo e intuitivo mim-mesmo, quando de algum modo
entro em contato com o desconhecido em mim, quando me encontro talvez
em um estado ligeiramente alterado de consciência, faça o que faça pareço
possuir propriedades curativas. Em tais circunstâncias, minha simples
presença é liberadora e útil aos demais. Nada posso fazer para forçar esta
experiência, porém, quando consigo relaxar-me e aproximar-me de meu
núcleo transcendental, minha conduta torna-se estranha e impulsiva, sem
justificativa racional, nem vínculo algum com os processos de meu
pensamento. Sem dúvida, este estranho comportamento, de algum modo
singular, acaba sendo correto: é como se meu espírito interno se estendesse
para alcançar o do meu interlocutor. Nossa própria relação transcende e se
integra a algo mais amplo. Nos encontramos então ante a presença de um
profundo crescimento, cura e energia. (ROGERS, 1987 pg. 47).
No presente trabalho pretendemos desenvolver a idéia de que as vivências e
workshops desenvolvidos durante o curso de arteterapia
constituem um importante
instrumento de formação do arteterapeuta. A partir do momento em que lhe possibilita a
oportunidade de vivenciar a técnica e de entrar em contato com seu próprio eu, sua essência,
proporciona o resgate de sua criança interior, ou de atitudes desta que são importantes ou
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fundamentais para o exercício da atividade do arteterapeuta. Ou seja, antes de cuidar do futuro
cliente a arteterapia cuida do arte terapeuta, o cuidador.
A proposta do curso não é fazer desses workshops uma terapia, mas se a pessoa
está inteira na experiência, com certeza esses momentos passam a ser terapêuticos e se tornam
enriquecedores se a pessoa encontra-se em processo terapêutico, o que é uma das sugestões da
coordenação do curso.
Quando se fala da formação do terapeuta, vários autores concordam que a
psicoterapia ou terapia é um ponto fundamental e que todo aquele que deseja ser um bom
terapeuta deverá passar pelo processo.
Grinberg (1975 apud CARDOSO, 1983), aconselha a análise pessoal
periodicamente, pois o terapeuta em suas atividades deve tolerar uma sobrecarga imensa.
Fromm-Reichmann (1975 apud CARDOSO 1983), também enfatiza o trabalho
terapêutico para o conhecimento dos próprios processos pessoais para que possa realizar um
processo satisfatório com seu paciente.
Durante as vivências no curso de arteterapia temos a oportunidade de entrar em
contato com os nossos conflitos, com as nossas dificuldades, com a nossa potencialidade,
enfim com a nossa essência e se estamos em processo terapêutico podemos levar esse material
para ser trabalhado e elaborado de forma adequada, o que constitui para o futuro
arteterapeuta, uma fonte de crescimento pessoal além do conhecimento teórico adquirido.
Guedes, que é Gestalt-terapeuta (apud PORCHAT e BARROS), relata:
... se este não seria o maior benefício que a gente obtém deste tipo de
trabalho; de cultivar este tipo de coisa, da possibilidade exatamente de
aprender a acompanhar a si próprio, as próprias coisas, e resgatar; a
buscar de volta, a remodelar, a remodificar, desenvolvendo essa
entidade ou este modo de estar, onde a gente é acompanhante. (1985,
p. 24).
Assim, torna-se importante pensarmos em cuidar também de nós, profissionais
em ajudar as pessoas ou os “cuidadores”, que muitas vezes dedicam todo seu tempo a ajudar
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os outros e acabam se esquecendo de dedicar tempo e atenção à si mesmos, e acabam
confirmando aquele dito popular que diz “Em casa de ferreiro o espeto é de pau”.
Durante o curso de arteterapia temos a oportunidade de começarmos esse treino,
para que o cuidado com nós mesmos possa ser uma constante, onde estaremos nos
beneficiando e também aos nossos futuros clientes, já que estaremos em melhores condições
de ajudá-los.
Segundo Rhyne:
Se não dermos espaço para que os nossos cavalos de raça de vez em
quando se empinem e escoiceiem em seus cascos, eles podem e
geralmente o fazem – apagar seus rastros por completo e encontrar
novos pastos para dar seu salto. Sinto que devemos ter consciência
disso e prestar atenção às reais necessidades dos “ajudantes de
pessoas” de tempo e liberdade para explorar o claro/escuro da sua
própria experiência pessoal.. (2000, p. 127) .
Para esta autora, o trabalho com arte, por ela realizado junto aos cuidadores de
pessoas, se constituiu num espaço onde puderam se comportar sem evitar sua própria
humanidade; onde podiam deixar sair vapor emocional em favor de sua sanidade; regredir e
se expressarem não apenas a serviço do próprio ego, mas também com o intuito de poderem
funcionar mais plenamente a serviço dos outros.
Adolg Guggenbühl-Craig (s/d apud BASSO E PUSTILNIK (2000), salienta que
somente o analista apaixonadamente envolvido na sua própria vida poderá ajudar seus
pacientes a encontrarem seu caminho. Reforçando o que Jung (2000)diz a respeito, o analista
só pode dar aquilo que possui.
A tarefa do terapeuta não é das mais fáceis. Ele é antes de mais nada, um cuidador
e para que possa fazer seu trabalho de forma eficaz é necessário que antes de cuidar do outro
aprenda a cuidar de si mesmo.
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Leloup (apud BASSO & PUSTILNIK, 2000) diz que o terapeuta cuida do Ser. Dálhe tempo, silêncio, um espaço onde possa recolher-se e descansar na criatura humana. Pois
está escrito: “a sabedoria procura descanso”.
Para este autor, “Num primeiro momento, nós temos que nos tornar nosso Ser
verdadeiro. É uma tarefa. A tarefa do homem é tornar se um ser humano. E é a partir disso
que vai despertar nele a preocupação com o outro.” (LELOUP 1997, p.60)
Quiron é um personagem da mitologia grega que foi ferido por uma flecha
envenenada com o veneno mortal da hidra de Lerna, e que por ser imortal permanece
durante toda a eternidade em estado de sofrimento. Quírom por ser um sábio, auxilia a vários
mestres e guerreiros e por ser portador de uma ferida incurável dedica sua vida procurando
cuidar das feridas das pessoas.
Podemos fazer uma comparação entre o terapeuta e a figura de Quíron . Segundo
MILLER o psicanalista sofre de distúrbio narcisístico ou seja, significa que para evitar a
perda do objeto amado (o amor do primeiro objeto), fomos compelidos a gratificar as
necessidades inconscientes de nossos pais à custa de nossa própria realização. Para a autora,
Há a possibilidade teórica de que uma criança bem dotada poderia ter
tido pais que não necessitassem abusar dela – pais que a vissem como
ela realmente era, que a compreendessem e que tolerassem e
respeitassem seus sentimentos. Tal criança desenvolveria um
narcisismo saudável. Contudo, nesse caso, dificilmente se poderia
esperar (1) que ela mais tarde seguisse a profissão de psicanalista; (2)
que ela cultivasse e desenvolvesse sua preocupação com os outros
tanto quanto aquelas que foram “usadas narcisisticamente” o fizeram;
(3) que ela pudesse um dia ser capaz de compreender suficientemente
– na base da experiência – o que significa ter-se “matado (1979,
p.32).
Para Von-Franz (1999) a pessoa que consegue curar a si mesma não é a pessoa
doente e, sim, aquela capaz de ajudar os outros. Se conseguiu curar a si mesma possui dois
requisitos fundamentais e indispensáveis ao terapeuta, está intacto em seu núcleo mais íntimo
e possui a força do ego.
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Von-Franz (1999) ressalta ainda que outro aspecto importante que o candidato a
terapeuta deverá ter é o sentimento ou coração, e segundo ela o “coração” não pode ser
instilado, ou seja, aqueles que não o possuem são os menos indicados para a profissão.
Voltaremos mais uma vez ao ponto inicial, aquele incapaz de se amar,
dificilmente conseguirá amar outro ou ainda ensiná-lo a amar-se.
1.1- SER ARTETERPEUTA
É muito interessante, mas a sensação que tive nas duas experiências que tive
até hoje com a arteterapia - no estágio com pacientes durante a sessão de hemodiálise e
também nas oficinas de arte- terapia com um grupo de crianças de 07 a 12 anos – é de que
aquelas pessoas estavam à minha espera e à espera daquele trabalho.
Isso reforça ainda mais a minha crença de que as coisas não ocorrem por acaso,
existe sempre um porquê, um encadeamento de ações que são permeados por uma lógica que
muitas vezes estão além da nossa capacidade de compreensão.
Segundo Philippini (2000) cabe ao arteterapeuta ser exigente com suas próprias
produções, quanto às produções do cliente ele deve ter uma atitude de acolhimento
criando assim condições para que este possa se expressar cada vez mais com
autonomia e liberdade.
No entanto, o arteterapeuta só poderá assumir essa postura de forma verdadeira e
genuína com o cliente, se conseguiu um dia acolher suas próprias produções. Desta forma o
momento em que está em formação é o momento em que poderá desenvolver essa atitude, que
além de ser um instrumento fundamental para lidar com o cliente em sua prática futura, é uma
maneira de estar se percebendo e se enriquecendo como pessoa. Talvez este seja o maior
ganho da nossa profissão, pois ao nos envolvermos com o crescimento de outras pessoas
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vamos tocando em pontos nossos que necessitam de atenção, e assim vamos crescendo com o
outro, cada um a seu tempo e a seu modo.
No decorrer do curso de especialização em arteterapia, posso me lembrar
perfeitamente do momento em que eu senti falta dessa postura de acolhimento e aceitação em
relação às minhas produções. No terceiro módulo, Oficina de Corpo, quando trabalhamos com
a argila de olhos fechados construindo nosso próprio corpo, ao olhar o resultado obtido, falei
que tinha ficado horrível que parecia um sapo. Meus colegas disseram que parecia o corpo de
um bebê. Nesse momento senti que fui muito cruel comigo mesma, percebi o quanto sou
exigente comigo mesma e me preocupo com aquilo que os outros vão pensar.
Foi a partir dessa experiência que comecei verdadeiramente a acolher e aceitar
com amor tudo aquilo que saía de minhas mãos, com aquela curiosidade e expectativa da mãe
que olha pela primeira vez o rosto de seu filho, e com aquele espanto “o que será que isso
quer me dizer?” Sinto que falta ao adulto essa atitude diante da vida que a criança tem
naturalmente, de olhar cada coisa mesmo que seja simples ou pequena com um olhar novo, de
expectativa, de surpresa e de espanto.
Joulia (1985, apud PAIN & JARREAU 1994) questiona se “ o que procuram
todos os atendentes durante os estágios de formação do AAT; não desejariam eles, de maneira
inconsciente, virem a ser seu próprio terapeuta por intermédio da arte?”
Para PAIN & JARREAU (1994) o contrário seria não somente suspeito, como
nocivo, já que é em seu próprio processo que o arteterapeuta em formação toca os limites e as
possibilidades terapêuticas da atividade plástica. É pela elaboração de seu desejo de “se
conhecer” que ele poderá ajudar o outro a aceitar-se a si próprio.
No decorrer do curso de especialização em arte terapia as várias etapas do
processo se constituíram em importantes peças que foram se juntando e formando o arte
terapeuta que hoje está em condições de continuar sua trajetória. Esta teve início não no
20
primeiro dia de aula do curso, mas quando começou a surgir o desejo de ser arteterapeuta, que
continuou durante as aulas teóricas, nos workshops, nas vivências, nas leituras dos textos, na
psicoterapia individual, no estágio, nas supervisões.
É importante dizer que esse arteterapeuta que foi se constituindo a partir de vários
e importantes passos não está pronto e acabado, mas como uma plantinha que acabou de
germinar necessita de cuidados e proteção para que cresça e se fortaleça a cada dia e que
tenha condições de cumprir sua missão, dar frutos e oferecer sua sombra fresca para que
outros irmãos de caminhada que estejam cansados, fatigados ou doentes possam nela se
abrigar, repousar, e se refazerem para a continuação da caminhada que não termina nunca.
1.2 - PRIMEIRO ENCONTRO: O BARRO
Vi ontem sentado um oleiro
Modelando os flancos de um vaso
Fôra a argila que ele amassava
Crânios de reis, mãos de mendigos....
(OMAR KHAYYAM. citado por Crema 1995 Pg.103).
De todos os materiais utilizados, aquele que mais me surpreendeu foi o barro. No
quarto módulo, do Barro Criativo, onde trabalhamos especificamente com este material, em
vários momentos cheguei a me assustar, porque ao manusear o barro eu conseguia fazer com
as mãos aquilo que estava tão bem guardado dentro de mim a sete chaves.
Um episódio interessante aconteceu quando na tentativa de modelar algo, eu quis
fazer uma borboleta, mas a borboleta não saía, eu me esforçava e numa das tentativas surgiu
um pé, em seguida uma tartaruga, mas a necessidade da borboleta era tão grande que eu
desmanchei o pé, desmanchei a tartaruga e fiz a borboleta. Ficou uma borboleta tão pesada e
sem vida, olho para ela e tenho a certeza de que esta figura nasceu “forçada”, prematura.
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Em certa ocasião meu irmão deixou a chave do carro na sala e eu perguntei onde
estava e ele respondeu que estava encima da tartaruga, eu disse a ele que ali não tinha
tartaruga, e ele me mostrou a borboleta e disse, aqui a tartaruga.
Olhando para mim, para o momento em que eu estava vivendo, com uma filha
bebê (quando iniciei o curso ela estava com dois meses e meio) e com uma necessidade
grande de produzir profissionalmente e intelectualmente, mas com a necessidade maior e mais
urgente de me dedicar quase que exclusivamente à maternidade eu estava vivendo bem esse
movimento contraditório de borboleta/tartaruga.
A borboleta que voa, que é ágil e que pode estar em vários lugares, contemplar
vários cenários, eu estava num processo de tartaruga no sentido de ter que desacelerar um
pouco para conseguir ser uma mãe “saudável” e estar em sintonia com o bebê e suprir as suas
necessidades tanto fisiológicas quanto afetivas.
Na verdade eu estava muito feliz vivendo a maternidade, mas era urgente
encontrar também um tempo para mim e
para fazer os meus vôos, vislumbrar outros
horizontes.
Por este e outros episódios eu percebi a riqueza deste material, que por um lado se
mostra tão humilde e que se deixa modelar, mas que por outro lado possui um poder mágico
de nos despir de todas as nossas defesas e nos mostrar a nossa essência, o nosso verdadeiro
eu.
Foi assim que eu compreendi, que ao lidar com o barro, as mãos conseguem trazer
para a dimensão do concreto aquilo que a alma sente.
Acho muito difícil que uma pessoa que nunca tenha tido a experiência de
manusear o barro consiga captar somente com a leitura de um texto, a sensação de fazê-lo. É
incrível a sensação de tocar, experimentar e sentir
esse material que é um elemento da
natureza que contem em si a terra, a água, o fogo e o ar.
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Por fazer parte da evolução da humanidade em diferentes tempos e lugares,
carrega em si um simbolismo, forte e especial, capaz de proporcionar àquele que quer
conhecer mais de si mesmo, uma experiência rica e profunda.
Para Gouvêa,
A natureza misteriosa do barro foi que propiciou ao ser humano um
conhecimento mais profundo de si mesmo. A partir da estrutura oculta do
barro o homem vem se descobrindo quando pelo pelo calor de suas mãos faz
da terra molhada a confidente de imagens carregadas de emoções vividas e
por viver. No barro o homem cria e é criado. Vivencia a si mesmo como
criatura e criador. No barro ele encontra o espaço da divindade em si. Cria a
si mesmo à imagem e semelhança de Deus e dá vazão a sua onipotência sem
precisar enlouquecer. A consciência se aproxima do insconsciente ao
penetrar nas trevas oriundas da própria matéria. Na alma do barro desvela-se
a alma do homem. Na natureza do barro a psique do homem se refugia. O
obscuro da matéria se vê preenchido, fecundado pelo obscuro do homem e,
numa espécie de participação mística, a identificação inconsciente acontece.
No entanto, em termos de energia que flui entre o homem e o barro, essa
participação mística se reveste de caráter científico porque energético. Na
relação dialética que acontece entre a matéria e o indivíduo, o momento
criativo produzirá algo concreto que testemunhará o novo, o produto, a
imagem concreta da emoção; a arte como testemunha do Si mesmo. É
energia que conserva, ou melhor, insiste em conservar o momento, o insight
necessário ao momento criativo. (1989-p. 59-60).
1.3 - OUTROS ENCONTROS
Entre um módulo e outro do curso participamos de um encontro de arteterapia
com a prof. Vera Ferreti e um dos temas trabalhados foi a arteterapia e a criança. Uma das
atividades foi entrar em contato com histórias que nos foram contadas quando crianças. Nesta
ocasião o que ficou mais forte foi o sentimento de “falta” já que não consegui me lembrar de
ninguém me contanto histórias.
No módulo de contos e histórias, outra experiência muito importante aconteceu.
Após uma das histórias contadas (O alfaiate desatento) nos foi pedido para nos lembrarmos
de um tecido que tivesse marcado de alguma maneira a nossa infância. Assim eu pude entrar
em contato com experiências tão fortes e profundas de “suprimento” que a experiência
anterior de “falta” se tornou insignificante.
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Na minha infância sempre ganhei de minha mãe lindos vestidos, muito simples
mas que me deixavam muito feliz e me faziam ganhar muitos elogios. Um desses vestidos foi
um vestido verde tomara que caia de tecido anarruga, godê e de lastec, e no qual me sentia a
mais linda de todas as criaturas.
No entanto o mais lindo e mais importante vestido que usei surgiu numa situação
muito peculiar. Era tempo de festa junina e eu gostava muito de dançar quadrilha. Participei
de todos os ensaios, mas faltando um dia para a festa havia um grande problema, não tinha o
vestido e nem dinheiro para comprar um. Assim dormi, chorando muito triste. No dia seguinte
ao acordar me deparei com um vestido maravilhoso, que estava ali como se fosse uma mágica
ou o filme da Cinderela. Minha mãe cortou um velho lençol estampado e fez durante a noite
esse vestido e quando acabou a festa, novamente o tecido foi costurado e voltou a ser lençol.
Essa experiência despertou em mim um sentimento muito forte de que na minha
infância eu recebi muito e despertou também algo que eu ainda tenho e que para mim é
valioso, que é “a mágica da transformação”. Se um lençol usado pode se tornar o mais
maravilhoso vestido, o que não pode ser transformado? Se queremos realmente algo, mas
queremos de verdade esse desejo pode ser realizado, porque como diz Paulo Coelho “quando
realmente desejamos algo todo o universo conspira para que você o consiga”.
“Os contos de fada atingem diretamente as emoções básicas universais: amor,
ódio, medo, raiva, solidão e sentimento de inutilidade, isolamento e privação”.
(OAKLANDER, 1980 – p. 113-114).
1.4. - FAZER MÁSCARAS (OU ARRANCAR MÁSCARAS?)
Como Foi Que Enlouqueci
Tem gente que me pergunta como foi que enlouqueci. Foi assim: Certo dia,
muito antes dos deuses nascerem, acordei de um longo sono e descobri que
todas as minhas máscaras tinham sido roubadas –as sete máscaras que eu
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tinha feito e usado em sete vidas – e saí correndo sem máscara alguma pelas
ruas apinhadas de gente, gritando:
-Ladrões, ladrões, malditos ladrões!
Os homens e as mulheres riam, mas alguns correram para casa com medo de
mim.
E, quando cheguei a praça do mercado, um jovem que estava no terraço de
uma casa gritou:
-É um louco!
Ergui os olhos para ele e o sol beijou meu rosto nú e minha alma inflamou-se
de amor pelo sol, e não quis mais saber de máscaras. E gritei, como se
estivesse em transe:
Abençoados, abençoados os ladrões que roubaram minhas máscaras!
Foi assim que enlouqueci. (GIBRAN 2003, p. 11)
A construção da máscara foi para mim, dentre todas as vivências que aconteceram
no decorrer do curso de formação em arteterapia, uma das mais significativas. Talvez tenha
sido tão significativa porque tiveram outras vivências anteriores que me prepararam para este
momento e também em virtude do processo terapêutico, que contribuiu para a compreensão
do verdadeiro sentido da experiência.
Eu não conhecia a técnica, mas a intuição me dizia que seria uma vivência
especial. A partir daí procurei como parceira uma pessoa na qual eu confiava muito (o que
não era uma tarefa difícil dentro do nosso grupo).
Mesmo sendo um local pouco adequado, por causa do barulho e do movimento de
todas as pessoas no local, todas as colegas trabalhando e até conversando, eu me entreguei à
experiência.
Durante o trabalho conversamos em tom baixo sobre vários assuntos, no entanto
em determinado momento houve silêncio, parece que não cabiam palavras e durante algumas
frações de segundos, senti uma sensação muito semelhante ao que senti durante as sessões de
regressão, das quais tive oportunidade de participar. Pude perceber nitidamente o momento do
meu nascimento na maternidade e sentir o sentimento da minha mãe que aguardava a
enfermeira lhe trazer seu bebê. A sensação foi muito nítida e forte e fez muito sentido para o
meu processo pessoal.
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Houve respeito mútuo, um cuidado especial e carinho durante todo o trabalho, e
acredito que sem esses ingredientes não teria acontecido o benefício.
No texto de Gibran Khalil Gibran, ele faz referência às suas máscaras que foram
roubadas por ladrões. No início sentiu-se nú e teve raiva daqueles que o roubaram. No entanto
quando pôde olhar pela primeira vez para o sol, sua alma inflamou-se de amor por ele e a
partir daí sentiu-se aliviado por estar sem as máscaras, mesmo sendo considerado louco pelas
pessoas.
Neste módulo da construção das máscaras, a sensação que eu tive é que uma
máscara falsa que não combinava comigo foi destruída, e em troca dela eu recebi de presente
uma compreensão tão importante que me permitiu me livrar de um peso que já estava ficando
insuportável, uma “fantasia” fora de moda que não combinava mais comigo.
Durante o trabalho de construção da máscara, a sensação que experimentei foi
semelhante a de estar numa sala de parto, onde o produto estava sendo construído, num
processo onde se utilizava a água que é a fonte da vida para tornar o tecido mole o bastante
para se moldar ao rosto.
Parece um processo dialético, contraditório. A sensação de estar numa sala de
parto, não para construir uma máscara para se usar depois e sim para destruir uma “máscara”
ou uma fantasia que não precisa mais ser usada. Talvez naquele momento estivesse sendo
construída as condições ou a possibilidade de poder me livrar da máscara velha, pesada e
indesejada que me causava sofrimento.
Experimentei como o louco uma maravilhosa sensação de alívio e de limpeza, de
que eu estava livre de algo que não era meu, um sentimento ou uma sensação que eu carreguei
entranhado em mim mas que não nasceu em mim, este sentimento foi um dia da minha mãe e
eu o carreguei como se fosse meu.
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Deixo aqui então essa interrogação. Neste módulo acontece a construção da
máscara ou a destruição de máscaras?
A máscara é um objeto que serve para ocultar o rosto de quem a coloca, deixandolhe a possibilidade de enxergar. De acordo com as épocas e os países teve várias funções,
ornar; neutralizar a individualidade do comediante ou do trágico, ocultar a identidade, ou nos
carnavais, “trocar de pele” por um curto instante sob a aparência de um príncipe, de um
político, de um feiticeiro... PAIN & JARREAU, 1994 p. 204.
As autoras acima citadas não aconselham a técnica, já que esta “pode servir para
ilustrar a intensidade das emoções ligadas à morte que sua prática suscita. A manipulação da
réplica da imagem facial, é de uma certa maneira, uma reflexão sobre o vivo e o imutável,
certamente, interessante, mas muito perigosa para os sujeitos psicologicamente frágeis.”
PAIN & JARREAU, 1994 p. 205.
Por outro lado, a construção da máscara inclui todos os aspectos da criatividade: a
capacidade de organização perceptivo-motora, a integridade da imagem corporal, a
compreensão das relações próprias à lógica do espaço, a representação simbólica do que, em
uma máscara, faz referência à dupla determinação da subjetividade: a história da cultura e a
história pessoal. Outro aspecto fundamental da máscara é sua capacidade de distanciamento.
Por um momento, ela faz parte do sujeito, depois cai como uma casca. Nesse sentido é um
emblema da morte, às vezes representando o que tem de efêmero e de eterno no homem, pois
a máscara sendo aparência, permanece muito mais imutável que a figura que ela oculta
.(PAIN & JARREAU, 1994 – p. 210).
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2 - O ESTÁGIO
O estágio foi um dos momentos mais importantes dessa trajetória. Foi o momento
que exigiu de cada um de nós, juntar toda a vivência com os materiais, toda a parte teórica
estudada, bem como todos os outros componentes de nossa formação e colocá-los em prática
num contexto específico escolhido por nós.
Neste momento aconteceram várias dificuldades, a escolha do parceiro, do campo,
da clientela. A primeira dificuldade foi encontrar um parceiro com quem tivesse afinidade e
após várias tentativas, combinei de atuar com uma colega, Goretti numa clínica de
hemodiálise com nove pacientes.
Após o projeto pronto, aceito pela instituição, a minha colega teve um problema e
desistiu do estágio. Voltei a estaca zero porque a instituição gostaria que a experiência de
arteterapia fosse realizada com um grupo maior, o que seria muito difícil de ser realizado
somente por uma estagiária, já que existe a questão da limitação física dos pacientes que
ficam com um dos braços imobilizados durante a sessão de hemodiálise. O que torna
necessária o auxílio para o manuseio dos materiais.
Depois de muita insistência o estágio foi autorizado com dois pacientes numa sala
menor, já que não encontrei outro colega que tivesse disponibilidade de tempo e interesse em
participar da experiência.
Iniciamos o estágio com muita expectativa, com medo de não dar certo, já que a
arte terapia durante a sessão de hemodiálise é uma coisa muito nova e não encontramos na
literatura ou mesmo na internet nenhuma referência a trabalhos dessa natureza. No entanto,
estava presente um desejo enorme de fazer um trabalho bem feito e que ele trouxesse
benefícios para os pacientes. É como a criança que quer fazer alguma coisa diferente, ela não
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sabe como fazer, mas ela sabe que quer fazer e ela começa, quando vê já descobriu um jeito
de fazer, ou o caminho para chegar aonde deseja ir.
Outra dificuldade grande estava relacionada com os materiais. Como os pacientes
ficam toda a sessão com uma agulha no braço, tanto as médicas quanto a psicóloga da
instituição fizeram algumas restrições no sentido de se prevenir uma possível contaminação
ou algo parecido. Por exemplo nos foi pedido para não utilizar a argila, ou materiais que
pudessem desprender algum pó, como o giz pastel seco, e a tinta guache ou aquarela só
puderam ser utilizadas após várias sessões.
Iniciamos com materiais como o lápis de cor, canetinhas hidrográficas e giz-decera, após várias sessões onde pudemos conhecer melhor a dinâmica do processo de
hemodiálise, fomos aos poucos introduzindo outros tipos de materiais como a tinta guache,
aquarela, cola, dentre outros.
No final do estágio, fiquei surpresa com a quantidade de técnicas e materiais que
puderam ser utilizados e temos a certeza de que muito mais pode ser feito nesse contexto que
a princípio parece ser muito limitado.
Os dois pacientes que participaram do estágio possuíam características bastante
diferentes, o que me fez experimentar a sensação de lidar com os opostos, com o contrário e
consequentemente experimentar sentimentos ambivalentes. Um deles tinha a atitude de
entrega, de confiança, aceitava todas as sugestões dadas e se entregava de corpo e alma a
cada uma das sessões. Eu sentia que a sua criança interior estava presente em todos os
momentos, com toda pureza, ingenuidade, e com uma atitude de entrega e confiança que às
vezes até me emocionaram.
Já o segundo paciente me fez experimentar uma sensação totalmente oposta de
não ser aceita. Ele me questionava o tempo todo e já na segunda sessão quando perguntei se
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estavam gostando do trabalho, como estavam se sentindo me falou que “esse negócio de
contar histórias e desenhar já estava batido”.
No momento, em meu íntimo fiquei triste e brava, porque ele não tinha idéia do
quanto me custou a preparação de cada uma das sessões, mas expliquei à ele que eu não
estava ali para ensinar técnicas, mas que a arteterapia tinha outros objetivos, que os materiais
estavam ali para serem instrumentos de livre expressão. Posteriormente, vejo o quanto pude
tirar proveito dessa observação que foi um tanto cruel, isso me instigou a ir em busca de
novos materiais, novas técnicas que pudessem ser aplicadas naquele contexto, o que
enriqueceu e muito o trabalho.
Desde o primeiro momento tive a intenção de utilizar os desenho estórias, que são
um procedimento elaborado por Walter Trinca, e que se destina à investigação de aspectos da
dinâmica da personalidade, especialmente quando esta apresenta comprometimento
emocional.
Os Desenhos-Estórias (D-E) foram utilizados na primeira e na última sessão com
o objetivo de observar se os D-E poderiam apontar algum indicativo de mudança ocorrido
durante o processo. No decorrer da nossa exposição utilizaremos com maior freqüência como
referência o processo ocorrido com o paciente 1 - sr. João (nome fictício) pois, devido a sua
atitude de entrega apresentou indicativos de mudanças mais significativos em relação ao
paciente 2 (Jorge) que se mostrou mais reservado e com tendência à depressão.
Na primeira sessão então, utilizamos o procedimento e o sr. João (39 anos) fez os
seguintes desenhos:
O primeiro desenho foi um peixe. O título: Eu sou um peixinho muito Alegre.
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Eu sou um peixinho muito alegre
História:
“Eu sou um peixinho muito alegre e vivo nadando à procura de alimentos para
que eu possa sobreviver junto com meus amiguinhos, mas muito preocupado com os
pescadores para que nós não possamos cair nos anzóis e nas redes de pesca e nós não ficar em
extinção mas a nossa carne serve de alimento para que possa matar a fome de alguém.”
O segundo desenho foi um fusca. O título: Eu sou um fusca 1600 muito querido.
Eu sou um fusca 1600 muito querido
História:
“Eu sou um fusquinha que muitos anos viu transportando pessoas que sempre
lutaram por mim para que eu não venha ser esquecido por eu ser carrinho velho eles querem
me tirar das ruas, mas muitos ainda me mantém em suas garagens e eu agradeço muito por
essa homenagem. Obrigado.”
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O terceiro desenho. Título Nome.cogumelo
História:
“Meu nome é cogumelo. Sempre que me deixam eu estou brotando em seu quintal
em meio as plantinhas sirvo para comer, me faz de remédio até para salvar vidas e eu fico
muito feliz por eu estar entre as plantas que salvam vidas.”
O quarto desenho. Título: Meu nome é Leila.
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História:
“Meu nome é Leila tenho duas filhinhas sou casada há 5 ano, tenho a minha
casinha vivo com meu esposo que há dois anos faz hemodiálise, mas em meio muitas lutas
estamos sobrevivendo com muita fé em Deus nós vamos vencer. Nossas filhinhas Larissa e
Beatriz são pedacinhos de nós e nós amamos muito e muito em breve seremos mais felizes
pois tudo isso vai passar porque não passa. Porque isso para mim é um sonho.”
O quinto desenho: Título: Eu sou um bombeiro salva vidas.
Eu sou um bombeiro salva vidas
História:
“Eu sou um bombeiro o meu nome é Daniel. Sempre que estou deitado e fico
meditando como é bom salvar vidas. E quando estou no trabalho quando a sirene toca lá vou
eu procurar vítimas e quando me deparo com aquela situação um acidente e vejo uma criança
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dentro de uma ferragem do veículo, mas quando vejo que ela está viva é uma alegria profunda
e pego ela nos meus braços e me emociono muito por ter lidado a vida novamente.”
Ao refletir sobre o estágio, o que ele representou nessa minha trajetória e o que ele
tinha em comum com o tema desenvolvido nesse trabalho me surpreendi ao me deparar com
esse último desenho realizado em nossa primeira sessão. Segundo Trinca (1997), o quinto
desenho da seqüência representa a solução encontrada para o problema. Que neste caso, o
problema seria a cura (terceiro desenho – cogumelo que serve para salvar vidas) Dessa forma,
a solução encontrada para o problema da cura seria o resgate da criança.
Agora o que é muito interessante. Quem seria o bombeiro? Quem seria a criança?
Acredito que nesse trabalho, ambos pudemos resgatar a nossa criança interior. Como arte
terapeuta pude oferecer à ele o espaço e a oportunidade para que ele pudesse entrar em
contato com a sua criança, para que pudesse trazê-la para cada sessão. Quem esteve presente,
quem poderia se expressar com aquela naturalidade e espontaneidade senão uma criança? E
esta atitude foi tão verdadeira que me contagiou e me fez entrar nesse processo de resgatar
também a minha criança interior.
A sensação que eu tenho é de que eu o chamei para “brincar”, mas quem brincou
foi a sua criança, e a sua criança brincou com tanta pureza, graça e beleza que me fez perceber
que a criança dele necessitava da presença da minha criança para brincarem juntas, para
aprenderem juntas, enfim para crescerem juntas.
Foi um processo difícil para mim porque ao mesmo tempo que a minha criança
recebia o convite para “brincar”, para existir, esta criança também sentia medo de se mostrar
porque sabia que existia um adulto (o segundo paciente, que em muitos momentos se mostrou
reservado e questionador) que poderia não compreendê-la ou aceitá-la.
O desenho do bombeiro salva vidas me fez então refletir mais uma vez sobre essa
questão, de que ao ajudarmos o outro a crescer estamos crescendo juntos, e ao entrarmos em
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contato com a ferida do outro isso nos remete às nossas próprias feridas e é sobre isso que C.
Jess Groesbeck nos convida a refletir em seu texto: A Imagem Arquetípica do Médico Ferido.
Segundo Guggenbuhl-Craig (apud GROESBECK, 1975) existe um arquétipo
“médico/paciente” que é ativado todas as vezes que uma pessoa adoece. O doente procura um
médico externo, no entanto o “médico interior” é também mobilizado e mesmo que o médico
externo seja muito competente, as feridas e as doenças não poderão ser curadas se não houver
a ação do médico “interior” (1975 p. 89-91)
Guggenbühl-Craig afirma que “Isto significa psicologicamente que não somente o
paciente tem um médico dentro de si mesmo, mas também que existe um paciente no interior
do médico” (Ibid.,p. 9l).
Assim sendo, existem os dois lados da moeda. O doente traz em seu interior o
médico que é aquele que tem realmente o poder de curar as feridas e o médico externo é
aquele que vai ativar no paciente esse poder curativo que lhe pertence verdadeiramente. À
medida que o médico entra em contato com as feridas do paciente ativa suas próprias feridas
internas, o que lhe dá a oportunidade de conhecê-las e procurar curá-las, também ativando seu
médico interior.
Na última sessão (21ª) repetimos com os pacientes o procedimento de desenhoestórias e o sr. João realizou a seguinte seqüência de desenhos:
O primeiro: Título Traíra
Meu nome é Traíra
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História:
“Eu sou um peixe que vive nas represa e nos pequenos poços e sou muito
gostosa”.
O segundo desenho Título: Rosa Branca
Rosa Branca
História
“Eu sou um pé de rosa muito bonito que todas as mulheres gostam de mim por
isso eu sou muito feliz”.
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O terceiro desenho Título: Piu-Piu é o meu nome.
História:
“Eu vivo nas matas porque é nelas que eu sinto seguro dos colecionadores de
pássaros.”
O quarto desenho tem o título: Casa Feliz
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História
“Eu sou uma casa simples mais sou de grande valor para aqueles que mora dentro
de mim”.
O quinto e último desenho tem o título Meu nome é Beatriz.
História:
“Gosto muito do meu papai quando ele vai para a hemodiálise eu fico muito
triste.”
Mostramos aqui os desenho-estórias realizados no início e no final do estágio e a
partir deles podemos observar alguns aspectos que podem ser considerados como indicativos
de mudanças.
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Na primeira seqüência de desenho-estórias podemos perceber que o medo e/ou
ameaça da morte aparece de forma marcante desde o primeiro trabalho, é o peixe alegre que
luta para sobreviver mas que se preocupa com os pescadores, com a extinção, já que a “nossa
carne serve de alimento para que possa matar a fome de alguém.
No desenho seguinte o fusca que é velho e que corre o risco de ser tirado das ruas
ou ser esquecido. Aqui surge um ponto interessante. Ele reconhece que muitos ainda o
mantém em suas garagens e que lutam para ele não ser esquecido, e ao final agradece por esta
homenagem. Estas pessoas podem ser representadas tanto pelos profissionais de saúde que o
assistem quanto pelas pessoas que o amam e que desejam que ele continue vivo.
O terceiro desenho segundo Trinca (1997) é freqüentemente denominado de “o
desenho do conflito”. Nele, os pacientes tendem a representar os conflitos inconscientes mais
significativos. (Trinca 1997, P. 94). Neste caso é o cogumelo e toca na questão da cura, de
salvar vidas.
Já no quarto desenho sr. João fala de seu problema através da esposa, que espera
que tudo isso passe, porque tudo passa e no final relata “porque para mim é um sonho”. No
último desenho, aparece o bombeiro salva vidas que sente uma alegria profunda em resgatar
uma criança das ferragens do carro e de poder dar-lhe a vida novamente.
Para Trinca (1997), o quarto e o quinto desenhos significariam as “possibilidades
de resoluções dos conflitos”, trazendo eventualmente soluções reais ou idealizadas para os
conflitos. No caso de sr. João, o quarto desenho mostra a esposa falando da doença como se
fosse um sonho e que acredita que vai passar como tudo passa. O quinto desenho traz a figura
de um bombeiro salvando vidas.
Já na última seqüência de desenhos podemos perceber que os conteúdos de
ameaça e/ou medo da morte aparecem com menor intensidade. Aparece no primeiro, o peixe
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traíra que é muito gostosa. No terceiro desenho existe a ameaça, mas o personagem está num
lugar seguro (dos colecionadores de pássaros).
No segundo desenho e no quarto aparecem elementos que são de grande valor
para sr. João, um pé de rosa (natureza) e sua casa e que evocam tranqüilidade e serenidade.
No último desenho ele fala mais uma vez da hemodiálise através de sua filha e relata que esta
fica triste quando seu papai vai para a hemodiálise.
Comparando os
desenho-estórias realizados no primeiro encontro com os
desenho-estórias realizados na última sessão, podemos perceber que uma mudança aconteceu
não só no sentido de ter trabalhada a questão do medo e/ou ameaça de morte, mas também no
sentido de ter modificado seu modo de encarar a doença, que no primeiro trabalho aparece
como se a doença fosse um sonho e que iria passar porque tudo passa.
No entanto parece que estava faltando a oportunidade de realmente entrar em
contato com essa realidade, para que tivesse condições de elaborá-la, sem fugir dela ou fazer
de conta que nada estava acontecendo.
Isso pôde acontecer ao longo do trabalho de arte terapia e sem que ele percebesse
no seu ritmo e no seu tempo, ele entrou em contato com todas as mudanças que a doença
trouxe para sua vida; as limitações, as dificuldades e num determinado momento conseguiu
perceber o quanto se sentia preso àquela máquina, o quanto se sentia triste quando chegava o
momento de ir para a sessão.
No último trabalho a doença aparece de uma maneira mais real . A filha fica triste
quando o pai vai para a hemodiálise, e na verdade este também se sente triste, mas na
realidade não existe outra alternativa no momento.
Entre a primeira sessão e a última aconteceram vinte e um encontros. Várias
técnicas puderam ser utilizadas como: desenho-estórias, histórias e contos, desenho, pintura,
colagem com palito de picolé, colagem com pedaços de E.V.A., modelagem, dentre outros.
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Utilizamos materiais diversos como lápis de cor, giz-de-cera, caneta hidrográfica, cola
colorida, tinta guache, aquarela, massa de biscuit, papel chamex, cartolina, papel canson, cola
e pincéis.
Utilizando esses materiais e técnicas todo um processo aconteceu. Para a terceira
sessão elaboramos um histórico da máquina de hemodiálise, por meio de pesquisa em livro de
nefrologia. O
texto trazia informações importantes como o ano em que começaram as
primeiras pesquisas sobre o assunto, como essas pesquisas foram evoluindo, as conquistas, as
dificuldades até chegarem nesse método que hoje é capaz de salvar a vida de muitas pessoas
que sofrem de doença renal crônica, enquanto aguardam um transplante de rins ou muitas
vezes nem podem fazê-lo.
O objetivo seria explorar esse lado da máquina que muitas vezes acaba ficando
esquecido. Às vezes o paciente se envolve tanto com a idéia de que é ruim fazer hemodiálise e
acaba esquecendo que, de alguma forma, o doente renal crônico tem uma chance a mais de
sobreviver em relação aos doentes cardíacos, do pulmão, do fígado, etc..
Neste dia, após lermos e discutirmos o histórico cada um dos pacientes
desenharam o que a máquina de hemodiálise representava para cada um deles. E para os dois
a máquina representava vida, sr. João até escreveu que se não fosse essa máquina ela não
estaria mais aqui.
No entanto, após algumas sessões sr. João pôde dizer o quanto se sentia preso à
máquina. A mesma máquina que naquela ocasião representava vida, hoje aparecia como uma
prisão. E esta é a grande riqueza da vida, uma mesma coisa pode ter significados diferentes, e
esta compreensão nos liberta e faz com que possamos estar inteiros em cada momento, sem
nos sentirmos culpados pelos nossos sentimentos. Houve aqui uma ampliação da consciência
de sr. João sobre a doença. Ele sabia, que a máquina salvava sua vida, mas que também o
aprisionava.
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Podemos dizer que o estágio foi uma experiência rica e que beneficiou tanto os
dois pacientes quanto a mim como estagiária de arteterapia. Foram momentos importantes,
repletos de ensinamentos que me ensinaram muito e me enriqueceram como pessoa e como
profissional.
Acredito também que o paciente 2 mesmo agindo de forma mais reservada,
também foi beneficiado. Houve um período em que se mostrava bastante animado, sorridente,
conversava durante toda a sessão, se envolvia nas atividades ou seja deixou que sua criança
interior agisse e comandasse a situação.
Durante o estágio, tenho certeza de que várias feridas minhas foram tocadas e isso
me deu a oportunidade de conhecê-las, a partir daí pude ir em busca de remédios que
pudessem curá-las, seja em minha psicoterapia individual, seja na supervisão e nas vivências
realizadas durante o curso. Acabei pegando uma carona no crescimento dos pacientes.
No entanto, um crescimento diferente. Ao invés de uma criança se tornando
adulta, a pessoa adulta cresceu quando permitiu que sua criança interior pudesse se
exteriorizar, ganhar vida.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho tive a intenção de mostrar dois pontos importantes: a arteterapia
cuidando do cuidador, dando-lhe a possibilidade de reconhecer e cuidar de suas próprias
feridas, para que tenha melhores condições de cuidar do outro.
Em segundo lugar, ocorre um fato que é conseqüência desse primeiro ponto. A
arteterapia cuidou de mim, e possibilitou o meu encontro com a minha criança interior,
permitindo assim o resgate de atitudes que são inerentes à criança e que são fundamentais ao
arteterapeuta.
Iniciei o trabalho com uma poesia de Khalil Gibran que fala que o adulto é aquele
que esqueceu a linguagem essencial que a criança traz do outro mundo, e portanto é
imperceptível no mundo adulto.
Para finalizar gostaria de usar duas histórias. A partir da primeira história,
pretendo tecer um paralelo com a minha trajetória no decorrer do curso de especialização em
arteterapia e mostrar em que posição me percebo como arteterapeuta ao final do curso.
O livro Dito e Feito (ARMSTRONG E BULCKEN ROOT 2004) conta a história
de Hugo que é um órfão, e que tem o desejo de construir sua fortuna. Avista uma cidade e
como não tem dinheiro para pagar o pedágio e entrar, realiza uma série de trabalhos, ou
ultrapassa vários obstáculos como se fossem um quebra-cabeça para conseguir um pão para
dar ao guarda na ponte, em troca de sua entrada. No entanto ao chegar à ponte era outro
guarda e que não aceita o pão. Hugo volta então à estaca zero e sentado à beira do rio,
tranqüilamente come o pão pensando em sua situação, de voltar ao ponto de partida. Neste
momento ouve a voz dos amigos que conquistou neste período em que batalhava para
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conseguir o pão, convidando-o para entrarem juntos na cidade e já que estavam todos na
mesma carroça, pagariam apenas um pedágio.
Esta história mexeu muito comigo e me remeteu à minha própria trajetória pessoal
e profissional e ao resgate da minha criança interior. A orfandade de Hugo representou para
mim o momento crucial de percebermos que em nossa trajetória estamos “sós” apesar das
pessoas queridas que fazem parte de nossas vidas .
Em vários momentos do nosso existir, que temos que fazer nossas escolhas e
decidir qual é a “fortuna” que queremos fazer nesse mundo, ou ainda, temos que descobrir
qual é a nossa missão, aquela que ninguém pode cumprir por nós.
Antes mesmo de saber que a arteterapia existia, já existia em mim um enorme
desejo de ser arteterapeuta, era uma necessidade urgente do meu ser. E como se fosse por
acaso um dia avistei “essa cidade” e descobri que a arteterapia fazia parte da fortuna que eu
gostaria de conquistar, ou falando de outro modo, a arteterapia é um instrumento necessário
para que eu cumpra a minha missão.
Ao iniciar o curso começam também os trabalhos, ou os obstáculos a serem
vencidos. E é grande a satisfação hoje ao olhar para trás e perceber que cada um deles foi
vencido, cada módulo, cada vivência, o estágio, a supervisão, a psicoterapia, enfim tudo o que
permeou e fez parte de todo o processo.
Como Hugo, também não tinha dinheiro para pagar o pedágio e entrar na cidade
“encantada”, mas não tinha dinheiro porque dinheiro nenhum paga essa entrada, mas ela deve
sim ser conquistada, passo a passo.
No decorrer do curso, chega o momento em que nos deparamos com o quinto e
penúltimo obstáculo, a bruxa para conseguirmos o amuleto do amor. A bruxa nos pede então:
“Traga-me aquilo que mais prezo, garoto, e você terá o que pede!” e somos forçados a pensar
como Hugo. O que podemos dar de nós mesmos em troca desse amuleto?
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A bruxa representa então a arteterapia que exige que paguemos um preço, e ao
longo do tempo vamos descobrindo que começamos a pagar esse preço no início do curso, ou
seja, como Hugo, no momento em que pensava o que poderia oferecer à velha bruxa em troca
do que precisava, chegou a conclusão de que “ Eu darei tudo o que tenho, mas tudo que tenho
sou eu.” Assim também chegamos a conclusão de que este é o preço que temos que pagar
para sermos bons arteterapeutas: Sermos nós mesmos.
Hugo cria coragem e vai até a bruxa fazer sua oferenda, oferece à ela tudo que ele
tem, e tudo que ele tem é ele mesmo. Ele se surpreende quando a bruxa se alegra com sua
oferta e lhe dá o amuleto do amor.
Ao longo do curso também sentimos que a bruxa (que aqui para nós representa a
arteterapia), se alegra quando diante dela nos permitimos ser o que realmente somos, contudo
o maior beneficiado na verdade somos nós, porque quando isso acontece, temos a
possibilidade de nos conhecermos mais, de aprendermos e crescermos como pessoas.
É interessante observar que é nesse encontro com a bruxa que Hugo consegue
realmente pagar o “pedágio” para entrar na cidade, porque como disse ele, não tinha nenhum
dinheiro ou outra coisa para pagar o pão, contudo se dispõe a ir atrás de cada pessoa pedindo
sua contribuição, no entanto, como na vida, tudo tem um preço.
O padeiro pede em troca do pão que ele leve o trigo para moer bem fininho. O
moleiro, para que possa moer o trigo pede que Hugo leve seu avental para costurar. O alfaiate
em troca da costura do avental pede uma dúzia de ovos de ganso. Já a menina dos gansos pede
que ele traga o amuleto do amor. E é exatamente no encontro com a Bruxa que Hugo dá algo
de si para encerrar esse momento de trocas, para voltar ao início do ciclo, onde tudo começou.
Outro fato interessante é que o “pão” que Hugo consegue comprar, dando em
troca “tudo que ele tem, que é ele mesmo” não é saboreado pelo guarda ou por outras pessoas,
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mas por ele mesmo. Acredito também que cada um de nós que estamos concluindo o curso, é
que vamos desfrutar do maior benefício, que é o nosso crescimento pessoal e profissional.
Assim, estamos chegando bem próximos do momento em que seremos
convidados, pelos “amigos” ou cúmplices que fizemos ao longo dessa jornada, para entrarmos
nessa cidade mágica onde poderemos construir a nossa “fortuna”.
Com a última história pretendo mostrar como a arteterapia representou para mim
uma fada capaz de despertar a nossa criança interior. A história se chama Onde Tem Bruxa
Tem Fada, de Bartolomeu Campos Queirós.
Maria do Céu se cansou de ser idéia no céu e veio para a Terra, e aqui se
transformou em Fada e quis transformar em realidade todos os sonhos e desejos de todas as
crianças. No entanto, no momento em que realizou o desejo da primeira criança que teve
coragem de pedir, não foi compreendida.
A criança pediu uma cama para dormir, e a fada fez aparecer ali no meio da praça
uma cama e como a criança não tinha casa, apareceu do nada uma casa. Mas como Maria não
pediu dinheiro emprestado ao banqueiro para construir a casa, ele protestou. Também
reclamou o industrial porque o material não foi comprado em sua indústria. O economista
também não foi consultado sobre o preço da construção, o político não usou suas medidas
provisórias e o arquiteto não fez o projeto da casa. Assim, o delegado da cidade mandou
prender Maria que era a pessoa responsável pelo aparecimento da casa.
No momento em que estava sendo levada pelos guardas, Maria falou com os olhos
um segredo no pensamento de cada um dos meninos, e “eles entenderam tão bem que o
sorriso tomou conta do corpo inteiro deles”.
Maria estava presa e numa noite usou seus poderes, virou vagalume e foi embora
da prisão. Nesta noite visitou cada um dos meninos e viu que todos sonhavam com cidades
onde a fantasia era possível e necessária. Cidades onde as fadas moravam sem causar medo.
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Onde a esperança não durava mais que meio dia. Cidades sem mágicos e magias, mas cheias
de encantamentos.
A fada se alegrou muito com o sonho dos meninos e naquela madrugada partiu
para outra parte do mundo. “O certo é que Maria do Céu passou pela Terra em forma de fada
e vestida de anjo, mas só alguns viram. Passou breve, deixando com os meninos uma idéia
que trouxe do azul”.
Os adultos da cidade não entenderam o sumiço da fada, mas as crianças que
sabem do segredo, reparam na procura dos adultos e sorriem, e quando perguntam qual o
segredo, respondem:
- Amanhã eu falo.
“Eu penso que Maria do Céu poderá voltar a qualquer momento, sem aviso, e que
só os mais atentos a verão”. Mas os meninos não confirmam a minha idéia.
Ao ler essa história me lembrei imediatamente do poema de Khalil Gibram que
se refere à outra linguagem que só as crianças entendem e que elas trazem de outro mundo.
Que linguagem é essa? Que outro mundo é esse? Para mim essa linguagem é a linguagem da
essência e que a arteterapia conhece muito bem, aliás essa é a linguagem da arteterapia.
Fiquei muito feliz quando descobri, no decorrer do curso de arteterapia, que
uma parte de mim ainda fala e entende essa linguagem, essa linguagem que é profunda,
verdadeira, que faz descerem lágrimas, que faz crescer.
A arteterapia foi para mim essa fada que apareceu em minha vida, me mostrou
que dentro de mim existe uma criança e que o canal de comunicação está aberto.
47
BIBLIOGRAFIA
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TRINCA, Walter (org.). Formas de Investigação Clínica em Psicologia.São Paulo:Vetor,
1997.
49
ANEXOS
HISTÓRIA DO DESENVOLVIMENTO DA HEMODIÁLISE
-
1854 : Químico escocês Thomas Graham criou o termo diálise;
-
1913: John Abel e colaboradores descreveram suas experiências com um método
em que o sangue era retirado de um cachorro numa sessão de diálise extra corpórea
e, no final do procedimento, retornava à sua circulação sem qualquer prejuízo ao
animal. Viram a necessidade de se aparelhos mais viáveis para tratar seres
humanos, no entanto, com a primeira guerra, as pesquisas foram interrompidas;
-
1924 : George Haas de Gieszem (Alemanha), com experiência em diálise em cães,
realizou a primeira sessão de hemodiálise em seres humanos. Essa sessão não teve
nenhum resultado prático e durou l5 minutos, mas mostrou que era possível a
purificação do sangue de um ser humano;
-
1930 : Dr. Willem Kolf após ver um paciente de 22 anos falecer devido a falta de
tratamento, se dedicou à idéia de descobrir uma maneira de substituir a função
renal e assim prolongar a vida desses pacientes. Só mais tarde desenvolveu um
dialisador, e isto foi um marco na história da hemodiálise. Em 1943 colocou em
prática seu invento, embora sem ter visto nenhum benefício claro naquela ocasião;
Um mês depois voltou a utilizar seu dialisador com uma paciente de 29 anos que
após várias sessões veio a falecer por ter esgotado todos os acessos vasculares.
-
1949 : Dr. Tito Ribeiro de Almeida realiza a lª sessão de hemodiálise no Brasil;
50
-
O desenvolvimento de técnicas para confecção de acessos vasculares permanentes
teve um papel determinante para que fosse iniciada uma nova era no tratamento de
pacientes com insuficiência renal crônica;
-
1966 : Cimino e Brescia idealizam a fístula arteriovenosa primária. Nessa época os
recursos financeiros ainda eram escassos e o nº de equipamentos não atendia à
demanda, o acesso a essa terapia ficava restrito as pessoas mais importantes da
sociedade;
-
1973 : Aprovada a lei que permitia o livre acesso de todo cidadão americano à
diálise. Esse foi um acontecimento marcante para a universalização do acesso à
hemodiálise, inicialmente nos EUA, mas que teve repercussão também em outros
países.
-
No Brasil existe uma população estimada de cerca de 50 mil pacientes e no mundo,
mais de um milhão de pessoas tem suas vidas mantidas, na ausência de um órgão
vital graças a hemodiálise.

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