A Arteterapia Cuidando do Cuidador: O resgate da criança interior
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Unp – Universidade Potiguar Alquimy Art Pró-Reitoria de Pós-Graduação Latu Senso Curso de Especialização em Arteterapia A ARTETERAPIA CUIDANDO DO CUIDADOR: O RESGATE DA CRIANÇA INTERIOR Regina Sandra Rodrigues de Melo Goiânia 2004 REGINA SANDRA RODRIGUES DE MELO A ARTETERAPIA CUIDANDO DO CUIDADOR: O RESGATE DA CRIANÇA INTERIOR Monografia apresentada à Universidade Potiguar, RN e ao Alquimy Art, de São Paulo como parte dos requisitos para a obtenção do título de Especialista em Arte Terapia. Orientadora: Flora Elisa Fussi. Goiânia 2004 MELO, Regina Sandra Rodriges de A Arteterapia Cuidando do Cuidador: O resgate da criança interior Regina Sandra Rodrigues de Melo – Goiânia; [s.n], 2004 – 48 p. Monografia (Especialização em Arteterapia) - Universidade Potiguar: Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação Latu-Sensu. Alquimy Art. 1. Arteterapia GO/BGSF 2. Terapia cdv.51 Unp – Universidade Potiguar – RN Alquimy Art Pró –Reitoria de Pós-Graduação Latu Senso Curso de especialização em Arteterapia A ARTETERAPIA CUIDANDO DO CUIDADOR: O RESGATE DA CRIANÇA INTERIOR Monografia apresentada pela aluna Regina Sandra Rodrigues de Melo ao curso de Especialização em Arteterapia em ___/___/____ e recebendo a avaliação da Banca Examinadora constituída pelos professores ___________________________________ Prof. Dra. Cristina Dias Alessandrinni, Coordenadora da Especialização ______________________________ Prof. Flora Elisa Carvalho Fussi, Supervisora AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente à Deus por ter me dado tantas oportunidades de crescimento. Oportunidade de estudar e poder exercer essa profissão tão bonita e importante, apesar de não ser ainda valorizada. Agradeço ainda por ter colocado em meu caminho a arteterapia. Agradeço aos meus pais por terem me dado a vida e tudo o que puderam para que eu me tornasse a pessoa que sou. Agradeço ao meu esposo, companheiro e cúmplice fiel de todos os momentos, pela força, incentivo e pelo seu amor que me faz crescer a cada dia. Às minhas filhas Isabella e Isadora por serem a luz maior da minha existência, flores que alegram o jardim do meu viver. Aos colegas do curso pelos momentos de alegria e crescimento compartilhados. Aos professores por terem compartilhado conosco um pouco do saber que possuem, em especial à Flora pela dedicação e carinho que sempre nos dedicou. Aos clientes do estágio por terem me permitido fazer parte de suas vidas. A Nefroclínica por terem me possibilitado o espaço para a prática do estágio. DEDICATÓRIA Ao meu pai Belchior Rodrigues de Paula (in memoriam) sempre presente em meu coração. Onde estiver sei que se alegrará com mais esta conquista. SUMÁRIO RESUMO ...........................................................................................8 ABSTRACT .......................................................................................9 INTRODUÇÃO ................................................................................11 1 – SER TERAPEUTA .....................................................................14 1.1 – Ser Arteterapeuta .......................................................................18 1.2 – Primeiro encontro: o barro .........................................................20 1.3 – Outros encontros ........................................................................22 1.4 – Fazer máscaras (ou arrancar máscaras?).....................................23 2 – O ESTÁGIO ................................................................................27 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................42 BIBLIOGRAFIA................................................................................47 RESUMO A presente monografia conta minha trajetória no curso de especialização em Arteterapia. Traz a posição de vários autores de diferentes abordagens que enfatizam a importância do terapeuta passar pelo processo de terapia para que tenha condições favoráveis de auxiliar no crescimento de seus clientes. Dessa forma, as vivências, workshops, o estágio, as supervisões, as leituras , aliados ao processo psicoterapeutico individual realizados no decorrer do curso de especialização em arteterapia, se constituíram num instrumento potencializador de crescimento pessoal e profissional. Possibilitando o resgate da minha criança interior, ou de atitudes que são próprias da criança e que são necessárias ao arteterapeuta, como a espontaneidade e autenticidade. Assim como no mito de Quíron, o terapeuta ao mesmo tempo que favorece a cura de seus clientes, mobiliza recursos curativos internos em si mesmo. O que faz desta uma profissão muito importante e que exige muito do profissional, estudo, terapia, supervisão e dedicação permanentes. ABSTRACT This monograph describes the trajectory of my specialization studies in Art Therapy. It shows the perspective of several authors, which hold different approaches, emphasizing the importance of the therapist going through the therapy process, thus, having proper conditions to assist in the growth of its patients. This way, life experiences, workshops, internships, supervisions, and readings complied to the individual psychotherapeutic process that were made along the specialization studies in Art Therapy, had became a potential instrument of personal and professional growth. Thus, making possible the inner child rescue or attitudes that are proper of the child and that are necessary to the Art Therapist, such as spontaneity and authenticity. Like in the myth of Quíron, the therapist that at the same time favors the cure of his patients also mobilizes internal cures in himself. Hence, making of this activity an extremely important profession, and demanding from the professional constant study, therapy, supervision, and devotion. INTRODUÇÃO A Outra Língua Três dias após o meu nascimento, estava em meu berço forrado de seda olhando com um desalento incrível para o novo mundo à minha volta quando minha mãe veio conversar com a ama de leite, perguntando: - Como está o meu filho? E ela respondeu: - Está muito bem, senhora. Alimentei-o três vezes e nunca vi uma criança tão alegre, apesar de tão pequena. Fiquei indignado e gritei: - Não é verdade mãe! Minha cama é dura, o leite que mamei é amargo em minha boca, o cheiro do seio é desagradável às minhas narinas e sou a mais infeliz das criaturas. Mas minha mãe não entendeu, nem a ama, pois a língua que eu falava era aquela do mundo de onde eu tinha vindo. No vigésimo primeiro dia de minha vida, quando eu estava sendo batizado, o padre disse à minha mãe: - Deve estar muito feliz, senhora, por seu filho ter nascido cristão. Eu fiquei surpreso e disse ao padre: - Então sua mãe lá no Céu, deve estar infeliz, pois o senhor não nasceu cristão. Mas o padre também não entendeu a minha língua. Depois de sete luas, um adivinho olhou para mim certo dia e disse à minha mãe: - Seu filho vai ser um estadista e grande líder de homens. E eu gritei: - Essa profecia é falsa, pois vou ser músico, e nada além de músico eu serei. Mas nem com essa idade minha língua foi compreendida, e grande foi a minha surpresa. Mas, depois de trinta e três anos, ao longo dos quais minha mãe, a ama de leite e o padre tinham todos morrido (que o espírito deles esteja à sombra de Deus), o adivinho ainda está vivo. Ontem me encontrei com ele perto da sombra do templo; e, enquanto conversávamos, ele disse: - Eu sempre soube que você se tornaria um grande músico. Previ o seu futuro quando você ainda era um bebê. E eu acreditei nele, pois eu também havia esquecido a língua daquele outro mundo. Gibran Khalil Gibran (2003). 12 Uma criança saudável do ponto de vista psicológico é um ser autêntico, espontâneo, alegre, diz o que sente sem se preocupar com o que o outro vai pensar, confia nas pessoas e sempre acredita que o bem vence o mal, resolve até mesmo os problemas mais difíceis com simplicidade e de forma natural. No entanto, com o passar dos anos, em nome da socialização, muitas vezes esta criança vai deixando para trás estas qualidades como a autenticidade e espontaneidade e vai se escondendo por trás de uma máscara, e às vezes se torna um adulto rígido e que às vezes carrega em si grandes marcas de situações difíceis pelas quais passou no decorrer de seu desenvolvimento e que não foram elaboradas. Neste poema Khalil Gibran se refere a esse processo de deixar de ser criança, através do esquecimento da linguagem do mundo de onde veio, ou seja a perda do contato com a essência, utilizando assim uma linguagem superficial, não-autêntica a qual é entendida e compartilhada pelos adultos. O que acontece com este adulto se ele resolve ser um terapeuta, um ser cujo objeto de estudo e instrumento de trabalho é outro ser humano que também foi machucado e que também perdeu em grande parte essa espontaneidade, e que o procura para ajudá-lo a reencontrar o brilho perdido, para curar as feridas ou amenizar suas dores? Segundo o mito de Quíron, o terapeuta é aquele que traz em si uma grande ferida e não conseguindo encontrar um antídoto para sua dor dedica sua vida a ajudar a curar a ferida do outro. Pretendemos neste trabalho mostrar como a arteterapia pode contribuir para o resgate dessas atitudes que são inerentes à criança (espontaneidade, autenticidade, alegria de viver...) para que o terapeuta possa estar em condições de realizar este trabalho que muitas vezes consiste em ouvir o outro e acolher a sua dor, fazendo desse exercício uma fonte de 13 satisfação e crescimento pessoal ao invés de um espelho onde ele olha para o outro e enxerga sua própria dor. A arteterapia sendo uma oportunidade de nos expressarmos sem nenhuma expectativa a ser cumprida, revelou-se no decorrer dos dois anos de duração do curso de especialização em arteterapia, um instrumento facilitador do encontro e diálogo entre a psicóloga e futura arteterapeuta com sua criança, e ao final possibilitou o resgate dessa criança interior. De tantos conhecimentos obtidos durante a graduação na faculdade de psicologia, um dos mais importantes ou o mais importante de todos eles foi aquele trazido por Carl Rogers, que é a tendência realizadora. O autor postula que “em cada organismo, não importa em que nível, há um fluxo subjacente de movimento em direção à realização construtiva das possibilidades que lhe são inerentes. Há também nos seres humanos uma tendência natural a um desenvolvimento mais completo e mais complexo.” (ROGERS, 1987, p. 40). Este conhecimento deu um novo rumo à minha vida e me fez perceber que eu realmente estava no lugar certo, pois isso veio ao encontro das minhas crenças, de que o ser humano tem em si naturalmente essa capacidade de evoluir, crescer, crescer infinitamente. Dessa forma a terapia ou a psicoterapia deixa de ser apenas aquele momento de 50 minutos que passamos no consultório, e passa a ser um estado de alma que encontra sentido até mesmo nas mínimas coisas da vida e faz delas um potencializador desse crescimento que é inerente à natureza humana. Para uma pessoa que se reveste deste estado de alma “terapêutico”, dessa atitude de abertura diante da vida, as coisas mais simples tendem a se tornar mais significativas´. Acredito que foi a partir desse estado de alma, que o curso de arteterapia tornou-se um potente instrumento de resgate da criança interior, ou das atitudes desta para a pessoa adulta 14 possibilitando ainda, algo que nunca havia sido cogitado por mim: poder trabalhar com crianças. Durante a graduação sempre fugi de disciplinas relacionadas a crianças com a certeza de que não gostaria de atender essa clientela. Parece que eu sentia uma dor muito grande ao entrar em contato com o sofrimento delas. E no decorrer da especialização em arte terapia pude ir ao encontro da minha criança, acolhendo-a, reconhecendo suas dores e curando suas feridas. Hoje, ao me deparar com uma criança em situação de sofrimento, sinto o desejo de ajudar, de acolher e isso não me causa sofrimento como antes. Inclusive no meu trabalho atual sou responsável por atender crianças de 07 a 12 anos, individualmente ou em grupo, utilizando a arteterapia. 1 - SER TERAPEUTA Quando o meu estado é ótimo, seja como facilitador de grupo ou como terapeuta, descubro outra característica. Quando consigo aproximar-me ao máximo do meu íntimo e intuitivo mim-mesmo, quando de algum modo entro em contato com o desconhecido em mim, quando me encontro talvez em um estado ligeiramente alterado de consciência, faça o que faça pareço possuir propriedades curativas. Em tais circunstâncias, minha simples presença é liberadora e útil aos demais. Nada posso fazer para forçar esta experiência, porém, quando consigo relaxar-me e aproximar-me de meu núcleo transcendental, minha conduta torna-se estranha e impulsiva, sem justificativa racional, nem vínculo algum com os processos de meu pensamento. Sem dúvida, este estranho comportamento, de algum modo singular, acaba sendo correto: é como se meu espírito interno se estendesse para alcançar o do meu interlocutor. Nossa própria relação transcende e se integra a algo mais amplo. Nos encontramos então ante a presença de um profundo crescimento, cura e energia. (ROGERS, 1987 pg. 47). No presente trabalho pretendemos desenvolver a idéia de que as vivências e workshops desenvolvidos durante o curso de arteterapia constituem um importante instrumento de formação do arteterapeuta. A partir do momento em que lhe possibilita a oportunidade de vivenciar a técnica e de entrar em contato com seu próprio eu, sua essência, proporciona o resgate de sua criança interior, ou de atitudes desta que são importantes ou 15 fundamentais para o exercício da atividade do arteterapeuta. Ou seja, antes de cuidar do futuro cliente a arteterapia cuida do arte terapeuta, o cuidador. A proposta do curso não é fazer desses workshops uma terapia, mas se a pessoa está inteira na experiência, com certeza esses momentos passam a ser terapêuticos e se tornam enriquecedores se a pessoa encontra-se em processo terapêutico, o que é uma das sugestões da coordenação do curso. Quando se fala da formação do terapeuta, vários autores concordam que a psicoterapia ou terapia é um ponto fundamental e que todo aquele que deseja ser um bom terapeuta deverá passar pelo processo. Grinberg (1975 apud CARDOSO, 1983), aconselha a análise pessoal periodicamente, pois o terapeuta em suas atividades deve tolerar uma sobrecarga imensa. Fromm-Reichmann (1975 apud CARDOSO 1983), também enfatiza o trabalho terapêutico para o conhecimento dos próprios processos pessoais para que possa realizar um processo satisfatório com seu paciente. Durante as vivências no curso de arteterapia temos a oportunidade de entrar em contato com os nossos conflitos, com as nossas dificuldades, com a nossa potencialidade, enfim com a nossa essência e se estamos em processo terapêutico podemos levar esse material para ser trabalhado e elaborado de forma adequada, o que constitui para o futuro arteterapeuta, uma fonte de crescimento pessoal além do conhecimento teórico adquirido. Guedes, que é Gestalt-terapeuta (apud PORCHAT e BARROS), relata: ... se este não seria o maior benefício que a gente obtém deste tipo de trabalho; de cultivar este tipo de coisa, da possibilidade exatamente de aprender a acompanhar a si próprio, as próprias coisas, e resgatar; a buscar de volta, a remodelar, a remodificar, desenvolvendo essa entidade ou este modo de estar, onde a gente é acompanhante. (1985, p. 24). Assim, torna-se importante pensarmos em cuidar também de nós, profissionais em ajudar as pessoas ou os “cuidadores”, que muitas vezes dedicam todo seu tempo a ajudar 16 os outros e acabam se esquecendo de dedicar tempo e atenção à si mesmos, e acabam confirmando aquele dito popular que diz “Em casa de ferreiro o espeto é de pau”. Durante o curso de arteterapia temos a oportunidade de começarmos esse treino, para que o cuidado com nós mesmos possa ser uma constante, onde estaremos nos beneficiando e também aos nossos futuros clientes, já que estaremos em melhores condições de ajudá-los. Segundo Rhyne: Se não dermos espaço para que os nossos cavalos de raça de vez em quando se empinem e escoiceiem em seus cascos, eles podem e geralmente o fazem – apagar seus rastros por completo e encontrar novos pastos para dar seu salto. Sinto que devemos ter consciência disso e prestar atenção às reais necessidades dos “ajudantes de pessoas” de tempo e liberdade para explorar o claro/escuro da sua própria experiência pessoal.. (2000, p. 127) . Para esta autora, o trabalho com arte, por ela realizado junto aos cuidadores de pessoas, se constituiu num espaço onde puderam se comportar sem evitar sua própria humanidade; onde podiam deixar sair vapor emocional em favor de sua sanidade; regredir e se expressarem não apenas a serviço do próprio ego, mas também com o intuito de poderem funcionar mais plenamente a serviço dos outros. Adolg Guggenbühl-Craig (s/d apud BASSO E PUSTILNIK (2000), salienta que somente o analista apaixonadamente envolvido na sua própria vida poderá ajudar seus pacientes a encontrarem seu caminho. Reforçando o que Jung (2000)diz a respeito, o analista só pode dar aquilo que possui. A tarefa do terapeuta não é das mais fáceis. Ele é antes de mais nada, um cuidador e para que possa fazer seu trabalho de forma eficaz é necessário que antes de cuidar do outro aprenda a cuidar de si mesmo. 17 Leloup (apud BASSO & PUSTILNIK, 2000) diz que o terapeuta cuida do Ser. Dálhe tempo, silêncio, um espaço onde possa recolher-se e descansar na criatura humana. Pois está escrito: “a sabedoria procura descanso”. Para este autor, “Num primeiro momento, nós temos que nos tornar nosso Ser verdadeiro. É uma tarefa. A tarefa do homem é tornar se um ser humano. E é a partir disso que vai despertar nele a preocupação com o outro.” (LELOUP 1997, p.60) Quiron é um personagem da mitologia grega que foi ferido por uma flecha envenenada com o veneno mortal da hidra de Lerna, e que por ser imortal permanece durante toda a eternidade em estado de sofrimento. Quírom por ser um sábio, auxilia a vários mestres e guerreiros e por ser portador de uma ferida incurável dedica sua vida procurando cuidar das feridas das pessoas. Podemos fazer uma comparação entre o terapeuta e a figura de Quíron . Segundo MILLER o psicanalista sofre de distúrbio narcisístico ou seja, significa que para evitar a perda do objeto amado (o amor do primeiro objeto), fomos compelidos a gratificar as necessidades inconscientes de nossos pais à custa de nossa própria realização. Para a autora, Há a possibilidade teórica de que uma criança bem dotada poderia ter tido pais que não necessitassem abusar dela – pais que a vissem como ela realmente era, que a compreendessem e que tolerassem e respeitassem seus sentimentos. Tal criança desenvolveria um narcisismo saudável. Contudo, nesse caso, dificilmente se poderia esperar (1) que ela mais tarde seguisse a profissão de psicanalista; (2) que ela cultivasse e desenvolvesse sua preocupação com os outros tanto quanto aquelas que foram “usadas narcisisticamente” o fizeram; (3) que ela pudesse um dia ser capaz de compreender suficientemente – na base da experiência – o que significa ter-se “matado (1979, p.32). Para Von-Franz (1999) a pessoa que consegue curar a si mesma não é a pessoa doente e, sim, aquela capaz de ajudar os outros. Se conseguiu curar a si mesma possui dois requisitos fundamentais e indispensáveis ao terapeuta, está intacto em seu núcleo mais íntimo e possui a força do ego. 18 Von-Franz (1999) ressalta ainda que outro aspecto importante que o candidato a terapeuta deverá ter é o sentimento ou coração, e segundo ela o “coração” não pode ser instilado, ou seja, aqueles que não o possuem são os menos indicados para a profissão. Voltaremos mais uma vez ao ponto inicial, aquele incapaz de se amar, dificilmente conseguirá amar outro ou ainda ensiná-lo a amar-se. 1.1- SER ARTETERPEUTA É muito interessante, mas a sensação que tive nas duas experiências que tive até hoje com a arteterapia - no estágio com pacientes durante a sessão de hemodiálise e também nas oficinas de arte- terapia com um grupo de crianças de 07 a 12 anos – é de que aquelas pessoas estavam à minha espera e à espera daquele trabalho. Isso reforça ainda mais a minha crença de que as coisas não ocorrem por acaso, existe sempre um porquê, um encadeamento de ações que são permeados por uma lógica que muitas vezes estão além da nossa capacidade de compreensão. Segundo Philippini (2000) cabe ao arteterapeuta ser exigente com suas próprias produções, quanto às produções do cliente ele deve ter uma atitude de acolhimento criando assim condições para que este possa se expressar cada vez mais com autonomia e liberdade. No entanto, o arteterapeuta só poderá assumir essa postura de forma verdadeira e genuína com o cliente, se conseguiu um dia acolher suas próprias produções. Desta forma o momento em que está em formação é o momento em que poderá desenvolver essa atitude, que além de ser um instrumento fundamental para lidar com o cliente em sua prática futura, é uma maneira de estar se percebendo e se enriquecendo como pessoa. Talvez este seja o maior ganho da nossa profissão, pois ao nos envolvermos com o crescimento de outras pessoas 19 vamos tocando em pontos nossos que necessitam de atenção, e assim vamos crescendo com o outro, cada um a seu tempo e a seu modo. No decorrer do curso de especialização em arteterapia, posso me lembrar perfeitamente do momento em que eu senti falta dessa postura de acolhimento e aceitação em relação às minhas produções. No terceiro módulo, Oficina de Corpo, quando trabalhamos com a argila de olhos fechados construindo nosso próprio corpo, ao olhar o resultado obtido, falei que tinha ficado horrível que parecia um sapo. Meus colegas disseram que parecia o corpo de um bebê. Nesse momento senti que fui muito cruel comigo mesma, percebi o quanto sou exigente comigo mesma e me preocupo com aquilo que os outros vão pensar. Foi a partir dessa experiência que comecei verdadeiramente a acolher e aceitar com amor tudo aquilo que saía de minhas mãos, com aquela curiosidade e expectativa da mãe que olha pela primeira vez o rosto de seu filho, e com aquele espanto “o que será que isso quer me dizer?” Sinto que falta ao adulto essa atitude diante da vida que a criança tem naturalmente, de olhar cada coisa mesmo que seja simples ou pequena com um olhar novo, de expectativa, de surpresa e de espanto. Joulia (1985, apud PAIN & JARREAU 1994) questiona se “ o que procuram todos os atendentes durante os estágios de formação do AAT; não desejariam eles, de maneira inconsciente, virem a ser seu próprio terapeuta por intermédio da arte?” Para PAIN & JARREAU (1994) o contrário seria não somente suspeito, como nocivo, já que é em seu próprio processo que o arteterapeuta em formação toca os limites e as possibilidades terapêuticas da atividade plástica. É pela elaboração de seu desejo de “se conhecer” que ele poderá ajudar o outro a aceitar-se a si próprio. No decorrer do curso de especialização em arte terapia as várias etapas do processo se constituíram em importantes peças que foram se juntando e formando o arte terapeuta que hoje está em condições de continuar sua trajetória. Esta teve início não no 20 primeiro dia de aula do curso, mas quando começou a surgir o desejo de ser arteterapeuta, que continuou durante as aulas teóricas, nos workshops, nas vivências, nas leituras dos textos, na psicoterapia individual, no estágio, nas supervisões. É importante dizer que esse arteterapeuta que foi se constituindo a partir de vários e importantes passos não está pronto e acabado, mas como uma plantinha que acabou de germinar necessita de cuidados e proteção para que cresça e se fortaleça a cada dia e que tenha condições de cumprir sua missão, dar frutos e oferecer sua sombra fresca para que outros irmãos de caminhada que estejam cansados, fatigados ou doentes possam nela se abrigar, repousar, e se refazerem para a continuação da caminhada que não termina nunca. 1.2 - PRIMEIRO ENCONTRO: O BARRO Vi ontem sentado um oleiro Modelando os flancos de um vaso Fôra a argila que ele amassava Crânios de reis, mãos de mendigos.... (OMAR KHAYYAM. citado por Crema 1995 Pg.103). De todos os materiais utilizados, aquele que mais me surpreendeu foi o barro. No quarto módulo, do Barro Criativo, onde trabalhamos especificamente com este material, em vários momentos cheguei a me assustar, porque ao manusear o barro eu conseguia fazer com as mãos aquilo que estava tão bem guardado dentro de mim a sete chaves. Um episódio interessante aconteceu quando na tentativa de modelar algo, eu quis fazer uma borboleta, mas a borboleta não saía, eu me esforçava e numa das tentativas surgiu um pé, em seguida uma tartaruga, mas a necessidade da borboleta era tão grande que eu desmanchei o pé, desmanchei a tartaruga e fiz a borboleta. Ficou uma borboleta tão pesada e sem vida, olho para ela e tenho a certeza de que esta figura nasceu “forçada”, prematura. 21 Em certa ocasião meu irmão deixou a chave do carro na sala e eu perguntei onde estava e ele respondeu que estava encima da tartaruga, eu disse a ele que ali não tinha tartaruga, e ele me mostrou a borboleta e disse, aqui a tartaruga. Olhando para mim, para o momento em que eu estava vivendo, com uma filha bebê (quando iniciei o curso ela estava com dois meses e meio) e com uma necessidade grande de produzir profissionalmente e intelectualmente, mas com a necessidade maior e mais urgente de me dedicar quase que exclusivamente à maternidade eu estava vivendo bem esse movimento contraditório de borboleta/tartaruga. A borboleta que voa, que é ágil e que pode estar em vários lugares, contemplar vários cenários, eu estava num processo de tartaruga no sentido de ter que desacelerar um pouco para conseguir ser uma mãe “saudável” e estar em sintonia com o bebê e suprir as suas necessidades tanto fisiológicas quanto afetivas. Na verdade eu estava muito feliz vivendo a maternidade, mas era urgente encontrar também um tempo para mim e para fazer os meus vôos, vislumbrar outros horizontes. Por este e outros episódios eu percebi a riqueza deste material, que por um lado se mostra tão humilde e que se deixa modelar, mas que por outro lado possui um poder mágico de nos despir de todas as nossas defesas e nos mostrar a nossa essência, o nosso verdadeiro eu. Foi assim que eu compreendi, que ao lidar com o barro, as mãos conseguem trazer para a dimensão do concreto aquilo que a alma sente. Acho muito difícil que uma pessoa que nunca tenha tido a experiência de manusear o barro consiga captar somente com a leitura de um texto, a sensação de fazê-lo. É incrível a sensação de tocar, experimentar e sentir esse material que é um elemento da natureza que contem em si a terra, a água, o fogo e o ar. 22 Por fazer parte da evolução da humanidade em diferentes tempos e lugares, carrega em si um simbolismo, forte e especial, capaz de proporcionar àquele que quer conhecer mais de si mesmo, uma experiência rica e profunda. Para Gouvêa, A natureza misteriosa do barro foi que propiciou ao ser humano um conhecimento mais profundo de si mesmo. A partir da estrutura oculta do barro o homem vem se descobrindo quando pelo pelo calor de suas mãos faz da terra molhada a confidente de imagens carregadas de emoções vividas e por viver. No barro o homem cria e é criado. Vivencia a si mesmo como criatura e criador. No barro ele encontra o espaço da divindade em si. Cria a si mesmo à imagem e semelhança de Deus e dá vazão a sua onipotência sem precisar enlouquecer. A consciência se aproxima do insconsciente ao penetrar nas trevas oriundas da própria matéria. Na alma do barro desvela-se a alma do homem. Na natureza do barro a psique do homem se refugia. O obscuro da matéria se vê preenchido, fecundado pelo obscuro do homem e, numa espécie de participação mística, a identificação inconsciente acontece. No entanto, em termos de energia que flui entre o homem e o barro, essa participação mística se reveste de caráter científico porque energético. Na relação dialética que acontece entre a matéria e o indivíduo, o momento criativo produzirá algo concreto que testemunhará o novo, o produto, a imagem concreta da emoção; a arte como testemunha do Si mesmo. É energia que conserva, ou melhor, insiste em conservar o momento, o insight necessário ao momento criativo. (1989-p. 59-60). 1.3 - OUTROS ENCONTROS Entre um módulo e outro do curso participamos de um encontro de arteterapia com a prof. Vera Ferreti e um dos temas trabalhados foi a arteterapia e a criança. Uma das atividades foi entrar em contato com histórias que nos foram contadas quando crianças. Nesta ocasião o que ficou mais forte foi o sentimento de “falta” já que não consegui me lembrar de ninguém me contanto histórias. No módulo de contos e histórias, outra experiência muito importante aconteceu. Após uma das histórias contadas (O alfaiate desatento) nos foi pedido para nos lembrarmos de um tecido que tivesse marcado de alguma maneira a nossa infância. Assim eu pude entrar em contato com experiências tão fortes e profundas de “suprimento” que a experiência anterior de “falta” se tornou insignificante. 23 Na minha infância sempre ganhei de minha mãe lindos vestidos, muito simples mas que me deixavam muito feliz e me faziam ganhar muitos elogios. Um desses vestidos foi um vestido verde tomara que caia de tecido anarruga, godê e de lastec, e no qual me sentia a mais linda de todas as criaturas. No entanto o mais lindo e mais importante vestido que usei surgiu numa situação muito peculiar. Era tempo de festa junina e eu gostava muito de dançar quadrilha. Participei de todos os ensaios, mas faltando um dia para a festa havia um grande problema, não tinha o vestido e nem dinheiro para comprar um. Assim dormi, chorando muito triste. No dia seguinte ao acordar me deparei com um vestido maravilhoso, que estava ali como se fosse uma mágica ou o filme da Cinderela. Minha mãe cortou um velho lençol estampado e fez durante a noite esse vestido e quando acabou a festa, novamente o tecido foi costurado e voltou a ser lençol. Essa experiência despertou em mim um sentimento muito forte de que na minha infância eu recebi muito e despertou também algo que eu ainda tenho e que para mim é valioso, que é “a mágica da transformação”. Se um lençol usado pode se tornar o mais maravilhoso vestido, o que não pode ser transformado? Se queremos realmente algo, mas queremos de verdade esse desejo pode ser realizado, porque como diz Paulo Coelho “quando realmente desejamos algo todo o universo conspira para que você o consiga”. “Os contos de fada atingem diretamente as emoções básicas universais: amor, ódio, medo, raiva, solidão e sentimento de inutilidade, isolamento e privação”. (OAKLANDER, 1980 – p. 113-114). 1.4. - FAZER MÁSCARAS (OU ARRANCAR MÁSCARAS?) Como Foi Que Enlouqueci Tem gente que me pergunta como foi que enlouqueci. Foi assim: Certo dia, muito antes dos deuses nascerem, acordei de um longo sono e descobri que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas –as sete máscaras que eu 24 tinha feito e usado em sete vidas – e saí correndo sem máscara alguma pelas ruas apinhadas de gente, gritando: -Ladrões, ladrões, malditos ladrões! Os homens e as mulheres riam, mas alguns correram para casa com medo de mim. E, quando cheguei a praça do mercado, um jovem que estava no terraço de uma casa gritou: -É um louco! Ergui os olhos para ele e o sol beijou meu rosto nú e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não quis mais saber de máscaras. E gritei, como se estivesse em transe: Abençoados, abençoados os ladrões que roubaram minhas máscaras! Foi assim que enlouqueci. (GIBRAN 2003, p. 11) A construção da máscara foi para mim, dentre todas as vivências que aconteceram no decorrer do curso de formação em arteterapia, uma das mais significativas. Talvez tenha sido tão significativa porque tiveram outras vivências anteriores que me prepararam para este momento e também em virtude do processo terapêutico, que contribuiu para a compreensão do verdadeiro sentido da experiência. Eu não conhecia a técnica, mas a intuição me dizia que seria uma vivência especial. A partir daí procurei como parceira uma pessoa na qual eu confiava muito (o que não era uma tarefa difícil dentro do nosso grupo). Mesmo sendo um local pouco adequado, por causa do barulho e do movimento de todas as pessoas no local, todas as colegas trabalhando e até conversando, eu me entreguei à experiência. Durante o trabalho conversamos em tom baixo sobre vários assuntos, no entanto em determinado momento houve silêncio, parece que não cabiam palavras e durante algumas frações de segundos, senti uma sensação muito semelhante ao que senti durante as sessões de regressão, das quais tive oportunidade de participar. Pude perceber nitidamente o momento do meu nascimento na maternidade e sentir o sentimento da minha mãe que aguardava a enfermeira lhe trazer seu bebê. A sensação foi muito nítida e forte e fez muito sentido para o meu processo pessoal. 25 Houve respeito mútuo, um cuidado especial e carinho durante todo o trabalho, e acredito que sem esses ingredientes não teria acontecido o benefício. No texto de Gibran Khalil Gibran, ele faz referência às suas máscaras que foram roubadas por ladrões. No início sentiu-se nú e teve raiva daqueles que o roubaram. No entanto quando pôde olhar pela primeira vez para o sol, sua alma inflamou-se de amor por ele e a partir daí sentiu-se aliviado por estar sem as máscaras, mesmo sendo considerado louco pelas pessoas. Neste módulo da construção das máscaras, a sensação que eu tive é que uma máscara falsa que não combinava comigo foi destruída, e em troca dela eu recebi de presente uma compreensão tão importante que me permitiu me livrar de um peso que já estava ficando insuportável, uma “fantasia” fora de moda que não combinava mais comigo. Durante o trabalho de construção da máscara, a sensação que experimentei foi semelhante a de estar numa sala de parto, onde o produto estava sendo construído, num processo onde se utilizava a água que é a fonte da vida para tornar o tecido mole o bastante para se moldar ao rosto. Parece um processo dialético, contraditório. A sensação de estar numa sala de parto, não para construir uma máscara para se usar depois e sim para destruir uma “máscara” ou uma fantasia que não precisa mais ser usada. Talvez naquele momento estivesse sendo construída as condições ou a possibilidade de poder me livrar da máscara velha, pesada e indesejada que me causava sofrimento. Experimentei como o louco uma maravilhosa sensação de alívio e de limpeza, de que eu estava livre de algo que não era meu, um sentimento ou uma sensação que eu carreguei entranhado em mim mas que não nasceu em mim, este sentimento foi um dia da minha mãe e eu o carreguei como se fosse meu. 26 Deixo aqui então essa interrogação. Neste módulo acontece a construção da máscara ou a destruição de máscaras? A máscara é um objeto que serve para ocultar o rosto de quem a coloca, deixandolhe a possibilidade de enxergar. De acordo com as épocas e os países teve várias funções, ornar; neutralizar a individualidade do comediante ou do trágico, ocultar a identidade, ou nos carnavais, “trocar de pele” por um curto instante sob a aparência de um príncipe, de um político, de um feiticeiro... PAIN & JARREAU, 1994 p. 204. As autoras acima citadas não aconselham a técnica, já que esta “pode servir para ilustrar a intensidade das emoções ligadas à morte que sua prática suscita. A manipulação da réplica da imagem facial, é de uma certa maneira, uma reflexão sobre o vivo e o imutável, certamente, interessante, mas muito perigosa para os sujeitos psicologicamente frágeis.” PAIN & JARREAU, 1994 p. 205. Por outro lado, a construção da máscara inclui todos os aspectos da criatividade: a capacidade de organização perceptivo-motora, a integridade da imagem corporal, a compreensão das relações próprias à lógica do espaço, a representação simbólica do que, em uma máscara, faz referência à dupla determinação da subjetividade: a história da cultura e a história pessoal. Outro aspecto fundamental da máscara é sua capacidade de distanciamento. Por um momento, ela faz parte do sujeito, depois cai como uma casca. Nesse sentido é um emblema da morte, às vezes representando o que tem de efêmero e de eterno no homem, pois a máscara sendo aparência, permanece muito mais imutável que a figura que ela oculta .(PAIN & JARREAU, 1994 – p. 210). 27 2 - O ESTÁGIO O estágio foi um dos momentos mais importantes dessa trajetória. Foi o momento que exigiu de cada um de nós, juntar toda a vivência com os materiais, toda a parte teórica estudada, bem como todos os outros componentes de nossa formação e colocá-los em prática num contexto específico escolhido por nós. Neste momento aconteceram várias dificuldades, a escolha do parceiro, do campo, da clientela. A primeira dificuldade foi encontrar um parceiro com quem tivesse afinidade e após várias tentativas, combinei de atuar com uma colega, Goretti numa clínica de hemodiálise com nove pacientes. Após o projeto pronto, aceito pela instituição, a minha colega teve um problema e desistiu do estágio. Voltei a estaca zero porque a instituição gostaria que a experiência de arteterapia fosse realizada com um grupo maior, o que seria muito difícil de ser realizado somente por uma estagiária, já que existe a questão da limitação física dos pacientes que ficam com um dos braços imobilizados durante a sessão de hemodiálise. O que torna necessária o auxílio para o manuseio dos materiais. Depois de muita insistência o estágio foi autorizado com dois pacientes numa sala menor, já que não encontrei outro colega que tivesse disponibilidade de tempo e interesse em participar da experiência. Iniciamos o estágio com muita expectativa, com medo de não dar certo, já que a arte terapia durante a sessão de hemodiálise é uma coisa muito nova e não encontramos na literatura ou mesmo na internet nenhuma referência a trabalhos dessa natureza. No entanto, estava presente um desejo enorme de fazer um trabalho bem feito e que ele trouxesse benefícios para os pacientes. É como a criança que quer fazer alguma coisa diferente, ela não 28 sabe como fazer, mas ela sabe que quer fazer e ela começa, quando vê já descobriu um jeito de fazer, ou o caminho para chegar aonde deseja ir. Outra dificuldade grande estava relacionada com os materiais. Como os pacientes ficam toda a sessão com uma agulha no braço, tanto as médicas quanto a psicóloga da instituição fizeram algumas restrições no sentido de se prevenir uma possível contaminação ou algo parecido. Por exemplo nos foi pedido para não utilizar a argila, ou materiais que pudessem desprender algum pó, como o giz pastel seco, e a tinta guache ou aquarela só puderam ser utilizadas após várias sessões. Iniciamos com materiais como o lápis de cor, canetinhas hidrográficas e giz-decera, após várias sessões onde pudemos conhecer melhor a dinâmica do processo de hemodiálise, fomos aos poucos introduzindo outros tipos de materiais como a tinta guache, aquarela, cola, dentre outros. No final do estágio, fiquei surpresa com a quantidade de técnicas e materiais que puderam ser utilizados e temos a certeza de que muito mais pode ser feito nesse contexto que a princípio parece ser muito limitado. Os dois pacientes que participaram do estágio possuíam características bastante diferentes, o que me fez experimentar a sensação de lidar com os opostos, com o contrário e consequentemente experimentar sentimentos ambivalentes. Um deles tinha a atitude de entrega, de confiança, aceitava todas as sugestões dadas e se entregava de corpo e alma a cada uma das sessões. Eu sentia que a sua criança interior estava presente em todos os momentos, com toda pureza, ingenuidade, e com uma atitude de entrega e confiança que às vezes até me emocionaram. Já o segundo paciente me fez experimentar uma sensação totalmente oposta de não ser aceita. Ele me questionava o tempo todo e já na segunda sessão quando perguntei se 29 estavam gostando do trabalho, como estavam se sentindo me falou que “esse negócio de contar histórias e desenhar já estava batido”. No momento, em meu íntimo fiquei triste e brava, porque ele não tinha idéia do quanto me custou a preparação de cada uma das sessões, mas expliquei à ele que eu não estava ali para ensinar técnicas, mas que a arteterapia tinha outros objetivos, que os materiais estavam ali para serem instrumentos de livre expressão. Posteriormente, vejo o quanto pude tirar proveito dessa observação que foi um tanto cruel, isso me instigou a ir em busca de novos materiais, novas técnicas que pudessem ser aplicadas naquele contexto, o que enriqueceu e muito o trabalho. Desde o primeiro momento tive a intenção de utilizar os desenho estórias, que são um procedimento elaborado por Walter Trinca, e que se destina à investigação de aspectos da dinâmica da personalidade, especialmente quando esta apresenta comprometimento emocional. Os Desenhos-Estórias (D-E) foram utilizados na primeira e na última sessão com o objetivo de observar se os D-E poderiam apontar algum indicativo de mudança ocorrido durante o processo. No decorrer da nossa exposição utilizaremos com maior freqüência como referência o processo ocorrido com o paciente 1 - sr. João (nome fictício) pois, devido a sua atitude de entrega apresentou indicativos de mudanças mais significativos em relação ao paciente 2 (Jorge) que se mostrou mais reservado e com tendência à depressão. Na primeira sessão então, utilizamos o procedimento e o sr. João (39 anos) fez os seguintes desenhos: O primeiro desenho foi um peixe. O título: Eu sou um peixinho muito Alegre. 30 Eu sou um peixinho muito alegre História: “Eu sou um peixinho muito alegre e vivo nadando à procura de alimentos para que eu possa sobreviver junto com meus amiguinhos, mas muito preocupado com os pescadores para que nós não possamos cair nos anzóis e nas redes de pesca e nós não ficar em extinção mas a nossa carne serve de alimento para que possa matar a fome de alguém.” O segundo desenho foi um fusca. O título: Eu sou um fusca 1600 muito querido. Eu sou um fusca 1600 muito querido História: “Eu sou um fusquinha que muitos anos viu transportando pessoas que sempre lutaram por mim para que eu não venha ser esquecido por eu ser carrinho velho eles querem me tirar das ruas, mas muitos ainda me mantém em suas garagens e eu agradeço muito por essa homenagem. Obrigado.” 31 O terceiro desenho. Título Nome.cogumelo História: “Meu nome é cogumelo. Sempre que me deixam eu estou brotando em seu quintal em meio as plantinhas sirvo para comer, me faz de remédio até para salvar vidas e eu fico muito feliz por eu estar entre as plantas que salvam vidas.” O quarto desenho. Título: Meu nome é Leila. 32 História: “Meu nome é Leila tenho duas filhinhas sou casada há 5 ano, tenho a minha casinha vivo com meu esposo que há dois anos faz hemodiálise, mas em meio muitas lutas estamos sobrevivendo com muita fé em Deus nós vamos vencer. Nossas filhinhas Larissa e Beatriz são pedacinhos de nós e nós amamos muito e muito em breve seremos mais felizes pois tudo isso vai passar porque não passa. Porque isso para mim é um sonho.” O quinto desenho: Título: Eu sou um bombeiro salva vidas. Eu sou um bombeiro salva vidas História: “Eu sou um bombeiro o meu nome é Daniel. Sempre que estou deitado e fico meditando como é bom salvar vidas. E quando estou no trabalho quando a sirene toca lá vou eu procurar vítimas e quando me deparo com aquela situação um acidente e vejo uma criança 33 dentro de uma ferragem do veículo, mas quando vejo que ela está viva é uma alegria profunda e pego ela nos meus braços e me emociono muito por ter lidado a vida novamente.” Ao refletir sobre o estágio, o que ele representou nessa minha trajetória e o que ele tinha em comum com o tema desenvolvido nesse trabalho me surpreendi ao me deparar com esse último desenho realizado em nossa primeira sessão. Segundo Trinca (1997), o quinto desenho da seqüência representa a solução encontrada para o problema. Que neste caso, o problema seria a cura (terceiro desenho – cogumelo que serve para salvar vidas) Dessa forma, a solução encontrada para o problema da cura seria o resgate da criança. Agora o que é muito interessante. Quem seria o bombeiro? Quem seria a criança? Acredito que nesse trabalho, ambos pudemos resgatar a nossa criança interior. Como arte terapeuta pude oferecer à ele o espaço e a oportunidade para que ele pudesse entrar em contato com a sua criança, para que pudesse trazê-la para cada sessão. Quem esteve presente, quem poderia se expressar com aquela naturalidade e espontaneidade senão uma criança? E esta atitude foi tão verdadeira que me contagiou e me fez entrar nesse processo de resgatar também a minha criança interior. A sensação que eu tenho é de que eu o chamei para “brincar”, mas quem brincou foi a sua criança, e a sua criança brincou com tanta pureza, graça e beleza que me fez perceber que a criança dele necessitava da presença da minha criança para brincarem juntas, para aprenderem juntas, enfim para crescerem juntas. Foi um processo difícil para mim porque ao mesmo tempo que a minha criança recebia o convite para “brincar”, para existir, esta criança também sentia medo de se mostrar porque sabia que existia um adulto (o segundo paciente, que em muitos momentos se mostrou reservado e questionador) que poderia não compreendê-la ou aceitá-la. O desenho do bombeiro salva vidas me fez então refletir mais uma vez sobre essa questão, de que ao ajudarmos o outro a crescer estamos crescendo juntos, e ao entrarmos em 34 contato com a ferida do outro isso nos remete às nossas próprias feridas e é sobre isso que C. Jess Groesbeck nos convida a refletir em seu texto: A Imagem Arquetípica do Médico Ferido. Segundo Guggenbuhl-Craig (apud GROESBECK, 1975) existe um arquétipo “médico/paciente” que é ativado todas as vezes que uma pessoa adoece. O doente procura um médico externo, no entanto o “médico interior” é também mobilizado e mesmo que o médico externo seja muito competente, as feridas e as doenças não poderão ser curadas se não houver a ação do médico “interior” (1975 p. 89-91) Guggenbühl-Craig afirma que “Isto significa psicologicamente que não somente o paciente tem um médico dentro de si mesmo, mas também que existe um paciente no interior do médico” (Ibid.,p. 9l). Assim sendo, existem os dois lados da moeda. O doente traz em seu interior o médico que é aquele que tem realmente o poder de curar as feridas e o médico externo é aquele que vai ativar no paciente esse poder curativo que lhe pertence verdadeiramente. À medida que o médico entra em contato com as feridas do paciente ativa suas próprias feridas internas, o que lhe dá a oportunidade de conhecê-las e procurar curá-las, também ativando seu médico interior. Na última sessão (21ª) repetimos com os pacientes o procedimento de desenhoestórias e o sr. João realizou a seguinte seqüência de desenhos: O primeiro: Título Traíra Meu nome é Traíra 35 História: “Eu sou um peixe que vive nas represa e nos pequenos poços e sou muito gostosa”. O segundo desenho Título: Rosa Branca Rosa Branca História “Eu sou um pé de rosa muito bonito que todas as mulheres gostam de mim por isso eu sou muito feliz”. 36 O terceiro desenho Título: Piu-Piu é o meu nome. História: “Eu vivo nas matas porque é nelas que eu sinto seguro dos colecionadores de pássaros.” O quarto desenho tem o título: Casa Feliz 37 História “Eu sou uma casa simples mais sou de grande valor para aqueles que mora dentro de mim”. O quinto e último desenho tem o título Meu nome é Beatriz. História: “Gosto muito do meu papai quando ele vai para a hemodiálise eu fico muito triste.” Mostramos aqui os desenho-estórias realizados no início e no final do estágio e a partir deles podemos observar alguns aspectos que podem ser considerados como indicativos de mudanças. 38 Na primeira seqüência de desenho-estórias podemos perceber que o medo e/ou ameaça da morte aparece de forma marcante desde o primeiro trabalho, é o peixe alegre que luta para sobreviver mas que se preocupa com os pescadores, com a extinção, já que a “nossa carne serve de alimento para que possa matar a fome de alguém. No desenho seguinte o fusca que é velho e que corre o risco de ser tirado das ruas ou ser esquecido. Aqui surge um ponto interessante. Ele reconhece que muitos ainda o mantém em suas garagens e que lutam para ele não ser esquecido, e ao final agradece por esta homenagem. Estas pessoas podem ser representadas tanto pelos profissionais de saúde que o assistem quanto pelas pessoas que o amam e que desejam que ele continue vivo. O terceiro desenho segundo Trinca (1997) é freqüentemente denominado de “o desenho do conflito”. Nele, os pacientes tendem a representar os conflitos inconscientes mais significativos. (Trinca 1997, P. 94). Neste caso é o cogumelo e toca na questão da cura, de salvar vidas. Já no quarto desenho sr. João fala de seu problema através da esposa, que espera que tudo isso passe, porque tudo passa e no final relata “porque para mim é um sonho”. No último desenho, aparece o bombeiro salva vidas que sente uma alegria profunda em resgatar uma criança das ferragens do carro e de poder dar-lhe a vida novamente. Para Trinca (1997), o quarto e o quinto desenhos significariam as “possibilidades de resoluções dos conflitos”, trazendo eventualmente soluções reais ou idealizadas para os conflitos. No caso de sr. João, o quarto desenho mostra a esposa falando da doença como se fosse um sonho e que acredita que vai passar como tudo passa. O quinto desenho traz a figura de um bombeiro salvando vidas. Já na última seqüência de desenhos podemos perceber que os conteúdos de ameaça e/ou medo da morte aparecem com menor intensidade. Aparece no primeiro, o peixe 39 traíra que é muito gostosa. No terceiro desenho existe a ameaça, mas o personagem está num lugar seguro (dos colecionadores de pássaros). No segundo desenho e no quarto aparecem elementos que são de grande valor para sr. João, um pé de rosa (natureza) e sua casa e que evocam tranqüilidade e serenidade. No último desenho ele fala mais uma vez da hemodiálise através de sua filha e relata que esta fica triste quando seu papai vai para a hemodiálise. Comparando os desenho-estórias realizados no primeiro encontro com os desenho-estórias realizados na última sessão, podemos perceber que uma mudança aconteceu não só no sentido de ter trabalhada a questão do medo e/ou ameaça de morte, mas também no sentido de ter modificado seu modo de encarar a doença, que no primeiro trabalho aparece como se a doença fosse um sonho e que iria passar porque tudo passa. No entanto parece que estava faltando a oportunidade de realmente entrar em contato com essa realidade, para que tivesse condições de elaborá-la, sem fugir dela ou fazer de conta que nada estava acontecendo. Isso pôde acontecer ao longo do trabalho de arte terapia e sem que ele percebesse no seu ritmo e no seu tempo, ele entrou em contato com todas as mudanças que a doença trouxe para sua vida; as limitações, as dificuldades e num determinado momento conseguiu perceber o quanto se sentia preso àquela máquina, o quanto se sentia triste quando chegava o momento de ir para a sessão. No último trabalho a doença aparece de uma maneira mais real . A filha fica triste quando o pai vai para a hemodiálise, e na verdade este também se sente triste, mas na realidade não existe outra alternativa no momento. Entre a primeira sessão e a última aconteceram vinte e um encontros. Várias técnicas puderam ser utilizadas como: desenho-estórias, histórias e contos, desenho, pintura, colagem com palito de picolé, colagem com pedaços de E.V.A., modelagem, dentre outros. 40 Utilizamos materiais diversos como lápis de cor, giz-de-cera, caneta hidrográfica, cola colorida, tinta guache, aquarela, massa de biscuit, papel chamex, cartolina, papel canson, cola e pincéis. Utilizando esses materiais e técnicas todo um processo aconteceu. Para a terceira sessão elaboramos um histórico da máquina de hemodiálise, por meio de pesquisa em livro de nefrologia. O texto trazia informações importantes como o ano em que começaram as primeiras pesquisas sobre o assunto, como essas pesquisas foram evoluindo, as conquistas, as dificuldades até chegarem nesse método que hoje é capaz de salvar a vida de muitas pessoas que sofrem de doença renal crônica, enquanto aguardam um transplante de rins ou muitas vezes nem podem fazê-lo. O objetivo seria explorar esse lado da máquina que muitas vezes acaba ficando esquecido. Às vezes o paciente se envolve tanto com a idéia de que é ruim fazer hemodiálise e acaba esquecendo que, de alguma forma, o doente renal crônico tem uma chance a mais de sobreviver em relação aos doentes cardíacos, do pulmão, do fígado, etc.. Neste dia, após lermos e discutirmos o histórico cada um dos pacientes desenharam o que a máquina de hemodiálise representava para cada um deles. E para os dois a máquina representava vida, sr. João até escreveu que se não fosse essa máquina ela não estaria mais aqui. No entanto, após algumas sessões sr. João pôde dizer o quanto se sentia preso à máquina. A mesma máquina que naquela ocasião representava vida, hoje aparecia como uma prisão. E esta é a grande riqueza da vida, uma mesma coisa pode ter significados diferentes, e esta compreensão nos liberta e faz com que possamos estar inteiros em cada momento, sem nos sentirmos culpados pelos nossos sentimentos. Houve aqui uma ampliação da consciência de sr. João sobre a doença. Ele sabia, que a máquina salvava sua vida, mas que também o aprisionava. 41 Podemos dizer que o estágio foi uma experiência rica e que beneficiou tanto os dois pacientes quanto a mim como estagiária de arteterapia. Foram momentos importantes, repletos de ensinamentos que me ensinaram muito e me enriqueceram como pessoa e como profissional. Acredito também que o paciente 2 mesmo agindo de forma mais reservada, também foi beneficiado. Houve um período em que se mostrava bastante animado, sorridente, conversava durante toda a sessão, se envolvia nas atividades ou seja deixou que sua criança interior agisse e comandasse a situação. Durante o estágio, tenho certeza de que várias feridas minhas foram tocadas e isso me deu a oportunidade de conhecê-las, a partir daí pude ir em busca de remédios que pudessem curá-las, seja em minha psicoterapia individual, seja na supervisão e nas vivências realizadas durante o curso. Acabei pegando uma carona no crescimento dos pacientes. No entanto, um crescimento diferente. Ao invés de uma criança se tornando adulta, a pessoa adulta cresceu quando permitiu que sua criança interior pudesse se exteriorizar, ganhar vida. 42 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho tive a intenção de mostrar dois pontos importantes: a arteterapia cuidando do cuidador, dando-lhe a possibilidade de reconhecer e cuidar de suas próprias feridas, para que tenha melhores condições de cuidar do outro. Em segundo lugar, ocorre um fato que é conseqüência desse primeiro ponto. A arteterapia cuidou de mim, e possibilitou o meu encontro com a minha criança interior, permitindo assim o resgate de atitudes que são inerentes à criança e que são fundamentais ao arteterapeuta. Iniciei o trabalho com uma poesia de Khalil Gibran que fala que o adulto é aquele que esqueceu a linguagem essencial que a criança traz do outro mundo, e portanto é imperceptível no mundo adulto. Para finalizar gostaria de usar duas histórias. A partir da primeira história, pretendo tecer um paralelo com a minha trajetória no decorrer do curso de especialização em arteterapia e mostrar em que posição me percebo como arteterapeuta ao final do curso. O livro Dito e Feito (ARMSTRONG E BULCKEN ROOT 2004) conta a história de Hugo que é um órfão, e que tem o desejo de construir sua fortuna. Avista uma cidade e como não tem dinheiro para pagar o pedágio e entrar, realiza uma série de trabalhos, ou ultrapassa vários obstáculos como se fossem um quebra-cabeça para conseguir um pão para dar ao guarda na ponte, em troca de sua entrada. No entanto ao chegar à ponte era outro guarda e que não aceita o pão. Hugo volta então à estaca zero e sentado à beira do rio, tranqüilamente come o pão pensando em sua situação, de voltar ao ponto de partida. Neste momento ouve a voz dos amigos que conquistou neste período em que batalhava para 43 conseguir o pão, convidando-o para entrarem juntos na cidade e já que estavam todos na mesma carroça, pagariam apenas um pedágio. Esta história mexeu muito comigo e me remeteu à minha própria trajetória pessoal e profissional e ao resgate da minha criança interior. A orfandade de Hugo representou para mim o momento crucial de percebermos que em nossa trajetória estamos “sós” apesar das pessoas queridas que fazem parte de nossas vidas . Em vários momentos do nosso existir, que temos que fazer nossas escolhas e decidir qual é a “fortuna” que queremos fazer nesse mundo, ou ainda, temos que descobrir qual é a nossa missão, aquela que ninguém pode cumprir por nós. Antes mesmo de saber que a arteterapia existia, já existia em mim um enorme desejo de ser arteterapeuta, era uma necessidade urgente do meu ser. E como se fosse por acaso um dia avistei “essa cidade” e descobri que a arteterapia fazia parte da fortuna que eu gostaria de conquistar, ou falando de outro modo, a arteterapia é um instrumento necessário para que eu cumpra a minha missão. Ao iniciar o curso começam também os trabalhos, ou os obstáculos a serem vencidos. E é grande a satisfação hoje ao olhar para trás e perceber que cada um deles foi vencido, cada módulo, cada vivência, o estágio, a supervisão, a psicoterapia, enfim tudo o que permeou e fez parte de todo o processo. Como Hugo, também não tinha dinheiro para pagar o pedágio e entrar na cidade “encantada”, mas não tinha dinheiro porque dinheiro nenhum paga essa entrada, mas ela deve sim ser conquistada, passo a passo. No decorrer do curso, chega o momento em que nos deparamos com o quinto e penúltimo obstáculo, a bruxa para conseguirmos o amuleto do amor. A bruxa nos pede então: “Traga-me aquilo que mais prezo, garoto, e você terá o que pede!” e somos forçados a pensar como Hugo. O que podemos dar de nós mesmos em troca desse amuleto? 44 A bruxa representa então a arteterapia que exige que paguemos um preço, e ao longo do tempo vamos descobrindo que começamos a pagar esse preço no início do curso, ou seja, como Hugo, no momento em que pensava o que poderia oferecer à velha bruxa em troca do que precisava, chegou a conclusão de que “ Eu darei tudo o que tenho, mas tudo que tenho sou eu.” Assim também chegamos a conclusão de que este é o preço que temos que pagar para sermos bons arteterapeutas: Sermos nós mesmos. Hugo cria coragem e vai até a bruxa fazer sua oferenda, oferece à ela tudo que ele tem, e tudo que ele tem é ele mesmo. Ele se surpreende quando a bruxa se alegra com sua oferta e lhe dá o amuleto do amor. Ao longo do curso também sentimos que a bruxa (que aqui para nós representa a arteterapia), se alegra quando diante dela nos permitimos ser o que realmente somos, contudo o maior beneficiado na verdade somos nós, porque quando isso acontece, temos a possibilidade de nos conhecermos mais, de aprendermos e crescermos como pessoas. É interessante observar que é nesse encontro com a bruxa que Hugo consegue realmente pagar o “pedágio” para entrar na cidade, porque como disse ele, não tinha nenhum dinheiro ou outra coisa para pagar o pão, contudo se dispõe a ir atrás de cada pessoa pedindo sua contribuição, no entanto, como na vida, tudo tem um preço. O padeiro pede em troca do pão que ele leve o trigo para moer bem fininho. O moleiro, para que possa moer o trigo pede que Hugo leve seu avental para costurar. O alfaiate em troca da costura do avental pede uma dúzia de ovos de ganso. Já a menina dos gansos pede que ele traga o amuleto do amor. E é exatamente no encontro com a Bruxa que Hugo dá algo de si para encerrar esse momento de trocas, para voltar ao início do ciclo, onde tudo começou. Outro fato interessante é que o “pão” que Hugo consegue comprar, dando em troca “tudo que ele tem, que é ele mesmo” não é saboreado pelo guarda ou por outras pessoas, 45 mas por ele mesmo. Acredito também que cada um de nós que estamos concluindo o curso, é que vamos desfrutar do maior benefício, que é o nosso crescimento pessoal e profissional. Assim, estamos chegando bem próximos do momento em que seremos convidados, pelos “amigos” ou cúmplices que fizemos ao longo dessa jornada, para entrarmos nessa cidade mágica onde poderemos construir a nossa “fortuna”. Com a última história pretendo mostrar como a arteterapia representou para mim uma fada capaz de despertar a nossa criança interior. A história se chama Onde Tem Bruxa Tem Fada, de Bartolomeu Campos Queirós. Maria do Céu se cansou de ser idéia no céu e veio para a Terra, e aqui se transformou em Fada e quis transformar em realidade todos os sonhos e desejos de todas as crianças. No entanto, no momento em que realizou o desejo da primeira criança que teve coragem de pedir, não foi compreendida. A criança pediu uma cama para dormir, e a fada fez aparecer ali no meio da praça uma cama e como a criança não tinha casa, apareceu do nada uma casa. Mas como Maria não pediu dinheiro emprestado ao banqueiro para construir a casa, ele protestou. Também reclamou o industrial porque o material não foi comprado em sua indústria. O economista também não foi consultado sobre o preço da construção, o político não usou suas medidas provisórias e o arquiteto não fez o projeto da casa. Assim, o delegado da cidade mandou prender Maria que era a pessoa responsável pelo aparecimento da casa. No momento em que estava sendo levada pelos guardas, Maria falou com os olhos um segredo no pensamento de cada um dos meninos, e “eles entenderam tão bem que o sorriso tomou conta do corpo inteiro deles”. Maria estava presa e numa noite usou seus poderes, virou vagalume e foi embora da prisão. Nesta noite visitou cada um dos meninos e viu que todos sonhavam com cidades onde a fantasia era possível e necessária. Cidades onde as fadas moravam sem causar medo. 46 Onde a esperança não durava mais que meio dia. Cidades sem mágicos e magias, mas cheias de encantamentos. A fada se alegrou muito com o sonho dos meninos e naquela madrugada partiu para outra parte do mundo. “O certo é que Maria do Céu passou pela Terra em forma de fada e vestida de anjo, mas só alguns viram. Passou breve, deixando com os meninos uma idéia que trouxe do azul”. Os adultos da cidade não entenderam o sumiço da fada, mas as crianças que sabem do segredo, reparam na procura dos adultos e sorriem, e quando perguntam qual o segredo, respondem: - Amanhã eu falo. “Eu penso que Maria do Céu poderá voltar a qualquer momento, sem aviso, e que só os mais atentos a verão”. Mas os meninos não confirmam a minha idéia. Ao ler essa história me lembrei imediatamente do poema de Khalil Gibram que se refere à outra linguagem que só as crianças entendem e que elas trazem de outro mundo. Que linguagem é essa? Que outro mundo é esse? Para mim essa linguagem é a linguagem da essência e que a arteterapia conhece muito bem, aliás essa é a linguagem da arteterapia. Fiquei muito feliz quando descobri, no decorrer do curso de arteterapia, que uma parte de mim ainda fala e entende essa linguagem, essa linguagem que é profunda, verdadeira, que faz descerem lágrimas, que faz crescer. A arteterapia foi para mim essa fada que apareceu em minha vida, me mostrou que dentro de mim existe uma criança e que o canal de comunicação está aberto. 47 BIBLIOGRAFIA ARMSTRONG Jennifer & BULCKEN ROOT Kimberly. Dito e Feito. São Paulo: 2004. BASSO & PUSTILNIK. Corporificando a Consciência. São Paulo: Instituto Cultural Dinâmica Energética do Psiquismo; 2000. CARDOSO, Elenir Rosa Golin. A Formação Profissional do Psicoterapeuta. São Paulo: Summus Editorial, 1985. CREMA, Roberto. Saúde e Plenitude: Um Caminho Para o Ser. São Paulo. Summus, 1995. FRANZ, Marie-Louise Von A Interpretação dos Contos de Fadas. São Paulo: Paulinas, 1999. ________. Psicoterapia. São Paulo: Paulus, 1999. GIBRAN, Khalil Gibran. O louco. São Paulo Editora Aquariana, 2003. GOUVÊA, Alvaro de Pinheiro. Sol da Terra. São Paulo: Summus, 1989. GROESBECK, C. Jess. A Imagem Arquetípica do Médico Ferido. In: Apostila do Curso de Especialização em Arteterapia, Disciplina Oficina de Corpo. 2002. LELOUP, Jean Yves. 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Formas de Investigação Clínica em Psicologia.São Paulo:Vetor, 1997. 49 ANEXOS HISTÓRIA DO DESENVOLVIMENTO DA HEMODIÁLISE - 1854 : Químico escocês Thomas Graham criou o termo diálise; - 1913: John Abel e colaboradores descreveram suas experiências com um método em que o sangue era retirado de um cachorro numa sessão de diálise extra corpórea e, no final do procedimento, retornava à sua circulação sem qualquer prejuízo ao animal. Viram a necessidade de se aparelhos mais viáveis para tratar seres humanos, no entanto, com a primeira guerra, as pesquisas foram interrompidas; - 1924 : George Haas de Gieszem (Alemanha), com experiência em diálise em cães, realizou a primeira sessão de hemodiálise em seres humanos. Essa sessão não teve nenhum resultado prático e durou l5 minutos, mas mostrou que era possível a purificação do sangue de um ser humano; - 1930 : Dr. Willem Kolf após ver um paciente de 22 anos falecer devido a falta de tratamento, se dedicou à idéia de descobrir uma maneira de substituir a função renal e assim prolongar a vida desses pacientes. Só mais tarde desenvolveu um dialisador, e isto foi um marco na história da hemodiálise. Em 1943 colocou em prática seu invento, embora sem ter visto nenhum benefício claro naquela ocasião; Um mês depois voltou a utilizar seu dialisador com uma paciente de 29 anos que após várias sessões veio a falecer por ter esgotado todos os acessos vasculares. - 1949 : Dr. Tito Ribeiro de Almeida realiza a lª sessão de hemodiálise no Brasil; 50 - O desenvolvimento de técnicas para confecção de acessos vasculares permanentes teve um papel determinante para que fosse iniciada uma nova era no tratamento de pacientes com insuficiência renal crônica; - 1966 : Cimino e Brescia idealizam a fístula arteriovenosa primária. Nessa época os recursos financeiros ainda eram escassos e o nº de equipamentos não atendia à demanda, o acesso a essa terapia ficava restrito as pessoas mais importantes da sociedade; - 1973 : Aprovada a lei que permitia o livre acesso de todo cidadão americano à diálise. Esse foi um acontecimento marcante para a universalização do acesso à hemodiálise, inicialmente nos EUA, mas que teve repercussão também em outros países. - No Brasil existe uma população estimada de cerca de 50 mil pacientes e no mundo, mais de um milhão de pessoas tem suas vidas mantidas, na ausência de um órgão vital graças a hemodiálise.
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