No Mosaico Funcional Constituinte das Séries Iniciais

Transcrição

No Mosaico Funcional Constituinte das Séries Iniciais
Universidade Federal de São Carlos
Centro de Educação e Ciências Humanas
Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia
No Mosaico Funcional Constituinte das Séries Iniciais do
Ensino Público Fundamental: “alfabetizar” para quê?
Elias Pereira Marques
Trabalho de Conclusão do
Curso de Licenciatura Plena
Presencial em Pedagogia
Orientadora: Profª Drª Claudia
Raimundo Reyes
São Carlos
2011
1
Universidade Federal de São Carlos
Centro de Educação e Ciências Humanas
Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia
No Mosaico Funcional Constituinte das Séries Iniciais do
Ensino Público Fundamental: “alfabetizar” para quê?
Elias Pereira Marques
São Carlos
2011
2
Pareceristas:
Prof. Dr. João Wanderley Geraldi – UNICAMP
Profa. Dra. Fabiana Giovani – Universidade Federal do Pampa
Orientadora:
Profa. Dra. Claudia R. Reyes – Universidade Federal de São Carlos
3
AGRADECIMENTOS
À profª Claudia Reyes, grande fonte inspiradora junto às escolhas e
caminhos educacionais que fiz, trilho e trilharei na Pedagogia. Meu infinito obrigado!
Ao prof Wanderley Geraldi por seu entusiasmo e comprometimento junto a
este trabalho. Suas contribuições desconstruíram, reforçaram e expandiram minhas
convicções docentes e consequentemente refletiram no texto final.
À profª Fabiana Giovani por ter aceitado participar efetivamente deste
trabalho, seu comprometimento e por sua minuciosa análise e essenciais contribuições
que fizeram parte do texto final.
A todos(as) professores(as) alfabetizadores(as) que lutam cotidianamente
no árido “chão da escola” pública de ensino fundamental por uma outra possível
instituição escolar e uma outra possível sociedade, mais ética, equitativa, solidária e
para/com todos(as).
À secretária do curso de pedagogia Tânia, por sua presteza e atenção de
sempre.
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RESUMO
Marques E. P. No Mosaico Funcional Constituinte das Séries Iniciais do Ensino
Público Fundamental: “alfabetizar” para quê? [Trabalho de Conclusão de Curso
de Licenciatura Plena em Pedagogia]. São Carlos: Universidade Federal de São
Carlos; 2011.
Por acreditar na relevância de uma alfabetização de qualidade crítico-político-social e
didática, isto é, para além da dimensão da (de)codificação no ensino da língua escrita, a
ser forjada por todos(as) os profissionais envolvidos nas séries iniciais da escola pública
de ensino fundamental brasileira, em especial, os docentes, agentes concretos deste
processo de caráter emancipatório e subversivo das crianças oriundas das classes
populares, desenvolveu-se aqui um estudo bibliográfico, compreensivo e reflexivo sobre
alguns aspectos envolvidos nesta temática: compreensão histórica do processo didático
de ensino e aprendizagem e seus respectivos reflexos na alfabetização de crianças;
análise de questões sócio-pedagógicas diretamente relacionadas ao processo de
alfabetização de crianças (os aspectos práticos e teóricos envolvidos junto ao conceito
de linguagem, a questão do alfabetizar e do letrar, a utilização ou não de textos e a
escolha e utilização de métodos); e reflexão sobre o potencial papel transformador do
docente neste processo. Conclui-se que restringir a alfabetização aos aspectos técnicos é
um poderoso condicionante discriminatório, conservador e reprodutor do status quo das
classes populares. Por outro lado, o ensino e a aprendizagem da língua escrita quando
voltados ao seu uso social crítico-transformador revela-se como um potente marcador
social afirmativo, pilar de um movimento libertário e emancipatório das camadas
populares.
Descritores: Alfabetização; Letramento; Ensino e aprendizagem; Docentes; Escola
pública.
5
S UM ÁRI O
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 6
1 ENSINAR E APRENDER: UMA BREVE TRAJETÓRIA HISTÓRICA
.............................................. 12
2 QUESTÕES CENTRAIS NA “ALFABETIZAÇÃO” DE CRIANÇAS .................................................. 25
2.1 O que precisa ser compreendido sobre linguagem na “alfabetização”? ...................................................26
2.2 Alfabetizar ou letrar? ........................................................................................................................39
2.3 Qual a relevância dos textos na “alfabetização”?..................................................................................48
2.4 “Alfabetização” é uma questão de método? .........................................................................................54
3 PROFESSOR(A), PENSADOR DOS CAMINHOS DA ALFABETIZAÇÃO CRÍTICA ........................... 64
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 73
REFERÊNCIAS
........................................................................................................................... 79
6
INTRODUÇÃO
Vamos juntos, cantemos juntos
Conheçamos juntos nossas mentes
Compartilhemos como os sábios do passado
Para que todos possam desfrutar do Universo
----Que a aplicação do unguento do conhecimento
Abra os olhos fechados pela cegueira da ignorância e da escuridão
trechos das escrituras do Rig Veda, datadas há mais de 10.000 anos –
Organização Ananda Marga)
A universalização do ensino público fundamental no Brasil, ocorrida mais
amplamente a partir da década de 1970, por um lado trouxe à tona, mais na retórica
partidária, acadêmica, de setores privados, do terceiro setor e mesmo da sociedade civil,
do que efetivamente na prática cotidiana escolar, as históricas fragilidades, deficiências
e impotências que estruturam nossa rede pública de ensino básico. Por outro lado, como
consequência desse desvelar, inicia-se a reverberação e busca por outro possível
paradigma de qualidade no ensino e aprendizagem escolar que desse conta dos antigos e
novos desafios, demandas e necessidades que surgiram junto ao imenso e diverso
contingente, oriundo das classes populares.
Neste cenário, cabe a todos os agentes educacionais, diretos e indiretos, em
especial os professores(as), pelo seu envolvimento direto no processo de ensino e
aprendizado no “chão da escola” pública de ensino fundamental, refletir e agir
criticamente sobre algumas questões centrais que concebem essa instituição pública, por
exemplo: qual concepção de educação, de escola e de qualidade de ensino que está
sendo reivindicada? Para qual paradigma de sociedade esta qualidade escolar irá
contribuir? Quais são as questões e desafios reais e os possíveis caminhos a percorrer
para se alcançar os objetivos acordados? Os fins sociais justificam a utilização de
quaisquer meios pedagógicos?
Portanto, nesse território contestado por inúmeras esferas da sociedade,
nessa arena de calorosos debates, na qual os holofotes estão direcionados à qualidade
escolar, é central, intrínseca e imprescindível a questão da alfabetização em língua
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portuguesa. Primeiramente, devido à pressão exercida recentemente pelos péssimos
resultados obtidos nos índices e indicadores educacionais, nacionais e internacionais,
junto à rede pública de ensino básico, envolvendo direta ou indiretamente aspectos da
alfabetização. Cabe mencionar que estes são de caráter classificatórios – de escolas,
docentes e estudantes – e não diagnosticadores do processo educacional, isto é, não são
utilizados para pensar os caminhos adotados e contextos escolares. Depois, por não
haver políticas públicas e/ou de governos explícitas que busquem priorizar efetivamente
em suas ações de curto, médio e longo prazos, o histórico analfabetismo brasileiro, em
suas mais variadas dimensões. Finalmente, por acreditar na alfabetização em língua
portuguesa como uma via crítica e reflexiva fundamental e contribuinte na promoção da
emancipação da grande parcela popular, dependente da escola pública. O que coopera,
concomitantemente, com a construção de um outro paradigma de sociedade, mais ético,
equitativo, para e com todos(as), em contraposição ao vigente modelo de reafirmação e
reprodução de privilégios de caráter multi-dimensional1 junto a uma minoria dominante
e opressora.
Em relação a esse último aspecto, alfabetizar para além da (de)codificação,
isto é, com vistas a uma qualidade crítico-político-social do mundo das letras, que
muitos
autores
chamam
de
letramento,
torna-se
necessário
envolver
interdisciplinarmente os campos epistemológicos da pedagogia e da linguística em prol
da melhor compreensão dos crônicos condicionantes do fracasso envolvidos no
processo de alfabetização na língua materna.
Acredita-se ainda que para se conceber continua, permanente e
participativamente esse outro padrão de escola pública, considerando essencialmente a
sua função sócio-político-pedagógica, numa espécie de dialética democrática entre a
fracassada instituição vigente e a necessidade de um outro modelo educacional, é
preciso usar de uma radicalidade crítica, política e ativa nos embates que surgem e
surgirão, tendo em mente que não basta alfabetizar no sentido tradicional (codificar e
decodificar), mas que é imperativo contribuir com a emancipação autônoma do
estudante em relação a sua condição alienada e passiva, no que diz respeito
principalmente ao não exercício de sua efetiva práxis transformadora no cotidiano de
1
Sempre que fizer uso do termo múltiplas dimensões ou multi-dimensional neste trabalho, estarei
referindo-me as diversas esferas envolvidas no contexto em que foi utilizado, ou seja: política,
econômica, social, cultural, ambiental e espiritual.
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sua realidade e contexto. Para tanto, torna-se essencial a apropriação da língua materna
formal e o seu consequente uso sócio, político e subversivo.
Deste modo, o sujeito, potencialmente, ao exercer com intencional
objetividade, a sua subjetiva antropofagia dos conhecimentos que obteve até então,
junto aos conhecimentos científicos, sendo estes oportunizados pelo efetivo processo de
alfabetização, compreenderá de forma crítica a realidade na qual está inserido e a si
mesmo como agente único, o que pode permitir a sua ação subversiva junto a essa
ordem vigente, limitadora, reducionista e opressora da existência humana em toda a sua
organicidade.
Bakhtin (apud FARACO, 2009) reforça a perspectiva da existência singular
do ser humano concreto, instituída pelo eu ético – o sujeito que se percebe único e se
reconhece ocupando um lugar único, jamais ocupado por outro, porque não poderia sêlo. Por conseguinte, “ao se perceber único [...] este sujeito não pode ficar indiferente a
esta sua unicidade; ele é compelido a se posicionar, a responder a ela [...] Assume, desse
modo, a responsabilidade por sua unicidade [...] e compreende que deve realizá-la [...] E
esta realização da unicidade se dá na ação, no ato individual e responsável (nãoindiferente). Nesse sentido, viver é agir.” (p. 21)
Ao refletir sobre o para quê, o para quem, o como e a responsabilidade dos
agentes educacionais de alfabetizar sócio-político-pedagogicamente crianças na língua
portuguesa, na sociedade neocapitalista da informação, que valoriza a disseminação
maciça dos dados ao mesmo tempo que os fragmenta e os deixa sem reflexão e acrítico,
num frenesi que mais se aproxima de um fractal anestesiante e, portanto, não se
converte em conhecimento, entende-se que a temática abordada neste trabalho de
conclusão do curso de Licenciatura Plena em Pedagogia da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar) é de extrema e urgente relevância a todos(as) os profissionais da
educação pública, envolvidos direta e indiretamente, já formados e em formação, em
especial aos professores(as), agentes responsáveis pela escolarização da imensa massa
populacional. É também evidente a imprescindibilidade da compreensão dos diversos
aspectos envolvidos nesta temática junto aos agentes tomadores de decisões da rede
pública de ensino, grupo seleto do qual os docentes infelizmente não fazem parte, assim
como junto aos definidores das políticas públicas educacionais.
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Cabe ainda ressaltar que a escola pública de ensino básico brasileira, com
especial destaque às séries iniciais do ensino fundamental, assume, paulatinamente, em
seu currículo e em responsabilidades (in)formais, além dos tradicionais e obrigatórios
conteúdos das diversas áreas do conhecimento, um mosaico de papéis e funções sociais
que historicamente pertenciam a outros setores públicos da sociedade, tais como, a
saúde, a cultura, o esporte, o lazer e o meio ambiente. Desta forma, este setor escolar e a
escolarização aí disseminada são transformados, pelo menos na envolvente retórica
propagada ideologicamente, na panacéia a todos os males vigentes.
Evidentemente, a escola que surge desta arena, nasce despreparada, caótica
para o cumprimento de sua força transformadora e para o exercício do escolarizar por
meio da formação em conhecimentos, relações, valores e hábitos afirmativos, isto é,
sustentadores da existência humana, da vida no planeta terra, da gratuidade na relação
ser humano-natureza e de uma sociedade equitativa, ética, democrática e de convívio
com as diferenças e diversidades, para e com todos(as). Uma escola efetivamente
pública e com esta perspectiva de qualidade com a missão de preparar novas gerações
para continuar a longa, mas finita, odisséia humana no universo.
Nos dias de hoje, a escolarização pública se configura ao mesmo tempo
como uma necessidade, um direito e uma obrigação inquestionável e absoluta, uma
unanimidade em todos os setores, ao ponto das famílias não poderem legalmente negar
a seus filhos a escolaridade ofertada ou mesmo desenvolver junto aos filhos uma
educação informal, diferente da instituída formalmente pelo Estado. Deste modo, a
instituição escola tornou-se essencial no cumprimento dos diversos interesses, ideais e
necessidades, muitas vezes antagônicos, permeados pela manutenção e transformação
da sociedade, o que a torna centro contestado e nevrálgico das discussões e intervenções
exercidas pelas diversas esferas sociais: pública, privada, terceiro setor e sociedade civil
como um todo. Deste modo, dentro de uma perspectiva sócio-crítico-política da
educação, isto é, o ensino formal como fonte de socialização revolucionária dos
conhecimentos e do próprio ser humano, a instituição escola – pública, gratuita e com
esta qualidade – revela-se um eixo essencial para se refletir e agir na consolidação
efetiva de uma outra ordem para a sociedade, mais justa, ética, eqüitativa, coletiva, para
e com todos(as).
É inegável que a escola pública de ensino básico se fez, e ainda se faz,
muito mais pela aparência e superficialidade, do que pela essência multicausal das
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concretas e imprescindíveis demandas, necessidades e desafios de seu tempo,
diretamente relacionado à realidade de múltiplas dimensões da grande parcela
populacional que a freqüenta. MARQUES (2007, p. 22) acredita que nas escolas
públicas de ensino fundamental, freqüentadas na sua grande maioria pela população
excluída sócio-economicamente, suas funções básicas, como a alfabetização em língua
portuguesa, são escancaradamente descumpridas em meio às deficiências e
incapacidades do Estado e à indiferença da sociedade com uma educação de qualidade
crítico-emancipatória. Mesmo assim, ou por isso mesmo, “a educação básica vive hoje
uma profunda crise de identidade no que se refere à determinação e à efetivação do seu
papel na sociedade.”
Esta profunda crise de identidade é também conseqüência das novas
exigências que se fazem desta escola: terá que ensinar conteúdos (das áreas de
conhecimento tradicionais e das novas demandas); preparar para o trabalho; formar o
cidadão (um paradoxo, pois, ao mesmo tempo tem que formar o sujeito solidário e
competente – que compete com os outros); inserir no mundo digital e globalizado;
dispor de elementos básicos à sobrevivência daqueles que à frequenta, tais como,
alimentar e vestir. Afinal que instituição é esta?
Cabe ainda mencionar que nesse cenário aparentemente estéril, há de forma
latente e inerente o imenso potencial crítico, reflexivo, político e, portanto,
transformador, do efetivo processo alfabetizador, potencialmente promotor da
emancipação autônoma das classes populares – por permitir justamente o (re)pensar e
ampliar suas concepções de mundo, de sociedade, de escola e de ser humano. Há então
uma chance real de que essa maioria populacional antes subhumanizada, agora
empoderada, subverta a ordem social dominante e opressora, despercebida e ignorada
até este momento. Tornem-se criadores de seus caminhos e não somente criaturas dos
dominadores. Nesta práxis, ação-reflexão-ação, esta parcela explorada se transformará,
por sua vez transformará a sua realidade, que por sua vez a transformará, num contínuo
dialético.
Como objetivo geral, buscou-se desenvolver um estudo compreensivo de
alguns aspectos sócio-político-didático-metodológico, considerados de extrema
relevância e que estão presentes no dia-a-dia do recente processo de ensino e
aprendizagem da alfabetização de crianças em língua portuguesa nas séries iniciais do
ensino público fundamental no Brasil. Tal objetivo foi desmembrado nos seguintes
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objetivos específicos: compreender a trajetória histórica do processo didático de ensino
e aprendizagem, assim como das concepções do papel da instituição escola, e seus
possíveis reflexos na alfabetização de crianças em língua portuguesa; analisar questões
sócio-pedagógicas diretamente relacionadas ao processo de alfabetização de crianças,
tais como: os métodos disponíveis e utilizados, a utilização ou não de textos, a questão
do alfabetizar e do letrar e ampliar a compreensão crítica dos aspectos práticos e
teóricos envolvidos junto à linguagem; e refletir sobre o potencial papel transformador
docente, necessário à efetiva proficiência na alfabetização sócio-político-pedagógica das
camadas populares.
Desta forma, dentro do escopo e objetivos aqui definidos, optou-se por
realizar
uma
pesquisa
de
cunho
bibliográfico,
baseada
em
autores(as)
e
pesquisadores(as) referências na temática e na educação pública básica. Segundo GIL
(1994), a pesquisa bibliográfica está diretamente associada à utilização de referenciais
sobre o tema pesquisado que já se tornaram públicos em livros, revistas, artigos,
dissertações, teses, entre outros.
Este trabalho está organizado em três sessões: uma breve trajetória histórica
do que é ensinar e aprender que contribui com a compreensão do processo didático de
ensino e aprendizagem e seus reflexos na alfabetização de crianças em língua
portuguesa; uma análise reflexiva e compreensiva de algumas questões frequentes no
processo de alfabetização de crianças em língua portuguesa nas séries iniciais da
educação pública – O que precisa ser compreendido sobre a linguagem na
“alfabetização”? Alfabetizar ou letrar? Qual a relevância dos textos na “alfabetização”?
“Alfabetização” é uma questão de método?; e, por fim, uma defesa do professor(a),
como pensador e pesquisador intelectual e autônomo dos possíveis caminhos
construtores de uma real qualidade transformadora no processo de alfabetização de
crianças em língua portuguesa.
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2.
E NS I NAR
E
APRENDER:
UM A
B RE VE
TRAJETÓRIA HISTÓRICA
Me ensina
a sofrer sem ser visto
a gozar em silêncio
o meu próprio passar
nunca duas vezes
no mesmo lugar
A este deus
que levanta a poeira dos caminhos
os levando a voar
consagro este suspiro
Nele cresça
até virar vendaval
-----De som a som
ensino o silêncio
a ser sibilino
De sino em sino
o silêncio ao som
ensino
(trechos de poemas de Paulo Leminsk –
livro Melhores Poemas, seleção Fred Góes e Álvaro Marins)
Este capítulo retoma a trajetória histórica do ensino e aprendizagem, em
especial dos aspectos didático-metodológicos da pedagogia e funcional da instituição
escola, e seus reflexos na alfabetização e/ou no letramento (termos analisados mais
adiante) de crianças na língua materna. Para tanto, acredita-se ser necessário buscar na
sistematização dos conteúdos e nas abordagens metodológicas da didática, campo da
pedagogia, respostas às inúmeras indagações relacionadas à compreensão do que é a
ação educativa e/ou escolar humana e como ela pode ajudar efetivamente na prática
docente de cada professor(a) que atua diariamente na concretude do “chão da escola”.
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No século XVII, Comenius, autor do livro ícone Didática Magna,
considerado o pai da didática, concebeu-a no contexto da Reforma Protestante e em
contraposição ao ensino dogmático da Igreja Católica, por tanto revolucionário para a
época. Para ele, o ato de educar com acesso de todos(as) à educação escolar, estava
focado no governar, no domar a criança, instruindo-a de forma indutiva do concreto
para o abstrato, do simples para o complexo e geral.
No século XVIII, Rousseau, autor do clássico Emílio, reverbera slogans
como "Conheçam seus alunos!" e "Não existe mudança social sem mudança
educacional!" e prega que todo o conhecimento está posto na natureza – um sistema
perfeito – e no homem, sendo a sociedade corrompedora das crianças. Por isso mesmo,
é preciso tirá-las desta influência para educá-las e deixá-las se desenvolverem segundo a
natureza. Então, deve-se educar pela vivência direta com a natureza, sendo que as
crianças devem ser observadas para serem efetivamente educadas. Um de seus mais
notáveis discípulos, Pestalozzi, é quem faz um desdobramento de seus pensamentos,
sistematizando-os.
No século XIX, Herbart, considerado o pai da Pedagogia, busca a
cientificidade da pedagogia e oficializa os tempos da escola tradicional. Associa
diretamente a educação à instrução, desqualificando socialmente quem não a tem. A
aprendizagem fica focada na repetição mnemônica (método científico da época) e nas
experiências que podem ser controladas. Aqui, é preciso saber o que o aluno conhece
para desconstruir e educá-lo corretamente. Pode-se dizer que a ideologia herbatiana
reforçou a cultura de segregação vigente – letrados(as) e não letrados(as) – e da
desigualdade, pois não eram todos(as) que podiam ter acesso a esta escolarização,
mesmo que de forma mínima e básica. Lembrando que Herbart foi um intelectual da
burguesia. E como tal definiu uma escola burguesa para burgueses.
Só para citar algumas divergências de caráter didático entre esses
pensadores: Rousseau acreditava que poderia ocorrer ensino sem aprendizagem e viceversa, já para Herbart o ensino e aprendizagem ocorreriam sempre associados.
Relacionado à escola, Comenius a concebia enquanto sistema e Herbart enquanto
método.
Já no século XX, até pelo menos a década de 1960, o movimento intitulado
Escola Nova se estabeleceu, embasado principalmente nas teorias da psicologia e no
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contexto do liberalismo, da industrialização, da urbanização e da democracia,
engendrados pelo pensamento burguês capitalista. Assim, o saber-fazer, tão necessário
para sustentar o sistema político-econômico, ganha status na escolarização. No Brasil a
escola pública é assumida pelo Estado, sendo o pensador estadunidense John Dewey a
grande referência do pensamento e das ações pedagógicas por aqui.
Nas décadas de 1960 e 1970, a educação tecnicista, que buscava a máxima
eficiência, se estabelece fortemente nos trópicos. Em contraposição a este modelo de
ensino e aprendizagem, surgem da sociologia a teoria sócio-reprodutivista (segundo a
qual a escola reproduz o lugar social que cada um ocupa), com destaque para o pensador
francês Bourdieu, e as teorias sócio-culturais, com destaque aos brasileiros Freire,
Saviani e Tratemberg. Na década de 1980 a educação brasileira estava em uma profunda
crise de caminhos pedagógicos. A partir da década 1990, o neoconstrutivismo
piagetiano, das pesquisadoras Emília Ferreiro e Ana Teberosky, dominou as diretrizes,
particularmente na alfabetização, ações e políticas públicas da educação pública
brasileira, como pode ser facilmente evidenciado, por exemplo, nos PCN, relativos a
esta etapa do processo de ensino e aprendizagem.
Em relação às mudanças mais relevantes ocorridas no processo de
alfabetização no Brasil, segundo SOARES (2010), a questão metodológica e a chamada
prontidão da criança para ser alfabetizada predominaram até meados dos anos 1980.
Com a introdução desse construtivismo e da psicogênese da língua escrita, por
intermédio das obras de Ferreiro, tanto os métodos sintéticos quanto os analíticos foram
renegados e tratados como tradicionais e inadequados. Passou-se então à abordagem
psicogenética (ênfase no processo de aprendizagem da língua escrita), fato que somente
perdeu força no final dos anos 1990 com o surgimento do conceito de letramento
(focado não apenas no aprender a (de)codificar, mas na utilização da língua escrita de
forma sócio-histórico-cultural).
É notório que concordar com este posicionamento, que coloca o
“letramento” como um divisor de águas entre a aquisição e utilização social da língua
escrita e a mera (de)codificação, é negar e ignorar todo trabalho e luta de inúmeros
pesquisadores e educadores na área de alfabetização de crianças, jovens e adultos
desenvolvido nas décadas de 1980 e 1990.
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SAVIANI
(1984),
considerando
a
marginalização
produzida
pela
escolarização, classifica as abordagens da educação em:
• Não-críticas – retórica do ensino como fator de superação das
desigualdades. Desconsideram, no entanto, as determinações sociais das injustiças e, por
isso, acreditam que a educação é autônoma na sociedade, sendo capaz de intervir e
transformá-la. Enquadram-se nessa categoria as escolas: tradicional, nova e tecnicista;
• Crítico-reprodutivistas – discurso do ensino como instrumento de
discriminação social. É dependente da estrutura social, cumprindo a função de reforçar e
legitimar a dominação corrente. Não têm propostas pedagógicas, explicam os
mecanismos de funcionamento da escola, afirmando que a escola não poderia ser
diferente. Assim, a escolarização introjeta ideologias dominantes que reproduzem a
ordem vigente e massificam as camadas populares;
• Defende, ainda, a necessidade de uma teoria crítica da educação que
capacite a escola para superar as desigualdades sociais, superando o poder ilusório das
teorias não-críticas e a impotência das crítico-reprodutivistas, dando aos educadores o
poder real de luta. Acredita também que para minimizar os riscos envolvidos neste novo
paradigma é necessário e urgente avançar na compreensão da natureza específica da
educação e evitar que a escolarização continue sendo apropriada pelos interesses
dominantes. Destacam-se no Brasil: a crítico-social dos conteúdos ou histórico-crítica,
do próprio Saviani, que prega a apropriação dos conteúdos como forma promotora de
uma concorrência mais igualitária na sociedade; a libertadora, revolucionária ou
problematizadora na qual situa Freire; e a libertária na qual está Tratemberg.
Se considerarmos um contexto escolar sob a perspectiva críticoreprodutivista, BRANDÃO (2007) acredita que para se estabelecer outro paradigma de
sociedade que, consequentemente, levaria a outro correspondente de escola, seria
necessário afastarmos da situação (des)humana que estamos inseridos(as) e que a
nutrimos, para então percebermos a “máquina” capitalista criando e sendo criada, numa
dialética que a auto-fortalece. Reforça que na sociedade capitalista o acúmulo material,
possibilitado pelo trabalho, separa as pessoas em categoria desiguais em conhecimento
– os que sabem e os que não sabem. O que leva a seguinte conclusão: na prática, a
qualidade do ensino formal diferencia-se em função dos sujeitos sociais a que se
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destina, segundo os lugares que estas ocupam na sociedade, o que torna a educação
reprodutora, pelo controle do quê se ensina e a quem se ensina
Mas para este autor, a educação, devido a sua natureza e especificidades,
transcende o controle sistêmico-reprodutivista, pois, as classes dominadas aprenderam a
se organizar e a (re)criar uma cultura de classe, seus modos próprios de viver, de saber,
de resistir, preservam e transferem saberes, crenças e valores comunitários próprios às
novas gerações, que têm sua gênese nesse contexto. Nesses espaços a educação popular
informal é uma ação política. Portanto, persiste uma resistência popular no aparente
atraso, primitividade e tradicionalismo das classes pobres contra a invasão dos saberes
dominantes. Uma forma de manter e recriar uma identidade própria, com base nos seus
próprios conhecimentos e redes de educação. Sendo que, a escolarização formal
somente viria a ser libertária se acolhesse os saberes populares, se viesse a se tornar uma
escola efetivamente popular.
Particularmente acredito, no pleito da transformação do paradigma da
sociedade vigente, que é preciso ter cuidado com esta visão e não romantizar uma
provável resistência e luta dos dominados, no bojo de uma sociedade globalizada que
invade estrategicamente, por meio da cultura dominante, os guetos das classes populares
de forma avassaladora, utilizando-se de inúmeras estratégias ideológicas veiculadas em
poderosos meios de comunicação de massa, como é o caso da mídia televisiva,
disseminando valores, costumes e hábitos que subculturalizam pela depreciação das
suas origens étnico-racial-regional-culturais. Pois assim, minimizaria-se quase que de
forma despercebida o germe subversivo, ainda não domado, anestesiando e conduzindo
à alienação e à acomodação no lócus social oprimido, não mais percebido como tal.
Esse poderoso processo, com o passar de algumas gerações poderia conduzir ao
ostracismo cultural e, neste caso, não haveria mais como disseminar os conhecimentos
contra-culturais. Esta “apologia” à educação informal existente nas classes populares
pode ser um veneno homeopático proferido para manutenção e fortalecimento da
situação opressor-oprimido.
Todas essas teorias, somadas à trajetória didático-pedagógica, ajudam os
agentes escolares, em especial professores(as), coordenadores(as) pedagógicos(as) e
diretores(as) da rede pública de ensino fundamental, a aguçar a reflexão crítica sobre as
necessidades e demandas existentes em cada realidade e, assim, fazer escolhas e tomar
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2
decisões afirmativas em prol de ações mais eficientes. A pedagogia tradicional , por
exemplo, pode contribuir objetivamente com o caráter sócio-político-pedagógico
escolar, se basearmos em alguns de seus princípios originais, tal como, os relacionados
à universalização dos conhecimentos, mas não em aspectos que marcaram a escola
tradicional, como é o caso do autoritarismo. É preciso não confundir ensino tradicional
com escola tradicional. Fato que nos leva a concluir a favor da relevância da autonomia
de se escolher a abordagem pedagógica que melhor atende sócio-políticopedagogicamente as necessidades e demandas de cada situação escolar, individual e/ou
coletiva.
Para MIZUKAMI (1986), a educação é um fenômeno humano, histórico e
multidimensional – ela é humana, técnica, cognitiva, emocional, sócio-política e
cultural. Cada abordagem de ensino e aprendizagem privilegia um determinado aspecto,
consumando assim um caráter reducionista do processo de escolarização. Mesmo assim,
não se desprezam essas teorias pedagógicas, pois elas contribuem com o esclarecimento
de determinados aspectos da educação formal. A autora destaca cinco diferentes
correntes pedagógicas que se embasam em referenciais filosóficos, psicológicos e/ou
práticos que mais influenciaram e influenciam a prática docente: a tradicional, a
comportamentalista, a humanista, a cognitivista e a sócio-cultural. Estas abordagens,
direta ou indiretamente, se apóiam em teorias de conhecimento caracterizadas pela
ênfase no sujeito (nativistas ou inatistas), no meio externo (empiristas) ou na relação
sujeito-meio (interacionistas).
Dentro destas perspectivas pedagógicas de abordagem do processo de
ensino e aprendizagem destacam-se diversos pensadores que podem ajudar de forma
mais contundente ou não na compreensão do fenômeno educativo, assim como nas
tomadas de decisões mais eficientes dos agentes escolares em cada ação e contexto
escolar, como é o caso da alfabetização de crianças nas séries iniciais do ensino
fundamental, nas quais grande parte dos formados(as) em pedagogia atuam ou atuarão.
Neste sentido, MIZUKAMI (1996) apresenta relevantes aspectos das
abordagens pedagógicas mais difundidas no Brasil: humanista; comportamentalista;
cognitivista; e sócio-político-cultural. Na abordagem humanista, que tem como ícone o
2
A pedagogia tradicional é muitas vezes vulgarizada e mal compreendida no senso comum, carrega
também na retórica do politicamente correto o estigma de ultrapassada, antiquada e retrógrada, adjetivos
indigestos em nossa sociedade do culto às inovações.
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estadunidense Carl Rogers (1902-1987), o sujeito é o grande elaborador do
conhecimento, há primazia às relações interpessoais, ao desenvolvimento da
personalidade, aos processos de construção e organização pessoal da realidade, à vida
psicológica e emocional individual, ao autoconceito, à auto-realização e ao
desenvolvimento de uma autovisão autêntica. Formas autoritárias de planejamento e
controle social não são aceitas. Combate a intenção da ciência em conduzir à perda
individual da personalidade. Aqui, o professor(a) é um facilitador da aprendizagem e
não um transmissor de conteúdos, isto é, cria-se condições para o aprendizado. O
conteúdo surge das próprias experiências que os estudantes (re)constroem e nas
atividades com o meio.
Na abordagem comportamentalista ou behaviorista, que tem como
idealizador o estadunidense Skinner (1904-1990), segundo MIZUKAMI (1986), o
conhecimento é resultado direto da experimentação planejada e consiste na ordenação
das experiências e eventos, estando a ciência incumbida em descobrir esta ordem para
utilização e controle. As metodologias focam no modelamento e na manipulação do
reforço positivo ou negativo do comportamento humano, no planejamento minucioso
das contingências e sequências de aprendizagem, no treinamento do comportamento e
habilidades e no desprezo aos elementos não observáveis. Assim, a educação se
preocupa com o que é mensurável e observável. A transmissão de conteúdos aos
estudantes, que são receptores passivos de informações, visa à competência. O
professor(a) torna-se então responsável por planejar e desenvolver as estratégias de
ensino e aprendizagem.
Na abordagem cognitivista, com base biológica, destaca-se o suíço Piaget
(1896-1980) que teve grande influência indireta nas recentes políticas públicas
brasileiras. Para MIZUKAMI (1986), o foco aqui está na compreensão de como ocorre
a organização do conhecimento, o processamento da informação e a capacidade do
estudante integrar e processar dados. O conhecimento se dá na (re)formação de
estruturas cognitivas, subordinadas à influência externa, e não na justaposição defendida
pelos comportamentalistas. Cabe ao professor(a) conhecer profundamente os conteúdos
para orientar a exploração autônoma do meio pelo estudante de forma que possa propor
situações que desequilibrem um conhecimento prévio mais simples para reestruturá-lo
mais complexamente.
19
O estadunidense Ausubel (1918-2008) é outro relevante pensador desta
abordagem, que de um lado, para MOREIRA (1985), traz como conceito central: a
aprendizagem significativa3 (um processo de ancoragem de uma nova informação na
estrutura cognitiva específica e preexistente do aprendiz); de outro lado, defende uma
perigosa perspectiva cultural determinista, que pode conduzir a uma prática étnicoracial-cultural pedagógica preconceituosa, conservadora e de exclusão. Neste sentido,
no processo de ensino e aprendizagem, os estudantes teriam pontos de partidas e
idiossincrasias próprias e diferentes e nem todos(as) estariam aptos a aprender. Segundo
Ausubel, a aprendizagem significativa depende ao menos de dois fatores:
“a natureza do assunto a ser aprendido e a natureza da estrutura
cognitiva de cada aluno. [...] Quanto à natureza do assunto, esta deve
[...] permitir o estabelecimento de uma relação não arbitrária e
substantiva com as idéias correspondentemente relevantes localizadas
no
domínio
da capacidade intelectual humana
(idéia
correspondentemente relevante que pelo menos alguns seres humanos
são capazes de aprender se a eles é dada a oportunidade que tal
ocorra).” No que diz respeito à estrutura cognitiva de cada um(uma),
defende que a “aquisição significativa enquanto fenômeno natural
ocorre em seres humanos particulares – não na espécie humana de
uma maneira geral. Portanto, para que a aprendizagem significativa
ocorra de fato, não é suficiente que as novas informações sejam
simplesmente relacionadas [...] a idéias correspondentemente
relevantes no sentido abstrato do termo (a idéias correspondentemente
relevantes que alguns seres humanos estão aptos a aprender sob
circunstâncias apropriadas); é também necessário que o conteúdo
ideacional relevante esteja disponível na estrutura cognitiva de um
determinado aluno. [...] Consequentemente, segue-se que o potencial
significativo do material a ser aprendido varia não somente em relação
à experiência educacional prévia como também a fatores tais como
idade, QI, ocupação, condições sócio-culturais”. (AUSUBEL e col.,
1980, p. 36-7).
Essa dimensão reafirma a ideologia de que as classes populares não têm,
comparativamente com a elite dominante, a mesma capacidade cognitiva de aprender
determinados conteúdos, justamente estes conhecimentos que poderiam contribuir
diretamente no seu processo emancipatório. Por associar o fracasso escolar aos aspectos
étnico-culturais, Ausubel disseminou o pensamento de que a instituição escolar pouco
3
“A essência do processo de aprendizagem significativa é que as idéias expressas simbolicamente são
relacionadas às informações previamente adquiridas pelo aluno através de uma relação não arbitrária e
substantiva (não literal)”, isto é, “as idéias são relacionadas a algum aspecto relevante existente na
estrutura cognitiva do aluno [...] pressupõe que o aluno manifeste uma disposição [...] para relacionar [...]
o novo material à sua estrutura cognitiva – e que o material aprendido seja potencialmente significativo”.
(AUSUBEL e col., 1980, p. 34)
20
ou nada influenciava no aprendizado do estudante, o que levou à consolidação de
sistemas de ensino público segregadores e discriminatórios.
Já na abordagem sócio-político-cultural, de ênfase também na interação
sujeito-meio, destaca-se mundialmente o brasileiro Paulo Freire (1921-1997). Para
MIZUKAMI (1986), nesta perspectiva a educação não se limita a contextos formais,
assumindo um caráter amplo e político de ensino e aprendizagem. A ciência aqui é um
produto histórico, por isso, não é neutra, e o conhecimento é a transformação contínua
de conteúdos programados e não a sua mera transmissão. Isso não significa
desconsiderar o aspecto técnico da educação não é desconsiderado. O professor está
engajado em uma prática dialógica, libertadora, desmistificadora e questionadora da
cultura dominante, permitindo que o estudante possa ter o máximo de autonomia ativa e
reflexiva sobre a realidade e as contradições sociais em que está inserido.
Ao observar a construção do fenômeno educativo nos últimos séculos, fica
evidente que o processo de ensino e aprendizagem, por não ser neutro, sempre ocorrerá
dentro de preceitos ideológicos de concepções de mundo, sociedade, escola, ser humano
e natureza e que, na sociedade capitalista, na qual a instituição escola ganha status de
imprescindibilidade, a escolarização fica cada vez mais condicionada pela dimensão
econômica, caracterizada pelos privilégios a poucos, desigualdades (em todos os
aspectos (i)materiais), individualidade e competição. Cabe então aos agentes, diretos e
indiretos, da educação brasileira, em especial das séries iniciais do ensino público
fundamental – que recebe o enorme contingente de pessoas oriundas de camadas
populares, historicamente oprimidas pela cultura dominante – compreender profunda e
criticamente o que representa sócio-político-pedagogicamente a prática de cada uma
dessas abordagens pedagógicas, para fazer as suas escolhas que beneficiem
concretamente a coletividade. Escolher explicitamente, portanto, se contribuirá com a
conservação ou com a subversão desta ordem vigente.
Nesta reflexão didático-histórica sobre o processo de ensino e aprendizagem
das séries iniciais das escolas públicas de ensino fundamental, cada vez mais imerso em
um complexo e contestado mosaico de teoricas, ideologias, demandas, necessidades e
tensões oriundas dos diversos setores da sociedade – público, privado, terceiro setor,
academia e sociedade civil – é preciso ressaltar as constantes interferências que estes
inúmeros e multifacetados aspectos promovem junto à práxis do papel e função da
instituição escola e de seus professores(as). Quando impostas pela esfera pública e
21
articulada pelo setor privado, geralmente se concretizam como retrocessos à busca de
uma educação pública sócio-político-pedagogicamente eficiente.
No cenário de total desfavorecimento da grande maioria populacional
explorada histórica e sistematicamente, o efetivo ensino e aprendizado da língua
portuguesa nas séries iniciais do ensino fundamental público, uma abordagem sócio4
político-cultural , é essencial, um divisor de águas na promoção da libertação,
emancipação e autonomia crítico-intelectual da população, por conseguinte, no seu
conceber e agir no mundo. Torna-se também imprescindível a fomentação
fundamentada do sonhar e caminhar coletivamente na direção de outras possibilidades
de ser vislumbrando e agindo em prol de outra ordem social possível. Para OLIVEIRA
e MIZUKAMI (2002, p. 16) transcendemo-nos a “participantes da humanidade quando
nos assenhoramos da capacidade de ler, de escrever [...] nessa contínua preparação para
o futuro, para o que virá, para a mudança”.
MARQUES (2007, p. 20) lembra que a educação pública básica tornou-se
condicionante sine qua non “na qualidade que se obtém ou se deseja obter em outros
campos da sociedade, tais como o social – no combate à pobreza, à injustiça e à
desigualdade; o cultural – na formação de novos hábitos e valores; o político – na
construção da cidadania ativa e crítica; e o ambiental – na sustentabilidade do planeta e
de todas as formas de vida.”
Aqui, a alfabetização político-social defendida por diversos autores cumpre
um essencial papel de instrumento sensibilizador e mobilizador dos indivíduos na luta
por seus direitos. Segundo GIROUX (1997) a reflexão e ação críticas tornam-se parte
do projeto social fundamental de ajudar os estudantes a desenvolverem uma fé profunda
e duradora na ação para superar injustiças econômicas, políticas e sociais, e
humanizarem-se ainda mais como parte desta luta.
No contexto brasileiro recente das políticas públicas educacionais, em nível
federal merece destaque a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – lei
4
Esta abordagem, que alguns autores denominam de letramento, alfabetização crítica ou radical, será
melhor tratada no item 2.2 “Alfabetizar ou Letrar?”. Contudo, cabe adiantar que ela vai ao encontro do
que defende GIROUX (1990, p. 11) a respeito da alfabetização crítica ou radical que é tanto uma
narrativa para a ação – “precondição para o engajamento em lutas em torno tanto de relações de
significado, quanto de relações de poder [...] presente [...] na luta pela reivindicação [...] da própria
história” – quanto um referente para a crítica – “precondição básica para a organização e a compreensão
da natureza socialmente elaborada da subjetividade e da experiência, e para a avaliação de como o
conhecimento, o poder e a prática social, podem ser moldados coletivamente [...] para uma sociedade”.
22
9394/96) de 1996 e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1997, que estão em
consonância com a determinação política neoliberal orientando a organização curricular,
como abordado por SACRISTÁN (1998): a especificação das áreas de conteúdos; a
ordenação das especializações; a ponderação da carga horária das áreas de
conhecimento; a distribuição do conhecimento para legitimar o sistema escolar; o
princípio de igualdades de oportunidades; as formas de controle para se alcançar os
objetivos; e o controle do material didático.
A LDB, que definitivamente não representou o longo e caloroso processo
democrático e participativo desenvolvido por diversos setores da sociedade brasileira,
desde os anos 1980, acabou imposta por meio de articulações políticas, praticamente um
golpe político. Mesmo assim, houve avanços ao consolidar e ampliar o dever do Estado
com a educação em geral e, em particular com o ensino fundamental. Por outro lado,
reforçou a necessidade de se proporcionar uma formação básica a todos(as),
pressupondo a formulação de um conjunto de diretrizes capaz de guiar os currículos e
seus conteúdos mínimos, fato consumado e concretizado pelos PCN, abortando todas as
experiências em andamento no país e centralizando as decisões curriculares para poder
aplicar as provas nacionais de avaliação de retenção de conhecimentos.
Fica evidente, em diversas passagens da LDB, a concepção educacional
voltada ao trabalho, conforme pode ser verificado no XI Princípio presente no artigo 3:
“vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.” E no artigo 22:
“a educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a
formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para
progredir no trabalho e em estudos posteriores.” (BRASIL, 2010a).
Já nos PCN, BRASIL (2010b), à medida que novas relações entre
conhecimento e trabalho começaram a acontecer e a sociedade contemporânea se tornou
mais complexa em todas suas esferas, houve a necessidade de repensar o papel da
instituição escola, objetivando aos estudantes a
“sua capacitação para a aquisição e o desenvolvimento de novas
competências, em função de novos saberes que se produzem e
demandam um novo tipo de profissional, preparado para poder lidar
com novas tecnologias e linguagens [...] e, mais do que nunca,
“aprender a aprender”.” (p. 27)
23
Ao professor(a) compete o papel de “apresentar os conteúdos e atividades
de aprendizagem de forma que os alunos compreendam o porquê e o para que do que
aprendem”. (p. 48) Assim, a escola deve se ajustar e selecionar os conteúdos para
auxiliar os educandos(as) a se adequarem às vivências a que serão expostos. O que
deflagra e condiciona as classes populares a uma postura passiva e de enquadramento ao
status quo vigente.
Para compreender, crítica, objetiva e subjetivamente, os reais propósitos
ideológicos dos PCN, é preciso ter em mente que foram concebidos sob a consultoria do
neoconstrutivista espanhol César-Coll e a luz do relatório da UNESCO-ONU sobre a
educação para o século XXI, que teve como relator o francês Jacques Delors. Estes
guiam as políticas públicas educacionais brasileiras que concebem uma escola voltada à
formação para o mercado de trabalho e focada em três dos quatro pilares para a
educação do século XXI: o saber viver juntos e o saber ser que são voltados aos
conteúdos atitudinais do processo de ensino e aprendizagem e o saber-fazer, de fundo
procedimental ou instrumental. Praticamente não se considerou o saber-conhecer,
voltado ao conteúdo conceitual da prática pedagógica, item fundamental no processo de
emancipação das classes populares. Segundo MORETTI (2006), a pedagogia das
competências, voltada à inserção social pela qualificação profissional se oficializou no
Brasil por meio dos PCN, nos quais sugere ou mesmo se impõe um currículo sustentado
na instrumentalização dos estudantes voltada prioritariamente ao mercado de trabalho.
Como pedagogo que comunga com uma perspectiva escolar críticorevolucionária, e sabendo da existência de outros(as), não muitos, mas com enorme
força transformadora, abro mão do meu herdado e conquistado status quo social,
econômico, cultural e acadêmico, cultivado numa sociedade que me privilegiou e, ainda
o faz, cotidianamente devido ao meus marcadores sociais de gênero, étnico-raciais, de
escolarização, entre outros, para bradar em prol da urgente necessidade de se iniciar um
movimento voltado a uma outra possibilidade de existência humana, na qual a ética, a
solidariedade, a dialogicidade, a democracia e a equidade sejam pontos de partida para
se chegar a um outro paradigma de sociedade possível, o qual passará inevitavelmente
por uma escolarização orgânica, portanto, de qualidade emancipatória, para e com
todos(as). Neste holograma não caberão abordagens pedagógicas mantenedoras de
contradições sociais viciadas em benefício dos mesmos poucos de sempre, nem
daqueles que saíram, mesmo que em relações locais, da condição de oprimidos e nesta
24
nova condição voltam-se como algozes contra a sua história e “irmãos(ãs)”
oprimidos(as).
Compreender crítica e politicamente os meandros da trajetória da construção
do processo de ensino e aprendizado, em especial para os professores(as)
alfabetizadores(as) de crianças de escolas públicas, que estão cotidianamente no “chão
da escola”, é indispensável à efetividade de sua práxis sócio-pedagógica, empoderandose para se posicionar de forma embasada e fazer escolhas consequentes dentro de seus
contextos, necessidades e função/papel de educador(a) promotor de um ensino e
aprendizagem integral, crítico e emancipador. Para tanto, é preciso explicitar de que
lado nós docentes estamos e de que lado queremos e precisamos estar.
25
2. QUESTÕES CENTRAIS NA “ALFABETIZAÇÃO” DE
CRI ANÇ AS
Como veremos no item 2.2 – Alfabetizar ou Letrar? – por não haver ainda
um consenso entre os professores(as) das redes de ensino e mesmo entre os
pesquisadores(as) sobre o conceito de letramento (se o seu escopo é um estado, um
processo, uma habilidade, uma condição de quem sabe ler e escrever, conforme
mencionado por GERALDI (2011)), a perspectiva de alfabetizar letrando ou
alfabetização crítica e radical, é aqui nominada pelo termo alfabetização entre aspas,
para explicitar e esclarecer a concepção aqui adotada, que transcende a mera
(de)codificação técnica do ensino e aprendizado da língua nas séries iniciais das escolas
públicas de ensino fundamental. Volta-se sim e afirmativamente ao seu efetivo uso
crítico-político-social pelas classes populares, em prol da promoção de uma consciência
que permita a sensibilização e mobilização desta parcela da população na transformação
de seu contexto e realidade que historicamente a oprimiu e a conservou nesta condição
social.
Neste sentido, defendo aqui o ensino e aprendizado da leitura e escrita como
elemento social indispensável e contribuinte na transformação de grande parcela
populacional, oriunda de classes populares, que utiliza a escola pública fundamental,
legalmente obrigatória do 1º ao 9º ano. Portanto um processo de “alfabetização” que
está muito além da mera (de)codificação da língua e que se configura como
potencializador da conscientização de cada indivíduo e da realidade em que está
inserido, o que, consequentemente, permite promover uma práxis subversiva da ordem
vigente. De modo que, ao rever suas (pre)concepções e (pre)conceitos, desencadeados
pela radicalidade desta “alfabetização” crítica, um “novo” mundo surge, até então não
percebido, com concepções e conceitos ampliados e mais complexos, que novamente,
durante este processo, serão refletidos, numa eterna dialética da gênese da humanização.
Neste capítulo, busca-se analisar crítica, política, social e pedagogicamente
algumas polêmicas questões, costumeiras entre os docentes alfabetizadores formados ou
em formação, veteranos ou iniciantes, no cotidiano da escola pública, para que se
tornem mais assertivas as tomadas de decisões envolvidas no processo de
“alfabetização” de crianças que estão com estes profissionais e de outros envolvidos
direto ou indiretamente com essa instituição. Assim, procurou-se desenvolver um estudo
26
reflexivo sobre os seguintes questionamentos: O que precisa ser compreendido sobre a
linguagem na “alfabetização”? Alfabetizar ou letrar? Qual a relevância dos textos na
“alfabetização”? E, “alfabetização” é uma questão de método?
2.1 O
que
precisa
ser
compreendido
sobre
linguagem
na
“alfabetização”?
(Peço perdão pela minha ignorância,
Eu venho assim desde a minha infância).
Desde pequeno aprendi a decidir,
Quebrando o galho pelo meio que quisesse.
Na escola o pouco, pouco tempo que fiquei,
Foi muito pouco para que eu me rendesse.
Meu pai dizia "filho meu não foge à luta",
Se orgulhava das façanhas do herói.
---(Peço perdão pela minha ignorância
Educação foge-me à lembrança).
(letra e música Peço Perdão de Itamar Assumpção)
Busca-se aqui ampliar a compreensão crítica dos aspectos práticos e teóricos
envolvidos com a questão da linguagem no desenvolvimento do processo de
“alfabetização” de crianças. Acredita-se na sua essencialidade e urgência na práxis
sócio-político-pedagógica de professores(as) que atuam no ensino e aprendizagem da
língua portuguesa das séries iniciais da escola pública de ensino fundamental, agentes
imediatos, concretos e iniciais da escolarização.
Conforme veremos no decorrer deste tópico, a linguagem é instrumento de
extrema relevância no forjar de uma maior e efetiva qualidade transformadora da ação
docente e, consequentemente, na (re)construção da função sócio-crítico-libertadora
dessa instituição, frequentada quase que exclusivamente pelas pessoas de classes
populares, devido ao seu menor poder econômico, sua (des)valorização pela
escolarização (por motivos geralmente relacionados a sua sobrevivência) e à
obrigatoriedade regida pelas leis. Assim, histórica e intencionalmente oprimidas,
potencializam as chances de se tornarem verdadeiras marionetes, passivamente
anestesiadas, no jogo conservador e reprodutor concebido e implacado pelas elites que
27
herdam, acumulam e usurpam privilégios que devem, por direito e ética, ser de usufruto
coletivo.
Como ponto de partida, considerando o campo da linguística dentro de uma
perspectiva histórico-cultural e dialógica, acompanho FARACO (2009, 53) que reflete
sobre a dinamicidade intrínseca ao universo das significações estética e ética da
linguagem presente no pensamento do filósofo Bakhtin – como ele mesmo se
denominava – e explicita que “a reação ao caráter infinito (centrífugo) da semiose
humana será parte inerente do jogo de poderes sociais. As vontades sociais de poder
tentarão sempre estancar, por gestos centrípetos, aquele movimento.” Por isso, tentarão
impor uma única verdade; submeter a heterogeneidade discursiva; dar a última palavra;
tornar o signo (ponto de vista valorativo) monovalente; e, por fim, finalizar o diálogo.
Segundo BRAIT (2005), Bakhtin não permite uma abordagem puramente
linguística sobre a questão da construção e instauração do sentido e da significação na
linguagem, que passa necessariamente pelo dialogismo, tendo como um dos eixos
centrais de suas pesquisas a busca das formas e graus de representação da
heterogeneidade constitutiva da linguagem, como pode ser observado nas suas reflexões
sobre a natureza interdiscursiva, social e interativa da palavra e a interdiscursividade
como condicionante da linguagem.
Neste sentido, de acordo com PINO e GIOVANI (2010, p. 18), Bakhtin
contrapõe-se à concepção de linguagem estruturalista, descritiva e classificatória de
Sausurre e ao racionalismo cartesiano de Chomsky – que busca superar a perspectiva
sausurriana considerando “o indivíduo dotado de uma competência linguística que lhe é
inata, independente do meio em que vive”. Desconsideram o contexto sócio-histórico e
ideológico em que se engendra a interação, assim como as idiossincrasias das partes
envolvidas. Enquanto Sausurre reconhece apenas o enunciado (o dito, a língua),
desconsiderando a situação da enunciação (o contexto social em que se desenvolve a
interação), Bakhtin opera com dois sentidos: o enunciado – que tem suas fronteiras
determinadas pelos sujeitos falantes; e a enunciação, considerando ainda as questões
macroestruturais e sociais envolvidas.
Bakhtin (apud FARACO, 2009) considera também que não pode haver
enunciados neutros. “Todo enunciado emerge sempre e necessariamente num contexto
cultural saturado de significados e valores”, portanto ideológico, sendo sempre “uma
28
tomada de posição neste contexto.” (p. 25) Portanto, “a significação dos enunciados tem
sempre uma dimensão avaliativa, expressa sempre um pensamento social valorativo.
[...] não existe enunciado não-ideológico.” (p. 47)
Segundo PINO e GIOVANI (2010, p. 23-4), para melhor compreender essa
perspectiva, faz-se necessário definir alguns temas bakhtinianos relacionados à
linguagem, como é o caso do signo e da palavra. Para Bakhtin, signo é “todo e qualquer
objeto material que recebe uma ou mais função no conjunto da vida social [...]
representa a realidade a partir de um lugar, comportando um ponto de vista valorativo
[...] que o faz pertencer ao [...] domínio ideológico”, assim, “o signo e a situação social
[...] estão indissoluvelmente ligados.” Já a palavra, é um signo aparentemente neutro,
contudo pode suprir qualquer função ideológica de acordo com o contexto em que é
empregada, por isso, é plurissignificativa e escolhida segundo seus interlocutores e
situações de vida em que foram criadas, estando, desta forma, impregnadas de valores.
Pode-se dizer que a significação do mundo desenvolve-se sempre por meio
da refração valorativa semiótica, isto é, os signos não apenas refletem o mundo, mas
principalmente os refratam, os interiorizam. Nesta perspectiva da refração no processo
de referenciação, Bakhtin (apud FARACO, 2009) entende que os signos tanto refletem
como refratam o mundo, pois, “podemos apontar para uma realidade que lhes é externa
(para a materialidade do mundo), mas o fazemos sempre de modo refratado”, portanto,
“nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos [...] diversas interpretações
(refrações) desse mundo.” (p. 50-1)
Ou seja, de acordo com Bakhtin (apud FARACO, 2009), os signos são
valorativamente multissêmicos e “não é possível significar sem refratar”, pois, “as
significações não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas por um sistema
semântico abstrato [...] mas são construídas na dinâmica da história e estão marcadas
pela diversidade de experiências dos grupos humanos, com suas inúmeras contradições
e confrontos de valorações e interesses sociais.” (p. 51) Resultam deste processo “as
inúmeras semânticas, as várias verdades, os inúmeros discursos, as inúmeras línguas e
vozes sociais [...] com que atribuímos sentido ao mundo.” (p. 52) Neste sentido pensa a
linguagem “não como um sistema de categorias gramaticais abstratas, mas como uma
realidade axiologicamente saturada; não como um ente gramatical homogêneo, mas
como um fenômeno sempre estratificado [...] pela saturação da linguagem pelas
axiologias sociais, pelos índices sociais de valor.” (p. 56)
29
Na efetiva ação do ensino e aprendizagem da língua materna desenvolvida
na concretude das séries iniciais da escola pública de ensino fundamental, considerar
objetivamente a dimensão da linguagem torna-se fator primordial na contribuição da
promoção de uma sociedade mais equitativa, ética, solidária, dialógica e para/com
todos(as), pois potencializa-se a compreensão crítica e sócio-política pelas classes
populares
a
respeito
das
questões
(supra)estruturais
dominantes.
O
que,
concomitantemente, fertiliza o seu desejo de reivindicar e participar da gênese de um
outro paradigma para a escola pública de ensino básico.
Devido ao seu potencial libertador, por atender a gigantesca maioria dos
brasileiros(as) e por sua imensa capilaridade e diversidade social, étnica e cultural, esta
instituição torna-se estrategicamente uma arena imprescindível de luta, que deve passar
de forma inevitável pela subversão radical e concreta da prática vigente entre as quatro
paredes da sala de aula, da gestão e organização escolar e da concepção e implantação
de políticas públicas educacionais.
Nesta relação linguagem e sociedade, segundo BRAIT (2005, p. 94),
Bakhtin busca responder “em que medida a linguagem determina a consciência, a
atividade mental, em que medida a ideologia determina a linguagem, interessando-se
pela natureza social dos fatos linguísticos, o que significa entender a enunciação
indissoluvelmente ligada às condições de comunicação, que, por sua vez, estão sempre
ligadas às estruturas sociais.”
Portanto, cabe a nós, profissionais da educação, (re)tomar com a
radicalidade necessária a função e o papel da instituição escolar, que não estejam
voltados à conservação e reprodução das mazelas sociais, mas sim à libertação
autônoma das classes oprimidas que se faz: na emancipação do ser humano por meio da
“antropofagia” equitativa e formal dos conhecimentos produzidos pela humanidade na
qual a língua materna padrão é fundamento indispensável para potencializar a
autonomia dialética do(a) estudante, isto é, colocando suas concepções e valores em
conflito para produzir outras formas de pensar e agir no mundo, mais complexas,
fundamentadas e críticas. Fato que permite potencializar, junto a esta massa
populacional – que paradoxalmente depende da escola pública básica para desvelar as
injustiças, opressões e desigualdades as quais é submetida – a sua práxis como agente
transformador de si e de sua realidade.
30
Desta forma, guiar-se-á em oposição às ideologias dominantes e opressoras
que, por exemplo, negam e ridicularizam sua cultura, e estão impregnadas nos signos da
língua: aqui a palavra escrita menospreza a palavra de mundo, concebida na experiência
de vida sui generis de cada contexto social individual e coletivo. Para GERALDI
(1997), a maioria das variedades linguísticas se constitui, na escrita, a partir da
variedade culta, crivo legitimador e valorizador da língua dominante e de quem a
utiliza.
Então, no processo de ensino e aprendizagem da língua portuguesa,
considerar os elementos intrínsecos da linguagem, significa empoderar o sujeitoestudante para que faça parte de campos sociais que não foram herdados gratuitamente,
conquistando-os. O que o torna capaz de (re)ver e ampliar crítica, reflexiva, dialógica,
democrática e politicamente suas concepções de mundo, de sociedade, de escola e de
ser humano, o que o(a) levará, pelo menos em potencial, ao protagonismo ativo junto à
necessária subversão da ordem social vigente, fundada historicamente em privilégios e
benefícios destinados a uma pequena parcela da população opressora.
Neste sentido, BOURDIEU (1997) elaborou alguns conceitos fundamentais
para melhor entender as engrenagens que movem e são inerentes à realidade da escola
pública. O conceito campo, por exemplo, nos revela quem está dentro ou fora,
habilitado ou desabilitado, em determinada área do conhecimento-científico ou saber
valorado socialmente, e permite-nos compreender as estratégias e técnicas de exclusão
dos desfavorecidos e o estabelecimento condicionado das relações sociais em prol de
quem detém este conhecimento.
Para compreender as regras existentes, os sujeitos envolvidos e suas funções
estabelecidas em um determinado campo, esse autor desenvolveu o conceito de habitus,
que nos desvela o conjunto de disposições normalizadoras, internalizadas pelo indivíduo
ao longo do seu processo de institucionalização, que em grande medida ocorre na escola
e que o torna refém das regras e dos símbolos engendrados paulatina, ideológica,
burocrática e massificadoramente. “Quando as representações oficiais daquilo que um
homem é oficialmente em um espaço social dado tornam-se habitus, elas se tornam o
fundamento real das práticas.” (BOURDIEU, 1997, p. 152)
FOUCAULT (1998, p. 10), desenvolveu o conceito discurso, também
relevante à compreensão da instituição escolar, relacionando-o não ao que falamos e
31
pensamos, mas ao que nos move a falar e a pensar, definindo-o como a arena na qual se
cria o embate, o campo social e físico das disputas, e, consequentemente, produz
costumes e predisposições, aspecto que nos remete ao habitus a que se refere Bourdieu.
Desta forma, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas
de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos
apoderar.”
Dentro da perspectiva sócio-cultural bakhtiniana e do processo de
alfabetização, em relação ao arcabouço teórico envolvido na compreensão do conceito
linguagem, é relevante citar as contribuições de Freire e Vygotsky. Segundo REYES e
col. (2010), esses pensadores consideram a formação humana, isto é, a própria
humanização, como um contínuo processo histórico-cultural de interação do ser humano
com o seu meio e com os outros sujeitos. Para tanto, a linguagem, e o exame crítico
desta, viabilizam o diálogo: forma de comunicação promotora de novas aprendizagens
e, por conseguinte, da autotransformação, da elevação das concepções de mundo de
cada um(uma), a partir da qual conduz à práxis dialética sobre os condicionantes
(macro)estruturais do contexto sócio-cultural que está inserido, ou seja, potencializa o
desenvolvimento de ações para a radicalidade da transformação dos marcadores sociais
desfavoráveis, discriminatórios, desigualitários e opressores (econômico, político,
ambiental e cultural).
Cabe destacar que o diálogo é o pilar do pensamento bakhtiniano,
considerado, conforme FARACO (2009), de caráter intrinsecamente social ocupando-se
“com o complexo de forças que nele atua e condiciona a forma e as significações do que
é dito ali.” (p. 61) Portanto, seu objeto é constituído pelas relações dialógicas, espaço
em que ocorre o entrecruzamento das múltiplas verdades sociais, isto é, o confronto das
diferentes refrações sociais. Para haver relações dialógicas é preciso marcar o enunciado
com a posição de um sujeito social, com índices sociais de valor. Assim, aceitar uma
voz social, um enunciado, é ao mesmo tempo recusar outras vozes sociais, outros
enunciados.
Neste sentido, para Bakhtin (apud FARACO, 2009, p. 69-70) o diálogo
“deve ser entendido como um vasto espaço de luta entre as vozes sociais [...], no qual
atuam forças centrípetas (aquelas que buscam impor certa centralização verboaxiológica
por sobre o plurilinguismo real) e forças centrífugas (aquelas que corroem
continuamente as tendências centralizadoras)”. Em um mundo polifônico [todas as
32
vozes são equipolentes] a multiplicidade de vozes tem o direito à cidadania em um
diálogo infinito.
Acredita-se que, dentro de um processo de comunicação dialógica, para que
seja fértil a interação docente-discente em sala de aula e promova efetivamente o ensino
e aprendizado, de acordo com Rommetveit (apud REYES e col., 2010, p. 36), ambos
sujeitos precisam compartilhar de uma mesma realidade social – não necessariamente
fazendo parte desta – caso contrário, poderá não ocorrer a real compreensão pelas
partes, isto é, não ocorrerá o ensino e muito menos a aprendizagem. Acredita-se que “a
fala serve para propiciar uma determinada interpretação e criar uma realidade
temporalmente compartilhada” e como adulto e criança “não compartilham as mesmas
definições é necessário identificar alguns pontos de intersubjetividade para que a
comunicação ocorra de maneira eficiente.” Sempre lembrando que para Vygotsky a
forma de intervenção objetiva docente é essencial e está diretamente relacionada com o
aprendizado da criança, propiciando o desenvolvimento das funções psicológicas
superiores.
Portanto, no processo de alfabetização em língua portuguesa, o docente
deve,
a
priori,
compreender
dialogicamente
os
conhecimentos,
habilidades,
necessidades e demandas de aprendizado reais de cada estudante (o que já está
interiorizado pelas experiências vividas) e potenciais (o que está ao mesmo tempo
latente e emergente), inscritos em cada contexto sociocultural, para que possa
objetivamente (re)planejar, (re)implementar e (re)diagnosticar suas estratégias e ações
de ensino e aprendizagem, assim como a sua própria posição cidadã e de ativismo.
Busca-se o estabelecimento de uma comunicação eficiente que potencialize e promova
o ensino e aprendizagem. Lembrando que ao pensarmos em uma educação formal que
prima pela libertação, aspectos como a linguagem e o diálogo tornam-se fundantes na
promoção da transformação reflexiva e autônoma dos educandos(as) e de suas
realidades.
Para Bakhtin (apud FARACO, 2009), “ser significa se comunicar, significa
ser um outro e, pelo outro, ser para si mesmo [...] sendo a alteridade e a
intersubjetividade, portanto, absolutamente indispensáveis”. (p. 76) “A alteridade
precede e é constitutiva da identidade. [...] Devo a presença do Tu minhas
possibilidades existenciais.” (p. 156)
33
No que diz respeito diretamente ao ensino da língua portuguesa escrita, para
melhor entender e desenvolver ações pedagógicas promotoras do aprendizado,
Vygotsky (apud REYES e col., 2010) diferencia a dimensão oral (referente à expressão
imediata) da escrita (relacionada ao uso de normas do significado da palavra e ao
esforço intencional e consciente, formada por signos que identificam os sons e as
palavras da dimensão oral) e defende que é preciso considerar o que condiciona uma
criança a escrever. Para tanto, considerar os diversos aspectos envolvidos na fase de
pré-escrita da alfabetização é essencial. Para Luria (apud REYES e col., 2010), ao entrar
na escola as crianças já dominam diversas técnicas que as preparam para a escrita.
Compreender esta fase, a pré-história da linguagem escrita, torna-se relevante
instrumento para a efetividade da ação dos professores(as) no ensino e aprendizado da
língua materna.
Além disso, a escola, em especial a rede pública de ensino (por atender a
parte da população que não tem em sua cultura o uso da norma culta da língua), deve
priorizar equitativamente a escrita no seu cotidiano pedagógico, o que permitirá, pelo
menos em potencial, que os discentes desmistifiquem e interiorizem o significado social
da língua escrita como forma de interação, comunicação e emancipação.
Desta forma, ao considerar a escola pública um lócus colaborador no
processo
transformador
dos
sujeitos
e
da
ordem
vigente,
explicita-se
a
imprescindibilidade de haver objetiva e concretamente a intervenção pedagógica no
processo de apropriação da dimensão escrita da língua materna, a qual possibilitará o
diálogo, ou mesmo o embate intelectual, ou não, sob o holofote desvelador da
pluralidade e complexidade (macro)estruturais inerentes às questões linguísticas e
sociais, envolvendo múltiplas dimensões que a perpetuação dos condicionantes
ideologicamente opressores e alienadores, instalados historicamente nesta sociedade,
tem mantido.
Para aprofundar a compreensão sobre linguagem, à luz da perspectiva
dialógica freireana, é preciso compreender a concepção de educação e de ser humano
desenvolvidas. FREIRE (2005) entende que o paradigma educacional deve se sustentar
no diálogo – único meio capaz de promover a humanização, vocação ontológica dos
seres humanos que são socialmente constituídos – para revelar e refletir criticamente a
realidade opressora, gerada pela desumanização, e, assim, desenvolver, por meio da
práxis uma consciência para a transformação do sujeito e do contexto no qual está
34
inserido. Para tanto, a função central da instituição escola está na promoção da
conscientização problematizadora do indivíduo, viabilizada pelo diálogo como ponto de
encontro de caráter horizontal. A partir da percepção da realidade como resultado da sua
ação, o sujeito poderá transcendê-la, pois sente-se potente para tal.
Nesse sentido, para REYES e col. (2010), Freire desenvolve o conceito de
linguagem como constitutivo do sujeito e dos significados comunicados. Por meio da
linguagem ocorre o encontro verdadeiro entre os sujeitos, a autotransformação e a
transformação do mundo no qual está inserido, isto porque, ela permite “nomear o
mundo, nomeando-o podemos trazê-lo na mente e refletindo-o imaginar um mundo
mudado”. (p. 57) Contudo, a linguagem se apresenta, paradoxalmente, como um campo
ideológico de possibilidades e, também, de dominação, mas nunca como instrumento
exclusivo de comunicação, fato primordial a ser considerado no processo pedagógico,
para que não ocorra a legitimação da cultura dominante em detrimento das outras. Neste
cenário, a alfabetização tem o objetivo de refletir e criticar a reprodução cultural
vigente, partindo da leitura de mundo para a leitura da palavra, compreendendo a
produção das subjetividades interrelacionais. A ação pedagógica deve partir da
alteridade à linguagem já existente nos educandos(as), isto é, do seu universo cultural,
assim como, da alteridade entre educadores(as) e educandos(as).
Em consonância com essa perspectiva, GERALDI (1997) considera a
linguagem em um campo de alta complexidade política, histórica, social, cultural e
contextual entre o que se fala, o que se percebe e a busca da sistematização aberta e
abstrata. Um fenômeno que tem em sua gênese a atividade interativa e constitutiva de
sujeitos, e que envolvem ações que a própria linguagem faz, que com ela se faz e que se
faz sobre ela, caracterizando-a como um trabalho de produção de sentidos nos discursos.
A linguagem ainda impõe uma realidade, assim como, restrições às ações possíveis.
Acredita o autor que na atual sociedade capitalista de classes, “a desigualdade de
relações leva à formulação de universos discursivos diferenciados [...] pela segregação
que uma classe impõe [...] pela articulação e retomada dos produtos herdados do
passado na produção do universo discursivo presente.” (p. 55-6)
Para GERALDI (1997), a linguagem refere-se, por um lado, ao percebido,
ao que se fala concretamente, por outro lado, à sistematização em aberto que se vai
produzindo nos seus usos, isto é, uma abstração que permite a emergência das
significações, no sentido bakhtiniano do termo, e das configurações gramaticais (da
35
estrutura do gênero ao sistema fonológico de cada língua). É nesse processo que as
classes dominantes produzem as ideologias (todo o signo é ideológico) e as classes
dominadas, por não terem os meios de produção, atomizam e fragmentam suas
concepções de mundo. Encontra-se aqui uma eficaz forma da ação da linguagem sobre
os sujeitos, pois suas consciências se constituem e operam por meio de signos que
adquirem nos espaços de formação que lhes são disponibilizados. O que leva a concluir
que as ações da linguagem interferem e limitam as possibilidades de percepção do
mundo e de raciocínio linguístico-discursivo.
O atual, e já histórico, cenário escolar brasileiro, marcado pela negligência e
despreparo dos tomadores de decisão, assim como, dos próprios agentes educacionais,
em especial na escola pública de ensino fundamental, se ancora em condicionantes
ideológicos, políticos, sociais e estruturais que requerem, para o seu desvelar e
consequentes ações transformadoras, uma objetiva, contínua, sistematizada, crítica,
democrática e dialógica compreensão das diversas realidades escolares, o que passa,
inevitavelmente, e como ponto de partida pela dimensão do ensino e aprendizagem da
língua portuguesa, por ser base de acesso e apreensão das outras áreas de conhecimento,
que será tanto mais eficiente quanto mais se considerar pedagogicamente, no “chão da
escola”, a potencialidade emancipatória da linguagem.
Segundo GERALDI (1997, p. 4-5), a linguagem é fundamental para o
desenvolvimento do ser humano, pois, conduz à “apreensão de conceitos que permitam
os sujeitos compreender o mundo e nele agir”, é a mais usual forma de (des)encontros e
confrontos. Torna-se necessário pensar o ensino da língua portuguesa à luz da
linguagem tendo como ponto de saída a interlocução, espaço de produção da linguagem
e de constituição de sujeitos. “Focalizar a linguagem a partir do processo interlocutivo e
com este olhar pensar o processo educacional exige instaurá-lo sobre a singularidade
dos sujeitos em continua constituição e sobre a precariedade da própria temporalidade”,
isto é: a língua não está a priori pronta (o processo interlocutivo, na linguagem, a
(re)constrói); os sujeitos se constituem à medida que se interagem (o sujeito se constrói
socialmente nas interações); e as interações ocorrem em um contexto histórico-social
amplo.
Desta forma, GERALDI (1997) defende a interlocução como fonte geradora
da linguagem, dos sujeitos e do universo discursivo, devendo se ater: à historicidade da
linguagem (a fala depende do conhecimento prévio de recursos linguísticos e de
36
operações de construção de sentidos destes recursos no momento da interlocução); ao
sujeito e suas atividades linguísticas (a dinâmica do trabalho linguístico dos sujeitos
como ação constitutiva afastando o mito do eterno recomeçar e o eterno repetir um
sistema de expressões); e ao contexto social das interações (o social e o ideológico
influenciam a linguagem, pois as interações não ocorrem fora de um contexto).
Relacionado a este último aspecto, para esse autor, “os usos da linguagem,
em diferentes instâncias e por diferentes grupos sociais, revelam diferentes graus de
funcionamento dos mecanismos de controle. Numa sociedade altamente dividida,
produzem-se também recursos expressivos distintos.” (p. 72) Fato que se reflete
diretamente no ensino da língua e na produção de enunciações dos processos
interacionais, profundamente comprometidos no sistema escolar, a serviço da sociedade
capitalista vigente. Esta abordagem do ensino da língua portuguesa, sob o prisma da
concepção interacionista da linguagem, permite outra compreensão das interações
realizadas em sala de aula, e trazem alternativas, para além da fala como instrumento de
acesso e apropriação de conhecimento – temas constituídos como conteúdos acabados e
inquestionáveis – e da interação como verificação da incorporação destes conteúdos.
De acordo com Bakhtin (apud FARACO, 2009) a consciência humana se
desenvolve na interação, “tendo uma realidade semiótica, constituída dialogicamente
(porque o signo é, antes de tudo, social), e se manifestando semioticamente, i.e.,
produzindo texto [...] que não são coisas mudas, mas a expressão de um sujeito” (p. 423). “Qualquer texto tem, como seu ponto de partida e como seu elemento estruturante,
um posicionamento axiológico, uma posição autoral.” (p. 90) Desta forma, “todas as
nossas relações com nossas condições de existência [...] só ocorrem semioticamente
mediadas”, isto é, “o mundo só adquire sentido para nós, seres humanos, quando
semiotizado.” (p. 49)
Cabe-nos então, como docentes, indagar: sendo a instituição escola,
concomitantemente, criadora e criatura, como poderá potencializar a emancipação dos
estudantes imersos na histórica pressão em prol da manutenção do status quo alienador
e conservador em operação na sociedade, e por conseguinte, na escola?
Se pensarmos que ainda há uma relativa autonomia das escolas e dos
docentes da rede pública de ensino fundamental e dentro da perspectiva de linguagem
aqui desenvolvida, compete-nos, em especial professores(as), que têm um compromisso
37
sócio-político-pedagógico com os discentes em sala de aula, buscar na ação de leitura,
interpretação e escrita de textos (muitas vezes não escolhidos contextualmente, mas
impostos hierárquica e sistemicamente com foco gramatical, avaliativo e com resultados
quantitativos) a produção de sentidos reais, reveladores das entrelinhas e prescrições
latentes ou explícitas, cultivando um ambiente de reflexões dialógicas nas quais
ocorram intervenções pedagógicas intencionais, mas não dogmáticas.
Lembrando que para Bakhtin (apud FARACO, 2009, p. 43), o texto não é
uma relação sujeito-objeto, mas sempre uma relação sujeito-sujeito – “atrás do texto há
sempre um sujeito, uma visão de mundo, um universo de valores com que se interage.”
As inegáveis diferenças e diversidade étnico-racial, econômica, cultural,
política, religiosa, intergeracional, entre outras, constituintes da comunidade escolar que
frequenta a rede pública de ensino fundamental, se configuram como preciosos
elementos à subversão da ordem dominante vigente, pois, se presentes numa arena
dialógica, permitirão a possibilidade de atribuições dialéticas de sentidos, o que poderá
promover a luta contra preconceitos, discriminações, privilégios de poucos e a
compreensão e respeito ao outro, isto é, a alteridade, um dos alicerces fundamentais do
dialogismo.
Para BRAIT (2005, p. 95), na perspectiva bakhtiniana o dialogismo se
sustenta em duas dimensões: primeiro, a contínua interação entre diferentes discursos
que configuram uma sociedade, não enquanto fala individual, mas como instância
significativa que veiculam socialmente pela interação entre sujeitos, “elemento que
instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem”; e, como segunda
dimensão, as “relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos
discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que, por sua vez, se instauram e
são instaurados por esses discursos.” Aqui dialogismo e dialética aproximam-se, mas
não podem ser confundidos, pois aquele diz respeito ao “eu que se realiza no nós,
insistindo não na síntese, mas no caráter polifônico” dessa relação da linguagem.
Contudo, sócio-político-pedagogicamente, não se pode aceitar todos os
sentidos como adequados, como se o texto não tivesse propósitos, e não fosse
necessário para (des)construir as concepções, como se o autor inexistisse e não
houvesse uma intencionalidade educacional para a aquisição de novos conteúdos e
conhecimentos, confrontando dialeticamente com o já sabido. Neste caso, o docente
38
deve ser o interlocutor dialógico entre o objeto de estudo (texto) e a aprendizagem. A
escola (sala de aula) seria então um lócus de produção de sentidos e de reflexão sobre os
(pre)conceitos, (pre)concepções e (com)textos vigentes em nossa sociedade.
Assim sendo, considera-se necessário e urgente forjar um outro paradigma
educacional de cunho transformador, que considere a linguagem no processo de ensino
e aprendizado da língua portuguesa, dentro da perspectiva aqui apresentada, isto é,
como interação sócio-crítico-política. Neste sentido, é preciso levar em conta a
perspectiva sociosemiótica, ou seja, a internalização dos signos opressores, desvelandoos desde os primeiros passos formais da alfabetização nas séries iniciais do ensino
fundamental pública.
Cabe à escola pública de ensino fundamental e aos seus educadores(as), em
especial os docentes, valorizar e usufruir, em seus procedimentos cotidianos, da
heterogeneidade, diferenças e diversidades da comunidade escolar que a frequenta,
tendo em foco, como acredita Bakhtin (apud FARACO, 2009), que o sujeito se constitui
socioideologicamente no interior da complexidade das vozes sociais em suas múltiplas
relações consonantes e dissonantes e do diálogo que aí se estabelece. Há aqui vozes de
autoridade (palavras que se apresentam centripetamente) e vozes internamente
persuasivas (palavras que se abrem centrifugamente às mudanças). O embate e
dialogismo dessas duas dimensões de discurso são condicionantes da história da
consciência ideológica individual, que se nutre de signos, refletindo sua lógica e leis.
Nossos enunciados são sempre discursos já mencionados, uma vez que emergem da
infinidade de vozes refratadas, isto é, interiorizadas. Neste processo constitutivo do
sujeito é fundamental (des)envolver a ética intersubjetiva, na qual o Tu deve reconhecer
o Eu.
Caso o professor(a) alfabetizador(a) não (re)conheça dialogicamente com
alteridade e ética os estudantes como o outro, que tem suas concepções e histórias de
vida riquíssimas de conhecimentos e conflitos que os fizeram chegar até a uma sala de
aula, em especial os oriundos das classes populares desfavorecidas e exploradas
historicamente, que inevitavelmente tem que passar pelas escolas públicas, estará
condenado ao fracasso profissional e pessoal, se pensarmos no potencial emancipador
de ambos, que se manifesta neste encontro.
39
Portanto, todo o processo de ensino e aprendizagem da língua portuguesa,
em especial nas séries iniciais com crianças, precisa buscar contínua e sistematicamente
a formação de um sujeito dialógico e ativo que será tanto mais crítico, reflexivo,
transformador e subversivo de si e de sua realidade quanto mais for estimulado por
vozes centrífugas (libertadoras), que na arena cotidiana de embates e diálogos, diante
das antagônicas e opressoras vozes centrípetas, potencializam o desvelar das cegueiras,
alienações e passividade que mantém a massa populacional aprisionada em seus status
quo de servidão subserviente. Aqui, a linguagem cumpre uma função decisiva e precisa
fazer parte das estratégias sócio-político-pedagógicas a serem construídas no “chão da
escola”.
2.2. Alfabetizar ou letrar?
Patrão:
Meus senhores, vou lhes apresentar
uma gente não sei de que lugar,
uma coisa que imita a raça humana:
eis aqui o trabalhador da cana.
Pois agora eles só querem falar
em direitos e leis a registrar,
imagine a confusão que dá!
Eu explico pra eles a tarde inteira
esse tal de registro na carteira
atrapalha, é burrice, é besteira.
(trecho da música Desafio do Bóia-Fria (folclore) –
consagrada por Tom Zé)
Neste item, analisar-se-ão algumas dimensões sócio-pedagógico-ideológicas
relacionadas aos conceitos de alfabetização e de letramento envolvidas direta ou
indiretamente na teoria e na prática de ensino e aprendizagem da língua portuguesa para
crianças nas séries iniciais da educação pública fundamental.
A princípio, numa perspectiva sócio-educacional pragmática, há grandes
divergências teórica e prática de caráter sócio-histórico-cultural-axiológico-pedagógico
40
entre o que venha a ser letramento e alfabetização, tanto dentro da academia quanto
entre os profissionais da educação e mesmo no senso comum dos diversos estratos da
sociedade contemporânea. Nesta acepção, a tradicional alfabetização geralmente
reserva-se à apropriação mínima do mundo das letras no processo de ensino e
aprendizado da língua materna. Segundo CARVALHO (2008, p. 65), usa-se o termo
alfabetização “no sentido restrito de aprendizagem inicial da leitura e escrita, isto é, a
ação de ensinar (ou o resultado de aprender) o código alfabético, ou seja, as relações
entre letras e sons.”
Perspectiva inadequada, facilmente comprovada pelo fracasso da escola
pública de ensino fundamental em sua notória destinação, histórica e social, à
sobrevivência, manutenção e reprodução do status quo das camadas populares, com a
intenção (macro)estrutural de impedir a efetiva mobilidade social, econômica e política
dessa parte da população. Portanto esta alfabetização, “pública”, “gratuita” e
obrigatória, está meticulosamente formatada para a massa populacional de “braçais”, de
executores, de oprimidos; e não para a minoria de intelectuais, de pensantes-críticos, de
tomadores de decisões, de opressores. Desta forma, ao povo uma escolarização básica
mínima e de má qualidade, facilmente percebida no ensino e aprendizagem da língua
portuguesa já no início da escolarização de crianças.
Cabe ainda mencionar, a expansão no uso do termo alfabetização, que
também vem sendo adotada em retóricas e ações pedagógicas de outros campos do
conhecimento – matemática, geografia, história, música, artes plásticas, entre outras – e
não somente na língua portuguesa, distorcendo de seu propósito original.
Já o conceito letramento vem sendo veiculado à interiorização do
conhecimento aprofundado, crítico, reflexivo e complexo das representações e
concepções de mundo, de sociedade e de ser humano, isto é, segundo CARVALHO
(2008), à familiarização com os diversos usos sociais da leitura e escrita e ao resultado
político, econômico, social desta apropriação. Neste sentindo, MACIEL (2010) lembra
das relevantes contribuições da psicolinguística na compreensão do processo de
alfabetização não restrito à (de)codificação, mas num contexto de uso e função social.
Portanto, dentro da perspectiva sectária aqui apresentada, este letramento
destina-se intencionalmente aos “doutores”, “senhores”, aos dominadores, à elite
cultural, política e econômica brasileira, parcela populacional que (re)conhece a
41
relevância de se apropriar deste conhecimento, somente acessível, na sociedade atual,
por meio do mundo das letras. Portanto, praticamente inexiste nas redes públicas de
ensino.
Questionada sobre as contribuições e confusões promovidas pelo conceito
de letramento no processo de alfabetização, SOARES (2010) declara que no início
surgiu a dúvida se se deveria alfabetizar ou letrar a criança, contudo, para a autora, é
preciso compreender que o letramento não é uma alternativa mas sim uma ampliação do
conceito de alfabetização, fato que vem ocorrendo mais amiúde nos espaços escolares
nos últimos anos, mesmo que no plano do discurso, evidenciado na expressão
alfabetizar letrando, isto é, alfabetizar num contexto dos usos sociais, culturais e
históricos reais da língua escrita. No entanto, encontra-se muito aquém do seu potencial
prático em sala de aula, pois, do mesmo modo que o ocorrido com a introdução do
construtivismo nas redes de ensino, o letramento foi compreendido no sentido de depor
o ensino sistemático e explícito do sistema alfabético e ortográfico de escrita, isto é, as
indispensáveis relações fonema-grafema. Completa a autora,
“alfabetizar implica que a criança aprenda a codificar e decodificar,
pois é um sistema inventado, diferente da língua oral: o ser humano já
nasce programado para falar. A escrita é uma convenção. É
ingenuidade achar que a criança deva reinventar um sistema
convencional, arbitrário. Então é preciso ensinar isso
sistematicamente.” (SOARES, 2010, p. 8)
Para tanto, para esta autora, deve-se utilizar materiais escritos reais e de
interesse da criança: livros de literatura infantil, propagandas, outdoors, folhetos etc.
Desta forma, pode-se fazer o letramento com o professor(a) utilizando palavras, frases
destas citadas fontes para se trabalhar as relações fonema-grafema. Evento que é
categoricamente desconsiderado pelo construtivismo.
Mas afinal, qual é a diferença sócio-pedagógica entre uma pessoa
alfabetizada e uma pessoa letrada? De acordo com Soares (apud CARVALHO, 2008, p.
66), “está na extensão e na qualidade do domínio da leitura e escrita. Uma pessoa
alfabetizada conhece o código alfabético, domina as relações grafofônicas [...] é capaz
de ler palavras e textos simples, mas não necessariamente é usuária da leitura e da
escrita na vida social.” Letrado “é alguém que se apropriou suficientemente da escrita e
da leitura a ponto de usá-las com desenvoltura [...] para dar conta de suas atribuições
sociais e profissionais.”
42
Segundo GERALDI (2011, p. 13) “há toda uma história de redução do
processo de alfabetização à aquisição do código da escrita – aquilo que se repete nas
relações som/grafema, para só depois emergir a preocupação com os sentidos. [...]
movimento que vai da letra ao sentido.”
Ao considerar que tudo na atual sociedade de consumo-informação vira
mercadoria, inclusive os novos conceitos, que a estabilidade e padronização são
insuficientes para todo e qualquer uso social da linguagem e que há arbitrariedades e
relações de poder nas convenções que consolidam os usos sociais das línguas,
GERALDI (2011) desenvolve uma acalorada reflexão a respeito dos conceitos
alfabetização e letramento e da árdua busca pelos pesquisadores(as) na definição do
letramento, que segundo o autor pode estar referindo-se: a habilidades e aptidões; a
estado ou condição; a processo; e ao uso de habilidades de leitura e escrita.
A partir das exigências sociais de uso da escrita e da leitura na sociedade,
este autor reafirma que os discursos oficiais e semi-oficiais assumem a alfabetização
como o ensino das convenções do código escrito e o letramento como a inserção ao
mundo da cultura escrita.
“Pensar a alfabetização e o letramento, em consequência, o ingresso
no mundo da escrita, para responder demandas existentes é reduzir o
processo educativo, em termos de linguagem, à manutenção do
existente, sem que a perspectiva de transformação da estrutura social
dada esteja no horizonte dos processos pedagógicos.” (GERALDI,
2011, p. 2)
Este autor tece veemente crítica à postura politicamente correta de muitos
pesquisadores(as) que definem letramento como o responder adequadamente às
exigência e demandas sociais de uso da leitura e escrita, o que permite considerar
também um sujeito analfabeto como letrado – caso faça uso da escrita e de práticas
sociais de leitura e escrita – “então ninguém, numa sociedade letrada, estaria fora do
letramento [...] porque cunhado o conceito [...] poderíamos ter justificativas teóricas
para nos dispensarmos de qualquer esforço de alfabetização e escolarização das
camadas populares”. (GERALDI, 2011, p. 8)
Lembra ainda que letramento, na sua gênese francesa e estadunidense,
referia-se a certo nível de incapacidade dos sujeitos alfabetizados lidarem social e
adequadamente com a leitura e escrita de textos, contudo alerta que nestes países “a
demanda social de uso da escrita numa sociedade de desiguais não é analisada. Qual o
43
verdadeiro acesso ao mundo da escrita que uma sociedade como esta realmente
permite?” (GERALDI, 2011, p. 8)
Abrasileirar esta perspectiva em um cenário de baixa escolaridade e alto
analfabetismo (considerando as suas diversas facetas) pode trazer, nas entrelinhas,
mensagens potentes e perigosas para desmobilizar qualquer possibilidade de luta contra
a ordem opressora vigente, pois estas, de acordo com GERALDI (2011), sugerem a
existência de uma igualdade, pois, todos nós pertencemos, em níveis diferentes, à
sociedade das letras, mas que na realidade esconde desigualdades caracterizadas por
relações de poder. Assim, o letramento introduz uma positividade que leva a crer que
cada letrado deve se enquadrar adequadamente, e dentro de seu nível de letramento, às
necessidades sociais de leitura e escrita. Paradoxalmente, se o letramento já abrange
todos(as), ele pode se tornar até mesmo desnecessário.
Na vigente e estratificada sociedade de classes, o acesso e a apreensão do
conhecimento oriundo do mundo das letras está hierarquizado e desigualmente
distribuído entre dominadores e dominados. Garante-se estruturalmente às massas
populacionais, a estes dominados, por meio de políticas públicas educacionais, o ensino
e aprendizado operacional da leitura e escrita da língua materna, isto é, a alfabetização
autômata, uma forma de manutenção do status quo social, econômico e político desta
maioria. Mesmo quando se utiliza do discurso de letramento, na prática escolar,
segundo GERALDI (2011), este processo ainda é tratado como uma habilidade, uma
capacidade ou um saber-fazer, medidos pelo atendimento ao pragmatismo da língua
escrita e às novas demandas da sociedade. Acredita que ser letrado significa “algo bem
mais profundo do que a adequação nas respostas às demandas de leitura e escrita postas
pela estrutura social” (p. 11).
A autonomia que surge do efetivo letramento, empodera as classes
populares à possibilidade de transcender a vigente e histórica posição passiva e
pragmática de enquadramento, submissão e alienação para um engajamento ativo e
cidadão em prol da (re)construção subversiva de si mesmo e, dialeticamente, de sua
realidade coletiva, tanto macroestrutural quanto estrutural. Neste sentido, não somente
daria conta de suas atribuições sociais e profissionais, de suas necessidades básicas,
objetivas e subjetivas, mas as conceberia. Deixaria a medíocre e exclusiva (aqui tanto
no sentido de única como de supressão) posição de criatura, passando a ser também
44
criador, do seu destino coletivo, superando esta fase para o enfrentamento de outras
mais filosófico-existenciais do que relacionadas à (sobre)vivência.
Nessa polêmica envolvendo os conceitos de alfabetização e de letramento,
cabe ressaltar os embates teóricos e práticos travados entre a perspectiva da
alfabetização técnica (relacionada aos sons e símbolos escritos) e da alfabetização com
base nos sentidos (relacionada à interpretação, à compreensão e ao conhecimento). Para
GERALDI (2011), a maioria das escolas e docentes tem utilizado a estratégia de partir
da dimensão técnica para depois exercitar os sentidos, fato facilmente comprovado em
uma simples análise do material didático utilizado nas redes de ensino. A justificativa
estaria relacionada ao menor esforço necessário a ser despendido. Contesta que “reduzir
a alfabetização à ‘aprendizagem da técnica, domínio do código convencional da leitura
e da escrita e das relações fonema/grafema, do uso dos instrumentos com os quais se
escreve’ é desvestir o processo de alfabetização de todo e qualquer cunho político.
Como se a técnica fosse neutra e como se o seu uso [...] fosse independente de
interesses sociais.” (p. 15)
Desvela aqui a razão política do conceito letramento, responsável nas séries
iniciais das escolas de ensino fundamental pela manutenção do status quo de
desigualdades nesta sociedade. Deste modo, “a alfabetização é ‘reinventada’ como uma
atividade técnica (onde interpretação [...] não passa de reconhecimento das significações
e não construção de um sentido)”; e cada estudante “adequar-se-á ao nível de uso da
leitura e da escrita segundo as exigências sociais que lhe são impostas.” Então, “há o
que ensinar nos primeiros anos de escolaridade: uma técnica [...] e um sentido (o
reconhecimento do já dado, do previsto).” Portanto, “ler e escrever jamais seriam
revolucionários [...] já que este prevê de antemão o lugar social que cada qual deve
ocupar”. (p. 15-6)
Ampliando esta arena, GERALDI (2011), critica as práticas construtivistas
hegemônicas no Brasil a partir dos anos 1980, que mesmo baseando-se em fatos
linguísticos, tais como, pré-silábico, sílaba e alfabeto, privilegiam a dimensão
psicológica e, praticamente, esquecem dos textos. Contudo, defende que o ensino deve
ser demandado pelo estudante, o que leva o educador a ser um mediador5 no acesso ao
5
“A mediação difere do método porque não defende que todos aprendem o mesmo, na mesma sequência,
ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Defende-se intervenção sistemática, contínua, presente, com base no
processo de aprendizagem e não com base na organização metodológica e linear concebida a partir das
características do que é estável na língua.” (GERALDI, 2011, p. 14-5).
45
desconhecido pelo educando, o que faz avançar a aprendizagem, respeitando sempre a
subjetividade e necessidades de cada um, não sendo, assim, um mero espectador.
CARVALHO (2008) ressalta que para formar letrados(as), é preciso
desenvolver intencionalmente o gosto pela leitura, que pode e deve ser cultivado desde
o início da alfabetização (alfabetizar letrando), sensibilizando os estudantes sobre as
funcionalidades intrínsecas ao aprender. Deste modo, o processo de leitura e escrita
deve considerar pedagógica e socialmente: as atividades de leitura livre (não guiada); as
diferentes hipóteses de leitura; as diferenças e diversidade sócio-culturais das crianças;
o ambiente favorável na escola; que a escrita não é a transcrição do oral; as atividades
envolvendo as diversas formas de comunicação (função social); os diferentes gêneros
textuais (a serem trabalhados continuamente ao longo do ensino fundamental,
considerando os seus inúmeros contextos sociais de utilização e suas características); a
maior interação criança-livro; a criação de espaços pedagógicos para a livre expressão e
atribuição de sentidos aos textos; a efetiva interação entre sala de aula e outros espaços
de formação de leitor(a); a sensibilização da direção, coordenação e docentes em prol do
efetivo letramento; e as questões ideológicas explícitas ou subliminares presentes.
Na atual sociedade, para a sobrevivência das camadas populares com o
mínimo de qualidade, é notório a relevância educacional de alguns aspectos técnicopragmático no processo de alfabetização e de letramento. No entanto, Martins (apud
CARVALHO, 2008, p. 75), acredita que o âmbito escolar “não abre espaço para refletir
e discutir sobre a natureza e o desenvolvimento do processo de atribuição de sentido de
um texto.” Portanto, “dificilmente são criadas condições para a formação de leitores
efetivos.”
Contudo, na promoção de uma educação pública de ensino fundamental que
concretamente contribua para a transformação das concepções aprisionantes, inculcadas
homeopática e sistematicamente, muitas vezes pela própria instituição escola, junto às
camadas populares, que paradoxalmente necessitam desta escola para potencializarem
as suas chances de libertação, conforme já discutido por Geraldi, torna-se imperativo
que cada profissional, em especial o docente, por sua interrelação direta e objetiva com
as crianças, esteja conscientizado(a) do cunho sócio-político-crítico-reflexivo e,
portanto, subversivo de seu papel e suas ações no processo tanto de alfabetização quanto
de letramento.
46
Em pesquisa realizada por CARVALHO (2008) junto a professores(as) de
escola pública sobre as atividades de leitura em sala de aula e na sala de leitura ficou
constado que são tipos de práticas comuns: a leitura de textos pela professora com
acompanhamento dos estudantes; os comentários interpretativos da professora; a
consulta ao dicionário pelos estudantes, para compreensão imediata e enriquecimento
do vocabulário; o não ensino das estratégias de inferir o significado de um vocábulo
pelo contexto linguístico ou por pista do autor; o pragmatismo para aquisição de
conteúdos curriculares; e a utilização do texto para estudo da gramática. Sobre este
último aspecto, GERALDI (1997) observa que de uma forma geral a língua ainda é
estudada com ênfase na gramática. Então, a gramática, da forma que é trabalhada nas
escolas, torna-se grande promotora do total desinteresse do estudante pela língua
portuguesa e antagônica ao seu desenvolvimento intelectual. Nesse processo, é preciso
considerar que toda criança traz, inconscientemente, para a escola o conhecimento
prático dos princípios da linguagem interiorizado nas práticas sociais do ouvir e do
falar.
CARVALHO (2008) reforça ainda que mesmo na prática de um
“letramento” escolar há um antagonismo à perspectiva de leitura independente,
autônoma e prazerosa, focada na construção de significados. Neste sentido, defende
alguns direitos dos leitores(as): “estímulo à leitura de livros escolhidos pelas próprias
crianças, liberdade para comentar, ou não, o que haviam lido, sem ter que responder a
exercícios e questionários; possibilidade de confrontar sua leitura com a de outros
colegas, além do prazer de ouvir histórias e ler poesia.” (p. 80) Chama a atenção para o
fato de que ler com compreensão não constitui impor um único significado a um texto,
pois este é um processo altamente subjetivo de acordo com as experiências de cada
leitor. Contudo, não se pode concluir erroneamente que não há nada a se ensinar. Tornase indispensável ao docente uma boa compreensão teórica do ato de ler e algum
conhecimento de linguística, elementos que permitam sensibilizar as crianças para os
traços linguísticos que salientam e hierarquizam informações e a linha temática de um
texto e para uma interação global com o autor. Por isso, é fundamental a sistematização
e intervenção docente para se efetivar a formação de leitores
À luz de indagações, tais como: são os docentes leitores, letrados? E, caso
não sejam, é possível, docentes não letrados, formar sujeitos letrados? Segundo Batista
(apud CARVALHO, 2008), muitos professores(as) são os primeiros em suas famílias a
47
terem uma escolaridade avançada e se formaram leitores na instituição escolar. Por isso,
em suas práticas pedagógicas adotaram os modelos de leitura e escrita a que foram
submetidos, geralmente valorizadores dos conteúdos dos textos e não da gratuidade, do
prazer de conhecer. Assim, mesmo diante do evidente fracasso escolar [do qual são coresponsáveis], não modificam suas posturas e concepções, o que não contribui para
assimilação de conteúdos e muito menos para a formação de leitores(as).
Aqui, revela-se outra profunda e complexa questão, melhor discutida no
capítulo 3, indubitavelmente vital para se obter eficiência em toda práxis escolar que
almeja a efetiva prática da alfabetização crítica que supere a (de)codificação: a não
conformidade da formação inicial e continuada docente com a sua ação em prol da
formação de leitores(as) letrados(as) junto aos estudantes de escolas públicas básicas.
Faz-se necessário no engendrar de um outro paradigma de escola pública
fundamental, que contribua diretamente com a construção de uma outra sociedade mais
equitativa, ética, solidária e democrática, desenvolver estratégias e ações eficientes à
subversão da ordem opressora. Para tanto, é essencial que os profissionais da educação
pública, em especial os docentes das séries iniciais, tenham consciência do seu papel
educador comprometido com esse movimento, para que estejam sensibilizados e
mobilizados na busca de um processo de ensino e aprendizagem da língua portuguesa,
independente do termo utilizado, seja alfabetização ou letramento, que permita não
somente a aquisição técnica do ler e do escrever (aspecto básico e mínimo que não vem
ocorrendo nessas instituições públicas), mas que promova junto as classes populares,
pela antropofagia do mundo das letras, a (des)construção e consequente ampliação
refletida das concepções de si, do outro e do mundo, para que individual e
coletivamente esses sujeitos-estudantes possam transformar-se, transformando suas
realidades limitadoras, oprimidas e alienantes.
48
2.3.
Qual a relevância dos textos na “alfabetização”?
O texto, escura escama, pesadelo de eternidade,
máscara densa do universo vomitando.
O texto, mas não a energia que o pensou,
interrogando a simultaneidade absoluta.
Há uma esperança nas ruas, nas pedras, no acaso
de tudo, uma esperança, uma forma suspensa
entre o aparente e a essência, entre o que vemos
e a substância, uma esperança, uma certeza talvez
de que o rio não se dissolva no mar, de que
o ínfimo, o precário, a voz, a sombra
o estalar das carnes na explosão
não se dispersem no todo, impensável medusa da inexistência.
Há uma luz qualquer sonhando integração, o suposto
destino dos ventos, das energias globais, a suposta
sabedoria com que o homem fecundou a crosta
envenenada do planeta, há uma luz qualquer
ensaiando águas pensadas no eterno esvair-se,
abstrato expansionário, há uns olhos além
da frágil realidade, da terrível matança, da
cruel carnificina entre seres pestilentos aquém
da fronteira do sonho, um texto além do texto,
uma esperança talvez, enquanto somos e nos cumprimos,
enquanto somos e nos oxidamos, enquanto
somos e prosseguimos.
(poema Texto de Afonso Henriques Neto –
livro 26 Poetas Hoje, por Heloisa Buarque de Hollanda)
Trata-se neste item do seguinte dilema, muito comum entre os docentes
alfabetizadores: a utilização ou não de textos e o como utilizá-los – na leitura, na
compreensão e na produção – durante o desenrolar do processo de alfabetização de
crianças.
49
Em especial nas escolas públicas, que atendem a grande parcela
populacional de origem popular, geralmente desprovida em sua cultura cotidiana do
convívio e do estímulo familiar e de classe à apropriação do mundo das letras, os textos
podem e devem ser instrumentos sócio-político-pedagógicos muito relevantes na
potencialização da efetiva qualidade desse processo de alfabetização crítica, o que
muitos pesquisadores denominam de alfabetizar letrando ou letramento, pelo qual
promove-se, simultaneamente, o domínio da escrita e da leitura alfabética e o seu uso
social amplo e compreensivo.
GERALDI (1997, p. 135) considera, como forma de “devolução do direito à
palavra às classes desprivilegiadas, para delas ouvirmos a história, contida e não
contada, da grande maioria que hoje ocupa os bancos escolares”, “a produção de textos
(orais e escritos) como ponto de partida (e ponto de chegada) de todo o processo de
ensino/aprendizagem da língua”, pois, o texto revela-se tanto em suas formas quanto em
produção de discursos intersubjetivos constituídos no próprio processo de enunciação,
concretizado nos textos. Neste sentido, o estudante articula seus pontos de vista sobre o
mundo, estando assim muito além de uma simples reprodução.
Em oposição a esse movimento, no que diz respeito à utilização de textos na
“alfabetização” de crianças, segundo ROJO (2010), há diversas crenças arraigadas entre
os docentes alfabetizadores, que precisam com urgência ser repensadas, por exemplo:
somente se produz textos escritos, com lápis e papel e individualmente; estudantes não
podem produzir textos antes de estarem alfabetizados; e estão, necessariamente,
voltados à avaliação. Estas crenças estão diretamente relacionadas às concepções que
estes agentes educacionais têm sobre textos, que podem ser escritos-multimodais (usam
diversas linguagens, tais como, escrita, desenhos, ilustrações, fotos etc) e orais (tais
como, fala, leitura em voz alta, escrita oralizada etc), escrita (alfabética) e as relações
estabelecidas, interna e externamente à escola, entre língua oral/escrita e as outras
linguagens (desenho, música, imagens etc). Este cenário tem impedido a produção de
texto escolar com maior frequência e o desenvolvimento de atividades mais atraentes e
motivadoras.
GERALDI (1997) faz uma relevante distinção entre textos – são produzidos
na escola – e redação – são produzidos para a escola. Profere ainda os seguintes
aspectos necessários à produção de textos: ter o que dizer; ter uma razão para dizer; ter
para quem dizer; se constitua como locutor-sujeito; e se escolha as estratégias para
50
realizar os aspectos anteriores. Lembrando que é primordial haver uma relação
interlocutiva para se assumir como locutor. Desta forma, existe razoavelmente escrita na
escola pública, mas pouco texto-discurso, principalmente por utilizar, junto aos pontos
apresentados anteriormente, abordagens diferentes das que são utilizadas quando se fala
no dia-a-dia. Aqui, o docente, também como (inter)locutor, deve tomar cada um desses
aspectos no seu processo de ensino e aprendizagem da língua.
Cabe salientar também que os processos de leitura, interpretação,
compreensão e produção textual e de apropriação escrita ocorrem ao mesmo tempo, um
não se constrói sem o outro. Assim, a criança não precisa dominar a escrita para se
relacionar com textos, mesmo porque nos espaços externos à escola, ela tem contato
com narrativas multimodais, tais como, imagens, sons, textos, em especial por meio da
televisão, quando se trata das classes populares. É preciso que as escolas públicas
intensifiquem essas práticas multimodais e aproximem os estudantes cada vez mais dos
textos impressos. Constata-se que “na escola ouve-se muito, lê-se bastante, mas
produzem-se pouquíssimos textos efetivos.” (ROJO, 2010, p. 49)
Compreender crítica e profundamente estas questões contribui diretamente
com o planejamento e aplicação de projetos, ações e atividades de produção e leitura de
textos dentro do processo de alfabetização no cotidiano escolar, que devem fazer parte
do currículo e projeto político pedagógico da escola, das políticas públicas educacionais
e, principalmente do engajamento dos professores(as) comprometidos com a promoção
de uma sociedade menos desigual e aética. Desta forma, para GERALDI (1997, p. 165),
“centrar o ensino na produção de textos é tomar a palavra do estudante como indicador
dos caminhos que necessariamente deverão ser trilhados”.
ROJO (2010) esclarece ainda que a apropriação dos conhecimentos e
capacidades relacionados ao código alfabético da escrita – compreender as diferenças
entre escrita e outras grafias; dominar as conversões dos tipos de gráficas,
direcionalidade etc; conhecer o alfabeto; perceber a natureza alfabética do sistema de
escrita; dominar as relações (ir)regulares entre grafemas e fonemas; compreender as
estruturas da sílaba; apreender as (ir)regularidades da ortografia – é bem menos
complexo, por ser mais estável, em menor número e exigir menos competências
linguísticas, textuais e discursivas, do que os conhecimentos e capacidades presentes na
leitura e produção de inúmeros gêneros textuais (isto é, a textualização, a gestão do
51
texto e a interlocução), em suas diversas linguagens presentes na sociedade
contemporânea.
Segundo Schneuwly (apud ROJO, 2010), é preciso, durante toda a
produção, gerenciar o texto utilizando-se das seguintes capacidades de linguagem:
escolher o gênero textual; definir as ancoragens (real/ficção, primeira pessoa ou não
etc); selecionar temas e conteúdos; organizar uma progressão coerente destes; e arranjar
a estruturação linguística. Lembrando que todos esses aspectos estão diretamente
vinculados ao tipo de gênero textual escolhido.
Para ROJO (2010), é por meio das características de cada gênero textual que
se pode “controlar a produção de um texto em determinado gênero, escolhido em função
do contexto ou da situação de produção e responsável tanto pela forma de composição
(estruturação
linguística)
como
pelo
arranjo
dos
temas
(sequencialização;
referencialização) e pela textualização” (p. 54). Assim, os gêneros são formas regulares
de comunicação em certos contextos sociais, contendo três elementos interligados e
inseparáveis: conteúdos temáticos, forma de composição e estilo verbal [como defende
originalmente Bakhtin ao discorrer sobre gênero do discurso]. Então, ao se escolher
um gênero seleciona-se um arcabouço de elementos que farão parte do texto, ou seja,
determina-se como textualizá-lo, isto é, estabelecer uma sequência coesa e coerente por
meio da escolha das maneiras de dizer, da coerência dos objetos linguísticos e da
segmentação dos elementos textuais. Desta forma, o gênero opera como um
megainstrumento dentro do qual outros pequenos instrumentos “funcionam para
produzir sentidos e significados. Mais uma razão para ensinarmos língua e linguagem
por meio dos gêneros.” (p. 56)
No que diz respeito à relação da produção textual com a produção de
sentido desenvolvida no ato interlocutivo da leitura, o texto
se oferece ao leitor, e nele ser realiza a cada leitura, num processo
dialógico [...], pois as mãos que agora tecem trazem e traçam outra
história. [...] Não são mãos amarradas – se o fossem, a leitura seria
reconhecimento de sentidos e não produção de sentidos; não são mãos
livres [...] São mãos carregadas de fios, que retomam e tomam os fios
que no que se disse pelas estratégias de dizer se oferece para a
tecedura do mesmo e outro bordado. [...] O leitor trabalha para
reconstruir este dito baseado também no que se disse e em suas
próprias contrapalavras. (GERALDI, 1997, p. 166-7)
52
Segundo CARVALHO (2008), os textos, que definitivamente são mais do
que a soma de palavras e frases, são úteis para enfocar a (de)codificação dos fonemasgrafemas, mas principalmente para a atribuição de sentido. As pessoas, mesmo as
crianças, têm uma competência linguística textual, pois reconhecem e produzem textos
na língua que falam e sabem algumas regras utilizadas na língua oral, embora não
saibam explicá-las gramaticalmente. “Nós entendemos o sentido global do texto devido
à nossa experiência anterior com a língua oral e escrita e também ao nosso
conhecimento de mundo”. (p. 51) Por outro lado, textos cartilhescos, com frases
isoladas, sem sentido e sem consonância com língua viva, causam estranheza aos
ouvintes e leitores, dificultam o aprendizado e promovem aversão ou desinteresse pelo
mundo das letras. Servem apenas para treinar as crianças na aprendizagem de palavras
de um grupo silábico.
Ao analisar textos cartilhescos produzidos por estudantes de 1ª série do
ensino público fundamental, ROJO (2010, p. 52-3) destaca que “é o contato com
pseudotextos, sem contexto e sem estrutura, coerência, coesão ou significação, que leva
essas crianças a construírem [...] uma concepção equivocada do que venha a ser um
texto escrito.” Afirma que o uso de material cartilhesco “impede que os estudantes se
aproximem dos textos efetivos e que construam capacidades de produção de textos
durante a alfabetização.”
Ao considerar que os livros didáticos geralmente propõem um texto para
leitura no início de cada unidade, GERALDI (1997) explicita que estes textos não estão
em conformidade com o interesse mais imediato dos estudantes, por isso, a legitimação
da relação interlocutiva se realizará fora dela própria. Assim, os estudantes, sujeitosinterlocutores, “lêem para atender a legitimação social da leitura externamente
constituída fora do processo em que estão.” (p. 169)
Acredita-se que para potencializar o interesse e a receptividade da criança
pela leitura e escrita o professor(a)
precisa ter à mão livros infantis, jornais, revistas, muito material
escrito, de todo tipo, para olhar, manipular, manusear, adivinhar. [...]
Observando livros infantis, as crianças inventam histórias inspiradas
nas ilustrações. Criam narrativas para si mesmas e para os colegas. As
histórias lidas [...] alimentam a imaginação e o sonho, melhoram a
expressão verbal, aguçam a curiosidade. (CARVALHO, 2008, p. 53)
53
Por isso, para esta autora, há necessidade de ser assertivo junto aos temas e
textos escolhidos, para que sejam significativos às crianças, fato que ajuda no
reconhecimento das normas linguísticas que regem a escrita. Reforça ser essencial
sensibilizar as crianças para a diferenciação entre o que se fala e o que se escreve. Outro
relevante aspecto afirmativo diz respeito ao uso de textos produzidos oralmente pelos
estudantes e trabalhados pelo docente em consonância com as normas da língua escrita.
Contudo, lembra que para transformar uma história oral “em texto escrito, seria preciso
fazer várias adaptações, pois há certas diferenças entre o oral e o escrito no que se refere
à sintaxe (a forma de organizar as frases) e ao léxico (vocabulário).” (p. 53) Conclui que
“as crianças estarão lendo quando forem capazes de perceber como as letras funcionam
para representar os sons da língua e ao mesmo tempo possam entender o que diz o
texto.” (p. 55)
GERALDI (1997) destaca que, ao contrário do que se prega na escola no
ensino da leitura e escrita da língua, o movimento deve ocorrer da produção textual para
a leitura e desta à produção. É também preciso compreender que trabalhar um texto em
sala de aula atende a necessidades e promove outras, relacionadas ao que tem a se dizer
e as estratégias de dizer. Pedagogicamente, interessa na leitura, como produção de
sentidos, recuperar a caminhada interpretativa do estudante que lê, reveladora de pistas
que o fizeram acionar outros conhecimentos na construção de significados; assim, o
professor(a) deve demonstrar que alguns mecanismos utilizados não são relevantes ao
texto lido e não estão de acordo com a leitura desejada pelo docente.
Segundo ROJO (2010), “sem uma prática de produção de textos frequente e
situada, pouco ou nada se poderá avançar e aprender, como, aliás, é o que tem
predominantemente acontecido.” (p. 44). Por isso, pode-se e deve-se trabalhar com
produção de textos no cotidiano escolar antes mesmo do processo de alfabetização
formal ocorrido nas séries iniciais do ensino fundamental, utilizando, por exemplo,
textos orais ou em outras linguagens, de forma individual ou coletiva. Completa que nos
processos de “alfabetização” envolvendo a produção de textos torna-se necessário que:
se parta do interesse e repertório cultural dos estudantes; se produzam textos individual
e coletivamente em diversas linguagens e ferramentas; a avaliação seja diagnóstica e ao
longo do processo; e as finalidades da produção de textos são diversas.
Na sociedade contemporânea, denominada da informação ou
da
comunicação, envolta em uma imensidão de tecnologias e mídias de comunicação, que
54
torna, no âmbito escolar, as dimensões sociológica, psicológica, política, cultural e
pedagógica cada vez mais complexas e desafiadoras, é notório, na busca de uma
alfabetização crítica, a urgência do engendrar de uma práxis sobre o quê, o como e, em
especial, o para quê ensinar crianças de classes populares, em especial no que diz
respeito aos protagonistas diretos, objetivos e imediatos deste processo na concretude da
sala de aula, os professores(as).
Neste
sentido,
a
utilização
de
texto
crítica,
compreensiva
e
significativamente, tanto na leitura quanto na produção, por meio de uma interlocução
efetivamente dialógica entre os sujeitos educadores-educandos, envolvidos nesse
processo libertário de “alfabetização”, será condição imprescindível para vislumbrar e
agir por outras possibilidades de sociedade, escola e humanidade, sustentadas em
valores éticos, solidários, democráticos e equitativos. Aqui, a palavra oprimida, contida,
por séculos e gerações surgirá com força arrebatadora corroendo os alicerces opressores
que mantiveram historicamente as classes populares na condição de alienadas, inferiores
e incapazes. Como diria Geraldo Vandré na música Aroeira: “é a volta do cipó de
aroeira no lombo de quem mandou dá.” Reconhecendo a si e ao seu opressor,
intencionalmente e a cada expressão, o oprimido não mais se calará, o que será a maior
escola para os seus filhos(as) que integrarão novas gerações mais exigentes e
intolerantes às atrocidades outrora praticadas.
2.4.
“Alfabetização” é uma questão de método?
Rosenda
Não conhecia as letras.
Com enxada
Em vez de caneta,
Passou a vida na fazenda,
Na roça.
Mas aos setenta,
Apesar da pele trêmula,
Sua vida ainda coça.
E antes do ponto final
Quis aprender
As consoantes
55
E vogar pelas vogais
Um dia,
Tateando a cartilha,
Depois de tatear o solo
Queria deus entender:
“Porquê havia tanto pra ver
e ela só com dois olhos?”
(poesia Caminho Suave de Sérgio Vaz do livro
A poesia dos deuses inferiores)
Neste item, volta-se o holofote para o porquê desse “alfabetizar” crítico no
ensino e aprendizagem da língua portuguesa junto a crianças das séries iniciais da
educação fundamental pública, para a perspectiva didático-metodológica, considerando
as seguintes indagações, muito corriqueiras entre os docentes alfabetizadores iniciantes
ou mesmo os veteranos: A “alfabetização” é uma questão de método? Qual é a
relevância do aspecto metodológico no processo de “alfabetização”? Um método é
inadequado ou mal aplicado? Quais são as forças e as fragilidades das principais
abordagens metodológicas? Por que os professores(as) consideram difícil “alfabetizar”
ou mesmo o mero alfabetizar de caráter técnico? Qual é o método mais eficiente de
“alfabetização” ou mesmo de alfabetização de caráter técnico? O fracasso na
alfabetização ou “alfabetização” está relacionado à questão metodológica?
No que diz respeito à frequente relação do fracasso escolar com o método
didático adotado, em especial na “alfabetização” de crianças oriundas de classes
populares em escolas públicas, e início dos estímulos à apropriação do mundo das letras
para a maioria delas, faz-se necessário desenvolver uma análise criteriosa considerando
a complexa multicausalidade desse fracasso, que definitivamente não é exclusividade do
âmbito escolar, mas está condicionado também às múltiplas dimensões evolvidas, que
criam aspectos (macro)estruturais desfavoráveis à efetividade desse processo de ensino
e aprendizagem, ao mesmo tempo que são criadas por estes. Como exemplo, pode-se
citar dentre outros: as condições físicas, humanas e (i) materiais mínimas da escola, de
trabalho do docente e de valorização sócio-profissional dos profissionais escolares; e a
qualidade da formação de professores(as), inicial e continuada, presencial e a distância,
que dê conta dos desafios dessa “alfabetização”, ou seja, uma formação integral, voltada
à real contribuição na formação crítica, reflexiva, ativa e sensibilizadora da relevância
56
de uma prática voltada à apropriação crítica, radical e emancipatória presente na
apropriação do mundo das letras. Contudo, é preciso uma reflexão sobre o que é método
de alfabetização, muitas vezes usado banalmente em referência a um livro didático, uma
cartilha, uma técnica ou procedimento de aplicação. De acordo com MACIEL (2010),
no Brasil, a palavra método adquiriu essa conotação negativa no decorrer das últimas
décadas, mas é necessário compreendê-la como um caminho a ser trilhado guiado por
“um conjunto de princípios pedagógicos, psicológicos e linguísticos que definem os
objetivos e meios adequados para se atingir.” (p. 48) Assim, muitas vezes,
erroneamente, o material didático é percebido e utilizado como uma metodologia. Na
verdade, é o método que faz o material e não o contrário, isto é, os livros e suas técnicas
é que estão em consonância com o(s) método(s).
Consideremos os recentes e ainda assustadores índices de analfabetismo do
Brasil (em suas diversas facetas: analfabetismo, semianalfabetismo e analfabetismo
funcional6), insistentes em ensaiar avanços, mas que são aproximados, amostrais,
generalistas, muitas vezes manipulados ou erroneamente interpretados, voltados à
quantificação de resultados e não ao processo de ensino e aprendizado, e, por isso
mesmo, não conseguem revelar a real dimensão desta caótica situação escolar em
vigência nas redes públicas. Para MACIEL (2010), as novas metodologias são sempre
concebidas com o propósito de solucionar o fracasso na alfabetização.
SOARES (2010) denomina este cenário de fracasso na aprendizagem inicial
da língua escrita, incluindo aspectos tanto da alfabetização (vinculado ao ensino e
aprendizado do código) quanto do letramento (associado aos usos sociais da língua
escrita). Para ela, essa aprendizagem sempre foi um fracasso na rede pública de ensino
fundamental brasileira. O que antes evidenciava-se nos altos números de retenção na 1ª
série (série de alfabetização), promotores do grande número de evasão escolar, com a
implantação dos ciclos de aprendizagem, que levou a aprovação praticamente
automática dos estudantes, o fracasso na alfabetização foi diluído ao longo de todo o
ensino fundamental e médio.
Acredito que a vinculação prática e teórica deste “fracasso” com a
metodologia utilizada está dentro de uma lógica conservadora, reducionista e
politiqueira. O “fracasso” na alfabetização de crianças na escola pública não pode
6
Compreende-se por analfabetos(as) funcionais aqueles(as) pessoas que apenas se apropriaram da
(de)codificação da língua escrita desvinculada dos usos sociais empregados à leitura e à escrita.
57
tornar-se refém exclusivo dos métodos didático-pedagógicos adotados e/ou utilizados
nesta instituição, pois a eficiência desse ensino e aprendizagem da língua materna não
depende unicamente das metodologias e técnicas aí empregadas e da ação autômata de
seus agentes escolares na aplicação desses procedimentos, geralmente concebidos
externamente à escola e, portanto, descontextualizados e sem o legítimo envolvimento
dos verdadeiros agentes alfabetizadores que atuam cotidianamente no “chão da escola”:
o professor(a), que com a devida formação e comprometimento com a educação pública
básica, pode ainda fazer algumas escolhas em oposição a este cenário.
Nas últimas décadas, a questão da eficiência metodológica foi, e ainda é,
tema de tensos debates no contestado campo do ensino e aprendizado da língua, em
especial devido à aparente ineficiência dos métodos diante dos novos desafios
promovidos pela universalização do ensino básico público no brasileiro, principalmente
a partir da década de 1970.
De um lado, os defensores(as) dos métodos sintéticos (evoluem
sistematicamente das unidades menores da língua – letra e sílaba – e da relação
grafema-fonema – letra-som – para se chegar às palavra e às sentenças). De outro lado,
os que defendem os métodos analíticos ou globais (os quais partem compreensivamente,
durante o ensino e aprendizado, das unidades maiores da língua, tais como, a oração e a
frase para se chegar às unidades menores da língua). Uma terceira via surgiu deste
embate, os nomeados métodos ecléticos ou mistos ou analítico-sintéticos (os quais
enfatizam, durante o ensino e aprendizado, a compreensão do texto desde o início por
unidades maiores da língua, concomitantemente, com a identificação de fonemas e
explicações da relação entre letras e sons). Contudo, este embate perdeu intensidade no
Brasil a partir da década de 1980 quando as atenções sobre alfabetização de criança
mudaram do como o docente ensina para o como a criança aprende, resultado da postura
construtivista7 amplamente divulgada e adotada na teoria e na prática por aqui.
(CARVALHO, 2008)
No que diz respeito aos métodos sintéticos, pode-se dizer que há um
exagero na utilização dos mecanismos de codificação e decodificação, excesso de
7
Sobre o construtivismo, cabe aqui ressaltar o seu valor histórico muitas vezes desconsiderado ou
desconhecido, não almejando fazer uma defesa, mas apenas ponderando as críticas realizadas, que este
foi, e ainda o é, tomado como bode expiatório em muitas questões escolares. Contudo, não se pode
esquecer que, de uma forma geral, a escolarização até então desconsiderava a criança, o construtivismo,
então alertou para o processo de aprendizagem da criança.
58
memorização, descontextualização e descompromisso com a compreensão dos
significados e com capacidade motivacional para a leitura e escrita dos estudantes.
Assim, o mecanismo nem sempre é compreendido pelo educando ou aprende-se o
método, mas muitas vezes permanece analfabeto(a) ou analfabeto(a) funcional, e,
portanto, não faz uso social da língua escrita.
Apesar desses aspectos, métodos sintéticos, tais como, soletração, silabação
e fônico, continuam sendo muito utilizados, parcial ou integralmente, pela maioria dos
alfabetizadores(as) brasileiros(as) e, muitas vezes, de forma assertiva, isto é,
aproveitando os princípios e estratégias de cada método que melhor atendem as
necessidades e demandas de cada contexto.
Por exemplo, conforme apresentado por CARVALHO (2008), a seguinte
ordem cronológica de conteúdos, proposta no método silabação, ainda é muito utilizada
em muitos materiais didáticos: as cinco letras vogais; ditongos; as sílabas formadas com
as letras (v-p-b-f-d) cujo som é sempre o mesmo, qualquer que seja a posição que
ocupem na palavra; as sílabas formadas com as letras (l-m-n) que podem representar
mais de um som, estando no início ou no final da sílaba; as sílabas formadas com a letra
(j) cujo som pode ser escrito com (ge) ou (gi); e as dificuldades ortográficas (dígrafos,
sílabas travadas ou terminadas por consoantes, as letras g-c-z-s-x).
No Brasil, vale ainda destacar o método fônico (ênfase na dimensão sonora
da língua, ou seja, nas unidades mínimas de sons, os fonemas, representados na escrita
por letras do alfabeto). Segundo CARVALHO (2008), muitos autores consideram esta
metodologia a mais apropriada para o ensino e aprendizado da leitura, em especial
quando aplicado junto a crianças de classes populares, devido ao pouco acesso e
estímulo diante do mundo das letras, responsabilizando os métodos analíticos pelo
imenso fracasso no processo de leitura e escrita escolar.
Com base em análise da Provinha Brasil8 aplicada pelo Ministério da
Educação (MEC), GERALDI (2011) deflagra o potencial de retomada do método fônico
8
Para melhor compreender as nuances envolvendo a Provinha Brasil, é relevante saber que ela foi
desenvolvida pelo INEP com apoio do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE) da UFMG do
qual a pesquisadora Magda Soares é integrante. Esta definida como “uma avaliação diagnóstica do nível
de alfabetização das crianças matriculadas no segundo ano de escolarização das escolas públicas
brasileiras. Essa avaliação acontece em duas etapas, uma no início e a outra no término do ano letivo. A
aplicação em períodos distintos possibilita aos professores e gestores educacionais a realização de um
diagnostico mais preciso que permite conhecer o que foi agregado na aprendizagem das crianças, em
termos de habilidades de leitura dentro do período avaliado.” (INEP, 2011)
59
na rede pública de ensino, pois há, neste exame, uma grande quantidade de questões
direcionadas a estudantes acostumados a rotina de ensino e aprendizado fonológicos. “E
como os professores entendem os recados implícitos nas políticas de avaliação,
certamente para este método migrará o ensino brasileiro.” (p. 16) Por outro lado,
SOARES (2010) afirma que avaliações externas como o Saeb, o Saresp e o Simave são
verdadeiras “caixas-pretas”, portanto não tem o caráter diagnóstico do processo de
ensino e aprendizagem. O que não ocorre com a Provinha Brasil que, segundo a autora,
é uma ação transparente e que oferece à escola instrumentos, mesmo que parciais, para
intervir pedagogicamente. Contudo, muitas escolas não entendem o objetivo do MEC e
partem para o treinamento dos estudantes para responder ao exame, reduzindo o
processo de escolarização.
Em relação aos métodos analíticos, que se basearam nos princípios
escolanovistas9 a partir do final do século XIX, em especial nas idéias de Decroly e
Claparède, foram responsáveis por uma profunda mudança na prática tradicional
docente, pois inverteram a lógica vigente da alfabetização, isto é: começaria a
alfabetização por unidades amplas, frases e histórias, para se chegar às letras e aos
fonemas, mantendo em vista a compreensão e significado do texto. Utilizaria assim,
desde o início da alfabetização, textos naturais e frases contextualizadas à realidade da
criança, o que potencializaria a busca do sentido neste processo.
Assim métodos, tais como o do próprio Decroly, o Natural de Freinet, o
Psicolinguístico e o da Palavração (com destaque para Paulo Freire), de uma forma
geral, visam estimular a criança à reflexão, à criatividade, à livre expressão, à
experimentação e à visão de conjunto e globalizada, respeitar os seus interesses a sua
realidade e idiossincrasias. Têm o princípio de que a criança ao se escolarizar já é capaz
de se comunicar e expressar verbalmente, logo, tem um grande domínio da língua oral.
Acreditam que potencializam a formação de leitores(as) letrados(as), que encontram na
escrita e leitura significados sócio-políticos destinados ao ser humano na expressão de
suas ideias e sentimentos para ser compreendido e se relacionar em condições
igualitárias.
9
Sobre a Escola Nova, pode-se dizer que possui como diretrizes: o conhecer e o respeitar as necessidades
e interesses da criança; partir da realidade do estudante; e estabelecer relações entre escola e a vida social
do educando. Como estratégias recomendavam-se o Método Ativo (aprender fazendo), a liberdade de
criar e a participação da criança no planejamento do ensino. Um de seus relevantes fundamentos é a
corrente da sicologia Gestalt, segundo a qual a criança tende a perceber o conjunto antes do detalhe
(função de globalização), contrapondo os métodos sintéticos.
60
Dentre os defensores dos métodos analíticos, CARVALHO (2008) afirma
que estes demonstraram ser mais motivadores e com maior potencial de promover o
interesse nas crianças para entrarem no mundo da escrita e formarem-se letrados(as) –
mesmo não havendo garantias da efetividade dos resultados dessa abordagem
metodológica e conhecendo algumas de suas vulnerabilidades teóricas e práticas.
Contudo, para exercer uma “alfabetização” desse quilate, isto é, crítica,
política, reflexiva, emancipatória, da alteridade e eficiente, precisaríamos contar com
professores(as) comprometidos e efetivamente preparados para tal função e papel. Fato
que passa imprescindivelmente por uma radical transformação nas instituições de ensino
superior e de seus cursos de licenciatura e, consequentemente, de seus professores(as)
formadores.
Em relação à questão da dificuldade de “alfabetizar”, que paira sobre a
maioria dos professores(as), CARVALHO (2008) atribui esta percepção principalmente
aos seguintes aspectos: fato de se trabalhar com turmas muito numerosas; desafio
didático de como selecionar, organizar e ensinar os conteúdos; e formação docente que
trata as teorias apenas num plano das ideias, não buscando responder as necessidades e
demandas da prática. Para esta autora, os docentes desconfiam das teorias e valorizam a
experiência própria de ensino para adotarem seus próprios caminhos pedagógicos.
Ressalta que o construtivismo é o bom exemplo deste cenário, pois forneceu uma
extensa base teórica sem nenhuma sustentação prático-metodológica para a sua
aplicação. Sua transposição para a sala de aula ocorreu, e ainda ocorre, por meio das
seguintes técnicas, insuficientes aos desafios da “alfabetização”: trabalhar inicialmente
com os nomes dos alunos; ensinar o alfabeto associado a esses nomes; ser mais
tolerantes aos erros; e analisar e classificar as crianças nas fases pré-silábica, silábica,
silábico-alfabética e alfabética.
Metodologicamente, para aumentar as chances de se obter bons resultados
nessa “alfabetização”, CARVALHO (2008) propõe considerar os seguintes aspectos na
escolha do método: a concepção que o método tem de leitura e de leitor (há
preocupação com as questões técnicas e compreensivas da leitura, com a sistematização
dos conhecimentos sobre a relação letra-som e com os elementos motivacionais do
interesse pela leitura?); o conhecimento docente sobre a fundamentação teórica; a
coerência entre as etapas práticas com os fundamentos teóricos; a acessibilidade do
material didático; a comprovação do êxito do método; e o que dizem as pesquisas sobre
61
o método a ser adotado. Contudo, MACIEL (2010, p. 50) defende que as escolhas do(s)
método(s) “envolvem e se desenvolvem em função da concepção de alfabetização que
se adota, ou seja, é preciso ter claro o que é ser alfabetizado.”
Na busca da assertividade metodológica, FRANCHI (1988) chama também
a atenção para o fato de que na alfabetização, ao contrário dos métodos que sugerem
operar com objetos linguísticos escritos complexos, a inserção da escrita em um
contexto oral, significativo e contextualizado, oferecem às crianças “condições de
operarem inicialmente sobre elementos simples, em que a correspondência mais estreita
entre grafias e sons [...] permite explorar a hipótese da escrita como um sistema
cominatório e produtivo” (p. 259), o que contribui com a construção de objetos mais
complexos. Desta forma, para a autora, colocar o processo de alfabetização sob a
oralidade promove duas vantagens: “a tendência a explorar as possibilidades
combinatórias do sistema gráfico [...] e a tendência que respeita o pressuposto da escrita
inicial já como representação significativa.” (p. 260)
Para responder a outra questão – qual é o método mais eficiente? –
CARVALHO (2008) reforça que a metodologia não é a questão mais relevante na
“alfabetização”, é preciso sim que os agentes educacionais tenham efetivamente
compreendido os objetivos da ação pedagógica [diria mais, que eles(elas) saibam o por
que estão ensinando em uma escola pública]. Contudo, os profissionais alfabetizadores
devem também conhecer os princípios teórico-metodológicos básicos do ensino e
aprendizagem da leitura e escrita da língua. O que os tornarão mais assertivos em suas
ações pedagógicas, permitindo criar estratégias próprias diante da imensa diversidade,
necessidades, contextos e subjetividade dos estudantes. Tendo sempre em mente que um
método dará conta de algumas crianças, mas não de todas. Portanto, é relevante focar no
que faz sentido aos estudantes, sendo um mediador das dificuldades que surgem. Desta
forma, cabe ao docente a autonomia da escolha dos métodos. Segundo MACIEL (2010,
p. 60), “cabe às escolas e aos professores alfabetizadores a concepção sobre o que é
alfabetizar para tornar mais claros [...] os procedimentos metodológicos a serem
utilizados.”
É importante fazer aqui uma ressalva sobre esta autonomia docente, que
pode ser confundida, reduzida ou mesmo ressignificada para justamente não permitir
que ocorra efetivamente. Por exemplo, uma rede de ensino ou uma diretora escolar,
pode “atribuir” a escolha do livro didático com o discurso falacioso de concessão de
62
autonomia na escolha dos métodos ao professorado. É lógico que mesmo nesta situação,
em que se escolhe um livro didático reducionista do potencial sócio-político-pedagógico
da alfabetização, o docente pode e deve transcendê-lo em sua práxis na sala de aula.
Reforço que metodologia, não é uma mera técnica, está sim relacionada com todo o
processo a ser utilizado, regado por princípios pedagógicos, psicológicos, linguísticos,
estruturais (físicos e humanos).
CARVALHO (2008) faz ainda algumas importantes colocações sobre o(s)
método(s) adotado(s) e a(s) sua(s) respectiva(s) eficiência(s) na “alfabetização”: é
necessário ensinar as relações letras-sons de forma sistemática, contudo com
flexibilidade ao que surge da realidade e do contexto dos estudantes, fato que
potencializa o interesse em ler e escrever nestes; é melhor atender imediatamente a
curiosidade das crianças; o conhecimento teórico do método é uma premissa, mas a
qualidade de sua aplicação vem da prática, tempo, observação das reações, registro e
análise dos resultados e busca de soluções; é extremamente crucial ter uma rede de
apoio de docentes alfabetizadores que se ajudem mutuamente; e, no que diz respeito aos
sistemas de ensino, não impor um método à prática docente.
Ao considerar os diálogos entre docente-discente que promovem hipóteses
relacionadas a novos aspectos da linguagem, como é o caso das correlações entre a fala
e a escrita, FRANCHI (1988) amplia a questão da efetividade metodológica anterior, ao
defender que o alfabetizador(a) deve ainda “estar sempre atuante e disponível para
aguçar a sensibilidade e a atenção das crianças para o material de fato relevante e
preparar a situação em que elas possam participar ativamente [...] explorar
imaginativamente essa situação, para fazer surgirem novos fatos.” (p. 261)
Neste sentido, explicita-se que refletir sobre a especificidade do ato
educacional guiado pela perspectiva da “alfabetização” está muito além da questão
metodológica. Cabe ao professor(a), na sua práxis de formar consciente, crítico,
reflexivo e autônomo, questionar a finalidade sócio-político-pedagógica do seu ato
“alfabetizador” e fazer a sua escolha, assim: alfabetiza-se para contribuir com a
manutenção do status quo imersa em desigualdades, limitações e opressão? Ou,
alfabetiza-se para contribuir, efetivamente, com a emancipação crítica da grande parcela
populacional (que usa obrigatoriamente a escola pública básica) das engrenagens
opressoras, envoltas em um sofisticado processo de alienação material e ideológica das
classes populares?
63
São dois caminhos antagônicos de concepções e posturas de/no mundo,
portanto inconciliáveis. Neste sentido, na busca deste outro paradigma educacional, no
qual a alfabetização crítico-emancipatória é intrínseca, faz-se necessário e urgente que
cada profissional envolvido, direta ou indiretamente, com as séries iniciais da escola
pública de ensino fundamental faça, explicite e publicize a sua escolha, para que assim
as pessoas que utilizam esta instituição finalmente possam fazer suas escolhas,
colocando seus filhos(as) em unidades escolares condizentes com seus desejos, sonhos,
necessidades e realidades (alguns serão ainda remanescentes, outros serão novos que
surgiram nesse processo de luta e conquista).
Desta forma, nesse engendrar dialógico e democrático de um novo
paradigma de “alfabetização” crítica, política, social, radical e de alteridade para/com
todos(as), não haverá espaço para os conservadores ou subversores aparentes. Aos que
assumirem os riscos e os sabores da subversão da ordem opressora vigente, se sentirão
muitas vezes, pela sensação de estarem sós, pelo menos no começo desse movimento,
como o emblemático cavaleiro andante, Dom Quixote, em sua interminável luta utópica
contra os imensos moinhos de vento, que em nosso contexto escolar se transmuta em
aspectos (macro)estruturais, os quais precisam ser desvelados criticamente, e, assim,
serem compreendidos para além da aparência, isto é, na sua essência social, política,
cultural, ambiental e pedagógica, para que assim se produza a ação revolucionária.
Deste modo, a escolha e a utilização do método passam a ser secundária, mesmo que
relevante no que diz respeito à sistematização didático-pedagógica. O foco aqui se volta
necessariamente ao para que se “alfabetiza”. Questão que será abordada na próxima
sessão deste trabalho, e que busca caminhos para o docente alfabetizador como
pensador(a) dos caminhos dessa alfabetização.
64
3. PROFESSOR(A), PENSADOR DOS CAMINHOS DA
ALFABETIZAÇÃO CRÍTICA
Quando penso que uma Palavra
pode mudar tudo
não fico mudo
Mudo
Quando penso que um passo
descobre o mundo
não paro passo
Passo
E assim que passo e mudo
um novo mundo nasce
na Palavra que penso
(poesia Penso e Passo de Alíce Ruiz musicada
por Alzira Espíndola no disco Peçam-me)
Nas reflexões realizadas anteriormente sobre um outro paradigma escolar
possível para a rede pública de ensino fundamental, que passa necessariamente por uma
“alfabetização” ou letramento10 – seja lá qual o termo adotado – o professor(a) torna-se
agente educacional imprescindível, independente da abordagem pedagógica e
metodológica adotada ou utilizada, das políticas públicas educacionais vigentes, das
precárias condições de trabalhos, das complexas condições multi-dimensionais do
público que utiliza desta instituição, dentre outros aspectos que configuram esta área da
educação brasileira.
A formação inicial, continuada e mesmo a obtida informalmente no dia-adia da sociedade tornam-se aspectos centrais à compreensão do mosaico de elementos
constituintes de uma identidade docente que dê conta da complexidade, demandas e
urgência de se promover efetivamente na rede pública de ensino uma escolarização que
traga intrinsecamente este alfabetizar letrando, isto é, uma educação pública de
qualidade crítica, reflexiva e transformadora para todos(as).
10
Pensando sempre em um processo de ensino e aprendizado da língua materna com crianças das séries
iniciais da escola pública fundamental que potencialize a reflexão crítica e a ação transformadora destas
sobre suas concepções de mundo, de sociedade, de ser humano entre outras e, consequentemente, sobre
sua realidade.
65
Contudo, e por isso mesmo, cabe-nos refletir e responder algumas
importantes indagações: a formação inicial e continuada prepara os pedagogos(as) para
este paradigma de alfabetização? Dá conta dos desafios sociais, (macro)estruturais e
pedagógicos da escola pública de ensino fundamental? Quais as características,
objetivas e subjetivas, necessárias para este docente? Quais são os conhecimentos,
valores e atitudes essenciais a estes docentes? Os currículos dos atuais cursos de
pedagogia contemplam esta perspectiva? A academia e seus formadores(as) de docentes
estão compromissados ou preparados para este processo? Os professores(as) estão
perdendo a sua autonomia sócio-pedagógica profissional? É possível formar este
profissional no vigente quadro do ensino superior?
Como ponto de partida, acredito que a formação inicial de docentes
realizada pelos inúmeros cursos públicos e privados, presenciais e à distância, em suas
diversas áreas de licenciaturas, em especial na pedagogia, precisa definitivamente dos
holofotes priorizantes e valorativos do Estado e de toda sociedade. Por ser esta, em sua
maioria, uma etapa crucial na sensibilização e mobilização desses jovens profissionais
em prol do seu engajamento junto ao movimento de subversão da vigente situação de
fracasso que impera nas séries iniciais das escolas públicas de ensino fundamental, em
especial no que diz respeito ao alfabetizar letrando em língua portuguesa.
Priorizar efetivamente a escola pública para que cumpra o seu papel
libertador, fato que passa necessariamente pela formação inicial e a consequente
instrumentalização dos professores(as) para os embates e tensões cotidianos com as
forças conservadoras ali presentes, potencializará a promoção da cidadania ativa,
compromisso e engajamento destes agentes escolares com um novo paradigma de
sociedade e de escola, notadamente marcada pelas históricas e inúmeras desigualdades
entre dominantes e dominados. Desta forma, a médio e longo prazo, criar-se-á um
grande contingente de docente-ativos, pensadores reflexivos e autônomos nos caminhos
que promovam a construção desta outra escola possível.
Neste sentido, SOARES (2010, p. 9-10) defende o aprofundamento da
formação dos docentes alfabetizadores, desvinculando-os da perspectiva generalista,
vigente nas primeiras séries do ensino fundamental. Fato que se viabilizaria por meio de
uma reforma da formação inicial dos cursos de pedagogia, discussão recorrente no
Conselho Técnico-Científico da Educação Básica da Capes que encontra grande
resistência em diversos âmbitos. Para tanto, considera relevante o desenvolvimento de
66
uma espécie de “especialização” após a formação básica geral. Acredita ainda que “para
introduzir a criança no mundo da escrita, o professor tem de, primeiro, dominar bem a
língua portuguesa, [...] tem de ter formação sociolinguística; psicolinguística; de
fonologia [...]; tem de conhecer literatura infantil; gêneros textuais, teorias de leitura e
diferentes estratégias”.
É preciso entender também que no processo de universalização do ensino
público fundamental, que deu direito e acesso a todos(as), a escola pública foi povoada
rapidamente por uma avalanche de estudantes que não faziam, anteriormente, uso social
da língua escrita, e que a maioria dos docentes e dos formadores de docentes não
acompanharam esta mudança. Além disso, os próprios docentes que passaram a assumir
as salas de aulas vieram também deste mesmo cenário. Para SOARES (2010, p. 10-1),
“a língua escrita está amarrada na oralidade, pois é a representação da língua falada [...]
e há semelhanças e diferenças entre os gêneros falados e orais. Isto é diferente em
grupos sociais diferentes.” Neste ponto, a sociolingüística, [assim como, as pesquisas
relacionadas ao gênero do discurso] tornam-se relevantes aspectos na eficiência da
alfabetização e letramento, para compreender que a criança transferirá o seu dialeto
popular oral para a escrita e que ela convive com uma escrita e oralidade diferente da
requisitada pela escola.
Sociologicamente, o caminhar evolutivo da pedagogia apresenta avanços e
retrocessos, sendo que as diferentes abordagens educacionais representam concepções e
interesses específicos de um determinado tempo e espaço de uma sociedade. Neste
processo, é preciso chamar a atenção para a identidade docente que vem sofrendo
mudanças tanto sócio-educacionais quanto político-culturais, passando de um
reconhecido produtor reflexivo do conhecimento – um líder intelectual que atua
intrinsecamente entre o produzir, o ensinar e o aprender – à mera dependência do
conhecimento produzido externamente por outros (órgãos e sujeitos). Perspectiva que
pode ser notada já na utopia da universalização da escola de Comenius no século XVII,
que previa o apostilamento do ensino para transformar os docentes em transmissores do
conhecimento.
Pode-se dizer que emergiu aqui, ainda de forma embrionária, a
proletarização docente, que foi tornando-se paulatinamente uma categoria fadada à
desatualização e à fragmentação acrítica do conhecimento, à dependência da
racionalidade científica e à identificação com o controle do processo educativo.
67
Atualmente no Brasil, encontramo-nos no ápice desse processo de desprestígio social e
econômico da profissão. GERALDI (1997, p. 96) acredita que “a própria emergência
profissional do professor, resultado da divisão social do trabalho, acaba por produzir
diferentes identidades histórico-sociais. [...] respondem a diferentes interesses da
sociedade na educação.”
Em pesquisa realizada na rede pública do estado de São Paulo por
NACARATO, VARANI e CARVALHO (1998) foram reveladas algumas dimensões da
imagem docente diante da atual sociedade. Primeiramente, é usual referir-se à prática
docente com a expressão “dar aulas”, o que traz, ideologicamente, a concepção histórica
de doação e não como profissão. Também encontrou-se a rotineira compreensão que se
tem da prática associada a um tipo de vocação missionária, o que nega a dimensão
crítica e política das ações educacionais. Essas questões relacionadas à imagem
construída socialmente da docência são intensificadas com a sua feminilização. Os
docentes consideram ainda que a universalização do ensino público, num paradigma
técnico-burocrático, contribuiu para a proletarização do(a) professor(a).
GIROUX (1997, p. 158) entende a proletarização do trabalho docente como
“a tendência de reduzir os professores ao status de técnicos especializados dentro da
burocracia escolar, cuja função, então, torna-se administrar e implementar programas
curriculares”. Uma ascendente abordagem tecnocrática de cunho ideológicoinstrumental, vigente tanto na formação docente quanto nas práticas escolares que presta
um desserviço ao processo de ensino e aprendizagem.
Para CONTRERAS (2002) a proletarização do professorado tem como base
a subtração progressiva de suas qualidades que leva à perda do controle e do sentido do
ofício docente, isto é, a perda da autonomia, num crescente de controle ideológico e
tecnicista do ensino. Assim sendo, as transformações nas condições de trabalho e nas
tarefas que realizam os docentes os aproximam das condições e interesses da classe
operária, tornando-se dependentes da racionalização e do controle externo oriundo do
conhecimento científico e de especialistas. O que leva à constatação dos reflexos diretos
nos conteúdos da prática educativa, no enquadramento produtivo do currículo, na
hierarquização
e
burocratização
escolar,
na
intensificação
do
trabalho,
no
distanciamento da concepção do currículo e na redução docente à execução.
Formatando-se um quadro de alienação e desagregação prático e político do seu ofício
que desencadeia na perda da capacidade de resistência e luta e do exercício reflexivo
68
docente. A qualidade então é sacrificada em prol da quantidade. Portanto, a perda da
autonomia docente na realização do seu trabalho se configura no controle técnico e na
desorientação ideológica a que passam a ser submetidos. Este processo torna-se tanto
mais eficaz quanto o professorado o percebe como inevitável.
CONTRERAS (2002) explicita que há dois aspectos culturais vigentes que
corroboram e reforçam esta cena educacional, são eles: a convicção de que o ensino é
um problema técnico, reforça a ideia de que para ser um bom profissional do ensino é
preciso dominar um amplo repertório técnico; e a mudança de identidade do professor
que passa de trabalhadores do ensino a profissionais do ensino.
Contudo, nem tudo está perdido. Por lidar a docência com a formação
humana, não é possível prever de antemão todos os caminhos e cenários educativos na
concretude escolar. Segundo CONTRERAS (2002), não se pode separar radicalmente a
concepção da execução. O professor(a) sempre detém um certo nível de autonomia em
sua prática. Por isso, a escola é um lócus privilegiado de resistência às imposições
ideológicas. O ensino que se prima na mudança da ordem vigente, não pode ser definido
somente de um modo descritivo da prática real em sala de aula, pois, é preciso
considerar as aspirações, crenças, valores, isto é, a subjetividade dos sujeitos que ali
estão.
Por outro lado, em um viés psicológico da constituição da identidade do
professor(a), MOSQUERA e STOBÄUS (2006), numa perspectiva de educação da
afetividade e pressupondo que a personalidade humana é inacabada e inconclusa (sendo
a vida adulta a maior etapa do desenvolvimento humano) e que a idade cronológica não
é atestado de maturidade, equilíbrio e consciência (nunca se alcança a maturidade plena)
acreditam que os docentes devem construir-se diariamente sabendo que: trabalha em um
mundo mutável; é impossível separar a vida pessoal da profissional; para ser bem
sucedido(a) torna-se necessário desenvolver uma personalidade saudável (capaz de
auto-avaliação, ajustes críticos, auto-realização e melhores relações interpessoais). Para
tanto, é necessário ter consciência de que grande parte dos problemas e desafios do
cotidiano escolar é de fundo pessoal e interrelacional, por isso, torna-se essencial
desenvolver uma alfabetização de cunho emocional.
MOSQUERA e STOBÄUS (2006) consideram também que o ato
pedagógico é uma relação de intimidade com outros seres humanos continuamente
69
questionada. Neste sentido, o principal aspecto do relacionamento docente-estudante é a
disposição que se tem para ouvir, ver, ser tolerante e generoso, pré-requisitos de uma
ação bem sucedida. Neste sentido, para conceber uma educação da afetividade o
docente necessita de um perfil com uma profunda auto-reflexão, alteridade ao próximo
e abertura à diversidade existente na escola.
Penso que essa abordagem psicológica da educação, dentro do prisma da
afetividade, em especial no que diz respeito à constituição de uma identidade
“saudável” docente e da qualidade que se empenha na relação docente-discente, resgata
um aspecto central da abordagem pedagógica humanista, muito esquecido nos últimos
tempos, relacionado à ênfase nas relações interpessoais, ao crescimento que surge
dessas relações e ao desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Esta abordagem,
quando não interpretada de forma ingênua e reducionista, isto é, subestimando as
questões ideológicas e materiais vigentes em nossa sociedade capitalista, e portanto, na
instituição escola, potencializa a introjeção de valores que podem se transformar em
hábitos e atitudes ativas para a superação de uma realidade insalubre tanto individual
quanto coletivamente.
Dentro da perspectiva de formação docente que potencialize a promoção de
um ensino reflexivo, TARDIF (2002) critica a redução deste processo formativo às
dimensões psicológica e tecnicista voltadas à competência, assim como, às concepções
sociológicas que associam os docentes a agentes reprodutores das estruturas sociais. Por
outro lado, defende a concepção de professores(as) como sujeitos do conhecimento, por
terem a missão educativa da escola e serem os principais agentes disseminadores da
cultura e saberes escolares. Por isso, faz-se necessário compreender seus
conhecimentos, suas concepções de mundo e suas subjetividades.
Ainda, segundo GIROUX (1997), a formação docente de racionalidade
técnico-instrumental não leva os futuros professores(as) a refletirem sobre os princípios
estruturantes da vida e da sala de aula, mas sim a aprenderem metodologias que negam
o pensamento crítico, focadas no como fazer ou como ensinar determinado conteúdo.
Fato que reduz a autonomia dos docentes no que diz respeito à concepção, planejamento
e
desenvolvimento
curricular,
tornando-se
legitimadores
das
pedagogias
administrativas. O que pode ser evidenciado nos pacotes educacionais “à prova de
professor”.
70
É evidente que o foco deste trabalho de conclusão de curso e destes autores
estão nos docentes, contudo é preciso não se esquecer das subjetividades dos outros
agentes diretos que compõem a comunidade escolar – diretores(as), coordenadores(as)
pedagógicos(as) e funcionários(as) – pois são ou pelo menos deveriam ser considerados
agentes efetivos nas tomadas de decisões das ações e projeto político pedagógico da
escola.
De acordo com TARDIF (2002), considerar o docente como sujeito do
conhecimento conduz a três consequências diretas: recolocar dialogicamente a
subjetividade do professor(a) no centro das pesquisas (é a partir de suas experiências e
concepções, valores, crenças, história de vida que se constrói seus saberes, assimilam
novos conhecimentos e desenvolvem novas práticas, o que os fazem sujeito do
conhecimento. Possui um saber-fazer proveniente de sua prática. Assim, deixa-se de
considerá-lo como técnicos aplicadores do conhecimento e agentes reprodutores das
estruturas sociais, visões que não levam em conta os saberes docentes e sua
subjetividade); repensar as relações entre teoria e prática (a prática docente não é apenas
um espaço de aplicação de saberes produzidos por outros, mas fundamentalmente lócus
de produção, transformação e mobilização de saberes que lhes são próprios. Assim, o
professor(a) deixa de ser visto como um mero aplicador do conhecimento produzido
externamente. O que contesta a ilusão da concepção tradicional da relação prática e
teoria de haver uma teoria sem prática e de um saber sem subjetividade que leva a uma
consequência inversa de uma prática sem teoria e de um sujeito sem saberes); e
considerar aspectos práticos e políticos (esta subjetividade e experiência docente
conduzirão a um novo paradigma de ensino e aprendizado).
TARDIF (2002) destaca também os seguintes aspectos práticos e políticos
necessários a esta outra configuração do ensino, isto é, o professor(a) como sujeito do
conhecimento: as pesquisas acadêmicas serão para o ensino e com o professor(a) e não
sobre o ensino e o professor(a), sendo que os saberes sobre o ensino não poderão ser
mais privilégio da academia. O docente deverá ser considerado colaborador e copesquisador, apropriando-se das pesquisas; a necessidade de mudança radical na
formação docente, que passa a considerar a subjetividade e experiências do docente,
tornando-o parceiro dos cursos formativos. Hoje há o domínio de uma lógica dos
conteúdos e disciplinas (concebidas distantes das realidades cotidianas escolares) e não
profissional. Os formandos passam anos assistindo aulas. Deste modo, é preciso abrir
71
espaço na formação docente que considere também os estudantes como sujeitos do
conhecimento; e o professor(a) somente será reconhecido como sujeito do
conhecimento quando for considerado verdadeiro agente educacional, sujeito da própria
ação e do próprio discurso. Para tanto, é preciso dar-lhe espaço e tempo para agir
autonomamente. A desvalorização dos saberes docente é política e não epistemológica,
pois nos mecanismos de decisão e poder, este não está em mesmas condições que os
outros agentes educacionais. É preciso, portanto, uma unidade (intra)intersetores da
profissão docente da educação infantil ao ensino superior, pois somente serão sujeitos
do conhecimento quando todos esses profissionais reconhecerem-se uns aos outros
como iguais, que podem aprender uns com os outros.
Nos atuais embates sobre a escola pública, para que ocorra uma efetiva
organização e engajamento docente tão necessário para o engendrar de um paradigma
libertador, crítico e reflexivo escolar, GIROUX (1997) defende a necessidade de uma
base teórica que redefina a natureza da crise escolar e forneça uma alternativa à
formação e trabalho de professores(as). Ou seja, para que estes educadores estabeleçam
uma voz ativa no debate escolar, é preciso (re)conhecer, fundamentadamente, que a
atual crise na educação pública tem uma relação direta com a tendência crescente de
enfraquecimento dos professores(as) e também enfrentar a crescente perda de poder
docente e da percepção de seu papel reflexivo. É preciso, para tanto, compreender e
confrontar duas relevantes questões intrínsecas à qualidade da atividade docente: o
problema da proletarização do trabalho docente (abordado anteriormente); e a defesa
dos professores(as) como intelectuais transformadores para (re)pensar e (re)estruturar a
natureza da atividade docente.
Segundo GIROUX (1997), considerar a intelectualidade docente contribui
diretamente para polemizar a abordagem tecnocrática, aflorar as condições ideológicas e
materiais para a formação e prática docente e esclarecer o papel docente. Ou seja,
(re)pensar “as tradições e condições que têm impedido que os professores assumam
todo o seu potencial como estudiosos e profissionais ativos e reflexivos.” (p. 162) Parte
do princípio de que toda atividade humana traz intrinsecamente alguma forma de
pensamento, por mais mecanizada que seja. Assim, professores(as) devem ser tratados
como profissionais reflexivos e considerados como sujeitos livres que dedicam aos
valores do intelecto e ao fomento da capacidade crítica discente. Estes, por sua vez,
devem se responsabilizar ativamente pelo ensinado, como ensinam e quais são as suas
72
metas educacionais amplas. O quê, na vigente divisão de trabalho que coloca o
professorado num plano exclusivamente executivo, torna-se uma tarefa impraticável.
Neste sentido, GIROUX (1997) acredita ser preciso perceber as escolas
inextricavelmente relacionadas às questões de poder e controle. Espaços que
introduzem, representam e legitimam formas de conhecimento, práticas de linguagem,
relações e valores sociais. “As escolas não são locais neutros e os professores não
podem tampouco assumir a postura de serem neutros.” (p. 162) Assim, pensar o
professor(a) como intelectual transformador passa pela necessidade de tornar o
pedagógico mais político (inserir a escolarização na esfera política, no que diz respeito
às relações de poder) e o político mais pedagógico (utilizar abordagens pedagógicas de
natureza emancipatórias).
Destarte, viabilizar e lutar por uma alfabetização crítica, radical, política e
emancipatória está intrinsecamente inseparável de uma atitude de mesmo quilate de
seus professores(as) alfabetizadores(as) que, por sua vez, passa inevitavelmente por essa
mesma qualidade a ser empreendida nos cursos superiores de formação docente que,
assim, potencializaram o caráter transformador, autônomo, intelectual, crítico, reflexivo
e ativo destes agentes, aspectos indispensável à efetiva qualidade revolucionária desta
alfabetização junto as crianças das camadas “populares”, sedentas por este ato
educacional que as farão humanas, com horizontes mais amplos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vim de longe, vou mais longe
Quem tem fé vai me esperar
Escrevendo numa conta
Pra junto a gente cobrar
No dia que já vem vindo
Que esse mundo vai virar
Noite e dia vêm de longe
Branco e preto a trabalhar
E o dono senhor de tudo
Sentado, mandando dar.
E a gente fazendo conta
Pro dia que vai chegar
Marinheiro, marinheiro
Quero ver você no mar
Eu também sou marinheiro
Eu também sei governar.
Madeira de dar em doido
Vai descer até quebrar
É a volta do cipó de aroeira
No lombo de quem mandou dar.
(letra e música Aroeira de Geraldo Vandré)
No atual mosaico funcional constituinte da gestão escolar e das práticas
docentes nas séries iniciais do ensino público fundamental brasileiro, que tem se
mostrado de caráter multifuncional e/ou mesmo interfuncional face as suas diversas
demandas e necessidades, é imprescindível e urgente exercer uma práxis – açãoreflexão-ação – sobre a ideia central deste trabalho: para que alfabetizar sócio-políticocrítico-pedagogicamente crianças de classes populares na língua portuguesa?
Esta atitude vale para todos(as) envolvidos, direta ou indiretamente, com a
busca de uma qualidade escolar transformadora, que contribua de forma efetiva, junto à
promoção de um outro paradigma possível de sociedade, que concomitantemente
concebe um outro padrão escolar e, consequentemente, pelas características desta
74
escolarização, um outro ser (humano), necessariamente formado em virtudes que
afirmarão atitudes baseadas na ética, equidade, solidariedade, democracia, alteridade e
sustentabilidade da vida e da existência humana e de todos os outros seres.
Como diria Friedrich Nietzsche, por intermédio de sua personificação em
Zaratustra, que pregava a necessidade de chegarmos ao super-humano, um ser-humano
superior e liberto das fraquezas e limitações do humano que estamos sendo esta nossa
civilização apenas uma ponte em contínuo movimento de autosuperação para alcançálo, esculpindo-o. Devemos, nós docentes alfabetizadores, refletir sobre esta belíssima
narrativa a seguir, como sempre com a acidez nietzscheniana de um manifesto, que
clama pela da função superior do professorado:
Os figos caem das árvores, são saborosos e doces; e, ao caírem,
rompe-se sua rubra epiderme. [...] Assim, tal como os figos, caem para
vós, meus amigos, estes ensinamentos; sorvei-lhes, agora, o sumo e a
doce polpa! [...] Vede que plenitude há em torno de nós! E daqui,
desta abundância, é bonito olhar, ao longe, para mares distantes.
Dizia-se “Deus”, outrora, quando se olhava para mares distantes: mas,
agora, eu vos ensino a dizer: “Super-homem”. Deus é uma suposição;
mas quer que o vosso supor não vá além da vossa vontade criadora.
Podeis criar um Deus? Então, calai-vos de uma vez a respeito de
todos os deuses! Mas bem podeis criar o super-homem. Não vós
mesmos, talvez, meus irmãos! Mas podeis tornar-vos pais e ancestrais
[professores(as) alfabetizadores(as)] do super-homem; e que esta seja
a vossa melhor criação! (NIETZSCHE, 1986, p. 99-100)
Acredito ainda que este mosaico multifacetado (no qual, para os
desavisados(as), a escolarização apresenta-se e representa-se como a panacéia para
todos males desta nossa sociedade neocapitalista) tem dia-a-dia, revelado e desvelado a
escola pública fundamental como um espaço veementemente contestado por interesses,
necessidades e ideologias individuais e de determinados grupos das esferas pública
(governantes e políticos), privada (empresários, corporações), sociedade civil, academia
e terceiro setor, que em definitivo não representam e não dão espaço e poder efetivos de
participação à coletividade.
Desta forma, paulatinamente, esta instituição vem tornando-se refém dessas
inúmeras reivindicações e embates, muitos deles legítimos, oriundos de grupos
historicamente oprimidos e também promovidos por pessoas comprometidas com a
transformação. Contudo, na sua grande maioria expressa os históricos interesses
conservadores e a falta de compromisso e competência de seus proponentes com o
engendrar de uma escola pública radicalmente crítica que dê conta de exercer com
75
qualidade subversiva sua gênese formativa numa perspectiva libertária e emancipatória
de ambos: professores(as) e estudantes.
É notório que as redes e sistemas escolares públicos de ensino fundamental
brasileiros que surgem desta arena na qual se encontram esses inúmeros interesses –
convergentes, diferentes e antagônicos – de diversos agentes, em desiguais condições
sócio-político-cultural-pedagógicas, revelaram-se e revelam-se incapazes e apáticos no
cumprimento de sua função e papel originais, isto é, voltados a uma formação integral,
ominilateral, do ser humano.
Defendo que o contraponto educacional, a este cenário opressor e
desfavorável a um outro paradigma educacional possível, passa inevitavelmente por
essa práxis comprometida de todos(as) os agentes envolvidos nesse campo da educação
junto à alfabetização de crianças “populares”, com vistas a torná-la de caráter
radicalmente crítico e emancipador, portanto promotora da luta entre exploradosexploradores, oprimidos-opressores, agora entre revolucionários-conservadores, em
busca de uma sociedade mais ética, equitativa, solidária, democrática, dialógica,
sutentável e para/com todos(as). Então, notadamente, é imprescindível transcender a
fórmula desmobilizadora intrínseca no mero processo de ensino e aprendizado da
(de)codificação da língua.
Para tanto, para não continuarmos a penalização fabril dos milhões de
crianças que se encontram neste momento em “nossas” escolas públicas, este
movimento deve começar (ou ser continuado pelos que já o fazem) imediatamente e
impreterivelmente pelos professores(as) alfabetizadores(as) que já atuam no “chão da
escola”. Em curto e médio prazo é preciso a (re)concepção e (re)contextualização dos
cursos de formação docente, presencial e a distância, inicial e continuada, para que estes
dêem conta a qualidade de alfabetização aqui proferida e defendida. E, em médio e
longo prazo implementar políticas públicas educacionais que tragam sustentabilidade
legal e estrutural (humana, física e financeira) às ações dessa outra escola que surgirá.
Neste caminhar, é essencial a (re)criação e a utilização dos espaços escolares –
conselhos, reuniões, associações, entre outros – para a verdadeira participação dos
familiares e comunidade do entorno escolar nas tomadas de decisão e rumos que
caberão a cada unidade escolar.
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Acredito que este trabalho de conclusão de curso, dentro dos objetivos e
escopo aqui propostos e desenvolvidos, contribui diretamente com a promoção de uma
reflexão sobre algumas temáticas polêmicas que povoam o consciente e o inconsciente
do professorado que atua no processo de alfabetização de crianças, e que por isso, têm
uma relação intrínseca com a sua prática. Logo, desvelá-las de forma autêntica e crítica
torna-se primordial à construção concreta e objetiva de uma outra possibilidade de
alfabetização sócio-emancipatória para e com todos(as) das camada populares que
obrigatoriamente frequentam as séries iniciais das escolas públicas de ensino
fundamental.
Desta forma, na sessão sobre a trajetória histórica da construção do processo
de ensino e aprendizado revelaram-se importantes aspectos relacionados diretamente
com o ser docente e o para que alfabetizar crianças populares de escolas públicas.
Algumas abordagens apresentam mecanismos “camuflados” em teorias envolventes,
verdadeiras “armadilhas” conservadoras. Outras indicam caminhos transformadores que
permitem a autoreflexão dos professores(as) em relação a sua identidade, função e papel
sócio-político-educacional. Ambas influenciaram nas tomadas de decisão realizadas na
escola pública. Cabe-nos explicitar de que lado estamos e de que lado queremos e
precisamos estar.
Já as quatro questões sobre o processo de alfabetização de crianças aqui
tratadas – a dimensão da linguagem; a polêmica prático-teórica entre alfabetizar e letrar;
o uso ou não de textos; e a metodologia a ser utilizada – que foram escolhidas por serem
consideradas essenciais à efetividade de uma práxis de alfabetização sócioemancipadora, possibilita o repensar imediato do que está acontecendo dentro das
quatro paredes da sala de aula de alfabetização na escola pública.
Contudo, acredito que é preciso também avançar na compreensão de outros
inúmeros temas que assolam esse ambiente multifacetado do ensino e aprendizagem da
língua portuguesa na educação básica brasileira no processo dessa alfabetização, como
por exemplo: qual o melhor momento cronológico da criança para iniciar a
alfabetização? Os livros didáticos atendem aos princípios da alfabetização crítica? Os
cursos de formação inicial preparam o docente para essa alfabetização? Estamos
avaliando as crianças ou diagnosticando o processo de alfabetização? A ortografia é o
fim ou o meio para a “alfabetização”? O lúdico é um aspecto relevante ou uma
77
armadilha no processo de ensino e aprendizado da língua? E, qual a função dos espaços
de leitura na escola?
Por fim, na defesa que faço da necessidade e urgência dos professores(as)
alfabetizadores(as) serem pensadores(as) dos caminhos dessa outra alfabetização
possível, torna-se fundamental também refletir sobre o papel e função educativo desses
agentes e os plausíveis caminhos envolvidos que corroboram no empoderamento do seu
potencial transformador, autônomo, intelectual, crítico, reflexivo e ativo, indispensável
à efetiva qualidade revolucionária da alfabetização sócio-emancipadora das crianças das
camadas “populares”.
Analisar criticamente as realidades e especificidades multi-dimensionais que
envolvem a instituição escola, em especial a escola pública de ensino fundamental –
devido à sua obrigatoriedade, enorme capilaridade social, tanto pela diversidade em
múltiplas dimensões, quanto pelos números absolutos da população, de todas as idades,
etnias e gêneros, que a frequenta – nos leva a uma concreta e objetiva compreensão dos
diversos marcadores sociais que sustentam, justamente nessa diversidade sócio-cultural
dominada e explorada, condicionantes de inúmeras formas de desigualdades,
discriminações e opressões realizadas junto à grande parcela da população que, na atual
sociedade da informação, torna-se refém de uma qualidade subversiva da educação
formal
pública
para
iniciarem
a
compreensão
e
transformação
de
si
e,
consequentemente, de sua realidade.
A alfabetização cumpre neste contexto um duplo sentido enquanto marcador
social. De um lado, a alfabetização de crianças quando meramente técnica, restrita a
(de)codificação da língua materna e, ainda, de baixíssima qualidade, conforme
comprovado nos diversos sistemas avaliativos utilizados pelo Estado, é uma eficaz
engrenagem de produção de pessoas de classes populares analfabetas, semi-analfabetas
e analfabetas funcionais, portanto um condicionante discriminatório, conservador e
reprodutor do status quo desta maioria populacional. De outro lado, a alfabetização de
crianças quando de caráter crítico, radical e emancipador, voltada à efetiva práxis
transformadora dos envolvidos neste processo, revela-se como um potente marcador
social afirmativo, pilar deste movimento popular de cunho libertário e emancipatório.
Assim, potencializa o caráter subversivo da ação transformadora em si e no meio e
contexto que está inserida. As crianças ao se tornarem cidadãs ativas e conscientes deste
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seu potencial revolucionário, adquirido por esta alfabetização, transformam-se e ao
mundo ao qual pertencem.
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