From the Ground, Looking Up port

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From the Ground, Looking Up port
Olhando para Cima a Partir do Chão: Um
Relato da Turnê do Vídeo nas Aldeias
LUCAS BESSIRE /New York University
RESUMO Este relato compara dois eventos midiáticos recentes centrados na
iconografia de povos indígenas amazônicos para iluminar o ativismo cultural
do projeto de vídeo colaborativo Vídeo nas Aldeias.
Palavras-chave: Amazônia, Vídeo nas Aldeias, mídia indígena, ativismo
cultural
Recentemente, dois eventos midiáticos importantes fizeram com que as
imagens de índios amazônicos voltassem à ordem do dia nos Estados
Unidos.
Na última primavera, os usuários do metrô de Nova Iorque eram
incitados a “Fazer um Passeio na Amazônia” através de anúncios icônicos
que traziam uma criança amazônica, risonha e de pele morena, de pé ao lado
de um vagão de metrô sobreposto graficamente. A imagem promovia a
apresentação do “Vídeo Amazônia Indígena” pelo Centro de Cinema e Vídeo
do Museu Nacional do Índio Americano. A turnê de dez dias, de 1 a 11 de
maio 2008, incluía 17 sessões, mesas-redondas, e discussões nas duas
sedes do museu em Nova Iorque e Washington, D.C., bem como no South
Street Seaport. Financiada pelo Centro Latino do Smithsonian, pela
Embaixada do Brasil e pelo Conselho de Artes do Estado de Nova Iorque, a
visita oferecia uma rara oportunidade para o público americano interagir com
o fundador e diretor do Vídeo nas Aldeias, Vincent Carelli, com sua codiretora Mari Corrêa, com o produtor e diretor Ernesto Carvalho, e com
cineastas das tribos indígenas amazônicas xavante, kuikuro, ashaninka,
ikpeng e hunikui. A turnê foi bem recebida, contando com aproximadamente
700 visitantes.
1 Duas semanas após a turnê do Vídeo nas Aldeias, o governo brasileiro
divulgou uma serie de fotos aéreas e um filme curto de tribos voluntariamente
isoladas perto da fronteira com o Peru. A fotografia que mais circulou traz a
cena impactante de três figuras próximas a uma pequena maloca de palha
em meio à floresta verdejante. Elas aparecem cobertas dos pés à cabeça
com uma pintura corporal quase sobrenatural, atirando flechas em direção à
câmera. A “descoberta” sensacionalista de uma tribo presumidamente
“perdida” capturou brevemente a atenção do mundo, tornou-se uma
sensação no YouTube e despertou grande interesse pela internet. Bloggers
do mundo inteiro debatiam se aquelas pessoas deveriam “ser civilizadas” ou
deixadas em paz.
A turnê do Vídeo nas Aldeias foi, por sua vez, em larga medida ignorada
pela impresa de língua inglesa. Não obstante, ela foi um evento cataclísmico
de implicações profundas para as compreensões ocidentais sobre os índios
amazônicos. A mensagem passada pelos seus filmes oferece um modo
radicalmente diferente de entender as relações entre representação, poder, e
humanidade (ou não-humanidade) que ligam o público ocidental
àquelas figuras pintadas anônimas.
Formado em 1987 por Vincent Carelli como parte do Centro de Trabalho
Indigenista (CTI) e apoiado por recursos das Fundações Ford, Rockefeller e
MacArthur, e da Agência Norueguesa de Cooperação para o
Desenvolvimento, o Vídeo nas Aldeias (VnA) facilita o uso do vídeo entre
índios amazônicos. O projeto os forma para que produzam suas próprias
imagens e acessem um meio de articulação com outras tribos que enfrentam
desafios semelhantes (Aufderheide 1995:84–85). O foco da organização num
ativismo cultural voltando tanto para projetos locais como para preocupações
políticas mais amplas faz com que o VnA consiga privilegiar o processo sobre
o produto sem sacrificar os valores da produção. Desde 1997, quando o
projeto tornou-se independente do CTI, o processo no cerne da visão
revolucionária do VnA se baseia na autoria coletiva. Os indígenas que se
interessam pelo projeto são treinados na produção, e eles convidam pessoas
de sua aldeia para ser personagens nos seus vídeos. Se o “ator” aceita, ele
ou ela decide como e o que será filmado. Essa dinâmica, baseada nos
princípios do cinema direto estabelecidos por Jean Rouch e exportados
2 através do Ateliers Varan, empodera os indígenas. Ela produz um tipo
radicalmente diferente de vídeo híbrido, que tem sido aclamado pela crítica
tanto acadêmica como cinematográfica (i.e., Aufderheide 2008; Bernadet
2006; Caixeta de Queiroz 2006; Stam 1997).
A turnê do VnA apresentou ao público uma ampla gama de trabalhos
produzidos dentro desse projeto de vídeo colaborativo. As sessões incluíram
a versão do diretor (director’s cut) do avassalador filme Crônicas de um
Genocídio (2008), que traz um olhar íntimo sobre a brutalidade genocida
contra os índios isolados, e os vídeos premiados que fizeram do VnA uma
entidade reconhecida globalmente – como A Arca dos Zo’é (1993), O Espírito
da TV (1990) e Kiarasa Yo Sati/O Amendoim da Cutia (2005). Os cinco
cineastas indígenas apresentaram também trabalhos inéditos que apontavam
para novas direções permitidas, em parte, pelo maior acesso a material de
arquivo. Vídeos como Já Me Transformei em Imagem (2008) de Zezinho
Yube e Pirinop, Meu Primeiro Contato (2005) de Mari Corrêa e Karané Txicão
utilizam imagens de arquivo para fazer do projeto de memória sempre
implícito no processo participativo do VnA um tema fílmico explicitamente
central. De Volta à Terra Boa (2008) — pensado como um vídeo contextual
para a seção Panará de um DVD a ser lançado reunindo o conjunto do
trabalho do VnA – trouxe temas familiares ao corpus do projeto tais como
performances rituais e detalhes da vida quotidiana, juntamente com cenas de
arquivo inéditas de expedições dos irmãos Villas Boas. O vídeo,
elegantemente filmado, coloca um argumento sutil pelos direitos dos Panará,
e demonstra como o processo do VnA pode ser persuasivo quando
canalizado para arenas mais explicitamente políticas. A natureza
profundamente colaborativa desses vídeos traduz tópicos notoriamente
difíceis como genocídio, violência e contato em detalhes comunicáveis da
vida humana de forma fascinante – como quando um velho hunikui explica,
hesitante, que os números toscamente tatuados no seu braço haviam sido
feitos por barões da borracha que um dia o tiveram como escravo (Xina
Bena/Novos Tempos [2006], de Zezinho Yube).
Muitas das cenas do trabalho do VnA evocam as mesmas imagens
icônicas das fotos aéreas do governo, ao celebrarem o impressionante visual
de penas, corpos, pinturas e paisagens exuberantes da Amazônia. Mas o
3 trabalho do VnA expande e inverte narrativas simplistas de vitimização ou
primitivismo, ao mesmo tempo em que essas imagens as ativam – e o que é
surpreendente, com poucas notas dissonantes. O resultado é encantador,
como no caso de Marangmotzingo Mirang/Das Crianças Ikpeng para o
Mundo (2001), talvez a produção mais conhecida do VnA. Nesse vídeo de
tirar o fôlego – originalmente enviado como resposta a uma carta em vídeo
de crianças da Sierra Maestra, em Cuba – os quatro jovens narradores da
tribo ikpeng levam o espectador, de modo gentil e sincero, à sua vida
quotidiana. Falando diretamente à câmera, misturando uma franqueza
desarmada a um humor gracioso, as crianças mostram as pessoas e
atividades que dão sentido às suas vidas. Elas fazem brinquedos, catam
conchas, nos mostram sua comida e dançam numa festa da aldeia. A própria
audiência é um personagem importante do filme, ao ser frequentemente
questionada e convidada a enviar um vídeo em troca. Esse simples
realinhamento entre público, objeto e sujeito tem um efeito profundo: ele
localiza a diferença cultural dentro de uma humanidade universal. Filmes
como esse tornam possível imaginar aquelas três figuras anônimas na foto
divulgada pelo governo brasileiro como uma mãe, um pai, ou filhos.
Não é de surpreender que a visão inovadora de Carelli e Corrêa tenha
sido objeto de controvérsia. Os mesmos argumentos batidos que poderiam
ser utilizados para justificar a objetificação sensacionalista e reducionista de
índios “não-contactados” ou “descobertos” foram usados para criticar o
projeto VnA. Racistas alegaram que os índios eram incapazes de manipular
tecnologias tão complexas, enquanto primitivistas românticos argumentaram
que essa intervenção contaminaria sua suposta pureza cultural.
A turnê do VnA revelou a irrelevância fundamental dessas
preocupações fora de lugar. Ao invés de constituir seja uma ameaça seja
uma promessa para a “cultura tradicional”, os vídeos expõem e exploram
mundos inteiros de reprodução social, com todas suas fissuras e fragilidades.
Torná-los tanto sujeito como objeto desses vídeos levanta uma serie de
questões. Os cineastas normalmente evitam mostrar as negociações e
conflitos internos às aldeias envolvendo a produção e circulação de imagens,
embora essas discussões possam aparecer em making of’s que
acompanham as compilações em DVD. Num certo momento, eu cheguei a
4 me perguntar se o desencontro entre um público ocidental orientado para o
contexto e um público indígena que poderia preferir não tocar em tópicos
controversos não acabaria resultando numa imagem excessivamente
harmônica ou unificada. Mas como aponta Alcida Ramos (1998), essas
imagens unificadas podem ser cruciais para a eficácia performativa das
reivindicações por direitos indígenas no contexto nacional brasileiro.
Os quarto realizadores indígenas abordaram habilmente essas
preocupações nas mesas redondas. Em diversos momentos durante a turnê,
cada um deles enfatizou como os resultados positivos do processo de
trabalho com o vídeo transbordavam os produtos editados, especialmente em
termos da organização das comunidades. Takuma Kuikuro discutiu como o
vídeo influenciou suas comunidades enquanto instrumento pedagógico.
Divino Tserewahu o apontou como catalizador e arquivo da prática ritual, e
mesmo como um caminho para o fortalecimento das relações intergeracionais entre os jovens cineastas “modernos” e os velhos “tradicionais” –
um caso ilustrado pelos filmes de Zezinho Yube que trazem seu pai. Numa
das mesas redondas, Yube contou como sua comunidade superou a
resistência inicial ao vídeo. Isto se deu, disse ele, quando eles perceberam
“que isso era nosso” (notas de campo, 10 de maio).
Implodir a diferença entre “deles” e “nosso” sugere que o processo de
empoderamento do VnA pode reconfigurar todo o campo representacional
dentro de certas aldeias. Nesse caso, o controle sobre a mídia eletrônica não
apenas expande a consciência crítica sobre coisas como a TV por satélite e
filmes como Rambo, mas pode também informar reações à objetificação
escrita dos “povos indígenas” e subverter tecnologias coloniais nocivas que
subsumem a auto-compreensão nativa a esquemas temporais ocidentais
(Pinhanta 2006:12). Através do processo do VnA, os nativos celebram e
reforçam seus próprios padrões daquilo que Achille Mbembe chamou de
“tempo vivido” (Mbembe, 2001: 8), com toda sua rica multiplicidade e
espontaneidade; as aldeias participantes têm acesso direto ao tempo do
arquivo até então controlado exclusivamente pelos museus (ver também
Corrêa 2006:9). Ao mesmo tempo, o VnA vem moldando a esfera pública
brasileira através de seus laços como o Ministério da Cultura do país, que
levou ao seu reconhecimento enquanto um Ponto de Cultura oficial, à
5 transmissão do programa Índio na TV em rede pública nacional, e a uma
serie educativa em dez partes concebida para o canal brasileiro de
aprendizado à distância entitulada Índios no Brasil.
No mesmo sentido, o processo e a metodologia da produção
colaborativa do vídeo por comunidades indígenas sugerem potenciais
revisões na prática etnográfica nas terras baixas da América do Sul. No lugar
de opor produção cultural indígena e representação etnográfica, esses
processos são abertos a uma articulação seriamente lúdica e híbrida,
estendendo assim os métodos cinematográficos de Jean Rouch e do Ateliers
Varan à produção do conhecimento acadêmico. Sugere-se, assim, um papel
vital para a antropologia responsável que vai além das reações “facilitadoras”
ou “desconstrutivistas” à crise da representação pós-moderna e pós-colonial.
As visões ricas e humanas dos índios amazônicos proporcionadas por
esse trabalho desfazem as fronteiras que têm há muito se colocado entre
“nós” e “eles”. As recentes fotos sensacionalistas do “primeiro contato”
demonstram a necessidade permanente desse tipo de projeto, especialmente
para grupos extremamente vulneráveis que tentam viver do modo como bem
entendem no que resta da floresta. A mensagem é nada menos do que a
diferença entre olhar para baixo de um avião que circula e ver a si próprio a
partir do chão, olhando para cima.
Nota
Agradecimentos especiais para Faye Ginsburg, Amalia Cordova e Ernesto Carvalho por seus comentários construtivos
sobre este ensaio.
Referências Citadas
Aufderheide, Patricia 1995 The Video in the Villages Project: Videomaking with and by Brazilian Indians. VAR 11(2):83–93.
De Volta à Terra Boa 2008 Mari Correa e Vincent Carelli, dirs. 21 min. Vídeo Nas Aldeias.
Bernadet, Jean-Claude 2006 Vídeo nas Aldeias, Documentary and “Otherness.” In Video in the Villages Exhibition: Through
Indian Eyes. Brasília: Banco do Brasil.
Caixeta de Queiroz, Ruben 2006 Politics, Aesthetics and Ethics in the Project Video in the Villages. In Video in the Villages
Exhibition: Through Indian Eyes. Brasilia: Banco do Brasil.
Correa, Mari 2006 Video from the Villages. In Video in the Villages Exhibition: Through Indian Eyes. Brasilia: Banco do
Brasil.
Crônicas de um Genocídio 2008 Vincent Carelli, dir. 120 min. Unreleased Directorʼs Cut.
Já Me Transformei em uma Imagem 2008 Zezinho Yube, dir. 31 min. Vídeo Nas Aldeias, São Paulo.
Kiarasa Yo Sati/O Amendoim da Cutia 2005 Paturi Panara e Komoi Panara, dirs. 51 min. Vídeo Nas Aldeias, São Paulo.
Marangmotzingo Mirang/Das Crianças Ikpeng para o Mundo 2002 Kumare Txica ̃o, Karane ́ Txica ̃o, e Natuyu Yuwipo Txica ̃o,
dirs. 35 min. Vídeo Nas Aldeias, São Paulo.
Mbembe, Achille 2001 On The Postcolony. Berkeley: University of California Press.
A Arca dos Zoʼé 1993 Vincent Carelli e Dominique Gallois, dirs. 22 min. Vídeo Nas Aldeias, São Paulo.
Pinhanta, Isaac 2006 You See the World of the Other and You Look at Your Own. In Video in the Villages Exhibition:
Through Indian Eyes. Brasília: Banco do Brasil.
6 Pirinop, Meu Primeiro Contato 2005 Mari Correa, Kumare Txicao, and Karane Txicao, dirs. 83 min. Vídeo Nas Aldeias, São
Paulo.
Ramos, Alcida 1998 Indigenism: Ethnic Politics in Brazil. Madison: University of Wisconsin Press.
O Espírito da TV 1990 Vincent Carelli, dir. 18 min. Vídeo Nas Aldeias, São Paulo.
Stam, Robert 1997 Tropical Multiculturalism: A Comparative History of Race in Brazilian Cinema and Culture. Durham: Duke
University Press
Xina Bena/Novos Tempos 2006 Zezinho Yube, dir. 52 min. Vídeo nas Aldeias, São Paulo.
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