a essência do criacionismo

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a essência do criacionismo
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A ESSÊNCIA DO CRIACIONISMO
Urias Echterhoff Takatohi
UNASP/SP
Introdução
Fazer um depoimento pessoal na introdução de um texto com o título
pretencioso, “A Essência do Criacionismo”, não parece ser a característica de um
trabalho acadêmico. Seria mais próprio fazer um bom levantamento blibliográfico
histórico de todo material publicado sobre o assunto e apresentar os pontos
importantes para o tema. Apesar disso vou falar um pouco de meu envolvimento com
o criacionismo. Sou filho de Shichiro Takatohi, um professor de ciências que teve
como educação formal o ensino secular no Japão do início do século 20. Na década
de 1930 meu pai mudou-se para o Brasil e procurou aprender a língua da terra numa
escola confessional Adventista (Colégio Adventista Brasileiro, atualmente UNASP).
Nessa escola ele se surpreendeu com um ensino diferente sobre as origens e com o
uso sistemático da Bíblia para fundamentar o cristianismo. Assim no Colégio
Adventista Brasileiro, meu pai aprendeu a língua portuguesa e aceitou o Adventismo
com os seus ensinos. Posteriormente ele se tornou um professor autodidata de
Ciências e Matemática. Nesse momento de sua vida eu nasci. Crescendo no lar de um
pai com esses antecedentes foi natural que minha atenção infantil fosse chamada
cedo tanto para as histórias bíblicas como para as maravilhas da natureza. Lembro-me
de que em cada dia uma história da Bíblia era contada e também me lembro de
passeios em ambientes naturais, do medo que tinha do “escorpião” que era mostrado
nas estrelas do céu, dos experimentos com fios, bússolas e ímãs, lentes e
observações num microscópio simples. Seguindo nessa linha me tornei professor de
Física, a ciência dos fundamentos da natureza, ao mesmo tempo que desenvolvi
minha fé no Criador e autor da revelação bíblica. O contato com outras pessoas e
materiais escritos sobre os problemas que aparecem quando se compara o que a
comunidade científica conjectura e aprende sobre origens e história do mundo natural
e o que a Bíblia sugere sobre as mesmas questões fizeram com que conhecesse algo
do que em geral chamamos de criacionismo. Observando a grande variedade de
assuntos em geral discutidos por criacionistas, há cerca de dez anos, procurei pensar
numa definição de criacionismo. Acostumado às definições específicas das ciências
ditas exatas procurei redigir uma definição que deixou de fora do criacionismo o
movimento do design inteligente, muitos discursos apologéticos, os discursos anti
evolucionistas e anti ateístas e tudo o que não estivesse relacionado com a busca por
harmonizar a interpretação bíblica que afirma que a vida foi estabelecida na Terra há
poucos milhares de anos com os dados encontrados pelas ciências da vida e da Terra.
A ideia foi publicada na Revista Adventista de Junho de 2008 sob o título:
“Criacionismo - o que é?”. Não recebi nenhum feedback dessa proposta de especificar
o objeto de estudo do criacionismo. Afinal divulgar os sucessos das ideias do Design
Inteligente, apontar as dificuldades de se obter vida por processos naturais, discursar
2
sobre os argumentos a favor da existência de Deus e criticar a lógica ateísta, parece
ser mais fácil do que construir com os detalhes do registro geológico e paleontológico
uma história compatível com a interpretação da história bíblica de que a vida foi
estabelecida aqui num paraíso perdido há poucos milhares de anos. Ultimamente
então comecei pensar sobre qual seria o fundamento essencial do Criacionismo. Qual
é a razão fundamental pela qual nos esforçamos para defender as ideias do Design
Inteligente, criticar aspectos da teoria da evolução da vida, criticar em geral resultados
de divulgação de ciências que constroem narrativas históricas? O que segue é minha
opinião atual sobre a essência do criacionismo.
A Essência
A essência do criacionismo aqui apresentada é baseada na interpretação cristã do
conjunto dos escritos bíblicos. Sabemos que há criacionistas em comunidades de fé
não cristãs que podem não concordar com o que será exposto aqui. Para estes a
essência do criacionismo poderá ter uma formulação diferente.
A tarefa de de examinar o conjunto dos escritos bíblicos e definir a interpretação cristã
e criacionista desse conjunto pode parecer muito grande, mas alguns textos escritos
pelo apóstolo Paulo em suas cartas a algumas comunidades cristãs ajudam a ver o
que é importante.
Vejamos alguns.
Romanos 5:12, 17-19 NVI
Portanto, da mesma forma como o pecado entrou no mundo por um homem, e
pelo pecado a morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque
todos pecaram;
Se pela transgressão de um só a morte reinou por meio dele, muito mais
aqueles que recebem de Deus a imensa provisão da graça e a dádiva da
justiça reinarão em vida por meio de um único homem, Jesus Cristo.
Consequentemente, assim como uma só transgressão resultou na condenação
de todos os homens, assim também um só ato de justiça resultou na
justificação que traz vida a todos os homens. Logo, assim como por meio da
desobediência de um só homem muitos foram feitos pecadores, assim também
por meio da obediência de um único homem muitos serão feitos justos.
Para aqueles familiarizados com a teologia básica cristã não é difícil perceber que o
texto diz que o ser humano foi feito para viver para sempre, hoje está sujeito à morte
por causa do pecado, mas há uma esperança pela graça divina e pela obra de Jesus
Cristo.
Romanos 8:19, 22-23, 38-39 NVI
A natureza criada aguarda, com grande expectativa, que os filhos de Deus
sejam revelados. Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como
3
em dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos, que temos os primeiros
frutos do Espírito, gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa
adoção como filhos, a redenção do nosso corpo. Pois estou convencido de que
nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro,
nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra
coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em
Cristo Jesus, nosso Senhor.
As consequências do pecado atingem toda a criação. A natureza que agora
observamos apresenta aspectos que não teria se o pecado não tivesse entrado no
mundo. Apesar de a natureza não mais revelar de forma integral o caráter de amor do
Criador, é necessário manter o conceito de que Deus é amor e tem um interesse
especial por nós.
Efésios 2:8, 10 NVI
Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é
dom de Deus; Porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus para
fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes para nós as praticarmos.
2 Coríntios 5:17 NVI
Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já
passaram; eis que surgiram coisas novas!
A salvação pela graça é a base para a nova criação que é a esperança maior de todos
os crentes.
As ideias expostas nesses textos contém a base da visão de mundo cristã definindo o
que o ser humano deveria ter sido, qual é o seu estado atual e por que meio pode ser
restaurado à situação inicial. Essa visão de mundo cristã está então interligada com o
conceito de Deus criador, do ser humano criado originalmente à imagem de Deus
mas agora em necessidade de redenção e da esperança de nova criação. Essa é a
essência do criacionismo.
Ligada a essa essência está a narrativa bíblica que fala do início em Gênesis 1-3, e a
promessa do novo recomeço está descrita em Apocalipse 21:1-6. Esses dois textos se
encontram no início e no fim da Bíblia. Tudo o que está no meio, fala do processo que
estamos vivendo. Resumindo, a criação original de Deus se perdeu pelo pecado do
ser humano, criado originalmente à imagem de Deus. Deus em Cristo está
trabalhando para resgatar o ser humano e promete uma nova criação ao final do
processo.
A essência do criacionismo assim apresentada é basicamente a visão de mundo cristã
e tem então uma natureza inteiramente religiosa.
A Essência e a Ciência
Mas se a essência do criacionismo é religiosa, o que isso tem a ver com a ciência?
4
Não se fala às vezes até em criacionismo científico? O criacionismo não discute a
astrofísica histórica, as ciências da Terra, os métodos de datação geológica e
arqueológica, a termodinâmica, a teoria da evolução da vida, e até a arqueologia?
Todos esses temas entram na discussão por causa do conhecimento que cada um
tem sobre ciência e como cada um interpreta as narrativas bíblicas que constroem a
visão de mundo cristã. Mas a verdade não é absoluta? Como a discussão sobre a
verdade pode depender do conhecimento individual? Sim a verdade pode ser
absoluta, mas os assuntos que a pessoa acha importante discutir dependem de seu
conhecimento individual. Esse fato pode gerar situações em que distintos criacionistas
entrem em discussão acalorada sobre certos temas parecendo até a não concordar
entre si.
Vamos ver alguns exemplos dessa relação entre o conhecimento individual e os temas
discutidos no criacionismo.
O tempo
A questão do tempo na história do universo e da Terra é um ponto que levanta muitas
questões nos meios criacionistas. Uma leitura da Bíblia feita com lápis e papel de
Gênesis 5, 7:6, 11:10-26, 21:5, 25:26 e 47:9, Êxodo 12:40-41 e 1 Reis 6:1, parece
permitir que se calcule o tempo entre a criação de Adão e a construção do templo de
Salomão em cerca de 3150 anos. (Ou até mais de 4500 dependendo de que fonte
antiga da Bíblia for usada.) Estudos de cronologia bíblica,1 colocam a construção do
templo de Salomão em cerca de 960 a.C. Somando 3150 com 960 e 2016 obtemos
cerca de 6100 anos desde a criação até nossos dias. (Ou mais de 7500 dependendo
da fonte antiga da Bíblia usada.) Por esse motivo muitos criacionistas procuram ajustar
a história do universo, ou pelo menos a história da vida na Terra dentro de poucos
milhares de anos.
A estrutura e história do universo
Algumas pessoas entendem que para manter a essência do criacionismo é
necessário interpretar Gênesis 1:14-19, a narrativa do quarto dia da criação, como
literal, no sentido de que o Sol, a Lua e as estrelas foram criados no quarto dia da
criação há poucos milhares de anos. Enquanto se entendia que o universo era
estruturado em volta da Terra fixa no centro com os demais astros girando à sua volta
essa interpretação parecia lógica. 2 Entretanto, a partir da aceitação do modelo de
Copérnico e do desenvolvimento de técnicas para medir as distâncias interestelares
percebeu-se que as estrelas são sóis situados a distâncias tão grandes que sua luz
viajando a 300.000 km/s leva anos, para chegar até até nós. O desenvolvimento dos
1
Por exemplo: Howlett, James. "Biblical Chronology." The Catholic Encyclopedia. Vol. 3. New
York: Robert Appleton Company, 1908. Disponível online 13 de Agosto de 2015
<http://www.newadvent.org/cathen/03731a.htm>
2
Ilustração
da
estrutura
do
universo
por
Bartolomeu
Velho
(1568).
<https://en.wikipedia.org/wiki/Geocentric_model#/media/File:Bartolomeu_Velho_1568.jp
g>
5
telescópios e da astrofísica revelou que algumas estruturas nebulosas eram realmente
estrelas que estão a distâncias de centenas de milhares de anos-luz. No início do
século 20 descobriu-se que alguns objetos nebulosos, hoje denominados galáxias,
eram na realidade aglomerados de estrelas situados a distâncias de milhões de anosluz. 3 Esse novo conhecimento levanta perguntas do tipo: como a luz de estrelas
criadas há poucos milhares de anos pode ter chegado até nós se estão a distâncias de
centenas de milhares de anos-luz ou até milhões ou bilhões de anos-luz? Ou a
compreensão trazida pela ciência precisa ser reformada, ou a interpretação da leitura
da Bíblia precisa ser mudada. Neste caso vários criacionistas preferiram mudar a
forma de ler a Bíblia. Exemplos de mudança na interpretação bíblica são vistos em
STEIN JR (1919), MARSH (1950) e COFFIN (1983). Eles consideram que a criação foi
feita em seis dias literais há poucos milhares de anos, mas o Sol, a Lua e as estrelas
já existem há muito tempo. No quarto dia da criação a atmosfera da Terra clareou o
suficiente para tornar os astros visíveis na superfície da Terra. Outros como LISLE
(2007) usam seus conhecimentos de Física e Astrofísica para argumentar a favor de
que a criação do universo pode ter ocorrido literalmente há poucos milhares de anos.4
O argumento é desenvolvido principalmente pela colocação em dúvida dos
pressupostos usados na construção da compreensão atual da estrutura do universo.
Além disso LISLE (2013) não aceita a natureza como um dos dois livros da revelação
divina, desvalorizando dessa forma os resultados da ciência que contrariam ou
aparentemente contrariam sua interpretação da Bíblia. Um outro grupo 5 tem
trabalhado num modelo de criação integrando o que encontram na Bíblia com o
conhecimento atual da ciência. Nesse processo reconhecem que nossa compreensão
é incompleta mas que isso é uma oportunidade para estudar mais as duas revelações
divinas, a Bíblia e a natureza. Um dos aspectos desse modelo é a sugestão de que a
Bíblia adiantou as idéias do modelo de origem do universo conhecido popularmente
como Big Bang (ROSS 2000). Para ajustar o conhecimento atual sobre a estrutura do
universo e da Terra ROSS (2004) também argumenta que a melhor forma de
interpretar e integrar as diversas passagens bíblicas sobre a criação é admitir que os
dias da criação em Gênesis 1 são longos períodos de tempo e que o dilúvio relatado
em Gênesis 6-9 não foi global. Detalhes sobre a declaração de missão e as crenças
do grupo, intitulado “Reasons to Believe” podem ser visto em na página da internet:
<http://www.reasons.org/about/our-mission>.
A história da vida.
A compreensão da história da vida também depende do que cada um conhece sobre a
questão. Uma leitura direta de Gênesis 1:11-13; 1:20-25 Gênesis 2:8, 19, 20 no
contexto da cronologia descrita anteriormente sugere que Deus criou uma variedade
3
Ver uma breve história da descoberta das galáxias e suas distâncias em:
<http://ircamera.as.arizona.edu/NatSci102/NatSci102/lectures/galaxies.htm>
4
Alguns ao saber que Jason Lisle tem um doutorado em Astrofísica podem pensar que seus
argumentos no capítulo da referência bibliográfica citada são autoritativos e corretos. Na
realidade o texto da referência apresenta de forma popular idéias que precisam elaboração
técnica profunda.
5
Reasons to Believe <www.reasons.org>
6
de plantas e seres vivos há poucos milhares de anos. Como a própria avaliação de
Deus sobre a criação é que tudo “era muito bom” (Gênesis 1:31) então nada precisa
ser mudado. Os animais e plantas que temos hoje são como foram criados há alguns
milênios, exceto as mudanças degenerativas ocorridas depois que o ser humano
pecou como relatadas em Gênesis 3:14, 17, 18. Essa conclusão é bem intuitiva para
leitores da Bíblia com um conhecimento superficial da natureza. Mesmo estudiosos da
natureza nos séculos 18 e 19 como Cuvier6, Linné7 e Agassis (ABER 2013) viam o
mundo dessa forma. Mas o conhecimento que esses estudiosos mencionados tinham
de fatos naturais levou-os a conclusões diferentes das de uma pessoa que não tem
contato com esses fatos. Cuvier mediante seu estudo de fósseis foi um dos pioneiros a
notar que houveram no passado seres vivos diferentes dos que observamos hoje.
Concluiu então que “revoluções” naturais teriam causado a extinção desses seres
vivos. Ao tentar relacionar suas conclusões com seu conhecimento da Bíblia, Cuvier
entendeu que o dilúvio relatado na Bíblia seria a última das “revoluções” causadoras
de extinções (RITLAND 1981). Linné admitiu a possibilidade de pequenas variações
nos seres vivos desde a criação quando observou o resultado de hibridização de
espécies vegetais. Apesar de defender a não evolução dos seres vivos Agassis,
baseado em suas observações de fósseis, considerava que havia evidências de
sucessivas criações ao longo de épocas diferentes (RITLAND 1982).
A partir da segunda metade do século 19 desenvolveu-se a ideia de que os seres
vivos se modificam gradualmente ao longo das gerações. Argumentos usados para
defender essa ideia foram extensivamente expostos no livro “ON THE ORIGIN OF
SPECIES.” por Charles Darwin em 1859. 8 Apesar de não se ter naquela época o
conhecimento de vários processos biológicos tais como a forma de preservação e
transmissão da informação genética ao longo das gerações, as ideias de possibilidade
de mudanças continuaram sendo estudadas. Os novos conhecimentos de genética
desenvolvidos a partir da redescoberta dos trabalhos de Mendel foram inseridos na
teoria da evolução da vida. Alguns trabalhos relevantes nesse sentido foram:
"Genetics and the Origin of Species" de Theodosius Dobzhansky9, "Systematics and
the Origin of Species" de Ernst Mayr10, "Tempo and Mode in Evolution" de George
Gaylord Simpson11 e "Variation and Evolution in Plants" de George Ledyard Stebbins12.
A teoria da evolução assim desenvolvida é útil para explicar a ocupação de diversos
ambientes peculiares com seres vivos adaptados para as suas condições específicas
6
Ver Georges Cuvier (1769-1832) <http://www.ucmp.berkeley.edu/history/cuvier.html>
Ver Carl Linnaeus (1707-1778) <http://www.ucmp.berkeley.edu/history/linnaeus.html>
8
DARWIN, C. (1859) On the Origins of Species. Or the Preservation of Favoured Races
in
the
Struggle
For
Life.
Disponível
online
em
<https://www.gutenberg.org/ebooks/1228> Acesso em 22 de Agosto de 2015.
9
DOBZHANSKY, T. (1937) Genetics and the Origin of Species. Columbia University
Press. New York.
10
MAYR, E. (1941) Systematics and the Origin of Species from the Viewpoint of a
Zoologist. Columbia University Press. New York.
11
SIMPSON, G.G. (1944) Tempo and Mode in Evolution. Columbia University Press. New
York.
12
STEBBINS, G.L. (1950) Variation and Evolution in Plants. Columbia University Press.
New York.
7
7
e mudanças em populações quando um ambiente tem condições alteradas. A
proposição de que toda diversidade biológica observada na Terra é produto do
processo evolutivo descrito pela teoria ainda é discutível, mas muitos leitores da Bíblia
que crêem que Deus criou a diversidade de vida da Terra há poucos milhares de anos
entendem que ocorrem mudanças ao longo das gerações, nas populações de seres
vivos, dentro de certos limites, devido diferentes condições ambientais.13
A história geológica da Terra
A Geologia estuda as rochas. Rochas são objetos sólidos, em alguns casos muito
duros. São as estruturas constituintes da superfície da Terra, incluindo as montanhas.
Tendo crescido no meio da Serra dos Órgãos no estado do Rio de Janeiro num vale
estreito entre montanhas de rochas graníticas eu tinha pouca noção de que aquelas
montanhas podiam ter uma história. A dureza das rochas sugeria que elas só
poderiam ser modificadas pela ação da dinamite usada pelos construtores da rodovia
BR-040. Em minha imaginação infantil o elemento histórico vinha da narrativa bíblica
do dilúvio em Gênesis 7 e 8. Eu ficava imaginando tudo aquilo sendo moldado pela
catástrofe bíblica de proporções indescritíveis e surgindo ao fim dela de uma forma
não muito diferente daquela que eu via na minha infância e que ainda hoje pode ser
vista pelos visitantes da região.14
Entretanto ao conversar com geólogos ou ler suas obras descobrimos que eles falam
de história de formação dos aspectos geológicos à mostra em afloramentos ou
trazidos à tona por sondagens em trabalhos de prospecção. Essas histórias
construídas pelos geólogos envolvem deposições de sedimento, a litificação desses
sedimentos, a erosão dos mesmos, a intrusão ou derrame de massas de rocha
fundida, a elevação de montanhas e até a movimentação de continentes inteiros. Os
processos envolvidos podem ser lentos ou catastróficos. A semelhança dos processos
envolvidos com fenômenos atuais, em alguns casos podem ser inferidos pelos seus
resultados. Além disso essas histórias são entremeadas com a história da vida (ou da
morte) pois em alguns lugares é possível encontrar vestígios de seres vivos nas
rochas sedimentares. Esses vestígios, denominados fósseis, envolvem restos
mineralizados de partes duras de animais ou plantas, e vestígios, que podem ser
pegadas, perfurações, impressões de folhas, cascas de ovos, excrementos, moldes,
etc. Muitos fósseis são de animais e plantas que não existem atualmente.
As primeiras tentativas de estudar a história de formação de rochas foram feitas no
século 18. Como era comum naquela época, muitos dos que participaram desses
esforços eram crentes na criação divina. Na introdução do livro de James Hutton
(1788) sobre a “Theory of the Earth; or an investigation of the laws observable in the
13
Ver por exemplo os capítulos 8 e 9 de: BRAND, L. (2009) Faith, reason, and earth
history: a paradigm of earth and biological origins by intelligent design. 2nd ed. Andrews
University Press. Berrien Springs, Michigan.
14
Vale
na
Serra
dos
Órgãos,
Petrópolis,
RJ.
<http://www.panoramio.com/photo/51777660>
8
composition, dissolution, and restoration of land upon the Globe”15 ele afirma que em
seu trabalho pode “... reconhecer uma ordem, não indigna da sabedoria Divina, num
assunto que, numa outra visão, teria parecido como o trabalho do acaso, ou como
absoluta
desordem
e
confusão.”
Nessa mesma obra, Hutton também observa que o solo é formado pela “destruição”
da terra sólida e que o solo é continuamente levado pela erosão. Ao observar esses
processos ele conjectura sobre o tempo envolvido e sobre a necessidade de um ciclo
que regenere as rochas sólidas e o solo. Ao considerar o tempo ele faz referência ao
fato de que a “história Mosaica coloca a origem do homem a uma distância não muito
grande”, mas que ao observar vestígios de outros seres vivos o tempo deve ser muito
maior. O ciclo que ele procura então entender envolveria a deposição de materiais
soltos, em geral no fundo dos oceanos, sua consolidação em rocha sólida e o
levantamento dessas rochas acima do nível do mar onde são observadas hoje e onde
recomeça o processo de erosão dessas rochas. Dentro do limitado conhecimento de
geoquímica e dos afloramentos rochosos que tinha a seu alcance, Hutton elaborou
uma justificativa para o conceito de ciclo de rochas e continentes e procurou estimar o
tempo necessário para formar tudo o que ele conhecia. Na última frase do trabalho
citado ele afirma: “O resultado, portanto, de nossa pesquisa atual é que não
encontramos nenhum vestígio de um começo nem prospecto de um fim.”
Outra contribuição para o entendimento das rochas sedimentares foi feita por William
Smith (1769-1839) com sua obra composta por mapa geológico da Inglaterra16 e o
livro Strata Identified by Organized Fossils containing Prints on Colored Paper of the
Most Characteristic Specimens in Each Stratum. 17 O livro complementa o mapa
descrevendo as camadas sedimentares e listando os fósseis característicos
encontrados em cada uma. Ao fazer este trabalho sistemático Smith observa que
esses fósseis característicos que ele chama de “fósseis organizados” permitem
identificar as rochas em lugares diferentes. Posteriormente suas ideias foram usadas
para correlacionar estratos em lugares bem distantes muitas vezes até em continentes
diferentes e essa organização dos fósseis foi interpretada como resultado de uma
sucessão temporal de seres vivos na Terra.
Por seu estudo sistemático de fósseis Georges Cuvier (1769-1832) ajudou consolidar
a ideia de Smith em sua obras: Théorie de la Terre (1821) 18 e Discours sur les
révolutions de la surface du globe, et sur les changements qu'elles ont produits dans le
règne animal (1825)19.
15
HUTTON, JAMES (1788) Theory of the Earth; or an investigation of the laws observable
in the composition, dissolution, and restoration of land upon the Globe. Disponível online
em <http://records.viu.ca/~johnstoi/essays/Hutton.htm> Acesso em 5 de Novembro de 2015.
16
William Smith 1815 geological map of England, Wales & part of Scotland.
17
SMITH, WILLIAM (1816) Strata Identified by Organized Fossils, Containing Prints on
Colored Paper of the Most Characteristic Specimens in Each Stratum. London: Printed by
W Arding, 21 Old Bosvell Court, Carey Street.
18
Versão inglesa: G. Cuvier (1827) On the Theory of the Earth. William Blackwood,
Edimburg and T. Cadell, Strand London.
19
Versão inglesa: G. CUVIER (1831) A Discourse on the Revolutions of the Surface of
the Globe and the Changes Thereby Produced in the Animal Kingdom. Carey & Lea,
Philadelphia.
9
Na introdução dessas obras Cuvier já observa que o estudo das formações geológicas
e dos fósseis permite o estudo da história da Terra anterior à existência da
humanidade. Observa também que esse estudo mostra que a história da Terra ocorre
por meio de “revoluções”. Cuvier também afirma que vai procurar analizar, quanto é
possivel, a correspontência entre os resultados de suas observações e a história civil e
religiosa das nações.
Para “provar” que houveram “revoluções” na história da Terra Cuvier descreve o que
se observa nas rochas sedimentares encontradas nos lugares planos, nas encostas
das montanhas e os fósseis que elas contém. A descrição sugere a deposição in situ
de organismos marítmos em camadas horizontais, posteriormente consolidadas,
movidas para posições inclinadas por grandes forças,20 em alguns casos cobertas por
novas camadas sedimentares horizontais, além de mudanças no ambiente que
provocaram a extinção de espécies e repovoação com novas classes e novos gêneros
de animais. Observa também que depósitos mais antigos são mais extensos e
uniformes do que os mais recentes. A alternância em alguns lugares de fósseis de
origem terrestre com fósseis de origem marítima sugere a Cuvier a alternância de terra
seca com o mar em algumas localidades ao longo do tempo. Cuvier então com base
em algumas observações procura argumentar que essas mudanças não aconteceram
de forma gradual e lenta, mas catastrófica. Ao descrever os mecanismos observados
que atualmente modificam a superfície da Terra. Cuvier conclui: “Portanto, repetimos,
em vão procuramos entre os poderes que agora agem na superfície da Terra, por
causas suficientes para produzir as revoluções e catástrofes, cujos traços são exibidas
na sua crosta.”
A partir dos trabalhos desses e outros pioneiros a geologia se desenvolveu. O
conhecimento de novas regiões do mundo, o desenvolvimento de novos
conhecimentos em geoquímica e geofísica tornaram a geologia um fértil campo de
estudos interdisciplinares.
Mas as conclusões da Geologia e da Paleontologia sobre a história da crosta terrestre
e dos vestígios de vida encontrados nas rochas provocaram reações por parte dos
crentes na história bíblica. Os detalhes dessa história envolvendo aqueles que se
opuseram a essas conclusões baseados somente na sua interpretação bíblica mas
sem conhecer muito do mundo natural, aqueles que revisaram sua interptretação da
Bíblia a partir das novas idéias, não cabem aqui mas vamos mencionar alguns
exemplos.
Em 1884 o Geólogo e Geógrafo Arnold Guyot, nascido na Suíça mas trabalhando na
Princeton University nos EUA escreveu o livro “Creation - on the Biblical Cosmogony in
the Light of Modern Science”.21 Como o título propõe Guyot procura fazer a leitura de
Gênesis 1 de uma forma que possa colocar em seu contexto todo conhecimento
Versão
francesa
disponível
online
em:
<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1106958.pdf>. Acesso em 15/12/2015.
20
Sedimentos
levantados
e
dobrados
nos
Alpes.
<http://www.panoramio.com/photo/112473422>
21
GUYOT, ARNOLD (1884) Creation or the Biblical Cosmogony in the Light of Modern
Science. Charles Scribner’s Sons, New York.
10
científico de sua época. Ao fazer isso ele acaba considerando que os dias da criação
são períodos indefinidos de tempo “necessários” para acomodar as transformações do
universo (como concebido no final do século 19) para formar o sistema solar, o planeta
Terra e para acomodar as transformações da crosta terrestre com suas rochas e
fósseis.
Uma outra ideia usada para tentar acomodar os novos resultados da Geologia e da
Paleontologia foi imaginar que a Terra teria possivelmente sido criada há muito tempo
atrás e posteriormente passado por destruição, de forma que o relato de Gênesis 1 a
partir do verso 3 seria um último processo de criação. Algumas referências 22 citam
como divulgadores da ideia Thomas Chalmers, William Buckland e outros mas é difícil
encontrar trabalhos escritos desses autores discutindo essa ideia.
Em 1906 George McReady Price, um professor autodidata, escreveu um livro
intitulado Illogical Geology - The Weakest Point in the Evolution Theory.23 Nesta obra
ele procura refutar as regularidades observadas pela geologia/paleontologia conhecida
em seu tempo que eram interpretadas como resultado de uma ordem temporal na
deposição de camadas sedimentares com fósseis. Com essa negação ele procura
estabelecer que todos tipos de fósseis teriam coexistido sendo depositados por uma
catástrofe compatível com o relato bíblico do dilúvio. Sua ideia de atribuir praticamente
todas rochas sedimentares com fósseis à ação do dilúvio bíblico de certa forma
orientou o trabalho de vários criacionistas no século 20.
BRAND (2009) afirma que somente há cerca de três décadas alguns cientistas
começaram a fazer pesquisa séria de campo usando um paradigma intervencionista
de tempo curto. Uma parte desses trabalhos podem ser vistos na revista Origins24 e
livros como Origin by Design de Harold Coffin25 e Faith, Reason, & Earth History de
Leonard Brand. 26 (A lista não é completa e omite artigos publicados em revistas
científicas reconhecidas.) Como esse tipo de pesquisa pode ser sujeita a tendências
características e crenças do pesquisador, BRAND (2009) recomenda no capítulo 5,
três procedimentos para minimizar essas tendências: 1) Planeje bem a pesquisa e
faça uma coleta de dados cuidadosa; 2) Discuta os resultados específicos com
colegas e apresente trabalhos em encontros científicos; 3) Submeta trabalhos para
publicação em revistas com árbitro.
22
Gap creationism em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Gap_creationism>, Acesso em 27/12/2015.
HAM, KEN, (2007) What About the Gap & Ruin-Reconstruction Theories? Capítulo 5 do
livro
The
New
Answers,
Book
1.
disponível
online
em:
<https://answersingenesis.org/genesis/gap-theory/what-about-the-gap-and-ruin-reconstruction-theories/>
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25
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Hagerstown.
26
BRAND, LEONARD. (2009) Faith, Reason, and Earth History. Andrews University
Press, Berrien Springs.
11
Observações finais
O objetivo dessa apresentação é definir o que é essencial no Criacionismo. Essa
essência está na visão de mundo cristã que propõe que o ser humano foi criado por
originalmente por Deus com características divinas (feito à imagem de Deus), para
viver para sempre num mundo paradisíaco. Essa condição foi perdida
temporariamente com a desobediência do ser humano às leis divinas. Deus
providenciou então a redenção da humanidade pela vida, morte e ressurreição de
Cristo (Deus feito homem neste mundo). A humanidade vive então em meio a esse
processo de restauração pela graça divina enquanto aguarda o momento em que uma
nova criação irá restabelecer a primeira condição.
Vista dessa forma a essência do criacionismo é de natureza inteiramente religiosa. A
ciência somente aparece no criacionismo devido a detalhes na interpretação da
revelação bíblica e sua relação com o conhecimento científico de alguns aspectos da
natureza.
Ao considerar exemplos de alguns aspectos discutidos, percebe-se que há uma
diversidade de formas de tratar a questão. Essa diversidade acontece devido à
diversidade de conhecimento sobre o mundo natural e à diversidade de interpretações
de partes da narrativa bíblica.
Essa diversidade pode ocorrer inclusive para cada pessoa individualmente. Uma
pessoa passa por várias etapas na formação de sua visão de mundo à medida que ao
longo da vida aprende linguagens de comunicação, toma consciência do mundo à sua
volta, tem um processo de desenvolvimento espiritual e um processo de aprendizado
acadêmico. Não é então de admirar que pessoas diferentes pensem diferentemente
sobre vários pontos discutidos aqui.
O que devemos fazer então? Em primeiro lugar identifique com clareza quais são os
pontos mais fundamentais de sua visão de mundo. Se eles dão significado e sentido à
sua vida, mantenha esses pontos mesmo quando um conhecimento novo parecer
desafiá-los. Se você é um pesquisador ou apenas curioso em alguma área do
conhecimento faça a pesquisa com afinco e honestidade. Novos conhecimentos
podem ser acomodados aos pontos vitais de sua visão de mundo. A forma de como
proceder essa acomodação pode não ser trivial.
Mantenha em mente as limitações humanas ao discutir o essencial. O apóstolo Paulo
nos faz lembrar que tanto o conhecimento empírico como a razão têm limitações
quando disse:
“Os judeus pedem sinais milagrosos (dados empíricos), e os gregos procuram
sabedoria (resultados racionais consistentes); nós, porém, pregamos Cristo
crucificado, o qual, de fato, é escândalo (um dado empírico “inadequado”) para os
judeus e loucura (algo que não tem “lógica racional”) para os gentios,” 1 Coríntios
1:22-23 NVI
12
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