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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)
Papéis : revista do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagens / Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997)- . Campo
Grande, MS : A Universidade, 1997- .
v. : il. ; 23 cm.
Semestral
Subtítulo anterior: revista de Letras.
ISSN 1517-9257
1. Literatura - Periódicos. 2. Lingüística - Periódicos.
3. Semiótica - Periódicos. I. Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul.
CDD (22)-805
CORRESPONDÊNCIA EDITORIAL E ASSINATURA
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Centro de Ciências Humanas e Sociais
Papéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
REITORA
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VICE-REITOR
João Ricardo Filgueiras Tognini
DIRETORA DE CENTRO
Élcia Esnarriaga de Arruda
COORDENADOR DO PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO
Geraldo Vicente Martins
EDITOR CIENTÍFICO
Geraldo Vicente Martins
EDITORES ADJUNTOS DESTA EDIÇÃO
Edgar Cézar Nolasco dos Santos
Rosana Cristina Zanelatto Santos
IMAGEM DE CAPA
Haroldo Barros
Sem Título, [s.d.] - Óleo sobre tela
14,2 x 14,2 cm - acervo da editora adjunta
PROJETO GRÁFICO
Eluiza Bortolotto Ghizzi
REVISÃO
A revisão lingüística e ortográfica é de
responsabilidade de Rosana Cristina Zanelatto
Santos
TRADUÇÃO PARA O INGLÊS
DO TEXTO DA ORELHA
Ramiro Giroldo
CÂMARA EDITORIAL
Edgar Cezar Nolasco dos Santos – Eluiza Bortolotto Ghizzi – Geraldo Vicente Martins – Márcia
Gomes Marques – Marcos Antônio Bessa-Oliveira – Rosana Cristina Zanelatto Santos
CONSELHO CIENTÍFICO
Álvaro Cardoso Gomes [UNIMARCO] – Benjamin Abdala Junior [FFLCH/USP] – Clotilde Azevedo
Almeida Murakawa [FCLAR-UNESP] – Daniel Abrão [UEMS] – Eduardo de Oliveira Elias [UNAES] Gladis Maria de Barcellos Almeida [UFSCAR] – Jacyra Andrade Mota [UFBA] – Jaime Ginsburg [USP]
– Luiz Carlos Santos Simon [UEL] – Luiz Gonzaga Marchezan [FCLAR-UNESP] – Márcia Valéria Zamboni
Gobbi [FCLAR-UNESP] – Maria Cândida Trindade Costa de Seabra [UFMG] – Marilene Weinhardt
[UFPR] – Richard Perassi Luiz de Sousa [UFSC] - Silvia Maria Azevedo [FCL-ASSIS/UNESP] – Thomas
Bonnici [UEM] – Vanderci de Andrade Aguilera [UEL].
Sumário
Apresentação
Literatura
[Artigos]
13
LA NARRATIVA EN LA FRONTERA / LA FRONTERA EN LA NARRATIVA
Luis Rodriguez Araya
25
NOVA CORPORA, MUTATAS FORMAS. LEMINSKI À SOMBRA
DE OVÍDIO
Biagio D’Angelo
37
UMA ANÁLISE COMPARATIVA DO HORROR NO COTIDIANO
FEMININO DOS CONTOS “IMITAÇÃO DA ROSA”, DE CLARICE
LISPECTOR, E “O PAPEL DE PAREDE AMARELO”, DE
CHARLOTTE PERKINS GILMAN
Daniela Gomes Loureiro e Rosana Cristina Zanelatto Santos
53
MEU AMIGO MARCEL PROUST ROMANCE E
LITERATURA COMPARADA
Kátria Gabrieli Fagundes
75
O TEATRO DE GIL VICENTE NO CONTEXTO DAS CORTES
PORTUGUESAS DO SÉC. XVI
Márcio Ricardo Coelho Muniz
5
107
PALAVRAS NA PINTURA DE ANA CARLA ZAHRAN E EVANDRO
PRADO: INTIMIDADES E CONCEITOS
Priscilla de Paula Pessoa
125
FAUSTO CUNHA E “A VELA QUE O MUNDO APAGOU”
Ramiro Giroldo
135
O (DES)MASCARAMENTO DA VIOLÊNCIA NA POÉTICA DE
HELIO SEREJO
Serley dos Santos e Silva
147
6
A COR LOCAL NO SAROBÁ DE LOBIVAR MATOS
Susylene Dias de Araújo
Apresentação
É com satisfação que o Programa de Pós-Graduação em Estudos
de Linguagens traz a público o número 28 da Revista Papéis. Fruto de
um trabalho coletivo, nesta edição há contribuições de docentes e de
discentes da própria UFMS, da ANHANGUERA/UNIDERP, da UEMS,
da USP, da UFBA, da Associação Internacional de Literatura Comparada
(ILCA/ICLA) e da Universidade do Chile.
Os artigos reunidos demonstram a vocação do Programa, que já
vem inscrita em seu nome: Estudos de Linguagens. É certo que os estudos
sobre textos literários são preponderantes, no entanto, as visadas teóricas
também são linguagens, ou melhor, são modos diversos de apreensão
de uma mesma linguagem, como a literária. Apresentemos, pois, as
contribuições desta edição
La narrativa en la frontera / la frontera en la narrativa é o artigo de
Luis Rodriguez Araya no qual se analisam três textos literários: La frontera
de cristal, de Carlos Fuentes; No es país para viejos, de Cormac McCarthy;
e Los límites de la noche, coletânea de contos de Eduardo Antonio Parra.
A proposição de Araya é que nas três obras manifesta-se a representação
simbólica das diferenças existentes entre duas realidades socioculturais,
a mexicana e a norte-americana. Por outro lado, elas também mostram
como o constante trânsito histórico dotou o espaço fronteiriço entre o
México e os EUA de culturas particulares, colocando em discussão os
conceitos de hibridação, de mestiçagem e de fronteira.
7
O artigo de Biagio D’Angelo, Nova corpora, mutatas formas. Leminski
à sombra de Ovídio, apresenta como o começo dos tempos, o caos e
os mitos postos em cena nas Metamorfoses de Ovídio são apropriados
por Paulo Leminski, numa (re)leitura que além de dialogar com o poeta
latino reconhece a necessidade de a literatura contemporânea – inclusa
aí a obra do próprio Leminski – investigar a literatura clássica.
Em Uma análise comparativa do horror no cotidiano feminino dos
contos “A Imitação da Rosa”, de Clarice Lispector, e “O Papel de Parede
Amarelo”, de Charlotte Perkins Gilman, Daniela Gomes Loureiro e Rosana
Cristina Zanelatto Santos propõem um olhar sobre as representações de
gênero na cultura ocidental a partir dos contos mencionados no título
do artigo. Ambos os contos representam polaridades de uma mesma
situação: as tentativas de sobrevivência de duas mulheres em um mundo
incerto e o enfrentamento de uma existência transitória, marcada pela
(oni)presença do masculino.
Sob a ótica dos estudos de Literatura Comparada, Kátria Gabrieli
Fagundes apresenta ao leitor o texto de Judith Grossmann Meu amigo
Marcel Proust Romance no artigo Meu amigo Marcel Proust Romance
e Literatura Comparada.
Márcio Ricardo Coelho Muniz, em O teatro de Gil Vicente no
contexto das cortes portuguesas do século XVI, estuda a reiteração de
temas, de contextos de criação e de motivadores de ação no teatro do
dramaturgo português Gil Vicente, além de sua relação com a cena
política das cortes portuguesas no início do século XVI.
A artista plástica e docente universitária Priscilla Paula Pessoa discute
a presença de elementos da escrita na pintura no artigo Palavras na
pintura de Ana Carla Zahran e Evandro Prado: Intimidades e conceitos,
trazendo uma leitura dessa prática pelos dois artistas contemporâneos
sul-mato-grossenses, situando-os para além da cena artística local.
No artigo Fausto Cunha e “A vela que o mundo apagou”, publicado
em As Noites Marcianas (1960), Ramiro Giroldo, considerando a
apropriação de uma dada poética borgiana por Fausto Cunha, procura
8
ler o conto “A vela que o mundo apagou” como exemplo de apagamento
das fronteiras entre ficção científica e a literatura canônica.
O (des)mascaramento da violência na poética de Helio Serejo:
este é o título do texto no qual Serley dos Santos e Silva demonstra a
presença do poder e da violência na poética de Helio Serejo, utilizando
como base de análise o conto “O Degolado de Jejey–Mi”.
Estudiosa de primeira hora da obra de Lobivar Matos, Susylene Dias de
Araujo, no artigo A cor local no Sarobá de Lobivar Matos, mostra como essa
cor ganha novos tons e nuanças na poesia de Lobivar Matos, especialmente
em Sarobá, o segundo e último livro publicado em vida pelo poeta.
Boa leitura!
Os Editores Adjuntos.
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La Narrativa en la frontera / la frontera en la narrativa [13-23]
La narrativa en la frontera / la frontera en la
narrativa
A narrativa na fronteira / a fronteira na narrativa
Luis Rodriguez Araya
(Universidad de Chile)
Resumo: Este trabalho tem por finalidade demonstrar como, em três textos
literários: La frontera de cristal, de Carlos Fuentes; No es país para
viejos, de Cormac McCarthy; e Los límites de la noche, coletânea de
contos de Eduardo Antonio Parra, manifesta-se a existência de um
espaço de interação e de hibridação cultural – e, por que não dizer, de
constante “conflito” – único no mundo, chamado de “fronteira norte”,
entre o México e os Estados Unidos, que representa um referente para
a configuração das personagens e dos mundos narrados, uma vez que,
direta ou indiretamente, as três obras mencionadas consideram esse limite
geográfico como uma representação simbólica das diferenças existentes
entre duas realidades socioculturais, a mexicana e a norte-americana, mas
também como espaço que, em si, é um contexto de produção, posto que o
constante trânsito histórico produzido nele o dotou de referentes culturais
particulares, capazes de ampliar os conceitos de hibridação, mestiçagem
e também o de fronteira.
Palavras-Chaves: Narrativa. Fronteira. Hibridação Cultural. Mestiçagem.
Resúmen: El presente trabajo tiene por finalidad demostrar cómo en tres textos
narrativos: La frontera de cristal, de Carlos Fuentes; No es país para viejos,
de Cormac McCarthy, y Los límites de la noche, selección de cuentos
de Eduardo Antonio Parra, se manifiesta la existencia de un espacio de
interacción e hibridación cultural –y, por qué no decirlo, de “conflicto”
constante– único en el mundo, llamado la “frontera norte”, entre México
y Estados Unidos, el cual representa un referente para la configuración
de personajes y de mundos narrados, ya que, directa o indirectamente,
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Luis Rodriguez Araya [13-23]
las tres obras mencionadas consideran este límite geográfico como una
representación simbólica de las diferencias existentes entre dos realidades
socioculturales, la mexicana y la estadounidense, pero también como un
espacio que, en sí, es un contexto de producción, pues el constante tránsito
histórico que se ha producido a través de él lo ha dotado de referentes
culturales particulares, que amplían los conceptos de hibridación, mestizaje
e incluso el de frontera.
Palabras-Claves: Narrativa. Frontera. Hibridación Cultural. Mestizaje.
Es interesante observar cómo en los textos narrativos: La frontera de
cristal, de Carlos Fuentes; No es país para viejos, de Cormac McCarthy; e
Los límites de la noche, coletânea de contos de Eduardo Antonio Parra,
se van delineando los personajes y los mundos narrados a partir de
elaboraciones discursivas preestablecidas, lo que se aprecia, por ejemplo,
en la obra de Fuentes, al describir a una familia típica norteamericana que
acoge a un estudiante mexicano, o en la novela de McCarthy, al describir
a sus personajes mexicanos y asociarlos constantemente a actividades
ilegales o al abordar la problemática de la inmigración.
Si bien es cierto que toda frontera es, según las características geográficas
que la determinan, una construcción cultural y una limitación “forzada”,
la existente entre México y Estados Unidos es la más representativa, pues
simboliza la separación entre los países subdesarrollados y una potencia
económica; es el fin de Latinoamérica y el comienzo de la América
sajona; el fin de la tradición hispano-cristiana y el comienzo de la angloprotestante. Sin embargo, es en ese tránsito de un elemento a otro, en
ese desplazamiento cultural, que se va produciendo esa superposición
simbólica, y en ello consiste la riqueza de esta región, puesto que tanto a
lo largo de ella como en sus márgenes se construye un discurso en el que
los “otros” se reconocen y coexisten, aunque en tensión.
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La Narrativa en la frontera / la frontera en la narrativa [13-23]
1. La frontera como límite físico y cultural
La frontera norte es una zona original en el planeta, ya que en sus entrañas
los países subdesarrollados entran en contacto directo con la nación más
poderosa y rica del mundo occidental, Estados Unidos de Norteamérica (…)
Esto convierte a la región en un extraordinario mosaico mundial que origina
problemas de identidad (Hernán Taboada. La frontera como reto).
Tradicionalmente, se considera toda frontera como un límite
geográfico estático y cuya principal función es la de delimitar o “separar”
realidades distintas. Además, por tratarse de una construcción política,
suele pensarse solamente como una restricción excluyente, que debiera
remarcar, en su condición de margen, la identidad nacional. Sin embargo,
y antes de entrar en el análisis de las obras mencionadas, se debe
reflexionar sobre el concepto de frontera particular que existe entre
México y Estados Unidos: se anticipó en la introducción de este trabajo
que la “frontera norte” es una zona de convergencia, de inclusión, pues
se ha transformado, con el correr de los años, en “un sitio de encuentro
de relatos geopolíticos y literarios, historiográficos y antropológicos”.1
Asimismo, otro aspecto importante a considerar a partir de esta
convergencia cultural es que dicha condición define también a un
individuo específico, el cual se construye a partir de esta superposición
de relatos y que se identifica necesariamente con su realidad cultural.
Por lo tanto, pese a que, en teoría, la frontera es un lugar de tránsito, es
decir, un lugar momentáneo o de desplazamiento que no permitiría la
identificación del sujeto, en este caso creemos que sí, justamente porque
en esta condición de cambio constante a causa de los desplazamientos
se configura un sentido de pertenencia. A diferencia del antropólogo
francés Marc Augé, quien define como “lugares” a aquellos espacios
con los cuales los individuos establecen una relación identitaria de
pertenencia y como “no lugares” a aquellos con los cuales hay una
1
Michaelsen, Scott y Johnson, David E. La teoría de la frontera. Barcelona: Gedisa,
2003, p. 13.
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relación de uso o de consumo2, la “frontera norte”, en nuestra opinión,
es un espacio con el cual los individuos han establecidos una relación
de pertenencia. Si bien es cierto que la frontera en sí es una larga franja
a través de la cual se produce el traslado, las áreas circundantes desde
las cuales se realizan estos procesos migratorios son las que se definen
como parte de un espacio que tiene al desplazamiento como referente
de su identidad urbana. Al respecto, cabe señalar que dicha condición
geográfico-cultural está determinada por un largo devenir histórico, del
cual los poblados y las ciudades vecinas al límite, sobre todo en el lado
mexicano, han forjado su identidad.
En el caso de las obras leídas, esto se evidencia tanto en lo expresado
por los personajes como en los ambientes creados en ellas. Por ejemplo,
en Los límites de la noche, esto se manifiesta en la visión de los sujetos
principalmente en dos de los relatos, “El juramento” y “El cazador”,
cuyos sujetos se construyen como individuos “fronterizos”, en todo el
amplio sentido del término, pues reconocen que sus trabajos como
“coyotes”, quienes se las arreglan para pasar a mexicanos en calidad de
“espaldas mojadas” a Estados Unidos, o como “cazadores” de aquellos
que han cometido crímenes a uno u otro lado, son representativos de
esta transitoriedad que caracteriza a la frontera. Además, existe una
particularidad lingüística, pues las narraciones intercalan diálogos en
los que es posible apreciar una variación dialectal zonal, un “spanglish”
que adquiere el valor de uso como lengua de intercambio de quienes
habitan en la región fronteriza. En La frontera de cristal, en tanto, se
presenta una visión de la frontera como una instancia de transformación,
pues quien cruce por ella, deberá adecuar su identidad y adaptarse
a todo el imaginario existente en Estados Unidos sobre México y los
mexicanos. La frontera es, entonces, un punto de inflexión cultural y
En su obra Los no lugares (2004), Augé plantea esta dicotomía como propia de los
espacios urbanos o periurbanos, ya que los no lugares serían espacio pensados para el
tránsito y el consumo en y entre urbes. En este caso, un espacio como la “frontera norte”
es un espacio de asentamiento.
2
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La Narrativa en la frontera / la frontera en la narrativa [13-23]
de producción de identidad, pues en ella, necesariamente, se produce
un inicio y un término, lo que remarca esa mutua atracción que existe
por cruzarla. En el caso de la novela de Fuentes, esto se evidencia en
cómo la familia Barroso, protagonista de la obra, reacciona al cruzar la
frontera o al soñar con ella y compararla con un límite que separa “las
luces de las sombras”.
La novela de McCarthy, en tanto, se desarrolla como una visión
similar del mundo de la frontera, con la salvedad de que la representación
del mundo fronterizo que se hace en ella es, en cierto modo, negativa,
ya que lo que proviene desde allí debe ser detenido por personajes que
representan una autoridad que busca mantener alejada esa realidad
del resto de la comunidad estadounidense. Por eso llama la atención
que el “producto” de la “hibridación” dé por resultado bandas de
narcotraficantes y matones a sueldo, “máquinas de matar”, como se les
llama en la obra, lo que inmediatamente contrasta con la visión mexicana
de la frontera, lo que demuestra que este margen es, en sí, un centro de
producción cultural, sujeto a interpretaciones.
Finalmente, es interesante señalar que en las tres obras hay una
consideración de la frontera como un espacio físico y, a la vez, cultural:
es un límite dentro del cual se produce una convergencia cultural y
que está en constante transformación, puesto que en ella se depositan,
además, distintas realidades discursivas, las que van conformando una
realidad particular que se elabora a partir de la superposición.
2. La frontera como representación identitaria y simbólica
Don’t call me gringo / no me llames frijolero (Molotov).
Otro aspecto importante a considerar, junto con la consideración
de la frontera como un contexto de producción cultural, es que, a
través de las obras analizadas, se aprecia que también hay una serie de
representaciones simbólicas e identitarias provenientes de los discursos o
relatos sociohistóricos existentes a ambos lados de la línea fronteriza. Esto
significa que los personajes y los ambientes narrados son elaborados a
partir de imaginarios preestablecidos y que, en nuestra opinión, cumplen
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dos objetivos: dar cuenta de la concepción de los autores al momento
de estructurar sus relatos y mostrar al lector cuáles son las construcciones
tradicionales que los pre-juicios discursivos han logrado erigir a través
de la historia.
Para comenzar, y siguiendo a Todorov, diremos que lo que existe en
esta convergencia de realidades culturales es una tensión en el encuentro
con el Otro, debido a que este encuentro ha sido predefinido por relaciones culturales y políticas. Sin embargo, y aun cuando esta tensión esté
presente en cómo interactúan los personajes y en cómo se presentan al
lector, por tratarse de un lugar de confluencia, una heterotopía, algunas
diferencias suelen anularse o transformarse, dialécticamente, en parte de
una realidad otra: “La frontera es un lugar donde ‘los otros’ se encuentran
y comparten un espacio (…) En tal lugar la violencia inherente a las diferencias está apagada y las distintas visiones continuamente se redeterminan y
redescriben la realidad”.3 Asimismo, es posible determinar, sobre todo en
la obra de McCarthy, que se trata de una manera de “imaginar y construir”
al Otro –aunque se conozca el entorno– y de aprehenderlo de acuerdo
con una concepción particular propia. De hecho, podríamos decir que las
construcciones discursivas se van superponiendo incluso a las realidades
empíricas, puesto que lo que prima es una naturaleza representacional en
la concepción de lo narrado.4 De igual forma, se puede considerar que
las representaciones también están determinadas por la contraposición
discursiva excluyente, en un primer momento, que existe entre las visio-
Taboada, Hernán (Comp.). La frontera como reto. Tomo 3, Colección “Latinoamérica
en la globalización y el tercer milenio”. México DF: Instituto Panamericano de Geografía
e Historia – Fondo de Cultura Económica, 2005. p. 53.
3
Aun cuando las tres novelas trabajen con arquetipos o prefiguraciones discursivas, la
obra de McCarthy es más representativa, ya que se enmarca en la lógica estadounidense
de configuración de América Latina. Su novela está plagada de construcciones
que peligrosamente se parecen a las que la cultura norteamericana ha recurrido al
interactuar con el resto del mundo y, específicamente, con Latinoamérica. Al respecto,
es interesantísimo el libro Imágenes de un imperio (Buenos Aires: Sudamericana, 2006),
del sociólogo argentino Ricardo Salvatore, obra en la que se da cuenta de cuáles son los
verdaderos motivos de que estas elaboraciones discursivas existan.
4
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La Narrativa en la frontera / la frontera en la narrativa [13-23]
nes estadounidense y mexicana, casi a la par de una dicotomía discursiva
foucaultiana, pues los discursos del dominador y del dominado confluyen
directamente en cómo se construyen los personajes y la interacción de
estos en las obras leídas.
Las representaciones simbólicas e identitarias parten desde una
matriz discursiva que va generando visiones casi arquetípicas que, para
nuestra realidad nacional, están bastante alejadas, pero que, a la vez,
nos son de cierta forma cercanas, pues han sido elaboradas y masificadas
gracias a la abundante producción mediática existente al respecto. Así es
como la visión de los personajes mexicanos más representativos de los
textos analizados nos acercan a “chicanos”, narcotraficantes, “coyotes”,
“espaldas mojadas”, sicarios, rancheros texanos, comisarios de pueblos
pequeños, familias típicas conservadoras estadounidenses, solamente por
nombrar algunas construcciones. Asimismo, se puede apreciar cómo esta
dicotomía discursiva no está exenta de prejuicios, como se decía, sino
que presenta elementos que evidencian discriminación, resentimiento,
racismo y abusos, todo aquello que ha formado parte de la relación
directa entre Estados Unidos y México por más de doscientos años. De
ahí que, por ejemplo en el caso de La frontera de cristal, los personajes
mexicanos mientan a sus anfitriones “gringos” recalcando su condición
de herederos directos de la aristocracia española latifundista; o bien el
caso de los “coyotes” y criminales de Los límites de la noche, quienes
demuestran odio extremos ante los “güeros” y la autoridad fronteriza
estadounidense. Lo anterior también tiene una carga valórica, pues el
concepto de víctima es aplicable, en este caso, a los mexicanos que
circundan la frontera, pues son ellos los que buscan la posibilidad de
subsistir en un país que no les ofrece oportunidades o por el cual han
perdido la fe y el respeto, ya sea porque están fuera de las garantías
sociales que el Gobierno les pueda brindar o porque las clases dirigentes
mexicanas son corruptas y “poco serias”, como afirma uno de los
personajes de La frontera de cristal. En cambio, en No es país para viejos la
imagen de víctima la tiene un veterano de Vietnam, quien es perseguido
por los narcotraficantes fronterizos y por un sicario, Anton Chigurh, el
cual representa al mexicano “demonizado” por el discurso pseudo-
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conservador y acomodaticio estadounidense promedio. Esta visión
contrapuesta, de víctima y victimario con roles que se intercambian, es
propia de las interpretaciones originadas por los discursos imperantes
a uno y otro lado, aunque con la diferencia de que el mexicano está
articulado desde la marginalidad, pues el discurso que prima, incluso a
nivel mundial, es la concepción dual y radicalizada que impera en/desde
Estados Unidos. Cabe destacar al respecto que dicha visión casi mesiánica
es la que llevó, en un momento de la historia, a los norteamericanos a
creerse con la facultad de anexarse México, pues por lo que le podía
pasar a ese país era, paradójicamente, estar habitado por mexicanos.
De igual manera, si los personajes se construyen simbólicamente
a partir de elaboraciones discursivas, igual cosa ocurre con los espacios
físicos descritos en las obras. En estas, los espacios físicos, no solo la
frontera, obviamente, como línea divisoria, sino también otros lugares
adquieren relevancia, pues poseen una carga simbólica. Por ejemplo,
en uno de los cuentos de Los límites de la noche se aprecia el significado para los mexicanos fronterizos del río Bravo, en este caso, en una
reflexión en medio de una operación de los “coyotes”:
(…) al contacto con la lluvia el fondo liberaba su fuerza oculta, los remolinos
afloraban en la superficie, rugían las ráfagas entre las piedras. Son los
muertos, le había dicho su padre durante una tormenta en la isleta, las
ánimas de los difuntos ahogados en esta agua traidoras. Por eso el río
maldito pudre todo lo que está cerca. No hay otro río en el mundo donde
se ahoguen más cristianos que en este; por eso de cuando en cuando salen
a gritar su rabia a los vivos.
También en un pasaje de La frontera de cristal, Michelina, hija de
una familia respetada y tradicional de Ciudad de México y que viaja al
norte a casarse con un hacendado, y Leonardo, su novio, realizan un
viaje en automóvil:
Leonardo no estaba borracho. Su horizonte tenía un límite: la frontera con
Estados Unidos. El aire de la noche súbita lo despejó aún más, le aclaró
las ideas y la mirada. Manejaba con una mano. Con la otra, apretaba la
de Michelina. Le dijo que le apenaba tener que decirlo, pero ella debía
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La Narrativa en la frontera / la frontera en la narrativa [13-23]
comprender que tendía cuanto quisiera, no quería alardear, pero para ella
sería todo el dinero, todo el poder, ahora sólo veía el desierto encuerado,
pero su vida podía ser como esa ciudad encantada del otro lado de la
frontera, torres de oro, palacios de cristal (…)
En ambos casos, existe una percepción de la frontera como un
espacio físico en el cual y a través del cual se proyectan identitariamente
los personajes, pues constituye para ellos una realidad que determina
su forma de vida. En el caso de No es país para viejos, en cambio, dicha
realidad es distinta, ya que contiene un aspecto negativo, por lo que se
constituye en un margen desde el cual proviene un elaboración cultural
que debe ser frenada y que, metafóricamente, podría asimilarse a la
sensación de vulnerabilidad de la sociedad norteamericana frente a esta
“invasión” de un Otro que amenaza el establishment local.
En todo caso, esta proyección que los personajes hacen de la
frontera, como un límite después del cual se amplían sus expectativas o
como un espacio desde el cual se proyecta una realidad cultural alterna,
refleja que existe conciencia de que ese lugar, que debiera, casi por
definición, ser únicamente de tránsito es un contexto de producción de
una cultura que no es ni la mexicana tradicional, regida por el centro, ni
la estadounidense tradicional, con una fuerte base pseudo-conservadora
protestante, sino que es una región en cierto modo autónoma y validada
por el solo hecho de considerar su existencia.
Conclusiones
Después de haber reflexionado acerca de estas obras y de su
conexión con la producción cultural fronteriza, hay que realizar varias
preguntas antes de llegar a establecer límites específicos que puedan
delinear una narrativa de la frontera como tal. La mayoría de ellas se
relaciona con la capacidad de una región que abarca por longitud más
de tres mil kilómetros para proveer de un imaginario capaz de ponerse
al servicio de la ficción literaria; con el replanteamiento del concepto de
frontera como un espacio de convergencia y de hibridación cultural y no
como una división antojadiza que, muchas veces, termina por separar
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Luis Rodriguez Araya [13-23]
y dejar como sustratos alterados a enclaves culturales particulares;
con la capacidad de una región de constituirse en un centro de
producción cultural alterno y que es capaz de desarrollar un discurso
particular confrontado a los discursos tradicionales metropolitanos,
en términos de Ángel Rama, que repercuta en los sujetos que
habitan sus cercanías; con la posibilidad de un espacio para elaborar
imaginarios socioculturales que le son propios y reconocibles a
partir de su encuentro con un Otro. Todo parece indicar que dichas
preguntas pueden ser abordadas positivamente, debido a que estas
características y relaciones se dan en un espacio fronterizo que, como
ningún otro, plantea incluso la posibilidad de reelaborar los conceptos
de hibridación y/o de mestizaje.
En la frontera se reconocen los Otros, como se mencionó
anteriormente, pues en ella convergen y se superponen, con cierta tensión,
elementos provenientes de tradiciones culturales distintas y que dan por
resultado una elaboración cultural propia, dentro de la cual, como en
toda construcción humana, habrá discursos confrontados y un desarrollo
que apunta cada vez más hacia lo gregario que a lo segregacionista.
Sin embargo, dicha postura, que se va constituyendo en este supuesto
“margen”, se interpreta a la luz de realidades culturales que histórica y
políticamente han estado en confrontación y generando recelo.
Para finalizar, cabe hacer una reflexión acerca de las fronteras en
la actualidad, y saltan a la luz, por ejemplo, la mediterránea, entre el
Norte de África y el sur de Europa (donde se están produciendo novelas
que abordan la problemática de la inmigración y de la superposición
de discursos), y la ficticia delimitación polític-religioso-cultural entre el
Medio Oriente islámico y el Occidente cristiano (cuyo estudio puede
ejemplificarse en el libro Extraño Oriente, de Ziauddin Sardar), pues
en ellas se ve, al igual que el caso expuesto en las obras narrativas
analizadas, que la frontera es un espacio que ha dejado de ser un
margen y se ha convertido en una región en el cual la producción
cultural, y, en particular, la literaria, puede enriquecer y aportar con
nuevas concepciones de mundo. Aun así, la frontera sigue siendo un
espacio poco estudiado, pues predomina todavía su concepción de
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La Narrativa en la frontera / la frontera en la narrativa [13-23]
límite de exclusión y no de espacio de confluencia. Así lo plantea
el periodista y escritor norteamericano Tom Miller: “La frontera ha
terminado por representar muchas cosas para muchas personas; sin
embargo, sigue siendo la región menos comprendida (…)”
REFERÊNCIAS
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Luis Rodriguez Araya [13-23]
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Nova corpora, mutatas formas. Leminski à sombra de Ovídio [25-36]
Nova corpora, mutatas formas. Leminski à
sombra de Ovídio
Nova corpora, mutatas formas. Leminsky by the Shadow
of Ovídio
Biagio D’Angelo
(Associação Internacional de Literatura Comparada - AILC/ICLA)
Resumo: Neste artigo demonstra-se como as reflexões sobre o começo dos
tempos, o caos e os mitos apresentadas nas Metamorfoses de Ovídio são
apropriadas por Paulo Leminski, numa leitura que além de dialogar com
o poeta latino reconhece a necessidade de a literatura contemporânea
investigar a literatura clássica.
Palavras-Chave: Ovídio. Paulo Leminski. Metamorfoses.
Abstract: This article shows the reflections on the beginning of times, the chaos
and myths presented in Ovid’s Metamorphoses and how Paulo Leminski
appropriates them .The Leminski’s reading is a dialogue with the Latin poet
and recognizes the necessity to investigate the classical literature.
Keywords: Ovídio. Paulo Leminski. Metamorphoses.
Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
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Biagio D’Angelo [25-36]
Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval, pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural
- Que os poetas aprenderiam –
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também
de reaprender a errar a língua (Manoel de Barros).
No princípio era o caos. E o caos, massa informe e confusa,
representava o aspecto da natureza por todo o universo, germes discordes
de coisas mal combinadas, como poeticamente Ovídio descreve na
introdução das Metamorfoses. O caos é o início da reflexão ovidiana
sobre a origem das realidades do cosmos (homens, animais, objetos),
um caosmos que a escrita torna elemento criativo, produtor de novos
pensamentos e novas dinâmicas cognoscitivas. Paulo Leminski foi um
pesquisador incansável de pensamentos e de dinâmicas do conhecimento.
Essas breves páginas brotam de uma pergunta que nasce a partir da
leitura de Metaformose, a obra que Leminski publicou em 1994, quase
dos mil anos depois da obra-prima ovidiana: que necessidade impele
um autor brasileiro a investigar as formas mudadas e referir-se não tanto
ao imaginário especificamente latino-americano, quanto ao universo
poético e político da idade clássica romana? Alice Ruiz, a esposa de
Leminski, em um prólogo à Metaformose define-o como “um cultor de
signos, símbolos, logos, tipos e mitos” (LEMINSKI, 1994, p. 7). O autor
de Catatau “pesquisava todas as formas de interpretar o universo [...]
Daí essa metamorfose/metaformose que aponta para a transmutação
da linguagem onde se anuncia/denuncia a transmutação da forma de
pensar do ser humano” (1994, p. 7).
Como sugere o trecho de Manoel de Barros, citado em epígrafe,
Leminski realiza uma operação atual e extraordinariamente ovidiana
post litteram. De seres que falam um dialeto larval, o dialeto da pedra
e da coisa, nasce a exigência de recuperar uma linguagem originária, a
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Nova corpora, mutatas formas. Leminski à sombra de Ovídio [25-36]
linguagem da origem, do início, da inauguração de tudo – uma língua do
Bereshit’, como afirmaria Haroldo de Campos – uma língua que permita
voltar à simplicidade do reconhecimento da realidade e reaprender a
essência e o fluxo adâmico das coisas.
De fato, Leminski intuiu, como pouquíssimos poetas e artistas,
a grande modernidade de Ovídio, ou seja, a grande arquitetura das
Metamorfoses e suas razões estéticas e culturais. Ressuscitando o modelo
ovidiano, Leminski recupera o paradigma de arquivos do mito, pois
reconhece no discurso metamórfico e nas essências que se compartilham
entre Parmênides (a constância do ser) e Heráclito (o fogo transformador)
o que ele define “as matérias primas com que trabalha o tão estável e
instável espírito humano” (LEMINSKI, 1994, p. 69). As Metamorfoses
tornam-se a representação sagrada de uma obra que conduz o mito a
um território onde a realidade, por sua vez, torna-se “narrável”. Para
Leminski, a metamorfose é um tema ideogrâmico: “A fábula mitológica
tem a força e a fixidez de um ideograma chinês. Concentra em traços a
figura de um sentido contra o fundo do sem-sentido” (1994, p. 63). Em
particular, essa síntese de forma e imagem torna-se uma bifurcação depois
da outra, um labirinto de narrações, um florescer de leituras e recriações,
uma abundância de metaformoses, isto é de formas metamorfoseadas pela
capacidade de leitura do autor. Parece ser uma alegoria da escrita, isto é, da
vivacidade da escrita que, superando urubus que gostariam de ver morta
a capacidade ficcional da literatura, transforma o cartesiano cogito, ergo
sum em um narro, ergo sum, já antecipado por Hesíodo, na interpretação
leminskiana: “Hesíodo não inventa. Fabula e organiza os mitos tais como
vividos e acreditados por sua comunidade. Concatena-os. Articula-os.
Fixa-os em versos admiráveis. Sobretudo, escreve-os” (LEMINSKI, 1994,
p. 65. Grifo meu). O ser em Leminski reconhece o próprio devaneio, o
próprio desejo de captar os mistérios insondáveis do Ser, por meio da
narração, ou seja, de uma reiterada ação do mito como “ferramenta de
trânsito” entre a cultura letrada e a pergunta antropológica.
Dessacralizado e reduzido à cotidianidade, o mito perde, no
tempo, sua dimensão, mas não cessa de interrogar a realidade e suas
transformações. Para ter acesso à compreensão da metamorfose ou à
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Biagio D’Angelo [25-36]
operação da metaformose leminskiana, é preciso lembrar, em primeiro
lugar, o espaço ocupado pelo mito antigo na literatura contemporânea,
e, depois, enfatizar na modernidade do projeto ambicioso de Ovídio.
A transformação dos mitos investe, às vezes alegoricamente,
numerosos personagens da literatura contemporânea, sinal de uma
indelével predisposição a aceitar o imaginário grego como fonte
inesgotável de fábulas. Textos como Yentl, de Isaac B. Singer, ou
Kitchen, de Banana Yoshimoto, ou ainda Créature de sable, de Tahar
Ben Jalloun, e Truismes, de Marie Darrieussecq, publicados nas últimas
décadas, insistem, por exemplo, na figura do híbrido e do hermafrodito,
assegurando uma curiosa continuidade a mitos como Calisto, Dafne,
Narciso no imaginário da ficção da modernidade latino-americana,
como em Macunaíma, de Mário de Andrade (com a metamorfose do
herói na constelação da Ursa Maior), e os mitos ameríndios relidos por
Severo Sarduy em Cobra.
As fábulas, que são infinitas e geradoras de novas estórias
(poderíamos repetir com um termo caro a Guimarães Rosa), constituem
o ponto de liberdade criativa experimentado por Leminski em seu texto.
Se o mito como narrativa é a preocupação estética do poeta curitibano,
a releitura e, portanto, a re-interpretação do texto de Ovídio, acaba por
ser o arquivo de mitos, à sombra do qual Leminski reescreve a mitologia
grega. Trata-se de um trabalho poliédrico porque, atrás a reinvenção
neobarroca de fábulas, cujos personagens mudam de lugar e, às vezes,
de atitude, a reflexão de Leminski toca seu apogeu em sua reflexão
sobre o fazer da literatura e a contextualização do ato do poeta dentro
os referentes históricos que lhe pertencem e aos quais obedece.
Leminski gostava de realizar uma enciclopédia ideogramática do mito,
como Ovídio faria com as Metamorfoses. Grandiosa enciclopédia do saber
e da historia do mundo, através do fio constante das mudanças das formas,
Ovídio e Leminski concorrem para o mesmo ponto de reflexão: exaltar o
detalhe mítico para passar do particular ao universal, da textualidade sintética
ao Texto feito de sínteses, isto é, uma ficção poética que sintetiza a história
universal e a história da literatura, por meio de mitos. M. Von Albrecht definiu
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justamente as Metamorfoses de Ovídio como um poema de “aspiração à
universalidade” (VON ALBRECHT, 1998, p. 757), aqui entendida como
mescla de mundos diferentes e em diálogo entre si: o mundo científico,
o mundo civil e o mundo mítico (p. 757-774). O fragmento poético de
Ovídio se transforma, em Leminski, em indagação a respeito da natureza da
literatura e de suas contradições. A literatura quer explicar o devir histórico
com a poesia, a razão do processo histórico com a erudita pesquisa das
causas; daí, sua contraditória existência, que tem validez só no seu gerar
constantemente novas fábulas, um verdadeiro carmen perpetuum, como
afirmaria o latinista Ettore Paratore, “que elimina quase cada possibilidade
de fixar e de distinguir um modelo bem determinado” (1969, p. 484).
Leminski intui que a intenção de Ovídio não se reduz a uma celebração
de uma nova épica romana, que exalte um faustuoso império já em processo
de decadência, mas, com muito mais precisão, ele percebe que o poeta
romano consegue insistir, quase pós-modernamente, em fazer do mito
o elemento central da narração, o eixo fundamental da narratividade, o
sjuzhet dos formalistas russos, no qual o mito encanta o leitor sem perderse, necessariamente, em elucubrações filosóficas. Nessa leitura, o mito é
desmitificado, e Ovídio, como mais tarde Leminski, se serve dele para
acrescentar a fecundidade produzida pela liberdade da narração.
Com efeito, se o mito constitui (ou constituía) uma macrocategoria
cultural, por meio da qual se reconstituía a experiência da realidade, no
sentido de mito como “médio” – símbolo do imaginário que tenta justificar
a história e dar razão do presente, Leminski segue Ovídio e, de maneira
genial, encontra no poeta romano o moderno fazedor de fábulas. A história
é insuficiente para explicar o inexplicável. Talvez, parece sugerir Leminski,
o mito possa entrar na tentativa de desvelar espaços intersticiais, fendas
de onde vislumbrar um (ou mais que um) point de répère.
Durante muitos anos, Heródoto buscou, entre miríades de povos, uma
fábula que, como o imã, fosse o centro e a raiz de todas. Mas as fábulas
não tem centro, elas se expandem em todas as direções, entrópicas,
auto-proliferando-se, alimentando-se do cadáver putrefato das fábulas já
esquecidas. (LEMINSKI, 1994, p. 24).
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Biagio D’Angelo [25-36]
De fato, segundo ele, o mito não pode mais ser considerado como
um válido instrumento de compreensão das dinâmicas da realidade; ao
contrário, ele pode ser utilizado, segundo uma normativa leiga e moderna,
como afirmação de um saber pessoal, o saber do poeta. Esse último modela
a matéria verbal e fabulística para obter dela uma renovada imaginação e
derivar uma história que possa parecer original, reconhecida ou não pelo
leitor. O mito metamorfoseado em Leminski e Ovídio, sem pretensões de
explicação, aumenta a erudição, confunde as possíveis hipóteses de origem
do ato narrativo, reafirma as raízes culturais, cujo patrimônio sagrado não
é mais indispensável, embora respeitado. Se é declarada a impossibilidade
de visar uma fábula total, para Leminski, as “fábulas são sábias” e “ouvir e
contar histórias pode ser a razão de uma vida” (LEMINSKI, 1994, p. 24). A
essa ausência de significação, o poeta responde através da imagem alegórica
da transformação dos mitos, e não apenas da realidade. As metamorfoses
representam o signo de uma realidade que está se dissolvendo, uma miragem
que reflete problemas profundos e angustiantes. Ao mesmo tempo, tanto
as Metamorfoses, quanto a Metaformose se mostram como ficções poéticas
que, em um encantador jogo de espelhos, reitera a aparência das coisas e
também da literatura.
Os mitos antigos que a literatura acolhe como materiais indispensáveis
para a narratividade são, em Ovídio e Leminski, privados de respostas
unívocas, embora nunca descuidem o drama da religiosidade da criatura.
O mito, como reescrita de material do passado, ainda válido, demonstrativo
da capacidade de interação do sujeito com o cosmos, possui, como única
resposta possível, a própria transformação de cada ser, em um eterno
movimento, onde não é apenas o corpo que se modifica, que se altera,
mas, sobretudo, o espírito. Esse elemento transcendente continua existindo
na forma de uma nova translocação, de um novo nomadismo que se
perpetua ab aeterno e que manifesta a força da natureza e da vida, para
além da morte e da degradação das formas e das substâncias.
Se o mito ovidiano está centralizado na exploração de paixões
e maravilhas, o mito reescrito por Leminski parece ter, como motivo
dialógico e perturbador, a consciência da ruína das certezas: o homem
tecnológico e sua hybris acabam por ser destruídos na presunção de
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Nova corpora, mutatas formas. Leminski à sombra de Ovídio [25-36]
uma estabilidade sócio-cultural adquirida. As perguntas inquietantes e,
ao mesmo tempo, simples, ontológicas sobre o fazer literário povoam o
texto leminskiano e mergulham na assombrosa capacidade da escrita de
criar variantes: “Que quer dizer essa história?” (p. 25), “Para que serve
um enredo? Para onde vai uma história? Donde vêm esses seres fluídos,
essas máscaras que significam máscaras?” (p. 27), “Que significam fábulas,
além do prazer de fabular?” (p. 32). Leminski, intuindo que a narração
é o fundamento antropológico da existência, sublinha que o tema da
metamorfose e o mito configuram as perguntas que subjazem à operação
teórico-literária. Ovídio tinha já percebido que a polaridade verdadementira, motivo vital da poética e da ficção, deveria ser focalizada no
espaço da invenção. Como sugere o latinista italiano Piero Bernardini
Marzolla, uma das interpretações possíveis das Metamorfoses é que
“Ovídio bem sabe que a mitologia é invenção, antes é já literatura [...]
e que os mitos recolhem impressionantes mentiras de velhos poetas”
(OVÍDIO, 1994, p. XVII). Contudo, não se trata apenas de um puro jogo
literário: Ovídio ressuscita a mitologia como movimento do ser para o
ser: não é por acaso que Calvino definiu as Metamorfoses como o poema
da rapidez, da exaltação da imaginação e do princípio moderníssimo do
estilo cinematográfico (CALVINO apud OVÍDIO, 1994, p. XII).
Leminski segue o caminho ovidiano de libertar o mito de sua
metafisicidade, insistindo, de maneira decidida, sobre a natureza
“narrável” das histórias míticas, não conseguindo reduzir por completo
sua função trágica, problemática, conceptual: “Sob a espécie da fábula,
pensa-se o impensável, invade-se o proibido, viola-se o interdito, há uma
lenda que diz, um dia, tudo vai ser dito” (LEMINSKI, 1994, p. 23).
Todavia, o mito não é mais um bloco monolítico de perguntas e
respostas. Como para Ovídio, em Leminski o mito conserva seu caráter
de tentativa de questionamento da alteridade, em particular do corpo
e do ambiente, sublimados no momento metamórfico.
O mito, portanto, declara a aparência enganosa das formas, a
incerteza como pilar epistemológico, o paradoxo dos realismos que a
literatura promulga como mimese e reconhecimento do que é alheio.
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Biagio D’Angelo [25-36]
Em certo modo, metamorfosear o mito provoca o leitor, porque ele
suspeita que, à realidade já metamorfoseada, possa existir ainda um novo
processo misterioso que se esconde atrás do espetáculo incompreensível
das coisas e da mobilidade do universo.
O texto leminskiano, assim como o de Ovídio, se revela como
uma “transcriação”, segundo as palavras de Haroldo de Campos, uma
tradução paródica do mito visto como história e como transgressão
contextualizada. Se a paródia é um espelho deformador, então é natural
que Leminski escolha a voz de Narciso como protagonista principal de
seu texto, a partir do qual se desembocam as outras metamorfoses.
Ovídio se orienta, justamente, nesta mesma direção. Com efeito, Narciso
e sua história com Eco constituem o elemento narrativo mais inovador e
representativo do processo poético das Metamorfoses. Ovídio procede
metamorfoseando os mitos, fusionando-os, servindo-se das analogias explícitas
que os compõem. Uma comparação entre os dois autores, no tratamento
desse mito, o mito específico de Narciso, resulta interessante e sugestivo.
Em Ovídio, Narciso é vítima – poderíamos assim dizer – de duas
ilusões. No seu primeiro encontro com Eco, Narciso se descobre “alternae
deceptus imagine vocis” (III, p. 385), enganado pelo som que retorna vazio,
e mais tarde, quando se vê reflexo na água, experimenta outra desilusão
“visae conreptus imagine formae” (III, p. 416), fascinado pela imagem de
beleza que vê. Ovídio sublinha, com essas imagens, a inconsistência da
realidade, pois as duas imagens não são reais, objetivas, mas existem apenas
como reflexo de um elemento que as perturba e as deforma.
Narciso é, em Leminski, o porta-voz de histórias sem fim, o
protagonista paradigmático da transformação de tudo e do Tudo em tudo,
como sublinha o autor: “Não há ser, tudo é mudança, ecos, revérberos,
câmbios, perpétuos” (1994, p. 19). Narciso representa o exemplo do
tudo-eu que se transmuta em um eu-tudo. Leminski enfatiza, com
um procedimento de inversão do mito, a validade do mito como uma
réplica ainda possível ao estudo da condição humana. Em um poema
leminskiano, publicado em Caprichos e Relaxos, Narciso é mais uma vez
o coerente buscador infinito das margens do outro.
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contranarciso
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós (LEMINSKI, 1983, p. 12).
Narciso existe como necessidade de beber não em uma única
fonte, mas em uma infinitude de fontes (“Narciso morre de sede, ao
beber sua imagem”, termina o texto leminskiano – 1994, p. 39). Sem
essa repetição incansável do ser, em busca de identidade, não existe
aspiração à completude, e o outro (com o mesmo, poderíamos dizer com
Borges) passa a constituir o eu que, por sua vez, constitui-se por “sede”,
água regeneradora do ser, “esse sonho das metamorfoses” (1994, p. 19).
Como Narciso, é a sede que, na leitura leminskiana, corresponde também
a Tântalo: “a pedra de Sísifo é a sede de Tântalo, a sede infinita da boca
que nunca consegue tocar na água, e a pedra que sempre rola ao chegar
no alto da montanha, a eterna sede da imagem que nunca consegue senão
se transformar em imagem” (p. 19). Eterna sede, eterna fome: escreve
Leminski que “a fome é um deus, a sede é um deus” (p. 19).
Portanto, “tudo é transformação e nada é real”, insiste Leminski:
“fatos não se explicam com fatos, fatos se explicam com fábulas” e,
mais adiante, “toda transformação exige uma explicação. O ser, sim, é
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inexplicável” (1994, p. 21). Leminski se engana, como Narciso perdido
nas águas onde quer matar a própria sede de infinito. Se tudo vibra por
mudanças, alterações, transformações, é que a realidade existe como
continuidade de ser, “é”, por definição. O problema seria, antes, como
dialogar com a realidade: “em que língua falar com um eco? Uma uma
língua língua lembra lembra uma uma lenda lenda, Narciso, Narciso,
Narciso” (LEMINSKI, 1994, p. 21).
Leminski mistura fábulas e personagens, humanizando, como já
propôs Borges no conto “La casa de Asterión”, o Minotauro e Teseu.
Eles são agora “uma pessoa só” (LEMINSKI, 1994, p. 17). O Minotauro
chora como uma criança e o “outro” herói, Teseu, “avança em direção
ao centro do seu coração, numa encruzilhada de caminhos” (p. 17).
Os mitos se tornaram, com Ovídio, os paradigmas da crise da
representação da realidade e da significação, e a ambigüidade dos
resultados imediatos pressupõe a problematicidade da visão das coisas e
uma nova consciência antropológica e científica do mundo e da história.
Os mitos ovidianos desvelam os mecanismos da arte, sem resolver o
problema das origens. Se a arte é representação e seu objetivo é a
representação para conhecer melhor o objeto representado, os mitos de
Narciso e Eco confirmam, por um lado, a indeterminação de um ponto
referencial preciso, concreto e, por outro, a exigência de impressionar
e persuadir o leitor através da ênfase do discurso.
Trata-se de um fio que reconduz diretamente à produção de
Leminski. A atividade específica da imaginação mítica já não pode ser
a investigação e a manifestação do real, mas a realização do desafio
dos limites da realidade, a capacidade que a escrita tem de passar do
particular ao universal.
O exemplo de Narciso e Eco demonstra, evidentemente, que na
leitura de Ovídio e de Leminski, o mito precisa se metamorfosear para
poder permanecer no tempo com a mesma vivência e modernidade.
A própria ninfa Eco é linguisticamente metamorfoseada. Em um
extraordinário calembour, Leminski une o eco, a Eco e o “ego”. De
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Nova corpora, mutatas formas. Leminski à sombra de Ovídio [25-36]
fato, se as “fábulas ecoam fábulas” (LEMINSKI, 1994, p. 38), “em que
fábula me transformo?”, conclui Leminski (p. 39). A escolha das histórias
mitológicas de Narciso e Eco fica ainda mais clara. Trata-se, com efeito, da
recuperação de um mito como de um “meta-mito”, isto é, um mito que
não se limita em sofrer transformações estruturais internas, mas modifica
a estrutura para outorgar uma renovada perspectiva narratológica.
Ovídio teve a intuição que, deslocando o mito à fronteira dos
“meta-mitos”, ou seja, insistindo sobre a natureza teórica do mito como
elemento fundador da narração, da fábula, do “como” da narração,
de sua produção e renovação, ele revela a verdadeira natureza do
próprio mito. O mito existe como variação. A variação faz parte da
natureza ontológica do mito. Trata-se de alterações que não se realizam
mecanicamente, mas por meio de “ambigüidades perturbadoras” (KIRK,
1977, p. 33-34). Bakthin declarará, justamente, a propósito do romance
e de sua estrutura nucléica, que “somente aquele que evolui pode
compreender a evolução” (BAKHTIN, 1989, p. 453).
As variações do mito lidas por Ovídio e, dois séculos mais
tarde, por Leminski permitem concluir sobre o narcisismo da própria
literatura. A crise posta em evidência antes por Ovídio, descrevendo
a decadência da época romana, e depois por Leminski, através da
releitura da transformação das estruturas do fenômeno literário, revela
que a reformulação dos mitos e a necessidade do princípio da variação
caminham paralelamente à consciência da crise do sujeito e de suas
relações com o universo. “Um dia, eu mudo, vão ver”, grita o eu lírico
de Leminski (1994, p. 35). Talvez, também o leitor se metamorfoseia no
jogo mágico de ilusões, mentiras e verdades que a literatura propõe.
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Uma análise comparativa do horror no cotidiano feminino dos contos [37-51]
Uma análise comparativa do horror no
cotidiano feminino dos contos “A Imitação
da Rosa”, de Clarice Lispector, e “O Papel de
Parede Amarelo”, de Charlotte Perkins Gilman
A comparative analysis of horror in feminine quotidian of the
short stories “A Imitação da Rosa”, by Clarice Lispector, and “O
Papel de Parede Amarelo”, by Charlotte Perkins Gilman
Daniela Gomes Loureiro
(ANHANGUERA/UNIDERP/PIBIC-UFMS)
Rosana Cristina Zanelatto Santos
(UFMS/CNPq)
Resumo: Este estudo configura uma linha de investigação própria da crítica
feminina e propõe um olhar sobre as representações de gênero na
cultura ocidental, a partir dos contos “A Imitação da Rosa”, de Clarice
Lispector, e “O Papel de Parede Amarelo”, de Charlotte Perkins Gilman.
As autoras entrelaçam seus textos a experiências trágicas, atualizando,
ao mesmo tempo, pensamentos e sentimentos, seguindo novas
concepções de tragicidade associadas ao cotidiano. Lidos em conjunto,
os contos representam polaridades de uma mesma situação: tentativas
de sobrevivência em um mundo incerto e de enfrentamento de uma
existência transitória e, embora se encontrem características semelhantes
na construção de suas personagens principais femininas, ambos os contos
evidenciam interpretações e intenções diferenciadas dentro do contexto
em que foram produzidos.
Palavras-chave: Crítica feminina. Gênero. Tragicidade.
Abstract: This study configures a line of own investigation of the feminine critic.
It proposes a glance about the gender representations in the ocidental
culture, starting from the short stories “A Imitação da Rosa”, by Clarice
Lispector, and “O Papel de Parede Amarelo”, by Charlotte Perkins Gilman.
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The authors interlace their texts to tragic experiences, updating, at the
same time, thoughts and feelings, following new conceptions of the tragic
associated to the daily. Read together, the stories represent polarities of
a same situation: survival attempt in an uncertain world that it takes the
characters to face a transitory existence and, although they are similar
characteristics in their feminine main characters’ construction, both stories
evidence interpretations and intentions differentiated inside of the context
in that they were produced.
Keywords: Feminine Critic. Gender. The Tragic.
O homem moderno insere-se num contexto histórico em que
parte das pessoas não acredita mais em progresso e em igualdade de
chances para todos: os conhecimentos tecnológicos e científicos não
conseguem conter o pessimismo que passa a dominar o meio urbano,
acentuando o descrédito do homem em relação a ele e ao mundo (cf.
NIEZSTCHE, 2002).
Inicia-se, então, uma era trágica, devido ao aspecto destrutivo
das revoluções e das guerras, ao individualismo crescente que marca o
capitalismo, à falta de identidade representada por uma massa em busca
de um destino único para todos. De um lado ou de outro, o homem
perde o sentido de si próprio e encontra-se instável, vive cada minuto
de forma incerta. O destino representado em escala social passa a ser
a História e esta, que indicava o final das fatalidades pelo exercício da
racionalidade, passa a ser a própria, pois detém o poder e a arbitrariedade
(cf. MAFFESOLI, 2003).
Segundo Szondi (2004), o trágico que se torna presente no cotidiano
e na literatura não se limita a configurar apenas tragédias em seu sentido
clássico, passando a povoar outros gêneros textuais. Ele está presente na
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Uma análise comparativa do horror no cotidiano feminino dos contos [37-51]
banalidade do dia-a-dia. Os seus mistérios visíveis manifestam-se nas
ruas, entre as multidões, nos lares, e são considerados comuns. Para
Raymond Williams, os
[...] eventos que não são vistos como trágicos estão profundamente
inseridos no padrão da nossa própria cultura: guerra, fome, trabalho,
tráfego, política. Não ver conteúdo ético ou marca de ação humana em
tais eventos, ou dizer que não podemos estabelecer um elo entre eles e
um sentido geral, e especialmente em relação a sentidos permanentes e
universais, é admitir uma estranha e específica falência, que nenhuma
retórica sobre a tragédia pode, em última análise, encobrir (2002, p.73).
Na atualidade, muitos são os estudos que tratam da análise das
personagens femininas em obras de autoria tanto masculina como
feminina. Os estudiosos, à sua maneira, expressam o desejo de ouvir
a história daquelas vozes silenciadas e murmurantes e, mediante sua
interlocução com elas, querem saber quem eram essas mulheres, como
sentiam, o que pensavam e como viviam.
A partir de uma leitura comparatista e feminista e utilizando
os contos “A Imitação da Rosa”, de Clarice Lispector, e “O Papel de
Parede Amarelo”, de Charlotte Perkins Gilman, este artigo tem por
objetivo analisar as atitudes de personagens femininas circunscritas aos
limites impostos ao seu cotidiano pela vontade masculina, abordando a
tragicidade tanto na evolução da literatura quanto no papel da mulher na
sociedade ocidental, mostrando, com isso, a fantasia, o horror e o irreal,
impressões de mundos estranhos e ilógicos visíveis nas personagens. Tais
contos foram escolhidos porque as personagens femininas apresentam
padrões comportamentais e perfis que se assemelham.
Assim, este estudo, que configura uma linha de investigação própria
da crítica literária feminina, propõe um olhar crítico das representações
do feminino na cultura ocidental. O estudo busca, também, estabelecer
um elo comparativo entre os contos de Lispector e de Gilman e suas
personagens femininas, sufocadas num mundo tradicionalmente
masculino, onde elas perdem a identidade e passam a vivenciar a
angústia, o medo e a solidão.
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Clarice Lispector, assim como Charlotte P. Gilman, por meio
do enfoque individual dado às suas personagens, confere um valor
metonímico a elas em relação ao homem moderno. Lispector revela
uma época em que o cotidiano torna-se espaço para o trágico. O ser
humano comum é trazido à cena com suas dores e suas alegrias. Do
mesmo modo procede Gilman.
O conto “A Imitação da Rosa” tem várias passagens que chamam
a atenção para o cansaço e a alienação da personagem principal
(Laura), em virtude de suas responsabilidades domésticas. O que mais
impressiona, porém, é o fato de ela se orgulhar de sua exaustão, o que
implica a sua real dedicação às tarefas condizentes à casa e ao marido,
porém, nunca a ela. No conto “O Papel de Parede Amarelo”, sobressai
o horror, numa história de desagregação mental de uma mulher que se
instala numa mansão vitoriana e começa a enxergar padrões difusos e
fantasmagóricos no papel de parede de um quarto da casa.
Pode-se observar, segundo a perspectiva de Bordieu (2002), nesses
contos que a ideologia masculina vale-se de elementos autoritários
para excluir as mulheres da sociedade. Nesse processo, projeta-se um
movimento de violência que reduz a mulher ao espaço do cotidiano/
caseiro, subjugando-a aos anseios masculinos e da sociedade em redor.
Quando a mulher sai dos limites que lhe são impostos pelo ambiente
doméstico, ela é cooptada por diferentes mecanismos, observando-se,
então, uma autodesvalorização da personagem, além da sua submissão
frente à ideologia masculina.
1. Dois contos, duas vidas, duas autoras
Uma análise superficial dos contos “A Imitação da Rosa”, de Clarice
Lispector, e “O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Perkins Gilman,
mostra-nos como a cosmovisão masculina projetou-se violentamente no
universo feminino, submetendo as mulheres a um cotidiano doméstico,
subtraindo-as de seus próprios anseios e roubando-lhes a identidade,
deixando-as expostas a diferentes mecanismos de submissão: solidão,
medo, angústia, constituindo um processo de exclusão.
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Uma análise comparativa do horror no cotidiano feminino dos contos [37-51]
Além de ser a autora de vários poemas e contos, entre eles “O Papel
de Parede Amarelo”, publicado em 1892, Gilman também escreveu
trabalhos de não-ficção em que discute a questão feminina. Sua obra
mais conhecida nessa área é Women and Economics, de 1898, na
qual se argumenta que os papeis sexuais e maternais femininos foram
supervalorizados em detrimento do social e do econômico. No seu
ponto de vista, somente a independência econômica poderia trazer a
liberdade definitiva para a mulher.
Em “A Imitação da Rosa”, de Clarice Lispector, pode-se observar que a
personagem Laura expressa a situação da mulher absorvida pela rotina da vida
doméstica que, por suas limitações, não oferece espaço para uma exploração
das potencialidades mais íntimas e profundas do ser. É desse modo que Clarice
Lispector define, nos seus textos, a situação da mulher na sociedade ocidental:
ela enfatiza o aprisionamento físico-social do ser feminino no lar e insinua
a possibilidade de inauguração de um espaço novo, de libertação, em que
a protagonista busca se encaixar. Ela vai mostrando rachaduras a partir do
momento em que Laura mergulha em um diálogo interior com suas outras
vozes e vontades que tentam romper com aquele padrão.
O conto mostra, num primeiro momento, que Laura passa por uma
readaptação ao ambiente doméstico, pois ela estava afastada de seu
cotidiano familiar após ter sido internada para tratamento psiquiátrico.
Um trecho do conto nos apresenta Laura como uma típica esposa e dona
de casa: “Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar
arrumada e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender
o marido enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço
dado como antigamente” (LISPECTOR, 1977, p. 34).
É notório, no decorrer do conto, o uso do verbo “dever” repetido
em vários trechos da história, indicando como as coisas devem
permanecer no cotidiano da personagem e como ela se anula para
não preocupar o marido.
Durante uma longa espera, Laura procura prender-se obsessivamente
à rotina doméstica. Em um determinado momento da narrativa, enquanto
reflete, a perfeição das rosas que comprara pela manhã lhe é cada vez
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mais sedutora. Observa-se então que ela tenta defender-se do abismo ao
qual estava novamente se entregando: o abismo da perfeição de Cristo
e das rosas. A beleza das rosas torna-se um transtorno. Assim, ela volta
ao estado de transe que fez com que fosse internada.
Lispector trata da monotonia também como uma ameaça à própria
ordem, afinal, a personagem pode ser arrebatada, quase sempre através
do olhar, por algo aparentemente banal, mas capaz de provocar-lhe as
perturbações mais violentas e decisivas:
[...] Como era rica a vida comum, ela que enfim voltara da extravagância.
Até um jarro de flores. Olho-o. Ah! Como são lindas, exclamou seu coração
de repente um pouco infantil. [...]
[...] Olhou-as com atenção. Mas a atenção não podia se manter muito
tempo como simples atenção, transformava-se logo em suave prazer, e
ela não conseguia mais analisar as rosas, era obrigada a interromper-se
com a mesma exclamação de curiosidade submissa: como são lindas!
(LISPECTOR, 1976, p. 57)
Quando Armando, marido de Laura, finalmente chega, encontra
a mulher num pedido de perdão que se confunde com a altivez de
uma solidão quase perfeita Ao final, esse conflito agrava-se e ela sucumbe em meio ao ideal de perfeição que desejava atingir e embarca
no “trem” da insanidade. À luz da sala, “[...] as rosas estavam em toda
a sua completa e tranqüila beleza”. E, Armando, “[...] da porta aberta,
via sua mulher que estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de
novo alerta e tranqüila como num trem. Que já partira” (LISPECTOR,
1976, p. 68-70).
Assim, da abordagem do cotidiano, nasce uma leitura que nega
a hegemonia do real e que revela ser possível o trânsito do homem
entre o real e o sonho, entre os fatos como são e a ilusão criada em
torno destes. A obra clariceana apresenta personagens fragmentadas
e inquietas, em condições propícias para a especulação da relação
entre o eu e seu interior, o eu e o mundo, entre o eu e o outro (cf.
NOLASCO, 2001).
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Muitos eus habitam cada personagem e manifestam-se de diversas
formas, por meio de máscaras, fantasias, loucura. No conto “A Imitação
da Rosa”, Laura foge ao padrão de normalidade e é considerada
desequilibrada, embora as razões do abalo emocional da personagem
não sejam explicadas. O próprio vocábulo loucura é um tabu, por marcar
a transgressão da ordem e da racionalidade. Já tendo sido arrebatada
uma vez, Laura é capturada pela fragilidade e pela beleza das rosas e
pelo desejo do insondável mistério púrpura e da posse do belo.
É na cor vermelha, símbolo fundamental do princípio da vida,
com sua força, cor do fogo e do sangue, na ambivalência simbólica do
vermelho noturno, que simboliza o fogo central do homem e da terra,
o ventre e o atanor1, onde se opera a digestão, o amadurecimento, a
geração ou regeneração do homem, é ali que Laura se (des)encontra. É
o vermelho que se transforma, para simbolizar a imortalidade que vem
devorar Laura. É o vermelho sagrado e secreto, mistério vital escondido
no fundo das trevas e dos oceanos primordiais. Os oceanos Purpúreos
dos gregos e o Mar Vermelho estão ligados ao mesmo simbolismo: eles
representam o ventre, onde morte e vida se transmutam uma na outra.2
Assim, Laura transmuta-se nas rosas vermelhas e místicas.
O mesmo acontece no conto de Gilmam, “O Papel de Parede
Amarelo”, que narra a história de uma personagem levada pelo marido
durante o verão para uma mansão colonial, para se restabelecer
emocionalmente. A personagem sente-se deslocada e começa a fantasiar
coisas. “A colonial mansion, a hereditary state, I would say a haunted
house, and reach the height of romantic felicity – but that would be asking
too much of fate!”3 (GILMAN, 1997, p. 1). É nessa mansão, num quarto
da casa, que um papel de parede amarelo faz Else vislumbrar espectros
fantasmagóricos, enlouquecendo-a.
1
Forno do alquimista.
Cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982; e CIRLOT, 1984.
2
“Um solar colonial, uma herdade, eu diria até uma casa mal-assombrada, para atingirmos o
máximo da felicidade romântica – mas isso seria pedir demais ao destino!” (Tradução nossa).
3
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A personagem, para não se entregar a seus pensamentos angustiantes,
resolve escrever em um diário: “I sometimes fancy that in my condition
if I had less opposition” (é nítida a posição do marido fora do universo
doméstico, e aqui se percebe a solidão); “[...] and more society and
stimulus - but John says the very worst thing I can do is to think about
my condition, and I confess it always makes me feel bad. So I will let it
alone and talk about the house”4 (GILMAN, 1997, p. 2).
Nesse momento, ela fala sobre a casa, o local; lembra do quarto e
de quando começa sua angústia ao olhar para o papel de parede: “[...] I
am afraid, but I don’t care - there is something strange about the house - I
can feel it”5 (p. 2). Por várias vezes, pede a John para trocarem de quarto,
pedidos feitos inutilmente, pois, usando de sua autoridade como marido
e como médico, ele é taxativo e não aceita as argumentações da esposa,
mantendo-a naquele quarto, prisioneira de seus medos. Durante três
meses, ela é obrigada a dormir ali, com aquele (horrendo) papel de parede,
até que, no último dia, John passa a noite na cidade, para resolver alguns
compromissos e a deixa com a empregada. Nessa noite, ela manda que a
criada durma em outro quarto, para ficar sozinha com o papel de parede
e, assim, começam seus delírios: “The color is repellent, almost revolting; a
smouldering unclean yellow, strangely faded by the slow-turning sunlight”6
(p. 3). No outro dia, depois de imaginar que conseguiu derrotar o papel
de parede amarelo, resolve trancar-se no quarto e joga “[...] the key down
into the front path”7 (p. 14), até que o marido apareça.
4
“Às vezes, imagino como estaria se tivesse menos oposição e mais companhia e estímulo
– apesar de John dizer que a pior coisa que posso fazer é ficar pensando em minha
condição – confesso que isso sempre me deixa mal. Então, vou esquecer e contar sobre
a casa” (Tradução nossa).
"[...] eu tenho medo, mas não me preocupo - há algo estranho na casa - eu posso sentir
isto" (Tradução nossa).
5
“A cor é repelente, revoltante; um amarelo sujo queimando sem chama, estranhamente
enfraquecido pela luz solar” (Tradução nossa).
6
“[...] a chave lá embaixo, na parte da frente” (Tradução nossa).
7
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Uma análise comparativa do horror no cotidiano feminino dos contos [37-51]
No interior do quarto, em delírio, observa-se a submissão da mulher
contida em seu inconsciente: “I don’t like to look out of the windows even there are so many of those creeping women, and they creep so fast. I wonder
if they all come out of that wallpaper as I did?”8 (GILMAN, 1997, p. 14).
2. Dois contos: o mesmo desfecho?
Na busca do ininteligível, com palavras incompreensíveis, as
personagens dos dois contos aproximam-se do arquétipo do louco,
pois ficam à margem da sociedade, com suas regras de normalidade e
do que não é. Elas passam pelo trágico e encontram-se em situações
nas quais todas as regras rompem-se e a realidade social anula-se (cf.
MAFFESOLI, 2003).
A rosa e o papel (ambos frágeis objetos), o vermelho e o amarelo
(cores aparentemente vivas) são os elementos desencadeadores da
loucura das personagens Laura e Else, em face da opressão em que vivem.
O amarelo representa a terra fértil, o sol, a cor das espigas maduras do
verão, que também anuncia a chegada do outono, quando a terra se
desnuda, perdendo seu manto verde. Ela é então a anunciadora do
declínio, da velhice, da aproximação da morte. Para Else, o amarelo do
papel de parede anuncia o (seu) fim e torna-se o substituto do negro,
do labirinto no qual ela se integra e se perde.
E o vermelho, símbolo de uma renascença mística, está também
presente na vida, na cruz, no túmulo. Se ele simboliza a vida também
pode simbolizar a morte, como o foi para Laura.
O vermelho e o amarelo têm, então, dupla incidência: amor, mas
morte; dia, mas noite; proteção, mas sufocamento; defesa, mas prisão.
Na parede e na flor estão símbolos do elemento feminino: na fragilidade
do papel e da rosa, o vermelho e o amarelo indicam o vazio, num plano
de morte com o qual Else e Laura identificam-se.
“Eu não gosto nem de olhar pela janela – há tantas mulheres rastejando, e rastejam tão
rápido. Será que todas elas saíram do papel de parede como eu?” (Tradução nossa).
8
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É patente que as personagens estão no mundo do sensível, e não
do racional, do desencontro e não do encontro, da sombra e não da luz.
Nota-se, então, que os dois contos contemplam a história de duas mulheres
que vivenciam o absurdo, a fantasia, o horror, o irreal, impressões de
mundos estranhos, ilógicos, frutos da violência introduzida por uma ordem
masculina, postas em narrativas que mostram a tão presente e constante
realidade do feminino. E, a todo o momento, elas têm o mesmo intuito:
resgatar a própria sanidade.
Mais uma vez, a transgressão está em a personagem desejar algo
bom e não se considerar merecedora. A felicidade de Laura e de Else
é clandestina. Elas não se consideram habilitadas a imitar o belo e a
vida que a natureza lhes apresenta nos instantes mais inesperados. A
simplicidade de apenas existir como são torna-se um grande desafio e
uma grande tortura. Uma rosa é uma rosa, um papel de parede é um
papel de parede, e isso fascina Laura e Else, por elas não saberem ao
menos quem ou o que elas são.
Assim, o trágico está, além da decepção com o outro, no fato
de não se saber lidar com a tensão causada pelo inesperado nos
relacionamentos; o trágico está no sentimento de abandono vivido por
Laura e Else ao perceberem que o outro não é um porto seguro; o trágico
está no fato de ambas se desconhecerem. Elas não concebem as muitas
facetas do ser humano, apresentando um senso de moralidade bastante
forte, entretanto, incompatível com sua natureza. Por isso, entram em
crise e não encontram soluções além de atos desesperados.
Devido à instabilidade das personagens e das circunstâncias
que as cercam, a felicidade é transitória: só se é feliz por um breve
momento. Na verdade, a felicidade ocorre somente enquanto se ignora
algo desconcertante. Na revelação de tal fato, a tranquilidade desfazse acompanhada de decepção e de dor. O conforto e a segurança
passam a mal-estar em segundos. Nos textos de Gilman e de Lispector,
a felicidade está na possibilidade de as personagens tomarem decisões,
de conhecerem suas naturezas. Está mesclada à dor, mas não é menos
intensa e menos esperada.
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Uma análise comparativa do horror no cotidiano feminino dos contos [37-51]
Todas essas imagens traduzem conflitos de forças que manifestam
os níveis de existência do ser humano: o vermelho representando forças
noturnas, negativas e involutivas, e o amarelo, a força do sol, do ouro,
que queima e que leva o homem à destruição.
No conto de Lispector, quando Laura ‘enlouquece’ e torna-se superhumana, rompendo os limites impostos por sua condição humana, ela
continua a sentir o amor e a compaixão pelo outro. O mesmo acontece
com Else no conto de Gilman.
[...] a fizera subitamente super-humana em relação a um marido cansado
e perplexo. [...] o que dava a ela uma piedade pungente, sim, mesmo
dentro de sua perfeição acordada, a piedade e o amor, ela super-humana
e tranqüila no seu isolamento brilhante (LISPECTOR, 1976, p. 57-60).
Dear John! He loves me very dearly, and hates to have me sick. [...] And
dear John gathered me up in his arms, and just carried me upstairs and
laid me on the bed, and sat by me and read to me till it tired my head
(GILMAN, 1997, p. 7).9
Assim, as escritoras desenvolvem em suas obras a tragicidade como
consequência da falta de apoio e de sustentação que as personagens
vivenciam, pois habitam um mundo onde as regras de convívio
oprimem e não auxiliam; um mundo onde não é possível manter
certezas. Experimentam, portanto, situações conflitantes ao perceberem
a multiplicidade dos outros e a sua própria. A decepção é constante e
direciona os atos para o inesperado e as personagens caminham de um
extremo a outro em constante conflito. As personagens buscam umas
às outras e, para tanto, são muitas as indagações feitas e são muitos os
limites ultrapassados.
“Querido John! Ele me ama muito, e odeia me ver doente. [...] O querido John me
recolheu nos braços, me levou escada acima, me pôs na cama, e leu para mim até que
eu me cansasse” (Tradução nossa).
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Considerações finais sobre os contos
Se existe uma busca por reconstruir o indivíduo em Clarice
Lispector e por destruir quem ele se tornou, sem uma perspectiva
de reconstrução, em Charlotte Gilman tais fatores caminham para
o indagar da existência. O sofrimento das personagens inicia-se no
momento da revelação de mundos próximos e interiores, porém
desconhecidos, e prossegue com a liberdade sem perspectiva de
futuro que elas enfrentam.
Lispector e Gilman discorrem sobre questões inquietantes e inerentes
à natureza humana e sobre a dimensão que essas possuem em uma
sociedade masculina. São autoras que expõem as realidades sufocadas,
camufladas e mesmo proibidas das personagens, demonstrando com isso
o grau de sofrimento oculto pela aparência da vida cotidiana.
Na personagem Laura, por exemplo, predomina o marrom, uma
cor neutra distribuída pelos cabelos, olhos e vestido (aqui, apenas
a gola é creme). Essa cor compõe um perfil impessoal que reforça
a insignificância de Laura e a sufoca. “Os olhos marrons [...] a pele
morena e suave, tudo dava a seu rosto já não muito moço um ar
modesto de mulher. [...] E poria o vestido marrom com gola de
renda creme” (LISPECTOR, 1977, p. 57). Percebe-se que Lispector,
em certo momento, vale-se também da expressão castanha para
defini-la: “[...] castanha como obscuramente achava que uma esposa
devia ser” (p. 57).
Gilman escreve sobre as relações conflituosas, os obstáculos e as
dificuldades que se repetem constantemente nos relacionamentos e
revela por meio de temas como dominação, impotência e opressão
aspectos negados da natureza humana. A autora aborda principalmente
o trajeto errante e fatalista da personagem Else. Ela apresenta ora seres
atados às condutas sociais e em crise pela dificuldade de lidar com
as próprias vontades, ora seres que burlam as normas sem maiores
conflitos e desmoronam as verdades alheias. Na obra da autora, o
homem é o grande antagonista / opressor da mulher, seja em conflitos
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internos, seja em dilemas interpessoais: “John does not know how
much I really suffer. He knows there is no reason to suffer, and that
satisfies him”10 (GILMAN, 1997, p. 3).
A obra de Clarice Lispector questiona verdades tidas como absolutas,
estando em sintonia com o século (XX) em que foi produzida. As
personagens anseiam por respostas: quem sou eu? O que sou eu? São
indagações angustiantes para eus que tiveram suas verdades abaladas
ou mesmo destruídas (cf. SÁ, 2004).
As personagens passam de respostas a perguntas que não conseguem
responder. Elas constituem o mistério a ser decifrado. O desafio é
encontrar o eu escondido dentro de si. Lispector escreve sobre a relação
conflituosa que a personagem estabelece primeiramente consigo mesma
e depois com o outro.
Todavia, percebe-se, nitidamente, que as autoras escrevem sobre e
a partir dos momentos em que a visão das personagens sobre o mundo é
posta em dúvida. Por isso, entrelaçam seus textos a experiências trágicas,
atualizando, ao mesmo tempo, pensamentos e sentimentos de acordo
com novas concepções do trágico associadas à vida moderna. Esse olhar
diferenciado é motivado por fatores de sua época: sentimento de solidão,
fragilidade, desamparo e finitude.
Nos contos, pode-se observar que a ideologia masculina vale-se
de elementos autoritários para excluir as mulheres da sociedade. Nesse
processo, projetou-se um movimento de violência que reduziu a mulher
ao espaço do cotidiano/caseiro.
Os textos analisados dialogam entre si, à medida que apresentam
semelhanças nos pontos de vistas que desenvolvem. Cada citação feita
visa a ressaltar como se manifesta a tragicidade nos contos analisados,
juntamente com todas as peculiaridades que possam existir associadas
ao homem moderno e às suas indagações. As leituras partem das obras
10
“John não sabe quanto eu realmente sofro. Ele acha que não há razão para eu sofrer,
e isso o satisfaz” (Tradução nossa).
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literárias e retornam a elas. Afinal, as narrativas desenvolvem formas
paralelas ao apresentarem a relação do homem com o outro, com o
mundo e com a existência. Por isso, não é possível eleger uma única
teoria que abarque as muitas possibilidades de leitura sobre a tragicidade
presentes nas obras das autoras.
Por conseguinte, não são eleitos conceitos. O enfoque recai sobre
as visões de tragicidade expostas nos escritos gilmanianos e clariceanos
e, a partir de então, são estabelecidos diálogos com textos de alguns
pesquisadores que fizeram do trágico parte de seus estudos.
As experiências das personagens estão interligadas a um
arrebatamento causado por um mergulho em seus interiores, pela
descoberta de suas naturezas e pela realidade do sofrimento, do
trágico em suas vidas, e suas indagações são elementos centrais nas
obras analisadas, pois revelam a procura do ser humano moderno por
um lugar para si. O desenrolar dessa busca e os eventuais encontros
causam rupturas e situações decisivas para as personagens nos contos
de Lispector e de Gilman.
O que está em evidência é o ser humano moderno sem marcas
de glória e de superpoderes. A condição heróica não está nos grandes
feitos, mas na simplicidade de viver. Tal aspecto é observado na obra de
Gilman e de Lispector. As autoras trazem para o plano do cotidiano e
para a frágil e limitada condição humana um novo conceito de heroísmo,
mostrando as dificuldades do ser humano comum diante das escolhas
do dia-a-dia e das constantes revelações por que passa. Ambas criam
personagens humanas que são desnudadas linha por linha de suas capas
sociais, para surgir o que mais as atormenta e fascina. Um aspecto em
comum nas autoras é que o ser humano encontra-se desarmado diante
de si mesmo e diante das fatalidades.
O cotidiano das personagens é o espaço em que percepções do
mundo, associadas às inquietações da modernidade, são suscitadas. O
que abala as personagens de Gilman e de Lispector é a inautenticidade
dos conceitos presentes no processo de autodescoberta e de confronto
do eu com o outro, com o mundo e consigo mesmas.
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Uma análise comparativa do horror no cotidiano feminino dos contos [37-51]
Com efeito, o estudo dos contos de Lispector e de Gilman apontanos muitos dos papeis que a sociedade atribui à condição de ser mulher
e, paralelamente, às escolhas que ela faz (ou deixa de fazer), quanto aos
valores que significam e sustentam o ‘ser feminino’.
Um dos dados de maior relevância da análise é o que se relaciona
à importância do fazer individual do sujeito feminino na construção
do seu ‘ser’. Desse modo, ainda que o sujeito masculino possua papel
fundamental, propondo ou impondo valores, a escolha sempre é da
própria pessoa e, sobretudo, essencialmente livre.
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Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.
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Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
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Luis Rodriguez Araya [13-23]
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Meu amigo Marcel Proust romance e Literatura Comparada [53-73]
Meu amigo Marcel Proust Romance e
Literatura Comparada
Meu amigo Marcel Proust Romance and Comparative
Literature
Kátria Gabrieli Fagundes
(PPMEL/UFMS)
Resumo: O texto grossmanniano Meu amigo Marcel Proust Romance é analisado
neste artigo sob a ótica de estudiosos da Literatura Comparada.
Palavras-Chave: Judith Grossmann. Literatura Comparada.
Abstract: The Grossmann’s novel Meu amigo Marcel Proust Romance is analyzed
on this work according to Comparative Literature.
Keywords: Judith Grossmann. Comparative Literature.
O romance pós-moderno de Judith Grossmann é, desde seu título,
um diálogo com o escritor moderno Marcel Proust. A maneira como ela
o chama de meu amigo induz o leitor a pensar que, de alguma maneira,
essa amizade perdura por entre os tempos, partindo da modernidade até
a contemporaneidade. E Grossmann não apenas cita Proust em sua obra,
mas vai além dos tempos, com Pound, Stendhal, Virginia Woolf, Balzac,
Kafka, Borges e mesmo alguns brasileiros modernistas, como Cecília
Meireles e Carlos Drummond de Andrade. Essa amizade estende-se
por várias gerações de poetas e estudiosos que, como Proust, deixaram
seu nome gravado na história das letras e, principalmente, na história
da leitora Grossmann.
Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
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Kátria Gabrieli Fagundes [53-73]
A riqueza presente no texto está muito além desses diálogos e
menções feitas pela narradora / autora. Ela introduz personagens reais e
importantes da história nas suas próprias falas, por vezes apropriando-se
de algumas, como se quisesse mostrar quão imersa está em tudo que
faz parte da história da literatura e daquilo que moldou a literatura
como ela é até hoje. A narradora / autora, consciente de sua posição e
da complexidade do mundo literário à sua volta, aproveita-se dele para
narrar seu romance complicado e inconsistente com um personagem
que, assim como ela, ama os livros e o universo de leitura, está sempre
presente em lançamentos literários e em debates cotidianos em torno
desse assunto tão inesgotável que é a literatura.
A literatura pós-moderna está imbricada numa grande discussão
sobre quais parâmetros a literatura deve adotar, se há realmente regras a
serem seguidas, quais os modelos que merecem ser estudados ou ainda se
há modelos, se ela representa uma ruptura com a modernidade e outros
importantes momentos literários, ou se ela é simplesmente um descanso
literário. Pode ser considerada ainda um momento de transição e não
necessariamente uma etapa pós moderna. É ainda descrita como uma
fase da literatura com menos preconceitos, mais aberta às novidades na
produção literária e também mais consciente da importância de tudo
que a antecedeu, diferentemente do que pensam muitos críticos que
a rechaçam. É nesse ambiente literário que se encontra a narrativa de
Meu Amigo Marcel Proust Romance.
Essa narrativa, construída por meio da memória da narradora, pode
ser olhada por dois vieses: o da memória bergsoniana, que apresenta o
fluxo de consciência e os fatos narrados à medida que são lembrados
e a memória da tradição que a antecede e representa o diálogo de
Grossmann com a tradição modernista, especialmente a proustiana. A
partir de um espaço pós-moderno, o shopping center, são narradas cenas
do desfazer de antigos amores, o desabrochar de um novo, verdadeiro e
permanente amor – com o personagem Victor –, encontros e desencontros
e momentos de reflexão acerca de fatos, pessoas por quem a narradora
passa, pessoas que deixam sua marca em sua vida, a lembrança dos
pais e de tudo que com eles aprendeu e a convivência conflituosa com
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Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
Meu amigo Marcel Proust romance e Literatura Comparada [53-73]
um adolescente, sobrinho de Victor. Tudo isso leva o leitor a pensar na
complexidade do romance e na capacidade memorialística da escritora
para que nenhum fato relevante e importante para construção da história
deixe de ser relatado. Grossmann sabiamente invoca Proust dentro da
narrativa para que dele venha à consistência necessária para fortalecer
a pós-modernidade, que é fragmentada e solúvel.
Pelas palavras de Eneida Maria de Souza, a narrativa pós-moderna
é “[...] construída com fragmentos de culturas diversas e composta
por personagens cuja sina são o deslocamento, o embaralhamento de
identidades e a crise social, sintomas da falta de representatividade
de classe e do apagamento do sentido de nação” (2002, p.88). Essa
afirmativa pode ser adequada ao texto de Grossmann, que possui todos
os aspectos citados por Souza, incluindo a falta do sentido de nação,
já que a narradora grossmanniana, cujos pais nasceram na Rússia, foi
‘produzida’ na Itália, em Veneza, durante a lua-de-mel dos seus pais, e
veio a nascer no Brasil, no Rio de Janeiro. Ela retrata essa multiculturação,
que na verdade para a narradora grossmanniana representa cultura
nenhuma, e a faz querer buscar nesses vários espaços alguma coisa que
seja concreta e que cesse nela a falta desse elemento nacional:
São várias as minhas concepções, por isso tenho saudades sem fim de tantos
lugares e de tantas línguas. Não há escapar ao que até orgânico é. Minha
vida toda consiste em ter saudades da Rússia, da Romênia e de Veneza. O
idioma russo, a paisagem russa, o povo russo, as canções russas, os contos
de fada russos, a história russa. Não posso ver um rosto, uma fisionomia
daquelas, uma cabeleira, uma fita, um trem numa estação, com aquele
ritmo especial de chegada e de partida que têm todos os trens russos, sem
que desate em lágrimas ou em risos, toco no que é meu, se vim de lá, sem
que haja voltado. Voltar, tudo recuperar, como se nunca houvesse saído
de lá, e depois vir para cá. (GROSSMANN, 1997, p. 158-159)
Na próxima passagem do romance, a narradora demonstra seus
devaneios e saudades dos lugares que fizeram parte de um passado que
não conheceu, mas que considera também seu, já que seus pais trilharam
terras sagradas e foram as lembranças da infância o que sobrou deles. E
como que transportada para os lugares e seus costumes, ela narra:
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Kátria Gabrieli Fagundes [53-73]
Briceva... Veneza... Brasil... esta ligação é única em sua singularidade,
e foram corpos, os dos meus pais, aos quais adicionaram o meu, que a
tornaram possível, movidos pelo sonho irrestrito de que o poderiam, sonho
que sem dúvida é a mim que cabe leva-los adiante, e se eu hesitar, dormir
no caminho, as uvas se derrubarão do prato, os ovos se quebrarão no cesto,
o vinho se derramará sobre a escada ou sobre a toalha de renda... e foi
assim que amei a habilidade daquelas mãos, segurando qualquer objeto,
ou virando com matemática precisão as páginas de um livro.
Certa manhã acordei e não havia mais um só deles. Era como se se
estilhaçasse o mais fino espelho bisotado, do mais fino cristal, varando
ainda, no momento de se partir, com uma pontiaguda lasca, meu coração.
(GROSSMANN, 1997, p. 166-167)
Souza continua a afirmar que os escritores contemporâneos
possuem uma memória que muito se distancia da transcrição da memória
feita por escritores que descrevem o que veem, de forma poética, e que
são fiéis também aos seus próprios sentimentos com relação à cena ou
ao objeto narrado. Pode-se dizer que sua crítica se foca nos escritores
que esquecem ou deixam de lado a originalidade para narrar como os
filmes hollywoodianos, que seduzem momentaneamente o receptor de
tais imagens, que são “[...] estranhas ao paradigma literário tradicional
ou à memória proustiana” (SOUZA, 2002, p. 86).
Grossmann, provavelmente tentando evitar a sedução passageira
oferecida pela pós-modernidade, de produzir muita coisa com pouco
valor ou de deixar de lado a fidelidade com sua memória visual e
emocional, foge à regra ao narrar uma história tão complexa que prende
o leitor em suas garras. Ela segue o estilo proustiano de narrar sem deixar
de se aproveitar da complexidade que seu tempo possui e o grande
leque de citações que é possível fazer, utilizando-se da intertextualidade
teorizada por Julia Kristeva.
Kristeva afirma que todo texto se constrói por cima de outros textos,
a partir de apropriações e de citações, como uma forma de transformar e,
ao mesmo tempo, negar o outro. Diz ainda que as fontes não são o que
mais importa para esses textos que as utilizaram, mas a maneira como
a voz do outro foi transformada e agregada ao novo texto, sob um novo
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Meu amigo Marcel Proust romance e Literatura Comparada [53-73]
olhar, produzindo assim um diálogo e confronto com o outro, que deixa
de ser o mais importante para ser um colaborador. Assim Grossmann
produz uma literatura com os princípios de Proust, mas com um olhar
próprio e algumas peculiaridades que somente uma leitora perspicaz
poderia produzir.
Seguindo essa linha de pensamento, sem deixar de dar os devidos
créditos aos autores das falas, Grossmann apropria-se tão bem da fala
do outro que se tem a impressão de ser essa fala mais parte do texto
grossmanniano que do texto original. Como no trecho no qual ela
relembra um antigo amor, Moshe, e contextualiza partes do poema de
Carlos Drummond de Andrade ao aludir à responsabilidade do desfecho
do relacionamento:
O momento em que Moshe me tomou como testemunho do fato de
que havia podido frear, tornando-me responsável. Como nos versos de
CDA...”por todo o sempre e antes do nunca sou, responsável, responsável,
responsável. Como as pedras são responsáveis, e os anjos, principalmente
os anjos, são responsáveis”, que, se quiser, você procura freneticamente na
obra inteira, como instruiu Marcel que se faça com versos ouvidos numa
reunião, ir para casa, procurar, como fiz, recortar, lendo dez ... vinte vezes
tudo. E agora, além de Carlos, Marcel. Citação, autoral a citação mesmo,
jóia rara na vitrine. (GROSSMANN, 1997, p. 177)
Críticos brasileiros de grande peso para os estudos de literatura, como
Antonio Candido, Silviano Santiago, Tânia Carvalhal, Eneida Maria de
Souza, Roberto Schwarz e Leyla Perrone-Moisés, acreditam ser a literatura
brasileira ainda muito influenciada pela literatura estrangeira, não somente
de forma negativa, mas, e principalmente, de forma positiva.
Antonio Candido afirma que “[...] estudar literatura brasileira é
estudar literatura comparada” (1993 p. 211), já que os textos literários
brasileiros sempre estiveram vinculados aos textos estrangeiros,
principalmente europeus e, como para reforçar a importância da
literatura brasileira dentro da literatura mundial, esses textos eram – e são
ainda – carregados de citações e de referências. Não é para menos, já
que a crítica brasileira analisa os textos produzidos na literatura nacional
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Kátria Gabrieli Fagundes [53-73]
paralelamente aos textos produzidos pela Europa. Entre poetas clássicos e
românticos, as referências e as citações eram feitas de forma diferente: nos
primeiros, elas apareciam explicitamente, fundidas pelo próprio discurso
do autor – Grossmann pode ser encaixada aqui – e os segundos mantinham
certa individualidade e colocavam as referências como epígrafes, sem
jamais deixar de colocar ali a voz do outro.
Sendo assim, mantém-se a afirmação de que o romance de Judith
Grossmann Meu Amigo Marcel Proust Romance é literatura comparada, pois o
romance logo no título invoca a tradição proustiana, ou francesa, de literatura.
Nesse diálogo aparentemente despretensioso e informal que a narradora
pretende ter com a tradição são inseridos personagens, autores e escritores
pertencentes a gerações anteriores à geração pós-moderna e para as gerações
que antecederam essas gerações, sucessivamente. A questão das citações já
percorreu um vasto campo literário entre os próprios escritores que hoje são
exemplos para os países onde a literatura ainda está engatinhando:
E como se aproxima a hora da abertura, vejo através dos vidros, as sacerdotisas
do Shopping, geradas pelas páginas de Proust, embora no seu tempo não
houvesse Shopping, as páginas dele, geradas pelas de Balzac, Stendhal e
Flaubert, em cujo tempo, por sua vez, não havia aeroplano, e assim por diante,
descendo hieráticas como Sarah Bernhardt pelas escadas rolantes, em seus
uniformes de ótimo design, [...] (GROSSMANN, 1997, p. 98)
A citação, explícita ou não, não deve ser vista negativamente, porém
como uma forma de os autores que se apropriam das falas de outros
demonstrarem respeito e reconhecimento a uma cultura antecedente
que não pode e não deve ser esquecida. Dentre os diversos estilos de
apropriação do texto alheio, a antropofagia, proposta inicialmente por
Oswald de Andrade, foi para alguns críticos a teoria que mais compreendeu
a necessidade de expressar o outro e a leitura feita do outro, o que permitiria
a “[...] abertura e a receptividade para o alheio” (PERRONE-MOISÉS, 1990,
p. 95). A afirmação de Perrone-Moisés significa que as obras terminavam por
ser devoradas criticamente, e não compulsivamente, e que eram extraídas de
textos modelos informações e exemplos, que bem utilizados, contribuiriam
para e enriquecimento da ‘nova’ obra.
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Meu amigo Marcel Proust romance e Literatura Comparada [53-73]
A questão da influência exercida por produções textuais importantes
era vista meramente como usurpação, ou seja, a disseminação de tal
prática era considerada, por críticos que defendem uma literatura
estritamente nacional, algo inadmissível, até pecaminoso. Já aqueles
menos radicais sabiam quão importante seria essa prática para o
crescimento intelectual da própria literatura nacional.
Grossmann não citou todos os textos de Proust, nem todos
os autores modernos e seus personagens. Ela o fez como recorte,
minuciosamente pensado, e que para ela era importante, adequado e
necessário para compor sua obra, pois “[...] para se chegar ao recorte
é necessário, primeiramente, compreender o olhar como o ato que
imprime um objetivo, uma dimensão humana na visão” (MENEGAZZO,
2004, p. 65). Nos trechos abaixo, quando a narradora refere-se à fala
de Jorge de Lima, também ‘devorador’ dos textos proustianos, com
naturalidade e sem destaques para o nome dele, demonstra total
apropriação da fala de Lima, que ela não está destacada no texto e,
portanto, é parte dele. A frase, que é utilizada três vezes no texto,
aparece quando a narradora precisa de forças para se controlar em
diversas situações ou quando ela sente necessidade de antecipar seus
atos ou agir por impulso:
O céu jamais me dê esta por pouco incontrolável tentação funesta. Victor
transpira um pouco na fronte, seus cabelos levemente cacheados, dos
quais duvidei em tempos passados, mas não duvido mais, estão um pouco
úmidos e sua boca sensual, um pouco comprimida, quase irresistível [...].
(GROSSMANN, 1997, p. 18)
[...] e o céu jamais me dê a tentação funesta de me antecipar e quebrar o
ritmo langoroso de Amor, apropriar-me de funções que não são minhas,
mas dele, e se dele não são, minhas é que também não são, o único que
me cabe é preservar-me, como um faquir, [...]. (GROSSMANN, 1997, p.
46-47)
E que o céu jamais me dê a tentação funesta de dizer não ao outro, de
torcer suas palavras, de não adivinhar de pronto o que ele quer, de lhe
esmagar com uma negativa, como uma serpente, o que anseia por me
comunicar. (GROSSMANN, 1997, p. 148)
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Jorge Luis Borges afirma que cada autor seleciona os seus precursores
e esse fato auxilia nas diferentes percepções que se tem dos autores,
já que cada escritor representa seu autor-referência por um ângulo
diferente e particular, na maneira como a tradição, constantemente
em movimento, revê seus conceitos, deixando de lado algumas para
importar-se com outras afirmativas. Por isso não se pode pensar a tradição
como estática, nem mesmo no cânone como algo estático – mesmo que
para alguns críticos o cânone seja indiscutível. Autores vêm e vão, cada
um com sua importância para uma determinada época, um determinado
grupo de estudiosos ou para um país, assim como as teorias. Mesmo
que o ‘objeto cobiçado’ provenha em grande parte da Europa, há que
se levar em conta a importância de escritores brasileiros que, como
Grossmann, reconhecem a importância do seu lugar de origem e tenta
às vezes onipresentemente retratar o lugar de onde fala. A narradora de
Grossmann, mesmo em busca do seu lugar, assume suas raízes: “Foi o
melhor de tudo, ir embarcando, sem dar nenhum pensamento a fugir,
aceitando as possibilidades dele, mesmo porque morávamos em cidades
diferentes, ele com suas duas cidades, SP/RJ, e eu com as minhas duas,
BA/RJ”. ( GROSSMANN, 1997, p. 87)
A literatura mantém-se viva pela sincronia entre escrita e leitura.
Enquanto se produzem textos e eles são lidos, tanto por leitores comuns
como por escritores e críticos, a literatura mantém sua história acordada
aos olhos do mundo. Os intertextos tendem a transformar os textos em
algo mais rico, com mais bagagem e consistência, já que eles trazem
consigo outras histórias, outros momentos literários e parte de cada
autor. Indo muito além de “[...] uma seqüência simples de fontes puras
e influências degradadas” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 99), a viagem
segue entre mundos e visões de mundo diferenciadas umas das outras
que só tendem a acrescentar e a diminuir as barreiras entre a literatura
europeia e a brasileira, por exemplo.
Ao ler um trecho do texto de Grossmann, que parece mais uma carta
de últimos desejos – porém não é – na qual são citados diversos títulos e
autores que ela gostaria que estivessem presentes no seu velório, nota-se
a imensa cumplicidade entre a narradora e os textos literários, que ela
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Meu amigo Marcel Proust romance e Literatura Comparada [53-73]
deseja ter como companhia até mesmo quando não estiver mais neste
mundo. Esse entrosamento com a literatura e o vasto conhecimento de
obras é descrito no trecho a seguir:
Em meu dia mais intenso, quando me levarem saudosos (sei que deixarei
imensas saudades e é gostoso saber, vivi para sabê-lo), gostaria de um recital
de poemas, Antonia Herrera dirá “Aluna”, de Cecília Meireles, “Conservote o meu sorriso/para, quando me encontrares,/veres que ainda tenho uns
ares/de aluna do paraíso...”, Evelina Hoisel, as três primeiras estrofes do
“Canto IX” da Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, “Estavas, linda Inês,
nunca em sossego”, Lígia Telles, “Retrato de uma criança com uma flor
na mão”, de Cecília Meireles, “Quem lhe ensinara o sorriso/e a graça de
assim ficar/ com as luzes do paraíso/ sustentadas no olhar?”,[...] Celina
Scheinowitz, o trecho final da morte de Bergotte, em A prisioneira, de
Marcel Proust, “Morto para sempre? Quem poderá dizer? Paulo Dourado,
o parágrafo final de Outros trópicos, de Judith Grossmann, “Maier, todos
os ventos soluçam onde se diz Maier” [...].( GROSSMANN, 1997, p. 76)
O artista não precisa inventar coisas novas, buscar novas teorias e
novos objetos, contudo precisa “[...] usar as comuns e, ao transformá-las
em poesia, exprimir sentimentos que não figuram de todo nas emoções
originais” (ELIOT, 1997, p. 33). Pode-se repassar essa ideia aos textos
com citações, referências e apropriações de falas, sob esse olhar positivo
descrito por Eliot, como uma nova produção acerca de um assunto que
já foi falado. A intenção não é falar de novo, mas falar de um jeito novo.
A narrativa grossmanniana apresenta um assunto largamente discutido e
escrito, a memória, mas ela fala sobre a memória de um jeito inovador e
particular. Aí está um artista que sabe utilizar sua leitura e transformá-la
em algo inteligente, atraente e diferente do que já existe. Na passagem
abaixo, a narradora tem sua memória despertada por um ato banal,
porém que demonstra a atenção com a qual ela escreve e o sentimento
sincero com esta e todas as outras lembranças guardadas à espera de
um flash que as despertará:
E não falemos, para evitar atrasos, o que foi a véspera deste epitalâmio, que
transcorre aos pés desta estante baixa, diante da qual estou sentada numa cadeira
de balanço e Victor num banquinho baixo, literalmente aos meus pés. Não é
Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
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Kátria Gabrieli Fagundes [53-73]
uma cena nova em minha vida, era assim, numa posição inversa, também ao
lado de livros, que eu, menina, com minhas tranças de Rapunzel, me sentava
aos pés dos meus idolatrados pais, que além do mérito de me terem dado a
vida, possuem o de haver me ensinado os primeiros e corretos passos do amor
de uma mulher por um homem. (GROSSMANN, 1997, p. 19)
O Brasil ainda vê a literatura nacional enclausurada pelos meios
de comunicação e pela resistência para que isso aconteça. Não só na
divulgação de literatura dentro do País, mas também na divulgação restrita
fora dele. É muito mais fácil ver textos traduzidos de outras línguas para
a língua portuguesa que textos brasileiros traduzidos para o espanhol,
francês ou inglês, por exemplo. Há grande resistência em aceitar que
a literatura brasileira – e a latino-americana – evoluiu e merece ganhar
espaço na literatura mundial.
Retomado nas discussões de Tânia Carvalhal, o termo goethiano
Weltliteratur, que propunha um maior entrosamento entre as literaturas
de todo o mundo, partindo das traduções e das relações interliterárias
que seriam estabelecidas, seria bastante favorável para o reconhecimento
de literaturas deixadas de lado, não só as latino-americanas, porém
tantas outras excluídas. Isso se a teoria passasse para a prática. Críticos
estrangeiros, como Mukarovský, reconhecendo a dependência entre as
literaturas – geralmente em relação às europeias – acreditam que pela
primeira a literatura estava sendo pensada no contexto universal.
Se assim fosse, a dependência cultural do Brasil com países como
a França deixaria de ser uma barreira e essas literaturas dialogariam
de igual para igual. Mas não é tão simples mudar alguns pensamentos
arraigados com relação à hierarquia que ‘deve’ ser seguida para uma
‘boa’ formação de leitores e de literaturas. Ainda assim, não é possível
generalizar a posição crítica de todos os escritores renomados, já que
muitos reconhecem a existência significativa de autores que fazem parte
e são também responsáveis pelo crescimento intelectual mundial.
Judith Grossmann, também preocupada com questões de dependência,
cópia, referências e exaltação da cultura europeia que nos foi ‘cedida’ desde
a colonização, não deixa de citar na sua obra pessoas importantes dentro
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Meu amigo Marcel Proust romance e Literatura Comparada [53-73]
da literatura brasileira. Claro que não sem fazer sua seleção pessoal de quais
autores, no momento da escrita de Meu Amigo Marcel Proust Romance,
foram importantes para o enriquecimento cultural e para o diálogo sincrônico
estabelecido dentro da história. Cecília Meireles, Fernando Pessoa e Carlos
Drummond de Andrade representam a literatura brasileira; Dostoievski e
Tolstoi representam a literatura russa; Flaubert, Proust e Mallarmé são a
literatura francesa. Muitos outros foram adequados magistralmente dentro
dessa história onde o jogo citacional está presente:
[...] Fernando Pessoa trabalhando/ escrevendo no Café Irmãos Unidos,
mutatis mutandis, eu menina livre para sempre, sofrendo de claustrofobia
de uma lar, que, ao contrário dele ... o “lar que nunca terei!” [...]
(GROSSMANN, 1997, p. 43)
No pulso, ele tem uma fitinha já esgarçada e defensiva, é esta a grande
diferença entre mim e ele, não quero defender-me, quero incorrer em
todos os riscos, ao meu amor tão feliz entediaria ter outros cuidados. E
ademais, reflito, se Matilde e Stendhal se sentassem seguidamente ao pé de
livros, aí é que não haveria livro nenhum. (GROSSMANN, 1997, p. 25)
Mas sei também, quando me transmudo, fazer muito ruído antes de me
pôr novamente quieta, como uma bufão de Dostoievski, segundo o leu
Proust. (GROSSMANN, 1997, p. 138)
Fica claro durante toda obra grossmanniana o respeito com a cultura
e a literatura que a antecedeu, independentemente se elas são brasileiras,
francesas, espanholas, alemãs ou russas. Todas elas, para a autora, estão
no mesmo patamar e merecem a mesma dedicação crítica durante a
leitura – da sua obra e das obras produzidas por elas. Com relação à
própria autora Judith Grossmann, a narradora grossmanniana demonstra
conhecer e reconhecer sua importância quando da passagem em que fala
sobre os textos que gostaria que fossem citados no seu funeral, ela própria
é citada. Ela gostaria de ouvir a si própria, seu próprio poema. Não seria
muito clichê querer ouvir a si próprio? No caso de autores brasileiros,
não, já que muitos escritores nacionais não conseguem enxergar seu
valor e sua importância para essa história que vem sendo construída.
Grande parte deles acredita terem mais ou única importância os textos
fundadores de textos e não textos que surgiram a partir deles.
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Kátria Gabrieli Fagundes [53-73]
Desde o período colonial, o País foi invadido pela cultura e por
costumes do outro que quase forçosamente inseriu sua cultura goela
abaixo dos povos dominados e a “[...] América Latina não pode mais
fechar suas portas à invasão estrangeira” (SANTIAGO, 2000, p. 16). Por
várias décadas, a culturização estrangeira teve que ser aceita sem que
ao menos se pudesse pensar em escapar dela.
É fato que a produção literária brasileira é extensa, importante e rica.
Não deveria ser difícil acreditar nisso. Gradativamente as obras latinoamericanas ganharam maturidade, sendo aceitas por outras civilizações
literárias. Gradualmente acontece a “[...] integração transnacional, pois o que
era imitação vai cada vez mais virando assimilação recíproca” (CANDIDO,
1989). Ainda resistentes, os escritores latino-americanos, brasileiros ou não,
começam a enxergar que essa ‘conversa’ textual torna-se mais suave, mais
interessante e ganha valor a todo o momento. A conversa não parte mais
do subordinador para o subordinado, o dominador para o dominado.
Grossmann demonstra em seu texto esse momento de cumplicidade
dentro da literatura quando conduz o leitor com tamanha sutileza aos
diversos estilos literários, como no trecho que demonstra conhecer
intimamente os artistas e escritores e fala o que gostaria de ler em Veneza,
quem ela gostaria de ter como companhia nesse pedaço de terra que
faz parte de sua formação:
É lá que quero ir, e levaria um quadro de Monet para olhá-lo lá, sob a
mesma luz em que foi pintado. É lá que quero ler os poemas de Byron e
de Shelley. É lá que quero ler Kafka, foi lá que ele, chegando com um pé
ferido, amou, fazendo uma das suas mais belas reflexões sobre o amor
como um ... ainda não. É lá que eu quero ler Henry James. E Ruskin.
E sobretudo Proust, com o seu próprio e estendido ... ainda não ... da
viagem, com a sua habitual procrastinação, já que esta é simultaneamente o
impedimento e a condição, como no amor, de que depende a Recherche.
(GROSSMANN, 1997, p. 165)
Conhecer as personalidades escolhidas para fazer parte do texto – ou
criar situações e histórias que demonstrem isso –, personalidades cujos
estilos literários são modelos para a produção de um texto, um pouco
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Meu amigo Marcel Proust romance e Literatura Comparada [53-73]
da vida e da pessoa que representou para a sociedade de sua época e,
obviamente, as obras produzidas por elas, enriquece o texto que será
lido por um leitor que se espera ser atencioso, crítico, exigente e curioso.
O leitor, peça de extrema importância para a repercussão e a recepção
de um texto, precisa estar sintonizado com a história narrada e com os
intertextos propostos pela narrativa. Sendo bem articulada, a história
prenderá seu leitor, que permanecerá hipnotizado pela trama.
O leitor faz parte do texto. É para ele que o texto é direcionado,
ele é o “[...] elemento de impulso reestruturante na escrita da obra pelo
autor” (LOBO, 1992, p. 232), ou seja, ele dará sua contribuição pessoal
ao texto lido. Fica muito mais interessante quando o leitor encontra-se
dentro do texto e é chamado a participar da história do que quando o
narrador demonstra-se indiferente à presença dele. Na parte introdutória
do seu livro, Grossmann fala ao seu leitor como uma amiga de longa
data, relatando brevemente o que se passará durante a leitura livro e
demonstrando extrema sensibilidade com a história que está para ser
contada “[...] como um conto de fadas pós-moderno”. Aconselha e
instrui como o livro deve ser lido – ou não deve ser lido –, sussurrando
aos ouvidos do leitor e colocando-o como um amigo íntimo a quem
abre seu diário amoroso:
Neste livro, escrito para você, que nele se encontrará por inteiro, você
poderá entrar por qualquer porta, pela da idade adulta, através da paixão
amorosa dos protagonistas, pela da juventude, através do adolescente
de esplendorosa beleza e de ideais próprios, pela da infância, através
da criança divina e vocacionada, pela da arte, através dos escritores e
artistas que, aprofundando uma raiz, ligaram o seu trabalho ao mundo
contemporâneo. (GROSSMANN, 1997, p. 12)
E não somente o leitor é amigo e ouvinte da narradora grossmanniana, mas também Proust, que participa atentamente da história, sendo por
vezes personagem, por vezes ouvinte. A intimidade representada nessa
amizade entre Proust e Grossmann conforta e seduz ainda mais o leitor,
que se vê imerso em uma agradável leitura e amizade pós-moderna.
Quando no shopping encontrou-se com Alessandra, uma personagem
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Kátria Gabrieli Fagundes [53-73]
secundária, a narradora dialogou com Proust e questionou- o sobre sua
própria fala a respeito de deusas inabordáveis:
Em compensação, pouco antes do almoço, puxa conversa comigo a jovem
Alessandra, perguntando-me por que não tomo refrigerante. Digo-lhe que
jamais tomei, sou a amante dos sucos, laranja, tangerina, melão, lima-dapérsia, mesmo assim, mais tarde, para não misturar sólido com líquido. E
faz mal?, ela pergunta. Sinto-me melhor assim, digo-lhe. A jovem deusa,
que me abordou, veja Marcel, você se queixava de que neste Olimpo
terreno, para o qual o Olimpo se transferiu, as Deusas encontradas não
se deixam abordar, esta é a mim que aborda, adivinhando-o em mim,
adivinhando-me, que deve, por desígnio meu, entrar em minha obra, em
meu painel. (GROSSMANN, 1997, p. 93)
Ou ainda no trecho abaixo, quando a narradora faz algumas
reflexões e questiona Proust, a quem ela tem a intimidade de chamar
de Marcel, sobre sua opinião:
Já aquelas obras dos antecessores são a esta altura uma explicitação de
um rio de prazer e de gozo que às vezes corre à superfície e às vezes
subterraneamente, um endeusamento, por vezes por um homem, não
é, Marcel?, e aqui por uma mulher, e por isso se encontram neste gosto
comum, do corpo masculino. (GROSSMANN, 1997, p. 101)
Se existe uma vasta tradição literária, criada muito antes da
literatura brasileira ou latino-americana, por que não aproveitá-la e
usufruir dela? Se existe um modelo daquilo que se pretende fazer, e se
esse modelo desenvolveu-se tão bem e sua fórmula foi pensada muito
antes que se começasse a pensar nela em outros lugares, por que não
tomar algumas teorias emprestadas para produzir algo novo? Não teria
sentido desperdiçar tanta informação por simples orgulho ou para
evitar que o produto que surgisse a partir do modelo fosse chamado
de cópia. Outros muitos artistas aproveitaram-se dos recursos criados
por Proust, este que também extraiu de obras anteriores aspectos que
considerava interessante, buscando assim, inovar e compor suas obras.
E os resultados superaram as expectativas, para ele e para quem o
teve de exemplo:
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Meu amigo Marcel Proust romance e Literatura Comparada [53-73]
Um exemplo, entre muitos: na obra de Vargas Llosa aparece,
extraordinariamente refinada, a tradição do monólogo interior, que sendo
de Proust e de Joyce, é também de Dorothy Richardson e Virginia Woolf,
de Döblin e de Faulkner. [...] Esta técnica parece uma concretização da
imagem que Proust usa para sugerir a sua (a figura japonesa se desdobrando
na água da tigela); mas significa algo muito diverso, num plano diverso da
realidade. Aí, o romancista do país subdesenvolvido recebeu ingredientes
que lhe vêm por empréstimo cultural dos países de que costumamos
receber as fórmulas literárias. Mas ajustou-as em profundidade ao seu
desígnio, para representar problemas do seu próprio país, compondo uma
fórmula peculiar. (CANDIDO, 1989, p. 155)
Grossmann também explora o recurso do monólogo interior,
adequando-o ao pós-modernismo e à sua maneira peculiar de escrita,
transformando essa fórmula em um fluxo de consciência diferenciado do de
Proust, por vezes confuso e incompreensível. No romance de Grossmann,
a voz do amor fala mais alto que todas as outras: a voz da amizade, da
professora, da escritora e da mulher ficam à deriva quando as lembranças
relatadas dizem respeito ao amor dela por Victor ou pelos pais. É a partir
desse amor que surgem os mais belos e densos monólogos do texto. O
recurso que a escritora costuma usar é escrever um parágrafo extenso,
apenas com vírgulas, com ideias aparentemente soltas, com referências
a outras personagens e a personalidades que fizeram parte da história
literária. Quando outras vozes – de escritores, de artistas – são invocadas
dentro dessa história pós-moderna, volta a ideia de inconsistência desse
tempo: as personagens estão ali para que auxiliem ou confirmem para a
narradora suas desconfianças e angústias, como segue:
Mesmo que quisesse, não poderia ocupar-me dele, concentro-me ao
máximo, desta hora dependerá uma degustação posterior e interminável,
o abastecimento de uma reserva permanente, à qual poderei recorrer
sempre, e então, já longe dele, só, infelizmente ainda um tanto saudosa
do seu perfuma, mistura misteriosa de colônia e exsudação, um tanto
melancólica pelo contágio de sua desafortunada mortalidade, em qualquer
sítio, comboio, feira de peixe, mercado de verduras, escaparates de revistas,
poderei pecaminosamente gozar, como haverão tentado Teresa e Juana sem
consegui-lo a tal ponto, um tanto confusas pela falta do objeto concreto que
não ousaram, como eu, construir. (GROSSMANN, 1997, p. 23)
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Proust é mais sutil nas suas lembranças ao mesmo tempo em que é
extremamente minucioso e relata tanto as sensações emocionais referentes
às recordações quanto às psicológicas. A prova disso é a intensa e imensa
produção bibliográfica de uma história narrada em sete grandiosos – no
duplo sentido da palavra – volumes, como no trecho retirado do primeiro
livro de Em busca do tempo perdido, No caminho de Swann:
Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava
a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de
pensar: “Adormeço”. E, meia hora depois, despertava-me a ideia de que
já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava
ter ainda nas mãos e soprar a vela; durante o sono, não havia cessado de
refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma
feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava
o livro: uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V. [...]
Depois começava a parecer-me ininteligível, como, após a metempsicose,
os pensamentos de uma existência anterior [...]. (PROUST, 2004, p. 9)
Grossmann travou um diálogo especial com Proust. Porém, como
era de se esperar de escritores como ela, pós-modernos ou não, preocupados com seu lugar de origem, com o lugar de onde proferem seu
discurso; ela conscientemente dialoga com a tradição literária latinoamericana quando cita José Luis Borges, escritor argentino importante
para a cultura mundial:
E, no entanto, eis-me aqui neste Shopping, quando gostaria de, como a
Bovary, estar rodando por todas as ruas disponíveis, num coche, com o
amado, transformando o mundo em radiância e obscuridade, mas também,
diferentemente dela, num balão, como Borges, pelos ares, na recuperação
dos cinco sentidos, e de mais outros, desconhecidos, pérolas, jade, perfumes,
e tudo o que mais houvesse para coroar este amor, uvas, pêssegos, amoras,
orquídeas, sons, óperas, [...]. (GROSSMANN, 1997, p. 23)
O estudo de literatura comparada caracteriza-se principalmente
por estudar um “[...] objeto duplo, constituído que é por obras literárias
geradas em contextos nacionais, diferentes que são, no entanto,
analisadas contrastivamente com o fim de ampliar tanto o horizonte
limitado do conhecimento artístico, quanto a visão crítica das literaturas”
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Meu amigo Marcel Proust romance e Literatura Comparada [53-73]
(SANTIAGO, 1982, p. 19). Em outras palavras: é assumir a relação entre
dois ou mais objetos interligados por relações literárias, sejam elas de
apropriação, ou de intertexto.
Estudar literatura latino-americana e brasileira, para alguns, não é
confortável. Mesmo sendo complicado aceitar que essas literaturas não
conseguiram desvincular-se das relações históricas e políticas para se
tornarem auto-suficientes, essa realidade tem que ser aceita. É impossível
falar da produção literária na América Latina sem olhar para a formação já
concreta e sólida proveniente da Europa e também da América do Norte.
O mal estar causado pela situação ainda em voga sobre o “[...] caráter
postiço, inautêntico, imitado da vida cultural que levamos” (SCHWARZ,
1987, p 29) é evidente. Não daria para ficar alheio aos acontecimentos e às
reflexões acerca da situação literária latino-americana no mundo. O escritor
/ literato não se sente confortável na posição em que foi colocado de mero
copista ou retratista. Claro que as discussões amadureceram o suficiente
para seguir outro fluxo: que tipo de literatura se produz na América do Sul?
Independentemente da resposta, Grossmann sabe que tipo de literatura ela
produz em território brasileiro pós-moderno e de onde vem a inspiração para
que sua literatura aconteça. Não se trata de uma antropofagia ou deglutição,
porém de uma parceria riquíssima entre artes plásticas, literatura e história. A
seguir, o quadro favorito de Proust é citado numa conversa informal entre a
narradora e Victor, quando ela volta a colocar Proust em suas memórias:
Os olhos se perdem em outros horizontes, ele, semideitado no sofá,
eu, na cadeira de balanço, conta-me um pouco de sua última viagem,
em maio, junho e julho deste ano de 1994, quando foi especialmente
de Paris a Haia para ver “o quadro mais belo do mundo”, segundo o
nosso amigo comum, que nos uniu, Marcel Proust, Vista de Delft, de Jan
Vermeer, que restauravam o quadro em equipe, protegidos por um painel
de vidro transparente para que o público pudesse apreciar a restauração.
(GROSSMANN, 1997, p. 23)
A narradora deixa, sempre que pode, explícita a importância de
Proust na obra, na construção do romance e nas suas escolhas de lembranças. Esse romancista da tradição alheia foi quem deu vida ao seu
romance, quem estimulou sua escrita e a escolha dos artistas presentes
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Kátria Gabrieli Fagundes [53-73]
na obra. A maioria deles tem, de alguma forma, ligação com Proust: ou
influenciaram seus escritos, ou eram contemporâneos a ele, ou foram
influenciados por ele em algum ponto de seus percursos literários.
Dos personagens históricos citados no livro, a passagem na qual se
encontra Napoleão Bonaparte poderia ser destacada por advir dele certa
força para, naquele momento, tomar alguma atitude:
É inteiramente saudável esta caverna em que me encontro, para, à
custa da enxaqueca, migraine, hemicrania, hemialgia, tanto já ouvi estas
palavras, como Napoleão Bonaparte, ou qualquer outro, esta a sua nobre
função, planejar detalhadamente todos os movimentos do combate que
se irá travar, descobrir minhas funções, meus atos, minhas ações, minhas
menores iniciativas, a política a ser adotada, se melhor avançar, recuar,
ficar parada, fingir de viva, fingir de morta, tudo será lícito, exceto desistir
ou sucumbir, de outra forma quem tomará conta, quem cuidará de Amor?
(GROSSMANN, 1997, p. 34)
As inovações feitas por Grossmann com base nos romances de
Proust significam que ela soube sair do lugar comum. Ela se encontra no
ponto chave, onde existem os leitores maduros para sua obra. O romance
grossmanniano não tem seu valor diminuído pelo fato de citar o nome de
Proust ou Stendhal. Ao contrário, Grossmann é reconhecida por ter sido
mais uma que leu Proust, porém uma leitora que conseguiu andar com
as próprias pernas rumo ao desconhecido e inovador estilo narrativo que
criou. Como diz Santiago, “[...] a deglutição sem culpa pode exemplificar
uma evolução desta espécie”. Essa ‘espécie’ à qual ele se refere é o grupo
brasileiro de escritores que faz parte de uma geração sem culpa, que
assume seus compromissos com a tradição literária de assimilação de
dados e de informações que nos foram / são emprestados.
Com tantas trocas e acúmulo de informações e de teorias sobre
a literatura, não cabe mais observar a literatura apenas na sua forma
estética, mas utilizá-la como meio questionador e problematizador de
situações atuais, que são do interesse de todos os públicos. Esta aí uma
característica importante da pós-modernidade: ela é uma fase literária
que não restringe seu público, como era de costume anteriormente; ela
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Meu amigo Marcel Proust romance e Literatura Comparada [53-73]
está aberta a todo tipo de leitor e receptiva a todo tipo de teoria. Não
somente o leitor ideal, estudioso e conhecedor d o cânone pode lê-la,
mas também o leitor comum, que possui paixões, medos e que é um
receptor consciente da complexidade deste momento.
Essa complexidade no texto de Grossmann é dada pela mistura de
textos de diversas épocas e produtos que representam certa tradição
neste e em outros países, como os sorvetes Kibon, a margarina Becel,
os restaurantes de fast food Mc Donald’s, ou os shopping centers Barra
I e II no Rio de Janeiro. Utilizar tais elementos que a grande maioria
da população e, certamente, todo o grupo de leitores de literatura
conhece, é uma estratégia muito válida, pois além de transferir a pósmodernidade para dentro da narrativa, aproxima o leitor, que também
consome esses produtos.
Estou perdida e ganha neste meu shire, onde o amor torna Victor tão valioso
quanto um enorme cartucho cheio de diamantes no valor aproximado de
cento e vinte milhões de dólares. Bolsa de valores, câmbio! Enquanto isso
vomito também a água, vou do quarto de dormir ao de banho, mesmo
assim especulo se tenho suprimentos para passar vinte e quatro horas em
casa, aveia Quaker, sal, Becel, milho coração de manteiga Swift, maçã,
sorvete Kibon, iogurte, leite, queijo, marmelada, geléia, chá, Nescafé,
limão, biscoito ... e os indispensáveis papéis da Klabin, guardanapos,
toalhas, todos. Preciso curar-me, ficar boa, sobreviver, para guardar-me,
se não para Victor, para Amor. (GROSSMANN, 1997, p.34)
Entre a pós-modernidade e os estudos de literatura comparada, o
texto de Grossmann encaixa-se no ápice de discussões problemáticas
acerca de regras, parâmetros e a funcionalidade da literatura. Não é
possível fazer afirmações calorosas sobre este ou aquele assunto que
envolva a literatura e suas bases. Em meio a tantas transformações, a
questão literária centra-se no papel que o intelectual tem perante ela.
Ele é um simples receptor de informações? É dele o dever de transmitir e
ganhar a crítica com a revisão e a inovação de antigos argumentos? Será
que ele sabe qual o caminho a ser trilhado neste campo tão belicoso e
mutável que são os estudos literárias?
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Kátria Gabrieli Fagundes [53-73]
Talvez nenhuma das perguntas acima tenha uma resposta, mas vale
pensar qual o posicionamento de Grossmann, crítica literária, leitora
e escritora no campo dos estudos de literatura. Meu Amigo Marcel
Proust Romance apresenta-se como uma obra consciente do mundo ao
seu redor e aparentemente distante de todas as questões conflituosas
presentes na literatura. Grossmann, porém, produz um contexto propício
às discussões mais fervorosas do momento pós-moderno.
Divagando pela obra grossmanniana, somente um leitor atemporal
e antenado com o mundo seria capaz de compreender e reconhecer
esse complexo de ações e de relações que são nada menos que a
representação do mundo onde vivemos.
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das Letras, 1993. p. 211-215.
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Tradução de Fernando de Mello Moser. Lisboa: Guimarães Editores, 1997.
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Paulo: Globo, 2004.
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Meu amigo Marcel Proust romance e Literatura Comparada [53-73]
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Luis Rodriguez Araya [13-23]
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes
portuguesas
The theater of Gil Vicente in the context of the portuguese
courts on 16th century
Márcio Ricardo Coelho Muniz
(UFBA/CNPq)
Resumo: Este texto estuda a reiteração de temas, de contextos de criação e
de motivadores de ação no teatro do dramaturgo português Gil Vicente,
e sua relação com a cena política das cortes portuguesas no início do
século XVI.
Palavras-chave: Teatro Português. Gil Vicente. Contexto Político.
Abstract: This paper studies the repetition of themes, contexts for creating and
motivating action in the theater Portuguese playwright Gil Vicente, and
their relationship to the political scene of the Portuguese Cortes in the
early sixteenth century.
Keywords: Portuguese Theater. Gil Vicente. Political Context.
Haveria todo um longo estudo a se fazer sobre a maneira como Gil Vicente
retoma, através de várias peças, um tema, uma situação ou uma ‘idéia de
cena’, em cada caso inovando (Paul Teyssier).
Para letras o teatro não passa todo (Osório Mateus).
As palavras de Paul Teyssier — tomadas como uma das epígrafes deste
texto — apontam a repetição como uma técnica de criação no teatro de
Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
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Márcio Ricardo Coelho Muniz [75-105]
Gil Vicente e afirmam a importância de se estudá-la mais detalhadamente.
Mesmo uma leitura despretensiosa das obras do dramaturgo português
revela a retomada constante de cenas, personagens, temas e situações,
confirmando o que nos diz Teyssier. Todavia, levar a cabo o que propõe
o crítico francês não é tarefa para um só pesquisador. A amplitude
do trabalho implicaria necessariamente um grupo de pesquisadores
especializados e demandaria tempo relativamente longo. Sabemos que
boa parte da identificação das repetições já foi realizada pela equipe do
Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, Portugal, que editou e publicou, em 2002, cinco grossos
volumes com As obras de Gil Vicente, com direção científica do Professor
Doutor José Camões. Nesta publicação muitos versos, personagens,
temas, situações cênicas, entre outros dados retomados por Vicente em
autos diversos são apontadas ao longo das notas aos textos, índices de
personagens e de figuras históricas e mitológicas presentes no quinto
volume daquela edição.
Por outro lado, como implícito nas palavras de Osório Mateus,
também epígrafe deste texto, a relação do teatro com as letras é algo
complexo. O texto teatral, para sua realização, pressupõe elementos que
as letras nem sempre alcançam, como as motivações da encenação, as
determinações da escrita, a realização cênica do texto, as circunstâncias
da representação etc. Somando-se, assim, a proposta de Paul Teyssier ao
alerta de Osório Mateus, é possível dimensionar as dificuldades impostas
àquele tipo de trabalho que, como o crítico francês, reconhecemos
importante para a melhor compreensão da obra vicentina.
Cientes disto, decidimos restringir nosso campo de abordagem
de maneira que nos fosse possível atender, ainda que parcialmente, à
“provocação” de Teyssier. Optamos por buscar nos autos de Vicente
temas ou tópicos que, repetidos, nos possibilitassem observar e discutir
o papel de divulgador e defensor da ideologia política dos monarcas
portugueses que a crítica, de modo geral, afirma ser o de nosso autor
(TEYSSIER, 1985; KEATS, 1988). Como se sabe, as cortes absolutistas
de D. Manuel I e D. João III financiaram, incentivaram, assistiram e, de
certa forma, moldaram a obra vicentina. A relação entre o teatro e a
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
política parece-nos, neste caso, intrínseca. Assim, orientados sob esta
perspectiva de caráter histórico-social, sistematizamos alguns elementos
— circunstâncias de representação, marcas lingüísticas, acontecimentos
motivadores e temas reiterados — que, retomados por Vicente, pudessem
nos fornecer dados para observar a relação de seu teatro com os
ideais político-ideológicos daquelas cortes. Através da interpretação e
comentário desses dados, buscaremos demonstrar de que forma o teatro
vicentino corrobora os valores defendidos pelos reis e, até mesmo, busca
moldar o comportamento dos nobres que freqüentam a corte.
1. Locais de representação, datas e mecenas
É quase consensual entre os estudiosos da obra vicentina que o
dramaturgo foi artista da corte, que privou da intimidade dos reis e nobres
da época e que produziu seu teatro, em grande maioria, para o deleite dos
cortesãos. Se a origem familiar de Vicente é pouco conhecida e provavelmente
não nobre1, no início de sua produção teatral ele já é, com certeza, figura
partícipe da vida cotidiana da corte. Prova disto é sua primeira peça, o Auto
da Visitação, de 1502, representada na câmara da rainha, dois dias após o
nascimento do príncipe D. João, futuro rei D. João III, como se depreende
da rubrica inicial do auto. Está claro que a “invasão” dos aposentos da rainha
que se finge/encena só poderia ser feita por um funcionário que gozasse de
determinados privilégios e da intimidade dos reis. Se este dado já é altamente
eloqüente para dizer da relação de Vicente com a corte, observando os espaços
e as datas da encenação das peças e seus prováveis mecenas, temos provas
significativas da privança de nosso autor.
Atentando-se para os espaços onde foram representados os autos
vicentinos2, vemos que o teatro acontece predominantemente na corte.
Para informações biográficas sobre Vicente, remetemos o leitor para as obras
fundamentais de FREIRE:1944 e VASCONCELLOS: 1912, 1918, 1919, 1922.
1
Na determinação das datas, mecenas e representação dos autos vicentinos, guiamo-nos
de modo geral pelas obras de FREIRE:1944, VASCONCELLOS: 1912, 1918, 1919, 1922
e Coleção VICENTE, MATEUS (ORG.), 1988-1993.
2
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Márcio Ricardo Coelho Muniz [75-105]
De suas quase cinco dezenas de obras, apenas nove são encenadas fora
do espaço cortesão. Todas as outras acontecem no paço, na capela ou em
uma câmara onde se encontram os reis3. Sendo Lisboa a sede do reino, é
nos palácios de Alcáçova e da Ribeira que se encena a maioria das peças
vicentinas. Como a corte deslocava-se constantemente, por motivos vários
— principalmente por causa da peste, que de forma contínua grassava
nos centros urbanos —, e Vicente acompanhava-a nessas transladações,
seus autos foram representados também em cidades por onde trafegou o
rei e seu séquito, como Almeirim, Évora e Coimbra.
Ainda quando acontecem fora do espaço da corte, os autos são, de
modo geral, representados para D. Leonor, figura central para a história
política dessa época e para a afirmação do valor do teatro de Vicente.
Chamada a rainha velha, D. Leonor era irmã de D. Manuel I e esposa
do antecessor deste, D. João II, e também uma das figuras responsáveis
pela articulação política que permitiu a ascensão de seu irmão à coroa
(MARQUES, 1985). Foi ela a primeira e a principal incentivadora de
nosso autor. Sob sua égide e orientação, ele produziu suas primeiras
peças e escreveu durante duas décadas.
Considerando os prováveis mecenas da obra vicentina, vemos que
três figuras se destacam. A primeira é D. Leonor que, tendo apreciado
muito o Auto da Visitação, encomendou boa parte das peças seguintes.
Segundo alguns críticos, a orientação religiosa da rainha velha teria
marcado as fases iniciais do teatro de Vicente, caracterizadas pela
produção de autos de teor religioso e moralista4. D. Manuel I concorreu
com D. Leonor para o desenvolvimento das fases iniciais. Juntos, foram
responsáveis pelo mecenato de quase duas dezenas de peças.
Com D. João III, o teatro de Vicente vive nova fase de produção.
Homenageado na primeira encenação do autor, D. João III parece ter
3
Entendemos por corte não apenas a capital de um reino, mas todo e qualquer lugar em
que se encontre o rei acompanhado de seus súditos (GOMES, 1995).
4
Esta interpretação é questionada por outros estudiosos, que a vêem muito determinista
(RECKERT, 1983; TEYSSIER, 1985).
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
escolhido nosso teatrólogo como “mestre de cerimônias” de sua Corte.
Durante uma década e meia de convívio5, foram aproximadamente
duas dezenas e meia de autos. De 1521 a 1536, somente no ano
de 1535 não foi representado um auto vicentino. Em compensação,
mais de três encenações foram feitas em cada um dos anos de 1523,
1524 e 1527. De modo geral, a média foi de dois autos a cada ano.
Se considerarmos as precárias condições da época e o fato de ser o
teatro uma arte sem longa tradição em Portugal, percebe-se o privilégio
dado pelo rei à arte vicentina.
Uma única exceção em relação aos mecenas é a encenação do
Auto da Cananéia, em 1534, feita a pedido de D. Violante, Abadessa
do Mosteiro de S. Dionísio de Odivelas. Porém, como era costume
filhos de famílias nobres assumirem altos cargos eclesiásticos, a
exceção insere-se dentro do campo da alta nobreza para quem
Vicente sempre trabalhou.
Parece-nos, com esse rápido olhar sobre os locais de encenação
e os mecenas do teatro de Vicente, ser incontestável que os autos
vicentinos foram produzidos e financiados pela corte, como afirmamos
no início, e, necessariamente, deveriam refletir seus ideais. Como se
verá à frente, muitos dos ideais monárquicos encontrarão na cena
vicentina um espaço privilegiado de divulgação e defesa.
2. Acontecimentos motivadores da criação dos autos
Como profissional responsável pelo entretenimento da corte,
Vicente recebeu desta, direta ou indiretamente, boa parte dos temas
sobre os quais seu teatro deveria versar. Se uma grande parte das peças
foi concebida apenas para diversão, como “teatro em serão real” (SALLES,
1988, p. 3), mais da metade foi encenada com objetivos específicos a se
comemorar e a se exaltar. A análise desses motivos e de suas repetições
é reveladora do serviço que prestava o autor à corte que o financiava.
5
D. João III ascendeu ao trono em 1521 e Vicente representou sua última peça em 1536.
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Márcio Ricardo Coelho Muniz [75-105]
Do total das peças vicentinas, quinze foram concebidas para festas
religiosas. Reino cristão, as datas centrais da cristandade parecem ter sido
sempre dignamente comemoradas em Portugal. Os festejos natalinos
foram propiciadores do maior número de autos vicentinos, ao todo oito
peças: Pastoril Castelhano, Auto da Fé, Quatro Tempos, Sibila Cassandra,
Pastoril Português, Auto da Feira, Mofina Mendes e Barca do Purgatório. Já
as comemorações em torno da Semana Santa foram contextos de quatro
encenações: Auto da Alma, Barca da Glória, História de Deus, Ressurreição
de Cristo. Apenas três peças tiveram noutras datas religiosas o elemento
motivador de criação: Reis Magos, representada no dia de Reis; Auto de São
Martinho, em Corpus Christi; e Auto da Cananéia, durante a Quaresma.
O elo que liga e aproxima todos esses autos é o caráter moralizador.
Pertencentes aos gêneros dos autos pastoris, das moralidades, dos mistérios
e dos milagres6, há em todos um arcabouço didático que visa sempre a
correção de hábitos e costumes e a reiteração ou construção de uma moral
e ética de fundo religioso. Neste sentido, várias dessas peças serviram de
veículo de controle e de divulgação de ideologias afins tanto à Igreja como
à Coroa. Artista católico e funcionário real, Gil Vicente soube bem conjugar
os ideais dessas duas Instituições em seus autos, construindo um teatro que
fosse ao mesmo tempo diversão, entretenimento, festa, mas que também
fosse propagador dos interesses daqueles para quem trabalhava, reiterando
valores nos quais ele próprio, como homem cristão, acreditava.
Exemplo maior desse grupo de peças e de suas funções é o Auto da
Barca do Inferno7. Provavelmente o mais conhecido e encenado texto
vicentino, Inferno é, segundo a crítica, o ápice da obra de Vicente, prova
6
Há grande variedade de classificações da obra vicentina. Neste trabalho, guiamo-nos
pela de António José Saraiva por acreditarmos que é, dentre todas, a mais abrangente
e coerente (SARAIVA, 1981, p. 71 e ss). Para a discussão da problemática dos gêneros
em Vicente, cf. MENDES, 1990.
7
Há, ainda, uma grande incógnita sobre a motivação contextual de criação de Inferno. Há
quem diga que foi escrito para comemorar o nascimento do décimo filho de D. Manuel,
o infante António. Outros, que foi criado para ser encenado durante as festas do Natal.
Para a discussão desta problemática, cf. VILLALVA, 1993; MUNIZ, 2009.
80
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
inequívoca da maturidade plena do autor (RECKERT, 1983). Moralidade
que versa sobre um tema tradicional, a ultrapassagem da alma de seus
limites carnais para o campo espiritual, Inferno foi buscar no mito clássico
de Caronte e na tradição medieval da “Dança da Morte” algumas das
inspirações cênicas para retratar a sociedade portuguesa. Classes, tipos e
hábitos os mais variados foram representados à corte, em 1517. Desfilaram
entre as barcas do Céu e do Inferno e perante a nobreza que assistia ao
auto as seguintes personagens: um fidalgo arrogante, um frade cortesão, um
corregedor e um procurador corruptos, um judeu usurário, uma alcoviteira
manhosa, um sapateiro ladrão, um parvo; enfim, um grande leque de
tipos sociais, desde as altas classes até as de extração popular, que vêem
seus hábitos e costumes julgados e condenados. Todo o tom moralizador,
no entanto, é vazado por meio de uma linguagem vivamente construída,
caracterizadora das personagens, e por situações altamente cômicas, em
que se observa a mistura da moralidade com a farsa.
Por outro lado, se comemorações de caráter religioso possibilitaram
a criação de uma série de peças, muitas representações se deram por
motivos seculares. Um texto foi escrito para comemorar a ascensão ao
trono, Aclamação de João III; dois para as entradas dos reis nas cidades,
Divisa da Cidade de Coimbra e Nau de Amores; três para festejar
casamentos reais, Cortes de Júpiter, Templo de Apolo e Frágua de Amor;
e nove para saudar nascimentos de príncipes, Auto da Visitação, Pregação
de 1506, Serra da Estrela, Inverno e Verão, Romagem de Agravados,
Floresta de Enganos, Juiz da Beira, Clérigo da Beira e Auto da Lusitânia.
Quinze encenações atenderam a solicitações motivos seculares.
Nesses autos sobressaíram a divulgação e a defesa dos ideais dos
mecenas vicentinos. Essas obras, mais que as outras, possuíam uma
estrutura altamente espetacular. O recorrer a fórmulas próprias dos
momos medievais, assim como a utilização de técnicas teatrais que
traduzissem o fausto e que representassem plasticamente o poder
dos monarcas, nas quais o que interessava eram a beleza plástica e a
alegorização do que se queria representar, parece ter sido comum nessas
encenações. Didascálias e rubricas deixam algumas vezes registrado,
outras, sugerido, o espetaculoso das criações. Castelos, naus, templos e
Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
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Márcio Ricardo Coelho Muniz [75-105]
fráguas foram recursos que a máquina do teatro se utilizou para saudar e
festejar os acontecimentos que envolviam em particular a família real8.
O discurso era altamente elogioso às figuras reais implicadas nos
acontecimentos. No primeiro auto vicentino, Visitação, por exemplo,
que comemorou o nascimento daquele que viria a ser o rei D. João III,
não só os valores dos pais, D. Manuel I e D. Maria, foram exaltados, mas
também foram lembrados os avôs maternos castelhanos, D. Fernando
e D. Isabel, os Reis Católicos, assim como toda a linhagem real de que
descendeu D. Manuel I:
Qué gran placer sentirá
la gran corte castellana
cuán allegre y cuán ufana
que vuestra madre estará
y todo ele reino a montón.
Com razón
que de tal rey procedió
el más ñoble que ñació.
Su pendón
ño tiene comparación.
Qué padre qué hijo y qué madre
oh qué agüela y qué agüelos
bendito Dios de los cielos
que le Dio tal madre y padre
qué tias que yo m’espanto [...] (vol. 1, p. 20)9.
Observe-se, por exemplo, esta rubrica de Frágua de Amor, quando se coloca em cena
um castelo e uma frágua: “Em este passo foi posto um muito fermoso castelo e abriu-se
a porta dele, e saíram de dentro quatro galantes em trajo de caldeireiros com cada um
sua serrana muito louçã pola mão. E eles mui ricamente ataviados cobertos d’estrelas
por que figuram quatro planetas, e elas os gozos de amor, e cada um deles traz seu
martelo muito façanhoso e todos dourados e prateados. E ua muito grande e fermosa
frágua. E o deos Copido por capitão dele. E estas serranas trazem cada ua sua tenaz do
teor dos martelos pera servirem quando lavrar a Frágua d’Amor. E assi saíram do dito
castelo com sua música [...]” (VICENTE, 2002, vol. 1, p 650). Para o grau de teatralidade
e espetacularidade dos autos vicentinos, conferir a obra de SLETSJÖE, 1965.
8
Todas as citações dos textos de Gil Vicente serão feitas a partir da edição preparada
pelo Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
com direção científica do Professor Doutor José Camões (VICENTE, 2002). Indicaremos
ao lado da citação apenas a página e o volume correspondente.
9
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
Em Templo de Apolo, auto encenado para a comemoração do
casamento da Infanta D. Isabel, irmã do rei D. João III, com Carlos V,
Imperador de Espanha, o deus Apolo é trazido à cena para nela construir
seu “templo”, para o qual se dirige uma série de pares de personagens
alegóricos representantes das virtudes dos nubentes. Desta forma,
desfilam frente ao deus Apolo: Mundo e Flor de Gentileza, Poderoso
Vencimento e Virtuosa Fama, Cetro Onipotente e Prudente Gravidade,
Tempo Glorioso e Honesta Sabedoria. Cada uma dessas personagens
alegóricas tece em suas orações, frente ao templo de Apolo, o elogio
das mais perfeitas qualidades de D. Isabel e de Carlos V. O auto é
puro panegírico destas figuras reais. Apenas para ilustrar o discurso
encomiástico, veja-se o que diz o Mundo, cujo senhorio pertence ao
Imperador Carlos V:
Oração a Apolo do Mundo:
Yo soy el Mundo señor
mas hállome descontento
vengo a que me hagáis mayor
que el césar emperador
merece mundos un ciento.
Y pues es tan trasposante
no es razón que se contente
bien lo dice claramente
su devisa: más avante
como varón excelente.
Y sus árboles salvages
crien perlas orientales
y sus silvestres xarales
den fruitas de mil prumages,
y también los robledales.
Sus campos sin los sembrar
críen celestes licores
y los fructos y las flores
que cuenten sin acabar
su grandeza a los pastores.
Y por cuanto yo esto veo
a ti véngo en romería
pedir a tu señoría
que pues tal señor poseo
me hagas como querría.
Pídote que acrecientes
sus vitorias señoríos
y corran todos sus ríos
bálsamo porque las gentes
adoren sus poderíos.
Y manda a cualquiera montaña
portuguesa y castellana
por do pasare a España
la Emperatriz soberana
que sea muy fresca y llana
Y que hagas convertidos
los caminos en cristales
y las estradas reales
sean lirios floridos
que le vengan naturales.
Y esto luego señor (vol. 2, p. 16-17).
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Márcio Ricardo Coelho Muniz [75-105]
Outro dado comum aos autos que foram encenados para comemorar
acontecimentos seculares é a relação que o teatro estabelece com o público
que o assiste10. Quase todos os textos escritos trazem referências aos nobres
que provavelmente estavam presentes à representação. Tanto figuras da
família real quanto da alta nobreza tinham seus nomes citados e suas
virtudes exaltadas através da fala das personagens. Viam-se, desta maneira,
homenageados pelo teatro que, de certa forma, financiavam. O reverso
desta medalha estava no desfile de personagens, normalmente alegóricas,
modelos de comportamento e virtudes que eram constantemente
reiterados pelo teatro com claro intuito de moldar hábitos, valores e moral,
inclusive aqueles concernentes à nobreza. Era o teatro cumprindo seu
papel didático-moralizante, a serviço dos ideais monárquicos.
Não se deve pensar, no entanto, que o teatro vicentino cumpria
exclusivamente esse papel pedagógico. Um grande número de peças
foi encenado com a função de entreter a Corte durante os chamados
“serões reais”. Dezessete autos parecem ter sido encenados por/para
ser teatro11. O caráter de festa pela festa foi o que provavelmente fez
com que a maior parte deles se construísse dentro do gênero da farsa,
ou seja, peças de conteúdo irreverente e burlesco, com elementos da
comédia de costumes. Era o cotidiano da gente simples portuguesa que
desfilava frente à nobreza, fazendo-a rir e se divertir. Isto não impedia
que hábitos e valores da própria nobreza sofressem a ação da paródia
e da crítica por parte do autor. O riso predominava, mas através dele
Os textos nos quais encontramos referências ao público que assiste aos autos são: Auto
da Visitação, Auto da Fé, História de Deus, Auto de São Martinho, Morte de Manuel
I, Aclamação de João III, Comédia de Rubena, Divisa da Cidade de Coimbra, Nau de
Amores, Frágua de Amor, Exortação da Guerra, Templo de Apolo, Cortes de Júpiter,
Serra da Estrela, Inverno e Verão, Romagem de Agravados, Quem tem Farelos?, Auto
da Índia, Velho da Horta, Auto das Fadas, Inês Pereira, Juiz da Beira, Auto das Ciganas,
Farsa dos Almocreves, Clérigo da Beira e Auto dos Físicos.
10
Os autos não circunstanciais são: Comédia de Rubena, Comédia do Viúvo, Dom
Duardos, Amadis de Gaula, Quem tem Farelos?, Auto da Índia, Auto da Fama, Velho
da Horta, Auto das Fadas, Pranto de Maria Parda, Inês Pereira, Juiz da Beira, Auto das
Ciganas, Farsa dos Almocreves, Clérigo da Beira, Auto dos Físicos e Auto da Festa.
11
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
vazavam muitas questões sociais que Gil Vicente não abriu mão de
apresentar e criticar. É perceptível, em realidade, que a reiteração
de motivos religiosos e profanos, incentivadores da criação vicentina,
propiciou contexto para que o teatro servisse de maneira variada aos
ideais da Corte que o financiava, sem limitar, contudo, o campo de
expressão do pensamento do autor.
3. Temas reiterados nos autos
Diversos são os temas reiterados nos autos vicentinos. Restringiremonos, contudo, àqueles que direta ou indiretamente nos sejam úteis para
observar a relação do teatro de Vicente com a ideologia das cortes
portuguesas de D. Manuel I e D. João III.
O primeiro desses temas é o casamento. Em doze dos autos ele
é, de forma mais ou menos central, assunto do que se encena12. Além
de ser um dos principais sacramentos da Igreja, o que por si só já era
significativo para um escritor católico, o casamento desempenhava
papel fundamental na organização política, social e econômica da
época de Vicente13. Como afirma Ana Maria Alves, “os casamentos
eram considerados as festas políticas mais sumptuosas promovidas pela
monarquia e parte fundamental da encenação do teatro do poder”
(ALVES apud FIRMINO, 1989, p. 4) .
Daqueles doze autos, três foram criados exclusivamente para
comemorar e compor as festas de casamentos no interior da família
real: Cortes de Júpiter, Frágua de Amor e Templo de Apolo. Esperava-se,
portanto, que girassem em torno dos desposórios reais. Outros nove, no
O casamento é assunto tratado no Auto da Sibila Cassandra, Auto da Feira, Mofina
Mendes, Comédia de Rubena, Comédia do Viúvo, Frágua de Amor, Templo de Apolo,
Cortes de Júpiter, Auto da Índia, Inês Pereira, Auto das Ciganas e Auto da Lusitânia.
12
Em texto anterior, tratamos exclusivamente do tema do casamento na obra de Gil
Vicente, observando seus aspectos sociais e políticos, nas relações entre os reinos de
Portugal e Castela. Cf. MUNIZ, 2005.
13
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Márcio Ricardo Coelho Muniz [75-105]
entanto, tiveram motivações distintas, mas ainda assim o matrimônio foi
assunto neles tratado. As perspectivas abordadas variavam de acordo com
o gênero a que as peças pertenciam. No teatro de teor romanesco se
fazia o elogio do casamento, inclusive com realce para a necessidade da
“sinceridade amorosa” dos amantes, como em Dom Duardos e Amadis
de Gaula (MUNIZ, 2008). Já nas farsas ou mesmo nas moralidades, o
matrimônio foi alvo de crítica, principalmente pelo aprisionamento em
que resulta, pelo desejo de ascensão que o motiva e pelo adultério,
quase sempre presente.
Exemplo perfeito disto é a Farsa de Inês Pereira. Peça das mais famosas
de Gil Vicente, Inês versa sobre uma moça, a protagonista que dá nome à
farsa, que, desejosa de se casar e assim conseguir a liberdade da relação
materna e a ascensão social, só quer fazê-lo com um homem cortês.
Inês: [...] não hei de casar
senam com homem avisado
ainda que pobre pelado
seja discreto em falar (vol. 2, p. 264).
Casada com um escudeiro, Inês se vê presa por aquele que deveria
ser seu libertador e promotor social. Arrependida do que fez, decide
atender aos conselhos da mãe e de Lianor Vaz – alcoviteira que lhe
arranjara um marido rico, mas vilão –, que afirmavam a importância de
se casar com homem de igual condição social. Morto o marido cortês,
Inês volta ao pretende, Pero Marques, vilão como ela, mas rico e manso,
passível de domínio:
Inês: Andar. Pero Marques seja.
Quero tomar por esposo
quem se tenha por ditoso
de cada vez que me veja.
Por usar de siso mero
asno que me leve quero
e nam cavalo folão
antes lebre que leão
antes lavrador que Nero (vol. 2, p. 285).
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Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
Se essa farsa é prova da maestria criativa de Vicente em encenar
o adágio que lhe foi dado como tema — “Mais quero asno que me
carregue que cavalo que me derrube”14 —, também é comprovação da
defesa de certa ideologia de ordenamento que entendia a sociedade
como constituída por grupos sociais – nobreza, clero e camponeses –
que cumpriam papéis distintos e que não deviam ter suas realidades
misturadas. Ou seja, Inês Pereira afirma, a nosso ver, a defesa, por
parte de Gil Vicente, da necessidade de manutenção do status quo,
condenando através do riso a união, por via do casamento, entre
estamentos sociais diferentes.
Na mesma linha de correção dos caminhos sociais a serem seguidos
pelos homens, está uma série de autos em que se critica a “aderência ao
paço”. Uma das “pragas” sociais mais satirizadas por Gil Vicente, o desejo
de “privar com o monarca”, de gozar da intimidade e dos privilégios
reais, levava à corte uma grande quantidade de pessoas, provenientes
dos mais variados lugares do reino, principalmente de classe social baixa
ou da pequena nobreza decadente, em busca da ascensão social. O
teatro de Vicente testemunha o temor da desorganização social que tal
prática pode desencadear (MUNIZ, 2001).
Dois de seus autos, Quem tem Farelos? e a Farsa dos Almocreves,
em datas relativamente distantes, 1505/1509 e 1527, respectivamente,
encenam de forma satírica o desejo de “aderência ao paço”. Na primeira,
um escudeiro pobre, apaixonado pela moça Isabel, busca persuadi-la
a ceder a seu cortejar alegando, entre outras qualidades, sua privança
com a nobreza. O rapaz que o acompanha lembra-lhe e diz, em forma
de aparte ao público que os assiste, a falsidade dos argumentos, mas o
escudeiro insiste em demonstrar-se íntimo da corte. Na cena inicial da
14
Na rubrica da farsa, Gil Vicente explica que “o seu argumento [da farsa] é que por
quanto dovidavam certos homens de bom saber se o autor fazia de si mesmo estas obras,
ou se as furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse um exemplo
comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre
este motivo se fez esta farsa” (vol. 2, p. 257).
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Márcio Ricardo Coelho Muniz [75-105]
farsa, o desmascaramento já é registrado para os espectadores por meio
do diálogo do rapaz, Apariço, com um seu amigo castelhano, Ordoño.
Ouçamo-los:
Ordoño: Cómo te va compañero:
Apariço: S’eu moro c’um escudeiro
como me pode a mi ir bem?
Ordoño: Quién es tu amo? Di Hermano.
Apariço: É o demo que me tome
morremos ambos de fome
e de lazeira todo ano.
Ordoño: Com quién vive?
Apariço: Qui sei eu.
Vive asi per i pelado
coma podengo escaldado.
Ordoño: De qué sirve?
Apariço: De sandeu
Pentear e jejuar
todo dia sem comer
cantar e bocijar.
Sempre anda falando só
faz uas trovas tam frias
tam sem graças, tam fazias
que é cousa pera haver dó.
E presume d’embicado
que com isto raivo eu
três anos há que sam seu
e nunca lhe vi cruzado.
[......................................]
Ordoño: Y pues por qué estás com él?
Apariço: Diz que m’há de dar a el rei
e tanto farei farei (vol. 2, p. 153-156).
Como se vê, embora seu amo não lhe possa dar condições básicas
de sobrevivência, o rapaz permanece servindo-o na esperança de um
dia vir a servir a el rei.
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
Já em Almocreves, um fidalgo decadente e que possui uma série
de credores, quando cobrado por estes, busca remediar a situação
prometendo títulos nobiliárquicos e a entrada para a privança do paço.
Assim, engana seu capelão, o ourives, o pagem e o almocreve sempre
com o mesmo argumento, o de torná-los íntimo da corte, status que
nem ele próprio possui.
Observemos, em dois diálogos da Farsa dos Almocreves, como
esta questão é denunciada e como parece reagir nosso autor à ameaça
imposta pela situação. No primeiro diálogo, frente a promessa do Fidalgo
de torná-lo “moço da câmara” real, o Pajem responde, num tom de
zombaria, o despropósito de tal promessa, o que desconstrói nitidamente
a farsa que seu patrão busca viver com seus outros servidores. O tom
zombeteiro parece apontar não só para consciência que tem o Pajem
da situação de engodo que vive seu senhor, mas também para um saber
prático de que tal movimentação entre os grupos sociais é incomum e
difícil, além de não ser producente, pois ao inchaço da corte corresponde
o esvaziamento do campo e, não nos esqueçamos, estamos numa
sociedade de base rural:
Fidalgo: Pois faze-o tu assi
porque hás e ser del rei
moço da câmara ainda.
Pajem: Boa foi logo cá vinda
assi que até os pastores
hão-de ser del rei samica
por isso esta terra é rica
de pão: porque os lavradores
fazem os filhos paçãos.
Cedo nam há d’haver vilãos
todos del rei todos del rei (vol. 2, p. 336)
Como se vê, o comentário da pajem denuncia o desequilíbrio que
a política de “privanças” produzia, pois, sendo este o caminho a seguir,
não haverá mais pastores, nem padeiros, nem lavradores, pois todos
serão “d’el rei todos d’el rei”.
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Márcio Ricardo Coelho Muniz [75-105]
Noutra cena da Farsa dos Almocreves, este mesmo Pajem dialoga
com um dos almocreves que chega para cobrar por suas atividades. Frente
à afirmação despropositada do Pajem de que em breve será “pajem
de lança” e ainda chegará a “cavaleiro fidalgo”, o almocreve Pero Vaz
responde com uma fala em que podemos inferir a voz e as opiniões
de Vicente sobre a movimentação social que estes jogos de favores e
interesses promovem:
Pajem: Venhais embora Pero Vaz
Pero Vaz: Mantenha Deos vossa mercê.
[..................................................]
e vossa mercê que faz?
Pajem: Estou louçã como quê.
Pero Vaz: E a bofé creceis assaz
saúde que vos Deos dê.
Pajem: Eu sou pajem de meu senhor
se Deos quiser pajem de lança.
Pero Vaz: E um Fidalgo tanto alcança?
Isso é d’emperador
ora prenda el rei de França.
Pajem: Ainda eu hei de perchegar
a cavaleiro fidalgo.
Pero Vaz: Pardeos João Crespo Penalvo
que isso seria esperar
de mau rafeiro ser galgo.
Mais fermoso está ao vilão
mau burel que bom frisado
e romper matos maninho
e ao fidalgo de nação
ter quatros homens de recado.
E leixar lavrar ratinhos
que em Frandes e Alemanha
em toda França e Veneza
que vivem per siso e manha
por nam viver em tristeza
Nam é como nesta terra
porque o filho do lavrador
casa lá com lavradora
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
e nunca sobem mais nada
e o filho do broslador
casa com a brosladora
isto per lei ordenada.
E os fidalgos de casta
servem os reis e altos senhores
de tudo sem presunção
tam chãos que pouco lhes basta
e os filhos dos lavradores
pera todos lavram pão (vol. 2, p. 342-344)
O “natural” ordenamento social que indica que cada grupo deve
ocupar os espaços que lhe cabe ressoa na fala de Pero Vaz. Voltemos
a lembrar que a sociedade medieval se organizou sobre uma estrutura
estamentária, em que cada grupo social possuía uma função específica. A
denominada ideologia das três ordens compunha-se por uma tripartição
funcional da sociedade: havia os oratores, que rezavam; os bellatores, que
guerreavam; e os laboratores, que trabalhavam (LE GOFF, 1995). O bem
estar social dependia de cada um desses grupos e do conjunto deles. Cada
um deveria cumprir seu papel social e não era desejável deslocamentos
entre os componentes de um grupo para outro. Esse tema é repetido com
variantes na Barca do Inferno, Inês Pereira, Amadis de Gaula e Clérigo da
Beira. Em teatro feito para e dentro da corte, o ideal de moralização dos
costumes que tal crítica defende não só deveria agradar, como também
ser assunto exigido15.
Crenças na astrologia e nas práticas de adivinhação motivaram também
a sátira mordaz de Vicente. Reiteradamente condenados pela Igreja católica e
pelas Ordenações reais, tais hábitos, de extração popular, mas que alcançavam
também as classes nobres, foram temas de pelo menos seis autos. No Auto da
Feira, por exemplo, o deus Mercúrio é convocado a fazer um longo sermão
de teor burlesco contra as crenças na astrologia. Vicente, através de Mercúrio,
banaliza por meio da ironia todo o saber desta ciência:
15
Em trabalho anterior, de que aproveitamos aqui algumas considerações, analisamos a
reiteração desse tema e suas implicações no teatro de Gil Vicente (MUNIZ, 2001).
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Márcio Ricardo Coelho Muniz [75-105]
E porque a estronomia
anda agora mui maneira
mal sabida e lisonjeira
eu à honra deste dia
vos direi a verdadeira.
Muitos presumem saber
as operações dos céus
e que morte hão de morrer
e o que há d’acontecer
aos anjos e a Deos.
[...........................]
Porém quero-vos pregar
sem mentiras nem cautelas
o que per curso d’estrelas
se poderá adevinhar
pois no céu naci com elas.
E se Francisco de Melo
que sabe ciência avondo
diz que o céu é redondo
e o sol sobre amarelo
diz verdade, não lho escondo.
Que se o céu fora quadrado
nam fora redondo senhor
e se o sol fora azulado
d’azul fora a sua cor
e nam fora assi dourado.
E porque está governado
per seus cursos naturais
neste mundo onde morais
nenhum homem aleijado
se for manco e corcovado
não corre por isso mais ( vol. 1, p. 157-158).
Todo o longo sermão burlesco de Mercúrio, que introduz
uma moralidade em que Vicente critica fortemente o negócio das
indulgências religiosas, desconstrói as práticas divinatórias por meio
da enunciação de uma série de obviedades como se fossem saberes
privilegiados da astrologia. Crítica semelhante encontraremos no Auto
da Cananea, de 1534.
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
Por outro lado, os Auto das Ciganas e Auto das Fadas retratam a
prática da adivinhação e da feitiçaria de maneira bastante cordata. Se
em Fadas as implicações de tal condescendência foram mínimas, pois
sua representação deve datar-se, segundo José Camões, no momento
de maior tolerância política que marcou o reinado de D. Manuel I
(CAMÕES, 1989), em Ciganas, de 1525, o contexto é bastante diferente.
O período do governo de D. João III, chamado “o Pio” por seu extremado
catolicismo, foi de crescente intolerância religiosa. Durante a metade da
década de 20, por diversas vezes, o rei pediu bula papal para instauração
da Inquisição em Portugal, só a conseguindo em 1536. Nas Cortes de
Torres Novas, em 1525, houve imprecações contra os ciganos e contra
os judeus. Estas imprecações foram apenas o início do acirramento dos
ânimos contra os chamados heréticos, que acabou por desaguar na
instalação do Tribunal da Santa Inquisição (SARAIVA, 1985).
Se a crítica, de modo geral, vê no Auto da Lusitânia, de 1532 —
em que uma família judia é retratada em seu cotidiano mais comum e
cordato —, uma tentativa, de caráter humanista, de reverter a situação
de perseguição que os judeus vinham sofrendo16, podemos entender que
o mesmo se dá em Ciganas. Este grupo étnico vem à cena de forma a
habituar os espectadores da corte com a diferença de comportamento,
de hábitos e de visão de mundo.
Outro tema recorrente no teatro de Vicente é a exaltação dos
valores da nobreza. O elemento mais louvado, como vimos em ponto
anterior, é a própria família real. Textos como Nau de Amores, Morte de
Manuel I, Aclamação de João III, Frágua de Amor, Cortes de Júpiter, Serra
da Estrela e Inverno e Verão possuem longos discursos encomiásticos dos
reis e príncipes, quando não são construídos com este único intuito. Há
outros autos que promovem o elogio de valores portugueses, como a
coragem, a justiça, a ousadia, a força e a fé. Fama é auto alegórico no
qual uma pastora da Beira portuguesa é requerida em casamento por
16
Sobre a questão dos judeus no teatro de Gil Vicente, cf. LAFER, 1978 e MUNIZ, 2000.
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Márcio Ricardo Coelho Muniz [75-105]
cavaleiros de origens castelhana, francesa e italiana. Porém, ela se decide
por não aceitar o cortejar de nenhum estrangeiro e opta por permanecer
em Portugal. Ao fim, surgem a Fé e a Fortaleza para coroarem a Fama
portuguesa, nome da pastora, por seus valores:
Fé: Os feitos troianos também os romãos
mui alta princesa que são tam louvados
e neste mundo estão colocados
por façanhosos e por muito vãos
em o regimento de seus cidadãos
e alguas virtudes e morais costumes
vós portuguesa Fama nam tenhais ciúmes
que estais colocada na flor dos cristãos.
Vossa façanhas estão colocadas
diante de Cristo senhor das alturas
vossas conquistas grandes aventuras
são cavalarias mui bem empregadas.
Fazeis as mesquitas ser deserdadas
fazeis na igreja o seu poderio
portanto o que pode vos dá domínio
que tanto reluzem vossas espadas.
Porque o triunfo do vosso vencer
e vossas vitórias exalçam a fé
de serdes laureada grande rezão é
princesa das famas por vosso valer
nam achamos outra de mais merecer
pois tantos destroços fazeis a Ismael
em nome de Cristo tomais o laurel
ao qual senhor praze sempre em vos crecer (p. vol. 2, p. 202-203).
O sentido missionário do poder português e a aura de povo
escolhido, de “flor dos cristãos”, como se vê, são reiteradamente
ressaltados nos encômios lançados aos reis, à nobreza e ao reino.
Já Exortação da Guerra, como o próprio título indica, cumpre a função
de fazer o elogio dos valores bélicos e exaltar a nobreza a participar das
conquistas empreendidas por Portugal. Grandes personagens da cultura
clássica são chamados à cena para testemunharem a favor dos valores da
94
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
guerra e fazerem elogio dos reis e príncipes portugueses. Policena, Pentasiléia,
Achilles, Anibal, Heitor e Scipião desfilam frente ao público nobre que os
assiste reiterando a ideologia bélica que se fazia necessário defender.
Particularmente ligada ao tema do elogio dos valores portugueses
está a referência às grandes navegações. O mundo revelado por
Portugal a partir de 1415 — data do primeiro grande empreendimento
marítimo, a tomada de Ceuta — é, à altura, muito recente. A
descoberta do caminho para a Índia e o “achamento” do Brasil são
quase contemporâneos ao surgimento do teatro vicentino. O sentido
real de tais feitos só vai ser corretamente dimensionado décadas
mais tarde. Talvez seja isto que tenha tornado tão exíguas, perto
da grandiosidade e importância dos acontecimentos, as referências
às navegações no teatro vicentino17. Das quase cinco dezenas de
autos com que trabalhamos, somente sete aludem às conquistas
marítimas portuguesas: Ressurreição de Cristo, Nau de amores,
Exortação da guerra, Cortes de Júpiter, Auto da Índia, Auto da Fama
e a Farsa dos Almocreves. Todavia, apenas dois desses textos têm os
empreendimentos marítimos no centro de seu enredo: Exortação e
Índia. As perspectivas de cada um são bastante diferentes. Enquanto
em Exortação, como já vimos, temos a exaltação do espírito patriótico,
o elogio da causa bélica, a conclamação para a guerra; em Índia a
visão é significativamente outra, visto que se retrata nele uma crítica
às conseqüências das navegações.
O enredo de Índia retrata a história de um homem que parte
em carreira para a Índia e deixa em casa sua mulher, Constância,
acompanhada por uma criada. Em sua ausência, a mulher recebe
seus amantes, um castelhano e um português. Ao voltar, três
Fidelino de Figueiredo afirma que “o medievalismo de Gil Vicente, a um tempo ingênuo
e cético das grandezas, diminuiu o heroísmo seu contemporâneo...”, e, citando Gago Coutinho, lembra também o “quanto é pobre o panorama marítimo das obras de Gil Vicente,
artificial e simples decoração literária, terminologia náutica mal aplicada, reminiscências
dos pescadores da Ribeira, e pilotos de Alcochete” (FIGUEIREDO, 1987, p. 138).
17
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anos depois, o marido encontra-a dissimuladamente chorosa e
reclamando da solidão e das necessidades por que passara. Ao ser
perguntado pelo dinheiro que havia ganhado na viagem, o marido
confessa ter voltado pobre da empreitada e que o comandante foi
quem enriqueceu, não ele.
Ama: Agora aramá
lá há índias mui fermosas
lá faríeis vós das vossas
e a triste de mi cá
encerrada nesta casa
sem consentir que vezinha
entrasse por ua brasa
por honestidade minha.
Marido: Lá vos digo que há fadigas
tantas mortes, tantas brigas
e perigos descompassados
que assi vimos destrocados
pelados como formigas.
Ama: Porém vindes vós mui rico.
Marido: Se nam fora o capitão
eu trouxera a meu quinhão
um milhão vos certifico (vol. 2, p. 186).
A dissimulação de Constância, fingindo ciúme e sofrimento pela
ausência do marido, contrasta com a ingenuidade deste, que apenas
diz das agruras vividas na viagem. Ao responder à questão sobre a
riqueza que teria adquirido, a partícula condicional com que inicia sua
fala anuncia e denuncia o lastimoso da situação. Não fosse o capitão,
sim, ele teria trazido seu quinhão, mas não foi assim que resultou, ele
voltou sem o quinhão prometido. Está clara, a nosso ver, a sugestão de
que o adultério, único produto real que a viagem produziu, foi o que
restou aos homens simples, que materialmente nada ganharam com o
empreendimento das Navegações. A crítica é nítida, mas veiculada por
meio de uma farsa saborosíssima.
96
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
Tema recorrente nos autos é ainda a crítica aos representantes das
três instituições basilares da sociedade: a Igreja, a Justiça e o Estado.
Vicente, como se sabe, em nenhum momento contesta o legítimo poder
dessas instituições nem o de seus maiores dignitários. Porém, como
sabe que aquelas são administradas por homens, nosso dramaturgo
não deixa de apontar os males que estes provocam. Desta forma,
várias personagens-tipo representantes da Igreja, da Justiça e do Estado
perpassam os autos vicentinos denunciando seus próprios erros.
Das três, a Igreja é a mais focada. Mais de uma dezena de autos
vicentinos, sejam moralidades ou farsas, trazem figuras de frades, clérigos,
cônegos e ermitões vivendo situações contrárias aos dogmas e às práticas
religiosas. O frade da Barca do Inferno apresenta-se como cortesão e
amante de uma dama; em Clérigo da Beira, a primeira cena é a de um
clérigo que deseja que seu filho vá para a corte para lá medrar, enriquecer;
no Auto dos Físicos, os médicos são chamados a curar um clérigo que morre
de amor por uma moça; em Romagem dos Agravados, há dois freis, figuras
centrais na farsa, que se chamam Frei Paço e Frei Narciso, revelando através
do nome, mas também da prática encenada, seus vícios. A lista, como se
vê, é longa, mas há duas moralidades que são extremamente contundentes
na representação dos vícios da igreja: a Barca da Glória e o Auto da Feira.
Na primeira, há um desfile de dignitários eclesiásticos que, ultrapassados
os limites da morte, chegam à praia em que estão ancoradas as barcas do
Inferno e da Glória. Bispo, Arcebispo, Cardeal e Papa presenciam o desvelar
de seus erros e são condenados pelo Diabo e pelo Anjo a entrarem na
barca do Inferno. O diálogo do Diabo com o Papa, último dos dignitários
eclesiásticos a chegar ao porto de mar onde estão ancoradas as barcas, é
paradigmático do teor moral de que se reveste o auto:
Diabo: Venga vuesa santidad
en buenhora padre santo
beatísima majestad
de tan alta dignidad
que moristes de quebranto.
Vos ireis
en este batel que veis
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Márcio Ricardo Coelho Muniz [75-105]
comigo a Lúcifer
y la mítara quitaréis
y los pies le besaréis
y esto luego há de ser.
Papa: Sabes tu que soy sagrado
vicário em el santo tiemplo.
Diabo: Cuanto más de alto estado
tanto más es obligado
dar a todos buen exemplo.
Y ser llano
a todos manso y humano
cuanto más ser de corona
antes muerto que tirano
antes pobre que mundano
como fue vuesa persona.
Luxuria os desconsagró
soberbia os hizo daño
y lo más que os condeno
simonía con engaño.
Vení embarcar.
Veis aquellos azotar
con vergas de hierro ardiendo
y después atanazar?
Pues allí habéis d’andar
para siempre padeciendo.
[........................................]
Anjo: Vuesas preces y clamores
amigos no son oídas
pésanos tales señores
iren a aquellos ardores
animas tan escogidas.
Desferir
ordenemos de partir
desferir bota batel.
Vosotros no podeis ir
que en los yerros del vivir
no os acordastes d’él (vol. 1, p. 290-293).
A ética e os dogmas cristãos nivelam em um só patamar as falas
moralizadoras do Diabo e do Anjo. Ambos falam em nome de uma
mesma verdade e consciência. A condenação, como se vê, não atinge
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
a instituição, mas, sim, está apoiada nas ações dos homens que por
pertencerem aos “altos estados”, como refere o Diabo, estão obrigados a
uma prática digna dos cargos que ocupam. E é de tal modo contundente
o veredicto, que se faz necessária a intervenção do próprio Cristo, ao
final do auto, na figura de um Deus ex-machina, para que todos sejam
salvos. Registra a rubrica final: “Não fazendo os Anjos menção destas
preces, começaram a botar o batel às varas e as almas fizeram em roda
ua música a modo de pranto com grandes admirações de dor, e veo
Cristo da ressurreição e repartiu por eles os nomes das chagas e os levou
consigo” (vol. 1, p. 294).
No Auto da Feira, de 1527, é uma personagem alegórica que surge
para denunciar a corrupção interna na Igreja. Na feira das virtudes, Roma,
em figura alegórica e feminina, vem mercanciar a salvação celeste com
os bens e poderes que possui na Terra. Diz Roma ao Serafim, vendedor
na feira da Graça: “Oh vendei-me a paz dos céus/ pois tenho o poder
na terra” (vol. 1, p. 171). Por isto, ela é duramente censurada pelos
representantes celestes e, ao final do auto, decide-se por se corrigir.
Porém, a imagem da sede do poder papal vindo a uma feira das virtudes
negociar a salvação da alma em troca de bens materiais é suficiente para
denunciar o desprestígio que acometia a Igreja à altura. O clima anticlerical que marca o início do reinado de D. João III pode estar refletido
nessa crítica tão feroz. Já em Mofina Mendes, de 1524, falava-se do Saque
de Roma, feito por Carlos V, futuro cunhado de D. João III, com relativa
banalidade. É o funcionário real defendendo a ideologia do monarca.
A Justiça é também alvo certo da sátira vicentina. Pelo menos
cinco de seus autos colocam em cena personagens ou situações em
que a tópica da “justiça injusta” é representada. Na Barca do Inferno,
um Corregedor e um Procurador são condenados a embarcar para
o inferno por terem exigido propinas para exercer suas funções. O
Diabo acusa-os, no latim macarrônico que as personagens insistem
em utilizar: “Quando éreis ouvidor/ nonne accepistis rapina?/ Pois ireis
pola bolina/ onde nossa mercê for”. E continua mais a frente: “A largo
modo adqueristis/ sanguinis laboratorum/ ignorantes peccatorum./ Ut
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Márcio Ricardo Coelho Muniz [75-105]
quid eos non auditis?” (vol. 1, p. 236). Já quando o Parvo dirige-se aos
magistrados acusando-os de corruptos, aponta o gosto particular deles
por carnes de caça, em particular as aves, preferidas pelos homens
da justiça: “Ou homens dos breviairos/ rapinastis coelhorum/ e pernis
perdigatorum/ e mijais nos campanairos” (vol. 1, p. 238). Em Frágua
do Amor, a personagem da Justiça aparece em cena como uma velha
corcunda que deseja desentortar o corpo, metáfora das práticas judiciais,
retorcido pela corrupção, desejando passar pela frágua e se endireitar.
Os versos que se referem à personagem também a associam ao gosto
pelas aves: “salga esotra ave de pena [...] Son perdizes mi señor” (vol. 1,
p. 657-658). Em Cortes de Júpiter, no desfile final de acompanhantes
da Princesa que parte para se casar, no qual cada grupo social ou figuras
da nobreza assumem a forma de um peixe, os juízes são curiosamente
peixes voadores: “Juizes e ouvidores/ deles peixes voadores”. Já os
bacharéis são associados aos tubarões: “Irão certos bacharés/ em forma de
tubarões” (vol. 2, p. 38). Essa relação dos magistrados com as aves pode
refletir somente uma brincadeira lingüística com a palavra “pena” ou a
denúncia de um modo de corrupção do judiciário bastante adequada
a uma sociedade em que a carne de aves era bastante apreciada e
valorizada (SALES, 1991, p. 25).
Por fim, o próprio Estado, através das figuras da nobreza, é alvo da
crítica vicentina. Na Barca do Inferno, a primeira personagem a chegar
à praia em que estão ancoradas as barcas do Inferno e da Glória é um
fidalgo. Este se apresenta com um discurso soberbo, exigindo cortesia
no tratamento, pois ele é um nobre. Após se recusar a entrar na barca
do Inferno, o Fidalgo escuta do Anjo os motivos do impedimento de seu
acesso à barca da glória e também de sua condenação:
Não vindes vós de maneira
pera entrar neste navio
essoutro vai mais vazio
a cadeira entrará
e o rabo caberá
e todo vosso senhorio.
100
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
Ireis lá mais espaçoso
vós e vossa senhoria
cuidando da tirania
de que éreis tam curioso.
E porque de generoso
desprezastes os pequenos
achar-vos-ei tanto menos
quanto mais fostes fumoso” (vol. 1, p. 218-219).
É clara a condenação da prática da tirania e da exploração dos
menos favorecidos. Também na Barca da Glória, aquele quarteto
de dignitários eclesiásticos, que vimos acima, é precedido por
outro formado por um Conde, um Duque, um Rei e um Imperador.
Observe-se que a hierarquia é obedecida, porém, da mesma
forma que o quarteto religioso, o constituído por nobres também
é condenado ao inferno. As acusações referem-se à tirania, aos
desmandos, à exploração das classes baixas e à corrupção. Ao fim,
como os religiosos, também os nobres são absolvidos pela entrada do
Deus ex-machina, Cristo. Todavia, a crítica dura ao comportamento
dessas classes não deixa de ser feita.
Além dos fatos acima, a ausência do Estado na proteção dos menos
favorecidos, a prática entre a nobreza da política da “privança do rei”,
os altos gastos com as Navegações e com as guerras, a perseguição
aos estrangeiros à fé católica são, entre outros, alvos do discurso
satírico de Vicente em diversos de seus autos. Algumas vezes a crítica
é explicita, como nos exemplos dados; outras, está nas sublinhas das
falas das personagens, no tratamento dado ao tema escolhido para um
auto, no destaque dado a uma cena, no nome de uma personagem,
nas imagens retóricas escolhidas para representar um conceito, numa
determinada figura etc. Enfim, os caminhos por onde vazam as críticas
são diversos e os mais diferentes possíveis. O que fica, porém, para o
leitor/espectador dos autos vicentinos é que nada e ninguém escapam
de seu olhar agudo e moralizador.
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Considerações finais
Observando a obra de Gil Vicente, Maria João Amaral afirma: “A arte
vicentina, exemplo privilegiado de invenção no sentido etimológico do
termo, é pois resultado de uma prodigiosa capacidade de transposição e
combinação de materiais de natureza diversa, e por vezes aparentemente
inconciliável” (AMARAL, 1991, p. 7). Tais palavras reafirmam com relativa
concisão aquilo que vimos buscando demonstrar ao longo deste trabalho.
Adendamos ao sentido de “transposição” e “combinação” de que fala
Amaral o processo de repetição, ou melhor, o processo de repetição de
que tratamos implica em transposição e combinação interna ao conjunto
da obra. Desta forma, este recurso é, a nosso ver, modo de criação
artística. No caso vicentino, um dos processos centrais de produção.
Portanto, estudá-lo, entendê-lo e interpretá-lo é tarefa da crítica que
queira compreender com relativa profundidade a obra deste importante
dramaturgo de nossa língua.
Como se pôde observar, alguns dos dados que selecionamos para
analisar foram, de certa forma, extratextuais. Espaço de representação,
datas, mecenas e circunstâncias motivadoras da criação artística não
constituem objetivamente a escrita vicentina. Todavia, como vimos,
para a perspectiva que tomamos em nosso estudo tais dados revelaramse extremamente significativos, já que o contexto que possibilitou a
encenação dos autos determinou, por diversas vezes, o assunto, os temas,
a óptica em que se tomaram esses temas (irônica, paródica, moralista e
encomiástica), a configuração das personagens e, por fim, os próprios
temas repetidos ao longo dos autos.
Por outro lado, os dados intratextuais selecionados e analisados
permitiram-nos corroborar a fala de Paul Teyssier, com que abrimos este
estudo, de que a repetição foi técnica de criação no teatro vicentino e
que ao recorrer a tal processo Gil Vicente o fez de maneira inovadora.
Além disso, artista a serviço da corte, como vimos repetindo, através do
processo de reiteração de tópicos, Gil Vicente contribuiu por diversas
vezes para divulgação e afirmação dos ideais políticos-ideológicos
defendidos pelos dois monarcas a que serviu. O uso da farsa de caráter
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O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc. XVI [75-105]
satírico, da moralidade de cunho edificante ou das fantasias alegóricas
com intuito laudatório permitiu ao dramaturgo cumprir seu papel de
funcionário real, defensor do status quo reinante, ao mesmo tempo
que desenvolvia de forma magistral a função lúdica da arte que criava,
ou seja, ainda que consciente do papel político que seu teatro exercia,
Vicente não descuidou do caráter estético, nem do objetivo primordial
do texto teatral, o entretenimento.
Por fim, acreditamos ter comprovado que, mesmo sendo funcionário
real e tendo como mecenas as figuras centrais do poder monárquico
português, Gil Vicente não se esquivou de condenar, fosse através da
sátira ou da moralidade, as imperfeições que observava tanto nas classes
baixas da sociedade, como nas três instituições pilares desta. Seu verbo
crítico atingiu a todos sem distinção. Se algumas vezes foi necessário
o recurso a subterfúgios para denunciar os erros, isto não impediu de
fazê-lo. Ao atentarmos para seus autos, personagens, cenas e linguagem,
vemos nas entrelinhas, no não dito, no figurado, aquilo que deseja
realmente expressar.
Se “para letras o teatro não passa todo”, como afirma Osório Mateus
(1988, p. 9), cabe ao crítico revelar o máximo dos significados que o texto
e sua organização criam. Na impossibilidade de reconstituir as formas de
representação do teatro vicentino e até mesmo de compreender com
segurança os contextos em que os autos foram criados, podemos através
da leitura atenta e paciente fazer saltarem os sentidos escondidos ou
presos nos subterrâneos do texto. Com este intuito este texto se fez.
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Palavras na pintura de Ana Karla Zahran e Evandro Prado [107-124]
Palavras na pintura de Ana Carla Zahran e
Evandro Prado: intimidades e conceitos
Words in the painting of Ana Carla Zahran and Evandro
Prado: intimicies and concepts
Priscilla Paula Pessoa
(UFMS)
Resumo: O texto discute a presença marcante de elementos da escrita na
pintura, trazendo uma leitura dessa prática por artistas contemporâneos
sul-mato-grossenses, situando-os para além da cena artística local. Em obras
de Ana Carla Zahran e Evandro Prado, identifica-se tanto o hibridismo de
pintura e literatura como também suas diferentes ênfases em cada caso:
o íntimo e o conceitual.
Palavras Chave: Arte Contemporânea. Pintura. Mato Grosso do Sul.
Abstract: The paper discusses the strong presence of elements of writing in the
painting, bringing a reading of this practice by contemporary artists of Mato
Grosso do Sul, placing them beyond the local art scene. In works of Ana
Carla Zahran and Evandro Prado, identifies both the hybrid of painting and
literature as well as their different emphases in each case: the intimate and
the conceptual.
Keywords: Contemporary Art. Painting. Mato Grosso do Sul.
Nas últimas décadas (entre os anos 1995 e 2009), se observarmos
as grandes exposições realizadas em todo mundo (tomou-se como base
especialmente as bienais de Veneza e de São Paulo e as exposições
realizadas no Museu de Arte Moderna de Nova York, além de publicações
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que cobrem o circuito de arte nacional, como a revista brasileira Bravo1
e DasArtes2), duas constatações podem ser obtidas: a sobrevivência da
pintura, ainda que sem predominância em quantidade, e a presença
maciça de elementos da escrita nessas telas.
Que época é esta em que vivemos? Segundo Masi (1999), no plano
da cultura e das artes visuais em particular, o nome polêmico, porém mais
consensual é o de pós-modernismo. Pensar a arte no pós-modernismo
(a chamada arte contemporânea) implica voltar à sua gênese: a arte na
sociedade atual evoca-nos uma história da arte que se inicia na segunda
metade do século XX.
Gombrich, em História da Arte (obra que teve sucessivas edições
desde 1950 até 1995), testemunhou as metamorfoses no modo de
percepção do público, após a segunda metade do século XX, em relação
à arte, aos artistas e aos fatores que as motivaram. No capítulo “Arte
Experimental”, relativo à primeira metade do século XX e concebido
pela primeira vez em 1950, o estudioso expressa em seu pós-escrito
de 1966 o que chama “cena instável”: “[...] considerei axiomático
que era dever do crítico e do historiador explicar e justificar todas as
experiências artísticas em face das críticas hostis” (1995, p. 610), para
logo em seguida observar: “O problema consiste sobretudo em que o
choque se atenuou e quase tudo o que é experimental parece aceitável
tanto para a imprensa quanto para o público” (1995, p. 610). Assim,
chegamos a supor a questão: a arte contemporânea existe de fato ou
é uma simples nomeação a um conjunto heterogêneo de obras que
surgiram principalmente a partir da década de 1950? Tal qual como
quando falamos dos pós-impressionistas do final do século XIX devemos
tomar cada artista como um fenômeno isolado? Menegazzo (2004)
também aponta para a dificuldade de se elaborar uma teoria que dê
conta da diversidade e da fragmentação da arte contemporânea e aborda
diversas teorias a respeito do pós-modernismo. Indica, porém, dois
1
2
Revista mensal publicada pela Editora Abril.
Revista bimestral publicada pela Editora Indexa.
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Palavras na pintura de Ana Karla Zahran e Evandro Prado [107-124]
pontos de consenso: o de que tudo começa após a Segunda Grande
Guerra e que o homem hoje experimenta uma expressiva mudança
de sensibilidade. Ao passo que “[...] a essência do modernismo está no
uso de métodos em sim mesmos característicos de uma disciplina não
para subvertê-la, mas para enraizá-la mais firmemente em sua área de
competência” (GREENBERG apud FOSTER, 1996, p. 177), a marca maior
da arte contemporânea está na subversão de valores dentro do sistema
de arte estabelecido.
Assim, a partir da década de 1950, as obras tornam-se impuras (cf.
Greenberg, 1986): misturam-se estilos e tipos de arte, cores, formas e
materiais. A arte sai da sua redoma, que já havia começado a estilhaçar
nas décadas anteriores: as pinturas deixam de aparecer só em quadros;
a escultura faz-se de gesso, de plástico e até de lixo; as misérias tornamse estéticas. A partir daqui, só a filosofia pode tentar mostrar-nos qual a
essência da arte e o que significa o momento em que ela se encontra. Não
mais atrelada à pureza formal de seus materiais, a arte contemporânea
volta-se para as “impurezas textuais” (cf. FOSTER, 1996). A separação
entre disciplinas artísticas (como pintura e literatura), que começa com as
vanguardas modernas, já não tem mais relevância e as impurezas textuais
quebram qualquer limite entre diferentes linguagens. Esse hibridismo é
tendência clara na arte contemporânea.
Interessa-nos especialmente a relação entre letras e imagens, uma
constante na história da arte ocidental até o século XV, quando passa a
haver uma hierarquização dessa relação que só é quebrada no século XX
, momento em que as letras irrompem no espaço do quadro, integradas
ao discurso plástico, passando o texto a interferir no interior da imagem,
funcionando também como imagem. Na pós-modernidade esse diálogo
se estreita ainda mais, como resultado não só da continuidade das
experimentações modernas, mas especialmente pelo caráter narrativo
das obras de cunho conceitual.
O que é fato é que inúmeros artistas plásticos contemporâneos têm
utilizado, com frequência, textos, letras, ideogramas e tudo o que remete à
escrita em seus trabalhos, num processo de apropriação e de desconstrução.
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Esses artistas por vezes se apropriam de procedimentos de impressão próprios
da escrita, como a tipografia, textos de jornais, revistas e embalagens (como
Warhol e Rauschenberg), tirando esses elementos do seu contexto original e
colocando-os em um novo contexto, desconstruindo seu sentido original e
criando novas possibilidades de sentido. Já no trabalho de outros artistas, a
escrita remete às garatujas, à caligrafia, aos ideogramas e a diferentes alfabetos,
assim como signos e símbolos (Motherwel, Cy Twombly e Tápies), apontando
para o caráter plástico da letra. Há, ainda, aqueles que utilizam palavras e
frases como elementos de suas pinturas intimistas, nas quais a narrativa se
aproxima dos diários pessoais, repletos de reflexões e de citações. Por fim, e
principalmente, temos a arte conceitual (Kosuth, Kruger, Ann Hamilton), que
lida com uma realidade material, ou seja, a própria linguagem, pois “[...] mesmo
nos casos mais extremos não pode se dar a desmaterialização completa, pois
palavras escritas ou orais são também objetos culturais, perceptivos, aos quais
se atribui significação”(KOSUTH apud WOOD, 2002, p. 51).
1. Pinturas + palavras no Mato Grosso do Sul
Criado por decreto-lei em 1977, o Estado de Mato Grosso do Sul
“nasce” ao mesmo tempo em que no circuito mundial de arte vive-se o
auge conceitual, com predominância da ideia sobre o objeto. Obviamente
o fato de começar a existir como Estado apenas na década de 1970 não
significa que no território que hoje ocupa não houvesse antes produção
artística: de acordo com Espíndola (2004), há registros de pintores atuantes
no local desde o começo do século XX; porém, também é errôneo
afirmar que a arte produzida no Estado desde sua criação possa ser dita
contemporânea. Dois anos após a divisão, Figueiredo pontua que:
A verdade é que a situação artística no sul do estado, no momento
de sua divisão, é de se lamentar, frente às grandes perspectivas que tal
evento descortina. Entretanto existem artistas e intelectuais campograndenses, produtos de uma circunstância que se revelou de valor
histórico. A oportunidade que tais elementos possam vir a ter é de
fundamental importância para um florescimento cultural realmente de
interesse e nível nacional (1979, p.180).
110
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Com efeito, até a década de 1970, a produção artística era incipiente
e apenas dois nomes obtiveram alguma projeção nacional: Wega Nery
e Humberto Espíndola. Espíndola especialmente merece nossa atenção
não somente por seu currículo invejável no circuito nacional e mundial
de arte, que inclui uma participação na Bienal de Veneza, em 1972,
mas também porque durante muitos anos, após a criação do Estado, ele
seria também um dos raros artistas sul-mato-grossenses que propunha
em suas obras discussões que fossem além das questões formais próprias
de cada técnica.
Se pensarmos mais especificamente na produção pictórica, veremos
que a pintura de “temas” é a tônica e que a pesquisa de possibilidades
da pintura – um estandarte moderno - ainda norteia a maioria dos
pintores locais. Rosa (2005, p. 15) observa que “[...] nas estruturas
superficiais das telas dos artistas de Mato Grosso do Sul surgem bois,
pássaros, peixes, jacarés, barcaças, índios e plantadores de soja e erva
mate. O verde dos camalotes. O verde dos camalotes invade a riqueza
da flora pantaneira”.
Porém, há artistas que buscam em seus trabalhos quebrar esse vínculo
com o moderno e com a temática regionalista; se nossa atenção voltar-se
especialmente para o período a partir da década de 1990, é crescente o
número de artistas locais que buscam acertar os ponteiros de sua arte com as
tendências mundiais e partem para pesquisas com novos meios e tecnologias
e, principalmente, adotam poéticas e conceitos que vão além da exploração
da materialidade de suas linguagens. Maldonado, no texto do catálogo da
exposição Panorama – 30 anos da divisão do estado, pontua que:
A partir de 2000, nota-se a nítida mudança na atitude do fazer de uma
nova leva de artistas (...) Estamos então diante de uma situação marcada
pela tentativa de abandono das linguagens tradicionais, dando vazão à
curiosidade e proposição de outros mecanismos de expressão. São artistas
que tentam freqüentemente desenvolver pesquisas e experimentações
em sintonia com o tempo presente: ousar é a palavra chave, investigar
é a solução. Uma geração de jovens que busca informações constantes
para compor o campo de suas análises e inquietações, criando obras com
diferentes narrativas na busca de entender a relação entre a linguagem
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e seus significados. O importante é poder perceber que a articulação de
idéias resultante desse fluxo contínuo de conhecimento proporciona uma
mobilidade de ação que reflete naquilo que é produzido (2007).3
Em se tratando de pintura, tomamos como base para os levantamentos
os panoramas realizados pelo Museu de Arte Contemporânea de Mato
Grosso do Sul em 2004 e em 20074 (que nas duas edições trouxe
salas dedicadas a trabalhos contemporâneos), a exposição Diálogos
Contemporâneos, realizada em 2004 no mesmo Museu, e também
as exposições realizadas nas edições do Festival da América do Sul de
2005, 2006 e 2007, cuja curadoria privilegiou a contemporaneidade ao
selecionar artistas e obras para representar o Estado.
A partir desses eventos, pode-se notar que ainda é a pintura a
linguagem preferencial entre os artistas contemporâneos do Estado:
sua presença é maciça e predominante. Todavia, encontramos pintores
preocupados em imprimir a seus trabalhos narrativas pós-modernas, sejam
essas reflexivas e intimistas, ou contundentes e conceituais. Como é próprio
dos textos contemporâneos, estes também não se apresentam organizados
e de fácil leitura, mas formam jogos com seus elementos, tal qual quebracabeças destinados ao espectador para que os monte e com eles interaja
mentalmente. Para conseguir tal efeito de sentido, muitos desses artistas
lançam mão da inserção de grafemas5 e de escrituras6 em suas pinturas.
Disponível em http://www.marcovirtual.com.br/ Acesso em 7 jan. 2008.
As exposições são, respectivamente, Um panorama da história das artes plásticas em Mato
Grosso do Sul através do acervo do MARCO e Panorama: 30 anos da divisão do Estado
5
Segundo Câmara (1978, p.174), grafemas são “símbolos gráficos unos, constituídos por
traços gráficos distintivos, que nos permitem entender visualmente as palavras na escrita, da
mesma sorte que os fonemas nos permitem entendê-las auditivamente na língua oral”. Assim,
grafemas são as letras, os sinais de pontuação, os ideogramas e os sinais diacríticos.
6
Barthes (1977) define escritura como sendo a grafia para nada, ou o significante sem significado.
Aqui, as palavras não são usadas como instrumentos de uma linguagem, mas justamente como
desfuncionalização desta. A linguagem que constitui a escritura recusa a condição de linguagem
utilitária, não sendo apresentada apenas como um meio de comunicar cuja função se extingue
tão logo o fim (a decifração do significado verbal) seja atingido. A escritura não cumpre essa
função, sua caligrafia não se identifica com letras e alfabetos conhecidos do espectador, justamente porque é uma escrita exclusiva do artista e pertence apenas ao universo do quadro.
3
4
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Palavras na pintura de Ana Karla Zahran e Evandro Prado [107-124]
Dentre os artistas contemporâneos sul-mato-grossenses que utilizam
esse recurso em suas pinturas, podemos citar vários nomes: Ana Karla
Zahran, Rafael Maldonado, Heron Zanatta, Lúcia Barbosa, Patrícia
Rodrigues, Priscilla Paula Pessoa, Evandro Prado, Douglas Colombelli,
Marisa Anzoateghi, Edson Castro, entre outros. A seguir, analisaremos
essa produção a partir das obras de Zahran e de Prado, dividindo-a de
acordo com o tipo de narrativa proposta: intimista ou conceitual.
2. Uma narrativa intimista: A Carta
Na pintura do raiar do século XXI ainda sentem-se reflexos de
uma das características mais típicas da produção pictórica ocorrida
na década de 1980: as narrativas intimistas, em que o artista comenta
sua própria vida ou suas impressões sobre as coisas cotidianas que o
cercam. Não se deve estranhar a recuperação da pintura para esse
fim, mesmo em meio a um turbilhão de possibilidades materiais e
tecnológicas para servirem de meio para a arte. Cauquelin (2005)
constata que é por fragmentos que as grandes referências históricas da
arte são utilizadas hoje e valores da arte moderna estão presentes na
arte contemporânea; dessa forma, a mistura do tradicional à novidade
e o olhar para o passado caracterizam esse momento.
A emoção, o fazer pictórico, o gestual retornam e a estética se
aproxima novamente da atividade artística. Empregando a pintura, o
artista volta a ser o autor e o senhor de sua criação, e por esse caráter
tão artesanal é que a linguagem pictórica se presta adequadamente
quando a intenção é construir narrativas carregadas de autoreferências e pessoalidades. E nessa mesma toada entende-se porque
é tão natural para esses artistas escreverem em suas telas, expondo
ao observador seus pensamentos e seus sentimentos através de um
código decifrável: as palavras.
Tomemos como exemplo Ana Karla Zahran, pintora, desenhista e
cenógrafa sul-mato-grossense. Seus trabalhos trazem uma forte carga
onírica como se ela compartilhasse com o observador de sua tela seus
próprios sonhos e seu imaginário, os quais narra na mesma ordem em
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que acontecem sonhos e devaneios: a ordem do caos, sem começo meio
e fim, um texto solto no espaço da obra cujas diversas pontas cabem a
quem está de fora amarrar. No trabalho de Zahran, “[...] a narrativa linear
cede lugar a experiências sensíveis, brotadas do terreno do inconsciente,
em que o passado ganha prioridade” (ROSA, 2005, p. 122).
Seu trabalho é repleto de referências à história da arte e de
citações literárias, como se a artista nos comunicasse em suas obras suas
paixões pessoais e construísse cada composição com elementos de sua
memória artística e pessoal. Da história da arte ela retira referenciais
para formar sua própria poética visual. É difícil observar uma tela
ou aquarela sua sem sentir a presença melancólica de Modigliani, a
reverberação de Magritte e suas simbologias ou a reminiscência das
cores e das formas típicas de algumas fases de Klee. Dos seus escritores
favoritos (Clarice Lispector, Lya Luft e Mário Quintana), Zahran toma
emprestados fragmentos que desloca das páginas dos livros e insere
em suas pinturas, de modo a formarem outro texto, a ser lido em
conjunto com as imagens. Nada disso faz dela uma cópia ou um
pastiche, muito pelo contrário: o toque de contemporaneidade no
trabalho da artista está justamente no seu diálogo com a história da
arte e no hibridismo das linguagens. Discorrendo sobre a marca do
hibridismo na contemporaneidade, Bourriard (2002) observa que as
características de um produto cultural híbrido são difíceis de abarcar,
a não ser levando em conta sua instável complexidade.
O artista contemporâneo habita todas as formas de arte. O problema
não é produzir novas formas, mas inventar dispositivos de “habitat”.
Habitar formas de arte já historiadas, reativando-as, mas também
habitar outros campos culturais. É exatamente o que se passa na arte
dos anos 2000: o artista é permanentemente um intruso em outros
campos (...) Não é mais criar, mas surfar sobre as estruturas existentes.
“Interdisciplinaridade” é, certamente, um termo freqüente na arte
contemporânea: eu pessoalmente não creio que ainda exista, neste nível
de criação, algo que possamos chamar de disciplinas. Existem apenas
campos de signos, de produção, que os artistas exploram de ponta a
ponta (BOURRIARD, 2002, p. 76).
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Palavras na pintura de Ana Karla Zahran e Evandro Prado [107-124]
Assim, utilizando a liberdade instituída pela arte contemporânea
de transitar entre as disciplinas (cujas fronteiras estão tão esmaecidas a
ponto de nem sempre podermos distinguir uma da outra) e passear pela
própria história da arte como quem vasculha um baú de lembranças
trazidas de viagens, Zahran constrói obras como A Carta. (Fig. 1).
Fig. 1: A carta, de Ana Karla Zahran, 2002 (Fonte: MARCO).
Nessa obra, tudo é leve: o azulado claríssimo que predomina remete
ao aéreo e os elementos parecem flutuar. A frase Nas cartas antigas
também o amor amarelece obedece a este mesmo comportamento:
não está inscrita numa linha reta como é comum no modo ocidental
de escrever, mas acompanha o fluxo da forma do quadrado maior que
existe no centro da composição, contornando-o sem nele encostar; as
palavras são manuscritas, deixando clara a presença física da artista,
sua letra caligráfica e feminina. Trata-se de uma citação do poeta Mário
Quintana, retirada do poema “Retrato sobre a cômoda”:
Ah! Esses quadros de antanho
quase tão horríveis como a palavra antanho...
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não de um horrível ridículo, mas de um ridículo triste,
porque se pode ver entre o vidro e o retrato
uma folha outrora verde, uns cabelos que já foram vivos
e agora para sempre imóveis na moldura negra
e, na fotografia, alguém está sorrindo eternamente
quando um sorriso, para ser sorriso, devia ser efêmero...
Lá fora é uma tarde fin de siècle, uma tarde outoniça que parece
tirada da gaveta desta cômoda.
... e, nas cartas antigas, também o amor amarelece (1992, p. 56).
Para Compagnon (2007), a primeira forma de citação encontra-se
já no ato de sublinhar. A leitura, nesse sentido, é uma forma de adesão
ou de apropriação do texto. Enquanto leitura, a citação aparece como
solicitação do texto à repetição; o que se cita é aquilo que o texto
primeiro convida a retirar e compele a repetir. O ato de citar de Ana
Karla Zahran torna-se um produto da excitação operada previamente
no texto-leitura. Mas, ao ser reescrita, a citação de um fragmento do
poema de Mário Quintana manifesta uma incitação, uma inserção que
forma um novo texto, com um novo sentido.
Escrever [...] é sempre reescrever, não difere de citar. A citação, graças
à confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato de
leitura ao de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citação. A
citação representa a prática primeira do texto, o fundamento da leitura e
da escrita: citar é repetir o gesto arcaico do recortar-colar, a experiência
original do papel, antes que ele seja a superfície de inscrição da letra, o
suporte do texto manuscrito ou impresso, uma forma da significação e da
comunicação lingüística (COMPAGNON, 2007, p .41).
A citação feita por Zahran, solta em meio à tela e flutuando
entre os demais elementos que formam seu texto, revela muito
da interpretação da própria artista. A repetição de um trecho por
certo muito caro à pintora não fixa ou fecha o sentido, mas abre-o à
significância através da criação de uma nova obra. Assim, a citação
no quadro A Carta não pode ser entendida como simples fenômeno
de imitação, mas acarreta, inevitavelmente, ao reproduzir-se, uma
perturbação do sentido.
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Palavras na pintura de Ana Karla Zahran e Evandro Prado [107-124]
Além da frase manuscrita, na pintura há também a inserção de letras
tipográficas isoladas (L, U e A) e pode se ler, ainda, a palavra lua. Esses
grafemas e a palavra estão situados nas “repartições” que a artista faz
dentro da forma maior que ocupa o centro do quadro, cada uma isolada
no espaço demarcado pela
confluência das linhas tênues.
Há também a representação de
pequenas luas crescentes, como
se Zahran fizesse diferentes
representações de um mesmo
referente, num jogo entre
significante e significado. Há
que se notar também como a
organização das formas e mesmo
as letras soltas e espalhadas na
composição remetem a algumas
obras de Paul Klee, como Vila R
(fig. 2). Porém, essa é mais uma
apropriação típica do trabalho
de Zahran, uma referência
Fig. 2. Vila R, de Paul Klee, 1919.
(Fonte: PEREIRA, 1976)
quase deferente e em momento algum plagiadora, visto que em sua
obra tanto formas quanto grafemas assumem um sentido que só existe
dentro daquele texto.
Vemos ainda em A carta, por sobre as formas centrais, escrituras:
grafias manuscritas que não se identificam com o alfabeto ocidental; são
indecifráveis, como se seu sentido pleno somente pertencesse à artista:
assim, do mesmo modo que Zahran divide com o observador suas
memórias, referências, vivências e sentimentos, da mesma maneira que
ela compartilha conosco um trecho de um de seus poemas favoritos, a
sua escrita pessoal - o “conteúdo” da carta que dá nome ao quadro –,
ela esconde, apresentando uma escrita esvaziada de significado.
A carta apresenta-nos uma narrativa complexa, enviesada e geradora
de diversos possíveis sentidos, como um bilhete cifrado que, mesmo
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ao cair em mãos alheias, não pode ser nunca decifrado em seu todo,
e é nesse jogo de contar e omitir que repousa sua graciosidade; é uma
narrativa que se imbrica com várias linguagens, e a artista parece ser
consciente de que nenhuma arte poderá dizer tudo, pintar tudo, mas
por outro lado, parece-nos sugerir também, nas suas escrituras e citações,
um fazer plural de vozes, de fontes, de registros, diversas constelações
de dizeres e fazeres.
3. Uma narrativa conceitual: Boas Vibrações Líquidas
Partindo da ideia de que na narrativa, segundo as teorias
contemporâneas de autores como Ricouer (1994) e Goodman (1981),
tanto pinturas como parágrafos têm de ser lidos como um código
arbitrário e que tal código é dado pelo universo cultural no qual a
pintura ou o texto está inserido, podemos pensar de que maneira o uso
da narrativa é retomado na pintura contemporânea: tal fenômeno só é
possível porque mudaram tanto a teoria como a prática pictórica. Uma
obra conceitual analisada suponhamos, em 1907, primeiramente não
seria chamada de arte; e uma obra na qual hoje podemos identificar
um caráter narrativo jamais teria essa denominação há 100 anos atrás,
porque o significado de narrativa se alterou.
Dessa forma, a prática da pintura presta-se à realização de obras
conceituais uma vez que sua narrativa apresente-se sob esses novos
moldes; rejeitada na década de 1970 como meio para a arte conceitual,
retomada na década de 1980 com um caráter mais intimista, na
atualidade a pintura reaparece muitas vezes unida ao conceito. Sobre esse
assunto Lagnado (1987, p. 23) comenta que “[...] se na época [década
de 1980] a expressão ‘pintura conceitual’ soava como palavrão, hoje está
claríssimo que é uma proposta estética que veio revigorar uma velha e
sofrida questão: a de representação”.
A arte conceitual, onipresente em maior ou menor grau nas obras
de arte da contemporaneidade, é das expressões mais filosóficas da arte,
um momento em que esta se apresenta em conceitos e não em formas
sensíveis. Já que as ideias são o mais importante para a arte conceitual,
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Palavras na pintura de Ana Karla Zahran e Evandro Prado [107-124]
a execução das obras fica num segundo plano e tem pouca relevância.
Nas pinturas conceituais, a relação entre materialidade e narração
tem suas características formais substituídas por comentários sociais e
políticos. A arte contemporânea permite que todos os caminhos e meios
sejam possíveis e que os conceitos constantes na obra dialoguem de
forma concisa com os recursos utilizados pelos artistas na construção de
seus textos, sejam esses recursos grandes aparatos tecnológicos, ou uma
pintura feita com material semelhante ao que usaria um renascentista,
uma vez que a arte conceitual reporta a um comprometimento com
questões que transcendem o ato gestual.
Vivemos uma época na qual há, na pintura, uma retomada dos
elementos da escrita, não mais como tentativa de explicação / tradução
de imagens, mas sim no sentido de atribuir-lhes sentido. Flusser
(1996) nos fala de tecnoimagens, que seriam diferentes das imagens
tradicionais, produzidas desde a Pré-História: as primeiras funcionariam
como instrumentos para tornar imaginável a mensagem dos textos. A
contemporaneidade não se caracterizaria mais pela prevalência de uma
“modalidade” (escrita ou imagem) sobre a outra, pelo contrário, ela se
distinguiria pela presença de ambas em concomitância. Dessa maneira,
as imagens atuais não excluiriam os conceitos; elas se “mesclariam” /
conviveriam em harmonia com os textos verbais. Segundo Flusser, “[...] o
pensamento conceitual, o qual na sua origem era iconoclástico, passa a ser
atualmente preparador para o pensamento imaginativo novo. Serve, não
mais para explicar o mundo, mas para dar-lhes sentido” (1996, p. 14).
Evandro Prado é um artista sul-mato-grossense que ilustra
bem o uso da pintura como suporte da arte conceitual, sendo que
em seu trabalho a presença do conceito é mais evidente; em sua
breve trajetória artística, Prado já é um dos artistas do Estado com
maior expressão nacional, realizando exposições individuais de
repercussão e sendo selecionado e premiado em diversos salões de
arte no Brasil. Prado utiliza diversas linguagens, puras ou híbridas,
em sua criação: instalações, objetos, assemblages, intervenções e
também pinturas. Analisaremos uma pintura sua na qual tanto o
caráter contemporâneo quanto a presença da narrativa são notórias,
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Priscilla Paula Pessoa [107-124]
pertencente à série Habemus Cocam, na qual Prado utiliza-se, como
em todas as pinturas, de palavras e frases integradas à imagem,
compondo obras narrativas passíveis de leitura. Em depoimento para
a autora do presente trabalho, recolhido por e-mail, Prado afirma
que “[...] todas as pinturas da série Habemus Cocam são realmente
narrativas, e eu me utilizo da narrativa porque tenho algo a dizer
às pessoas, meu trabalho tem um certo engajamento político, e me
utilizo dessa narrativa para poder passar meu recado”. Ainda sobre
essa série, Maldonado pondera que:
Na série Habemos Cocam há uma interessante relação entre conceito
e plasticidade. O conjunto de pinturas, que recebe um tratamento
de representação realista, assume a visualidade de comunicação da
linguagem publicitária, onde as formas são pensadas estrategicamente
para atrair a nossa atenção. A marca Coca-Cola, que para o artista é
um dos símbolos do consumismo globalizado, surge como elemento
que dá unidade à obra, fazendo uso de maneira irônica das variações
desenvolvidas pela marca. A crítica ao modo de produção capitalista,
onde a propaganda é ferramenta fundamental para a venda e o
consumo em massa de produtos, é uma das questões importantes
presentes na série (2005, p.01).
Em Boas Vibrações Líquidas (fig. 6), temos um exemplo dessa
narrativa conceitual cuja tônica é a crítica à organização capitalista e
sua consequência, a sociedade de consumo. É uma narrativa à moda
contemporânea, desobediente à sequencialidade e que não se entrega
facilmente à leitura, utilizando palavras para fazer seu jogo carregado
de ironia com o espectador. Trata-se de uma narrativa complexa que,
para ser apreendida pelo leitor, necessita que ele recorra a outras fontes
da própria história da arte:
• Faz referência direta à obra Guernica, de Pablo Picasso (fig. 3);
• Evoca a linguagem da Pop Arte, apropriando-se das características
visuais de um produto de massa, a Coca Cola (fig. 4);
• Remete ao jogo já icônico de René Magritte com seu “isto não
é aquilo (fig. 5).
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Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
Palavras na pintura de Ana Karla Zahran e Evandro Prado [107-124]
Fig. 3 – Latinhas de Coca-Cola, de 2005.
(Fonte: acervo pessoal da autora).
Fig. 4. Detalhe da Guernica, de Pablo
Picasso, 1937. (Fonte: WALTHER, 1994)
Prado parte desses três pontos para
construir sua narrativa. Ao retomar
uma das figuras da Guernica de
Picasso - pintura que está entre
as obras mais conhecidas da
Fig. 5: A traição das imagens, de René Magrithistória da arte – o artista sulte, 1926. (Fonte: FOCAULT, 2002).
mato-grossense procura por um símbolo imediatamente reconhecível ao
seu observador e conta como inclusa também na imagem a reminiscência
imediata ao contexto da obra original de Picasso: o artista estava engajado
com a causa antifascista da Guerra Civil Espanhola e pretendia que sua obra
fosse uma espécie de instrumento de denúncia contra as atrocidades da
guerra e contra a eterna desumanidade do homem.
A personagem extraída da Guernica e enxertada por Prado em sua
pintura é cinzenta, prostrada, deformada, contrastando com outra citação
externa: a campanha publicitária do refrigerante Coca-Cola. O artista
apropria-se da linguagem característica da marca em suas divulgações
- a cor vermelha, as ondas, a simulação de gotas e a silhueta da própria
garrafa de Coca-Cola - para evocar o conteúdo desses anúncios: os
prazeres e sensações proporcionados pelo consumo desse produto.
Menegazzo (2004) observa que a arte pop realiza uma leitura cínica
daquilo que já foi lido e está inscrito na cultura como símbolo; não se
trata de um retorno à representação naturalista, mas de inserir na arte e
ao mesmo tempo esvaziar essas imagens de consumo já elaboradas.
Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
121
Priscilla Paula Pessoa [107-124]
O terceiro recurso narrativo empregado na pintura analisada
é uma frase, extraída de um dos modelos de latinhas de Coca-Cola
correntes no Brasil em 2005: Boas vibrações líquidas. Essa frase é o elo
entre as duas citações visuais, a da Guernica e a da identidade visual
de um produto: Boas vibrações líquidas funciona como uma legenda
irônica para o retrato de miséria humana que é a Guernica. Essa
utilização ambígua do texto escrito em relação ao texto visual é por si
só também mais uma referência à história da arte: René Magritte discute
constantemente em seus quadros a questão do choque entre realidades,
do que é e do que deveria ser, ou do que é e seus desdobramentos
e contrastes. Pintou um cachimbo e escreveu na tela “isso não é um
cachimbo”. Insistia em afirmar que a tela era apenas a representação
de um cachimbo e não se poderia fumar nele (fig. 5). Na obra de
Evandro Prado, a inserção da frase funciona como uma denúncia da
discrepância entre o mundo de fantasia da sociedade de consumo e o
mundo de provações da maioria da população brasileira e de parcela
considerável da população mundial.
Fig. 6 – Boas Vibrações Líquidas, de Evandro Prado, 2005. (Fonte: acervo pessoal da autora)
122
Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
Palavras na pintura de Ana Karla Zahran e Evandro Prado [107-124]
Assim, temos na obra Boas Vibrações Líquidas uma típica forma
de narrativa contemporânea: textos desprovidos de seqüencialidade
cronológica e que têm de ser lidos como um código arbitrário, dado
pelo universo cultural no qual a pintura está inserida; uma narrativa que
já não se apresenta clara e o seu leitor tem de aprender o código para
conseguir ler. O artista contemporâneo narra e comenta seu tempo, mas
sempre através do “implicitamente dito”.
REFERÊNCIAS
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BOURRIAUD, Nicolas. O que é um Artista (hoje)? In: FERREIRA, Glória (Org.). Arte
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2002.
Índice de Figuras
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Arte Contemporânea de Mato Grosso do Sul, Campo Grande. Fotografia de Priscilla
Paula Pessoa.
Figura 2. KLEE, Paul. Vila R. 1919. Óleo s/ tela, 26.5 x 22 cm. Kunstmuseum Museum,
Basiléia. Fonte: PEREIRA, Wilcon. Escritema e Figuralidade nas Artes Plásticas
Contemporâneas. Assis: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1976.
Figura 3. Latas do refrigerante Coca-Cola, Edição 2005. Fotografia de Priscilla Paula
Pessoa.
Figura 4. PICASSO, Pablo. Guernica (detalhe). 1937. Óleo s/ Tela, 350 x 782 Cm. Centro
Nacional de Arte Rainha Sofia, Madrid. Fonte: WALTHER, Ingo. Picasso. Tradução de
Ana Maria Collert. São Paulo: Taschen, 1994.
Figura 5. MAGRITTE, René. A Traição das Imagens. 1926. Óleo s/ tela, 26.5 x 22 cm.
Coleção Copley, Nova York. Fonte: FOUCAULT, Michel. Isto não é um Cachimbo
Tradução de Jorge Coli. São Paulo, Paz e Terra, 2002.
Figura 6. PRADO, Evandro. Boas Vibrações Líquidas. 2005. Acrílica s/ tela, 120 x 215
cm. Acervo da autora. Fotografia de Priscilla Paula Pessoa.
124
Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
Fausto Cunha e “A vela que o mundo apagou” [125-133]
Fausto Cunha e “A vela que o mundo apagou”
Fausto Cunha and the short-story “A vela que o mundo apagou”
Ramiro Giroldo
(PG/USP)
Resumo: O artigo discute o conto “A vela que o mundo apagou”, publicado
em As Noites Marcianas (1960), de Fausto Cunha. É um texto na fronteira
entre a escrita ficcional e a ensaística, lido com a complementaridade entre
diferentes formas de expressão. O artigo, levando em conta a apropriação
de uma dada poética borgiana, procura ler “A vela que o mundo apagou”
como exemplo de apagamento das fronteiras entre ficção científica e a
literatura canônica.
Palavras-Chave: Fausto Cunha. “A vela que o mundo apagou”. Jorge Luis Borges.
“Pierre Menard, autor do Quixote”.
Abstract: The paper discusses the short-story “A vela que o mundo apagou”,
published in As Noites Marcianas (1960), by Fausto Cunha. Placed in the
borders of the fictional and the essayistic writing, the text thematizes the
complementarity between different forms of expression. The paper, taking
in account the appropriation of Borges’ poetics, intends to read “A vela
que o mundo apagou” as an example of erasure of boundaries between
science fiction and canonic literature.
Keywords: Fausto Cunha. “A vela que o mundo apagou”. Jorge Luis Borges.
“Pierre Menard, autor do Quixote”.
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Ramiro Giroldo [125-133]
1. Thomas Muliro: “A vela que o mundo apagou”
Fausto Cunha, escritor e crítico literário falecido em janeiro de
2004, publicou, entre outras obras, A Luta literária (1964), O Romantismo
no Brasil: de Castro Alves a Sousândrade (1971), As Noites Marcianas
(1960) e O Dia da Nuvem (1980). Entre os volumes por ele organizados,
constam, por exemplo, Antologia Cósmica - Primeiros Contatos Com
Seres Extraterrestres (1981) e Melhores Poemas de Mario Quintana (1985).
Postular que Cunha cultivava em seus escritos um duplo foco de interesses,
a literatura oficialmente aceita como tal e a ficção científica, equivale a
impor ao seu pensamento uma distinção muito clara entre o cânone e
o que dele se exclui. Distinção que, especialmente quanto a parâmetros
valorativos, não é assim nítida em sua produção, pelo contrário.
O conto aqui tomado como objeto, “A vela que o mundo apagou”,
foi incluído na primeira edição da antologia As Noites Marcianas (1960)1,
publicada pela Edições GRD2. O conto lida com os critérios responsáveis
por permitir que algumas velas se apaguem enquanto outras permanecem
acesas, pondo em relevo a arbitrariedade do processo.
O texto é construído como a resenha crítica de um livro imaginário, A
Vela Que o Mundo Apagou, escrito por W. Korwi. Lê-se, no topo da página
inicial, “Livros Recebidos” e, logo abaixo, o título da obra resenhada.
O parágrafo seguinte, repleto de adjetivos engrandecedores, delimita a
pretensa importância da obra e do intelectual nela analisado:
Acaba de aparecer em nossa língua a tradução do já famoso livro de W.
Korwi, A Vela Que o Mundo Apagou, em que se narra a espantosa história
1
O conto não consta da segunda edição, de 1969. As razões para tanto são desconhecidas.
Editora de Gumercindo Rocha Dorea, responsável por fomentar a produção de ficção
científica no Brasil a partir dos anos de 1960. Sobre esse ponto, Roberto de Sousa Causo
observa: “Membro da ‘Geração GRD’ (denominação que ele mesmo criou para o grupo
de autores de FC promovido pelo editor Gumercindo Rocha Dorea), [Fausto Cunha] foi
um dos principais nomes da Primeira Onda da FC Brasileira, com André Carneiro, Dinah
Silveira de Queiroz e Rubens Teixeira Scavone. Dorea acredita que ele pode ter começado
a escrever FC instigado por Dinah” (CAUSO, 2006, acessado em 10 jul. 2010).
2
126
Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
Fausto Cunha e “A vela que o mundo apagou” [125-133]
da vida de um dos maiores gênios – talvez o único gênio verdadeiro – da
Humanidade. Podemos dizer que nada devemos a Thomas Muliro e no
entanto, quando olhamos em torno, vemos que poderíamos dever tudo a
ele, porque pelo menos tudo isso fora previsto em suas teorias ou estava
nelas implícito (CUNHA, 1960, p. 161. Grifo nosso).
Quanto ao caráter premonitório da teoria cunhada pelo esquecido
Muliro, deve-se assinalar que o narrador, esse articulista imaginário, é um
homem do futuro. A conformação de sua época não é apresentada em
detalhes; o mundo que se vê “quando olhamos em torno” é familiar para
o leitor futuro a quem ficcionalmente a resenha se dirige e não precisa,
de acordo com essa lógica, ser descrito. Consequentemente, o leitor de
Fausto Cunha tem acesso ao futuro de forma lacunar e incompleta.
O narrador, desde o primeiro parágrafo, mostra-se favorável a Thomas
Muliro. Defender o valor do físico esquecido equivale a se posicionar ao
lado dos vencidos e a propor um olhar que não se paute apenas pelo que
é tradicional e oficialmente endossado. O posicionamento mantém-se:
no decorrer do texto, são várias as marcas de adesão aos esquecidos. O
trecho que segue é um de possíveis exemplos: “Muliro poderia ter sido
esquecido de todo. Foram dois fatos distantes entre si no tempo e no
espaço que trouxeram a lume ‘a mais espantosa história depois da de
Cristo’, na expressão um pouco hiperbólica de Henri Janin, seu primeiro
biógrafo” (CUNHA, 1960, p. 162. Grifo nosso).
Comparar a história de Muliro à de Cristo é, segundo o narrador,
proceder de forma apenas um pouco hiperbólica. Henri Janin, o biógrafo
mencionado no excerto, é um pesquisador dedicado a retirar Muliro das
margens da história. Escreveu o libelo Conspiração Contra um Gênio,
outra obra imaginária de A vela que o mundo apagou.
A voz do cânone oferece forte resistência ao projeto de Janin. Seu
principal adversário no plano das idéias é Georg Mirtenbaum, “[...]
uma das maiores autoridades em Ernst Appel” (CUNHA, 1960, p. 171).
Appel é, no quadro imaginário de “A vela que o mundo apagou”, o
vencedor do Prêmio Nobel de Física em 1991, graças a uma teorização
aparentemente já intuída décadas antes pelo esquecido africano Thomas
Muliro. A controvérsia é posta em cena:
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127
Ramiro Giroldo [125-133]
Georg Mirtenbaum [...] diz que a teoria de Muliro praticamente não tem
validade científica, sendo uma simples tecla de retrocesso (Ruckschalttaste)
da teoria appeliana. ‘A constante Appel-Muliro é, a rigor, apenas a constante
Appel. Na física e na matemática não há lugar para sentimentalismos’. Diz
Mirtenbaum que a Muliro falecia capacidade de teorização; retrucando aos
que vêem em Muliro um revolucionador das leis da mecânica, escreve que
ninguém pode revolucionar o que ignora (CUNHA, 1960, pp. 171-172).
Mirtenbaum, em sua defesa de uma ciência impessoal, acaba por
se colocar ao lado dos vencedores, daqueles que tiveram seu nome
inscrito de maneira favorável na história. O narrador, porém, continua
favorável ao autor de A Vela Que o Mundo Apagou, W. Korwi. Que a
contribuição de Appel seja sistematizada e a de Muliro seja repleta de
lacunas, não lhe parece um problema:
Muito mais ponderado, diz Korwi que Mirtenbaum parece não compreender
que a grandeza de Muliro não é feita com pedaços da grandeza de Appel.
Um não diminui o outro. Engrandecem-se mutuamente. Que Ernst Appel
desconhecia a existência de seu predecessor é fato mais do que provado.
Podiam inclusive ter sido contemporâneos na descoberta da lei. Descobertas
e experiências muito sutis já foram feitas simultaneamente em lugares distintos
do mundo por cientistas que se ignoravam (CUNHA, 1960, p. 172).
Se as contribuições de ambos os físicos são de valor, por que
Muliro é esquecido? São várias as respostas possíveis. Primeiramente,
os poucos que tiveram contato com a teoria de Muliro a consideraram
imprecisamente demonstrada. A forma de apresentação, é dado a
entender, escapava à sistematização demandada pela comunidade
científica. A exigência incondicional de tal sistematização, bastante
apegada a um pensamento utilitário, acaba por impedir que a teoria de
Muliro alcance a devida repercussão. “Gênio da abstração” (CUNHA,
1960, p. 171), o físico africano era dono de um pensamento que não
podia ser contido em moldes pré-estabelecidos.
Já Appel, que vence o Nobel, presta-se melhor ao utilitarismo:
Se veio a ofuscar a Einstein, foi menos pelo brilho de suas idéias, que,
como ainda hoje, está apenas ao alcance de meia dúzia (bastando dizer
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Fausto Cunha e “A vela que o mundo apagou” [125-133]
que, segundo Mirtenbaum, sua teoria é indemonstrável fora da matemática
appeliana), do que pela aplicação prática, de que ele próprio se encarregou
(CUNHA, 1960, p. 163).
A prematura morte de Muliro, acontecida antes que ele pudesse
ser ouvido, é outra razão para seu esquecimento. Muliro morre no
ostracismo em 1961 e apenas décadas depois, por acaso, começam a
vir à tona os reais motivos de seu assassinato. O esforço de um homem,
apenas, é responsável por tanto:
O ambicioso policial que descobrira o assassínio de Muliro descobriu também
o mandante e, seguindo o fio até a ponta do novelo, terminou em negócios
petrolíferos. Uma inesperada tentativa de suborno e sua ulterior demissão da
polícia levaram Samuel Fitzgibbon a fazer a si mesmo essa pergunta que lhe traria
dinheiro e celebridade: “Quem era esse Muliro?” (CUNHA, 1960, p. 165).
Estaríamos, assim, diante da “conspiração contra um gênio” de que
fala o biógrafo de Muliro, Janin. A teoria do africano, nunca explicitada
no conto “A vela que o mundo apagou”, parece se referir a fontes de
energia alternativa que tornariam obsoleta a indústria petrolífera. Se na
época de Muliro esta ainda se sustentava e procurava calar alternativas
ao petróleo, na de Appel, não. O vencedor do Nobel elaborou sua teoria
num momento histórico favorável; Muliro, não.
Por fim, há um motivo incontornável para o esquecimento de
Muliro, insinuado em “A vela que o mundo apagou”: sua origem na
periferia cultural do mundo e a cor de sua pele, negra. O preconceito o
perseguiu durante sua vida, como pode ser exemplificado pela passagem
do texto que relata “[...] um dos enigmas que não foram ainda decifrados”
(CUNHA, 1960, p. 167), sua presença em Cabo Cañaveral:
A passagem de Muliro pela base de Cabo Cañaveral não deve ter tido maior
importância, porque praticamente não ficou registrada. É bem provável que
a presença daquele rapazola negro não fosse particularmente agradável
para seus companheiros brancos (CUNHA, 1960, pp. 167-168)
Assim, ainda que a passagem de Muliro pela base norte-americana
fosse da maior importância, não teria sido devidamente registrada. A
Muliro não foi oferecida alternativa além da marginalização.
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Ramiro Giroldo [125-133]
2. Fausto Cunha e Jorge Luis Borges
Formalmente, o texto de Fausto Cunha parece tomar como ponto
de partida os “ensaios ficcionais” ou “ficções ensaísticas” da antologia
Ficções, de Jorge Luis Borges, talvez mais especificamente “Pierre
Menard, autor do Quixote”. Como em Ficções, “A vela que o mundo
apagou” situa-se de maneira simultaneamente ambígua e ambivalente
no que cabe à categorização genérica – o limite entre ficção e ensaio
é borrado o bastante para constranger o uso imediato da categoria
“conto”. O ponto, que salta aos olhos, demanda atenção em uma
discussão primeira do conto3.
Ao ler o prólogo de Ficções, Joana Luíza Muylaert de Araújo
observa:
[O] que pode desnortear o desavisado leitor é o deliberado apagamento
dos limites entre os ‘livros imaginários’ (aqueles que o leitor simula que
existem) e ‘narrativas’ preexistentes, às vezes de autoria desconhecida
(aqueles sobre os quais Borges afirma ser apenas um ‘outro autor’, um
a mais). [...] O que ele nos sugere é que, em vez de criar enredos e
personagens como se fossem novos, mais ‘engenhoso’ (não mais original,
devemos insistir) seria simular que essas histórias (com seus enredos e
personagens, nossos velhos conhecidos) já existem (pois o que importa
não é de fato terem existido ou não, mas a simulação, ‘o fazer de conta
que’ e, humildemente, comentá-las (ARAÚJO, 2005, p. 75-76).
Dessa forma, uma leitura de “A vela que o mundo apagou” à luz da
sugestão de Borges pode fazer notar a presença de uma dupla simulação,
um duplo “fazer de conta que”: o texto simula, em um movimento, tanto
um livro a ser resenhado quanto a escrita de Borges. No texto, Borges
(um autor real) e W. Korwi (imaginário) são, nesse sentido, equiparados:
ambos são passíveis de comentário. O livro imaginário é comentado
abertamente; a poética borgiana, de forma velada.
Como inexiste fortuna crítica acerca de “A vela que o mundo apagou”, é o caso
deste artigo.
3
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Fausto Cunha e “A vela que o mundo apagou” [125-133]
Em “Pierre Menard, autor do Quixote”, é possível notar a adesão
do narrador ao mecenato da chamada condessa de Bagnoregio, “[...] um
dos espíritos mais finos do principado de Mônaco” (BORGES, 2001, p.
490). O grupo da condessa também parece ter como figura de destaque a
baronesa de Bacourt, “[...] em cujos vendredis inesquecíveis tive a honra
de conhecer o pranteado poeta [Pierre Menard]” (BORGES, 2001, p.
490). O narrador, por outro lado, é claramente hostil a outro grupo:
São [...] imperdoáveis as omissões e adições perpetradas por Madame
Henri Bachelier num catálogo falaz que certo jornal, cuja tendência
protestante não é segredo, teve a desconsideração de infligir a seus
deploráveis leitores – embora estes sejam poucos e calvinistas, quando
não maçons e circuncisos (BORGES, 2001, p. 490).
Os termos negativos assinalam um posicionamento e ajudam a
introduzir a incerteza quanto ao narrado. Assinalado o compromisso
incondicional para com um grupo de “financiadores”, bem como o teor
preconceituoso das palavras, nota-se a constituição de um narrador
que se pode chamar de não-confiável.
Já em “A vela que o mundo apagou” predomina um tom
conciliatório, não compromissado marcadamente com um grupo
específico. Elimina-se assim um provável nível de leitura, dada
a maior confiabilidade do narrador, mas também se abre outro
caminho interpretativo.
“A vela que o mundo apagou” fala da complementaridade
entre duas formas de expressão. Apesar da percepção por parte do
narrador de que o esquecimento de Muliro é um grande erro, não há
rancor para com aquele que se insere na cultura oficial. O narrador
defende Muliro, mas não chega a refutar o valor de Appel: cada um
é avaliado de acordo com suas especificidades. Ambos, segundo
ele e o autor imaginário resenhado, se enriquecem mutuamente.
Tanto o esquecido quanto o oficializado devem ser conhecidos
para que se atinja uma compreensão maior, especialmente porque
as contribuições de um e de outro se confundem a ponto de tornar
indistintos os limites.
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Ramiro Giroldo [125-133]
No deslimite entre ficção e ensaio, o tema da complementaridade
e da indistinção entre diferentes expressões se relaciona com a forma
em “A vela que o mundo apagou”. O elogio a formas de expressão que
escapam à cultura oficial leva, no caso, a uma crítica à distinção rígida
entre ficção científica e literatura oficialmente aceita como tal, distinção
que é denunciada como limitada e enganosa.
3. O esquecimento
Encontrar razões para o esquecimento de uma produção como a de
Fausto Cunha não é uma tarefa equiparável a analisar “A vela que o mundo
apagou” e propor motivos para a posição de Thomas Muliro às margens
da história. No caso de Cunha, o terreno é ainda mais pantanoso.
Falando sobre o falecimento de Cunha, o poeta Fernando Py conta:
“Não nos víamos desde fins do decênio de 1980, quando ele perdeu
a mãe e meio que se isolou da vida literária.” (PY, 2004, acessado em
07 jun. 2010). Sua produção começa a rarear, bem como a troca de
correspondências: trata-se da interrupção do projeto de um intelectual.
A reclusão de Cunha nas últimas décadas de sua vida talvez seja uma
razão para o esquecimento; a forma com que a ficção científica é vista pelos
equivalentes empíricos de Georg Mirtenbaum, outra. Não é pertinente
forçar uma analogia ponto a ponto entre Fausto Cunha e Thomas Muliro,
mas cabe assinalar que há algo de comum aos esquecidos. O trecho de
“A vela que o mundo apagou” com que este texto se encerra é bastante
significativo: “Ninguém deu nem poderia dar atenção ao jovem africano
e, como diz bem Korwi, não é essa a primeira nem será a última vez que
tal coisa acontece na história da humanidade” (CUNHA, 1960, p. 162).
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Fausto Cunha e “A vela que o mundo apagou” [125-133]
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Luis Rodriguez Araya [13-23]
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O (des)mascaramento da violência na poética de Helio Serejo [135-146]
O (des)mascaramento da violência na poética
de Helio Serejo
The (un)mask of the violence in the poetry of Helio Serejo
Serley dos Santos e Silva
(ANHANGUERA/UNIDERP)
Resumo: Neste artigo discute-se a presença do poder e da violência na
poética de Helio Serejo. A perspectiva do quiasma, reconhecido pela
letra grega khi (X), é o ponto fundamental para se compreender, nas
dobras do cruzamento, elementos ocultos como: o poder, a violência e
o grito (mburear) do ervateiro. O quiasma não chega ao fim, pois seus
valores são subvertidos na lógica da imagem invertida da cruz. A inversão
da imagem propicia verificar o antes do discurso quiasmático. A cruz,
aparentemente, denota um sentido simbólico cristão, que sucumbe nas
cadeias de significados. O conto basilar para esta análise é “O Degolado
de Jejey–Mi”, de Helio Serejo.
Palavras-chave: Violência. Poder. Quiasma. Cruz. Grito.
Abstrat: This paper discusses the presence of power and violence in the poetry
of Helio Serejo. The prospect of chiasmus, recognized by the greek letter khi
(X) is the key point to understand in the folds of the crossing, as the hidden
elements: power, violence and cry (mburear) of ervateiro. The chiasma not
come to an end, because their values are subverted the logic of the inverted
image of the cross. The inversion of the image provides the check before the
speech chiasmatic. The cross apparently denotes a symbolic sense christian,
who succumbs chains of meanings. The basic short story is” O degolado
de Jejey-Mi”, by Helio Serejo.
Keywords: Violence. Power. Chiasm. Cross. Cry.
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Serley dos Santos e Silva [135-146]
1. As dobras do quiasma e o limite das margens
O limite assume a dupla forma de uma lógica diferancial [différantielle]
da analogia:por um lado, o ‘quase’, o ‘como se’ de uma différance que
mantém o retardo, o revezamento, o reenvio ou prazo na economia do
mesmo; e, por outro lado, ruptura, o acontecimento do im-possível, a
différance como diaphora aforismática do heterogêneo absoluto. (Jacques
Derrida, Papel máquina)
O cruzamento entre margens de fronteiras é, em princípio, um
referencial metafórico em que não se subscreve o visível e o não-visível
do suposto espaço ervateiro. Na ação operante do entrecruzar, o limite
é (re)visto na imagem quiasmática1, “[...] figura de cruzamento da letra
grega khi (X)” (NASCIMENTO, 2004, p. 36), que é por referência,
na ordem de significado, a “coisa” aparentemente não palpável em
uma existência superior de um corpo escritural, um corpo marcado
por inscrições perceptíveis a partir de uma presença de escritura. A
subserviência é notória: ao mesmo tempo em que denota o estranho
no corpo da escritura, apresenta-se como inscrições apropriadas de um
corpo externo sujeito à influência.
O limite não agrega função absoluta, mas denota a possibilidade de
observação na différance2, indecidível apropriado da filosofia de Derrida,
para assegurar a questão do poder e a violência no eixo limítrofe do
suposto espaço no conto “O degolado de Jejey-Mi”, de Helio Serejo:
“Não muito distante do ponto Borevi, margem direita de Jejuy-Mi, existia
um valle, tão pequeno, quanto paupérrimo. Foi, nesse valle, que viveu el
hombre mas feo del mundo” (SEREJO, 1998, p. 181). A ideia opositiva,
pertinente aos diferentes se esvai, reconhecendo a não-hierarquia dos
Termo apropriado na consecução deste texto (nota da autora).
“Différance assinala a plena convergência da temporização e do espaçamento. Tempo
e espaço são constitutivamente dependentes, um não existe sem o outro, um se torna
ou devém o outro” (NASCIMENTO, 2004, p. 55).
1
2
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O (des)mascaramento da violência na poética de Helio Serejo [135-146]
elementos vistos no limite do cruzamento: “Encontraram o corpo. Os
ramos que o cobriam estavam bem visíveis de um é de para-tudo”
(SEREJO, 1998, p. 185). Na cadeia dos significados, a violência ganha
sentido na perspectiva de um elemento antecedente, o poder. Ocorre um
processo de bifurcação natural na dicotomia poder-violência no conto
de Helio Serejo. Essa bifurcação denuncia o não-declarado da força
no fenômeno poder-violência em uma atração panorâmica adequada
à imagem de Deoclécio (personagem), sujeito exposto. Por meio dessa
personagem, observam-se vestígios “reais”, no âmbito literário, do
(des)mascaramento da violência. Em uma espécie de alastramento da
máscara literária, exposta no corpo da escritura, verifica-se, sem esforços
aparentes, o ocultamento do poder sobre o homem ervateiro.
Pensa-se o sentido na abrangência desses dois elementos, poder
e violência, deslocando-os do lugar, sendo possível compreender o
alastramento conjugal de significações em princípio não aparentes. O
poder e a violência se processam no âmbito estrutural ramificado do texto
a partir da perseguição de Pedro Roque Ayala a Deoclécio. “Calou-se.
Ouviu, então, aquela voz ameaçadora: Teje preso ... fugitivo tem que ser
punido. É a ‘lei’ dos ervais” (SEREJO, 1998, p. 184). Pedro Roque Ayala
ampara-se na ‘lei’ dos ervais. O poder imposto na forma da uma lei é
notório. Vestígios centralizadores apresentam estruturas desarticuladas de
uma guerra interna assente ao um poder paralelo nos campos ervais, um
conflito, uma ordem, uma obediência à “[...] consciência do sofrimento
que se acumula em um elenco seleto de guerras travadas em terras
distantes é algo construído” (SONTAG, 2003, p. 21).
As ramificações são perspectivas das ações dos personagens,
que se agregam, denunciando o fato. A estrutura segue o mesmo
sentido de “coisa” como um objeto visualizado em campo estrutural.
Desmantelar as estruturas e suas ramificações não é destruir cadeias
de significações; é compreender como fluxo da alma a presença
libidinosa do poder e como ela permanece jugulado às forças
estranhas. No domínio das forças estranhas pode-se perceber o poder
sendo alimentado pela “lei dos ervais”.
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Desmantelar é tão somente chegar a um grau relativo e intencional
de compreensão do poder e da violência na questão literária. “Por outro
lado, a estrutura torna-se o próprio objeto, a própria coisa literária”
(DERRIDA, 1995, p. 30). A coisa literária pode ser (re)vista em uma
mesma cadeia de significados. “Ainda caía do pescoço o sangue meio
coagulado. A desgraça foi o fim do valle” (SEREJO, 1998, p. 185). Não
há sujeição para o nada na bifurcação, não há vazio sentido, mas uma
determinação de como pode ser lida a poética de Helio Serejo, “[...]
já que o nada é objeto, é antes a maneira como esse nada em si se
determina ao perder-se” (DERRIDA, 1995, p. 20).
Deoclécio Salatiel, Deo, de aspecto horripilante, pele escura, rugas
salientes, acometido por uma doença misteriosa que “[...] torturou
o enfermo durante quinze dolorosos anos” (SEREJO, 1998, p. 182),
informado de novos trabalhos da erva-mate na região do Yguatemi,
ajeitou seus trapos e seguiu viagem. Pedro Roque Ayala, um paraguaio,
foi o terror de seu destino. Dois meses de sofrimento na lida da ervamate, tendo que suportar o peso de sua feiúra, fugiu do terrível inferno.
Pedro Roque Ayala, o patrão, colérico, resolveu que o trabalho seguia até
o anoitecer, inclusive sábado e domingo, “[...] sua cota de bolsa da ervamate precisava estar completa no dia combinado, com la administración”
(SEREJO, 1998, p. 183). Destino cruel do fugitivo: era sua sentença de
morte. “Fugi, porque sofri muito com os deboches a respeito de minha
cara deformada” (SEREJO, 1998, p. 183). Pedro Roque Ayala, na insânia
de não perder o ervateiro, sai ao seu encalço, demonstrando todo seu
poder, agindo com a violência que lhe é peculiar.
Na frente, Ayala e o prisioneiro [...]. Desesperado, Déo atirou-se ao solo,
enquanto o burrico corcoveava doidamente [...]. Ayala, o brutamonte,
já bastante alcoolizado, pois trazia reserva de Amarelinha do Poção, na
garupa, vendo o inofensivo Déo enfiar a mão debaixo do cinto, sacou do
revólver e atirou. A bala atingiu o peito (SEREJO, 1998, p. 186).
Há uma transferência indébita aos princípios sociais do
ocultamento, aparente, como jogo de ideias estendidas ao imaginário,
presentes em tênues linhas do poder entrecruzados em traços de
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O (des)mascaramento da violência na poética de Helio Serejo [135-146]
violência. “A violência não é senão a mais flagrante manifestação do
poder” (ARENDT, 2006, p. 48. Tradução nossa). Ocultamento é o
segredo envolto em máscara fantasmal destituída de seu lugar de origem
ao ser credenciada em um corpo de escritura que revela a violência. “O
conteúdo figurado é, portanto na verdade uma escritura, uma cadeia
significante de forma cênica (DERRIDA, 1995, p. 210). As inscrições
são traços denunciadores das lutas dos ervateiros submetidos a um
poder. Uma dupla formulação do poder pode ser (re)visto nas próprias
inscrições textuais. O aspecto textual remete ao primeiro inciso de
leitura superficial da violência na poética de Helio Serejo. Não há um
condicionamento do ervateiro nas malhas textuais e uma força atrativa
revela-se com seu grito, como eco de libertação do jugo do poder. “A
extrema forma do poder é a de Todos contra um, a extrema forma de
violência é um contra todos. Todos. E esta última nunca é possível sem
instrumentos” (ARENDT, 2006, p. 57. Tradução nossa).
O quiasma é o parâmetro estrutural reflexivo no conto “O Degolado
de Jejey-Mi”, de Helio Serejo, que propicia um discurso não ouvido.
O grito ecoa além das fronteiras metafóricas do texto; ele se revela na
condição factual da esfera do literário. O grito se processa como discurso
alucinante do subjugado nas teias do poder.
Discursos múltiplos e precários que duram um dia - como essa estranha
flor chamada ‘dama da noite’ que apenas dura umas horas no final de
dezembro -e, também, discursos que percorrem os séculos e nos vêem
em muitas línguas indígenas, criollas, européias e, até asiática (ACHUGAR,
2006, p. 25).
O grito metaforiza o discurso da periferia, da margem: “Déo, el
hombre mas feo del mundo, traz nas costas a raído, o grito alucinante
ecoa a rogativa de liberdade “dou assim, lucro ao patrão. Desejo somente
a minha liberdade ....” (SEREJO, 1998, p. 183). A imagem posta na dobra
do limite é vista na margem ou em sua periferia; o indecidível différance
é o tom contemporizador do eco do discurso na margem periférica. “Na
realidade, sempre se pode dizer que há um outro que nos fala e que, por
sua vez, o outro fala em outros” (ACHUGAR, 2006, p. 20). O grito já está
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Serley dos Santos e Silva [135-146]
atravessado pelo outro. O eco supõe em outra instância uma condição
desagregadora a partir do discurso. “O subalterno, não pode falar, pois se
fala já não é. O subalterno é falado pelos outros. (SPIVAK apud ACHUGAR,
2006, p. 20). O grito libertador é ouvido na própria escritura, processo
natural de discurso anterior formalizado em um corpo de doutrina. Um
corpo formatado com sentido de uma agregação escritural da linguagem.
“Este poder revelador da verdadeira linguagem literária como poesia é
na verdade o acesso à palavra livre, aquela que a palavra ‘ser’ (talvez o
que visamos com a noção de ‘palavra’ primitiva ou de ‘palavra princípio’
(Buber) liberta das suas funções sinalizadoras” (DERRIDA, 1995, p. 26).
A margem periférica permeia o campo da subjetividade, embora o curso
da água dos rios Jejuy-Mi e Jejuy-Guaçu, “[...] nascendo o primeiro, ao pé
da Serra de Maracaju, ficando o segundo, um pouco ao norte de Curuguati”
(SEREJO, 1998, p. 181) seja o espaço simbólico que polemiza o vale à direita
do Jejuy-Mi. O mburear (gritar) é a súplica do ervateiro. É necessário gritar,
ser ouvido não na margem, mas no centro da margem como fôlego de uma
existência, que é por natureza livre. É o exercício natural do livre arbítrio
do sujeito. “A autoridade determina que não tem nada a dizer ou, o que
também é possível, a autoridade carece do instrumento que lhe permita ouvir“
(ACHUGAR, 2006, p. 20). O mburear (gritar) do ervateiro é o uso de seu livre
arbítrio, de seu saber, de sua “autoridade”. Outorgar o sentido real e absoluto
de autoridade é manter um poder, um saber nas mãos. O ervateiro também
detém a autoridade, confortada pelo mburear. A discussão que permeia a
autoridade palmilha outras bordas na tessitura textual. É certo conservar a
expressão “confortadora” do mburear não mais na margem, mas no centro
da margem. Buscar a perspectiva de Hugo Achugar pode ser a saída para o
impasse de se reconhecer uma forma de poder: “Deixei de lado nada menos
que a questão do poder, do poder local ou do poder introjetado, por ter me
concentrado no poder externo ou no poder do centro” (2006, p. 21).
A cena, que baliza o ponto equilibrador reflexivo da estrutura,
concentra-se na imagem que se efetiva do degolado: “Retirou a faca
charqueadeira e, sem nenhum vislumbre de piedade, ali na volta da
matinha solitária, degolou, um hombre mas feo del mundo, porém, de
falar meigo e ... até ingênuo” (SEREJO, 1998, p. 186).
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Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
O (des)mascaramento da violência na poética de Helio Serejo [135-146]
O cruzamento é o primeiro traçado atemporal. Observa-se no
núcleo principal um vestígio do ocultamento da violência: “O assassino,
covarde, e odiento, Pedro Roque Ayala? Ficou impune? A polícia, por
acaso, temia enfrentar a besta-humana? Desconheceu sua vivência?
Não! Tudo dependia de tempo”. O núcleo do X é a dobra aparente
do poder em esfera relativa na “realidade” literária. “Se a essência do
poder é a eficácia do mando, então não há poder maior que aquele
que emana de um cano de uma arma” (ARENDT, 2006, p. 51. Tradução
nossa). A inquietação que apodera é como compreender a violência
a partir de um ato imaginado na dobra do cruzamento. Uma ideia
parece fugir à força natural do significado, destrinçado sob o olhar
crítico do texto. A condição não é reduzir o fenômeno da violência
ocorrida com o degolado considerado como “[...] el hombre mas feo
del mundo” (SEREJO, 1998, p. 181), mas alastrar a ideia, deslocando-a
de seu espaço natural sem descurar do alinhavo do texto. O fenômeno
da violência é declarado superficionalmente nas cadeias ondulatórias
do cruzamento. Submergem das ondulações os segredos amputados
nas dobras do quiasma, o não-dito é exposto, sem mescla, com
precisão hermenêutica na ânsia de se reconhecer a força (in)traduzível
do significado. A questão que se abate nas bordas da textualidade
é essencialmente aquela que permeia o sistema ondulatório para
se chegar ao possível fechamento do quiasma. A possibilidade de
fechamento ocorre mediante o imbricamento do poder e da violência,
caminho seguro para se chegar ao látego do significado.
2. A questão do pior e a lógica da imagem invertida
Como se utilizar da imagem sem impor ao espectador o lugar de um juiz,
o lugar de um voyeur?Como se utilizar da imagem sem que ela imponha
uma verdade? (Andréa França)
A imagem simbólica da cruz, extraída do conto “O degolado de
Jejey-Mi, é por consequência o valor substantivo de imagem criada no
núcleo da narrativa. “Poucos passos acima, no meio de um sapezal, uma
cruz solitária” (SEREJO, 1998, p. 188).
Papéis, Campo Grande, MS, v.14, n.28, jul./dez. 2010
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Serley dos Santos e Silva [135-146]
A primeira impressão da imagem no texto é, por excelência, a
imagem da simbologia cristã. Na esfera comum, além dos valores
subjetivos, o símbolo cristão é a marca do signo esfíngico na poética
de Helio Serejo, por desfigurar um único sentido da sua presença
factual no texto literário. Um sentido de natureza metafórica viceja no
apontamento da cruz, uma imagem criada referenciada com liberdade
natural na poética. Para Derrida (1995, p. 25), “[...] o sentido não
está nem antes nem depois do ato”, podendo se inferir um conceito
de diafaneidade, exposto naturalmente no texto e superado em seu
próprio destino.
Os conceitos arquitetônicos de imagem criada transpõem o signo
envolto à cristandade. Se estabelece inequivocamente uma lei implícita
no sistema de significações, como pano de fundo para se reconhecer o
efeito substantivo da cena da cruz.
Abre-se um outro veio de significado. Pedro Roque Ayala de
perseguidor passa a ser perseguido pelos seus crimes. Há uma ênfase
no cumprimento da lei de justiça, apropriada a um estatuto legal de
direito do sujeito. A cruz esboça o primeiro elemento a ser considerado
no “suposto” fim de Ayala. Seria tão somente o desenrolar do pior no
âmbito do sujeito. “Concordaram todos que o bandido muito esperto ia
dar grande trabalho para conduzi-lo até ‘Porto Don Carlos’ e, daí, para
campanário. Seria ‘mão de obra de vulto’ para um ervateiro apodrecido
pela ignorância e brutalidade” (SEREJO, 1998, p. 188).
O homem ervateiro em sua origem busca o sagrado. Sua ânsia
incontida de espírito desbravador sucumbe ante a atmosfera de
dor. “E, essa cruz solitária? Qual sua história?” (SEREJO, 1998, p.
188). O destino incerto da cruz nas paisagens insólitas das estradas
dos ervais destina, na incoerência humana, a dor. A reversibilidade
do pior no corpo estranho da escritura é descaradamente o ponto
do signo que não se concebe como um lugar, um espaço ou um
tempo. “O conceito do pior determinaria a lógica da ameaça”
(MARGEL, 2000, p. 204) denota a presença insofismável de morte,
de aniquilamento.
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O (des)mascaramento da violência na poética de Helio Serejo [135-146]
O pior suspende de um conceito destruidor aparente. A questão
de desagregação de uma estrutura conferida no texto literário, a
partir do desfalecimento de Ayala, supõe sua destruição pelas ações
empreendidas. Em tempo, pode-se conferir o pior como um conceito
que se inscreve em um horizonte de resultados estabelecido pelo (im)
possível no quadro de referência do personagem Ayala.
Do pior, sabemos por enquanto três coisas. 1. É o que torna o mal radical.
É, portanto, o que faz com que toda possibilidade de aparição deva poder
ameaçar a integridade dessa aparição. 2. É o que, para toda aparição de
um ente, deve ser ainda pior do que tudo o que pode acontecer-lhe.
3. Para cada ente, é algo impossível que deve, contudo lhe acontecer
(MARGEL, 2000, p. 212).
A sensibilidade quiasmática se choca na reversibilidade da imagem
da cruz. Na operação do campo puramente escritural na inversão da
cruz se obtém um X: é nessa escala de valores que se encontra o tom
sublime do conto. “Era a cruz da ponte, com os homens da erva e os
caçadores batizaram o local” (SEREJO, 1998, p. 188). A imagem revela-se
no ponto crucial da perseguição de Pedro Roque Ayala. “O homicida,
Pedro Roque Ayala, criatura que não conhecia bondade, ternura e
cavalheirismo, sabia que uma legião estava seguindo-o dia e noite”
(SEREJO, 1998, p. 188).
O ponto facultativo expresso na palavra “legião” denota ênfase na
passagem bíblica: “E perguntou-lhe Jesus, dizendo: Qual é o teu nome? E
ele disse: ‘Legião, porque tinham entrado nele muitos demônios’” (Lucas,
VII: 30 ). Uma legião na conotação de ‘soldados’ amparados na lei. A legião
subtrai a maldade pertinente à personalidade de Ayala; seus perseguidores
objetivam o cumprimento à lei. Embora os perseguidores deixem rastros de
profunda maldade, agem em condições semelhantes às de Ayala. Todavia, a
diferença que se estabelece no amparo da lei é por consequência a forma de
correção ao temido Ayala. O texto retoma a questão circulatória do poder.
“O poder corresponde à capacidade humana, não simplesmente para atuar,
senão para atuar concertadamente. O poder nunca é propriedade de um
indivíduo” (ARENDT, 2006, p. 60. Tradução nossa).
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A lembrança quiasmática é percebida no princípio das dobras
da obra de Serejo. A presença da violência é (des)mascarada do seu
lugar de origem. Ayala sofre as penas da causalidade, do efeito de
ação e reação presente nas malhas de seu destino. A circulariedade da
violência, exposta em grau positivo, é percebida naturalmente, porém,
no aspecto conceitual é revertida na percepção da cruz, num olhar
anterior quiasmático. Em se tratando da questão circulatória, são claras
as nuances do efeito inverso da imagem da cruz.
Busca-se na reversibilidade da cruz o quiasma que propicia o
reconhecimento do significado da cruz. A violência é subtraída e
Distingue-se pelo seu caráter instrumental. Fenomenologicamente está
próxima da potência, dado que os instrumentos da violência, como todas
as demais ferramentas, são concebidos e empregados para multiplicar
a potência natural até que, na última fase do desenvolvimento possam
substituí-la (ARENDT, 2006, p. 63. Tradução nossa).
O corpo escritural sai do contexto fantasmal, garantindo um efeito
de imagem criada e duas escalas analíticas se revelam. A primeira no (des)
ocultamento do poder e da violência no âmbito do quiasma. A segunda
na perseguição de Ayala. O quadro dos significados fica aparente na
desestruturação da imagem primeira do quiasma, revertida na imagem
simbólica da cruz.
A presença da cruz revela uma câmara mortuária que denota certo
pavor no olhar. Alguém adormece para sempre, às vezes sem determinar
um rastro de informação ao transeunte, não que ela seja necessária,
porém, como referencial de sentido, a presença do signo é um fato
consumado no epitáfio órfico. O princípio de resistência do signo é o
mesmo que ocultar as chagas da violência. “Naquela passagem do Rio
Itaquiraí, dormindo numa rede, a volante, cujos integrantes estavam a pé,
deu voz de prisão a Ayala” (SEREJO, 1998, p. 188). Retoma-se o conceito
da violência na forma da lei, não mais a lei dos ervais, amputada por
Ayala e seus homens. Esta foi subvertida por outro poder, constituinte
de um poder aliado à força interna do estado. “A força, que utilizamos
na fala do cotidiano, como sinônimo de violência, especialmente se
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O (des)mascaramento da violência na poética de Helio Serejo [135-146]
essa violência serve como meio de coação, deveria ficar reservada em
sua linguagem terminológica, às forças da natureza” (ARENDT, 2006, p.
61. Tradução nossa).
Ayala representa o poder da lei nos ervais, que desfalece com o
tempo no ápice de sua prisão. “A volante deu ordem para que saísse da
rede, com as mãos na cabeça. Ayala obedeceu, os homens do volante,
não perderam um só segundo. Alvejaram o monstro, na cabeça, pescoço
e peito” (SEREJO, 1998, p. 188). Não se resume o conceito do pior a partir
da morte de Ayala, mas prevalece uma condição de possibilidade na
relação da morte e do pior. Eles se bifurcam na mesma cadeia elementar,
um em detrimento do outro. O pior estaria em uma situação extrema,
vinculado à morte. O tom representativo da cruz é o núcleo perceptivo
da morte, representada na cadeia do significado do pior. Ocorrem duas
mortes no mesmo destino nos ermos campos ervais, Ayala e Deoclécio,
dois ervateiros. O primeiro, com o poder nas mãos, engendra o destino
cruel “del hombre mas feo del mundo”, cuja feiúra provocava aversão
em todas as pessoas. O segundo toma o poder no sentido inverso e
sucumbe por seus crimes. “O pior que lhe poderia acontecer sereia
poder mais representar como tal a aparição de sua impossível morte”
(MARGEL, 2000, p. 213).
Ayala é tragado pelo próprio destino, “[...] distante da barranca do
Rio Itaquery, dois metros em lugar de terra fofa, cavaram a manchete um
buraco, pouco profundo e ali sepultaram Pedro Roque Ayala. Fizeram
uma cruz de pau roliço, atada com cipó chumbo, cravaram no chão
lamacento e partiram” (SEREJO, 1998, p. 188). A cruz não se opera
como sinalização única da morte de Ayala. Atribui-se a ela o significado
da lógica da imagem invertida. Na inversão da imagem da cruz, se lê o
quiasma, onde persevera a vida de Deoclécio. Seu grito (mburear) não é
facultativo no discurso, é o grito de liberdade do ervateiro. Nas margens
do texto, a cruz é ponto determinante para se chegar ao termo passional
da leitura. “Na pavorosa enchente do ano de 1937, a fúria das águas que
tudo carregava, destruiu o túmulo do hediondo ser humano, alargando o
local em mais de vinte metros” (SEREJO, 1998, p. 189). A subjetividade
nas águas das enchentes se traduz no aparente apagamento do poder,
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imposto aos ervateiros e preservada no grito que ressoa nas margens
periféricas dos ervais. O mburear é a metáfora da lógica da imagem
invertida no erval. ”Com o passar dos anos o lugar ficou assombrado.
Diziam que a alma penada de Ayala rondava essas paragens e que se
ouvia, constantemente, os gemidos cavernosos de morto... (SEREJO,
1998, p. 189). São os gemidos que guardam os segredos espectrais
inscritos no símbolo da cruz.
REFERÊNCIAS
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Tradução de Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.
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Editorial, 2006.
BIBLIA SAGRADA. Tradução de Pe. Matos Soares. São Paulo: Edições Paulinas, 1989.
DERRIDA, Jacques. Força e significação. In: _______. A escritura e a diferença. Tradução
de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995.
_______. A palavra soprada. In: _______. A escritura e a diferença. Tradução de Maria
Beatriz Marques Nizza da Silva. São. Paulo: Perspectiva, 1995.
_______. Papel Máquina. Tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade,
2004.
LOPES, Denilson. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: Ed. UnB;
Finatec, 2007.
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SEREJO, Helio. “O degolado de Jejey-Mi”. In: _______. Contos Crioulos. Org. de Enilda
M. Pires. Campo Grande: Ed. da UFMS, 1998.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
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A cor local no Sarobá de Lobivar Matos [147-157]
A cor local no Sarobá de Lobivar Matos1
Local color in Sarobá by Lobivar Matos
Susylene Dias de Araujo
(UEMS)
Resumo: Na literatura brasileira, a natureza, seja como instinto de nacionalidade,
seja como representação, sempre foi aproveitada pelos escritores. Porém, a
cor local de alguns escritos lhe deu novos tons, como na poesia de Lobivar
Matos. É no lamento da ausência de luz para retratar imagens locais que
intentaremos, neste artigo, reconhecer o efeito estético da cor local em
Sarobá de Lobivar Matos.
Palavras-Chave: Sarobá. Lugar. Lobivar Matos.
Abstract: On the Brazilian Literature, the nature, as an instinct of nationality,
as representation, has always been used by the writers. However the local
color of some literary narratives has given new tones, as on Lobivar Matos’
poetry. It´s on the light´s absence lament to portray the local images that
we intent, on this article, to recognize the esthetical effect of the local color
in Sarobá, written by Lobivar Matos.
Keywords: Sarobá. Place. Lobivar Matos.
1
Uma versão prévia deste artigo foi apresentada na Sessão Coordenada “A Cor Local:
Linguagem e Literatura em contraste”, durante as atividades do V Encontro Nacional do
GELCO – Grupo de Estudos de Linguagem do Centro-Oeste – de 27 a 30 de setembro
de 2010, na Universidade Federal da Grande Dourados.
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Fonte de inspiração da literatura brasileira, a natureza, como instinto
de nacionalidade ou como representação, foi aproveitada pelos principais
poetas brasileiros e se fez presente também na produção do interior do
País. Porém, (re)significando a natureza, a cor local da literatura nacional,
foi ganhando novos tons, como os que serão demonstrados a partir da
poética de Lobivar Matos em Sarobá (1936), recorte aqui observado. Na
capa do livro onde os poemas estão registrados, o mesmo negro bamba da
favela, que ilustra versos contidos em algumas de suas melhores páginas,
é também o transeunte do Sarobá imagético do poeta. No lamento da
ausência de luz e de sol para retratar as imagens do lugar, tentaremos
reconhecer o efeito estético do discurso que representa a obra que nasce
inspirada na realidade própria, local, sem, no entanto, deixar de lado o
que melhor a caracteriza como arte universal.
1. Instintos de nacionalidade em Lobivar Matos
O cuidado de Lobivar Matos em selecionar os 30 poemas que
compõem o conjunto poético do segundo livro de sua autoria, intitulado
pelo curioso vocábulo Sarobá e datado de 1936, tem como reflexo o
percurso de uma leitura que flui como o desenrolar de um novelo. Os
30 poemas que organizam o fim narrativo da obra são: “Sarobá”, “Beco
Sujo”, “Subjetivismo”, “Natureza morta”, “Maria Bolacha”, “Urucum”,
“Negrinho Lambido”, “Religião”, “Esmola”, “Futuro do Aleijadinho Rico”,
“Introspecção”, “Delírio”, “Devoção”, “Mulata Isaura”, “Banzé de Cuia”,
“Malícia”, “Travessia”, “Pelega”, “O suicida”, “Rodeio”, “Coisa Feita”,
“Confusão”, “São Sebastião”, “Cartaz de Sensação”, “Sexo”, “Marechal”,
“Senhor Divino”, “Caboclo Sabido”, “Momento” e “Derrocada”.
De acordo com a tradição da literatura brasileira, entendemos por
cor local um conjunto de traços e de imagens representativos da paisagem
brasileira, ornamentados ainda por uma fauna exótica, já cantada em
versos atentos ao deslumbre do canto do sabiá. Na confirmação dessa
particularidade, os habitantes do País tropical são transformados em
personagens que se apresentam como figuras ornamentadas pelo colorido
do local e em seu ambiente cultural tornam-se representativos.
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Tomados como exemplificação da visada crítica de Machado de
Assis, no que diz respeito ao espírito nacional, os poemas de Sarobá
revelam certo instinto de nacionalidade e esse instinto pode ser
traduzido na integralização da obra como resultado do trabalho de
um escritor farto nos assuntos que lhe ofereceram a sua região. Na
salvaguarda de doutrinas absolutas que empobrecem o trabalho do
artista, Lobivar pode ser enquadrado no perfil intelectual e instintivo da
nacionalidade definido na seguinte observação machadiana: “O que se
deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que
o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de
assuntos remotos no tempo e no espaço”. (ASSIS, 2006, p. 801).
Sarobá, uma variante de Saróba, palavra usada para dar nome
ao lugar sujo da zona pantaneira da Nhecolândia (estado de Mato
Grosso do Sul), onde os caboclos penetram com medo de que uma
cobra esteja à espreita, é o nome do bairro de negros de Corumbá
(Mato Grosso do Sul), a cidade natal do poeta. Essa informação
pode ser conferida já nas linhas do prefácio da obra. Publicado pela
Minha Livraria Editora, com sede na Rua Pedro I, n. 2, também no
Rio de Janeiro, em 1936, Sarobá chega ao público apresentado pelo
próprio Lobivar Matos. Para a ilustração da capa, a imagem escolhida
retrata o negro que dá vida ao morro, pano de fundo da cena que
reúne na mesma perspectiva o local, o lugar de onde se fala, e o
universal, manifesto pelo título que anuncia a poesia das páginas
do livro. Ao cumprir o papel do Areôtorare, personagem assumida
pelo autor em sua primeira aparição, Lobivar afasta qualquer má
interpretação do vocábulo escolhido como título de seu novo livro
e assim se manifesta:
SAROBÁ
“Areôtorare” foi o titulo que escolhi para meu livro de estreia. Fui buscálo do general Melo Rego, estudioso dos índios de minha terra, como fiz
questão de ressalvar em nota á parte do prefácio.
Antes de batizar os poemas boróros com aquele titulo, estudei a etimologia
de duas palavras indígenas com o mesmo significado – Areôtorare e
Aroetorare.
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Dessas duas palavras, qual a mais certa? Não possuem o mesmo significado?
Pensei e, ao cabo de algum tempo, caboclo desconfiado, escolhi a primeira.
E creio que não errei na escolha nem da etimologia da palavra, porque, é
certo, se o padre Colbacchini andou lá pelos sertões em contato com os
boróros e outras tribos, e é culto, o general brasileiro, estudioso e culto
também não deixou de apalpar o terreno e de passar alguns quartos de
horas agradabilíssimos ao lado de Areôtorare. Ambos estudaram os boróros
e ambos são merecedores de credito. Preferi o brasileiro e acho que não
houve má intenção nisso...
Falei a esse respeito porque um intelectual mato-grossense, na apreciação
que fez dos poemas boróros, retifica o suposto engano e dá razão ao padre
italiano, preferindo-o, e, falo agora por precaução, porque entram em
cenário outras duas palavras com o mesmo significado – Saróba e Sarobá.
A primeira é usada na “Nhecolândia”, zona pantaneira por “excelência”
pecuária, com o significado de lugar sujo, onde os caboclos penetram
com receio de algum “macharrão” acordado ou de alguma “boca
de sapo”traiçoeira. A segunda, cuja origem não descobri ainda, é a
denominação que recebe o bairro de negros de Corumbá. Lugar sujo,
onde os brancos raramente penetram e assim mesmo, quando o fazem
se sentem repugnados com a miséria e a pobreza daquela gente. Sentem
repugnância e nada mais, porque os infelizes continuam a vegetar em
completo abandono, como se não fossem criaturas humanas.
Só se lembram de Sarobá quando são necessários os serviços de um
negrinho. Fora daí a Favela em ponto menor é o templo eterno da Miséria,
é a mancha negra bulindo na cidade mais branca do mundo, na expressão
de um inglês que passou por lá caçando onça e, quem sabe? Se petróleo
também.
O fotógrafo bateu inúmeras chapas e não foi feliz. No momento não
havia sol suficiente para fotografias nítidas e artísticas. Consolem-se. Não
há outro remédio.
As fotografias da série de Sarobá foram bastante prejudicadas pela falta
absoluta de luz. Era preciso luz, sol, muita luz, muito sol. E havia – tortura
do artista – treva, relâmpagos violentos e chuva, muita chuva...
Rio – 1936.
O AUTOR.
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Pela leitura do prefácio, escrito para reforçar o título da obra, vale
notar que a opção do poeta em privilegiar a memória, recorrendo a
mais um termo para sintetizar suas raízes e colocar em evidência certos
costumes de sua gente, é atitude que representa, no contexto da cultura
brasileira veiculada pelo modernismo dos anos de 1930, o pensamento
de um artista engajado no projeto nacionalista.
A partir do prefácio, disposto no espaço de três páginas, o leitor
recebe diferentes tipos de informação: primeiro a elucidação sobre o termo
Areôtorare, título escolhido para o livro de estreia. Em seguida, as variantes
Saróba e Sarobá começam a ser mencionadas como palavras que definem
as regras de um jogo semântico cujo resultado caminha para uma mesma
definição. No lamaçal do abandono do Sarobá, o poeta vê “[...] a mancha
negra bulindo na cidade mais branca do mundo”2 (MATOS, 1936, p. 6-7).
Ao finalizar suas percepções a respeito de Sarobá, o bairro dos negros da
região portuária de Corumbá, Lobivar justifica a ausência de fotos que ilustrar
os poemas. Não havia sol para que as chapas fossem batidas, o que o poeta
lamenta, convidando o leitor a buscar a luz da poesia como um lenitivo para
sua tortura feita de trevas, de relâmpagos e de chuvas. Não restam, então,
dúvidas ao leitor: Sarobá é a confirmação de Areôtorare.
A respeito da recepção crítica ao trabalho de Lobivar, poeta iniciante,
chamam atenção os comentários dos editores na apresentação da obra
em reconhecer que Lobivar opta pelas categorias marginalizadas, opção
que pode ser respaldada pelo projeto modernista, sobretudo dos anos
1930, quando a crítica social é feita nos seus melhores momentos. No
que diz respeito à recepção da obra, destacam-se alguns comentários
críticos registradas em uma espécie de prólogo da obra:
O Sr. Lobivar Matos é um poeta modernista, que aparece com um livro
de titulo arrevezado: - “Areôtorare”. Livro de poemas modernos, boróros,
como os classifica o autor. Mas força é confessar que o Sr. Lobivar Matos
2
Corumbá é conhecida como a Cidade Branca, em razão da coloração clara de seu
solo, rico em calcário.
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consegue fazer um verso que foge ao estalão comum. Os seus poemas
revelam, sem duvida alguma, um poeta original.
(Rio de Janeiro, FON-FON, 06 jul. 1935).
2. Espelhos da nação, reflexos de Sarobá
Na sequência do prefácio, os poemas de Sarobá refletem, como em
uma imagem fotográfica, traços de visibilidade e de exatidão. Porém,
a partir de uma visada mais profunda, o reflexo tende a ser substituído
pela revelação.
Conforme reconhece Mônica Pimenta Velloso na discussão em
que apresenta as dificuldades em captar uma realidade complexa
como a brasileira e, portanto, conflituosa, sintetizada em seu ensaio “A
Literatura como Espelho da Nação”, a concepção de literatura como
veículo de nacionalidade, que entre nós se constitui uma verdadeira
tradição, é no mínimo uma simplificação. Simplificação porque apresenta
a obra literária como mero testemunho da sociedade, como uma
espécie de documento destinado exclusivamente ao registro dos fatos,
distanciando-se da noção de que a literatura como reflexo social deve
ser em certa medida objetiva e subjetiva ao mesmo tempo. Lobivar,
ainda que desprovido de máquinas fotográficas sofisticadas, coloca em
foco a luz de um lampião que pisca para iluminar a negra abandonada
na esteira, tossindo e escarrando o sangue já tuberculoso, e enquanto
o batuque segue a chiar pelo terreiro, a poesia nasce de uma série de
acontecimentos do bairro do Sarobá, relatados em flashes que desenham
o movimento, a dança, o gozo e a euforia do lugar.
Bairro de negros,
negros descalços, camisa riscada
beiçolas caídas,
cabelo carapinhé;
negras carnudas rebolando as curvas ,
bebendo cachaça;
negrinhos sugando as mamas murchas das negras,
negrinhos correndo doidos dentro do mato,
chorando de fome.
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Bairro de negros,
casinhas de lata,
agua na bica pingando, escorrendo, fazendo lama;
roupa estendida na grama;
esteira suja no chão duro, socado;
Lampeão de querosene piscando no escuro;
negra abandonada na esteira tossindo
e batuque chiando no terreiro;
negra tuberculosa escarrando sangue,
afogando a tosse sêca no éco de uma voz mole
que se arrasta a custo
pelo ar parado.
Bairro de negros,
mulatas sapateando, parindo sombras magras,
negros gozando,
negros beijando,
negros apalpando carnes
negros pulando e estalando os dedos
em requebros descontrolados;
vozes roucas gritando sambas malucos
e sons esquisitos agarrando
e se enroscando nos nervos dos negros.
Bairro de negros,
chinfrim, bagunça,
Sarobá (MATOS, 1936, p. 09-10).
Na concepção das imagens, Lobivar reveste sua poesia de um tom
naturalista, aplicável a obras de várias épocas. Quando considerado por
Antonio Candido e José Aderaldo Castello, o naturalismo é definido
como um tipo de realismo que procura explicação na ciência para as
atitudes e a forma de ser dos personagens a partir de fatores externos,
biológicos e sociológicos, determinantes para a condição humana. Com
base nessa estética “[...] os seres aparecem, então como produtos, como
consequências de forças preexistentes, que limitam a sua responsabilidade
e os tornam, nos casos extremos, verdadeiros joguetes das condições”
(CANDIDO; CASTELLO, 1985, p. 286).
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Para Lobivar, observar a realidade, sem hesitar em sublinhar o efeito
das taras, das doenças, dos vícios, na formação do caráter – juntandolhes “[...] os efeitos complementares da formação familiar, da educação,
do nível cultural” (CANDIDO; CASTELLO, 1985. p. 286), o aproximava
da função do cientista, que de maneira objetiva limitava-se à atitude de
quem verifica e registra, sem tomar partido, à maneira de um investigador
da realidade no cumprimento de suas as metas. E longe do senso-comum
de se valer da literatura como veículo de nacionalidade, os registros
do poeta problematizam a realidade para recriá-la como contribuição
de compreensão da diversidade, componente essencial na formação
de nossa gente. Na poesia lobivariana, a imagem ficcional recria a
realidade que a sociedade se nega a reconhecer. Ainda que o enfoque
da objetividade traga a aproximação da literatura com a sociologia, a
poesia de Lobivar não é documental.
3. Literatura e subdesenvolvimento no Sarobá
Ao aproveitar-se da fotografia poética, reveladora do Sarobá, o poeta
contempla as mazelas de um beco sujo, lugar estreito e sem luz, por
onde desfilam sombras esguias e frouxas que se destacam como cabides
para os seus sentidos assustados. Por esse lugar, passa uma mulher magra
que mais parece um esqueleto. Atrás dela, um cabra danado, ziquezagueando, lado a lado a uma cadelinha sarnenta que passa correndo,
fugindo de um vira-lata latindo. Num repente, um chorinho anuncia o
samba gostoso a invadir a sala cheia da gente do povo, homens comuns,
negros que, sob a benção de São Benedito no altar, dançam iluminados
pela luz dos lampiões. Do lado de fora, sentado à beira do rio Cuiabá,
o eu poético sente o lirismo que lhe sacode os nervos que contemplam
o lugar. Eis as imagens do poema “Beco Sujo”, o retrato válido do
regionalismo urbano retratado a partir da realidade vivida por Lobivar.
Nessa caracterização, o espaço visualizado pelo artista é a
confirmação de sua consciência sociológica e, ao teor da denúncia,
mescla-se a transposição do real projetado em poesia. O espaço interior
da sensibilidade do poeta transforma-se na visão exterior do Sarobá:
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Beco estreito,
beco sujo.
O vento está soprando o único lampião
que continua aceso.
O vento não gosta de luz
e quer apagar a lua que se estirou molenga
no silêncio da noite
Sombras esguias, sombras frouxas,
são cabides para meus sentidos assustados.
Passa uma mulher magra que é esqueleto só.
Atrás dela vem um cabra danado,
Zigue-zagueando,
Desenhando linhas curvas,
Tropeça aqui, agarra lá.
_ Psiu! ...Psiu!...
_ Vá para o inferno, péste!
Passa uma cadelinha sarnenta correndo
e atrás um “vira-lata” latindo.
Lá adeante, no fim do beco,
um chorinho-chorado
tá dizendo que ha samba gostoso,
que a tristeza virou alegria,
que a carne não tem côr.
Sururú. Siriri. Chorinho-chorado.
Sala cheia.
Lampeões enforcados em cordas de fumaça.
São Benedito no altar.
Negro só:
soldados de polícia, marinheiros,
gente do povo, gente simples, gente bôa.
Caninha, corre róda, não pára, pra que parar?
- O chorinho vai pegar fogo, negrada!
O rio Cuiabá está quieto, encolhido,
assustado com a alegria daquela gente triste.
Sento-me numa pedra á beira da agua
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e eu me sinto mais bêbado
que aqueles negros que clamam sem sentir,
que gritam sem saber.
Beco estreito,
beco sujo.
O vento está soprando o unico lampeão
que continúa aceso.
O vento não gósta de luz
e quer apagar a lua que se estirou molenga
no silencio da noite. (MATOS, 1936, p. 13).
Em nossa consideração, características do subdesenvolvimento,
recolhidas da visão do poeta, reforçam a voz da consciência de atraso para
serem transformadas e absorvidas em suas escolhas literárias e na eleição
de seus temas, como no poema transcrito. No respaldo do regionalismo,
vale refletirmos com a visada crítica de Antonio Candido, alguns anos
depois da publicação de Sarobá, a partir da observação que diz:
O regionalismo foi uma etapa necessária, que fez a literatura, sobretudo
o romance e o conto, focalizar a realidade local. Algumas vezes foi
oportunidade de boa expressão literária, embora na maioria seus produtos
tenham envelhecido. Mas de um certo ângulo talvez não se possa dizer que
acabou; muitos dos que hoje o atacam, no fundo o praticam. A realidade
econômica do subdesenvolvimento mantém a dimensão regional como
objeto vivo, [...] (CANDIDO, 1989, p.159).
Considerações finais
Desde o romantismo, em busca de autonomia, oscilando entre o
regional e o universal, passando por categorias gerais e particulares, a
literatura brasileira resiste. Em suma, uma vez reconhecido o colorido da
cor local nos registros de uma expressividade artística como a literatura
o discurso apontará o seu caráter de validação. Mais do que valorizar o
local, o estatuto de uma obra deve ser fixado naquilo que a própria obra
traz como universalidade, pois quando se trata de buscar uma definição
para a literatura brasileira, bairrismos não se sustentam. Afrânio Coutinho,
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ao reconhecer a realidade nacional como inspiração e força de captação
de nossa própria realidade confirma as qualidades de nossa literatura:
“Rica, forte, original”. (COUTINHO, 1983, p.14. Grifo nosso).
REFERÊNCIAS
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de
Nacionalidade. In: _______. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.
801. (V. 3).
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
CANDIDO, Antonio; CASTELLO. José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira: Historia
e Antologia. São Paulo: Difusão Editorial, 1985.
COUTINHO, Afrânio. O processo de descolonização literária. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1983.
DINIZ, Dilma Castelo Branco; COELHO, Haydée Ribeiro. Regionalismo In: FIGUEIREDO,
Eurídice (Org.) Conceitos de Literatura e Cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005. p. 207-224.
MATOS, Lobivar. Sarobá. Rio de Janeiro: Minha Livraria Editora, 1936.
VELLOSO, Mônica. A literatura como espelho da nação. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 1, n. 2, p. 239-263, 1988.
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Projeto Editorial e Normas para Publicação
Projeto editorial
PAPÉIS: Revista do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens tem como
objetivo a divulgação de ensaios inéditos, resenhas, entrevistas, elaborados por
professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação, voltados para a grande
área de Letras, Lingüística e Artes, mais especificamente para as linhas de pesquisa
do Programa, e que apresentem contribuições relevantes para a ampliação e o
aprofundamento do debate teórico, da análise de questões estéticas e culturais.
Os trabalhos que atendam à linha editorial da revista são submetidos ao conselho
editorial e encaminhados para análise por dois pareceristas ad hoc.
A partir de 2006, ano de implantação do Programa de Pós-Graduação - Mestrado
em Estudos de Linguagens, a revista Papéis aceita contribuições com a seguinte
temática:
As edições de número par se dedicam aos estudos da literatura e as de número
ímpar, aos estudos lingüísticos e de semiótica.
Para os estudos literários, aceitam-se artigos sobre:
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artes plásticas, música, por exemplo); poesia ou narrativa.
Literatura e memória cultural, compreendendo o estudo de textos literários
em suas relações com outros textos, tratando as questões memorialistas como
manifestações de uma dada cultura.
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lingüístico, tendo a língua como complexo fenômeno de natureza sociocultural
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organização textual, as variáveis sócio-históricas ou condições de produção que
engendram o sentido do discurso em relação ao contexto.
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Livro:
HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques. São Paulo: Contexto, 2006.
Ensaio em periódico:
NOLASCO, Edgar César. A pobreza é feia e promíscua. Revista Cerrados,
Brasília, n. 21, p. 47-59, 2006.
Capítulo de livro:
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cultural em ritmo latino. In: MARGATO,
Izabel & GOMES, Renato Cordeiro (orgs.) Literatura/Política/Cultura. (19942004). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 239-252.
Documentos eletrônicos:
CAMPOS, Haroldo de. Uma leminskiada barrocodelica. Disponível em:
www.planeta.terra.com.br/arte/PopBox/Kamiquase/ensaios.htm. Acesso
em 08 mai. 2007.
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