Teresa Raquel Bastos

Transcrição

Teresa Raquel Bastos
A mulher dentro do uniforme
Teresa Raquel Bastos
sessão
A mulher dentro do uniforme
Teresa Raquel Bastos
Dedicatória
Aos meus pais, Beatriz e Wener, por todo o esforço e dedicação.
Aos meus avós, Manoel e Nóris, pelo amor de sempre.
Às minhas companheiras de Rugby de Calcinha, especialmente
Anna Joana e Renata, por estarem comigo nesse projeto.
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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8 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
Agradecimentos
A luta para terminar o curso de jornalismo
vem antes mesmo de pôr os pés na PUC. Vem do
esforço dos meus pais, da minha força de vontade
e de, claro, contar com inúmeros anjos que cruzaram meu caminho.
Só posso agradecer por ter caído em uma família incrível. Herdei o gene da comunicação de minha
avó Elvira Raulino, exímia comunicadora e que tanto tem a ver com meu tema de TCC. Foi com ela que
tive minhas primeiras aulas de feminismo, quando
me orgulhava de seus feitos “rebeldes” em tempos
mais distantes. Com ela, também vivenciei os bastidores de rádios, programas de TV e redações de jornais. Obrigada por ter me proporcionado tudo isso!
Ainda pelos laços de sangue, agradeço à existência de todos os jornalistas da família (na última contagem, foram onze!), pois com vocês também pude
enxergar na minha escolha uma profissão que é
mantida de amor e dom.
Aos meus avós Nóris e Nelito, que durante os
quatro anos de curso nunca me deixaram esquecer
o quanto sou amada, adorada e apoiada, mesmo
distante. Todo o meu amor é de vocês e que esse diploma traga muita felicidade, como forma de agradecimento eterno.
Ao Anderson, meu sobrinho, que com sua simples existência me dá um gás enorme de tentar
transformar o seu mundo em um lugar menos machista e violento. Que sua titia seja um bom exemplo para sua educação.
Devo toda a minha vida escolar à equipe da Escola Dom Bosco, que meu deu a base de tudo o que
sei, sempre estimulando o aprendizado. Não posso deixar de agradecer especialmente à tia Aldinha, bússola da instituição que chamei de segunda
casa por tantos anos. Aos meus professores, todos
eles, que de uma forma clássica ou menos tradicional me ensinaram alguma coisa. Aos funcionários, que sempre enriqueceram meu dia a dia com
conversas, brincadeiras e amor. Aos coordenadores
Amélia, Rosângela, Mário, Sr. Chiquinho. À minha
amiga querida Aldenora, pelas horas de conversas
e conselhos. Ao meu amado segundo pai, Sr. Mello
(in memorian), que acreditava em mim quando até
eu mesma duvidava, que teve tanta paciência e que,
lá do céu, me guia para o sucesso, para sempre. E
aos meus amigos de turma que dividiram comigo
os períodos das manhãs.
Sem amigos, não somos nada: Maiara, Diego,
Amanda e César, que formaram comigo o grupo
ProUnidos, um porto seguro na graduação. Sem vocês, tudo seria mais difícil em São Paulo, na Pontifícia louca que nós conhecemos!
Aos que entraram na minha vida através do rugby, em especial minhas amigas de Rugby de Calcinha – com todo amor às fundadoras dessa iniciativa:
Anna Joana e Renata Barros, além das que entraram mais tarde (Leca, Carla, Ana Diva, Babi). Aos
times dos quais participei como atleta (Teresina Rugby e Rio Branco Rugby), obrigada por me ensinarem valores que levo para a vida inteira e, claro, para
a minha profissão. À Amanda Abed, que sempre foi
muito querida quando precisei contatar a CBRu.
Aos fãs do site que criamos com tanto amor e dedicação, obrigada por fazerem do RdC não só uma
marca, mas um sinônimo de rugby feminino no Brasil. É por vocês também esse trabalho.
Aos amigos que moram longe, mas que estão
sempre me apoiando (não citarei nomes para não
cometer o crime de esquecer alguém).
Ao Igor Girão, que se colocou à disposição para
fazer a maior parte das fotos lindas destes trabalhos.
à Tânia Samara por me ajudar a organizar as entrevistas. Às minhas entrevistadas, que compartilharam comigo um pouco da intimidade, de uma forma
tão sincera, franca e divertida.
Ao Alan Malta, o responsável pelos melhores
momentos de lazer e relaxamento durante esse
período corrido que é a elaboração do TCC. Sem
você, eu teria surtado!
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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AS RAZÕES DO RUGBY
“Como saberá o que é o amor se sua velha nunca costurou sua camiseta apesar de sofrer toda vez que você entra em campo? Como saberá o que é a dor se você nunca tomou um tackle de ficar sem poder amarrar o tênis por um mês? Como saberá o que
é o prazer se você nunca ganhou um clássico de barro? Como saberá o que é chorar
se jamais perdeu uma final na última hora com um penal duvidoso? Como saberá o
que é carinho se nunca acariciou a ovalada sem perceber enquanto escutava seu técnico falar? Como saberá o que é solidariedade se jamais protegeu um companheiro
indefeso no chão? Como saberá o que é poesia se nunca deu um drop com a marcação
em cima? Como saberá o que é humilhação se nunca te presentearam com um chute perfeito que você simplesmente não chego na bola? Como saberá o que é pânico se
nunca te surpreenderam mal posicionado em um contra ataque? Como saberá o que
é morrer um pouco se você nunca foi buscar a bola depois do H? Como saberá o que
é solidão se nunca ficou de fullback para parar um ataque de gente disposta acabar
com suas esperanças? Como saberá o que é barro se nunca se atirou aos pés de ninguém para evitar um try? Como saberá o que é egoísmo se nunca perdeu a bola por
ir sozinho enquanto a ponta estava livre? Como saberá o que é o sacrifício se nunca
treinou no inverno, chovendo, depois de trabalhar o dia inteiro? Como saberá o que
é arte se nunca improvisou uma jogada com o half ? Como saberá o que é o subúrbio
se nunca acabou ficando de ponta? Como saberá o que é ser prestativo se nunca foi
forward? Como saberá o que é injustiça se nunca foi penalizado por um árbitro que
estava longe da jogada? Como saberá o que é a insônia se nunca caiu na tabela do
campeonato? Como saberá o que é perdão se nunca encheu a cara com quem te mandou pro hospital? Como saberá o que é valor se nunca virou uma partida que parecia perdida? Como saberá o que é amizade se nunca participou de um terceiro tempo? Como saberá o que é a VIDA, se você nunca jogou RUGBY?”
Autor desconhecido
EXPEDIENTE
CAPA
Teresa Raquel Bastos
DIAGRAMAÇÃO
Alan Malta Leitão
FOTOS
Igor Girão
Teresa Raquel Bastos
Lee Lousam
Tommaso Chiavistelli
CBRu
Denys Flores
Matheus Gonçalves
Marco Maia
REVISÃO ORTOGRÁFICA
Alice Vasques Camargo
DECUPAGEM DE ENTREVISTAS
Tânia Samara Lemos
ORIENTAÇÃO
Salomon Cytrynowicz
BANCA AVALIADORA
Prof. Anna Flávia Feldmann
(PUC-SP e especialista em estudos de gênero)
Amanda Abed
(Coordenadora de comunicação da CBRu)
AUTORA: Teresa Raquel Bastos
E-MAIL: [email protected]
PALAVRAS-CHAVE:
Gênero, esportes, rugby, rúgbi, feminismo
12 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
13. INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
19. Origens da discussão de gênero
CAPÍTULO 2 - A MULHER NO ESPORTE
27. História do esporte feminino
32. Aspectos sociais impostos pelo esporte
35. Corpos atléticos e femininos
CAPÍTULO 3
43. A mulher dentro do uniforme de rugby
57.
65.
85.
95.
87.
ENTREVISTAS:
Edna Santini
Ana Carolina Diva
Manuela Nunes
Fernanda Lima
Nayara Lima
119. CONSIDERAÇÕES FINAIS
122. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
124. ANEXO
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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14 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
Introdução
f
Falar sobre mulheres nos esportes é difícil porque esta temática transcende o
que pode ser visto simplesmente como
uma escolha. Ser atleta, de fato, é uma
escolha, mas não apenas isso. A mulher
que decide ser atleta, sobretudo se escolher um esporte considerado masculino, não se destitui das questões de
sexo e gênero. Ao contrário: este é um
campo em que ocorre uma natural exacerbação de preconceitos.
O desempenho das mulheres atletas
em esportes predominantemente masculinos é tema na mídia, nas arquibancadas ou nas mesas de bar, e, em geral,
os comentários vão além da discussão
sobre a performance delas em quadras,
campos, ringues ou pistas. Seus corpos e
sua sexualidade são um objeto de atenção mais chamativo do que a arte que
elas demonstram ao público durante as
atividades de desporto. A mulher que
assume a prática de um esporte “masculino” quase não é vista como uma atleta, mas como um desvio social, um alguém que se expõe ao público fazendo
algo que não devia.
Não é por acaso que a discussão sobre gênero e sexo tem sido cada vez mais
frequente nos estudos do campo da eduRUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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introdução
cação física, que busca o equilíbrio entre
biologia e cultura. Afinal, há duas formas de ver a mulher: no seu aspecto biológico e imutável de ser feminino, e sua
representação que se transforma com o
tempo, com suas lutas e conquistas.
A escolha do rugby feminino como
objeto de análise foi feita porque este é
um esporte considerado eminentemente
masculino e pouco conhecido no Brasil,
mas cujo número de praticantes do sexo
feminino cresce bastante e produz bons
resultados: a Seleção Brasileira Feminina foi campeã de todos os nove jogos
sul-americanos já realizados.
O simples desconhecimento desses
resultados mostra a desimportância a
que foi relegado o rugby feminino brasileiro. Diversos preconceitos orbitam em
torno das atletas. O maior deles é traduzido em uma pergunta: mulher pode
jogar rugby?
Compreender a questão do gênero no
esporte ajuda a desmontar estes pensamentos criados a partir de visões machistas, religiosas e comerciais nos esportes. Existem esportes
O RUGBY TEM UMA
que, segundo o senESTÉTICA CONSIDERADA
so comum forjado
MASCULINA, MAS NO
por essas visões, são
BRASIL, AS MULHERES
considerados masculinos e masculiniSÃO EXEMPLO
zadores. Nada mais
DE VITÓRIA
justo que desmistificar essa classificação e as atividades “mais indicadas” para
o corpo feminino. Negar a possibilidade
de escolha da mulher por esses esportes é
desconhecer que eles podem trazer a ela
a capacidade de superação de um patamar de força e potência.
16 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
Neste trabalho de conclusão de curso,
serão abordados os seguintes temas: as
origens da discussão de gênero, o papel
feminino no esporte, a mulher rugbier e
os discursos que permeiam as práticas
esportivas femininas. Além dos referenciais teóricos, que vão da teoria de gênero e feminismo até uma análise acadêmica das mulheres nos esportes, foram entrevistadas cinco personagens que estão
no rugby amador e no alto rendimento
(atletas que começam a viver de esporte,
abdicando de estudos e profissões, e que
competem em jogos de alto nível de exigência, a exemplo das Olimpíadas). Entender as visões dessas mulheres sobre o
esporte e conhecer suas vivências nesse
meio ajuda a compreender o rugby feminino brasileiro e situá-lo no panorama
de discussão de gênero.
Olhar para as mulheres atletas de uma
perspectiva feminista e feminina indica
um fazer científico não neutro, mas repleto de opções individuais e políticas.
A articulação em torno dessa temática
propõe uma reflexão sobre o papel da
mulher no rugby, questionando alguns
dos estereótipos que crescem férteis no
imaginário coletivo.
Não só a mulher é tratada neste trabalho, o papel centralizador masculino predominante no rugby também entra em pauta. O esporte retratado aqui
possui suas origens, culturas e práticas
voltadas para referenciais masculinos e,
com frequência, é palco para a reafirmação da masculinidade de seus praticantes. Com o trabalho, pretende-se entender a inserção e permanência feminina
nesta modalidade, numa constante intenção (seja ela explícita ou não) de superar as relações de poder.
XXXXXX
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introdução
Coletar dados e depoimentos de pes- tradicional Bandeirantes Rugby e cujo
soas-chave na prática de rugby no Brasil corpo musculoso é alvo de comentáé uma forma de desvendar e explicitar rios; Fernanda Lima, jogadora do prias discriminações e preconceitos asso- meiro time de rugby do país, o SPAC,
ciados à questão do gênero. Este é um e que é assumidamente homossexual; e
conhecimento militante: entender a for- Nayara Rúbia, uma das poucas árbitras
ma como o preconceito se manifesta é de rugby do país e uma das primeiras a
uma forma de combater relações auto- desempenhar este papel.
ritárias, questionar o porquê de cada siCada uma destas jogadoras tem, em sua
tuação do tipo e tentar apontar um meio trajetória no rugby, histórias importantes
equilibrado para as relações “familiares” quanto às suas vivências femininas em um
entre jogadores, levando em conta que, esporte tão “masculino”. São relatos de
no rugby, os times são
preconceitos, comenconsiderados “uma setários,
sentimentos
CINCO ENTREVISTADAS
gunda família” para as
quanto à sexualidade
praticantes.
e relações interpessoCONTAM COMO
Como metodologia,
ais com amigos, famiÉ A VIDA DE UMA
foi importante coletar
liares e companheiros
MULHER NO RUGBY,
depoimentos e analisáamorosos.
SEUS DESAFIOS E
-los quanto à esfera do
Elas vivem o espordiscurso, observando e
te de forma singular.
CONSQUISTAS
questionando as entreConciliam seus treivistadas sobre como se
nos com jornadas de
veem enquanto mulheres de rugby e sua trabalho, demonstrando a múltipla face
autorrepresentação: seus corpos, suas ha- da mulher moderna, que alia trabalho e
bilidades e sua sexualidade.
lazer na correria da rotina. Isso mostra o
A escolha das personagens aconte- avanço feminino desde as lutas feminisceu por serem cercadas de estereótipos tas, quando eram reivindicados os direino meio em que convivem no esporte. tos mais básicos, como melhorias no traForam elas: a Edna, atual jogadora de balho e estudo. Mas os mesmos relatos
destaque da Seleção Brasileira de Ru- confirmam que há muito mais para progby Feminino 7’s; Ana Carolina “Diva”, gredir, lutando contra o machismo nosex-jogadora da Seleção, mãe do Davi so de cada dia. E especialmente em um
e dona de curvas consideradas pou- meio de dominação masculina: o esporte.
co atléticas; Manuela Nunes, atleta do E ainda mais: o rugby.
18 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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20 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
Origens da
discussão de gênero
o
O movimento feminista é tido como movimento político transformador que interroga e desconstrói a naturalização
dos corpos em papéis e práticas sociais e,
como conhecimento crítico, interroga os
discursos sociais em seus desdobramentos de etnia, raça, classe, gênero, sexualidade, além de interrogar o próprio sexo
biológico na constituição do sujeito “mulher” (SWAIN, 2009).
Há uma grande contradição quanto à
imagem feminina, que é considerada o
“sexo frágil”. Quando se estuda o papel da
mulher na sociedade, pode-se perceber a
constante quebra de regras e normas que
a impediam de se expressar e revoltar-se
quanto à sua função, designada pela comunidade, que era ficar confinada à esfera doméstica, restringida a tarefas como
cuidar da casa e dos filhos, pari-los, entre
outras. Esses valores eram passados pela
educação de geração em geração, com a
tradicional crença de que a mulher não
podia expressar nenhuma de suas revoltas (TOJAL, 2003).
De acordo com Knijnik (2003), “o corpo delas sempre foi absolutamente visto
como um mero objeto, que dá filhos, que
quebra a um toque, que deve ser gracioso
para enfeitar o ambiente, enfim, que só
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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origens da discussão do gênero
existe para cumprir funções predeterminadas, não para ser”.
Essa representação tem ligação com
um dos mitos que permeiam o cenário das
conquistas femininas: o do “belo sexo”, explicado por Lipovetsky (2000, p. 29):
A idolatria do “belo sexo” é uma invenção da Renascença: de fato, é preciso
esperar os séculos XV e XVI para que a
mulher seja alçada ao pináculo como personificação suprema da beleza. Pela primeira vez na história, realiza-se a conjunção das duas lógicas que instituem o
reino cultural do “belo sexo”: reconhecimento explícito e “teorizado” da superioridade estética do feminino e glorificação
hiperbólica dos seus atributos físicos e
espirituais.
Este conceito é perpetuado nas relações interpessoais femininas, seja em
casa, no trabalho ou na carreira esportiva. O reconhecimento está, muitas
vezes, ligado à beleza, diminuindo sua
inteligência e esforço. No esporte, são
muito mais recoO CORPO DELAS
nhecidas pelos atriSEMPRE FOI
butos físicos (por
ABSOLUTAMENTE
serem estes padrões
VISTO COMO UM
“femininos” ou desviantes, másculos)
MERO OBJETO, QUE DÁ
do que pelas habiFILHOS, QUE QUEBRA A
lidades dentro da
UM TOQUE, QUE DEVE
área de jogo.
SER GRACIOSO PARA
Por isso, estudar
as conquistas femiENFEITAR O AMBIENTE
ninas continua sendo um grande desafio, pois é possível perceber, na rotina
atual da mulher, esses valores enraiza22 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
dos, inclusive no âmbito esportivo.
Como argumentos utilizados na perpetuação desses valores, os aspectos biológicos viram “inquestionáveis”, fatos sobre o corpo da mulher e sua função decorrente dele. Devido a isso, as teorias
feministas, que abordam o gênero e não
apenas o sexo, são uma crítica ao quadro
epistemológico no qual se insere o próprio discurso. Mas a ciência é apenas um
modo de ver o mundo, e ela pode e deve
ser questionada (SWAIN, 2009).
Mas o que é o gênero, afinal? Segundo Scott (1988), o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, sendo fundado nas diferenças percebidas
entre os sexos, comportando como primeiro significado as relações de poder. É
no campo social que se constroem e se reproduzem as relações desiguais entre os
sujeitos. Logo, as diferenças são baseadas
nos arranjos sociais, e não na diferença
biológica dos indivíduos.
Recorrentemente, as diferenças dos
corpos masculinos e femininos são utilizadas como argumentos para a inferiorização da mulher, o que reafirma o senso
comum de subordinação do sexo feminino. “O argumento de que homens e mulheres são biologicamente distintos e que
as relações entre ambos decorrem dessa
distinção” (LOURO, 2007, p. 20) serviu e
serve ainda hoje para justificar essa desigualdade de gênero. Logo, a discriminação da mulher começa com a descoberta
do sexo ainda na barriga, direcionando
sua imagem na família e sociedade como
um todo, reservando a ela os padrões de
conduta divididos por gênero.
O termo e suas interpretações estão
atrelados às lutas das mulheres, das feministas, ao serem usados desde o iní-
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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origens da discussão do gênero
cio nos discursos e nos contextos de luta,
sempre se contrapondo à naturalização
do feminino e do masculino. “O conceito carregou as marcas dessa luta” (LOURO, 1995, p. 229).
A feminista Simone de Beauvoir,
quando diz “não se nasce mulher, torna-se”, aborda exatamente um dos conceitos de gênero e sexo. A apropriação
da imagem e significação de “mulher”
é construída, apropriada pelo humano,
e não simplesmente entregue de mãos
beijadas ao personagem. Sua obra O Segundo Sexo, publicada originalmente
em 1949, tida como precursora da definição de gênero, começa com o questionamento “O que é uma mulher?”, para,
em seguida, questionar se “ser mulher” é
apenas possuir um útero.
Ao refutar essa correspondência direta, Beauvoir (1980, p. 13) chega à seguinte conclusão: “Todo ser humano do
sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar
dessa realidade misteriosa e ameaçada
que é a feminilidade”.
Justamente sobre esse ponto, tão complexo e contraditório, reside o conceito
de gênero. No entanto, diferentes visões
sobre esse mesmo ponto lançaram interpretações distintas.
Assim, uma simples mudança de uma
vogal no fim de palavras como “menina”
e “menino” vem carregada de significados
e interpretações que transcendem a origem gramatical.
Desde sua origem, o gênero foi, sim,
um termo emprestado da gramática.
Veio da língua inglesa, mais especificamente da palavra “gender”. A princípio,
o termo foi apropriado por psicólogos
norte-americanos dos anos de 1960 para
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designar uma “identidade de gênero” somada a um corpo, seja lá que corpo fosse este. Esses psicólogos estavam interessados em entender as pessoas com “sexo
ambíguo”, isto é, aqueles que apresentavam, no mesmo corpo, características do
sexo feminino e do sexo masculino (CARVALHO, 2011).
Dessa forma, o termo gênero era particularmente interessante para eles, uma vez
que a “identidade de gênero” daqueles sujeitos não poderia ser uma decorrência natural
de características corporais. Cria-se, então,
uma dicotomia entre um conceito de sexo
(o corpo, a natureza) e gênero (a cultura, as
atitudes), sobre uma teoria que diz respeito,
essencialmente, a indivíduos e como estes
lidam com seu sexo e seu gênero.
Porém, não se deve desvincular o sexo do
gênero. Dizer que gênero está baseado em
diferenças corporais não é recair na dicotomia sexo x gênero. Para Scott (1988), o gênero não é uma mera decorrência dos corpos, mas parte das diferenças que é percebida e, ao serem percebidas, são hierarquizadas. Pensar relações de gênero sem discutir
o corpo é como pensar relações raciais sem
discutir a cor de pele. Perde-se o referencial
no corpo, por mais variável que esse corpo
seja, cria-se um conceito frouxo, inespecífico, que poderia ser utilizado para qualquer
relação de poder. Os corpos entram na discussão de gênero porque sobre ou a partir
deles surgem os discursos de discriminação.
É importante frisar que a discussão de
masculino e feminino não provoca uma
opinião separatista, mas sim um aprofundamento da necessidade de desfazer o cotidiano predominante de supremacia do gênero masculino sobre o feminino (SCOTT,
1988). Discutem-se alguns elementos relacionados ao discurso de gênero: as mar-
cas que evocam as representações simbóli- natural, muito menos invariável. As identicas, os conceitos normativos que induzem dades sexuais, portanto, não são naturais, e
a interpretações destas representações, as sim adquiridas. O discurso de heteronormaorganizações sociais (trabalho, grupos so- tividade sexual é uma obsessão social norciais, família, entre outros) e identidades matizante quando há repetidamente o dissubjetivas, que não devem ser reduzidas curso sobre a condição homossexual como
às concepções biológicas, negando assim “desviante”. Com isso, os estudos de gênero
a carga história de sua representatividade e feministas também se encontram com os
(SCOTT, 1988, p. 86-87).
estudos gays e lésbicos.
Na sociedade, as feminilidades e masTodas estas vertentes de discursos acerculinidades permeiam as relações entre in- ca de gêneros atingem em cheio a concepdivíduos por diversas vias que retratam a ção e interação com corpos. É nesse “lugar”
cultura utilizando linguagem escrita, visu- que ocorrem fisicamente as marcas desse
al, corporal, midiática. Dessa forma, as con- discurso, definido a partir de traços culcepções e significações de mundo são orga- turais, que posicionaa os gêneros de acornizadas socialmente e culturalmente pela do com as semelhanças e diferenças entre
linguagem, perpetuando representações e eles. Para compreender essa relação gênero
estereótipos.
x corpo, é importante superar os aspectos
Falar de identibiológicos imutádades desta forma
veis e entrar na inÉ
IMPORTANTE
FRISAR
é considerar que
vestigação do corelas são definidas
po como construQUE A DISCUSSÃO DE
no âmbito da cultor histórico, cultuMASCULINO E FEMININO
tura e da história.
ral, social e político.
NÃO
PROVOCA
UMA
Identidades estas
Ter o corpo
OPINIÃO SEPARATISTA, MAS
que se diferem incomo outdoor vai
dividualmente por
de acordo com o
SIM UM APROFUNDAMENTO
gênero, raça, etnia,
pensamento
de
DA NECESSIDADE DE
sexualidade, entre
Guacira
Louro:
DESFAZER A SUPREMACIA
outros. Logo, essa
“[...] os corpos são
DO GÊNERO MASCULINO
identidade é mutásignificados, revel – e por que não?
presentados e inSOBRE O FEMININO
– contraditória.
terpretados cultuCitando a sexuaralmente” (2000,
lidade como forma de identidade, é necessá- p. 62). É preciso pensar no corpo não sorio apontar as discussões atuais envolvendo mente como portador de funções vitais,
este aspecto. A polêmica em torno dela está mas sim como estrutura simbólica de reem acorrentar um determinado sexo (bioló- presentação e “lugar” onde são projetagico) a um gênero específico, relacionando o das as mais diferentes culturas.
desejo sexual com o sexo oposto.
No campo dos estudos dos esportes,
Para Louro, os termos sexo, gênero e se- mais especificamente na formação de eduxualidade não são uma sequência fechada e cadores físicos, a discussão de gênero esteRUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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origens da discussão do gênero
ve, desde o princípio, baseada em análises
biologicistas, inclusive em suas pesquisas.
Por isso, priorizar a discussão no lado sociocultural é um caminho relativamente
novo e pouco explorado.
No período em que despontavam os primeiros estudos, as feministas denunciavam o tratamento de inferioridade recebido pela mulher, bem como os estereótipos
sexuais enraizados na disciplina de Educação Física na escola e fora dela, com práticas em competições oficiais. Já havia também o debate por parte das mulheres referente à performance esportiva e as diferenças entre homens e mulheres. Em muitas
dessas discussões, gênero e sexo eram relatados como sinônimos (LUZ, 2003 apud
ALMEIDA, 2008, p. 39).
Buscando um ponto de partida, alguns
autores (LOURO, 1997; MEYER, 2003)
dividem o movimento feminista em duas
ondas. A primeira surge no final do século
XIX, com a luta das mulheres pelo direito ao voto (sufragistas), por estudo e trabalho. Já a segunda, mais recente, aconteceu entre 1960 e 1970 com a grande agitação intelectual dos movimentos sociais
e políticos da época da ditadura brasileira. Foi como se a produção acadêmica voltada para a prática esportiva com relação
à questão de gênero tivesse pegado uma
“carona” na onda de elucidação política do
momento histórico, com início de produção estipulado na década de 1980.
26 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
Entretanto, é errado classificar o movimento feminista como uniforme. Há
várias correntes de pensamento, ora caminhando para um mesmo discurso, ora
conflitantes. Talvez o principal tema em
comum entre todas essas correntes seja o
questionamento do papel feminino, considerado, na maior parte das vezes, inferior na sociedade contemporânea. Este
pensamento comum também converte-se
em agitação por mudanças.
A segunda onda feminista, citada acima,
questionava a centralização de poder no homem branco de classe média e a citação dos
feitos femininos como desviantes.
Segundo Silva (2006), as principais vertentes do feminismo são: radical, liberal, social-marxista, psicanalíticas, raciais e étnicas, culturais e pós-modernas.
Com isso, um crescente número de dissertações acadêmicas, trabalhos e análises é
produzido no período, havendo, no contexto atual, uma boa produção analítica e um
aumento significativo de estudiosos de gênero e sexo focados em destrinchar o tema
no campo do esporte.
Os estudos de gênero possuem trajetória de rupturas, desconstruções, questionamentos, são incapazes de ser esgotados e
demasiadamente definidos, mas são passíveis de interpretações e apropriações de discurso. Toda essa luta pode ser trazida para
a vida esportiva da mulher, como mostra o
capítulo a seguir.
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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28 • XXXXXX
A mulher
no esporte
h
HISTÓRIA DO ESPORTE FEMININO
O esporte pode ser considerado um meio
social capaz de produzir e reproduzir valores, símbolos e representações de determinados contextos culturais, passível de
inúmeras interpretações e análises. Logo,
se assim o é, alguns aspectos da sociedade patriarcal dominante são transferidos
para esse meio, fazendo-se necessária a
discussão do tema, para que seja possível superar as relações sociais de poder
(FURLAN e SANTOS, 2008, p. 29).
Refletir sobre o esporte deve levar em
conta suas diferentes camadas sociais, as
intenções dos jogos (que vão do lazer ao
alto rendimento), os investimentos econômicos feitos nas modalidades, sua capacidade de arrastar multidões e provocar
sentimentos apaixonados. Tudo isso torna-o um meio marcado por interesses, negociações ou disputas, ou seja, relações de
poder (FOUCAULT, 2002 apud ALMEIDA, 2008, p. 27).
Dessa maneira, a constante discussão
sobre as representações de atletas para a
sociedade é um campo fértil para estudos
sociais dessas relações, com possibilidades de olhares e contextos diferentes, que
variam, entre outros motivos, com as modalidades trabalhadas nesses discursos.
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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29
origem do esporte
O debate sobre a participação feminina é ainda um nicho muito pequeno nos
estudos dos esportes, que assim como
tantos outros temas, é primariamente
relativizado como masculino, branco,
heterossexual, sendo o esporte feminino
um desvio dessa condição, ainda mais
quando as personagens são negras, pobres ou lésbicas.
Considerando o esporte mundial, não
apenas o brasileiro, é possível afirmar
que as mulheres estão praticando todas
as modalidades e práticas esportivas. Entretanto, há, na grande maioria delas, a
discriminação, que fica evidente quando
a participação delas é deixada de lado em
jogos classificados como “feitos para homens”. Grande parte da população imagina o esporte feminino por concepções
machistas e paradigmas tradicionais,
pois sempre relaciona o esporte às práticas do gênero masculino.
O papel da mulher na sociedade e sua
representação diante dos indivíduos com
quem convive levam ou levaram-na a encontrar barreiras culturais e sociológicas
para ser aceita no mundo dos esportes.
Esses obstáculos podem ser encontrados
nos regulamentos de esportes, na literatura, na mídia, nas leis do passado, além dos
valores vividos no dia a dia.
Questionar essa rotina de preconceitos
vivida estimula as mulheres atletas a não
serem apenas espectadoras das vitórias
masculinas, mas sim sujeitos ativos nas
suas próprias conquistas.
Para analisar essa questão, é preciso
voltar algumas décadas, citando as vitórias e derrotas femininas perante os órgãos reguladores dos esportes e sua constante luta para inserção e permanência
nas competições, indo contra a construção
30 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
social que vincula a prática aos homens e
à “masculinidade”.
Para comprovar essa relação tão óbvia,
Rubio (1999 apud ALMEIDA, 2008, p.
33) aponta:
[...] a mulher foi considerada como
usurpadora ou profanadora de um espaço
consagrado ao usufruto masculino. Fosse
como atividade de lazer, fosse como prática sistemática com finalidades bélicas o
esporte unificou, desde então o conjunto de
adjetivos que representam o mundo masculino: força, determinação, resistência e
busca de limites.
Essa visão da mulher como intrusa no
esporte começa pelo grande espetáculo
esportivo: as Olimpíadas. Nas primeiras
edições, não era permitida a participação
feminina, devido à intenção de corresponder ao que eram os jogos gregos da antiguidade, que não permitiam às mulheres
competir nos esportes, limitando sua participação apenas à coroação dos vencedores (KNIJNIK, 2003). Os argumentos
utilizados para mantê-las longe pregavam
que as mulheres, assim como os escravos,
não eram cidadãs, além de afirmarem que
a função da mulher era a reprodução e que
seus corpos e órgãos deveriam ser preservados para a maternidade. Esportes de
qualquer tipo eram tidos como riscos para
as futuras parturientes. Estas visões sobre
a mulher e seu papel social eram vigentes
na sociedade patriarcal da Grécia Antiga.
Com o início dos Jogos Olímpicos modernos, com a primeira edição datada
em 1896, Pierre Cobertin, primeiro presidente do Comitê Olímpico Internacional, perpetuou essa redução do papel da
mulher nos esportes de acordo com o
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
31
origem do esporte
ambiente esportivo hostil do fim do século XIX. O espaço, segundo ele, era
para mostrar o potencial masculino dos
homens, da virilidade e da força, valorizados no evento. De acordo com ele, os
jogos eram um modo de preparar os jovens para a vida militar, os papéis de liderança no governo e nos negócios. Dessa forma, a participação do mulherio era
“irrelevante”. Além disso, Cobertin tinha
a crença de que as atividades pesadas dos
esportes fariam as mulheres perderem o
“charme feminino” (WELCH e COSTA,
1994 apud KNIJNIK, 2003).
Com isso, amarrando as mulheres à
teoria da incapacidade menstrual, a sociedade inseria na mente feminina a sua
inaptidão imutável de ser atleta, pois
deveriam se restringir apenas a serem
mães. Isso limitava suas capacidades físicas e atléticas, mas, por outro lado, ter
força física e saúde era desejável às mulheres que virariam mães (KNIJNIK,
2003, p. 48). A partir disso, alguns esportes foram sendo permitidos, mas estes preservavam o lado feminino desejado na época, como o ciclismo.
A participação feminina só foi permitida nos Jogos Olímpicos em 1900, por
meio do tênis e do golfe, com somente 16
atletas. As atletas vestiam uniformes que
cobriam totalmente os corpos, e isso só foi
permitido porque as modalidades não envolviam contato físico entre elas, e as práticas e movimentos eram esteticamente
belos (RUBIO, 1999, e LENK, 2003 apud
ALMEIDA, 2008).
Durante a história da competição, anualmente, após a realização dos jogos, crescia o número de mulheres atletas participantes, mas com resistência dentro e fora
do ambiente esportivo. Por exemplo, em
32 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
Estocolmo (1912), a natação feminina foi
permitida, causando a fúria de grupos
conservadores que protestaram publicamente entoando xingamentos às atletas,
consideradas por eles “mulheres sem moral” (ALMEIDA, 2008, p. 35).
A porcentagem de mulheres nos Jogos Olímpicos só alcançou 10% em relação ao número de atletas do sexo
masculino em Amsterdã (1928). Já nas
edições mais recentes, esse número orbita em 40% da soma dos atletas. Hoje,
a competição é uma das principais
chances das atletas femininas demonstrarem seus atributos técnicos e táticos
para todos, já que é o maior evento esportivo do mundo.
Essa inserção nas Olimpíadas só foi
possível devido às lutas e ao empenho das
mulheres para participarem não só dos
esportes mas da sociedade no geral, conquistando também o ingresso no mercado
de trabalho e o direito ao voto. O esporte,
inclusive, torna-se fator de impulsão à liberdade feminina.
Já em 1941, a proibição de mulheres em esportes “não femininos” veio
por meio de lei, em pleno Estado Novo,
da Era Vargas.
Art. 54. Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis
com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias
instruções às entidades desportivas do
país. (BRASIL, 1941)
Essa proibição também inspirou acadêmicos a dissertarem sobre o tema, um
exemplo é o tratado de fisiologia de Pini
(1978 apud KNIJNIK, 2003, p. 57).
Em nosso ver, a mulher não deve participar de modalidades esportivas como o
rugby, o futebol, as lutas, além de outras,
por exigirem condições especiais de treinamento e pelo enorme desgaste físico que
acarretam, além da violência dos contatos
físicos que podem surgir no ardor das disputas [...]. Pelas razões expostas, a mulher
deve dedicar-se apenas às modalidades
esportivas que favoreçam e exaltem a sua
beleza física, a delicadeza e a graça de seus
movimentos.
Esses trechos trazem à tona o conceito sobre o corpo feminino, que deve ser
mantido frágil, belo e delicado, e que estes esportes iriam contra isso. É o que Lipovetsky (2000) diz quanto ao belo sexo:
é esperado pela sociedade a manutenção
da mulher “em seu lugar” de procriadora
e objeto de desejo para homens. E tudo
o que afastaria estas personagens de sua
“missão”, deveria ser proibido. Ou seja,
por trás destes esportes, há um medo geral de que as mulheres que os praticassem
fossem masculinizadas.
A lei ficou vigente até 1979 e só caiu por
intermédio de um acontecimento inusitado que marcou a história do esporte feminino brasileiro, que não mostra um confronto explícito para colocar o “belo sexo”
no meio esportivo, e sim uma infiltração
lenta e camuflada.
A modalidade responsável pela mudança foi o judô, outro esporte em que a presença feminina é forte (nas Olimpíadas
de 2012, a piauiense Sarah Menezes foi a
primeira brasileira a conquistar a medalha de ouro no esporte, na categoria até 48
kg), mas que não está livre de estereótipos
de gênero. A participação feminina era liberada em outros países e, inclusive, era
importante para a pontuação no ranking
mundial, que somava os pontos das categorias femininas e masculinas. Como o
Brasil proibia a participação de mulheres
em competições esportivas (mas não impedia os treinos), o país estava atrás na
pontuação mundial.
Sendo assim, no mesmo ano da queda
da lei, a Confederação Brasileira de Judô
inscreveu suas atletas para o campeonato
sul-americano da modalidade, com edição na Argentina. Entretanto, para não
serem descobertas, usaram nomes fictícios masculinos.
A façanha foi descoberta logo após
o fim da competição, quando as atletas
ganharam o torneio, fazendo o país ficar em primeiro lugar no ranking geral.
Elas apresentaram-se em Brasília, com
medalhas no peito, o que fez com que o
mito do sexo frágil caísse por terra, assim como a lei. Como poderiam aqueles
corpos voltados para a maternidade e a
subserviência matrimonial voltarem ao
país vitoriosos em uma modalidade tão
masculina? A resposta veio com a volta
da permissão para as mulheres praticarem esportes (e competirem).
Antes disso, nos anos 1960, buscando um referencial feminino no esporte,
apenas vedetes, modelos e atrizes simulavam jogos de futebol no Brasil, o que
se assemelha hoje ao grande espetáculo de futebol americano feminino, o Lingerie League, que, como o próprio nome
sugere, coleciona jogadoras de porte físico e beleza no padrão desejado pelos
homens trajando apenas lingerie e algumas partes do uniforme exigido pelo esporte, as armaduras.
Só este “espetáculo” já mostra como
o machismo perdura até hoje. Segundo
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
33
origem do esporte
Hult (1994 apud KNIJNIK, 2003, p. 50),
Theodore Roosevelt teria dado o seguinte
depoimento acerca do futebol americano:
Somente esportes agressivos poderiam
criar “a musculatura, o espírito, a camaradagem e a vivacidade dos homens”. O
campo de futebol americano, dizia Roosevelt, “é o único local aonde a supremacia
masculna é incontestável”.
Hoje, as mulheres no esporte não estão só com a bola nas mãos ou nos pés,
com uniformes de jogos, estão também
na parte técnica, arbitragem, reportagem
esportiva, empresariado... Enfim, cada vez
mais presentes nas áreas esportivas, e até
em modalidades que, em outros tempos,
eram “exclusivamente masculinas”.
ASPECTOS SOCIAIS IMPOSTOS PELO
ESPORTE – educação física como formadora e diferenças entre homens e mulheres
criadas pela cultura
A separação dos gêneros em meio às
práticas esportivas já acontece na escola,
antes mesmo de chegar ao esporte competitivo e de alto rendimento. São nas aulas
de educação física que aparecem os primeiros mecanismos de classificação, ordenamento e hierarquização. É na instituição responsável pela educação intelectual
e social de indivíduos que são reproduzidos os valores sociais da cultura machista
que separam e demarcam os aspectos pertencentes ao mundo masculino e feminino (PEREIRA, 2004).
Quando as aulas separam os meninos
para o futebol e as meninas para jogarem
queimada, por exemplo, a segregação de
fora dos portões da escola está sendo re34 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
produzida dentro da sala de aula, apontando que meninos jogam futebol e meninas, queimada. Essa situação não só reproduz como ajuda a criar essa imagem
masculina diretamente associada aos esportes, reduzindo o esporte feminino à
mera brincadeira.
A criação dessa barreira biológica sempre colocava (e coloca) os atletas do sexo
masculino como personagens principais
do sucesso nos esportes considerados
masculinos. Isso reforça o preconceito
contra as mulheres e suas jornadas dentro
desses esportes para “machos”.
A formação dessa imagem a partir da
educação escolar integra o consenso do
contexto sociocultural em que estão designados os papéis femininos e masculinos.
Por isso, são direcionadas atividades diferentes para indivíduos iguais, exceto pelo
sexo: mesma idade, mesmos professores,
mesma grade escolar. Essa diferenciação
quanto às atividades propostas para cada
um dos sexos se perpetua até a fase adulta, quando, por exemplo, decidem seguir
a carreira esportiva. Dessa forma, foi imposto na sociedade que esportes de contato, tidos como mais violentos, são destinados aos homens, e atividades de menor contato e que contemplem sua fragilidade, como vôlei e balé, são destinadas às
mulheres.
Antigamente, no fim do século XIX
e começo do XX, a educação física servia como preparo para a vida militar, em
época de constantes guerras. Essa prática bélica era inacessível às mulheres até
pouco tempo atrás (KNIJNIK, 2003, p.
39). Por isso, as primeiras professoras
de educação física surgiram entre 1860 e
1900, e com elas o acesso feminino às aulas, “à alegria do esporte”. Essas professo-
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
35
origem do esporte
ras foram as primeiras a descobrir outra
forma de serem mulheres, dando aula em
um campo “masculino”, mas ainda assim
carregavam o estigma do sexo nos seus
trabalhos: controlar as crianças era como
ser uma dona de casa, uma mãe. O mais
impressionante sobre essas mulheres é
que 90% delas permaneceram solteiras
(KNIJNIK, 2003, p. 51).
Ao ser colocada na grade curricular da
escola, a educação física, em nenhum momento, colocava claramente a discriminação de sexo quanto à sua prática, mas cada
estado deliberava sobre a participação feminina. O governo do Amazonas, em
1852, por exemplo, foi taxativo ao regulamentar a prática da educação física: “As
meninas não farão exercícios ginásticos”
(ROSEMBERG, 1995, p. 279 apud KNIJNIK, 2003, p. 59). Na época, essa decisão
era endossada pelas famílias das meninas,
que opunham-se à prática dos exercícios
por parte destas.
Rui Barbosa, o grande mentor da educação física nacional, deu seu parecer ao
projeto educacional de reforma do ensino
primário, em 1882, entendendo que a ginástica deveria ser obrigatória para ambos os sexos em todo o país. “[...] tendo
em vista, em relação à mulher, a harmonia das formas femininas e as exigências
da maternidade futura”. (ROSEMBERG,
1995, p. 126 apud KNIJNIK, 2003, p. 59).
Esse trecho mostra que, mesmo quando liberados os exercícios na educação física, estes têm como objetivo perpetuar a
qualificação da mulher em ser mãe e bela.
Mostra-se também que a ginástica é permitida, o que não acontece com os esportes.
36 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
Dessa forma, pelo fato de os esportes
terem sido direcionados ao sexo masculino desde cedo e desde sempre, a imagem
do homem é associada ainda na infância à
força e virilidade, dependendo da modalidade (ALTMANN, 1998 apud FURLAN e
SANTOS, 2008). Dentre as opções na escola, o futebol é considerado o mais masculino dos esportes, ficando o vôlei mais
direcionado para as alunas. De acordo
com análise de campo de Furlan e Santos
(2008, p. 33), no momento de introdução
dos esportes na educação física escolar
brasileira, as alunas foram classificadas
como seres “frágeis e dóceis”, e os alunos
como “fortes, dominantes e poderosos”.
Também é no esporte que os ideais de
sexo e normas de socialização, traços de
personalidade, gostos e comportamentos,
são adaptados para cada um dos sexos, segundo Lipovetsky (2000, p. 300). O autor francês ainda afirma que, na educação,
“o espírito de independência e de competição era mais bem desenvolvido nos meninos que nas meninas”. Culturalmente, o
esporte é uma área na qual a prática serve
para reafirmar a masculinidade, isto é, valorizar o homem e desvalorizar a mulher.
Ou seja, é visível que essa educação vai
aparecer nas relações sociais fora do espaço esportivo, já que a matéria de educação
física ajuda na formação de cidadãos fora
das paredes da escola.
Goellner (2007, p. 184-185) completa
esse pensamento ao afirmar que “para as
mulheres, em grande medida, é incentivado viver o espetáculo esportivo desde que
não deixe de lado, por exemplo, a graciosidade, a delicadeza e a beleza, atributos colados a uma suposta ‘essência feminina’”.
Essa diferenciação demarca seus espaços
de sociabilidade, pois insiste-se em afir-
mar que certas modalidades não foram
criadas para seus corpos, tidos como frágeis, a exemplo do rugby. Os corpos são,
enfim, um dos grandes “espaços” de debate sobre o ser feminino.
CORPOS ATLÉTICOS E FEMININOS –
quando a máquina de resultados é alvo
de comentários acerca de sua representação social
O corpo da mulher atleta é o que pode-se chamar de arena de conflitos dos discursos feministas versus sexistas-machistas. É sobre ele que são destilados os comentários maldosos a respeito da representação feminina na sociedade. São adjetivos como “feminina” e “masculina” que
ajudam a formar a imagem da mulher em
seu convívio. No esporte não seria diferente.
Como explicam bem Maria Regina
da Costa e Gabriela Ribeiro (2008 apud
FURLAN e SANTOS, 2008, p. 38), quem
foge do padrão normativo que a sociedade
amarra à imagem da mulher (o de ser feminino, delicado, gracioso) é taxada de “masculina, sapatão, machorra, etc.”. Quando
as atletas não atendem a essa exigência,
mostrando-se mais fortes ou mais habilidosas com o esporte que escolheram, vão
contra o discurso biologicista das diferenças de gênero, que afirma e crava a posição
da mulher como abaixo das expectativas de
força e habilidades esportivas.
De acordo com Goellner (2007, p. 46),
“o temor que a mulher rompa algumas
barreiras que delimitam as diferenças culturalmente construídas para cada sexo
torna imperiosa a sua feminização, caso
contrário, diz o discurso dominante, ela
estará se masculinizando”. Dessa forma,
o corpo feminino vai culturalmente sendo
posto como inadequado para algumas habilidades esportivas. Se algumas garotas
vão contra isso, ou seja, praticam algum
esporte e, consequentemente, mudam
seus corpos para algo mais distante do
“ideal feminino”, são prontamente questionadas quanto à sua sexualidade.
Entretanto, se a inserção no meio esportivo for acompanhada de vaidade
e busca por manter o padrão de beleza
vigente, logo as
atletas são consiQUEM FOGE DO PADRÃO
deradas “marias
chuteiras”, desNORMATIVO QUE A
merecendo mais
SOCIEDADE AMARRA
uma vez as habiÀ IMAGEM DA MULHER
lidades e desejos
(O DE SER FEMININO,
esportivos destas
mulheres.
DELICADO, GRACIOSO) É
O discurso seTAXADA DE MASCULINA,
xista em torno da
SAPATÃO, MACHORRA, ETC.
mulher
carrega
tanto os preconceitos sociais quanto os argumentos biológicos. O corpo dela é considerado um
templo destinado apenas para fins maternais e sexuais (com homens, diga-se). Evitar esportes que as transformem em algo
parecido com a fisiologia recorrentemente
masculina (músculos definidos) se transformou em regra desde o surgimento de
competições esportivas.
Não é de hoje que a arena esportiva tem
sido um espaço de luta para a reafirmação
do valor da mulher em um espaço voltado
para homens. É lá que, culturalmente, o
homem mostra sua virilidade e masculinidade. E este fator limita e inibe a participação feminina, já que é imposto pela sociedade machista um padrão de “delicadeza” que as mulheres, ao praticar esportes,
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
37
origem do esporte
“perdem”, na visão das pessoas com quem
se relacionam.
Contra as mulheres esportistas já houve
um forte movimento de médicos e cientistas que argumentavam utilizando pesquisas e relatos que depunham a favor apenas
da maternidade como função feminina.
Afirmavam, entre outras atrocidades, que
as mulheres eram incapazes de fazer duas
coisas ao mesmo tempo, gastando energia demais no trabalho físico e intelectual proposto pelo esporte, quando o certo
seria gastá-la com suas crias. Caso não seguissem essa regra, os resultados seriam
fraqueza, doenças, infertilidade ou danos
para as futuras gerações (VERTINSKY,
1994 apud KNIJNIK, 2003).
Hoje, as mulheres superaram a proibição, mas convivem com estereótipos
e chavões de beleza que a sociedade fora
do esporte impõe. Essas regras sobre seus
corpos parecem incomodar as atletas de
alto rendimento, já que elas são vistas, na
grande maioria das vezes, por esse viés da
beleza, e não por suas habilidades.
Isso leva a crer que a busca em manter-se “feminina”, mesmo com a atividade muscular desenvolvida, é uma pressão que sofrem para serem reconhecidas.
“Jogo rugby, mas sou feminina” é uma frase que repetem para si mesmas e para os
amigos e familiares. O mito do belo sexo é
uma pedra no caminho das atletas.
É constante na história do esporte feminino a reclamação das atletas por serem forçadas a responder a padrões estéticos e de feminilidade que são alheios
às práticas que escolheram adotar (KNIJNIK, 2003, p. 30). Atletas que praticam
esportes de contato, como rugby ou futebol, que precisam desenvolver a musculatura, estão entre as que mais sofrem.
38 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
Bem como as praticantes do fisiculturismo, que impõe como regra um limite
aceitável do corpo da mulher para ser feminino. Se ultrapassar esse limite, a atleta é desclassificada.
O mesmo acontece com o esporte masculino? Não. Não existe na história atletas homens que sejam desclassificados por
não atenderem ao padrão de beleza masculino ou de masculinidade. Por isso, mais
uma vez, a arena esportiva é lugar para reafirmar as relações de gênero.
De acordo com Kolnes (1995, p. 71 apud
KNIJNIK, 2003, p. 30):
Enquanto homens atletas são descritos
em termos de suas façanhas, de competitividade, de sua força física e psicológica, de
sua bravura por jogar mesmo estando seriamente machucados, as mulheres atletas
são descritas em termos de sua aparência
física, feminilidade, comportamento não
competitivo e relacionamentos.
O trecho mostra que a imagem corporal feminina acaba sendo uma das prioridades para o trabalho esportivo hoje. O
esporte, que foca exatamente no corpo e
seu desempenho, lida com essa área como
nenhuma outra. Por isso, é importante saber das atletas como elas veem seus corpos em suas respectivas modalidades. Há
uma contradição nos discursos, que misturam habilidade e feminilidade, quando,
na verdade, uma não devia estar atrelada
à outra e amarrada às mulheres.
Legislar em cima desses corpos impede seu uso livre, especialmente com o esporte. Se a mulher o utiliza para o alto
rendimento ou simplesmente por lazer,
seu corpo é um meio para medir a escala de feminilidade (ou a ausência dela). A
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
39
origem do esporte
ele é imposta uma disputa fora do âmbito
dos esportes e sem sequer ser solicitada.
“A mais bonita” ou “a mais gostosa” são
frases utilizadas dentro e fora das modalidades para classificar atletas dos mais
variados esportes.
A trajetória da atividade corporal feminina deixa claro que as mulheres foram, e talvez ainda sejam, reguladas pelas
concepções sociais e culturais do que seu
corpo deve ser (KNIJNIK, 2003, p. 65),
como se seu intelecto e seus sentimentos
fossem desligados da sua parte física, e
como se esses fatores não fossem
SEMPRE QUE VAI SE
misturados. Mas
seria o corpo apeFALAR DAS MULHERES
nas um objeto funESPORTISTAS, É NA
cional? Claro que
ESFERA DA BELEZA
não, já que esse
FÍSICA, ADMIRANDO
corpo se move de
acordo com deseSEUS CORPOS.. QUASE
jos da mente de
NÃO SE COMENTA
quem o habita.
SUAS HABILIDADES
O corpo feminino foi, por anos (e
ainda é), o argumento para manter a mulher fora dos esportes. Entretanto, com
o avanço delas na sociedade, bem como
suas conquistas em campos como trabalho e sexualidade, foram alcançados benefícios também para o esporte.
Mas é também nesse campo que as
mulheres sofrem golpes que tentam minimizar suas conquistas. Um deles é controlar o corpo feminino esportista não
pelos atributos atléticos, maximizando
suas vitórias em campo, mas sim focando nos atributos físicos, mais especificamente aos que são ligados à manutenção
de sua feminilidade.
É possível perceber bem isso na mídia
40 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
ou nas propagandas relacionadas aos esportes. Sempre que vai se falar das mulheres esportistas, é na esfera da beleza física, admirando sua beleza “mesmo
jogando algum esporte”. Um exemplo é
quando apenas atletas que atendem ao
padrão de beleza feminino estrelam campanhas publicitárias.
É fácil acessar uma página on-line de
esportes e buscar, entre as poucas matérias sobre esporte feminino, o enfoque
machista dado no texto. Como exemplo,
está essa matéria sobre a jogadora de vôlei americana Miss Oregon 2012, capas
de revistas de beleza, Alaina Bergsma foi
eleita a melhor jogadora universitária dos
EUA Alaina Bergsma, a nova contratada
da equipe de Minas Gerais, com o título
“Minas acerta com musa e revelação do
vôlei americano para Superliga – Eleita
Miss Oregon em 2012 e figura constante
em” (GLOBOESPORTE.COM, 2013).
É noticiado, antes de suas habilidades dentro da quadra, o seu atributo físico e o caso de ter vencido um concurso
de beleza. No resto do texto, todos os parágrafos associam a atleta à sua segunda
profissão, de modelo, e seus gostos musicais. Em nenhum momento foram questionadas suas habilidades, dificuldades
de se adaptar ao campeonato brasileiro,
ou como enxerga seu futuro no esporte.
Os comentários da matéria também não
abordam suas características como jogadora, mas sim quão bonita a atleta é. Ou
seja, não há ninguém torcendo realmente
para que faça pontos, e sim para que apareça de short curto em quadra.
Outro caso de fácil acesso na memória
dos brasileiros é a dupla do nado sincronizado, Bia e Bianca. As irmãs gêmeas chegaram ao status de celebridade por exi-
XXXXXX
•
41
origem do esporte
birem seus corpos em revistas sensuais e
apresentarem programas de TV, enquanto ninguém lembra da sua última colocação em campeonatos da modalidade. Ao
que parece, ninguém está interessado em
quão boas são, mas sim em quão sexy.
Enquanto isso, atletas de alto rendimento e com ótimos resultados, como
Martha, do futebol, e até mesmo as jogadoras de rugby, como Edna Santini (uma
das entrevistadas neste trabalho), estão
fora da mídia por serem fortes demais ou
se distanciarem da identidade de gênero
desejada pelos apreciadores de esportes.
A mulher atleta, assim, é separada do seu corpo.
O QUE VEMOS POR AÍ
O que ela busca
SÃO ATLETAS QUE SÃO
(desempenho, reESTEREOTIPADAS PELOS
sultados) é obtido pelo físico, enSEUS CORPOS E QUE,
tretanto, deve asPOR CONSEQUÊNCIA,
sumir uma forma
ACABAM SOFRENDO
que não é: “femiRETALIAÇÕES SOCIAIS
nina” no que diz
respeito à pureza e
POR NÃO SEGUIREM O
fragilidade.
PADRÃO DESEJADO
Quem desenvolve carreira esportiva, seja de alto rendimento ou não,
tem atrelado à sua rotina um programa de
fortalecimento físico para conseguir melhorar seus resultados. Com isso, corpos
que antes eram mais próximos do ideal feminino (frágil, com pouca musculatura),
acabam se aproximando do estereótipo
masculino, com músculos aparentes, força e desempenho. Como o esporte sempre foi relacionado aos homens, quem se
aproxima de certas modalidades e do corpo tipo como “másculo” acaba sofrendo
com “estereotipação”. Quem tem múscu42 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
los, instantaneamente, é vista como lésbica ou “machuda”. A preferência sexual não
é consequência de um corpo e vice-versa.
As identidades de gênero vão além dessa
caracterização simplista.
O que vemos por aí são atletas que são
estereotipadas pelos seus corpos e que,
por consequência, acabam sofrendo retaliações sociais. Nas entrevistas deste trabalho, essa questão foi tratada e mostrou
que, quanto mais musculosas são as atletas, mais dificuldades de atenderem ao
padrão sexual de seus pretendentes, o que
acarreta problemas com relacionamentos.
O corpo esportista é também o corpo-sujeito da vida humana e real fora dos
jogos. E o que esperam da mulher atleta são duas coisas distintas: que sejam
fortes e ágeis como esportistas, mas femininas e frágeis enquanto mulheres
na sociedade. Essa contradição afeta a
condição da mulher atleta e acaba por
atrapalhar seu desempenho no esporte.
Como exemplo, existe uma das melhores
e principais atletas femininas do país.
Daiane dos Santos foi flagrada em exame antidoping no ano de 2009. Na coletiva que deu sobre o caso, afirmou que
a substância encontrada, o diurético furosemida, foi resultado de tratamentos
estéticos para emagrecer e eliminar a celulite. Fica clara em suas palavras a tentativa de adequação aos padrões femininos impostos pela sociedade, o que atrapalhou sua carreira na ginástica olímpica e manchou de vez sua trajetória.
Muitas atletas de alto rendimento
se submetem a esses padrões estéticos
por pressão social, seguindo o padrão
heterossexual normativo. Se a mulher
atleta destacada pela mídia e pela publicidade é a que possui um padrão de
beleza feminino, e essa mulher atleta
precisa de visibilidade para conseguir
patrocínio e manter fundos para poder
treinar, ela vai certamente negar sua
posição de força e potência para submeter-se aos estereótipos e, dessa forma, conseguir visibilidade. Isso acaba
se tornando, para a atleta, um fardo a
ser carregado durante toda a carreira.
A forma como o corpo da mulher esportista entra em conflito com os padrões e o rendimento serve para perpetuar a relação homem/mulher/esporte:
aos homens, os resultados; às mulheres, a graça de “brincar” de esporte. Já
o público, que almeja medalhas e pódios (e, logo, mulheres fortes, hábeis,
musculosas e talentosas), identifica
as mulheres atletas nestas condições
como “não femininas”, forçando-as a
demonstrarem feminilidade antes, durante e depois dos jogos competitivos,
o que gera frustração nas atletas que
não suprem essa necessidade pública e
midiática de levar “boa estética” ao esporte.
Kolnes (1995, p. 66-67), ao entrevistar atletas mulheres de alto rendimento da Noruega, chegou a essa frustração, e aponta sinais de como ela se manifesta:
Parece que quanto mais masculina uma atleta parece ser, maior a demanda sobre ela para que seja uma
jogadora de ponta. A competência e as
“evidências” heterossexuais tornam-se
importantes para compensar as características menos “femininas” [...]. [...]
Como consequência, e para compensar
os atributos menos femininos, algumas
atletas de elite estão empenhadas em
enfatizar os seus símbolos de feminilidade heterossexual. Elas se distanciam
das imagens de masculinidade deixando os traços femininos mais explícitos
(cabelos longos, por exemplo, conforme
depoimentos). [...] O que se vê é que
as atletas que estão atuando em áreas
mais ligadas à masculinidade (como
futebol e rugby) estão se submetendo a
estratégias que possam provar a elas
mesmas e aos outros que elas são de
fato mulheres.
Tratar do corpo atlético feminino é
um assunto sem fim, porque o esporte
é um dos poucos lugares em que a parte física se faz tão necessária. E a partir deste corpo, outros assuntos podem
surgir: sexualidade, ideologia simbólica da mulher na sociedade, relações de
poder, entre outros.
A participação de mulheres no alto
rendimento ainda é fruto de análise
por um viés de valores masculinos. É no
esporte que as mulheres têm a chance
de perpetuar a imagem atual do gênero na sociedade ou poder mudar essa
visão, utilizando como argumento suas
vitórias, sendo ele um elemento decisivo para a autonomia feminina no mundo moderno, mas que, se não tomado o
cuidado, pode ser um meio de manipular e de dominar o corpo e as práticas
corporais femininas.
Assim, percebemos que o corpo da mulher atleta e a sua performance no mundo
esportivo são, quase invariavelmente, julgados por outros padrões que não aqueles
que condizem com a atividade em questão:
as mulheres passam a ser julgadas não só
pelos talentos esportivos, mas por beleza,
sexualidade, comportamento, moralidade.
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
43
44 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
A mulher dentro
do uniforme de rugby
a
Alguns esportes seguem com barreiras gigantescas a respeito da participação feminina. A modalidade escolhida
para o debate foi o rugby (ou, no português, rúgbi), tido primariamente como
esporte para cavalheiros, de contato e,
por isso, impróprio para mulheres. A
discussão proposta visa explicitar as
discriminações e preconceitos associados à questão de gênero, com foco em
combater relações autoritárias, questionando os códigos de comportamento
e conduta estabelecidos para homens e
mulheres no esporte e apontando para
suas transformações.
Antes de mais nada, é importante explicar a utilização do termo em inglês
“rugby” ao invés de “rúgbi” neste trabalho acadêmico: o termo original é o mais
utilizado no mundo, e, no Brasil está
presente, inclusive, no nome da Confederação Brasileira de Rugby, a CBRu.
A escolha deste esporte para atrelar
um viés feminista vem do cunho pessoal da autora. Ex-jogadora e primeira jornalista focada em comentar e noticiar o
rugby feminino brasileiro, quando criou
o blog Rugby de Calcinha, em 2009,
sempre vivenciou situações de segregação no âmbito do gênero. Estudar mais a
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
45
A mulher dentro do uniforme de rugby
fundo a questão é uma forma de melhorar seu desempenho quanto profissional
e ajudar a colaborar com a memória e o
engrandecimento do rugby no Brasil.
A convivência com pessoas do esporte
sempre fez refletir sobre as raízes da modalidade, arraigada na “cultura macho”,
assim como outros esportes, por exemplo, o futebol e as lutas em geral. Por
ser ainda pouco popular no país, o rugby
causa estranhamento à primeira vista.
O forte contato físico vem de movimentos como tackle (quando o oponente que
está com a bola é levado ao chão) e ruck
(disputa pela posse de bola que acontece
no chão, após o tackle). Esteticamente,
é considerado violento, e isso deu margens à caracterização dele como espaço
para provar masculinidade e, logo, ser
associado à prática masculina.
Mais do que visualmente, o rugby,
como espaço cultural e social, foi fundado e institucionalizado num contexto
onde as masculinidades se destacavam
e, ainda hoje, persiste essa referência
(ALMEIDA, 2008).
Como explicado no capítulo anterior,
a participação feminina nos esportes,
em geral, é algo recente, permeada por
símbolos e representações. Desde que
o decreto-lei que proibia alguns esportes para mulheres caiu, todas as modalidades são permitidas ao sexo feminino. Entretanto, praticá-los representa
muito mais que um simples ato de lazer
ou rendimento, pois é também um grito
de emancipação feminina. Com o rugby,
não é diferente.
Nascido quase como uma brincadeira, o rugby já foi criado como um desafio. No meio de uma partida de futebol
em 1846, William Webb Ellis, estudan46 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
te da Escola de Rugby (principal instituição de ensino da cidade de Rugby,
na Inglaterra), teria pego a bola com as
mãos e corrido até o fundo do campo,
marcando assim o primeiro try (principal pontuação da modalidade, que hoje
vale cinco pontos, mas que, no início,
valia apenas a chance de chutar na trave). No caminho, seus colegas tentaram
segurá-lo, o que seria, então, as primeiras tentativas de tackle.
Após seu desenvolvimento, com a
criação da Rugby Football Union, em
1871, o rugby passou de diversão a uma
representação mais forte. De acordo
com Ellias e Dunning (1992), o rugby
surgiu de um ethos guerreiro, que proporcionava uma luta simbólica. A bola
possuía pouca importância, e o que prevalecia era a intenção de mostrar-se viril, lançando pontapés e caneladas mútuas. Esse pensamento vinha muito da
influência das guerras, quando os homens da sociedade tinham de ser treinados para este fim.
Mesmo com o crescimento da modalidade e a institucionalização, o rugby, ao
contrário do futebol, se opôs à profissionalização dos jogadores, mantendo-se
amador, e isso conservou este esporte
como privilégio das classes mais abastadas da sociedade inglesa, especialmente
os súditos de classe alta da monarquia.
“Porém como o amadorismo não era um
consenso entre seus praticantes e gestores, a partir da Rugby Football Union
acabaram sendo criadas duas ligas, que
são mantidas até os dias atuais: a Rugby
Union e a Rugby League” (ALMEIDA,
2008). As principais diferenças, além
de regras que regulam a prática dentro
de campo, são que a primeira, por prin-
cípios de gentlemen, pretendia manter- destinada a maior parte das verbas e in-se amadora, utilizando 15 jogadores; já vestimentos da CBRu. Isso se deve à vola Rugby League, buscava a profissiona- ta do rugby às Olimpíadas. Antes, figulização, além de manter a formação de rou no início dos jogos nos anos de 1900
13 jogadores para cada time. Isso mudou (Paris), 1908 (Londres), 1920 (Antuérbruscamente, já que o Rugby Union se pia) e 1924 (Paris). Após essa última editornou maior que o League, com mais ção parisiense, o rugby foi extinto pelas
adeptos, enquanto o segundo é popular dificuldades de organizar jogos tão lonem poucos países, como na Austrália.
gos (a modalidade XV tem dois tempos
Há dois tipos de Rugby Union: o de 40 minutos) e gerir equipes muito
seven’s e o XV. O primeiro é mais po- grandes (22 jogadores, além de comispular atualmente por ter retornado às são técnica).
Olimpíadas de 2016. Precisa de sete joO início do rugby feminino tem pougadores e três reservas e dura dois tem- cos dados objetivos, que definiriam o
pos de sete minutos. Já o XV, também período e o local. Entretanto, de acormovimenta fanáticos por rugby: a Copa do com Martin (2001 apud ALMEIdo Mundo de RuDA, 2008, p.
gby XV é a tercei44), a populaOS PRIMEIROS INDÍCIOS
ra maior competirização da moção esportiva, perdalidade
teve
DE RUGBY FEMININO SÃO
dendo apenas para
ligação direta
DE 1881, NA CIDADE DE
as Olimpíadas e a
com o contexto
LIVERPOOL. A PARTIDA
Copa do Mundo
social das muAMISTOSA ENTRE ESCÓCIA
de Futebol. Precilheres, a maiosa de 15 jogadores
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estudante
E INGLATERRA CAUSOU
em campo e sete
u
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rsitária,
REVOLTA NA SOCIEDADE
reservas.
no fim dos anos
No Brasil, a mode 1970, marcadalidade chegou trazida por Charles do como tempo de mudanças nas quesMiller, o mesmo “pai” do futebol brasi- tões de gênero.
leiro. Em 1894, após dez anos moranAlguns sites (Rugby Relics e Wikipedo na Inglaterra, Charles retorna a São dia) apontam as primeiras rugby women
Paulo trazendo na bagagem um livro de no fim do século XIX, mais especificaregras do rugby e um de futebol, uma mente, em 27 de junho de 1881, na cidabola oval e uma redonda, uma bomba de de de Liverpool, em uma partida de exiar para enchê-las, um par de chuteiras bição entre Escócia e Inglaterra, o que
e camisas de times ingleses (PRIORE e causou grande revolta na população,
MELO, 2009). Fundou, em 1888, o São que abandonou a partida pela “violênPaulo Athletic Club, o SPAC, renomado cia” no gramado.
e pioneiro time de rugby do Brasil.
Seis anos mais tarde, uma rugbier de
Atualmente, há a predominância do nome e sobrenome também se destacou
rugby seven’s no Brasil, para o qual é como pioneira. Era Emily Valentine, esRUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
47
A mulher dentro do uniforme de rugby
tudante da Portora Royal School, na Irlanda, que, em 1887, jogou com meninos no time criado pelos seus irmãos e
ainda pontuou.
Já o primeiro time puramente feminino que se tem notícia, é datado em
1891, da Nova Zelândia. A equipe estava tentando fazer uma turnê de jogos
para ganhar experiência, mas esta nunca aconteceu, porque a sociedade não
estava preparada para tal revolução no
esporte que tinha sido criado para fins
masculinos.
Já no livro Rugby Football (de Col
Figura (1) Fonte: Getty Images
48 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
Philip Trevor, 1923), o capítulo “Rugger
for Girls” retrata a filha do autor, que era
uma “flapperdom” (termo utilizado nos
anos 1920 para meninas descoladas),
como uma das pioneiras. Ela o chamou
para conversar e discutir a possibilidade de ela e mais algumas amigas jogarem rugby. Disso, saiu uma decisão de
que eles e mais alguns amigos iriam jogar em uma praia afastada, com 15 jogadores de cada lado e ainda banco de
reservas. Col foi o árbitro, acompanhou
de perto a partida e descreveu as meninas como habilidosas. Contou ainda que
elas jogavam com toucas de banho para
diminuírem o risco de serem tackleadas
pelo cabelo (WIKIPEDIA, 2010).
Figura 1 – Jogadoras de rugby na Austrália em 1920
Enquanto o rugby masculino se desenvolvia a passos largos, o feminino levou um tempo considerável para crescer. Apenas nos anos 1970, a organização do rugby feminino começou a planejar treinos e competições internacionais.
O primeiro jogo internacional aconteceu
na Holanda em 1982, quando o time da
casa venceu o da França por 4 a 0.
Como lemos neste capítulo, o rugby
surgiu na Inglaterra em 1846, mas somente em 1986 o país criou a Women’s
Rugby Football Union, que também gerenciava País de Gales, Irlanda e Escócia. Estavam registrados 12 times (RUGBY FOOTBALL HISTORY, 2010 apud
CENAMO, 2010).
Já no Brasil, não há registros oficiais das primeiras partidas. Pouco se
documentou sobre o início do rugby
feminino, mas, em depoimentos informais, é possível extrair da memória alguns dados.
De acordo com o ex-jogador e ex-treinador de rugby Ricardo Ramunno, mais
conhecido como Miúdo, as primeiras
partidas no país aconteceram no início
da década de 1980, entre os intervalos
dos jogos masculinos do SPAC. Os times eram formados por algumas jovens
alunas do Lyceu Pasteur (treinadas por
Gardelon, Gauer e Miúdo) e ex-alunas
do Saint Pauls, mas que frequentavam
os terceiros tempos (como são conhecidas as festas após os jogos). Estas jogaram sob a insígnia do Alphaville e eram
treinadas por Javier e Negro.
Na época, quem organizava os jogos era a Associação Brasileira de Rugby (ABR), que não gostou da ideia das
meninas jogando.
Colocaram os joA SELEÇÃO BRASILEIRA
gos durante a fiDE RUGBY FEMININO
nal do masculino adulto, crenVENCEU TODAS AS
do que ninguém
NOVE EDIÇÕES DO
“perderia
temCAMPEONATO SULpo” com a exibiAMERICANO E FOI
ção das garotas.
Aconteceu justaESCOLHIDA PARA
mente o contráREPRESENTAR A AMÉRICA
rio: o jogo femiDO SUL NA COPA DO
nino foi o grande
MUNDO DE RUGBY 7’S
sucesso, as meninas roubaram
a cena e foram o
ponto alto do dia. O Alphaville ganhou
com um placar apertado.
Após perceberem o potencial do rugby feminino, além do interesse cada
vez maior de novas participantes, surgiram os times de ponta em São Paulo,
como SPAC e Rio Branco, sendo seguidos mais tarde por Bandeirantes e Pasteur. Depois, alastraram-se para Rio de
Janeiro e Curitiba, e mais recentemente
por todo o Brasil.
A primeira Seleção Brasileira veio
apenas em 2004, especialmente para
disputar a primeira edição sul-americana de rugby feminino. As pioneiras foram Maria Mikaella Pitta (Mika),
Cristiana e Beatriz (Baby) Futuro, Paula Ishibashi, Emily Barker, Natasha Olsen, Vanessa Chagas, Bárbara Santiago, Júlia Sardá, Lúcia Áquila, Gabriela Ávila, Jessica Santos, Bruna Lotufo e
Ayna Santos.
Na primeira edição do evento, que
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
49
Figura (2) Fonte: Foto de Marco Maia
A mulher dentro do uniforme de rugby
aconteceu na Venezuela, o Brasil venceu a seleção da casa e levou o primeiro caneco da competição. Desde então,
é campeão invicto de todas as nove edições. Quem mais coleciona vice-campeonatos é a Argentina, com cinco troféus
de prata.
Após esses resultados, as seleções foram convidadas para a Copa do Mundo de Rugby, que ocorreu entre 5 a 7 de
março de 2009, em Dubai, como representantes sul-americanas. Na primeira
grande competição mundial, finalizaram em 10° lugar, deixando para trás times fortes como Holanda, Rússia e Japão. Perderam a final da Taça Bowl (que
corresponde ao 9° e 10° lugar) para a
China, por 10 a 7. As vencedoras da competição foram as australianas, que bateram o tradicional e forte time da Nova
Zelândia, com placar apertado de 15 a
10. Em 2013, o Brasil participou novamente, desta vez ficando em 13° lugar.
Antes da Copa do Mundo, ainda em
2009, houve uma tentativa de deslanchar o rugby da modalidade XV feminino. Algumas meninas se esforçaram para
50 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
jogar, na Holanda, um amistoso contra a
Seleção local, quando perderam com o
placar de 10 a 0. Aproveitando ainda a
viagem, os times reservas também duelaram, dessa vez com vitória brasileira
(não foi encontrado o placar). Foram os
dois únicos jogos executados pelo Brasil
com 15 meninas.
O mais interessante desses eventos
foi que, para poderem viajar, as atletas
custearam do próprio bolso as despesas,
além de terem feito um calendário sensual, vestindo apenas itens do uniforme de rugby. As fotos foram tiradas por
Marco Maia, ex-jogador da modalidade.
Na época, não havia investimentos na
Seleção feminina por parte da ABR (que
depois virou CBRu). O foco era apenas
o masculino e, mesmo assim, era pouco
dinheiro, já que a modalidade não era
olímpica e, logo, não atraía patrocinadores. Há relatos de que as próprias atletas
tinham de custear o uniforme.
O calendário foi um sucesso, que gerou, pela primeira vez, uma grande repercussão do rugby feminino na mídia
(foram até no programa do Faustão).
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
51
A mulher dentro do uniforme de rugby
Elas ficaram conhecidas (dentro do rugby e fora dele), venderam bastante e
conseguiram arrecadar dinheiro para
diminuir os gastos do próprio bolso.
Voltaram, então, a figurar entre os times
do top 10 mundial. Mas, só anos depois,
as meninas teriam investimentos em
dinheiro para conseguirem se dedicar
mais ao esporte, sem ter de tirar a roupa.
Figura 2 – Foto de abertura do calendário sensual
Com o excelente resultado feminino no mundial, houve um marco para a
popularização do esporte. Mas também
pode-se afirmar que a quantidade de
meninas praticantes cresceu em decorrência do aumento de times masculinos
pelo Brasil, como aconteceu com a autora. Ela descobriu o rugby com amigos,
que acharam na modalidade uma alter-
Tabela (1) Fonte: CBRu
52 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
nativa ao futebol americano, um esporte caro e que requer o uso de armaduras
inviáveis de se conseguir. Muitas atletas
entraram no rugby por intermédio de irmãos, namorados e amigos.
Pode-se também atribuir ao filme Invictus (2009), dirigido por Clint Eastwood e estrelado por Morgan Freeman
e Matt Damon, uma grande popularização do esporte no Brasil. Presente nas
salas de cinema de todo o país, o filme
que concorreu a duas estatuetas do Oscar contava a influência do rugby para
acabar (ou diminuir) o Apartheid (política segregacionista da África do Sul).
Nos takes do longa, o espírito do rugby
de trabalho em equipe, respeito e entusiasmo contagiou os espectadores, o que
fez muitos procurarem em suas cidades
as equipes para treinarem. Com o aumento de pessoas nesses times, muitas
meninas acabaram conhecendo o esporte e, logo, se filiando a ele.
Hoje, o rugby feminino está presente em quase todos os estados. De acordo
com levantamento feito pelo site Rugby
de Calcinha, apenas os estados do Acre,
Rondônia, Roraima e Amapá não têm
times. Entretanto, a quantidade de jogadoras filiadas à CBRu ainda é pequena. O último levantamento foi em 2012,
conforme a tabela (1):
Os dados mostram que, em quatro
anos, quase quadruplicou o total de jogadoras. É importante salientar que a
categoria de base também teve grande aumento: quadriplicou o número de
meninas até 16 anos praticando o esporte. Isso significa que o futuro do rugby
brasileiro está garantido.
Pensando nos próximos desafios, sendo o mais importante as Olimpíadas de
Figura (3) Fonte: Rugby de Calcinha
2016 (que marca o retorno do rugby na
competição), a CBRu montou um plano
de desenvolvimento e investimento financeiro nestas atletas.
De acordo com informações da Confederação, hoje a Seleção feminina é dividida em dois projetos: Elite, com meninas mais experientes e de categoria adulta; e o Podium, que são as meninas mais
novas que são treinadas para integrarem a Seleção, com foco em 2016. Além
dessa separação, quem integra a Seleção
conta com diversos benefícios: em 2013,
elas ganharam casa em São Paulo, onde
moram nove atletas que vêm de outros
estados. Com isso, elas conseguem se
dedicar ao esporte em tempo integral
e também estreitam os laços entre elas,
que se traduzem em maior comunicação
dentro de campo. Como “salário” (entre
aspas por ser um benefício em dinheiro,
já que elas não são assalariadas e, logo,
não são atletas profissionais), as meninas recebem R$ 2.500 (grupo Elite) e
estão vivendo do rugby e para o rugby.
O grupo Podium recebe R$1.500 por
mês e também está treinando duas vezes
por dia no Núcleo de Alto Rendimento Pão de Açúcar (centro de pesquisas e
treinamento focado no alto rendimento
de atletas com potencial olímpico) e na
AABB, ambos em São Paulo.
Figura 3 – Seleção Brasileira após
vencer a 9ª edição do sul-americano
As ambições da CBRu vão além disso:
em evento no começo de 2013, em São
Paulo, durante a premiação Troféu Brasil Rugby, Sami Arap Sobrinho anunciou
os resultados buscados a curto e longo
prazo. Até 2015, o órgão tentará transformar o esporte amador em profissional, que será quando os atletas da Seleção viverão apenas de rugby, com salários fixos e outros benefícios. Para a modalidade feminina, a medalha olímpica
ilustra o sonho para 2016, além de, no
mesmo ano, desejarem figurar entre as
cinco melhores seleções do mundo. Já
para 2030, o planejamento é conquistar o Brasil, chegando ao incrível número de 100 mil jogadores registrados no
país, focando em polos menores e saindo
do eixo dominante Rio-São Paulo.
As competições nacionais femininas,
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
53
A mulher dentro do uniforme de rugby
até 2012, eram bem limitadas. Não havia
uma competição nacional de peso, relativa aos campeonatos masculinos Copa
do Brasil e Super 10. Foi quando a Confederação organizou o Super Seven’s,
que contou, primeiramente, com cinco etapas na primeira edição e com seis
em 2013. Os jogos
acontecem
AS COMPETIÇÕES DE
por aproximadamente cinco meRUGBY FEMININO SÃO
ses, com uma etaRECENTES NO BRASIL E
pa mensal (este
NO MUNDO, UM INDÍCIO
ano duas aconteDE QUE A MODALIDADE
ceram em setembro). São seis tiSEMPRE FICOU EM
mes fixos, que são
SEGUNDO PLANO
Desterro
(SC),
Charrua
(RS),
SPAC (SP), Niterói (RJ), Bandeirantes (SP) e BH Rugby
(MG). A cada etapa, mais seis vagas são
disponibilizadas para times convidados.
Outra competição importante é o
Brasil Seven’s, que reúne cinco times
paulistas, dois do Rio de Janeiro, um
de Minas Gerais, um de Santa Catarina, duas equipes do Rio Grande do Sul,
duas do Paraná, uma do Nordeste, outra do Centro-Oeste e mais uma equipe convidada pela CBRu. Durante dois
dias, os jogos têm alto nível de rendimento e servem também para reunir os
principais times do Brasil, até de lugares mais distantes, como o Nordeste. O
evento existe desde 2011.
Já a categoria juvenil, ganhou um torneio exclusivo, o Copa Cultura Inglesa,
que acontece desde 2011. Mas o feminino ainda tem muito para crescer: enquanto o masculino tem divisões como
M-14, M-16 e M-18, o feminino engloba
54 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
todas as atletas em M-18 para que possa haver jogos. Além disso, nesse evento, apenas times do Sul e Sudeste participam, já que, em outras regiões, não há
consolidada a categoria juvenil.
Sem dúvida, esta questão está entre
os desafios a serem vencidos pelas mulheres. Os campeonatos regionais são
poucos, há poucos eventos de porte nacional (que tampouco abrangem o país
inteiro, centrando prioritariamente nas
regiões Sul e Sudeste), um número reduzido de mulheres atuando nas comissões
técnicas dos clubes, arbitragem e entidades de rugby feminino.
Internacionalmente, também é recente a criação de jogos femininos de
seven’s. O Women’s Seven’s World Series tem apenas um ano de existência e
já se tornou referência, com alta competitividade. Em 2012/2013, aconteceu
em quatro países (Dubai, Estados Unidos, China e Holanda) e contou com 12
seleções em cada etapa. O Brasil participou de todas e terminou em 8º lugar no
ranking geral. A edição 2013/2014 contará com uma das etapas em São Paulo.
Enquanto as atletas femininas brasileiras terminam com ótimas colocações em campeonatos mundiais, o mesmo não acontece com o time masculino.
Ao passo que isso poderia ser encarado
como supremacia, muitas vezes o rugby
feminino fica em segundo plano.
Sem dúvidas, o machismo e a definição de que “esporte não é para mulher”
são fatores que contribuem para essa
desvalorização dos resultados. Para
exemplificar o que acontece no rugby, é
possível destacar na mídia a desvalorização da categoria feminina. Em 2009,
quando a autora decidiu criar o blog
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
55
A mulher dentro do uniforme de rugby
Rugby de Calcinha, não havia canais
de comunicação específicos para o rugby feminino. Apenas poucas notícias
saíam nos canais mais tradicionais do
esporte, como o Portal do Rugby, mas
eram minoria diante de toda a cobertura do masculino.
Na dissertação de Thais Almeida
(2008), ela especifica bem essa questão
quando exemplifica uma matéria que falava do Charrua:
Sobre esta temática, foi interessante
visitar o site do Clube nos dias seguintes ao campeonato, onde era destacado
a seguinte notícia: “Charrua Feminino
Campeão da liga sul 200780”, ao clicar
neste título, cabe descrever o que foi visualizado: Uma imagem do jogo masculino, seguida da notícia da viagem, e
de que o time feminino havia vencido e
sagrado-se campeão, com o placar total
de 5X0, num jogo emocionante, que ultrapassou o tempo permitido, num parágrafo com cinco linhas de descrições. Em
seguida, apontavam que a equipe juvenil masculina mesmo perdendo, havia
realizado um belo jogo; entre alguns elogios e palavras de incentivo (totalizando
2 linhas). A partir disso, começava uma
descrição bem mais elaborada sobre a
partida em que o time masculino foi derrotado (em cinco parágrafos totalizando
27 linhas!). (ALMEIDA, 2008, p. 107).
Esse fragmento mostra que, mesmo
obtendo os melhores resultados, muitas vezes o rugby feminino é deixado
56 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
de lado para que se fale do masculino,
mesmo que seja de sua bravura durante
a derrota.
Isso acontece porque, até o surgimento do Rugby de Calcinha, o rugby feminino era retratado por homens, o que fazia perpetuar a manutenção da imagem
dos praticantes de rugby como do sexo
masculino.
Fora do nicho rugbier, quando há matérias sobre o esporte, a maioria envolve os jogadores, enquanto as jogadoras
aparecem para “enfeitar”. Em uma reportagem do canal Bandsports em 2011,
três jogadoras foram levadas a um salão
de beleza para cuidarem dos cabelos e
falarem de vaidade no esporte. Ou seja,
como dito no capítulo anterior, a mulher
esportista aparece na mídia, muitas vezes, pelo seu corpo, e não por suas habilidades. Mas as atletas acabam aceitando participar de matérias assim por precisarem de visibilidade e divulgação de
suas modalidades.
Ser mulher no rugby tem sido cada
vez mais fácil, mas ainda um campo a ser
desbravado e conquistado. Os preconceitos e especulações quanto a seus corpos,
sexualidade e rendimento são o foco desta reportagem, que entrevistou cinco meninas com perguntas que transitam entre
a intimidade e o lado público como jogadoras de rugby.
Com elas, será possível entender um
pouco o funcionamento da modalidade
no país e, a partir disso, tentar vislumbrar
um equilíbrio de respeito e admiração entre equipes masculinas e femininas.
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
57
58 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
A baixinha que é
promessa para 2016
o
Edna Santini, 21 anos
Atleta do São José Rugby e da Seleção Brasileira
O rugby para mim, começou em
2003, numa brincadeira com amigos.
Onde eu morava – em São José –, a molecada brincava na rua, até que convidaram a gente pra jogar. O rugby, naquela época, começava mais com brincadeiras como o pega-pega, e tudo era
feito com a bola de rugby pra gente conhecer um pouco. Daí eu tive vontade
de brincar também e fui conhecendo o
rugby aos poucos. Não foi aquela coisa de entrar e já começar a jogar. Eu ia
pela brincadeira, era só eu de mulher.
Joguei até os 15 anos com meninos.
No começo, os meninos achavam estranho eu ser a única a jogar, mas como
a criançada do bairro já se conhecia, não
tinha tanta diferença. Eu via a diferença
somente nos torneios, porque era mais
masculino, e só tinha eu de menina pra
jogar. Mas todo mundo ficava encantado
quando via uma menininha correndo no
meio do campo.
Depois de um mês, eu convidei uma
menina que morava perto da minha casa
pra jogar, e ela aceitou. Então ela também
começou brincando, até criar um time feminino. Eu tinha uns 10 ou 11 anos.
Eu acho que pela visão do esporte...
Você olhando, pensa que ele é muito
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
59
entrevistas
bruto, muito violento, então tem muitas meninas que têm medo, né? Por isso
só eu entrei. As meninas tinham muito medo! Muitas delas perguntavam:
“Como é que você joga esse esporte violento, esse esporte bruto? É esporte pra
homem!”, e eu falava: “É lógico que não”.
Alguns meninos também comentavam: “Nossa, como você joga isso? Tem
mais homem do que mulher! Você é a
única menina, você aguenta?”. Mas nunca me senti ofendida com isso.
Em 2005, mais ou menos, criaram times, e eu fui convidada para o time principal pelo meu destaque contra os meninos, porque, querendo ou não, você
tem que criar um
instinto masculiVOCÊ TEM QUE SER UM
no pra jogar com
eles. Daí, quanMENINO REALMENTE,
do eu fui jogar no
PORQUE ESTANDO
feminino, eu já
ALI VOCÊ NÃO PODE
estava bem mais
CHORAR, PORQUE ELES
preparada
que
muitas meninas.
VÃO BATER DO JEITO
Tinha a mesQUE ELES BATEM NOS
ma
agilidade,
OUTROS MENINOS
era esperta como
eles. Você tem
que ser um menino realmente, porque estando ali
você não pode chorar, porque eles vão
bater do jeito que eles batem nos outros
meninos, e se você está ali no meio é
porque você está preparada e quer participar. Então você acaba criando um
espírito masculino. Não que você vire
masculina, mas você cria essa coisa por
conviver com eles.
Eles nunca pegaram leve por eu ser
menina. Eles batiam em mim, outros
puxavam meu cabelo. Nossa, me davam
60 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
cada porrada! E os meninos do meu
time me defendiam, né? Isso que era legal. Eles ficavam superbravos quando
eles viam um puxão de cabelo ou alguma coisa do tipo.
Eu acho que outras meninas desenvolveram esse espírito masculino no
São José feminino. Muitas delas que tiveram uma temporada de treino com
meninos já vêm com uma bagagem, sabendo como é, e você vê que é totalmente diferente quando você joga só com
meninas e meninas que já vêm treinadas com meninos.
Eu acho que toda menina deveria passar por um treino com meninos. Naturalmente, você tem que começar nova,
então nessa idade, de até os 15 anos,
você jogar junto com meninos é muito bom para os dois lados, tanto para o
masculino como para o feminino, para
se conhecerem e cada um pegar um pouco do “jeito” do outro e saber realmente
como é. Eu acho muito bom pra formação de um atleta.
Quando eu entrei, era um projeto
novo no São José, eles estavam querendo aumentar o rugby na cidade e começaram a desenvolver esse projeto social
que se chamava “Aprendendo e jogando
rugby”. Eles tinham três centros de treinamentos com muitas crianças, e geralmente eram mais meninos, e no centro
de treinamento do meu bairro eu era a
única menina que estava ali. Daí eles pegavam crianças desses bairros mais carentes para fazer a base do São José.
Meu irmão fez judô, mas foi por pouco tempo. Só eu que levei a sério mesmo. Hoje, sou a única atleta da família.
A minha mãe gosta. Ela fala pra eu ir em
frente, se é o que eu gosto. Acho que até
hoje minha mãe não sabe direito como é
Os meninos sempre jogam de igual pra
o jogo. No começo, ela perguntou se esse igual. Moleque novo não tem muita noesporte não machuca. Pergunta normal, ção, já os mais velhos, que já sabem a dicoisa de mãe. Mas ela nunca me proibiu ferença, eles meio que seguram um pouco.
de fazer, sempre me apoiou.
Não é que eu ache isso ruim. Eu acho
Eu sempre cheguei em casa com algu- que depende. Tem hora que a gente prema coisa roxa, cortada, e ela sempre me cisa sim tomar umas pancadas ali pra
ajuda a passar um creme, alguma coisa ver se reage. Mas tem horas que é bom
assim, mas ela nunca me falou pra pa- segurar, porque a força masculina é bem
rar de jogar. Ela sempre está disposta a maior que a força feminina, e por um
ajudar. Quando eu morava lá, ela sem- lance de bobeira pode machucar.
pre me ajudou com a comida, a arrumar
No São José, eles priorizam as cateo cabelo, lavava sempre minhas roupas gorias de base, o projeto social lá é muipra deixar meu short bem branquinho. to forte, então eu acho que é bem diEla também lavavidido. Claro que o
va a roupa do time
masculino, por ser
inteiro do São José,
o principal, vai ter
QUANDO SE JOGA COM
então ela sempre
uma visão especial,
HOMENS, TEM HORA
foi bem ligada, ela
mas acho que eles
QUE A GENTE PRECISA
conhece
muitas
também se preocupessoas do rugby.
pam com as outras
SIM TOMAR UMAS
Quando eu cocategorias, princiPANCADAS ALI PRA VER
mecei a jogar, ela
palmente o femiSE REAGE. MAS TEM
começou a conhenino. Nos últimos
HORAS
QUE
É
BOM
cer todos eles e a
anos, eles têm indepositar confianvestido muito no
SEGURAR, PORQUE A
ça. E ela confia
time feminino do
FORÇA MASCULINA
muito neles. Acho
São José e tem tido
É BEM MAIOR QUE A
que se eu pedir pra
diferença.
FORÇA FEMININA
ficar um mês fora
O investimento
com alguém do rudeveria ser igual.
gby São José, ela
Mas pra isso você
vai deixar, porque eles sempre me bus- teria que corresponder. E, às vezes, o fecaram na porta de casa e me entrega- minino não corresponde. O nível ainda
ram na porta de casa, então ela confia e é meio baixo, então não tem como priogosta bastante.
rizar uma equipe que não se dedica, não
Depois que o time feminino do São tem muita gente disposta ou não tem
José foi montado, os treinos já eram uma quantidade de menina pra criar um
mais separados, só que a gente ainda fa- verdadeiro time competitivo.
zia alguns joguinhos mistos pra desenNa categoria adulta, existem no máxivolver a técnica e habilidade dos dois ti- mo 10 meninas. Já as categorias de base,
mes.
estão com umas 15.
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
61
entrevistas
Eu acho que em todo esporte você
tem que ter o lado feminino. Não é porque também é masculino que você vai
perder a sua vaidade e a sua delicadeza
de menina. Dentro de campo, a gente
pode perder um pouco, ou não, porque
eu posso querer jogar um jogo maquiada, não tem na regra que eu não possa. Às vezes, eu jogo maquiada. Antigamente era mais, hoje em dia nem tanto.
Porque antigamente eu tinha mais vaidade, hoje em dia a gente nem tem tanto tempo também pra se preparar. Mas,
sempre que eu posso, eu passo pelo menos uma base e um protetor pra ficar
bem bonitinha.
A maquiagem não faz diferença no
desempenho, só que as pessoas notam.
Tinha um cara que falava que eu entrava
e saía maquiada do jeito que entrei, e ele
gostava disso, dizia que achava isso “demais”. Isso faz você se sentir bem. Tem
aquele jogo que
você vai inspiEU ACHO QUE CORPO
rada, faz se sentir importante.
MUITO EXAGERADO
A maquiagem dá
TAMBÉM FICA FEIO. TEM
um ânimo. Pelo
MUITAS MULHERES QUE
menos você não
JOGAM NO RUGBY E TÊM
perde o seu lado
feminino.
O CORPO BEM SARADO
Quando vou a
E NÃO PARECEM TER O
um jogo maquiaFÍSICO MASCULINO
da, tem uns que
zoam
dizendo
“Ih, está maquiada, veio direto da balada?”. Mas às vezes
não falam nada. É só brincadeira mesmo.
Quanto ao físico, eu acho que tem
certos níveis. No nível que eu estou,
não chega a ser masculino. Eu ainda
estou num nível físico de mulher sara62 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
da mesmo, vamos dizer assim. Eu acho
que muito exagerado também fica feio.
Eu acho que você tem que ter um limite.
Acho que o físico masculino não vai te
fazer jogar melhor. Tem muitas mulheres que jogam no rugby e têm o corpo
bem sarado e não parecem ter o físico
masculino. Tem o básico, mais ou menos, que é ter algumas partes bem definidas, o percentual de gordura baixo,
barriga tanquinho, essas coisas.
Tem menina que quer, tem menina
que gosta, pode ser que um dia meu nível aumente tanto que tenha que chegar ao corpo masculino, mas hoje em
dia não precisa. Por mais que seja um
esporte mais masculino, você só precisa ter aquela força que você aguente. Eu,
por exemplo, sou pequena, eu não preciso ficar um tanto mais forte quanto uma
menina maior do que eu, porque eu já
estou bem forte para o meu tamanho.
Sobre se machucar no rugby, uma lesão pode prejudicar a saúde. Tem lesão que pode tirar você para sempre de
campo, já tem outras que você pode voltar daqui a um mês, dois meses. Depende, você está aberto a todos os riscos,
eu posso me machucar no esporte, mas
também posso me machucar na rua.
Mas não acho que o rugby possa me
atrapalhar a engravidar, por exemplo.
Tem muitas mães que já tiveram um, dois,
três filhos e continuam jogando rugby.
Quanto à TPM, para algumas meninas existe diferença. Depende na mulher, tem algumas delas que se sentem
melhor, tem mulher que pode se machucar, tem casos em que a mulher fica com
o corpo mais fraco, ou algo assim. Mas
já teve gente que se machucou por estar
nesse período. Eu não vejo muita dife-
rença, se houver é muito pouca.
Não sou do tipo que fica com raiva e
mais gana de jogar durante a TPM, eu
sou calma. Acho que pra me tirar do sério tem que ser uma coisa muito séria
mesmo. Mas tem menina que usa a TPM
pra descontar toda a raiva.
Meu corpo está um pouco diferente
das minhas amigas que não jogam. De
algumas sim, de outras nem tanto. Mas
elas veem a diferença e sempre comentam que eu estou mais forte. Algumas
gostam, outras dizem que eu estou masculina. Tem vários tipos de visão. Então
você tem que ouvir e aceitar.
Nunca sofri bullying. Nem do clube e
nem das pessoas que eu conheço. O que
eu sempre ouvia das meninas era quando eu me destacava na escola, daí elas
usavam esse argumento: “Ah, ela joga
rugby”. Mas de ofender, não. Pelo contrário, sempre me incentivaram a ir
mais longe.
O que eu percebo do masculino é que
eles apoiam o feminino, mas tem uns caras que não gostam de namorar menina
que joga rugby. Tem outros que são namorados, ou casados com meninas que
jogam rugby. Mas não sei te dizer, tem
algumas meninas que sofrem preconceito de alguns caras, mas não que todos
sejam assim.
Quanto à visão deles em relação à
gente, eu acho que depende do time e
depende do cara. Tem uns que veem no
rugby feminino uma maravilha, tem outros que acham que não é de nada.
Nunca tive namorado, nem nada. Não
posso falar de preconceito de namoro.
Mas sou hétero. Sempre que eu olhava
diferente pra algum rapaz, ele brincava
dizendo “Ah, você tem mais tempo para
o rugby do que para mim”. Tem uns que
falam que eu sou mais forte que eles. Eu
dou risada e digo: “É bom, que se vocês
fizerem alguma coisa errada, vocês apanham” (risos).
Eu acho que
não importa se
tem muita lésbiTEM UNS CARAS QUE
ca no rugby. Cada
FALAM QUE EU SOU MAIS
um é cada um.
FORTE QUE ELES. EU DOU
Tem umas meRISADA E DIGO: “É BOM,
ninas que gostam de ter um
QUE SE VOCÊS FIZEREM
corpo mais forALGUMA COISA ERRADA,
te, mas não é que
VOCÊS APANHAM”
isso ajude a ficarem melhor. Só
a ficar mais forte
mesmo. Mas tem
muita menina que gosta de homem e
não tem o corpo masculino, e joga muito
melhor que uma menina que tem o corpo masculino.
Como é um esporte bruto, vão aparecer mais meninas assim, meio machão, porque chama mais atenção do
que meninas patricinhas. Mas acho que
está bem aberto, está bem dividido também. Não acho que tenha preconceito
com as meninas lésbicas. Os caras vão
olhar sempre diferente, mas coisa simples, aquela coisa mesmo de olhar e dizer: “Nossa, aquela ali é...”. Mas não dá
confusão. Sempre há o respeito.
É possível ser feminina jogando rugby. Quando eu não estou em temporada de treino, eu estou sempre com meu
jeito de menina, usando blusinha, shortinho, saia. Eu acho até que uma patricinha poderia dar certo na Seleção. Se ela
gostar, se destacar e querer muito.
A CBRu está investindo bastante na
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
63
entrevistas
Seleção feminina e tratam a gente bem.
É tranquilo.
Nós fomos as primeiras a receber o
apoio de profissionalização do rugby. Eu
acho que a gente está num nível de ganhar uma medalha muito mais próximo
que os meninos, então eles estão priorizando quem tem mais chance de medalha. A maioria dos projetos dele é no feminino, então está melhor do que antes.
Para as Olimpíadas, eu espero crescer o nosso nível. Se eles estão com esse
investimento, eu acho que vai ter um
grande crescimento. Eles vão ajudar a
gente a crescer o melhor possível pra
conseguir uma medalha e vai desenvolver bastante o rugby aqui no Brasil,
principalmente o feminino. Desde que
entrei, já cresceu bastante.
Em minha experiência internacional,
conheci vários tipos de pessoa, vários
tipos de cultura, e você tem que respeitar todas elas e conhecer mesmo, lidar
com diversas línguas e diversos tratamentos também. Eu acho que tudo isso
ajuda no seu crescimento como pessoa
e também como atleta.
Quando penso no que o rugby trouxe de mais importante na minha vida, eu
diria que tudo. Trouxe amigos, alegria,
trouxe uma qualidade de vida melhor,
64 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
acho que em outro esporte eu não teria
isso. É isso, trouxe tudo, uma nova família. Se um dia eu perder todos os meus
familiares (espero que não), eu vou poder me encontrar neles (do rugby).
A minha relação com as meninas da
Seleção é boa, a gente se diverte, procura estar sempre juntas, e agora que estamos morando juntas, a gente vê todo
mundo, todo dia. Está bem legal assim.
Claro que, às vezes, pode ter uma discussãozinha, porque sete mulheres morando juntas, não dá né? Mas a gente está
feliz, está tranquilo. Dizem que quando
as mulheres estão muito juntas, todas
menstruam no mesmo período, e pode
ser que um dia aconteça de cada uma ficar de um jeito, uma brigar com a outra, ou uma ficar muito triste, outra ficar
com muita raiva, e vai variando. Mas a
gente vai se ajeitando, se conhecendo e
vai ficar tudo bem.
Eu sou muito amiga da Luísa, a gente divide o mesmo quarto, a gente criou a amizade na Nova Zelândia e Dubai. A gente se
ligou, né? Ela curte algumas coisas que eu
curto. As idades são próximas, ela tem 23
– eu acho – e eu tenho 21. Foi uma coisa
que veio, a gente se deu bem, ela é moleca,
tem aquela bagunça que a gente faz, então
a gente está se dando bem.
XXXXXX
•
65
66 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
A jornada tripla de
mulher, mãe e rugbier
o
Ana Carolina Lopes (Diva), 29 anos
Jogadora do Urutau Rugby e Keep Walking
e ex-atleta da Seleção Brasileira
O primeiro contato com o rugby foi bem
visual. Eu tinha 13 anos. Meu irmão jogava. Eu o via jogando e ficava enchendo o saco do meu pai pra ficar no terceiro tempo. Sempre fazia questão de participar. Aí, dois anos depois, a gente conseguiu montar um time de rugby. Não
deu muito certo porque a gente treinava
numa praça no Tarumã e disputava campo com os caras que iam jogar futebol, e a
maioria do time era de menina novinha,
então a gente ficava escutando coisa do
tipo: “Ah, sai daqui, queremos jogar nossa bola, num sei quê...”.
Nessa época, o rugby em Curitiba era
na sede do Paraná-Clube. Quando acabou
o convênio, a gente foi obrigada a treinar
na praça, só que também não deu certo.
Daí, em 2005 – uns sete anos depois –,
eu estava na feira, trabalhando com meus
pais, e passou um cara do Curitiba dizendo que tinha menina treinando lá. Daí eu
voltei e nunca mais larguei.
A mudança do Curitiba para o Urutau foi meio que um descontentamento de ambas as partes. A gente estava
descontente com a diretoria, e a diretoria, por sua vez, se viu descontente com
a gente. Ela preferiu deixar de investir
no rugby feminino, coisa que eles já não
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
67
entrevistas
faziam há muito tempo. A gente não tinha treinador e ainda tinha que pagar
nosso uniforme,viagem e etc. Enquanto
que o masculino tinha tudo. Ninguém
curtia esse tipo de coisa, então logo que
fiquei grávida, eu passei a capitania pra
Fernanda, e eles falaram pra gente que
a nossa mensalidade ia passar de 30
para 60 reais.
Tudo bem. Até pagaria a mensalidade, mas a gente precisava saber quais
seriam os benefícios. Mas eles simplesmente disseram que não tinham nada
programado para o feminino. Então, a
gente recebeu a proposta do Urutau, pra
fundar o time. E o legal é que lá já tinha
o masculino, mas todo mundo conquistava tudo junto, tipo, arregaçava a manga e “vamos trabalhar”.
Não me surpreendi porque eu já sabia que tinha esse interesse da diretoria do Curitiba em investir na categoria de base. É um
trabalho que eu
A MINHA RELAÇÃO COM
acho fantástico e
tudo, mas o que
O MEU TIME DE HOJE,
me preocupa um
O URUTAU, É DE UMA
pouco é a falta de
FAMÍLIA. A GENTE NÃO
referência dessas
CONSEGUE PASSAR UMA
meninas,
porque quando elas
SEMANA SEM SE VER
crescerem vão ficar onde? Então,
é preciso ter um time adulto, querendo
ou não, não é só de juvenil que se vive.
Até as crianças precisam de uma referência adulta.
Mas enfim, a gente foi pro Urutau e
lá a gente se encontrou, porque lá é uma
grande família. Ninguém tem nada, então todo mundo luta pelo bem comum, a
gente batalha. E, lógico, às vezes, a gen68 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
te tem que dar um passo pra trás pra dar
dois pra frente.
Eu acho que o Curitiba não investe no
feminino adulto porque eles estão focados em investir nas meninas (do juvenil),
eles querem que as meninas cresçam. Só
que, ao mesmo tempo, eles têm meninas
adultas lá em nível muito bom que são lesadas, tipo a Gaby, a Raline. Não dá pra
ficar pensando em treinar o ano inteiro
pra ganhar a Cultura Inglesa. É legal ter
bolsa e tudo, mas e a outras meninas?
Não vão poder participar de um Super
Sevens? Porque, teoricamente, é proibido as meninas de categoria de base jogar
com adulto. Se no masculino é, no feminino também! Então é nesse ponto que
eu falo, porque fisicamente o corpo é diferente, a intensidade do jogo é diferente,
e não dá pra ficar aliviando, senão ninguém cresce.
A minha relação com o meu time
de hoje, o Urutau, é de uma família. A
gente não consegue passar uma semana
sem se ver, sem fazer alguma coisa junto, uma apoiando a outra e incentivando na vida pessoal, profissional. A gente batalha junto.
Aquelas briguinhas de mulher, aquelas
besteirinhas, sabe? Rola! Mas o legal do
Urutau é que todo mundo é madura. Num
time mais infantil deve ser mais difícil.
A gente procura sempre pensar como a
maioria, se a maioria acha que esse pensamento está errado, então ele está errado. Se a maioria acha que isso tem que
ser assim, beleza, vamos fazer assim. Independente de ter um líder, uma capitã,
a gente procura agradar a maioria. Lógico que nem Jesus Cristo agradou a todo
mundo, então sempre tem uma que tem
uma opinião diferente e esperava que a
gente agisse de uma forma diferente,
mas, de uma maneira geral, a gente consegue contornar.
A Bahia sempre fala que eu sou a mãezona... Tem umas que falam... E o legal
do Urutau é que as meninas entendem
as minhas limitações, já que sou a única mãe do time. Não gosto dessa palavra,
mas é isso, elas entendem as minhas dificuldades e valorizam muito o meu esforço, já que nem sempre eu consigo estar
treinando terça e quinta à noite, porque
aqui é muito frio em Curitiba e eu não
consigo levar o Davi (meu filho), ou porque eu dou aula à noite. Elas entendem.
Mas, sempre que posso, eu estou com
elas, nem que seja pra mandar uma palavra de carinho e dar um incentivo.
Se alguém está com problema, eu procuro me aproximar pra acolher essa pessoa. Eu acho que esse lado de mãe acaba se estendendo naturalmente para o
time, por ter uma visão um pouco mais
carinhosa e pacífica de um modo geral,
mas sem perder o bom humor. Eu passo a
mão na cabeça e dou um peteleco (risos).
A relação com o time masculino é muito boa. A gente divide tudo, o feminino,
às vezes, acaba trabalhando um pouco
mais, porque a gente tem mais atitude,
e eles acabam sendo mais passivos. Eles
gostam de ter as coisas na mão, e a mulher, por si só, já é independente.
A gente está participando do Super
Sevens, então a nossa despesa é muito
maior que a deles, a gente tem que correr muito mais atrás do que eles. A gente não separa, é um caixa para o time inteiro (feminino e masculino), nem todo
mundo deles também concorda porque
a gente está gastando tanto, mas a gente
concorda que quem reclama é quem me-
nos ajuda, entendeu? Então eles não podem reclamar. Uma coisa é você reclamar
se você está fazendo, outra coisa é você
nunca fazer e só reclamar. Mas esse tipo
de coisa a gente também contorna muito
bem. Quando tem
assembleia, todo
mundo fala, abre
ELAS ENTENDEM AS
o coração e a genMINHAS DIFICULDADES
te debate.
E VALORIZAM MUITO
Em muitos luO MEU ESFORÇO, JÁ
gares, o masculino tem mais reQUE NEM SEMPRE
galias que o femiEU CONSIGO ESTAR
nino. Aqui aconTREINANDO PORQUE EU
tece o contrário,
NÃO CONSIGO LEVAR O
porque os meninos jogam XV,
DAVI OU PORQUE EU DOU
e eles não partiAULA À NOITE
cipam do Super
Sevens. Então, a
temporada deles de XV acaba junto com
o Paranaense. Daí, eles perdem muita gente que para de treinar, como, por
exemplo, das primeiras linhas, porque
só jogam XV.
A temporada deles acaba e a nossa
continua. Não que isso não aconteça com
a gente, mas eles se sentem mais lesados.
É que o nosso calendário da federação
não favorece quem só joga XV. O calendário deveria ser feito para o ano inteiro,
só que, como o time principal da capital
joga o Super Sevens, acabam os jogos e
eles se voltam só para os Super Sevens, e
os meninos ficam sem fazer nada o resto
da temporada. Daí tem que fazer amistoso e programar uma coisa diferente, porque são poucos que ficam realmente pra
treinar seven’s, é a minoria. Eles curtem
seven’s, mas preferem XV.
Os homens, em geral, preferem XV.
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
69
entrevistas
E eu também.
to diferente do que eu posso oferecer, enEu comecei a jogar em 2005, em 2008 tendeu? Eu não posso oferecer uma dedieu fui pra Amsterdã... Eu acho que co- cação exclusiva pra isso, agora eu tenho
mecei a treinar com a Seleção mesmo em meu filho, e eu meio que abri mão desse
2007. Era Seleção de XV. Foi o primeiro sonho que eu tinha de jogar em alto níe único jogo da Seleção de XV do Brasil.
vel pra me dedicar a ele. Outras meninas
A primeira pessoa que me olhou e fa- conseguiram voltar pra Seleção, elas têm
lou que gostaria que eu fosse pra uma se- o apoio pelo menos do marido. Eu não teletiva foi o João Nogueira, na época em nho essa válvula de escape.
que ele ainda era do SPAC. Ele me viu
Não posso contar com meus pais pelos
jogando contra o SPAC, pelo Curitiba, e compromissos que eles têm. E também
daí ele falou que gostaria que eu e a Fer- porque, por eles, eu já teria parado de jonanda Caetano fôssemos pra seletiva. Só gar rugby. Apoio não é uma coisa que eles
que não rolou a
se esforçam pra faseletiva naquele
zer. Se eu precisar
ano – que foi em
deles pra trabaEU NÃO POSSO OFERECER
2005 – e em 2006
lhar ou qualquer
UMA
DEDICAÇÃO
eu fui chamada de
outra coisa, eles se
EXCLUSIVA PARA O
novo. Eu fui pra
dispõem agora pra
um monte de seficar com o Davi.
RUGBY, AGORA EU TENHO
letiva, e na época
Mas pra eu ir treiMEU FILHO, E EU MEIO QUE
não tinha patronar, eles não curABRI MÃO DESSE SONHO
cínio nem apoio
tem muito.
QUE EU TINHA DE JOGAR
de nada, então era
Meu pai já me
muito mais um
apoiou muito no
EM ALTO NÍVEL PRA ME
gasto financeiro
rugby. Meu irmão
DEDICAR A ELE
nosso. Quando a
também. Tanto
gente começou a
que, quando eu
treinar na Seleção, a gente tinha um es- estava na Seleção, era meu pai que me
quema: ia pra São Paulo treinar, ficava bancava. Só que ele se decepcionou tanna casa das meninas e dividia o valor en- to com a atitude da diretoria do Curititre todas. E todo mundo pagava, as pau- ba que ele meio que ficou amargo para
listas, gaúchas, cariocas, mineiras, to- o esporte. O rugby não tem um gosto
das pagavam. Todo mundo pagava igual bom pra ele.
pra não ficar injusto pra ninguém. E por
Meu pai não perdia um jogo meu.
muito tempo a gente ficou nessa assim de Acho que o último jogo que ele viu foi no
Seleção, de vai, não vai.
começo do ano, no beach do Paranaense.
Hoje em dia, não é uma coisa que eu Porque ele estava na praia, que é a messonhe pra mim, acho que a época já foi. ma onde ele tem casa. Então, ele não tem
Mas se existisse uma Seleção feminina de mais nenhum interesse.
XV, aí eu voltaria a sonhar, a querer. PorMinha mãe, acho que o primeiro e únique as meninas estão numa pegada mui- co jogo que ela viu foi esse, porque era
70 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
71
entrevistas
do lado da casa de praia dela. Apoiar ela
apoiava, mas ela não gosta de ver. Ela diz
que não gosta nem de ver luta livre na TV,
ia querer ver a filhinha dela se machucando? Eu falava: “Mãe, fique tranquila.
Não tem nada. Você é minha mãe, não é
mãe das outras” (risos).
Eu já quebrei algumas partes do corpo,
como o tornozelo, duas vezes, o joelho e
abri o supercílio.
Acho que só. Isso
meu, fora o hisNA ÉPOCA DA SELEÇÃO
tórico das outras
EU ERA MUITO VAIDOSA,
meninas que eu
MAS AGORA CAIU
lesionei, que têm
UM POUCO PORQUE
duas clavículas,
joelho, tornozelo.
PRIMEIRO VEM MEU FILHO
Mas acontece,
não adianta você
só achar que vai dar, às vezes você toma
também, porque não está concentrada
o suficiente. Não é só da maldade ou da
força. Você se desliga, se distrai com alguma coisa, pisa num buraco, e é assim
que acontece.
Não sei como é que está agora, mas,
na minha época de Seleção, a gente era
tão bagunceira! Era tão bom. A gente falava muito mais besteira, eu acho.
Hoje em dia, elas estão concentradas
em manter a coisa séria e profissional.
Não sei, ao meu ver, acho que elas perdem um pouco da essência do rugby por
estarem 100% focadas. Mas posso estar
completamente enganada.
O apelido de Diva surgiu nessa época que eu estava na Seleção, tinha aquela propaganda da Lux, lembra? Com um
guarda-roupa diamante, que a atriz dizia “Eu sou uma diva”. E daí, eu falava
muito isso: “Nossa, eu quero ser uma
diva pra ter um guarda-roupa diamante,
72 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
tomar um banho de piscina, ficar bem
diva na banheira...”.
Daí surgiu uma viagem, ficaríamos 12
dias em Amsterdã, e eu levei alicate de
cutícula, esmalte, batom. Tudo. E as meninas ficavam me zoando. Eu sempre dizia: “Gente, mas vocês não vão tomar banho? Nem fazer a unha? Credo mulherada, vamos nos depilar!”.
Eu enchia o saco delas. Enquanto elas
diziam que não, eu ia fazer as unhas, pegava minhas coisinhas, sentava na grama, fazia minha unha de verde e amarela, e elas diziam: “Ah, para! Muito diva
que você é!”.
Até rolou uma coisa muito engraçada,
porque a gente foi jogar lá, e eu falei: “Vamos pintar a unha?”. Daí todo mundo ficou me olhando... E eu disse: “Ah, eu vou
pintar a unha, quem quiser, eu empresto as coisas”. E fui lá, estendi uma toalhinha na sombra, embaixo da árvore, e comecei a fazer. Daí pintei a minha unha
de verde e amarelo. Quando o árbitro do
jogo foi ver as unhas, ele falou: “Oh, beautiful”, e eu comecei a cantarolar “Paaaanpanranpan pan”. (Aquarela do Brasil).
Daí pegou geral o apelido Diva. Agora, eu
já nem sou vaidosa assim, mas na época
eu era muito mais.
Não é que a vaidade caiu, é que eu não
tenho mais tanto tempo pra mim, como
eu tinha antes. Meu filho tem que estar
lindo e impecável, é isso o que importa.
Em mim, eu arrumo o que dá. Às vezes,
eu não tenho tempo de fazer minhas sobrancelhas, porque chego em casa tão
cansada, dou banho nele, fico na função dele e, quando vejo, já é meia-noite.
Esse é o dia em que eu vou tomar banho,
mas não vou conseguir lavar meu cabelo. Quando lembro: “Preciso fazer minha
unha... Ah, mas hoje não vai dar porque melhor decisão. Não é nem pela jogada,
tenho que fazer comida, lavar a roupa”, é reação. Eu não tive a melhor reação, a
sabe? A correria da vida mudou um pou- melhor atitude para aquela ação.
co o foco. Eu continuo vaidosa, mas à miEu acho que, se um dia eu conseguir
nha maneira, gostando de me arrumar e voltar a treinar direito, tendo um temtal, mas às vezes não tenho muito tempo. po pra treinar, correr, tempo pra tudo,
Hoje em dia, às vezes eu entro no cam- eu acho que vou dar mais um pouquipo do jeito que dá. Mas acho que o ritual nho de trabalho.
básico de beleza é passar um protetor soQuanto ao meu corpo, como mulher a
lar. Ultimamente, nem de protetor bucal gente sempre acha que tem alguma coisieu tenho jogado (risos).
nha pra mudar, não adianta. Mesmo senAntigamente, eu gostava de fazer umas do diva e mãe do Davi.
tranças. Mas é que às vezes eu não consiAssim, o corpo da mulher, por si só, já
go nem aquecer pra jogar. Então é dife- muda na gravidez. E comigo, claro, não
rente, a vida segue em outro ritmo.
foi diferente. Tem coisas que aparecem
Sobre o meu desempenho no jogo, tec- em lugar que não tinha, a barriga fica
nicamente eu acho que tudo o que eu muito mais flácida, você perde a força no
aprendi está comigo, e eu posso pôr em abdome, porque a musculatura estica.
prática. Só que, fisicamente, eu não esA minha musculatura abdominal está
tou preparada pra
em 20% do que
fazer aquilo que
era antes. E é asa minha cabeça
sim mesmo. Mas,
MEU CORPO SEMPRE
quer fazer. Às vede resto, eu sei
ACHO QUE QUERO MUDAR
zes, eu sei que a
que a gente fica
ALGUMA
COISINHA,
menina está ali
com um pouco
e que eu poderia
mais de gordura
MESMO SENDO DIVA. EU
dar um side-step
abdominal, essas
ESTOU 10 KG ACIMA DO
e puxar ela pra
coisas. Mas acho
PESO. E ISSO FAZ TOTAL
cá, abrindo a bola
que por eu não ter
DIFERENÇA. IMAGINA VOCÊ
para o outro lado.
conseguido voltar
Na minha cabeça,
com a intensidaCORRER COM 10 KG DE
isso funciona muide que estava anPESO EM VOCÊ?
to bem, só que fites, eu fiquei ainsicamente eu não
da com o peso da
consigo fazer. E nem é só por velocidade, gravidez. Eu quero emagrecer mais, emé que às vezes eu estou muito cansada e bora eu ache que nunca vou conseguir fio meu mental não trabalha direito. Mas car com o peso ideal, porque nem quanquando eu erro, imediatamente já sei que do eu estava na Seleção, eu tinha o peso
tinha que fazer de um jeito e não de ou- ideal. Eu estou 10 kg acima do peso. E
tro. Eu já me corrijo, sabe?
isso faz total diferença. Imagina você corMas isso é desgaste físico. Você está rer com 10 kg de peso em você? Meu obcansada, não pensa direito, não toma a jetivo não é perder 30, 20 kg. Eu quero
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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73
entrevistas
perder esses 10 kg! De dois em dois, um
em um ou até 500 g, aos poucos mesmo.
Mas eu só vou conseguir me empenhar
nisso de verdade quando o Davi estiver
um pouco mais independente. Eu já estou voltando pra academia, mas eu preciso da independência dele pra poder me
concentrar mais na minha alimentação e
no meu treino. Mas eu me amo, eu acho
que sou a gordinha mais sexy do Brasil
sem sombra de dúvidas, e pronto (risos).
Se a gente não se gostar também, né?
Ninguém vai. A gente sempre vai achar
que tem coisa pra melhorar, nem que
seja um pelo que está fora do lugar. Mulher é assim.
Em qualquer situação, a autoestima
ajuda. Seja no ambiente de trabalho, familiar, como mãe ou no rugby ela facilita muito as coisas pra gente. E dentro de
campo é assim também, porque se eu não
achar que vou passar por cima de você,
eu não vou passar. Se eu não acreditar
que eu não vou ganhar esse scrum, eu
não vou ganhar esse scrum. Se eu acreditar que não vou dar um passe bonito,
eu não vou dar um passe bonito. Então,
eu acredito em mim, acredito que eu posso, sim, ganhar na corrida de você, que
eu posso, sim, te dar um hand-off e passar correndo. Porque existe técnica pra
você utilizar a tua força, o teu peso, pra
você favorecer o teu jogo. Eu estou longe
de ser a menina mais forte do rugby, tem
muita mulher treinando, malhando, forte e rápida. Mas vai dela aproveitar isso
em benefício dela. E eu tento.
Eu sempre fui metida a atleta, sempre
gostei muito de fazer esporte. Eu acho
que meu corpo mudou sim, desde que entrei no rugby, fiquei um pouco mais forte,
mais firme. Não tenho celulite. Genetica74 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
mente, eu sempre fui assim, e o rugby me
favoreceu pra me endurecer tudo, porque
antes eu não tinha força nas costas, na
lombar, na canela, mas o rugby desenvolve tudo. E isso me favoreceu como mulher também.
Ser mulher não me atrapalha, e no
campo eu não tenho pena de ninguém.
Tento estar sempre de alto-astral, tanto
que no dia da TPM eu nem saio de casa.
Eu penso: “Meu, estou tão chata que nem
eu me aguento”. Mas acho que o pior é
que, quando eu menstruo, vem muito
sangue. Já cheguei a me pesar, eu perco
2 kg num ciclo.
Não atrapalha, mas pra correr, por eu
menstruar muito, é incômodo. Porque,
a todo momento, eu acho que a minha
menstruação vai vazar. Mas não deixo de
fazer nada, nem que seja com muito absorvente, a gente dá um jeito e se vira
nos trinta.
O meu corpo é muito diferente do
corpo das minhas amigas de escola, por
exemplo. Encontrei um amigo que estudou comigo de primeiro à oitava, e ele
disse: “Nossa, cara, mas você está muito
parecida com o que você era antes, o que
você está fazendo? Você está forte, né? A
gente vê a galera aí da nossa idade, a mulherada buchuda, cheia de celulite, gordona, num sei quê, e você está, tipo, está
gordinha, mas está toda firminha aí... O
que você faz?”. Daí eu falo: “Ah, meu, eu
jogo rugby né?”. Daí ele disse: “Meu Deus
do céu, quando eu vi esse esporte na televisão, eu me identifiquei muito e por
Deus do céu que eu pensei que você iria
gostar desse esporte. Que bom que você
encontrou ele!” – porque eu sempre fui
muito moleca, forte, truculenta, brigava
com os piás.
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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75
entrevistas
Sobre a gravidez. Eu não sabia que estava grávida, achava que tudo estava certo, joguei o torneio e nada se alterou. Eu
não senti diferença. Durante a gravidez,
era mais complicado, porque eu tinha
vontade de jogar, queria estar participando com as meninas dos torneios. Meu
corpo todo estava em perfeito estado,
mas tinha um piazinho aqui na barriga.
Então, esse momento sem rugby
JOGUEI RUGBY GRÁVIDA,
foi muito reflexiSEM SABER. DEPOIS
vo. Eu parei pra
pensar várias veQUE SOUBE, FIQUEI COM
zes sobre a vida,
VONTADE DE JOGAR,
sobre o rugby, o
PORQUE MEU CORPO
que ele tinha me
ESTAVA SAUDÁVEL,
dado ou não. Conheci uma pessoa
APENAS TINHA UM
que sempre faPIÁZINHO DENTRO
lava pra mim – e
isso é uma coisa
que eu aprendi e
eu uso muito – que o rugby na vida dela,
tinha trazido muita coisa boa e que nessa
vida ela ainda queria tentar devolver pelo
menos metade para o rugby do que o rugby deu pra ela. Pensei muito nisso durante a minha gestação. Eu sempre falava: “Gente, se eu não estou conseguindo
treinar, jogar e tal, mas, puxa, eu já viajei,
já desfrutei tanto do rugby, então eu vou
tentar ajudar essas meninas que estavam
migrando de time” – saindo do Curitiba,
fundando o Urutau – “Vou ajudar elas a
crescerem e se desenvolverem, tudo para
conseguir se manterem fortes, unidas”.
Eu não concordo com essas ações de
tipo “Ah, você não treina e vai jogar”. Eu
nunca concordei com isso. Porque eu
acho que é mérito de quem treina, jogar.
Só que, ao mesmo tempo, eu não consigo
76 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
treinar diariamente assim, por causa do
Davi, por causa da correria da vida. Mas
as meninas sentem muita segurança comigo, então é uma opção delas me manter na equipe, e eu sempre falo: “Mesmo
que eu não esteja jogando, eu vou colaborar da forma que me for possível”. Enquanto eu achar, e os treinadores acharem, que eu rendo e mereço um espaço
lá, legal. Quando não der mais, eu vou
continuar desfrutado da mesma maneira,
seja dentro de campo ou fora de campo,
seja vendo o jogo do adversário ou pra falar uma palavra de otimismo. Mas eu sei
que está acabando. Vai chegar uma hora
em que eu não vou mais conseguir manter um nível, está todo mundo crescendo
e eu, infelizmente, estou estagnada, pra
não dizer caindo.
Então, eu tenho um plano, assim, no
meu coração, de que daqui a um tempo
eu vou assumir o treinamento delas, eu
vou ser a treinadora do time. Mas, pra
isso, eu não posso treinar e jogar. Não
que eu seja líder, eu não sou líder, mas no
time eu sou a mais experiente. E as meninas têm muita confiança, se sentem muito confiantes comigo. Enquanto a minha
figura ainda for importante pra elas, eu
quero estar perto, quero estar dentro de
campo, porque perto eu sempre vou estar. Mas, quando eu deixar de ser, aí eu
vou passar para o outro lado.
Eu não tive problema nenhum na minha
gravidez. Como o Davi era muito grande,
passei horas tentando fazer um parto normal, porque a minha recuperação iria ser
15 mil vezes melhor, mas não deu.
Mas nunca tive problemas. Teve até
alguns torneios que eu joguei amamentando. No começo, eu tive muito leite,
de ele não conseguir sugar. Então eu
doei leite até os cinco meses para o ban- e passar por cima da cabeça quase deslico de aleitamento.
zando no ar. E eles já vão crescer sabenLesão eu sei que um dia pode aconte- do que, se a bola cair, vão sair catando a
cer, e eu rezo toda vez que vou entrar em bola, por isso vão ter um estudo, uma nocampo. Tenho receio de me machucar e, ção da bola muito maior que a gente. Só
tipo, quebrar um braço. Vai ser complica- que o Brasil não está preparado pra recedo quebrar o braço viajando. E se acon- ber essas crianças, porque é visto como
tecer alguma coisa pior, sabe? De ter que maldade ainda.
parar no hospital? Essas coisas me preoEu sei que não é certo meu filho dercupam muito, por causa dele, pelo bem- rubar os amiguinhos na escola, não é cer-estar do meu filho.
to, não é legal. Mas ele entrar em dispuHoje, eu me preocupo em ter uma boa ta pela bola, isso faz parte do desenvolpostura em campo, de uma atleta, e res- vimento da criança. Não vai ser bonito,
peitar uma amiga, respeitar o juiz, me você tem que ensinar a ele que ele só pode
manter no jogo limpo, “fair play”, porque brincar dessa brincadeira com aquela
eu sei que ele está vindo, e eu quero ser bola e com aquele amigo que saiba, porum bom exemplo pra ele.
que eles ainda não conseguem desligar e
Depois que eu olhei na carinha dele, falar “Não, agora não, essa brincadeira
me propus a ser uma pessoa melhor por só com a minha mãe”. O que eu vou falar
ele. Porque eu quero que ele tenha orgu- pra ele se eu faço isso também? “Eu não
lho de mim. Você
posso empurrar
quer ser um bom
amigo, mas você
exemplo para o
empurra,
mãe.”
REZO PARA NÃO
seu filho. Você
Daqui a pouco ele
LESIONAR. E SE
quer que ele seja
vai começar a me
ACONTECER ALGUMA
uma pessoa corquestionar.
reta. E se você não
Nem expliquei
COISA PIOR, SABE? DE
mudar isso dentro
isso na escola ainTER QUE PARAR NO
de você, ele aprenda. Eles não vão
HOSPITAL? ESSAS COISAS
de olhando.
entender, vão briME PREOCUPAM MUITO,
O Brasil ainda
gar comigo e fanão está prepalar que eu não sei
POR CAUSA DELE, PELO
rado pra receber
educar. Mas é que
BEM-ESTAR DO MEU FILHO
essa geração que
ele é assim, deestá surgindo. Rupois do torneio,
gbiers, sendo pai e
ele quer brincar,
mãe, sabem que eles vão crescer com essa quer fazer igualzinho.
bolinha na mão. O piá, com sete anos,
Preconceito por ser mulher, já sofri sim.
já vai estar dando um passe de spin. Os De argentino, de francês, de brasileiro...
de hoje, que começam no rugby, treinam
Um francês veio jogar aqui, e ele era
uns sete meses até conseguir dar um pas- lindo. Ele não falava português, eu falava
se decente. E eles já vão pegar a bolinha um pouquinho de espanhol, ele não falava
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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77
entrevistas
inglês, eu não falava inglês, e a gente queria conversar, sabe? E ele sempre me via
no meio da galera, fazendo bagunça e tal...
Aí, eu lembro que uma das primeiras frases que ele me falou foi: “rugby não é para
mulher”. E eu disse: “Nossa, mas como
não?”. E ele continuou: “Não, não, não”, e
eu falei: “Nooossa, que filho da p...”.
Aí, depois, ele ficou um tempão ali e
falou: “Eu nunca pensei que pudesse ficar amigo de uma mulher que joga rugby, porque na França as mulheres que
jogam rugby são homens, né? São só geneticamente mulher, e hoje eu posso dizer cegamente: você é meu melhor amigo no Brasil”. Porque a gente era muito
brother, de ir até para o inferno junto.
Uma vez, ele se machucou e eu fiquei
com ele um tempão no hospital, virou
tipo um irmão mesmo.
Daí mudou. Ele já dizia: “Mulher rugby sim”.
O tratamento da mulher é ela que impõe. No rugby, infelizmente, a gente tem
dois tipos de mulheres que se aproximam: as mulheres que gostam de mulheres, e as mulheres que gostam de homens, e gostam pra caralho. Só que, assim, normalmente, essas mulheres – as
maria chuteiras –, que vêm para o rugby
não duram muito tempo.
É uma coisa que a gente que gosta do
esporte tem que repensar. Porque, às vezes, a gente acaba queimando a cara, e
fica com uma moral baixa. Querendo
ou não, um tomate podre vai danificar o
time inteiro, a caixa inteira.
Não digo que ficar com os meninos
seja ruim. Mas às vezes uma menina que
tem uma atitude de pegadora passa para
o time, e vão falar coisas do tipo: “Ah, o
Urutau feminino pega geral”. Eu sempre
78 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
falo pras meninas: “Meu, você quer ficar,
fica. Você quer transar, você transa. Só
não precisa ser dentro do ônibus ou ali
no banheiro da festa. Marca um dia, sai
e faz o que você tem que fazer. Não precisa se expor desse jeito no meio da galera”. Quem sou eu pra falar alguma coisa?
Mas você tem que se preservar e tem que
preservar o time. Então, gostou do gatinho e tal, gatinho do outro time? Esses
são os mais perigosos ainda, porque eles
vão sair falando pra Deus e o mundo.
Tem um episódio muito engraçado
dessa época de Seleção. A gente estava em Amsterdã jogando Heineken Sevens, um circuito mundial, eis que surge
o Agostinho Peixoto. Daí ele olhou assim
estranho, viu a gente passando e falou:
“Brasil!?”. “Sim.” E ele disse: “Nossa, eu
nem sabia que existia rugby feminino no
continente”. Daí eu falei: “É, a gente joga,
a gente é tantas vezes campeãs em cima
da Argentina”. Daí ele disse: “Tem time
na Argentina???”. Ele nem sabia!
Então, às vezes, o maior preconceito é
a omissão de quem não conhece, e quando conhece já vem apontando o dedo. Eu
acho que esse é o preconceito mais feio.
Agora, o preconceito por achar que a
gente está brincando com o esporte deles
e fazendo melhor que eles, isso pra mim é
dor de cotovelo, não é preconceito. E tem
muito, viu?
O feminino já conquistou seu espaço.
Hoje a gente tem vaga pra um mundial,
e os meninos não têm. Eles estão sendo
convidados para algumas etapas do circuito, enquanto a gente conseguiu trazer o mercado pra cá. Eles não têm como
proibir a gente. Por muito tempo, na minha época (da outra Seleção), a equipe
masculina tinha muito mais apelo que a
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
79
entrevistas
gente, mas nem por isso a gente deixava
de fazer. É a mesma coisa que acontece
no meu clube, a gente tem mais porque a
gente corre atrás.
Eu não acho que a CBRu prefira o
masculino, porque, se eu não estou enganada, a Seleção feminina ganha uma
verba pra desenvolver o rugby feminino, e a gente tem uma parcela um pouco
maior de verba do que os caras, por nós
já estarmos no mundial e ter conquistado alguma coisa. Então, se os caras estão
se beneficiando também, que seja 60%
nosso mérito, então a coisa tem que ser
diferenciada.
Eu acho que as pessoas têm que parar
de achar que é um esporte masculino,
machista. A gente já provou pro mundo
que a gente pode fazer tão bem quanto,
ou melhor. Entendeu? É dor de cotovelo. Eu acho que é inveja mesmo. Infelizmente, essa é a minha opinião, eu acho
que é inveja. E eu acho que eles só não
desenvolvem rugby feminino XV aqui
no Brasil porque eles têm medo que a
gente possa ser melhor que eles no XV
também. Porque, assim, existe uma vaga
para o mundial de XV aqui pro continente, ninguém preenche porque a gente não tem torneio organizado, e não é
de interesse da CBRu porque a gente vai
querer, quem sabe, ter vaga no mundial
de XV também, e aí os caras vão ficar jogando o quê? Sul-americano aqui?
Vai ter que dividir mais, vamos dar
mais uma mordidona no doce deles.
Eu sou a única representante feminina em um time masculino do país, no
Keep Walking, e, por incrível que pareça, eu sou Diva lá também, verdadeiramente Diva. Porque eu não pago a conta,
eu sou a menina deles, sabe? Eu tomo da
80 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
melhor cerveja, eu como o que eu quiser, eu posso fazer as minhas exigências,
eles acatam. Mas, ao mesmo tempo em
que eles entendem que eu sou mulher,
eu também sou um brother. Eu sou um
homem com vantagem.
Não me tratam diferente, a zueira
é a mesma.
Entrei no time porque estava acompanhando meu ex-namorado, que é do
Keep Walking também, em uma viagem à
praia para um torneio. Lá, não havia pessoas suficientes para formar a equipe de
XV. Me ofereci para jogar. Primeiro eles
estranharam, perguntaram se eu aguentaria o tranco. Falaram com a organização e liberaram a minha participação.
Dentro de campo,dei meu máximo e
ajudei de igual pra igual. Mas a minha
entrada mesmo aconteceu porque eu dei
um tackle em um adversário e ele apagou.
Quem imaginaria que uma menina iria fazer algo assim em um jogo de homens?
Os meninos gritaram muito quando o
cara saiu de maca. Ele foi zoado pelo resto do evento, porque foi tirado de campo
por uma mulher. Rimos muito dessa história e conquistei o respeito deles.
Eles são muito engraçados, mas eles
não fazem piadas que me ofendem. Mandaram fazer um uniforme, e uma vez chegaram dizendo: “Meu, eu não sabia que
tamanho de top fazer pra caber nessas
tuas tetas”. São coisas assim, sabe? Que
eu não me ofendo! Não levo a sério.
Mas eu também já chego de zoeira,
eu não me faço diminuída porque sou
mulher, e eles também não me botam
pra baixo. Eles entenderam que eu posso fazer tudo o que eles fazem com muito mais glamour.
Teve uma cena que foi muito engraça-
da, deles falando que a gente estava jogando XV, e, de repente, eis que surge
a bola e uma mãozinha em cima, com
a unha feita, decoradinha, e eles: “Que
porra é essa? Aaah, é a Diva, vamos abrir
logo que ela está embaixo” (risos). São
sutilezas assim, “Aí passa correndo e deixa um cheirinho de mulher”, “Vai formar
na primeira linha com o capozão pra trás,
ele vai pôr a cabeça e vai ficar cheirando,
porque a mulher é menos fedida”.
Eu não sei como os outros times me
veem jogando. A gente sente uma provocação, mas acho que parte muito mais de
mim em ir lá jogar com eles do que deles
em aceitarem ou não. Se eu aceitei, me
sujeitei a estar ali, o azar é meu, não é deles. O azar é deles se caso eu for melhor
que eles em algum momento. Aí ele vai
ser zuado pelo resto da vida.
Eu já ouvi: “Meu, caraca, que taca
que você deu, hein”. Mas não é uma coisa que eu fiz pra ser vangloriada, porque é do jogo. Sorte que a minha atitude foi boa, minha ação foi boa naquele
lance, e, lógico, se você usa a técnica,
força e o seu corpo a seu favor, você vai
derrubar quem for.
É, eu acho que se eu fosse magrela ia
ser mais difícil jogar.
Pra jogar com homens, você tem que
ter o mínimo de noção do XV, porque é
muito mais no contato. Então, você tem
que saber se proteger de um tackle que
vem. Afinal, você está jogando com homem e não com menina. Com menina,
você já se machuca, imagina você com um
homem, porque, se você vai dar uma sentada no cara, é a moral dele que está em
jogo, então ele não vai ter pena de você.
Seven’s, prefiro jogar com mulher, mas
se for pra jogar XV, eu prefiro jogar com
homem. Porque as meninas só jogam
seven’s.
Quando eu jogava XV com as meninas era bom. Mas não tem essa diferença,
sabe? Eu gosto do XV e pronto. Mas foi
muito engraçado esse jogo, cara, você não
tem noção. É pena que não tem uma filmagem. Só tenho
foto jogando com
SOU A ÚNICA MULHER
os meninos.
Já senti preQUE EU SAIBA QUE JOGA
conceito de naRUGBY COM HOMENS.
morado! Teve um
NO KEEP WALKING, SOU
que falou pra mim
TRATADA COMO UMA
assim: “E se eu te
pedisse pra escoVERDADEIRA DIVA
lher entre o rugby
e eu?”. Eu falei:
“Nem peça, porque eu já sei a minha opinião e você não vai gostar” (risos). Nunca
mais ele falou isso. Ele sempre implicou
porque, pra ele, todos os homens queriam
me comer e eu queria dar para todos ou
já dei para todos. Pelo meu jeito Diva de
ser, porque eu chegava, beijava, abraçava,
cumprimentava, brincava, sorria, e isso o
incomodava, o fato de estar com ele e sorrir para o meu amigo era como “Eu quero
dar pra ele”. Eu só namorei ele de fora, totalmente desconhecido do rugby.
Os do rugby eram de boa. Outros
também com quem eu me envolvi, não
foi bem um namoro, também era de
boa, não implicava muito assim. Porque acho que eles já me conheciam do
rugby, já sabiam que eu era assim. Não
tinha porque implicar.
Sou hétero. Já dei uns beijinhos numa
amiga, quando eu tinha 16 anos. Mas
daí, eu saí de lá e falei: “Meu, que porra é essa? O que a gente está fazendo?
Está faltando alguma coisa aqui”. Então
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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81
entrevistas
eu posso dizer que não gosto, porque ex- o cabelo. Olha lá, foi try, por quê? Porque
perimentei e não curti.
você estava arrumando o cabelo”.
Eu não acho que ser lésbica te faz jogar
Quando fiz o calendário, eu estava
melhor. O que eu realmente penso sobre bem mais em forma do que eu estou hoje.
a sua opção sexual é que a gente encontra Eu era a mais gordinha de todas, e isso é
muito mais facilidades nas meninas mais mais um sinal de que o peso não influendispostas a brutalidade, nas lésbicas, cia em nada.
porque mulher muito cocotinha, muito
Este ensaio foi legal, a coisa tomou
delicada, não vai querer. Não aguenta! uma proporção bem maior do que a genEu sempre fui um piá, sempre fui ogra, te esperava. A gente achava que ia venmesmo gostando de homem. E as que der aqui no Brasil, ia levar pra Amsterdã
gostam de homem que chegam ficam tão e ia vender lá, mas levar pra quem curte
deslumbradas, pegam geral e depois so- rugby. No fim, a gente foi parar no Fausmem, entendeu? É essa a dificuldade. E tão, saiu na Sexy, na Playboy, uma galeas lésbicas não. Elas se pegam, mas de- ra falando da gente. O Pânico fez matéria
pois, terminou com essa, elas já sabem com a Seleção. Então, depois desse calenque tem outra ali que também gosta, daí dário sensual, muita porta se abriu pra
vai investir na outra. Eu acho que elas são gente, porque a gente foi em lugar que
mais bem resolvidas do que nós, héteros. nunca ninguém tinha conseguido ir. Aí
A
cocotinha
começou patrovai ficar muito
cínio, mudou da
mais preocupaBR pra CBRu, a
A GENTE ENCONTRA MUITO
da em não se macoisa começou
MAIS FACILIDADES NAS
chucar, em não
a andar de uma
MENINAS
MAIS
DISPOSTAS
abrir o supercílio,
forma diferenA BRUTALIDADE, NAS
vai sair do scrum
te. Então, tem
passando a mão
muita gente que
LÉSBICAS, PORQUE MULHER
no cabelo. Ela não
critica, fala que
MUITO COCOTINHA,
vai render tanfoi um absurdo,
MUITO DELICADA, NÃO VAI
to quanto. Eu coque a gente não
QUERER. NÃO AGUENTA!
nheço muita meprecisaria se exnina que é hétero
por daquele jeie que joga muito,
to, mas eu acho
independente disso.
assim: o calendário foi de acordo com a
A vaidade dentro de campo não preju- opinião de cada uma, tipo, você quer fadica tanto. O problema é seu cabelo ficar zer um nu, você faz. Você quer pôr a boescorrido no olho, e você não fazer nada linha pra esconder a sua periquita, pode
pra segurar esse cabelo, porque a gente pôr. Você quer tirar de top, eu tirei de top,
não pode usar tic-tac, essas coisas. Então, mas, tipo, pensando no meu pai, porque
faça trança. Porque eu tinha jogadoras eu queria que – sei lá – se um dia eu tique jogavam comigo que elas saíam arru- vesse um filho, eu queria mostrar para o
mando o cabelo. E eu dizia: “Meu, deixa meu filho. É uma coisa que eu queria que
82 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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83
entrevistas
meus familiares vissem. Não é uma coisa tipo: “Olha, pai, posei nua, mas eu não
queria que você visse a revista”. Então eu
pensei muito na minha família. Sim, a
gente explorou um pouco o peito, porque
eu era uma das que tinha mais peito. Mas
como mulher, eu não sei se me senti mais
ou menos feminina. Eu acho até que não,
a gente gostou do trabalho que foi feito,
se doou pra aquilo, tinha uma ideia boa,
e a gente conseguiu dinheiro, mas não o
quanto a gente esperava, sabe? Porque
o calendário demorou pra sair e era pra
a gente ter levado ele pra Amsterdã, pra
gente vender lá. Mas a gente não conseguiu. As meninas acabaram levando para
o mundial. Algumas metas do financeiro mudaram. E patrocínio, essas coisas,
a gente conseguiu mudar. Tem gente que
critica por isso, mas eles não sabem o resultado.
A gente combinou de ninguém comentar nem bater-boca em rede social,
e em lugar nenhum sobre esse tema.
A pior coisa que ouvi foi: “Vocês estão envergonhando o esporte, vocês não
sabem o que estão fazendo. Vocês são
umas biscates que estão peladonas aí e
acham que vão conseguir alguma coisa,
arrecadar um dinheiro, mas existe muita maneira de vocês conseguirem um
dinheiro, não precisava ter feito isso”.
Uma coisa bem legal que a gente escutou foi do Marcelo D2, lá no Faustão.
Ele veio quando a gente estava saindo
do palco, ele estava subindo a escada e
falou assim: “Aaah vocês que são as peladinhas e tal?”. E eu disse: “É, compra
aí”. E ele falou: “Ah, eu não tenho grana”. E a gente falou: “Ah, a gente troca
84 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
por dólar”, e ele: “É, então a gente pode
negociar. Brincadeira”. Daí ele falou assim: “Poxa meninas, vocês aí, tanto que
a gente fez, tinha vaga para o mundial
e não dá pra ir para o mundial. Vocês aí
têm vaga para o mundial, têm um monte de talento, são superempenhadas, e
esse país de merda não apoia vocês. Vocês têm que fazer uma coisa dessas pra
conseguir verba pra ir disputar e representar essa porra de país”.
Aquilo ali era o sentimento de todo
mundo. A gente não estava indo representar o meu clube, nem o meu bairro,
eu estava indo representar a Seleção, é
o país inteiro. Sempre que eu falo, eu
me arrepio. E a gente teve que usar disso, que era uma maneira que a gente
viu que poderia conseguir um dinheiro.
O fotógrafo fez o trabalho todo de graça pra gente, não tinha patrocínio, não
tinha apoio. As meninas foram no Ministério do Esporte e tentaram conversar, porque não era justo, esse país só
apoia futebol, e eu sou contra o futebol,
eu não torço para o futebol. Raramente
eu vou ligar a televisão e vou assistir a
um jogo de futebol. Se estiver passando, eu assisto a qualquer outra coisa.
É a minha forma de protesto enquanto
eles não desenvolverem outros esportes, não só o rugby. O vôlei tem muito
potencial, e ele não é utilizado. Não tem
metade do apoio que tem o futebol. E só
pegou apoio depois que virou olímpico.
Pensando em futuro, a curto prazo, eu
quero melhorar fisicamente. A longo prazo, eu quero me dedicar a coach. Quero
ser treinadora das gurias. Das barangas,
né? Só tem baranga, e nenhuma diva.
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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85
86 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
Músculos femininos
desafiando o machismo
e
Manuela Nunes, 33 anos
Atleta do Bandeirantes Rugby
Entrei na Escola de Educação Física e
Esporte lá na USP (EFEUSP) em 2000.
Eu tinha 19 pra 20 anos. Todos já entram
lá com referência em algum dos esportes
tradicionais de quadra, como handebol e
vôlei. Eu tentei ir a alguns treininhos, só
que eu jogava pela diversão, e lá o pessoal levava tudo muito a sério.
Daí eu fiquei meio desanimada, porque eu queria participar de alguma coisa
na faculdade, mas não tinha me encaixado em nenhum dos times. Foi quando uma amiga me falou do rugby, e no
primeiro dia em que fui ao treino, já me
apresentaram ao time inteiro. Na faculdade, o rugby feminino era mais atuante
que o masculino, e elas treinavam desde
1998. Como elas eram experientes, eu fiquei amarradona.
Fui ao primeiro treino, e essa minha
amiga bixete já tinha dito que as pessoas eram muito legais. E eram mesmo. A
galera é acolhedora sempre. No campo,
era diferente, era aquela correria. O meu
primeiro treinador foi Mille, o Mauricio
Migliano. Comecei bem, e fiquei apaixonada. Eu pensava: “Gente, onde estava
isso? Essa é a coisa que eu quero fazer
da minha vida!”. Eu sempre gostei muito
de correr, e esse esporte precisa de muiRUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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87
entrevistas
ta entrega. Comecei e não parei mais.
Quando eu era novata, ou bixete, me
espelhei muito nas meninas veteranas.
Elas jogavam muito bem. Eram altas e
fortes, enquanto eu, na adolescência,
tive anorexia. Eu não entrei muito bem,
apesar de hoje
ser referência em
termos
físicos.
ERA SEMPRE UM
Eu não ficava no
ESPANTO QUANDO
pelotão de frente
DIZIA PARA AS
das corridas, mas
MINHAS AMIGAS QUE
eu queria muito.
Os
treinos
EU JOGAVA RUGBY.
eram
nos
dias
de
ELAS SEMPRE DIZIAM
segunda, quarQUE ERA VIOLENTO, E
ta e sexta. Então,
PERGUNTAVAM “VOCÊ
nas terças e quintas, eu fazia um
NÃO TEM MEDO DE SE
treino físico por
MACHUCAR?
fora, junto com
outras meninas
que faziam musculação. Elas me ajudaram muito. Não fui um talento que simplesmente apareceu, eu era raçudinha.
Mas eu tinha muita vontade.
Por um dia na semana, os treinos dos
times masculino e feminino eram juntos, quando eram no campo da faculdade. Quando passamos a treinar no
campo da CBRu, os treinos eram separados. De qualquer forma, eu não tinha
muita referência do masculino. Tinha
uma menina que namorava um menino
de lá, e começaram por conta do rugby,
mas eu não tinha muito contato. Na
época, era bem diferente. Eu não tinha
ideia de que era mais os homens que jogavam. Só tinha ouvido falar de rugby
do Colégio Rio Branco, que tinha time.
Acho que li numa revista uma vez, mas
não tive contato.
88 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
Daí você começa a pedir aos pais pra
comprar uma chuteira, sabe? Mas meus
pais têm esse lado que é bom e é ruim:
eles não dão muita importância, vão
dando corda pra ver até onde vai. Acho
que até por não saber como é realmente
o jogo. Às vezes, eu aparecia com alguma
parte do corpo ralada, mas era tranquilo. Eles nunca tiveram muito interesse
em saber, mas também nunca me pediram pra sair do rugby.
No começo, quando eu era mais fraca,
lembro de ter machucado perto da costela umas duas vezes e foi meio chato.
Eles não interferiram muito, mas o pessoal de fora, que conhecia bem menos,
sempre falava coisas como “Ah, mas fica
se machucando, fica se ralando...”. E isso,
pra gente, é o mais legal. Já para os outros, é o que faz eles não irem aos jogos.
Era sempre um espanto quando dizia
para as minhas amigas que eu jogava rugby. Elas sempre diziam que era violento,
e perguntavam “Você não tem medo de se
machucar?”. Eu nunca consegui trazer nenhuma destas meninas pra jogar, nem por
admirar o corpo que desenvolvi.
Namorei um menino que era do rugby e um que não era. O que não jogava
rugby tinha mais ressalva pelo lance de
ficar longe quando eu tinha competição.
E um pouco de ciúme do terceiro tempo,
claro. Já o carinha que namorei do rugby, não. Porque já conhecia o esporte,
ou achava que sabe tudo dele, né?
Eu me sinto bem jogando rugby. É
um jogo de muita entrega, onde você
não vai mais ou menos. Ou vai com
tudo ou não vai.
O rugby me traz a sensação de ser
capaz, de sentir que disso eu dou conta. Em compensação, me dá muita inse-
gurança em não conseguir. Quando levo
um tackle e tenho que sair do jogo, por
exemplo, eu fico bem frustrada.
Quanto ao meu corpo, eu me espelhava muito nos meninos. Eles são mais fortes e mais rápidos por questões biológicas. Mas eu gosto de me ver, comparada a
eles. Eu acho que sou um exemplo de força máxima que posso alcançar, sendo assim (musculosa). Habilidade é uma coisa
inerente aos dois (masculino e feminino),
mas força é algo mais masculina.
Não querendo dizer o certo ou o errado, mas, por exemplo, quando a gente vê
uma menina boa, a gente usa a expressão
“ela é boa mesmo, parece um menino jogando”. Independente disso, eu me acho
feminina. Tenho minhas vaidades, mas
quando eu estou jogando, eu não penso
muito nisso. Tem coisas que eu acho bonito, mas não perco a linha, não quero
ficar andando igual a homem. Quando
eu estou fora ou machucada, e não estou
jogando, eu me sinto mais feminina, e às
vezes acho isso ruim por me sentir mais
fraca e vulnerável.
Eu nunca treinei em academias que
tivessem muitas meninas que treinassem forte. Eu não sei como seria, não tenho muita referência de mulheres treinando forte. Eu gosto.
Eu tento jogar bem. São muitos anos
jogando. Esse ano, todo mundo amadureceu em algumas coisas juntas e está
dando certo. Quando comecei, eu não
fazia musculação. Fazia a parte de corrida. Dificilmente eu me machuco e acho
que tem a ver com isso e com o perfil.
Você se fortalece quando malha.
Na academia, muitas vezes me perguntam “Mas você faz o quê?”, só porque eu
treino forte. E eu pergunto: “Mas por que
eu não posso treinar forte? Só menino
pode? Eu faço rugby”, e elas dizem: “Ah,
então é por isso”. Então acabam associando a malhação muito mais ao esporte. Mas eu malho pelos dois, pelo físico
e pelo rugby. Comecei com levantamento de peso. Quando não pude mais
treinar, resolvi faQUANDO A GENTE
zer musculação
VÊ UMA MENINA
pra dar uma equiBOA, A GENTE USA A
parada. Hoje em
EXPRESSÃO “ELA É BOA
dia, eu gosto muito de treinar, e no
MESMO, PARECE UM
rugby precisa-se
MENINO JOGANDO”
de muito treino.
Isso foi o que me
chamou a atenção. E eu gosto muito.
A TPM atrapalha. Se eu não pudesse
me preocupar com isso, seria melhor. Na
TPM, eu fico mais chorona. É bom porque, quando eu estou triste, eu vou treinar
e melhoro. Mas atrapalha um pouquinho.
Eu não sabia que o rugby havia sido
proibido pelo Getúlio Vargas porque o
corpo da mulher era pra parir. É engraçado, porque fraturei a fíbula uma vez
e, quando falei em rugby, meu médico
disse que eu ainda não poderia voltar.
E eu pensei: “Acho que ele nem sabe o
que é, porque não tem problema voltar”. Claro que é um jogo que tem muito
impacto, tem muito contato físico. Tem
muita menina que já teve filho e eu não
sei como é a atividade física durante a
gravidez, e, além disso, existem muitas
opiniões diferentes a respeito. Acho que
talvez as pessoas proíbam por não conhecer tanto, porque o jogo é uma coisa muito técnica. A Bruna (Lotufo), por
exemplo, é impressionante. Ela já teve
filhos e volta cada vez melhor. A Maíra
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
89
entrevistas
(Magdaleno) também. Pra você ver que
é uma coisa natural.
Muita gente pergunta quando eu vou
parar, porque eu já tenho 33, mas eu não
sei, eu não coloquei prazo, é uma coisa
que vai rolando. Hoje, acho que estou
melhor que antes, mas também porque,
quando eu era mais nova, eu não treinava com tanta qualidade. Mas eu vejo
muitas vantagens, hoje eu me conheço
mais. Antes eu me estafava muito porque eu treinava errado. Hoje eu sei que
aquilo que eu fizer, eu vou responder.
Agora eu estou melhor mentalmente.
Meu corpo é um pouco diferente das
amigas que não jogam. Na verdade, nenhuma delas tem o corpo igual ao meu.
Às vezes, tenho algumas atitudes de
muita raiva, muita explosão. E eu me
sinto muito homem e muito mal depois.
Me sinto muito feia. Ao mesmo tempo,
em situação contrária, eu fico me sentindo muito franguinha. Então eu tenho
que encontrar esse equilíbrio.
Eu já desencanei de querer ter um
corpo mais feminino, até mesmo porque
você perde rapidinho (quando para de
treinar). Depois de um jogo, você já perdeu. Às vezes, eu me sinto mal. Não que
eu queira ser daquele jeito, mas o jeito
delicado é bonito. E eu não sou.
Mas eu acho meu corpo bonito. Eu
tento, sabe? Eu sou meio exigente também. Com celulite eu não implico tanto, mas quando eu acho que estou ficando mais franga, mais magrinha, ou com
uma barriguinha, eu malho. Se uma vez
ou outra eu quero comer isso ou aquilo,
eu vou comer, dou uma relaxadinha.
Quando eu cheguei no corpo que hoje
considero muito bom, eu pensei: “Poxa,
eu sei que posso ficar melhor”. Então eu
90 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
queria malhar mais pra ficar cada vez
melhor, só que hoje eu trabalho e não dá
pra ficar tão bitolada assim. Mas mesmo com a idade, eu faço algum exercício, como levantamento de peso. Tenho
os equipamentos em minha casa. Lá eu
fico meio limitada, mas eu sei que posso
fazer melhor do que isso.
Meu corpo, hoje, me incomoda um
pouco porque, quando eu tiro a blusa e fico de regatinha, a galera toda fica
olhando. Eu estou acostumada com ele,
mas tem gente que não está, e isso me
incomoda um pouco. Anos atrás, eu não
estava tão forte e as pessoas já falavam.
E é porque, hoje em dia, tem mais mulheres que treinam, mas mesmo assim as
pessoas ainda falam.
Eu já ouvi moleque gritando dentro do carro: “Aah, travesti”, e eu levo
na brincadeira. Eu nunca me zanguei,
até porque o cara deve ser um franguinho, né? Eu estou melhor que ele (risos).
Mas isso eu acho meio chato. Uma coisa
chama a outra. Mas por que uma mulher
não pode ser forte por gostar? Eu gosto
de uma coisa mais funcional, não gosto
de ficar lá na academia posando.
Falam também que eu sou sapatão,
imagino que muitas pessoas devem pensar. Mas eu não ligo muito. Eu acredito
que muito homem não gosta de mulher
assim, mas não é um negócio que vá me
mudar. Eu estou enrolada com um carinha. Ele começou a treinar, eu meio que
indiretamente obriguei. Ele não fala,
mas eu acho que ele deve querer malhar
também por estar comigo, porque a genética dele não é do tipo grande. Ele comentou que estava conversando com o
chefe dele uma vez e falou: “Ah, estou
comendo filé mignon, você acha que eu
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
91
entrevistas
vou querer...”, e o chefe dele o interrom- ragem de dizer isso. É bem pequeno esse
peu dizendo: “Filé mignon não, você está tipo de pensamento.
comendo músculo!”. Mas ele lida bem
As pessoas que não conhecem, veem
com isso, senão ele não estaria comigo.
algo tão masculino nas meninas que
Quando namorei outra pessoa, eu es- pensam que a gente só joga com os metava treinando na Seleção, ele se envol- ninos. É a minoria dos rapazes que acha
veu com o rugby e gostou muito. Esse eu que esse esporte não é para meninas,
conheci na musculação. O atual não, ele principalmente entre os que jogam. Talé do surf. Mas os dois eu levei pra corri- vez o pessoal mais macaco velho ainda
da. Apesar disso, eu nunca levei paquera possa ter esse tipo de pensamento.
ou namorado pra jogar rugby.
Eu tenho certeza que muitos pensaEu tive uma fase muito estressada. vam que nós estávamos lá por causa de
Desde pequenininha, tinha problema de homem. E como eu comecei no univerdepressão, anorexia, e coisas assim. En- sitário, eu nem sabia de nada. Depois
tão, quando eu dava essas estressadas, que vi um torneio é que pensei: “Caraeu ficava muito mal, achando que nin- ca, como tem homem!”. E uns homens
guém iria gostar
elitizados, né? Tode mim. Eu acho
dos bonitões. Só aí
que o fato de espercebi que no ruDIRETAMENTE NUNCA ME
tar mais velha traz
gby tinha bastante
FALARAM NADA, MAS EU
mais segurança.
homem. Mas onde
JÁ OUVI COISAS DO TIPO:
Eu ainda me sinto
eu treinava, não ti“RUGBY NÃO É ESPORTE
insegura, mas elas
nha nem noção.
(atletas do time)
Esse
pensaPRA MULHER JOGAR”
se sentem muito
mento está museguras comigo.
dando. Acho que
Eu gosto do que eu passo pras me- essa mudança se dá não só pelas coisas
ninas do meu time hoje. Talvez eu não relacionadas dentro do rugby, como o
seja muito líder, de chamar e tal. Mas fato das meninas começarem a ganhar,
quando eu tenho que falar alguma coi- inclusive a Seleção Brasileira. Mas eu
sa, eu tento falar coisas positivas. Eu acho que é uma visão mais aberta de
gosto, embora, às vezes, eu me sinta mundo mesmo.
meio pressionada.
Aqui no Bandeirantes, o masculino
Já me falaram que queriam ser igual tem mais vez que o feminino. É o princia mim. Isso é muito legal e ajuda na mi- pal. Hoje em dia, o foco maior de tudo é
nha autoestima, mas na hora eu pensei: (a categoria de) base.
“Ah, até parece”.
Os clubes sempre nasceram com os tiSobre bullying... Diretamente nunca mes masculinos, então acho que é isso
me falaram nada, mas eu já ouvi coisas que eles querem cultuar. Mas, por exemdo tipo: “rugby não é esporte pra mulher plo, o time feminino de Niterói foi jogar,
jogar”. Ouvia mais antigamente, porque e os caras ficavam torcendo pra elas, grihoje em dia acho que ninguém tem co- tando e blá-blá-blá. Mas não era todo
92 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
time que fazia isso, era mais o Niterói.
No Band, isso não acontece. No Rio
Branco, era a mesma coisa. As meninas vão torcer, cantar, e a gente faz isso
porque a gente gosta. Mas eles não fazem o mesmo com a gente. Às vezes, um
ou dois chegam e dão alguma opinião.
Lembro que, um tempo atrás, teve premiação, e eu nem sei bem o que teve, alguma coisa com melhor atleta e tal. Mas
as meninas ficaram de fora. E assim, isso
dá uma desanimada...
Eu não vejo igualdade. Lá no Rio
Branco, acontecia tipo: “Ah, eles vão ter
jogo no final de semana, então vocês ficam com aquele espacinho ali e eles
usam o campo inteiro”. Mas, pô, a gente
paga a mensalidade igual, sabe?
E com os investimentos do clube, a
gente recebe bem menos, embora tenha
mais resultado. Por isso eu acho que eles
subestimam a gente. Eu não sei direito
como é que funciona o orçamento, mas
eu me lembro de falarem que o feminino
tinha um dinheiro para uma viagem internacional, mas quando a gente foi ver,
não tinha mais, porque o dinheiro é da
base. Os caras fazem viagem pra não sei
onde e o feminino não.
Eu acho, sim, que isso acontece porque
é time de mulher. O feminino talvez não
tenha o que o masculino tem. Talvez o feminino não esteja pro rugby como o masculino. Talvez eles pensem que o feminino deva estar por outros motivos. Tanto
que, ao ver as meninas que eles acham
que levam o rugby mais a sério, eles respeitam muito mais.
No rugby rola muita pegação. E esse
negócio de pegar homem é uma coisa
que me deixa muito brava. Teve uma reunião uma vez pra fazer um perfil da Sele-
ção Brasileira e foi dado o exemplo de um
cara de outra federação que tinha comentado que uma menina da Seleção Brasileira tinha dado em cima dele. Daí jogaram
a pergunta: “Ah, é essa a postura que vocês querem?”. E, na boa, eu acho que não
tem nada a ver
uma coisa com a
outra. Na minha
E COM OS
cabeça, não faz o
INVESTIMENTOS DO
menor sentido.
CLUBE, A GENTE RECEBE
O seu comportamento de xavecar
BEM MENOS, E EU
alguém não tem
ACHO, SIM, QUE ISSO
nada a ver com o
ACONTECE PORQUE É
seu jogo.
TIME DE MULHER
Quanto à sexualidade, uma
postura
mais
masculina para o jogo pode ajudar, não
necessariamente, mas talvez uma menina lésbica seja melhor para o jogo. A
gente já levantou essa questão e acho
até que deve ser mais discutida. Até
hoje, eu não vi um time com um perfil
de corpo mais feminino ser mais vantajoso em jogo que um time onde as meninas são mais truculentas.
Eu sou hétero. É difícil comparar. Talvez eu tenha algumas barreiras na minha
cabeça, do tipo, não entrar em certas situações. Por exemplo, na musculação, eu
não faço nada que eu acho que vá machucar. Já uma cabeça mais masculina, é
mais imprudente. Talvez a menina lésbica tenha mais isso também. Elas são mais
desprendidas, e no rugby isso é bom.
Tem muita lésbica no rugby. Lá atrás,
quando eu entrei no rugby, eu era a
maior pata. Nem passava pela minha
cabeça. Daí, tinha um menino que falava assim: “Ei, cuidado, viu? Fulana é
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
93
entrevistas
sapatão”. Teve um dia que umas quatro como um clube. É muito mais coração.
meninas me pediram desculpa por não E lá na Seleção, está todo mundo queterem falado (que eram lésbicas), mas rendo o seu lugar, e são muitas pessoas.
eu não ligo, sabe? Tinha um casal lá,
Da última vez em que eu fui, eu pedi
mas eu juro por Deus que nem imagi- dispensa. Mas não é por isso que eu vou
nava. De qualquer forma, pra gente não parar de jogar. Não é por não estar lá
tinha essa coisa de mudar de time por que eu não vou jogar mais. Quando eu
brigar com a namorada. Pra elas, deve pedi dispensa, era outro esquema, não
ser pior conviver ali dentro. Eu fico era esse de receber. Então, mesmo com
meio preocupada,
esse lance de idaporque aqui mesde, eu vou fazendo
mo já rolaram alo meu jogo, e se
ACHO QUE O RUGBY
gumas situações,
alguém, alguma
VIROU UM AMBIENTE
eu tentei converhora, quiser que
PARA AS LÉSBICAS, PRA
sar pra ninguém
eu dê alguma ajusair, tentei não
dinha lá: vou esELAS FICAREM BEM
tomar partido de
tar lá, né?
ninguém e tal. É
No futuro do ruum negócio novo, que a gente tem que gby eu quero conquistar umas coisas que
começar a pensar a respeito.
eu nunca conquistei. Dinheiro, nunca gaE eu acho que o rugby virou um am- nhei mesmo. Mas eu quero curtir essas
biente pra elas ficarem bem. Nessa épo- vitórias em viagens e tal. Eu não tenho
ca, não era assim, tinha piada também. muitos amigos, minha vida social é muito
O Bandeirantes era um time de lésbica, mais no rugby, eu não quero parar e ficar
todo mundo chamava de “Bandomem”. de fora. Eu não penso em parar. Eu quero
Acho que 70% do Band são lésbicas.
jogar até 2016. Acho que não tem nenhuSeleção Brasileira? Humm... É mui- ma menina que tenha jogado até os 40. Eu
to blá-blá-blá esse negócio de “Ah, Bra- vou indo, sabe? Tenho essa idade e não tesil”. É mentira. Você está na Seleção nho lesão. Eu vou indo.
por desejo pessoal. É ego. Dizer que eu
Tem tanta coisa boa do rugby pra você
não gostaria de estar na Seleção, eu não pegar, tipo um time pra treinar. Mas nunca
posso dizer, é claro que eu gostaria. Tem rolou de trabalhar no rugby. Eu ainda quero
viagem que você quer ir, ver as coisas, e jogar, quero ser treinada. Mas gostaria de,
é pra você. Mas você não acha um lugar no futuro, trabalhar no esporte.
94 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
95
96 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
O outro lado
do rugby
e
Fernanda Lima, 26 anos
Atleta do SPAC
Eu comecei tarde no rugby, tinha 21 anos
e estudava no Mackenzie. Amigos que estudavam comigo conheciam um pessoal que jogava, e um deles jogava muito.
Como eu jogava handebol e futebol, esse
amigo sugeriu que eu procurasse um clube e fosse jogar rugby, e me indicou um
perto de Interlagos. Ele disse: “Nossa,
você mora perto de um dos melhores clubes femininos do Brasil. Vai pra lá!”. Ele
ficou me enchendo o saco por uns seis
meses, até que eu resolvi assistir a um
treino. Não conhecia ninguém, vim com
a cara e a coragem. Mas fiquei.
Depois de entrar no SPAC, eu tentei montar um time com uma amiga
do Mackenzie, ela fazia Arquitetura e
eu fazia Ciência da Computação. Ainda
conseguimos participar de um campeonato da USP, mas as meninas se formaram e se dissiparam. Hoje eu não sei
muito bem como está.
Hoje em tenho 26 anos, cinco anos de
SPAC, e a minha relação com as meninas é a melhor possível. Esta, sem dúvida, foi uma escolha interessante, porque
eu passei por diversos clubes (handebol,
futsal etc.), e todos eles tinham suas panelinhas, não era uma coisa muito unida. Aqui no SPAC, eu me sinto como
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
97
entrevistas
numa família, e acho que é isso que o ru- relação a isso, mas esta é a nossa.
gby me proporciona, uma segunda famíHoje a gente nem comenta mais em
lia que você escolhe onde está. Hoje eu reunião do clube sobre essa divisão. A
só jogo rugby.
gente se dividiu mesmo, então nós cuiA relação com o masculino e o meu damos do nosso e eles cuidam do deles.
time hoje está um pouco melhor. Já foi É cada um na sua mesmo. Não tem bribem pior, era uma coisa muito excluí- ga. Já teve, mas quando a gente dividiu
da, tanto que teve uma época (e a gen- tudo, acabou. Isso aconteceu em meate ainda está) dividida. É uma categoria dos de 2008, justamente na época em
bem dividida do masculino porque eram que eu entrei.
tomadas todas as decisões pra eles e o
Hoje a gente divide o campo. Metade
que sobrasse era para o feminino. En- fica para os meninos e metade fica para
tão a gente bateu o pé e falou que isso as meninas. Tem época em que a gente
estava errado, e as meninas resolveram precisa de um adversário mais rápido,
se emancipar. Então decidimos: “Oh, porque é melhor para o treino, então a
vocês ficam com a sua caixinha, a gente gente joga um touch ( jogo de rugby sem
fica com o nosso, a
tackle, muito utigente se organiza
lizado em treinos)
e vocês se organicontra o juvenil
É UMA CATEGORIA BEM
zam”, então ficou
ou contra o masDIVIDIDA
DO
MASCULINO
uma coisa bem
culino mesmo. E
PORQUE ERAM TOMADAS
mais dividida. Eu
eles gostam de jonão vou falar que
gar com a gente.
TODAS AS DECISÕES PRA
a gente tem muito
Tinha uma época
ELES E O QUE SOBRASSE
apoio do masculique a gente chegaERA PARA O FEMININO
no, não. São pouva mais cedo, daí
cos os caras que
a gente jogava um
vão e nos apoiam,
touch todo muné diferente das meninas, que estão em do, geral mesmo. Não era menino contodos os jogos ali, torcendo sempre jun- tra menina, era tudo misturado: juvenil,
tas, tanto do feminino quanto do mascu- feminino e masculino.
lino, só que a gente não vê muito retorEu sempre gostei muito de esporno dos meninos, são alguns específicos, te. Apesar de não fazer educação física,
mas não é a grande maioria.
eu sempre curti muito esporte, e minha
E eu acho que as meninas têm mais o mãe sempre me apoiou. Ela me dá essa
espírito de família, logo, é o SPAC que independência, ela me deixa fazer o que
está sendo representado. Pode ser o quero. O que me faz feliz.
masculino, feminino, juvenil, kids. Nós
Uma vez me machuquei. Tive uma leestaremos ali torcendo, porque é o nosso são grave no pé, uma torção, fratura litime, é a nossa família, é a nossa camisa gamentar. Minha mãe me apoiou muie a gente gosta de incentivar. Não sei di- to. Ela ainda disse: “Ai filha, isso não é
zer muito bem como é a ideia deles em perigoso? Olha com você está”, e eu fa98 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
lei: “Não, eu quero voltar a jogar”, e ela
completou: “Ah, então, se é isso que você
quer, eu vou te apoiar”. E sempre foi assim. O mesmo acontece com as minhas
amigas, elas sempre me apoiaram também. Um grande número de amigos
meus curtem esporte.
Nunca joguei profissionalmente. Só
no amadorismo mesmo. A gente ganha
no máximo a bolsa atleta.
Sou uma pessoa “grande”, não é? Não
sou tão rápida quanto as meninas. Mas,
entre as grandes, eu consigo me destacar um pouco. Consigo ser um pouco
mais rápida. Acho que, até mesmo, pela
minha essência no futebol e no futsal,
que é uma coisa mais corrida. Apesar
de ser grande, eu era bastante ágil, e do
futsal eu tive bastante herança do compasso, do drible. Então, eu adquiri uma
agilidade que as pessoas que são muito
grandes geralmente não têm. Por exemplo, para chutar.
Como mulher, me sinto bem satisfeita. No feminino, você não se sente em
desvantagem ou algo do gênero, mas é
lógico que, quando você tem um cara ou
uma pessoa do juvenil, tem uma grande
diferença. Mas eu me sinto à vontade.
Também acho que não há problema
com o sentir-se feminina dentro do rugby. Foge um pouco do padrão normal,
a gente acaba tendo uma condição física um pouco maior que o padrão de beleza. Mas nunca vi problema, porque a
mulher é bela por diversas formas, não
precisa ser aquele estereótipo (magrinha) de Miss Brasil. Acho que isso já se
difundiu muito.
Meu corpo mudou bastante depois
que comecei a jogar rugby. Quando entrei no SPAC, eu era mais gordinha. Ti-
nha muita gordura mesmo no corpo e eu
pensava coisas do tipo: “Ah, academia
não”. Eu não gosto de academia até hoje,
mas é necessário. Então comecei a ter
mais músculo, e tornear mais o corpo.
Mas nunca deixei chegar ao ponto de
me achar masculina. Eu estou
forte e posso me
A MULHER RUGBIER
preparar melhor
FOGE UM POUCO DO
para os jogos.
PADRÃO NORMAL,
Mas, lógico, tem
gente que perde
TENDO UMA CONDIÇÃO
um pouco a liFÍSICA UM POUCO
nha, e talvez acaMAIOR QUE O PADRÃO
be se tornando
DE BELEZA. MAS NUNCA
um pouco mais
grotesco.
CheVI PROBLEMA, PORQUE
gar a esse ponto,
A MULHER É BELA POR
até ajuda. PrinDIVERSAS FORMAS
cipalmente porque o feminino
joga mais seven’s,
e 80% do desempenho é físico. Então,
quanto mais potência você tem, melhor
vai ser o seu rendimento.
Na época em que eu tive treinos com
a Seleção, eu não precisei chegar nesse
ponto pra estar no grupo de elite. Pela
nossa genética brasileira, a gente não
precisa ser “superatletas” ou algo do gênero pra ter um bom rendimento dentro de campo. Não precisa ter um físico tão monstruoso, nada tão masculino.
Acho que talvez o nosso grande pecado
mesmo seja a altura, porque nosso padrão é mais baixo. Das meninas de fora,
a menor do time é do meu tamanho. E
olha que eu sou considerada uma pessoa
muito alta por aqui. Eu tenho 1,71 m.
Eu não tenho problema com TPM.
Eu não tenho explosão por nada. É muiRUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
99
entrevistas
to raro ter TPM, e quando tenho, fico
no máximo um pouco manhosa. Mas
só dura um dia. Não fico agressiva. Sou
uma pessoa calma, ever.
Também não acho que os impactos,
como um tackle, deixem a nossa saúde prejudicada. O tackle é uma coisa
muito técnica. Dá pra ver diferença até
quando você joga com um time inexperiente. A probabilidade de se machucar é bem maior, porque as pessoas não
sabem o que estão fazendo. Mas quando você está jogando com um
VAIDADE NO RUGBY É
time que, tecnicamente, é equiUMA QUESTÃO MAIS
valente, não tem
TÉCNICA. A GENTE FAZ
problema.
Vai
TRANÇA NÃO PARA
ser um contato
FICAR MAIS BONITA,
forte, mas não
vai te machucar.
MAS PARA NÃO CAIR
Vai causar um
CABELO NO ROSTO
pouco de dor física, mas é momentânea. Não vai te prejudicar depois.
Não acredito que o rugby traz problemas para a mulher engravidar. Eu vejo
esse exemplo no próprio time. A Emily
jogou até os seus 30 anos. Daí ela parou
e falou: “Vou ter meus filhos”. Casou, parou de jogar e hoje é mãe de duas meninas fortes, lindas, que provavelmente serão futuras jogadoras de rugby. Tem “N”
meninas que jogaram grávidas. A Bruna,
em sua segunda gestão, jogou um campeonato paulista estando grávida.
Quanto ao meu corpo, ele tem uma
boa diferença em relação ao corpo das
minhas amigas que não jogam rugby.
Meu corpo é muito maior fisicamente.
As minhas amigas são muito pequenas.
Inclusive das que jogam. Porque estas
100 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
jogam no máximo o universitário, que é
uma base ainda. A diferença é significativa, já que eu tenho mais músculos que
elas. Até no meu emprego as meninas ficaram um pouco assustadas quando eu
entrei, porque eu era muito grande.
Mas eu não queria ter um corpo diferente do que eu tenho agora. Eu sou bem
satisfeita com ele.
Não ligo muito pra coisas como celulite e gordura localizada. Acho que isso
faz parte. Eu fico com pessoas que gostam de mim do jeito que eu sou. Algumas falam: “Precisa emagrecer”, e eu
falo: “Ah não, por que emagrecer?”.
Vaidade no rugby é uma questão mais
técnica. A gente descobriu que é muito
mais interessante. Teve um treino da Seleção que foi filmado. E foi bem no comecinho dessa nova gestão da CBRu.
Eu usava o cabelo só amarrado. Daí, me
mostraram um treino da gente, e acho
que em 30% do tempo eu estava de saída porque arrumava o cabelo. A franja
vem pra frente quando você faz scrum, e
muito tempo é perdido. E a gente percebeu que isso era um problema. Era um a
mais. Então, a partir daquele dia, eu comecei a fazer trança. Mas não é por vaidade, é mais pra evitar o cabelo vir para
o rosto, é por mais praticidade no jogo,
porque realmente atrapalha. A partir do
momento em que é te mostrado aquilo,
você fala: “Não, preciso dar um jeito”.
Eu tiro sarro das meninas que passam rímel, batom e base. A Tifany, por
exemplo, fazia chapinha antes de entrar
no jogo, e eu dizia: “Mas você vai suar,
vai sair”. Mas é a vaidade dela, eu respeito. Eu não faria em mim. Porque é um
trabalho desnecessário. Eu vou suar, vou
jogar água no rosto, no cabelo e vai ser
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
101
entrevistas
um trabalho em vão. Então, se elas se
sentem bem, eu não vejo problema.
Fora do campo, eu tenho um estilo
mais neutro. Me maquio quando é necessário, quando vou pra alguma festa
ou algo do tipo.
No terceiro tempo, eu só tomo banho
mesmo. Apesar do meu time não gostar muito do banho. O SPAC é um time
meio caramelo.
Se eu passei por bullying, eu não percebi. Eu já ouvi de fora coisas como:
“Ah, isso não é jogo pra mulher”. Devo
ter escutado uma ou outra vez de algum
cara, mas eu nem
liguei. Só pensei:
O SPAC É UM
“Ah, esse cara
CLUBE GRANDE. E
não sabe nem o
que está falanSE VOCÊ LEVAR EM
do”. Mas eu sei
CONSIDERAÇÃO O
que tem bastanCLUBE EM SI, ELES
te.
TRATAM TANTO O
Tem
alguns
namorados, tem
MASCULINO QUANTO
umas até aqui do
O FEMININO COMO
time que têm naUMA MODALIDADE
morados que não
QUALQUER
são do rugby, e
realmente
não
gostam. Eles dizem: “Ah, você vai ficar roxa... Você vai
trabalhar desse jeito?”.
Eu nunca tive problema no trabalho,
por exemplo. Nem com namoros. Todas
as vezes que eu começo um relacionamento ou alguma coisa do gênero, eu
deixo bem claro a minha relação com o
esporte.
A CBRu prefere apoiar o masculino.
Eu vejo por esse lado. E eles apoiam
não sei por que, não conheço a política deles. Só sei que eles apoiam. Tem
102 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
dinheiro gasto no masculino que eles
poderiam estar dando para o feminino.
E até mesmo internamente, acho que
tem um grande problema. Deveria ter
pessoas mais profissionais na CBRu. Se
está profissionalizando o esporte, deveria profissionalizar também o pessoal
que cuida e gerencia.
Como atleta, sinto uma tristeza enorme. Tenho muitas amigas na Seleção, e
eu sinto por elas. Rugby é uma coisa que
eu amo muito, e fico triste. Mas eu estou aqui também pra lutar por mudança. O que eu puder, eu vou fazer. A Marjorie, por exemplo, está dentro, e ela vê
as coisas que acontecem. Muitas vezes,
eu acabo entrando nas ciladas com ela,
pra ajudá-la. Mas eu sei que ela está fazendo isso por uma coisa melhor para o
time feminino.
A CBRu é um pouco diferente do
SPAC, acho que eles até conhecem o potencial das atletas, mas eles poderiam
dar um pouquinho mais de valor. Aqui
no SPAC, a gente tem que enfrentar a
questão de clube. É um clube grande.
E se você levar em consideração o clube em si, eles tratam tanto o masculino
quanto o feminino como uma modalidade qualquer.
Mas assim, a partir do momento em
que a gente ganhou algo e eles se sentem
representados, sim, eles dão mais valor.
Quando a gente ganhou o primeiro campeonato sul-americano feminino, o clube fez questão de fazer um churrasco em
homenagem ao time feminino.
Mas foi só foi uma vez. A partir do
momento em que a gente eleva o nome
do clube, eles veem essa parte e ressaltam um pouco. Mas não é uma coisa assim: “Ah, elas ganharam, vamos dar al-
guma coisa a mais”. Não é assim. A gente só ganha um tapa nas costas com um:
“Parabéns, foi legal”. Acho que é política
do próprio clube mesmo. Porque é um
ambiente de lazer social.
Eu sou lésbica. Hoje eu só gosto de mulher mesmo. Tentei me relacionar com
homem, depois de ter me assumido como
homossexual, e não deu certo. Às vezes,
fico com homem, mas é por diversão.
Isso não faz a menor diferença no rugby. Aqui dentro, pelo menos, do SPAC,
eu me sinto tratada como qualquer outra menina, seja hétero ou homossexual.
Agora, no rugby em geral, a gente vê
alguns problemas. Uma vez eu trouxe a
minha ex-namorada, e os caras não acreditavam que ela realmente era minha
namorada, e começaram a dar em cima
dela. Aí eu tive problemas, porque eles
não respeitam. Tem cara que acha que
pensa que nós curtimos algo a três. No
terceiro tempo, é muita bebida, e os caras
perdem muito a linha. E tem muito disso, mas está se tornando um pouco mais
aceitável no mundo mesmo, não só no
rugby. A gente tem problemas em geral.
No esporte, dentro de campo, não tem
muito preconceito. São atletas que entram. Atletas do gênero feminino, atletas do gênero masculino. Também existe
o gay, que dificilmente se assume. Mas
acho que dentro de campo não tem problema. Agora, a partir do momento em
que você sai das quatro linhas do campo,
aí tem um certo preconceito sim. Apesar de este assunto estar se tornando um
pouco mais suportável pelas pessoas, digamos assim.
É possível ser feminina jogando rugby. Tem meninas que passam rímel, se
maquiam. Essa parte as meninas não
perdem. Não pode usar brinco e alguma coisa do gênero. O esporte é agressivo, mas tanto para homem quanto para
a mulher. O termo “agressivo” acaba se
tornando mais machista, porque os caras
impõem isso. Mas você pode ser agressiva até mesmo em cima de um salto.
As meninas, às vezes, são vistas como
objetos. Já ouvi um cara dizer: “Ah, a
bunda daquela, olha o shortinho daquela outra”. Tem muito disso. Acho que homem, em geral, acaba vendo a mulher
como objeto. Principalmente pessoas
que não são do ciclo, que não são atletas.
Eu sei que os que
são atletas olham
pras meninas e
UMA VEZ EU TROUXE A
falam: “Ah, legal,
MINHA EX-NAMORADA,
ela está jogando
E OS CARAS NÃO
bem”, mas pessoACREDITAVAM QUE
as de fora estão
querendo saber
ELA REALMENTE ERA
se ela é gostosa
MINHA NAMORADA, E
ou não.
COMEÇARAM A DAR EM
E apesar de
CIMA DELA. AÍ EU TIVE
gostar de meninas, eu não tenho
PROBLEMAS, PORQUE
essa visão. Não
ELES NÃO RESPEITAM
sou de achar essa
ou aquela mais
gostosa. Eu vejo pela qualidade técnica mesmo. Eu interpreto a pessoa como
atleta. Não vou julgá-la como uma mulher ou algo assim. Se ela está dentro de
campo, ela é uma atleta e está ali para fazer o papel dela: jogar. Ela está treinando
e ali é a oportunidade para demonstrar. E
os caras, não sei... Eu não concordo. Não
gosto. Acho ruim. É a cabeça da sociedade que estamos tentando mudar, mas
isso vai demorar muito tempo.
Já fui assediada por meninos. Me
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
103
entrevistas
senti ofendida. Se eu estou jogando então, eu me desligo. Acabo não prestando
muito atenção. Mas é chato, é ruim. Porque você está julgando. Porque um jogo,
querendo ou não, é uma demonstração
do que você treina. Se você quer ganhar
um campeonato em qualquer outra modalidade,
você
está mostrando
a sua capacidaTEM MENINA QUE
de como atleta.
ENTRA NO RUGBY SÓ
E as pessoas não
sabem
respeiPRA SE APROXIMAR
tar isso. E eu não
DOS CARAS. ACHO
vejo isso só no fuVÁLIDO POR UM LADO,
tebol, você pode
DESDE QUE NÃO
ver em qualquer
outro lugar. Até
INFLUENCIE NA PARTE
num balé as pesDO CLUBE.
soas fazem isso.
Mas se a pessoa
não sabe o que é um balé, vai lá e vai ter
essa visão mesquinha.
Nos momentos de lazer, existem algumas diferenças nas paqueras. Quando estão só as meninas, mesmo eu sendo
lésbica, acaba tendo um pouco mais de
respeito. As meninas estão ali mais para
se divertir. Sei lá, rola um clima e tal,
um flerte. Até aí, beleza. As meninas vão
lá, conversam e tudo bem. Mas quando
os caras chegam e ficam bêbados, e as
mulheres estão lá, eles vão tentar partir
pra cima, e acaba se tornando um pouco mais deselegante. Quando está misturado, aí também depende do time, e
da mentalidade das pessoas. Mas é um
pouco chato quando você vai no terceiro tempo e vai terceira divisão, segunda
divisão. Teve uma vez que eu estava bandeirando o jogo. Daí eu passei de short,
com o uniforme, e os caras já tinham be104 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
bido lá no terceiro tempo. Eles falaram:
“Vem cá, bandeirinha, não sei o quê”, xavecando mesmo. E eu dizia: “Não, cara!
Cadê o respeito que você tinha por mim
agora há pouco?”. Eles bebem e perdem
um pouco o respeito mesmo.
Tem menina que entra no rugby só
pra se aproximar dos caras. Acho válido
por um lado, desde que não influencie
na parte do clube. A partir do momento em que você está ali pra periguetar,
então você não quer treinar. Não treine.
Não venha atrapalhar. Mas se você está
ali se comprometendo a treinar, venha
treinar. Terceiro tempo, beleza. Mas a
partir do momento em que você assumiu compromisso no clube, você tem
que cumprir. Não vejo problema se essa
é a intenção, apesar de isso não ocorrer
tanto aqui no SPAC.
Antigamente tinha mais menina que
entrava mesmo pra periguetar. Ou porque o namorado veio e daí resolveu vir
junto pra vigiar. Enfim, é aquela coisa,
assumindo compromisso com o clube.
Quanto aos meus sonhos, eu não vou
negar que eu já quis ir para as Olimpíadas. Mas acho que a CBRu hoje está um
pouco mais restrita e não vejo mais tantas oportunidades. Acho que hoje o que
acontece muito nos clubes é que muitas
meninas tiveram que largar os clubes
pra continuar só na CBRu. Então não
teria essa coragem de largar o SPAC, por
exemplo, pra seguir as ordens da CBRu.
Porque foi o SPAC que me fez. Se não
fosse o SPAC, ou qualquer outro clube,
não existiria CBRu. E a partir do momento em que privam as meninas disso,
você está deixando de fomentar o rugby,
porque acaba perdendo qualidade, porque essas meninas são elite. É o que tor-
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
105
entrevistas
na os campeonatos mais competitivos.
delas. É o sonho delas. Eu acho que eu não
Elas voltaram a jogar agora, e eles es- disponibilizaria meu tempo e a minha vida
tão permitindo elas fazerem um treino pra CBRu, sendo que talvez eu não tenha
com a gente.
nenhum retorno viável. Então minha ideia
Não é o mesmo grupo. E até mesmo nos é jogar até quando eu puder, até quando
treinos, rendia mais quando elas estavam. eu aguentar. Acho muito mais interessante
Quando as meninas
essa parte de um dia
participam, o treipoder treinar algum
NUNCA
TIVE
NENHUMA
no tem muito mais
outro time.
HISTÓRIA DE SOFRER
qualidade.
Mas
Acompanho o ruquando tem muigby mundial. E acho
PRECONCEITO. AO
ta menina novata,
que o cenário é até
REDOR DO MUNDO
lógico, a qualidade
igual ao daqui, porÉ UM POUCO MAIS
vai cair. A partir do
que é difícil. AcomACEITÁVEL E AS
momento que tem
panho pouco pormeninas mais expeque tenho pouco
PESSOAS SÃO
rientes, a qualidade
material. Só o que
TRATADAS COMO
sobe. Eu cresci muias meninas da SeATLETAS
to no rugby, e rápileção conseguem. E
do, pelo fato de esa gente tem que estar jogando com as
tudar mesmo. Elas
melhores. Porque elas sempre têm uma conseguem algumas coisas por debaixo
dica, elas sempre dizem o que você está fa- dos panos e cedem o material pra gente.
zendo errado, então você não dá um pas- No mundial, elas voltaram com todos os
so por vez, você dá uns três, quatro. Ajuda vídeos, e é interessante ver, porque daí a
muito. E eu não acho isso certo, iria contra gente pode ter uma ideia de como está o
o que eu acredito.
rugby mundial.
Já as meninas que aceitam essa condiNunca tive nenhuma história de sofrer
ção de largar o clube pra ficar só na CBRu, preconceito. Ao redor do mundo é um poulutaram pra ter isso. Nenhuma batalha é de co mais aceitável e as pessoas são tratadas
graça. Eu não vou tirar a razão delas, eu sei como atletas. Pode ser que elas tenham um
o quanto isso dói pra elas, pelo menos as pouquinho de discriminação fora, mas gemeninas aqui do SPAC. E eu sei que elas ralmente os atletas se tratam como atletas.
estão lutando por isso, e eu apoio cada uma Principalmente no nível profissional lá fora.
106 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
107
108 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
A mulher
na arbitragem
e
Nayara Rúbia, 29 anos
Árbitra de rugby e ex-jogadora do SPAC
Eu comecei no rugby quando tinha 15
anos. Eu era escoteira, e alguns meninos
que também eram escoteiros jogavam, e
de vez em quando eu ia assistir aos jogos. Depois da segunda ou terceira vez,
as meninas do SPAC perceberam que eu
estava sempre por ali e me chamaram
pra ir num treino. Eu fui uma vez e não
parei mais. Joguei por oito anos seguidos, depois fiz faculdade, voltei e joguei
mais um pouquinho. Agora eu só apito.
Morei um tempo no Nordeste, em
Aracajú, Sergipe, enquanto fazia faculdade. Mas nesse tempo eu não jogava.
A primeira vez que vi o rugby, achei
um esporte muito violento. Eu nunca
me imaginei jogando. Nunca tinha passado pela minha cabeça que um dia eu
iria jogar. Além disso, os meninos nunca
tinham me chamado. Depois que as meninas do SPAC me convidaram, eu comentei com eles. Daí eles começaram a
me incentivar.
A princípio, eu não tive coragem de ir
sozinha. Então falei sobre o treino com
algumas meninas da escola – Jéssica e
Paulinha –, e elas foram comigo. Como
a gente entrou em um grupinho, pensei que não me sentiria muito deslocada. Mas depois vi que era bobagem, porRUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
109
entrevistas
que as meninas do SPAC nos acolheram
muito bem, e foi tudo muito tranquilo.
Eu era novinha e, na época, não tinha muito rugby feminino. Era bem diferente do que a gente tem hoje. O nosso time só jogava dois ou três jogos em
um ano. A gente treinava mais. O gostoso era treinar.
Eu entrei em maio de 2000, e nessa
época o treino era misto (com os meninos), mas não foi por muito tempo. Até
agosto, mais ou menos. Em meados de
setembro/outubro, separou de vez, porque o feminino conseguiu alguém que
desse treino só
pra gente. Os
NESSA ÉPOCA, OS
treinos
mistos
ADULTOS NEM VIAM O
não eram com
adultos. Era com
FEMININO. LEMBRO QUE
os juvenis. Era
FOI NO PRIMEIRO LANCE
bem tranquilo, e
DO JOGO, E OS MENINOS
a parte de contaADULTOS FALAVAM: “AH
to era sempre separada, acho que
CHAMA A MANICURE,
por conta do porQUEBROU A UNHA!”
te físico. Porque
quando a gente
joga até um touch com os meninos, às
vezes eles perdem um pouco a noção da
força que eles têm. E nós éramos bem
fraquinhas mesmo, então, pra não machucar, eles acabavam separando.
Nessa época, os adultos nem viam o
feminino. Em nosso primeiro jogo, fomos pra Floripa, e a Paulinha quebrou o
dente dela. Lembro que foi no primeiro
lance do jogo, e os meninos adultos falavam: “Ah chama a manicure, quebrou
a unha!”. Naquela época, eu só tinha 15
anos, e fiquei quieta. Talvez, se fosse
hoje em dia, eu iria falar alguma coisa.
De qualquer forma, há muito tempo não
110 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
escuto mais uma coisa dessas.
Hoje a relação do masculino com o feminino é totalmente diferente. Não sei
se é porque o rugby feminino, em especial, cresceu muito, mas hoje a parceria existe sempre. O trabalho é conjunto
com objetivos para o grupo. Muitas das
coisas que a gente fez e deram certo, eles
pedem a nossa ajuda pra fazer também,
então é bem diferente do que era, não dá
nem pra comparar.
Mudei muito com o rugby. Eu não
era de fazer esportes, nunca fui e nunca me dei bem em outros esportes. No
rugby mesmo, eu tive muita dificuldade de habilidade. Foi um negócio de autoconhecimento e paciência. De querer
treinar, querer jogar e ir, aos poucos,
superando meus próprios limites. Uma
vez, o treinador me disse uma coisa que
ainda hoje, na arbitragem, eu levo isso
comigo: “Ninguém pode confiar em
mim, se eu não confiar”. Eu tinha muito
medo do contato, até que passei a ver as
coisas assim: O que eu quero pra mim?
Primeiro eu tenho que querer. Ninguém
vai me dar se eu não acreditar que eu
possa ter alguma coisa.
Além dos amigos, e olha que eu tenho
muitos, o rugby me trouxe a filosofia de
vida, do respeito, da hierarquia. Essas
coisas são muito fortes pra mim.
Meu corpo mudou bastante. Eu não
fazia tanta atividade, e de repente comecei a treinar três vezes por semana,
comecei a fazer academia porque tinha
um problema no joelho e precisava fortalecer, daí mudou radicalmente. Fiquei
mais fortinha, mais definida. Apesar disso, não vejo meu corpo como algo próximo à forma masculina, até porque, como
a gente treinava, não se compara ao que
acontece hoje em dia. Naquela época, a
gente não jogava tanto, então o preparo
não era tão grande, além disso, a gente não tinha cuidado com alimentação,
era uma coisa muito mais de “chegar e
fazer” e mais natural. Nunca fiquei com
o corpo masculino e nunca ninguém me
disse que estava perto disso.
Hoje as meninas estão se aproximando desse ideal, mas acho que tem mais
a ver com conseguir ser mais forte pra
atingir alguns objetivos do que alguma
coisa em relação a querer ser “masculino”. Acaba ficando mais forte, isto é óbvio. Hoje em dia, as meninas são muito
fortes. Mas eu acho que não tem a ver
com esse objetivo. De qualquer forma,
aqui no Brasil eu não acho que estejamos num padrão de forma física mais
masculinizada.
Ser mulher fisicamente me atrapalha
mais nos treinos do que nos campeonatos. Hoje em dia, eu consigo controlar
meu ciclo e a TPM de acordo com o campeonato que eu tenho. Acho importante
fazer isso, então eu uso a pílula de acordo. Até mesmo pra ficar mais à vontade,
porque normalmente são lugares onde
a gente não tem uma estrutura superlegal. É chegar e se trocar se equilibrando
pra não sujar o pé no vestiário imundo e,
muitas vezes, ir embora sem tomar um
banho. Acaba sendo bem complicado,
então eu procuro regular o máximo que
eu posso, pra estar no meu melhor quando for apitar um jogo.
A TPM não influencia o meu emocional quando estou apitando. Já no treino,
eu me sinto super-homem (acho que estou superforte), ou então me sinto mais
fraca e não fico tão satisfeita quanto gostaria. Quando eu digo treino, me refiro à
academia ou corrida.
Meu preparo hoje é com um treinador. Faço musculação cinco ou seis vezes
por semana e corrida. Mas não é bancado por ninguém, sou eu que invisto.
Como profissão, a arbitragem toma
em torno de 40% do meu tempo, contando com academia e estudos. É complicado conciliar com o meu dia a dia, às
vezes eu estou cansada e não quero treinar. Ou eu gostaria que não tivesse determinado jogo num fim de semana pra
dormir um pouco mais. Mas no fim, é o
que eu gosto. Se eu pudesse viver disso,
eu viveria.
A minha relação no trabalho
A TPM NÃO
é muito legal em
INFLUENCIA O
relação ao rugby.
MEU EMOCIONAL
No dia da minha
entrevista, eu faQUANDO ESTOU
lei do rugby para
APITANDO, SÓ NO
o meu chefe, e
TREINO, ME SINTO
acho que foi ali
SUPER-HOMEM OU
que ele me contratou. Ele coENTÃO ME SINTO
nhece alguns joMAIS FRACA
gadores da faculdade (alguns rapazes que estão em times) e ele se encantou. Isso acabou dando muito certo,
hoje eu sou secretária-executiva e eles
me apoiam muito. Sempre que tem campeonato, eles me apoiam muito, principalmente em relação às viagens que eu
tenho que fazer. Todo campeonato que
é diferente e eu sou convocada, eles vibram comigo, é muito legal. Graças a
Deus, eu não tenho do que reclamar,
pelo contrário, só agradecer.
Vaidade feminina, eu tenho. No geral, sou bem vaidosa. Procuro sempre
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
111
entrevistas
combinar a minha roupa, prefiro que
ela seja mais justinha. Como nós usamos uniformes que não foram, especificamente, desenvolvidos para mulheres,
eu sempre dou
uma ajustadinha
pra ficar mais feANTIGAMENTE, OS
minino. Isso me
MENINOS TIRAVAM
deixa mais conMUITO SARRO, PORQUE
fiante, eu prefiNÃO TINHA MUITA
ro assim. Normalmente,
coMENINA ARBITRANDO,
loco
um
brinco,
ZOAVAM DIZENDO QUE
prendo o cabelo,
TINHA UM NECÉSSAIRE
sempre fiz muiPRA CADA COISA
ta trança. Agora
que ele está mais
curto, eu não
consigo tanto, mas gosto de ficar o mais
feminino possível.
Isso tem um pouco a ver com a minha personalidade. Eu sou assim. Mas
tem a ver também com esse ambiente.
Hoje em dia, está melhor porque tem
muita mulher na beira de campo, mesmo que seja um jogo masculino. Eu acho
que também coloco pra eles lembrarem
que eu sou uma menina, que eu sou uma
mulher. Não em termos de sedução, mas
por respeito, porque é cada coisa que
você escuta e vê. Durante essas conversas de homem, acho que eles esquecem
que tem mulher perto e ficam falando
um monte de besteira.
Era bem mais difícil quando eu comecei, há três anos. Hoje já não tem tanto.
Aqui em São Paulo, tinha eu apitando, a
Mariana (Wyse) fez o curso, mas ela passou esse ano, tinha a Chris no Rio, que
ainda jogava também, e daí era um pouco mais complicado, eu me sentia mais
deslocada. Porque, nas viagens de tor112 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
neio, era só eu de menina e um monte
de cara.
Eles não me tratavam diferente, mas
era sempre com bastante respeito. Com
quem apita, eles são muito tranquilos,
respeitam, apoiam, mas não rola nada
diferente. Preconceito, por exemplo,
nunca senti deles. Pelo contrário, sempre me apoiaram muito, todos.
Quando comecei, eu sempre bandeirei. Tinha uns torneios no interior onde
quem quisesse bandeirar x jogos não
precisava pagar a inscrição. E eu sempre participava. Em 2010, 2011, quando a Federação Paulista começou a cadastrar árbitros e auxiliares pra começar
a organizar uma liga semiprofissional,
eu me candidatei e comecei a bandeirar
bastante. Trabalhei em muitos jogos do
Luiz Mourão, que era educador e começou a me incentivar. Daí surgiu a oportunidade de apitar um torneio universitário, antes mesmo de fazer o curso,
que eu só iniciei dois meses depois. Mas
a primeira árbitra do Brasil não fui eu,
acho que a primeira foi a Chris.
Antigamente, os meninos tiravam
muito sarro, porque não tinha muita
menina arbitrando. E eu sou muito organizada, metódica, tenho nécessaire
pra isso, bolsinha pra aquilo, daí eles me
zuavam dizendo que tinha um saquinho
pra cada coisa. Mas era muito mais na
brincadeira do que falando sério.
Na minha visão de árbitra, eu não
vejo diferença no jogo das meninas que
são lésbicas e das que não são. Embora tenha-se o costume de pensar que as
meninas que são lésbicas são mais fortes
e agressivas, as que vêm à minha mente
que são verdadeiramente fortes e agressivas não são lésbicas. Eu acho que tudo
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
113
entrevistas
é muito natural, sinceramente não vejo
nenhuma diferença.
Ultimamente eu tenho ouvido muitos
comentários que afirmam que existem
muito mais lésbicas no Rugby do que
antigamente. Mas nunca ouvi nenhum
comentário maldoso a respeito, nunca
no sentido de ser pejorativo.
Quanto aos jogos, eu não tenho preferência por apitar feminino ou masculino. Hoje em dia, eu me sinto mais tranquila apitando seven’s, mas não quero
me fechar nisso. Eu gosto de apitar o
XV por ser um desafio um pouco maior.
Não sei tudo do
seven’s, mas hoje
JÁ ACONTECEU
em dia eu me sinNUM JOGO JUVENIL
to mais confortável. A única diMASCULINO DE O
ferença entre o
TREINADOR DELES
masculino e o feCOMEÇAR A DIZER
minino é a veloQUE EU NÃO SABIA
cidade, eles são
um pouco mais
APITAR. EXPULSEI ELE
rápidos. Mas o
DO CAMPO
jogo em si, a tolerância das penalidades, dos tackles, pra mim é a mesma coisa. Vai existir diferença entre juvenil e adulto. Por
exemplo, a tolerância pra um tackle alto
masculino adulto é bem maior, provavelmente um juvenil vá tomar um cartão amarelo numa situação em que um
adulto não tomaria. Porque é um jogo
ainda formativo, eles têm que aprender.
Então, as orientações que a gente recebe
são nesse sentido.
Sendo a senhora do jogo, a única mulher no meio dos homens, hoje é tranquilo. No começo, eu ainda tinha um pouco
de vergonha, achava um pouco estranho
114 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
e não me sentia 100% à vontade. Mas
hoje em dia não, acho que porque eles
também já acostumaram, e eu também,
então eu me sinto muito mais confortável, e eu acho que eu só sirvo pra ser árbitra de rugby mesmo, onde as pessoas
respeitam o árbitro e tudo mais. Porque
eu não iria conseguir apitar um esporte
onde as pessoas me desrespeitam.
Uma pessoa afrontou uma árbitra de
futebol, xingando, dizendo que só não
falaria mais porque ela era mulher. Se
alguém falasse isso pra mim dentro do
rugby, levaria um cartão vermelho. Uma
pessoa assim merece um belo relatório.
É que essas coisas, para mim, ofendem
mais o esporte que a mim. Ele não estaria xingando a Nayara, é a árbitra do
jogo. Eu não levo para o pessoal. Mas
me incomoda porque vai contra os princípios do Rugby.
Já aconteceu num juvenil, e o treinador deles começou a dizer que eu não sabia apitar. Daí eu o expulsei da área de
jogo. Mas não acho que tenha sido porque eu sou mulher, ele é uma pessoa que
conhece muito o rugby. Uma pessoa que,
hoje em dia, a gente conversa e eu respeito muito. Acho que isso foi pela situação, ele achou que estava sendo prejudicado e resolveu falar. Mas por menos
que eu soubesse (ou mais), ele não poderia ter falado daquele jeito.
Eu convivo muito com atletas do rugby e, por exemplo, eu estava num campeonato esse final de semana, e depois
de um jogo que eu apitei, e tinha uma
senhora de mais ou menos 60 anos, o
time para o qual ela estava torcendo perdeu, então, quando eu passei, ela olhou
pra mim e falou com uma pessoa do lado
dizendo: “Amanhã a gente precisa cha-
mar um árbitro que apite direito e não
um que roube que nem essa daí”. Quando olhei pra ela, eu sabia que ela não
conhecia o rugby. Na hora, subiu aquela coisa na garganta pra falar, mas eu
fiquei quieta porque, com certeza, ela
estava falando muito mais pela cultura
que ela já viveu em outros esportes do
que ela realmente achar aquilo.
É claro que essas coisas me incomodam, mas isso é cultural. Quem convive
no rugby sabe como é. Primeiro, a pessoa que apitar um jogo na vida vai saber
como é difícil. Se a pessoa tiver metade
da noção do que é apitar um jogo, ela
vai se colocar no lugar de quem está ali
fazendo. Não que não erre, é obvio que
erra, mas tem uma tolerância um pouco maior. E tem que ter respeito, sabe?
É o mínimo. Esse é um esporte que tem
tanta regra, tanta variação e tanta coisa influencia, que a forma como você interpreta também está em jogo. A gente pode ver a mesma coisa e interpretar
completamente diferente.
Você ouvir um questionamento em
relação ao que você interpretou, é uma
coisa. Agora, você ser acusada, e faltarem com o respeito, é complicado. Mas
isso não acontece com tanta frequência,
graças a Deus.
Hoje eu sou registrada pela CBRu
como árbitra. Mas nunca achei que fui
tratada diferente por ser mulher. Nem
pro bem e nem pro mal. É árbitro e acabou. Não tem nenhuma regalia por ser
mulher e nada é mais difícil por ser mulher. Tudo é igual.
Quanto ao tratamento da CBRu com
o rugby feminino em detrimento do
masculino, eu sei muito mais pelo que
escuto falar do que pelo que vejo, por-
que eu tenho contato zero com a Seleção. Mas já ouvi falar que as meninas
precisavam treinar pra algum torneio
universitário na Rússia, recentemente,
e elas não tinham campo. Mas os meninos tinham. O juvenil estava treinando para um sul-americano. Então, nessas horas é que você vê as prioridades,
porque as meninas iam viajar antes dos
meninos, precisavam mais. Pode não
ser assim o tempo todo, mas ainda –
por melhor que as mulheres estejam – a
prioridade são os caras.
Acho que isso tem a ver com a cultura
e patrocinador.
Não que as muJÁ OUVI MUITA COISA DO
lheres não precisem dar resulTIPO: “AH, MAS VOCÊ É
tado, não é isso,
MAGRINHA, VOCÊ JOGA
mas eles preciRUGBY?”, E A GENTE
sam mostrar reSEMPRE FALA QUE É UM
sultado e os caras
estão muito atrás
ESPORTE QUE SERVE PRA
das meninas. EnTODO MUNDO
tão eu acho que
estão
focando
muito mais neles pra ver se conseguem
o resultado que eles esperam, do que investir nas meninas, que estão mais na
frente. O passo mais difícil a ser dado é
dos meninos.
Eu acho que precisa igualar tudo,
todo tipo de apoio, todo tipo de ação que
vai ser feita. Eu também ouvi falar que
as meninas só foram pra esse universitário porque uma menina ficou insistindo
muito, falando com o dirigente de não
sei de onde pra conseguir, senão mais
uma vez elas ficariam fora desse universitário. Então deveria ser uma coisa de
fazer para os dois, e não privilegiar um.
O rugby mundial já foi bem mais maRUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
115
entrevistas
chista. Aqui no Brasil, o rugby está se po- conheci quando eu já jogava rugby. Enpularizando e isso é muito bom. Hoje, se tão foi muito mais tranquilo, porque
eu falo que apito rugby, muitas pessoas você traz a pessoa pro seu mundo ao
pelo menos já ouviram falar no esporte. invés de qualquer outra coisa. Eu não
Na época em que eu comecei, se eu fa- gosto de ficar com caras do rugby, porlei 300 vezes, se três pessoas conheciam, que é muito minha casa e eu não gosto
era muito. Já usei muito aquela frase: de misturar. Você acaba ficando presa,
“É futebol americano sem armadura”, por exemplo, “Eu vou naquele lugar, ele
quando me perguntavam o que era o ru- vai estar lá e eu não vou ficar à vontagby. A forma mais fácil de se fazer en- de”. Eu gosto de ir em qualquer lugar
tender é essa mesmo, fazendo referência do rugby e ficar super à vontade, ainao futebol americano sem as proteções e da mais agora que eu apito, não quecom regras diferentes.
ro essa coisa de ficar: “Ah, está vendo
Já ouvi muiaquela árbitra ali?
ta coisa do tipo:
Fulano já levou”,
“Ah, mas você é
eu evito qualquer
MINHA MÃE E MEU PAI JÁ
magrinha,
você
coisa desse tipo.
ME
PEDIRAM
PRA
PARAR
joga rugby?”, e a
Mas eu nunca deiDE JOGAR RUGBY POR
gente sempre fala
xei de ficar com
que é um esporte
alguém por causa
ACHAREM VIOLENTO.
que serve pra todo
do rugby. Eu nunELES NUNCA GOSTARAM
mundo, para o
ca ouvi um “Eu ou
alto, magro, gordo
o rugby”, e se oue baixinho. Eu acho que não só pra mim, visse, escolheria o rugby.
mas pra todo mundo, rótulo é ruim. Não
Quanto ao apoio da família, minha
é porque a pessoa é forte que ela tem que mãe e meu pai já me pediram pra parar
lutar, não é por ser alta que eu vou jogar de jogar rugby. Eles nunca gostaram. Eu
basquete... Essas coisas me incomodam, cheguei a ficar uns três meses sem joeu não gosto que me julguem pela mi- gar. Minha mãe assistiu a um treino, viu
nha aparência.
como era, e nunca mais voltou. Meu pai
Já fizeram brincadeirinha no sentido foi a uns dois ou três jogos, mas nunca
da sexualidade, tipo: “Ah, se joga rugby, foi fã. Os dois já me pediram pra sair,
gosta de menina”. E eu sou hétero. Me dizendo que não era pra mim, porque eu
ofende por conta do rótulo, mas não por- sou muito baixinha e tal. Ela diz: “Isso
que eu jogo. Até porque, deve ter milha- não é esporte pra gente”. Já apitando, ela
res de bailarinas que são lésbicas. Esse vai em todas. Ela diz: “Agora que você
tipo de brincadeira ou atitude não acon- não cai no chão, eu gosto”.
teceu muitas vezes, mas me incomoda.
Hoje em dia, não é que eu não tento
Eu nunca tive problema com namo- mais. Na minha época de colégio, como
rado por conta do rugby. Não tive mui- entramos três de uma vez, a gente meio
tos namorados, mas todos me apoiaram que contaminou a escola. Muita gensempre. O meu primeiro namorado eu te entrou nos treinos na época em que
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RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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117
entrevistas
a gente começou, poucos ficaram. Hoje fazer isso. Elas não entendem por que
em dia, convido, se a pessoa se interessa, você faz. Se eu conto que viajo tantas
eu explico como é, indico algum clube. horas pra apitar um jogo ou ir lá torcer,
Mas o rugby não é um esporte que tira elas acham estranho, porque no sábado
um pouquinho de você, é um esporte à tarde as pessoas querem tomar sorvete
em que você tem que se dedicar muito. no shopping, e eu quero ir para o SPAC
E hoje, com quase 30 anos, as pessoas ver rugby.
têm muitas responsabilidades. Acho que
No futuro, não quero jogar, mas quequem começa a jogar nessa idade gosta ro continuar apitando e, se puder, quemuito. O que acontece, geralmente, é da ro começar a apitar fora. Aqui no Brasil,
pessoa se empolgar, passar um ou dois eu estou apitando todos os torneios inmeses, e vai larteressantes, quegando porque está
ro apitar o Super
chegando
tarde
10 um dia, quem
NO RUGBY VOCÊ TEM
em casa, ou paga
sabe. Mas gostaUMA DISCIPLINA DE
muito caro etc.
ria de começar a
ACORDAR CEDO, PRA IR
Eu não tenho
apitar alguns jotanta amiga fora
gos pela América
MALHAR OU CORRER.
do rugby. Não sei
do Sul. Penso nas
AS PESSOAS ACHAM
se é bom ou se não
Olimpíadas, mas
QUE
VOCÊ
É
LOUCA
POR
é. Isso é complipreciso dar muitos
FAZER ISSO
cado. Tenho uma
passos antes de
amiga que jogou
chegar até lá. Se
uns quatro anos e,
eu estiver lá banquando a gente conversa, a gente sem- deirando eu já vou estar muito feliz. Mas
pre fala disso, como o rugby consome falta experiência, apito só há três anos
muito de nosso tempo, a gente acaba e isso é pouco tempo. Graças a Deus,
deixando meio que de lado as outras aqui em São Paulo tem muitos jogos, e
amizades fora dele, e as pessoas vão se eu consigo apitar sempre o mínimo de
afastando, não tem como. Mas ela culti- horas que é preciso pra subir de nível.
va esses amigos, e eu acho isso muito le- Existem os cursos que você tem que fagal. Eu, por exemplo, não consigo trocar. zer, mas vai muito mais do preparo e dos
Todo sábado estou almoçando no SPAC apoios dos educadores que te levam ou
com as meninas, dando risada de coisas não pra determinados campeonatos, e
que aconteceram há cinco anos atrás. Eu as portas vão se abrindo.
gosto de estar com essas pessoas. Tenho
Eu me espelho muito no Ricardo Sanpouquíssimos amigos que não são do ru- tana. Também gosto muito do Henrique,
gby, mais é família. E as que não são do mas eu tenho um carinho superespecial
rugby são completamente diferentes.
pelo Ricardo, a gente é bem parecido,
No rugby você tem uma disciplina de me vejo muito nele na forma como ele
acordar cedo, pra ir malhar ou correr. traça os objetivos dele e quero me pareAs pessoas acham que você é louca por cer muito com ele na arbitragem.
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RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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Considerações finais
p
Para finalizar essa reportagem, a autora procurou interpretar os relatos coletados durante o trabalho e também a
sua vivência de rugby. É preciso valorizar tanto o corpus teórico quanto as palavras de quem compartilhou um pouco
da vivência e, claro, o próprio cotidiano
dentro do esporte.
As produções acadêmicas sobre gênero e feminismo, além das discussões
em sala de aula, deram base para discutir, desmistificar algumas “verdades”
e adquirir um novo ponto de vista para
o tema. São novas possibilidades de enxergar o machismo diário, tão permeado em nossa sociedade, e poder comprová-las com cinco exemplos vivenciados no rugby foi uma oportunidade
única. São raros os estudos de gênero
dentro da modalidade, que teve sua popularização tão recente.
Ao investigar a vida e a carreira esportiva dessas cinco atletas, é possível
compreender um terreno fértil a ser
trabalhado, onde é possível analisar
discursos e representações e apontar
marcas da luta delas em jogar um esporte pouco conhecido, pouco estimulado, mas que tem grande crescimento
e, principalmente, ensina valores imRUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
121
considerações finais
portantes dentro e fora do gramado.
A partir desse trabalho, pode-se expor a pessoas de fora do circuito rugbier
o que significa praticar este esporte, ainda mais sendo mulher; o espírito rugbier
de amizade, respeito e garra; a luta (intencional ou não) contra o machismo que
condena e destila preconceitos a quem
pratica a modalidade; e como isso tudo é
trabalhado a respeito dos corpos.
Pode-se perceber o orgulho que estas
meninas entrevistadas sentem da prática esportiva que escolheram, bem como
as consequências dessa escolha: sejam
boas, como viagens, amizades, namoros,
vitórias; sejam “ruins”, como lesões, hematomas, derrotas e perrengues. Os discursos de força, de resistência às dores, o
“sangue nos olhos”, caracterizaram o potencial viril que elas desenvolvem durante os jogos. Entretanto, notamos, em função desse discurso de masculinização, a
necessidade de algumas de reafirmarem
sua sexualidade e vaidade, criando uma
identidade de gênero feminina que segue
o padrão feminino e heteronormativo.
Essas mulheres foram escolhidas por
serem, em alguns quesitos, diferentes
umas das outras. Mas seus discursos puderam aproximá-las quanto à intenção
principal deste trabalho: apontar o machismo dentro e fora do rugby. Todas,
em algum momento de suas vidas, sofreram algum tipo de preconceito dentro da modalidade, seja ele de forma velada ou não. Todas, em algum momento,
foram deixadas em segundo plano junto
com suas colegas de time, o que confirma a suspeita da autora.
Além de jogarem rugby, percebemos
que a maioria das entrevistadas não vive
122 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
de rugby. Isso mostra quão amadora é a
modalidade e, por isso, tão difícil de ser
conciliada com vida fora do esporte. Jogar rugby exige uma postura “profissional” de comprometimento, que inclui
participar de treinos, ter disposição para
viajar, reforço fora dos horários coletivos
do time (como ir à academia). Levar essa
rotina rígida juntamente com trabalho,
estudo e, como o caso da Diva, filho, é
bastante complicado. A permanência da
mulher no rugby depende da negociação
com o mundo fora dele, o que acaba por
tirar algumas atletas do esporte.
Uma das intenções desta pesquisa foi
mostrar o real perfil da mulher rugbier
brasileira: guerreira, forte, determinada,
sem deixar de ter os dilemas, vaidades e
características de mulher. Essas características podem ser, muitas vezes, contraditórias, o que faz dessas mulheres entrevistadas (assim como as milhares que
não foram contempladas neste trabalho)
únicas e especiais.
Por fim, estudar o rugby feminino não
termina por aqui, pois este é um esporte
sobre o qual pouco se tem informações,
com uma imensa luta de sobrevivência e
popularização pela frente. É preciso documentar e expor os problemas para que
seja possível achar uma solução de equilíbrio com a modalidade masculina, seja
na cultura rugbier, na organização dos
clubes e entidades ou na mídia. As teorias feministas e de gênero vêm para somar nessa batalha, como uma ferramenta importante para o descobrimento dos
potenciais femininos no esporte. E que
esse estudo sirva de motivação para outras pesquisadoras. E que ele seja continuado nos próximos anos.
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
•
123
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2013.
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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anexo
Anexo
roteiro de perguntas
1-HISTÓRIA NO RUGBY
• Como e quando começou?
• Como é sua relação com o time?
• Como é a relação com o time masculino
do seu clube?
• O que seus parentes e amigos falaram
quando você entrou no rugby?
masculinos por jogar rugby?
• Acha que seu clube dá preferência à modalidade masculina?
• Como acha que os jogadores e seu clube
as veem?
• Acha que os jogadores e seu clube subestimam o rugby feminino?
2-COMO SE VÊ JOGANDO?
• Você se acha feminina ao jogar rugby?
• Acha que seu corpo ficou mais próximo
da identidade masculina após ingressar
no rugby?
• Se sim, isso ajuda no desempenho?
• Acha que o corpo da jogadora de rugby
deve se aproximar do ideal de corpo masculino?
• Sofre com problemas tipicamente femininos, como TPM e menstruação?
• Seu corpo está diferente do das suas amigas que não jogam rugby?
• Acha que os impactos do rugby podem
trazer problemas de saúde na gravidez?
4-RELACIONAMENTOS
E SEXUALIDADE
• O que você acha das lésbicas que jogam
rugby? Acha que influencia o desempenho delas?
• Como você vê o lesbianismo no rugby?
• Jogar rugby já atrapalhou algum relacionamento amoroso seu?
3-RELAÇÃO COM O
RUGBY MASCULINO
• Já sofreu preconceito/bullying de atletas
126 • RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
5- VOCÊ ACHA QUE É POSSÍVEL SER
FEMININA JOGANDO RUGBY?
6- PLANOS PARA O FUTURO
• Pretende disputar vaga na Seleção para
as Olimpíadas em 2016?
• Quais as próximas ações junto com seu
time, a curto prazo?
• Quando parar de jogar rugby, vai querer
continuar envolvida com o esporte?
RUGBY DE CALCINHA – A mulher dentro do uniforme
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sessão
A mulher dentro do uniforme