Patrimônios Vivos - Mapa Cultural de Pernambuco

Transcrição

Patrimônios Vivos - Mapa Cultural de Pernambuco
Patrimônios
de
Pernambuco
3
Maria Alice Amorim
Patrimônios
de
Pernambuco
Fundarpe, 2010
Copyright © Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco
Governador de Pernambuco | Eduardo Campos
Coordenação editorial: Maria Acselrad
Vice-governador | João Lyra Neto
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Pesquisa e textos: Maria Alice Amorim
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Coordenador de Artes Plásticas e Artes Gráficas | Félix Farfan
Coordenadora de Desenvolvimento Institucional | Irani do Carmo
Coordenadora de Patrimônio Histórico | Fátima Tigre
Chefe da Unidade de Informática | Luciano Magalhães
A524p Amorim, Maria Alice.
Patrimônios vivos de Pernambuco/ Maria Alice
Amorim; apresentação de Luciana Azevedo; organização
de Maria Acselrad – Recife: FUNDARPE, 2010.
116p. il. 23cm.
ISBN 978-85-7240-089-3
1. Patrimônios vivos – Pernambuco. 2. Patrimônio
imaterial. 3. Salvaguarda. I. Azevedo, Luciana. II.
Acselrad, Maria. III. Título.
CDU 316.7
5
Texto Institucional · 6
Ana das Carrancas · 15
Luciana Azevedo
Camarão · 19
Patrimônio Vivo em Contexto · 9
Manuel Eudócio · 23
Maria Acselrad
J. Borges · 27
Cartograma de Mestres e Grupos · 12
Nuca · 31
Canhoto da Paraíba · 35
Referências · 112
Maracatu Leão Coroado · 39
Zé do Carmo · 43
Banda Musical Curica · 47
Lia de Itamaracá · 51
Dila · 55
Manuel Salustiano · 59
Índia Morena · 63
Homem da Meia-Noite · 67
José Costa Leite · 71
Zezinho de Tracunhaém · 75
Confraria do Rosário · 79
Fernando Spencer · 83
Teatro Experimental de Arte · 87
Caboclinho Sete Flexas · 91
Selma do Coco · 95
Maestro Nunes · 99
Clube Indígena Canindé · 103
Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu · 107
6
Documentar, através deste livro, a trajetória dos
“Patrimônios Vivos de Pernambuco” e, consequentemente,
seus múltiplos saberes, histórias e memórias, representa
para nós, da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico
de Pernambuco – Fundarpe –, um momento oportuno de
reconhecer, salvaguardar e difundir parte da diversidade
cultural que constitui Pernambuco. Mais do que isso, reforça
o nosso compromisso em promover e proteger o patrimônio
cultural imaterial, contido nas tradições, no folclore, nos
saberes, nas línguas, nas festas e em diversas outras
manifestações, fortalecendo as “referências culturais” dos
grupos sociais em sua heterogeneidade e complexidade.
Cientes da importância dessa categoria do patrimônio,
temos, nos últimos anos, nos esforçado para criar e
consolidar instrumentos e mecanismos, de maneira coletiva
e compartilhada, que visam garantir o seu reconhecimento,
defesa e, acima de tudo, viabilidade. Assim, no ano de
2002, o Governo do Estado de Pernambuco lançou,
de maneira pioneira no Brasil, a “Lei do Registro do
Patrimônio Vivo”, possibilitando o reconhecimento e o
apoio aos mestres e grupos da cultura popular e tradicional,
avançando para uma concepção do patrimônio entendido
como “o conjunto dos bens culturais, referente às
identidades e memórias coletivas”. Nesse contexto, formas
de expressão, saberes, ofícios e modos de fazer ganharam
um novo espaço, quanto à apreensão dos seus sentidos e
significados.
Hoje, nosso desafio é asseverar a inserção dos nossos
patrimônios vivos na Política Cultural do Estado, o que
temos feito através da realização de oficinas de transmissão
de saberes, exposições, apresentações culturais, palestras,
entre outras ações, que para nós significa a apropriação
simbólica e o uso sustentável dos recursos patrimoniais
direcionados à preservação e ao desenvolvimento
7
econômico, social e cultural do Estado. Nessa trajetória,
articulamos diversas ações institucionais que possibilitaram
investir em atividades como pesquisa, documentação,
proteção e promoção desses patrimônios vivos.
Portanto, ao dar corpo a testemunhos de pernambucanos
e pernambucanas, este trabalho ousa servir como um
memorial, um “pergaminho identitário” fundamental para a
construção do futuro. Um futuro que começa na percepção
do que fomos e de quem somos, possibilitados pela
“consciência patrimonial”.
Sem dúvida, esta valiosa e inédita publicação é mais um
fruto desses desafios! Queremos compartilhar com vocês,
leitores – e por que não “patrimônios vivos”? –, um pouco
das nossas descobertas e redescobertas. Saibam, desde já,
que o livro em mãos é resultado de um trabalho de pesquisa
e registro, de um olhar atento e sensível, e incompleto,
por essência, pois a cada ano serão incorporados novos
patrimônios vivos. Mais do que registrar, portanto, estas
linhas e imagens que seguem nos possibilitam mergulhar
num mosaico de experiências que marcaram e marcam
as vidas de grandes mestres e grupos da cultura popular
e tradicional, verdadeiros tesouros vivos, guardiões e
sacerdotes de memórias e saberes. Em seus testemunhos,
são revelados o simbólico, o imaginário e o real, numa
dinâmica objetiva e subjetiva que articula um saber fazer,
conhecimentos e empreendimentos sociais desafiadores à
nossa maneira de pensar e agir. Um rico universo em que
as pessoas se expressam e se relacionam com o mundo;
que comunica vida, fatos, pensamentos, sonhos, ideias e
sentimentos. Boa leitura!
Luciana Azevedo
Diretora-presidente da Fundação do Patrimônio
Histórico e Artístico de Pernambuco.
8
9
O Patrimônio Vivo em Contexto
Maria Acselrad1
Um dos instrumentos mais relevantes das políticas públicas
voltadas para o reconhecimento das culturas populares
desenvolvidas no Brasil, nas últimas décadas, tem sido as
patrimonializações de bens culturais imateriais. É inegável que para
o enriquecimento desse processo a circulação de documentos,
como a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Popular e
Tradicional, de 1989, e, mais tarde, a Convenção para Salvaguarda
do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, ambas promulgadas
pela UNESCO, e das quais o Brasil é signatário, foram decisivas
para a reverberação de um debate público sobre o assunto.
A resposta a esse movimento, por parte dos órgãos gestores
de cultura, deu-se através da criação de instrumentos jurídicos
apropriados que procuravam atender à demanda que se impunha
em relação à lacuna gerada pelas políticas patrimoniais até aquele
momento, no que diz respeito à dimensão imaterial do patrimônio
Vale ressaltar, de acordo com Barbosa e Couceiro (2008), que
algumas experiências, consideradas exemplares, de programas
nacionais de salvaguarda – realizadas por países como Japão,
Tailândia, Filipinas e Romênia, conhecidas como Tesouros
Humanos Vivos – em prática desde o fim da Segunda Guerra
Mundial, contribuíram de forma significativa para a ampliação
das agendas políticas patrimoniais no mundo, inserindo o tema
da salvaguarda através da transmissão de saberes e apoio direto
a mestres e grupos, na pauta de diversos debates públicos de
âmbito nacional. Num mundo cada vez mais globalizado, em
constante e acelerado processo de transformação, a preocupação
com as especificidades culturais alçava a um novo patamar a
discussão sobre o patrimônio cultural.
Nesse contexto, as políticas de patrimonialização de pessoas
ou grupos da cultura popular e tradicional, amparadas por
leis de registro estaduais, surgem no rastro de uma série de
discussões acerca da salvaguarda do patrimônio imaterial que
encontram repercussão no âmbito local. Em Pernambuco, a
cultural brasileiro.
Lei do Patrimônio Vivo3 surge como uma tentativa pioneira,
A repercussão dessa discussão, no cenário brasileiro, ganha
pública estadual, o instrumento do registro, procurando
destaque com a criação do Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000,
ápice de um longo processo de debates políticos e intelectuais, que
institui o Registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial e cria
o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, abrindo um espaço
para o reconhecimento, por parte do Estado, de bens de caráter
processual e dinâmico como patrimônio cultural do Brasil, tendo
“como referência a continuidade histórica do bem e sua relevância
nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade
no contexto brasileiro, de instituir no âmbito da administração
fomentar diretamente as atividades de pessoas e grupos culturais
representantes da cultura popular e tradicional, contribuindo
para a perpetuação de suas atividades. O registro prevê a
implantação de ações de formação, difusão, documentação e
acompanhamento das atividades desenvolvidas pelos premiados.
Nesse conjunto de ações, o processo de transmissão de saberes
assume papel de destaque na salvaguarda das expressões,
celebrações e ofícios aos quais os mestres e grupos encontram-se
brasileira”. 2
vinculados, através do repasse de seus conhecimentos às novas
1 Antropóloga e professora do Depto. de Teoria da Arte e Expressão
Artística da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE.
dela.
2 Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000 in: Patrimônio imaterial no
Brasil – legislação e políticas estaduais.VIVEIROS DE CASTRO e FONSECA,
Maria Laura e Maria Cecília Londres. Brasília: UNESCO, Educarte, 2008.
gerações de alunos e aprendizes, em sua comunidade ou fora
3 LEI nº 12.196 de 02 de maio de 2002. Idem.
10
Nos últimos anos, o Governo de Pernambuco, através da Fundação
saúde debilitado, para continuar efetivamente trabalhando, já têm
do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe –,
em seus filhos um caminho que aponta para o futuro da tradição.
vem realizando oficinas, palestras, aulas-espetáculo, apresentações
culturais, homenagens, exposições, numa experiência inédita de
O universo dos mestres e grupos contemplados abrange
inserção dos patrimônios vivos na política de cultura do estado.
expressões das diversas linguagens artísticas, dos ofícios artesanais,
Essas ações, cujos formatos diferem de acordo com a expressão
da religiosidade popular, entre outras manifestações culturais.
cultural, idade e disponibilidade do mestre, revelam algumas
Dentre os grupos registrados até o momento, podemos encontrar
questões importantes para a reflexão sobre a transmissão de
de forma predominante manifestações culturais ligadas ao
saberes populares e tradicionais, quando fomentada pelas
Carnaval: um clube de frevo, dois maracatus de baque virado
políticas públicas de cultura, por exemplo: 1) o reconhecimento da
e dois caboclinhos. Também foram registrados: uma banda de
importância de serem preservadas as singularidades das tradições
música, um grupo de teatro e uma irmandade religiosa. Entre
culturais representadas pelos mestres e grupos contemplados;
os mestres, encontramos uma diversidade de tradições culturais,
2) a valorização da diversidade de técnicas, conteúdos e formas
através do registro de representantes da ciranda, do coco, da
de repasse praticadas pelos mestres, características de processos
xilogravura, da cerâmica, do forró, do cordel, do circo, da pintura,
pedagógicos identificados com os princípios da educação não
do cinema, entre outras.
formal; e 3) o entendimento de que o processo de aprendizado
do mestre é fator relevante para compreensão do seu processo
Segundo Gonçalves (2003), se relativizarmos a noção moderna de
de transmissão de saberes, entre outros aspectos. Todos esses
patrimônio – criada no século XVIII, com o surgimento dos estados
fatores implicam na concepção de que ações de salvaguarda não
nacionais –, podemos encontrar correspondência na experiência
devem prescindir dos atores sociais que se encontram em foco e
universal do “colecionamento”, prática comum entre muitos povos
que isso vem a ser decisivo para que a própria produção de sentido
e comunidades, ao longo da história da humanidade. A atribuição
das tradições por eles representadas se atualize e se perpetue no
de valor, onipresente nos processos de identificação e registro do
tempo e no espaço.
patrimônio, faz com que essa tendência ao “colecionamento”
venha a oferecer um panorama daquilo que de mais representativo
Em Pernambuco, entre 2005 e 2010, foram registrados 24
e singular compõe o patrimônio cultural de um povo. São histórias
patrimônios vivos. Dentre eles, 16 mestres e oito grupos, através
de vida, processos de aprendizado, dinâmicas de trabalho, escolhas
da publicação de cinco editais. O lançamento do primeiro edital
estéticas, processos criativos e de transmissão de saberes de nossos
rendeu excepcionalmente a premiação de 12 mestres4. Nos anos
patrimônios vivos, compartilhados com a pesquisadora Maria
subsequentes, três patrimônios vivos foram eleitos a cada edital
Alice Amorim e com o fotógrafo Luca Barreto que, através desta
publicado, através de um processo de inscrições que já soma mais
publicação, temos o imenso prazer de apresentar.
de 250 candidaturas ao registro. Em 2008, Pernambuco perdeu
três mestres – Ana das Carrancas, Canhoto da Paraíba e Manoel
Sendo assim, é com muita alegria que oferecemos aos nossos
Salustiano –, e hoje conta com 21 patrimônios vivos, a maioria em
patrimônios vivos este trabalho, em retribuição a toda uma vida
atividade; e mesmo aqueles que se encontram com o estado de
dedicada à cultura.
4 A publicação tardia do Decreto nº 27.503, de 27 de dezembro de
2004, que traz a regulamentação da Lei, gerou este acúmulo.
11
Recife, novembro de 2009.
12
13
Legenda
Ano da
Nome Artístico
Tradição cultural
Data de nascimento
Cidade
1
Ana das Carrancas
Artesanato em cerâmica
18.02.1928
Petrolina
2005
2
Banda Musical Curica
Banda filarmônica
09.08.1848
Goiana
2005
3
Caboclinho Sete Flexas
Caboclinho
Fundado em 1973
Recife
2008
4
Camarão
Forró
23.06.1940
Recife
2005
5
Canhoto da Paraíba
Choro
17.03.1931
Recife
2005
6
Clube Indígena Canindé
Caboclinho
05.05.1897
Recife
2009
7
Confraria do Rosário
Irmandade religiosa
Fundada provavelmente em 1777
Floresta
2007
8
Dila
Xilogravura e Cordel
23.09.1937
Caruaru
2005
9
Fernando Spencer
Cinema
17.01.1927
Recife
2007
10
Homem da Meia-Noite
Clube de frevo
01.01.1960
Olinda
2006
11
Índia Morena
Circo
13.07.1943
Jaboatão dos Guararapes
2006
12
J.Borges
Xilogravura e Cordel
20.12.1935
Bezerros
2005
13
José Costa Leite
Xilogravura e Cordel
27.07.1927
Condado
2006
14
Lia de Itamaracá
Ciranda
12.01.1944
Ilha de Itamaracá
2005
15
Maestro Nunes
Frevo
22.06.1931
Recife
2009
16
Manuel Eudócio
Artesanato em cerâmica
28.01.1931
Caruaru
2005
17
Manuel Salustiano
12.11.1945
Olinda
2005
18
Maracatu Estrela Brilhante
Maracatu de baque virado
Fundado provavelmente em 1824
Igarassu
2009
19
Maracatu Leão Coroado
Maracatu de baque virado
08.12.1863
Olinda
2005
20
Nuca
Artesanato em Cerâmica
05.08.1937
Tracunhaém
2005
21
Selma do Coco
Coco de roda
10.12.1929
Olinda
2008
22
Teatro Experimental de Arte
Teatro
Fundado em 1969
Caruaru
2008
23
Zé do Carmo
Pintura e escultura
19.11.1933
Goiana
2005
24
Zezinho de Tracunhaém
Artesanato em cerâmica
05.07.1939
Tracunhaém
2007
Rabeca, cavalo-marinho
e maracatu
titulação
14
15
Ana das
Carrancas
16
D
o extremo oeste pernambucano, espiando as terras do
Piauí, saiu a louceira Ana Leopoldina Santos à procura de
sobrevivência, e o que conseguiu cavar foi bem mais que isso:
inspiração, talento, fama. Nascida em 18 de fevereiro de 1923,
no distrito de Santa Filomena, povoação encravada na Serra do
Inácio, à época pertencente ao município de Ouricuri, foram
as verdes águas do Velho Chico que mais tarde viram nascer a
artista. Serviu de mote criador a paisagem exuberante povoada
de nego d’água, maus espíritos, vapor, paquete, remeiros. De um
lado, Pernambuco. Do outro, a Bahia. No meio, o jorro inspirador.
Nas margens, a lama sagrada. Era corriqueiro apreciar esculturas
zoomorfas e antropomorfas na proa das embarcações, imagens
que se repetiam nos barcos, há mais de um século, e no artesanato
do Vale do São Francisco. Delas, um ícone se chamava Guarany,
outro atende por Ana, a filha de Joaquim Inácio de Lima e Maria
Leopoldina dos Santos.
Ainda criança, tinha sete anos e já sabia fazer e vender louça
utilitária – pote, moringa, panela, cuscuzeiro, jarro –, uma das
tradições ouricurienses, que se mantém com as ceramistas da
comunidade do Pradicó. Vendia “panelinha de guisado, boi zebu,
cavalinho com vaqueiro amontado, santinho de lapinha”. Ou seja,
moldava as peças de louça e mais uns tantos brinquedinhos para
ganhar uns trocados e ajudar a mãe louceira, com quem teve os
17
Maria da Cruz dá continuidade ao estilo da mãe,
Ana das Carrancas, com quem aprendeu o ofício
primeiros ensinamentos na modelagem do barro. Aos 22 anos
casou-se, teve duas filhas – Ana Maria e Maria da Cruz – e em
seguida ficou viúva. Um ano depois de enviuvar, Ana se casou com
o piauiense José Vicente de Barros. Moravam, então, em Picos.
A vida não era fácil naquelas terras do sertão do Araripe, em que
alternavam bom inverno e longos períodos de estiagem. Por esse
motivo, incluiu-se no rol de migrantes que corriam para Petrolina
em busca de um oásis.
Era 1954. Chegou à cidade e começou vendendo aribé, panela,
pote, presépio, burrinho, pato, boi, cabra. Depois da inspiração
saída das águas do Velho Chico, nunca mais foi a mesma. As
emblemáticas carrancas começaram a ganhar força e, a partir de
1970, tornaram-se disputadíssimas, graças, inclusive, ao trabalho
de pesquisa sobre o artesanato pernambucano que os técnicos
em turismo Olímpio Bonald Neto e Francisco Bandeira de Melo
estavam realizando pelo sertão, a serviço da Fundarpe. Ambos
ficaram impressionados com as carrancas da ceramista. A trajetória
artística de Ana Leopoldina ficou marcada, daí por diante – e para
sempre – pela mitopoética ribeirinha, a ponto de adotar o nome
artístico que correu mundo: Ana das Carrancas.
18
A carranca mais antiga, da própria produção, data de 1963, quando
ainda era conhecida por Ana Louceira ou Ana do Cego. Sobre a
primeira peça, a carranca cangula, ela mesma contou: estava na
beira do rio e pensou que poderia fazer um barco, colocar um
velho, vendedor de jerimum, com um menino ajudante, umas
bolinhas para fingir que era o jerimum, uma cobertura de palha e,
claro, a carranca na proa do barco. Segundo Ana, essa invenção
“deu sorte”. E assim, de tão bem-sucedida, a cangula ganha
réplicas ainda hoje. Outras peças, igualmente difundidas, também
trouxeram sorte: carranca-cinzeiro, com três caras, jardineira,
totem. Aliás, não se pode falar em Ana sem associá-la às figuras
totêmicas modeladas no barro, em forma de animal e de gente,
alvo de chacota dos feirantes, quando circularam a primeira vez na
feira livre de Petrolina. Ana não se intimidou. Ao contrário, valeu-se
do imaginário da comunidade ribeirinha para moldar na cerâmica
um dos ícones da cultura local. Um casamento bem-sucedido
entre temática e talento. Nesse mesmo ano, 1963, inaugura-se
a Biblioteca Municipal e as carrancas de Ana fazem sucesso,
distribuídas a título de suvenir.
Após levar o nome de Petrolina para feiras de artesanato nacionais
e internacionais, figurar em galerias de arte e museus, alternar
fama e ostracismo, o grande sonho da mulher oleira tornou-se vivo
e palpável em setembro de 2000, mesmo ano em que conquistou
o título de cidadã petrolinense. É inaugurado o Centro de Arte
e Cultura Ana das Carrancas, com loja, ateliê e exposição de
antigas carrancas, inclusive a de 1963. Tudo no ambiente ressalta a
trajetória da ceramista. O olho vazado homenageia o marido, cego
de nascença, Zé Vicente, o amassador do barro. As filhas Ângela
Aparecida de Lima – adotiva – e Maria da Cruz Santos modelam
esculturas, tal qual a mãe. A filha Ana Maria é casada com o
escultor de carrancas em madeira, Domingos Lopes, ou Lopes de
Petrolina, um dos seguidores do estilo de Guarany. Mesmo tendo
falecido em 1º de outubro de 2008, na cidade de Petrolina, a família
vive imersa no rico imaginário da ceramista, que sempre afirmava,
orgulhosa: “meu sangue é negro, mas minha alma é de barro”.
19
Camarão
20
Q
uando Antonio Ferreira da Silva e Josefa Alves Freire viram
nascer o filho, não imaginavam que ali começava a trajetória
de um grande sanfoneiro do agreste. Na verdade, o início de
tudo tem a influência do pai, exímio tocador de oito baixos, a
quem o filho, desde criança, passou a acompanhar nas andanças
musicais. Na labuta cotidiana, enquanto o sanfoneiro ia para a
roça, o filho de sete anos matreiramente ia experimentando os
sons da sanfoninha pé-de-bode, até o dia em que o pai descobriu
as artes da criança engenhosa, emocionou-se e passou a cultivar
o talento do herdeiro, levando-o para as festas, onde o garoto
prestava atenção nos músicos e depois, em casa, tirava os mesmos
sons no instrumento. O menino conquistou definitivamente o
pai executando, de ouvido, os acordes de Maria Bonita, um dos
maiores sucessos àquela época. E o mestre Camarão, ou Reginaldo
Alves Ferreira, tem consciência de que foram decisivos esses
primeiros momentos da infância dedicados à música. Natural de
Brejo da Madre de Deus, é também emblemático o próprio dia do
nascimento: 23 de junho de 1940, véspera de São João.
Foi em Caruaru – a mais importante cidade do Agreste
pernambucano, protagonista de uma das mais tradicionais festas
Camarão ministra aula de acordes
21
juninas do Estado e contemplada, ainda na década de 1970, com
Inventivo desde o princípio, foi o mestre quem criou, em 1968, a
o título de Capital do Forró – que Camarão construiu as bases
primeira banda de forró no país, a Bandinha do Camarão; quem
da carreira artística. Começou a trabalhar, aos 20 anos, na Rádio
introduziu sopros (tuba, clarinete, trombone e piston) em banda
Difusora daquela cidade, por onde passaram importantes nomes
de forró; quem criou a Orquestra Sanfônica de Caruaru, em que
da música brasileira, como Sivuca e Hermeto Pascoal. Foi na mesma
diversas sanfonas executam não só variados ritmos juninos, mas
rádio que ganhou o apelido, dado por Jacinto Silva. Luiz Gonzaga
também frevo e maracatu. Norteando-se pela música desde
o conheceu na difusora, tocando como profissional. Tinha 18 anos.
a primeira infância, o mestre chegou a acompanhar o rei do
Graças à amizade surgida entre ambos, o rei do baião produziu
baião, após conhecê-lo num programa da Difusora de Caruaru,
dois discos de Camarão, pela RCA Victor, em 1969 e 1970.
mesma rádio por onde passaram músicos renomados e onde
Gonzaga foi, na verdade, o seu grande mestre, embora nunca
surgiu o seu primeiro conjunto musical, ou seja, o primeiro trio
esqueça a importância dos ensinamentos paternos. Na discografia,
de Camarão, o Trio Nortista, liderado por ele, um dos maiores
o artista contabiliza, ao lado dessa feliz parceria com Luiz Gonzaga,
sanfoneiros nordestinos, tocador de forró nas latadas das fazendas
28 discos, entre long plays, compactos, 78 rotações e CDs, a
e arraiais juninos, experiente forrozeiro de animados grupos
maioria fora de catálogo. É de 1998 o CD Camarão Plays forró,
pés-de-serra. O trio era formado com os músicos Jacinto Silva e
produzido na Inglaterra e com circulação exclusiva na Europa.
Ivanildo Leite. Afinadíssimo na sanfona, acompanhou grandes
22
nomes da música nordestina, a exemplo de Sivuca, Dominguinhos,
Santanna, Marinês, Jackson do Pandeiro, Arlindo dos Oito Baixos.
O repertório de Camarão é, como manda a tradição da sanfona
nordestina, generoso nos ritmos regionais – xote, xaxado, forró,
baião e arrasta-pé.
O nome do Maestro Camarão corre mundo. Em 1961, foi
a sanfona dele que representou Pernambuco no primeiro
aniversário de Brasília, a convite do presidente Jânio Quadros. Viaja
acompanhado do Trio Nortista, que toca, então, em vários eventos
comemorativos. Tem participado de encontros de acordeonistas
pelo país, graças ao talento e maestria com que empunha a
sanfona. Em 2004, participa do projeto O Brasil da Sanfona, de
Myriam Taubkin, que produziu dois CDs, um livro de fotografias
e um DVD. Fixado no Recife há quase 30 anos, mantém a Escola
Acordeon de Ouro, fundada há uma década no bairro de Areias,
onde já formou diversos músicos nas artes dessa invenção vienense
de 1829, que, no Brasil, ganhou um sotaque bem nordestino e
fez fama. Para facilitar a transmissão de conhecimentos, elaborou
uma cartilha, em que registra importantes informações acerca
dos instrumentos de fole, do manejo do fole, como escolher e
manusear o acordeom, além de noções elementares de música.
Marcelo de Feira Nova, Julinho do Acordeom, Ellan Ricard, Gleyson
Alves, Juquinha, Deivison, Diego Reis e Cezinha do Acordeom são
alguns dos reconhecidos sanfoneiros que passaram pela escola do
mestre. Em parceria com Salatiel d’Camarão, desenvolve o projeto
De pai para filho, com a realização de shows musicais, e, ainda,
Sanfona nas escolas, voltado para oficinas em escolas públicas.
Certamente inspirado na atitude do próprio pai, Camarão estimula
e oferece contribuição decisiva à carreira de iniciantes e, inclusive,
à do próprio filho, parceiro e continuador mais que legítimo da
obra do mestre.
23
Manuel Eudócio
24
C
om voz pausada e dedos firmes na modelagem, é assim que o
primeiro galante do reisado vai debulhando os grãos de uma
vida dedicada à arte e à agricultura. É pelas mãos e pela oralidade
que saem as imagens trazidas da memória de um tempo em
que conviviam os amigos Vitalino, Zé Caboclo e Manuel Eudócio
Rodrigues. Sentado num banco de madeira, tem sempre diante
de si uma mesa, barro molhado e ferramentas para fazer as
esculturas, que, começadas no início do dia, por volta das cinco
da manhã, precisam ser concluídos ao final da mesma jornada.
As mãos não param, enquanto as lembranças emergem. Quase
aos 80 anos, o narrador, mestre Eudócio, exibe o vigor mental e
as habilidades manuais invejáveis de quem teve sempre uma vida
regrada, dedicada à família, ao plantio e, sobretudo, à catarse da
atividade artística iniciada ainda na infância, com a avó louceira
Tereza Maria da Conceição. De 28 de janeiro de 1931, nascido e
criado no Alto do Moura, Caruaru, o filho de Eudocio Rodrigues
de Oliveira e Maria Tereza da Conceição desde criança trabalha na
agricultura e ocupa as mãos esculpindo o barro.
Frequentou apenas seis meses de escola e é com o auxílio
das mãos e das experiências que vai descrevendo o que tem
vivido esses anos todos no Alto do Moura. São sete décadas de
25
aprimoramento, de adaptação ao gosto da freguesia e de convívio
com fregueses alemães, franceses, portugueses, americanos. De
viagens ao Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Portugal. Lembra
que as primeiras peças foram pintadas a dedo e, onde o dedo não
cabia, pintadas com auxílio de uma varinha. Mais adiante, resolveu
deixar peças ao natural, depois voltou a pintá-las. Gosta de fazer
bonecos grandes, coloridos, embora menos vendáveis. A queima
das esculturas sempre foi num forno do quintal, quinzenalmente,
exceto quando há encomenda urgente. De preferência, o forno
deve estar cheio, pois do contrário fica muito dispendioso.
O que não admite, sob hipótese alguma, é a utilização de fôrma
para moldar as esculturas. As experiências cotidianas sempre
serviram de fio condutor nas criações inspiradas: batizado,
enterro, casamento matuto, casamento forçado, casal andando
em boi manso, violeiro, sanfoneiro, banda de pífano, cangaceiros,
padre Cícero. Mergulhado no universo da cultura tradicional,
uma das inspirações recorrentes é o reisado, com os respectivos
personagens do folguedo natalino do qual participou: dona
Joana, diabo, doutor, padre, mascarado. Em 1948, quando
começou a fazer os bonecos, resolveu fazer um reisado. Fez vários
personagens e conseguiu vender a uma pessoa do Rio de Janeiro.
Ateliê no Alto do Moura, em Caruaru
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Depois, com a dificuldade de comercializar o conjunto, foi fazendo
acreditava na continuidade do ofício. Mostra-se impressionado
as figuras individuais. O reisado já não sai no Alto do Moura, o
com a permanência da atividade e o aumento quantitativo de
mestre sente saudade e tenta recuperar, no barro, as práticas
artesãos.
culturais da infância e juventude.
A família, uma das pioneiras no ramo, tem na nova geração os
Eudócio sabe que é um criador, um perfeccionista. Jamais
continuadores. Os irmãos Eudócio, Celestina e Josué herdaram o
desperdiçou os anos de convivência com Vitalino e Zé Caboclo.
ofício da avó e da mãe, e se veem sucedidos pelos filhos. Dos nove
Quando Vitalino saiu do Sítio Campos para o Alto, em 1948,
filhos de Eudócio, Carlos e José Ademildo, e as respectivas esposas,
Eudócio tinha 17 anos. Conheceu os trabalhos do mestre na rua:
vivem do barro. Do casal Celestina Rodrigues e Zé Caboclo, as
naquela época ninguém vendia escultura em casa, o local de
filhas Marliete, Socorro, Carmélia e Helena “puxaram ao pai, que
exposição era o buliçoso espaço da feira. Do professor, Vitalino,
era um artista de mão cheia”, segundo o tio Eudócio. Lembra,
lembra-se de muitas coisas: por exemplo, que passou dois anos,
inclusive, das miniaturas que fazia, quando jovem, e guardava
com o cunhado Caboclo, trabalhando para o afamado ceramista
numa caixa de fósforos, esculturas em tamanho minúsculo que são
e nem sequer assinavam as próprias peças. Lembra, ainda, que
uma das especialidades das irmãs Rodrigues. A linha de sucessão
em 1957 já fazia questão de dizer aos compradores que aqueles
também se repete na família Vitalino, na família Rodrigues, na
bonecos chamados de “Vitalino” também eram criação de
família Galdino.
outros artistas. Com o desaparecimento do mestre, Eudócio não
27
J. Borges
28
A
rtesão de cestinhas de cipó e brinquedos de madeira,
oleiro, pedreiro, carpinteiro, pintor de parede, marceneiro,
trabalhador da palha da cana, passador de jogo de bicho. Esses
foram alguns dos ofícios que Jota Borges experimentou, antes
de se decidir pela venda de cordel nas feiras de Pernambuco,
Paraíba, Ceará e, principalmente, na Praça do Mercado de São
José, no Recife, o que aconteceu a partir de 1956. Matuto
esperto e comunicativo, logo descobriu ser exímio talhador
de madeira e criador de histórias em versos. E o tempo de
permanência na escola foi de apenas 10 meses. Da experiência
com as artes manuais, sobretudo marcenaria e miniatura de
móveis, desenvolveu habilidades que não seriam de jeito nenhum
desperdiçadas mais adiante, conforme atestam as publicações
impressas, as gravuras inconfundíveis, as inúmeras capas de livros
e discos, exposições, oficinas.
O primeiro folheto é de 1964, com capa do poeta e xilógrafo
Dila: O encontro de dois vaqueiros no sertão de Petrolina. A partir
de 1965, incentivado pelo amigo cordelista Olegário Fernandes,
resolve fazer a capa dos próprios folhetos, e então escreve e faz a
capa de O verdadeiro aviso de Frei Damião. Nascido no Sítio Piroca,
Prensa alemã, utilizada na
impressão dos cordéis
29
Bezerros, agreste pernambucano, a 20 de dezembro de 1935,
José Francisco Borges nem avaliava o significado dessas decisões
viajou, além dos lugares aonde tem ido a obra do artista: Itália,
profissionais, apenas se deixava levar pela intuição criadora. Em
Espanha, Holanda, Bélgica, México, Argentina. Para Caracas, foi
1976, faz uma das gravuras mais famosas: A chegada da prostituta
em 1995. Visitou Cuba em 1997, num avião russo dos anos 1950,
no céu. A vida do sertanejo, o imaginário nordestino, as fabulações
onde permaneceu 12 dias, ministrando oficina num festival de
dos contos populares, o cenário rural e as narrativas de cordel
cultura caribenha. Na década de 1970, uma exposição de Borges
declamadas pela boca do pai, tudo foi misturado na cabeça e nas
percorreu 20 países. Em 1964, ilustrou a novela Roque Santeiro,
memórias afetivas do artista, e o resultado é a plena vitalidade
da TV Globo, e fez a primeira viagem de avião.
conferida à famosa e premiada obra, que tem sido traduzida em
outras línguas e linguagens artísticas, a exemplo de peça de teatro,
Daí por diante não mais parou de percorrer o mundo. Há décadas
telenovela, filme, coleção de roupa.
tem viajado quase que ininterruptamente dentro e fora do país.
Em 2005, comemorou os 400 anos do D. Quixote, de Miguel
Se o nome dos pais – Joaquim Francisco Borges e Maria Francisca
de Cervantes, com uma versão em cordel da referida novela de
da Conceição – está inscrito irremediavelmente na vida de J.
cavalaria. E foi para a França participar da exposição itinerante
Borges, também não podem ser desprezados os nomes do
O universo da literatura de cordel, na condição de principal
artista plástico Ivan Marchetti, do escritor Ariano Suassuna e
homenageado. Graças ao talento e à amizade que cultiva há
do pesquisador Roberto Benjamin, que fizeram as primeiras
anos com importantes galeristas, artistas plásticos, jornalistas e
encomendas de gravuras maiores, escreveram sobre o artista e
pesquisadores, Borges tem obras no acervo da Biblioteca Nacional
deram-lhe ampla divulgação. Suíça, Estados Unidos, Venezuela,
de Washington e no Museu de Arte Popular do Novo México
França, Alemanha, Portugal, Cuba foram países para onde
(em Santa Fé, EUA); é divulgado no New York Times, participou
Familiares de J. Borges auxiliam na impressão das gravuras
30
da revista suíça Xilon em número especial (1980) dedicado aos
xilógrafos nordestinos, ilustrou o livro As palavras andantes, do
uruguaio Eduardo Galeano (1993), figurou no calendário da ONU
de 2002 com a gravura A vida na floresta, tem participado de
exposições na Galeria Stahli, Suíça, entre outras notáveis aparições
internacionais no circuito artístico mundial.
É importante mencionar, ainda, a atuação da Gráfica J. Borges,
em plena atividade, que, durante quatro décadas, utilizou tipos
móveis e prensa manual na produção de cordéis e xilogravuras,
e vem construindo desde então parte da história da literatura de
cordel. Borges à frente, claro, contando com a participação dos
filhos J. Miguel, Ivan, Manassés, Cícero, Pádua, Jerônimo (falecido);
irmãos, cunhada, sobrinhos, como Amaro Francisco (falecido),
Severino Borges, Nena, Joel, Lourenço, Givanildo; dos três mais
novos, os filhos Pablo e Baccaro e o neto Williams. O filho George
vive de serigrafia e Ariano é gráfico. Ao todo, foram gerados 18
filhos. E um grande projeto de vida e arte, de que é testemunha o
Memorial J. Borges, em Bezerros, onde o visitante pode apreciar as
obras gráficas, plásticas, poéticas do mestre e, ainda, desfrutar de
um dedo de prosa com o artista bom de papo.
31
Nuca
32
N
uca é apelido de infância: Nuca de Tracunhaém ou Nuca dos
Leões. Tracunhaém – topônimo indígena, que quer dizer
panela de formiga – é a cidade de adoção do artista, desde os
três anos. Leão é o signo de Nuca, ou Manoel Borges da Silva,
que nasceu em 5 de agosto de 1937, no engenho Pedra Furada,
Nazaré, Mata Norte pernambucana, filho dos agricultores Francisco
Costa Mariano e Josefa Borges da Silva. O pai, da roça, criouse nos engenhos de cana-de-açúcar. Vivendo a infância num
ambiente de ceramistas descobre-se um admirador do ofício e,
desde os 10 anos, um continuador da tradição, modelando em
barro elementos do cotidiano. O ano em que foi morar na cidade é
o mesmo da estréia de Zé do Carmo na cerâmica. Quando estreou,
havia em Tracunhaém o povo de Lídia, fazendo santo. Antônia
Leão era referência da geração mais antiga, Maria Amélia já se
destacava pela santaria. Zezinho chegou depois, de Vitória. Nilson,
de Goiana. Nuca passou a conviver com diversos ceramistas em
feiras e salões de arte popular, entre eles, Ana das Carrancas e
alguns netos de Vitalino. Foi ao Rio de Janeiro participar de uma
exposição e lá conheceu o mestre Vitalino.
33
Embora desde a década de 1940 já vendesse esculturinhas
símbolo de Pernambuco é o leão, tampouco menosprezar a força
de cerâmica nas feiras, principalmente na vizinha Carpina, é
do imaginário de ascendentes negros africanos presente na Zona
sobretudo a partir de 1968, quando esculpe o primeiro leão,
da Mata, nem esquecer que a antiga denominação de Carpina era
que se reconhece artista, consagra-se com o efeito visual da juba
Floresta dos Leões.
leonina e se entrosa com ceramistas renomados. O motivo da
consagração veio da ideia de esculpir leões e floristas. A mulher,
Se a família de Nuca era de agricultores, e não de louceiros, o
Maria Gomes da Silva, ou Maria de Nuca, inventou de botar os
mesmo aconteceu com a família de Maria, que também era da
cabelos cacheados, também no leão. A moda da juba encaracolada
roça, não tinha ninguém no barro. Pode-se dizer que a obra de
se difundiu tanto, que artesãos aderiram à onda, substituindo pena
Nuca é quase obra de dois artistas, originalidade a quatro mãos.
de galinha pelos cachos. Além destes, que consistem nuns rolinhos
O leão e as bonecas foram criação dele e da mulher. O talento de
de barro aplicados um a um, há o leão de listra, o escamado e o
ambos para as esculturas cerâmicas desabrochou no convívio com
de tranças. Finas ou grossas, as escamas também são colocadas
artistas e artesãos de Tracunhaém, terra das figuras em cerâmica
individualmente, em leões e girafas. Sobre a escolha da temática
e das panelas de barro. Depois de brinquedos, bonecas e anjos,
dos leões, cogita-se que pode estar vinculada à memória recente
os leões vieram para imortalizá-los. As esculturas são sempre ao
da estatuária de louça portuguesa decorativa dos sobrados ou,
natural, nunca pintadas, exceto sob encomenda. O forno, feito
ainda, à memória ancestral daquele que é considerado o rei
por ele próprio, fica no quintal de casa e testemunha o fato de
dos animais. Entretanto, não podemos deixar de lembrar que o
que é indispensável ter ciência para saber construí-lo e usá-lo.
34
E Nuca foi exímio nisso: na hora de queimar, sabia precisar a
caldeação, a fim de não rachar a escultura, nem cair o cabelo.
Outro importante segredo é o da aplicação dos detalhes: como
fazer para não ressecar, enquanto vai modelando e colocando
simetricamente um a um.
Após afastar-se do ofício, por problemas de saúde, dois dos
seis filhos dão continuidade às artes dos pais, Nuca e Maria: o
primogênito Marcos Borges da Silva, ou Marcos de Nuca, faz os
leões e José Guilherme Borges da Silva, o filho mais novo, faz
as bonecas. Apesar de não terem sido muitas as viagens – Lima,
Peru (1980), São Paulo, Rio, Brasília, Bahia –, Nuca dos Leões
criou os filhos com a arte saída das próprias mãos, festejou a
alegria de viver fazendo sempre o que gosta e também ofereceu
todas as condições necessárias ao aprendizado e exercício
artístico dos filhos seguidores. A obra do artista pode ser
apreciada em antiquários, galerias de arte, e enfeitando praças
do Recife, como a do 1º Jardim de Boa Viagem e a Tiradentes,
no Cais do Apolo. Variando de 30 centímetros a um metro, nas
esculturas assina “Nuca de Tracunhaém”, desenhando um nome
de artista que enche de beleza o mundo.
35
Canhoto
da Paraíba
36
O
avô tocava clarinete. O pai, violão. O filho, Francisco Soares
de Araújo, tinha a certeza de que adorava música, e isto era
o que não faltava em casa, reduto dos principais instrumentistas
da cidade. Ainda criança, já sabia apreciar um bom repertório,
habituado aos saraus e serenatas na própria residência. Com o
pai, Antônio Soares de Lima, aprendeu, aos 12 anos, a tocar a
tabuinha, que era como apelidava o violão. O avô, o clarinetista
Joaquim Soares, também exerceu grande influência sobre ele. Com
o maestro Joaquim Leandro, regente da banda local, conheceu as
primeiras notas musicais. Mas, outros instrumentistas da infância,
a exemplo dos violonistas Zé Micas e Luiz Dantas, do saxofonista
Manoel Marra e do acordeonista Zé Costa, foram decisivos, pois,
por causa deles, manteve os primeiros contatos com um repertório
de choros e valsas que o marcaram para sempre. Alguns chorinhos
fizeram-no cultuado por músicos do porte de Radamés Gnatali,
Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Paulinho da Viola.
Nascido em 17 de março de 1931, em Princesa Isabel, alto
sertão paraibano, o filho de Quitéria Lopes de Araújo, lá mesmo,
foi o tocador do sino da igreja, fez iniciação musical e partiu
amadurecido à procura de outras cidades em que pudesse
expandir os dotes artísticos. Ainda adolescente veio ao Recife
apresentar-se na Rádio Clube, mas somente aos 25 anos é
que conseguiu realmente sair de Princesa Isabel. Foi para João
Pessoa, em 1952, onde morou alguns anos e brilhou na Rádio
Tabajara. Em seguida, 1958, transfere-se definitivamente para
Pernambuco e é imortalizado como Canhoto da Paraíba, um dos
mais importantes compositores de choro. O diferencial no uso
da tabuinha aconteceu assim: por necessidade de compartilhar
com os irmãos destros o mesmo instrumento, desenvolveu uma
técnica especial de dedilhar o violão, tocando os acordes com a
mão direita e usando a esquerda para o dedilhado das cordas, sem
invertê-las. Ou seja, um violão “tocado pelo avesso”, como diz o
título de um dos seus discos gravados.
Reprodução de ilustração e antigas imagens de Canhoto da Paraíba,
fotografadas na residência do artista, em Maranguape
37
Não só a forma de tocar o instrumento, sobretudo o vigor das
1977, é a vez do álbum Com mais de mil, selo Marcus Pereira,
composições de Canhoto é que o fizeram chegar ao panteão
produzido por Paulinho da Viola e festejado pela crítica musical
dos grandes instrumentistas brasileiros. O repertório passa pelos
do país. No repertório, as músicas Pisando em brasa e Com mais
ritmos regionais – xote, xaxado, baião, frevo – e pela bossa nova,
de mil. Além de produzir o primeiro disco de Canhoto, Paulino da
predominando o choro e a valsa. Para a grandiosidade com que
Viola viajou com o violonista pelo país, no Projeto Pixinguinha, e
compunha e tocava o violão, poucos foram os discos gravados por
gravou, no seu primeiro trabalho, de 1971, o choro Abraçando
Canhoto: Único Amor, de 1968, é gravado pela Fábrica Rozemblit,
Chico Soares, seguindo o estilo de composição do paraibano. Em
no Recife. Um dos músicos, escolhido à época por Canhoto, foi
1990, Geraldino Magalhães e Lula Queiroga produzem o disco
o jovem Henrique Annes, hoje violonista consagrado. O produtor
independente Fantasia nordestina: Violão brasileiro tocado pelo
do disco foi o maestro Nelson Ferreira. Em 1974, também pela
avesso. E, pela Caju Music, lança, em 1993, o último trabalho solo,
Rozemblit, sai Um violão direito nas mãos do Canhoto. Em
Pisando em brasa, com participação especial de Raphael Rabello
38
e Paulinho da Viola. Ainda em 1993, pelo Tom Brasil, sai o CD
Instrumental no CCBB: Canhoto da Paraíba e Zimbo Trio. Em
1999, Canhoto é ladeado por Annes, Rafael Rabello, Baden
Powell na coletânea Os bambas do violão, lançada pela Kuarup.
Radicado durante meio século em Pernambuco, Canhoto foi
agraciado, em 1984, com o título de cidadão pernambucano.
Reverenciado por Baden e outros grandes nomes da música
popular brasileira, apresentou-se com Luperce Miranda,
João Bosco, Sivuca, César Camargo Mariano, para citar
apenas alguns. Em 2004, recebeu uma homenagem do
presidente Lula, em Brasília. Na Paraíba, foi homenageado
com a publicação da Lei Canhoto da Paraíba, que, a partir
de 2005, concede a artistas o título de Mestres das Artes (Lei
7694/2004, Registro de Mestres das Artes – Rema) e ele foi um
dos primeiros agraciados. Após sofrer isquemia cerebral em
1998, interrompe-se a carreira do artista, que passa os últimos
anos de vida em Maranguape, Pernambuco, com uma filha,
falecendo em 24 de abril de 2008.
A importância musical desse requintado artista inspirou o Trio
de Câmara Brasileiro a produzir, em 2009, o disco Saudade de
Princesa – Sobre a obra de Canhoto da Paraíba, do selo Crioula
Records. O recifense Caio Cezar assina a direção musical do
CD e está organizando um livro com as partituras musicais de
Canhoto. A genialidade do mestre, de viva memória, perpetuase com ações desse porte, e, ainda, ao ser constantemente
revisitada nas gravações originais do instrumentista e em
regravações ou releituras de outros virtuoses.
39
Maracatu
Leão Coroado
40
D
écada de 1950 do século 20. O respeitado oluô (sacerdote
culto nagô e padroeira da grande festa do morro, que acontece
máximo) Luís de França recebe a incumbência de dirigir uma
anualmente na mesma data, em Casa Amarela.
brincadeira de carnaval, que havia sido fundada pelo pai, um
africano ex-escravo. O brinquedo era o Maracatu Leão Coroado.
Luís de França dos Santos é de 1º de agosto de 1901. Nasceu na
Morto um dos coordenadores, corria-se o risco de não haver quem
rua da Guia, bairro do Recife, filho de Laureano Manoel dos Santos
o substituísse. Herança de família e de tradição religiosa, o baque
e Philadelpha da Hora. Segundo contava, durante a juventude
virado daquela nação nagô precisava continuar. Desafio aceito, a
vendeu jornais ao longo da via férrea, até Palmares, o que o levou
vigorosa liderança de seu Luís proporcionou aos brincantes manter
a conhecer senhores de engenho e chefes políticos da região.
a atividade ininterrupta desde 8 de dezembro de 1863, data
Ganhou muito dinheiro revendendo produtos importados, trazidos
considerada como a de fundação, apesar de a memória oral indicar
nos navios, quando trabalhava de estivador, profissão exercida até
a possibilidade de o Leão já existir desde 1852. Mesmo mantendo-
aposentar-se. Cresceu no bairro de São José, espécie de gueto de
se a dúvida quanto ao marco fundador, o contexto político e
escravos libertos, local onde aconteciam cultos africanos. Guardava
social no qual nasce o grupo é marcado pelo debate em torno da
na memória a participação intensa em terreiro de candomblé, o
abolição da escravatura e os maracatus eram folguedos de negros
Sítio do Pai Adão, em Água Fria, embora a sua iniciação religiosa
escravos. Ressalte-se, ainda, que, no Recife, o dia 8 de dezembro é
não tenha acontecido lá. Os pais de santo de Luís de França foram
dedicado a Iemanjá e a Nossa Senhora da Conceição, esta última,
Eustachio Gomes de Almeida e Maria Júlia do Nascimento, a Dona
a representação católica, no sincretismo religioso, daquele orixá do
Santa do Maracatu Nação Elefante.
Apresentação na cidade de Goiana, 2003
41
Bairro de Águas Compridas, visto a partir do terreiro do maracatu
O líder começou a participar do maracatu quando a sede ficava no
conforme garante o babalorixá Afonso Aguiar, que integra o
bairro da Boa Vista, numa rua que hoje se chama Leão Coroado.
grupo a partir de 1996 e conduz a agremiação desde a morte de
Foi membro da Irmandade de São Benedito da Igreja de São
França, em 1997.
Gonçalo da Boa Vista e da Irmandade do Rosário dos Homens
Pretos de Santo Antônio. Um dirigente desta última, José Luís, foi
Na função de rei e rainha, o Leão Coroado teve Estanislau, João
quem passou ao afilhado Luís de França a direção do folguedo.
Baiano, José Nunes da Costa, José Luís, Gertrudes Boca-de-Sola,
Daí em diante, o decidido líder passou a cuidar da organização
Martinha Maria da Conceição e Dona Santa. Esta última, uma das
do grupo, das obrigações religiosas e da direção da batucada,
mais imponentes rainhas de maracatu, filha e neta de africanos,
cujo baque secular aprendera com o pai e com os avós. Passado
marcou presença, sobretudo no Maracatu Nação Elefante. As
por Luís de França, continua mantido o mesmo baque tradicional,
calungas são pretas, de madeira, e existem desde a fundação do
grupo: uma delas representa Oxum, é Dona Clara; a outra, que
representa Iansã, chama-se Dona Isabel. Durante mais de quatro
décadas – provavelmente de 1954 até a morte, em 3 de maio de
1997 – o mestre Luís de França guiou o grupo com dedicação
extremada, a ponto de provocar elogios da pesquisadora norteamericana, antropóloga Katarina Real, que, no início dos anos
1960, realizou pesquisa sobre o folclore no carnaval do Recife.
À época, Katarina considerava o Leão Coroado a única legítima
nação de maracatu ainda existente. São desse período diversos
troféus conquistados pela agremiação.
Em outubro de 1996, França convida Afonso Gomes de Aguiar
Filho para sucedê-lo na liderança do grupo. Após amargar uns
anos de isolamento e consequente retração do maracatu, o filho
de Xangô acerta em adotar a sugestão do presidente da Comissão
Pernambucana de Folclore, pesquisador Roberto Benjamin, quanto
à indicação de Afonso Aguiar, que, desde então, tem conseguido
realizar importantes viagens e apresentações em São Paulo, Rio de
Janeiro, Bahia, Paraná, Santa Catarina, França, Holanda, Bélgica,
Suíça, Espanha, Itália, Timor Leste, Ilhas Canárias. A comemoração
dos 140 anos, em 2003, foi marcada pela gravação de CD, ao vivo,
com as toadas tradicionais do grupo. Voltando, ainda, a 1997,
o mesmo ano da morte de Luís de França, em 22 de dezembro
é instituído o Dia Estadual do Maracatu: pela Lei 11.506, fica
escolhido o 1º de agosto, em homenagem à data de nascimento
Mestre Afonso e o centenário bombo-mestre
daquele mestre.
42
Nascido na Campina do Barreto, Recife, em 15 de março de
1948, o mestre Afonso comanda há mais de 20 anos um terreiro
em Águas Compridas, Olinda, para onde transferiu a sede do
maracatu e todo o acervo do grupo. Ao longo do ano, desenvolve
dinâmica de ensaios, aulas de percussão e toque de candomblé,
oficinas de feitura e manutenção dos instrumentos musicais, de
confecção do vestuário do maracatu, além de outras atividades
educativas, como a preparação de um corpo de baile de danças
afro. Todas as ações, tanto as preparatórias ao Carnaval quanto
as pedagógicas envolvem continuamente a comunidade, sob
a coordenação geral de Afonso Aguiar, que, inclusive, tem
comandado oficinas de percussão e de confecção de instrumentos
no Brasil e no exterior, a exemplo do Festival do Caribe, em
2009, na cidade de Santiago de Cuba. Seguidor fiel do mestre
Luís de França, empolgado com a repercussão do primeiro CD e
preocupado com a manutenção do grupo, o dedicado Afonso
anuncia que o master do segundo disco está pronto e que as
comemorações do sesquicentenário já estão sendo planejadas.
Na primeira edição do Prêmio Cultura Viva (2005/2006), do
Ministério da Cultura, o maracatu foi uma das iniciativas
contempladas, na categoria manifestação tradicional. A partir
de maio de 2008, o grupo é transformado em Ponto de Cultura.
Instalado no mesmo endereço da sede do maracatu, lá funciona
um telecentro, com cursos básicos de informática e acesso 24
horas à internet, para atendimento de demandas da comunidade,
em todas as faixas etárias. Com firmeza, o mestre mantém rotina
semanal de ensaios e de trabalho. A triagem de novos integrantes
obedece a exigentes normas de conduta social. Provavelmente, o
sucessor das tradições do terreiro e do maracatu será Afonsinho,
o neto nascido em 1997, que toca nas obrigações da seita e
tem comandado, quando necessário, a batucada do maracatu.
Entretanto, como frisa o mestre Afonso, o Leão Coroado é mais
religião do que carnaval. Com as bênçãos todas de Olorum, eguns
e orixás.
Pele de Bode curtindo para posterior montagem das alfaias
43
Zé do Carmo
44
P
asseando pelos labirintos da memória do artista e pelos objetos
mais recônditos do ateliê de José do Carmo Souza, conhecido
internacionalmente pelas estátuas de anjos cangaceiros, descobrese uma encantadora obra poética, uma narrativa visual do barro
massapê, que não se sabe exatamente quando e com quem
começa em Goiana, mas registra, com certeza, a importância
do legado materno de Joana Izabel de Assunção e dos filhos
talentosos. A mãe – oleira, artesã, costureira – fazia figuras de
barro e de pano, mané-gostoso e rói-rói. O pai, padeiro, fazia
máscaras em papel machê para vender aos foliões, o molde era
em barro e a modelagem em papel e grude. Manuel de Souza
dos Santos e Joana Izabel de Assunção chegam a Goiana no ano
de 1930, vindos de Igarassu, onde nasceram. Casados a partir de
1932, é um ano depois, em 19 de dezembro de 1933, que nasce o
primogênito, Zé do Carmo.
Conhecido desde 1947 no circuito artístico, autor de respeitável
conjunto de esculturas cerâmicas tão originais quanto às da mãe,
Escultura de anjo cangaceiro seria presenteada
ao Papa e a Igreja Católica se recusou a receber
45
foi com apenas sete anos, em 1940, que Zé do Carmo começa a
própria mãe, que não queria que o artista modelasse anjos com as
fazer figurinhas de barro, pintar com tinta d’água, como faziam
vestimentas do cangaço. Daí por diante, ganham asas, espingarda
os pais artistas, e vender nas feiras de Goiana. Os dois irmãos,
e ares nada angelicais os beatos de movimentos messiânicos, os
João Antônio de Souza e Manuel Miguel de Souza, também
cangaceiros Lampião e Maria Bonita, entre outros personagens da
aprenderam o ofício dos pais. Das peças mais antigas de Zé,
cultura regional – o que resultou em polêmicas, sobretudo quando
destacam-se figuras de mendigo, agricultor, carregador de açúcar,
Zé do Carmo ofereceu ao papa um monumental anjo cangaceiro
Preto Velho, anjo cangaceiro, apanhador de papel, apanhador
e o presente foi recusado. Medindo cerca de dois metros, a
de água, vendedor de couro, jornaleiro, Lampião, Maria Bonita,
escultura é mantida no ateliê, além de uma outra, em menor
carregador de água, tocador de bandolim, Padre Cícero, Nossa
proporção, também rejeitada pela Igreja, e mais um Papai Noel
Senhora Artesã, São Pedro Pescador (o padroeiro de Goiana). No
nordestino, de gibão, alpercatas e chapéu de couro. Em 1982,
acervo pessoal, conta com peças autorais feitas há cerca de 40 e
criou o Vovô Natalino, um velho simpático de aspecto messiânico
50 anos. Há uma rendeira que criou entre 1949 e 1950, quando,
medindo 1,80 m, que faz Gilberto Freyre escrever artigo no Diario
segundo confessa, ainda copiava as figuras da mãe. A iniciação,
de Pernambuco, de 2 de janeiro de 1983, louvando “bom e bravo
obviamente, foi com ela e o pai, mas o aluno atento, que cursou
repúdio ao Papanoelismo que vem descaracterizando os bons
apenas o Ensino Fundamental, sempre se valeu da observação e do
Natais castiçamente brasileiros...”.
autodidatismo para aperfeiçoar a técnica e dar vazão às invenções
artísticas.
Sobre a engenharia das peças gigantescas, o artista explica:
constrói um bloco até a cintura e espera secar. Depois que
Depois que a mãe morreu, em 1972, Zé do Carmo inaugura uma
está enxuto, torna oco esse bloco e levanta o restante. Em
nova fase criativa, a que chama de “transfiguração humana”,
seguida, modela os detalhes do corpo e do rosto. As peças ficam
pois transforma anjos em cangaceiros, a despeito da vontade da
alicerçadas numa base de barro e pousam sobre um suporte de
46
madeira com rodízios. Para ele, os primeiros trabalhos eram populares
demais. Depois disso, acredita que conseguiu modelar figuras de proporções
acadêmicas, como o Padre Cícero que mantém no acervo exposto no ateliê.
Tem, ainda, um busto de São Pedro jovem, que fez seguindo o padrão de
escultura neoclássica: proporção seguida à risca, com detalhes do rosto
bem-delineados. Durante muitos anos, foi professor de modelagem em
barro e de proporção. Escultor também em pedra, prova isso com um
busto exposto em meio às peças mais antigas. É inegável que, além da
observação do artista, o talento sobressai, garantindo a qualidade e a
adesão de discípulos. E não foram poucos os ceramistas que passaram pelo
ateliê de Zé do Carmo, na condição de aluno: Irene, Mário Pintor, Severino,
George, Tog, Luiz Carlos, Luiz Gonzaga, Précio Lira, Dica, Andréa Klimit
e Tiner Cunha. O único filho que possui não é discípulo, mas, segundo o
próprio pai, tem talento para a arte. Dedicado desde 1980 à pintura, o tema
preferido nas telas é o mesmo das esculturas: anjo cangaceiro.
47
Banda Musical
Curica
48
C
urica, do tupi ku’rika, é pássaro de canto estridente, da família
Ricardinho, participou das festas em homenagem a D. Pedro
de papagaios e araras, que canta pelas matas e mangues.
II, durante visita à cidade, em 6 de dezembro de 1859. Quatro
Talvez por isso o nome da centenária sociedade musical goianense,
dias depois, ou seja, 10 de dezembro, o Diario de Pernambuco
numa alusão ao papagaio trombeteiro. Melhor explicando,
noticiava a visita da autoridade máxima do país e dizia que a
existem, de fato, duas versões que apontam tal escolha para o
Guarda Nacional “esteve reunida com mais de 700 praças e boa
nome da banda, fundada em 1848. Segundo uma delas, a senhora
música”. A Curica, naquele período, era a banda do batalhão.
chamada dona Iria perguntou ao mestre João José, que passava
pela rua da Conceição: “Seu João, por que é que a música grita
Com um repertório musical cheio de sofisticação e variedade, o
tanto, que até parece uma curica?” A outra versão, variante da
grupo também marcou presença nas comemorações da Abolição
primeira, conta que dona Iria era irmã do padre José Joaquim
da Escravatura, da Proclamação da República, ajudou em
Camelo de Andrade, e morava à rua Direita, em companhia das
campanhas políticas do Partido Conservador e, então militarizada,
próprias escravas. Estando, certa vez, na porta de casa, o maestro
fez parte da Guarda Nacional. Criada com o objetivo de realizar
José Conrado executava uma polca do musicista Francisco Tenório,
tocatas em festas religiosas, a banda foi fundada em 1848,
e ela teria dito, em voz alta, a uma de suas escravas: “Ô Rosa,
por José Conrado de Souza Nunes, primeiro regente do grupo
aquela música só parece dizer cu-ri-ca-cá”. A outra respondeu com
musical. Do Rio Grande do Norte, era conhecido como o filho do
uma gargalhada, e assim ficou o apelido que, supõe-se, era usado
marinheiro, Boca de Cravo. Segundo o historiador Álvaro Alvim
em tom depreciativo.
da Anunciação Guerra, cujo pseudônimo era Mário Santiago –
conforme pesquisado e publicado, na ocasião do centenário, em
A Sociedade Musical Curica oferece, justamente por ser antiga, um
1948, no livro Elementos para a história da Sociedade Musical
repertório de tradições, de histórias contadas pelos mais velhos,
Curica – tudo começou com um grupo de 12 a 15 músicos que
dentre eles os nonagenários Antônio Secondino de Santana,
se reuniu no consistório da igreja de Nossa Senhora do Amparo
Meia Noite, e João José da Silva, Calixto, dois dos mais antigos
dos Homens Pardos e resolveu criar uma orquestra sacra,
participantes da banda – falecidos após a banda conquistar o título
apresentando-se pela primeira vez numa tocata, no Amparo,
estadual de patrimônio vivo, concedido em 2005. Uma dessas
durante as comemorações da natividade de Nossa Senhora, ou
histórias diz respeito a uma tocata para o Imperador. Conforme
seja, no dia 8 de setembro de 1848. À época da fundação, era
consta nos anais de Goiana, a Curica, sob a regência do mestre
chamada de corporação musical. Assim começa a história da
Panorâmica da rua da sede da banda
49
Curica, a mais antiga banda de música, em atividade ininterrupta,
do Brasil e da América Latina.
O abolicionista e senador do Império João Alfredo Corrêa de
Oliveira dá notícia, na biografia que escreveu sobre o 2º Barão de
Goiana – Bernardo José da Gama –, que “cada partido tinha a
sua banda de música a estafar-se em ajuntamentos e passeatas”.
Deduz-se que a outra banda era a rival Saboeira, de 1855, ainda
hoje em atividade, fundada com o objetivo de acompanhar o
Partido Liberal, oposicionista do Partido Conservador, ao qual
pertencia a Curica. As histórias da inimizade figadal entre as duas
bandas foram escritas com sangue. Entre pontapés e lances de
capoeira, gritava-se: “Viva a Curica! Morra a Saboeira!” E viceversa. Em 1928, visitou a capital da Paraíba, o que teve enorme
repercussão na imprensa local. Entre os sócios honorários, constam
os nomes do então presidente Getúlio Vargas e de Flores da
Cunha, interventor no Rio Grande do Sul. Durante a 2ª Guerra
Mundial, participou de passeata antinazista em agosto de 1942.
Vista aérea de Goiana (autor desconhecido)
50
No dia 1º de dezembro de 1944 recebe a visita do famoso
A Curica é um dos grandes patrimônios culturais de Goiana
musicólogo uruguaio, professor Francisco Curt Lange, que,
e sempre marca presença em solenidades cívicas e religiosas,
demonstrando grande interesse pelos arquivos de composições
inclusive nas viagens pelo Brasil. No Carnaval, subdivide-se em
musicais, obteve uma relação das peças escritas no século 19, mais
duas orquestras de frevo, para tocar no centro, nos distritos e
uma fotografia da corporação. A banda executou, em homenagem
vizinhança. Em variados eventos e inaugurações, apresenta-se
ao visitante, a Sonata Patética, de Beethoven; a valsa Obstinação,
sob a forma de orquestras menores. O acervo musical conta com
de Nelson Ferreira, e o dobrado Conselheiro João Alfredo. Na data
mais de 800 títulos, de todos os gêneros, entre clássicos, barrocos,
do centenário, em 1948, Antonio Correia presenteou a Curica com
dobrados, marchas de procissão, músicas religiosas, MPB, para
uma sede própria, a mesma onde o grupo desenvolve as atividades
execução por cerca de 60 a 70 músicos. A catalogação do arquivo
até hoje, à rua do Rosário. Naquele ano, a banda também decidiu
histórico e musical foi realizada pelos estudantes da escolinha, em
criar estatuto próprio, ainda em vigor, em que se estabelecia a
regime de voluntariado. Resultante de um trabalho filantrópico
fundação de uma escolinha de música, a fim de gratuitamente
de maestros, diretores e instrumentistas, a banda é responsável
serem transmitidos os conhecimentos musicais, pelos mais antigos,
pela contínua preparação de novos artistas, pela renovação dos
para as novas gerações. De meados de 1960 a 1970, a banda
próprios integrantes e traz no histórico a passagem de nomes
manteve uma formação denominada Curica Jazz, que é retomada
consagrados, como o famoso capitão Zuzinha, ou José Lourenço
no início de 2009. São 29 componentes, escolhidos entre os mais
da Silva, e os maestros Duda e Guedes Peixoto. É inegável que
talentosos alunos da escolinha e integrantes da banda. Em meio às
a Curica tem colaborado com o despertar de talentos, com a
novas realizações, a diretoria está organizando o primeiro registro
formação de músicos. E mais: toca a sensibilidade dos goianenses,
fonográfico, tanto da banda, quanto da jazz, para a gravação de
que a veem passar pelas ruas, despertando-lhes o amor à música e
dois CDs a serem lançados ainda em 2010.
às vivas tradições da cidade.
Edson Júnior, músico
e presidente da banda
51
Lia de
Itamaracá
52
S
oberana, feito uma deusa surgida das águas do mar ou uma
rainha plena de realeza, é assim que Lia sempre aparece,
levando-nos ao prazer de ouvir e dançar uma ciranda. Sim,
porque ninguém fica imune ao ritmo da ciranda, muito menos
aos encantos da filha de Iemanjá, que se habituou a cantar desde
criança, na praia de Jaguaribe, localidade da Ilha de Itamaracá
onde nasceu em 12 de janeiro de 1944 e vive até hoje. Cheia
de familiaridade com a música e a dança, Maria Madalena
Correia do Nascimento começou a carreira artística muito jovem,
cantando ciranda desde os 12 anos. A filha de Severino Correia do
Nascimento e Matildes Maria da Conceição é a mesma Maria, ou
Lia, da música que se transformou num hino: Essa ciranda / quem
me deu foi Lia / que mora na Ilha de Itamaracá.
A história dessa deusa de ébano, de um metro e oitenta, não é
só feita de glamour. Após permanecer quase duas décadas no
ostracismo, lança em 2000 o CD Eu sou Lia, que recebe selo de
world music, graças à mescla de instrumentos de percussão e
sopro aos ritmos populares, e, por isso, chega a ser comercializado
nos Estados Unidos e na Europa. Nessa nova etapa de divulgação
do trabalho, Lia passa a viajar constantemente pelo Brasil e pelo
Espaço cultural é dedicado a Iemanjá
continente europeu, e, ainda assim, não é difícil vê-la nas rodas
de ciranda do Recife e Olinda, ou em Jaguaribe, onde funciona, à
beira-mar, o Espaço Cultural Estrela de Lia, sob o efeito mágico da
envolvente paisagem marinha, com direito a lua, pancada do mar,
cheiro de maresia e brisa balançando os coqueiros.
Nesse ambiente, Lia tem recebido, aos sábados – e desde
novembro de 2004 –, diversos artistas, como Cátia de França,
Célia coquista, a Ciranda de Baracho (das filhas do mestre, Dulce
e Severina Baracho), Antúlio Madureira. Mas, diferentemente
do bem-sucedido ressurgimento, antes a artista havia produzido
apenas um LP, A rainha da ciranda, gravado pela Rozemblit
em 1977, do qual lembra não ter recebido nada. Quando foi
cozinheira de um restaurante na ilha, também cantava no local.
O neto Misael
53
Frequentava outras rodas de ciranda, esporadicamente, sem
1998, no Rio de Janeiro, durante participação no projeto Vozes do
Mundo, do Centro Cultural Banco do Brasil. Quase uma década
depois desse lançamento, sai em 2008 o segundo CD, Ciranda
de ritmos, com direção musical de Carlos Zens, e destaque para
Bezerra do Sax, as filhas de Baracho e uma composição de Capiba.
Conforme indica o título, o disco contempla outros ritmos
pernambucanos para além da ciranda: frevo, coco, maracatu.
Mas, claro, quem permanece reinando é a majestosa cirandeira.
Habituada, há mais de 50 anos, ao convívio com mestres da
ciranda, Lia sempre faz questão de lembrar que Baracho era um
grande amigo. É dele a ciranda: Morena vem ver / que noite tão
linda / a lua vem surgindo / cor de prata. // Faz-me lembrar / da
minha Maria / quando pra ela / eu fazia serenata. No embalo da
ciranda e das afinidades eletivas, Baracho e Lia compartilhavam
três importantes aspectos: boa voz, presença marcante na hora de
puxar a roda e habilidade no tratamento dos temas, como o do
amor.
O convívio artístico, entretanto, não se resumiu aos experientes
cirandeiros. Teca Calazans, Edu Lobo, Clara Nunes, Geraldo de
Almeida, Ney Matogrosso e Paulinho da Viola, entre outros, são
nenhuma projeção fora do restrito circuito de aficcionados da
cultura popular. A partir dos anos 1980 passa a ser merendeira
da Escola Estadual de Jaguaribe, profissão que seguiu exercendo,
paralelamente à carreira artística.
A volta triunfal ao mundo da música se deu graças à atuação do
produtor Beto Hees, que a levou, em 1998, a participar do festival
recifense Abril pro Rock, no qual foi aplaudida por 12 mil pessoas.
Daí em diante, sobretudo a partir de 2000, passou a fazer turnês
pelo Brasil e exterior, com os shows do primeiro CD, gravado
pela Ciranda Records, que contém composições dela própria,
de cirandeiros do Recife, de compositores renomados e algumas
de domínio público. Cinco músicas foram gravadas ao vivo em
alguns dos grandes nomes da música brasileira que já cantaram Lia
em versos próprios, em composições da cirandeira ou de outros.
Essa ciranda quem me deu foi Lia é a mais antiga, de 1960 para
1961, e foi gravada por Teca Calazans. Paulinho da Viola também
ofereceu versos bonitos para a negra mais elegante dentre todos
os ilhéus: Eu sou Lia da beira do mar / morena queimada do sal e
do sol / da Ilha de Itamaracá (...), música incluída no primeiro CD.
O convívio artístico também levou a dama da ciranda por outras
veredas, como a de estrela do curta-metragem Recife frio, de
2009, dirigido e realizado por Kleber Mendonça Filho.
Com o porte e a realeza da soberana Iemanjá, a artista comanda
as atividades do Centro Cultural Estrela de Lia, transformado
desde 2008 em Ponto de Cultura, onde são oferecidas oficinas
54
de arte, cerâmica, percussão, fotografia, malabares, rabeca,
teatro, cavalo-marinho. Permanecem, ainda, as temporadas de
apresentação artística: recitais poéticos, bandas alternativas,
duplas de violeiros, filhas de Baracho, e, claro, a tradicional
ciranda de Lia. Toda a programação cultural é gratuita e
sempre conta com o envolvimento da comunidade local, ou
seja, os habitantes da Ilha de Itamaracá e, especificamente, os
da praia de Jaguaribe. Em franca ebulição, o Ponto de Cultura
foi contemplado, no início de 2009, com o prêmio Interações
Estéticas e Residências Artísticas, numa parceira da Fundação
Nacional das Artes (Funarte) com o Ministério da Cultura (Minc).
Quem mais se beneficiou foram os habitantes da localidade, com
as oficinas promovidas pelo mestre rabequeiro Luiz Paixão e pela
As filhas de Baracho cantam ciranda com Lia
atriz Cinthia Mendonça.
na paisagem iluminada da ilha, nos jangadeiros que saem para o
alto-mar e vêm trazendo peixes, nas ondas salgadas que quebram
Por onde viaja, Lia de Itamaracá vai somando os elogios que
na praia, na brisa marinha que tem lhe soprado aos ouvidos umas
tem recebido também na própria terra. É chamada de deusa,
rimas, sussurrando-lhe quantas estrelas tem o céu e quantos
rainha. Na França, um jornal comparou-a à cabo-verdiana Cesária
peixes tem o mar. Versos e balanço encadeados pela percussão e
Évora. No Brasil, é constantemente relacionada a Clementina
sopro realçam a voz rascante de Lia, “uma diva da música negra”,
de Jesus, sobretudo no sul e Sudeste. No mesmo local em que
conforme noticiou o New York Times. A deusa da ciranda sabe
nasceu, frequentou a escola primária e assistiu a muito coco
envolver-nos todos, plena de generosidade e magnetismo, até
de roda, ciranda, pastoril e bumba meu boi. Não teve iniciação
quando empresta a voz ao genial Capiba: “minha ciranda não é
musical com ninguém, foi aprendendo sozinha, inspirando-se
minha só, é de todos nós, é de todos nós”.
55
Dila
56
C
angaço e peripécias diabólicas são os temas predominantes
no universo do mestre em fabulações, gravador de capas
de folheto e álbuns em policromia, autor de rótulos de bebida
e remédios, ilustrador de livros e publicações variadas. O nome
de batismo do marechal do cordel do cangaço, conforme se
autodenomina, é José Soares da Silva, ou Dila, nome emblemático
no mundo da gravura popular. Nascido em 23 de setembro de
1937, em Bom Jardim, e estabelecido em Caruaru, o filho de
Domingos Soares da Silva e Josefa Maria da Silva testemunha que,
dos anos 1950 em diante, mergulha no mundo do cordel e da
xilogravura, quando passa a comercializar folheto nas feiras de
Pernambuco, Alagoas, da Paraíba e do Ceará.
Municiado de generosa fabulação, Dila compartilha com amigos
e visitantes a riqueza do seu mundo imaginário, as invenções e
reminiscências de mais de cinco dezenas de anos dedicados às
artes gráficas, à poesia de cordel e à xilogravura. No limiar entre
realidade e imaginação, tão bem-cultivadas pelo poeta, rememora
a chegada em Caruaru, em 1952, e as primeiras xilogravuras, que
57
foram para folhetos dele mesmo, de Francisco Sales Arêda e de
outros poetas de meio de feira, tais como Vicente Vitorino, Chico
Sales, Jota Borges, Antônio Ferreira de Morais e João José da Silva.
E, finalmente, a facilidade para com os desenhos credita ao pai
que, segundo ele, foi caricaturista. Em 1974, em plena atividade
de poeta, gravador, impressor, aparece no documentário de Tânia
Quaresma, Nordeste: cordel, repente, canção, em que figura a
profissão registrada em letras garrafais pintadas na fachada do
mesmo endereço onde ainda hoje reside, em Caruaru: Art Folheto
São José. Romances e folhetos. Do autor e editor: Dila é aqui.
A partir da experiência na fabricação de carimbos, substitui
as matrizes de madeira pela borracha, obtendo um resultado
de impressão que o pesquisador Roberto Benjamin batizou de
folk-off-set. Utiliza cores diversas numa mesma matriz, ou faz
inúmeras combinações de gravura a partir de detalhes elaborados
em matrizes diferentes. As figuras são preparadas separadamente
para permitir isso. Irrepreensível no desenho e na invenção, a
gravura limpa, bem-talhada, complexa exibe narrativa imagética
absolutamente original, sob ângulos inusitados, sem contato
sistemático com os cânones do desenho clássico. A partir dos anos
1970, inova em publicações coloridas e no formato cordel. Em
1973, edita o álbum de gravuras em policromia Rasto das histórias,
utilizando-se de azul, vermelho e amarelo sobre fundo branco.
Em 1974, publica A bagagem do Nordeste, com a capa em preto,
vermelho e amarelo sobre fundo branco. Viver do cangaceiro sai
em 1975, pela Art folheto São José. O álbum Réstias do cangaceiro
é editado em 1981.
O fabricante de rótulos de bebida instala na própria casa máquinas
de tipos móveis e prelo, a fim de publicar folhetos e imprimir
gravuras. Além disso, as ferramentas manuseadas para cavar
a matriz são faca, peixeira, canivete, lâmina de barbear, que
cortam a borracha, ou neolite, para fazer capas de cordel, rótulos
e carimbos. Abre letreiros e desenhos do cordel numa mesma
matriz, em borracha ou ainda na madeira, reinventando o tipo
58
fixo, conforme lembra Roberto Benjamin, no texto Aparatos dos
em ininterrupto fluxo criador, e também na atual invenção da
livros populares – Dila editor popular. E o registro da própria
“literatura de cordel em contos”, da “literatura de cordel em
editora é tão mutante quanto o caudaloso fluxo narrativo do
prosas” que vem engendrando e editando, os motivos passam
poeta. A Art folheto São José virou Gráfica São José, ou Gráfica
por ciganos e cangaceiros, Chico Heráclio, Lampião, Padre
Sabaó, ou Preéllo Santa Bárbara, ou Fhòlhéteria Càra d’Dillas.
Cícero, o Pai Eterno, Pessoa e Dantas, Ariano Suassuna, “xylgra
Nesse registro, o nome da folheteria aparece na contracapa do
e cordel”, Dyylas Sabóia. Se, em vez de cordel e xilogravura,
cordel, com um autorretrato de Dila vestido de cangaceiro.
produzisse um filme de cangaço, deliberou, de antemão: seria o
protagonista, o cangaceiro Relâmpago. Assim, em meio a fantasias
E, mais, o registro de autoria do texto e da xilogravura é sempre
e criação poética, Dila vai recebendo visitas diárias de estudantes,
tão variável quanto o do editor. Dila: o marechal do cordel do
pesquisadores, turistas, todos ávidos em conhecer o mundo
cangaço. Dila Soares da Silva. Dila Ferreira da Silva. Dyyllas Sabóia.
maravilhoso do artista que está sempre a exibir, com o maior
Dila Sabaó Sabóia. José Cavalcanti e Ferreira, José Soares da
prazer, as mais recentes invenções de poesia e xilogravura.
Silva, Dila ou Dillas. Recorrentes num universo poético expresso
59
Mestre
Salustiano
60
A
inda menino, sete anos, brincava cavalo-marinho pelos
engenhos de Aliança. Foi arriliquim, dama, galante, cantador
de toada, nove anos de Mateus, depois foi ser mestre. O pai era um
tocador de rabeca, aprendeu com ele. Os folguedos e brincadeiras
eram vistos e experimentados desde criança: maracatu, ciranda,
coco, forró, mamulengo, improviso de viola. Estudou até a 4ª série
primária. Trabalhou em casa de família, vendeu sorvete, picolé, foi
ambulante. Conforme declarações próprias, considerava-se o maior
dançador de cavalo-marinho e, nos versos de maracatu, inspirava-se
no mestre Antônio Baracho. Manoel Salustiano Soares, ou mestre
Salustiano, artista múltiplo e produtor de espetáculos e folguedos
tradicionais organizados e mantidos em família, nasceu a 12 de
novembro de 1945, em Aliança, e foi lá, na Zona da Mata Norte,
que se iniciou no universo cultural de que é um dos mais afamados
representantes. O filho de Maria Tertunila da Conceição aprendeu
a ler, escrever e sempre teve inteligência suficiente para tirar o
máximo proveito dos dotes artísticos.
Começou a morar em Olinda em 1965, mesmo ano em que
começou a tocar rabeca profissionalmente, aprendida pelas mãos
do pai e professor, João Salustiano, que ensinou o filho a fazer e
a usar o instrumento. Passou a ser mais conhecido na década de
1970 e em 1977 participa de um comercial de TV. Foi entrevistado
em 1989 no programa televisivo Som Brasil e, nessa época,
segundo ele mesmo, só conhecia a Mata Norte, nem sequer outras
regiões de Pernambuco. Em 1997, integrou comitiva de artistas
locais que foi a Cuba. Durante mais de 10 anos organizou o festival
da rabeca e coordenou a Casa da Rabeca do Brasil. Por quase
20 anos participou, na condição de fundador, da Associação de
Maracatus de Baque Solto de Pernambuco. Recebeu o título de
reconhecido saber em 1990, concedido pelo Conselho Estadual de
Cultura, e o título de doutor honoris causa, na UFPE. Foi agraciado
com o título de Comendador da Ordem do Mérito Cultural, em
2001, pela Presidência da República. Percorreu todos os estados
brasileiros e outros países, como Bolívia, Cuba, França, Estados
Maciel Salu e Barachinha
61
Unidos.
Com a casa repleta de filhos, o mestre Salustiano sempre manteve
a liderança da família e conseguia envolver todos nos projetos
culturais que constantemente articulava no entorno da própria
residência, no bairro olindense de Cidade Tabajara, reunindo
a comunidade, os vizinhos, turistas e pesquisadores de cultura
popular. Inicialmente, era no espaço Ilumiara Zumbi que as
apresentações aconteciam. Depois, as festas foram transferidas
para a Casa da Rabeca do Brasil, espaço inaugurado pela família
para oficinas, danças, encontros de maracatu rural e de cavalomarinho, shows de música regional. No Natal, vários grupos de
cavalo-marinho se reúnem e brincam a noite toda. Tem também
pastoril, ciranda, o cavalo-marinho Boi Matuto, fundado pelo
mestre em 1968, e o Mamulengo Alegre, outro brinquedo da
família, cujos bonecos eram feitos por Salu mesmo. Dublê de
artista e artesão, esculpia no mulungu os bichos do bumba
meu boi, cavalo, boi, burra. Fazia em couro de boi e de bode as
máscaras do cavalo-marinho. No domingo de carnaval, chegam
ao terreiro da família troças, ursos, caboclinhos, boi, burra, além
do grande acontecimento da tarde: a trincheira do maracatu rural
Piaba de Ouro, que fundou em 1977, e hoje é estruturado com
mais de 300 componentes. Na segunda de carnaval, acontece o
encontro de todos os maracatus rurais de Pernambuco.
62
Graças à sensibilidade artística e às invenções de homem
de ciranda, maracatu, mamulengo, coco, forró, frevo: O sonho
inteligente, Salustiano cultivava a memória da infância, povoada
da rabeca, As três gerações, Cavalo-marinho, Mestre Salu e a sua
de cavalo-marinho, maracatu, mamulengo, pastoril, ciranda,
rabeca encantada. Dos 15 filhos, dois fabricam rabeca: Wellington
forró de oito baixos, reisado, marujada, fandango, poesia
e Cleiton Salu. O bailarino Pedro Salustiano montou o espetáculo
improvisada, ao mesmo tempo em que gerenciava os próprios
Samba no canavial. O músico, compositor, poeta improvisador
folguedos e temática casa de espetáculos. Depois de tentar a
e MC Maciel Salu lançou o CD A pisada é assim, entre outras
vida como ambulante e empregado doméstico, foi funcionário
importantes gravações, e é um dos integrantes da Orquestra
da prefeitura de Olinda e professor de arte popular. Por fim,
Contemporânea de Olinda.
conseguiu certa dignidade financeira com o terreiro enorme para
apresentações, serviço de bar, salão para dança e uma loja, onde
Salustiano faleceu no Recife, em 31 de agosto de 2008.
são comercializados produtos de confecção própria, como rabeca,
Entretanto, confortável é saber que o legado se perpetua nas
alfaia, mineiro, bagem de taboca, pandeiro, mamulengo e os
produções culturais e criações artísticas dos filhos, legítimos
discos. Foram quatro CDs gravados, movidos pelas sonoridades
herdeiros e continuadores da obra do Mestre Salu.
Filhos Maciel, Cleiton e Manuelzinho
63
Índia Morena
64
C
ontorcionista, trapezista voadora, acrobata, cantora, ginasta,
atriz circense. Eis aí alguns dos atributos da grande dama do
circo pernambucano: Margarida Pereira de Alcântara. Ou, Índia
Morena, nome artístico deliberadamente escolhido por serem
índios o pai e a avó paterna. Destacada pela dedicação profissional
exclusiva à vida circense, Margarida convive desde os 10 anos
com o magnetismo do mundo dos mágicos, palhaços, humoristas,
rola-rola, malabaristas, equilibristas. Na verdade, a estreia na vida
artística foi inaugurada, a partir de 1952, em shows de calouros,
nas matinês infantis promovidas pelo Circo Democratas, que
aconteciam na Vila de São Miguel, bairro de Afogados, Recife,
onde àquela época o circo estava montado. Aos 12 anos, a
cantora mirim já interpretava, com alma, canções de Vicente
Celestino, Ângela Maria, Núbia Lafayete.
Filha de Eloy Pereira de Alcântara e Maria das Dores de Alcântara,
Margarida nasceu no Recife, em 13 de julho de 1943. Órfã de pai
aos nove anos, interrompeu os estudos no terceiro ano primário
e não havia grande expectativa de desenvolvimento profissional,
sequer de realização artística, para essa criança nascida e criada
dentro da maré, pescando crustáceos nos mangues de Afogados
para ajudar na sobrevivência da família. Adotada por Severino
Ramos de Lisboa – o palhaço Gameloso – e afilhada de crisma de
Maria Tenório Cavalcanti – a dona do antigo circo Itaquatiara Real,
no qual Índia se engajou a partir de 1º de julho de 1953, contra a
vontade materna –, essas confluências resultaram, claro, do talento
evidente da jovem circense e contribuíram para o florescimento
de singular trajetória artística. E mais: vieram acrescentar novos
elementos à história dos circos populares do Brasil.
Além de realizar viagens pelos Estados Unidos, Argentina,
Paraguai, Uruguai, Bolívia, trabalhando em diversos circos – dentre
os quais o Gran Bartolo, o Garcia, o Itaquatiara, o Edson, o Águia
de Prata, o Coliseu Mirim, o New American Circus –, Índia Morena
organizou, com a participação de Albemar Araújo, a coletânea
Dramas Circenses, em que foram transcritos seis tradicionais
65
Apresentadora do próprio circo,
Índia Morena inicia mais um espetáculo,
dessa vez no subúrbio de Jaboatão
dramas encenados nos circos populares, tais como A louca do
jardim e Lágrimas de mãe. As peças teatrais, cedidas por Índia,
fazem parte do acervo da Associação dos Proprietários e Artistas
Circenses do Estado de Pernambuco (Apacepe), organização
fundada em 1993 por Índia Morena e pelo marido, Maviael Ribeiro
de Barros. O livro, contendo 161 páginas, foi publicado em 2006,
pela Fundação de Cultura Cidade do Recife.
Índia Morena considera o circo “o palácio onde vive com alegria”
desde os 13 anos, quando decidiu largar totalmente a mãe e
entregar-se de vez ao picadeiro: passou no teste de caloura e foi
contratada para trabalhar no Itaquatiara. “Ali, eu vi o mundo”:
foi assim que nasceu para a vida artística, ao mergulhar desde
a primeira vez na lona de um circo e depois sagrar-se como
trapezista voadora e melhor contorcionista pernambucana. Depois
do Itaquatiara, trabalhou como ginasta e cantora num circo de
Olinda, o Circo do Palhaço Violino. Atuou no Circo Águia de
Prata, de propriedade de Euclides Águia de Prata que, depois,
passou a ser o Circo Edson. Ainda participou do Coliseu Mirim,
pertencente a um funcionário da prefeitura do Recife, conhecido
66
por Benigno. Em meio ao talento e à dedicação integral à carreira,
irreverentes, com equilibristas, contorcionistas, transformistas,
ia consolidando-se um contínuo processo de aprendizagem no
engolidores de faca, malabaristas, pernas-de-pau, escada giratória
próprio meio circense, a partir do convívio com grandes nomes
e mais quatro palhaços. A temporada em cada local é variável,
do circo e da ousadia de cada nova experiência. Entretanto, em
conforme a aceitação do público. Os espetáculos são geralmente
meio aos prazeres e conquistas da biografia artística, um grande
noturnos, mas há também matinês nos finais de semana e
desgosto na vida de Índia Morena quase a leva à bancarrota:
feriados. A folga é sempre na segunda-feira.
a traição do ex-marido com uma menina de circo resultou em
doença e lesão pulmonar, com prolongado internamento no
O Gran Londres, itinerante como deve ser todo circo de
hospital Otávio de Freitas. Foi aí onde conheceu o atual marido,
tradição, circula, sobretudo, pelos arredores do Recife e Região
que nada sabia de circo e, entretanto, aceitou abraçar o ofício,
Metropolitana, a exemplo de Jaboatão, Paulista, Abreu e Lima.
acompanhando-a ainda hoje.
Aonde o circo vai, agrega as bandas de música locais, fisga o
público com espetáculo tradicional e ainda oferece uma atração
Desde 1977 possui, com Maviael, o Gran Londres Circo, pois o
única: um bode pagador de promessa, que sobe uma rampa,
antigo proprietário do Circo Edson, falido, e para quem Índia
ajoelha-se e beija uma imagem de Nossa Senhora Aparecida,
Morena trabalhava, doou parte do negócio a título de pagamento
padroeira do Brasil. “Eu só tenho o terceiro ano primário, mas
pelos serviços prestados por ela à companhia circense. Índia nele
quem tem o primeiro ginasial não vai comigo, não, porque eu
injetou experiência e recursos próprios e é no Gran Londres que,
aprendi muita coisa em teatro”, vangloria-se a artista, que também
desde essa época, vai exibindo as múltiplas habilidades aprendidas
não esquece a dureza da infância mergulhada na lama, catando
em todo o percurso artístico, cantando e apresentando os
caranguejo. Apesar de todas as mazelas, Índia segue cantando
espetáculos. Em meio a uma trupe com mais de 20 integrantes,
e louvando a magia do circo, com a elegância e o magnetismo
contracena com um palhaço cantor e compositor de músicas
próprios de uma grande dama circense.
67
Homem da
Meia-noite
68
D
e fraque, cartola, gravata borboleta, dente de ouro, lá vem o
Homem da Meia- Noite, vem pela rua a passear, enfeitiçando
os céus olindenses e arrancando suspiros de amor. Claro, é o mais
afamado galante, o grande Don Juan do carnaval de Olinda e não
é, de maneira alguma, simplesmente um boneco, é calunga, com
todos os atributos e segredos que essa palavra suscita. A figura
do sorridente cavalheiro, envolta em mistérios e rituais próprios, é
associada ao candomblé, pois foi no dia 2 de fevereiro de 1932,
data dedicada a Iemanjá, que o calunga de madeira desfilou
pela primeira vez na tradicional folia. O Homem da Meia-Noite,
com cerca de quatro metros de altura, é o mais antigo boneco
gigante de Olinda. Nascido na categoria “troça” em 1932, passa
a clube de alegoria e crítica a partir de 1936. É de muitos anos,
Saída do Homem da Meia Noite, Estrada do Bonsucesso, Olinda, 1998
portanto, que o galanteador vem arrancando suspiros de moças e
senhoras postadas à janela para ver o amado passar: ele próprio
em figura de gentleman anima as ladeiras do sítio histórico desde
a madrugadora invenção na longínqua década de 1930.
As ruas estreitas, sobretudo a do Amparo, e o Largo do
Bonsucesso testemunham a alegria e irreverência dos foliões
que gastam pelos menos quatro horas para acompanhar um
dos desfiles mais cobiçados da folia olindense. O percurso
é praticamente o mesmo desde o princípio, e o boneco vai
desfilando trajado de verde e branco, com um relógio na lapela
e a chave da cidade nas mãos. A saída acontece pontualmente
à meia-noite do sábado de Zé Pereira, partindo da sede, que
fica em frente à igreja do Rosário dos Homens Pretos, no
Bonsucesso. O local é marcado pela prática de tradições culturais
de negros escravos, desde a construção do templo religioso na
segunda metade do século 17, e, inclusive, foi essa a primeira
igreja em Pernambuco a ter irmandade de homens pretos.
Nenhuma estranheza, portanto, quanto à ligação do calunga
com o candomblé, mesmo que a aura de misticismo se misture à
irreverente balbúrdia momesca, em meio a orações e oferendas
com cachaça na troca de roupas do calunga, nos preparativos do
sábado à tarde.
69
Carnaval de 2003
A existência do grupo carnavalesco se deveu a uma dissidência
daquela troça decidiram criar uma nova agremiação que “desse
de integrantes da Troça Carnavalesca Mista Cariri, fundada em
uma rasteira no Cariri”, conforme conta o pesquisador Olimpio
1921 e que àquela época era quem abria o carnaval, saindo às
Bonald Neto, no livro Os gigantes foliões em Pernambuco. O autor
quatro da manhã do domingo. O exímio entalhador Benedito
refere, aliás, que esse não foi o primeiro gigantone a aparecer no
Bernardino da Silva, ou “Benedito Barbaça”, o encadernador
carnaval pernambucano: o mais antigo registro é creditado a Zé
Cosmo José dos Santos, o pintor de paredes Luciano Anacleto
Pereira e Vitalina, bonecos nativos da cidade sertaneja de Belém
de Queiroz, acompanhados de Sebastião Bernardino da Silva,
do São Francisco, criados respectivamente em 1919 e 1929.
Eliodoro Pereira da Silva e do sapateiro Manoel José dos Santos,
Quanto ao surgimento do boneco olindense, pelo menos duas
apelidado “Neco Monstro”, ao se sentirem excluídos da diretoria
versões explicam a genealogia do fenômeno: uma delas credita
70
ao cinéfilo e fundador Luciano Anacleto de Queiroz a inspiração a
partir do filme O ladrão da meia-noite; a outra atribui a Benedito
Bernardino, fundador e autor do hino da agremiação, a construção
do calunga a partir de alegado flagrante de certo namorador, alto,
elegante e sorridente, que andava principalmente na madrugada
do sábado para o domingo, sempre de verde e branco, com
chapéu preto e dente de ouro.
A dissidência do Cariri foi tramada em dezembro de 1931. Para
dar forma ao boneco que ganharia as ruas à meia-noite do sábado
de Momo, os fundadores Benedito Barbaça e Luciano de Queiroz
tomaram todas as providências de marcenaria e pintura, na
modelagem daquele que seria o boneco dos primórdios do grupo.
Originalmente, o calunga pesava mais de 55 quilos, porque, além
da armação em madeira, a cabeça, o busto e as mãos eram feitos
em papel gomado; os braços, recheados com palha de colchão;
nas mãos, areia para dar peso e equilíbrio às evoluções executadas
ao som do frevo. Evidente que o boneco passou por um processo
de reengenharia, a fim de perder peso e, assim, aliviar a carga do
carregador ou “chapeado”. Um dos mais ilustres carregadores foi
Alcides Honório dos Santos, Cidinho, que durante mais de quatro
décadas deu vida e alma ao boneco. Bastos “Botão”, Henrique
Alabamba, Amaro de Biluca, Paulo 19, Pedro Garrido compõem a
galeria dos chapeados do Homem da Meia-Noite.
Saída do relógio, 1998
Esses históricos nomes animam, há décadas, a algazarra de
foliões inveterados, além dos novatos que são acrescidos às
ladeiras estreitas de Olinda, a cada ano. E o mais animador é
saber que a alegria repercute durante todos os meses, com o
projeto social Gigante Cidadão – Ponto de Cultura nacional desde
2005 – que oferece, de segunda a sábado, na sede do clube,
oficinas de música, dança, teatro e vídeo a cerca de 50 crianças da
comunidade. Apreciando de dentro ou de fora do boneco, quem
haveria de resistir a esse fogoso e ao mesmo tempo sóbrio cidadão
olindense, a esse magnético sorriso de manequim, a essas gigantes
pernas de pau dançando na multidão?
71
Passistas acompanhando a orquestra, 1998
José Costa Leite
72
A
versatilidade tem marcado a trajetória do cordelista, xilógrafo
e autor de almanaque popular. Nascido a 27 de julho de
1927, em Sapé, na Paraíba, o filho de Paulino Costa Leite e Maria
Rodrigues dos Santos radicou-se em Condado, Pernambuco, a
partir de 1955. José Costa Leite estreou na literatura de cordel
em 1947, vendendo, declamando e escrevendo folheto de feira.
O primeiro almanaque foi feito em 1959, para o ano de 1960,
e chamava-se, àquela época, Calendário brasileiro. As primeiras
xilogravuras são de 1949, para os folhetos, de própria autoria, O
rapaz que virou bode e a Peleja de Costa Leite e a poetisa baiana.
Na infância e adolescência, trabalhou na cana, plantou inhame,
foi cambiteiro, cambista, mascate, camelô de feira. Xilogravador
primeiramente por obra da necessidade, ou seja, a de produzir
a capa dos próprios folhetos, Costa Leite conseguiu aprimorar o
talento para as artes plásticas nessas seis décadas de familiaridade
com a madeira, quicé, goiva e formão. Como acontece a diversos
autores de cordel, o talento extrapola o mundo da escrita. É ele
quem desenha e talha na madeira e depois imprime no papel as
ilustrações de capa dos próprios folhetos. Conforme tradição dos
gravadores populares pernambucanos, que se iniciaram a partir do
diálogo com a poesia, aprendeu sozinho a arte da gravura, vendo
fazer e experimentando.
73
Os primeiros cordéis chamavam-se Eduardo e Alzira – “uma
historinha de amor”, conforme classificação do próprio poeta – e
Discussão de José Costa Leite com Manuel Vicente, cujos temas
eram “se não casar perco a vida” (Costa Leite) e “eu morro e não
caso mais” (Manuel Vicente). Essas primeiras publicações não tinham
ilustração de capa, apenas os letreiros. Voz imortalizada, na década
de 1970, em três LPs gravados no Conservatório Pernambucano de
Música, nos quais deixou registradas grandes histórias de cordel,
Costa Leite já cantou muito na feira da cidade onde vive e na vizinha
Goiana. Atualmente continua indo, sozinho, de madrugadinha
e em transporte coletivo, vender folheto em Itambé, cidade
pernambucana em que o outro lado da avenida principal é Pedras
de Fogo, Paraíba. São duas cidades, dois estados numa mesma
geografia, espécie de síntese da vida do poeta. Assim que se encerra
a feira, por volta do meio-dia, segue para Itabaiana, Paraíba, dorme
lá, e, dia seguinte, passa a manhã cumprindo um ofício que exerce
há mais de seis décadas. Cantava e vendia bem nas feiras. Ainda
dá voz a uma ou outra estrofe. Às vezes, recita e canta trechos de
folheto da própria autoria, como O sanfoneiro que foi tocar no
inferno, e mais alguns versos de outros autores, a exemplo de O
navio brasileiro, clássico de Manoel José dos Santos.
74
Costa escreve diariamente. Aventura, discussão, exemplo
são alguns dos temas preferidos. Criou pelejas fictícias com
importantes personagens do mundo da cantoria de viola, como
Preto Limão, Severino Borges Silva, Patativa do Assaré, Ivanildo
Vila Nova. Publica versos fesceninos sob pseudônimo para,
segundo ele próprio, não manchar a reputação do restante
da obra. Assina H. Renato, João Parafuso, Seu Mané do Talo
Dentro, Nabo Seco nos folhetos de safadeza, cheios de picardia
e duplo sentido, como A mulher da coisa grande, A pulga na
camisola. Frequentador assíduo da capital, semanalmente vem
ao Recife entregar originais ou receber edições produzidas
na Editora Coqueiro. Viajava muito a Olinda, entre os anos
1970 e 1990, quando editava os folhetos na Fundação Casa
das Crianças. Tem, também, folhetos impressos na editora
Tupynanquim (Fortaleza, Ceará), do poeta e artista gráfico
Klévisson Viana.
Entretanto, independentemente de quem imprime, todas as
publicações autorais recebem o selo A voz da poesia nordestina,
de José Costa Leite. E recebem, na capa, xilogravuras do próprio
autor. No campo da astrologia, continua a escrever o Calendário
nordestino, distribuído para todos os estados do Nordeste, Rio
de Janeiro e São Paulo. Sobre os cordéis, não tem a menor ideia
da quantidade de histórias que fez chegar a leitores e ouvintes,
além dos muitos manuscritos inéditos que guarda nas gavetas.
Contudo, para além de todas essas rememorações, há muito
mais: Costa Leite, andarilho das tradições, é testemunho vivo
de mais de 60 anos de peregrinação por feiras e mercados de
Pernambuco, da Paraíba, do Ceará. São mais de oito décadas
com vigor físico e memória suficientes para comercializar os
folhetos que produz e recapitular parte da história das edições
populares brasileiras, da qual é um dos protagonistas.
Acervo pessoal de JCL contém
manuscritos, matrizes, xilogravuras,
estoque de cordéis variados
75
Zezinho de
Tracunhaém
76
D
e cambiteiro, cortador de cana e agricultor chegou a pedreiro
e barbeiro, num tempo em que, nos anos 1960, de dia
labutava na construção civil e à noite, na cerâmica. Para aumentar
o orçamento, também se virava nas artes da barbearia. O estalo
que desencadeou toda a carreira artística aconteceu no dia 20 de
abril de 1966, conforme registrado no jornal Gazeta de Nazaré,
em artigo escrito pela jornalista Marliete Pessoa e publicado a 27
de agosto de 1966: “No cortiço do velho prédio do Acadêmico,
nasce mais um artista do povo”. Soldado, boêmio, músico,
valentão, vendedor de milho assado e de amendoim, mendigo de
braço cotó, marceneiro, pedreiro, ferreiro: essas são as primeiras
figuras que reinam na gênese da estatuária do mestre Zezinho.
Os primeiros ensaios de modelagem resultam de inquietações e
descobertas próprias de artista, a partir da observação do trabalho
de Lídia Vieira nas visitas inspiradoras à vizinha Tracunhaém. O
artista lembra, entretanto, que a primeira peça foi um par de
namorados, encostado na porteira de um engenho de açúcar,
com cerca de 20 cm de altura. Nessa época ele vivia em Nazaré,
era trabalhador rural e o barro que esculpia vinha de um engenho
próximo, o Alcaparra.
77
Filhos se dedicam ao mesmo ofício
A estreia no cenário artístico aconteceu na 1ª Exposição de Arte
dos principais incentivadores e divulgadores da obra do santeiro
Popular em Nazaré da Mata, na biblioteca municipal, organizada
foi o colecionador pernambucano Abelardo Rodrigues, que
pela jornalista que escreveu o artigo, e inaugurada a 1º de outubro
frequentemente visitava o artista e encomendava trabalhos.
de 1966, mesmo ano em que o escultor se inicia e é descoberto
pela jornalista. Exibe 60 bonecos. Nessa mesma década, dois
Há mais de 40 anos radicado naquela cidade da Mata Norte, José
anos depois, ou seja, em 1968, decide morar em Tracunhaém
Joaquim da Silva não calculava que conquistaria alguma fama
e dedicar-se exclusivamente ao trabalho de ceramista. Era a
com os gigantescos santos de barro, pois sequer tinha parentes
época em que os famosos da região eram José Antônio e Lídia
envolvidos com a arte cerâmica, quando optou pelo ofício.
Vieira, então viúva do renomado santeiro Severino. O filho de
Constituída a fama de homem talentoso, calcada na inventividade
Júlia Batista da Cruz, que nasceu em Vitória de Santo Antão, a 5
de peças como José e Maria Grávida, Lampião, Maria Bonita, São
de julho de 1939, jamais havia pensado que antes dos 30 anos
José de Bota, Pietà, é que os filhos e a esposa também passaram a
fosse viver em Tracunhaém e se sustentar do ofício de ceramista.
viver do artesanato em barro, cuja matéria-prima vem da Paraíba.
Nem mesmo imaginou que receberia o título de cidadão daquele
A esposa, Maria Marques, mais quatro dos nove filhos – José
município, o que aconteceu em novembro de 2002. Honraria que
Carlos, Josenildo, Cláudio e Fernando –, e dois dos13 netos –
vem se somar à comenda Troféu Construtores da Cultura Cidade
Lucas (filho de Carlinhos) e Bruno (filho de Cláudio) –, todos eles se
do Recife, recebida em 1992, e ofertada pelo então prefeito da
inspiraram na labuta de Zezinho e passaram a trabalhar as próprias
capital pernambucana. Além da jornalista Marliete Pessoa, um
peças em regime semicoletivo, envolvendo-se com o conjunto
78
das etapas, que vão desde o preparo do barro até à modelagem,
secagem, queima em forno a lenha e coloração das esculturas.
Nelas, predominam os motivos sacros, dondocas e namoradeiras.
Algumas das obras do mestre recebem dele mesmo uma
certificação de autenticidade, como é o caso da peça São Francisco
sentado olhando para o céu, registrada como peça única e com
data de conclusão em 1º de setembro de 2004. A temática
preferida do artista é a sanfranciscana, em que o santo e pássaros
são esculpidos em grandes proporções. Especialista em imagens
sacras, grandioso é o aspecto visual da obra de Zezinho, que adora
modelar peças com dois metros de comprimento e prefere pintálas com tinta terracota. Na Mata Norte, Tracunhaém, topônimo
Igreja em Tracunhaém, próxima ao ateliê do mestre
indígena que significa panela de formiga, testemunha há décadas
o florescimento de diversos artistas do barro, tais como Antônia
Leão, Lídia Vieira, Severino Gomes de Freitas, Nuca, Maria Amélia.
O mestre Zezinho, um dos mais antigos ceramistas vivos naquela
cidade, tem obras espalhadas pelo mundo, em museus, igrejas,
coleções particulares. Sua obra tem figurado em inúmeros salões
de arte, coroando décadas de habilidades manuais e invenção.
79
Confraria
do Rosário
80
A
o som de caixa, zabumba e pífanos, o último dia do ano em
Álvaro Ferraz, no livro Floresta: Memórias duma cidade sertaneja
Floresta é solenemente comemorado: a secular irmandade
no seu cinquentenário: Oi Quenda, oi Quenda, / Oi Quenda,
denominada Confraria do Rosário reservou, no calendário
Maravi’a! / Hoje é dia do Rosário / Do Rosário de Maria. Pequenos
religioso, o 31 de dezembro para festejar Nossa Senhora do
agricultores e criadores das Fazendas Paus Pretos e Boqueirão,
Rosário, a patrona dos confrades. Paralelamente, a cidade
empregados de um curtume e funcionários públicos compõem o
comemora a festa do padroeiro, o Bom Jesus dos Aflitos. Assim,
grupo, formado por habitantes da zona rural e também da sede
no início da manhã, os fogos logo denunciam: é chegado o dia do
do município.
desfile e coroação dos reis, que, em azul e branco, se apresentam
ornados com manto, cetro e coroa. Acompanhados de vistoso
A comunidade é, sobretudo, formada por quilombolas e, por
cortejo, com estandarte, guarda de honra armada de espada e
isso mesmo, é símbolo de resistência negra. Nesse contexto
séquito de juízes, todos trajados de branco, os componentes da
socioeconômico e cultural floresceu a irmandade religiosa, que,
confraria cantam, louvando a Senhora do Rosário: Virgem do
conforme registros datados de 1792 e depoimento de João Luiz da
Rosário, sois uma alta rosa / Que entre as mais flores sois a mais
Silva, rei perpétuo desde 2007 e representante legal da instituição,
formosa – ou com antigas loas, como a registrada, em 1957, por
há mais de 200 anos a confraria existe na cidade de Floresta
81
dos Navios, sertão de Itaparica. Composta por 36 membros,
sobretudo antigos guardiões da tradição, a cada ano o ritual se
repete sempre no mesmo dia, com a missa matinal e mesa farta
à base da culinária regional para todos os que estiverem na festa,
e entra pela tarde, quando são coroados os novos reis para o ano
seguinte, conforme escolha das juízas (às vezes, a decisão decorre
da necessidade de pagamento de promessa). À noite, a irmandade
prestigia a missa do padroeiro e sempre faz questão de que o dia
dedicado aos negros seja o melhor do novenário.
A Igreja do Rosário é o ambiente onde se desenrola parte da
festa. Construída em 1777, pelo capitão José Pereira Maciel,
em homenagem ao Senhor Bom Jesus dos Aflitos, na localidade
denominada Fazenda Grande, de onde se originou a cidade
de Floresta, sabe-se que somente em 1792 é que a igreja foi
inaugurada, e, segundo tradição oral, desde essa data a confraria
existe, embora somente a partir de 1897 o templo passe a ser
dedicado a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, quando
o padroeiro da cidade, o Bom Jesus dos Aflitos, ganhou novo
templo defronte. Tais irmandades, a exemplo da Confraria do
Rosário, incluem-se, conforme defende o pesquisador Veríssimo de
Melo, entre as “várias formas de reações contra-aculturativas dos
negros no Brasil”. A existência de irmandades religiosas de homens
pretos e suas respectivas cerimônias estão sempre intimamente
Reprodução de fotografias antigas do acervo do grupo
82
associadas às festividades de coroação de reis e rainhas e é uma
morrer, passou o cargo para Manuel Caetano, ou Jubileu, que tem
recorrência em folguedos e danças brasileiros, a exemplo de
33 anos. Hoje, os espadachins são todos jovens, menos Seu João,
reisados, congadas, maracatus, cambindas, pretinhas do congo.
que tem 80 anos. Cabe aos espadachins a proteção do cortejo
real, cruzando as espadas a fim de que rei e rainha possam passar
A 500m das duas igrejas, está a sede da Confraria do Rosário,
por todas as portas que estiverem no caminho até à igreja. Eles
de onde sai a rainha para, com o rei, seguirem à igreja. São
também realizam movimentos que se assemelham a um imaginário
precedidos por oito espadachins e acompanhados de 11 juízes.
combate ou luta de espadas. Na procissão, São Benedito abre o
Há cinco juízas principais, estas são as mais antigas integrantes
cortejo dos santos, acompanhado da imagem histórica de Nossa
do grupo, a quem todos devem obediência, inclusive rei e rainha.
Senhora do Rosário e do Bom Jesus dos Aflitos. Uma banda de
Entre elas, uma é juíza do rei, outra é da rainha. Há, ainda, dois
pífanos, composta por quatro músicos – dois pífanos, uma caixa
juízes do andor, dois para as espadas e duas juízas são do altar.
e uma zabumba –, vai executando músicas religiosas. Apenas na
O cortejo, segundo antigos relatos, era composto por quatro
volta da missa, alterna repertório variado com a banda de música
espadachins, sendo dois velhos e dois jovens. Conforme dá conta
da cidade, tocando inclusive frevo, forró, maracatu. João Grande,
João Luiz, Manuel Preto foi um grande espadachim que ocupou a
que foi rei perpétuo durante cerca de duas décadas, certamente
função desde criança e por mais de 70 anos. Entretanto, antes de
estaria satisfeito vendo perpetuar-se a festa dos ancestrais.
Tesoureiro Quinca Leocádio e Rei Perpétuo João Luiz
83
Rainha Perpétua Lúcia de Amaro, falecida em junho/2010
Juiz das Espadas Manoel Cassiano e Espadachim Fernando
Fernando Spencer
84
F
ilho de Nicodemes Brasil Hartmann e Maria Serafina Spencer
cinéfilo/cineasta, cuja estreia se deu com um curta-metragem
Hartmann, o cineasta Fernando José Spencer Hartmann nasceu
experimental, a ficção A busca, em 1969.
no Recife, em 17 de janeiro de 1927. Aposentado como analista
em ciência e tecnologia da Fundação Joaquim Nabuco, o cineasta
Jornalista profissional, exerceu a crítica de cinema durante
coleciona prêmios e títulos que tem recebido ao longo de mais
quatro décadas no Diario de Pernambuco, exatamente de 1958
de cinco décadas dedicadas à sétima arte. Recebeu o título de
a 1998. Spencer também foi repórter do Jornal Pequeno, em
Memória Viva do Recife, em 1997, quando completou 70 anos.
1951, e revisor do Jornal do Commercio em 1957. Foi produtor e
Aos 80, foi o homenageado do Cine PE, quando então apresentou
realizador do programa Falando de Cinema, entre os anos de 1963
o novo filme Almery, a estrela. Tanto no Museu da Imagem e do
e 1978, na TV Rádio Clube, Rede Tupi. Foi produtor, realizador e
Som de Pernambuco (MISPE) quanto no Cinema Rosa e Silva,
apresentador de Filmelândia, programa veiculado na Rádio Clube
há a Sala Fernando Spencer, franca homenagem ao incansável
de Pernambuco e Rádio Tamandaré do Recife. No ano de 1985,
85
Fernando Spencer, com carretéis e latas de filme 16mm
coproduziu, com Ivan Soares, o projeto Coisas Nossas: Cinema
Massangana, em 1983. Ainda pela Massangana, lançou em 1985
Pernambucano, em oito capítulos de 30 minutos. O cineasta e
o catálogo de filmes da Cinemateca da Fundaj. E, pela Bagaço,
pesquisador foi diretor da Cinemateca da Fundação Joaquim
produziu em 1989 a publicação 20 anos de cinema (1969 – 1989):
Nabuco, membro do Centro Brasileiro de Pesquisadores do Cinema
Filmografia. No Quase catálogo, organizado por Heloísa Buarque
Brasileiro, vice-presidente da Fundação Nordestina de Cinema,
de Holanda e publicado em 1991 no Rio de Janeiro, escreveu
sócio-fundador da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD),
verbetes sobre estrelas do cinema mudo de Pernambuco. Em
fundador e primeiro presidente do grupo Cinema Super-8 de
1995, publicou textos sobre os 100 anos de cinema. No mesmo
Pernambuco.
ano, publicou, em parceria com a bibliotecária Lúcia Gaspar, da
Fundaj, O Nordeste no cinema: uma contribuição bibliográfica,
Acumulando as funções de roteirista, diretor, jurado, palestrante,
para a revista Ciência & Trópico.
debatedor, presidente de júri, professor, Fernando Spencer tem,
ainda, no currículo, diversos livros publicados, a exemplo de
Em 1974, recebeu o prêmio de melhor Super-8 na III Jornada
Histórias do tio Joca, editado em 1990 pela Bagaço. Esse foi o
Brasileira de Curta-Metragem, no estado da Bahia, com o filme
primeiro título que lançou no gênero literatura infantil. Sobre
Valente é o galo. No mesmo ano, o cineasta fez a estreia no
cinema, escreveu o texto Ciclo do Recife: 60 anos, publicado pela
gênero documentário com o filme Caboclinhos do Recife. Aliás,
86
a temática dos folguedos tradicionais é recorrente na obra de
das três bitolas. Assim conhecido no meio cinematográfico pela
Spencer. Em 1999, realizou A arte de ser profano, vídeo sobre
produção tanto em Super-8 quanto em 16 e 35mm, a criatividade
os pastoris, e em 2004 volta ao tema, dessa vez com Os irmãos
e o amor às tradições pernambucanas selam a produção de
Valença, em que o pastoril religioso é um tema incontornável.
Fernando Spencer, com os documentários acima mencionados
No VI Festival Nacional de Cinema, realizado em Aracaju, pela
e, ainda, Frei Damião: Um santo no Nordeste? (1977), Santa do
Universidade Federal de Sergipe, no ano de 1978, recebeu o
Maracatu (1981), Trajetória do frevo no Recife (1987). Sobre
prêmio de Melhor Filme de Comunicação para As corocas se
literatura de cordel, realiza o documentário O folheto (1971),
divertem. Com o filme Estrelas de celulóide, recebeu um troféu
na bitola 16mm, em parceria com Liêdo Maranhão, João José e
candango no Festival de Cinema de Brasília, em 1987. No III
Esman Dias.
Festival de Cinema dos Países de Língua Portuguesa, realizado na
cidade de Aveiro, Portugal, em 1988, Fernando Spencer ganhou,
A produção mais recente, de 2009, é o curta Nossos ursos
em parceria com Flávio Rodrigues, o prêmio de melhor curta,
camaradas, em que o cineasta compõe uma abordagem
na categoria documentário, pelo trabalho Evocações de Nelson
antropológica de fogosos ursos e La ursas na cultura
Ferreira.
pernambucana, a partir de pesquisa encomendada ao amigo
folclorista Mário Souto Maior. Com esse filme, Spencer estreia em
O percurso de Spencer ganha ainda mais sentido quando ele
nova bitola – a digital – e adianta que a obra não encerra a sua
recapitula o princípio desse amor antigo: cedo, apaixonou-se pelo
carreira (agora, das quatro bitolas!). Maria Bonita e Lampião são
cinema, precisamente aos 12 anos, quando o pai lhe oferece um
personagens dos novos projetos desse artista que assina uma obra
projetor alemão para filmes de 35mm, o suficiente para inaugurar,
autoral, prolífica, incansável.
de forma decisiva e em grande estilo, a trajetória deste cineasta
87
Teatro Experimental
de Arte
88
O
que há por trás de um nome? Teatro Experimental de Arte
é o nome que resume toda uma vida dedicada às artes
cênicas e à formação de jovens e estudantes. Sociedade civil de
caráter puramente artístico cultural, é assim que se autodefine a
organização fundada em Caruaru, a 16 de julho de 1962, pela
pedagoga, atriz e encenadora Arary Marrocos Bezerra Pascoal
e pelo contador, ator e autor teatral Argemiro Pascoal, cuja
nomenclatura primeira – Movimento Teatral Renovador – foi
logo substituída pela atual, na ocasião da assembleia inaugural
para aprovação do estatuto. Ao lado de Arary e Argemiro, a
lista de fundadores inclui Antonio Paulino de Medeiros, Carlos
Fernandes da Silva, José Gustavo Córdula, Fernando Gomes de
Oliveira, Edvaldo Pereira de Castro, Antonio Silva, Margarida
Miranda, Maria José Bezerra, Abias Amorim, Paulo Roberto e
Sá, Maria Ezinete de Melo, Inácio Tavares e Jonas Mendonça.
Filiado à Federação de Teatro de Pernambuco (Feteape), o TEA é
considerado, por lei municipal, um órgão de utilidade pública.
Quando Argemiro se muda de Bezerros para Caruaru, em 1951,
de modo intermitente atuava na cidade o Grupo Intermunicipal
de Comédia, com a participação dos atores Rui Rosal, Joel Pontes,
Pedro Valença. Em 1956, o declarado apreciador da linguagem
cênica decide fundar o Teatro de Amadores de Caruaru (TAC),
com Cosme Soares, Creuza Soares, Antônio Medeiros e Wilson
Feitosa. Entretanto, é em julho de 1962, ocasião em que a
cidade recebe o I Festival de Teatro de Estudantes do Nordeste,
coordenado por Joel Pontes, caruaruense radicado no Recife,
que surge o TEA, justamente a partir da breve, mas instigante,
experiência e da constatação de que algo precisava ser feito
quanto à cena teatral local.
Marcado pela ininterrupta atuação no agreste pernambucano,
o grupo é o criador do Festival de Teatro Amador e Estudantil
do Agreste (Feteag), promovido desde 1988, e do Festival de
Teatro do Estudante de Pernambuco (Festep), que acontece a
partir de 2002. Tais eventos contam com a participação de alunos
89
Oficina de expressão corporal e dicção para atores
de colégios privados e escolas públicas municipais e estaduais
teatral, ministradas por Arary Marrocos, Jô Albuquerque, José Carlos
daquela região, visto que um dos principais objetivos do grupo é
da Silva e Carlos Alves, sob a coordenação de Argemiro Pascoal. O
exatamente contribuir com o desenvolvimento de jovens talentos e
TEA é considerado um dos principais responsáveis pela renovação
promover intercâmbios artísticos mediante a promoção de festivais
da cena teatral do interior do estado. Além de já haver encenado
e mostras de artes cênicas. Outro importante projeto é o Teatro na
diversos textos de qualidade inquestionável, tais como A bruxinha
Comunidade, que consiste em apresentar espetáculos populares
que era boa, O Baile do Menino Deus, Cancão de fogo, Morte e vida
em palco ou praças públicas da cidade e zona rural, inclusive
severina, e os clássicos Antígona, Romeu e Julieta, A metamorfose,
promovendo debate acerca de questões de interesse das próprias
entre os anos de 1967 e 1979 o grupo registrou participação
comunidades.
contínua no espetáculo da Paixão de Cristo, em Fazenda Nova. O
primeiro seminário do teatro de Caruaru foi promovido pelo TEA.
Construída com recursos próprios, a sede fica no bairro de
Desde a fundação, mais de 50 espetáculos foram encenados pelo
Indianópolis. Chama-se Teatro Lício Neves, em tributo ao poeta
grupo que, inclusive, vem acompanhando o despertar de novos
pernambucano. Anualmente, são oferecidas oficinas de iniciação
talentos, a exemplo do premiado teatrólogo Vital Santos.
Sede do TEA, em Caruaru
90
São José do Rio Preto, em São Paulo; Feira de Santana e Salvador,
Rubem Rocha Filho, Romildo Moreira, Ivan Brandão, Valdeck de
na Bahia; São Cristóvão, em Sergipe; Maceió, em Alagoas;
Garanhuns, Roberto Benjamin, José Manoel, Zélia Sales, José
João Pessoa e Campina Grande, na Paraíba; Recife, Garanhuns,
Francisco Filho, Feliciano Félix, Ivonete Melo, Valdi Coutinho,
Serra Talhada, Arcoverde, São José do Egito, Bonito, Limoeiro,
Antonio Miranda Cavalcanti, José Soares da Silva (poeta e xilógrafo
Pesqueira, Belo Jardim e Gravatá, em Pernambuco, são algumas
Dila), ceramista Manoel Galdino, Vavá Paulino, Jorge Clésio, Joel
das cidades nas quais o grupo participou de festivais, mostras de
Pontes, Luiz Marinho Filho.
teatro e com as quais estabeleceu intercâmbio cultural. Ao longo
de todas essas décadas, o TEA se ocupa, igualmente, em promover
Obstinação: este é o motor que move o casal cheio de amor pelas
palestras, debates, seminários, simpósios. Diversos cursos têm
artes cênicas. O que resulta daí são as muitas trajetórias artísticas
sido ministrados por importantes profissionais da cena teatral
que vêm ganhando o mundo, com a decisiva colaboração de Arary
e das artes, a exemplo de Clênio Wanderley, Marco Camarotti,
e Argemiro.
Luiz Maurício Carvalheira, Isaac Gondim Filho, Didha Pereira,
Arary Marrocos
91
Argemiro Pascoal
Caboclinho
Sete Flexas
92
“Q
uem são vocês que vêm da jurema?” Esta é pergunta
que pode ser feita a um mestre daqui, mais precisamente
a José Severino dos Santos Pereira, o Mestre Zé Alfaiate, sócio
fundador do Caboclinhos 7 Flexas, desde 7 de setembro de 1971,
no bairro de Água Fria, Recife. Com a finalidade, expressa no
estatuto, de “promover e desenvolver atividades carnavalescas,
recreativas, sociais e culturais”, Alfaiate lembra que criou a
brincadeira no ano de 1969, em Alagoas. Nessa época, em
que frequentava terreiro de umbanda, certa vez sonhou com o
Caboclo Sete Flexas – “cacique, pajé, deus do sol e deus da lua,
moreno, alto, foi criado sozinho nas matas e é curandeiro” – a
quem fez pedido. Portanto, graças a promessa, e como oferenda,
decidiu que criaria o clube, sob a proteção daquele guia,
exatamente por considerar unha e carne caboclinho e jurema.
Nascido em São Lourenço da Mata, em 25 de julho de 1924,
Alfaiate volta para Pernambuco em 1971 e, embora à época
mantivesse vínculo com o antigo Caboclinhos Carijós (de 1896),
em que começou a brincar aos 10 anos, funda o grupo que se
mantém exuberante, graças à dedicação integral que dispensa
ao brinquedo, das mais triviais demandas às mais invisíveis,
como bordar fantasia e levar comida para o caboclo da mata. Os
caboclinhos, da linha da jurema, são uma das belas e tradicionais
expressões do carnaval pernambucano.
Mais do que somente com pajelança, é à base de muito sacrifício
e trabalho que o caboclinho se mantém firme e vigoroso. Paulo
Sérgio dos Santos Pereira, ou Paulinho 7 Flexas, é filho e parceiro
incansável de Alfaiate, ao lado da mãe, Marlene Francisca
Mestre Alfaiate
Neponucena. Figura importante na organização do grupo e um
dos mais respeitados dançarinos tradicionais do país, Paulinho 7
Flexas dança desde os dois anos. Nascido em Maceió, Alagoas,
a 28 de outubro de 1968, a partir dos 14 anos passa a dar aulas
no Teatro Brincante, na capital paulista, a convite do multiartista
Antônio Carlos Nóbrega. Paulinho e o sobrinho Carlos André
Rodrigues Pereira são os guias Jupi e Agaci, puxadores dos
93
cordões dos caboclos. A sobrinha Adriana Rodrigues Pereira e a
Guerra, baião, perré, toré de caboclo, guerra: alternam-se as
irmã Carla dos Santos Pereira são as guias Taquaraci e Jupiara, dos
batidas ou toques executados pelo baque, assim denominados
cordões das caboclas. Alfaiate, além de tudo, comanda desenhos
os músicos. Ouvidos atentos à execução das loas ou versos
e bordados da vestimenta. No caboclinho, o núcleo familiar lidera
gritados – os gritos de guerra, e das loas ou versos declamados,
todas as atividades: onde há a casa, há a sede do brinquedo, a
improvisados ou não, sincronizados com a regular batida das
oficina de dança com os ensaios semanais, as sessões de costura
preacas (conjunto de arco e flecha em madeira), tarol, atabaque,
e bordado, as reuniões, os preparativos de cada carnaval, enfim,
caracaxá marcam a melodia executada pelo gaitista. Reginaldo
a colorida e melodiosa alegria, a firmeza dos gritos de guerra do
Caetano do Nascimento, ou Nadinho da Gaita, é o músico que
folguedo, mesmo quando em repouso tocadores e bailarinos.
executa as melodias no instrumento também chamado flauta ou
Paulinho Sete Flexas
Nadinho da gaita
94
inúbia. O tirador de loa pode ser o cacique, o puxante, o guia,
o morubixaba. Nesse caso, é Paulinho 7 Flexas quem puxa as
loas. Enquanto isso, os olhos se maravilham com as flutuações
de penachos e plumas, com o saltitar das coreografias. Cacique,
cacica, pajé ou curandeiro, os curumins, os guias Jupi e Agaci, a
ala dos caboclos, os contraguias ou substitutos dos guias, as guias
Taquaraci e Jupiara, a ala das caboclas são as figuras que enchem
de graça as ruas e os olhares, aprendizes ou não. É obedecendo
aos sons dos caboclos do baque que os brincantes exibem
coreografia aeróbica, plena de leveza e agilidade. Impossível não se
encantar com a sonoridade e as coreografias de um caboclinho.
Conforme depoimento de Paulinho, o grupo pertence à mesa
branca, espírita, aos orixás de caboclo, à mesa da jurema. Entre
os ritos, há a saída de caboclo. Uma semana antes do Carnaval,
é necessário preparar uma oferenda, ou seja, levar comida para
o caboclo da mata. Um prato virgem, sete bifes, sete qualidades
de fruta, uma vela e mel. O pedido é sempre pedido de paz:
contra brigas e desavenças. O pajé porta um cachimbo e dá
fumaçadas para limpar a frente do clube, quando os brincantes
estão dançando. A jurema, bebida preparada à base de vinho,
champanha, mel, liamba, semente e folha de alfavaca de
caboclo, é alcoólica, entretanto tem a função de limpar o corpo
dos brincantes – as ervas cortam as dores e os males físicos.
Muita lantejoula, semente de ave-maria, cocar de pena de
ema, machadinha, cabaça, cipó, lança e preaca são alguns dos
elementos que compõem o deslumbrante vigor da cabocaria. Nas
manobras e evoluções, as coreografias apontam para a dança do
cipó, a dança da rede, a caça do caboclo, o casamento de uma
tribo com outra. Os dois puxantes Jupi e Agaci marcam com apito
a virada dos ritmos. E o porta-estandarte sai na frente, anunciando
a chegada do clube: Caboclinhos 7 Flexas, um nome de respeito.
95
Selma do Coco
96
O
s cocos nordestinos, conforme escreveu Mário de Andrade,
“São ardentes. São expressivos. São profundamente
humanos e sociais”. Assim é que, entre tapiocas e coco, canta a
ex-tapioqueira da Sé de Olinda: O coco me adotou, me chamam
rainha do coco, o povo é meu amor. Filha de Maria Valentina
da Conceição e José Teodósio da Silva, Selma Ferreira da Silva
nasceu em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, a 10 de
dezembro de 1929. As lembranças mais antigas envolvendo a
brincadeira do coco de roda remontam à infância, claro, quando
pais e avós levavam aquela criança esperta e de voz melodiosa
para dançar e se divertir nos terreiros de chão batido e luz
de candeeiro. Frequentemente cantavam coco nas casas dos
compadres, sobretudo para comemorar o São João. As memórias
e experiências, aliadas ao talento artístico, deram o mote e Selma
vem glosando, com classe. E não deixa de ter importância saber
que a alegria da tradição familiar foi mantida, no desfiar de todas
essas décadas dedicadas ao ritmo.
Ainda criança, aos 10 anos, transferiu-se para o Recife, bairro
da Mustardinha, onde se casou, teve 14 filhos e, mal saía da
juventude, ficou viúva. Há 50 anos, decidiu morar em Olinda,
tradicional reduto de samba de coco, e daí por diante cultivou o
hábito de promover concorridas rodas para animar os finais de
semana da família e ganhar uns trocados. Quando foi tapioqueira
no Alto da Sé, jogava charme para os turistas com o feitiço da voz,
do temperamento e ritmo envolventes. Cantava coco na Sé, no
Carmo e na frente da própria casa, aos domingos. E, bom para
Selma, bom para todos, integrantes da geração manguebeat se
Selma do Coco em frente à Igreja de Guadalupe, Olinda
encantaram com a coquista, o que certamente contribuiu para a
consolidação da carreira da cantora. O filho José Ferreira da Silva,
pandeirista, foi o produtor, parceiro e diretor musical da mãe
famosa.
Morena do dente de ouro, qual é o teu feitiço? Cantando e
dançando um coco sincopado, matreiro e cheio de duplo sentido,
Selma sabe que agrada. E gosta do que faz. Embrenhando-se
97
no meio poético-musical do coco de roda, entramelando-se
nas devoções de um coco que sutilmente também batuca, o
grito de guerra “a-há” antecede o canto e faz a amarração de
uma performance cheia de ginga, simpatia e irreverência. Na
malemolência foi expandindo-se, conquistando o mercado.
Segundo a própria artista, o “a-há” não tem nenhuma relação
com orixás e outras entidades, o grito acontece enquanto o
pensamento vai rodando, procurando no repertório o próximo
coco a ser executado. Com três coletâneas gravadas na Alemanha
e uma na Bélgica, Selma do Coco também já cantou no Lincoln
Center Festival, em Nova Iorque, Estados Unidos, no ano de
2003. Tem feito shows Brasil afora: no Rio de Janeiro, em São
Paulo, Salvador, Natal, Fortaleza, Limoeiro do Norte, Itamaracá,
Garanhuns, citando apenas alguns dos locais por onde tem
passado. Os trabalhos se espalham em muitos países, como
França, Espanha, Suíça, Portugal.
No Recife, em 1990, quando ainda nem tinha um nome
consolidado no cenário nacional, participou do I Festival de
Cantadores de Praia do Nordeste, na praia de Boa Viagem. Em
1997, o festival recifense Abril pro Rock ajudou-a a deslanchar a
fama. Nesse mesmo ano, a Câmara de Vereadores concedeu-lhe
98
o título de cidadã olindense em reconhecimento à artista que
mora naquela cidade desde o final da década de 1950. O carnaval
pernambucano de 1998 ficou marcado pelo sucesso da música
A rolinha, gravada em Berlim, Alemanha, no estúdio Ufa Fabrik,
entre agosto e outubro de 1997, para o disco Cultura viva. E o
refrão Pega, pega a minha rola reinou quase absoluto naquela
folia. Em São Paulo, fez show no Instituto Itaú Cultural, no ano de
1998 e, na casa de espetáculos Tom Brasil, apresentou-se em 1999
com a banda de pífanos de Caruaru e Zeca Baleiro. Em 2006,
volta a se apresentar no Itaú Cultural. Recebeu a comenda 2007
“Ordem do Mérito Cultural”, diploma concedido pelo Presidente
da República Luiz Inácio Lula da Silva.
Dos vários CDs produzidos, foi com Minha história, gravado
na Alemanha e depois lançado pela Paradoxx em 1998, que
conquistou o Prêmio Sharp de 1999, concedido à música de
mesmo título do disco. Há, ainda, na discografia, Coco de roda,
o elogio da festa, gravado ao vivo em Olinda, em 1996, que,
após masterização na Bélgica, ficou pronto em 1999. Em 2000,
o filho Zezinho fez a produção geral e direção musical do disco
Jangadeiro. Outro trabalho é Raízes da cultura, gravado em Olinda
e lançado em 2003. Dona Selma: Bodas de ouro em coco, com
faixa multimídia, foi gravado e produzido entre 2008 e 2009.
Há, ainda, a registrar, a participação em várias coletâneas. Todos
os discos são independentes, e sempre sob a coordenação do
Netas fazem backing vocal do grupo
99
incansável Zezinho, à época o único filho vivo, lamentavelmente
falecido em abril de 2010.
Maestro Nunes
100
O
Largo de Santa Cruz é testemunha: os acordes do arranjador,
compositor e maestro atiçam ouvidos e olhos em direção
ao sobrado de número 438, no bairro da Boa Vista. É ali onde
funciona a Escola de Frevos do Nordeste Maestro Nunes e aonde
o artista vai diariamente para compor, dar aulas, receber pessoas.
Vem da infância o gosto pela música: aos nove anos, tornou-se
clarinetista e já sabia orquestrar. Aos 12, compunha dobrados,
tocava num pastoril religioso. O pai, que era músico, pedreiro e
mestre de obras, não tinha tempo nem paciência para ensinar ao
filho e ainda queria enviá-lo para o seminário. Mas a criança, que
sonhava ser instrumentista, sempre chorava ao ver passar a banda
de música de Angélica, o povoado onde nasceu e viveu a infância.
Graças a Sebastião Luís, mestre da banda e amigo da família, o
garoto se livrou de ser padre e passou a receber aulas de iniciação
musical.
Filho do clarinetista e violonista José Francisco Nunes e de Maria
Apolônia Nunes, José Nunes de Souza é da cidade de Vicência,
Pernambuco, e a data de nascimento é 22 de junho de 1931. Em
1950, por problemas políticos relacionados ao pai – que perdeu o
cargo de diretor da Banda 1º de Novembro, do distrito de Angélica
–, muda-se com toda a família para o Recife, onde decidiu
aprimorar as habilidades musicais. Foi aluno do Conservatório
Pernambucano de Música (CPM). Estudou música sacra e regência
na Faculdade de Filosofia do Recife, em 1960. Cinco anos depois,
são Bach e Beethoven. Com formação política de esquerda,
concluiu o curso de licenciatura em Belas Artes, pela UFPE.
filiou-se desde jovem ao Partido Comunista Brasileiro (PCB),
Frequentou aulas de canto gregoriano e canto coral, harmonia,
engajando-se no Movimento de Cultura Popular (MCP), o que lhe
regência, teoria e solfejo, contraponto, fuga e orquestração. O
rendeu perseguição política e afastamento da Banda Municipal
principal orientador, conforme depoimento do próprio Maestro
do Recife (BMR), no início da década de 1960. Havia assumido
Nunes, foi o professor Mário Câncio Justo dos Santos, além do
em 1958, por meio de concurso, o cargo de primeiro clarinetista
padre Jaime Diniz. No rol dos principais mestres, com quem
da BMR. Entretanto, continuou na militância apesar da censura
aprendeu grandes lições, situa Capiba, Nelson Ferreira e Zumba.
e da repressão, e as conquistas artísticas fizeram sobressair o
talento do compositor que, a partir dos anos 1970, foi campeão,
Quando fala da formação musical, o maestro ressalta a
consecutivas vezes, na categoria “frevo de rua”, dos concursos
importância de ter estudado os períodos barroco, clássico e
Leda de Carvalho, Frevança, Recifrevo. Entre as músicas premiadas
romântico da música ocidental, dos quais os artistas preferidos
estão: Formigueiro, uma homenagem ao maestro Formiga, ou
101
Ademir Araújo; É de perder o sapato, relembrando o fato de
Outras composições importantes, independentemente da
um músico ter perdido o sapato enquanto tocava na banda do
conquista de prêmios, há décadas têm-lhe rendido fama de “rei
maestro, durante o desfile da troça carnavalesca mista O cachorro
do frevo de rua”, sobretudo o clássico Cabelo de fogo, feito para
do homem do miúdo; Mosquetão, em alusão a um colega que foi
um amigo, apelidado de Birino, que pintava os cabelos. Coquinho
baleado durante a ditadura; É de rasgar a camisa, dedicado à troça
no frevo, Fubica, Folhas que não caem, Santa, Ecos do Carnaval,
Camisa Velha; Bomba-relógio, em parceria com Mário Orlando,
Balançando a pança, Segurando a peteca, entre tantos outros
após a explosão de uma bomba, no Recife, durante a ditadura
célebres frevos, corroboram o talento do artista e enriquecem
militar. Interessante notar que o próprio maestro faz questão de
o repertório de diversas agremiações carnavalescas, a exemplo
sempre registrar a gênese de cada criação musical.
de Cachorro do Homem do Miúdo, Vassourinhas, Lenhadores,
102
Girassol da Boa Vista, Lavadeiras de Areias, Amantes das Flores,
volumes, um com frevo de rua e o outro com frevo-canção e frevo
Pás Douradas, Beija-flor em Folia, Pão Duro, Seu Malaquias.
de bloco. Em 2009, sai o CD Homenagem ao criador: Maestro
Compôs e gravou para os tradicionais clubes Leão e Camelo, do
Nunes, o mestre do Cabelo de Fogo, em que todas as músicas
carnaval de Vitória de Santo Antão.
gravadas – frevos de rua – são de autoria dele. Possui valioso
acervo de mais de duas mil partituras musicais e, exatamente com
Em 1972, na condição de assessor musical da Federação
a proposta de preservar tais preciosidades, conquistou o Prêmio
Carnavalesca de Pernambuco, abriu a Escola Musical do Frevo,
Culturas Populares 2007 – Maestro Duda, 100 anos de frevo,
destinada a crianças de baixa renda e aos filhos dos presidentes
concedido pelo Ministério da Cultura (Minc). Nesse mesmo ano, foi
das agremiações; e foi a partir desse ano que passou a ser o
o homenageado do carnaval do Recife.
principal e mais prolífico criador de frevo para os grupos foliões
pernambucanos. Em 1984, criou a Banda de Frevos do Nordeste.
Além da prolífica produção de frevos, o maestro compõe, ainda,
Foi fundador do Centro de Educação Musical de Olinda (CEMO)
diversos outros gêneros: samba, bolero, rumba, forró. Mantém,
e regente da banda de música 10 de Agosto, da cidade de São
inclusive, a Banda Junina do Maestro Nunes, que interpreta
Lourenço da Mata. Integrou a banda de música do Liceu de Artes e
repertório próprio e dos mestres Luiz Gonzaga, Jackson do
Ofícios, da Universidade Católica de Pernambuco; a Banda Manoel
Pandeiro, Zé Dantas, Humberto Teixeira. A coordenação da
do Óleo, da União Operária da Macaxeira; a Orquestra Cassino
agenda e das produções do maestro compete à compositora e
Americano, da concorrida boate do Recife, à época. Antes de
musicista Fátima Lapenda. Em meio ao processo criativo, entre
transferir-se para a capital, Nunes foi músico da Euterpina Juvenil
shows, gravações e aulas, o maestro Nunes faz questão de estar
Nazarena, a Capa Bode, de Nazaré da Mata.
sempre engajado em trabalhos comunitários, ministrando oficinas
a crianças e jovens, de comunidades dos bairros dos Coelhos e
Na discografia, os trabalhos mais recentes são os CDs Locomotiva
Ilha do Leite, entre outros. Professor de maestros celebrados, a
do frevo 1 e 2, de 2002, em que oferece a remasterização de
exemplo de Spok e Forró, Nunes continua incansável na missão
repertório dos vinis lançados desde 1975. O CD Maestro Nunes:
de descobrir e incentivar novos talentos. Vida longa ao centenário
60 anos de frevo, feito em 2008, apresenta-se também em dois
frevo, assim seja!
Reprodução de fotografia antiga do acervo do maestro
103
Canindé
104
M
onumental, com quase dois metros, a escultura guarda a casa,
imperturbável e acolhedora. É o Rei Canindé, o encantado que
livra de todos os embaraços e semeia o ânimo. É ele quem comanda
“a famosa Tribo Canindé do Recife, a campeonísssima do Carnaval”
e razão de viver de Juracy Simões, a se desmanchar em alegria
e lágrimas sempre que convidada a discorrer sobre o grupo de
caboclinhos, do qual é presidente e herdeira por tradição de família.
Praticamente desde os primórdios, pai e tios de Juracy comandaram
a agremiação carnavalesca, vinculada ao culto da jurema.
Sabe-se pela história oral que, na antiga Rua das Jangadas, no
Reprodução de fotografia do aniversário de 106 anos do Canindé:
na imagem, Juracy Simões, sentada, de blusa branca e óculos,
comemora com o grupo
bairro de Afogados, alguém conhecido por Elesbão ou “Libão”,
com a ajuda de um amigo, identificado apenas como Eduardo,
decidiu criar um grupo de caboclinhos. Ambos eram estivadores. A
data de fundação é 5 de março de 1897, e uma característica do
grupo, inicialmente denominado “Príncipe do Rio do Rei Canindé”,
era a participação exclusiva de curumins ou crianças. Em 1909,
quando passa a ser conduzido por Manuel Batista da Silva, ou
Manuel Rufino, a agremiação começa a aceitar a presença de
adultos (apenas homens), transfere-se para a Bomba do Hemetério,
bairro onde está ainda hoje, e a denominação muda para Canindé
do Recife.
Em 20 de fevereiro de 1957, sob a direção de José Silva Araújo,
o estatuto é registrado com o nome Club Indígena Canindé,
embora a brincadeira fosse conhecida por Tribo Canindé do Recife.
Poucos anos depois, dois irmãos de Rufino – Miguel e Severino
Batista da Silva – tomam a frente do grupo e é Severino quem
passa a comandá-lo. Tratado entre os colegas por “Criança” e em
família como “Bibiano”, Severino assume a missão de conduzir
o brinquedo, sem perder de vista a íntima relação com a jurema
sagrada. O símbolo do grupo é um índio com arco e flecha. As
cores oficiais são o vermelho e o branco. Desde essa época, década
de 1950, registros orais dão conta da participação feminina, o que
terminou se transformando num diferencial em favor do sucesso
conquistado nas décadas seguintes.
105
Encontro de Caboclinhos, semana pré-carnavalesca, Recife 2010
É o que testemunha e comprova a bisneta, neta e filha de
que, na infância e adolescência, via e ouvia muito mais do que se
juremeiros Juracy Simões da Silva que, pela vida devotada aos
oferece hoje nas performances da tribo. Executado pelos caboclos
cabocolinhos, honra a filiação. Nascida no Recife, em 15 de julho
homens e por algumas caboclas, o característico e rápido bater de
de 1945, o pai era o mestre carpinteiro Bibiano, ou Severino
flechas do grupo – a exemplo da guerra de uma, de duas e de três
Batista da Silva, e a mãe, Lucila Simões da Silva. Guardiã das
–, declara Juracy que só o Canindé faz. Ao som do terno ou dos
tradições religiosas da família e do caboclinho, Juracy vive imersa
caboclos do baque – gaita, tarol e maracaxá, aliados à batida seca
no grupo desde que nasceu, e coordena, de fato, todas as
das preacas (arco e flecha) dos caboclos –, os toques ou gêneros
atividades desde 1985, quando o pai, por problemas de saúde,
musicais executados são guerra, perré, baião, toré ou macumba,
fica impossibilitado de atuar no comando da agremiação. Em
sob os quais se apresentam bandeirista, casal de caciques, os
1994, com o falecimento de Bibiano, funcionário da Prefeitura do
puxantes Jupi e Agaci, dois perós, dois cordões de curumins, dois
Recife, a única filha assume oficialmente a presidência, tornando-
cordões de caboclos e caboclas, o rei e a rainha. São eles que
se a primeira mulher a presidir um caboclinho, alçando, portanto,
exibem a beleza das fantasias, a cadência do ritmo frenético da
à condição de destaque na história do carnaval do Recife, em
percussão e sopro, a leveza dos corpos ágeis a exibir aeróbico
decorrência tanto desse pioneirismo quanto da marcante liderança.
bailado.
A mãe, Lucila, devotada à jurema, enquanto tem saúde segue
colaborando na empreitada da filha. Falece em 2006.
Preocupada com a transmissão da memória do Canindé, sobretudo
direcionada aos jovens, Juracy tem promovido oficinas de
Totalmente familiarizada com o cotidiano da Tribo Canindé,
confecção de figurinos, de dança e de música, auxiliada por Dado,
Juracy conhece não apenas histórias da formação do grupo, mas,
ou Ednaldo Manuel dos Santos, um dos brincantes mais antigos e
sobretudo, a maneira como se desenvolviam as apresentações.
uma espécie de show-man, que ocupa a função do puxante Jupi.
Para cada toque, ela sabe cantar e recitar as linhas, os pontos de
Zelosa quanto às características do Canindé, Juracy cuida para que
caboclo, as loas que vêm sendo excluídas do repertório devido
as fantasias tenham bordados primorosos, tenham vistosas plumas
à exiguidade de tempo nas exibições públicas. Relembra, ainda,
e penas de ave, e que as manobras ou danças sejam executadas
106
com vivacidade, exuberância. Os ensaios ou treinos, momentos
um dos grupos carnavalescos já existentes à época de fundação da
preciosos de interação e aprendizagem, acontecem sempre
Federação Carnavalesca de Pernambuco (1935) –, a Prefeitura do
defronte da sede, e sempre na noite dos domingos, a partir do
Recife promoveu a exposição comemorativa Canindé: 110 anos de
mês de julho, estendendo-se à semana pré-carnavalesca. Há,
resistência, realizada entre 13 de abril e 1º de maio de 2007, na
tradicionalmente, em todos os eventos e reuniões da agremiação,
Casa do Carnaval, Pátio de São Pedro.
principalmente nas semanas anteriores ao Carnaval, uma mesa
de frutas, oferenda aos encantados, das quais se servem os
Concorrendo a edital público do Ministério da Cultura, Canindé
brincantes, ao final.
conquista, no ano seguinte, o Prêmio Culturas Populares 2008
– Mestre Humberto de Maracanã. Em 2009, sai o Batuque Book
Certamente esse rito propiciatório abre caminhos. O Canindé
Cabocolinho, de Climério Santos e Tarcísio Resende, com textos,
esmera-se em todos os quesitos, sempre atraindo olhares
fotos, partituras, mais a gravação de sete faixas de áudio e faixa
admirados. Em 1960, Bibiano levou o grupo a se apresentar em
multimídia dedicadas ao Canindé. Sem perder de vista a cidade tão
Brasília, durante a inauguração do Sesi. Sem jamais perder a
linda e os caminhos distantes de um reino encantado, em fevereiro
realeza, foi campeão nove vezes consecutivas, de 1996 a 2004,
de 2010 o caboclinho foi homenageado na abertura do carnaval
no concurso de agremiações do carnaval do Recife. Em 2003,
do Recife, juntamente ao centenário maracatu Estrela Brilhante
a TV Viva produziu o documentário Três rainhas e um reinado
de Igarassu. Com a firmeza própria do temperamento de Juracy,
de Momo, em que são apresentadas mulheres no comando de
sete caboclos flechando e a devida proteção do rei, as demandas
agremiações, entre elas a carismática Juracy. O primeiro registro
vão se desmanchando e a tribo resplandece. Salve o Rei Canindé
fonográfico do secular caboclinho – No traçado do guerreiro – é de
na Jurema, mestre que garante essa Nação. Quem for Canindé,
2005, realizado pelo músico e produtor cultural Adriano Araújo.
sustente o penacho: este é um rio que não deixará de correr, o rio
Graças à importância do tradicional caboclinho – inclusive este era
do Rei Canindé.
107
Estrela Brilhante
de Igarassu
108
U
ma estrela para nos guiar, canta a loa. Uma Nação muita
antiga, vinda da África para morar em Igarassu. É o que
pronuncia a voz firme de Olga e Gilmar, encantando nossos
ouvidos com as toadas herdadas dos antepassados. Pela voz deles
remontamos aos avós e pais da centenária dona Mariu, chegamos
ao tempo presente, aos seguidores de um baque triunfante a
iluminar toda a família. Se fosse para seguir uma das versões da
história oral relacionada ao grupo, 1730 poderia ter sido o início.
Entretanto, a data oficializada é 8 de dezembro de 1824. O local
era Vila Velha, em Itamaracá, à época pertencente a Igarassu. De
lá, os antepassados do maracatu migraram para o Alto do Rosário.
Mas da cidade de Igarassu o grupo não saiu e é a antiga Rua do
Rosário, no sítio histórico, quem testemunha, há décadas, o canto,
a dança e o batuque de descendentes de escravos. Às mulheres
cabe a dança, os homens ficam com a percussão.
Olga de Santana Batista, filha de dona Mariu, agora é a matriarca,
guardiã da tradição, desde que a mãe, centenária, faleceu em
2003. Olga, nascida em Igarassu a 28 de fevereiro de 1939,
começou a brincar aos 10 anos, como rainha, e com o pai também
brincava cavalo-marinho e fandango. Auxiliada pelo filho caçula,
mestre Gilmar, é com firmeza que os dois lideram rei, rainha,
vassalos, ministros, princesas, dama-regente, dama do paço, portaestandarte, porta-candeeiros, porta-símbolo, baianas, batuqueiros.
Gilmar de Santana Batista é o mestre dos batuqueiros. Rogério
Raimundo de Sousa, o contramestre. Gilberto de Santana Batista
é o porta-estandarte. Dona Rita, a dama-regente, é herdeira de
uma função – a de conduzir a calunga – que coube a dona Mariu
durante os anos todos em que participou da Nação.
Mariu, ou Maria Sérgia da Anunciação, nasceu no dia 8 de
dezembro de 1898 e morreu no dia 8 de outubro de 2003, na
mesma cidade – Igarassu. Sempre na função de dama-regente,
começou a participar do maracatu aos 12 anos. O apego a “dona
Emília”, a calunga de madeira feita pelo carpinteiro Minervino do
Ó, era tanto, que a boneca dormia com ela. Afinal, dona Emília é
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quem manda, cantam as toadas do grupo fincado nas tradições
uma baqueta (ao invés de duas) e uma vareta ou galho de árvore,
do candomblé, para quem a calunga – a evocar ancestrais e
chamado bacalhau, o que confere um toque diferenciado ao
orixás – desempenha primordial função de protetora do folguedo:
baque do Estrela, “um suingue muito mais gostoso”, conforme
trata-se de um objeto ritual. O pai, João Francisco da Silva, passou
demonstra, orgulhoso, o mestre Gilmar, que puxa, entre
a liderança do maracatu para o marido de Mariu, Manoel Próximo
outras toadas, a seguinte: Toque o gonguê / toque o tambor
de Santana. O seu Neusa, como era conhecido Manoel, ficou
/ vem mineiro e caixa / foi o mestre que mandou. Os ensaios
incumbido das funções de rei do maracatu e mestre do batuque.
tradicionalmente ocorrem a partir de setembro e se prolongam
A mãe de Maria Sérgia, dona Mariassu, morreu aos 115 anos.
até a semana pré-carnavalesca. E no período junino, os brincantes
Com o marido, era quem comandava o maracatu e costurava
também se divertem, mas é com o centenário samba de coco e o
manualmente as roupas do grupo. A filha Mariu, que chegou a
banho ou “batismo” de São João pela madrugada do dia 24 de
quase 105 anos, ganhou a festa “100 anos de uma rainha negra”,
junho.
organizada em dezembro de 1998 pela prefeitura de Igarassu. No
centenário, Sérgia relembrou, em entrevista concedida ao Jornal
Entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, o maracatu
do Commercio, em 6 de dezembro de 1998, que, no cortejo real,
passou quatro anos sem se apresentar, conforme registrado
havia antigamente os lanceiros, ou duas crianças que iam à frente
numa reportagem do Diario de Pernambuco, em 11 de fevereiro
da corte fazendo a ordenança do rei e da rainha. Outra ausência,
de 1982, intitulada: “Maracatu volta a desfilar”. Adiante, após
lamentada ainda hoje por dona Olga, é a da calunga Joventina,
mais alguns anos desativado em decorrência do falecimento
que não mais se encontra no acervo do grupo.
de seu Neusa e da impossibilidade de locomoção de dona
Mariu, um grupo de estudiosos da Comissão Pernambucana de
Os instrumentos utilizados no batuque tradicional do Estrela
Folclore, presidida pelo pesquisador Roberto Benjamin, realizou,
Brilhante são zabumba (o mesmo que tambor ou alfaia), tarol
durante 1993, um levantamento das toadas e da história do
(ou caixa de guerra), mineiro (ou ganzá) e gonguê. Os tambores,
grupo e, assim, foi responsável pela retomada do grupo, em
que antigamente eram feitos com barrica de transportar o peixe
janeiro de 1994. A seguir, o grupo não mais parou. Em 1997,
bacalhau, agora talhados no tronco de macaíba, são tocados com
foi o homenageado do carnaval de Igarassu. No mesmo ano,
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Roberto Berliner dirigiu um documentário de três minutos, em
16mm, colorido, no projeto Som da Rua, intitulado Maracatu
Estrela Brilhante. Em 1998, dona Mariu ganhou destaque com o
aniversário de 100 anos, conforme mencionado acima.
O primeiro registro fonográfico aconteceu em 2003, com
gravação ao vivo e ao ar livre, resultando no CD Maracatu Estrela
Brilhante de Igarassu – 180 anos. No início de setembro de 2008,
o grupo viaja a Portugal, para participação no XII Festival Folclore
Internacional Alto Minho, em Viana do Castelo, cidade-irmã de
Igarassu, por esta ter sido fundada pelo capitão Afonso Gonçalves,
natural daquela cidade portuguesa. Ponto de Cultura Estrela
Para Todos desde 2008, o grupo passou a promover oficinas
de percussão e dança e colocou no ar uma home page, em três
línguas. Conquistou o Prêmio Culturas Populares 2008 – Mestre
Humberto de Maracanã, do Ministério da Cultura (Minc), com o
qual realizou a remasterização e reedição do CD comemorativo
aos 180 anos. Foi contemplado com o projeto Cine Mais Cultura
(Minc), edição 2008. O tradicional Coco de Olga também foi
contemplado com o Prêmio Culturas Populares 2009 – Edição
Mestra Dona Isabel. Em fevereiro de 2010, juntamente à
centenária Tribo Canindé do Recife, ganhou homenagem na
abertura do carnaval do Recife, no Marco Zero. Com tantas ações
importantes, com tantas vozes e loas bonitas, sustente o baque,
dona Emília, que o Estrela vai continuar!
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fontes
Chino ITC e Frutiger papel
Offset 120gr/m2 tiragem
Recife 2010
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3000 impressão
Gráfica e Editora Liceu

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