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Mário de Andrade
MACUNAÍMA
Análise da Obra
Dácio Antônio de Castro
Frederico Barbosa
Mário de Andrade
“EU SOU TREZENTOS,
SOU TREZENTOS-E-CINCOENTA”
Mário Raul de Morais Andrade nasceu na rua
Aurora, na cidade de São Paulo, em 9 de outubro
de 1893. Seu pai, o Dr. Carlos Augusto de Andrade,
de origem humilde, conseguira uma situação financeira estável através do próprio esforço e muito trabalho. Sua mãe, dona Maria Luísa, com quem Mário morou até o fim da vida, descendia de bandeirantes, mas não era rica.
Quando adolescente, era um estudante dispersivo, que tirava notas baixas e só se destacava em
Português. Enquanto seus irmãos Carlos, mais velho, e Renato, mais novo — pianista de talento, falecido ainda menino — eram elogiados, Mário era considerado a ovelha negra da família. De repente, começou a estudar. Estudava música até nove horas
por dia, lia muito e logo começou a ganhar fama de
erudito. A família passou a admitir o seu talento,
mas achava esquisitas suas preferências literárias.
Em 1917, Mário conclui o curso de piano no
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo,
publica seu livro de estréia Há uma Gota de Sangue
em cada Poema e conhece Anita Malfatti e Oswald
de Andrade.
Metódico e estudioso, torna-se Catedrático de
História da Música, no Conservatório Dramático e
Musical de São Paulo, em 1922. Para sobreviver, dá
muitas aulas particulares de piano e escreve artigos
de crítica para diversas publicações.
Participa, como um dos principais organizadores, da Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo (1922). Neste mesmo ano, publica
Paulicéia Desvairada (poesia), em que radicaliza as
experimentações de vanguarda modernistas. Em
Clã do Jabuti (1927) trabalha poeticamente as tradições populares que pesquisava. No romance Amar,
Verbo Intransitivo, do mesmo ano, critica a hipocrisia sexual da alta sociedade paulistana.
Em 1928, publica Macunaíma.
Em 1934, é nomeado diretor do Departamento
de Cultura do Município de São Paulo, em que permanece até 1938, quando se muda para o Rio de Janeiro para ser catedrático de Filosofia e História da
Arte e diretor do Instituto de Artes da Universidade
do Distrito Federal. Não se adapta à mudança, vive
deprimido e, “numa noite de porre imenso”, bate
com o punho na mesa do bar e fala para si mesmo:
“Vou-me embora para São Paulo, morar na minha
casa”.
Volta para São Paulo em 1940, trabalha no Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
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que ajudara a criar em 1936, e viaja por todo o Estado de São Paulo, fazendo pesquisas.
Em 1942, publica O Movimento Modernista, famosa conferência em que faz o balanço e a crítica de
sua geração, “assinalando os erros do Modernismo,
principalmente o que considera como “abstencionismo” diante dos graves problemas sociais do seu
tempo”. Sua saúde, já frágil, piora a partir dessa
época. Em 1943, inicia a publicação das suas Obras
Completas, planejada para sair em dezoito volumes.
Em 25 de fevereiro de 1945, aos 51 anos de idade, sofre um ataque cardíaco fulminante e morre,
deixando inacabado o livro Contos Novos (1946),
em que se destacam narrativas de inspiração freudiana, como “Vestida de Preto” e “Frederico Paciência”, e contos de preocupação social, como “O
Poço” e “Primeiro de Maio”.
Como crítico literário, seu legado é imenso. Em
A escrava que não é Isaura (1925), por exemplo, reúne ensaios provocativos contra o passadismo. Já
nos Aspectos da Literatura Brasileira (1943), aborda,
de maneira bem menos passional, os mais importantes escritores da literatura brasileira.
Com sua morte precoce, o Brasil ficou órfão de
um dos seus mais fecundos, múltiplos e íntegros intelectuais que, certa feita, definiu-se como “trezentos, trezentos-e-cincoenta”. Números muito modestos, levando-se em conta sua importância para a
cultura brasileira do século XX.
O BRASIL NA DÉCADA DE 20
A sociedade brasileira, no tempo em que surgiu
Macunaíma, parecia bastante mudada. Já não tinha
aquele ar de fazenda que respiramos durante 4 séculos. Havia muitas fábricas (principalmente em
São Paulo), grandes aglomerados urbanos, com populações de quase 1 milhão de habitantes. O comércio e a indústria prosperavam rapidamente, graças
ao mercado consumidor formado pelos moradores
das cidades e pelos colonos de origem estrangeira.
As mulheres fumavam, iam sozinhas ao cinema,
exibiam as pernas.
Algo impressionava bastante os brasileiros daquele tempo: a velocidade dos meios de comunicação e transporte! Eram carros, bondes, trens, telégrafos, rádios, telefones… Empresas, bancos, bolsas de valores…
Desde 1922, o país parecia estar em ebulição:
além da Semana de Arte Moderna, fora criado o Partido Comunista e iniciado o movimento tenentista,
que, durante toda a década de 20, desafiou o governo
federal. O clímax deste movimento foi a Coluna Prestes que percorreu 33 mil quilômetros do interior do
Brasil, travando mais de 100 combates, em dois anos
e meio (1924-1927). Arthur Bernardes e Washington
Luís usaram todos os meios para combatê-la, lançando até o cangaceiro Lampião no seu encalço. A
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Coluna, porém, não teve força para derrubar o governo central, nem conseguiu rebelar o povo contra
o regime. Esgotada, embora invicta, internou-se na
Bolívia. No entanto, a imagem de Luís Carlos
Prestes, com seus prodígios de técnica militar e de
bravura pessoal, constituiu um mito que exerceu
sobre os intelectuais de esquerda (entre os quais se
incluíam Mário de Andrade, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade) uma grande fascinação. O tenentismo (com seus levantes ao longo da
década), aliado à crise desencadeada pelo estouro
da Bolsa de Nova Iorque (1929), são fatos que se
somam para derrubar a República Velha na triunfante Revolução de outubro de 1930.
A SEMANA DE ARTE MODERNA (1922)
A semana na realidade durou três dias. Mas nunca três dias abalaram tanto o mundo da arte brasileira. Nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, sob o
apadrinhamento do pré-modernista Graça Aranha,
os jovens paulistanos empenhados em revolucionar
a arte apresentaram, pela primeira vez em conjunto, suas idéias de vanguarda.
A Semana, realizada no Teatro Municipal de São
Paulo, foi aberta com a conferência A emoção estética na arte, de Graça Aranha, em que atacava o conservadorismo e o academicismo da arte brasileira.
Seguiram-se leituras de poemas de, entre outros,
Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, que não pôde comparecer e cujo poema Os Sapos foi lido por
Ronald de Carvalho, sob um coro de coaxos e apupos.
Mário de Andrade leu seu ensaio A escrava que
não é Isaura nas escadarias do teatro. Obras de Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Victor Brecheret e outros
artistas plásticos e arquitetos foram expostas. Por
fim, apresentaram-se a pianista Guiomar Novaes e
o maestro e compositor Heitor Villa-Lobos, que não
foi poupado das vaias. A recepção da Semana não
foi tranqüila: as ousadias modernistas inquietavam
e irritavam o público.
MÁRIO DE ANDRADE
E O MODERNISMO
Mário Longínquo
Mário arco-íris, mas tão exato
na modernidade de suas cores e dores
que captamos a só imagem de alegria
e azul disciplinado
lá onde, surdamente,
turvação, paciência e angústia se mesclaram.
Tão mesquinha, tua lembrança
fichada nos arquivos da saudade!
Vejo-te livre, respirando
a fina luz do dia universal
Carlos Drummond de Andrade
in Lição de Coisas
Foram a Semana de 22 e seus desdobramentos
que projetaram Mário de Andrade como figura decisiva do movimento modernista. No processo de
implantação da nova mentalidade cultural, Mário
destacou-se como teorizador e ativista cultural.
Com a determinação própria dos líderes que pretendem injetar uma nova consciência, multiplicou-se
em músico, pesquisador de etnografia e folclore,
poeta, contista, romancista, crítico de todas as artes, correspondente cultural que troca cartas com
artistas novos e consagrados, além de ter ocupado
vários cargos na burocracia estatal, relacionados
com o desenvolvimento da cultura em suas várias
manifestações.
Era um sujeito muito sério, católico fervoroso,
dotado de uma capacidade extraordinária de estudo e ação. Com carisma e afeto, conseguiu colocar a
renovação modernista no trilho de um presente e
de um futuro culturais marcados por um nacionalismo arejado e lúcido. Para ilustrar, acompanhem este fragmento da crônica “Cartaz”, em que Mário afirma, de modo explosivo e altivo, sua intenção de abrasileirar cada vez mais a cultura do país:
“Precisa-se homens sabendo que no mundo tem
países melhores que este e desejando igualar nossa
terra à dos outros!
“Precisa-se pessoas duvidando da nacionalidade
brasileira de Deus mas também não imaginando que
estamos na terra pior do globo e isso não endireita
mais!
“Precisa-se fazendeiros, sitiantes, criadores, senhores de engenho, bem baludos, que não careçam
de ganhar o pão-de-cada-dia e tendo compreensão
enérgica do próprio destino pra em vez de andarem
bestando do Brasil pra França, da França pra Suíça,
se meterem na gerência de Monarquia República
Mosarca Corporation sem intenção de “se arranjar”!
“Precisa-se indígenas sem ideais pré-concebidos
nem idealismos, personalidades praticamente cartesianas, capazes de construir a própria inteligência, as
teorias do pensamento bem como os gestos do braço pelo que as coisas são e nunca pelo que a gente
desejava que fossem!
“Precisa-se nacionais sem nacionalismo, capazes
de entender que são elementos quantitativos da humanidade, qualificados porém pela descendência e
pelo sítio, movidos pelo presente mas estalando naquele cio racial que só as tradições maduram!
“Precisa-se gentes com bastante meiguice no
sentimento, bastante força na peitaria, bastante paciência no entusiasmo e sobretudo, oh! sobretudo
bastante vergonha na cara!
“Precisa-se pra já indivíduos com vergonha na
cara”
Em outras palavras: com caráter.
MACUNAÍMA E A RENOVAÇÃO DA
LINGUAGEM LITERÁRIA
Capa 1ª edição — 1928
Publicado em 1928, numa tiragem de apenas oitocentos exemplares (Mário de Andrade não conseguira editor), Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, é uma das obras pilares da cultura brasileira.
Numa narrativa fantástica e picaresca, ou, melhor dizendo, “malandra”, herdeira direta das Memórias de um Sargento de Milícias (1852) de Manuel Antônio de Almeida, Mário de Andrade reelabora literariamente temas de mitologia indígena e visões folclóricas da Amazônia e do resto do país, fundando uma
nova linguagem literária, saborosamente brasileira.
Macunaíma — bem como Memórias Sentimentais
de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933),
de Oswald de Andrade — foram obras revolucionárias na medida em que desafiaram o sistema cultural
vigente, propondo, por meio de uma nova organização da linguagem literária, o lançamento de outras informações culturais, diferentes em tudo das posições
mantidas por uma sociedade dominada até então pelo
reacionarismo e pelo atraso cultural generalizado.
Nacionalista crítico, sem xenofobia, Macunaíma
é a obra que melhor concretiza as propostas do movimento da Antropofagia (1928), criado por Oswald
de Andrade, que buscava uma relação de igualdade
real da cultura brasileira com as demais. Não a rejeição pura e simples do que vem de fora, mas aproveitar aquilo que há de bom na arte estrangeira. Não
evitá-la, mas, como um antropófago, devorar o que
mereça ser digerido culturalmente.
O tom bem humorado e a inventividade narrativa e lingüística fazem de Macunaíma uma das obras
modernistas brasileiras mais afinadas com a literatura de vanguarda no mundo, na sua época. Nesse
romance, encontram-se soluções ligadas ao Dadaísmo, Futurismo, Expressionismo e Surrealismo, aplicados a um vasto conhecimento das raízes da cultura brasileira.
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A RAPSÓDIA
Mário de Andrade conta que escreveu Macunaíma em seis dias, deitado, bem à maneira de seu herói, em uma rede na “Chácara de Sapucaia”, em Araraquara, SP, no ano de 1926. Diz ainda: “Gastei muito pouca invenção neste poema fácil de escrever (…).
Este livro afinal não passa duma antologia do folclore brasileiro.” A obra é fruto de anos de pesquisa
das lendas e mitos indígenas e folclóricos que o autor reúne, utilizando a linguagem popular e oral de
várias regiões do Brasil.
Trata-se, por isso mesmo, de uma rapsódia. Assim os gregos designavam obras como a Ilíada e a
Odisséia de Homero, que condensam séculos de narrativas poéticas orais, resumindo as tradições folclóricas de todo um povo. Para o musicólogo Mário de
Andrade, o termo certamente remete às fantasias instrumentais que utilizam temas e processos de composição improvisada, tirados de cantos tradicionais
ou populares, como as rapsódias húngaras de Liszt.
Segundo Oswald de Andrade, “Mário escreveu
nossa Odisséia e criou duma tacapada o herói cíclico
e por cinqüenta anos o idioma poético nacional”.
É importante notar que, além de relatar inúmeros
mitos recolhidos de diversas fontes populares, Mário de Andrade também inventa, de maneira irônica,
vários mitos da modernidade. Apresenta, entre outros, os mitos da criação do futebol, do truco, do gesto da “banana” ou do termo “Vá tomar banho!” Há,
em Macunaíma, portanto, além da imensa pesquisa,
muita invenção.
A SÍNTESE DO ROMANCE – RAPSÓDIA
• Capítulo I – Macunaíma: Macunaíma, “herói de
nossa gente” nasceu à margem do Uraricoera,
em plena floresta amazônica. Descendia da tribo
dos Tapanhumas e, desde a primeira infância, revelava-se como um sujeito “preguiçoso”. Ainda
menino, busca prazeres amorosos com Sofará,
mulher de seu irmão Jiguê, que só lhe havia dado
pra comer as tripas de uma anta, caçada por Macunaíma numa armadilha esperta. Nas várias
transas (“brincadeiras”) com Sofará, Macunaíma
transforma-se num príncipe lindo, iniciando um
processo constante de metamorfoses que irão
ocorrer ao longo da narrativa: índio negro, vira
branco, inseto, peixe e até mesmo um pato, dependendo das circunstâncias.
• Capítulo II – Maioridade: De tanto aprontar, foi
abandonado pela mãe no meio do mato. Tremelicando, com as perninhas em arco, Macunaíma botou o pé na estrada até que topou com o Curupira e perguntou-lhe como devia fazer para voltar
pra casa. Maliciosamente, o Curupira ensina-lhe
um caminho errado, que Macunaíma, por preguiça, não seguiu. Escapando do monstro, o herói topou com uma voz que cantava uma toada lenta:
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era a cotia, que depois de ouvir o piá contar como
enganara o Curupira, jogou-lhe em cima calda envenenada de mandioca. Isto fez Macunaíma crescer, atingindo o “tamanho dum homem taludo”.
TEXTO 1
Certa manhã, ao sair pra caçar, Macunaíma mata uma viada parida que tentava salvar o filho. Ao
aproximar-se, Macunaíma percebe que matara a própria mãe. Depois de enterrar o cadáver da mãe, que
vira pedra, os três irmãos e Iriqui “partiram por esse mundo”.
• Capítulo III – Ci, Mãe do Mato: Encontra Ci, a
Mãe do Mato e inventa com ela lindas e novas maneiras de gozos de amor. O resultado desse idílio é
o nascimento de um curumi, que morreu prematuramente depois de mamar no único peito de Ci,
envenenado pela Cobra Preta. Enterrado o filho,
Ci também resolveu deixar este mundo. Deu ao
herói sua muiraquitã famosa e subiu pro céu por
um cipó, transformando-se numa estrela.
• Capitulo IV – Boiúna Luna: Tomado de tristeza,
Macunaíma despediu-se das Icamiabas e partiu
rumo às matas misteriosas. No caminho, encontra
Capei, monstro fantástico que abre a goela e solta uma nuvem de marimbondos. Nas lutas contra
o monstro, Macunaíma perde seu talismã e fica sabendo, através de um uirapuru, que a tartaruga
que engolira sua pedra tinha sido apanhada por
um mariscador. Este vendera a muiraquitã a um
rico fazendeiro chamado Venceslau Pietro Pietra,
proprietário de uma mansão na rua Maranhão,
em São Paulo. Macunaíma resolve, então, vir para
a capital paulista recuperar sua muiraquitã.
• Capítulo V – Piaimã: O herói junta seus irmãos e
desce o Araguaia, com sua esquadra de igarités
cheias de cacau. Em São Paulo, fica sabendo que
Venceslau Pietro Pietra era o gigante Piaimã, comedor de gente, companheiro de uma caapora velha chamada Ceiuci, também antropófaga e muito
gulosa. Esse capítulo apresenta uma das passagens mais saborosas do romance: a chegada de
Macunaíma e seus irmãos à cidade de São Paulo.
Nesse momento, Mário de Andrade inverte os relatos quinhentistas da Literatura Informativa. Aqui
é o índio que se depara com a dita “civilização” e
procura assimilá-la, digerindo-a com suas próprias enzimas culturais.
• Capítulo VI – A francesa e o gigante: Depois de
uma tentativa de aproximação frustrada, Macunaíma resolve se vestir de francesa para conquistar Venceslau Pietro Pietra e reconquistar sua muiraquitã. O regatão não emprestou a pedra nem
quis vendê-la. Mas deixou claro que poderia dá-la
se a francesa resolvesse “brincar” com ele… Muito
inquieto, Macunaíma foge, percorrendo, em louca
correria, grande parte do território brasileiro.
• Capítulo X – Pauí-pódole: A surra que Venceslau
Pietro Pietra recebeu de Exu foi tão violenta que
ele ficou meses numa rede, travado pelos suplícios
a que foi submetido. Sem poder readquirir a muiraquitã, Macunaíma ocupou-se então do complicado estudo das duas línguas da terra, “o brasileiro falado e o português escrito”. Interrompe um
mulato pedante que fazia um verborrágico discurso sobre o Cruzeiro do Sul, falando que aquelas
quatro estrelas que brilham no vasto campo do céu
são, na verdade, o Pai do Mutum, figura zoocosmológica que teve seu corpo de ave metamorfoseado numa constelação.
Del Pino — ilustração para “Macumba”
(desenho 12,5 × 16 cm — Estado de Minas, Belo Horizonte, 30 ago. 1931).
• Capítulo VII – Macumba: Como não tivesse força
suficiente pra matar o gigante, Macunaíma vem
para o Rio de Janeiro procurar o terreiro de macumba da tia Ciata. Pediu à macumbeira vários
castigos pro gigante Piaimã que, além de receber
a chifrada de um touro selvagem, é ferroado por
quarenta mil formigas-de-fogo.
• Capítulo VIII – Vei, a Sol: É também no Rio de
Janeiro que Macunaíma reencontra a Vei, a deusa-sol que pretendia casar uma de suas três filhas
com o herói. Embora tivesse prometido, Macunaíma não cumpriu a palavra empenhada: logo que
anoiteceu, convidou uma portuguesa e brincou
com ela na jangada. Depois foram descansar num
banco da avenida Beira-mar, no Flamengo, quando surgiu Mianiquê-Teibê, monstro de garras
enormes com olhos no lugar dos peitos e duas bocarras nos pés, de dentes aguçados. Macunaíma
saiu correndo pela praia; o monstro comeu a
portuga e desapareceu.
• Capítulo IX – Carta pras Icamiabas: O herói retorna a São Paulo e, saudoso, resolve escrever
uma “carta pras icamiabas”, relatando como era
sua vida em São Paulo. Faz, num satírico estilo beletrista, uma descrição da agitada vida paulistana, com seus arranha-céus, ruas “habilmente estreitas” cheias de gente, cinemas, casas de moda,
ônibus, estátuas e jardim. Nesta pernóstica missiva, o corrupto Imperador faz questão de detalhar
para as amazonas a prática constante de amores
pecaminosos, tanto que ele até pensa em tirar proveito da exploração do lenocínio. Critica o capitalismo selvagem dos paulistas locomotivas e dos
italianos arrivistas, destacando, horrorizado, ao
final, uma curiosidade original deste povo: “falam
numa língua e escrevem noutra”. Depois de abençoar as suas súditas, termina a carta, com a maior
desfaçatez, pedindo mais uma “gaita” pras suas
fiéis icamiabas.
• Capítulo XI – A velha Ceiuci: Depois de ter passado a noite brincando com a patroa da pensão,
Macunaíma falou pros seus irmãos Maanape e
Jiguê que tinha achado “rasto fresco de tapir”, em
pleno asfalto paulistano, junto à Bolsa de Mercadorias. Induziu seus irmãos a caçarem o animal e
estes quase acabam sendo linchados pela multidão que se aglomerou pra assistir à caçada. Um
estudante subiu na capota de um automóvel e discursou contra Maanape e Jiguê. Foi interrompido por Macunaíma que, tomado por um efêmero
acesso de fraternidade, resolveu defender os irmãos entrando no meio da multidão e distribuindo rasteiras e cabeçadas até ser preso por um
“grilo”, soldado da antiga guarda-civil de São Paulo. No meio da confusão, o herói conseguiu fugir
e foi ver como passava o gigante Venceslau Pietro
Pietra, ainda “convalescendo da sova apanhada na
macumba”. Faz uma aposta com o curumi Chuvisco pra ver quem conseguia assustar o gigante
e sua família. Perde a aposta e resolve fazer uma
pescaria. Como não tivesse anzol, o herói se transforma numa “piranha feroz” pra cortar a linha de
um inglês que pescava a seu lado. Acontece que
a velha feiticeira Ceiuci, mulher do gigante, também costumava pescar no igarapé Tietê e prende
o herói. Ao ser pescado pela tarrafa da feiticeira,
Macunaíma vira um pato que devia ser logo comido. Além de brincar com a filha mais moça de
Ceiuci, ludibria-a e foge, montado “num cavalo
castanho-pedrez que pra carreira Deus o fez”. É
uma fuga espetacularmente surrealista: num momento está em Manaus e noutro em Mendoza, na
Argentina.
• Capítulo XII – Tequeteque, Chupinzão e a injustiça dos homens: Desesperado porque ainda
não conseguira reaver a muiraquitã, Macunaíma
se disfarça de pianista e tenta, junto ao governo,
uma bolsa de estudos na Europa, para onde Venceslau Pietro Pietra havia viajado. Não conseguindo a bolsa, sai a viajar com os manos pelo
Brasil pra ver se acha “alguma panela com dinheiro enterrado”. Nestas andanças, encontra
um macaco comendo coquinho baguaçu. Como
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estava com fome, o herói pergunta ao macaco o
que estava comendo e ouve a seguinte resposta
cínica:
“— Estou quebrando os meus toaliquiçus pra comer.” Macunaíma resolveu imitá-lo, agarrou um
“paralelepípedo e juque! nos toaliquiçus. Caiu
morto.” Só conseguiu ressuscitar graças à feitiçaria de Maanape, que colocou no lugar do órgão destruído dois cocos-da-Bahia. Depois “assoprou fumaça de cachimbo no defunto-herói” e
este reanimou-se, tomando guaraná e uma dose
de pinga.
• Capítulo XIII – A piolhenta de Jiguê: Jiguê resolveu se amulherar com Suzi, cunhatã muito velhaca que passava todo o tempo namorando Macunaíma. Jiguê descobre, fica furioso, dá uma
baita surra no herói e expulsa Suzi com uma porretada. Levada por seus piolhos, Suzi vai “pro céu
virada na estrela que pula”.
• Capítulo XIV – Muiraquitã: Maanape comunica
ao herói a volta de Venceslau Pietro Pietra. Macunaíma enche-se de coragem e decide matar o
gigante. Come cobra e, com muita esperteza, coloca Piaimã balançando num cipó de japecanga,
embala-o com força e o gigante acaba caindo
dentro de um buraco onde Ceiuci, a velha caapora, preparava uma imensa macarronada. O gigante cai na água fervente e o cheiro de seu couro cozido, além de matar todos os ticoticos da cidade, provoca o desmaio de Macunaíma. Quando se recupera, o herói apanha a muiraquitã e
volta pra pensão.
Cena da macarronada gigante, no filme “Macunaíma”,
de Joaquim Pedro de Andrade.
• Capítulo XV – A pacuera de Oibê: Morto Piaimã e reconquistada sua muiraquitã, Macunaíma,
Maanape e Jiguê são novamente índios e resolvem voltar para o distante Uraricoera. O herói levava no peito “uma satisfação imensa”, mas não
deixa de ter saudade de São Paulo. Tanto que levava consigo todas as coisas que mais o haviam
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entusiasmado na “civilização paulista”: um casal
de legornes, um revólver Smith-Wesson e um relógio Patek. Um bando de aves forma uma grande tenda de asas coloridas que protegem o Imperador do Mato-Virgem. Nesta viagem de volta feliz, o herói teve novas aventuras amorosas, lembrando-se com saudade da vida dissoluta que levara em São Paulo: encontra-se com Iriqui (antiga
companheira de Jiguê) e com uma linda princesa
que tinha sido transformada num pé de carambola. Com sua muiraquitã, o herói faz uma mandinga e o caramboleiro vira “uma princesa muito chique”, com quem tem vontade de brincar, mas não
pode, pois são perseguidos pelo Minhocão Oibê.
Graças a uma nova mandinga, o herói transforma
Oibê num cachorro-do-mato, de rabo cabeludo e
goela escancarada. Como Macunaíma agora só
queria brincar com a princesa, Iriqui fica tristíssima e sobe “pro céu, chorando luz, virada numa
estrela”.
• Capítulo XVI - Uraricoera: Finalmente, chega ao
Uraricoera natal e, ao passar por um lugar chamado Pai da Tocandeira, reconhece suas raízes e
chora: a maloca da tribo era agora uma tapera arruinada. Uma sombra leprosa devora seus irmãos
e a princesa, e o herói fica “defunto sem choro, no
abandono completo”, empaludado e sem forças
para construir uma oca. Ata sua rede em dois
cajueiros no alto da barranca junto do rio e assim
passa seus dias “caceteado e comendo cajus”. Todas as aves também o abandonam, ficando somente um papagaio pra quem o herói conta todos os
casos que lhe tinham acontecido. Graças a este papagaio é que se salvou do esquecimento a história do herói, parido por uma índia tapanhumas.
• Capítulo XVII – Ursa Maior: Num dia de janeiro
de muito calor, o herói acorda sentindo umas
“cosquinhas”, que até lhe parecem feitas “por
mãos de moça”. Era a última vingança de Vei, a
Sol, tramando para liquidá-lo de vez. Macunaíma
lembra-se de que há muito não brincava e vai tomar banho num lagoão, pensando que a água fria
viria a amortecer seus desejos de amor. O herói,
encaminhando-se para a água, enxerga lá no fundo “uma cunhã lindíssima”, ora branca de cabelos louros, ora morena de cabelos negros, que começa a tentá-lo com danças e meneios. Macunaíma hesita, temeroso, mas acaba mergulhando
na lagoa, desvairado pelos encantos irresistíveis
da uiara. Esta o mutila, devorando-lhe uma perna, os brincos, os cocos-da-Bahia, as orelhas, os
dedões, o nariz e os beiços. Desaparece também
com sua muiraquitã: o herói pula e dá “um grito
que encurtou o tamanho do dia”. Tem ainda força para lançar plantas venenosas no lagoão, matando peixes, piranhas e botos que lá estavam. No
afã de recuperar seus tesouros, Macunaíma
abre-lhe as barrigas e o que encontra reprega no
corpo mutilado, com sapé e cola de peixe. Não
consegue, todavia, reconquistar a perna nem a
muiraquitã, “engolidas pelo monstro Ururau”. E
assim tudo se acaba. Macunaíma, mutilado, vai bater na casa do Pai Mutum, que, com dó dele, faz
uma feitiçaria e transforma-o na constelação da
Ursa Maior. “Ia pro céu viver com a marvada. Ia
ser o brilho bonito mas inútil porém de mais uma
constelação.” Neste balanço que Macunaíma faz
de sua existência, ele dialoga com sua consciência e deixa sua mensagem para a posteridade:
“Não vim no mundo para ser pedra”. A pedra
simboliza disciplina rígida, método, lapidação de
caráter, traços que Macunaíma, a própria encarnação da esperteza e da improvisação, nunca
quis assumir.
• Epílogo: “Acabou-se a história e morreu a vitória”. Os filhos da tribo dos Tapanhumas “se acabaram de um em um”. “Uma feita um homem foi
lá” e, rompendo o “silêncio enorme” que “dormia
à beira-rio do Uraricoera”, ouve-se:
— “Curr-pac, papac! curr-pac, papac!…”
Era o papagaio ao qual Macunaíma havia contado
toda a sua história. “Então o pássaro principiou
falando numa fala mansa, muito nova, muito!”
“Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa
rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso
que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas,
catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em
toques rasgados botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói da nossa gente”. Era o próprio Mário de Andrade. “Tem mais não”.
A FONTE PRINCIPAL
Mário de Andrade nunca escondeu que tomou
como fonte principal para a redação de Macunaíma a
obra Vom Roroima zum Orinoco (Do Roraima ao Orenoco) de Theodor Koch-Grünberg, publicada, em cinco volumes, entre 1916 e 1924. Graças ao monumental trabalho de Manuel Cavalcanti Proença — Roteiro de Macunaíma — podemos acompanhar como o
escritor paulista, para ir tecendo sua rapsódia, foi
reelaborando as narrativas colhidas na obra do alemão, mesclando-a a outras fontes, como livros de
Capistrano de Abreu, Couto Magalhães, Pereira da
Costa ou mesmo relatos orais, como o que o grande
compositor Pixinguinha lhe fez de uma cerimônia de
macumba.
Nas lendas de heróis taulipang e arecuná, apresentadas por Koch-Grünberg, Mário de Andrade encontrou o herói Macunaíma, que, segundo o estudioso alemão, “ainda era menino, porém mais safado que todos os outros irmãos.”
Nas palavras do poeta-crítico Haroldo de Campos:
“O próprio Koch-Grünberg, em sua “Introdução”
ao volume, ressalta a ambigüidade do herói, dotado
de poderes de criação e transformação, nutridor por
excelência, ao mesmo tempo, todavia, malicioso e pérfido. Segundo o etnógrafo alemão, o nome do supremo herói tribal parece conter como parte essencial a
palavra MAKU, que significa “mau” e o sufixo IMA,
“grande”. Assim, Macunaíma significaria “O Grande
Mau”, nome — observa Grünberg — “que calha perfeitamente com o caráter intrigante e funesto do herói”. Por outro lado, os poderes criativos de Macunaíma levaram os missionários ingleses, em suas traduções da Bíblia para a língua indígena, a denominar o
Deus cristão pelo nome do contraditório herói tribal,
decisão que Koch-Grünberg comenta criticamente”.
O HERÓI SEM NENHUM CARÁTER
UM HIPODIGMA
Foi, portanto, na obra do etnólogo alemão que
Mário de Andrade, paradoxal e muito antropofagicamente, encontrou a essência do brasileiro. O próprio autor de Macunaíma, em prefácio que nunca
chegou a publicar com o livro, conta como ocorreu
a descoberta:
“O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro
não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado
isso antes de mim porém a minha conclusão é uma
novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino
apenas uma realidade moral não, em vez entendo a
entidade psíquica permanente, se manifestando por
tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na
língua na História na andadura, tanto no bem como no
mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui
nem civilização própria nem consciência tradicional.
Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os
mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo
iminente, ou consciência de séculos tenham auxiliado,
o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro não. Está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não
é tempo de afirmar coisa nenhuma. […] Pois quando
matutava nessas coisas topei com Macunaíma no
alemão de Koch-Grünberg. E Macunaíma é um herói
surpreendentemente sem caráter. (Gozei)”
As metamorfoses pelas quais passa a personagem, de sabor surrealista, podem muito bem ser associadas à sua “falta de caráter”, assim como o fascínio que revela pela “língua de Camões”, na Carta pras
Icamiabas. Ou mesmo sua inconseqüência, que o leANGLO VESTIBULARES
67
va à morte mais de uma vez: para ser sempre ressuscitado por seu irmão feiticeiro, Maanape.
Manuel Cavalcanti Proença utiliza um termo da
zoologia para definir a personagem de Macunaíma:
“Macunaíma reúne e homogeneiza crendices, superstições, conhecimentos, comportamentos e linguagem
de todas as regiões brasileiras, criando aquele Homo
brasiliensis que o próprio Mário sabia não ter existência real, mas apenas ideal. Como os hipodigmas da
Zoologia, que, não sendo a descrição de nenhum indivíduo particular, contém em si os caracteres todos
que se acham dispersos na população em geral.”
MACUNAÍMA E JOSÉ DE ALENCAR
“Manuscrito da primeira versão do livro”.
No manuscrito do livro, lê-se a seguinte dedicatória, depois suprimida: “A José de Alencar, pai de vivo que brilha no vasto campo do céu”. O livro estabelece evidente relação intertextual com as obras indianistas do escritor romântico. Cavalcanti Proença
(sempre ele) demonstrou no Roteiro de Macunaíma
as diversas relações de semelhança entre Macunaíma e o romance Iracema, de Alencar. Entre essas
destacam-se as semelhanças entre as personagens
de Iracema e de Ci, a mãe do mato:
“Ci aromava tanto que Macunaíma tinha tonteiras
de moleza” (MA) — “Todas as noites a esposa perfumava seu corpo e a alva rede, para que o amor do
guerreiro se deleitasse nela” (J. A.). É a rede de cabelos que torna a Mãe do Mato inesquecível, e é uma
rede que Iracema oferece ao guerreiro branco: —
“Guerreiro que levas o sono de meus olhos, leva a minha rede também. Quando nela dormires, falem em
tua alma os sonhos de Iracema” (J.A.).
68 LITERATURA • Fuvest 2003
Ambas perdem os filhos porque não têm leite. O
de Ci foi a cobra preta que sugou; em Iracema o leite
não chegava ao seio, diluído nas lágrimas de saudade. “A jovem mãe suspendeu o filho à teta; mas a boca infantil não emudeceu. O leite escasso não apojava o peito” (J. A.). Em Macunaíma, o filho do herói
“chupou o peito da mãe no outro dia, chupou mais,
deu um suspiro envenenado e morreu”.
É sintomático, no entanto, que a dedicatória tenha sido suprimida, pois a admiração de Mário de
Andrade por Alencar não se traduz apenas como
reverência e sim como provocação, sátira e, muitas
vezes, como antagonismo, ainda que respeitoso.
Macunaíma é o anti-Peri. Mas também não é um
aimoré, ferozes antagonistas dos portugueses em O
Guarani de Alencar. Como Peri, penetra na civilização branca, mistura-se aos colonizadores. Mas o
faz carnavalizando, não se submetendo. Não é o herói elevado, nobre, mais cavaleiro medieval do que
índio, que Alencar pinta em seu romance. Macunaíma mescla a sua cultura à civilização branca e,
através do humor e da falta de respeito explícita por
essa outra cultura, acaba por revelar suas contradições e incoerências. Se Peri é o protetor incansável
de sua senhora Cecília e da “lei e ordem” tão caras à
civilização ocidental, o “herói sem nenhum caráter”
é o elemento desestabilizador dessa mesma ordem
estabelecida. Sem confrontá-la diretamente, como
os guerreiros Aimorés, Macunaíma subverte a sociedade com que se depara. Como um guerrilheiro
cultural bem humorado e selvagem. Puro Dadá.
Foi Manuel Bandeira quem escreveu que Peri
era “tão pouco índio, é fato, mas tão brasileiro…”. A
leitura de Macunaíma, seu herdeiro antípoda, pode
jogar uma nova luz sobre o genro de D. Antônio de
Mariz. Na sua adesão irrestrita e — por que não dizê-lo? — entreguista à cultura, língua e até à religião do dominador europeu, não seria Peri, em certo sentido, o primeiro “herói sem nenhum caráter”?
MACUNAÍMA E A ANTROPOFAGIA
Embora tenha escrito sua “rapsódia” em 1926,
Mário de Andrade só viria a publicá-la em 1928. Nesse mesmo ano, Oswald de Andrade, António de Alcântara Machado e Raul Bopp lançam a Revista de
Antropofagia, que inicia o movimento de mesmo nome. No número 2 da revista, de junho de 1928, os
“antropófagos” publicam o primeiro capítulo de Macunaíma. A partir desse momento, Oswald de Andrade passa a ser o maior defensor da “rapsódia”.
Assume-a como obra-prima da Antropofagia, “esquecendo-se”, muito convenientemente, que tinha sido escrita muito antes de seu movimento ser deflagrado. Em carta a seu amigo, o crítico Alceu de Amoroso Lima, Mário de Andrade revelava seu receio de
que a Antropofagia “engolisse” a sua obra:
“E vai também a [Revista de] Antropofagia que
não sei como é que o Alcântara não mandou pra você.
Sobre ela tínhamos muito que falar... Antes de mais
nada: não tenho nada com ela mas já estou querendo
bem ela por causa de ser feita por amigos. Só colaboro. Quanto ao manifesto do Osvaldo... acho... nem
posso falar que acho horrível porque não entendo
bem. Isso, como já falei pra ele mesmo, posso falar
em carta sem que fique cheirando intriga nem manejo. Os pedaços que entendo no geral não concordo.
Tivemos uma noite inteirinha de discussão quando
ele inda estava aqui. Mas a respeito de manifestos do
Osvaldo eu tenho uma infelicidade toda particular com
eles. (...) Macunaíma vai sair, escrito em dezembro de
1926, inteirinho em seis dias, correto e aumentado em
janeiro de 1927, e vai parecer inteiramente antropófago... Lamento um bocado essas coincidências todas,
palavra. Principalmente porque Macunaíma já é uma
tentativa tão audaciosa e tão única (não pretendo
voltar ao gênero absolutamente), os problemas dele
são tão complexos apesar dele ser um puro divertimento (foi escrito em férias e como férias) que complicá-lo ainda com a tal de antropofagia me prejudica
bem o livro. Paciência.”
Apesar do receio e de todas essas ressalvas, Mário não deixou de publicar a “entrada” de seu romance na Revista de Antropofagia. E a leitura de alguns
fragmentos do Manifesto Antropófago, de Oswald
de Andrade, só faz confirmar a idéia de que, na verdade, apesar de ter sido escrito antes, Macunaíma
já concretizava as idéias teóricas lançadas por
Oswald de Andrade.
Segundo o Manifesto, a Antropofagia seria a
“única lei do mundo. Expressão mascarada de todos
os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.” Essa
paradoxal mistura de individualismo e coletivismo
encontra na personagem de Macunaíma a sua “perfeita tradução”. Assim como a mescla de todas as
religiões e regiões.
Observe, a seguir, alguns fragmentos do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, escolhidos por apresentarem relação direta com Macunaíma.
• Nunca fomos catequizados. Vivemos através de
um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na
Bahia. Ou em Belém do Pará.
• Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
• Tínhamos a justiça codificação da vingança. A
ciência codificação da Magia. Antropofagia. A
transformação permanente do Tabu em totem.
• Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.
• Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o
Brasil tinha descoberto a felicidade.
• Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de
D. Antônio de Mariz.
• A alegria é a prova dos nove.
• No matriarcado de Pindorama.
• Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do
céu, na terra de Iracema — o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
• Contra a realidade social, vestida e opressora,
cadastrada por Freud — a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.
OSWALD DE ANDRADE
Em Piratininga
Ano 374 da Deglutição do bispo Sardinha.
(Revista de Antropofagia, Ano I, Nº 1, maio de 1928.)
Manifesto Antropófago
“Fragmentos Macunaímicos”
• Tupi or not tupi that is the question.
• Contra todas as catequeses.
• Só me interessa o que não é meu. Lei do homem.
Lei do antropófago.
• Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que
era urbano, suburbano, fronteiriço e continental.
Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
• Contra todos os importadores de consciência enlatada.
• A idade de ouro anunciada pela América. A idade
de ouro. E todas as girls.
Capítulo I — Revista de Antropofagia. (maio, 1928)
Ilustração: desenho de Maria Clemência (1927 — 12 x 17,5 cm)
ANGLO VESTIBULARES
69
Retrato do Brasil
Macunaíma é dedicado a um caro amigo de
Mário de Andrade, Paulo Prado. No mesmo ano de
1928, o ensaísta Paulo Prado publicaria sua maior
obra, Retrato do Brasil: Ensaio sobre a Tristeza
Brasileira. Nele, o companheiro de Mário e Oswald
de Andrade nas lutas pela implantação do Modernismo desenvolve a teoria de que o povo brasileiro
é um povo melancólico. Tal tristeza seria fruto principalmente da confluência do excesso de erotismo e
da cobiça desenfreada. Como o coloca Dante Moreira Leite no livro O Caráter Nacional Brasileiro:
“A História do Brasil é, para Paulo Prado, o desenvolvimento desordenado dessas obsessões — a luxúria e a cobiça — que dominam o espírito e o corpo
de suas vítimas (p. 125)”. Dos excessos da vida sensual ficaram traços no caráter brasileiro, pois “os
fenômenos do esgotamento não se limitam a funções sensoriais e vegetativas, estendem-se até o domínio da inteligência e dos sentimentos. Produzem
no organismo perturbações somáticas e psíquicas,
acompanhadas de uma profunda fadiga, que facilmente toma aspectos patológicos, indo do nojo até o
ódio” (pp.126-127). Como ao lado da sensualidade
havia a cobiça, a luta entre esses apetites iria criar
uma raça triste: “a tristeza sucedeu à intensa vida sexual do colono, desviado para as perversões eróticas,
de um fundo acentuadamente atávico”; de outro lado,
a cobiça não permite a saciedade e “no anseio da procura afanosa, na desilusão do ouro, esse sentimento é
também melancólico, pela inutilidade do esforço e pelo ressaibo da desilusão”. E Paulo Prado torna bem explícita a passagem que faz, da psicologia individual
para a psicologia coletiva: “Luxúria, cobiça: melancolia.
Nos povos, como nos indivíduos, é a seqüência de um
quadro de psicopatia: abatimento físico e moral, fadiga, insensibilidade, abulia, tristeza.” (p. 129).”
Tais obsessões são bem enfatizadas por Mário de
Andrade, desde a sua primeira descrição, no caráter
de Macunaíma, que “punha a mão nas graças” das
cunhatãs que dele se aproximavam e “vivia deitado
mas si punha os olhos em dinheiro, (…) dandava pra
ganhar vintém. O preguiçoso Macunaíma, cujo único
“divertimento (…) era decepar cabeça de saúva” é,
em grande medida, a tradução ficcional desse povo
extremamente fatigado, ganancioso e erotizado.
No prefácio não publicado, Mário de Andrade
reconhece a importância das idéias do amigo na
composição de sua obra:
Não podia tirar a documentação obscena das lendas. Uma coisa que não me surpreende porém ativa
meus pensamentos é que em geral essas literaturas
rapsódicas e religiosas são freqüentemente pornográficas e em geral sensuais. Não careço de citar exemplos. Ora uma pornografia desorganizada é também
da quotidianidade nacional. Paulo Prado, espírito sutil pra quem dedico este livro, vai salientar isso numa
obra de que aproveito-me antecipadamente.
70 LITERATURA • Fuvest 2003
E se ponha reparo que falei em “pornografia organizada”. Porque os alemães científicos, os franceses
de sociedade, os gregos filosóficos, os indianos especialistas, os turcos poéticos, etc. existiram e existem,
nós sabemos. A pornografia entre eles possui caráter
étnico. Já se falam que três brasileiros estão juntos,
estão falando porcaria... De fato. Meu interesse por
Macunaíma seria preconcebido hipocritamente por
demais se eu podasse do livro o que é da abundância
das nossas lendas indígenas (Barbosa Rodrigues, Capistrano de Abreu, Koch-Grünberg) e desse pro meu
herói amores católicos e discrições sociais que não seriam dele pra ninguém.
Temos aí a explicação para as “brincadeiras” sucessivas do nosso “herói”. “Desse pro (…) herói amores católicos e discrições sociais” e Mário de Andrade reinventaria Peri. Mostrando sua “pornografia
desorganizada”, desenha o mais verdadeiro “retrato do Brasil”.
Um dos momentos mais saborosos e irônicos do
livro se dá na descrição que Macunaíma faz, na Carta pras Icamiabas, das mulheres paulistanas. Misturam-se aqui a luxúria e a cobiça a que se refere
Paulo Prado. Note-se que o herói justifica seu pedido
de dinheiro às súditas com a fato de estar gastando
muito com as “manis”, as branquinhas filhas da
mandioca.
[Descrição das paulistanas]
“Sabereis mais que as donas de cá não se derribam a pauladas, nem brincam por brincar, gratuitamente, senão que a chuvas do vil metal, repuxos brasonados de champagne, e uns monstros comestíveis, a que, vulgarmente, dão o nome de lagosta. E
que monstros encantados, senhoras Amazonas!!!
(...)
Pois é com esse delicado monstro, vencedor dos
mais delicados véus paladinos, que as donas de cá
tombam nos leitos nupciais. Assim haveis de compreender de que alvíçaras falamos; porque as lagostas
são caríssimas, caríssimas subditas, e algumas hemos nós adquiridas por sessenta contos e mais; o que
convertido em nossa moeda tradicional, alcança a
vultosa soma de oitenta milhões de bagos de cacau...
Bem podereis conceber, pois, quanto hemos já gasto; e que já estamos carecido do vil metal, para brincar com tais difíceis donas. Bem quiséramos impormos à nossa ardida chama uma abstinência, penosa
embora, para vos pouparmos despesas; porém que
ánimo forte não cedera ante os encantos e galanteios
de tão agradáveis pastoras!
Andam elas vestidas de rutilantes jóias e panos finíssimos, que lhes acentuam o donaire do porte, e mal
encobrem as graças, que, a de nenhuma outra cedem pelo formoso do torneado e pelo tom. São sempre alvíssimas as donas de cá; e tais e tantas habilidades demonstram, no brincar, que enumerá-las, aqui,
seria fastiendo porventura; e, certamente, quebraria
os mandamentos de discrição, que em relação de Imperator para súbditas se requer. Que beldades! Que
elegância! que cachet! Que degagé flamífero, ignívomo, devorador!! Só pensamos nelas, muito embora
não nos descuidemos, relapso, da nossa muiraquitã.
Nós, nos parece, ilustres Amazonas, que assaz ganharíeis em aprenderdes com elas, as condescendências, os brincos e passes do Amor. Deixaríeis então a vossa orgulhosa e solitária Lei, por mais amáveis mesteres, em que o Beijo sublima, as Volúpias encandecem, e se demonstra gloriosa, “urbit et orbe”, a
subtil força do Odor di Fêmia, como escrevem os
italianos.
E já que nos detivemos neste delicado assunto,
não no abandonaremos sem mais alguns reparos, que
vos poderão ser úteis. As donas de São Paulo, sobre
serem mui formosas e sábias, não se contentam com
os dons e exceléncia que a Natura lhes concedeu; assaz se preocupam elas de si mesmas; e não puderem
acabarem consigo, que não mandassem vir de todas
as partes do globo, tudo o que de mais sublimado e
gentil acrisolou a sciéncia fescenina, digo, feminina
das civilizações avitas. Assim é que chamaram mestras da velha Europa, e sobretudo de França, e com
elas aprenderam a passarem o tempo de maneira bem
diversa da vossa. Ora se alimpam, e gastam horas nesse delicado mester, ora encantam os convívios teatrais
da sociedade, ora não fazem coisa alguma; e nesses
trabalhos passam elas o dia tão entretecidas e afanosas que, em chegando a noute, mal lhes sobra vagar para brincarem e presto se entregam nos braços
de Orfeu, como se diz. Mas heis de saber, senhoras
minhas, que por cá dia e noute divergem singularmente do vosso horário belígero; o dia começa quando
para vós é o pino dele, e a noute, quando estais no
quarto sono vosso, que, por derradeiro, é o mais reparador.
(...)
Já agora vos falaremos ainda, bem que por alto,
dum nitente armento de senhoras, originárias da Polónia, que aqui demoram e imperam generosamente.
São elas mui alentadas no porte e mais numerosas
que as areias do mar oceano. Como vós, senhoras
Amazonas, tais damas formam um gineceu; estando
os homens que em suas casas delas habitam, reduzidos escravos e condenados ao vil ofício de servirem.
E por isso não lhes chamam homens, sinão que à voz
espúria de garçons respondem; e são assaz polidos e
silentes, e sempre do mesmo indumento gravebundo trajam.
Vivem essas damas encasteladas num mesmo local, a que chamam por cá de quarteirão, e mesmo de
pensões ou “zona estragada”; sobrelevando notar que
a derradeira destas expressões não caberia, por indina nesta notícia sobre as coisas de São Paulo, não
fora o nosso anseio de sermos exacto e conhecedor.
Porém si como vós, formam essas queridas senhoras
um clã de mulheres, muito de vós se apartam no físi-
co, no género de vida e nos ideais. Assim vos diremos
que vivem à noute, e se não dão aos afazeres de Marte
nem queimam o destro seio, mas a Mercúrio cortejam tão somente; e quanto aos seios, deixam-nos
evolverem, à feição de gigantescos e flácidos pomos,
que, si lhes não acrescentam ao donaire, servem para
numerosos e árduos trabalhos de excelente virtude e
prodigiosa excitação.
Ainda lhes difere o físico, tanto ou quanto monstruoso, bem que de amável monstruosidade, por terem elas o cérebro nas partes pudendas, e, como tão
bem se diz em linguagem madrigalesca, o coração
nas mãos.
Falam numerosas e mui rápidas línguas; são viajadas e educadíssimas; sempre todas obedientes por
igual, embora ricamente díspares entre si, quais morenas, quais fossem maigres, quais rotundas; e de tal
sorte abundantes no número e diversidade, que muito nos preocupa a razão, o serem todas e tantas, originais dum país somente. Acresce ainda que a todas
se lhe dão o excitante, embora injusto, epíteto de
“francesas”. A nossa desconfiança é que essas damas não se originaram todas da Polónia, porém que
faltam à verdade, e são iberas, itálicas, germánicas,
turcas, argentinas, peruanas, e de todas as outras
partes férteis de um e outro hemisfério.
(cap. IX - Carta pras Icamiabas)
Foco Narrativo
Embora predomine o foco da 3ª pessoa, Mário
de Andrade inova utilizando a técnica cinematográfica de cortes bruscos no discurso do narrador,
interrompendo-o para dar vez à fala das personagens, principalmente Macunaíma. Esta técnica imprime velocidade, simultaneidade e continuidade à
narrativa. Exemplo:
“Lá chegado ajuntou os vizinhos, criados a patroa cunhãs datilógrafos estudantes empregadospúblicos, muitos empregados-públicos! Todos esses
vizinhos e contou pra eles que tinha ido caçar na feira do Arouche e matara dois…
— …mateiros, não eram viados mateiros, não,
dois viados catingueiros que comi com os manos.
Até vinha trazendo um naco pra vocês mas porém escorreguei na esquina, caí derrubei o embrulho e o
cachorro comeu tudo.”
(Cap. XI – A Velha Ceiuci)
Espaço e tempo
As estripulias sucessivas de Macunaíma são vividas num espaço mágico, próprio da atmosfera
fantástica e maravilhosa em que se desenvolve a
narrativa. Em seu Roteiro de Macunaíma, mestre
Cavalcanti Proença afirma que Macunaíma se aproxima da epopéia medieval, pois “tem de comum com
aqueles heróis a sobre-humanidade e o maravilhoso.
Está fora do espaço e do tempo. Por esse motivo pode realizar aquelas fugas espetaculares e assomANGLO VESTIBULARES
71
brosas em que, da capital de São Paulo foge para a
Ponta do Calabouço, no Rio, e logo já está em Guajará-Mirim, nas fronteiras de Mato Grosso e Amazonas para, em seguida, chupar manga-jasmim em Itamaracá de Pernambuco, tomar leite de vaca zebu em
Barbacena, Minas Gerais, decifrar litóglifos na Serra
do Espírito Santo e finalmente se esconder no oco de
um formigueiro, na Ilha do Bananal, em Goiás”.
Macunaíma é um personagem outsider, enquanto
marginal, anti-herói, fora-da-lei, na medida em que se
contrapõe a uma sociedade moderna, organizada em
um sistema racional, frio e tecnológico. Assim, o tempo é totalmente subvertido na narrativa. O herói do
presente entra em contato com figuras do passado,
estabelecendo-se um curioso “diálogo com os mortos”: Macunaíma fala com João Ramalho (séc. XVI),
com os holandeses (séc. XVII), com Hércules Florence (séc. XIX) e com Delmiro Gouveia (pioneiro da usina hidrelétrica de Paulo Afonso e industrial nordestino que criou a primeira fábrica nacional de linhas
de costura).
Enumerações e Desregionalização
Chama a atenção do leitor atento, em Macunaíma, a abundância de enumerações.
Já na primeira página do romance encontramos
a enumeração das danças tribais:
“freqüentava com aplicação a murua a poracê o
torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.”
Tais listas colocam em evidência o trabalho de
pesquisa de Mário de Andrade, que nelas freqüentemente mistura elementos de diversas regiões do
país, ao buscar desregionalizar sua obra, procurando “conceber literariamente o Brasil como entidade
homogênea — um conceito étnico nacional e geográfico”. A grande estudiosa da obra de Mário, Telê Porto Ancona Lopez, resume bem o problema:
“Mário de Andrade realizava em suas leituras pesquisa de palavras, termos e expressões características dos diversos recantos do Brasil. Grifava e recolhia.
Depois os empregava, nos conjuntos os mais heterogêneos, procurando anular as especificações do regional, e dar uma visão geral de Brasil (…). É pois,
graças à coleta de palavras que Mário de Andrade
desenvolve, que Macunaíma pode apresentar tão freqüentes enumerações de aves, peixes, insetos ou frutas. Essas enumerações, além de válidas para a quebra do regionalismo, contribuem para a criação de ritmo de embolada, alternando sílabas longas e breves,
no trecho em que se inserem. Ritmo procurado, aliás,
porque o autor não usa vírgulas.”
É importante ressaltar que tais listagens não devem afastar o leitor, que muitas vezes se assusta com
tantos nomes “estranhos”. Eles precedem sempre
uma definição generalizadora como “todas essas danças religiosas da tribo”. Assim, o leitor não deve se
72 LITERATURA • Fuvest 2003
apavorar com a nomenclatura desconhecida e pode
deixar a leitura fluir, sem necessariamente recorrer
ao dicionário para verificar todos os termos — mesmo porque não vai encontrar a maioria deles.
A Carta pras Icamiabas
Precisamente no meio da narrativa, no capítulo IX
da obra, encontramos um “Intermezzo”, como o chamava o autor. Trata-se da “Carta pras Icamiabas”, sátira feroz ao beletrismo parnasiano da época. Macunaíma escreve a suas súditas para descrever-lhes a
cidade de “São Paulo construída sobre sete colinas,
à feição tradicional de Roma, a cidade cesárea, “capita” da Latinidade de que provimos.” Mário de Andrade inverte, aqui, portanto, os relatos dos cronistas
quinhentistas, como Pero Vaz de Caminha, Gabriel
Soares de Sousa ou Pero de Magalhães Gandavo.
Agora é o índio que descreve a terra desconhecida
para seus pares distantes. Sem caráter, Macunaíma
o faz tomando emprestada a linguagem rebuscada
de um Rui Barbosa ou de um Coelho Neto. A paródia torna-se hilariante devido aos erros grosseiros
cometidos pelo falso erudito, que escreve asneiras
como “testículos da Bíblia” por “versículos”, “plagas
hospitalares” por “hospitaleiras” ou “ciência fescenina” por “feminina”.
Com seu estilo pomposo, Macunaíma enuncia,
na Carta pras Icamiabas, o slogan que irá adotar para definir os problemas do Brasil:
“Tudo vai num descalabro sem comedimento,
estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes!
Em breve seremos novamente uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte!... Por isso e para eterna lembrança destes paulistas, que são a única gente
útil do país, e por isso chamados de Locomotivas,
nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico,
em que se encerram os segredos de tanta desgraça:
“POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA,
OS MALES DO BRASIL SÃO.”
Este dístico é que houvemos por bem escrevermos no livro de Visitantes Ilustres do Instituto Butantã, quando foi da nossa visita a este estabelecimento
famoso na Europa.”
(cap. IX - Carta pras Icamiabas)
O slogan recupera conhecido poema de Gregório de Matos (1636-1695), em que o poeta satírico
baiano enumera as vilezas do país, terminando cada estrofe com o irônico refrão: “Milagres do Brasil
são.” Remete, também, à frase do cronista Saint-Hilaire: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva
acaba com o Brasil”.
É importante lembrar que o estilo adotado por
Macunaíma ao redigir sua carta se opõe de maneira
frontal à valorização da linguagem popular, levada
a cabo por Mário de Andrade durante o transcorrer do resto do romance e de toda a sua obra.
Firmemente disposto a experimentar processos
de expressão para chegar a uma língua “brasileira”,
pesquisou sempre fórmulas novas, que o levaram a
forjar regras pessoais de gramática. Chegou até a
anunciar um livro — Gramatiquinha da fala brasileira —, em que estabeleceria sua proposta de renovação da língua “brasileira”. Deixava de acentuar
certas palavras (“ninguem, tambem, Belem”), outras
ele acentuava (“porém, rúim”), grafava certos termos a partir do registro oral (“milhor, siquer, ólio”),
formas de virgular e pontuar que definem no conjunto uma individualidade de estilo inconfundível.
Macunaíma percebe claramente a dicotomia
existente, no Português do Brasil, entre a variante
culta e a popular. No entanto, ao contrário de seu
criador e de seus companheiros de geração, como
Manuel Bandeira e Oswald de Andrade, despreza a
linguagem coloquial e defende o uso de uma língua
erudita e pedante, bem a gosto dos parnasianos. Segundo Mário, em carta a Manuel Bandeira, “Macunaíma, como todo brasileiro que sabe um poucadinho,
vira pedantíssimo. O maior pedantismo do brasileiro
atual é escrever português de lei.” Vejamos como o
“herói sem nenhum caráter” aborda o problema:
“Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra. Assim chegado a estas plagas hospitalares, nos demos ao trabalho de bem nos inteirarmos
da etnologia da terra, e dentre muita surpresa e assombro que se nos deparou por certo não foi das menores tal originalidade lingüística. Nas conversas, utilizam-se os paulistanos dum linguajar bárbaro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas
que não deixa de ter o seu sabor e força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. Destas e daquelas
nos inteiramos, solícito; e nos será grata empresa vôlas ensinarmos aí chegado. Mas si de tal desprezível
língua se utilizam na conversação os naturais desta
terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta
asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que,
com imperecível galhardia, se intitula: língua de Camões! De tal originalidade e riqueza vos há-de ser grato ter sciéncia, e mais ainda vos espantareis com saberdes, que a grande e quasi total maioria, nem essas
duas línguas bastam, senão que se enriquecem do
mais lídimo italiano, por mais musical e gracioso, e
que por todos os recantos da urbs é versado. De tudo
nos inteiramos satisfactoriamente, graças aos deuses;
e muitas horas hemos ganho, discreteando sobre o z
do termo Brazil e a questão do pronome “se”.
Outrossim, hemos adquirido muitos livros bilíngües, chamados “burros”, e o dicionário Pequeno
Larousse; e já estamos em condições de citarmos no
original latino muitas frases célebres dos filósofos e
os testículos da Bíblia.”
(cap. IX – Carta pras Icamiabas)
Morfologia do Macunaíma
Uma das leituras mais importantes da obra de
Mário de Andrade foi realizada pelo poeta e crítico
Haroldo de Campos em seu livro Morfologia do
Macunaíma (1973). Os estudos do folclorista russo
V.I. Propp, que identifica traços invariáveis nas narrativas populares, foram publicados pela primeira
vez em 1928, no livro Morfologia do Conto Maravilhoso. Embora o estudioso russo e Mário de Andrade jamais tenham conhecido a obra um do outro,
Haroldo de Campos aponta a curiosa sincronicidade: o “rapsodo” brasileiro publica Macunaíma no
mesmo ano. Seguindo as idéias de Propp, Campos
realiza uma depurada análise estrutural da narrativa de Mário de Andrade, buscando suas semelhanças com o conto maravilhoso popular. No texto abaixo, fragmento do ensaio “Mário de Andrade: A Imaginação Estrutural” (1973), o próprio Haroldo de
Campos sintetiza as idéias do seu livro. A citação é
longa, porém fundamental, pois Campos, melhor
do que ninguém, consegue encontrar as costuras e a
lógica da narrativa aparentemente desconexa de Macunaíma, que tanto incomodava críticos como João
Ribeiro.
[Uma grande fábula de busca]
“Aplicando ao Macunaíma as técnicas de análise estrutural preconizadas por Propp, ficamos aptos
a reconhecer o “fio da meada” entre as partes “disparatadas” que João Ribeiro se confessa incapaz de
discernir, a congruência que o velho filólogo não
conseguia lobrigar e cuja presumida ausência levou-o
a ver no livro um conglomerado de “fragmentos desconexos”, reunidos ao acaso por um comentador “reduzido à inépcia de qualquer coordenação”. O livro,
uma grande fábula de busca, se constitui de dois “movimentos”. O primeiro, como na protofábula de Propp,
começa por uma “situação inicial” (momento de equilíbrio paradisíaco: o silêncio à beira do Uraricoera). Na
“situação inicial” são apresentados os membros da família: a mãe tapanhumas, o herói, os manos Maanape
e Jiguê (além de Macunaíma, Mário aproveita apenas
dois dos irmãos da lenda taulipang).
Em seguida, há uma “parte preparatória”, constituída por um conjunto de “proibições”/“infrações”:
1. Macunaíma flecha uma veada parida e, metaforicamente, mata a velha mãe; como conseqüência,
afasta-se da “querência natal”, com os manos.
2. Em suas andanças o herói topa com Ci, rainha das
Icamiabas; viola-a, infringindo o “tabu” do celibato das Amazonas, tribo de índias guerreiras. Ci
funciona também como “doadora hostil de objeto
mágico”. Dominada pelo herói (que se socorre dos
manos para vencer a luta amorosa), Ci faz de Macunaíma o Imperador do Mato-Virgem e dá-lhe
um filho, um menino encarnado (na tribo das mulheres solteiras, só as meninas podem sobreviver).
ANGLO VESTIBULARES
73
Como resultado dessa dupla violação de “tabu”, o
menino e Ci acabam morrendo. A amazona, antes
de “subir pro céu”, dá ao companheiro um objeto
de virtudes mágicas, a “muiraquitã” (pedra verde
em forma de sáurio), talismã portador de felicidade terrestre. A “muiraquitã” é posteriormente roubada por um regatão peruano, Venceslau Pietro
Pietra, que, de posse da pedra mágica, se estabelece, enriquecido, em São Paulo, “a cidade macota
lambida pelo igarapé Tietê”. É a “função de dano”,
nó do entrecho fabular, segundo o esquema de
Propp.
A polifábula se desenvolve então com o deslocamento dos manos, liderados pelo herói, ao longo do
Araguaia, até São Paulo, em busca do talismã roubado. Segue-se toda uma série de confrontos, atuais ou
virtuais (a cena da macumba, por exemplo), entre Macunaíma e seu antagonista, Venceslau Pietro Pietra,
que não é outro senão o gigante Piaimã, o “grande
feiticeiro”, bruxo comedor de gente das lendas indígenas do Roraima, que Mário transforma em abastado especulador ítalo-paulista. Finalmente, Macunaíma
tem um embate definitivo com o gigante, e consegue
vencê-lo mediante astúcia (recurso codificado no repertório das fábulas humorísticas, segundo Propp).
Precipita-o do alto de um cipó, que balançava sobre
uma tachada de macarrão fervendo. O gigante Piaimã
cai na macarronada fumegante e é devorado pela esposa canibal, a velha Ceiuci. As últimas palavras do
ogre em sua encarnação italianizada são, como num
repasto dominical em casa de novo-rico paulista: “Falta queijo!”. Recuperada a muiraquitã, Macunaíma e os
manos retornam à “querência” amazônica (a função
proppiana do “retorno”). Termina assim o primeiro
“movimento” do livro.
Para que a narrativa tenha prosseguimento, sempre segundo Propp, é mister que se repita o dano, com
a exploração dos antagonismos deixados em suspenso na primeira parte. Dentro da lógica do desenvolvimento fabular, Mário recorre a Jiguê, o irmão valente, mas “muito bobo”, que disputa com Macunaíma o
primado fraterno, mas é superado em todas as ocasiões pelas manhas do herói caçula. Cansado de se ver
preterido por Macunaíma, que lhe rouba as cunhãs e
se recusa a providenciar comida, Jiguê tenta vingarse, mas termina, uma vez mais, batido pela astúcia
do irmão mais moço. Jiguê vira uma sombra leprosa
e se transforma afinal na segunda cabeça, eternamente faminta, do Pai do Urubu. Resta ainda a explorar um outro antagonismo não resolvido no primeiro
“movimento”. Trata-se de Vei, a deusa sol, que dá sua
proteção a Macunaíma, a certa altura do relato, mas
recebe em troca a ingratidão do herói. Este, em lugar de aceitar uma das três filhas de Vei por esposa,
prefere namorar uma portuguesa, uma varina, recusando assim uma aliança solar (tropical) para entregar-se a amores europeus. Vei, no último lance da sa-
74 LITERATURA • Fuvest 2003
ga andradina, vinga-se do herói, estraçalhando-lhe a
sensualidade com lambadas de calor e jogando-o nos
braços traiçoeiros de uma Uiara no fundo de um lagoão. Macunaíma atira-se nas águas em busca da moça tentadora (que tem traços de Ci) e é atacado e mutilado pelas piranhas. O herói perde uma perna e a
“muiraquitã”, esta engolida pelo monstro-jacaré
Ururau, “que não morre com timbó nem pau”. Com
a segunda perda da “muiraquitã”, desta feita sem reparação possível, fecha-se o ciclo da narrativa.
Da ação fabular, o livro se transfere agora para
um outro nível: o da sublimação alegórica. Privado do
seu talismã existencial, o herói desconsolado resolve
“subir pro céu” e se transformar em estrela. Vira a
constelação da Ursa Maior. “E banza solitário no
vasto campo do céu”. O herói perneta, à busca do seu
perfil étnico e do seu caráter nacional (simbolizado
na “muiraquitã”), é agora uma interrogação estelar.
E como a confirmar o vaticínio radical de Mallarmé:
“Tudo existe no mundo para terminar num livro”, a
busca de Macunaíma, não consumada no plano fabular, redunda num texto, o próprio livro, “as frases e feitos do herói”, que um papagaio remanescente conserva e transmite ao narrador, Mário de Andrade. E
que este nos reconta, numa “fala impura”, “fala mansa, muito nova, muito! que era canto e que era cachiri com mel de pau, que era boa e possuía a traição
das frutas desconhecidas do mato”. Uma das riquezas de Macunaíma é justamente essa “fala nova”
(“impura” segundo os padrões castiços de Portugal),
feita de um amálgama de todos os regionalismos,
mescla de modos de dizer dos mais diferentes rincões do país, com incrustações de indigenismos e africanismos, atravessada por ritmos repetitivos de poesia popular e desdobrada em efeitos de sátira pela paródia estilística. Uma “língua desgeograficada”, que
corresponde isomorficamente, no plano da invenção
verbal, ao sincretismo, à aglutinação de fábulas diversas, no plano estrutural, antes examinado. O melhor
estudioso dessa língua andradina é Cavalcanti Proença, no seu livro-chave, Roteiro de Macunaíma, já
mencionado.”
TEXTO 2
O texto de Haroldo de Campos pode ser sintetizado através do quadro abaixo, que relaciona cada
uma das duas partes levantadas por Campos aos
capítulos respectivos do livro:
A Grande Fábula de Busca
• Situação Inicial
Capítulo 1. Macunaíma
• Parte Preparatória — Proibições/Infrações
Capítulos 2. Maioridade e 3. Ci, Mãe do Mato
• Nó do Entrecho Fabular — Muiraquitã
Capítulo 4. Boiúna Luna
• Deslocamento — São Paulo
Capítulo 5. Piaimã
• Espera/Confrontos
Capítulos 6. A francesa e o gigante, 7. Macumba,
8. Vei, a Sol, 9. Carta pras Icamiabas, 10. Pauí-pódole, 11. A velha Ceiuci, 12. Tequeteque, chupinzão e a injustiça dos homens e 13. A piolhenta de
Jiguê
• Embate Definitivo — Astúcia
Capítulo 14. Muiraquitã
• Retorno
Capítulo 15. A pacuera de Oibê
• Antagonismos não resolvidos
Capítulo 16. Uraricoera
• Sublimação Alegórica
Capítulo 17. Ursa maior
• Situação da enunciação
Capítulo 18. Epílogo
tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera,
que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa
criança é que chamaram de Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
— Ai! que preguiça!…
e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca,
trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos
outros e principalmente os dois manos que tinha.
Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O
divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia
deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos
juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por
causa dos guaimuns diz-que habitando a água-doce
por lá. No mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão
nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô
a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.”
(cap. I – Macunaíma)
Comentário:
Cartaz do filme de Joaquim Pedro de Andrade
TEXTOS COMENTADOS
TEXTO 1
[Apresentação de Macunaíma]
“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma,
herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi
O período inicial do romance — “No fundo do
mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa
gente.” — remete ao início da descrição da heroína
no romance Iracema, de José de Alencar: “Além,
muito além daquela serra que ainda azula no horizonte nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios
de mel (…)”. Note-se que tanto o trecho “muito além
daquela serra que ainda azula no horizonte”, do romance romântico, quanto “No fundo do mato-virgem” do modernista, apontam para a ligação das
obras com os mitos e lendas tradicionais. Basta lembrar que a fórmula inicial dos contos de fadas apresenta em geral um “reino muito distante”. Após a nomeação dos heróis (Iracema e Macunaíma), seguem-se, nos dois casos, apostos.
O rio Uraricoera ou Urariqüera (ura = pássaro +
ri = água corrente + uera = partícula que acrescenta idéia de passado, que já foi e não o é mais)
tem 676 km de extensão. Corta o estado de Roraima. Nasce na encosta oriental da serra Parima e
junta-se ao rio Tacutu para formar o rio Branco,
afluente do rio Negro. Situa-se, portanto, exatamente na região estudada por Koch-Grünberg,
entre os rios Roraima e Orenoco.
O termo tapanhumas (tapuy = bárbaro + una =
negro), que nomeia a tribo de Macunaíma, era utilizado pelos índios para designar o escravo africano
negro. Por outro lado, segundo Cavalcanti Proença,
“Esta tribo está referida em Von den Steinen, habitando a confluência dos rios Tapajós e Arinos”. Macunaíma nasce negro e “bárbaro”. O termo tapuia, da
ANGLO VESTIBULARES
75
mesma origem, era usado pelos índios para designar os bárbaros entre eles. Portanto, “o herói da
nossa gente” já nasce um “outsider”, um deslocado,
marginal entre os próprios índios.
A apresentação do herói deixa claro o seu parentesco com outro grande malandro da nossa literatura, o Leonardo das Memórias de um Sargento
de Milícias (1852/53), de Manuel Antônio de Almeida: “Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e batizado do nosso memorando, e vamos encontrá-lo já na idade de sete anos.
Digamos unicamente que durante todo este tempo o
menino não desmentiu aquilo que anunciara desde
que nasceu: atormentava a vizinhança com um choro
sempre em oitava alta; era colérico; tinha ojeriza particular à madrinha, a quem não podia encarar, e era
estranhão até não poder mais. Logo que pôde andar
e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava
tudo que lhe vinha à mão.”
A famosa expressão “Ai! que preguiça!”, síntese
do “espírito empreendedor” do “nosso herói” não se
resume, segundo Maria Augusta Fonseca, “a uma
simples interjeição individual, mas pretende retratar,
na mestiçagem lingüística e na sonoridade musical,
mais um traço da nacionalidade”. Isso porque o termo tupi que designa o bicho-preguiça é “Aig”. O refrão “Ai! que preguiça!” pode ser interpretado, portanto, como um amálgama do termo tupi com o
português: “Aig Preguiça!”.
Ao descrever o banho coletivo da tribo, assim
como a ingenuidade das mulheres indígenas, Mário
de Andrade reitera conceitos lançados por Pero
Vaz de Caminha da sua famosa Carta do Descobrimento (ou Achamento): “A feição deles é serem
pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e
bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura
alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar
de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a
cara. Acerca disso são de grande inocência. (…) Ali
andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão
cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as
nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.”
Macunaíma revela, ao contrário dos outros membros da tribo, muito pouca inocência. Apresenta, isso sim, um espírito erotizado e sensual desde a mais
tenra infância. O erotismo domina o “herói sem
nenhum caráter”.
O fragmento aponta que “o divertimento (do herói) era decepar cabeça de saúva.” Além de já antecipar, sutilmente, o dístico com o qual Macunaíma
irá resumir os problemas do Brasil: “Pouca saúde e
muita saúva, / os males do Brasil são”, o fragmento
introduz, através do contraste, uma característica
marcante da personalidade do herói. A formiga,
tradicionalmente, (basta lembrar a conhecida fábula
da Cigarra e a Formiga) representa o trabalho in-
76 LITERATURA • Fuvest 2003
cansável, sem fantasia. Macunaíma é a antítese perfeita da formiga. Preguiçoso, quer viver sem trabalhar. Ao afirmar que o herói “vivia deitado mas si
punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava
pra ganhar vintém”, o narrador reforça essas características: a ganância e esperança de ganhar dinheiro fácil.
TEXTO 2
[Macunaíma mata a mãe]
“No outro dia Macunaíma depois de brincar cedinho com a linda Iriqui, saiu pra dar uma voltinha.
Atravessou o reino encantado de Pedra Bonita em
Pernambuco e quando estava chegando na cidade
de Santarém topou com uma viada parida.
— Essa eu caço! ele fez. E perseguiu a viada. Esta escapuliu fácil mas o herói pôde pegar o filhinho
dela que nem não andava quase, se escondeu por
detrás duma carapanaúba e cotucando o viadinho fez
ele berrar. A viada ficou feito louca, esbugalhou os
olhos parou turtuveou e veio vindo veio parou ali
mesmo defronte chorando de amor. Então o herói
flechou a viada parida. Ela caiu esperneou um bocado
e ficou rija estirada no chão. O herói cantou vitória.
Chegou perto da viada olhou que mais olhou e deu
um grito, desmaiando. Tinha sido uma peça do
Anhanga... Não era viada não, era mais a própria
mãe tapanhumas que Macunaíma flechara e estava
morta ali, toda arranhada com os espinhos das titaras e mandacarus do mato.
Quando o herói voltou da sapituca foi chamar os
manos e os três chorando muito passaram a noite de
guarda bebendo oloniti e comendo carimã com peixe. Madrugadinha pousaram o corpo da velha numa
rede e foram enterrá-la por debaixo duma pedra no
lugar chamado Pai da Tocandeira. Maanape que era
um catimbozeiro de marca maior, foi que gravou o
epitáfio. E era assim:
Jejuaram o tempo que o preceito mandava e Macunaíma gastou o jejum se lamentando heroicamente. A barriga da morta foi inchando foi inchando e
no fim das chuvas tinha virado num cerro macio.
Então Macunaíma deu a mão pra Iriqui, Iriqui deu a
mão pra Maanape, Maanape deu a mão pra Jiguê e
os quatro partiram por esse mundo.”
(cap. II – Maioridade)
Comentário:
O primeiro parágrafo apresenta o uso mágico e
aleatório da geografia no romance. A “voltinha” de
Macunaíma envolve ir a Pernambuco e a Santarém
no Pará.
Segundo Cavalcanti Proença, “a morte da mãe
é traço freqüente nas lendas americanas sobre a
criação”. Haroldo de Campos considera o incidente
como uma das principais “infrações”. É após a morte da mãe que Macunaíma e seus irmãos vão sair
perambulando “por esse mundo”.
O epitáfio desenhado por Maanape é repleto de
significados. Muitas dessas inscrições indígenas foram encontradas em cavernas e pedras pelo Brasil.
Seu significado é polêmico. Alguns estudiosos, como
Teodoro Sampaio, consideram-nas epitáfios. Mário
de Andrade, leitor de Sampaio, utilizou-se dessa
teoria para inventar a inscrição.
Mas o que significariam os enigmáticos desenhos
de Maanape? No canto superior esquerdo, há o desenho de um animal, provavelmente a “viada parida”
em que se transformou a mãe do herói. Na parte
superior direita, quatro traços, sendo que um deles
está riscado. Sem dúvida referindo-se ao grupo familiar. O traço riscado é a mãe do herói, os outros
três, Macunaíma, Jiguê e Maanape. Já a figura central apresenta uma junção ideogramática de três
símbolos. Ao mesmo tempo remete à cruz da vida
egípcia, símbolo da alma eterna, ao símbolo do feminino e aos chifres da “viada parida” que representa a mãe do herói. A imagem é forte e apresenta
um tema importante na narrativa: o poder feminino,
o que faz lembrar o “matriarcado de Pindorama” a
que se refere Oswald de Andrade no Manifesto
Antropófago. Tanto a mãe do herói, quanto Ci ou
Vei, a Sol, são representações desse “matriarcado”
que domina o universo de Macunaíma.
TEXTO 3
[A chegada de Macunaíma
e seus irmãos a São Paulo]
“E foi numa boca-da-noite fria que os manos toparam com a cidade macota de São Paulo esparramada a
beira-rio do igarapé Tietê. Primeiro foi a gritaria da papagaiada imperial se despedindo do herói. E lá se foi
o bando sarapintado volvendo pros matos do norte.
Os manos entraram num cerrado cheio de inajás
ouricuris ubussus bacabas mucajás miritis tucumãs
trazendo no curuatá uma penachada de fumo em vez
de palmas e cocos. Todas as estrelas tinham descido
do céu branco de tão molhado de garoa e banzavam
pela cidade. Macunaíma lembrou de procurar Ci. Êh!
dessa ele nunca poderia esquecer não, porque a rede feiticeira que ela armara pros brinquedos fora tecida com os próprios cabelos dela e isso torna a tecedeira inesquecível. Macunaíma campeou campeou
mas as estradas e terreiros estavam apinhados de cu-
nhãs tão brancas tão alvinhas, tão!… Macunaíma gemia. Roçava nas cunhãs murmurejando com doçura:
“Mani! Mani! filhinhas da mandioca…” perdido de
gosto e tanta formosura. Afinal escolheu três. Brincou com elas na rede estranha plantada no chão, numa maloca mais alta que a Paranaguara. Depois, por
causa daquela rede ser dura, dormiu de atravessado
sobre os corpos das cunhãs. E a noite custou pra ele
quatrocentos bagarotes.
A inteligência do herói estava muito perturbada.
Acordou com os berros da bicharia lá embaixo nas
ruas, disparando entre as malocas temíveis. E aquele
diacho de sagüi-açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em que dormira… Que mundo de bichos! que despropósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas socavas
nas cordas dos morros furados por grotões donde
gentama saía muito branquinha branquíssima, de
certo a filharada da mandioca!… A inteligência do
herói estava muito perturbada. As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele que o sagüi-açu não era sagüim não, chamava elevador e era uma máquina.
Demanhãzinha ensinaram que todos aqueles piados
berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram
nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas
não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios
motocicletas telefones gorjetas postes chaminés…
Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O
herói aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou-o um
respeito cheio de inveja por essa deusa de deveras
forçuda, Tupã famanado que os filhos da mandioca
chamavam de Máquina, mais cantadeira que a Mãed’água, em bulhas de sarapantar.
Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser
também imperador dos filhos da mandioca. Mas as
três cunhãs deram muitas risadas e falaram que isso
de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha
deus não e que com a máquina ninguém não brinca
porque ela mata. A máquina não era deus não, nem
possuía os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo,
os homens aproveitando as forças da natureza. Porém jacaré acreditou? nem o herói! Se levantou na
cama e com um gesto, esse sim! bem guaçu de desdém, tó! batendo o antebraço esquerdo dentro do
outro dobrado, mexeu com energia a munheca direita pras três cunhãs e partiu. Nesse instante, falam,
ele inventou o gesto famanado de ofensa: a pacova.
E foi morar numa pensão com os manos. Estava
com a boca cheia de sapinhos por causa daquela pri-
ANGLO VESTIBULARES
77
meira noite de amor paulistano. Gemia com as dores
e não havia meios de sarar até que Maanape roubou
uma chave de sacrário e deu pra Macunaíma chupar.
O herói chupou chupou e sarou bem. Maanape era feiticeiro.
Macunaíma passou então uma semana sem comer
nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória
dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina
era que matava os homens porém os homens é que
mandavam na Máquina… Constatou pasmo que os
filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem
força da máquina sem mistério sem querer sem fastio,
incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço
dum arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu:
— Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate.
Não concluiu mais nada porque inda não estava
acostumado com discursos porém palpitava pra ele
muito embrulhadamente muito! que a máquina devia
de ser um deus de que os homens não eram verdadeiramente donos só porque não tinham feito dela uma
Iara explicável mas apenas uma realidade do mundo.
De toda essa embrulhada o pensamento dele sacou
bem clarinha uma luz: Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens. Macunaíma
deu uma grande gargalhada. Percebeu que estava livre outra vez e teve uma satisfa mãe. Virou Jiguê na
máquina telefone, ligou pros cabarés encomendando
lagostas e francesas.”
(Cap. V – Piaimã)
Comentário:
A passagem é um dos momentos mais ricos do
romance. Como a jandaia de Iracema, os pássaros se
despedem do herói quando ele e seus irmãos chegam à dita civilização. O narrador assume o ponto de
vista dos irmãos ao descrever a cidade de São Paulo.
É uma estranha floresta, repleta de fábricas que a visão desacostumada dos irmãos compara a árvores:
“inajás ouricuris ubussus bacabas mucajás miritis
tucumãs trazendo no curuatá uma penachada de fumo em vez de palmas e cocos.” As luzes da cidade são
estrelas que “tinham descido do céu branco de tão
molhado de garoa e banzavam pela cidade.” Carros
são vistos como bichos, prédios como grandes malocas. Trata-se de uma visão etnocêntrica da cidade que
inverte os relatos quinhentistas eurocêntricos, em que
a civilização indígena é vista com olhos brancos.
O herói encontra logo as “filhas da mandioca”.
Brinca com três delas e entra em contato com a prostituição da cidade. Descobre, então, que tudo é máquina. E passa a filosofar sobre a importância da máquina na civilização dos brancos. Essas reflexões refletem algumas das preocupações dos Futuristas e
antecipam as imagens criadas por Charles Chaplin
no filme Tempos Modernos (1936).
78 LITERATURA • Fuvest 2003
Em meio a tudo isso, o herói contrai “sapinho”,
irônica referência ao fato de os índios brasileiros
quase terem sido dizimados pelas doenças que contraíram dos brancos. É curado por Maanape por
meio de um recurso tirado da crendice popular.
TEXTO 4
[Pedras e palavras]
Foi lá dentro e voltou carregando um grajaú tamanho feito de embira e cheinho de pedra. Tinha
turquesas esmeraldas berilos seixos polidos, ferragem com forma de agulha, crisólita pingo d’água
tinideira esmeril lapinha ovo-de-pomba osso-de-cavalo machados facões flechas de pedras lascadas,
grigris rochedos elefantes petrificados, colunas gregas, deuses egípcios, budas javaneses, obeliscos mesas mexicanas, ouro guianense, pedras ornitomorfas
de Iguape, opala do igarapé Alegre, rubis e granadas
do rio Gurupi, itamotingas do rio das Garças, itacolumitos, turmalinas de Vupabuçu, blocos de titânio
do rio Piriá, bauxitas do ribeirão do Macaco, fósseis
calcáreos de Pirabas, pérolas de Cametá, o rochedo
tamanho que Oaque o pai do Tucano atirou com a
sarabatana lá do alto daquela montanha, um litóglifo
de Calamare, tinha todas essas pedras no grajaú.
Então Piaimã contou pra francesa que ele era um
colecionador célebre, colecionava pedras. E a francesa era Macunaíma, o herói. Piaimã confessou que a
jóia da coleção era mesmo a muiraquitã com forma
de jacaré comprada por mil contos da imperatriz das
icamiabas lá nas praias da lagoa Jaciuruá. E tudo era
mentira do gigante.
(Cap. VI – A francesa e o gigante)
(...)
Macunaíma estava muito contrariado. Venceslau
Pietro Pietra era um colecionador célebre e ele não.
Suava de inveja e afinal resolveu imitar o gigante.
Porém não achava graça em colecionar pedra não
porque já tinha uma imundície delas na terra dele
pelos espigões, nos manadeiros nas corredeiras nas
seladas e gupiaras altas. E todas essas pedras já tinham sido vespas formigas mosquitos carrapatos
animais passarinhos gentes e cunhãs e cunhatãs e
até as graças das cunhãs e cunhatãs... Pra que mais
pedra que é tão pesado de carregar!... Estendeu os
braços com moleza e murmurou:
— Ai, que preguiça!...
Matutou matutou e resolveu. Fazia uma coleção
de palavras-feias de que gostava tanto.
Se aplicou. Num átimo reuniu milietas delas em
todas as falas vivas e até nas línguas grega e latina
que estava estudando um bocado. A coleção italiana
era completa, com palavras pra todas as horas do dia,
todos os dias do ano, todas as circunstâncias da vida
e sentimentos humanos. Cada bocagem! Mas a jóia
da coleção era uma frase indiana que nem se fala.
(Cap. VI – A francesa e o gigante)
(...)
Macunaíma encarou o curumi empalamado e teve
raiva. Quis bater nele porém lembrou de-cor: “Quando você estiver embrabecendo conta três vezes os
botões da vossa roupa”, contou e ficou manso de
novo. Então secundou:
— Quer apostar? Eu faço e aconteço e garanto
que Piaimã vai pra dentro com medo de mim. Esconde lá perto pra escutar só o que eles falam.
Chuvisco avisou:
— Oi, conhecido, tome tento com gigante! Você
já sabe do que ele é capaz. Piaimã está fraco, está fraco porém canudo que teve pimenta guarda o ardume... Si você não tem medo mesmo, aposto.
Virou numa gota e pingou rente de Venceslau
Pietro Pietra com a companheira as filhas e a criadagem. Então Macunaíma pegou na primeira palavra
feia da coleção e jogou na cara de Piaimã. O palavrão bateu de rijo porém Venceslau Pietro Pietra nem
se incomodou, direitinho elefante. Macunaíma chimpou outra bocagem mais feia na caapora. A ofensa bateu rijo porém se incomodar é que ninguém se incomodou. Então Macunaíma jogou toda a coleção de bocagens e eram dez mil vezes dez mil bocagens. Vesceslau Pietro Pietra falou pra velha Ceiuci, bem quieto:
— Tem algumas que a gente não conhece inda
não, guarda pra nossas filhas.
Então Chuvisco voltou pra esquina. O herói garganteou:
— Tiveram medo ou não tiveram!
— Medo nada, conhecido! até o gigante mandou
guardar as bocagens novas pras filhas brincarem.
De mim que eles têm medo, ocê aposta? Vá lá perto
e escute só.
Macunaíma virou numa caxipara que é o macho
da formiga saúva e foi se enroscar na rama de algodão acolchoando o gigante. Chuvisco amontou numa
neblina e quando ia passando em riba da família deu
uma mijadinha no ar. Principiou peneirando uma
chuva-de-preguiça. Quando os pingos vieram caindo o gigante olhou pra um agarrado na mão dele e
teve paúra de água.
— Vam’bora, gente!
E todos com muito medo foram correndo pra
dentro. Então Chuvisco desapeou e disse pra
Macunaíma:
— Está vendo?
E assim até hoje. A família do gigante tem medo
de Chuvisco mas de palavra-feia não.
Macunaíma ficou muito despeitado e perguntou
pro rival:
— Me diga uma coisa: você conhece a língua do
lim-pim-gua-pá?
— Nunca vi mais gordo!
— Pois então, rival: Vá-pá-à-pá mer-per-da-pá!
(Cap. XI – A velha Ceiuci)
Comentário:
No livro Macunaíma: A pedra mágica do discurso (Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, 1988), Eneida Maria de Souza analisa de
forma brilhante e definitiva os fragmentos anterior:
“A relação de Macunaíma com as pedras remonta ao mito de origem, em que o “herói civilizado” era
dotado de propriedades mágicas de transformar tudo em pedras; o Macunaíma de Mário possui também
tais propriedades e a prova mais evidente é a metamorfose da cidade de São Paulo em bicho-preguiça
de pedra. Contudo, o que nos interessa ressaltar são
as transformações efetuadas pelo herói no domínio
da linguagem, em que a petrificação se processa em
outro nível.
Esse procedimento, resultado da releitura feita
pelo autor do texto indígena, é simétrico e inverso às
realizações da personagem do mito: por um lado, a
inversão se opera pela transposição de pedras em
palavras; por outro, a coleção de nomes-feios visa a
preencher a falta das coisas pelo domínio fictício da
linguagem. A “petrificação” se manifesta de maneira
ambivalente: os palavrões assumem o estatuto de
“signos vivos”, logo, não petrificados; em contrapartida, eles substituem as pedras e são utilizados como
dispositivos de combate. A passagem das coisas a
palavras resulta do mecanismo ambivalente da “petrificação-animada” dos signos.
A coleção de pedras do gigante é descrita por
meio de um encadeamento sintagmático de vocábulos que saem uns dos outros e seguem o fio sonoro e
contagiante da cadeia. A acumulação dos elementos
é, contudo, descontínua, uma mistura heteróclita de
várias espécies de pedras, de esculturas de origem
grega, romana, asiática, entre outras. A decoração
da casa de Venceslau Pietro Pietra constitui-se de um
aglomerado heteróclito de objetos de arte, onde cada pedra esculpida remete a uma história, uma civilização. Esse ambiente, de natureza “kitsch”, reproduz
a imagem de um falso museu arqueológico em que o
proprietário encarna a figura do novo rico, cuja maior
ambição é exibir cópias artísticas de proveniências
diversas.
O efeito produzido pela enumeração dessas “riquezas” é revelador da gratuidade e do excesso, tanto dos objetos quanto dos signos, na medida em que
a riqueza do inventário exaustivo dos tesouros reflete o gigantismo da linguagem e de uma conduta de
vida. A fetichização dos objetos se relaciona com a
fetichização das palavras, remetendo para a vacuidade de sua significação e valor. (...)
Macunaíma, travestido em francesa, vê-se finalmente frustrado na tentativa de recuperar a muiraquitã, escondida entre os tesouros do gigante. A única saída encontrada para suprir o fracasso é colecionar palavrões, pois, “pra que mais pedra que é tão
pesado de carregar!...”. A substituição se efetua seANGLO VESTIBULARES
79
gundo um mecanismo de ordem metonímica: a aquisição lingüística se compõe de nomes feios em língua latina, grega, italiana, assim como Venceslau coleciona pedras e esculturas de igual proveniência.
A petrificação-imobilização das entidades arcaicas do gigante se consubstancializa em “signos grosseiros”, os quais mantêm um elo semântico com os
objetos artísticos, constituindo, assim, a única arma
capaz de colocar Macunaíma em concorrência com o
adversário. O mimetismo da coleção de palavrões culmina com a substituição da jóia da coleção de pedras, a muiraquitã, pela jóia verbal cunhada pelo
herói, uma “frase indiana que nem se fala”. O tesouro adquirido por Piaimã, a pedra da sorte, é suplantado, em Macunaíma, pelo poder ilusório dos nomes
feios. (...)
O encontro de Macunaíma com Chuvisco (cf. cap.
“A velha Ceiuci”) é motivo de uma aposta para resolver qual dos dois espantaria e venceria Piaimã. O
herói lança nomes-feios que são a “concretização”
das pedras, atualizando o processo de petrificaçãomobilização das palavras. Macunaíma, revelando-se
sempre forte em palavras e fraco em ações, ataca o
gigante com injúrias, tomando as palavras ao pé da
letra, como se essas fossem pedras. Se a coleção de
nomes-feios resultava de um mecanismo de deslocamento (as pedras do gigante foram substituídas por
palavrões), essa atitude prepara o gesto posterior de
Macunaíma de condensar as palavras e as coisas. A
linguagem torna-se ação, as palavras são lidas ao pé
da letra e a coleção de bocagens poderia cumprir a
função na qual Macunaíma acredita: o pragmatismo
da linguagem. Lapidar o adversário por meio de signos-coisas conjuga a ação real com o ato de linguagem, atualizando-se a frase feita: atirar pedras
em alguém. (...)
Se a acumulação das pedras da casa do gigante
se configura em um gigantismo da enumeração, o
gigantismo dos palavrões reflete o aumento dos vocábulos e das expressões. A disputa torna-se, portanto, fictícia, situando-se no nível da linguagem, os
palavrões substituindo a força física. O narrador, jogando com as palavras da maneira pela qual Macunaíma as manipula, produz a batalha no interior das
frases. O caráter frágil dos signos e sua incapacidade
de suplantar o real são evidenciados, na disputa,
quando Chuvisco, por um gesto real — “uma mijadinha no ar”, principiando uma chuva-de-preguiça —
provoca medo em Piaimã. A eficácia desse ato
suplanta os palavrões de Macunaíma, considerados
poderosos e amedrontadores.”
Cabe apenas acrescentar que, pouco antes de
morrer, Macunaíma escreve seu próprio epitáfio.
Reforçando as reflexões de Eneida Maria de Souza,
as palavras que o herói deixa inscritas são: NÃO
VIM NO MUNDO PARA SER PEDRA.
80 LITERATURA • Fuvest 2003
EXERCÍCIOS
Testes
1. (FMU) — Romance do qual se disse que possui, em
seu protagonista, uma figura trabalhada, simbolicamente, como síntese de um presumido “modo de ser
brasileiro” descrito como luxurioso, ávido, preguiçoso e sonhador, caracteres que lhe atribuía um
teórico do Modernismo, Paulo Prado, em Retrato do
Brasil. Trata-se de:
a)
b)
c)
d)
e)
Amar, Verbo Intransitivo
Angústia
Menino de Engenho
Macunaíma
Memórias Sentimentais de João Miramar
2. Compreender Macunaíma é sondar ambas as motivações: a de narrar, que é lúdica e estética; a de interpretar, que é histórica e ideológica.
A ponderação lida sobre essa obra de Mário de Andrade sugere que se deve:
a) acompanhar as peripécias de um herói desconcertante, reconhecendo nelas cortes valorativos
da cultura nacional.
b) subordinar as intenções ideológicas do autor aos
limites de expressão das lendas indígenas que
inspiram as narrativas.
c) fundir, numa leitura orgânica, o prazer de acompanhar uma fábula e o de reconhecer os ideais
estéticos que ela ilustra.
d) reconhecer nesse romance, acima do humor que
lhe dá o tom, o projeto político que seu protagonista encarna.
e) analisar os aspectos ideológicos da obra, do
mesmo ângulo em que se coloca o autor nos seus
manifestos estéticos.
3. (ITA-90) — “Por ser uma narrativa composta de lendas, mitos indígenas e sertanejos, considera-se a
obra uma rapsódia. A personagem central parece
encarnar a figura do malandro. Desde o nascimento,
em plena floresta amazônica, o herói (ou anti-herói)
revela-se sem nenhum caráter. Acompanhado de
seus dois irmãos, vem para S. Paulo. Procura o talismã que o gigante Piaimã havia lhe furtado, conseguindo recuperá-lo. Volta, então, para a Amazônia,
onde participa de novas aventuras e morre,
transformando-se na Constelação da Ursa Maior.”
Um dos excertos a seguir pertence à obra a que se
referem as informações acima. Assinale-a:
a) “— Mas que catingueiros esses! O herói nunca
matou viado! Não tinha nenhum viado na caçada
não! Gato miador, pouco caçador, gente! Em vez
foram dois ratos chamuscados que ele pegou e
comeu.”
b) “— És filho de uma pisadela e de um beliscão;
mereces que um pontapé te acabe a casta.”
c) “O Curupira não é de brincadeira. Não vem fazer
“artes” nos sítios e fazendas. Mas ai de quem
invade seus domínios, suas verdes florestas cheias
de animais felizes e cheias de pássaros que cantam
nas ramadas!...”
d) “O dia todo, ele chorava, percurava, percurava, não
tava acreditando. Eh, arregalava os olhos. Chega
que andava em roda, zuretando. Me percurou até
em buraco de formigueiro. Mas ele tava com medo de gritar e espantar a onça, então falava baixinho meu nome... Preto Bijibo tremia, que eu escutava dente estalando, que escutava. Tremia: feito
piririca de carne que a gente assa em espeto.”
e) Travou-se a batalha. (...) De um lado o Carão com
mais de 400 anos, cinzento, encorujado, de penas
híspidas e sujas. Carranca e misoneísta, miolo mole e intransigente. De outro lado o curupira; ágil,
matinal, irônico, onímodo. O Espírito Velho contra o Espírito Novo. Luta de morte e Revolução.”
Para responder às questões 4 e 5, leia os dois textos
abaixo:
[Descrição da cidade de São Paulo]
“É São Paulo construída sobre sete colinas, à feição
tradicional de Roma, a cidade cesárea, “capita” da
Latinidade de que provimos; e beija-lhe os pés a grácil e
inquieta linfa do Tietê. As águas são magníficas, os ares
tão amenos quanto os de Aquisgrana ou de Anverres, e a
área tão a eles igual em salubridade e abundância, que
bem se poderá afirmar, ao modo fino dos cronistas, que de
três AAA se gera espontaneamente a fauna urbana.
Cidade é belíssima, e grato o seu convívio. Toda cortada de ruas habilmente estreitas, tomadas por estátuas e
lampiões graciosíssimos e de rara escultura; tudo diminuindo com astúcia o espaço de forma tal, que nessas artérias não cabe a população. Assim se obtém o efeito dum
grande acúmulo de gentes, cuja estimativa pode ser
aumentada à vontade, o que é propício às eleições que são
invenção dos inimitáveis mineiros; ao mesmo tempo que
os edis dispõem de largo assunto com que ganhem dias
honrados e a admiração de todos, com surtos de eloqüência do mais puro estilo e sublimado lavor.
As ditas artérias são todas recamadas de ricocheteantes papeizinhos e velívolas cascas de fruitos; e em principal
duma finíssima poeira, e mui dançarina, em que se despargem diariamente mil e uma espécimens de vorazes macróbios, que dizimam a população. Por essa forma resolveram, os nossos maiores, o problema da circulação;
pois que tais insetos devoram as mesquinhas vidas da ralé
e impedem o acúmulo de desocupados e operários: e assim se conservam sempre as gentes em número igual. E
não contentes com essa poeira ser erguida pelo andar dos
pedestrianistas e por urrantes automóveis e máquinas a
que chamam “automóveis” e “eléctricos”, (empregam alguns a palavra Bond, voz espúria, vinda certamente do inglês) contrataram os diligentes edis, uns antropóides,
monstros hipocentáureos azulegos e monótonos, a que
congloba o título de Limpeza Pública; que “per amica silentia lunae”, quando cessa o movimento e o pó descansa
inócuo, saem das suas mansões, e, com os rabos girantes
a modo de vassouras cilíndricas, puxadas por muares,
soerguem do asfalto a poeira e tiram os insectos do sono,
e os concitam à actividade com largos gestos e grita formidanda. Estes afazeres nocturnos são discretamente conduzidos por pequeninas luzes, dispostas de longe e longe, de
maneira a permanecer quasi total a escuridade, não perturbem elas os trabalhos de malfeitores e ladrões.”
[Fragmento da Carta pras Icamiabas – Macunaíma,
de Mário de Andrade]
“Tenho explicado as fruitas e legumes,
que dão a Portugal muitos ciúmes;
tenho recopilado
o que o Brasil contém para invejado,
e para preferir a toda a terra,
em si perfeitos quatro AA encerra.
Tem o primeiro A, nos arvoredos
sempre verdes aos olhos, sempre ledos;
tem o segundo A, nos ares puros
na tempérie agradáveis e seguros;
tem o terceiro A, nas águas frias,
que refrescam o peito, e são sadias;
o quarto A, no açúcar deleitoso,
que é do Mundo o regalo mais mimoso.
São pois os quatro AA por singulares
Arvoredos, Açúcar, Águas, Ares.
[Fragmento do poema À Ilha de Maré, de Manuel
Botelho de Oliveira (1636-1711)]
4. O pedantismo de Macunaíma na Carta pras Icamiabas pode ser detectado, na “Descrição da cidade de
São Paulo”, através de vários aspectos. Aponte a alternativa que não contenha um deles.
a) uso abundante de expressões latinas.
b) uso de vocábulos eruditos, como “edil”, “linfa” e
“hipocentáureos”.
c) o desprezo por “estrangeirismos” como “Bond”.
d) o elogio da eloqüência e do “estilo puro” dos discursos políticos.
e) a crítica aos problemas da cidade grande.
5. Que tipo de relação existe entre os dois textos?
a) Trata-se de uma relação intertextual. Mário de
Andrade ironiza o texto de Botelho de Oliveira, ao
fazer Macunaíma citá-lo de forma atabalhoada.
b) Trata-se de uma relação metalingüística. Mário de
Andrade ironiza o texto de Botelho de Oliveira, ao
fazer Macunaíma citá-lo de forma atabalhoada.
c) Trata-se de uma relação intertextual. Mário de Andrade homenageia o texto de Botelho de Oliveira,
ao fazer Macunaíma, o seu herói, citá-lo literalmente.
d) Não se pode estabelecer qualquer relação entre os
textos, pois foram escritos em épocas muito distintas.
e) Trata-se de uma relação metalingüística. Mário de
Andrade homenageia o texto de Botelho de
Oliveira, ao fazer Macunaíma, o seu herói, citá-lo
literalmente.
Questões
Leia o fragmento do romance abaixo para responder
às questões 6 e 7:
[Um macaco]
Macunaíma seguiu caminho. Légua e meia adiante
estava um macaco mono comendo coquinho baguaçu.
Pegava no coquinho, botava no vão das pernas junto com
uma pedra, apertava, e juque! a fruta quebrava.
Macunaíma veio e esgurejou com a boca cheia d’água.
Falou:
— Bom dia, meu tio, como lhe vai?
— Assim assim, sobrinho.
ANGLO VESTIBULARES
81
— Em casa todos bons?
— Na mesma.
E continuou mastigando. Macunaíma ali, sapeando. O
outro enquizilou assanhado:
— Não me olhe de banda que não sou quitanda, não
me olhe de lado que não sou melado!
— Mas o que você está fazendo aí, tio!
O macaco mono soverteu o coquinho na mão fechada
e secundou:
— Estou quebrando os meus toaliquiçus para comer.
— Vá mentir na praia!
— Uai, sobrinho, si tu não dá crédito então pra que
pergunta!
Macunaíma estava com vontade de acreditar e indagou:
— É gostoso, é?
O mono estalou a língua:
— Chi! prove só!
Quebrou de escondido outro coquinho, fingindo que
era um dos toaliquiçus deu pra Macunaíma comer.
Macunaíma gostou bem.
— É bom mesmo, tio! Tem mais?
— Agora se acabou mas si o meu era gostoso que fará
os vossos! Come eles, sobrinho!
O herói teve medo:
— Não dói, não?
— Qual, si até é agradável!...
O herói agarrou num paralelepípedo. O macaco mono
rindo por dentro inda falou pra ele:
— Você tem mesmo coragem, sobrinho?
— Boni-t-ó-tó macacheira mocotó! o herói exclamou
empafioso. Firmou bem o paralelepípedo e juque! nos
toaliquiçus. Caiu morto. O macaco mono caçoou assim:
— Pois, meus cuidados, não falei que tu morrias! Falei!
Não me escutas! Estás vendo o que sucede pros desobedientes? Agora: sic transit!
Então calçou as luvas de balata e foi-se. Daí a pouco
veio uma chuvarada que refrescou a carne verde do herói,
impedindo a putrefação. Logo se formou um poder de correições de formigas guajuguajus e murupetecas pro corpo
morto. O advogado Fulano atraído pelas correições topou
com o defunto. Abaixou, tirou a carteira do cadáver porém
só tinha cartão-de-visita. Então resolveu levar o defunto
pra pensão, fez. Carregou Macunaíma nas costas e foi andando. Porém o defunto pesava por demais e o advogado
viu que não podia com o peso. Então arreou o cadáver e
deu uma coça de vara nele. O defunto ficou levianinho e o
advogado Fulano pôde levá-lo pra pensão.
Maanape chorou muito se atirando sobre o corpo do
mano. Depois descobriu o esmagamento. Maanape era feiticeiro. Logo pediu de emprestado pra patroa dois cocosda-Bahia, amarrou-os com nó-cego no lugar dos toaliquiçus amassados e assoprou fumaça de cachimbo no
defunto herói. Macunaíma foi se erguendo muito desmerecido. Deram guaraná pra ele e daí a pouco matava sozinho
as formigas que inda o mordiam. Estava tremendo muito
porque por causa da chuvarada a friagem batera de repente. Macunaíma tirou a garrafinha do bolso e bebeu o resto
da pinga pra esquentar. Depois pediu uma centena pra
Maanape e foi até um chalé jogar no bicho. De-tarde quando viram, a centena tinha dado mesmo. E assim eles viveram com os palpites do mano mais velho. Maanape era
feiticeiro.
6. Macunaíma é o herói sem nenhum caráter. Na realida-
(Macunaíma - cap. XII - Tequeteque,
Chupinzão e a Injustiça dos Homens)
“esperto”, acaba caindo no truque do macaco. Está,
portanto, nesse fragmento, mais próximo do “selva-
82 LITERATURA • Fuvest 2003
de, o seu caráter se modifica de cena a cena no transcorrer da rapsódia. Assim sendo, como se revela a
personalidade de Macunaíma no fragmento acima?
7. Leia a definição do Dicionário Aurélio Eletrônico
para o termo “correição”:
Correição: [Do lat. correctione.] S. f. 1. Ato ou efeito
de corrigir; correção. 2. Função administrativa, em
via de regra de competência do poder judiciário,
exercida pelo corregedor. 3. Visita do corregedor às
comarcas, no exercício de suas atribuições. 4. Bras.
V. formiga-correição. 5. Bras. Desfilada de formigas
em trabalho. 6. Bras. Aparição, em determinada
época, de numerosas formigas e outros insetos.
a) Explique o jogo estabelecido por Mário de Andrade na utilização do termo.
b) Aponte a frase do texto que critica o advogado,
sugerindo sua ganância.
As questões 8 a 10 se referem à Carta pras Icamiabas,
capítulo IX de Macunaíma. Releia os fragmentos da
carta presentes nesse estudo para respondê-las.
8. Como a Carta pras Icamiabas se relaciona aos textos
dos cronistas quinhentistas?
9. Por que podemos considerar, do ponto de vista lingüístico, a Carta pras Icamiabas como uma paródia
irônica e hilariante?
10. Que aspectos da personalidade de Macunaíma se
destacam na descrição que faz das paulistanas na
Carta pras Icamiabas?
11. (FUVEST-2000) — De vez em quando Macunaíma
parava pensando na marvada… Que desejo batia nele!
Parava tempo. Chorava muito tempo. As lágrimas
escorregando pelas faces infantis do herói iam lhe
batizar a peitaria cabeluda. Então ele suspirava sacudindo a cabecinha:
(…)
(Mário de Andrade, Macunaíma)
a) Neste excerto, como se caracateriza fisicamente
Macunaíma?
Tendo em vista a história do herói, diga qual é a
origem dessas características.
b) Essas características físicas do herói têm alguma
relação com suas características psicológicas?
Justifique brevemente sua resposta.
RESPOSTAS:
1. D
2. A
3. A
4. E
5. A
6. Macunaíma revela-se ingênuo. Embora pretenda ser
gem ingênuo” descrito por Caminha em sua famosa
carta do que do “malandro” brasileiro.
7. a) A palavra correição tem um sentido jurídico e outro popular. Mário de Andrade brinca com os dois
significados, pois as “correições” de formigas
acabam atraindo para o corpo do herói morto um
advogado.
b) “Abaixou, tirou a carteira do cadáver porém só tinha cartão-de-visita.”
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
Edições de Macunaíma:
•
ANDRADE, Mário de — Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, ed. crítica de Telê Porto Ancona Lopez, coordenadora. Rio
de Janeiro/São Paulo, LTC/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1978.
•
ANDRADE, Mário de — Macunaíma: o herói sem nenhum
caráter, ed. crítica de Telê Porto Ancona Lopez, coordenadora.
Paris, Association Archives de la Littérature latino-américaine,
des Caraïbes et Africaine du XXe siècle; Brasília, DF: CNPq, 1988.
(Col. Arquivos; vol.6)
8. Mário de Andrade inverte, aqui, os relatos dos cronistas quinhentistas, como Pero Vaz de Caminha ou Pero
de Magalhães Gandavo. Agora é o índio que descreve a terra desconhecida para seus pares distantes.
(Nota: As duas edições trazem diversos estudos importantes sobre a obra)
9. Sem caráter, Macunaíma a escreve tomando emprestada a linguagem rebuscada de um Rui Barbosa ou
de um Coelho Neto. A paródia torna-se irônica e hilariante devido aos erros grosseiros cometidos pelo
falso erudito, que escreve asneiras como “Odor di Femia” por “Odor di Femina”, “testículos da bíblia” por
“versículos”, ou “ciência fescenina” por “feminina”.
10. Seu pendor erótico. A propensão de Macunaíma para a luxúria é evidenciada na descrição das paulistanas, pois preocupa-se apenas em apontar o lado sexual das habitantes de São Paulo. Descreve as prostitutas, as mulheres “caras”, que se colocam à venda.
Obras diretamente utilizadas:
•
CAMPOS, Haroldo de — Morfologia do Macunaíma. São Paulo,
Perspectiva, 1972.
•
CUNHA, Antônio Geraldo da — Dicionário Histórico das Palavras
Portuguesas de Origem Tupi. São Paulo, Melhoramentos / Ed. da
Universidade de São Paulo, 1978.
•
HOLLANDA, Heloísa Buarque de — Macunaíma — da literatura
ao cinema. Rio de Janeiro, José Olympio/Empresa Brasileira de
Filmes, 1978.
•
JACKSON, K. David. — A Vanguarda Literária no Brasil.
Bibliografia e Antologia Crítica. Frankfurt am Main / Madrid:
Vervuert / Iberoamericana, 1998.
•
LEITE, Dante Moreira — O Caráter Nacional Brasileiro, 2ª edição.
São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1969.
•
LOPEZ, Telê Porto Ancona — Macunaíma: A margem e o texto.
São Paulo, Hucitec/Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo,
1974.
•
PROENÇA, M. Cavalcanti — Roteiro de Macunaíma. São Paulo,
Anhembi, 1955; Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1969.
•
PROPP, Vladimir I. — Morfologia do Conto Maravilhoso, trad. de
Jasna Paravich Sarhan. Rio de Janeiro, Ed. Forense Universitária,
1984.
•
SILVEIRA BUENO, Francisco da — Vocabulário Tupi-Guarani
Português, 6ª edição. São Paulo, Éfeta Editora, 1998.
•
SOUZA, Eneida Maria de — Macunaíma: A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais,
1988.
•
TIBIRIÇÁ, Luiz C. — Dicionário Tupi-Português, 2ª edição. Traço
Editora, 1984.
11. a) Neste excerto, Macunaíma se caracteriza fisicamente por apresentar cabeça de criança e corpo
de homem. Essa aparência paradoxal é resultante
do episódio, narrado no capítulo “Maioridade”,
em que o herói, perdido na floresta, encontra a
cotia e lhe conta como enganou o Currupira. A
cotia acha que o feito de Macunaíma tinha uma
malícia mais própria de adulto e resolve igualarlhe “o corpo com o bestunto”. Para isso, jogou no
herói o caldo envenenado de aipim que trazia numa gamela; ele tentou se desviar, mas conseguiu
livrar apenas a cabeça, molhando o resto do corpo, que foi “crescendo fortificando e ficou do tamanho de um homem taludo. Porém a cabeça não
molhada ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá”.
b) Sim, pois Macunaíma, embora adulto, não apresenta qualquer maturidade emocional. Tem, como
as crianças, uma relação fundamentalmente lúdica
com a vida, inclusive com a sexualidade: copular é,
para ele, “brincar”. O corpo de homem é comandado por uma cabeça de menino. Suas atitudes
costumam ser inconseqüentes. Guia-se mais pelo
instinto, busca o prazer imediato e impensado.
Trata-se, afinal, do “herói sem nenhum caráter”,
como as crianças, imaturo e indefinido.
ANGLO VESTIBULARES
83

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