Resumo: Artigo escrito a quatro mãos que traz o relato de uma
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Resumo: Artigo escrito a quatro mãos que traz o relato de uma
A memória como dispositivo de criação de narrativas audiovisuais Paulo Henrique Correia Alcântara1 Rogério Luiz Silva de Oliveira 2 Resumo: Artigo escrito a quatro mãos que traz o relato de uma experiência em sala de aula, a partir do programa de uma disciplina no curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. O texto apresenta um percurso de leituras e discussões sobre a memória como dispositivo de criação de narrativas audiovisuais. Os autores analisam o percurso da disciplina à luz do conceito de memória. Palavras-chave: cinema; memória; fotografia; documentário Introdução Diante de uma fotografia de sua família, o professor Paulo Henrique Alcântara se depara com um dispositivo de criação. Uma imagem fotográfica dele ao lado de primos, todos quando crianças. Diante daquele registro, as ideias criativas entraram em rebuliço e daí o inevitável desejo de revirar a própria memória, levando a rigor a relação entre lembranças e esquecimentos. Com a fotografia em mãos, a prática do exercício de leitura de uma imagem com todas as surpresas e ausências que processos deste tipo possibilitam. Ou seja, diante da foto há sempre a incerteza ou imprecisão diante das informações ali contidas. A fotografia exige a nós todos, neste sentido, um processo de constituição de um passado para ela. Não nos é permitido, necessariamente, a reconstituição. A interpretação de uma mesma imagem será variável conforme a quantidade de leitores/intérpretes. E o resultado da experiência com a fotografia citada dá provas disso na medida em que este exercício de leitura inspirou o também dramaturgo Paulo Henrique Alcântara a pensar na possibilidade da construção de um texto a ser encenado 1 Professor do curso de Cinema e Audiovisual, do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas – DFCH, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Doutorando do Programa de Pósgraduação em artes cênicas da Universidade Federal da Bahia – UFBA. E-mail: [email protected]. 2 Professor do curso de Cinema e Audiovisual, do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas – DFCH, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Mestre em Memória: linguagem e sociedade, pela UESB. E-mail: [email protected]. no teatro. O desdobramento deste processo nos faz pensar naquilo que é dito pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, em seu Un Art Medio, quando diz que: Compreender adequadamente uma fotografia, seja seu autor um campesino corso, um pequeno burguês de Bolonha ou um profissional parisiense, não é apenas recuperar as significações que proclama (é dizer, na medida certa, as intenções explícitas de seu autor), é também, decifrar o excedente de significação que revela, na medida em que participa da simbologia de uma época, de uma classe ou de um grupo artístico (BOURDIEU, 2003, p. 44) À luz do pensador francês, entendemos, deste modo, que a perspectiva de leitura/interpretação da referida imagem fotográfica é a de um criador artístico. Na constituição do passado embutido na imagem, o dramaturgo utilizou toda a sua bagagem cultural ou mesmo pessoal para estabelecer a sua relação de memória. Tal procedimento resultou no espetáculo teatral Partiste, montado na cidade de Salvador, tendo sido, inclusive, vencedor do Prêmio Braskem de melhor texto de 2010. A dramaturgia que envolve Partiste emergiu da escuta de antigas lembranças, da recriação de um passado pessoal em forma cênica, tendo o rememorar como instância propulsora do construto de diálogos. Tais memórias foram acionadas de instantes que saltam de tempos remotos, também eternizados no álbum de família do autor, cujas imagens são complementadas pelas fotos da pequena cidade de Livramento, no interior baiano, as quais fornecem uma localidade das cenas, uma geografia afetiva. Para Boris Kossoy o instante da realidade impresso na fotografia expressa o congelamento do gesto e da paisagem, e, portanto, a perpetuação de um momento, em outras palavras da memória: memória do indivíduo, da comunidade, dos costumes, do fato social, da paisagem urbana, da natureza. A cena registrada na imagem não se repetirá jamais. O momento vivido, congelado pelo registro fotográfico, é irreversível. A vida, no entanto, continua e a fotografia segue preservando aquele fragmento congelado da realidade. Os personagens retratados envelhecem e morrem, os cenários se modificam, se transfiguram e também desaparecem. O mesmo ocorre com os autores-fotógrafos e seus equipamentos. De todo processo, somente a fotografia sobrevive. (...) Ela dá a noção precisa do microespaço e tempo representado, estimulando a mente à lembrança, a reconstituição, a imaginação. (KOSSOY, 2001, p. 155/156) Kossoy aborda dois termos muito caros ao processo de concepção da peça Partiste. O autor chama de personagens aqueles seres eternizados nas fotografias. Para ele, as fotos se oferecem como lembrança e imaginação. Justamente personagens e imaginação são duas instâncias básicas em torno das quais Partiste nasceu. Kossoy chama de “personagem” todos os seres vivos captados e tornados perenes nas fotos. Já os “personagens” do álbum de família do autor serviram de inspiração para os personagens enquanto entidades do drama, aqueles que se movem dentro da ação, impulsionam a história. Este álbum fez emergir lembranças e também, como salienta Kossoy, abriu brechas na imaginação criadora, suscitando uma peça a partir do ato de olhar velhas fotografias. Sobre elas, a memória recua no tempo, enquanto a imaginação avança, se move, rumo ao drama, em direção a Partiste. Esta é uma obra erguida sobre as amorosas e, por vezes, tensas e sofridas tessituras que ligam os integrantes de uma mesma família, moradores de Livramento de Nossa Senhora, no interior baiano. A peça pode ser traduzida como um canto de saudade, sobre a ponte erguida entre o afeto e a distância. Como seguir vivendo depois de perder aquele ser querido, elo de uma corrente feita de anos de convivência, cuidados e cumplicidades? Assim é Partiste, uma dramaturgia sobre a falta do outro, tendo como personagem central uma mãe saudosa às voltas com a saudade do filho mais velho que partiu para São Paulo e os cuidados com os filhos que ficaram, mas que também hão de ir embora um dia. Por se tratar de partida, de quem foi separado pela vida daqueles que ama, o dramaturgo recorreu às fotos pessoais, que materializaram as recordações e deram visibilidade a quem não está mais presente. As fotos são o testemunho concreto do inventário de nossas lembranças, elas capturam parte de um caleidoscópio de memória que nos habita. Às fotos recorremos em instantes de saudade, retomando momentos vividos e que guardamos em nosso ser profundo, momentos retomados por uma memória que não está fora, mas dentro de nós. Partindo da memória, mesclada à invenção, própria ao ato criador, surgiu esta peça que dá voz a personagens que necessitam expressar a saudade do outro, como se pode observar nesta fala da personagem da mãe: A saudade é como subir uma ladeira, uma ladeira bem íngreme, debaixo do sol quente. À medida que a gente sobe, a ladeira vai ficando menos íngreme, o sol menos quente, mas o topo da ladeira não chega nunca. Assim é a saudade, uma ladeira que não se para nunca de subir” (ALCÂNTARA, 2010, p 27). Os personagens de Partiste precisam, urgentemente, falar de suas saudades, rememorar para preencher o que Drummond denominou, em um de seus poemas, de “a falta que ama”: “Entre areia, sol e grama o que se esquiva se dá, enquanto a falta que ama procura alguém que não há.” (DRUMMOND,1987,p.410) Este processo de criação dramatúrgica se desenrolou meses antes do ingresso de Paulo Henrique Alcântara no curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB e vem sendo objeto de estudo de sua tese de doutorado no Programa de Pós-graduação em artes cênicas da Universidade Federal da Bahia UFBA. Agora novamente professor, função que já havia desempenhado em outras instituições, apresentou esta experiência criativa no ambiente acadêmico da UESB, onde conheceu o Professor Rogério Luiz. A aproximação foi natural tendo em vista esta afinidade de relação com a fotografia, também desenvolvida pelo professor Rogério que, há pouco tempo, havia defendido a dissertação intitulada “Fotografia e Memória: a criação de passados”, no Programa de Pós-graduação Multidisciplinar em Memória: linguagem e sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB. Neste estudo, a fotografia foi abordada do ponto de vista da memória. Buscou-se delinear o conceito de memória a partir do pensamento de David Hume, Henri Bergson e Gilles Deleuze e aplicar esta ferramenta analítica à fotografia. O resultado da pesquisa apontou um caminho que sugere a fotografia como detentora de um passado que se dá no presente. Isto é, ao lermos uma fotografia, a nossa interpretação é feita com base no nosso presente, nas nossas referências culturais, pessoais, religiosas, econômicas, etc. Por fim, a conclusão diz que diante de uma fotografia não é possível um fenômeno de recriação ou reconstituição, mas de criação ou mesmo constituição. Dito desta forma, já conseguimos estabelecer um diálogo e uma enorme quantidade de congruências entre os dois trabalhos dos professores, autores do presente artigo. Num exercício de compreensão, diremos que a ferramenta metodológica posta em prática por um, se encaixa na observação da concepção artística do outro, permitindo um diálogo entre ambos. Ao falarmos de um trabalho dramatúrgico desenvolvido a partir de uma fotografia, no mínimo colocamos este processo criativo bem próximo da essência da pesquisa científica. Ou pelo menos um explica procedimentos do outro. Ou não foi isso o que aconteceu quando Paulo Henrique Alcântara inspirou-se para escrever o texto de Partiste? Ao explicar o seu percurso de criação, o professor deixa claro o seu entendimento de que justamente o fato de atualizar aquela imagem antiga o fez chegar nesta centelha criadora. No que caberá perguntar: quantos não leram esta imagem e ficaram apenas na contemplação? Quantos não digeriram esta atualização de forma diferente? Quantas não foram as leituras para um mesmo episódio? Os dois trabalhos, apesar de naturezas diferentes, colocavam os dois professores numa perspectiva igualitária de pesquisa. Havia, indiscutivelmente, um tema em comum, que encontrou terreno fértil justamente na atuação de ambos num curso de Cinema e Audiovisual, em que os processos criativos são discutidos a todo instante. Surge, por isso, a ideia de ministrar juntos uma disciplina optativa intitulada “Narrativa, ficção e mídias audiovisuais”. O título da disciplina foi motivo para muitas discussões. Apresentava-se como algo muito amplo, também no que dizia respeito à ementa da matéria, possibilitando, em virtude disso, uma definição mais livre de como seria a condução dos trabalhos. Na fase precedente ao início de um novo período letivo, na semana de planejamento pedagógico, chegou-se a um denominador comum: a disciplina seria conduzida buscando compreender de que modo memórias individuais, com considerável carga afetiva, serviam como dispositivo de criação em obras cinematográficas. Ampliou-se este olhar para realizações tanto ficcionais quanto documentais, respeitando as áreas de atuação dos docentes, já que o professor Paulo Henrique Alcântara ministra a disciplina “Dramaturgia” e o professor Rogério Luiz “Documentário no Brasil”. As conversas iniciadas em torno de um processo criativo no teatro e de um estudo científico, de cunho filosófico, amadureceram a ponto de sentirem-se os professores motivados a começar esta disciplina em dupla. Com o início do semestre, era hora de se lançar numa aventura até então desconhecida para ambos, buscando nas filmografias nacional e clássica indícios deste modo de criar a partir de memórias individuais. Tudo isso como pano de fundo disparador para um objetivo maior: motivar e provocar estudantes de Cinema e Audiovisual a refletir sobre possibilidades bemsucedidas de criação, a partir da memória afetiva de cineastas. O que se encontrará a seguir, portanto, configura-se como um roteiro de leituras constituído por referências a filmes e textos. Muitas vezes, foi necessária a recorrência a entrevistas, críticas, além de teorias do campo da memória, estas últimas de uma forma mais diluída, ou quem sabe discreta, em virtude da complexidade como se colocam as idéias pertinentes a este tema, pela primeira vez apresentados a alunos de graduação. A discussão acerca da memória tem uma filiação filosófica, o que traz uma elaboração textual que requer mais tempo de leitura e até mesmo mais maturidade na vivência acadêmica. Além da grande quantidade de atividades que têm os alunos da graduação, no que pese o amplo número de disciplinas. Optamos, neste caso, por textos que dessem um panorama conceitual da memória, mas que fosse de uma compreensão mais tranquila e acessível. O conceito de memória O entendimento inicial de memória partiu do resultado de pesquisa da dissertação já citada “Fotografia e Memória: a criação de passados”. Este trabalho indicou uma noção de memória que não está apenas ligada à preservação intacta de um passado, ou à lembrança suscitada pelos elementos do patrimônio histórico; nem mesmo a memória do tipo que se discute em torno de casarios antigos, ou de conjuntos arquitetônicos. Trata-se de uma memória que passa pelas sensações que chamou-se de sensório-motoras, que atende aos ímpetos corporais, que leva em consideração o fato de que a leitura do passado se dá, acima de tudo, no presente. O delineamento deste conceito exigiu, pois, a construção de um eixo teóricometodológico que serviu de aporte para uma ontologia da imagem fotográfica. O eixo em questão abarcava ideias dos filósofos David Hume, Henri Bergson e Gilles Deleuze, dispensando maior atenção a este último, principalmente no que diz respeito ao modo como este pensa o conceito de simulacro. Em se tratando da abordagem destes autores sobre a memória, começamos pelo primeiro sublinhando a sua compreensão de que não é possível definir memória, sem colocá-la em contraposição ao conceito de imaginação. Ele considera, para isso, o homem como detentor do poder de dar livre curso à sua fantasia para inventar qualquer cena passada de aventuras. Leva em consideração a capacidade do homem de imaginar. Para esse pensador, essa característica humana levanta dúvidas e questões sobre as ideias da memória, principalmente à medida que elas se tornam muito fracas e sem vigor. É justamente nesse instante que surgem dificuldades em determinar se uma imagem provém da fantasia ou da memória, quando ela não se apresenta com as cores vivas que distinguem a segunda destas faculdades (HUME, 2001, p. 121). Para Hume, a memória é definida como uma espécie de ideia que, ao reaparecer na mente, conserva um grau considerável de vivacidade primitiva, sendo algo intermédio entre impressão e ideia, duas espécies distintas às quais se reduzem todas as percepções humanas. Nesta argumentação, os conceitos de memória e imaginação se confundem e é preciso fazer a diferenciação. As ideias da memória são muito mais vivazes e mais fortes do que as da imaginação, e que a primeira destas faculdades pinta os seus objetos com cores mais nítidas do que as empregadas pela segunda (HUME, 2001, p. 37). A consideração do conceito de imaginação, portanto, figura como uma contribuição central de Hume. Ao nos depararmos com uma cena passada, como é o caso de um registro fotográfico, é como se a nossa memória medisse força com a nossa capacidade de imaginar. O que parece bastante sugestivo quando nos debruçamos sobre o entendimento do processo criativo com base em memórias particulares. Na sequência dos pensadores, encontraremos Henri Bergson. E sua contribuição para o que por ora nos interessa reside na importância que ele atribui à interpretação do passado no presente. E não de uma forma simples. Atualizamos o passado com o auxílio de elementos que ele chama de sensório-motores. Ou seja, ao ler um episódio passado, mais uma vez recorrendo ao exemplo de uma fotografia antiga, faço isso com o meu corpo. Toda a minha vivência é solicitada ao fazer esta atualização. Com esta conclusão bergsoniana, somos conduzidos ao complemento desta conceituação de memória que se dará a partir do pensamento de Gilles Deleuze. Os argumentos que apreendemos do pensamento bergsoniano parecem encontrar pertinente continuidade nas ideias deleuzeanas. Ou seja, o entendimento de que o passado é dado no presente, começa a ser delineado a partir do que pensa Henri Bergson. Busca-se o diálogo com Deleuze, exatamente pelo fato de que em seu Matéria e Memória, Bergson se dedicará a entender como, dentro do exemplo da memória, se dá a relação entre as realidades do espírito e da matéria. Em outras palavras, interessará a ele o esclarecimento de como se dá o problema da relação do espírito com o corpo, conduzindo as ideias bergsonianas sobre a memória para a compreensão da vida psicológica humana, o que exige de nós um distanciamento ou, em últimos fins, uma busca pelo complemento da determinação do conceito de memória em questão em outro lugar. A continuidade está no destaque do modo como essa noção de memória emerge do pensamento de Deleuze. Na abordagem deleuziana, este debate ganha forma naquilo que diz respeito à relação dos signos com a memória. A conclusão de Bergson, em Matéria e Memória, é compartilhada com Deleuze, na medida em que este último entende “que a memória intervém como um meio de busca, mas não é o meio mais profundo; e o tempo passado intervém como uma estrutura do tempo, mas não é a estrutura mais profunda” (DELEUZE, 2006, p. 3). A definição de memória, para Deleuze, repousa no estabelecimento de um diálogo com os signos tal como entendeu Charles Sanders Peirce. Se em Hume, a memória está apresentada em contraposição à imaginação, e em Bergson ela é intrínseca aos mecanismos sensório-motores, para Deleuze tudo isso deve ser considerado com base no papel exercido pelos signos. A partir da discussão estabelecida por Gilles Deleuze, apreendemos, então, que imagens do passado são muito mais apresentação de novas coisas do que, necessariamente, um instrumento de lembrança. Os signos que compõem cada imagem precisam de uma interpretação, num ato em que se considera as vivências atuais de quem as interpreta. E, aqui, o conceito de lençóis do passado é fundamental para entender o esquema proposto pelo autor para explicar como se dá a relação de memória quando um leitor se depara com uma imagem referente ao passado. Faltando-lhe ter vivido experiências diante de uma cena retratada, os signos imagéticos ensinam, muito mais do que fazem lembrar e reconstituir. O recorte ou o enquadramento estabelecidos transformam aquele fragmento num delimitado ambiente sígnico, permitindo escapar de uma única originalidade do seu objeto. As imagens que parecem brotar da memória, em forma de lembranças, na verdade são cópias, por assim dizer, de um real. Na ação da memória, cuja visão fica nebulosa por conta da imaginação, as imagens de um passado se misturam com outras de variados passados, resultando em imagens sem semelhança. Quando esta imagem é despertada por um signo, esta imagem tem, pelo menos, uma forma, sem querer dizer que esta memória será uniforme. Muito pelo contrário, o fato de os signos funcionarem como signos para qualquer um, despertarão ainda mais a criação de imagens dessemelhantes em relação ao real inspirador. Com a pretensão de resumir o diálogo entre os três pensadores e associando esta discussão ao percurso proposto para a disciplina que possibilita este artigo, diremos que interessa nos filmes escolhidos entender de que modo a imaginação dos diretores/artistas foi exercida, de que forma a bagagem cultural, possibilitada pelos interesses econômicos, pelas crenças ideológicas, pelas exigências psicológicas, etc., contribuem para o amadurecimento de ideias artísticas. Também interessará notar de que forma toda esta bagagem pessoal é transformada em forma sígnica, gerando um mundo de significações aos seus espectadores. Cinemas feitos de lembrar: a memória nos filmes de Allen, Fellini, Navarro e Tornatore. Ao longo do semestre, os alunos foram convocados a assistir, durante as aulas, filmes de ficção e documentários que possuíam uma ligação estreita com a proposta da disciplina: pensar o cinema a partir de produções que recorriam à memória como dispositivo para suas narrativas. Dentre os filmes de ficção, ou também poderíamos dizer filmes que colocavam a ficção dialogando com a realidade de experiências pessoais vividas pelos cineastas, elegemos A Era do Rádio, de Woody Allen, Amarcord, - que vem a ser “eu me recordo” no dialeto falado na cidade italiana de Rimini, onde Federico Fellini, diretor do filme, nasceu - e Eu me Lembro, de Edgard Navarro. Estes filmes foram trazidos pelos professores e, após serem exibidos, eram analisados com o suporte de um texto teórico. Já no final do semestre, os alunos, divididos em equipe, conduziam uma discussão a partir de demais filmes sugeridos por eles mesmos. Estes eram exibidos em sala e as equipes conduziam um debate acerca de suas conexões com o tema da memória. Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, foi um dos escolhidos, resultando na obra que, segundo depoimento de muitos alunos, mais os tocou. Em A Era do Rádio, Amarcord e Eu me lembro, Woody Allen, Fellini e Edgard Navarro adotam como ponto de partida um mesmo impulso criador: o desejo de revisitar suas infâncias e adolescências, buscando nelas a inspiração e as histórias que permeiam estas suas obras. Seja em Nova York, Rimini ou Salvador, cada um destes cenários abrigou vivências de outrora que os cineastas desejaram compartilhar com o público. Em determinado momento de suas vidas, estes criadores atenderam ao desejo de olhar para trás e recompor, no caleidoscópio do tempo, o início de suas trajetórias. Entre os três filmes, muita coisa em comum, como por exemplo: a presença marcante da família, parte integrante da formação individual destes artistas, e a presença da escola, nos três filmes retratada ou lembrada como espaço de repressão, local em que o aprendizado vinha sempre acompanhado de posturas repressoras. Walter Benjamin em seu texto O narrador reflete sobre o valor de uma narrativa desenvolvida a partir da memória, compartilhada a partir de algo pessoal. Para ele o narrador se encaixa na imagem de um trapeiro, aquele que vive de juntar as sobras, de agrupar o que não se quer mais. Segundo leitura de Katia Canton, “o próprio narrador, que pode ser vivido sob a figura do artista e criador, deveria, pois, transmitir o que a tradição oficial ou dominante não recorda.” (CANTON, 2011, p. 28) Neste sentido, Allen, Fellini e Navarro narram suas histórias a partir de reminiscências domésticas, de alegrias e tristezas “catadas” do cotidiano. Não são lembranças de grandes feitos, não são vidas envoltas em grandes tramas do destino, seus personagens não são heróis: são meninos e adolescentes descobrindo a vida, se encantando e se espantando com ela. A Era do Rádio, Amarcord e Eu me lembro confluem em torno de um mesmo princípio criador, qual seja, a remontagem de cenas vividas em outrora, a retomada de momentos pessoais experienciados pelos cineastas e agrupados pelo fio da memória. Woody Allen, em A Era do Rádio, refaz a casa de sua infância e, por entre os seus cômodos, pousa uma câmera que nos conduz a uma viagem no tempo, nos tornando testemunhas da importância do rádio na formação de uma criança judia, moradora do bairro do Brooklin, na cidade de Nova York. O crítico inglês Julian Fox, um dos biógrafos de Allen, aponta A Era do Rádio como o Amarcord do cineasta americano, cotejando também outras duas de suas obras com o acervo felliniano, do qual Allen é admirador confesso. Para Fox, Memórias evoca 8 e ½, enquanto Simplesmente Alice transporta a Julieta dos Espíritos, personificada por Giulieta Masina, para a pele de Mia Farrow (BARBOSA, 2002). Já Edgard Navarro, por meio do seu confessional Eu me lembro, também abre, na sala de exibição, seu álbum de família, nos convidando a conhecer a trajetória de um menino baiano que perde a mãe muito novo, torna-se um adolescente em crise com o pai, descobre o amor e as drogas e torna-se um cineasta que faz de si mesmo, da sua própria rota, o tema principal de um de seus filmes mais importantes. A viagem no tempo que Fellini realiza a sua Rimini natal, que Woody Allen também fez de volta a sua infância e o “amarcord” de Edgard Navarro levantaram, em sala de aula, questionamentos sobre a interface memória/invenção. Até onde vai a memória autobiográfica destes cineastas? Onde começa a ficção? Difícil seria precisar, interessaria mais pensar nesta dualidade de maneira dialética. Para fomentar esta discussão recorremos a uma pesquisa sobre o termo autoficção, no qual os referidos filmes de Allen, Fellini e Navarro podem ser inseridos. A autoficção é uma reinvenção, um gênero híbrido (e controverso), que se aproxima, de forma sinonímica, do romance autobiográfico ou autobiografia ficcional, pois se move entre ficção e o espaço ambíguo da narrativa autobiográfica, possibilitando o esfacelamento do eu em vários sujeitos enunciativos. A autoficção é a própria ficção de acontecimentos reais, ou seja, é um ato subversivo da escrita introspectiva e de suas “fabulações de si”. (...) Na autoficção se busca resgatar e recompor os resquícios do vivido, dos fatos verdadeiros, da memória do próprio sujeito, recompor afinal uma nova percepção de si mesmo, do sujeito fragmentado, através da imagem criada do outro eu fictício. (...) A autoficção é sempre uma representação, um recontar da própria vida que é uma construção narrativa, uma história contada pelo sujeito a partir da própria rememoração: vida e sujeito como “seres de papel”, construídos nos atos da escrita e leitura. Além disso, a autoficção não depende de ser retrato da realidade, mas sim a forma articuladora de eventos reais, eventos armazenados na memória e representados no texto por meio dos artifícios da escrita. (CURY & LEÃO, 2011, p.154) Neste sentido, entendemos que Federico Fellini, assim como Allen e Navarro, transformou o seu Amarcord em uma escrita cinematográfica que pode ser pensada com a ajuda do conceito de autoficção. Neste filme, o também criador de Noites de Cabíria exibe o cotidiano de sua pacata cidade natal, mostrada pelo ângulo onírico que marcou a sua produção. É o próprio cineasta que problematiza a relação entre memória, autobiografia e ficção, abordando-os segundo o ponto de vista muito livre e particular do artista. A lembrança pode ser real ou inventada, como é o caso da maioria das minhas lembranças. A memória, ao contrário, é completamente diferente: nós entramos em uma dimensão entre o paranormal, o espiritual e alguma coisa que vivemos desde sempre. A memória nem tem necessidade de se exprimir através das lembranças. É um composto misterioso, quase indefinível, mas que nos liga a alguma coisa que, às vezes, nós mesmos nos lembramos de tê-las vivido: os acontecimentos, as sensações que não sabemos definir, mas que confusamente sabemos que existiram. Assim, um artista – perdoe-me esta definição um pouco orgulhosa e desproporcionada -, um criador tem um conhecimento verdadeiro da memória, que pode lhe fazer lembrar que nunca apareceram de fato no contexto de sua vida (FELLINI, 1995, p.24). A memória na produção documental Ao longo deste percurso de leituras, também foi possível passar pela discussão sobre a memória a partir de documentários. Ao analisarmos estas produções, acabamos por encontrar certa unidade metodológica reforçada pela contraposição que estabelecemos entre memória pessoal e memória coletiva, ou mesmo de convivência entre estas duas categorias. Ao todo, foram exibidos sete documentários. Cada um deles, com um modelo inspirador no que pese a realização tendo a memória como ponto de partida. No primeiro deles, dirigido por Eduardo Coutinho, apresentou-se uma metodologia bastante peculiar, resultando em Edifício Master, sobre os moradores do prédio de conjugados no bairro de Copacabana. Uma reunião de depoimentos que Coutinho faz no campo de possibilidades da memória. Isto é, realizado conforme uma estratégia cara a este cineasta, que é da concentração espacial, o que se apresenta diante de nós é uma reunião de histórias de vida de moradores, cuja única ligação entre eles é o fato de habitarem o mesmo prédio. O segundo documentário é Letter to Jane, de Jean Luc-Godard. A sua exibição e discussão trouxe para o centro das atenções um relevante mecanismo de criação: o desenvolvimento de uma narrativa a partir da leitura de uma imagem fotográfica. A fotografia em questão traz a atriz americana Jane Fonda e o filme, em si, uma espécie de contralegenda da imagem, segundo a autora Susan Sontag, que em seu Sobre Fotografia faz uma leitura crítica deste filme. Segundo Sontag, “O filme é também uma lição exemplar de como ler qualquer foto, como decifrar a natureza não inocente do enquadramento, do ângulo, do foco de uma foto”. (SONTAG, 2004, p. 24). Chegando a um terceiro momento, foi exibido o documentário brasileiro O Homem que engarrafava nuvens, de Lírio Ferreira. Realizado a partir da biografia do compositor brasileiro Humberto Teixeira, parceiro de Luiz Gonzaga em canções como Asa Branca, que se caracteriza como uma espécie de reconstrução ativa do passado pelos agentes sociais do presente. A filha de Humberto, Denise Dumont, percorre lugares onde ele viveu, sob a inquietante necessidade de se aproximar de um pai que ela não conheceu. O que acaba acontecendo neste filme é o contato com agentes do presente, que nos colocam diante da construção de uma memória mediante esta participação polifônica. Ao se debruçar sobre a importância do pai para a música brasileira, Denise Dumont termina por remexer um passado íntimo, seja o dela, ou o da mãe, que fala sobre Humberto Teixeira com certa dificuldade, dadas as barreiras que a memória oferece ao nos depararmos com ela. Durante o trajeto da disciplina, abriu-se espaço para a participação de um artista que não fosse necessariamente proveniente do cinema, mas da música. O escolhido, no entanto, é um compositor em contato com a produção audiovisual. Para uma das aulas, foi convidado o músico Álisson Menezes, natural da cidade de Iguaí, mas radicado em Vitória da Conquista. O convite a ele foi feito no sentido de compreender de que forma a memória aciona o dispositivo de criação deste artista. Não percamos de vista que em período recente que antecedia a participação de Álisson na atividade, haviam sido gravadas imagens e entrevistas para o documentário Matrizes: Álisson Menezes e seus tantos eus. Em sala de aula, pudemos ver os trailers do filme ainda em finalização. Uma prática que exemplificava o documentário como eficaz ferramenta de elaboração de objetos de memória. O quinto trabalho apresentado foi 33, de Kiko Goiffman, que se pode denominar de documentário de busca, utilizando uma definição do crítico Jean-Claude Bernardet. A história de um filho adotivo, o próprio Goiffman, que, aos 33 anos, se propõe a encontrar a mãe biológica, em 33 dias. Uma busca por uma origem perdida em algum lugar da trajetória de sua vida. O cineasta parte para uma travessia na qual se depara com embates de tabus pessoais, mesmo correndo, inclusive, um certo risco de criar uma situação embaraçosa com a mãe adotiva que o criou. O penúltimo trabalho desta seção documental caracteriza-se como uma outra exemplificação de recorrência a memórias tão íntimas de seu criador. Diferente do filme anterior, o que vemos é uma cineasta multifacetada expor diante da câmera seu percurso feito de diversas influências, as quais resultaram na sua forma particular de ligação com a arte. As Praias de Agnés é o filme de uma das sobreviventes da Nouvelle Vague francesa, Agnés Varda. Esta sua realização consiste na construção do seu passado. Varda se lançou sobre sua infância, juventude, período como fotógrafa, casamento com Jacques Demy, compondo um instigante ensaio sobre a própria obra. Ao abrir seu baú de lembranças, ela acaba por fazer uma homenagem àqueles que a influenciaram. O final deste caminho está em Só dez por cento é mentira, de Pedro Cézar. Documentário sobre aquele que se pode chamar de poeta da memória, Manoel de Barros. Um escritor que simboliza a discussão proposta pela disciplina, na medida em que compreende a imaginação, a partir da memória, como principal elemento de sua criação poética. Encerramos este percurso com uma frase sua, encontrada em Memórias inventadas: a segunda infância: “Tudo que não invento é falso”. A memória na criação dos alunos Interessava aos professores a realização, por parte dos alunos, de produtos audiovisuais que refletissem o ciclo de leituras e exibições oferecido paulatinamente pela matéria. Havia no planejamento a exigência da produção de dois trabalhos, que buscassem inspiração na leitura de imagens fotográficas. Um deles, era a proposta inicial, deveria ser individual e inspirado em álbuns de família dos estudantes. Uma atividade que encontrou, por parte de alguns, resistência desde o primeiro dia. Um outro produto poderia ser em equipe, como última atividade da disciplina. A primeira proposta provocou sentimentos incômodos em alguns alunos. De modo que a primeira reação foi de negação. Remover certos fragmentos pessoais de memória parecia inaceitável e por isso foi necessário um tempo de amadurecimento e entendimento da proposta para melhor assimilação desta por parte da turma. Fez-se necessário avaliar se era mesmo esta a melhor forma de provocar a realização de uma tarefa. A cada aula, sempre às quartas-feiras, perguntas que sempre esperavam como resposta o cancelamento desta atividade. Após reflexões, chegou-se a um entendimento de que era preciso mudar a natureza do exercício. A partir dali, anulava-se a primeira atividade e combinava-se outras duas. Em uma delas, a sala seria dividida em grupos e cada equipe seria responsável por escolher um filme que tivesse a memória como dispositivo criador, discutido em sala à luz de um texto sugerido pelos professores. Na segunda e última forma de avaliação, os alunos ficariam livres para criar seus produtos, contanto que se respeitasse a ideia principal da disciplina: criação a partir de fragmentos de memória. Ampliava-se, deste modo, a proposta, sugerindo que esta criação se desse a partir de lembranças de família, de episódios pessoais, objetos, locais, histórias de outras pessoas, enfim. Daí em diante deu-se continuidade ao programa de leituras e exibições, tentado possibilitar o encontro com criações inspiradoras, como Cinema Paradiso, já mencionado. O resultado desta provocação foram nove produtos audiovisuais dos alunos: Memórias Culturais, Se você sorrir, Lembrança Cor de Terra, 1ª Página, Antigos presentes, Incondicional, Uma Paixão, Caixa de lembranças, Lençóis da Memória. Estes, com suas peculiaridades, se apresentaram de forma singular, ora a partir de memórias individuais, ora inspirando-se e dialogando com temas da memória coletiva. Família, lugar, histórias de pessoas numa feira livre, paixão por um time de futebol, foram abordados, configurando uma variedade de caminhos criativos pelos quais passaram os alunos. Assim como os cineastas conceberam a partir das próprias memórias, os estudantes expuseram diante da câmera um exercício na maioria das vezes afetivo. Por fim, nas suas falas sobre estas realizações, parece evidenciar-se uma compreensão rica de que o ato de criar também passa pelas nossas memórias pessoais. Além disso, o percurso proposto pelo programa da disciplina encontra correspondência em muitos dos trabalhos, no que diz respeito ao modo como foram inspirados. Referências ALCÂNTARA, Paulo Henrique Correia. Partiste. Salvador: 2010. Texto teatral não publicado. ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa: Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987. BARBOSA, Neusa. Woody Allen. São Paulo: Editora Papagaio, 2002. BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 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