Eixo 4 - Anais - Selimel e Siel

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Eixo 4 - Anais - Selimel e Siel
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HELENA E O SEU PAPEL NA GUERRA DE TRÓIA
Adriana Barbosa SILVA
Resumo: Este trabalho analisa e compara as imagens de Helena de Tróia nas obras de
três poetas. Os textos escolhidos são os trechos sobre Helena na peça “Doctor Faustus”
do dramaturgo elizabetano Christopher Marlowe, o poema “To Helen” de Edgar Allan
Poe e o poema “Helen” de H.D. (Hilda Doolittle). Estudando a maneira em que Helena
é retratada na obra dos dois poetas e da poetisa, é possível observar que os trabalhos de
Marlowe e Poe são influenciados pelos estereótipos de mulheres prevalentes na
sociedade patriarcal. Enquanto Marlowe considera a beleza de Helena como sendo
perigosa, destrutiva e associada com o mal. Ao mesmo tempo ela é vista como um
objeto desejado pelos homens, sendo sua beleza ainda considerada como divina. Poe
apresenta Helena como uma figura idealizada que o inspira e guia remetendo-o aos
valores e conceitos clássicos da Grécia Antiga. H.D., a única poetisa que considera
Helena como uma pessoa e não como um símbolo, apresenta e avalia seus sentimentos e
reações às situações impostas a ela. Aplicadas como suporte, as teorias de Simone de
Beauvoir, Kate Millett, Eva Figes e Germaine Greer foram utilizadas neste trabalho para
colaborar com a interpretação das imagens de Helena apresentadas pelos poetas
supracitados.
Palavras-chave: Influência; Dualidade; Estereótipos; Literatura feminina.
1. Introdução
Através da história os homens tentam manter as mulheres em um estado de
subserviência, agindo como se eles tivessem ganho o direito de controlar seus destinos
do próprio Deus. Consideradas mentalmente inferiores aos homens às mulheres foram
reduzidas a meras máquinas reprodutoras. Em geral as mulheres são tratadas como
objetos de prazer masculino, o Outro sexo, totalmente dependente dos homens e a sua
posição na sociedade patriarcal é quase nula.
Críticas femininas como Eva Figes apontam que as mulheres não tinham direito
a expor suas opiniões ou a liberdade para expressar seus desejos já que esses anseios
deveriam corresponder aos mesmos dos membros masculinos de suas famílias. A
educação também lhes era negada para forçá-las a permanecer nessa posição de
subordinação. O resultado da repressão sofrida pelas mulheres e a falta de instrução
trouxeram como consequência a ausência de mulheres escritoras em comparação ao
número de homens. Sendo a literatura dominada por eles e as imagens femininas
apresentadas unicamente sob a perspectiva masculina das mesmas.
Nesse contexto, estudamos a maneira como Helena de Tróia é apresentada
historicamente na literatura. Como um ícone de beleza, Helena de Tróia foi um modelo
para as garotas espartanas na Era do Bronze, uma linda e jovem rainha admirada pelas
mulheres e desejada pelos homens. Sua abdução pelo príncipe persa Paris de Tróia é
considerada como responsável pela guerra entre gregos e troianos, narrada na obra
Ilíada de Homero, que durou dez anos e causou milhares de mortes.
Helena era diferente da maioria das mulheres do passado e do presente já que ela
tinha poder sendo a filha do Deus Zeus e de uma rainha, sua beleza também lhe dava a
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habilidade de dominar os homens, ao mesmo tempo em que sua história ilustra o poder
destrutivo das mulheres; mesmo aspecto que é abordado na história de Adão e Eva.
Helena é retrada como deusa, princesa, e prostituta. Embora não haja provas de sua
inocência ou de suas más intenções. Não está claro se ela partiu voluntariamente de
Tróia ou se foi levada a força por Paris.
As imagens de Helena de Tróia nas obras de dois poetas e de uma poetisa foram
analisadas, são eles: Christopher Marlowe, Edgar Allan Poe e H.D. (Hilda Doolittle) e
as passagens foram: “Helena de Tróia” na peça Doutor Fausto de Marlowe (1592), o
poema “Para Helena” de Poe (1831) e “Helena” de H. D. (1923). Bem como as teorias
feministas de Simone de Beauvoir, Kate Millett, Eva Figes e Germaine Greer que
auxiliaram na análise sobre as perspectivas femininas e masculinas a cerca das imagens
de Helena apresentadas nesses textos.
2. Teoria feminista: perdidas em um mundo masculino
As teorias de quatro críticas feministas cujos pensamentos são semelhantes
forma analisadas na construção desde artigo. São elas: Simone de Beauvoir, Kate
Millett, Eva Figes e Germaine Greer as quais comentam a posição inferior que a mulher
ocupa na sociedade patriarcal, sua redução a objetos do prazer masculino e a supressão
de seus direitos sendo restringidas a dicotomia dos estereótipos da esposa frágil ou a
prostituta rebelde, promiscua e perigosa.
Desde a criação do mundo através da história na sociedade patriarcal a mulher
tem lutado para construir sua independência e conquistar seu espaço na mesma
livrando-se da dominação imposta pelos homens representada pelos membros
masculinos de sua família e subsequentes maridos.
A crítica feminista Simone de Beauvoir em O segundo sexo (1949) mostra como
a mulher é tratada como o Outro sexo, aquele que é inferior mental e fisicamente em
relação ao homem, pois fora criada de uma simples costela de Adão e não do puro pó
assim como ele e que, portanto era um ser dependente daquele, ainda que não houvesse
uma explicação concreta que dissesse o porquê dessa dependência feminina para com a
masculina.
Ainda segundo Beauvoir (1949) as mulheres desde seu nascimento estavam
fadadas ao papel de máquinas reprodutoras, com o destino de serem perfeitas e
submissas donas de casas, cuja função era cuidar do marido, filhos e da casa. Tratada
como mais um objeto na coleção masculina a mulher lhe servia não apenas como
suporte, mas como objeto de ostentação, pois quanto mais bem vestida e cheia de jóias
ela desfilasse maior seria a representatividade do poder aquisitivo do marido.
Do ponto de vista de Beauvoir (1949) não se nasce mulher, mas torna-se uma
devido ao comportamento que se é adquirido, o ser mulher é algo que se forma a partir
dos fatores biológicos, psicológicos e econômicos, se é condicionado desde a infância a
se sentir confortável na posição de segundo sexo, do Outro sexo, do efeminado,
delicado.
Embora a mulher sempre tenha sido vista como o sexo frágil, algumas não
aceitaram essa teoria e lutaram por seu espaço na sociedade patriarcal, essa luta foi
suportada a partir de algumas mudanças na sociedade, tais como o triunfo do
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capitalismo moderno, a conquista do trabalho fora de casa e subsequente ajuda no
sustento da família e do divórcio.
Kate Millett (1970) em seu livro Políticas Sexuais compartilha das mesmas
idéias que Beauvoir e considerando o surgimento do patriarcado aponta que nós temos
um deus que criou um mundo feito para os homens, sendo o homem criado primeiro
para ser considerado o guia da humanidade, através dele Deus passaria os seus
ensinamentos, sendo a mulher criada depois e servindo apenas de mera companhia, ela
também seria guiada pela supremacia masculina.
Como companheiras dos homens cabiam as mulheres o papel de cuidar dos seus
bens e, portanto nada do que aquelas possuem pertencia-lhes verdadeiramente, nem
mesmo os filhos, já que em caso de separação os pais tinham a vantagem de serem os
maiores provedores do sustento da família e sendo assim quase sempre ganhavam a
guarda dos filhos.
Para Millett (1970) desde o nascimento as crianças apenas pertenciam a dois
grupos, masculino ou feminino e não se considerava as questões biológicas ou o
desenvolvimento de suas futuras ideologias. A divisão representava apenas a visão
sobre o grupo dos dominadores e dos subjugados.
Millett acredita que o fato de as mulheres terem sido culpadas pelo sofrimento
da humanidade por causa de Eva ao aceitar o fruto proibido fez com que elas ocupassem
um lugar inferior na sociedade e com a consolidação do casamento que apenas serviu
para formalizar a dominação masculina sobre as mulheres como se elas não fossem
seres menos importantes que os homens muitas vezes nem consideradas como seres
humanos, sendo seus direitos negados e isso as condicionasse a serem submissas,
humildes, com atitudes passivas e vistas meramente como objetos sexuais dos homens.
Sendo assim Millett em seu livro buscava propagar o argumento pela revolução
sexual e a liberação feminina do poderio masculino e defendia que o casamento era não
somente um jeito de dominação masculina, mas o primeiro passo na amostra de
injustiças em relação aos grupos sociais, especialmente ao grupo feminino no que se
refere aos seus direitos legais, políticos e sociais, haja vista que mesmo os homens que
recebiam um alto grau de educação em sua maioria não apoiavam o direito das mulheres
a serem educadas e diziam que era perda de tempo, pois seu destino era ser donas de
casa, esposas e mães.
Eva Figes (1970) em seu livro Atitudes Patriarcais defende assim como Millett
(1970) e Beauvoir (1949) que o modo como alguém é criado influencia como ele irá se
comportar na sociedade, deste modo os seres se tornam aquilo que são ensinados desde
o nascimento.
Como resultado da inquestionável soberania masculina sobre as mulheres desde
o seu nascimento, elas não ousam sonhar nem almejar aquilo que não foi previamente
aprovado pelos homens presentes em suas vidas, não lhes foi ensinado a ter ambição.
Devendo ainda sentir-se felizes e realizadas por completo apenas tomarem conta de seus
maridos, seus filhos e cumprirem suas tarefas domiciliares.
Estrategicamente os homens tentaram atribuir as catástrofes do mundo às
mulheres, por exemplo, quando Pandora abriu a caixa que permitiu libertar todos os
males do mundo ou quando Eva mordeu a maçã oferecida pelo diabo. Porém a
superioridade intelectual masculina deve ser discutida, pois se Adão fosse tão esperto
assim ele não teria aceito morder a maçã também, o que só comprova a inteligência e
esperteza feminina.
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Figes afirma que as mulheres forma reduzidas a dicotomia de dois estereótipos o
da boa e submissa Virgem Maria e o da promiscua e pecadora Maria Madalena ao
lembrar-se de suas supostas ancestrais considerando-se a crença judia sobre a criação de
Adão e Lilith, sua primeira companheira, que ao lutar por direitos iguais ao dele, foi
banida ao inferno, sendo então criada a primeira Eva, Adão, porém tendo assistido e
ficado doente pela visão fez com que Deus criasse a segunda Eva enquanto Adão
dormia e essa foi a escolhida por ser obediente e submissa.
Figes é da opinião que já que os homens não podiam gerar filhos eles excluíram
as mulheres da religião, tornando esta uma atividade exclusivamente masculina e
fazendo-as de platéia. É dito também pela sociedade patriarcal que os homens são
superiores espiritual e racionalmente e que as mulheres são mais vulneráveis
espiritualmente, o que ajudou a criar tabus e espalhar idéias errôneas sobre os desejos
sexuais de homens e mulheres. Os puritanos ainda usavam Deus e as orações para
esconder seus desejos físicos sob falsos valores de moralidade contra as mulheres.
Embora as mulheres fossem acusadas de dúbio comportamento e tratadas como
demônios, bruxas, sereias, mentirosas e traidoras os homens mantinham uma visão
romântica e idealizada das mulheres, pois de acordo com a sociedade patriarcal a
mulher era a perfeita e devota ajudante dos homens, eles também mantinham uma alta
concepção de si mesmos como respeitados e superiores chefes de família, maridos, pais
e membros da sociedade; exemplificando mais uma vez como os homens se sentiam
superiores as mulheres e como buscavam razões pelas quais eles deveriam dominá-las.
Após um longo tempo de espera para serem ouvidas as mulheres não sabiam por
onde começar a mostrar suas necessidades e desejos, mas o aumento do tempo livre e da
produção literária nos séculos dezoito e dezenove ajudou a mudar essa situação.
Hoje em dia a situação feminina mudou em alguns aspectos, por exemplo, o
casamento não é mais considerado como única opção de sobrevivência e solução para
os problemas financeiros, mesmo que algumas ainda o vejam como uma forma de
segurança.
Figes afirma ainda que o poder para mudar a situação feminina repousa
unicamente nas mãos das mulheres, não importando quanto tempo isso tome ou como
ocorra.
Germaine Greer ao publicar O Eunuco Feminino (1970) corrobora as idéias
defendidas pelas três autoras supracitadas quanto à situação de passividade e submissão
vivida pelas mulheres e discute temas como sexualidade, amor, família e sociedade em
geral na relação homem/mulher.
Greer aponta como um par de cromossomos XX pode definir o gênero físico e
diferenciar homens e mulheres, concedendo a estas suas curvas que tanto provocam
curiosidade e prazer e as tornando irresistíveis aos olhos dos homens.
Greer observa como os corpos femininos são vistos como objetos estéticos,
delimitando na maior parte do tempo a atenção recebida por elas para as suas curvas ao
invés de suas idéias e inteligência. O que causa uma enorme preocupação nas mulheres
ao se esforçarem por exibir-se sempre perfeitas não importando o sacrifício que tenham
que fazer para manter as aparências e agradar ao público masculino ao usar roupas e
acessórios que lhe valorizem a beleza e fazendo-as se encaixar nos estereótipos prédefinidos para elas, Greer compara assim a mulher a um eunuco, um ser castrado sem
sexo.
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Em relação ao amor e ao casamento Greer afirma como ambos são utilizados
pelos homens e pela sociedade patriarcal como forma de dominar e iludir as mulheres
com falsas promessas pelo bom comportamento delas ao seguir sem questionamentos
todas as regras impostas a elas.
Durante a Renascença e a partir da peças do dramaturgo Inglês William
Shakespeare a idéia do casamento por amor foi disseminada, embora quando entre as
suas personagens frágeis e doces e as megeras rebeldes e inteligentes, ele preferisse as
últimas sendo, porém a única com chances de tornar-se heroína Cleópatra.
Greer ao terminar seu livro relembra que as mulheres não podem esperar apoio
dos homens nem da sociedade patriarcal para mudarem suas realidades de submissão e
que a iniciativa precisa partir delas.
3. Helena de Tróia
Helena é analisada como figura mítica, de origem divina e cuja vida e
participação na Guerra de Tróia é dita como fundamental, foi escolhida na literatura
Clássica para demonstrar os estereótipos que de acordo com a sociedade patriarcal
deveria cumprir. Helena de Tróia tem sido considerada por anos como símbolo d beleza
e como lembrete de seu poder destrutivo. Sendo o fator mais impressionante sobre esta
mulher é que ela não possui rosto. De acordo com Bettany Hughes, as várias imagens
que existem dela em museus, mostram-na como garota, rainha brilhante e de beleza
magnífica, uma semideusa e prostituta, “não revelam o que Helena era, mas sim o que
os homens queria que ela fosse.” (HUGHES, 2005, P. 4).
Origem: De acordo com o mito Grego, Helena era a única filha mortal de Zeus
(conhecido assim pelos Troianos e como Júpiter pelos Gregos), concebida de forma
violenta quando Zeus disfarçado como um cisne gigante estupra a belíssima Leda então
rainha e mulher de Tíndaro, rei de Esparta, como se a sua beleza esperasse por ser
violentada e não pudesse ser apenas apreciada.
Aparência: Sua pele branca como a neve era considerada como sua maior
atração, de acordo com Hughes “representava a perfeição esperando por ser destruída”
(2005, p. 25).
A Helena real: Quando nova Helena foi violentada por Teseu o já de idade rei
de Atenas e foi aprisionada no forte de Afidna e então resgatada por seus irmãs gêmeos
Castor e Pólux e escravizaram a mãe de Teseu Etra e este foi o início dos conflitos entre
gregos e troianos no qual Helena é considerada culpada desde a infância.
Apesar de não ser mais virgem, Helena era a princesa de Esparta e desejada por
muitos guerreiros já que além de ser bonita ela tinha a capacidade de tornar quem a
desposasse rei. Para decidir quem seria o marido de Helena, Tyndareu fez uma
competição cujo vencedor foi Menelau, mas recebeu o juramento de ajuda mútua de
todos os competidores não importando quem vencesse, o casal teve Hermione tão bonita
quanto à mãe.
A sedução de Helena por Paris é descrita de várias maneiras, numa das versões,
Paris seduz Helena enquanto está hospedado em sua casa por nove dias e lhe deu
diversos presentes, outra diz que o romance começou quando Menelau estava em
viagem no funeral do seu avô. O momento de paixão entre Paris e Helena custou a ela o
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abandono de sua casa e da sua filha e iniciou a guerra Grego-Troiana, seu amor era letal,
embora não haja provas se ela fugiu voluntariamente ou se foi raptada.
Quando a suposta traição de Helena foi descoberta, os heróis gregos lembraramse da promessa feita e sob o comando de Agamenon, o rei mais poderoso da Grécia e
irmão mais velho de Menelau partiram para resgatar Helena e se vingar de Tróia
iniciando-se assim a guerra de entre gregos e troianos.
Enquanto Tróia queimava sob ataque grego, Helena percorria as ruas a procura
de um esconderijo, quando Menelau a encontrou seu desejo era matá-la, mas seu amor e
desejo por ela eram maiores e ele a ajudou a fugir, pois o fato de não poder dominá-la
pela falta de submissão dela fizeram com que sua paixão aumentasse. Ambos
navegaram por sete anos por Chipre, Creta, Tebas e outros lugares. Mesmo depois de
sua morte é dito que Helena passeia pelos seus templos e que virou estrela junto com
seus irmãos Castor e Pólux e que em noites escuras guia os viajantes com um raio de luz
branca que aparece no céu (fazendo referência a cor da pele de Helena), esse fenômeno
é conhecido como fogo de Santo Elmo.
4. Helena de Tróia na Ilíada de Homero
Na Ilíada, Homero revela o poder que as mulheres tem sobre os homens. Helena
é uma figura paradoxal, bonita e infiel, causou a morte de milhares de pessoas e décadas
de sofrimento para dois povos sem sofrer danos graves, frágil e poderosa, tendo ambos
o mal e o bem presente em seu espírito. Helena era um desafio para os homens por ser
atraente e perigosa, fatores que a fizeram ser uma figura ambígua através da história e
relembrada como ícone de beleza e ameaça para a humanidade, especialmente para os
homens.
Na história de Homero a ávida de Helena é marcada por divisões sexuais,
quando ela não está envolvida com nenhum homem ela desaparece da poesia do autor.
De acordo com Hughes Helena vai de vítima de estupro a noiva infantil para amante
traidora e de volta para esposa virtuosa. Hughes afirma que a Guerra de Tróia descreve
o fim de uma era, na qual a influência feminina era ampla e forte para uma audiência
que vivendo num mundo masculino e Cristão sabia que esse poder havia sido eclipsado
e no qual ela era um lembrete de como era a sociedade antiga.
Em Homero, ainda que Helena seja amante de Paris ela nunca é descrita como
sendo sua prostituta ou escrava sexual, mas sim como sua legítima e igual companheira;
ambos Menelau e Paris são descritos como sendo seus maridos, mas ela em nenhum
momento é dita como sendo uma esposa subserviente.
5. Helena através do tempo:
Hughes aponta como Helena não poderia ser unicamente considerada
simplesmente como maravilhosa. Em Homero ela é uma relutante destruidora de lares,
Hesíodo a descreve como uma princesa promiscua e Eurípides a mostra como uma
prostituta e Ovídio como uma rainha que usa sua beleza para conquistar todos a sua
volta e em todas as suas versões ela aparece como um ser com falhas, Hughes comenta
que “Helena é um anjo caído condenado por que é alguém que sempre se apaixona pela
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pessoa errada.” (p. 105). A história de Helena é um exemplo de como os homens
associam vários problemas à sexualidade feminina e de como o desejo deles por elas
acaba sendo posto como culpa delas e o sexo é visto como a raiz de todo o mal do
mundo e as mulheres como a origem de ambos. Na peça Mulheres Troianas (415 B.C.).
Helena é portada como alguém perigoso que não merece confiança principalmente por
que ela era articulada, atraente, carismática e inteligente.
6. Helena de Tróia na Literatura
Helena de Tróia é retratada na obra do dramaturgo Elizabetano Christopher
Marlowe e dos poetas americanos Edgar Allan Poe e H.D. (Hilda Doolittle) pertencendo
aos séculos dezesseis, dezenove e vinte respectivamente.
A peça de Christopher Marlowe (1564-1593), Doutor Fausto (1592) conta a
história de um estudioso alemão que quer ganhar conhecimento ilimitado através da
prática de magia. Fausto invoca Mefistófeles, um demônio para ir até seu mestre Lúcifer
e oferecer-lhe sua alma em troca de vinte e quatro anos dos serviços de Mefistófeles. A
oferta é aceita e Fausto passa a viajar pelas cortes da Europa demonstrando seus poderes
em convocar importantes figuras do passado entre elas, Helena de Tróia. Quando os
vinte e quatro anos estão no fim, Fausto fica aterrorizado pelo medo da morte e por ter
de passar a eternidade no inferno e um homem velho lhe aconselha a se arrepender, mas
ao invés disso, ele invoca Helena de Tróia mais uma vez. Deats aponta que “Helena
representa uma alternativa, o caminho imediato do último prazer antes da perdição. O
comportamento de Fausto em se afastar do Homem Velho e invocar Helena mostra a
sua rejeição ao criador do mundo durante toda a peça ao se dedicar ao Deus do seu
apetite.” (DEATS, 2005, p. 223)
Para Doutor Fausto, Helena de Tróia representa o modelo de beleza feminina
clássica perfeita, na passagem a seguir ele entusiasticamente enaltece sua beleza:
Dr Fausto: Foi este o rosto que fez naufargar mil navios ,
E queimou as torres descobertas de Ílio?
Doce Helen, faça-me imortal com um beijo. [ Eles se beijam] 95 Seus lábios sugam
minha alma: vamos ver pra onde ela voa!
Venha , Helen , venha , me dê a minha alma novamente. [ Eles
se beijam ]
Aqui eu vou morar , pois o céu é nesses lábios ,
E tudo o mais que não é Helena, é escória.
Eu serei Paris, e por amor a ti, 100
Em vez de Tróia, deve ser Wittenberg destruída;
E eu vou lutar com o fraco Menelau,
E as tuas cores usarei nas penas do meu elmo;
Sim, eu vou ferir Aquiles no calcanhar,
E depois voltar para tu Helena para um beijo. 105
Ó , tu és mais linda do que o ar da noite
Vestida com a beleza de milhares de estrelas ;
Mais brilhante que as chamas de Júpiter
Quando ele aparece para a Semele infeliz;
Mais linda do que o monarca do céu 110
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Nos braços azulados de Arethusa;
E nada mais, tu serás minha amante! Saem .
Doutor Fausto, Ato V, Cena I
(Tradução minha)
O poema “Para Helena” de Edgar Allan Poe (1809-1849) representa não
somente o ícone de beleza grego Helena de Tróia como também Jane Stith Stanard mãe
de seu amigo Robert Stanard, a qual depois Poe chamou de “o primeiro e puramente
ideal de amor da minha alma”. De acordo com a tradição Helena de Tróia podia
aparecer com a forma e a voz do primeiro amor de qualquer homem. Benjamim Fisher
comenta sobre a origem do nome de Helena, “O nome Helena se origina do grego
significando raio ou luz impressionante.” (FIHSER, 2008, p. 41). Fisher também
menciona o fato de Helena ser considerada como a maior representante da beleza e dos
valores clássicos e gregos, embora não haja nenhuma descrição da sua beleza em
detalhes.
A Helena de Tróia de Poe é idealizada, bonita, passiva, sábia e tem efeito
positivo sobre o autor, pois o inspira a escrever seus poemas e buscar seu caminho de
volta pra casa, pois ele a compara a Psique da alma ao manter uma lâmpada como guia
doméstico, porém não sabemos nada sobre seus sentimentos ou pensamentos.
Entretanto para Benjamim Fisher:
A Helena de Poe é idealizada, e sua imagem de Psique, a de alguém
que inspira a produção artística, oferece múltiplas perspectivas. Nos
trabalhos criativos de Poe o protagonista é inevitavelmente
dependente de uma integração com a presença do sexo feminino, só
então ele pode alcançar seu potencial imaginativo pleno [...] A
trajetória emocional mencionada do locutor comenta da harmonia que
emana da beleza de Helena, a sua viagem no mares tempestuosos,
para seu descanso final em casa, onde a sua presença continua a nutrir
e inspirar ele. (FISHER, 2008, pp.41-42)
“Para Helena” (1831)
Helena, tua beleza é para mim
Como aquelas cascas de Nicéia de outrora
Que suavemente, sobre um mar perfumado
O andarilho cansado de maneira desgastado trazia
Para sua própria terra natal. 5
Dos mares desesperados o longo costume de andar,
O teu cabelo de jacinto, teu rosto clássico,
Teus ares de ninfa tem me trazido para casa
Para a glória que foi a Grécia,
E a grandiosidade que foi Roma. 10
Você que como uma janela brilhante,
Como estátua é como eu te vejo de pé,
A lâmpada de ágata nas tuas mãos,
Ah! Psique, das regiões
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Que são minha Terra Santa! 15
(Tradução minha)
De acordo com Harold Bloom, Helena de Tróia “foi uma figura que iria
assombrar paralelamente H. D. a vida e os poemas da autora influenciando ambas a sua
evolução como mulher e como poeta”. (BLOOM, 2002, p. 49). H. D. foi influenciada
pela versão simpática de Eurípides sobre Helena. Ela começa seu poema depois do fim
da guerra de Tróia continua a sua análise iniciada no poema “Helena no Egito”, a
imagem de Helena em sua viajem de escapatória pelo Egito de volta a Grécia com
Menelau.
Friedman comenta: ““Helena” toma como tópico a mulher que tem sido
considerada como símbolo mítico e literário de beleza e sexual e amor ilícito na cultura
ocidental. O poema de H. D. faz algo até então novo, de forma completamente
implícita ataca a imagem tradicional e implica como essas perspectivas silenciaram a
voz própria Helena.” (2002, p. 53).
“Helena” (1923)
Toda a Grécia odeia
Os olhos inertes ainda no rosto branco,
Com seu brilho verde
Onde ela parada está,
Com as mãos brancas. 5
Toda a Grécia insulta
O rosto pálido quando ela sorri,
E o odeia ainda mais profundo
Quando cresce pálido e branco o sorriso,
Lembrando os últimos encantamentos 10
E males passados.
Que a Grécia vê, impassível,
A filha de Deus, nascida do amor,
A beleza de seus pés frios
E os joelhos delgados, 15
Poderia amar realmente sua serva,
Só se ela fosse coberta,
Com a s cinzas brancas no meio de ciprestes fúnebres.
(Tradução minha)
H. D. (Hilda Doolittle) (1886-1961) começa citando o jeito como os gregos
vêem Helena, depois da Guerra de Tróia ter acabado com a vitória grega e destruição de
Tróia. Seu rosto agora é pálido e seu sorriso já não seduz mais, sua imagem branca e
inerte já não agrada e ainda é um lembrete de toda a tragédia vivida por sua causa e os
vários homens mortos em batalha para lhe salvar. Após a volta de Helena para a Grécia,
os gregos passaram a considerar como mais real o adultério de Helena com Paris,
príncipe de Tróia e ela foi julgada como uma mulher real e não como uma deusa como
no passado, seu poder sobre eles havia acabado.
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Virgílio no sexto livro da Eneida inclui uma passagem na qual gregos e troianos
estão prontos para apedrejar Helena até a morte, sendo esta salva por Menelau e ambos
escondendo-se em um templo. Embora Menelau queira matar Helena, ele não consegue
prosseguir com seu intento diante da visão de sua beleza e apenas quer protegê-la e
levá-la de volta pra casa em segurança em seu navio. Helena retorna então para a rotina
doméstica que as teóricas feministas supracitadas comentaram sobre. Ela só poderá ser
aceita novamente na sociedade se assumir seu papel de esposa e mãe dedicada para
fazer esquecer seu adultério.
No poema “Os gregos olham-na com ódio”, Bloom descreve-os como um grupo
unido e com ódio que acreditava na beleza dessa mulher como sendo motivo válido para
lutar numa guerra... [vendo-a] como um corpo, um ser maravilhoso pelo qual muitos
morreram.”
A brancura de seu rosto e de suas mãos é enfatizada bem como o brilho
presentes em ambos, como sinal não somente de luz, mas também como de grande
beleza e fama. De acordo com Bettany Hughes a brancura era um dos maiores atrativos
de Helena. Porém para Bloom a brancura e a inércia de Helena representavam sua
inocência e forma de demonstrar arrependimento, entretanto para a sociedade patriarcal
o silêncio das mulheres é apreciado e incentivado, haja vista, como comentaram Greer e
Figes que não era esperado ou mesmo permitido que as mulheres tivessem voz e
pensamentos próprios, pois para esta sociedade é mais valioso ter uma mulher
silenciada ou morta servindo como símbolo do que uma viva e falante, pois esta última
é mais difícil de ser controlada.
6.1 Comparando as três Helenas
Esta breve análise da apresentação de Helena de Tróia na obra de três poetas
reflete muitas das teorias feministas defendidas por Beauvoir, Greer, Figes e Millett.
Como homens e poetas tanto Marlowe quanto Poe, falam apenas sobre a beleza física de
Helena sem lhes importar seus pensamentos e sentimentos. Ela é considerada como
símbolo de beleza e sexual, como um ser duo, dividido entre o bem e o mal, é deusa e
ao mesmo tempo é prostituta, é mulher e demônio, pode tornar qualquer um imortal
com um beijo e fazer com que se seja condenado ao inferno.
Como aponta Hughes (2005) Marlowe ao escrever na Renascença Inglesa é
influenciado pelo pensamento da igreja e se sente dividido ao falar de Helena, ela é
símbolo clássico da beleza, mas é também ícone de pecado e danação. Mesmo Poe ao
falar sobre ela, a torna um ser idealizado de beleza e que é utilizado como musa
inspiradora para que o poeta atinja seu primor nas rimas, mas a musa não tem vez nem
voz.
H. D. é a única que mostra os sentimentos de Helena ao ser odiada pelos gregos
e quase morta por eles e como a sociedade tentou transformá-la em um símbolo de
mulher domesticada e passiva, não lhe possibilitando apresentar sua versão dos fatos e a
diminuindo por tentar sobrepor seus sentimentos e desejos. É interessante como nos três
poemas Helena permanece em silêncio.
7. Conclusão
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As críticas feministas estudadas neste trabalho dividem muitas opiniões. Simone
de Beauvoir, por exemplo, comentou como de forma tradicional a sociedade patriarcal
fez com que a mulher desejasse ter beleza e saúde e se encaixar nos estereótipos
impostos a elas. E que por esse motivo talvez haja tanta controvérsia a respeito de
Helena de Tróia por que ela não se comportou da forma submissa como era esperado
dela pela sociedade patriarcal.
Kate Millett comenta sobre o fato das mulheres serem consideradas como propriedade
masculina e eles tendo total controle sobre elas e ainda como sendo a causa do
sofrimento humano.
Eva Figes, assim como Beauvoir e Millett, aponta como a forma que alguém é
criado desde seu nascimento determina seus valores e ações por toda a vida. Bem como
o fato de que homens e mulheres são educados de forma diferentes a fim de cumprirem
os papeis já predefinidos como sendo deles. Talvez por isso Marlowe implique que a
culpa pela Guerra de Tróia seja de fato de Helena e não menciona a responsabilidade de
Paris.
Germaine Greer comenta sobre a importância dada ao corpo feminino e como
este é tratado com um objeto estético. Elas não tem voz e nem são respeitadas por quem
são realmente, além de serem consideradas como brinquedos sexuais dos homens. Por
isso Greer vê a mulher como um ser eunuco, alguém sem personalidade ou sexualidade
própria, com a única missão de satisfazer aos homens.
Christopher Marlowe mostra Helena de Tróia como símbolo de beleza e busca
possuí-la não apenas por isso, mas por ela ser o maior ícone de beleza e se ele a possuir
será dono de um objeto precioso, assim como o conhecimento que ele buscava em sua
trajetória. Edgar Allan Poe de forma mais romântica e idealizada mostra como a beleza
de Helena influencia sua escrita e o torna mais exímio em sua arte, fazendo com que o
melhor dele apareça.
Apenas H. D. (Hilda Doolittle) mostra como Helena se sente após o fim da
Guerra de Tróia, com medo, velha, sem beleza e desprezada por aqueles que antes a
idolatravam e agora a culpam pela tragédia vivida por eles. Ninguém a considera como
vítima da sua própria beleza, de Teseu e Paris e pela sociedade patriarcal que tentou
dominá-la e silenciá-la, assim como fazia com todas as mulheres.
Mesmo a despeito da imagem de mulher bonita e promiscua que ainda muitos
autores masculinos insistem em propagar sobre Helena de Tróia, Bettany Hughes
(2005) aponta como Helena fora na antiguidade protetora, patrona, rainha, esposa, mãe
e modelo e adorada como deusa e heroína que conseguiu comandar as vidas de muitos
homens e servir de exemplo para muitas mulheres.
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London: W.W. Norton and Company, 2004.
P á g i n a | 797
MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES DE DISCUSSÕES LITERÁRIAS NO
FACEBOOK
Adriana Sales ZARDINI (CEFET-MG)
Lília dos Anjos AFONSO (UFPB)
Resumo: As possibilidades que a internet oferece para a literatura são muitas, tais
como: livros digitais gratuitos, sites e blogs especializados, listas de discussão e até
mesmo sites as redes sociais estão usadas com a finalidade de discutir literatura. Porém,
o campo que vem ganhando maior destaque é o uso do Facebook para divulgação de
livros, promoções e, principalmente resenhas e discussões literárias, que passa a ser
virtual e tem conquistado um número cada vez maior de adeptos.O objetivo deste
trabalho é apresentar um relato de experiência de um grupo de discussão da JASBRA,
além de expor algumas observações a respeito do comportamento dos membros deste
grupo. Além disso, faremos um levantamento das potencialidades de uso desta
ferramenta, inclusive no campo pedagógico.
Palavras chaves: Jane Austen, Facebook, Grupo de Discussão Literária.
1. Introdução
Atualmente vivemos uma espécie de ‘boom’ tecnológico e constante inovação
de constante inovação das tecnologias digitais e mídias diferentes de informação e
comunicação. O uso da tecnologia nos mais diferentes espaços favoreceu a
comunicação entre as pessoas do mundo inteiro, aumentando, assim, a possibilidade de
conexão entre elas, favorecendo as transações comerciais, as pesquisas, visualização de
vídeos dos mais diferentes gêneros, jornais, artigos e revistas em línguas variadas, além
de democratizar o acesso ao conhecimento.
Cada vez um número mais de usuários participa de alguma rede social, para
interação, socialização, publicação de imagens, vídeos, artigos. De acordo com a
Wikipédia, as redes sociais ou sites de relacionamento são estruturas sociais compostas
por pessoas ou organizações, conectadas por um ou vários tipos de relações e que
partilham valores e objetivos em comum. São exemplos de redes sociais: o orkut, o
facebook e o myspace. Já as mídias sociais são definidas como o uso do meio eletrônico
para interação entre pessoas através de sistemas digitais que combinam textos, imagens,
sons e vídeo, para criar uma interação social de compartilhamento de experiências
(Dubner, 2010). Estas ferramentas incluem blogs, fóruns, podcasts, microblogs, redes
sociais, wikis, entre tantas outras que são criadas a cada dia. De acordo com Warschauer
e Ware (2008), as novas mídias estão ganhando importância social, trazendo inúmeras
oportunidades de comunicação e expressão para todos. Já em 2008, segundo o relatório
da Nielsen Online, “80% dos internautas brasileiros visitou redes de relacionamento e
blogs ao longo daquele ano” (Pavarin, 2009). Ainda segundo o autor, os brasileiros
gastam cerca de 23% do tempo online em orkut, blogs e sites semelhantes. Com o
crescimento de novas redes e mídias sociais, estes espaços estão sendo utilizados para:
marketing, educação, cultura e comércio eletrônico. O principal objetivo da Web 2.0 é
partilhar e colaborar.
Obviamente tais recursos são utilização na área da educação há alguns
anos, inclusive aqui no Brasil. Muitas pesquisas acadêmicas apontam a utilização de
P á g i n a | 798
recursos computacionais e redes sociais como formas de favorecer o ensino e a
aprendizagem:
- a utilização de e-mails e chats no ensino e aprendizagem (Zardini e Costa,
2009), (Carvalho, 2009), (Silva, 2009), (Oliveira, 2005), (Souza, 2000);
- a utilização de blogs em contextos escolares (Zardini e Costa, 2007), (Silva,
2007);
- e o uso das redes sociais na educação, como: orkut (Bezerra, 2010; Penteado,
2009; Neto, 2007) e Live Mocha (Pereira e Araújo, 2010).
Com as comunidades virtuais a “interação humana se complexificou” o que
culminou “na criação de comunidades virtuais, constituídas pela linguagem
multimodal, sendo que “a tendência dos usuários de Internet é migrar para o Facebook
que passa a ser entendido com oum estado atrator da comunicação na internet” ”
(Paiva, 2013).
2. Dos Salões Franceses às Comunidades Virtuais
Se voltarmos no tempo, lá no século XIX, é possível perceber que a leitura de
livros sempre existiu, e já naquela época as pessoas tinham o costume de fazerem a
leitura em grupos, ou seja, já que nem todos eram letrados, um membro da família ou da
comunidade fazia a leitura em voz alta e os demais apenas escutavam, posteriormente
poderia haver uma discussão do livro. A ideia de círculo literário já existia, porém, não
era formalizada. Segundo Almeida (2008, p. 38), “os primeiros pontos de encontros
literários surgiram na França no início do século XVI”. A burguesia e os intelectuais
da época se reuniam em cafés, restaurantes e em salões literários, sendo que um dos
mais conhecidos era o ‘bureau d’esprit’ de Louise Labé (Almeida, 2008). No Brasil, a
partir do século XIX é que surgem os salões literários. Ainda de acordo com a autora
(2008, p. 39), “até este momento, os principais pontos de encontro dos literatos
brasileiros eram os cafés, e algumas confeitarias e livrarias”. Broca (apud Almeida,
2008) destaca que no período áureo dos cafés literários, os principais representantes
eram o Café do Rio, o Java, o Café Paris, quanto às confeitarias, as mais prestigiadas
eram a Confeitaria Colombo e a Confeitaria Pascoal. A transição dos encontros
presenciais para os encontros virtuais se dá a partir da última década do século XX, já
que:
“os encontros tête-à-tête, a exemplo dos salões franceses do século
XVI ou do Brasil do século XIX, já não são mais sinônimo de
ambiente literário; e, ainda, que as discussões antes mantidas de forma
contundente por escritores e apreciadores de uma boa leitura se
transportam hoje para as comunidades virtuais, para as salas de batepapo ou para os sítios de discussão”. (Almeida, 2008, p. 77)
3. O Facebook e a Discussão Literária
Também é possível perceber, no campo da literatura, como os avanços
tecnológicos favoreceram e continuam favorecendo esta área. Há alguns anos, só era
P á g i n a | 799
possível encontrar alguns textos/livros online (literatura digitalizada) e perfis de
escritores. Entretanto, com a popularidade das mídias sociais, hoje é possível encontrar
uma infinidade de recursos como: livros digitais gratuitos, sites e blogs especializados
em literatura, listas de discussão, fóruns de discussão e até os sites de relacionamentos
são usados com a finalidade de se discutir literatura. A leitura de textos é beneficiada
pelo desenvolvimento da tecnologia e também pela utilização e discussão por parte dos
usuários da internet segundo os autores Lin (1997), Potter (1999) e McGrath (2009).
Além disso, os círculos de discussão literária online apresentam inúmeras vantagens
como a questão de espaço e tempo, além de beneficiar pessoas que não podem se
locomover ou participar de discussões em escolas ou círculos literários, como relata
Cavanaugh (2006).
Hoje em dia, apenas com uma simples busca no Facebook ou Google é possível
encontrar o grupo de discussão daquele seu livro favorito ou do livro que é sucesso de
vendas. Com a facilidade de utilização das redes sociais, o usuários ampliam, cada vez
mais, a discussão de temas, incluindo nestes a discussão literária. Os participantes se
interessam, à princípio, pelo livro em questão, mas posteriormente se envolvem em
debates interessanets e frutíferos e acabam ampliando a visualização da obra para algo
além da leitura superficial.
Muitos dos grupos que acompanhamos no Facebook, tiveram início a partir da
participação de blogs dedicados a livros e afins. Enquanto há alguns anos, a participação
era centrada exclusivamente através dos comentários nas postagens do blog, hoje em dia
os leitores costumam ler as publicações e levarem os temas ou links para os grupos que
participam no Facebook.
Existem sites específicos para inclusão de obras já lidas ou aquelas que leitor
tem interesse de ler, como o caso do Skoob, O Livreiro, Goodreads, entre outros.
Porém, o campo que já é bastante explorado é o uso de blogs para divulgação de livros,
promoções e, principalmente resenhas e discussões literárias. Há espaço e pessoas
interessadas em todo tipo de gênero literário. Podemos citar como exemplo os blogs de
Valéria Fernandes (Shoujo Café1) , especializado em mangás; o blog de Rosangela
Neres (Descortinada palavra2), que discute uma literatura bastante diversificada; o site
de um grupo de leitoras e escritoras de fanfics (Orgulho e Preconceito Fanfics3); e o site
de Karla Arruda (Coffie and Movies4), especializado em literatura chicklit e o Romances
in Pink5, que explora todo o universo da literatura erótica e de banca 6. Esses sites e
blogs possuem milhares de seguidores e é possível perceber a enorme quantidade de
pessoas que acompanham as resenhas, lêem os livros e posteriormente participam de
clubes de leitura virtuais ou presenciais.
A grande maioria dos leitores do blogs, já migraram para o Facebook e
desenrolam suas discussões nesta rede social, fazendo com que o blog sirva de
referência e toda a ‘discussão’ seja direcionada para os grupos de discussão criados para
esta finalidade.
1
http://shoujo-cafe.blogspot.com/
http://rosangelaneres.com/
3
ttp://www.janeaustenfanfics.com.br
4
http://www.coffieandmovies.com.br/
5
http://www.romancesinpink.com.br/
6
Romances vendidos inicialmente em bancas de jornais, só que atualmente são vendidos também em
livrarias.
2
P á g i n a | 800
Além dos blogs e sites, ainda é necessário citar os fóruns de discussão, que
apesar do fenômeno Facebook, ainda encontra adeptos em toda parte do globo. O fórum
é um meio de interação em cursos universitários e discussões virtuais. Segundo
Marcuschi (2005), o fórum de discussão é considerado também um dos gêneros
discursos emergentes, pois sugiram com o desenvolvimento da internet e das
tecnologias da comunicação. Quando se refere à discussão literária, Cavanaugh (2006)
afirma que geralmente os fóruns são chamados de: grupos de discussão literária, círculo
de literatura, clube do livro, estudos literários e grupos de discussão literária.
Independente de nomenclaturas, umas das características desses ambientes de discussão
online é a função de:
“constituir-se espaço para a discussão de um tema...”, “...além de
oferecer condições para a construção de um ambiente colaborativo,
em que o conhecimento é construído coletivamente por diferentes
interlocutores e compartilhado para a construção ou a reconfiguração
de conceitos”. (Silva, 2009b).
Entretanto, os fóruns também estão deixando de ser uma opção para os leitores
que sejam discutir as obras literários e acabam cedendo lugar ao Facebook. O que
diferencia o Fóruns do Facebook é que nos fóruns existe um organização de tópicos e
discussão que não é possível no Facebook. Entretanto, mesmo em meio ao que se
parece caótico, como uma série de publicações de membros dos grupos no Facebook e
‘conversas’ que, na maioria das vezes, estrapalo o tema proposta.
De um modo geral, as comunidades de discussão literária no Facebook, seguem
mais ou menos os padrões de discussão proposta nos fóruns. A principal característica
das duas redes sociais é favorecerem uma ‘conversa’ onde os participantes não estão
conectados em tempo real, facilitando o diálogo através de uma discussão assíncrona. A
finalidade primordial é o debate mediado entre grupos, em um espaço virtual onde os
mediadores ou administradores disponibilizam perguntas sobre assuntos variados ou
pré-determinados, gerando a discussão e o questionamento que ‘alimenta’ o diálogo
permanente. Quanto à modalidade, os fóruns e grupos no facebook podem ser divididos
entre: 1) públicos ou privados (neste caso, é necessário receber um convite ou solicitar a
aprovação no fórum); 2) mediados ou não-mediados (onde a criação e publicação de
mensagens é livre); e 3) temáticos ou livres (nos fóruns temáticos, faz-se a escolha por
um assunto específico, enquanto nos fóruns livres, discute-se de tudo um pouco).
A internet está repleta de ambientes que propiciam a discussão literária como
sugeridos por Wolsey (2004), Porter (1999), Almeida (2008), McGrath (2009), Nunes e
Moura (2009). Porém, em muitos casos, percebe-se também que existe a necessidade e
o interesse em se discutir literatura mesmo fora dos ambientes ditos como educativos,
como as redes sociais (Fóruns, Facebook, etc.) e os fóruns de discussão criados fora do
ambiente escolar como.
O que motiva os usuários a participarem de determinados grupos no Facebook
são:
- Afinidade com a temática.
- Para receberem notícias sobre o escritor ou escritores.
- A possibilidade de interação e possível aprofundamento da leitura.
P á g i n a | 801
- Conversar com amigos e conhecer pessoas novas, etc.
Se comparadas com às discussões em sala de aula ou em um grupo presencial de
discussão literária, onde os participantes devem se expressar em tempo real, as redes
sociais proporcionam diversos benefícios, pois a participação assíncrona favorece,
segundo Leite (2008):
- A reflexão e a pesquisa antes da postar a mensagem.
- A organização do conteúdo e da forma do texto a ser postado.
- Permite o aprofundamento de ideias e conceitos.
- Facilita a prática consciente de diferentes funções cognitivas como: observar,
identificar, relacionar, comparar, analisar, inferir, sintetizar, divergir,
discordar, generalizar, etc.
- Possibilita o registro de construção colaborativa do conhecimento.
- Possibilita a mediação mais direcionada por parte do moderador/administrador.
Enquanto as redes sociais são utilizadas de maneira intensiva por usuários do
mundo inteiro, no campo da educação as possibilidades pedagógicas ainda não são
valorizadas ou conhecidas. Embora não seja uma plataforma usada pelos professores
para promover ambientes de conhecimento, os alunos passam boa parte do tempo
usando o Facebook e outras redes sociais. Neste caso, o fato de os alunos e boa parte
dos professores conhecerem uma rede social, como é o caso do Facebook, já é um
diferencial, visto que não seria necessário tutorias de utilização. Além disso, as redes
sociais propiciam múltiplas possibilidades de publicação: texto, imagens, vídeos, links,
enquetes, promover encontros, entre outros. A publicação de diferentes tipos de mídia e
gêneros digitais é facilitada porque os usuários não precisam ter conhecimentos de
programação ou edição, por exemplo. Além disso, a centralização de temas, autores e
livros, é o que mais atrai os usuários das redes sociais.
Ao ser usada tanto na educação quanto para finalidades de entreterimento, as
redes sociais como o Facebook agregam características como:
- A possibilidade de expansão do assunto abordado através da indicação de
outros livros, outros autores, e até mesmo criação de outros grupos de interesses em
comum (menos formais)
- Muitas vezes é necessário um cronograma de participação, visto que é
relativamente fácil se ‘perder’ em meio a tantas postagens e cometários. Porém, a
imprevisibilidade do sistema, também é um atrator, visto que muitos usuários preferem
apenas ler notícias, curtir publicações, sem, entretanto, participarem de discussões mais
aprofundadas.
- Os usuários, em sua grande maioria, trabalham colaborativamente. Como
sabem que determinados assuntos são de interesse do grupo, acabam trazendo notícias
de assuntos referentes ao tema do grupo.
- Proporciona engajamento e diversão com a literatura.
- Colabora para desenvolver as habilidades de entender e intepretar textos
liteários e as postagens dos colegas.
P á g i n a | 802
- Discussões proporcionam um ambiente favorável a compreensão mútua e
tolerância em relação às opiniões dos outros colegas.
Se usados por professores e alunos, o Facebook e demais redes sociais,
contribuem para ampliar a discussão também fora da sala de aula, proporcionando
novas amizades, novos grupos de interesse comum e produção colaborativa do
conhecimento. Além disso, os alunos sentem-se motivados a participar e é possível dar
voz aos alunos mais tímidos e que não se sentem parte do grupo. Com relação às novas
práticas de sala de aula, o uso das redes sociais desenvolve novas habilidades, novos
letramentos; dá a oportunidade dos alunos pensarem melhor e refletirem antes de
responderem; favorece um melhor aprendizagem, já que os alunos lêem as respostas dos
outros e podem aprender com ‘o outro’. Aprendizagem é centrada no que o grupo
produz, e o professor não é detentor do conhecimento, é um facilitador.
Entretanto, em um estudo anterior Zardini e Afonso (2010) aponta alguns
desvantagens do uso de fóruns de discussão que podem ser aplicados ao grupos de
discussão no Facebook. Os participantes, muitas vezes relatam falta de tempo para
participarem das discussões. Em algumas casos, eles desconhecem as regras do grupo e
funcionalidades do Facebook. São leitores passivos das discussões e, em alguns casos,
não se sentem pertecentes àquele grupo, pois acreditam que não têm nada a contribuir.
Alguns usuários apontam problemas técnicos, como a dificuldade de localizar os
tópicos de discussão. Isso é bem mais evidente nos grupos do Facebook, onde os
membros podem publicar com liberdade, os mais diversos assuntos, gerando um certo
caos na ordem e frequência de publicações do grupo.
4. Os participantes
Como o objetivo deste trabalho é apresentar um relato de experiência a respeito
da utilização de grupos no Facebook para discussão literária, optamos por fazer um
levantamento com os membros que se voluntariaram a responder nossas perguntas. O
grupo em questão é o Grupo Jane Austen Brasil, pertecente à JASBRA (Jane Austen
Sociedade do Brasil). Em nosso relato, apresentaremos as opiniões das blogueiras e
apresentaremos um do perfil dos membros, a frequência de acesso dos usuários, entre
outros aspectos quantitativos. Em seguida, faremos um levantamento a respeito das
opiniões dos usuários, as razões que levam as pessoas a discutirem literatura na
internet e tentar entender por quais motivos algumas desistem no meio das discussões
enquanto outras participam assiduamente.
Para se obter a opinião dos membros do grupo da JASBRA, foi feito um convite
e após o aceite, foi possível fazer um levantamento de dados e opiniões baseados nas
respostas obtidas. Procuramos destacar a opinião e a experiência de pessoas que estão
envolvidas diariamente com grupos de leitura, logo, que observam a evolução das
formas de leitura que tem sido praticadas atualmente.
O grupo é bastante eclético, sendo que a maior parte dos membros são do sexo
feminino, pertencente às mais diversas classes sociais e profissões. Há muitas pessoas
interessadas em discussões em questões mais aprofundadas e até mesmo técnicas,
relacionadas à literatura. Também há um grupo mais interessado nas adaptações
cinematográficas. O grupo mesmo sendo centrado em Jane Austen e sua obra, acaba
P á g i n a | 803
oferecendo um leque de discussões variadas, com temáticas que vão desde como usar
um leque, o preparo de chás, como se portar se você fosse um personagem de Austen,
além de discussões mais acalarados sobre gêneros .
A respeito dos benefícios da utlização de um grupo de discussão no Facebook,
alguns membros destacaram a importância desta rede social oferecer, com facilidade, a
divulgação de links, fotos, vídeos, criação de enquetes, entre outros. Além disso,
destacaram que as editoras saíram do espaço das livrarias e se instalaram virtualmente a
partir do contato direto com o seu cliente mais importante: o leitor, sendo possível
sorteios realizados por diversas mídias sociais, colocam diversas publicações, de temas
variados e atingindo públicos diversos, em pauta, o que faz com que a leitura ganhe
espaço na vida das pessoas de uma maneira diferente, através do contato virtual.
Apesar de ser um grupo grande, com mais de mil e quinhentos membros, são
poucos os participantes que assiduidade tanto de observação do espaço quanto de
respostas aos temas que são propostos. Porém, a maioria das pessoas acessam a página
do grupo porque gosta da leitura ali exposta, mas nem sempre deixam comentários que
permitam formar uma opinião coletiva a respeito de variados assuntos. Alguns
membros, apontam o uso excessivo do Facebook para outras finalidades – como jogos –
como um dos principais fatores da ‘ausência’ de participação em algumas publicações.
Sendo que a maioria esmagadora se detém apenas clicar na tecla ‘curtir’ do Facebook.
Em relação ao grupo da JASBRA, as discussões começam a partir dos livros,
em seguida são feitas comparações entre o livro e as adaptações para o cinema e a TV.
Não há um cronograma fixo a ser seguido, porém, a maior parte das publicações do
grupo estão relacionadas aos posts publicados no blog da JASBRA7. O grupo possui
moderadores, entretanto os membros podem publicar qualquer link, imagem ou vídeo
que desejarem, desde que seja relacionado à temática do grupo. Mesmo sendo um grupo
voltado para a discussão dos livros de Jane Austen, eventualmente há discussões sobre
livros e filmes afins, além de divulgação de links de sites e blogs contendo notícias
sobre a escritora.
Um dos aspectos negativos que podemos mencionar é a falta de organização
lógica dos tópicos de discussão. Como no Facebook os tópicos que ficam em evidência
são necessariamente aqueles que possuem maior númeor de comentários ou ‘curtidas’,
algumas publicações ficam relegadas à segundo plano, o que divulga a leitura por parte
dos membros que não possuem tempo o suficiente para entrar na Internet e acessar
tantas publicações. Além disso, há a falta de tempo, a dificuldade de se concentrar nas
discussões do grupo, com tantos aplicativos e ‘distrações’ que o Facebook oferece.
5. Considerações finais
O Facebook oferece muitos recursos que possibilitam uma discussão mais
completa de obras literárias visto que agrega botões de publicação de links, imagens,
vídeos, criação de enquetes, votação e atualização constante dos comentários. Os grupos
que temos observado crescer a cada dia no Facebook, geralmente começam com uma
temática específica e com o passar do tempo acabam variando temas, acrescentando
elementos não relacionados ao tema e em alguns casos, favorecem a criação de novos
grupos, com objetivos e interesses mais específicos.
7
http//:www.janeaustenbrasil.com.br
P á g i n a | 804
Com a utilização cada vez mais frequente do Facebook, esta rede social, tem
grandes potencialidades para a discussão literária, pois facilita a divulgação das obras,
possibilita um crescimento de pessoas interessadas e possíveis leitores, com perfis
diferenciados e pertecentes a diferentes regiões geográficas. Mesmo sendo um espaço
democrática, o uso do Facebook para discussão literária ainda pode ser considerado um
espaço privilegiado quando se trata de literatura e discussão de livros. Os principais
motivos para o aumento dos números de leitores se deve ao fato de que o poder de
compra cresceu e assim as pessoas podem comprar mais livros, além da propaganda
massiva em meios de comunicação e mídias digitais. Entretanto, a discussão literária
ainda é vista como algo acadêmico ou pertecente à um grupo elitizado, que detém
conhecimento específico sobre determinado autor ou obra.
A alegação de falta de tempo e consequente falta de comentários deve-se à
inúmeros fatores, porém, destacamos a crescente ‘mania’ dos usuários das redes sociais
se contentarem apenas à ‘curtir’ um tema de discussão, uma foto, um vídeo ou link para
uma postagem com um texto ainda maior. A impressão que se tem é que há muita coisa
importante publicada sobre literatura, mas aqueles que realmente se envolvem em
discussões aprofundadas são relativamente poucos.
Em relação ao grupo de discussão da JASBRA, foi possível observar que este
espaço tem gerado boas discussões e interesse dos participantes. Enquanto muitos
participantes leem e respondem as mensagens dos outros, alguns participantes se
limitam apenas a ler o que os outros escrevem. Além das características citadas
anteriormente, acrescentandos também a característica da afetividade entre os
participantes, pois muitos utilizam o fórum como uma forma de estarem juntos
(virtuamente) e acreditam que estão fortalecendo os laços de amizades nascidas no meio
digital.
É importante destacar também que os participantes devem reavaliar seus
conceitos a respeito da formalidade e informalidade de discussão literária, já que nos
últimos anos, as novas tecnologias têm contribuido muito para que as pessoas sejam
autores de sua própria aprendizagem.
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A LINGUAGEM POÉTICA E UMA ANÁLISE SIMBÓLICA DENTRO
DA POESIA DE EDWARD ESTLIN CUMMINGS
Aline Souza MELCHIADES (UFPB)8
Geovanna Dayse Bezerra SILVA (UFPB)9
Resumo: Neste trabalho, é desenvolvida uma proposta de análise revestida de
elementos simbólicos, a respeito do poema “somewhere i have never travelled, gladly
beyond” cuja autoria é do poeta, Edward Estlin Cummings (1894-1962), popularmente
conhecido pela assinatura com grafia em caixa baixa - e.e. cummings. O objetivo do
trabalho é demonstrar o quão atual, sonora, imagética, significativa e valorada tende a
ser a poesia, tomando-se em consideração que o poema foi musicado pelo intérprete
Zeca Baleiro – grande nome da música popular brasileira que faz uso da tradução de
Augusto de Campos. Desse modo, torna-se evidenciada a força e valor da poesia
perante a sociedade, muito embora grande parte dos indivíduos inseridos nesta
desconheça o ano, o contexto ou o autor da elaboração da obra. A linguagem poética,
por conseguinte, vem a ser realçada e particularizada a partir da fundamentação de
embasamentos teóricos como, por exemplo, o de CARMO (2011) que aponta a
definição da poesia como sendo uma forma especial de manifestação da linguagem
verbal, visto que sua maneira de comunicar seria permeada de especificidades,
implicando regras específicas. Acrescentem-se também os dizeres de PAZ (1982)
referidos à questão do reflexo da linguagem social e da fala na poesia, afirmando que
essas duas estão concentradas no poema, articulando-se e levantando-se, o que provoca
a figuração do poema numa linguagem erguida. Portanto, haverá um desenraizamento
das palavras, afinal o poeta arranca destas o sentido meramente informativo para que
elas possam ressurgir ricas de significação, incentivando até novas recriações, à medida
que o leitor, em seu momento, recita, recria-o ou canta, abrindo espaço para o campo
das imagens, que conforme CHKLOVSKI (1970) particulariza o objeto proveniente da
visão do eu-lírico.
Palavras-chave: Linguagem poética. Análise simbólica. Imagens. Particularização.
1. Introdução
A poesia é uma fonte de intensa eloquência e traz consigo uma linguagem capaz
de portar plurissignificação, levando-se em consideração que o texto poético é um meio
que possibilita visível transmissão de expressividade. Diante disso, neste trabalho, o
estudo da linguagem poética ganhará destaque.
Para tanto, adotando-se como corpus para a interpretação poética a tradução de
Augusto de Campos do poema “somewhere i have never travelled, gladly beyond” cuja
autoria, na língua inglesa, é do poeta Edward Estlin Cummings (1894-1962), é possível
demonstrar o quão atual, sonora, imagética, significativa e valorada tende a ser a poesia.
8
Graduanda do curso de Licenciatura em Letras – Português, da Universidade Federal da Paraíba.
Graduada em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNjPÊ).
E-mail: [email protected].
9
Graduanda do curso de Licenciatura em Letras – Português, da Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: [email protected].
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“Nalgum que eu nunca estive alegremente além” é a tradução que foi
transformada em canção pelo intérprete Zeca Baleiro, grande nome da música popular
brasileira, fato que reforça a ideia de que a sociedade, nesse caso em questão, através
dos ouvintes da MPB, contribui para que a poesia seja ainda bastante cultivada e ativa
no meio social (mesmo que desconhecidos: o ano, o contexto ou o autor da elaboração
da obra).
Entendida a importância da canção, são também destacadas as visões
consagradas por alguns dos expoentes que representaram a Teoria do método formal,
isto é, os formalistas russos, a fim de teorizar o conteúdo abordado. Em seguida,
também é realçada a possibilidade da relação entre a poesia e a tradução, que se
desenvolve por meio da transcrição criativa, bem como a abordagem da linguagem
poética, em que são levantados aspectos como: o ritmo; a imagem; a disposição das
palavras nos versos; etc. Por fim, é feita uma análise simbólica baseada no “Dicionário
de Símbolos” (CHEVALIER, 2009), voltada para a percepção e interpretação da
simbologia alcançada através das imagens transmitidas pelo eu-lírico, o que colabora
para a percepção das teorias versadas ao texto, no momento em que é feita a análise,
facilitando, por conseguinte, o entendimento sobre a comunicação poética.
2. Da poesia de Edward Estlin Cummings à tradução de Augusto de Campos
Assim, usando grafia em caixa baixa – e.e. cummings -, o poeta, pintor, ensaísta
e dramaturgo americano preferia ser conhecido. Enxergado como sendo um poeta
dotado de grande originalidade, trouxe à poesia um estilo de escrita deveras diferente da
estética tradicionalista.
Em sua arte poética, cummings consegue fugir de padrões, revelando uma
liberdade maior de escrita, passível de algumas características como: o desprendimento
às regras gramaticais; a não obediência a imposições relativas ao uso de letras
minúsculas ou maiúsculas; o abandono aos versos tradicionais; a pontuação feita de
forma abrupta e errada; a transformação da sintaxe, de maneira que consegue
influenciar até mesmo a parte sonora da poesia, fato que, certamente, permitiu que o
poema se tornasse próximo da música, visto que há uma preocupação com as rimas,
assonâncias, paronomásias, aliterações, entre outros fatores permissivos ao realce do
aspecto da musicalidade, bem como o ritmo.
Em sua poesia, cummings para trazer tantas inovações, obviamente, não era
leigo do conhecimento da linguagem poética, afinal, conforme assinala Paz:
o poeta encanta a linguagem por meio do ritmo. Uma imagem suscita
outra. Assim, a função predominante do ritmo distingue o poema de
todas as outras formas literárias. O poema é um conjunto de frases,
uma ordem verbal, fundados no ritmo. (1982, p. 68)
Logo, tomando-se como exemplo a questão da disposição da sintaxe, feita
voluntariamente por cummings com a finalidade de alterá-la, desprendendo-a das regras
padronizadas, e, consequentemente, interferindo nos aspectos rítmicos, só comprova
que o poeta tinha domínio dos recursos da linguagem poética, muito embora, pudesse
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ser visto como alguém que escrevia fora do padrão culto, nada mais passava de um
procedimento estilístico adotado intencionalmente por parte do autor.
Ressaltados são a sintaxe e o ritmo, desde a embrionária percepção de
formalistas, como no caso de O´Brik (1920) apud Eikhenbaum (1970, p. 24), quando ele
atenta para o fato de que no verso existem construções sintáticas indissoluvelmente
ligadas ao ritmo. Assim, o método formal já começa através de alguns de seus adeptos a
servir como embrião de reflexão no que diz respeito ao cuidado com a composição da
estrutura da linguagem poética. Isso contribuiu muito para a evolução dos estudos até a
atualidade, embora alguns conceitos formais tenham sido dissolvidos ou pelo menos
contestados nos dias de hoje.
Pode ser trazida à baila, a seguinte problemática que se funda na situação de que
o formalista russo Jakobson (1919) apud Compagnom (2003, p. 40-4) grosseiramente
tentou diferenciar a linguagem do cotidiano da linguagem da Literatura, por meio da
justificativa de que haveria uma determinada propriedade distintiva, chamada de
literariedade, capaz de separar a linguagem literária daquela utilizada normalmente no
cotidiano. Tal propriedade causaria uma desfamiliarização, pois a linguagem utilizada
para a obra literária seria apresentada de maneira que desarranjaria as formas habituais
da linguagem, visto que haveria maior sensibilidade linguística por parte dos leitores.
Entretanto, podemos ressaltar que a concepção acima mencionada, é falha, pois
não abrangeria toda a poesia; e, certamente a poesia do inovador e.e. cummings, devido
ao fato deste possuir um estilo mais moderno, não se encaixaria a esse preceito tão
restrito imposto por essa visão do renomado formalista.
Ao encontro desse posicionamento que divergente ao do citado teórico, como
sustentação a ser dada, seria possível trazer os dizeres de Paz (1982), quando ele afirma
que a linguagem poética é um reflexo da linguagem social e da fala, pois essas duas
estão concentradas no poema, articulando-se e levantando-se, o que provoca a figuração
do poema numa linguagem erguida. Portanto, haverá um desenraizamento das palavras,
afinal o poeta arranca destas o sentido meramente informativo para que elas possam
ressurgir ricas de significação.
E a respeito de tal significação, já enuncia Pound apud Carmo (2006, p. 32):
“literatura é linguagem carregada de significado”, desse modo, ele rememora a
importância da linguagem para a comunicação, e não deixa esquecidas características
sempre presentes na poesia, como, por exemplo, a polissemia – que propicia a
existência de ambiguidades –; a condensação de ideias fazendo uso de recursos (figuras
de linguagem que justificam a sonoridade, dando sentido às palavras e ao poema de uma
forma geral).
É importante adicionar a essas características mencionadas, a existência da
forma no poema. Ao seu respeito é dito que ela está fortemente entrelaçada com o
conteúdo, por isso que se deve preservá-la. Isso pode ser percebido no caso do corpus
adotado, a referida tradução do poema, conhecida por “nalgum lugar que eu nunca
estive alegremente além”, que preserva a forma do poema original escrito por e.e.
cummings, pois do contrário estaria sendo feita uma alteração brusca capaz de significar
uma mudança grosseira na comunicação poética, pois transformaria sua linguagem,
visto que a forma se relaciona com o conteúdo. Nesse sentido, “Ao traduzir poesia é
necessário traduzir o perfil sensível da mensagem, a forma (querendo-se entender por
esta palavra a correlação essencial de significante e significado que constitui o signo)”
(CAMPOS, 1977, p. 142)
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Assim, ele está revelando a importância de resgatar a forma e também de
considerar a sensibilidade da mensagem. A forma, entretanto, transcenderá a semântica,
pois naquela será encontrada a informação estética que fará jus até mesmo para
identificar a relação entre a palavra e a estrutura do poema.
Então, em reforço desse pensamento é que Campos (op. cit.) admite a
possibilidade de existir tradução na poesia por meio da transcrição criativa, que
demandaria um processo de recriação, revestindo-se de forma crítica. Pois, feito isso,
haverá de todo modo um cuidado com a preservação da essência da obra original.
3. Análise simbólica
Conforme foi visto, a tradução é possível através da transcrição criativa. Visto
que o corpus adotado traduz uma língua estrangeira, de acordo com Jakobson (1985), o
caso em questão seria classificado como tradução interlingual ou propriamente dita.
Então, por meio dessa tradução é feita uma interpretação dos signos verbais da
língua inglesa. Ademais, analisando o poema em português, percebe-se que ele abarca
os caracteres oriundos de um lirismo bucólico com alusão a elementos da natureza.
Ocorre também o emprego de imagens que, de maneira enriquecedora, tendem a
particularizar as ações ou qualidades da pessoa amada, por exemplo, pelo eu-lírico, por
meio de metáforas, ou outras figuras de linguagem.
Seguem abaixo, respectivamente, o poema original e a tradução, está última
servindo corpus para a análise simbólica:
Versão original - e.e. cummings
somewhere i have never travelled, gladly beyond
any experience, your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near
your slightest look will easily unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully, mysteriously) her first rose
or if your wish be to close me, i and
my life will shut very beautifully ,suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;
nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility: whose texture
compels me with the color of its countries,
rendering death and forever with each breathing
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(i do not know what it is about you that closes
and opens; only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody, not even the rain, has such small hands
Tradução – Augusto de Campos
nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto
teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa
ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;
nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira
(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas
(e.e.cummings. Nalgum lugar. Tradução de Augusto de
Campos. In Líricas, Zeca Baleiro)
A análise do poema é feita através da seguinte proposta: tomemos, como base, a
exaltação de dois elementos muito presentes nos poemas de e.e. cummings: a natureza
e o amor. Considere-se também o fato de que o eu-lírico se reveste na figura de uma flor
que está sendo admirada pela pessoa amada e que foi retirada do canteiro, no qual
anteriormente vivia, para ser levada junto dessa pessoa descrita pelo eu-lírico como
sendo alguém de notória delicadeza e fragilidade que o magnetizam e o deixam
apaixonado.
Na primeira estrofe, acontece a aproximação da pessoa idealizada pelo eu-lírico
ao local (canteiro de rosas) onde ele se encontra, e logo é perceptível a paixão nascendo
a partir do olhar – inicialmente silente – de tal pessoa. Há um paradoxo: ele está tão
próximo, mas não toca a pessoa amada, pois é possível que ele seja alguém retraído,
devido a sua personalidade recluída ao seu mundo interior, não conseguindo assim
externar o sentimento. Mas também ele não o faz porque pode estar tão emocionado e
encantado que receia interferir o momento por meio de algum ato que termine sendo
impulsivo, então, se as coisas estão da forma como se mostram é porque tudo está
perfeito, não havendo motivo para macular tal distância. O lugar aqui é direcionado aos
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olhos da pessoa amada, isto é, ele projeta sua alegria ao enxergar o primeiro olhar
lançado sobre ele, quando ele ainda não conhecia bem tal pessoa, pois o olhar dela ainda
lhe era silente, entretanto, já fica claro que o deixou muito emocionado a ponto de
querer estar nesse lugar, isto é, ser levado por essa pessoa.
Na segunda estrofe, ele já revela maior familiarização com a pessoa, visto que o
mais rápido movimento do olhar desta seja motivo para deixa-lo a vontade para se
revelar, embora ele fosse alguém aprisionado no seu mundo interior (aqui o lugar em
questão mencionado)– talvez por ter sido ferido antes por alguém ou mesmo pela sua
personalidade retraída. Revestindo-se de um caráter simbólico sobre a interpretação da
figura da rosa, conforme Chevalier (2009, p. 788), “Designa uma perfeição acabada,
uma realização sem defeito. Como se verá ela simboliza a taça da vida, a alma, o
coração, o amor.”
Portanto, a rosa aqui como figura que remete ao amor, mas que também não
deixa de ser a alma apaixonada do eu-lírico, que será pétala por pétala aberta, isto é,
suas intimidades vão sendo pela amada descobertas, fenômeno que é por ele descrito
através da comparação feita com a ação da primavera ao fazer desabrochar a primeira
rosa, considerando-se também a influência dessa estação do ano acariciando as flores.
Logo, por mais que ele seja alguém fechado, a pessoa amada sabe como fazer com que
ele se sinta a vontade para se revelar para ela.
Na terceira estrofe, há certa ambiguidade. Ele tanto pode estar convidando a
pessoa para compreender seu universo interior, como um homem fechado que o é, pois
é natural que por esse ser o traço da sua personalidade, mesmo já estando aberto para
amar, ele pudesse se mostrar novamente fechado em alguma situação eventual com
relação à pessoa amada, e assim ele usa a colocação “nos fecharemos” no sentido de que
a amada o compreenda nessas ocasiões e mesmo assim permaneça com ele. Ou em
outro sentido, caso seja vontade da amada, ele vai embora e desiste de continuar
expressando o seu amor. O comparativo da neve descendo em cada pétala é mais um
reflexo da ação da natureza, só que agora no sentido de sacrifício da situação – a neve
gélida causaria a morte da flor. Portanto, o eu- lírico, (a flor cujo coração pulsa de
amores pela sua amada), estará disposto a enfrentar o distanciamento, se assim for a
vontade da pessoa por quem ele está apaixonado.
Na quarta estrofe, a visão simbólica a respeito de continente, segundo Chevalier,
cabe a interpretação também de que:
Simboliza um mundo de representação, de paixões, de desejos.(...).
Essa dimensão interior pode estar ligada a não importa que lugar,
cidade, país, etc. O importante é saber o que significam, para cada um,
as imagens, as sensações, os sentimentos, os preconceitos dos quais o
lugar em causa é portador e que fazem toda a verdade subjetiva do
símbolo. (2009, p 274-275).
Então, ainda nessa estrofe acentua-se a atração do eu-lírico pela fragilidade,
delicadeza da pessoa amada, e somando-se a isso há também atração pela cor da pele,
visto que aborda a ideia de textura, bem como a cor dos continentes, isto é, das formas
da amada, podendo ser os atributos físicos – seios, boca, etc. Afinal, esse seria o mundo
de paixões a que ele queria se entregar, em que haveria uma simbiose, ou seja, uma
ligação íntima muito forte entre ele e a amada de proximidade, eles seriam um para o
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outro. Há um jogo de imagens que ele cria quando diz que pode devolver a morte e o
sempre cada vez que respira – o que na verdade diz respeito ao mistério ou incerteza da
situação do término ou duração eterna do envolvimento sentimental entre ele e ela,
enquanto viverem.
Na quinta estrofe, a imagem do toque ou trato, através da metáfora “abrir e
fechar”, visto que nessa hora utilizaríamos um sentido figurado para dizer que a amada
segura a flor de um jeito singular, em outras palavras, ao fato de ele se sentir bem com o
toque dela e através da ternura que lhe repassada, demonstrando a correspondência do
sentimento. Mais uma vez a imagem dos olhos - porém que agora falam, devido a uma
intimidade entre os dois, e inclusive, a voz que sai dos olhos dela é mais profunda que
todas as rosas, ou seja, o olhar dela é único, assim como as mãos dela também são no
momento em que o toca (ninguém nem mesmo a chuva que cai sobre ele, novamente
uma alusão a uma ação da natureza – as gotas de chuva que costumam cair sobre as
flores – como forma de comparar a sensibilidade inigualável do toque da amada.
Diante de tal análise, destacamos uma concepção elencada por um dos mais
importantes formalistas russos, Chklovski
(...) o procedimento de singularização e o procedimento da forma
difícil que aumenta a dificuldade e a duração da percepção: o
procedimento da percepção, em arte é um fim em si mesmo e deve ser
prolongado. A arte é compreendida como um meio de destituir o
automatismo perceptivo, a imagem não procura nos facilitar a
compreensão de seu sentido, mas criar uma percepção particular do
objeto, busca e criação de sua visão e não de seu reconhecimento.
(apud EIKHENBAUM 1970, p.14 -15):
Isso permite concluir que, na poesia, ou eu lirico tende a particularizar a visão
que tem dos objetos, isto é, desautomatiza a linguagem. Isso vai sendo revelado por
meio das imagens apresentadas no poema, a razão, que são derivas do processo de
singularização, onde a maneira como são descritas demonstra um jeito único. Um
exemplo é a visão que o eu-lírico tem sobre a rosa, os continentes, as “mãos pequenas”
que a pessoa amada tem em comparação a chuva.
Desta feita, é perceptível a plurissignificação e criatividade na semântica,
gerando ambiguidades propositais em decorrência da polissemia dos termos utilizados,
caracterizando elementos para a existência da linguagem poética.
4. Considerações finais
A partir do presente estudo, foi possível entender que a linguagem poética não é
algo que está fixado, regrado, enfim, algo estigmatizado. Isto pode ser comprovado
através da evolução da teoria do método formal, como também pelos textos teóricos que
abordam a temática.
A poesia de e.e. cummings foi inovadora o bastante para quebrar padrões, o que
revela, que embora a linguagem poética seja dotada de determinadas particularidades, e
características atreladas ao texto, vemos que sempre a possibilidade da linguagem se
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recriar, se transformar, enfim, de chamar a atenção para diferentes estilos perante à
sociedade.
Por fim, percebeu-se que a arte poética não está distante do público
contemporânea, não devendo ser denominada como obsoleta, afinal, levando em
consideração que o poema foi transformado em canção, pode-se dizer que isto é uma
das possíveis formas de verificar que a poesia é forte e atividade na sociedade,
satisfazendo a todos de diferentes maneiras.
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http://teorialiterariaufrj.blogspot.com.br/ Acesso em: 15/04/2013.
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FORMA, SENTIDO E DISTRIBUIÇÃO NO ENSINO DE PORTUGUÊS COMO
LÍNGUA ADICIONAL
Emny Nicole Batista de SOUSA10
Liane Velloso LEITÃO
Resumo: É hoje aceite, pela Linguística Aplicada, que se deve ensinar competência
intercultural para alunos de língua estrangeira. Este trabalho, portanto, pretende analisar
palavras na língua portuguesa do Brasil, em contraponto com as synforms e/ou
homógrafas na língua inglesa, através da metodologia de Lado, com o objetivo central
de ressaltar a importância das interações sociais para a aquisição da segunda língua, no
caso o português, atrelada à aquisição de seus valores culturais. Para tanto, lanço mão
de considerações de diferentes autores e paradigmas acerca da aquisição da linguagem.
Palavras-chave: Língua adicional, meio, léxico, português, inglês.
“(...) no Brasil, dois modos de colocar pronomes, enquanto o
português só admite um – ‘o modo duro e imperativo’: diga-me, façame, espere-me. Sem desprezarmos o modo português, criamos um
novo, (...) caracteristicamente brasileiro: me diga, me faça, me espere.
Modo bom, doce, de pedido. E servimo-nos dos dois”. Gilberto Freyre
(apud ARAÚJO, 2003, p.201-202).
1. Introdução
O presente artigo é dedicado ao ensino da língua portuguesa falada no Brasil
como língua adicional que, com o crescente número de turistas, estudantes, imigrantes,
e refugiados passa a ser mais requisitada pelos aprendizes e deve ser entendida, por
estes e por seus professores, como parte integral de nossa cultura.
O Brasil está assumindo uma posição de protagonista político, econômico e
cultural. O português, como língua materna, é atualmente falado por aproximadamente
250 milhões de pessoas em Portugal, Brasil, Timor-Leste, Angola, Cabo Verde, GuinéBissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné Equatorial, Macau (China) e em
alguns territórios na Índia que foram colonizados por Portugal. O Brasil, entretanto,
representa a maior parte destes falantes, com cerca de 190 milhões de falantes nativos.
O português brasileiro, com suas influências do léxico africano e indígena, é o mais
atraente, pois o país está ganhando cada vez mais atenção internacional, seja pela
posição que atualmente ocupa economicamente no mundo, seja pelas parcerias
internacionais ou até mesmo pelos eventos que serão realizados em 2014 e 2016 (Copa
do Mundo de Futebol e Jogos Olímpicos). O país aproveita este momento para
alavancar ainda mais as possibilidades no âmbito internacional. O interesse pela língua
portuguesa cresce, pois a sua aquisição é o meio fundamental de aproximação da nossa
expressão cultural. O presente artigo, portanto, pretende ressaltar a importância do meio
nas construções de significados das palavras da língua portuguesa, fazendo um
contraponto com as correspondentes em língua inglesa. Para isto, faz-se necessário
buscar refletir sobre as ideias e concepções de aquisição de primeira língua e o processo
10
Mestrandas pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística, da Universidade Federal da Paraíba.
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por meio do qual os aprendizes de segunda língua passam até a fluência em L2. O foco
principal será a aquisição de palavras carregadas de significados atrelados à cultura.
Para tanto, levantam-se indagações: Qual é a importância do meio social no processo de
aquisição de segunda língua? Uma das fontes mais utilizadas pelos aprendizes é o
dicionário, até que ponto ele é confiável? Palavras que apresentam a mesma grafia e o
mesmo significado, nos dicionários de língua materna de duas línguas diferentes, podem
ser usadas nas mesmas situações? Irei analisar o léxico do inglês e do português, a
partir de palavras com a mesma grafia, ou similar, e suas definições no dicionário, as
quais, na verdade, não refletem os significados atribuídos pela comunidade de falantes,
pois não consideram em que situações essas palavras devem ser usadas. Diante do
exposto, este artigo visa a contribuir com as pesquisas voltadas para a aquisição de
português como segunda língua, como língua estrangeira e como língua de herança,
destacando a importância do contexto real de uso da língua portuguesa como primeira e
principal fonte para que os alunos consigam falar a língua, fluentemente. Os alunos
devem desenvolver a capacidade de utilizar o léxico de maneira adequada, nas situações
apropriadas, e entender que a nossa língua, e mais especificamente, os sentidos que
atribuímos às nossas palavras, e como as usamos, refletem também nossa cultura.
A metodologia utilizada será a qualitativa, pautada num processo indutivo,
interpretativo e construtivista. Portanto, basear-me-ei em considerações advindas de
mais de um paradigma. As ideias de Chomsky e Wittgenstein acerca da aquisição da
linguagem e as de Richards, Laufer e Ilari, a respeito das palavras, mais
especificamente, me ajudarão a tentar responder às perguntas investigativas; além das
considerações de Fernandes sobre Saussure, Pierce e Vygotsky, a respeito do signo
linguístico e a metodologia de análise das duas línguas de Lado.
2. Reflexões sobre aquisição do léxico de língua materna
A corrente gerativista defende que as crianças possuem capacidade inata de
desenvolver a linguagem. Chomsky questionou o paradigma em voga, apontando o fato
de as crianças serem capazes de falar qualquer língua, naturalmente, em pouco tempo. O
autor constatou que elas podem enunciar frases mesmo nunca tendo sido a elas
expostas, portanto, rompendo com o estruturalismo behaviorista que postulava que as
crianças adquiriam a língua através da repetição. Para esta corrente, durante o processo
de aquisição de linguagem, mesmo quando as crianças apresentam enunciados
“errados”, estes geralmente refletem seu domínio das regras gramaticais. No enunciado
“Eu fazi um bolo hoje com mainha*”, o verbo fazer foi conjugado como os verbos
comer, cair e beber. Portanto, inferimos que a criança mais acertou do que errou, pois
associou a regra a outros verbos comumente usados. Tendo isto a efeito, sua proposta de
que todos nós temos uma Gramática Universal, e que a partir dela, através do chamado
“dispositivo de aquisição de linguagem”, adquirimos qualquer língua em pouco tempo,
parece bem provável. Entretanto, para esta corrente, o fator biológico é fundamental,
nesse processo, e a interação social estaria na margem, seria apenas um ativador dessa
gramática geneticamente já estabelecida (QUADROS, 2007).
Essa é uma das ideias que o gerativismo defende que são mais debatidas por
estudiosos, como os construtivistas e funcionalistas. O meio não poderia ser somente
um “gatilho” que inicia o desempenho linguístico, mas essencial no processo,
especialmente em relação à aquisição dos significados das palavras. Os gerativistas
focam na capacidade que as crianças têm de utilizar adequadamente as estruturas
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gramaticais, mas sua investigação dedica aos sentidos das palavras pouca atenção
(BASILIO, 2010). As crianças dificilmente cometem equívocos gramaticais, contudo,
as crianças (bem como os adultos) se expressam com palavras que não são adequadas
para determinada enunciação, ou seja, não se ajustam ao propósito comunicativo.
Principalmente as palavras de conteúdo (incluindo substantivos, verbos e adjetivos),
como em “Eu quero ser autor”, se referindo à profissão de ator, “Isto é uma falta de
absurdo”, intentando dizer o contrário ou “Dizem que se a pessoa cheirar esse remédio
perde o fardo”. É bem verdade que essas substituições são, de modo geral, realizadas
dentro de uma mesma classe de palavras. Entretanto, podemos deduzir que o
significado, que já foi consolidado pela comunidade de falantes, ainda não foi
integralmente adquirido pelo falante em questão, por não ter sido, suficientemente,
exposto à palavra e às situações nas quais é usada.
A autora Fernandes (1999) conceituou as palavras a partir das considerações de
Saussure, Pierce, Pottier e Vygotsky a respeito do signo linguístico e chegou à
conclusão que i) as palavras são formadas por significado e significante; ii) que os
signos são sociais (uma vez que são compartilhados por participantes de uma
comunidade de falantes); iii) e também individuais (quando inferem suas próprias
interpretações baseadas nas relações pessoais com o social e atribuem significados às
palavras de acordo com a maturidade do falante). Para Wittgenstein (1958), o indivíduo
deve ser exposto à reflexão da língua em uso, pois é impossível entender os significados
das palavras quando analisadas independentes do seu contexto.
A língua, as palavras e seus significados são construídos e transformados
somente quando inseridos num contexto real de fala. A interação define a língua como
natural e viva, portanto, quando pensamos em signo como social e compartilhado por
falantes de uma sociedade, pensamos na relação entre língua e cultura. Dentro de uma
mesma “cultura11”, nos deparamos com diferentes significados atribuídos ao mesmo
signo, por diferentes comunidades de falantes. No Brasil, todos conhecem a palavra
praia, e sabemos que é uma faixa de terra que está à margem do mar. Entretanto, a
forma como um pessoense compreende, entende e se relaciona com este signo é
diferente da de um porto-alegrense. Quando o primeiro pensa na ação de ir à praia, e
para Piaget, as palavras passam a ser signos quando se tornam representações das suas
ações (RAMOZZI-CHIAROTTINO, 2007), ele provavelmente vai pensar em levar
consigo água, chapéu, roupa de banho, e sombrinha, por exemplo. O segundo, por sua
vez, pode pensar na praia como um ambiente frio, portanto devendo levar consigo
cobertor, chimarrão, e roupas quentes, o que seria impensável para o cidadão que nunca
teve essa experiência com a praia. Quanto ao signo ser individual, a praia pode remeter
significados diferentes para cada pessoa dependendo das experiências vividas, boas ou
ruins, o indivíduo ao pensar no signo, pensa também no que ele representa em cunho
pessoal.
Se pensarmos nos signos café-da-manhã e lanche fazemos referência aos
alimentos ingeridos pela manhã e nos intervalos das refeições, respectivamente, mas as
interações entre os falantes de São Paulo deram outros significados ao léxico. A palavra
lanche, em São Paulo, remete, entre outras coisas, a um sanduíche. É comum ouvir a
seguinte frase: “Eu vou comer um lanche e um suco de uva”. Em Recife, por exemplo, a
frase não faria sentido, pois o suco faz parte do lanche, esse outro sentido não é usado
entre seus falantes.
11
Entenda-se o termo “cultura” aqui, como representação de uma mesma nação, onde se fala a mesma
língua.
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Para Richards (1976), conhecer uma palavra significa conhecer todos os
significados a ela atribuídos. Saber todos os sentidos que uma palavra pode ter, numa
comunidade de fala, é uma faculdade que pode se apresentar complexa; praticamente
impossível. Todavia, os diferentes gêneros textuais exigem que o falante tenha
propriedade em diferentes sentidos de uma mesma palavra para que se faça entendido, a
tirinha, por exemplo, requer além da ciência de todo o contexto que envolve o texto
escrito, o entendimento da sua representação pelo desenho. Uma definição mais
adequada seria a de que não é possível ser fluente em uma dada língua, sem que haja
consciência do seu vocabulário (LAUFER, 1990). Desse modo, inferimos que essa
instrução só é obtida, pelo estrangeiro, através da exposição à língua em diferentes
suportes e, especialmente, por meio de interações sociais, na comunidade.
3. E a aquisição do léxico de uma segunda língua?
Diante do apresentado em relação à aquisição das palavras em língua materna,
podemos aproximar o processo pelo qual os aprendizes percorrem durante a aquisição
do léxico em segunda língua, assim tem feito muitos autores, como Krashen (2009) que
desenvolveu uma teoria de aquisição em L2, fundamentado nos princípios da Gramática
Universal. O autor postulou cinco hipóteses sobre a aquisição de segunda língua, como
a de que existe uma “ordem natural” de aquisição das palavras. Uma das críticas à sua
teoria, entretanto, é a negação à contribuição das interações em sala de aula no processo
de aquisição de L2 (que ele separa do processo de aprendizagem). Outro problema é de
alegar que não existe interface entre os dois processos (BROWN, 2007). Certamente, a
aquisição de L2 e dos sentidos diversos referentes ao léxico, requer do aluno um
conhecimento mais aprofundado do contexto cultural ao qual a língua em foco está
ligada; essa consciência linguística e cultural só é alcançada, plenamente, por
intermédio das relações do aluno com o meio. Logo, temos uma ideia do quão difícil é,
para os aprendizes de L2, serem fluentes ou até mesmo se comunicarem efetivamente,
numa segunda língua, uma vez que é importante entender os fatores culturais que a
permeiam. Essa situação é ainda mais evidente com as palavras homógrafas ou
synforms12 nas duas línguas, pois o aprendiz, geralmente, transfere os sentidos da
palavra da sua língua materna para a que está aprendendo. Contudo, um aluno que se
baseia nas interações entre os participantes de uma comunidade de fala, provavelmente,
não fará uma simples tradução literal das palavras, ou uma transposição dos seus valores
culturais para com a nova língua (fatores inter e intralexicais), mas desenvolverá um
entendimento mais arraigado, relevante e significativo, pois terá como fonte principal, a
interação social.
4. “Forma, sentido e distribuição” revisitados
A interação com os falantes nativos é importante para os aprendizes de segunda
língua porque esta, como dito anteriormente, deve ser referência basilar para a sua
aquisição. Ou seja, mesmo que o aprendiz tenha um dispositivo que lhe permita
desenvolver uma gramática que já está organizada em sua mente, e esse fato facilite seu
12
Laufer (1990) explica os synforms como “formas lexicais similares”, como as palavras conversação e
conversation.
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desempenho em outra língua que apresenta uma gramática correlata, o meio é que
disponibilizará o aparato cultural necessário para que a comunicação ocorra de modo
pleno. O português do Brasil, solicitado por falantes de outras nacionalidades, reflete as
características do povo brasileiro as quais, em geral, não podem ser explicitadas apenas
por instrumentos linguísticos como as gramáticas e os dicionários. Para Sapir, “O
investigador linguístico não deve jamais cometer o engano de identificar uma língua
com seu dicionário”, mas pelo contexto real de seu uso.
O que nos identifica são características que formam a cultura, por exemplo, o
que vestimos, o que comemos, como agimos, e o que falamos (LARAIA, 2001). A
nossa língua e, consequentemente, o nosso vocabulário reflete o que somos como
brasileiros. Tendo isto em mente, farei uma análise comparativa do léxico da língua
portuguesa e inglesa sob a metodologia de Lado (1972), sobre “forma, sentido e
distribuição” das palavras. Essa será uma revisitação de sua teoria, a minha proposta
aqui não será comparar as duas línguas a fim de encontrar nas formas mais similares,
mais facilidade para apreendê-las, como o autor havia proposto. Pelo contrário, será nas
formas correlativas que irei demonstrar a complexidade pela qual os aprendizes de L2
são submetidos no processo de aquisição segunda língua, no caso, o português do
Brasil. As palavras analisadas não estão nas populares listas de falso-cognatos, são
palavras homógrafas ou synforms, e possuem, praticamente, a mesma definição nos
dicionários, mas são usadas com diferentes sentidos, situações e frequência, de acordo
com a comunidade real de fala. Farei a análise do léxico da língua portuguesa e inglesa,
baseada em eventos descritos por estudantes de PLA, em situação de imersão no Brasil,
nos quais a não aquisição dos sentidos das palavras, marcados pela cultura brasileira e
pela comunidade de fala na qual eles participavam, gerou situações de conflito. O
professor deve, portanto, levar em consideração as possibilidades de atrito e tentar,
através de atividades conscientes culturalmente, evitá-las ou, pelo menos, minimizá-las,
pois estes choques culturais podem suscitar constrangimentos e acabar desmotivando o
aluno, retardando (ou impedindo) o seu aprendizado (BROWN, 2007).
Segue um quadro com a forma e a distribuição das palavras que serão
examinadas. Mais adiante, no texto, farei a análise sob o ponto de vista do sentido13,
definido por Lado (op.cit) como “(...) mensagem que se pretende transmitir na
comunicação”.
Forma
Forma
Distribuição
Distribuição
(português)
(inglês)
(português)
(inglês)
Atitude
Attitude
Substantivo
Substantivo
Atraente
Attractive
Adjetivo
Adjetivo
Discussão
Discussion
Substantivo
Substantivo
Excitado(a)
Excited
Adjetivo; Verbo
Adjetivo; Verbo
Frustrado(a)
Frustrated
Adjetivo; Verbo
Adjetivo; Verbo
13
Incluirei na classe de sentido, a “conotação” das palavras que, para o autor, é representada pela “escala
de aceitação” das palavras. Por exemplo, uma palavra pode ser ofensiva ou tabu numa língua e não em
outra, entretanto os alunos evitam usá-la para evitar situações conflituosas e vice-versa.
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Honesto(a)
Honest
Adjetivo
Adjetivo
Como visto, as palavras possuem a “mesma” forma e a mesma distribuição.
Vamos, então, aos sentidos. A palavra attitude, em inglês, pode ter o mesmo sentido que
atitude, em português, em determinados contextos. Contudo, em português, ter atitude
pode significar algo positivo como ter iniciativa. Em inglês, em contrapartida, pode
carregar um significado negativo. A palavra attitude é amplamente utilizada com
conotação hostil, em situações nas quais uma pessoa está apresentando uma má postura
ou mau comportamento, por exemplo, quando uma mãe diz para um filho:
“Why are you giving me this attitude?”
(Por que você está me dando esta atitude?)
A palavra attractive, em inglês, significa cativante e encantador, não possui o
sentido sexual atribuído pela nossa cultura à correspondente direta atraente. Então, é
aceitável dizer em inglês, numa situação formal:
“My son’s girlfriend is really attractive.”
Em português “A namorada do meu filho é muito atraente.” não seria adequado.
Embora os dicionários apresentem significados equivalentes, as palavras
discussão e discussion são usadas em situações bem diferentes, nas duas realidades
linguísticas. Nos dicionários das duas línguas, suas definições são de debate,
controvérsia, e investigação da verdade pela análise de razões. Entretanto, em língua
portuguesa, e os alunos estrangeiros logo constatam essa diferença, a palavra discussão
também remete a uma briga, diferentemente de seu synform em inglês, que teria o
sentido de exame ou consideração de uma verdade.
A palavra excited, em inglês, significa empolgado, em português excitado
também tem essa conotação, mas é amplamente usada com uma conotação sexual. Um
aluno americano diria:
“I’m excited to attend this class.”
(Estou excitado para assistir essa aula.)
A mesma expressão dita em português, usando a mesma palavra excitado, não
caberia aqui. Melhor seria usar empolgado ou animado. O aluno que queira utilizar o
caminho mais fácil da tradução direta, pode se encontrar numa situação constrangedora.
Apesar de apresentar o mesmo radical, a palavra frustrated, em inglês, carrega
um sentido muito mais leve em comparação à palavra frustrado(a), em português. Em
inglês, você se sente frustrated quando liga para alguém e essa pessoa não atende, por
exemplo.
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“I got frustrated today when I tried calling you but you wouldn’t pick up.”
(Eu fiquei frustrado quando tentei te ligar, mas você não atendia.)
Em português, o motivo para ficar-se frustrado deve ser bem mais sério. Por
exemplo:
“Eu não me formei em enfermagem e me sinto frustrado hoje em dia”
Para um praticante da língua portuguesa no Brasil, essa será uma expressão que
poderia causar confusão.
Embora as palavras honesto e honest se encontrem em um ponto em comum,
como definem os calepinos, os seus sentidos também se distanciam. O sentido do
adjetivo honest em inglês é usado, geralmente, quando a veracidade dos fatos (dados
pelo interlocutor) é solicitada, de forma menos formal do que em português. Por
exemplo:
“Did you like my dress? Be honest.”
(Você gostou do meu vestido. Seja honesto(a)!)
Poderíamos também, ainda, acrescentar outro ponto interessante para que fizesse
parte dessa comparação dos dois sistemas de vocabulário. Mesmo com mesma forma,
distribuição e sentidos parciais, ainda há outra questão que torna esses signos distintos
quando postos em uso, a frequência. Algumas palavras são mais ou menos utilizadas
pelos falantes de uma determinada língua, o que também é importante para entendermos
a complexidade das diferenças entre as palavras das línguas.
Segundo Lado (op.cit), “(...) os sentidos em que classificamos nossa experiência
são determinados ou modificados culturalmente e variam consideravelmente de cultura
para cultura”. Não é necessário que o professor de língua estrangeira fale outra língua
além da que está ensinando para que seja um bom profissional, como fora assentido por
Lado e outros linguistas (As salas de aula de PLE hoje, no Brasil, têm alunos provindos
de vários países, seria impossível, para o professor, falar todas as línguas). Entretanto,
será que não seria interessante que o professor falasse ou, ao menos, tentasse falar uma
língua adicional? Assim, o professor entenderia, sob a mesma perspectiva do aluno, o
processo de aquisição de L2. Os fatores sociais, pessoais, psicológicos, de idade, os
estilos e estratégias. O caminho que é por vezes árduo, mas por muitas vezes prazeroso
e, sobretudo para a maior parte dos interessados, de grande vantagem.
5. E como devemos ensinar as palavras?
Para Laufer (1997), aprender uma palavra, vai além da compreensão do seu
significado. Em relação à semântica da palavra, a autora diz que é preciso saber o
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significado referencial, os valores afetivos, e a adequação pragmática. O professor de
PLA deve ter em mente que o aluno precisa aprender as palavras, seus significados e
como e em que contextos usá-las. Não basta a simples definição do dicionário, é
importante que o professor apresente o novo vocabulário através de diferentes exemplos
e exercícios. Estas atividades devem envolver diferentes suportes, gêneros e tipos
textuais, práticas orais e escritas e, evidentemente, consciência e percepção dos aspectos
culturais. Há muita investigação a respeito do ensino de vocabulário, e alguns autores
(WALLACE, 1988; MARZANO, 2005) postularam passos básicos que devem ser
observados na elaboração de um plano de aula destinado ao ensino de palavras aos
alunos internacionais; i) deve haver um objetivo, quais palavras serão ensinadas e por
que razão; ii) as palavras devem estar de acordo com as necessidades dos alunos; iii) os
professores devem dar oportunidades para que os alunos escutem e leiam as palavras,
em contextos nos quais as sentenças acontecem naturalmente; iv) ensinar conceitos em
vez de palavras isoladas e desconexas. Rodolfo Ilari (2012), em seu livro Introdução ao
Estudo do Léxico: Brincando com as Palavras, introduz uma série de sugestões para o
ensino do léxico da língua portuguesa, como língua materna. Seu livro é dividido em
capítulos destinados às palavras e seus componentes, como sufixos, ambiguidades,
arcaísmos, definições, distribuições, polissemia, estrangeirismos e etimologia. Para cada
capítulo, ele explicita seu objetivo geral, o material linguístico e propõe uma série de
exercícios que seriam como um norte para a elaboração das atividades pelos
professores. Acredito que este livro também seria de grande ajuda para os professores
de PLA, ele serve, por ora, como base no que diz respeito ao conteúdo que se deve
abordar e, a partir deste, os professores partiriam para uma elaboração mais direcionada
para o público estrangeiro.
6. Considerações finais
Podemos concluir que a língua portuguesa deve ser ensinada tendo a ciência de
que, não somente reflete, mas é parte fundamental da nossa cultura brasileira. Vimos
que é importante e relevante considerar o que foi investigado sobre a aquisição de L1
para desenvolver contextos conceituais sobre a aquisição em L2. As ideias da corrente
gerativista contribuíram para essa pesquisa no sentido de levantar o primeiro e principal
questionamento sobre o grau de importância do meio externo sobre o desempenho
linguístico. Atemo-nos às palavras com conteúdos e vimos que os verdadeiros
significados destas são construídos e resinificados através da interação social, pelas
comunidades de fala. Entendemos que estes sentidos não podem ser efetivamente
descritos por instrumentos linguísticos, como os dicionários, os quais, portanto, não
podem ser absolutamente confiáveis. Por conseguinte, analisadas as palavras das
línguas portuguesa e inglesa e seus sentidos no contexto real de uso, entendemos que os
dicionários podem ajudar o aprendiz de português L2, mas sua referência prevalecente
deve ser a comunidade onde a língua é usada em seus diferentes contextos; através
somente desta é que os alunos podem se tornar verdadeiramente fluentes. À vista disso,
sublinho a importância de considerar a língua portuguesa como parte essencial para a
compreensão da cultura brasileira e, evidentemente, a necessidade de aplicar esse fator
aos planos de aula, aos exercícios (como vimos na proposta de Ilari), aos materiais
didáticos e aos planos de curso, pelos devidos responsáveis. Esse posicionamento em
relação ao ensino-aprendizagem de português L2 tem o primordial efeito de ajudar os
alunos (principalmente em situação de imersão), minimizando as possibilidades de
choques culturais, uma vez que eles estão sendo preparados, dentro das salas de aula,
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por meio de atividades que focam nossa expressão linguística inerente à nossa expressão
cultural.
Referências
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FERNANDES, Eulália. Pensamento e Linguagem. In: CARNEIRO, Marísia. Pistas e
Travessias: bases para o estudo da linguagem – Rio de Janeiro: edUERJ, 1999, cap.
3, p. 63-82.
ILARI, Rodolfo. Introdução ao Estudo do Léxico: Brincando com as Palavras. 5.
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KRASHEN, Stephen D. Principles of Second Language Aquisition. Internet Ed, July,
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LADO, Robert. Introdução à Linguística Aplicada. Petrópolis RJ: Vozes, 1972.
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WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Basil Blackwell Ltd, 2nd
Ed. Great Britain, 1958.
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A REALIDADE REESCRITA: FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA EM
ATONEMENT, DE IAN McEWAN
Tatiane da Costa P. SOUSA (UFCG)14
Suênio Stevenson Tomaz da SILVA (UFCG)15
Resumo: No presente artigo, discutimos e examinamos a relação entre ficção, história e
memória, utilizando como objeto de análise o romance Atonement [Reparação, na
versão brasileira] (2002a), do escritor inglês Ian McEwan, autor contemporâneo cuja
obra em foco podemos enquadrar no perfil de lite-ratura pós-moderna que Linda
Hutcheon (1991) denomina “metaficção historiográfica”. Nesse sen-tido, o romance de
McEwan adota e questiona, de forma aparentemente paradoxal, tanto o estilo mimético
da tradição realista quanto o dogmático culto ao esteticismo modernista, bem como
algu-mas convenções da própria literatura pós-moderna. Assim, procuramos verificar
como McEwan combina os discursos histórico, memoralista/autobiográfico e
metaficcional, para conceber um ro-mance multifacetado em que a ficção funciona
como instrumento para a reescrita da realidade. Constituem suporte teórico para a
presente análise, além da mencionada obra de Hutcheon, as valiosas reflexões de James
Wood (2012) e Terry Eagleton (1996) e outros autores, quanto aos te-mas da
representação da realidade na literatura e da autorreflexividade das narrativas pósmodernas.
Palavras-chave: Reparação. Realidade e ficção. Autorreflexividade literária.
1. Introdução
Desde sua estreia literária em 1975, o escritor inglês Ian McEwan (1948 – ) já
produziu duas dezenas de obras, entre contos, romances, roteiros, livros infanto-juvenis
e libretos para peças musicais. Ganhador de diversos prêmios literários (incluindo o
Man Booker Prize, em 1998, o mais prestigioso prêmio do gênero no Reino Unido),
McEwan já tem uma ampla fortuna crítica centrada em sua obra, pela qual já é
considerado um dos maiores escritores ingleses do período pós-Segunda Guerra.16
Publicado em 2001, seu oitavo romance, Atonement [Reparação] (2002a)17, foi
logo considerado por muitos uma obra-prima, recebendo excelente recepção crítica e
tornando-se, ao mesmo tempo, sucesso de vendas não apenas nos países de língua
inglesa, como também naqueles em que foi traduzido. A obra narra a história de dois
jovens, Robbie Turner e Cecilia Tallis (ele, filho da empregada da família dela), que, ao
14
Acadêmica do curso de Letras – Inglês, do Centro de Humanidades, Universidade Federal de Campina
Grande. E-mail: [email protected]
15
Professor de Língua Inglesa e Literaturas de Língua Inglesa na Unidade Acadêmica de Letras do
Centro
de
Humani-dades,
Universidade
Federal
de
Campina
Grande.
E-mail:
[email protected]
16
A esse respeito, vide: THE 50 greatest British writers since 1945. The Times, London, 5 jan. 2008.
Disponível
em:
<http://entertainment.timesonline.co.uk/tol/arts_and_entertainment/books/article3127837.ece>. Acesso
em: 02 set. 2013.
17
A edição referenciada no presente artigo é a americana, publicada por Nan A.
Talese/Doubleday/Random House, em 2002. As traduções das passagens citadas, por sua vez, são
extraídas da versão para o português brasileiro feita por Paulo Henriques Britto (McEWAN, 2002b).
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mesmo tempo em que descobrem e admitem sua paixão, e decidem se entregar a ela,
são, de repente, separados como consequência de uma acusação feita contra o rapaz pela
irmã caçula de Cecilia, Briony, uma menina de 13 anos, imatura e de imaginação fértil,
que sonha em ser escritora. Uma acusação gravíssima, fundada em uma série de
interpretações equivocadas, que tem efeitos trágicos sobre a vida dos dois amantes, e
pelo qual a menina passará a vida buscando uma reparação que, ao fim, revela-se
inalcançável, impossível.
Narrado em terceira pessoa, por discurso indireto livre, o romance de McEwan
apresenta uma multiplicidade de perspectivas e algumas notáveis mudanças de gênero
ao longo das quatro partes em que o livro se divide. Além disso, algumas convenções do
realismo clássico e do moder-nismo são questionadas na narrativa, embora também
sejam vistas por um ângulo crítico algumas tendências que se vêm convencionando na
própria literatura pós-moderna, com sua problematização da pretensão mimética
realista. Isto é, a postura do autor (ou do narrador) na obra parece ser a de alguém que,
se não quer resgatar as antigas tradições do realismo nem do modernismo, também não
pretende seguir por vias normalmente tomadas nos romances contemporâneos,
preferindo escolher seu próprio caminho.
2. Vários pontos de vista, variadas narrativas
Atonement, como já dissemos, divide-se em quatro partes. Na mais longa delas,
a “Part One” [Primeira parte], deparamo-nos com uma narrativa e ambientação da trama
que evocam as obras de Jane Austen, não por acaso citada na epígrafe que abre o livro.
Nesta parte, alguns eventos são narrados a partir de pontos de vista distintos, permitindo
ao leitor uma apreensão menos limitada do que se passa, ver aquilo que outros
personagens não veem. Assim, acompanhamos um calmo e quente dia de verão, em
1935, na residência campestre de uma família inglesa rica e tradicional, quando e onde
ocorrem alguns fatos que se revelam significativos não só no desenrolar da trama, mas
na própria construção narrativa do romance. Esses fatos são: o envolvimento entre
Cecilia e Robbie; as confusões na mente da pequena e imaginativa Briony, que ainda é
imatura demais para entender certas atitudes dos adultos em suas relações; as
conclusões equivocadas a que ela chega sobre o caráter do filho da empregada e a
natureza de sua relação com a irmã mais velha; um crime violento praticado contra uma
jovem parenta da família Tallis, e, diante deste acontecimento, a precipitada conclusão
de Briony de que o culpado é Robbie — quando chega ao ponto de afirmar “I saw him.
I saw him” (McEWAN, 2002a, p. 155)18, embora, só para, pouco depois, dentro de si,
refletir que, em relação a essa garantia de testemunho ocular, “she would have preferred
to qualify, or complicate, her use of the word ‘saw.’ Less like seeing, more like
knowing” (ibid., p. 159).19
Na “Part Two” [Segunda parte], a trama é narrada com um tom realista
diferente. O estilo agora lembra o de um romance histórico ou uma típica war story
[história de guerra], como From here to eternity [A um passo da eternidade, na versão
brasileira], de James Jones. A narrativa adota a perspectiva de Robbie, que, tendo
cumprido três anos e meio de prisão pelo crime de que foi acu-sado, teve de alistar-se e
18
“Eu vi. Eu vi” (McEWAN, 2002b, p. 200).
“... ela teria preferido fazer uma ressalva ou, de algum modo, relativizar sua utilização do verbo ‘ver’.
Era menos ver do que saber” (ibid., p. 205).
19
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ir para a guerra em 1939. Acompanhamos, então, um ano mais tarde, sua tentativa de
chegar ao norte da França, acompanhado por dois cabos, onde, após os seguidos fracassos dos aliados em conter o avanço das forças nazistas sobre o território francês,
vinha sendo realizada uma maciça operação de retirada de milhares dos combatentes da
Força Expedicionária Britânica enviadas ao continente. Nessa parte, através de
lembranças e divagações de Robbie (aces-síveis pelo artifício narrativo do discurso
indireto livre) e de algumas cartas que Cecilia lhe enviou, o leitor fica também sabendo
qual foi o destino dela: vivendo sozinha em Londres, rompida com a família,
trabalhando como enfermeira e sempre na esperança de que Robbie retorne da guerra e
de que possam enfim começar uma vida a dois.
A “Part Three” [Terceira parte], se conserva o tom de romance histórico da
seção anterior, distingue-se daquela, principalmente, na alternância do ponto de vista:
agora, os eventos são apre-sentados pelo ângulo de Briony, que, já mais amadurecida,
também trabalha como enfermeira em Londres, enquanto tenta se reaproximar da irmã e
reparar, de alguma forma, o terrível erro (agora compreendido) que cometeu em sua
acusação contra Robbie.
Nessa mesma seção da obra, outro assunto abordado é a persistência da jovem
em se tornar escritora. A certa altura, Briony recebe uma carta de rejeição de uma
novela que escreveu, inspirada no drama de Cecilia e Robbie. O autor da carta é um
personagem real e conhecido: Cyril Connolly, escritor e crítico que, à época, era editor
da revista literária Horizon. Na carta, embora reconheça o talento de Briony, ele critica
sua novela, destacando que seus pontos fracos estariam precisamente em a jovem autora
ter adotado algumas convenções modernistas que não seriam as mais adequadas para
aquele tipo de história que pretendia narrar. Nas palavras do editor na carta:
[W]e wondered whether it owed a little too much to the techniques of
Mrs. Woolf. […] Who can doubt the value of this experimentation?
However, such writing can become precious when there is no sense of
forward movement. Put the other way round, our attention would have
been held even more effectively had there been an underlying pull of
simple narrative. Development is required (McEWAN, 2002a, p. 294295).20
A terceira parte termina com um encontro dramático de Briony com sua irmã e
Robbie. Ela vai ao apartamento de Cecilia e descobre que ele está lá, já no fim de uma
breve licença durante a qual, finalmente, eles puderam ficar juntos — já que os dois
nunca tiveram essa chance, devido à prisão de Robbie e à sua ida para a guerra algum
tempo depois. A cena é intensa; nela, são enfim expressos ressentimentos por muito
tempo guardados, há inúteis pedidos de desculpas, e pode-se pressentir a violência
prestes a se manifestar a qualquer momento, mas contida com esforço até o fim. Quando
Briony deixa Robbie e Cecilia, ela lhes faz a promessa de esclarecer tudo ao menos
perante a família, que jamais dera ao rapaz o benefício da dúvida. No entanto,
precisamente no parágrafo que fecha essa terceira parte do livro, o leitor se depara com
20
“[P]or vezes nos pareceu haver uma presença um pouco excessiva das técnicas de Virgínia Woolf. [...].
Quem haverá de questionar a validade dessa experimentação? Porém esse tipo de prosa pode resvalar no
preciosismo quando falta um movimento para a frente. Em outras palavras, nossa atenção teria sido
cativada ainda mais se houvesse uma correnteza subjacente de simples narrativa. É preciso haver um
desenvolvimento” (McEWAN, 2002b, p. 373).
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uma informação inesperada que faz com que sinta a repentina necessidade de reler e
reassimilar toda a narrativa até ali. Essas linhas finais, como agora descobrimos, são a
conclusão de toda a obra. São as palavras com que Atonement se encerra:
She was calm as she considered what she had to do. Together, the note
to her parents and the formal statement would take no time at all. Then
she would be free for the rest of the day. She knew what was required
of her. Not simply a letter, but a new draft, an atonement, and she was
ready to begin. BT London, 1999 (ibid., p. 330.)21
É a última cena do romance, dessa trágica história do amor, e da eterna culpa e
penitência de Briony após reconhecer ter causado injustamente a traumática separação
de Robbie e Cecilia. Uma obra que, no fim, informa não apenas onde e quando foi
concluída, como também permite conhecer seu “autor”. Ou melhor, sua “autora”. Nas
iniciais BT, de Briony Tallis. Na verdade, seria até mesmo possível dizer que um
simples detalhe acaba conferindo às três partes do livro o aspecto de mais um gênero
literário: apesar da narrativa em terceira pessoa (utilizando discurso indireto livre, como
dito antes), o leitor não pode deixar de sentir agora um forte teor memoralista em tudo o
que leu.
De repente, o romance se torna um relato das lembranças e confissões de Briony,
trazendo à tona o grande erro de seu passado e seu esforço a fim de repará-lo, a fim de
expiar sua falta. Porém, quando o leitor mal tem tempo de se recobrar dessa reviravolta
narrativa, ele é levado à última seção em que se divide o livro, que traz revelações ainda
mais radicais.
Intitulada apenas como “London, 1999” [Londres, 1999], trata-se de um epílogo
que Briony redige na manhã de seu 77o aniversário. Nele, depois de revelar que está
sofrendo de demência vas-cular (embora ainda não confirmado se irremediável ou não),
ela fala do romance — composto pelas três partes anteriores do livro. Briony informa
que, embora seja seu livro mais recente e provavelmente o último, que será publicado só
depois de sua morte devido a questões jurídicas que ela também esclarece, na verdade
deveria ter sido sua primeira obra publicada. Em suas palavras:
I’ve been thinking about my last novel, the one that should have been
my first. The earliest version, January 1940, the latest, March 1999,
and in between, half a dozen different drafts. The second draft, June
1947, the third... who cares to know? My fifty-nine-year assignment is
over (McEWAN, 2002a, p. 349).22
Contudo, as várias versões que a história já teve não são a informação mais
relevante que o epílogo traz para o leitor. Nesse relato em primeira pessoa (portanto,
21
“Ela estava calma, pensando no que tinha de fazer. A carta para os pais e a declaração formal, ela as
escreveria rapidamente. Então estaria livre o resto do dia. Sabia o que se exigia dela. Não apenas uma
carta, mas um novo rascunho, uma reparação, e ela estava pronta para começar. / BT / Londres, 1999”
(ibid., p. 417-418.)
22
“Estive pensando no meu último romance, que deveria ter sido o primeiro. Versão original, janeiro de
1940, última versão, março de 1999, entre uma e outra, meia dúzia de rascunhos diferentes. O segundo,
junho de 1947, o terceiro... que diferença faz? A tarefa que me impus há cinquenta e nove anos
finalmente foi cumprida” (McEWAN, 2002b, p. 441).
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outra mudança de estilo narra-tivo), Briony não só comenta a feitura do romance (o que
confere à passagem um caráter explici-tamente metaficcional), como simplesmente
desconstrói toda a narrativa que seguimos até esse ponto e que já considerávamos agora
até mesmo um tanto memoralista ou autobiográfica. Mais especificamente, ela escreve:
“It is only in this last version that my lovers end well, standing side by side on a South
London pavement as I walk away. All the preceding drafts were pitiless” (ibid., p.
350).23 De fato, Briony revela que, devido ao agravamento de sua condição após um
ferimento, Robbie morreu em Bray-Dunes, no norte da França, em 1o de junho de 1940,
e que, igualmente, sua irmã Cecilia foi uma das vítimas fatais da bomba que explodiu na
estação de metrô de Balham, em Londres, em setembro daquele mesmo ano. Além
disso, a “autora-narradora” resolve desmentir muitos outros dos eventos descritos no
romance de forma tão realista, incluindo sua visita ao casal nas últimas páginas da
terceira parte. Nada disso aconteceu. Tudo não passou de invenção. Nunca houve
reparação. Nem sequer a promessa dela.
Essas revelações e algumas reflexões sobre elas fecham o epílogo que encerra o
romance de Briony. Já McEwan, com essa narrativa multifacetada, dá início a todas as
diversas discussões sobre a obra: as tantas leituras que ela possibilita, os vários temas a
explorar etc. Inclusive a relação entre realidade e ficção, e o caráter autorreflexivo do
romance pós-moderno, tema do qual nos ocupare-mos no presente artigo.
3. A autorreflexão narrativa
Ao comentar a produção literária pós-moderna, a crítica Linda Hutcheon
escreve:
Aquilo que quero chamar de pós-modernismo na ficção usa e abusa
paradoxalmente das convenções do realismo e do modernismo, e o faz
com o objetivo de contestar a transpa-rência dessas convenções, de
evitar a atenuação das contradições que fazem com que o pós-moderno seja o que é: histórico e metaficcional, contextual e
autorreflexivo, sempre cons-ciente de seu status de discurso, de
elaboração humana (HUTCHEON, 1991, p. 79).
Nesse sentido, Atonement se encaixa sem dificuldade no perfil de romance pósmoderno. Se temos na obra um esforço mimético que lhe confere um caráter
convincentemente realista até o en-cerramento da terceira parte, há também, não só em
seu epílogo, como em outras passagens da nar-rativa, evidências dessa autorreflexão
metaficcional que caracteriza o pós-modernismo na literatura.
A título de exemplo, poderíamos destacar o trecho em que Briony, pela janela do
quarto, ob-serva o comportamento de Cecilia e Robbie, diante da fonte no quintal da
casa. Os atos de ambos despertam a curiosidade da menina, deixam-na intrigada,
enquanto escapam à sua limitada compre-ensão infantil porque aquilo “was not a fairy
tale, this was the real, the adult world in which frogs did not address princesses, and the
23
“É só nesta última versão que o casal apaixonado termina bem, um ao lado do outro, numa calçada da
zona sul de Londres, enquanto eu vou embora. Todas as versões anteriores eram impiedosas” (ibid., p.
442).
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only messages were the ones that people sent” (McEwan, 2002a, p. 37).24 Nessa
passagem, o narrador (que, agora sabemos, é a própria Briony, décadas mais tarde)
informa que a menina se sente, nesse momento, tentada a procurar a irmã e a exigir uma
explicação sobre o que acabou de ver; porém, decide não o fazer “because she wanted to
chase in solitude the faint thrill of possibility she had felt before, the elusive excitement
at a prospect she was coming close to defintion, at least emotionally. The definition
would refine itself over the years” (ibid., p. 37-38).25
São palavras significativas, pois — confrontadas com a carta de Cyril Connolly,
sugerindo uma revisão na novela Two figures by a fountain [Dois vultos juntos a uma
fonte], que Briony escrevera na juventude, e também com a própria admissão da autora,
na velhice, de que escreveu várias versões da história ao longo da vida — permitem-nos
concluir que a cena, conforme descrita na primeira parte do romance, já se encontra em
sua forma final. Já foi readaptada para se tornar parte de uma obra mais volumosa: um
romance. Nesse sentido, é importante notar também que esse evento, testemunhado pela
pequena Briony através da janela do quarto, é descrito como o que apresentou à menina
aspirante a escritora “an impartial psychological realism” (McEWAN, 2002a, p. 38),26
traço que seria assimilado aos escritos da futura autora consagrada.
Hutcheon destaca que uma postura fundamental da literatura pós-moderna é
questionar a autoridade da tradição e das crenças sobre o que deve ser a literatura. No
entanto, a despeito de al-guns experimentos narrativos visando a rejeitar por completo
toda forma de mimese realista e ne-gando até mesmo a necessidade de qualquer tipo de
trama, segundo a autora, o fato é que, na maio-ria dos romances contemporâneos, tem
havido um
“retorno” da trama e das questões de referência que haviam sido
reunidas na mesma cate-goria pelas últimas tentativas modernistas no
sentido de demolir as convenções narrativas realistas: o Novo Novo
Romance francês ou os textos da Tel Quel, a neovanguardia italia-na,
a superficção americana. Em termos de forma, todas elas são mais
radicais do que os ro-mances pós-modernos, que são mais
transigentes, digamos assim, em seu registro e em sua contestação
paradoxais dessas mesmas convenções. A estratégia, um pouco
diferente, da metaficção historiográfica [pós-moderna] subverte, mas
[não por meio] da rejeição. A pro-blematização substitui a demolição
(HUTCHEON, 1991, p. 15).
O romance de McEwan utiliza e critica, precisamente pela sua problematização,
as conven-ções miméticas realistas, bem como a multiplicidade de perspectiva e a
investigação do universo in-terior dos personagens pelo artifício do discurso indireto
livre na forma como os romances moder-nistas o utilizavam, e, assim, por um lado,
desconstrói a mimese, pondo em questão a impossibilida-de da representação realista no
romance, e, por outro lado, expõe a semelhante artificialidade da descrição relativista
dos fatos pela alternância de pontos de vista como sendo apenas mais uma me-ra
24
“... não era uma história de fadas, era a realidade, o mundo adulto em que sapos não falavam com
princesas e onde as únicas mensagens eram aquelas que as pessoas enviavam” (McEwan, 2002b, p. 54).
25
“… porque queria explorar sozinha a vaga e emocionante possibilidade que havia sentido antes, a
excitação evanescente diante de algo que ela estava quase definindo, ao menos no plano emocional. A
definição haveria de se refinar com o passar do tempo” (ibid., loc. cit.).
26
“… um realismo psicológico imparcial” (McEWAN, 2002b, p. 55).
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convenção seguida pelo autor, que vai se fazendo recorrente no exercício de seu “godly
power of creation” (McEWAN, 2002a, p. 72).27
Porém, é curioso notar que a crítica dessas convenções não se traduz para
McEwan em uma recusa a nenhuma delas — uma posição compatível com a conclusão
de Hutcheon de que a meta-ficção historiográfica deveria subverter tais convenções,
mas não rejeitá-la. Até porque, como tam-bém e tão bem salienta o crítico James Wood,
toda ficção é convencional de uma maneira ou de outra, e, se
rejeitarmos algum tipo de realismo por ser convencional, pela mesma
razão teremos de rejeitar o surrealismo, a ficção científica, o pósmodernismo autorreflexivo, os romances com quatro finais diferentes,
e assim por diante. A convenção está por toda parte e triunfa como a
velhice: depois de certa idade, morremos dela ou com ela (WOOD,
2012, p.189).
McEwan tem consciência disso. É como se, em parte, concordasse com a visão
moderada-mente simpática de Hutcheon quanto à ficção pós-moderna (que ela prefere
denominar “metafição historiográfica”), mas sem perder de vista a crítica de teóricos
como Terry Eagleton, para quem:
A típica obra de arte pós-modernista é arbitrária, eclética, híbrida,
descentrada, fluida, des-contínua, do tipo pastiche. [...] Suspeitando de
todas as verdades e certezas asseguradas, sua forma é irônica, e sua
epistemologia, relativista e cética. Rejeitando todas as tentativas de
refletir uma realidade para além de si mesma, ela existe
autoconscientemente no nível da forma ou da linguagem. Ciente de
que suas próprias ficções são infundadas e gratuitas, ela é capaz de
obter algum tipo de negativa autenticidade apenas fazendo ostentação
de sua cons-ciência irônica desse fato, pervertidamente destacando seu
próprio status como um artifício construído (EAGLETON, 1996, p.
201-202, tradução nossa).
A maior parte da literatura de McEwan “usa e abusa” das convenções realistas e
modernis-tas, como Hutcheon fala em sua obra. Mas a forma como o autor as utiliza,
assim como a autor-reflexividade que se percebe em suas narrativas, sugere uma
considerável aproximação com a visão crítica de Eagleton, principalmente no que se
refere às posturas pós-modernistas mais radicais dos que aceitam, sem questionamentos,
proposições como a de Roland Barthes, para quem
[a] função da narrativa não é a de ‘representar’, mas de constituir um
espetáculo que ainda parece muito enigmático, mas que não poderia
ser da ordem mimética [...]. ‘O que passa’ na narrativa não é, do ponto
de vista referencial (real), ao pé da letra, nada; ‘o que acon-tece’ é só
a linguagem inteiramente só, a aventura da linguagem, cuja vinda não
deixa nun-ca de ser festejada (apud WOOD, 2012, p. 188-189).
27
“… seu poder demiúrgico de criação” (ibid., p. 96).
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McEwan utiliza essa opinião; porém, voltando-a contra as narrativas que nela se
amparam. De fato, ele usa Atonement para também subverter essas convenções já
recorrentes nos romances pós-modernos: obras que, buscando romper com a
representação narrativa da realidade, costumam apresentar finais ambíguos, em que não
se oferece ao leitor nenhuma segurança sobre o que aconte-ceu “de verdade” e aquilo
que não passou de ilusão criada pela narrativa. O epílogo de Atonement toma um
caminho totalmente distinto ao deixar claros vários elementos da trama que são cem por
cento ficcionais, porque a própria “autora” do romance nos revela que são fabricações
suas. Isto é, sabemos que Cecilia e Robbie não ficaram juntos, que nunca tiveram a
chance de viver seu amor, de gozar da companhia um do outro, nem mesmo por um
único dia — apesar de haver uma cena descrevendo precisamente a ocorrência de um
momento desses, na terceira parte do livro.
Resenhas como as de Brian Finney concluem que, no romance, Briony pode
estar “implici-tamente reconhecendo a contradição no centro de sua narrativa — a
impossibilidade de evitar a invenção de falsas ficções em torno dos outros, ao mesmo
tempo em que se lhe é exigido que entre imaginativamente em suas vidas” (FINNEY,
2004, p. 82, tradução nossa). Entretanto, como Alistair Cormack destaca, no romance de
McEwan, pelo contrário, o que se percebe é uma nítida leitura “anti-pós-modernista”,
nesse sentido:
[Um] lugar em que deveríamos testar essa leitura anti-pós-moderna é
no encerramento de Atonement, quando a autoconsciência do texto é o
mais óbvia possível. Ficamos sabendo que a seção ambientada em
Balham é uma invenção — que Robbie e Cecilia morreram — e
somos forçados a reconhecer o caráter de fabricação desse mundo em
que estivemos imer-sos. [...] Embora Atonement decerto queira que
sintamos o impacto de sua ambiguidade, como leitores nós sentimos
compaixão por Briony e admiramos sua sincera autoanálise, ao
mesmo tempo em que ficamos desolados com a morte de Robbie e
Cecilia. Mas parece ha-ver poucas incertezas no fim. Para que o
romance pertença ao mundo do pós-moderno — para que se possa
afirmar, como Finney sugere, que inventar falsas ficções é inevitável
—, é preciso haver dúvidas sobre o que realmente aconteceu. Aqui,
não há nenhuma. O real, contra o qual Briony se debate, como fez no
caso do [suposto crime de Robbie], é a inevi-tável verdade da morte
dos dois amantes (CORMACK, 2013, p. 81, tradução nossa).
Diante disso, fica a pergunta: o que a metaficção em Atonement quer nos dizer
então?, a que propósito ela serve?
4. Realidade e imaginação
Para Cormack, “a metafição em Atonement não está ali para apresentar ao leitor
a inevitável penetração do fictício no real. Em vez disso, o romance serve para mostrar
que esses dois mundos são inteiramente distintos: há o mundo do real e o mundo da
literatura, e ai de quem confundir os dois!” (ibid., p. 82, tradução nossa). Na obra,
McEwan, ao pôr em questão também algumas con-venções pós-modernas, acaba nos
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levando a outras reflexões a respeito da ficção e sua relação com a vida, sobretudo com
a vida interior de cada um de nós, nossa experiência imaginativa.
James Wood, aludindo à obra Victorian fiction and the insights of sympathy [A
ficção vito-riana e os discernimentos da compaixão], de Brigid Lowe, destaca que, para
essa autora,
a pergunta sobre o caráter referencial da ficção — a ficção faz
afirmações verdadeiras sobre o mundo? — é descabida, porque a
ficção não nos pede para acreditar nas coisas (num sentido filosófico),
e sim para imaginá-las (num sentido artístico): “[...] Quando contamos
uma história, mesmo querendo ensinar uma lição, nosso objetivo
primário é gerar uma ex-periência imaginativa”. Ela propõe que
retomemos o termo retórico grego hypotyposis, que significa pôr algo
diante de nossos olhos, dá-lo vida (WOOD, 2012, p. 191).
Isso é algo que Atonement faz, sem dúvida alguma: põe algo diante de nós e dálhe vida, fazendo-nos envolver e impressionar com uma história desmentida ao final,
não porque nos faz acreditar nela apesar do desmentido, mas porque nos faz imaginar
toda aquela “realidade” inventa-da, afetando-nos com essa experiência. De modo que
sentimos o impacto tanto da história, quanto da história dentro da história. O romance
consegue nos provocar empatia tanto em face da tragédia de Cecilia e Robbie (de que a
maior parte é admitida invenção de Briony), quanto em face do pró-prio drama da
“autora”, desde o começo consciente do abismo que separa ficção e realidade. A
consciência de que é tola e inútil toda esperança de reparar o irreparável:
[H]ow can a novelist achieve atonement when, with her absolute
power of deciding out-comes, she is also God? There is no one, no
entity or higher form that she can appeal to, or be reconciled with, or
that can forgive her. There is nothing outside her. In her imagination
she has set the limits and the terms. No atonement for God, or
novelists, even if they are atheists. It was always an impossible task,
and that was precisely the point. The attempt was all (McEWAN,
2002a, p. 350-351).28
A tentativa, ainda que inútil, era tudo, justamente porque permitia essa
experiência. Daí, porque Briony, apesar dos fatos inexoráveis da realidade que ela
conhece tão bem, diz que, ao leitor que teimar em perguntar o que de fato aconteceu,
responderá: “the lovers survive and flourish. […] I gave them happiness, but I was not
so self-serving as to let them forgive me. Not quite, not yet” (ibid., 250-251).29 Essa
experiência imaginativa gerada pela ficção é o único contexto em que a reparação é
possível. Por isso Briony demonstra certa ansiedade ao comentar que, depois que ela
28
“[C]omo pode uma romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de decidir como a
história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado, a que ela
possa apelar, ou com que possa reconciliar-se, ou que possa perdoá-la. Não há nada fora dela. Na sua
imaginação ela determina os limites e as condições. Não há reparação possível para Deus nem para os
romancistas, nem mesmo para os romancistas ateus. Desde o início a tarefa era inviável, e era justamente
essa a questão. A tentativa era tudo” (McEWAN, 2002b, p. 443-444).
29
“… o casal apaixonado está vivo e feliz. [...] Dei-lhes felicidade, mas não fui egoísta a ponto de fazêlos me perdoar. Não exatamente, não ainda” (ibid., p. 443-444).
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morrer, assim como os últimos personagens citados no livro que ainda estão vivos, e o
livro for enfim publicado, todos existirão apenas como invenções suas, inclusive ela
própria. “Briony will be as much of a fantasy as the lovers who shared a bed in Balham
and enraged their landlady” (ibid., p. 350).30
Em seu ensaio, Cormack conclui, em sentido contrário ao que argumentamos
acima, que Atonement constitui também uma crítica a essa experiência imaginativa
provocada pela ficção (CORMACK, 2013, p. 82). No entanto, essa posição fica difícil
de se sustentar não só quando le-vada em consideração a numerosa obra literária de
McEwan, cuja leitura corrobora nossos argu-mentos, como também colide com o que o
próprio autor afirma em uma entrevista, ao comentar os momentos em que sente estar
perdendo a “fé na ficção”:
Somos criaturas visuais. Quarenta por cento de nossos cérebros estão
envolvidos com o processamento de dados visuais. Nossa língua está
saturada de referências visuais, bem mais que qualquer outro sentido.
A chave para as emoções, sentimentos e para o redemo-inho dos
intercâmbios humanos é mais bem ajustada se você consegue capturar
a essência visual corretamente. [...] [Quando uma narrativa consegue]
[c]apturar um único detalhe [dessa essência visual, ela] é capaz de
fazer reviver meu prazer com a escrita: e se esse de-talhe for
vertiginoso, isso me deixará muito satisfeito (COOK; GROES; SAGE,
2013, p. 154, tradução nossa).
Sem dúvida, assim acontece porque essa “essência visual” que a literatura
captura induz uma experiência imaginativa, que, por vezes, consegue ter um efeito
“vertiginoso” sobre quem lê. Além disso, deve-se considerar na via escolhida por
McEwan em seu romance — pondo em questão também as convenções do ambíguo nos
romances pós-modernos, dos limites incertos e indefiníveis entre o acontecido e o não
acontecido no plano diegético — uma retomada daquela visão expressa por Umberto
Eco, quando escreve que a função de algumas narrativas de interpretação menos ambígua e flexível é que,
contra qualquer desejo de mudar o destino, [elas] nos fazem tocar com
os dedos a impossi-bilidade de mudá-lo. E assim fazendo, qualquer
que seja a história que estejam contando, contam também a nossa, e
por isso nós [as] lemos e [as] amamos. Temos necessidade de sua
severa lição “repressiva”. [...]. [Essas narrativas] nos ensinam também
a morrer.
Creio que essa educação ao Fado e à morte é uma das funções
principais da literatura (ECO, 2003, p. 21).
Em se tratando de McEwan, levando em conta sua confessa obcessão por
ciências naturais, empíricas, não é coerente concluir que, em sua literatura, haja uma
rejeição do real. Somando-se isso à famosa insistência do autor em abordar temas que a
maioria das pessoas prefere evitar, não seria precipitado nem absurdo concluir que
30
“Briony sera uma personagem tão fictícia quanto os amantes que dormiram na mesma cama em
Balham, indignando a proprietária” (ibid., p. 443).
P á g i n a | 835
Atonement seja um romance que desconstrói a mimese realista justamente com o
objetivo de chamar a atenção para a distinção entre o real e o fictício, o poder divino
que um autor pode exercer neste mundo enquanto é impotente naquele. Traduz, portanto, a ideia de Eco: da narrativa ficcional como um discurso que educa para a dureza
da realidade e a inevitabilidade de certos fatos da vida, dos quais a morte é o mais
emblemático.
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P á g i n a | 836
DISCUTINDO UMA NOVA MODALIDADE DE ENSINAR E APRENDER UMA
LÍNGUA ESTRANGEIRA COM UM OLHAR NA PROPOSTA DO PÓSMÉTODO
Arnon Alves ROCHA (UNEB)31
Resumo: Fruto de uma reflexão sobre o tema em pauta, esta comunicação tem por
finalidade discutir e elaborar novas estratégias de ensino e aprendizagem de Língua
Estrangeira (LE) com base na pedagogia do pós-método estabelecida por
Kumaravadivelu (2003), cujo objetivo central é desenvolver a autonomia de professores
e alunos. A metodologia a ser utilizada será o diálogo compartilhado com os
participantes deste evento. Para isso, é apresentada uma avaliação de como tem sido a
atuação dos métodos de ensino de língua estrangeira (LE) até então, sugerindo-se uma
proposta de abordagem de aprender e ensinar, na qual os métodos não têm influência
única na atuação desses interlocutores. Para tanto, serão abordados os três parâmetros
sugeridos por Kumaravadivelu (2003): a) a pedagogy of particularity, b) a pedagogy of
practicality e c) a pedagogy of possibility. Com base nesses princípios, o intento é
chegar mais próximo de um contexto sociocultural de aprendizes e professores, numa
tentativa de articular teoria e prática, visando um novo modo de trabalho mais útil,
através do qual professores e alunos tenham uma melhor consciência de seu papel, e
construam juntos a sua própria filosofia de ensinar e aprender línguas, compatível com
seus contextos particulares, possibilitando uma nova educação linguística.
Palavras-chave: Pedagogia do pós-método; Ensinar e aprender LE.
1. Introdução
Abordar os métodos de ensino e aprendizagem de Língua Estrangeira (LE) tem
sido um dos assuntos mais debatidos na área da Linguística Aplicada. Trata-se de um
contexto bastante polêmico, entre outras razões, pelo fato de que a maioria das escolas
bem como os professores de línguas têm-se valido de tal condição, ora encontrando
pontos positivos, ora pontos negativos para expressar satisfações e insucessos, a
depender de como esses métodos vêm sendo utilizados.
Diante do fato, este artigo vem dialogar sobre algumas questões que precisam
ser mais bem esclarecidas. Partiremos de um breve panorama do que foram esses
métodos e como foram usados. A partir disso, mostraremos outras tentativas de ensino
que tiveram o intuito de ampliar a perspectiva dos métodos, no caso, referimo-nos às
abordagens. E, no final, traremos a proposta de um pós-método sugerida por
Kumaravadivelu (2001), que estabelece três parâmetros básicos para a abordagem do
professor, denominados: a) a pedagogia da particularidade, b) a pedagogia da prática e
c) a pedagogia da possibilidade.
2. Uma breve comentário sobre os métodos
31
Professor de Língua Inglesa e Linguística Aplicada na Universidade do Estado da Bahia, Mestre em
Letras com foco da pesquisa em Linguística Aplicada ao Ensino e Aprendizagem de Língua Estrangeira.
Correio eletrônico: < [email protected]
P á g i n a | 837
Basta lembrarmos do “Grammar Translation Method”, por exemplo, que, de
acordo com Richards (2001), perdurou um século, de 1800 a 1900. Segundo esse
mesmo autor, essa foi a maneira mais prática de se trabalhar com as línguas clássicas da
época, como o grego e o latim. Vale ressaltarmos que, ainda hoje, esse método continua
transitando, de uma forma ou de outra, pelas nossas aulas de língua estrangeira.
Quadro 1 – Métodos de Richards desde 1800 até os dias atuais
MÉTODO
PERÍODO
– Grammar Translation
1800 – 1900
– Direct Method
1890 – 1930
– Structural Method
1930 – 1960
– Reading Method
1920 – 1950
– Audiolingual Method
1950 – 1970
– Situational Method
1950 – 1970
–Communicative Approach
1970 – present
Fonte: Elaboração própria, adaptado de Richards (2001, p.3).
Através desse Quadro, é possível perceber que, de um método para outro, há
uma distância de tempo muito grande. Do Grammar Translation para o Direct Method,
por exemplo, há um século de tempo, mas isso não significa que, durante a utilização do
Direct Method em sala de aula, tivesse sido descartada a possibilidade do uso do
método anterior. Esses métodos sempre se aproximam entre si, porque um método
sempre requer um pouco de outro método para se completar, na sua operação de ideal
esperado. São perceptíveis, em cada um deles, bases estruturalistas seguidas de
propostas funcionalistas, como é o caso, por exemplo, do Communicative Approach.
Isso quer dizer que o tempo, por si só, não foi possível e nem suficiente para
corresponder a uma fase exaustiva de cada método.
O Direct Method (1890-1930), em oposição ao Grammar Translation Method,
trouxe como novidade o uso exclusivo da língua-alvo, porém prescrevendo não apenas a
forma como a língua deveria ser ensinada, mas também técnicas de perguntas e
respostas, bem como sequência de ordem gramatical, ou seja, apresentava uma
hierarquia sobre qual estrutura gramatical deveria anteceder determinados assuntos ou
não.
3. Algumas insatisfações com os métodos
Várias insatisfações têm marcado a trajetória dos métodos, entre elas, o fato de
já trazer prontas as estratégias de ensino sem uma preocupação com o contexto real de
seus interlocutores: professores e alunos. Para Prabhu (1990), uma das causas do
insucesso com o método é que, em muitos casos, os professores o aplicam sem refletir
por qual razão o utilizam, uma vez que, na maioria dos casos, os professores não se
identificam com ele.
P á g i n a | 838
Uma das explicações para o fato é que esses métodos geralmente são construídos
pelos mesmos autores considerados consagrados, que, por isso, se valem muito de
teorias formais também advindas de outros autores famosos que, na maioria das vezes,
nem sequer conhecem o ambiente cultural onde o método está sendo aplicado.
Promovem, às vezes, o desrespeito à cultura alheia através das insinuações de sentidos
presentes em suas lições.
Outra crítica é que nem sempre o professor sabe conduzir tais métodos,
conforme a sua metodologia e procedimentos. Outro ponto insatisfatório é que o
professor é induzido a seguir determinado método, mas não há uma adaptação natural,
entre outros fatores, a distância de sintonia com a realidade do professor que esse
método apresenta. No método, nem sempre há espaço para o questionamento e diálogos
entre professores e alunos. Seus passos já vêm pré-escritos por pessoas consagradas,
muitas vezes desconhecidas, porém autoridades no assunto, e por isso descarta-se o
questionamento, cedendo-se à utilização obrigatória que, como consequência, pode
gerar resultados negativos, entre eles, o mais crucial, a falta de aprendizagem. Nesse
sentido, o método não passa de um rol de obrigações consagradas e reafirmadas por um
grupo particular que apresenta desde os interesses ideológicos aos econômicos.
Cremos que, no dia em que o professor sentar com seus alunos, coordenadores,
diretores de institutos, etc., e discutir os conhecimentos mais necessários para a
formação cultural de seus aprendizes, instrumentos de aprendizagem surgirão
naturalmente a partir de tais reflexões. Fica muito estranho fazer um planejamento de
curso, discutindo questões locais e, via de regra, apresentar recursos didáticos
completamente distantes das demandas esclarecidas.
Enfim, os métodos mostram como o professor deve dar aula, mas não mostram
como ele deve interferir na aprendizagem do aluno. Como resultado, presenciamos o
fracasso, e geralmente, quando queremos superar essa situação, sempre procuramos
outro método que possa nos dar a solução do problema, fato que nunca acontece. Criase, então, um círculo vicioso, sempre no sonho da renovação, porém sem ir muito longe.
Lembramos o caso da proposta de um método eclético, ou seja, uma maneira em que se
pudesse mesclar estratégias de vários métodos diferentes durante as aulas de língua
estrangeira, mesmo assim, por esse viés, a problemática do ensino e aprendizagem de
LE não foi resolvida.
4. Uma breve explicação do conceito de abordagem de ensino
Muitos têm sido os conceitos de abordagem de ensino. Essa perspectiva acata os
métodos e, além disso, nos traz elementos como intuição e experiências vivenciadas
pelo professor. Anthony (1963, p.63; 67) faz uma comparação entre método e
abordagem:
Uma abordagem é um conjunto de pressupostos correlacionados com
a natureza do ensino e aprendizagem de línguas. Uma abordagem é
axiomática. Ela descreve a natureza da matéria-prima a ser ensinada
[...] O método é um plano completo para a apresentação da linguagem
de forma organizada sem nenhuma contradição em suas partes e tudo
isso é baseado na abordagem selecionada. Uma abordagem é
axiomática, um método é procedimental. [...] Uma técnica é
P á g i n a | 839
implementacional. [...] É um truque, enganoso, ou contrastivo usado
para compartilhar um objetivo imediato. (Tradução própria).
Compreendendo as contribuições específicas de alguns autores, como Richard e
Rodgers (2004), Anthony (1963) e Almeida Filho (2005b), estudiosos do assunto,
apresentamos algumas relações que eles fazem entre métodos e abordagens.
Anthony se preocupou em esclarecer os termos básicos da abordagem, métodos
e técnicas; Richard e Rodgers (1982) já se preocupam em desenvolver um modelo que
descreva e permita comparar os métodos; e Almeida Filho (1997 b) objetiva esclarecer
o funcionamento complexo do que seja um método e uma abordagem, aproximando-se
mais do modelo de Anthony. Então, para Almeida Filho (1997, p.13: b)
[...] abordar ou ocupar-se do ensino de uma nova língua significa,
entre outras coisas, tratar de enfocar, conceber, dar direção,
aproximar-se de, acercar-se de, encaminhar, dar forma e sentido à
tarefa de auxiliar profissionalmente aqueles que se candidatam a
aprender essa língua-alvo.
Nesse sentido, um conjunto de regras fixas e formais como guia exclusivo de um
professor de línguas não dará conta da dinâmica social do que deve ser a sala de aula.
Prabhu (1992) considera a aula como um evento de muitos tipos diferentes nos quais
podemos encontrar uma sequência curricular planejada, um caso de método de ensino
em uso, uma atividade social padronizada e um conjunto de personalidades humanas.
Abordagens e métodos são duas condições de ensino distintas. Para Antony
(1963, p.64), abordagem é “[...] um conjunto de pressupostos correlacionados que
tratam da natureza do ensino e aprendizagem de língua. Uma abordagem é axiomática.
Descreve a natureza do assunto que está sendo ensinado”. O método é um plano global
de apresentação ordenada de materiais.
Uma abordagem sempre vai além do que os métodos podem fazer, pois, além de
acatar procedimentos técnicos, também utiliza as experiências acumuladas do professor,
sentido que não é acatado pelos métodos. Estes se limitam a teorias e ao fazer formal,
prescrevendo sempre o que o professor deve fazer.
Conferindo-se métodos e abordagens, sem a intenção de eleger um em
detrimento do outro, observamos que o processo de ensino e aprendizagem de LE é algo
bastante político e cultural, por isso seu destino deve trilhar os rumos da relatividade
cultural, isto é, como as coisas acontecem em seus respectivos espaços. Essa ideia de
espaço demarca um território linguístico com características particulares, por isso
precisamos ir além dos métodos e técnicas e das abordagens até então propostas.
5. A visão de Pós-Método
Imaginamos que falar em pós-método não significa desconhecer o quão útil a era
dos métodos foi e ainda tem contribuído e vem contribuindo para as nossas práticas
pedagógicas e linguísticas. O nosso propósito neste trabalho não é tentar descartá-los,
mas mostrar que uma postura de ensinar e aprender línguas apenas por esse viés não se
P á g i n a | 840
torna justo, diante das necessidades sociais vigentes. É a partir desse reconhecimento
atrelado ao reconhecimento de que as coisas mudam, e com essas o mundo também
muda, que queremos avaliar as propostas colocadas por um dos estudiosos do assunto.
Kumaravadivelu (2003, p.34-36) propõe três parâmetros para se construir uma
boa prática pedagógica: “Particularity, practicality e possibility” (particularidade,
prática e possibilidade), tradução minha. Esses elementos devem estar, segundo o autor,
coacoplados a outros atores da educação além do professor em sala de aula.
Desse modo, Kumaravadivelu propõe uma pedagogia do pós-método. Com essa
proposta, não queremos dizer que os métodos nunca foram úteis e muito menos dizer
que não precisamos mais deles. A nossa intenção é avaliar a sua importância e utilizar
os procedimentos mais necessários de acordo com as necessidades particulares e
contextualizadas de nossos aprendizes e professores.
6. Justificativa de uma proposta com base na pedagogia do pós-Método
Diante da revolução pela qual o mundo tem atravessado, somada aos grandes
avanços da ciência e tecnologia e às posturas políticas mundiais com sinais de viradas
políticas no que concerne a um governo mais laico, democrático e assistente do ponto
de vista dos direitos humanos, fica muito claro que todas as nossas relações sociais só
são possíveis através de linguagem. É nesta que o homem encontra o seu relativo lugar
de movimentos e reivindicações pessoais e coletivas.
Desse modo, entende-se que o uso da linguagem em nossas práticas sociais seja
algo mais do que útil na concretização de nossos objetivos. Várias tentativas já foram
feitas no que diz respeito ao ensino e aprendizagem linguística por esse viés. A
abordagem comunicativa, por exemplo, orientada por posturas teóricas funcionalistas,
transformadas em método comunicativo de línguas, tem estado presente na maioria das
abordagens de nossos professores de línguas em todo o mundo.
Para Kumaravadivelu (1993), essa abordagem promove interpretação, expressão
e negociação do significado. Isso quer dizer que os nossos alunos se tornam mais ativos
e participativos gerando mais necessidade social de interação. Esse impulso também
leva o aluno para além da sua condição de memorizar padrões de frases e regras
gramaticais, colocando-o numa situação de socialização e construção e reconstrução dos
conhecimentos linguísticos com os quais ele convive.
Nesse sentido, trazer a linguagem para nosso convívio diário é o grande desafio
e, muito mais, transformar esse desafio em estratégias práticas de ensino, de forma que
possa ajudar seus usuários a utilizá-las de forma mais plausível. É diante disso que
pedagogos e pensadores da educação, como Dewey (1959),.Paulo Freire (1980) e
muitos outros, têm mostrado a necessidade constante de transformação.
Kumaravadivelu (2003) propõe uma pedagogia do Pós-Método – “postmethod
pedagogy”. Para ele, essa pedagogia tem de ser sensível aos grupos particulares de
aprendizes e professores. Ele acredita que, assim como toda política é local, a pedagogia
também tem de ser local (KUMARAVADIVELU, 2001). Com isso, ele sugere três
parâmetros básicos como referência: a pedagogia da particularidade, a pedagogia da
prática e a pedagogia da possibilidade.
P á g i n a | 841
7. A pedagogia da particularidade
Kumaravadivelu (2001, p. 538) diz que a pedagogia da linguagem, para ser
relevante, “[...] deve ser sensível ao grupo particular de professores ensinando a um
grupo particular de aprendizes seguindo um conjunto de metas dentro de um contexto
particular institucional incorporado a um meio social particular”.
Nesse sentido, o autor nos mostra que não devemos mais primar por uma
pedagogia formal, a qual traz seus objetivos e procedimentos técnicos já definidos para
serem aplicados na sala de aula. Trata-se de uma proposta na qual se inclui o holístico,
já que vamos tratar das subjetividades e particularidades humanas. O ensino, nesse
aspecto, não é visto apenas como uma condição técnica, mas humanizadora e social.
Enfim, esta pedagogia significa um processo em ação e transformação, ao invés de,
exclusivamente, uma busca por um resultado final.
8. A pedagogia da prática
O autor nos deixa claro que essa pedagogia não pertence meramente às práticas
de ensino do dia a dia, mas a um problema muito maior, que tem um impacto direto
com a prática na sala de aula: o que conhecemos como a relação teoria e prática.
Alguns autores, como Prabhu (1990), Almeida Filho (1997 a) e outros, chamam
sempre a atenção para essa questão, que deve ser encarada como um processo dialético,
através do qual os professores possam teorizar suas próprias experiências, sem a
obrigação apenas da busca de teorias formais, criadas por outros autores. É de grande
importância que os professores divulguem suas teorias pessoais, porque elas são
individuais e marcam, de forma mais concreta, o seu percurso de ação.
9. A pedagogia da possibilidade
Este parâmetro toma como base a “pedagogia crítica” de Paulo Freire.
Educadores, de um modo geral, tais como Giroux e Simon (1999, p.375), “[...] o projeto
da possibilidade requer uma educação enraizada numa visão de liberdade humana como
o entendimento da necessidade e a transformação da necessidade”. Nessa perspectiva,
entendemos que é possível explorar as regras do Inglês em uso e examinar, de forma
crítica, as condições que deram ascensão a essas regras. Sendo assim, a pedagogia da
possibilidade, além de trazer autonomia para seus participantes, também lhes traz poder
e aponta para “[...] a necessidade de desenvolver teorias, formas de conhecimento e
práticas sociais que funcionam como as experiências que as pessoas trazem para o
cenário pedagógico” (GIROUX, 1988, p.134).
Para um melhor desempenho linguístico no percurso de uma aprendizagem de
uma língua estrangeira, Kumaravadivelu (2003) propõe um quadro macroestratégico.
Aqui, apresentamos algumas de suas macroestratégias propostas:
Macoestratégia 1: criar oportunidades de aprendizagem na sala de aula
P á g i n a | 842
Esta primeira estratégia baseia-se na crença popular de que o professor não deve
ir à sala de aula com o intuito de ensinar a língua, mas, ao invés disso, criar condições
através das quais os estudantes possam desenvolver suas estratégias próprias. Dessa
forma, o estudante pode construir sua própria autonomia. Não há uma obrigação de
seguir determinadamente um plano de aula oficializado pela instituição onde
professores e alunos atuam, e sim que, na sala de aula, todos em conjunto construam os
seus saberes de linguagem.
Macroestratégia 2: utilizar as oportunidades de aprendizagem criadas pelos
próprios alunos
Essa segunda estratégia está diretamente ligada à primeira e baseia-se na
premissa de que professores e alunos devem compartilhar os discursos durante as aulas.
Embora o professor seja reconhecido como uma autoridade competente em seus
conhecimentos, deve apenas atuar como mais um participante do grupo, demonstrando
força de vontade para que seus alunos se sintam livres em seus pronunciamentos, ao
invés de se posicionar como um ditador de normas de seu grupo.
Macroestratégia 3: facilitar a interação negociada entre os participantes
A terceira estratégia refere-se a uma interação mais significativa entre aluno e
aluno, professor e professor na sala de aula. Isso significa que o aluno deva ter uma
participação mais ativa durante os discursos no que concerne a tomada de decisões,
clareza dos fatos e conhecimentos, confirmações etc. Isso significa que o estudante
tenha a liberdade de interagir ao invés de ficar em silencio ou obrigatoriamente seguir o
professor.
Macroestratégia 4: ativar a heurística intuitiva do aluno
A quarta estratégia baseia-se no fato de que todos os seres humanos
automaticamente possuem intuições próprias. Esse processo cognitivo ajuda a assimilar
os padrões e regras do comportamento linguístico. Uma maneira de ativar a heurística
intuitiva é fornecer dados suficientes para que os alunos possam inferir e internalizar
regras subjacentes a partir de seu uso em contextos comunicativos variados.
Macroestratégia 5: contextualizar o conhecimento linguístico
A quinta estratégia baseia-se na visão psicolinguística de que a compreensão e a
produção envolvem, muito rápido e de forma simultânea, a integração entre sintaxe,
semântica e o fenômeno do discurso. Isso significa que o conhecimento linguístico deve
ser apresentado aos alunos em unidades de discurso de forma que eles possam se
beneficiar dos efeitos interativos dos vários componentes linguísticos. Se as sentenças
forem introduzidas de forma isolada, os alunos vão se sentir privados das sugestões
pragmáticas necessárias, tornando assim o processo de construção de significados mais
difícil.
10. Considerações finais
P á g i n a | 843
Nosso trabalho se iniciou apresentando um quadro panorâmico sobre a trajetória
dos métodos em nossa história de ensinar e aprender línguas, especificamente línguas
estrangeiras. Fizemos também um esclarecimento do que foi a tentativa de um ensino
através de abordagens, comparamos com as propostas dos métodos e técnicas e
percebemos que nenhuma dessas tentativas durou para sempre. As mudanças sociais
serviram, entre outros fatores, de instrumento transformador em nossa pedagogia de
ensino.
Com o advento da globalização, a ideia de língua homogênea começa a perder a
sua força, dando lugar a uma heterogeneidade linguística, porque os sentidos se tornam
mais relativos, diversificados e instáveis. Não há, nesse aspecto, espaço para a fixidez e
rigidez dos fatos. Tudo se torna bastante mutável e instável na sociedade.
É a sociedade em movimento gerando novos movimentos. Lutas constantes
pelos direitos humanos, questões de gênero, culturais, entre outros fatores afins, são
indícios da busca de uma nova era em nossas aprendizagens linguísticas. É o mundo se
transformando como um todo e, consequentemente, as transformações individuais. As
identidades tornam-se fragmentadas para ceder a esse processo tão envolvente. É
também um momento de reflexão linguística, já que o mundo é criado através da
linguagem.
Foi nesse sentido que o nosso artigo buscou trazer o diálogo com a premissa do
“Pós-Método”, a fim de mostrar um novo olhar para nossas salas de aula de língua
estrangeira (LE), visando pensar em novas estratégias de ensino.
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P á g i n a | 845
O EXAME CELPE-BRAS E O LIVRO DIDÁTICO DE PLE: UM OLHAR
SOBRE A PRODUÇÃO TEXTUAL
Mariana Lins ESCARPINETE (UFPB)
Thiago Magno de Carvalho COSTA (UFPB)
O ensino de Português brasileiro como língua estrangeira (usualmente PLE) tem
adquirido forma relevante no cenário das línguas estrangeiras atualmente, graças à
visibilidade que o Brasil tem conquistado. Nesse sentido, observa-se que a busca
progressiva por se aprender o português tem possibilitado o avanço nos estudos sobre o
ensino mais eficaz dessa língua. Tal fato incita a união das atuais teorias linguísticas
com métodos/abordagens de ensino de línguas estrangeiras que consideram o sujeito
como parte ativa da/na sociedade, como agente de transformação que interage com o
seu meio através da comunicação. Unido a esses elementos relevantes que compõem
esse contexto de ensino, o exame CELPE-Bras de proficiência em PLE se faz de igual
modo essencial, pois se configura como o documento oficial de avaliação sobre a
competência do estrangeiro em relação ao uso da língua portuguesa. Mediante tais
condições, surge o objetivo do nosso trabalho, o qual busca observar o quanto tal exame
serve de fomentador das atividades propostas nos Livros Didáticos (LD) de PLE, a
saber, Novo Avenida Brasil 1 e 2 e Horizontes: rumo à proficiência em Língua
Portuguesa. O interesse pelo LD se dá, uma vez que se caracteriza como o locus de
convergência das teorias de ensino de língua e língua estrangeira com vias à formação
de um sujeito proficiente e consciente do seu papel no meio, devendo, portanto,
correlacionar a utilização dos gêneros textuais exigidos no CELPE-Bras e a
metodologia de ensino de PLE adotada pelos livros didáticos analisados. Para esse
estudo, baseamo-nos nos postulados de Almeida Filho (2011, 2007, 2009, 2001), Maria
Jandyra Cavalcanti Cunha (2002), e outros, no que diz respeito ao ensino de PLE,
CELPE-Bras e suas atribuições, bem como em Dolz, Schneuwly e Noverraz (2204),
entre outros no que diz respeito ao ensino de gêneros textuais, foco do CELPE-Bras.
Palavras-chave: PLE; Livro Didático; CELPE-Bras; Gêneros Textuais.
1. Introdução
É notória a atual visibilidade que o ensino do Português como Língua
Estrangeira (PLE) tem assumido no contexto de ensino de línguas estrangeiras como um
todo. Nesse sentido, faz-se necessário o desenvolvimento de discussões que visem à
melhoria dessa vertente de ensino, uma vez que ela se insere em uma espécie de
”entremeio” de práticas de ensino. Dito de outra forma, por se tratar do ensino da nossa
língua sob uma perspectiva estrangeira, concebe-se reflexões que estejam no bojo das
discussões sobre língua estrangeira, bem como das discussões sobre língua materna, no
concerne ao estabelecimento de efetivas condições de aprendizagem.
Ainda nesse neste domínio de discussão, vale ressaltar que além o ensino do
PLE apresenta algumas condições muito particulares de observação, no tocante ao fato
de não existir um documento oficial que o regulamente e/ou parametrize, levando a
algumas concepções de metodologias mescladas no que se considera eficiente tanto para
o ensino de uma língua estrangeira (abordagem/metodologia de ensino comunicativa,
P á g i n a | 846
por exemplo), quanto de língua materna (a eficácia do ensino pautado nos gêneros
textuais). Contudo, por ter adquirido um status de busca significativo, é identificável
algumas postulações bem específicas para este ensino, a saber, considerações pautadas
no que o exame de proficiência em Português como língua estrangeira espera do
candidato ao título. Assim, entra em cena um elemento específico para o PLE, que é o
exame CELPE-Bras, cuja finalidade é mensurar em que nível de língua os candidatos
interessado em fazê-lo se encontram. Como sua configuração é totalmente voltada para
a produção (oral e escrita) de gêneros textuais como termômetro das competências do
estrangeiro, ele serve de direcionador das práticas de ensino do PLE, preenchendo esses
espaços vazios os quais foram mencionados.
Em última escala, interessa observar um outro elemento de igual importância
para as aulas de PLE, pois, no ensino como um todo, é comum sua importância
enquanto instrumento de aprendizagem: o Livro Didático (LD). Este, por sua vez,
quando inserido no ensino de PLE, deve dar conta de levar o aprendente à proficiência
de forma gradual, direcionado pelo ensino de vários níveis de conhecimento de língua,
mas, defende-se aqui, que, para além, o LD deve ser direcionado pelo ensino dos
gêneros textuais, assim como está previsto no CELPE-Bras, pois proporciona uma
aprendizagem mais significativa da língua, uma vez que o aprendente é posto como
sujeito social, que constrói e modifica a sociedade através da língua, de forma mais
específica, concebendo o aluno estrangeiro como o indivíduo que faz parte da sociedade
da língua-alvo.
Com todas essas considerações postas, instaura-se a justificativa deste trabalho,
ou seja: apesar de não possuir um documento oficial que regulamente, nem que trace
orientações sobre o ensino de Português como Língua Estrangeira, entra em cena um
outro elemento que, indiretamente, serve a essa função, o exame de proficiência em
Língua Portuguesa CELPE-Bras. Nesse sentido, os materiais, como um todo, devem
utilizar das perspectivas pressupostas no exame, o qual se faz na prática de produção
de gêneros textuais. É com base nessa lógica que o presente trabalho se desenvolve,
propondo observar em que medida os livros didáticos em PLE “dão conta” da prática de
produção textual na formação de aprendentes proficientes.
Para tornar o estudo mais palpável, faz-se necessário refletir sobre os elementos
basilares do artigo em voga, portanto, partindo do que já foi exposto sobre o ensino de
PLE, a seguir, desenvolveremos uma discussão sobre, sobre o CELPE-Bras, sobre os
Gêneros Textuais e, partindo para a análise, sobre o Livro Didático em PLE.
•
CELPE-Bras
Considerando as mais variadas formas de consolidação do ensino de PLE, o de
maior ênfase é O Exame de Proficiência em Língua Portuguesa (CELPE–Bras), uma
vez que seu caráter, como bem dito por Scaramucci (2001), “não se restringe apenas ao
efeito prático da avaliação, ou seja, à seleção de candidatos, mas deve ser considerada,
principalmente, sob o ponto de vista do seu efeito retroativo no ensino”. Foi criado a
partir da necessidade de um exame de proficiência que atendesse aos programas
internacionais, promovendo a certificação da comprovada proficiência de estrangeiros
que necessitam se integrar à vida no Brasil, como também aos estrangeiros que
necessitam usar o Português Brasileiro no exterior.
No Brasil, é exigido pelas universidades para ingresso em cursos de graduação e
em programas de pós-graduação, bem como para validação de diplomas de profissionais
P á g i n a | 847
estrangeiros que pretendem trabalhar no país. Algumas entidades de classe exigem o
CELPE–Bras para inscrição profissional, a exemplo do Conselho Federal de Medicina
(CFM), que exige esse certificado dos médicos estrangeiros para inscrição nos
Conselhos Regionais de Medicina (CRM).
É conferido em quatro níveis: intermediário, intermediário superior, avançado e
avançado superior. É fundamental ressaltar que o exame não é um diploma para
interessados em dar aulas de Português para falantes de outras línguas, uma vez que
essa função prevê habilidades e competências não avaliadas na prova. Destina-se a
cidadãos estrangeiros e brasileiros cuja língua materna não seja o português.
De modo mais específico, o exame (que segue uma prática metodológica
comunicativa) se desenvolve em 2 (dois) grandes momentos, a saber: uma parte escrita
e outra oral. No exame escrito, há quatro (4) solicitações de produção textual a partir de
quatro (4) instrumentos de compreensão. Logo, o aluno deve escrever quatro (4) textos
de acordo com uma solicitação de gêneros específicos, iniciando com a observação de
um vídeo que servirá de matéria base para a primeira solicitação/produção; passando
pela escuta de áudio, também fomentador de outra solicitação/produção; finalizando,
portanto, este primeiro momento do CELPE-Bras, com a leitura de dois (2) textos com
o mesmo intuito de promover duas solicitações/produções.
O segundo momento é de caráter oral. Logo a “conversação espontânea” ganha o
foco de observação. Esta se processa através de uma conversa instaurada pelo professor
avaliador, no tempo máximo de vinte minutos, em torno do chamado “elemento
provocador”. O professor escolhe até três elementos – os quais possibilitam o diálogo,
uma vez da sua temática ser de cunho jornalístico, ou literário, ou propagandístico, ou
de qualquer outra esfera de temática que sugere um posicionamento do
leitor/espectador.
Descrita aprova, cabe refletir sobre a matéria de principal interesse para que o
nível do aprendente seja aprendido, como base no próprio exame, os gêneros Textuais.
•
Gênero Textual
Nas aulas de Português como Língua Estrangeira, o trabalho deve ser em torno
dos gêneros textuais – uma proposta indicada pelo próprio CELPE-Bras –. Assim, deve,
no mínimo, associar o desenvolvimento linguístico ao desenvolvimento do
conhecimento contextual, e do conhecimento das modalidades discursivas e seus
respectivos gêneros.
Nesse sentido, os alunos, quando inseridos nessa proposta de ensino, devem ser
capazes de produzir um leque diversificado de textos, reconhecendo a função de cada
um deles no processo de interação pela linguagem, pois “os conhecimentos que os seres
humanos possuem, sua identidade, seus relacionamentos sociais e sua própria vida são
em grande parte determinados pelos gêneros textuais a que estão expostos, que
produzem e ‘consomem’” (MEURER, 2000; 152). Logo,
Para que o aluno aprenda a escrever é necessário que ele, de fato,
escreva e que as situações de escrita sejam constantes e variadas.
Quanto mais o aluno escreve, quanto mais analisa o próprio
texto, quanto mais produz textos para atingir diferentes objetivos
P á g i n a | 848
em diferentes situações, mais ele pode ampliar suas habilidades de
produtor de texto escrito. (EVANGELISTA, 1998; 119 grifos nossos)
Em consonância com o CELPE-Bras, o qual prioriza o trabalho com a produção
de textos para a formação de escritores competentes, enfatiza-se a relevância dessa
atuação direta com os gêneros textuais nas aulas de PLE, o que já, por sua vez, encontra
respaldo no apresentado pelos PCN (este no tocante a Língua Materna) que entende
como competente alguém que: “ao produzir um discurso, conhecendo possibilidades
que estão postas culturalmente, sabe selecionar o gênero no qual seu discurso se
realizará escolhendo aquele que for apropriado a seus objetivos e à circunstância
enunciativa da questão” (PCN – Língua Portuguesa; 47).
O ensino de produção textual, portanto, deve se basear em um trabalho
pedagógico que vise à formação do aluno nesse perfil de escritor competente, é somente
através dessa abrangência da atividade de produção textual que o processo de ensinoaprendizagem se realiza de forma eficiente e significativa, pois construindo um texto
empírico, que parta de condições de produção funcionalmente orientadas, que tenha um
interlocutor real e esteja dentro de uma situação comunicacional concreta é que o aluno
vai se envolver e perceber o sentido de seu fazer linguístico.
•
Livro Didático de PLE
Para que o ensino de uma Língua Estrangeira se efetive, o docente deve ter a
mão uma gama de instrumentos que auxiliem na condução do processo, visando que o
aluno atinja tanto a aquisição quanto a consequente aprendizagem da língua alvo.
Muitos são os recursos possíveis para se lançar mão na tentativa de tornar o aprendente
“estrangeiro” proficiente. Sabemos que o meio mais tradicional – quando do ensino da
língua materna - é a utilização de um Livro Didático que consiga englobar os conteúdos
necessários/possíveis para dado nível de conhecimento, sendo também importante seu
papel de “bússola” no planejamento e andamento das aulas, conforme o tópico de
abordagem do momento. Desta sorte, com muita clareza, detectamos a função de
“protagonista” do Livro Didático no contexto de ensino de PLE, apesar de muitos ainda
se apresentarem de forma “coadjuvante” nesse processo. Nesse sentido, é necessário
que o LD assuma o papel de instrumento de formação discente, especificamente de
formação de aprendentes estrangeiros que devem se tornar proficientes na língua-alvo.
Em sendo assim, eles devem preconizar, além de atividades de cunho estrutural, além de
atividades que levem à ampliação vocabular – atividades de cunho semântico – é
essencial o trabalho com os gêneros textuais, as quais construam no aprendente o
conhecimento de língua voltado para a interação, para a comunicação. E será esse tipo
de direcionamento que propomos observar nos LD’s que serão descritos para reflexão.
Justificativa de escolha:
A escolha dos LD’s para análise foi possibilitada considerando duas realidades:
1. A abordagem de ensino comunicativa /interativa, que converge com o que
está subjacente ao CELPE-Bras; 2. O fato de esses livros terem um caráter de referência
no contexto de ensino de PLE. Assim, os materiais escolhidos foram: o “Novo Avenida
Brasil” (1 e 2), de autoria de Emma Eberlein O. F. Lima, Luiz Rohrmann, Tokito
Ishihara, Samira Abirad Iunes e Cristián Gonzalez Bergweiler (editora EPU). Tal
P á g i n a | 849
coletânea passou por um processo de revisão/edição rigorosa com o intuito de adequar
os textos e atividades tanto á nova realidade de comunicação existente, quanto teóricometodológica em vigência, ou seja, reestruturado a partir da necessidade de se adequar o
livro às transformações que o mundo viveu desde sua primeira edição.
Outro material selecionado para apreciação é o Horizontes: Rumo à Proficiência
em Língua Portuguesa, escrito por Adriana Almeida e Cibele N. Pedrosa, publicado em
2010 (editora LibreAr), em Buenos Aires. As autoras, professoras de PLE,
desenvolveram o material a partir de suas práticas em sala de aula, na interação com
alunos de PLE dos mais diferentes níveis. De acordo com as referidas, o método é
elaborado a partir dos princípios da abordagem Comunicativa e Intercultural.
Com base nessas descrições, partamos para a análise do pretendido. Vamos
observar de que maneira há o direcionamento à prática de produção textual norteada
pelo ensino dos gêneros textuais, constatando se, apesar de serem materiais didáticos de
comum visão de língua do CELPE-Bras, se eles vão à esteira do que se é solicitado pelo
próprio exame.
Selecionamos 3 atividades, uma em cada livro, que trazem algo relacionado ao
pretendido observar. A primeira foi retirada do LD Horizontes e traz uma proposta de
“redação”, vejamos:
Nessa atividade, fica evidenciada que a proposta é condizente com a prática de
produção textual específica ao gênero “carta”. O livro de cunho interacionistacomunicativo, prevê esse tipo de reflexão ao aluno, fazê-lo entender a realidade social
do país da língua-alvo, além de desenvolver o trabalho de produção escrita, o qual não
se baseia do nada, se constrói a partir de leituras anteriores sobre a temática incitada na
produção. Contudo, vale ressaltar que não um momento no manual em si, cujo foco seja
o gênero “carta”. Talvez seja concebido como um gênero “universal”, em que as
propriedades de produção já sejam de domínio comum, independente da língua. Outra
P á g i n a | 850
leitura estaria no entendimento de que esse foco mais detalhado não cabe ao material,
mas ao direcionamento do docente em PLE.
De modo mais abrangente, é evidente a preocupação com a criação do contexto
de produção textual, com o papel do sujeito de poder intervir nos problemas que a
sociedade apresenta. Outro recurso de construção do conhecimento se faz não só nos
textos anteriores, mas na imagem apresentada que fortifica o conhecimento adquirido
nas mensagens anteriores. Observamos que o tipo de linguagem também é suscitado
quando se diz que o aluno deve-se colocar como “presidente” de uma associação de
bairro, limitando o texto à modalidade formal da língua.
Como um todo, a atividade está condizente como que instaurado pelo CELPEBras, proporcionando o aluno de interagir na sociedade através do gênero, colocando-o
como parte, como indivíduo pensante nesse todo e não como um estrangeiro, distante de
discussões próprias da língua-alvo.
Outra atividade de relevante destaque, foi retirada do LD Novo Avenida Brasil
1. Aparentemente, o destaque é dado ao gênero “e-mail”, o que permite, a priori,
afirmar que há uma preocupação com o trabalho de gêneros textuais, contudo, ao olhar
atentamente à questão, fica evidente que a proposta não se baseia em algo tão
discursivo/textual, pois o gênero “e-mail”, serve, apenas, como pano-de-fundo da
atividade propriamente dita, conforme observamos na atividade abaixo:
A ideia central é desenvolver utilizar o gênero como matéria informativa para
que se desenvolvam as respostas dos aprendentes, sendo, então, elemento textual de
informatividade, que está para o nível do conteúdo do “e-mail”. No entanto, é possível
observar que até este recurso conteudístico do texto em questão, é desprezado na
atividade suscitado, pois a matéria de relevante é a questão verbal, a conjugação dos
verbos em destaque nos “parênteses” de cada alternativa.
P á g i n a | 851
Diante de tal realidade, é a partir de uma observação geral do livro, é possível
considerar que o trabalho com os gêneros textuais, de significativa importância no
CELPE-Bras, uma vez atuar como elemento de manifestação, que denota
conhecimento/competência linguística (em mio ao contexto, ao uso) do aprendente, é
renegado a outras questões, como no caso, estrutural. Não se pretende com isso dizer
que este tipo de reflexão, conforme aparece na atividade em voga, deve ser renegado em
prol do exclusivo trabalho com gêneros, mas é concebível que os LD’s tenham o
cuidado de atribuir esse valor nas suas páginas, pois é comprovada sua relevância para o
desenvolvimento da proficiência do falante.
A última atividade selecionada segue a mesma lógica da atividade anterior – até
porque se faz na sequência do material anterior -. Encontrada no Novo Avenida Brasil
2, a atividade apresenta o gênero “anúncio” para desenvolvimento das questões que
devem ser respondidas.
A reflexão se faz de igual modo da anterior, pois o trabalho não está focado no
gênero “anúncio”, nem em suas características estruturais, nem em características
linguísticas de desenvolvimento. Este serve de texto, cujo conteúdo serve de mote para
que as questões sejam respondidas. O diferencial está no fato da atenção ser não em
perguntas quanto aos aspectos estruturais, gramaticais da língua, todavia, o foco está no
caráter de desenvolvimento de interpretação do texto. O que não é um mau trabalho,
mas poderia ser aproveitado de modo a levar ao conhecimento do gênero “anúncio”,
mostrando seu propósito comunicativo e, por fim, levando a uma produção textual.
Portanto, com base nos expresso até aqui, para estes manuais, o trabalho com o
gênero textual ainda merece uma atenção maior. O foco deve ser variado sim, mas
interessa que o direcionamento apresentado pelo CELPE-Bras seja assumido no
trabalho em PLE, não só no que o professor deve fazer diante dessas atividades – até
P á g i n a | 852
porque é muito possível um encaminhamento aos gêneros suscitados nas atividades,
mas estando nas mãos do docente enquanto usuário do LD, ampliando seus enunciados
e propostas-, como também de forma explícita no próprio livro. Assim, o ensino de PLE
ganhará uma força maior e uma adequação aos moldes do que se tem como regulador
não oficial do ensino de PLE, a saber, o CELPE–Bras.
Conclusão
O presente trabalho se propôs à observação de algumas atividades de PLE
existentes nos LD’s selecionados para tal, com vias a reflexão sobre o que se é
desenvolvido quando o assunto é gênero textual, uma vez da aceitação de que este tipo
de ensino, pautado nas práticas de produção textual específicas aos mais diversos
contextos comunicativos, serve de aliado à uma efetivação da aprendizagem em PLE.
Aprendizagem essa diferenciada, visando à proficiência e a “desestrangeirização”
(termos cunhado por Almeida Filho, 2013) do aprendente em PLE.
Com base nisso, identificamos dois tipos de postura: a primeira, evidenciada
pelo apresentado no Livro Didático Horizontes, cujo trabalho com enfoque nos gêneros
textuais era pertinente, convergindo com o exigido pelo exame de proficiência; a
segunda postura é identificável nas atividades da coleção Novo Avenida Brasil,
apresentando uma ausência de questões específicas de ensino de gênero e de proposta
de produção textual, quando muito, os gêneros servem de recursos de informação para
que outros tipos de reflexão sejam feitos.
Portanto, finalizamos afirmando que os LD devem assumir também essa postura
de ensino de PLE, não pelo fato de que os manuais devem levar os aprendentes a se
saírem bem no exame CELPE-Bras, até porque nem todos se interessam em fazê-lo,
mas pelo fato de que este exame serve ao papel de regulador, de modelar das estratégias
de ensino de PLE que objetivam a proficiência, devendo ser assumidos no ensino como
um todo.
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P á g i n a | 855
A COMPREENSÃO LEITORA NO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA: UMA
PERSPECTIVA DA ENUNCIAÇÃO BAKHTINIANA
Antônio Flávio Ferreira de oliveira – PROLING/UFPB32
Ilderlândio Assis de Andrade Nascimento - PROLING/UFPB33
Resumo. Este trabalho objetiva investigar como a teoria da enunciação de Bakhtin e o
Círculo pode contribuir para, no ensino de Língua Inglesa, formar leitores capazes de
usar os signos nas diversas esferas de atividades sociais. Como suporte teórico,
usaremos os conceitos apresentados em Marxismo e filosofia da linguagem
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009); A estrutura do enunciado (VOLOCHÍNOV,
1930); O discurso na vida e o discurso na arte (VOLOCHÍNOV (1926); O método
formal nos estudos literários: uma introdução crítica a uma poética sociológica.
(MEDVIÉDEV, 2012); dentre outros. Como metodologia de trabalho, fundamentamos
esta pesquisa a partir de um estudo sistemático de cunho teórico, haja vista o rigor
conceitual no tocante ao desempenho lógico, a argumentação diversificada e a
capacidade explicativa nos acercamentos da teoria em questão. Os resultados estão
estabelecidos (ainda como parciais) no que conferem a compreensão leitora como o
produto da percepção da materialização da interação verbal de sujeitos históricos bem
como da forma linguística utilizada como um signo variável e flexível.
Palavras-chave: Enunciação. Compreensão leitora. Ensino. Língua.
1. Introdução
Este trabalho está, em linhas gerais, concentrado na grande área da Linguística e
de forma particular no campo dos estudos enunciativos a partir dos postulados oriundos
de Bakhtin e o Círculo. Para o planejamento deste estudo, partimos de um recorte
estabelecido a partir de alguns conceitos dessa vertente teórica. Dentre esses conceitos,
elencamos a noção de gênero discursivo, enunciação, enunciado e dialogismo, bem
como algumas categorias advindas desses conceitos.
O problema que intencionamos investigar foi elaborado a partir de algumas
perguntas exploratórias, sendo que na principal delas questiona: que contribuições os
estudos enunciativos de Bakhtin e o Círculo podem trazer para o ensino de língua
inglesa, mas precisamente para o desenvolvimento da competência leitora?. Essa
pergunta foi levantada devido ao fato dos conceitos dessa teoria apresentarem um
aparato que pode(ria) acarretar um efeito pertinente na formação do leitor no ensino de
línguas. Um dos critérios para que pudéssemos eleger essa teoria foi o fato de, no seu
campo epistemológico, ser abordado a interação como um dos aspectos principais
concernentes à linguagem. Desse modo, ao apresentarmos algumas contribuições,
entendendo-as, também, como propostas para o ensino de línguas (estrangeiras),
estamos, certamente, trabalhando com sujeitos que são formados a partir dos outros
sujeitos - sujeitos que dependem desses outros para se tornarem sujeitos.
32
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING/UFPB), sob a orientação do
Professor Doutor Pedro Farias Francelino.
33
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING/UFPB), sob a orientação do
Professor Doutor Pedro Farias Francelino.
P á g i n a | 856
Com isso, partimos da perspectiva de que a enunciação é compreendida como
materialização da interação verbal de sujeitos históricos que utilizam a língua para
expressar suas necessidades concretas. Neste sentido, o foco de investigação está na
forma assimilada na estrutura completa (linguístico-social) da enunciação como um
signo flexível e variável que é construído no processo de interação desses sujeitos
histórico-sociais.
Nosso objetivo geral destina-se, portanto, a investigar as contribuições da
enunciação bakhtiniana no desenvolvimento da compreensão leitora do estudante de
língua inglesa. Para isso, (i) pesquisamos nos estudos de Bakhtin e o Círculo postulados
que fornecessem um suporte para o desenvolvimento da competência leitora do
estudante de língua inglesa; e (ii) analisamos alguns enunciados concretos, visando
mostrar como os postulados bakhtinianos
podem respaldar teórica e
metodologicamente o ensino de leitura em aulas de língua inglesa.
Para familiarizar o nosso leitor com as terminologias utilizadas no estudo,
queremos apresentar, em primeiro lugar, a noção de compreensão leitora. A partir dessa
noção, pensamos ser possível formar leitores cada vez mais competentes e capazes de
perceberem as informações que existem à parte da estrutura verbal dos enunciados
concretos. Destarte, cabe dizer que nas bases da teoria proposta, a compreensão leitora
aponta para a formação de um leitor capaz de compreender os julgamentos de valor (as
avaliações sociais) e os presumidos (o que está além da estrutura). Essa concepção
perpassa todo esse trabalho, juntamente com as discussões sobre gêneros discursivos,
enunciado concreto, entre outros.
Diante disso, este trabalho tem sua importância, principalmente, na área de
ensino de línguas estrangeiras, devido ao fato de poder expandir as discussões sobre o
desenvolvimento de competências para a leitura em língua inglesa a partir dos
postulados da enunciação bakhtiniana e do Círculo. Vale ressaltar que não estamos nem
queremos apresentar uma proposta inaugural – já se discutem sobre esse tema –, mas
nossa intenção é apenas apresentar esse recorte feito a partir do que pudemos
compreender dessa teoria. Vale salientar que essa pesquisa não se apresenta como
conclusa. Ainda estamos em fase de desenvolvimento e, por isso, podemos retomá-la
em outro momento, até mesmo com alguns novos apontamentos no foco investigativo.
Para o desenvolvimento deste estudo, foi feita uma pesquisa de cunho teórico,
que, por sua vez, constituiu-se em um importante instrumento profícuo para as
considerações voltadas para o ensino de língua inglesa. Assim, revisitamos alguns
textos considerados clássicos da teoria bakhtiniana, a saber: Marxismo e filosofia da
linguagem, de Bakhtin[Volochínov] (2009); A estrutura do enunciado, de Volochínov
(1930), O discurso na vida e o discurso na arte, de Volochínov (1926), dentre outros.
Dito isso, apenas para mencionar a organização retórica desse estudo,
apresentamos, a seguir, alguns pontos advindos dos estudos do Círculo e, logo depois,
apresentamos uma possível análise que envolverá essa fundamentação, servindo,
consequentemente, para ilustrar um possível momento de leitura a partir do aporte
teórico dos estudos de Bakhtin e o Círculo.
2. Em Bakhtin e o Círculo: contribuições para o ensino de língua
P á g i n a | 857
Nossa intenção, ao formularmos esse suporte teórico, é discutir alguns conceitos
que são relevantes como um aparato para fundamentar a contribuição da enunciação, no
ensino de Língua Inglesa. Assim, quando pensamos em língua, somos atravessados por
várias construções teóricas que formulam e estabelecem diferentes visões de
compreender esse “ente” complexo. Por um lado, retomamos a concepção estrutural
saussureana, que apresenta a língua como um sistema de unidades linguísticas,
ordenadas por um conjunto de regras. Essa concepção apresenta uma visão imanente de
língua e, por sua vez, isso não preconiza os fatores sociais como elementos
imprescindíveis para a construção de um sistema dinâmico, flexível, capaz de ser
reformulados pelo processo das diversas interações ocorrentes dos indivíduos. Nesse
sentido, a defesa que fazemos é a de que uma proposta para o ensino de língua faz
notório considerar essa característica inerente à língua como esse sistema dinâmico para
construir sentidos nas situações de interação dos sujeitos histórico-sociais.
No entanto, ao pensarmos a língua na concepção estrutural, somos levados a
construir uma perspectiva de ensino de língua perpassado pela ideia de que os
elementos relevantes são caracterizados pela gramática, pelo léxico e pela fonética.
Transmitimos aos nossos alunos os traços de uma visão normativa tradicional, ou seja,
ensinamos apenas regras de gramáticas, tradução de palavras e formas “corretas” de
pronúncias. Esse aspecto, cabe dizer, tem sua função dentro do ensino de língua inglesa,
mas não é suficiente para abarcar toda a complexidade inerente aos usos dos enunciados
concretos. Ao reduzirmos o ensino de língua apenas aos aspectos estruturais, não damos
importância para os fatores extra-verbais, sendo que esses são, na verdade, parte
constitutiva do enunciado concreto e, portanto, dos usos da língua nas diversas esferas
de comunicação.
Desse modo, pensamos numa concepção de ensino de língua que transcende a
visão estruturalista imanente. Em sentido específico, pensamos numa concepção de
ensino não apenas fixada à estrutura linguística, mas àquela que apresenta essa estrutura
imbricada à estrutura social. Podemos denominar esse vislumbre como um recorte de
língua oriundo da enunciação pensada por Bakhtin e o Círculo. Conforme Bakhtin
(2010), os anglos e visões são diferentes entre a linguística e translinguística; contudo,
por mais que as relações dialógicas aconteçam extra-linguisticamente, esse núcleo duro,
materialidade estrutural da linguística, complementa as relações dialógicas e vice-versa,
pois esse produto da materialidade são resultados das relações dialógicas. Assim, a
Linguística (como disciplina) e a Translinguística (proposta por Bakhtin) se apresentam
não como sendo excludentes, mas em uma relação de complementaridade. Isso implica
dizer que a analise, o ensino, da estrutura linguística precisa recorrer aos achados da
translinguística porque essa última analisa os enunciados concretos, ou seja, os usos da
língua nas situações sociais, abarcando tanto o aspecto verbal quanto o não-verbal.
O enfoque teórico desse pensamento compreende a língua como um fato social
fundamentado na necessidade de comunicação que os indivíduos têm para interagir nas
diversas esferas de atividade social. Quando pensamos a língua como um fato social,
estamos diante de algo que apresenta esse fato como produto e como processo da ação
de dois indivíduos – nesse caso, não existe um sujeito passivo e um outro ativo,
enunciador e ouvinte: os dois, ao mesmo tempo, têm essa característica na sua
constituição de sujeitos que usam a língua para os seus projetos enunciativos.
Ao usar a forma normativa num determinado contexto concreto, os sujeitos
históricos materializam sua interação verbal. Assim, para expressar suas necessidades
de comunicação, esses sujeitos servem-se da língua. Isso implica que a forma linguística
usada, contextualizadamente, toma a forma de um signo que se adéqua às condições
P á g i n a | 858
concretas de uma situação (cf. FLORES, 2009). Quando percebemos a forma linguística
como esse signo dinâmico, percebemos o caráter ideológico da linguagem, bem como
apreendemos que essa ideologia é uma reprodução das estruturas sociais. Se a língua
está perpassada pela estrutura social, “os sistemas semióticos servem para exprimir a
ideologia e são, portanto, modelados por ela” (BAKHTIN [VOLOCHÍNOV], 2009, p.
115).
A língua não está calcada num sistema de regras imutáveis, contudo, esse
sistema de signos dinâmicos está relacionado, indissoluvelmente, às condições pelas
quais os indivíduos necessitam para agirem socialmente. No que diz respeito aos signos,
na concepção de Bakhtin e o Círculo, estes estão relacionados à ideologia, ou seja, isto
implica numa relação direta entre as unidades da língua e suas funções na sociedade.
O signo é perpassado pelo produto da criação ideológica, ou seja, pelas
concepções de mundo e pelas crenças que formulam as diversas esferas de atividades
sociais. Como afirma Medvedev (2012, p. 50) “cada produto ideológico é parte da
realidade social e material que circunda o homem”. Como um produto ideológico, o
signo está inserido na realidade social, pois, nesse caso, a língua, além de expressar,
está atravessada pelas relações e pelas lutas sociais e, naturalmente, serve de
instrumento e de material para essas lutas e expressões (cf. BAKHTIN
[VOLOCHÍNOV], 2009).
Se por um lado, “o locutor serve-se da língua para suas necessidades
enunciativas concretas”, por outro, esse locutor “utiliza as formas normativas num
contexto concreto” (Ibid, p. 95 e 96). Essa relação corrobora a dependência que existe
entre a estrutura linguística e a estrutura social. Para produzir sentido pelo uso concreto
da língua, é preciso agregar os sistemas semióticos aos sistemas ideológicos.
Ao pensarmos nessa proposta, retomamos a noção de enunciado, presente no
pensamento desenvolvido por Bakhtin e o Círculo. A noção de enunciado está
relacionada ao uso concreto da língua. Esse uso concreto diz respeito ao emprego da
língua nas diferentes esferas de atividades sociais. Isso compreende que a língua está
imersa na história, na cultura, na ideologia e em outros aspectos sociais. O enunciado,
nesse sentido, constitui a unidade real da comunicação verbal.
Considerando que a língua é empregada por enunciados concretos, o uso da
linguagem apresenta um caráter com muitas formas. Para isso ser realizado, os tipos de
enunciados estáveis são organizados em forma de gêneros discursivos que organizam e
constroem a forma da gramática e do estilo do enunciado. (cf. VOLOCHÍNOV, 1930).
Esses gêneros são as espessuras para a expressão dos fatos sociais e linguísticos,
elaboradas a partir de cada campo de uso da língua. De acordo com Bakhtin (2011, p.
268), “são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da
linguagem”, bem como expressam “o confronto de interesses sociais nos limites de uma
só e mesma comunidade semiótica” (BAKHTIN [VOLOCHÍVOV], 2009, p. 47).
As condições para a existência e a expressão da língua estão sob a existência de
uma dialogia marcada pela interação dos indivíduos socialmente organizados, pois, para
produzir comunicação, os sujeitos se posicionam num ambiente social e histórico,
determinado (i) pela situação: que apresenta e relaciona onde, quando, quem, o que – os
elementos determinantes da avaliação do evento, caracterizadores do tempo, do espaço,
do tema e dos interlocutores; (ii) pelo auditório social: que relaciona o ambiente social
onde ocorrem as deduções e as avaliações do evento.
P á g i n a | 859
Já que o uso da língua acontece por meio de enunciados, vejamos alguns pontos
relevantes, concernentes a essa unidade real da comunicação verbal. Em primeiro lugar,
o enunciado, para refletir e refratar as condições e finalidades dos campos de atividades
sociais, está ligado ao tema, ao estilo e à composição. Em segundo lugar, é
compreendido como uma unidade de comunicação discursiva que indica uma posição
ativa responsiva. Além disso, está repleto das tonalidades dialógicas. Por último,
apresenta uma parte verbal e outra extra-verbal (VOLOSHINOV, 1926).
Tema, composição e estilo são elementos do enunciado que, respectivamente,
indicam a expressão criativa e dialógica ligada à situação histórica concreta com sentido
diferente para cada enunciado; a organização parcial e total dos componentes de cada
enunciado; e, por último, a expressão particular dos indivíduos, construída através da
orientação social (cf. FLORES, 2009). Dessa forma, por esses elementos do enunciado,
percebemos uma relação fechada entre o sujeito usuário da língua, o seu ouvinte, o
contexto histórico-social, o diálogo entre os sujeitos, entre os enunciados e entre os
discursos, bem como a organização que cada sujeito atribui ao utilizar os signos no
processo de comunicação social. Percebemos que por esses elementos são determinadas
as infinitas possibilidades de uso da língua no processo de interação social.
Pela posição ativa responsiva, entendemos que, nas relações sociais, o locutor
apresenta uma forma avaliativa de percepção e isto, por sua vez, indica que esse locutor
apresenta uma avaliação presumida antes mesmo que este assuma a fala (cf. SOBRAL,
2009). Desse modo, podemos destacar que a orientação social do enunciado está
configurada por uma capacidade de compreensão que auxilia para gerar uma resposta
real ou virtual (cf. VOLOCHÍNOV, 1930).
Quanto às tonalidades dialógicas do enunciado, podemos destacá-las como uma
orientação em direção ao outro: a palavra é usada de um sujeito para outro. Nesse
sentido, é imprescindível destacar que, nessa orientação, existe um peso hierárquico que
categoriza a classe social na qual o indivíduo está inserido, bem como outros aspectos
referentes à situação financeira, à profissão, à função, dentre outros elementos (cf.Idem,
1930). Sendo assim, podemos conferir às tonalidades dialógicas como um produto da
interação entre os locutores.
Por último, destacamos a parte verbal e a extra-verbal do enunciado: a relação
entre a estrutura linguística e a estrutura social da linguagem. Dessa maneira,
percebemos que a interação dos sujeitos é ocorrida pelo prisma de um horizonte social,
bem como pelo horizonte da moral no tempo e no espaço da interação, pelo auditório
social, pela situação (as condições que dão forma a enunciação) e pelos participantes (a
determinação da forma ou da própria enunciação). Tanto a situação quanto o auditório
não são exprimidos, mas subentendidos (pelo espaço e tempo do evento, objeto ou tema
do enunciado e a posição dos interlocutores diante do fato: a avaliação) (cf.
VOLOCHÍNOV, 1930).
Na perspectiva da linguagem pelas vias da enunciação bakhtiniana e o Círculo,
os sujeitos não produzem sentenças, orações e frases – produzem enunciados concretos,
ou seja, tipos de comunicação orientada pelos fatores sociais atravessados pela ideologia
e pela história. Nesse sentido, o signo é constituído pelos aspectos verbais e não-verbais
materializados pela imagem, pela palavra e pelo movimento do corpo, que formam o
conteúdo semiótico ideológico da consciência. Dessa forma, o sentido do signo é
estabelecido, flexivelmente, pela avaliação ideológica expressa pela noção do falso e do
verdadeiro, do bom e do ruim, ou seja, pela oposição de aspectos que constituem a
validade da palavra (cf. BAKHTIN [VOLOCHÍNOV], 2009).
P á g i n a | 860
A compreensão leitora, a qual pretendemos delimitar pela enunciação
bakhtiniana, é compreendida como uma condição que o estudante de Língua Inglesa
terá para compreender o uso dos signos ideológicos nas diversas esferas de atividades
sociais. Dessa forma, os alunos podem compreender os aspectos reproduzíveis e
repetíveis da língua (a língua como sistema de signos), bem como a língua na condição
de enunciados (manifesta nas estruturas sociais). Nesse segundo caso, serão
compreendidos (a) o projeto discursivo (o querer dizer do autor), e (b) a realização
desse projeto (a produção de enunciados). No plano da língua compreendem-se a
situação social e os interlocutores e no plano discursivo a situação social e os
interlocutores.
Feito esse apanhado teórico, passamos a discutir a compreensão leitora no
ensino de língua inglesa a partir do enfoque teórico da enunciação bakhtiniana. Para
isso, recorremos a alguns enunciados concretos para ilustrar como o ensino de língua
inglesa poderia ocorrer considerando uma visão enunciativa para promover o
desenvolvimento da competência leitora.
3. A compreensão leitora no ensino de língua inglesa na perspectiva da enunciação
bakhtiniana
Pensando nos conceitos advindos da enunciação bakhtiniana, que foram
abordados supracitamente, queremos retomá-los, nesse momento do trabalho, a partir de
possíveis análises em tópicos que são usados no ensino de Língua Inglesa.
Tomemos como base o Present Simple para esta primeira análise. Ao pensarmos
a língua a partir de uma concepção estrutural, esse tópico será abordado apenas pelas
vias das regras gramáticas em interface com os aspectos lexicais e fonéticos.
Especificamente, apresentaríamos aos nossos alunos as regras gramaticais, que
envolvem a combinação dos morfemas “s”, “es” e “ies” na terceira pessoa do singular
(he, she it), bem como sua regra geral. Além disso, poderíamos apresentar as regras
fonéticas para suas devidas pronúncias, e uma possível tradução entre os campos
lexicais que envolvem a língua nativa e a língua estrangeira.
Por outro lado, no que diz respeito à concepção de língua pelo plano da
enunciação bakhtiniana, o Simple Present seria tomado não como esse conjunto
descrito, mas como uma estrutura linguística perpassada pela estrutura social. Sendo
assim, deixaríamos de lado o foco apenas nas regras gramaticais e partiríamos para o
uso dessa estrutura nas diversas esferas de comunicação social. Poderíamos apresentar o
uso desse tempo verbal para aquelas situações que pretenderíamos falar de coisas em
geral e de coisas que acontecem repetidamente. Nesse caso, o que estaria em jogo não
era apenas a forma de como os interactantes usariam esse tempo verbal, mas as próprias
situações sociais em que essa forma estaria sendo usada no processo de interação de
sujeitos históricos. Estariam em jogo as diversas situações em que essa forma linguística
(única) seria retomada nas diferentes estruturas sociais, para produzir sentidos diversos.
Vejamos a seguinte figura:
P á g i n a | 861
http://www.slideshare.net/drusiliaygouache/frequency-adverbs-10037409
Nessa figura, percebemos que o interlocutor L (à esquerda) está usando a língua
para exprimir sua necessidade de comunicação sobre como (qual o meio de transporte,
qual a frequência de uso desse meio de transporte) o interlocutor M (à direita) vai ou
chega à escola. O interlocutor L está usando a estrutura do Simple Presente, atravessada
pelas intenções, pelas relações estabelecidas entre os interlocutores, pela estrutura social
que, presumidamente, pode apresentar uma avaliação ou julgamento sobre a possível
condição social do interlocutor M. Dessa forma, M, ao dizer que vai à escola sempre de
carro, está se inserindo àquela classe social na qual as pessoas têm um carro próprio
para ir à escola. E quando diz: “eu vou sempre de carro”, por este “sempre” podemos
entender que M não precisa tomar um ônibus para tal feito – isto implica que, no caso
da ida à escola, M não passa pelas mesmas situações (ônibus lotado, atraso, pessoas mal
educadas, etc.) que passam a maioria das pessoas que não pertencem a sua classe social.
Sendo assim, podemos perceber que essa materialidade estrutural, o linguística, não é
suficiente para estabelecer relações de sentidos, mas os sentidos desse enunciado são
construídos em decorrência dos fatores extra-linguísticos, daquilo que não é dito, mas
compõe o sentido.
Ao usar a língua para a realização de um projeto enunciativo, pensamos na ideia
de um contexto concreto e de sujeitos históricos que materializam enunciações verbais.
Na figura a seguir, podemos perceber essa relação:
P á g i n a | 862
http://www.cakechooser.com/500/cake-boss-frog
Se fôssemos apresentar aos nossos alunos o signo “love” inserido,
imanentemente, na estrutura linguística, estaríamos diante de alguns problemas. Em
primeiro lugar, partiríamos para a noção semântica do termo, oriunda de um conceito de
dicionários – assim, compreenderíamos “to Love” como o verbo amar. Em segundo
lugar, não faríamos um julgamento de valor desse signo em uma perspectiva extraverbal – isto deixaria de fora a noção dos presumidos, ou seja, aquilo que não é dito na
materialidade linguística. Quando pensamos na ideia de enunciado concreto e de
sujeitos históricos, nos deparamos com o uso desse signo (love) deslocado do
significado semântico da estrutura linguística. Ao analisarmos uma ocorrência de uso
desse enunciado em uma determinada situação, não partiríamos de categorias
gramaticais e sintáticas pré-estabelecidas, isso porque é o uso que determina a função de
cada elemento linguístico, logo um mesmo vocábulo pode exercer várias funções
sintáticas dependendo das situações de uso. Com isso, entendemos ser fundamental o
ensino de língua partir sempre de um gênero discursivo, tendo em vista que neles os
usos se manifestam, sendo os gêneros organizadores das esferas de ação comunicativa.
Nessa concepção de ensino, ainda, mostraria que o to love pode adquirir diversos
sentidos em decorrência de vários fatores como, por exemplo, os interlocutores
envolvidos na interação, a situação econômica dos interlocutores, a tonalidade de voz
e/ou o uso de determinados recursos linguísticos, a situação de uso, entre outros. Esses e
outros aspectos, embora não estejam estritamente inscritos na materialidade linguística,
são elementos constitutivos do sentido do enunciado concreto.
Com isso, no enunciado em análise, o sentido do signo linguístico é construído
em total relação com o conteúdo imagético (o não-verbal) e com outros elementos
linguísticos que estão presentes na cena, a saber, a palavra vírus grafada na tela do
computador de Garfield. Ademais, percebemos que o eu amo meu computador não
carrega o sentido corriqueiro da expressão, ou seja, o verbo amar agrega outros sentidos
àquele comumente conhecido. Esse sentido é construído ao consideramos os aspectos
imagéticos do enunciado – uma motorserra e a expressão facial do enunciador. Isso
sinaliza para o fato de que apenas o deslocamento do verbo da situação de uso,
explorando apenas o significado semântico do signo não faz jus ao sentido real do uso.
P á g i n a | 863
Nessa situação específica, o uso do signo em questão, será para dar sentido ao fato do
enunciador não gostar do seu computador – isso é contrário ao pensamento estrutural de
“to love”. Por assim dizer, percebemos o signo (love) como algo dinâmico, flexível, em
outras palavras: algo que se adéqua às condições concretas de uma situação.
Pensando na ideia de produção de sentido pelo uso da língua, retomamos a
noção de enunciado desenvolvida por Bakhtin e o Círculo. Nesse caso, pensemos em
tipos relativamente estáveis de enunciados, ou seja, em gêneros do discurso. Isto
significa que os gêneros são formas que retocam e imprimem essa ideia de acabamento
no enunciado, pois, sendo assim, passamos a compreender que os gêneros do discurso
nos dão a ideia de enunciados particulares que são usados em uma dada esfera da
comunicação humana. Nisso reside a importância de trabalharmos não com os
elementos linguísticos extraídos dos contextos de uso, mas em trabalhar, em aulas de
língua inglesa, com os gêneros discursivos. Tomemos como exemplo uma tira de
Garfield, para apresentar como podemos usar um gênero do discurso no ensino de
Língua Inglesa. Vejamos a tira a seguir:
http://www.anglictina-snadno.estranky.cz/clanky/garfield/comics-3.html
Numa proposta de ensino de língua inglesa, primeiramente seria importante
entender o gênero e sua função. Desse modo, no caso em análise a tira cômica se
caracteriza como um gênero do discurso que, por sua vez, apresenta uma materialidade
verbal, geralmente, curta e uma materialidade não-verbal formada por diversos
elementos imagéticos nas suas mais amplas variedades. Apresenta uma linguagem
jocosa, pela qual predomina a crítica e o humor. A apresentação desses aspectos mais a
função que esse gênero exercer no meio social seria um dos primeiros passos no contato
com o gênero. Isso já abre a possibilidade de construção de um horizonte de
P á g i n a | 864
expectativas que o gênero pode preencher e, ao mesmo tempo, faz com que os alunos
adquiram essa competência de leitura, percebendo que cada gênero tem sua forma
composicional em função do uso.
Nesse segundo momento da análise, queremos apresentar o tópico gramatical
Modo Imperativo, para delimitarmos a influência da enunciação bakhtiniana sobre o
ensino de Língua Inglesa. Já que nessa concepção de língua compreendemos a estrutura
linguística perpassada pela estrutura social, percebemos que o professor de Língua
Inglesa pode usar nesse gênero do discurso a estrutura gramatical em questão, nas suas
formas negativa e afirmativa.
Através dessa estrutura gramatical, podemos usar a linguagem para pedir, dar
ordens, proibir, permitir, etc. Ao exprimir a materialidade linguística Do not drink my
water (não beba a minha água), o enunciador usa “Do not” para comunicar algo que não
deve ser feito. Ao usar drink e water, temos a certeza de que esse enunciador está
proibindo alguém de beber a sua água. Essa relação semântica pode ser vista, no modo
imperativo, pela relação dos componentes de negação (do not) e dos dois itens lexicais
drink e water.
A partir dessa relação entre os termos da estrutura linguística, podemos perceber
que essa materialidade significa, em sua especificidade, a proibição de algo. As demais
sequências da tira, só que de uma forma afirmativa no uso da estrutura linguística, no
campo da semântica também vão trazer a emissão de outras proibições. Isto pode ser
visto com o uso dos termos keep your paws off (tire suas patas) e stop linking (pare de
lamber).
No entanto, essa materialidade linguística não produz sentido apenas por sua
capacidade sintática, semântica e lexical. Tomando como exemplos apenas as
sequências materiais linguísticas, teríamos alguns problemas com relação à produção de
sentidos desse enunciado. Esses problemas acontecem porque não estamos falando
(ainda) de uma relação estreita entre o linguístico e o visual. No caso da proibição para
não beber a água, percebemos (pelo imagético) que ODIE (o cachorro) já está bebendo
a água e essa materialidade vai servir para expressar uma ordem (para ele parar de beber
a água) haja vista ele já está bebendo-a. No caso da proibição para tirar as patas da
batata, percebemos que GARFIELD, ao contrário de ODIE, não está pegando nas
batatas e essa materialidade além de exprimir uma ordem vai também exprimir uma
advertência. Sendo assim, compreendemos que só o uso da materialidade linguística
desprovida da materialidade não-verbal pode trazer alguns problemas no tocante à
produção de sentidos.
Ao mencionarmos a relação que existe entre o linguístico e o imagético,
adentramos ao campo da ideologia e, nesse sentido, passamos a perceber a organização
e a estrutura do gênero (tira cômica) como um todo. Nessa relação, a materialidade
imagética (ODIE bebendo a água e GARFIELD não colocando as mãos nas batatas) vai
produzir os sentidos que estão faltando ao plano linguístico. Percebemos que a
existência e a expressão da língua no plano dialógico estão sobre a condição da
interação dos sujeitos socialmente organizados, pois percebemos que, ao produzir
comunicação, os sujeitos se posicionam num ambiente histórico social, caracterizado
pela situação e pelo auditório social.
No que diz respeito à situação e ao auditório social, nessa tira percebemos que os
indivíduos estão em um local apropriado para se fazer uma refeição (numa cozinha);
que estão em número de três e que um deles (o menino) sobressai aos demais (ODIE e
GARFIELD).
P á g i n a | 865
Portanto, vemos que, assim como a estrutura linguística, o material não-verbal
também tem sua função nesse processo interativo de construção de sentidos. E a partir
da proibição já vista no material linguístico, percebemos que as expressões faciais de
expectativa, alegria, tristeza, ansiedade e medo, vão produzir, em harmonia com o
linguístico, os sentidos dessa enunciação. Dessa forma, no plano da enunciação
bakhtiniana, ao pensarmos uma proposta que vise desenvolver a competência leitora dos
alunos, pretendemos formar leitores não apenas de diferentes materialidades linguísticas
– um leitor de regras gramaticais. Nossa real intenção é fazer com que esses alunos
compreendam o uso dos signos ideológicos nas diversas esferas de atividades sociais. É
torná-los leitores que sejam capazes de perceber que os sentidos perpassam a
materialidade linguística. Leitores que sejam capazes de avaliar o projeto discursivo de
uma enunciação e a realização desse projeto.
4. Conclusão
A relação que existe entre o linguístico e o social constitui a base para que o
leitor possa construir sentidos dos enunciados concretos que circulam nas diversas
esferas de atividades sociais. Quando intencionamos formar um leitor é preciso levar até
ele o fato de que a língua vive imersa no plano ideológico, sendo ela produto e
produtora de posições sociais. Dessa forma, para conferir sentidos a uma dada
enunciação, o sujeito necessita ir além dos componentes da gramática, da fonética e do
léxico. Não podemos pensar nesse leitor como um sujeito que estanca seu processo de
leitura nos componentes estruturais. Contudo, se esse leitor direcionar a necessidade de
leitura apenas para essa materialidade, vai lhe faltar a materialidade não-verbal, o extraverbal, o não-dito, o pressuposto para ocasionar uma totalidade no processo de interação
e, posteriormente, causar a esse sujeito uma perda no que confere o sentido inserido na
ideologia e na história.
Como dissemos nas considerações introdutórias, este trabalho ainda não está
concluso. Por outro lado, com o desenvolvimento de nossas pesquisas, chegaremos cada
vez mais próximos de estabelecer conclusões mais coerentes no que diz respeito as
contribuições de Bakhtin e o Círculo para o ensino de língua, mas precisamente para o
ensino de língua inglesa. Ainda precisamos de mais reflexões sobre essa teoria e o
objeto de investigação do nosso estudo. Sendo assim, deixamos parcialmente em aberto
as conclusões sobre nossos achados nesse campo de estudo ainda tão complexo, pois,
como essa teoria é relevantemente ampla e não podemos encontrar e reunir tudo que
queremos em um compêndio manualístico, continuaremos nossas pesquisas e
procuraremos enxugar de forma mais pertinente nossas discussões.
Referências:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. [prefácio à edição francesa Tzvetan
Todorov; introdução e tradução do russo Paulo Bezerra]. 6. ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2011. – (Coleção Ensino Superior). 476p.
______. (VOLOSHINOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009.
P á g i n a | 866
______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. P. Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010.
FLORES, Valdir do Nascimento. Dicionário de linguística da enunciação. São Paulo,
Contexto, 2009.
MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch, 1891 – 1938. O método formal nos estudos
literários: uma introdução crítica a uma poética sociológica. [Pável Nikoláievitch
Medviédev; tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo]. São
Paulo: Contexto, 2012. 269 p.
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de
Bakhtin. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2009, 175p.
VOLOCHINOV. [1926]. Discurso na vida e na arte: sobre a poética sociológica.
Trad. de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza da edição inglesa de TITUNIK, I. R.
“Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics”. In:
VOLOSHINOV, V. N. Freudism. New York: Academic Press, 1976.
_______. Estrutura do Enunciado. [1930]. 2005. Tradução de Ana Vaz para fins
didáticos.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Nababo.
P á g i n a | 867
A MARCA DE CRAIG THOMPSON NO CENÁRIO DOS ROMANCES
GRÁFICOS
Rossana Paulino de LUNA
Josilene PINHEIRO-MARIZ
Resumo: As Histórias em Quadrinhos (HQ), ou graphic novels, constituem-se em uma
categoria que vem se renovando dentro de uma produção que não tem mais apenas valor
de entretenimento, mas também literário. Um dos autores que vem se destacando nesse
âmbito da literatura é o premiado autor e desenhista Craig Thompson, cujas principais
obras são Retalhos (2003) e Habibi (2011) – ambos romances gráficos, sendo o
primeiro uma narrativa autobiográfica e o segundo um conto de fadas que se dá em um
ambiente ficcional islâmico. Mesmo levando-se em conta que as duas propostas dos
livros sejam diferentes, alguns temas da primeira obra são recorrentes na segunda,
como: laços afetivos, familiares, conflitos interiores religiosos e abuso sexual. Assim,
este trabalho se propõe a apresentar o autor Craig Thompson e comentar alguns de seus
principais temas, discutindo como as experiências pessoais do autor se refletem no seu
trabalho e, por sua vez, o que esses temas revelam sobre a sociedade em sua
configuração atual. Destacamos ainda o apelo desses temas para os jovens, principal
público alvo das obras de Thompson, culminando em uma reflexão sobre a relevância
de romances gráficos para os estudos da literatura para além da norte-americana,
confirmando como tais obras se constituem em um valoroso convite para o mundo
literário.
Palavras-chave: Romances gráficos, Craig Thompson, Retalhos, Habibi.
1. Introdução
“Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me contou
que somos feitos de histórias", disse certa vez o renomado autor Eduardo Galeano
(2012); e a matéria que nos constitui – segundo Galeano – tem ganhado cada vez mais
espaço na arte sequencial estadunidense (na forma de HQ, também chamadas de
Graphic Novels). Porém, “[...] apenas aqueles que realmente pensam fora da caixa
podem transformar um agora tão comum método de comunicação em massa em uma
arte verdadeiramente excepcional” (HELLER, 2005, p. xvi).
Craig Thompson (21.09.1974) pode ser considerado um desses romancistas
gráficos que conseguem “pensar fora da caixa”. Em 2004, o autor recebeu como
reconhecimento pelo seu trabalho Retalhos (2003), o Eisner Award34 de melhor Best
Graphic Album e Best Writer/Artist. Pela mesma obra, ele recebeu dois Harvey Award e
dois Ignatz Award. Oito anos depois, Thompson foi mais uma vez premiado com um
Eisner Award dessa vez pela obra Habibi (2011).
Sendo Retalhos (2003) uma obra autobiográfica e Habibi (2011) um conto de
fadas que se dá em um ambiente ficcional islâmico – duas propostas, factualmente,
distantes uma da outra – talvez fosse difícil encontrar semelhanças nos dois escritos;

E-mail: [email protected] - PET-Letras/UFCG
E-mail: [email protected] - UFCG
34
Prêmio considerado pela crítica especializada como o Oscar da indústria dos Quadrinhos.

P á g i n a | 868
todavia, mais de um tema em comum pode ser identificado nas as duas obras, a exemplo
de: laços afetivos e familiares, conflitos interiores e religiosos; e, abuso sexual. O que
comprova que não há só muita vida na literatura, mas que há muito da vida na obra
literária. As experiências pessoais de Thompson se refletiram, então, para além do seu
romance autobiográfico, camuflando-se na trama do seu trabalho subsequente.
Com estas considerações, este trabalho se propõe a apresentar o autor Craig
Thompson e comentar alguns dos temas verificados em suas duas principais obras
(supracitadas), discutindo como as experiências pessoais do autor se refletem no seu
trabalho; e, por sua vez, o que esses temas revelam sobre a sociedade em sua
configuração atual. Ressaltaremos, também, o apelo que tanto os temas como o gênero
romance gráfico em si pode exercer sobre os jovens, ponderando acerca de como tais
obras podem ser um valoroso convite para o mundo da mimese.
Contextualizada a pesquisa, seguiremos com uma breve recuperação teórica no
tocante às HQ ou Romances Gráficos e apresentaremos, então, um resumo de Retalhos
(2003) e de Habibi (2011) – os quais constituem corpora do nosso artigo. Na sequência,
elencaremos os temas recorrentes nas duas obras e, enfim, traremos algumas discussões
quanto à relevância do gênero HQ para os estudos da literatura além da norteamericana.
2. Decodificando imagens: o jovem leitor diante da multimodalidade dos textos
Muito tem se falado sobre o descaso dos jovens para com a leitura; no entanto,
acreditamos ser necessário refletir sobre essa ideia bastante difundida, sobretudo, na
academia. Acerca disso, Mendonça (2002) comenta:
Afirmações do tipo ‘O jovem não lê’ não encontram respaldo
empírico, quando se trata de determinados objetos de leitura. É fato
incontestável que jovens leitores (e nem tão jovens assim) deleitam-se
com as tramas narrativas de personagens diversos, heróis ou antiheróis, montados através do recurso da quadrinização. (MENDONÇA,
2002, p. 194).
Pelas palavras de Mendonça (2002) podemos concluir que a questão não é que
os jovens não leiam, mas que eles não leem o que (muitos) professores bem
intencionados ou exames como vestibulares e pais apregoam que seja uma leitura
válida. Muitos dos jovens de hoje – “esses que não leem” – são adeptos de leituras de
HQ, mangás e novelas gráficas. As novelas gráficas, bem como os demais gêneros
citados, “estão ainda lutando por aceitação como literatura e tudo que este rótulo
implica35” (BRENNER, 2007, p. IX).
Brenner (op. cit.) coloca ainda que bibliotecários, ao lado de autores de
quadrinhos, editores, revisores e outros advogados do gênero em questão, estão
finalmente fazendo progressos no que diz respeito à comprovação da qualidade destas
35
“Graphic novels as a format are still struggling for acceptance as literature and everything that label
implies” 35” (BRENNER, 2007, p. IX). Todas as passagens do texto de Brenner (2007) aqui apresentadas,
bem como as de Kress (1999), foram traduzidas por Rossana Luna para este trabalho.
P á g i n a | 869
obras, muitos alegando o fato de que a arte sequencial não é mais apenas para crianças.
De forma que, nos Estados Unidos: “[...] O crescente reconhecimento da variedade e da
qualidade do trabalho que é produzido no meio é animador” (BRENNER, id. ibid., p.
IX)36.
Conquanto o debate acerca do valor literário de novelas gráficas ainda não tem
um fim, podemos (ao menos) deduzir o porquê do atrativo desse gênero para os jovens.
Esse atrativo jaz na multimodalidade da obra, uma vez que ainda que se constituam
como um gênero de tipo textual narrativo, os “... quadrinhos são uma narrativa gráficovisual, impulsionada por sucessivos cortes, cortes estes que agenciam imagens
rabiscadas, desenhadas e/ou pintadas” (CIRNE, 2000, apud MENDONÇA, 2002, p.
195); assim, os quadrinhos fazem uso de mais de um recurso semiótico para a
construção de histórias e sentidos.
É fato que todos os textos são multimodais, como Kress (1999, p. 187) pontua,
ainda que apenas alguns sistemas de comunicação e representação sejam amplamente
reconhecidos como multimodais, como é o caso dos quadrinhos que envolvem pelo
menos dois tipos de letramentos e modalidades comunicativas: o verbal e o visual.
Kress (1999) disserta:
Ao longo das últimas duas ou três décadas, uma revolução ocorreu na
área de comunicação, que nos obriga a repensar o panorama social e
semiótico das sociedades ocidentais "desenvolvidas". O efeito dessa
revolução foi desalojar a linguagem escrita da centralidade que tem
sido a ela atribuída na comunicação pública. Talvez o exemplo mais
óbvio seja a crescente proeminência - o domínio mesmo - do visual
em muitas áreas da comunicação pública também. Enquanto isso é
óbvio, as implicações dessa mudança não começaram, em nenhum
sentido, a serem delineadas ou avaliados em qualquer forma
totalmente consciente, consistente e coerente. (KRESS, 1999, p.
182).37
É possível que essa preferência dos jovens pela arte sequencial seja uma das
consequências ainda não exatamente traçadas que Kress (op. cit.) menciona.
Devemos considerar, então, a afirmativa de Brenner (2007):
Não há dúvida de que vivemos em um mundo multimídia. Crianças e
adolescentes crescem com habilidades que as gerações mais velhas
não têm, desde a navegação em um computador com instintiva
36
“…the growing recognition of the variety and quality of work that is produced in the medium is
heartening.” (BRENNER, id. ibid., p. IX)
37
“Over the last two or three decades a revolution has taken place in the area of communication which
forces us to rethink the social and the semiotic landscape of Western 'developed' societies. The effect of
this revolution has been ascribed to it, in public communication. Perhaps the most obvious example is the
increasing prominance - dominance even - of the visual in many areas of the public communication as
well. While this is obvious, the implications of that shift have not in any sense begun to be drawn out or
assessed in any coherent, overt, fully conscious, and consistent fashion.” (KRESS, 1999, p. 182)
P á g i n a | 870
facilidade, até criar uma história a partir de [...] imagens intermitentes
de vídeos musicais de dois minutos. (BRENNER, 2007, p. XIII).38
Brenner (2007, p.XIV) ainda traz a seguinte consideração: “Quadrinhos e
graphic novels são excelentes exemplos de uma fusão de letramento visual com o
letramento tradicional baseada em texto”.39 Assim sendo, é importante observar que não
só os jovens não estão lendo menos, mas que eles estão se engajando em diferentes
tipos de leituras: “A leitura de quadrinhos é uma habilidade adquirida para muitos, mas
é cada vez mais um conhecimento instintivo para as crianças e adolescentes que
crescem em um mundo que combina texto e imagem o tempo todo” (BRENNER, 2007,
p. XIV)40.
Não se intenciona, ao apregoar a dinamicidade e valor das novelas gráficas,
negar qualquer valor contemporâneo à literatura tradicional baseado no texto verbal
escrito; ora, busca-se, sim, frisar que este gênero é válido e rico e pode ser a porta de
entrada para os jovens leitores vivenciarem cada vez mais as ofertas que o mundo
literário oferece, podendo inclusive instigar a curiosidade para os clássicos que as
gerações anteriores e os intelectuais tanto prezam, como Brenner (2007) explica:
[...] nenhuma dessas novas mídias livros substitui livros ou a leitura
tradicional, eles simplesmente acrescem à pilha do que está
disponível. Se os adolescentes acham valiosas as narrativas em
formatos que os bibliotecários raramente leem, como podemos
conectar com as gerações mais novas? Devemos encontrar os
adolescentes no meio do caminho [...] (BRENNER, 2007, p. XV) 41.
A escola, portanto, deve suprir esse abismo entre o tipo de literatura que o jovem
busca e a que ela oferece, enxergando, nas novelas gráficas, a poderosa ferramenta
pedagógica que elas podem vir a ser. Considere-se também a complexidade das obras
do gênero a nossa disposição, atualmente, que encadeiam não só diversos tipos de
letramentos, permitindo a exploração de vários meios em que é possível produzir
sentidos; mas, também, diversas possibilidades de crítica e observação de fatos sociais
e, promover, assim, o desenvolvimento de estudantes não apenas como leitores, mas,
em especial, como seres humanos – afinal, o que não é a literatura se não a arte em
favor da nossa humanização e desenvolvimento?
38
“There is no doubt that we live in a multimedia world. Kids and teens grow up with skills that older
generations lack, from navigating a computer with instinctive ease to creating a story from the jump-cuts
and flashing images oftwo-minute music videos.” (BRENNER, op. cit, p. XIII).
39
“Comics and graphic novels are excellent examples of a melding of visual literacy with traditional textbased literacy.” (BRENNER, id. ibid, p.XIII)
40
“Reading comics is a learned activity for many but is more and more an instinctive understanding for
children and teenagers growing up in a world that combines text and image all the time”. (BRENNER,
2007, p. XIV)
41
“[…] none of these new media replace books or traditional reading—they just add to the pile of what’s
available. If teens find valuable narrative in formats librarians rarely read, how are we to connect with
newer generations? We must meet teens halfway […]”. (BRENNER, 2007, p. XV)
P á g i n a | 871
3. A colcha de retalhos literária de Craig Thompson: Retalhos e Habibi
Como já foi anteriormente mencionado, Retalhos é um romance autobiográfico.
Nele, Thompson retrata episódios da sua vida, desde a infância até o começo da vida
adulta, na fria Winscosin, localizada no centro-oeste Estadunidense.
Na obra, ele transmite os seus
temores em relação a Deus, seus medos e
dúvidas acerca da religião em que foi
criado. Comenta sobre a relação conflitante
com o irmão mais novo e o afastamento
emocional que se implantou entre eles
enquanto cresciam.
Quando conhece Raina, uma garota
de espírito livre, Craig se apaixona pela
primeira vez. A descoberta do amor é tão
decisiva na vida dele, que finda por
modificar toda a suas perspectivas de vida,
de espiritualidade e do próprio amor –
destaque-se que não há como dissociar
nenhum desses elementos da sua própria
arte. Peagler (2011) pontua que Retalhos
(2003) vendeu milhares de exemplares e se
tornou a porta de entrada para muitos novos
leitores.
Figura 1 – Capa do livro Retalhos, (THOMPSON,
2003)
Já Habibi (2011) conta uma história
de amor, embora seja um pouco mais
cortante do que Retalhos. O livro retrata a
saga de dois escravos fugitivos, cujos
destinos parecem ser sempre o de se perder
um do outro, para (apenas depois de muita
contenda) encontrarem-se. Os protagonistas
são Dodola e Zam, que crescem juntos no
deserto em um navio naufragado na areia e,
com o tempo, uma relação que parecia ser
de mãe e filho vai ganhando uma face mais
conflituosa. Pelas narrativas de Dodola
para Zam, conhece-se um pouco da origem
do islamismo e suas tradições, em narrativas
que o que tem de mágicas também tem de
filosóficas. Conquanto seja ambientado nos
dias atuais, Habibi (2011) não se passa em
nenhum país do nosso globo, embora se
remeta a cultura oriental islâmica, a terra de
Figura 1 – Capa do livro Habibi, (THOMPSON, 2011). Dodola e Zam é ao mesmo tempo mágica e
P á g i n a | 872
verossímil, onde questões presentes, como questionamentos ecológicos, se misturam às
dúvidas humanas mais ancestrais acerca do amor e da religião.
3.1. Temas recorrentes
Não se pretende, nesta seção do trabalho, esgotar os temas contidos nos dois
romances gráficos, nem se intenta fazer uma análise esmiuçada dos temas elencados;
mas sim, registrar a recorrência deles nas duas obras produzidas por Craig Thompson,
evidenciando a matéria-prima que motiva a sua produção. Deve-se levar em
consideração também, que os temas são, inevitavelmente, engajados com as nossas
concepções de humanidade e com fatos sociais que devem ser pensados e debatidos, de
forma que a literatura produzida por Thompson também é extremamente reveladora da
sociedade atual.
3.1.1 Laços amorosos
Por certo, um dos principais temas de Craig Thompson está ancorado nos laços
afetivos e familiares. O próprio autor confessou em entrevista ao jornal Folha de São
Paulo que uma das suas principais motivações ao escrever romances gráficos era fazer
um livro que ressaltasse a beleza sutil das nuances singelas da vida. Afirma Thompson:
Estava frustrado com o predomínio das histórias de fantasia
bombásticas no meio da HQ. Queria fazer um livro longo que deixasse
de lado as sequências de ação para capturar uma experiência íntima e
silenciosa, como a de dividir a cama com alguém pela primeira vez.
(THOMPSON, 2009).
É interessante observar que mesmo havendo teor sexual em ambas as obras, pela
leitura destas e pela própria fala do autor, nós percebemos que uma relação sexual não é
o mesmo que intimidade para o autor. Tanto a intimidade que se cria entre Raina e
Craig e Dodola e Zam se dão de outras formas, em Retalhos, uma dessas formas de
estabelecer intimidade é pelo canto, em Habibi, é pela respiração.
No capítulo II, do romance de 2003, Raina confessa que não gosta de cantar nos
cultos da igreja: “Não tenho voz e levo a música muito a sério. Só canto quando estou
sozinha. Pra mim é sagrado” (THOMPSON, 2003, p. 125). E no Capítulo VII, ela canta
para Craig a música Just Like Heaven, da banda The Cure, evidenciando que eles
construíram uma relação “sagrada”; e, é assim que o jovem Thompson passa a enxergar
Raina também, como sendo um ser santificado, afastando dele a “culpa cristã” por tê-la
desejado fisicamente.
No caso do romance de 2011, a intimidade emocional se dá pela narração de
histórias, enquanto a física se dá pela respiração. É importante observar que a relação de
Dodola e Zam parece se dividir em dois momentos: no primeiro, ela o vê como um filho
e, no segundo (após o reencontro dos dois, anos após a separação) ela o vê como um
homem. Zam havia lutado desde sua adolescência contra o desejo carnal que sentia por
Dodola, de forma que isso o leva a optar por uma forma mais definitiva de se punir pelo
desejo: a castração. Após esse ato tão definitivo, Zam sente-se culpado de novo, quando
Dodola confessa que gostaria de ter um filho dele; e, nesse misto de alegria e dor, ele se
P á g i n a | 873
revolta por se ver impedido dar o prazer que Dodola desejava. É nesse momento que ela
afirma que o principal do sexo é a respiração (THOMPSON, 2011, p. 635).
Assim, tanto em Retalhos, quanto em Habibi, existe uma forte sensação de
culpa em relação ao desejo sexual, mas também há uma desmistificação de que a
intimidade física sempre deva enveredar por caminhos outros daquele da intimidade
emocional.
3.1.2. Laços familiares
Em Retalhos, o autor narra um pouco da sua relação com os próprios pais.
Porém, é sua relação com o irmão que mais se evidencia. Já foi anteriormente, frisado
que o relacionamento deles quando crianças era, até certo ponto, conflituoso, e que eles
se afastaram ao entrar na adolescência. Após passar uma temporada na casa de Raina,
Craig procura uma reaproximação com o irmão. Tal aproximação se deu até pela
própria dinâmica que ele vivenciou no lar da amada, que sempre se mostrava muito
solícita para com os irmãos, particularmente com Laura que era carente de cuidados
especiais, devido a uma doença neurológica, e para com os pais. Ao narrar
reminiscências dele com o irmão, Craig começar a perceber quão estranhos eles tinham
se tornado um para o outro e tenta reverter esse quadro.
No que concerne aos laços familiares, Habibi mostra a relação familiar entre
Dodola e Zam, tendo ela sido vendida como esposa, ainda criança, pelos pais, para um
escriba. Em se tratando de sua relação com os seus pais, essa é a única referência que se
faz aos pais de Dodola, pois parece ser no seu marido que ela encontra uma espécie de
modelo paternal. Embora ele não tenha se ausentado de reivindicar seus direitos como
esposo fisicamente, ele a ensina a ler e a escrever e, para todos os fins, a protege e cuida
do seu bem-estar físico.
Quando Dodola adota Zam, ela conta as histórias que aprendeu com seu marido,
o escriba, para o menininho. Também lhe ensina as letras e o protege, tal qual o seu
marido o fizera. Além disso, ela nunca o abandona e não mede esforços para conseguir
os meios de alimentá-los. O fato de não medir esforços para alimentar a criança é tão
desmedido, que a necessidade a leva à vida de prostituição.
3.1.3. Conflitos religiosos
Tanto em Retalhos, quanto em Habibi, conflitos religiosos internos são
evidentes. No primeiro, Craig vive sob um forte medo em relação à figura de Deus
transmitida por seus pais e seu pastor. Ele se questiona, bem como ao seu pastor acerca
de algumas passagens bíblicas que parecem se contradizer e questiona-se se a arte que
ele produz pode ser também uma forma de louvar a Deus.
Em Habibi, Zam é quem demonstra seus conflitos religiosos, pois sente muita
culpa por experimentar de uma intensa atração por Dodola e por isso resolve permitir ter
seu membro masculino extirpado, partindo da premissa que só assim ele poderia se
entregar a Deus, indo conviver com ascetas em um monastério.
Raina e Dodola são, ambas, símbolos do profano e símbolos do sagrado para os
personagens principais masculinos. Raina é envolta em uma luz sagrada para Craig, mas
também é objetificada sexualmente, e este fato também aflora a culpa do rapaz. Já
Dodola é totalmente humana, mas justamente na sua humanidade reside sua santidade,
P á g i n a | 874
embora Zam não tenha essa mesma percepção: para ele, desejar Dodola (aquela que
outrora lhe tratou como uma mãe) é agir contra Deus.
3.1.4. Abuso sexual
Craig, no romance de 2003, reporta a experiência traumática pela qual ele
passou quando criança: a do fato de que ele e seu irmão foram abusados sexualmente
pelo babá. Dodola também sofre abusos sexuais, um dos quais Zam presencia, mas nada
faz contra. Em outra entrevista, Thompson comenta:
Eu sempre quis fazer um livro sobre trauma sexual. Mesmo eu tendo
sido molestado quando criança, nunca achei isso tão prejudicial para
mim quanto o estupro de alguém muito próximo a mim. Eu tenho um
par de pessoas muito próximas a mim que foram vítimas de estupro.
Então eu experienciei um trauma de segunda mão da mesma forma
que Zam. Minha experiência foi menos grave e não tão traumática ou
violenta como as que meus amigos passaram. Levando essa
consciência comigo enquanto eu estava aflorando em minha própria
sexualidade - e também lutando com um monte de dogmas religiosos
em torno da sexualidade - é algo que eu sempre pensei em processar e
querer colocar em um livro. Não foi até que eu estar trabalhando em
Habibi que eu pensei que o personagem principal era como eu: uma
vítima de trauma sexual em segunda-mão. Que impôs o abuso a si
mesmo42. (THOMPSON, 2012).
Assim, muito da vida do autor foi digerido e posto em Habibi. A forma como ele
trata o abuso sexual é intrigante, primeiro porque expõe que não só mulheres sofrem
abuso, mas também crianças e (além disso) crianças do sexo masculino. Ele também
não hesita em exibir as implicações do abuso sexual para a vida daqueles próximos a
quem sofreram o abuso.
É uma temática forte, perturbadora, mas a literatura não cumpre apenas o papel
de apaziguar os nervos, mas também de denunciar a sociedade os males que dentro dela
se dão. E não se pode vendar os olhos perante disso. Thompson, com certeza, não o fez.
4. Considerações finais
Diante do que foi aqui exposto, espera-se que tenha sido evidenciado que as
novelas gráficas há muito perderam seu cunho infantil, tendo se diversificado tanto
quanto aos seus temas quanto a seu público alvo. Craig Thompson escreve com
42
“I've always wanted to do a book about sexual trauma. Even though I was molested as a child I never
found that as damaging to myself as much as the rape of someone very close to me. I had a couple of
people very close to me who were victims of rape. So I did experience a second hand trauma around that
in the same way as Zam does. My experience was less severe and not as traumatic or violent as what my
friends had gone through. Carrying that awareness with me while I was coming into my own sexuality and also struggling with a lot of religious dogma around sexuality - it's something I've always thought
about processing and wanting to put into a book. It wasn't until I was working on Habibi that I thought
the main character was like me: a second-hand victim of sexual trauma. Who imposed abuse on
himself…” (THOMPSON, 2012)
P á g i n a | 875
sensibilidade e se mostra um artista ousado que não teme expor conflitos humanos
globais, posto que sua matéria prima é a vida, mesmo quando se trata de ficção – de
forma que é impossível caracterizar seus personagens fictícios sem atribuir tanta
tridimensionalidade a eles quanto aos de seu romance autobiográfico.
Craig Thompson é apenas um dentre vários autores que tem movimentado o
mercado de novelas gráficas para além dos Estados Unidos; e, seu lirismo visual e
verbal já é internacionalmente reconhecido, e mesmo trazendo a baila temas
controversos, sua popularidade entre os jovens é bastante significativa.
Deixa-se, então, registrado mais uma vez que a questão atual não é a falta de
leitura dos jovens, mas sim que os jovens se sentem mais atraídos por leituras
multimodais e isto é reflexo da contemporaneidade e dos muitos recursos tecnológicos à
disposição, nos quais os jovens habituam-se a fazer a leitura de diversos recursos
semióticos. Ignorar este fato pode ser prejudicial ao despertar de alguém para o mundo
literário, e sendo os romances gráficos a melhor “fusão de letramento visual com o
letramento tradicional baseada em texto” (BRENNER, 2007, XIV), essas obras podem
se constituir como um valoroso recurso de incentivo à leitura, ao invés de frustrar os
jovens leitores com as leituras tradicionais recomendadas logo de partida, deve-se
também dar a eles algo que os desperte para os encantos que a literatura mundial
contém, e instigá-los a procurar os tesouros escondidos do mundo literário; tesouros,
por vezes, escondidos sob possíveis máximas que denigrem sua imagem, tal como a de
que: HQ não é literatura.
Almeja-se que tenha ficado claro aqui, ainda, que não só existem HQ literárias,
mas que estas HQ são artística e socialmente importantes e reveladoras, que devem ser
exploradas e analisadas, inclusive (por que não?) como recurso pedagógico de forma a
despertar a consciência crítica dos alunos para importantes fatos sociais.
Referências
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CRESTANI, G. Eduardo Galeano. Ficha Corrida, 23 de abril de 2012. Disponível em:
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learning and the design of social features. London: Routledge, 1999.
P á g i n a | 876
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WELDON, G. Mysterious 'Habibi' Cuts To The Core Of Humanity. NPR Books, 19
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ENTRE VIDAS, ANJOS E LEIS UNIVERSAIS: OS ELEMENTOS DO
SAGRADO NO LIVRO A LEI DO AMOR DE LAURA ESQUIVEL
Raquel De Araújo SERRÃO (IFRN)
Nathalia Oliveira de BARROS (IFRN)
Resumo: Azucena e Rodrigo são almas gêmeas, mas por diversos acontecimentos
precisaram passar por evoluções espirituais ao longo de várias reencarnações até que
pudessem concretizar esse amor. Mas, além disso, Azucena tem uma missão maior, que
é ajudar a restabelecer o equilíbrio universal. É nesse contexto do romance A lei do
amor (1996), da escritora mexicana Laura Esquivel, que desenvolvemos o presente
estudo, buscando identificar e analisar os elementos do sagrado presentes na obra, uma
vez que se fala em almas gêmeas, vidas passadas, carma, reencarnação, anjos,
demônios, leis universais, que regem as existências. Dessa forma, realizamos um
trabalho de revisão bibliográfica e, a partir disso, traçamos uma breve caracterização da
obra literária, com o período em que foi escrita – pós-boom latino-americano – e as
implicações disso em sua estética literária híbrida. Tratamos ainda do uso de elementos
do sagrado na literatura e por fim delineamos nossa análise sobre a presença desses
elementos no livro de Esquivel, enfatizando como são apresentados e sua importância
para o desenvolvimento da narrativa. Para embasar as ideias que apresentamos,
consideramos referências como Shaw (2008), Gálvez Acero (1987), Barcelos (2001).
Palavras-chave: Literatura e sagrado; Pós-bom latino-americano; A lei do amor.
1. Introdução
O livro A lei do amor (1996), de Laura Esquivel, é uma obra literária com
inúmeras perspectivas de análise tanto no que se refere a sua materialidade estética
híbrida, quanto no que concerne aos seus aspectos temáticos.
Desse modo, definimos para estudo em nosso artigo, sobre este romance
produzido no contexto do pós-boom latino-americano, a presença do sagrado na obra
literária em questão, utilizado de modo peculiar pela escritora para construir sua
narrativa, dando corpo ao enredo que gira em torno do amor de Azucena e Rodrigo, mas
que representa mais do que o amor sexual entre um casal, está relacionado ao
restabelecimento da paz e do equilíbrio do cosmos.
Para tanto, tratamos dos aspectos gerais da obra, sua inserção no contexto do
pós-boom latino-americano e as relações que se estabelecem entre literatura e sagrado
na narrativa da escritora mexicana.
2. A obra A lei do amor
Almas gêmeas que se encontram e se perdem no mesmo dia, anjos e demônios
que se casam, leis universais que são quebradas e precisam ser restabelecidas, essa é a
trama de A lei do amor, de Laura Esquivel.
O livro da escritora mexicana (nascida em 1950), publicado no ano de 1996, é
apontado como o primeiro romance multimídia da literatura devido à combinação que
P á g i n a | 878
faz das linguagens literária, ilustrativa e musical, que desempenham todas papel de
grande relevância para a construção do sentido geral da obra.
A narrativa se passa no México e traz a história de Azucena e Rodrigo, que são
almas gêmeas, mas que devido à violação de leis universais no ano de 1527, quando
houve o estupro da princesa asteca Citlali pelo espanhol Rodrigo – subordinado de
Hernán Cortés – tiveram que ficar inúmeras encarnações sem poder se encontrar. Essa
permissão só é concedida no ano de 2200, quando ambos sanaram suas dívidas com o
cosmos e pagaram pelos pecados cometidos em suas existências anteriores por meio de
inúmeras reencarnações, chegando a um patamar mais elevado de evolução espiritual.
No decorrer dos 22 capítulos, Azucena e Rodrigo se encontram, concretizam seu
amor, se separam e se reencontram em meio a uma série de acontecimentos inicialmente
inexplicáveis, mas que eles vão entendendo gradativamente, à medida que fazem
regressões às suas vidas passadas e identificam pessoas que fizeram parte de suas outras
encarnações e que tem um papel direto na realidade atual.
Azucena e Rodrigo se encontram e concretizam seu amor em um momento que
enfatiza que o encontro de almas gêmeas não é algo meramente carnal, mas que envolve
sentimentos inexplicáveis de seres que se completam perfeitamente, chegando a ter a
sensação de não se tratam de duas almas, mas apenas uma. Entretanto, misteriosamente,
o rapaz desaparece e sua amada inicia uma busca incessante para encontrá-lo, pois não
aceita tê-lo perdido, após esperar tanto tempo para ter o direito de viver esse amor e
também não acredita que ele tenha ido embora por vontade própria, sem qualquer
explicação.
A protagonista recorre, então, a setores burocráticos para tentar descobrir o
paradeiro de Rodrigo e para isso utiliza recursos como um computador instalado em sua
cabeça para que fossem projetadas imagens faltas que garantissem sua contratação para
trabalhar como burocrata e assim, ter acesso a bancos de dados e músicas que pudessem
ajudá-la em sua missão e compreender tudo que estava acontecendo.
No fragmento a seguir, podemos verificar o momento em que Azucena se
submete à entrevista, estando com o computador instalado na cabeça para projetar
imagens diferentes das reais:
Os cientistas burocratas começaram a discutir calorosamente entre si.
Era de chamar a atenção a clareza das imagens que estavam
observando. Em geral, a mente recorda de maneira confusa e
desorganizada. Azucena era a primeira pessoa que conheciam que
tinha o passado bem claro. As imagens que projetava observavam
perfeita ordem cronológica. Não estavam fragmentadas, o que
significava que a moça era um gênio ou que havia introduzido
ilegalmente um microcomputador. (ESQUIVEL, 1996, p. 47.)
Como vemos, o objetivo foi alcançado e as imagens foram projetadas e, embora
tenham gerado desconfianças nos cientistas pela perfeição e organização, por fim, os
avaliadores aceitaram e confiaram no computador que estava coletando os dados da
mente da moça. E é relevante apontarmos que além de confiar na máquina, temos a
credibilidade atribuída aos eventos de outras encarnações, ou seja, ver o que uma pessoa
fez em outras vidas pode mostrar quem ela é, quais são os traços de sua personalidade e
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isso é utilizado para traçar um perfil psicológico e definir se essa pessoa é, por exemplo,
adequada para executar determinados tipos de trabalho.
Dando continuidade a essa trajetória, Azucena troca sua alma de corpo, faz
amizade com pessoas que ela não imaginaria em outras circunstâncias, faz viagens
interplanetárias, descobre quem é sua mãe verdadeira (descoberta realizada através da
observação de imagens de recordações de vidas passadas de outra personagem do livro)
e encontra Rodrigo sem memória, sem sequer reconhecê-la. Porém, em meio a todos
esses acontecimentos, são feitas várias descobertas sobre suas outras encarnações e o
livro tem de fato um final feliz não somente pelo encontro finalmente definitivo da
protagonista com seu amado, mas também pelo restabelecimento do equilíbrio
universal, que havia sido comprometido desde 1527 por um erro grave cometido por
Rodrigo, no período da conquista do México.
Essa concepção da existência de vidas passadas, o processo de regressão para
recordar os acontecimentos de outras encarnações e a noção da importância disso para a
evolução espiritual são elementos de grande relevância para a trama, pois é a partir
disso, que os personagens entendem os fatos do presente e tomam decisões sobre ações
futuras o que dá os direcionamentos da narrativa.
Diante disso, toda a trama aparece envolta em uma esfera espiritualista que
utiliza elementos do realismo mágico – traço marcante do Boom que também se faz
presente no pós-boom latino-americano, auxiliando nas construções de narrativas
híbridas e na criação de novos gêneros literários – permitindo que seja criado um
ambiente com aspecto diferenciado, de outra realidade, afinal, parte-se do princípio de
que todos os seres humanos em 2200 têm consciência da existência de vidas passadas,
leis universais, anjos e demônios, e sabem da necessidade de passar por um processo de
evolução espiritual para não cometer os mesmos erros do passado, além de adquirir o
direito de encontrar suas almas gêmeas.
É nesse ponto que se concentra nossa análise, uma vez tratamos neste trabalho,
como esses elementos do sagrado aparecem na obra, como são entendidos e a
importância que assumem para a construção da narrativa.
Todavia, antes de passarmos a esse estudo propriamente dito, façamos uma
contextualização da obra no pós-boom latino-americano, algo que nos dá informações
sobre uma série de características do livro de Laura Esquivel.
Conforme apontamos, A lei do amor está inserida no contexto do pós-boom
latino-americano, estética literária que segundo, Shaw (2008), proporcionou a projeção
de inúmeras escritoras, após um período de predominância da escrita masculina no
Boom. O mesmo autor aponta ainda a ênfase no tratamento da temática do amor por
uma perspectiva mais otimista, considerando que através desse sentimento, a pessoa
pode se reencontrar e restabelecer seu equilíbrio próprio, diferentemente do que
predominava no Boom, que na maioria das vezes tratava o amor sob uma perspectiva
mais pessimista. E é nessa retomada da temática do amor em que reside, segundo Shaw
(2008) a importância da obra literária que aqui analisamos.
Podemos somar a isso a perspectiva de trabalho do pós-boom com as narrativas
de testemunho que partem da experiência individual para o contexto geral, ou seja, vai
do micro para o macro, delineando uma descrição da realidade. Evidentemente, o livro
de Esquivel analisado neste artigo não se enquadra como uma narrativa de testemunho,
mas é interessante pensarmos em seu aspecto de partir da experiência individual de
Azucena, que busca sua evolução espiritual para poder encontrar sua alma gêmea, mas
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que isso não se limita à vivência individual, e sim está conectada com algo maior, ou
seja, o restabelecimento do equilíbrio do cosmos no momento em que ela vive, o ano de
2200. O microcosmos do indivíduo e de suas impressões particulares de vida elaboradas
ao longo de suas experiências. É a descoberta da dinâmica da vida, marcada na obra
através do processo sucessivo de reencarnações, no caso da obra em foco.
Porém, é interessante ressaltarmos que não há somente diferenças entre essas
estéticas há, por exemplo, a presença do realismo mágico, que embora seja uma
característica forte do Boom, também se faz presente no pós-boom, como é caso de A
lei do amor. Aqui, o uso de elementos do realismo mágico permite que a escritora possa
criar uma esfera espiritualista que se configura em uma realidade diferente da que
conhecemos, mas que para a obra se torna possível, noção esta que encontra
fundamento nas concepções de Gálvez Acero (1987) sobre o tema do realismo mágico.
O leitor é levado a mergulhar nesses elementos e buscar entender essa outra perspectiva,
que no caso faz uso de elementos do sagrado com os quais temos contato, seja por meio
de crenças próprias ou conhecimentos gerais de diferentes doutrinas religiosas.
Uma vez feitas essas considerações gerais, passaremos à análise desses
elementos do sagrado identificados na obra, buscando entender como ocorrem e como
podem ser entendidos na obra de Laura Esquivel.
3. A presença de elementos do sagrado em A lei do amor
3.1. O templo e a ordem cósmica
Segundo Mircea Eliade (2010) a consagração de um espaço sagrado perpassa
pela noção de Caos e Cosmos. A primeira vista, essa rotura no espaço entre Caos e
Cosmos parece consequência da oposição e do que se convencionou entender sobre
essas duas grandezas no que se refere à oposição entre território habitado, conhecido e
organizado, portanto “cosmizado” e o espaço desconhecido que se estende além de suas
fronteiras: o Caos.
Desse modo, tem-se de um lado o cosmos-espaço consagrado previamente,
porque de alguma forma esse território é obra dos deuses ou está em comunicação com
o mundo das deidades e do outro lado o restante, o espaço estrangeiro, caótico, uma
espécie de outro mundo povoado pelo desconhecido, isso inclui, espectros, demônios e
a alma dos mortos.
Assim, o Mundo (o nosso mundo) é um universo no interior do qual o sagrado já
se manifestou e, portanto, a rotura dos níveis Cosmos e Caos se torna possível. Dessa
forma, o momento religioso implica um “momento cosmogônico” por fundar o mundo
no sentido de se fixar nele os limites entre esse espaço “cosmizado” que habitamos e o
restante do espaço.
Dessa perspectiva é que nascem os espaços físicos sacralizados que são os
templos, pois eles tornam presentes a comunicação com o mundo dos
deuses, assegurando um intercambio comunicativo entre as criaturas e seus criadores
cósmicos.
O templo é assim a reprodução microcósmica da Criação, profanar um templo é
profanar a ordem cósmica. O templo é a abertura para o transcendente, não se podendo
P á g i n a | 881
viver no Caos. É, ele, o templo, a réplica do Universo criado e habitado pelos deuses.
Assim, seguindo essa linha de raciocínio, a destruição do templo da Deusa do Amor, na
cidade de Tenotchitlán, no ano de 1527 por Rodrigo, e para agravar a situação, o estupro
de Citlali em seu interior, decretava para os personagens, a destruição da ordem cósmica
e da comunicação com o transcendente. Parte desse momento em que Rodrigo vê Citlali
e a violenta, além de destruir o templo pode ser lido no seguinte fragmento:
Rodrigo soube no mesmo instante que o movimento que tanto o
alterava provinha de suas cadeiras. E sentiu-se completamente
desarmado. Não soube como enfrentar o desafio e caiu presa do feitiço
daquelas cadeiras. Isso tudo acontecia enquanto suas mãos estavam
concentradas em tirar a pedra que constituía o vértice da Pirâmide do
amor. Antes de consegui-lo, deu tempo para que a poderosa energia
que emanava da pirâmide começasse a circular por suas veias. Foi
uma descarga tremenda, foi um relâmpago incandescente que o
ofuscou e o fez ver Citlali já não como a simples índia que era, mas
como a própria Deusa do Amor.
Nunca havia desejado alguém tanto assim, muito menos uma índia.
Não sabia explicar o que estava acontecendo. Com ansiedade,
terminou de tirar a pedra, mais que tudo para que Citlali tivesse tempo
de chegar a seu lado. Quando a teve perto, não pôde se controlar,
mandou que os outros índios procurassem onde se instalar na parte
traseira do terreno e ali mesmo, no centro do que fora o templo, a
violentou. (ESQUIVEL, 1996, p. 10.)
Dessa maneira, era necessária a intervenção de um mecanismo que
restabelecesse essa ordem que foi quebrada. Esse mecanismo na trama ficcional é o
processo reencarnatório pelo qual Azucena e Rodrigo precisam passar não apenas uma,
mas diversas vezes até que o problema fosse solucionado e o equilíbrio cósmico
restabelecido.
O primeiro elemento de tradição sacra que nos é posto em relevo vem de
tradição hindu, que seria o ciclo dos nascimentos e das mortes, ou seja o fluxo
fenomenal da vida condicionado as ações. O movimento de ir e vir do espírito ao plano
da matéria para sanar seus karmas, transformando-os em darmas, que em sânscrito
significa “lei natural” ou melhor “caminho para a verdade superior”. A palavra karma
em sânscrito significa “ação”, mais precisamente se refere às ações praticadas durante a
vida e que terão efeitos futuros. O espírito está, assim, condicionado as suas ações para
evoluir e sair da roda de Samsara, a roda das reencarnações.
O budismo também usa o termo karma, mas para o budismo ele pode ser
positivo, negativo ou neutro, visto que karma para o budismo representa não nossas
ações, mas as intenções da ação. Contudo, isso irá também condicionar o ciclo das
reencarnações. O espírito reencarnará em outro corpo, também de forma humana, para
chegar a alcançar a pureza e a consciência do absoluto, libertando-se da Samsara.
Quando o espírito liberta-se dos grilhões da carne é sinal que ele respeitou o darma e
alcançou mais rapidamente o Nirvana.
Em ambas filosofias religiosas o fluxo da vida pode ser bom ou ruim e a
correnteza das existências segue o curso das ações e intenções, gerando as sucessivas
reencarnações. No livro esse panorama reencarnatório é explorado do começo ao fim da
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trama. A desarmonia nasce com a quebra da lei do amor, do amor divino, do respeito a
si e ao outro, já no título temos uma referencia a uma das leis morais a serem
respeitadas – a lei do amor. Segundo O Livro dos Espíritos, codificado por Allan
Kardec, essa lei está associada a mais dois outros princípios morais, a justiça e a
caridade, quem não cumpri esses princípios, rompe-se uma trajetória de harmonia para a
elevação espiritual.
Essa perspectiva é abraçada por todas as religiões
reencarnacionistas. A quebra da harmonia do amor universal, provoca uma onda de
sucessivas desarmonias.
Os vícios humanos espalham a dor e o desequilíbrio, e não foi diferente quando
na narrativa se descreve a ferocidade da chacina promovida em nome da coroa
espanhola para a conquista do México. Desse incidente repleto já de desalinho a lei
natural, lei do amor da justiça e caridade, a autora delimita nosso foco para o encontro
de uma nativa Citlali e um capitão da guarda de Hernán Cortés, Rodrigo. Esse encontro
servirá de exemplo do que acontece quando se rompe com a harmonia.
As vicissitudes humanas são teleguiadas pelas paixões: cobiça e desejo sensual;
orgulho, vaidade. E para evitá-las, o ser humano recebe a ajuda de anjos, assim como
acontece com os personagens da obra A lei do amor.
Os anjos por sua vez são dados como seres intermediários entre Deus e o mundo
material, que nos auxiliam aqui no orbe terrestre a enfrentar as tribulações. São
mensageiros, guardiães, protetores e executores de leis divinais e estão associados às
tradições judaico-cristãs, mas estão presentes também no budismo e hinduísmo, bem
como no Islamismo. Estão organizados por uma hierarquia de sete ordens ou três
tríades, conforme tradição judaico-cristã. A primeira tríade é de alta espiritualidade são
os Serafins Querubins e Tronos ou Ofenins, essa primeira está ligada diretamente a
Deus desempenhando suas funções junto ao Pai; a segunda tríade são as dominações,
virtudes e potestades, são os chamados príncipes da corte celeste; os de terceira ordem
são os principados, arcanjos e anjos. A 3ª Ordem é composta pelos anjos ministrantes,
que são encarregados dos caminhos das nações e dos homens e estão mais intimamente
ligados ao mundo material.
3.2. O sagrado e o dessacralizado
Seguindo com as ideias de Eliade (2010), o sagrado se dá no momento da rotura
do espaço, pois para o homem religioso o espaço não é homogêneo apresenta quebras,
para se estabelecer a que é sagrado e/ou produz uma comunicação com o que é sagrado
e o espaço neutro. Além disso, se estabelece também a revelação de uma “realidade
absoluta” advinda dos deuses.
O homem das sociedades tradicionais é, por assim dizer, um homo religiosus. O
homem das sociedades modernas, vive em um Cosmos dessacralizado. O homem
religioso acredita em uma verdade absoluta – o sagrado- que transcende esse mundo e
advém da realidade absoluta, que se manifesta no mundo santificando-o e tornando-o
real.
Reatualizando a história sagrada, imitando o comportamento divino, o homem
instala-se e mantém-se junto dos deuses, quer dizer, no real e no significado. Assim,
transpondo isso para a narrativa da obra A lei de amor, entendemos que o ato de
violência praticado por Rodrigo, não só é tomado por Citlali como um ato a-religioso,
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pois nega a transcendência do templo da deusa do amor, sua simbologia e seu
significado, mas sobretudo, podemos entender como um ato que desorganiza a ordem
harmônica do mundo, por ser uma brutal violência a destruição da cidade, o estupro, o
infanticídio e o genocídio no ato da conquista espanhola sobre a cidade de Tenochitlán.
Em 2200 o homem moderno é a–religioso assume uma nova situação
existencial: reconhece-se como o único modelo e agente da história e rejeita todo apelo
a transcendência. Por isso, na trama os processos reencarnatórios foram burocratizados,
não fazendo parte de nenhum complexo de crença. O indivíduo recebe a ficha para ir até
o CUVA (Controle Universal de Vidas Anteriores) para entender sua existência e
mudá-la conforme suas necessidades particulares de reajuste com a ordem universal.
Nada é sagrado, nada é uma hierofania.
A dessacralização está no descondicionamento de crença do processo
reencarnatório. Esse processo na narrativa é posto como um sistema de governo, foi
burocratizado e todos sabem que devem reencarnar e mudar de corpo para evoluir. Não
há, por exemplo, a morte, mas a mudança de corpos. Todos têm consciência de que são
espíritos que usam um corpo e não um corpo que usa um espírito para evoluir.
O que vemos são elementos do sagrado cuja existência é de conhecimento de
toda a população mundial, todos sabem que viveram vidas passadas e que devem
recordá-las para identificar os erros que cometeram e pagar por eles. Azucena, por
exemplo, descobre por fim que foi a maior assassina de todos os tempos; Rodrigo
violentou uma princesa asteca sobre o local onde havia o tempo de adoração a uma
deusa do amor, e por esses erros eles precisaram reencarnar inúmeras vezes até terem o
direito de se encontrar e ficar juntos. Mas o interessante disso é que não se trata de
considerar uma concepção religiosa especificamente, mas de um fato comprovado,
como um conhecimento científico dos quais se tem provas materiais.
Ao pensarmos, por exemplo, na noção de morte, temos que a morte do corpo não
implica a morte da alma, e a importância dada ao corpo é tão reduzida que há a
possibilidade de trocar de corpo sem dar um destino à matéria deixada de lado. Não há
no livro de Esquivel, menção a rituais em torno da morte, pois ela é simplesmente uma
etapa do processo de evolução espiritual. A protagonista da narrativa, para fugir dos
inimigos que aparecem em seu caminho tentando matá-la, troca de corpo, mas não se
preocupa com o destino dele, e até se sente satisfeita com novo corpo que assume.
Quando faz uma nova troca, apenas se lamenta porque assume um corpo doente e velho
o que dificultada a tentativa dela de cumprir sua missão de restabelecimento do
equilíbrio universal.
No momento em que tudo se resolve, ela recebe o direito de reassumir o seu
corpo original, entretanto, ele já havia sido ocupado por outra alma, mas esta, que
aparece denominada de “falsa Azucena” não se incomoda em devolvê-lo, pois entende
que sua missão nessa vida estava concluída e sua alma precisava agora renascer em
outro corpo e continuar sua evolução.
Outro ponto interessante a ressaltarmos no livro, é a menção a anjos da guarda
que interferem de algum modo na vida de seus protegidos para que eles possam seguir o
caminho correto. Mesmo quando o guardião de Azucena tenta ajudá-la e ela se recusa a
seguir suas orientações, ele recorre a subterfúgios para conseguir auxiliá-la e fazer com
que ela não desvie de sua missão maior – o restabelecimento do equilíbrio universal.
Para isso, Anacreonte, ora manipula outra personagem – Cuquita – para que esta sugira
o que Azucena pode fazer para solucionar seu problema - e de fato a protagonista acaba
aceitando a sugestão – ora usando assistentes como Teo: “Teo era um dos Anjos da
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Guarda undercover com que Anacreonte trabalhava na Terra. Recorria a eles em caso de
extrema necessidade, e este era um deles. Não podiam deixar que Azucena se
deprimisse novamente.” (ESQUIVEL, 1996, p. 201).
O objetivo do anjo da protagonista, cuja existência era de conhecimento dela, era
evitar que a astroanalista desanimasse com tantas dificuldades e acontecimentos
inesperados e acabasse se desviando de sua missão de restauração da ordem universal.
Temos aqui, mais um elemento do sagrado que converte em algo desvinculado da fé,
pois não é preciso acreditar em anjos, simplesmente se sabe de sua existência.
Assim, com base nas observações da obra literária em foco, podemos estabelecer
uma relação com as ideias de Barcelos (2001) sobre a espiritualidade ser uma
experiência interpretada e sobre a possibilidade de debate da espiritualidade quando esta
aparece materializada no texto, neste caso literário. Verificamos os traços que
identificamos como elementos do sagrado como as noções de reencarnação, de
existência de almas gêmeas, de evolução espiritual, bem como a presença de anjos da
guarda, mas que tudo isso é entendido dentro da realidade que se propõe na narrativa e
somente nela fará sentido e poderá ser interpretado nesse contexto. É a forma como o
sagrado está presente em A lei do amor, uma realidade em que perde a sacralidade pelo
descondicionamento da crença, ou seja, uma forma distinta de entender todos os
aspectos mencionados. Todavia, uma vez que tudo isso se materializa no texto literário,
se torna passível de debate.
Enfim, esse debate acerca do texto de Laura Esquivel nos leva ao entendimento
de que nesta obra literária os elementos sagrados se fazem presentes em toda a narrativa
e, inclusive, determinam o comportamento dos personagens e suas ações, mas ao
mesmo tempo perdem sua sacralidade devido ao fato de estarem desconectados da
crença, isto é, não é preciso acreditar em reencarnação ou em anjos, pois isso é de certa
forma, tratado como um conhecimento científico, não depende de fé, o que não faz com
que seja perdida a esfera espiritualista e sobrenatural.
4. Considerações finais
O sagrado é um elemento inerente à constituição social das sociedades humanas
e esse aspecto passou a ser explorado em toda a narrativa. Na construção de A lei do
amor, de Laura Esquivel optou por criar um plano de realidade diferenciado, no qual faz
uso de elementos do sagrado como processo reencarnatório, almas gêmeas, leis
universais, anjos da guarda, etc., para criar uma esfera espiritualista, em certa medida
sobrenatural, mas que perde essa sacralidade no momento em que todas essas noções
são burocratizadas.
Em 2200, toda a população mundial tem consciência de suas vidas passadas e
que precisam trabalhar em função de sua evolução espiritual. Existem órgãos públicos
para auxiliar nesse processo, dar informações sobre vidas passadas e sobre quantas
vezes mais será preciso reencarnar até pagar todas as dívidas, pagar por todos os erros
cometidos no passado. E é em meio a essa realidade que Azucena encontra sua alma
gêmea, Rodrigo, se perde dela e faz de tudo para encontrá-la novamente.
É nessa caminhada que se concentrou nossa análise, pois ela revelou como os
elementos sagrados mencionados passam pelo processo de dessacralização por terem
sido desatrelados do condicionamento da crença. Não é preciso ter fé ou crer em vidas
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passadas, pois isso é como um conhecimento científico no futuro em que a narrativa se
passa.
Portanto, essa obra inserida no pós-boom latino-americano tem aspectos bem
pontuais como: ter o amor como elemento de renovação e evolução da natureza
humana; ser de escrita feminina (o pós-boom se caracteriza como um período de maior
evidencia da escrita feminina); ser obra marcada pelo apelo ao espiritualismo e,
sobretudo, dar um tratamento diferenciado a representação da sexualidade.
Referências
BARCELLOS, José Carlos. Literatura e Espiritualidade: uma leitura de Jeunes
Années, de Julien Green. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
CHEVALIER, Jean/GHEERBRANT, Alan. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro:
José Olympio. 1999.
ELIADE, Micea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério
Fernandes. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
ESQUIVEL, Laura. A lei do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
GÁLVEZ ACERO, Marina. La novela hispanoamericana contemporánea. Madrid:
Taurus, 1987.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira,
2007.
SHAW, Donald Lewis. Nueva narrativa hispanoamericana: Boom. Posboom.
Posmodernismo. 9 ed. Madrid: Cátedra, 2008.
MACHADO, Cínthia Marítz dos Santos Ferraz. A representação da experiência
espiritual na literatura: Uma tentativa de aproximação entre literatura e teologia.
Darandina
Revisteletrônica.
Disponível
em:
http://www.ufjf.br/darandina/files/2011/09/A_representa%C3%A7%C3%A3o_da_expe
ri%C3%AAncia_espiritual_na_literatura.pdf. Acesso em: 01 de outubro de 2013.
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CHAPEUZINHO VERMELHO PÓS MODERNISTA: UMA ANÁLIDE DOS
CONTOS DE ANGELA CARTER
Luan Pereira CORDEIRO (PIVIC - UFCG/PB)43
Fernanda Aquino SYLVESTRE (UFU/MG)44
Resumo: O presente artigo tem como objetivo estudar os contos The Werewolf e The
Company of Wolves, de Angela Carter, pertencentes à obra The Bloody Chamber,
buscando verificar por que, como e em que medida a autora retoma e/ou subverte as
narrativas maravilhosas tradicionais dos séculos XVII e XVIII, ressaltando os aspectos
pós-modernistas impetrados nas obras de autora. Foi evidenciado um breve percurso
histórico dos contos de fadas na Literatura Fantástica; além das temáticas relacionadas ao
contexto pós-moderno, à literatura contemporânea e à intertextualidade. A partir da
análise dos dois contos escolhidos de Carter, puderam-se ser compreendidas diferenças
nas traduções de autores contemporâneos, em específico, Angela Carter, que retoma os
contos de fadas tradicionais transgredindo-os de forma irônica e mostra novas versões
“mais adequadas” ao mundo contemporâneo, questionando os valores sociais e
psicológicos da atualidade.
Palavras-chave: Literatura fantástica. Conto maravilhoso. Literatura pós-moderna.
Intertextualidade.
1. Introdução
A presente pesquisa consta na versão mais compacta do projeto de pesquisa O
estudo do maravilhoso em contos de Angela Carter que foi submetido ao PIVIC 2012 2013 pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG, que teve como finalidade
apresentar os resultados obtidos a partir de um estudo de dois contos contemporâneos
tidos como uns dos mais importantes da autora Angela Carter. A partir da bibliografia
selecionada, pôde-se compreender o quanto a literatura fantástica está presente em
contos contemporâneos, em decorrência disso, o sobrenatural e o maravilhoso são
frequentes nos contos de fadas.
Além disso, Angela Carter é conhecida como uma autora pós-modernista, pelo
fato de contribuir com “versões contemporâneas”, feitas a partir de contos tradicionais
dos séculos XVII e XVIII, subvertendo-os, entre um jogo de críticas aos aspectos
culturais e costumes da sociedade burguesa da época, encontrados nos contos
“tradicionais” ou de origem. Com essas críticas implícitas, Carter busca aproximar mais
esses contos à nossa realidade atual.
Logo, ao analisar a natureza dos sentidos e a intertextualidade presentes na obra de
Angela Carter, é necessário que haja uma articulação com esses propósitos críticos para
promover o amplo entendimento de suas obras, com acréscimo da comparação de
versões traduzidas e provenientes de contos tradicionais.
43
Aluno do Curso de Licenciatura em Letras, com habilitação em Língua e Literaturas Inglesas na
Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, E-mail: [email protected]
44
Professora, Doutora, da Universidade Federal de Uberlândia – MG e orientadora do trabalho de
pesquisa. E-mail: [email protected]
P á g i n a | 887
2. Os contos de fadas
Uma série de contos populares surgiu entre os séculos XVII e XVIII na Europa,
muitos deles foram transmitidos de geração para geração e contados nas camadas
populares da sociedade "em torno às lareiras, nas cabanas dos camponeses, durante as
longas noites de inverno" (DARTON, 1986, p. 21), até que foram coletados da
oralidade, feitos os registros escritos e publicados em volumes únicos. Entre os
escritores mais conhecidos estão o francês Charles Perrault e os Irmãos Jacob e
Wilhelm Grimm na Alemanha.
Segundo Darton, os contos populares:
[...] são documentos históricos. Surgiram ao longo de muitos séculos e
sofreram diferentes transformações, em diferentes tradições culturais.
Longe de expressarem as imutáveis operações do ser interno do homem,
sugerem que as próprias mentalidades mudaram. Podemos avaliar a
distância entre nosso universo mental e o dos nossos ancestrais se nos
imaginarmos pondo um filho nosso para dormir contando-lhe a primitiva
versão camponesa do conto Chapeuzinho Vermelho (DARTON, 1986, p.
26).
Na literatura contemporânea, há uma retomada dos contos de fadas advindos das
tradições orais. Muitos autores, dentre eles, o autor norte-americano Robert Coover e a
escritora inglesa Angela Carter retomam esses contos de fadas consagrados e transgrede-os
ironicamente, mostrando novas versões mais adequadas ao mundo contemporâneo e
questionando os valores sociais e psicológicos da atualidade. Devido à natureza deste
trabalho, apenas as obras da autora Angela Carter serão pesquisadas.
Com as leituras de Coelho (1987), Canton (1994) e Warner (1999), foi
verificado que alguns contos de fadas já haviam sido publicados antes mesmo de
Perrault publicar: Giovanni Boccaccio e Geoffrey Chaucer escreveram narrativas com
conteúdo folclórico, posteriormente presente também em contos de fadas. Além deles,
Giovani Francesco Straparola escreveu diversas histórias com temas que faziam parte
desse tipo de conto e, Giambattista Basile, publicou o primeiro conto de fadas artístico
moderno: “Lo cunto de li cunti”, por volta de 1634.
O conto de fadas nem sempre faz jus ao nome, as fadas podem ou não estar
presente. Além das fadas, o conto pode apresentar gnomos, gigantes, gênios, bruxas,
objetos encantados, mágicos, etc. Sylvestre (2008) complementa, defendendo que há:
um aproveitamento dos contos de fadas clássicos como forma de
subvertê-los, transformá-los, relê-los dentro de uma nova perspectiva,
que rompe com os valores do passado, apresentando novos valores
condizentes com a sociedade dita pós-moderna, em que já não faz
mais sentido pensar-se no real e em grandes narrativas diante de um
mundo repleto de simulacros, globalizado, povoado por excessivas
informações (SYLVESTRE, 2008, p. 42)
3. Chapeuzinho Vermelho e os contos Maravilhosos
P á g i n a | 888
Entre as narrativas dos séculos XVII e XVIII, está o conto maravilhoso
Chapeuzinho Vermelho, que ganhou uma de suas primeiras versões literárias nas mãos
de Perrault e, em sequência, a versão dos irmãos Grimm.
Podemos perceber que as diversas versões dessa narrativa apresentam alguns
elementos constantes nos personagens Chapeuzinho, a avó e o lobo, mas, de acordo
com o tempo e o público em que/para qual as novas versões foram criadas, houve
algumas alterações, como o enredo e o desfecho do conto.
Chapeuzinho Vermelho foi publicado inicialmente por Charles
Perrault, no final do século XVII, para a corte do rei Louis XIV, que
pretendia levar uma moral às moças, especialmente, as bonitas, finas e
educadas, para que não fossem enganadas em ouvir estranhos, mesmo
os que fingem ser gentis, representados pelo lobo. Mais
especificamente, uma possível leitura, tendo em vista que era
coloquialismo da época dizer que uma menina ao perder a virgindade
tinha “visto o lobo”, é a de cunho sexual, visto que as moças deviam
perceber os maus pretendentes, sedutores e perigosos que as
circundavam (CORDEIRO & SANTOS, 2012, p.7)
Na versão de Chapeuzinho Vermelho publicada pelo francês Charles Perrault, há
uma ênfase na linhagem feminina, estendida em três gerações: filha, mãe e avó, e a
presença de apenas um personagem do sexo masculino, representada unicamente pelo
lobo, que revela ameaça, terror e violência, dando sequência a um desfecho trágico do
enredo: “E assim dizendo, o malvado lobo se atirou sobre Chapeuzinho Vermelho e a
comeu.”, dessa forma, o conto ganhou um cunho moralista e realista.
Ao considerarmos elementos contextuais, como por exemplo, a época em que as
obras foram escritas, os valores defendidos, e o público a quem se dirigia fica claro que
há uma distinção significativa com relação ao desfecho de cada obra. Na versão dos
irmãos Grimm, foi inserido o “caçador” no desfecho, personagem masculino tido como
o herói na narrativa, deixando transparecer o entendimento de que nem todos os homens
são maus e perigosos:
[...] o caçador passou em frente à casa da vovó, ouviu o barulho e
pensou: “Olha só como velhinha ronca! Estará passando mal!? Vou
dar uma espiada.”
[...] “Aposto que este danado comeu a vovó, sem nem ter o trabalho
de mastigá-la! Se foi isso, talvez eu ainda possa ajudar!”.
“Guardou a espingarda, pegou a tesoura e, bem devagar, bem de leve,
começou a cortar a barriga do lobo ainda adormecido. Na primeira
tesourada, apareceu um pedaço de pano vermelho, na segunda, uma
cabecinha loura, na terceira, Chapeuzinho Vermelho pulou fora.
(GRIMM, 1997)
Entretanto, percebemos que até mesmo os aspectos negativos presentes na
versão dos Irmãos Grimm foram “suavizados”, a exemplo do lobo não chegar a morrer,
após abrir sua barriga e colocar pedras dentro dela, fazendo surgir a temática de que o
amor e a solidariedade se sobrepõem ao mal, trazendo o efeito moral para a história,
P á g i n a | 889
descartando a hipótese de aterrorizar o público-alvo com a lição imposta a Chapeuzinho
Vermelho: “Não pare para conversar com ninguém, e vá em frente pelo seu caminho”.
[...] além de os irmãos Grimm escreverem a obra em um período em
que se reconhecia a sensibilidade da mentalidade de uma criança a
certas situações, havendo a preocupação de não traumatizar o leitor
infantil, o século XIX se destaca como o auge do Romantismo,
corrente estética que trouxe ao mundo um caráter mais sentimentalista
e humanitário [...] (CORDEIRO & SANTOS, 2012, p.7)
Chapeuzinho Vermelho é um conto que se tornou tradicional na literatura
brasileira e clássico da literatura mundial, enquadrado no gênero literário maravilhoso,
por apresentar o sobrenatural de forma natural em algumas situações. Tornou-se
bastante popular entre o público infanto-juvenil e acadêmico, é originário da Europa e
“já era uma história antiga” (BETTELHEIM, p. 204). Foi publicado pela primeira vez
no ano de 1697, pelo escritor francês Charles Perrault intitulada de Le Petit Chaperon
Rouge, sendo esta obra escrita “para a corte e não para as crianças” (SYLVESTRE,
2008, p. 39).
Por volta do ano 1812, foi publicada uma nova versão com algumas adaptações
pelos irmãos Grimm, com o nome de Rotkäppchen, voltada para adultos e crianças.
No entanto, pode-se considerar que Perrault seria apenas um coadjuvante no
sentido de recolher vários contos populares da época, entre eles Chapeuzinho Vermelho,
e publicá-los oficialmente em seu nome. Daí em diante, estes contos foram sendo
disseminados entre as diferentes classes sociais da época e ganhando popularidade, até
os dias hoje. Começaram a ser traduzidos para outras línguas/culturas e ganharam o
mundo.
Mais precisamente, no século XIX foram surgindo versões adaptadas a partir dos
contos tradicionais por diversos autores da literatura mundial, inclusive, autores
contemporâneos, entre eles Angela Carter, com os contos The Werewolf, The Company
of Wolves, Wolf-Alice, entre outros, publicados no livro The bloody chamber and other
stories, tais quais ganharam pontos em comum com a obra original, Chapeuzinho
vermelho, através da intertextualidade e parafraseamento de trechos – os dois primeiros
serão retomados na análise deste trabalho.
Em Morfologia do conto maravilhoso, Propp afirma que:
podemos chamar conto maravilhoso, do ponto de vista morfológico, a
qualquer desenrolar de ação que parte de uma malfeitoria ou de uma
falta, e que passa por funções intermediárias para ir acabar em
casamento ou em outras funções utilizadas como desfecho. A função
limite pode ser a recompensa, alcançar o objeto desejado ou, de uma
maneira geral, a reparação da malfeitoria, o socorro e a salvação
durante a perseguição, etc. Chamamos a este desenrolar de ação uma
sequência. Cada nova malfeitoria ou prejuízo, cada nova falta dá lugar
a uma nova sequência. Um conto pode ter várias sequências, e quando
se analisa um texto, é necessário em primeiro lugar determinar de
quantas sequências este se compõe. (PROPP, 1983, p. 144)
P á g i n a | 890
4. Angela Carter e o pós-modernismo
As obras de Carter possuem uma perspectiva considerada por críticos como pósmoderna, pelo fato de muitos de seus contos serem paródias e subverterem as funções
originais desses elementos, característica comum de obras de escritores dos anos 1970
em diante.
[...] Carter is rewriting the tales within the strait-jacket of their original
structures. The characters she re-creates must to some extent, continue
to exist as abstractions. Identify continues by role, so that shifting the
perspective from the impersonal voice to inner confessional narrative
as she does in several of the tales, merely explains, amplifies and reproduces rather than alters the original, deeply […]. (GAMBLE,
2001, p. 120)
As versões escritas por Carter foram feitas a partir de contos de fada e estão
povoadas de críticas implícitas, relacionadas à aspectos culturais, costumes da sociedade
burguesa da época, etc; fatores facilmente encontrados nos contos “tradicionais” ou de
origem.
Nessa perspectiva, tornou-se devidamente importante identificar as relações de
domínio e poder empregadas em certas culturas, além dos comportamentos emanados
de cada personagem que Carter “recria”.
Os contos de Carter criticam elementos basilares da sociedade capitalista no
momento de máximo consumo ditado pelos veículos de comunicação, trazendo à tona os
papéis “semelhantes” na contemporaneidade e alguns fundamentos da sociedade moderna,
tais como os costumes dos burgueses, modelos de relacionamento estabelecidos pela
família e pela religiosidade na sociedade burguesa, apresentados nos contos populares:
que “ditam, padronizam e determinam formas de comportamento e de relacionamento”
(SYLVESTRE, 2008, p. 42); a exemplo dos contos que foram recolhidos das tradições
orais e publicados por Perrault, pelos Irmãos Grimm, entre outros nomes. Vale salientar
que muitos destes contos sofreram alterações ao longo do tempo e foram adaptados ou, até
mesmo, foram feitas versões, tendo em vista a aceitação em diversas culturas, as quais
os contos foram inseridos.
5. A intertextualidade nos contos de Carter: Uma releitura parodística
A produção dos contos de Angela Carter gerou uma nova possibilidade de
releitura do tradicional conto de Chapeuzinho Vermelho. Por assim dizer, esse processo
de adaptação também é um processo de intertextualidade, uma vez que, tal como define
Marcuschi (2008), é uma “propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto das
relações explícitas ou implícitas que um texto ou grupo de textos determinado mantém
com outros textos” (Dicionário de análise do discurso, 2004, p.190).
Maingueneau (1984) (apud MARCUSCHI, 2008) faz a distinção entre
intertextualidade e intertexto, considerando este como os “fragmentos discursivos” que
aparecem no texto, e aquele como “o princípio geral que rege as formas de isso
P á g i n a | 891
ocorrer”, isto é, as regras de o intertexto se incidir. Koch e Elias (2009) apresentam o
conceito de intertextualidade e intertexto de maneira intrínseca aos gêneros textuais,
sendo, portanto, o primeiro definido como um fenômeno que ocorre “quando aquele que
escreve produz um gênero em formato de outro, mantendo, contudo, a função do textobase” (p.62), e o segundo considerado como “o conjunto de gêneros de texto elaborados
por gerações anteriores e que podem ser utilizados em cada situação específica, com
eventuais transformações”, ou seja, determinado pelos contextos sociais de uso.
Na verdade, atualmente há uma tendência a se considerar que todo e qualquer
texto possui um caráter intertextual, pois nenhum texto é produzido sem embasamentos
de outros textos já existentes. No entanto, há textos que apresentam a intertextualidade
de maneira mais aparente, ainda que não seja através de citações ou alusões, de caráter
mais explícito. Devido a isso, alguns autores, como Marcuschi (2008), consideram que
quando há essa ocorrência, a ela dá-se o nome de hipertextualidade, que inclui
fenômenos como o pastiche, a paródia, etc.
Nessa perspectiva, uma das possibilidades a se considerar, é a de que Angela
Carter, em seus contos, faz uso de uma hipertextualidade, ou mais especificamente, de
uma paródia, tida como “efeito de deslocamento”, bem como defende Santanna (2008),
visto que, segundo o autor, “falar de paródia é falar de intertextualidade das diferenças”.
(p.29). A paródia possui um viés contestador, “colocando as coisas fora de seu lugar
certo”, denunciando ambiguidades, contradições e duplicidades, possibilitando que o
leitor construa uma leitura diferente do convencional, através de uma visão crítica.
Através da paródia, o escritor pode substituir e excluir alguns
elementos/situações da obra tida como referência, considerando também que “a paródia
de uma tragédia será uma comédia”, ao mesmo tempo em que quando há uma
motivação fortemente marcada ou com traços cômicos, a paródia desta poderá ser uma
tragédia. (TYNIANOV, In: SANTANNA, 2008).
6. Verificando dois contos de Angela Carter
A partir das concepções fundamentadas anteriormente, será iniciada uma análise
referente a dois, entre os principais contos da autora Angela Carter, The werewolf (C1) e
The company of wolves (C2), que fazem parte do livro The blood chamber.
Algo característico de Carter, em seus contos, é a apresentação ao leitor do que
está por vir. Os contos escolhidos trazem, já no título, algo típico dos contos
maravilhosos, que é a menção de seres que não condizem com a realidade na qual
vivemos: “The werewolf”, por exemplo, no português brasileiro equivale a
“lobisomem”, um ser que não é real e está muito presente em filmes e obras de
ficcionais. O título do conto C2: “The company of wolves”, pode ser traduzido para o
português brasileiro como: “Na companhia dos lobos”, algo que é humanamente
impossível. Entretanto, é a partir do título que o leitor obtém pistas, já criando uma
expectativa com relação à narrativa:
As fronteiras de um livro nunca são bem definidas: por trás do título,
das primeiras linhas e do último ponto final, por trás de sua
configuração interna e de sua forma autônoma, ele fica preso num
sistema de referências a outros livros, outros textos, outras frases: é
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um nó dentro de uma rede. (FOUCAULT, In: HUTCHEON, 1987, p.
167).
Além dos títulos, o início dos contos de Carter, geralmente nas primeiras linhas,
oferecem informações ou descrições daquilo que virá a ser parte constituinte do
entendimento global da trama, situando o leitor e oferecendo-lhe o cenário no qual as
ações são desencadeadas:
C1: “It is a northern country; they have cold weather, they have cold hearts.
Cold; tempest; wild beasts in the forest. It is a hard life. Their houses are built of
logs, dark and smoky within. […] A bed, a stool, a table. Harsh, brief, poor
lives.” (p.73)
C2: “The wolf is carnivore incarnate and he's as cunning as he is ferocious; once
he's had a taste of flesh then nothing else will do.” (p.74)
C2: “It is winter and cold weather. In this region of mountain and forest, there is
now nothing for the wolves to eat. Goats and sheep are locked up in the byre, the
deer departed for the remaining pasturage on the southern slopes--wolves grow
lean and famished”. (p. 74)
Nesses momentos iniciais que constam na “situação introdutória”, o leitor já se
apropria, em ambos os contos – C1 e C2 –, das informações correspondentes às
particularidades do espaço/cenário proposto; e são trazidas, de forma enfática, algumas
características do lobo (C2). Ao mesmo tempo, apesar de serem contos distintos, há
uma ligação entre ambos com a revelação de alguns pontos em comum nestes aspectos
citados e há, também, uma aproximação por meio do intertexto, proveniente dos contos
tradicionais do séc. XII.
De acordo com Hutcheon (1991, p. 166), “uma obra literária já não pode ser
considerada original”, pode ser considerada apenas “como parte de discursos anteriores
que qualquer texto obtém sentido e importância”. Os contos tradicionais são retomados
nas narrativas contemporâneas através da intertextualidade ou em forma de paródia. As
versões dos contos de Carter trazem vários aspectos que são similares às versões dos
Irmãos Grimm e Perrault do conto Chapeuzinho Vermelho, tais como: a inserção de
personagens similares à “Chapeuzinho Vermelho”, sua mãe, o lobo (lobisomem) e a
avó; o cenário é parecido, “ter que atravessar a floresta para chegar até a casa da avó” e,
no percurso, “se encontrar com o lobo” (lobisomem); o enredo lembra um pouco as
duas primeiras versões publicadas, pelo fato de envolver uma mesma contextualização,
Chapeuzinho Vermelho “levar algo para a sua avó”.
A intertextualidade é identificada de forma mais intensa nos diálogos entre
Chapeuzinho Vermelho, nos trechos a seguir do conto C2:
C2: - What big eyes you have.
- All the better to see you with.
- What big arms you have.
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- All the better to hug you with.
- What big teeth you have!
- All the better to eat you with.
Essa parte do conto fica evidente a intertextualidade com o uso do diálogo entre
o lobo e chapeuzinho vermelho, presente nas versões tradicionais de Perrault e dos
irmãos Grimm no conto Chapeuzinho vermelho, que foram traduzidas para o Português
Brasileiro pelas tradutoras Regina Reis Junqueira e Nilce Teixeira, respectivamente,
conforme mostradas abaixo:
— Vovó, como são grandes os seus braços!
— É para melhor te abraçar, minha filha!
— Vovó, como são grandes as suas pernas!
— É para poder correr melhor, minha netinha!
— Vovó, como são grandes as suas orelhas!
— É para ouvir melhor, netinha!
— Vovó, como são grandes os seus dentes!
— É para te comer! (PERRAULT, 1999)
— Oh, vovozinha, que braços longos você tem!
— São para abraçá-la melhor, minha querida menina!
— Oh, vovozinha, que olhos grandes você tem!
— São para enxergar também no escuro, minha
menina!
— Oh, vovozinha, que orelhas compridas você tem!
— São para ouvir tudo, queridinha!
— Oh, vovozinha, que boca enorme você tem!
— É para engolir você melhor!!!. (GRIMM, 1997)
São poucas as diferenças e é notório que há o mesmo diálogo entre Chapeuzinho
Vermelho e o lobo na “tradução” da versão de Angela Carter por Luciano Vieira
Machado, encontrada no livro 103 Contos de fadas de Angela Carter:
Vovó, que braços grandes você têm!
São para te abraçar melhor, queridinha.
Vovó, que pernas grandes você tem!
São para correr melhor, queridinha.
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Vovó, que orelhas grandes você tem!
São para te ouvir melhor, queridinha.
Vovó, que olhos grandes você tem!
São para te ver melhor, queridinha.
Vovó, que dentes grandes você tem!
São para te comer melhor, queridinha.
(MACHADO, 2007, p. 236)
É perceptível que a estratégia de tradução do Luciano Vieira Machado é
diferenciada pelo fato de não seguir à risca a tradução de todos os trechos que são
apresentados nos contos da autora Angela Carter, ou seja, não há a inclusão de alguns
trechos do texto fonte em inglês, exemplificado a seguir, com as respectivas traduções:
C2: “What big eyes you have.”
“All the better to see you with.”
“No trace at all of the old woman except for a tuft of white hair that had caught
in the bark of an unburned log. When the girl saw that, she was in danger of
death.”
“Where is my grandmother?”
“There’s nobody here but we two, my darling.” (CARTER, p. 80)
A partir desse trecho do conto, vemos que não há a inclusão da voz do narrador
entre o diálogo de Chapeuzinho Vermelho e o lobo, nem há a sequência de perguntas
como nas outras traduções supracitadas. Sendo, assim, consequentemente, a tradução de
Luciano Vieira Machado se aproxima mais das traduções do conto Chapeuzinho
Vermelho dos Irmãos Grimm e Perrault nas versões das tradutoras Regina Reis
Junqueira e Nilce Teixeira, e não se aproxima tanto das versões dos contos que
rebuscam elementos do conto tradicional “Chapeuzinho Vermelho”, presentes, por
exemplo, nas obras da autora Angela Carter.
No conto C1 há muitas similaridades – tomando como referência as versões dos
Grimms e Perrault traduzidas para o Português Brasileiro – quanto ao enredo, cenário e
contextualização, porém não há o diálogo entre os personagens “Chapeuzinho” e o
“Lobo” como no conto C2.
Como sabemos, os contos entre os séculos XVII e XVIII, tiveram influências da
cultura da civilização do tempo em que surgiram, podemos identificar aspectos que
estão vinculados à cultura de uma sociedade “patriarcalizada”, típicos nesse tempo.
Como podemos observar a seguir, em trechos do conto The werewolf, de Carter, esses
aspectos são modificados e/ou subvertidos de acordo com a realidade pós-moderna,
assim, traços de sociedades patriarcalizadas foram deixados de lado pela escritora:
C1: “Here, take your father’s hunting knife; you know how to use it.” (p.73)
P á g i n a | 895
C2: “The grave-eyed children of the sparse villages always carry knives with
them when they go out [...]. Their knives are half as big as they are, the blades
are sharpened daily.” (p. 75)
No momento anterior a esse, do conto C1, a mãe pede que a filha vá até a casa
da avó, que estava doente, para lhe levar comida e, logo após, oferece à filha algo que
ela pudesse se defender no caminho: “a faca de caça de seu pai”, retratando que os
costumes da época apresentados nos contos tradicionais foram deixados de lado, diante
dos traços da figura feminina como um ser “delicado”, caseiro e que não poderia
exercer certas funções impostas à figura masculina, costumes estes prezados no tempo
em que as duas primeiras versões do conto Chapeuzinho Vermelho foram publicadas.
Mais adiante, já no caminho para a casa de sua avó, “Chapeuzinho” se encontra
com o “lobo” – de acordo com o enredo dos contos de Carter, na tradução, seria mais
adequada a palavra lobisomem para os dois contos objetos de pesquisa deste trabalho –
e o encara:
C1: “It was a huge one, with red eyes and running, grizzled chops; any but a
mountaineer’s child would have died of fright” (p. 73)
O lobo a ataca, mas “Chapeuzinho” utiliza a faca de seu pai e consegue se livrar
dele:
C1: “It went for her throat, as wolves do, but she made a great swipe at it with
her father’s knife and slashed off its right forepaw.” (p. 73)
No conto C2, o enredo é um pouco diferente, ela escuta o lobo uivando ao longe
e não se encontra com um lobo, mas sim com um rapaz aparentemente atraente:
C2: “When she heard the freezing howl of a distant Wolf, her practised hand
sprang to handle of her knife, but she saw no sign of a wolf at all […] when she
heard a clattering among the brushwood and there sprang on to the path […] a
very handsome young one […] ” (p. 77)
A garota se assustou ao se encontrar com esse “jovem”, mas ao vê-lo ficou mais
tranquila e o jovem rapaz tratou de confortá-la fazendo algo engraçado:
C2: “[…] he laughed with a flash of white teeth when he saw her and made her
a comic yet flattering little bow; she’d never seen such a fine fellow before […]”
Os trechos acima mostram a diferença entre os enredos dos contos C1 e C2,
apesar de manterem aspectos semelhantes às versões tradicionais do conto Chapeuzinho
P á g i n a | 896
Vermelho, tais como a contextualização, o motivo pelo qual a garota (Chapeuzinho
Vermelho) tem de atravessar a floresta, o próprio cenário e o encontro. No entanto,
comprova que há traços advindos dos contos populares incorporados no enredo
contemporâneo da autora Angela Carter, já vistos anteriormente.
Os desfechos dos contos C1 e C2 também apresentam suas particularidades e
acontecimentos inéditos. No conto C1, quando a garota cortou a pata direita do lobo, ela
continuou seguindo para a casa da sua avó, carregando a pata dentro da cestinha onde
guardava a comida que seria entregue à avó. Ao chegar lá, encontrou a sua avó muito
doente:
C1: “She found her grandmother was so she had taken to her in bed fallen into a
fretful sleep, moaning and shaking so that the child guessed she had a fever
[…]” (p. 74)
Quando a garota se aproximou, colocou a mão na cabeça da avó e viu que estava
mesmo com febre:
C1: “She felt the forehead, it burned. She shock out the cloth from her basket, to
use it to make the old woman a cold compress, and the wolf’s paw fell to the
floor.” (p. 74)
No momento em que caiu a pata no chão, algo inusitado estava para acontecer; a
garota percebe que não se tratava de uma pata, mas de uma mão:
C1: “But it was no longer a wolf’s paw. It was a hand, chopped off at the wrist,
a hand toughened with work and freckled with old age. There was a wedding
ring on the third finger and a wart on the index finger. By the wart, she knew it
for her grandmother’s hand.” (p. 74)
Ela remove o lençol da velha a fim de verificar o motivo da febre:
C1: “She pulled back the sheet but the old woman woke up, at that, and began to
struggle, squawking and shrieking […] she managed to hold her grandmother
down long enough to see the cause of her fever. There was a bloody stump
where her right hand should have been […] (p. 74)
A garota se assusta e desperta a atenção da vizinhança, que descobriram se tratar
de uma feiticeira:
C1: “The child crossed herself and cried out so loud the neighbors heard her and
come rushing in. They knew the wart on the hand at once for a witch's nipple;
they drove the old woman out […], beating […] and pelted her with stones until
P á g i n a | 897
she fell down dead. Now the child lived in her grandmother's house; she
prospered.” (p. 74)
O conto C2, também apresenta um desfecho diferenciado e inusitado.
Começando pela sedução não só da garota, mas da avó da garota por parte do jovem de
boa aparência que encontrara com a menina no caminho da floresta; o momento no qual
a garota se encontrou com ele na floresta e conversaram bastante a caminho da casa de
sua avó, como se já se conhecessem por muito tempo. Em certo momento da conversa,
fizeram um tipo de aposta para ver quem chegaria mais rápido até a casa da avó da
garota. É importante salientar que nesse momento a autora insere o discurso direto, a
própria fala de cada personagem com a interferência do narrador (observador):
C2: “[…] aren't you afraid of the wolves?”
“He only tapped the gleaming butt of his rifle and grinned.”
“Is it a bet? he asked her. […] What will you give me if I get to your
grandmother's house before you?”
“What would you like? She asked disingenuously.”
“A kiss.” (p. 77)
Depois da aposta, mesmo ao anoitecer, a garota demorou um pouco no percurso
para ter a certeza de que o rapaz iria ganhar a aposta, enquanto isso, o rapaz não perdeu
tempo e foi até a casa avó da menina:
C2: “He rapped upon the panels with his hairy knuckles.
It is your granddaughter, he mimicked in a high soprano”
“Lift up the latch and walk in, my darling.” (p. 78)
O jovem tirou a roupa, a avó da menina presencia aquilo e ainda comenta:
C2: “He strips off his shirt. […] He strips off his trousers and she can see how
hairy his legs are. His genitals, huge.”
“ Ah! huge.” (p. 78)
Ele ataca a senhora e a devora sem que deixasse falar mais nada:
C2: “The last thing the old lady saw in all this world was a young man, eyes like
cinders, naked as a stone, approaching her bed.” (p. 78)
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Logo se arruma e organiza o quarto, colocando os ossos da velha dentro de uma
caixa de madeira embaixo da cama, trocou os lençóis por outros limpos, e queimou os
cabelos dela na lareira para não deixar vestígios do que havia acontecido, para esperar a
garota que estava a caminho:
C2: “All was as it had been before except that grandmother was gone. [...] the
young man sat patiently, deceitfully beside the bed in granny's nightcap.” (p. 79)
Ao chegar na casa, nenhum sinal da velha, com exceção de uma mecha de
cabelos, provavelmente de sua avó; nesse momento a garota percebeu que estava em
apuros:
C2: “No trace at all of the old woman except for a tuft of white hair that had
caught in the bark of an unburned log. When the girl saw that, she was in danger
of death.”
“Where is my grandmother?”
“There’s nobody here but we two, my darling.” (p. 80)
Ela ficou aparentemente com medo, mas depois seu medo cessou e começou
tirar a roupa:
C2: “[…] her fear did her no good, she ceased to be afraid.”
“What shall I do with my shawl?”
Throw it on the fire, dear one. You won't need it again.
“What shall I do with my blouse?
“Into the fire with it, too […]” (p. 80)
E assim, a garota fez o que ele pediu, deu-lhe o beijo prometido na aposta que
fizeram anteriormente e acabou dormindo com o lobo:
C2: “[…] she sleeps in granny’s bed, between the paws of the tender wolf.”
(p.81)
Outras temáticas que podem ser caracterizadas como contemporânes são
abordadas no conto C2, a virgindade da garota, por exemplo, é mencionada com uma
linguagem metafórica, que pode estar relacionada à cor vermelha (símbolo da
virgindade) no capuz da personagem “chapeuzinho vermelho” proveniente dos contos
tradicionais de Perrault e dos Irmãos Grimm
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C2: “She stands and moves within the invisible pentacle of her own virginity.”
(p. 76)
Além disso, alguns símbolos e superstições populares são encontrados em ambos
os contos:
C1: “Wreaths of garlic on the doors keep out the vampires” (p. 76)
C2: “She […] took off her scarlet shawl, the colour of poppies, the colour of
sacrifices, the colour of her menses” (p.80)
Essas temáticas não foram mencionadas, de forma explicitada, anteriormente nas
versões tradicionais, assuntos dessa natureza caracterizam os contos de Carter, ainda
mais, como pós-modernistas.
7. Considerações finais
Em seus contos, Angela Carter demonstra várias possibilidades de desfecho de
acordo com a ótica pós-modernista. Nos dois contos analisados, por exemplo, ficou
evidente que os padrões comportamentais apresentados pelos personagens mudaram
com o passar dos séculos, ao comparar com os desfechos das versões do conto
maravilhoso Chapeuzinho Vermelho do francês Charles Perrault e dos irmãos alemães
Jacob e Wilhelm Grimm. Além disso, são encontradas algumas temáticas que
dificilmente seriam inseridas e/ou publicadas nos contos dos séculos XII e XIII de
maneira mais explícita, comprovando, assim os traços contemporâneos permeados nos
contos da autora inglesa.
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O CAMINHO DA OBSESSÃO: DEGRADAÇÃO E DESEJO EM “BERENICE”
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Raynara Karenina Veríssimo CORREIA (UFCG)45
Ana Júlia Monteiro de ASSIS (UFCG)46
Resumo: A estrutura narrativa em “Berenice” representa perfeitamente a obra de Edgar
Allan Poe em que há a caracterização do horror como parte de seu elemento
constitutivo, e a abordagem de temas como a morte da mulher amada, doença mental,
catalepsia, e ser enterrado vivo. Haja vista à formação de um discurso interpretativo e
despretensioso de qualquer entendimento neutro, o presente estudo propõe uma análise
do conto supracitado, buscando descrever as doenças e símbolos que permeiam a
narrativa. Surge então uma problemática: Até que ponto a obsessão pode levar um ser
humano? Para responder a esta pergunta, seguimos classificando as estruturas da
narrativa, explicitando-as em dois momentos: 1-o plano da enunciação; 2- o plano do
enunciado, e focando na temática obsessão através de um olhar interpretativo, tomando
por base a Teoria de Platão, que conceitua o mundo das ideias e o mundo dos sentidos.
As observações da nossa análise estão baseadas nas teorias de D’Onofrio (1995), Sá
(2003), Bellin (2010), entre outros.
Palavras-chave: Monomania; Obsessão; Epilepsia; Catalepsia; Dentes.
1. Introdução
É sabido que Edgar Allan Poe é um dos precursores da literatura de ficção
científica e fantástica modernas, sendo também considerado mestre do horror, pela sua
contribuição literária através de contos que imergem no estado psíquico dos seus
leitores, provocando estados de tensão e medo, em que é perceptível o perigo ou ameaça
sobre a preservação do indivíduo (Bellin, 2010; Sá, 2003; Doutor, 2010).
Na maioria dos seus textos, nos depararmos com ruínas e cemitérios, lugares
sinistros, e/ou tidos como mal assombrados, além de personagens solitários que
enfrentam destinos desconhecidos e tenebrosos e que normalmente são perturbados por
manias e obsessões (Bellin, 2010). Por apresentar tais características, além de abordar
temas considerados recorrentes nas obras de Poe, como a morte da mulher amada, ser
enterrado vivo e doenças como a catalepsia, “Berenice” enquanto narrativa de suspense
e horror, pode ser considerada um dos um dos contos mais violentos escritos por ele,
representando assim perfeitamente a sua obra.
Ao ler este conto, é possível efetuar uma prática da análise literária que aqui se
instala. Sob este viés, pretendemos oferecer ao leitor uma visão diferenciada sobre a
narrativa, desempenhando desta forma, mais do que uma leitura indutiva, enfatizando o
aspecto crítico e atentando para um aprofundamento inerente ao texto e as reflexões por
ele propostas.
45
Aluna do Curso de Letras-Inglês, Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, Email: [email protected]
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Aluna do Curso de Letras-Inglês, Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, Email: [email protected]
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A fim de melhor compreender a obra e de instaurar nossa análise, nosso trabalho
foi desenvolvido de modo que, inicialmente, apresentamos o enredo e classificamos as
estruturas presentes no texto, a partir dos planos do enunciado e da enunciação,
propostos por D´onofrio (1995). Em seguida, apresentamos a teoria que rege nossa
análise e os elementos constitutivos da narrativa, a saber, as doenças dos personagens e
suas respectivas funções; a abordagem do maravilhoso; e os símbolos presentes no
conto, que fundamentam nossa análise interpretativa.
2. Componentes da narrativa: planos do enunciado e da enunciação
“Berenice” foi publicado em março de 1835, no South Literary Messenger, de
Richmond. É uma narrativa de horror e mistério constituída por dois personagens: Egeu,
o protagonista, e sua prima Berenice, que intitula o conto. Os demais (a mãe de Egeu e
os criados) não são nomeados, pois funcionam simplesmente como mediadores entre o
leitor e a história. História essa que não nos deixa a mostra um tempo determinado, nem
tampouco é constituído de ações ao longo de seu enredo, nos levando a concluir que,
por esta razão, a cronologia não se instala aqui como elemento distintivo.
O conto é narrado por Egeu, personagem que reúne em si o papel de sujeito da
enunciação e de sujeito do enunciado, sendo por meio de seu ponto de vista que o leitor
passa a ter contato com os sentimentos que constituem a narrativa (D´ONOFRIO,
1995). Este caracteriza-se portanto como narrador – personagem – protagonista, como
podemos observar na citação a seguir: “Berenice e eu éramos primos e crescemos
juntos, no solar paterno. Mas crescemos diferentemente: eu, de má saúde e mergulhado
na minha melancolia; ela, ágil, graciosa e exuberante de energia” (POE, 2011, p.53).
Egeu é um homem solitário, portador de monomania, um transtorno focal da
mente que, segundo Tavares (2008), é responsável pela causa de delírios e obsessões.
Em virtude de tal doença, Egeu fixa sua atenção em sua prima Berenice, que de vital e
graciosa, passa a padecer de várias enfermidades, entre elas uma epilepsia que quase
sempre resultava num estado de catalepsia, o que causou nela uma metamorfose capaz
transformar suas condições física e moral. Devido a esse processo de degradação, a
doença de Egeu se agrava, de modo que sua monomania se volta de forma obsessiva
para os dentes de Berenice, visto que estes foram a única parte do seu corpo não
atingido pela doença. Berenice é enterrada, e ainda assim Egeu não para de vislumbrálos, devido a sua incontrolável obsessão, quando ele então se depara com um de seus
criados, e este o informa que o túmulo de Berenice havia sido violado e que ela ainda
estava viva. Ao observar Egeu, ele percebe que suas mãos estão arranhadas e suas
vestes cobertas de sangue, além de que perto dele havia uma caixa que continha trinta e
dois pequenos objetos de cor branca, parecendo ser de marfim, e um livro em que fora
sublinhado algo relacionado sobre visitar o túmulo de sua amada. Segue a citação
original: “Dicebant mihi sodales, si sepulchrumamicae visitarem, curas meas
aliquantulum fore levatas”. (POE, 2011, p.63)
3. Teoria de Platão: o mundo dos sentidos x o mundo das ideias
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Na tentativa de entender o texto por uma perspectiva semântico-simbólica,
conjecturamos que Egeu evidencia o mundo das ideias, proposto pela teoria de Platão47,
que prega a existência de um determinado elemento na sua forma mais casta, mais
perfeita e integrada. O narrador por sua vez nos faz referencia a esse mundo ao
enunciar: “Aqui nasci eu. Mas é apenas uma afirmação ociosa dizer que eu não tinha
vivido antes. Há, no entanto, uma lembrança [...]” (POE, 2011, p.52). No conto, essa
lembrança refere-se a algo que ele ainda não viveu, por isso cremos que esta é a
primeira proeminência do mundo das ideias, uma vez que, Egeu se encontra no mundo
sensível, considerado por Platão imperfeito e limitado aos cinco sentidos.
Egeu descreve sua prima Berenice de maneira extremamente distante da sua
própria realidade, retratando-os como dois opostos. Berenice é até mesmo denominada
sílfide48 mostrando o quanto sua imagem é engrandecida pelo narrador, como vemos na
citação a seguir: “Ah, deslumbrante e fantástica beleza! Ah, sílfide entre os arbustos
[...]” (op.cit. p.53). Neste momento, segundo Bellin (2010), o narrador faz uma
idealização de sua prima e recorre a elementos da mitologia greco-latina,
transformando-a em um ser inatingível, de outro mundo, ou seja, habitante do mundo
das ideias.
Ao discorrer a narrativa, nos deparamos com a doença de Berenice, que a tira
automaticamente do mundo puro, e a traz para o mundo real, em virtude da sua
degradação. Com a suposição da morte de sua noiva, Egeu vê-se desesperado por não
estar mais tão perto de seu objeto de desejo, expedindo-o a sensação de que este agora
pertence mais do que nunca, ao mundo sensível.
O conto, portanto nos alude à ideia de que Berenice se encontrava em um plano
superior, o qual o narrador mostra-se determinado a alcançar, entretanto, como veremos
a seguir, tudo isto é predeterminado pelas próprias doenças dos personagens.
4. As doenças apresentadas e suas respectivas funções
A princípio, Berenice é apresentada ao leitor como uma personagem graciosa,
ágil e vital, mas no decorrer da narrativa somos introduzidos a uma nova imagem da
mesma, caracterizada por uma metamorfose49 de sua imagem e de seu psicológico, à
medida que esta passa a padecer de uma série de doenças, das quais só nos é explicitada
uma, a epilepsia que, dentro desse enredo, é atrelada à catalepsia:
Dentre a numerosa cadeia de doenças introduzidas por aquela primeira
fatal moléstia, pode ser mencionada uma em particular, que efetuou
47
Platão (428/7-348/7 a. C) é marcado em toda a História da Filosofia como sendo um grande propagador
das ideias de seu mestre, o também filósofo Sócrates (470/469-399 a. C). A sua obra literária, constituída
de diálogos, tem Sócrates como o personagem principal, sempre envolvido em discussões com os mais
diversos tipos de pessoas da Grécia (MARINQUE, 2003).
48
Sílfide segundo o dicionário online Aulete pode significar mulher esbelta, de aparência extremamente
delicada, além de ser um termo usado na mitologia, durante a idade média, para designar o gênio
feminino do ar nas mitologias céltica e germânica.
49
O termo metamorfose provém do latim metamorphōsis que, por sua vez, deriva de um vocábulo grego
que significa “transformação”. O sentido mais preciso da palavra, por conseguinte, diz respeito à
transformação de algo noutra coisa, ou ainda na passagem de um estado para outro, como o da pobreza
para o da riqueza ou o do celibato para o do casamento.
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uma metamorfose de caráter tão horrível na condição física e moral de
minha prima: foi a mais obstinada e acabrunhante por sua natureza,
uma espécie de epilepsia, que muitas vezes terminava por um transe,
um estado de catalepsia [...]. (POE, 2011, p.53 e 54).
Segundo Stella e Pereira (2003), a epilepsia é uma desordem cerebral em que os
neurônios podem por algumas vezes realizar sinalizações de forma anormal. Desta
forma, o padrão normal da atividade neural torna-se perturbado, e pode causar estranhas
sensações, emoções e sentimentos que justificaram a completa mudança moral de
Berenice.
Como mencionado na citação acima, Berenice também entrava em um estado de
transe denominado catalepsia50. Esta se caracteriza por uma perturbação psicomotora
que consiste na cessação brusca dos movimentos involuntários, deixando o indivíduo
em um estado de plasticidade motora, conservando as posições que lhe são dadas
assemelhando-se a um boneco de cera, dando-nos a entender que aquele que sofrer uma
crise cataléptica pode ser facilmente confundido com um morto.
Segundo Bellin (2010), a degradação de Berenice apresenta uma função dentro
da narrativa: introduzir a doença do próprio narrador, a monomania, que conforme nos
explica Tavares (2008):
descreve pacientes que apresentam um transtorno focal da mente, que
em todos os outros aspectos encontrava-se intacta. A síndrome era
subdividida em três tipos: delirante, raciocinante e instintiva. As duas
primeiras são referências clássicas de dois diagnósticos atuais,
respectivamente transtorno delirante não esquizofrênico e transtorno
obsessivo-compulsivo (TOC). Mas o conceito de Monomania era
muito abrangente, reunindo ao mesmo tempo síndromes psicóticas e
não psicóticas, e por isso foi abandonado (TAVARES, 2008).
Por assim dizer, nos é revelado o motivo da idealização de Egeu por Berenice,
que desvestida de qualquer mancha de sexualidade, é transformada em seu objeto de
desejo.
Com a suposta morte de Berenice, a monomania de Egeu é ainda mais instigada,
e o faz ir em busca da sua cobiça, já que esta seria a única forma de fazer a Berenice
transformada pela doença tornar-se o ser que para Egeu era idealizado.
5. Encaminhamento para o clímax: o mote para o maravilhoso
Uma das particularidades sempre presente na maneira de escrever de Poe é a
grande incidência da escrita em planos espaciais: o dos fatos versus o da ficção/sonho.
Em virtude desse jogo ambíguo, é que cremos que a narrativa estrutura-se numa
perspectiva fantástica. Leão (2011) apresenta a definição de literatura fantástica
baseada em Todorov, mostrando que:
50
Fonte: Dicionário de psicologia Portal da Psique. Consultar bibliografia.
P á g i n a | 905
O fantástico se constrói no espaço literário da incerteza, enveredando
por espaços vizinhos ao “estranho” ou o “maravilhoso”, não sendo
mais que a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais
que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente
sobrenatural.(TODOROV apud Leão, 2011, p.44).
De acordo com Sá (2003), em vários contos de Edgar Allan Poe há uma
abordagem do fantástico que permite que o narrador se encontre entre dois mundos
conflitantes durante um momento instável ou perturbador, mostrando uma visão
deturpada da realidade que pode ser explicada no enredo e que são, normalmente,
oriundos de um estado sonolento e fantasioso, da loucura, ou do uso de drogas.
Ao lermos o conto, há a probabilidade de hesitarmos a respeito da veracidade
dos fatos narrados uma vez que eles são apresentados do ponto de vista do narradorpersonagem, que em muitos momentos se encontra em estados de delírio. Apesar disto,
é possível perceber clareza e honestidade por parte dele, à medida que este, mediante a
sua monomania, passa a duvidar de suas próprias visões. Isto acaba direcionando o
leitor a acreditar nos fatos narrados pelo personagem, mesmo que estes apresentem
aspectos sobrenaturais, pois, o mesmo não poderia mentir a respeito de algo que nem
ele mesmo tem certeza.
Quanto a isso, Sá (2003) alega que “Berenice” é um exemplo do fantástico
tradicional, e apresenta duas características que contribuem para por o mundo
maravilhoso em dúvida: a catalepsia que confunde a vida e a morte, fazendo com que a
própria ciência mascare a realidade; e a monomania, que deixa o narrador em um estado
intermediário entre sono e vigília, sanidade e loucura, consciência e inconsciência sendo
estes usados como justificativa para tornar reais os fatos que se apresentam
aparentemente como maravilhosos.
Sendo assim, a abordagem do maravilhoso em “Berenice”, configurada pelos
questionamentos colocados pelo narrador, acabam envolvendo o leitor e gerando uma
forte ligação entre ambos, de modo que a dúvida de um se torna a do outro. Por este
motivo, nos baseamos mais uma vez em Sá, para afirmarmos que o mote para o
maravilhoso surge em “Berenice” no momento em que Egeu vê o suposto cadáver se
mexer, e duvida sobre a morte de sua prima. Tal incerteza é evidenciada no conto
quando Egeu se pergunta: “Deus do céu! Seria possível? Meu cérebro se achava
transtornado ou o dedo da morta se movera dentro da mortalha que o envolvia?” (POE,
2011, p.61). Se observarmos bem, neste momento, há uma sugestão da credulidade do
retorno da vida após a morte, configurando desta forma um mundo maravilhoso no qual
seria possível a recessão da morte, através do retorno espiritual.
Neste momento, o leitor se depara novamente com a dúvida, que agora se
apresenta em sua forma mais instigante. Dessa forma, percebemos que o fantástico
enquanto elemento da narrativa constrói para o leitor um caminho sucinto, que o
direciona para o ponto de tensão culminante do conto: o clímax.
6. Símbolos – chave da leitura do desfecho
A partir das atuações discorridas no texto, pressupomos a ideia de que Egeu
visitou Berenice depois de enterrada, a fim de retirar seus dentes, que de acordo com o
P á g i n a | 906
dicionário de símbolos: “É um instrumento de tomada de posse, tendendo a assimilação:
é a mó que esmaga para fornecer um alimento ao desejo.” Esta ação retrata o cume da
obsessão de Egeu, por isso é a partir dela que o narrador encontra a calmaria para sua
alma ansiosa e perturbada, visto que pôde alcançar com êxito o mundo das ideias.
Bellin (2010) explica que Egeu, é o nome de um lendário rei ateniense que
comete suicídio ao ter a informação equivocada de que seu filho Teseu teria morrido ao
tentar matar o Minotauro. Este nome funciona de forma simbólica dentro da narrativa,
pois sugere ao mesmo tempo a força, o poder e a aniquilação do masculino. Por sua vez,
Berenice, em grego, significa “portadora da vitória”, além de ser uma personagem
trágica que prometeu seu cabelo a Afrodite caso o marido retornasse vivo da
guerra,.Berenice foi também o nome de várias rainhas egípcias e de algumas princesas
judias, o que poderia remeter a uma aura de realeza envolvendo a personagem.
Entendemos assim, que Egeu provido de todo o poder exaltado pelo seu nome,
foi vitorioso por conseguir alcançar com êxito o seu objeto de maior desejo, a própria
Berenice, que era a representação mais fina do mundo das ideias.
O desfecho do conto se inicia apresentando mais um importante símbolo dentro
da narrativa: uma pequena caixa, que assim como os demais não está presente no conto
por acaso, e é provido de um significado. A caixa é introduzida no conto da seguinte
forma: “Na mesa ao meu lado estava acesa uma lâmpada, e havia uma caixinha perto
dela. [...] Mas como se achava ela ali, sobre minha mesa e por que eu estremecia só de
olhá-la?” (POE, 2011, p.62). Segundo Chevalier e Gheerbrant (2008), “a caixa é um
símbolo feminino que contém sempre um segredo: encerra e separa do mundo aquilo
que é precioso, frágil ou temível”. Abrir uma caixa significa sempre um risco, o que nos
leva a entender o porquê do receio do narrador em abri-la.
Além da caixa, Egeu encontra em seu colo um livro aberto, com algo
sublinhado, do poeta Ebn Zaiat: “dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae
visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas” 51(POE, op.cit., p.51 e 62). O
interessante dessa citação é que ela é apresentada em dois momentos cruciais na
narrativa: no início, aparecendo como uma espécie de epígrafe52 que por ter sido
inserida logo abaixo do título do conto irá assumir a função de explicitar o assunto ou
mote principal da narrativa (SÁ, 2003), e no clímax constituindo mais uma prova do
acontecido.
O final do conto apresenta uma série de evidências que comprovam o ato de
improbidade de Egeu quanto à morte de Berenice: o livro que se encontra em seu colo,
as vestes enlameadas e cobertas de sangue, os arranhões em seus braços, a pá, e a caixa
que finalmente revela seu segredo ao cair e espalhar instrumentos de dentista juntos a
trinta e dois pequenos objetos brancos, que pareciam de marfim. Contudo, o desfecho
pode ser deduzido pelo leitor desde o início, através da epígrafe e da forte impressão
que os dentes de Berenice causam ao narrador ao longo da enredo: “Enquanto olhava
para os múltiplos objetos do mundo exterior, só tinha pensamento para os dentes.
Ansiava por eles com um desejo frenético” (POE, 2011, p.59). Quanto a isto, Furlan
(2007) nos diz que “a epígrafe que se segue, a mesma frase destacada do livro, revela já
no início da obra que a personagem conseguiria triunfar ao visitar o túmulo da amiga.”
Todavia, o que realmente torna a narrativa interessante é o poder de Edgar Allan Poe de
construir o conto com um toque especial revestido fantasticamente de mistério, horror e
51
“Meus amigos me garantiram que, se visitasse o sepulcro de minha amiga, obteria um certo alívio para
minha tristeza” em Latim no original. (N.T.)
52
“Definição sucinta e totalizadora de toda a narrativa” (BELLIN, 2010).
P á g i n a | 907
suspense que inevitavelmente prendem e geram uma grande expectativa no leitor ao
encontro do desfecho.
7. Considerações finais
Em “Berenice”, podemos enxergar de perto até onde a obsessão pode conduzir
um ser humano. O assassinato cometido por Egeu, instigado por sua doença, parte de
aspectos dualistas, fantásticos e sobrenaturais recorrentes dos contos de Poe. Estas
características aparecem com o desígnio de transformar a Berenice transfigurada, um ser
igual a Egeu, como parte do mundo real.
A forte obsessão pelos dentes de sua prima, única parte do corpo a não sofrer
degradação, o leva durante um momento de delírio a satisfazer seu desejo frenético, no
intuito de finalmente tranquilizar suas inquietações, e então, metonimicamente, ter
Berenice e tudo que ela sempre representou consigo; simbolizando-a através de objetos
eternizados, guardados em nada melhor que uma caixa para esconder o segredo do
homem que foi capaz do inesperado para alcançar seu objeto de desejo: Berenice como
parte do plano ideal.
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A IMPORTÂNCIA DA TEORIA LINGUÍSTICA E DO MÉTODO DE ENSINO
PARA A APRENDIZAGEM DE UMA LÍNGUA ESTRANGEIRA
Gracilene Felix Medeiros (UFPB)
Lucas Carlos de Souza Peixoto (UFPB)
Resumo: O uso da Língua Estrangeira tornou-se essencial para o cotidiano da
população de nosso mundo globalizado. Logo, entendemos que para aqueles que
precisam conhecer uma ou mais Línguas Estrangeiras, o interesse transforma-se em uma
obrigação. Essa situação é bastante peculiar hoje em dia, principalmente, na formação
de profissionais que trabalharão com o público estrangeiro. Por isso, temos como
objetivo analisar as teorias e métodos empregados pelos professores de LE dos alunos
do 1º ano do curso de Hotelaria de uma Escola da rede pública de ensino. Buscamos
explicar as habilidades linguísticas necessárias para profissão desses e se eles estão
sendo atendidos naquilo que é primordial para um profissional da área. Para isso,
aplicamos questionários com o intuito de identificarmos qual a concepção de língua dos
professores de LE da escola em questão, assim como, as teorias, estratégias e métodos
usados por esses. Pretendemos com essa pesquisa, demonstrar que como outras escolas
públicas, essa também ensina a Língua Estrangeira dando ênfase ao método GramáticaTradução e adotando uma visão estruturalista da língua. No entanto, a escola em estudo
precisa de outra teoria linguística e de um método mais adequado à finalidade a que essa
se propõe, pois, os alunos serão profissionais que usarão a Língua Estrangeira. Portanto,
procuramos apresentar, por meio de um workshop, aos professores de francês e inglês
desse estabelecimento de ensino a teoria sociocognitivista, baseando-nos em Lakoff e
Jhonson (2002), a teoria sociointeracionista, baseando-nos em Vygotsky (1987) e o
método da Abordagem Comunicativa, de acordo com os estudos de Richards e Rodgers
(1986), pois, os alunos ao saírem dessa escola entrarão no mercado de trabalho e
necessitarão do aspecto cognitivo, social e interacional da Língua Estrangeira para sua
realização profissional.
Palavras-chave: Teoria; Método; Língua Estrangeira.
1. Introdução
O estudo de uma Língua Estrangeira é hoje algo fundamental, e isso gera nas
pessoas a necessidade de aprender um novo idioma. A obrigação de conhecer um novo
idioma já é algo comum no nosso cotidiano, principalmente, para os profissionais da
área de turismo, os quais trabalharão diretamente com o público estrangeiro, logo, terão
um contato mais intenso com outros idiomas. Porém, entendemos que a língua não é
apenas um sistema de signos, mas, um meio cultural. Portanto, inquietamo-nos com a
forma de ensino de Língua Estrangeira direcionado para os profissionais de cursos
técnicos, como o curso de Hotelaria, cuja principal função é lidar com o público
estrangeiro.
Por isso, propomo-nos analisar o ensino de Língua Estrangeira, mais
precisamente das Línguas Francesa e Inglesa, que a partir de então serão chamadas de
LE, dos alunos do 1º ano do curso de Hotelaria de uma Escola da rede pública de
ensino. O nosso objetivo em visitar e analisar a concepção de língua, teoria linguística e
o método de ensino usado nesse estabelecimento de ensino parte da função final da
P á g i n a | 910
própria escola que é formar profissionais para o mercado de trabalho, os quais
empregarão a LE como um instrumento dentro da sua profissão.
Assim, pretendemos observar e analisar as teorias e os métodos adotados pelos
professores de LE dessa instituição e apresentar-lhes através de workshop, teorias e
métodos que permitam um ensino voltado para a influência cultural, social e
comunicativa de uma língua. Como é determinado em parte pelos PCN’S (2000) que
apesar de enfatizar um ensino voltado para a leitura e escrita da LE, defende que este
deve ocorrer considerando a língua dentro de um contexto cultural e significativo. Além
disso, o documento estabelece que nas regiões em que o turismo tem importância
socioeconômica o ensino de LE pode ser direcionado às quatro habilidades da língua,
ou seja, leitura, escrita, fala e escuta, ficando a decisão a cargo da escola e do professor.
O ensino de LE é direcionado pela LDB (1998) e pelos PCN’S (2000), contudo,
tanto a LDB (1998) quanto os PCN’S (2000) regem um ensino baseado na importância
da escrita, observando que o estudante não tem um contato direto com falante dessas
línguas. Porém, ainda de acordo com esses documentos, esse ensino deve formar o
aprendiz em relação à cultura da língua em estudo.
As leis nacionais direcionam o professor de LE a fundamentar suas aulas nas
habilidades de leitura e escrita, todavia, quando tratamos de uma escola
profissionalizante como é o caso da Instituição mencionada, essas habilidades devem
ser ampliadas, porque o aluno precisa de um ensino pautado nas quatro habilidades,
dando ênfase a fala e escuta da LE, visto que ele irá comunicar-se com falantes nativos.
Mediante a essa situação, faz necessário investigar as teorias linguísticas e os
métodos de ensino adotados nessa escola pelos professores de LE, com vistas a
compreender as habilidades linguísticas necessárias para profissão dos alunos de
Hotelaria desse estabelecimento de ensino e se eles estão sendo atendidos naquilo que é
primordial para um profissional da área. Por isso, partimos da hipótese de que o
emprego da teoria linguística e do método de ensino mais adequados à área de
Hotelaria, como o Sociocognitivismo, o Sociointeracionismo e a Abordagem
Comunicativa, implicariam em uma maior autonomia dos alunos no curso de Hotelaria,
visto que esses vivenciariam em sala e em visitas externas a aplicação da LE em
situações reais da sua área de trabalho.
A partir dos direcionamentos dados pela LDB (1998) e pelos PCNS (2000), os
quais direcionam as escolas a empregarem em sua maioria um método de ensino
fundamentado na visão sociocognitivista e sociointerativista de língua e de
aprendizagem, pretendemos com essa pesquisa, demonstrar em que medida a concepção
de língua e os métodos de ensino podem interferir na formação dos profissionais de
Hotelaria da escola em estudo.
Desse modo, questionamo-nos se essa Escola enquanto formadora de
profissionais, porém, vinculada as legislações da educação nacional que trabalha a LE
como meio de leitura e escrita, promove a autonomia de seus alunos e se estes estão
prontos para adentrarem ao mercado de trabalho. Diante disso, surgem algumas
questões, como por exemplo, qual é a concepção de língua dos professores de LE desse
colégio? Em que medida, a concepção de língua do professor dessa instituição pode
ajudar ou prejudicar na formação do aluno enquanto profissional? Como o professor de
LE pode contribuir em um curso profissionalizante? Os professores de LE da escola em
questão necessitam de constante capacitação linguística para ministrarem suas
disciplinas? Em que medida a capacitação linguística do professor de LE pode
contribuir para com o futuro profissional dos seus alunos no mercado de trabalho?
P á g i n a | 911
Dessa maneira, consideramos que a teoria sociocognitivista adotada por Lakoff e
Jonhson (2002) poderia ser uma forma possível de facilitar o ensino de LE no curso de
Hotelaria. Essa parte da teoria cognitiva desenvolvida por Chomsky, que observava em
sua essência a capacidade criativa da linguagem humana, deixando a teoria estruturalista
que enxergava a língua como apenas um sistema linguístico. No entanto, a teoria de
Chomsky se detinha simplesmente ao campo da subjetividade sem se expandir para a
ação da comunicação. Logo, partindo da escola Chomskyana, Lakoff e Jonhson, dentre
outros estudiosos, passam a viabilizar a língua como o resultado de um processo de
relações sociais, culturais e de expressão individual.
Contudo, percebemos a partir das visitas realizadas à instituição em estudo que a
teoria sociointeracionista baseada em Vygotsky (1987) e a Abordagem Comunicativa
seriam os meios mais indicados para direcionar os professores de LE dessa escola,
tendo em vista que os alunos do curso de Hotelaria usarão a comunicação como
instrumento de trabalho.
Portanto, o desenvolvimento dessa pesquisa está baseado na teoria
sociointeracionista de Vigotsky (1987) e na Abordagem Comunicativa, de acordo com
os estudos de Richards e Rodgers (1986), pois, temos como campo de pesquisa uma
escola que trabalha com a formação de profissionais de áreas que precisam da
comunicação como meio de trabalho.
Em todos os cursos técnicos dessa escola a teoria sociointeracionista e a
Abordagem comunicativa são fundamentais, no entanto, nos cursos que têm mais
contato com o público, essa teoria e método se tornam indispensáveis, como é o caso,
por exemplo, do curso de Restaurante, Bar e Serviços, do curso de Eventos.
Todavia, optamos pelo curso de Hotelaria, que assim como os outros cursos
citados também tem a fala como um instrumento de trabalho, mas, nesse, os alunos,
certamente, terão um contato constante com pessoas de lugares diversos e assim,
utilizarão a LE frequentemente. Dessa forma, é fundamental uma teoria linguística que
atenda às necessidades dos alunos desse curso e de um método que lhes garantam uma
aprendizagem direcionada para o seu futuro profissional, porque, ao saírem dessa
escola, esses alunos entrarão no mercado de trabalho e necessitarão do aspecto
cognitivo, social e interacional da Língua Estrangeira para sua realização profissional.
A metodologia empregada nesta pesquisa parte da necessidade estabelecida
pelos objetivos propostos, que estão fundamentados na análise dos dados obtidos a
partir de uma pesquisa de campo, norteada por meio de questionários, de conversas com
docentes de LE e um workshop na Escola em estudo. Destarte, desenvolveremos uma
pesquisa exploratória, descritiva e explicativa, sendo essa também qualitativa e uma
pesquisa-ação, pois, necessitamos ir a campo coletar os dados através do questionário
pré-tarefa, depois de analisarmos os resultados, voltamos à Escola para darmos o
workshop, fazendo dessa forma uma interferência no contexto de sala de aula dos
professores colaboradores e por fim, aplicamos um questionário pós-tarefa para analisar
os dados obtidos após o workshop. Para tanto, nos baseamos em Richardson (2003) e
em Strauss e Corbin (2008).
2. Método: Um tópico plural
P á g i n a | 912
A palavra método vem do grego méthodos e significa um caminho que visa
alcançar resultados. Rampazzo (2002:13) “afirma que atualmente a palavra método
refere-se a “um conjunto de etapas, ordenadamente dispostas, a serem vencidas na
investigação da verdade, no estudo de uma ciência, ou para um determinado fim”.”
(RAMPAZZO, 2002:13, apud VILAÇA, 2008, p. 75)
A obsessão por um método perfeito atingiu seu nível mais elevado na segunda
metade do século XX.
Entre os mais conhecidos, é possível citar o Método Áudio-lingual, o
Método Silencioso, a Sugestopedia, o Resposta Física Total e o
Método Comunicativo, também chamado, convenientemente, por
alguns autores, de Abordagem Comunicativa. (ALMEIDA FILHO,
1993, CELCE-MURCIA, 2001b, apud VILAÇA, 2008, p. 74)
Esses métodos foram desenvolvidos por teorias advindas de diversas áreas,
como por exemplo, da Linguística, da Psicologia, da Psicologia da Educação, da
Sociologia e da Sociolinguística.
Edward Anthony (1963) via o método de forma hierárquica, sendo o método,
para Anthony um estágio intermediário entre a abordagem de ensino e as técnicas
adotadas pelo professor. Logo, sua proposta era: Abordagem, Método e Técnica.
(ANTHONY, 1963, apud VILAÇA, 2008, p. 76)
Já na visão de Richards e Rodgers (1986) “um método é formado por três
componentes: a abordagem, o desenho (design) e os procedimentos.” sem uma ordem
hierárquica, porém, como um resultado. Logo, entendemos o método como o resultado
da relação entre: abordagem, design e procedimentos, que são respectivamente:
As concepções do professor sobre língua e aprendizagem [...], o
desenho é subdividido em: objetivos de ensino, programa de ensino,
papel do professor, papel do aluno, papel dos materiais instrucionais,
tipos de tarefas. [...] e os procedimentos referem-se às técnicas [...] e
estratégias didáticas que possibilitam a execução [...] de um método
na sala de aula. (VILAÇA, 2008, p. 78-79)
Entretanto, o conceito de método foi muito criticado devido a diversos fatores,
como por exemplo, por referir-se ao caráter prescritivo dos métodos de ensino, por o
método ser descontextualizado, por sua abrangência e pela polissemia do conceito de
método e por fim, os estudiosos não mais acreditavam na existência de um método
perfeito.
Conforme Duque (2004) destaca, a busca pelo “método perfeito” se transformou
na busca de um “método mais adequado”. Esta conclusão conduziu de certa forma, à
defesa do ecletismo no ensino de línguas estrangeiras como forma de liberdade e
flexibilidade metodológicas.
Nesse sentido, na era pós-método o professor recebe novos papéis e desafios,
pois,
P á g i n a | 913
Ao adotar um método eclético, o professor deve ser capaz de fazer
escolhas metodológicas que atendam às características e às
necessidades de seu contexto pedagógico. [...] deve ser formado para
compreender melhor o processo de ensino aprendizagem de uma
língua estrangeira. [...] e deve atuar como pesquisador em seu
contexto de ensino, especialmente na sua própria sala de aula.
(VILAÇA, 2008, p. 82 – 84)
2.1. As mudanças dos métodos e abordagens ao longo da história
Guimarães (2007) apresenta de maneira bastante didática alguns
direcionamentos sobre Métodos e Teorias linguísticas em relação ao ensino de Língua
Estrangeira. Para tanto, a autora inicia seu texto apresentando uma diferença peculiar
entre a aquisição de uma LE e da aquisição da Língua Materna. Após esclarecer essa
diferença, o texto segue procurando estabelecer um período para a laterialização, a qual
dificultaria a aquisição de uma LE, esse período ocorreria na puberdade, ou antes, disso,
mas, o texto não deixa essa fase clara.
Na sequência, obtemos uma breve explicação histórica para a inserção do
método Gramática-Tradução no começo do ensino LE. Segundo o texto de Guimarães
(2007), esse método vem sendo aplicado desde o ensino de Latim como LE e passa a ser
usado nas aulas de inglês de 1840 a 1940. Na metade do século XIX, esse método passa
a ser rejeitado por não desenvolver a capacidade comunicativa do aluno na língua-alvo.
Logo, o método direto começa a ser utilizado no ensino de LE, pois, esse tinha
como objetivo a comunicação na língua-alvo. O método surge procurando suprir as
necessidades deixadas pelo método Gramática-Tradução, porém, este ainda é utilizado
até os dias atuais.
O método direto recebeu este nome devido a sua intenção de inserir o estudante
de LE no estudo da língua-alvo sem o auxílio de tradução. Contudo, essa intenção do
método gerou muitas dificuldades dentre elas a não adequação desse método às escolas
secundárias e a demanda de muito tempo para que os alunos compreendessem um
conteúdo sem auxílio da língua materna. Esses empecilhos levaram ao declínio do
método em 1920.
No entanto, a partir dos estudos behavioristas, os quais estabeleciam o ensino
para buscar as manifestações externas do processo de aprendizagem e estruturalistas,
que definiam a língua como um sistema formado por meio da combinação de estruturas
gramaticais, surgiu o método Audiolingual por volta de 1950, o qual dominou o ensino
de LE até a década de 60, mas, ainda influencia muitos professores nos dias de hoje. O
método Audiolingual aparece em meio a esses novos estudos e contrapondo-se ao
método Gramática-Tradução.
O método Audiolingual tinha por objetivo desenvolver a capacidade auditiva do
aluno e estimulá-lo a adquirir uma pronúncia correta, tendo o professor um papel ativo
dentro do método, porque, a aprendizagem consistia em um sistema bastante fechado
partindo de Estímulo- resposta – reforço.
Com uma prática muito imitativa e sem priorizar a produção criativa do aluno.
Esse método passa a ser rejeitado no começo dos anos 60, quando Chomsky critica o
conceito behaviorista de que a língua fosse uma estrutura baseada em hábitos e
P á g i n a | 914
imitação, pois, para Chomsky, o homem tinha uma capacidade inata de aprender uma
língua através de inovação e da formação de novos modelos e novas frases.
Essa teoria proposta por Chomsky vai influenciar os métodos de ensino e a partir
de estudos de Dell Hymes, os quais foram aprofundados por Richards e Rodgers (1986),
vai surgir a Abordagem Comunicativa, que como Guimarães cita é uma abordagem,
porém, mesmo não se tratando de um método de ensino, essa Abordagem está inserida
no campo de métodos e é utilizada por muitos professores e muitas escolas. Ela tem
como objetivo desenvolver a capacidade comunicativa.
Neste método, o aluno tem um papel ativo, pois, ele tem a possibilidade de criar
e inovar sua aprendizagem algo que difere dos métodos anteriores, e o professor que nos
outros métodos tinha um papel de destaque, na Abordagem Comunicativa, tem um
papel de facilitador permitindo o desenvolvimento do aluno.
Entretanto, acompanhando o desenvolvimento de outras teorias como a
Abordagem Humanista, por exemplo, em meados dos anos 70, há o desenvolvimento do
método Community Language Learning, o qual propõe um ensino direcionado pelo
interesse dos alunos. Além desse método, surge também o Lexical Approach, que visa
distinguir vocabulário do léxico, este seria o resultado do armazenamento de palavras e
das combinações que guardamos em nossas mentes, já aquele seria apenas o estoque de
palavras com sentido fixo que amarzenamos ao longo do tempo.
Guimarães (2007) apresenta um breve histórico de cada método, seus objetivos,
a teoria que o desencadeou, as atividades recorrentes e o papel do professor e do aluno.
A autora faz essa exposição partindo da estrutura de método apresentada por Richards e
Rodgers (1986): Abordagem – design (desenho) – Procedimentos. De acordo com essa
estrutura, é no design que apresentamos todos os elementos que compõem a sala de aula
e os papéis desempenhados por cada um desses.
Essa estrutura apresentada na obra de Guimarães (2007) é corroborada pela o
texto Vilaça (2008), o qual tece comentários sobre a importância dos métodos e das
teorias, e faz uma análise histórica dos métodos de ensino, constatando em seu trabalho
que por ser o método um caminho que visa atingir uma meta, logo, não encontraremos
método perfeito, mas optaremos por aquele mais adequado ao nosso contexto.
Vilaça (2008) também apresenta em seu trabalho a visão de método de Richards
e Rodgers. Logo, entendemos que há uma consonância entre o trabalho de Guimarães e
o de Vilaça em relação aos argumentos que norteiam os dois trabalhos. No entanto, o
texto de Vilaça finaliza expressando a importância do ecletismo para o ensino de LE, o
que é justificado pela possibilidade de usar métodos diferentes dependendo do contexto.
Já o texto de Nair Guimarães (2007), não deixa transparecer uma opção de método em
detrimento da outra, são apresentados, nesse texto, os variados métodos e as atividades
e teorias que estão vinculadas a cada um deles sem nenhum juízo de valor específico, é
apenas elencado os pontos positivos e negativos de cada método em relação a cada
época.
3. O método e os PCN’s
Há muito o ensino de línguas estrangeiras no Brasil vinha ocorrendo de forma
avulsa, por não haver uma regulamentação, sendo de qualidade muito baixa e com
índices baixos de aprendizagem. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), então
P á g i n a | 915
passam a regular esta atividade, trazendo um norte a ser seguido pelos professores em
todo o país, definindo uma visão de língua e de aprendizagem a ser adotada, bem como
estabelecendo objetivos claros para o ensino de língua estrangeira (LE).
Vilaça (2008) traz a visão de Richards e Rodgers de método de ensino, o qual é
definido pela relação de três elementos: abordagem, desenho e procedimentos, que
interferem diretamente nas atividades de sala de aula, tendo em vista que o professor
precisa ter uma noção de língua e de aprendizagem de forma clara (Abordagem),
reconhecer os papéis desempenhados por cada personagem na sala de aula (desenho) e
definir técnicas coerentes com sua noção de língua e com o contexto no qual o professor
e o aluno estão inseridos (Procedimentos).
Ao estabelecer que a visão de língua, assim como a visão de aprendizagem a ser
adotas no país são a sociointeracional, os PCNS (2000) de língua estrangeira
estabelecem o primeiro elemento que compõem método, que é a abordagem. A partir
daí pode-se definir com mais clareza qual seria o papel do professor, o papel do aluno,
que tipo material didático deve ser adotado e qual o principal objetivo do ensino de
língua estrangeira, compondo-se assim, um desenho sobre como deveriam funcionar as
aulas nas escolas regulares, sejam elas públicas ou privadas.
Desta forma ocorre ao longo do texto, que embora defenda que não exista uma
metodologia ideal para todos os contextos de sala de aula, corroborando com a ideia de
Vilaça (2008), estabelece nitidammente que o ensino de LE no Brasil deve ser balizado
pela função social deste conhecimento em cada região, de modo a “envolver o aluno
com os processos sociais de criar significados por intermédio da utilização de LE”.
(PCNS, 2000).
Para tanto, o texto ressalta que o enfoque maior dever ser dado às habilidades
escritas, principalmente a leitura, posto que são poucos os brasileiros que terão uma real
necessidade de se comunicar oralmente com outras pessoas, ressalvando-se as regiões
turísticas. Contudo, levando em consideração as transformações sociopolíticas que vem
ocorrendo no mundo, os inúmeros convênios feitos com instituições de ensino
estrangeiras de modo a fomentar o intercambio científico entre brasileiros e
estrangeiros, percebe-se que não mais se pode desconsiderar a importância do ensino
das habilidades orais. Vê-se que sobram vagas para intercâmbio por falta de pessoas
preparadas (munidas do conhecimento das quatro habilidades da língua), para ocupar
estas vagas. Como um dado positivo, o documento deixa a cargo do professor, perceber
a necessidade de cada região, não sendo vedado o ensino das habilidades orais.
Essa é a necessidade dos alunos do curso de Hotelaria da Escola em estudo. Eles
precisam de acordo com Vygotsky (1987) de uma formação sociointeracionista,
focando a Abordagem Comunicativa e no ensino das quatro habilidades (escrita, leitura,
escuta, oralidade), principalmente, nas habilidades de fala e escuta, para que possam
desempenhar suas ações no campo de trabalho sem maiores dificuldades, visto que
esses alunos trabalharão, diretamente, com o público estrangeiro.
Como que buscando corrigir a parca formação dos professores de LE que por
muitas vezes, não compreendem a evolução dos métodos e técnicas de ensino ao longo
da história, o documento discorre de modo sucinto, mas claro sobre as diversas
metodologias existentes, logo em seguida trazendo as diretrizes de como devem ser
pautadas as aulas, na sessão de Orientações Didáticas, em que é ressaltado o ensino de
estratégias de aprendizagem. Ficam estabelecidos com detalhes então, como a língua
deve ser trabalhada, e como as aulas devem ser desenhadas, ficando à cargo do
professor a escolhas das técnicas adequadas para alcançar os objetivos de ensino.
P á g i n a | 916
O texto tenta modificar a estrutura de ensino de LE no Brasil que vinha
ocorrendo fundamentada numa visão sistêmica da língua, sendo ensinados aos alunos
apenas regras gramaticais que pouco ou nenhum significado possuíam, impossibilitando
que houvesse aprendizagem. É preciso agora, que os profissionais da área sejam bem
preparados para seguir as novas diretrizes, que estão em pleno acordo com os
movimentos internacionais de ensino de línguas estrangeiras. A mera publicação de tal
documento, já é um grande avanço na área, sendo necessária uma complementação na
adoção dos materiais didáticos e na instrumentalização dos magistrados.
4. Análise dos dados
A partir de visitas à escola supracitada e de conversas com os professores de LE,
que trabalham com o ensino de Língua Francesa e Língua Inglesa no primeiro ano do
curso de Hotelaria, aplicamos um questionário, o qual nos permitiu obter uma
compreensão mais precisa em relação ao ensino de LE naquele estabelecimento de
Ensino.
Destarte, após muitas análises do questionário pré-tarefa, percebemos que a
professora Annie53 e a professora Elizabeth compreendem a língua como um meio de
criação e manutenção de relações sociais, ou seja, a língua é percebida por essas
professoras como um meio de construção de sentido na língua-alvo.
No entanto, quando questionadas acerca do método de ensino utilizado nas aulas
de LE, percebemos uma dissonância nas respostas dadas em relação à concepção do que
vem a ser uma língua e em relação às respostas dadas sobre as atividades aplicadas em
sala. Por exemplo, Annie marcou no questionário uma opção que compreende a língua
como um meio comunicativo, afirma que usa a metodologia sociointeracionista, mas,
diz que não é adotado nem por ela e nem pela escola nenhum método de ensino. Além
disso, as atividades descritas em sua resposta fazem referência ao método GramáticaTradução, com aulas expositivas, álbum seriado e música, as únicas atividades que
poderiam partir de uma abordagem comunicativa seria simulações, projetos e jogos,
contudo, não foram descritas as finalidades dessas atividades.
De forma geral, observamos uma contradição entre as respostas de concepção de
língua, método de ensino e de atividades aplicadas, no entanto, aquilo que se apresenta
como mais preocupante é a mistura de informações que são apresentadas nas respostas,
pois, a professora conhece a teoria sociointeracionista, mas, entende-a como
metodologia, não reconhece os métodos de ensino em suas atividades apesar de
conhecê-los na definição.
Questionada sobre as interferências que prejudicam a aprendizagem do ensino
de LE, Annie diz que o desinteresse dos alunos e dos professores, como também, a falta
de material didático e de uma metodologia adequada são os maiores problemas para a
efetivação da aprendizagem do ensino de uma LE.
No entanto, no que diz respeito ao objetivo do ensino de LE no curso de
Hotelaria e como os conteúdos vistos em sala poderão ser aplicados em situações reais,
Annie foi bastante coerente. Ela afirma que o objetivo do ensino de LE é voltado para a
53
Manteremos em sigilo os nomes dos professores com os quais desenvolvemos nossa pesquisa, por uma
questão ética. No entanto, adotaremos nomes fictícios para esses professores de francês e de inglês, que
respectivamente, serão chamados de Annie e Elizabeth.
P á g i n a | 917
interação do aluno entre eles com seus futuros clientes francófonos, no ambiente de
trabalho, assim como, os conteúdos devem ser voltados para o desenvolvimento do
aluno enquanto um futuro profissional que trabalhará com o público estrangeiro.
Notamos algumas contradições nas respostas de Annie no questionário prétarefa, todavia, podemos ser mais pontuais e afirmar que a dificuldade apresentada está
no processo de aplicação do conceito na prática e entender o que é teoria, o que é
método e o que é técnica.
Neste momento, entendemos que estrutura desenvolvida por Richards e Rodgers
para explicar método, contribui bastante para evitar esses equívocos, pois, eles
entendem que o método é a união da abordagem, desenho e procedimentos, assim como
fora citado, as abordagens são as concepções do professor sobre língua e aprendizagem,
o desenho é composto pelos objetivos de ensino, programa de ensino, papel do
professor, papel do aluno, papel dos materiais instrucionais, tipos de tarefas e os
procedimentos referem-se às técnicas de um método na sala de aula. (VILAÇA, 2008, p.
78-79)
As respostas que Elizabeth deu ao questionário pré-tarefa mantiveram-se
coerentes. Ela marcou, na primeira questão, a opção que caracteriza a língua como um
meio de interação e comunicação social, depois, afirmou que trabalha com variados
métodos Comunicativo, Direto e Tradicional, Gramática-Tradução. Entretanto, ela
também cita a teoria Interacionista como um método de ensino. No mais, suas respostas
estão consonantes, pois, percebemos que pelo fato dela utilizar vários métodos, ela
emprega o ecletismo citado em Vilaça (2008), e dessa maneira, as atividades aplicadas
também são ecléticas como: construção de diálogos cabíveis para o primeiro ano do
curso de Hotelaria e possíveis dentro de um hotel, ela também trabalha com a produção
de textos técnicos da área e encenações de diálogos ao telefone, entre outras.
Elizabeth, questionada acerca do papel do professor e do aluno, diz em suas
respostas que compreende que o papel do professor em sala é de facilitador e que o
aluno é o centro do processo de ensino-aprendizagem, e este deve ser orientado em sala
para área que irá atuar neste caso, na área de Hotelaria.
Depois, de alguns encontros com os professores, apresentamos um workshop
sobre o assunto tratado no questionário: teorias lingüísticas, métodos de ensino e
atividades práticas. Usamos para isso a concepção de método de Richards e Rodgers
citada em Vilaça (2008) e o estudo de Teorias e Métodos empregados em Guimarães
(2007).
Annie e Elizabeth interagiram bastante conosco e entre si durante o workshop,
indagaram perguntas sobre a diferença de método e material didático, que atividades
estariam condizentes com o método Comunicativo ou a Abordagem Comunicativa,
como a teoria sociointeracionista deveria ser aplicada em sala.
A postura das professoras esteve o tempo todo favorável à proposta que
estabelecemos para a aplicação do workshop, pois, preparamos uma apresentação
teórica do conteúdo e desenvolvemos atividades práticas usando o método da
Abordagem Comunicativa e a teoria Sociointeracionista.
Usamos os questionamentos sobre o método perfeito encontrados em Vilaça
(2008) até que a partir da exposição dos variados métodos: Gramática-Tradução,
Audiolingual, Direto, Abordagem Comunicativa, entre outros citados em Guimarães
(2007), as professoras reconheceram a importância de usar o ecletismo defendido no
texto de Vilaça, todavia, destacaram também a necessidade da Abordagem
P á g i n a | 918
Comunicativa para os alunos do curso de Hotelaria. Dentro dessa perspectiva, as
professoras apresentaram a criação de um blog que vai gerar uma situação real de
comunicação entre os alunos e os supostos hóspedes. Essa proposta foi nitidamente
enriquecida com o aporte teórico que passamos para os docentes.
A apresentação seguiu agora com a prática, a qual foi dividida em momentos da
aula: apresentação, prática e produção. Segundo Scrivener (2005), a Apresentação
consiste no momento em que o professor contextualiza o que será ensinado, apresenta o
vocabulário e depois a estrutura gramatical. Aqui, a participação do aluno é controlada,
sendo importante que haja muita repetição. Destacando a importância de sempre ensinar
o significado/ função, para depois ensinar a pronúncia e por último a forma (escrita); na
Prática, o aluno já começa a trabalhar mais. Este é o momento mais importante, pois é
quando o aprendizado ocorre de fato. O aluno é levado a fazer atividades controladas,
cujas respostas são predeterminadas pelo professor/material. São atividades de
preencher lacunas, organizar as frases, encontrar a alternativa correta, completar
diálogos... Durante as atividades o professor deve monitorar de perto, ajudar os alunos
com os erros e, perceber se há ou não necessidade de nova apresentação; e por fim
temos a Produção, este é o estágio final em que o aluno produz de forma mais
independente. Aqui o estudante faz atividades cujas respostas serão variadas, de acordo
com as escolhas que os alunos fizerem. Neste estágio, eles contam apenas com um
modelo, e algumas diretrizes para desenvolver sozinhos a linguagem alvo. Ex: construir
os próprios diálogos. É importante que antes de executar a tarefa propriamente dita, o
aluno tenha tempo para se preparar.
Após, esta explanação das atividades: sequência, tempo e intervalos entre elas.
Aplicamos uma atividade com as professoras seguindo, a teoria Sociointeracionista, a
Abordagem Comunicativa e o direcionamento de atividades dado por Scrivener (2005).
O resultado foi muito produtivo, o qual foi constatado através de um questionário PósTarefa.
Annie, nesse questionário, manteve sua percepção de língua como um meio de
construção e criação de sentido na língua-alvo, explicou que há atividade que criam
situações reais de comunicação, como: visitas a hotéis, encenações e entende o
professor como um facilitador do conhecimento e o aluno como o centro do processo de
ensino-aprendizagem. Com as novas respostas, Annie mantém uma coerência entre o
método Comunicativo, Abordagem Comunicativa, a teoria Sociointeracionista e as
atividades aplicadas em sala.
Já Elizabeth modificou a primeira resposta, marcando uma alternativa que
compreende a língua de maneira funcional, entendendo que deve haver um aprendizado
de funções necessárias para a comunicação dos alunos do curso de Hotelaria, sem
enfatizar a criação e a construção de uma comunicação na língua-alvo, no mais as
respostas dadas permanecem com o mesmo sentido, que o que atrapalha as aulas de LE
é o desinteresse do aluno, que os métodos usados são ecléticos: Comunicativo, Direto e
Gramática-Tradução, e que o professor exerce o papel de mediador entre o
conhecimento e o aluno, o qual exerce o papel central no curso de Hotelaria.
Diante disso, constatamos a necessidade de palestras e workshops na rede
pública de ensino, capacitando o professor, ensinando-o a ser um pesquisador e criar
propostas de trabalho possíveis e coerente com as teorias e métodos. Notamos que os
professores de LE têm grande interesse por formações, contudo, que essas sejam
práticas e objetivas, com teoria subjacente, contudo enfocando-se em técnicas a serem
P á g i n a | 919
utilizadas na sala de aula, transponde-se a abstração imposta pela teorização e
apresentando um uso prático da mesma.
5. Considerações finais
Compreendemos que os professores que ensinam LE necessita continuamente de
formação em relação aos aspectos lingüísticos de LE, aos métodos de ensino e suas
implicações na dinâmica de ensino e aprendizagem.
A partir do presente trabalho, percebemos que houve uma mudança no que diz
respeito ao papel do aluno e ao papel do professor no ensino de LE, porque, segundo
Vilaça (2008) “O aluno atual [...] precisa aprender mais e melhor em menos tempo.” e
“o professor precisa estar cada vez mais preparado para não só lecionar, mas também
administrar o processo de ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira.”, pois,
embora estejamos numa era que permite e, em muitas situações, exige o ecletismo, um
dos fundamentos necessários a esta formação é conhecimento e estudo crítico dos
métodos e das abordagens de ensino, para que a sua participação no ensino seja
fundamentada em princípios teórico-metodológicos, competências e conhecimentos
sólidos e compatíveis com a sociedade e o tempo em que vivemos.
Cabe, portanto, ao professor, em menor ou maior nível, fazer escolhas e adotar
estratégias e procedimentos adequados, sensatos e produtivos, ou seja, o professor de
LE precisa ser pesquisador e, principalmente, aqueles que trabalham com o ensino
técnico, como no curso de Hotelaria. Esses professores, mediante a tudo que foi visto e
analisado durante a pesquisa, necessitam de formação linguística e metodológica
constante, para que eles tenham um suporte para propor aos alunos atividades em que o
aluno reconheça situações reais de fala, de diálogo, enfim, situações de interação e
comunicação, as quais são imprescindíveis ao curso de Hotelaria.
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VILAÇA, M. L. C.. Método de ensino de línguas estrangeiras: fundamentos, críticas e
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http://www.pucminas.br/destaques/index_interna.php?pagina=2520
19/09/2013
-
Acesso
em
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O CONTO E A TEORIA DA HISTÓRIA SECRETA
Maria Luiza Teixeira BATISTA (UFPB)
Resumo: Neste trabalho apresentaremos uma leitura dos contos de Horacio Quiroga e
Julio Cortázar à luz de uma das teses do escritor argentino Ricardo Piglia. Em seu texto
“Teses sobre o Conto” (2000), Piglia defende a ideia que o conto sempre conta duas
histórias: uma visível, que é facilmente absorvida pelo leitor, e uma secreta, que só é
revelada no final do relato e que depende de uma interpretação mais atenta por parte do
leitor. Tomando como base essa tese, analisaremos alguns relatos dos contistas aqui
mencionados na tentativa de verificar se a teoria da história secreta pode ser aplicada. A
escolha de Quiroga e Cortázar se deve ao fato de que ambos também se dedicaram a
reflexão do conto como gênero literário, estabelecendo suas próprias “teorias”. Quiroga
ficou conhecido por suas “máximas” nas quais, em um tom irônico, estabelece as regras
de composição para a produção de bons contos. Já os textos de Cortázar sobre o conto
ganharam transcendência ao expor certas características que dão forma ao gênero. Piglia
não desconsidera tais “teorias”, porém suas observações vão além do estabelecido por
seus compatriotas. Sua tese é o que mais se aproxima do que se considera uma teoria do
conto, por esse motivo pretendemos aqui avaliar se esta pode ser aplicada, qual o seu
alcance e sua vigência.
Palavras chave: Piglia; Quiroga; Cortázar; Teoria do conto.
Em verdade, será sempre conto aquilo que seu autor batizou
com o nome de conto.
Mário de Andrade
1. Introdução
Entre os gêneros literários narrativos, talvez o conto seja o mais misterioso e
instigante, visto que são muitas as tentativas de defini-lo e teorizá-lo. Desde as
primeiras considerações delineadas por Edgar Allan Poe nas suas conhecidas resenhas
sobre os contos de Nathaniel Hawthorne, o conto vem sendo objeto de constantes
estudos que, por um lado, buscam caracterizá-lo, apontando os elementos constitutivos
que o diferem de outros gêneros narrativos, e, por outro, tentam estabelecer uma espécie
de metodologia que permita analisar suas particularidades. Por essa razão, cada
estudioso, escritor ou contista acaba expondo sua forma pessoal de entender esse
gênero, por esse motivo, há quem diga que ainda não existe propriamente uma teoria
para o conto, o que existe são considerações sobre um gênero “tan poco encasillable”,
como adverte Cortázar (1994, p. 369). Outros apontam o texto de Ricardo Piglia, “Teses
sobre o Conto” (2004), como aquele que mais se aproxima do que se considera uma
teoria. Tentando nos colocar fora da polêmica sobre a existência ou não de uma teoria
própria para o conto, nossa proposta de trabalho é avaliar se as teses de Piglia podem ser
aplicadas a contos de dois contistas, Horacio Quiroga e Julio Cortázar, que, por sua vez,
também escreveram sobre o conto como gênero literário.
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2. Uma revisão da teoria
É comum considerar o escritor norte-americano Edgar Allan Poe como aquele
que deu o primeiro passo na direção de avaliar o conto como um gênero com
especificidades distintas daquelas presentes na poesia e no romance. A partir de seus
estudos, outros escritores também se aventuraram em escrever sobre o conto, entre eles
citaremos dois latino-americanos, Quiroga e Cortázar.
Começaremos avaliando os escritos do contista uruguaio Horacio Quiroga,
considerado discípulo de Poe por sua preferência por temas macabros e pela morte. No
entanto, esse não é o único ponto em comum entre ambos, já que compartilham a
mesma preocupação: entender o conto como gênero. Ambos os contistas tinham a
mesma opinião sobre o conto e sabiam que um conto bem escrito deveria atingir o leitor
de alguma maneira. Isto fica claro na definição que Quiroga dá ao conto, afirmando que
é como “una flecha que, cuidadosamente apuntada, parte del arco para ir a dar
directamente en el blanco” (QUIROGA, 1996, p. 1207). O alvo é o leitor, se o conto
não provocar nele nenhuma sensação, ou como diria Poe, nenhum efeito, o trabalho do
contista não alcançou seu objetivo.
São quatro os textos de Quiroga nos quais trata do conto como gênero. Nos dois
primeiros, intitulados Manual del perfecto cuentista (abril de 1925) e Los trucs del
perfecto cuentista (maio de 1925), escreve em resposta a algumas críticas publicadas
nos jornais da época e dirigidas ao trabalho do contista que, por tratar-se de ficção, não
podia ser comparado ao ensaio ou ao texto jornalístico quanto a sua “seriedade”.
Quiroga, ao entender que sua arte estava sendo depreciada e o trabalho do contista
desvalorizado, decide inventar uma espécie de fórmula, ensinando como escrever
contos, já que este é um trabalho pouco “sério” e que pode estar ao alcance de todos.
Seu texto é extremamente irônico e debochado, por isso não foi bem recebido por
muitos leitores e críticos.
Nestes textos, Quiroga aproveita para passar uma “receita caseira” de como
qualquer um, escritor ou não, pode escrever contos como um simples passatempo (Cf.,
QUIROGA, 1996, p. 1189). Começa recomendando iniciar a história pelo final, pois é
necessário que o contista saiba onde irá terminar seu relato. Depois aconselha utilizar
frases curtas, pois estas são indispensáveis para manter a emoção no leitor e para não
cansá-lo, já que ele não está disposto a perder tempo lendo o que não lhe interessa. Fala
também da audácia do contista como sua condição necessária, ele não deve explicar
demasiado, porque em um conto nunca se conta tudo. O contista nunca deve subestimar
a capacidade de interpretação do seu leitor, pois aquele “que no se atreve a perturbar a
su lector con giros ininteligibles para éste debe cambiar de oficio.” (QUIROGA, 1996,
p. 1193).
Ao longo desses textos, Quiroga tece comentários sobre o que ele considera
“truques” que permitem uma confecção rápida e eficaz de bons contos. Apesar de serem
textos irônicos, podemos resgatar algumas considerações importantes, tais como
questões relativas ao limite espacial e temporal e sobre a relação entre começo e final da
história.
No seu terceiro texto, Decálogo del perfecto cuentista (1927), Quiroga excede
na ousadia quando apresenta, em forma de mandamentos semelhantes aos da bíblia, as
normas a serem seguidas para que uma pessoa qualquer possa ser um “perfeito
contista”. As suas regras vão desde o cuidado com o excesso de adjetivação à posição
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que deve assumir o narrador (e por extensão o contista) diante da história que está
relatando.
Quiroga estabelece as regras: seu perfeito contista não deve adjetivar sem
necessidade, deve manter a história e a vida de seus personagens sob controle desde as
primeiras linhas até as últimas. Ele dita as normas, porém é o primeiro em não segui-las
a risca, talvez porque acreditasse que deveria aprimorar sua arte a cada conto.
Como foi de esperar, seu Decálogo causou, na sua época, muita polêmica, e é
até os dias atuais alvo de críticas e comentários. Apesar da ironia presente no texto, não
podemos desconsiderá-lo na hora de estudar sobre o conto, pois podemos aproveitar
algumas idéias que nos auxiliariam a entender esse gênero. Ademais, não podemos
esquecer que o Decálogo serviu de ponto de partida para que outros escritores
escrevessem sobre o conto, tal como aconteceu com o ensaio Del cuento breve y sus
alrededores de Julio Cortázar sobre o qual discutiremos adiante.
No seu quarto texto, La retórica del cuento (1928), o escritor muda de tom, de
irônico passa a reflexivo. Retoma a relação entre o conto literário e a tradição oral,
afirmando que o homem não nasceu contista, porém a arte de narrar é inerente ao ser
humano, por isso afirma que “mientras la lengua humana sea nuestro preferido vehículo
de expresión, el hombre contará siempre, por ser el cuento la forma natural, normal e
irreemplazable de contar” (QUIROGA, 1996, p. 1196). Mesmo longe de serem
considerados textos teóricos, esses quatro textos acabam fazendo uma análise crítica do
conto e, portanto, são fundamentais para o estudo desse gênero.
Como dissemos antes, Quiroga serviu de inspiração para outros escritores
tecerem comentários acerca do conto, esse é o caso de Cortázar que discutiremos aqui.
Começaremos com Algunos aspectos del cuento54, texto lido em uma conferência na
Casa de las Américas em Cuba em 1963. Neste texto, Cortázar afirma que o conto é um
gênero esquivo e de difícil definição, por este motivo só consegue defini-lo através de
imagens: como um caracol de linguagem, enrolado em si mesmo, ou como um irmão
misterioso da poesia (Cf., CORTÁZAR, 1993, p. 149).
Na busca por caracterizar o conto, Cortázar acaba afirmando que não existem
leis que o regem, o que existem são “constantes”, ou seja, elementos que estão presentes
em diferentes tipos de contos e que dão estrutura ao gênero. Entre estas “constantes”
destacamos aquela que o escritor define como intensidade e tensão. A primeira
“consiste na eliminação de todas as idéias ou situação intermédias, de todos os recheios
ou fases de transição que o romance permite e mesmo exige” (CORTÁZAR, 1993, p.
157), ou seja, o contista tem de eliminar tudo o que sobra e que não esteja direcionado
ao seu objetivo. A tensão, por sua vez, é a forma como o contista aproxima lentamente
o leitor do fato narrado, gerando com isso uma expectativa que vai crescendo até seu
desfecho final (Cf., CORTÁZAR, 1993, p. 158). Para o escritor, essas duas constantes
são fundamentais para a construção de um conto que se planta na memória do leitor
como uma semente eterna.
Outra constante importante está no limite físico, esse aspecto diferencia o conto
do romance. Para ilustrar seu ponto de vista, Cortázar compara o conto e o romance
com a fotografia e o cinema (ou o filme). Para ele, “um filme é em principio uma
‘ordem aberta’, romanesca, enquanto que uma fotografia bem realizada pressupõe uma
justa limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a câmara abrange e
54
Utilizaremos nas citações a tradução de Davi Arrigucci Jr e João Alexandre Barbosa, “Alguns aspectos
do conto”, publicado no livro Valise de Cronópio.
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pela forma que o fotógrafo utiliza esteticamente essa limitação” (CORTÁZAR, 1993, p.
151). A fotografia, assim como o conto, capta um fragmento da uma realidade que é
muito mais ampla. Já no romance, semelhante a um filme, “a captação dessa realidade
mais ampla e multiforme é alcançada mediante o desenvolvimento de elementos
parciais, acumulativos, que não excluem, por certo, uma síntese e que dêem o ‘clímax,
da obra” (CORTÁZAR, 1993, p. 151).
O outro texto de Cortázar sobre o conto se intitula Del cuento breve y sus
alrededores (1969)55. Como dissemos antes, nesse texto o escritor argentino parte do
último mandamento do Decálogo de Quiroga que fala do conto como um pequeno
ambiente para desenvolver o conceito de esfericidade. Cortázar entende o pequeno
ambiente postulado por Quiroga como uma forma fechada, esférica, na qual se
desenvolve a situação narrativa. Afirma Cortázar:
A noção de pequeno ambiente dá um sentido mais profundo ao
conselho [de Quiroga], ao definir a forma fechada do conto, o que já
noutra ocasião chamei sua esfericidade; mas a essa noção se soma
outra igualmente significativa, a de que o narrador poderia ter sido
uma das personagens, vale dizer que a situação narrativa em si deve
nascer e dar-se dentro da esfera, trabalhando do interior para o
exterior, sem que os limites da narrativa se vejam traçados como quem
modela uma esfera de argila. Dito de outro modo, o sentimento da
esfera deve preexistir de alguma maneira ao ato de escrever o conto,
como se o narrador, submetido pela forma que assume, se movesse
implicitamente nela e a levasse à sua extrema tensão, o que faz
precisamente a perfeição da forma esférica. (CORTÁZAR, 1993, p.
228)
Para ele, o conto deve dar a impressão que se conta a si mesmo, sem muita
interferência do contista enquanto demiurgo, por isso defende a narração em primeira
pessoa, para reforçar essa suposta independência. Ainda defende que o contista deve
trabalhar com a máxima economia de meios e com a máxima tensão, porque seu
objetivo é fascinar o leitor desde as primeiras linhas.
Nesse texto, Cortázar mais uma vez aproxima o conto da poesia quando diz que
ambas nascem de “um repentino estranhamento, de um deslocar-se que altera o regime
‘normal’ da consciência” (CORTÁZAR, 1993, p. 234). E isto se deve porque o conto
“depende destes valores que dão um caráter específico ao poema e também ao jazz: a
tensão, o ritmo, a pulsação interna, o imprevisto dentro de parâmetros pré-vistos, essa
liberdade fatal que não admite alteração sem uma perda irreparável. Os contos dessa
espécie incorporam-se como cicatrizes indeléveis em todo leitor que os mereça...”
(CORTÁZAR, 1993, p. 235)
É certo que ambos os textos de Cortázar não são o que se pode classificar de
uma teoria, mesmo porque seu objetivo ao escrevê-los não foi postular uma teoria para
o conto, mas expor sua concepção do que é um conto e compartilhar sua experiência
enquanto contista. Apesar de não serem textos teóricos, esses ensaios são essenciais
para o estudo do conto.
55
Utilizaremos nas citações a tradução de Davi Arrigucci Jr e João Alexandre Barbosa, “Do conto breve e
seus arredores”, publicado no livro Valise de Cronópio.
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3. A teoria da história secreta
Passamos aqui para a leitura das Teses sobre o conto (2002) de Ricardo Piglia.
Nesse texto, o escritor argentino defende duas teses: na primeira afirma que “um conto
sempre conta duas histórias” (PIGLIA, 2004, p. 89) e na segunda defende que “a
história secreta é a chave da forma do conto e de suas variantes” (PIGLIA, 2004, p. 91).
O que nos interessa neste trabalho é analisar a primeira destas teses.
Piglia afirma que existem duas histórias presentes no conto: uma visível e uma
secreta, e a arte do contista está em saber cifrar uma na outra (Cf., PIGLIA, 2004, p.
90). A primeira história, a visível, é contada de modo explícito e, portanto, é facilmente
absorvida pelo leitor, enquanto que a outra, secreta, vai sendo contada nos interstícios
da primeira e só é revelada no final quando o “segredo” emerge na superfície,
provocando no leitor algum efeito, sensação ou estranhamento (Cf., PIGLIA, 2004, p.
90).
O escritor sustenta que esse caráter duplo do conto é a chave para compreendê-lo
enquanto gênero narrativo, mas é também uma forma de classificá-lo em conto clássico
ou moderno, dependendo do modo como a segunda história foi cifrada. No primeiro, a
história secreta aparece subitamente no final como uma revelação epifânica. Já no conto
moderno, as duas histórias aparecem entrelaçadas, há uma espécie de tensão entre
ambas, como se houvesse uma só história e seu desfecho não aparece de forma
conclusiva, fechada. A segunda história é contada de forma elusiva, porque “o mais
importante nunca se conta” (PIGLIA, 2004, p. 91), deixando no leitor a impressão de
que a história está inconclusa, aberta, ou que há algo escondido e que talvez não tenha
conseguido alcançar.
Apesar de afirmar que são teses sobre o conto, o que fica claro desde o título,
esse texto aparece em forma de notas nas quais o escritor parece registrar suas reflexões
sobre o gênero em busca de uma compreensão melhor. Em alguns momentos,
percebemos que seus postulados resgatam o que o conto herdou da tradição da narrativa
oral, do contador de histórias que sempre deixava o melhor para o final para não perder
a atenção da platéia. E em outros, especula sobre a técnica narrativa de vários contistas
com o intuito de ilustrar ou comprovar sua tese. Piglia finaliza seu texto sustentando a
ideia que existe uma história secreta em cada conto e este foi construído para revelar
algo que estava oculto, uma verdade secreta que estava escondida debaixo da superfície
opaca da vida (Cf. PIGLIA, 2004, p. 94).
Considerando que seu texto são notas dispostas em ordem numérica, podemos
pensar que o propósito de Piglia não era propor uma teoria para o conto. Porém seu
texto é o que mais se aproxima de uma teoria, uma vez que o escritor apresenta suas
teses e tenta defendê-la através de exemplos pertinentes.
Analisando a sua primeira tese, percebemos que Piglia é muito assertivo quando
defende que o conto sempre conta duas histórias. A palavra sempre nos leva a
questionar o absolutismo de tal afirmação. Será que todo conto conta sempre duas
histórias? Ou será que pode haver algum que conte mais de duas histórias? Ou ainda só
uma? Este questionamento vem atrelado a outro: Piglia afirma que a história secreta se
apresenta de forma enigmática, porém não depende da interpretação do leitor alcançar
seu sentido oculto. Pensamos que talvez não dependa exclusivamente da interpretação
subjetiva, mas se é uma narração cifrada, sua leitura convida o leitor a decifrá-la,
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analisando e interpretando os signos, sinais, pistas, indícios, etc., na tentativa de
encontrar a solução, a chave secreta.
Levando em conta estes questionamentos, fomos buscar respostas analisando
dois contos dos escritores mencionados no início deste trabalho: Horacio Quiroga e
Julio Cortázar.
4. Um conto sempre conta duas histórias?
Nesta parte do nosso trabalho iremos investigar se a tese de Piglia pode ser
aplicada a dois contos, um deles é de autoria do escritor Horacio Quiroga. Escolhemos
Las rayas (1907) por tratar-se de um relato que se aproxima do modo fantástico e,
portanto, já deixa entrever que pode contar duas histórias.
Conto começa advertindo o perigo escondido na dupla significação de uma
palavra. Trata-se da palavra raya (em espanhol) que pode designar duas coisas
diferentes: como raia (linha ou listra) e como raia (animal marinho). Em seguida, ao
modo do relato oral, o narrador-testemunha começa a relatar a história de dois homens
obcecados por desenhar listras. Ambos eram empregados de uma pequena empresa, um
era vendedor e o outro cuidava da contabilidade, ou dos libros em espanhol. A
transformação nos dois personagens aconteceu aos poucos, os funcionários, antes
exemplares, começaram a mudar o comportamento e ficaram estranhos, a partir desse
momento surgem as primeiras raias (linhas). Elas estavam cuidadosamente pintadas no
livro de registro onde supostamente deveriam anotar as operações comerciais, depois
apareceram nas paredes e móveis do escritório. Por causa dessa loucura, ambos foram
despedidos. Os homens desaparecem do povoado, deixando a sua casa marcada de raias
por todos os lugares. O conto termina com uma revelação do narrador que afirma ter
encontrado duas raias negras num canal lamacento atrás da casa onde moravam.
Essa sinopse corresponderia à história visível, que está na superfície e que, a
primeira vista, pode parecer estranha e sem sentido. Porém essa suposta inocente
história pode guardar uma história secreta, se consideramos que todo conto sempre
conta duas histórias.
Se levarmos em conta a dupla ou múltipla significação da palavra raya, podemos
afirmar que a história secreta pode estar contida nessa palavra. Tomando a significação
metafórica do verbo rayar que significa enlouquecer no espanhol argentino, a segunda
história seria a de dois homens que rayaron, quer dizer enlouqueceram. Talvez por
causa da rotina extenuante do trabalho ou por causa da solidão, já que ambos eram
emigrantes de outras regiões e que vieram buscar trabalho em Laboulaye (povoado da
província de Córdoba na Argentina). Esta interpretação pode ser muito previsível, já que
o tema da loucura é bastante comum na contística de Quiroga.
Podemos considerar que a história secreta se revelaria no final do relato quando
o narrador insinua que os homens podem ter se metamorfoseado em raias. E aqui
percebemos uma sutil ironia presente na relação entre a palavra e o objeto (ou objetos)
que ela designa. Dario Puccini nos chama a atenção para essa particular metamorfose,
afirmando que esta “se realiza dentro de uma zona semántica, dentro del significado que
cobra la misma palabra em um mismo idioma” (PUCCINI, 1996, p. 1351). A obsessão
por desenhar raias acaba transformando os dois personagens em raias.
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Ainda no plano da interpretação e buscando sentido nas entrelinhas da história
visível, podemos deduzir que a história secreta pode estar relacionada com o tema da
homossexualidade. Os dois homens, emigrantes solitários, travaram uma estreita
amizade, como nos afirma o narrador (Cf., QUIROGA, 1996, p. 470). Ambos moravam
juntos em uma casa nos arredores do povoado e estavam sempre na companhia um do
outro. Talvez estes sejam indícios de uma relação homoafetiva entre os personagens e as
linhas representam uma forma de expressar seus sentimentos.
Apesar de Piglia afirmar que a história secreta “não se trata de um sentido oculto
que dependa da interpretação” (PIGLIA, 2004, p. 91), é quase impossível desconsiderar
a interpretação subjetiva do leitor. Por esse motivo, a busca pela história secreta pode
levar a diferentes formas de ler a mesma história e cada leitor pode dar sentidos
diferentes a mesma história. Isto relativizaria a afirmação de Piglia quando diz que um
conto sempre conta duas história, quiçá possa contar mais de duas ou uma só.
Na nossa leitura do conto, falta destacar um aspecto que acreditamos ser a
história secreta mais interessante. Se considerarmos que é a história secreta é a chave
que define a forma do conto como nos indica Piglia, podemos pensar que esta guarda
uma relação muito estreita com a tradição do relato oral. O narrador-personagem não
conta todos os detalhes, tentando manter a atenção dos seus ouvintes, além disso deixa
uma interrogação no final que, por sua vez, aparece aberto, propiciando diversas
interpretações. Desde esta perspectiva, podemos afirmar que a história secreta pode
estar na própria forma de narrar e na capacidade inata do homem para narrar. O narrador
do conto de Quiroga “no era un viejo y sutil filósofo versado en la escolástica”
(QUIROGA, 1996, p. 469), é, de fato, um homem comum, mas que como bom contador
de história conhece os truques de como contar um bom conto.
Não podemos deixar de apontar também a sutil ironia expressada pelo contista
que aproveita para nomear um dos seus personagens como Tomás Aquino, clara
referencia ao representante da escolástica. Em oposição ao seu narrador principal que
não precisava ser um escolástico para poder narrar.
Na busca pela história secreta no conto Las rayas de Horacio Quiroga, acabamos
encontrando algumas possíveis histórias. Tal fato não invalida a teoria de Piglia, pelo
contrário, provoca a curiosidade de seguir procurando esse segredo tão bem guardado
no interior do conto.
Vejamos agora quais histórias encontraremos em um conto de Cortázar.
Escolhemos Continuidad de los parques (1956) para avaliar que histórias secretas se
desprendem desse relato. O conto narra a história de um personagem que, sentado na
sua poltrona favorita de veludo verde diante de um parque de carvalhos, lê um romance
no qual se conta a história de um casal de amantes que tramam a morte do marido. A
história do romance lido pelo personagem se converte na sua própria quando, no final
do relato, o amante-assassino surge com um punhal na mão pronto para matar um
homem que está lendo um romance, sentado em uma poltrona de veludo verde.
Como podemos perceber este relato já conta duas histórias: a do romance e a do
homem que lê o romance, ambas estão na superfície, são as histórias visíveis. Sendo
assim, nos deparamos com um problema: se há duas histórias visíveis, cada uma pode
conter uma história secreta. A história dos amantes que tramam a morte do marido pode
nos levar a várias interpretações. Podemos pensar que a história secreta está no motivo
do assassinato e tem a mulher como mentora. Ela, que não recebe atenção do marido
cujo tempo livre era dedicado as suas leituras, convence seu amante a matá-lo para ficar
com sua fortuna. Seguramente essa interpretação seria demasiado óbvia, mas não
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deixaria de ser válida, já que o narrador vai deixando pistas ao longo do seu relato que
leva o leitor a chegar a essa conclusão.
Se Analisarmos o conto desde o ponto de vista da metaficção, podemos dizer
que este funciona como bonecas russas que se encaixam uma dentro de outra, na
definição de Gustavo Bernardo (Cf., 2010, p. 31). O conto sugere, desde o título, uma
continuidade que segue ao infinito, uma ficção dentro de outra. Dessa forma, o nosso
problema para encontrar a história secreta se potencializa, porque as histórias secretas se
multiplicariam com o abrir uma boneca e encontrar outra igual.
Ainda tentando encontrar outras histórias secretas, chegamos a uma das funções
da literatura: a fruição. No conto, o personagem-leitor alheia-se do seu entorno e vive a
história que lê como se fosse a sua própria. Este processo de identificação nos remete a
outro texto de Cortázar mencionado no início do nosso trabalho, Algunos aspectos del
cuento, no qual fala que é mediante o uso de certas técnicas que o contista consegue
seqüestrar momentaneamente o leitor, atraindo sua atenção, isolando-o de tudo que o
rodeia para depois conectá-lo de novo com suas circunstancias (Cf. CORTÁZAR, 1993,
p. 153) Vemos essa técnica materializada nesse conto e ousamos dizer que o contista
conseguiu capturar dois leitores (ou infinitos leitores): aquele que lê o romance sentando
na sua poltrona de veludo verde e aquele que lê o conto que conta a história desse leitor.
5. Considerações finais
Como podemos observar, não foi uma tarefa simples aplicar a teoria da história
secreta aos contos escolhidos para análise neste trabalho. Muitas dúvidas surgiram na
busca pelas duas histórias, chegamos a pensar que elas podem ter sentidos diferentes
para leitores diferentes, já que inevitavelmente ele recorre ao mecanismo da
interpretação. Acreditamos que a interpretação é um aspecto determinante na hora de
avaliar que histórias estão presentes no conto. Ao fazer tal observação, não temos a
intenção de refutar a tese de Piglia, mas de refletir e avaliar suas frases terminantes.
Talvez a nossa dificuldade em encontrar nos contos escolhidos apenas uma
história secreta, se deva ao fato de ambos serem considerados fantásticos, que, por sua
vez, tem como característica principal implantar uma dúvida na consciência do leitor.
Diante de tal dificuldade, optamos, portanto, por destacar as possíveis histórias secretas
escondidas por trás da história visível, sem desconsiderar que estes relatos podem levar
a outras leituras, uma vez que ainda há a possibilidade de encontrar outros sentidos.
Apesar de acreditar que existam mais de uma história secreta nestes contos,
observamos também que ambos são construídos conforme Piglia descreve nas suas
notas, parte da história que consideramos visível não é contada. Tal técnica cria no leitor
uma expectativa, ou tensão, dando a impressão que há realmente algo escondido e que
deve ser desvendado. Esse sentimento o mantém “atado” ao conto até o final quando a
história secreta é revelada.
Após essa análise, concluímos que a tese de Piglia pode ser aplicada aos dois
relatos aqui avaliados, Las Rayas e Continuidad de los parques. Porém não
conseguimos afirmar com certeza se, em cada um deles, existe apenas uma história ou
se há outras ocultas atrás da história visível. Como nos limitamos a analisar nada mais
que dois relatos, estamos cientes que, para comprovar se a tese da história secreta é
aplicável a qualquer conto, seria necessário avaliar um corpus maior, com contos de
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diferentes escritores e de diferentes épocas. Assim sendo, podemos dizer que ainda há
um longo caminho a ser percorrido na investigação sobre a teoria da história secreta.
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Editora Perspectiva, 1993.
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Paulo: Editora Perspectiva, 1993.
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PUCCINI, Dario. Horacio Quiroga y la ciencia. In: QUIROGA, Horacio. Cuentos
completos. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1996.
QUIROGA, Horacio. Cuentos completos. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
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QUIROGA, Horacio. Ante el tribunal. In: Cuentos completos. Buenos Aires: Fondo de
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QUIROGA, Horacio. Manual del perfecto cuentista. In: Cuentos completos. Buenos
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QUIROGA, Horacio. Los trucs del perfecto cuentista. In: Cuentos completos. Buenos
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QUIROGA, Horacio. Decálogo del perfecto cuentista. In: Cuentos completos. Buenos
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QUIROGA, Horacio. La retórica del cuento. In: Cuentos completos. Buenos Aires:
Fondo de Cultura Económica, 1996.
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A MEMÓRIA DA FICÇÃO EM EL SIGLO DE LAS LUCES DE ALEJO
CARPENTIER
Igor de Serpa Brandão Pereira LEITE56
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo explorar a constituição da memória,
do imaginário e do simbólico na obra El Siglo de las Luces de Alejo Carpentier. Com
efeito, pretende-se especificar a memória na historicização da ficção, da qual permite
reconstituir os vestígios do passado histórico, e, por conseguinte, suscita uma releitura
desses vestígios para uma interpretação transcultural do continente americano. O
aspecto reivindicatório de identidade cultural que confere uma consciência americanista
só pode ser concebida sub specie metafórica, onde a memória condiciona a irrupção
simbólica da narrativa pelo imaginário.
Palavras-chaves: A memória; Imaginário; Simbólico; Transcultural; Identidade
cultural.
1. Introdução
O presente trabalho tem como objetivo explorar a constituição da memória, do
imaginário e do simbólico na obra El Siglo de las Luces de Alejo Carpentier. A
memória, a partir do relato ficcional, autentica o viés simbólico da criação poética desta
narrativa que assegura a reconstrução do passado histórico rumo à visão da América
Antilhana. O espaço do imaginário, como a Viagem e a noção de Ilha, atua sobre a
estética barroca da narrativa, da qual uma encruzilhada de culturas, experiências,
crenças e mitos, permite reinscrever o passado na dinâmica do presente.
O artifício poético do mundo das viagens, que conectam espaços incongruentes,
asseveram “conflitos, omissões, ausências e não poucas vezes configuram refúgios
míticos onde os sujeitos diaspóricos se encontram em uma memória habitada desde
dentro.” (BOLAÑOS, 2010, p.13). Com efeito, pretende-se especificar a memória na
formalização da ficção do relato histórico, da qual permite reconstituir os vestígios do
passado, e, por conseguinte, suscita uma releitura desses vestígios para uma
interpretação transcultural do continente americano.
A complementariedade entre ficção e história permite justificar a presença do
pensamento sincrético da narrativa que conduz a uma ampla variedade de assuntos que
formam os contextos essenciais das ilhas caribenhas.
O aspecto reivindicatório de identidade cultural que confere uma consciência
americanista só pode ser concebida sub specie metafórica, onde a memória condiciona a
irrupção simbólica da narrativa pelo imaginário.
A metodologia utilizada neste trabalho impulsiona uma análise do aspecto
ficcional a partir da conjuntura entre a memória, a ficção e a história.
2. A memória
56
Estudante do curso de especialização em Práticas docentes para o ensino de Língua Espanhola, na
Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE).
P á g i n a | 931
A memória tem uma função fundamental na configuração da narrativa em El
siglo de las Luces de Alejo Carpentier. O que vem a salientar uma série de
questionamentos: o que é memória? Qual é o papel da técnica mnemônica no espaço
ficcional? O que é a memória da ficção?
A memória surge a partir dos vestígios do passado e seu princípio primeiro é um
condicionamento biológico do ser humano. Contudo, além da nossa condição psíquica,
a memória vem a cumprir um papel elementarmente social, da qual se designa como
memória coletiva em detrimento da memória individual. O carácter teleológico da
memória coletiva é a origem que pode ser mítica ou não. Para os gregos da época
arcaica, a memória era representada como Mnemosine, deusa e mãe das nove musas,
fruto da sua relação com Zeus. A memória tinha um espaço sagrado no mundo grego,
não só na representação dos mitos gregos, mas principalmente na expressão literária por
meio da poesia. Aristóteles falava da poesia como composição que se deva dar aos
mitos. A concepção da poesia pelos gregos, portanto, identificada com a memória, é
uma forma de conhecimento, um saber. Nas doutrinas órficas e pitagóricas, a memória
seria o não-esquecimento, como fonte da longevidade.
Por outro viés, a memória, na concepção moderna, estaria mais vinculada às
ciências do espírito, como a fenomenologia. Para Bergson (1999), a realidade do
espírito e da matéria está intimamente relacionada com a memória. A teoria da memória
bergsoniana indica que o reconhecimento das imagens pela lembrança demonstra a
relação entre o espírito e a matéria. Para o pensador francês, o estado psicológico do
sujeito parece ultrapassar o estado cerebral que seria a matéria, pois as imagens geradas
pelo cérebro são representadas à consciência depois que os movimentos
desempenhariam no espaço a modo de esboço que imprime ao corpo uma atitude ou
movimento. Segundo esta concepção, os movimentos dos atores que representam uma
determinada peça, por exemplo, são intrinsicamente trabalhados na consciência a partir
da imagem-lembrança que esboçaria o movimento a ser executado. Muito além da
função cerebral, temos o espírito mesmo, ou seja, “a vontade de” que sugere o estado
psicológico.
Para Ricoeur (2007), a memorização “(...) consiste em maneiras de aprender que
encerram saberes, habilidades, poder-fazer, de tal modo que estes sejam fixados”( p.73).
Entendido deste modo a memória como bem efetuamos aqui a qual surge a partir de
uma necessidade do espírito do qual “a vontade de” indicada no sujeito psicológico nos
remete à fenomenologia da memória individual que vem a ser melhor esclarecida por
Husserl na quinta Meditação Cartesiana na qual a passagem do ego à intersubjetividade
é compreendido. Jean Paul Sartre (1997) considera o problema da intersubjetividade
através da concepção da empatia e ser-para-outrem, já que “Outrem apresenta-se [...],
num certo sentido, como a negação radical da minha própria experiência, pois ele é
aquele para quem eu sou não sujeito, mas objeto” (p.273).
Para entender a memória como “vontade de” nos leva a acrescentar a questão da
identidade. Por outro lado, deveríamos levantar outro questionamento: de que modo eu
entendo por identidade? Mais uma vez, retornamos à Bergson (1999). Sabemos que a
memória está subordinada ao estado cerebral, onde imagens-lembrança do passado
recente ou longínquo estão presentes em nós mesmos. Assim, existem as imagenslembranças que advém da percepção e da afecção. Levando isso em consideração, o
movimento das lembranças surge por uma relação de fora para dentro ou de dentropara-fora. A afecção do espírito convida o sujeito a agir. Daí que surge a necessidade da
P á g i n a | 932
identidade individual como modo de agir a partir da memorização. Mas não poderíamos
deixar de lado que a questão da identidade individual pressupõe a presença da
alteridade, onde a memorização é sempre memória de algo ou alguém. Então a nossa
identidade não surge a partir do nada, mas da nossa experiência de Mundo pelo Outro.
Mas de que modo deveríamos entender o espaço mnemônico na narrativa de
Alejo Carpentier? Antes, bastaríamos dizer que a memória é fruto da imaginação no
espaço ficcional e que, por sua vez, pressupõe a vontade do ser em legítima defesa da
sua identidade. Entretanto, não bastaria por si mesmo definir o espaço memorialística
em El Siglo de las Luces, uma vez que perguntaríamos de que memória individual ou
coletiva, assim como de que identidade individual ou coletiva iremos abordar aqui.
Paul Ricoeur havia dito sobre o problema da memória manipulada na narrativa a
partir de uma memória ferida ou até mesmo enferma. Para concretizar o seu
pensamento, o filósofo francês embasará em Freud sobre o trabalho da interpretação que
paira no processo da recordação das lembranças traumáticas. Sob esta concepção,
deveríamos considerar a questão do luto em relação “todas as situações evocadas na
cura psicanalítica terem a ver com o outro, não somente aquele do romance familiar,
mas o outro psicossocial e, por assim dizer, o outro da situação histórica” (2007, p. 91,
grifo do autor).
A presença das experiências traumáticas tanto da identidade individual quanto
da identidade coletiva no processo mnemônico justifica “estender a análise freudiana do
luto ao traumatismo da identidade coletiva” ( RICOEUR, 2007, p.92).
No caso da obra El Siglo de las luces, isso reverbera nas histórias individuais de
Sofía, Esteban e Victor Hughes, os três personagens protagonistas da obra ficcional. Por
outro lado, o contexto histórico das revoluções no continente europeu e americano tem
como ponto comum o paralelismo entre a História de Europa e a História da América
antilhana. O paralelismo entre a revolução francesa e as idéias do iluminismo na Europa
e na América Antilhana. O paralelismo entre os Francos-maçons na Europa e na
América. Assim, poderíamos sugerir outro questionamento: Com que fim a interface
entre memória, ficção e história vem a elucidar a questão da identidade individual e
coletiva?
Segundo Roland Walter (2009):
Ter uma identidade significa ter uma história inscrita numa terra. Ter
uma história imposta contra a vontade, sem poder inscrevê-la na terra
enquanto seu dono, significa ter uma não-identidade. Daí resulta que a
importância do espaço/paisagem e da memória enquanto elementos
narrativos e locais de cultura para se colocar como sujeito. É na
literatura enquanto espaço mnemônico (...) recriam os mitos
necessários para se enraizar como sujeitos autóctones. A
reapropriação do espaço via memória, portanto, possibilita a
colocação (...) na sua própria história. A renomeação do seu lugar e da
sua história significa reconstruir sua identidade, tomar posse de sua
cultura; significa, em última análise, resistir a uma violência
epistêmica que continua até o presente. (WALTER, 2009, p.63).
Estas breves considerações de Roland Walter será crucial para entender o fim
cujo propósito crítico de reinscrever a história da revolução francesa e o iluminismo na
P á g i n a | 933
América a partir desta obra. Para isso, o narrador utiliza a presença do personagem
histórico Victor Hughes, do qual justificará o próprio autor Alejo Carpentier na pósnarrativa a cerca da historicidade deste personagem. Carpentier relata sobre a atuação
deste personagem em Port-au-Prince, Guadalupe e Guayana Francesa. Mas também
relata sobre:
sua ação hipostática-firme, sincera, heróica, em sua primeira fase;
desalentada, contraditória, ambiciosa e até cínica, na segunda- nos
oferecem a imagem de um personagem extraordinário que estabelece,
em seu próprio comportamento, uma dramática dicotomia. Daí que o
autor havia acreditado interessante revelar a existência desse ignorado
personagem histórico em um romance que abarcara, por sua vez, todo o
âmbito do Caribe. (CARPENTIER, 1980, p. 163, tradução nossa).
Este personagem contraditório, tal como nos relata o próprio autor a cerca da
dramática dicotomia de sua personalidade, nos impõe uma releitura da história da
América nas ilhas caribenhas de igual modo dramático na sua dicotomia. Porque a
memória deste personagem foi esquecido na historiografia tradicional e lembrado por
Alejo Carpentier? A memória na narrativa surge através de um critério de seleção na
ordem performática da linguagem literária. Isso leva em conta o seguinte aspecto crucial
da memorização na narrativa ficcional: o que devemos lembrar e o que devemos
esquecer para concretizar a práxis dos contextos latino-americanos. Para Ricoeur
(2007), “a memória é incorporada à constituição da identidade por meio da função da
narrativa. A ideologização da memória torna-se possível pelos recursos de variação
oferecidos pelo trabalho de configuração narrativa.” (p. 98). Poderíamos então justificar
que o critério de seleção e configuração da narrativa a partir da historicização da
ficção, sob o estatuto da técnica mnemônica, indica que voltar-se ao passado é uma
questão fundamental da necessidade potencial do presente histórico como compromisso
até o futuro pelo qual a consciência histórica e o conhecimento histórico andam lado a
lado sob o aspecto da diferença, da alteridade e da transculturação.
3. O imaginário
O mundo do imaginário legitimado pela barroquização da escrita, subsumido
numa cosmovisão das Ilhas Caribenhas, assim como o mundo visto através do ponto de
vista simbólico. Contudo, a esfera do simbólico busca algo valioso em si mesmo, não
apenas subordinado ao gosto estético, nem ao caráter mimético da obra. O sentido do
imaginário surge por meio de múltiplas imagens ressonantes e repercussivo, da mesma
maneira que nos certificou Gaston Bachelard em Poética do espaço:
Aquí debe sensibilizarse la duplicación fenomenológica de las
resonancias y de la repercusión. Las resonancias se dispersan sobre los
diferentes planos de nuestra vida en el mundo, la repercusión nos llama
a una profundización de nuestra propia existencia. En la resonancia
oímos el poema, en la repercusión lo hablamos, es nuestro. La
repercusión opera un cambio del ser. Parece que el ser del poeta sea
P á g i n a | 934
nuestro ser. La multiplicidad de las resonancias sale entonces de la
unidad de ser de la repercusión. ( 2000, p.14)
O ato poético na narrativa, engendrada pelo mundo fenomênico, não cria
imagens apenas como ecos do passado, mas as imagens criadas ecoam na profundidade
do ser mesmo, na qual os arquétipos presentes no fundo de nossa inconsciência sugere
um grande significado ontológico como modo de presença (dasein).
Que mundo é descoberto por Sofía e Esteban? E de que forma a memória destes
dois personagens são conflituosas em si mesmo? Por intermédio da estetização da
narrativa sob a barroquização da escrita e o mundo simbólico que ressoa na unidade do
ser como modo de presença (dasein), a partir de imagens que não ecoam apenas no
passado pela técnica mnemônica, mas o conjunto destas imagens repercussivas e
ressonantes, que abarcam o mundo das sensações e o mundo da transfiguração da
realidade, fazendo com que a linguagem poética da narrativa queira alcançar a
experiência do todo do mundo a partir do pertencimento da poética. Assim, o conjunto
das imagens poéticas formam o imaginário na narrativa a partir da memória. As
imagens têm um pertencimento de lugares, objetos, essências, cores e pessoas.
Esteban é apresentado na parte mais úmida e escura da casa como um
adolescente enfermo com um corpo magro, seu peito exalava um silvado surdo. De uma
criança enferma, logo Esteban misteriosamente é curado por Ogé, pois segundo este,
certas enfermidades estavam misteriosamente relacionadas com o crescimento de uma
erva, planta ou árvore. Esteban não só alcança uma cura, mas depois de curado, muitas
mudanças operam no seu caráter e comportamento. Aos poucos Esteban vai
descobrindo o mundo afora, as ruas dos garitos, as casas de baile, as mulheres recém
banhadas fumando tabacos nas portas giratórias, os lugares de diversão e prazer.
O imaginário através do mundo das crenças, dos modos e costumes do mundo
antilhano, do insólito, do cotidiano, da idéia de morte e da sexualidade através das
experiências de cruzes, sensações, simbiosis, nos impõe ainda outro aspecto essencial da
narrativa: a narrativa de viagens. Os relatos de viagens ou descobrimentos, da mesma
forma como um auto-descobrimento representado em Esteban e Sofía, podem
proporcionar:
as marcas das rotas mundanas e históricas que, por sua vez, limitam e
fortalecem os movimentos através de fronteiras e entre culturas. Sua
preocupação são as diversas práticas de cruzes, as táticas de tradução,
as experiências de apego ao dobro ou múltiplo. Estes exemplos de
cruzes refletem complexas histórias regionais e transregionais.
(CLIFFORD, 1997, p.17, tradução nossa).
Estas experiências de cruzes, complexas historias individuais e transindividuais;
a multiplicidade das imagens ambíguas; a alegoria, da mesma forma que histórias e
memórias convergentes, são abarcados por uma “multivocalização, cujas diversas
dimensões individuais e coletivas referem-se a complexos e entrelaçados mecanismos
cerebrais e socioculturais” ( WALTER, 2009, p.65).
As experiências de fronteiras e espaços fractais assumido no romance a partir da
presença inglesa, francesa, holandesa, espanhola e dos negros escravos; por outro lado,
a experiência antilhana que constitui um arquipélago maravilhoso, com pequenos
P á g i n a | 935
relatos que presencia huellas como signos índices do maravilhoso ou do imaginário,
que demonstram o processo transcultural como síntese cultural da América e das ilhas
caribenhas. Tal síntese transcultural do continente americano por intermédio da
episteme cultural (cosmovisão, ethos, identidade), é revelada através da memória
enquanto ela “tenta estruturar os contextos e conteúdos das nossas experiências em
termos de sua sequência no tempo e no espaço” (WALTER, 2009, p. 65).
A partir do imaginário pelo universo da viagem, a obra de Alejo Carpentier
justifica uma hermenêutica histórica e cultural das ilhas caribenhas para uma síntese da
visão de América como totalidade e totalização histórica. Segundo Walter Benjamin
(2012), o passado histórico é um índice secreto, pelo qual o passado dirige um apelo,
um apelo que não pode ser deixado de lado impunemente, já que o materialismo
histórico é uma consequência desse passado.
Desse modo, ainda ressoam as palavras de Walter Benjamin que “historicamente
o passado não significa conhece-lo tal como ele de fato foi. Significa apropriar-se de
uma recordação, como ela relampeja no momento de um perigo” (2012, p. 243, grifo do
autor).
4. O simbólico: o Barroco
Como definir o barroco na escrita de Alejo Carpentier em El siglo de las Luces?
Para José Lezama Lima (1957) em La curiosidad barroca, o barroco latino-americano
na modernidade é tenso na sua forma, é plutônico, que rompe os fragmentos e os
unifica, é um estilo pleno arraigado na aquisição de linguagem, formas de vida e
costumes do cotidiano, misticismo pleno, teocrático e misterioso, errante na forma e
arraigadíssimo nas suas essências. A arte do barroco na modernidade é
primordialmente, na visão de Lezama Lima, a arte da contra-conquista. O barroco
sugere assim uma legitimação estética alicerçada em um fazer histórico, sob o princípio
da síntese transcultural na América católica, incaica, andina, antilhana, asteca, afrodescendente e etc. O que Lezama Lima nos deixou como legado é que o autêntico
senhor barroco já foi americano na sua forma, nas contradições além da contra-reforma,
muito além do contra-discurso da modernidade europeia, sob o princípio do dramático
processo civilizatório já impreterivelmente mundial.
Alejo Carpertier (1981) em Lo Barroco y Lo Real maravilloso definirá a
América como continente de simbiosis, mutações, vibrações e mestiçagens. O
continente americano começará, muito antes do Boom latino-americano, a pensar sobre
a sua trajetória social, política e estética, fundamentalmente enraizado no horizonte de
expectativas de cunho hermenêutico histórico. A linguagem barroca vem a aludir o que
seria a América através da curiosidade das formas de vida e morte, a natureza além da
condição humana e primordialmente a visão de América como espelhismo.
De outro modo, necessitaríamos avaliar a concepção do simbólico pelo espírito
barroco. O símbolo, segundo Gadamer (1999), não só se define através do seu conteúdo,
mas pela sua exibicionalidade no qual reconhecemos nele a sua representatividade ou
ser-manifesto. O nível de representatividade do símbolo poderá ser múltiplo quando nos
deparamos com a obra carpenteriana, visto que o símbolo nos remete a sua função
anagógica, conduzindo para um significado mais elevado.
P á g i n a | 936
O narrador, antes do primeiro capítulo da narrativa, no prólogo, justifica toda
obra a ser apresentada a partir de uma linguagem puramente alegórica através das
palavras: Oceano, Proa, Popa, nave, Tempo detido, Máquina, Porta aberta, ontem e
amanhã, implacável geometria, o gigantesco instrumento de marear, tragédia antiga.
Seguindo o raciocínio de Gadamer sobre o ser-manifesto do símbolo, deveríamos antes
verificar a questão da alegoria para depois voltar a noção das fases simbólicas de
Northrop Frye.
A palavra alegoria é etimologicamente de origem grega Alle-goria (dizer o
outro). Antes, alguns pensadores latinos a confundiam com uma metáfora ampliada. O
conceito de alegoria foi modificando durante o tempo à medida que começou a
distanciar-se do seu sentido figurativo ou ornatio para ser concebido em representações
imagéticas correspondentes. Além do seu sentido retórico, como era designado, o
conceito de alegoria é a própria formação do sentido estético, em correlação com o
simbólico.
Voltando ao prólogo da narrativa, cada palavra que designa uma determinada
imagem poética, poderá nos conduzir a uma linguagem puramente alegórica. Mas,
alegoria de que? O Oceano poderá nos conduzir a idéia do mundo empírico, a proa ou
popa pelo que está à frente ou atrás das nossas expectativas do mundo experiencial ou
histórico, a máquina pelo que é o tempo físico, a Porta aberta ao mundo da criação,
implacável geometria à natureza circundante das formas, o gigantesco instrumento de
marear à contingência do fazer histórico, a tragédia antiga à visão da América
colonizada.
Segundo Northrop Frye em Anatomia da Crítica (1973), existem várias fases do
símbolo: a fase literal, a fase formal (símbolo como imagem), fase mítica (os
arquétipos) e a fase anagógica (o símbolo como mónada). De acordo com Frye (1973), o
símbolo na fase mítica é a unidade comunicável ou social da linguagem poética, pois a
imagem arquetípica como imagem típica ou recorrente se torna comunicável devido ao
interesse social que esta ou aquela imagem arquetípica suscita. O interesse social do
símbolo não surge a partir do nada, mas a uma questão de valor ou identidade cultural,
assim como também a uma questão crítica. Demonstraremos desde os personagens
principais do romance de Alejo Carpentier: Sofía, Esteban e Victor Hugues. E
anteciparemos que estes personagens são símbolos.
Esteban é um personagem que ao longo do romance vai alcançando um maior
conhecimento de si mesmo; um personagem que gostava do fantástico, do imaginário,
que sonhava desperto diante de pinturas que o identificava; Esteban é o símbolo da
própria consciência estética através da intuição, pois a intenção do autor parece
legitimar a experiência do mundo antilhano e da Europa revolucionária a partir das
lentes deste personagem subversivo. Por outro lado, Sofía, como o próprio nome indica,
pode referir-se a divindade gnóstica Sophia que representa a sabedoria. Sofía é uma
personagem que descobre o valor de ser desejada como Mulher, embora a tensão de ser
desejada acabou trazendo os conflitos de sua personalidade materna e amorosa e a
concupiscência do corpo. Sofia é o símbolo do luto do qual havia sacrificado toda a sua
liberdade para conseguir libertar Esteban no presidio de Ceuta a quem verdadeiramente
sentia um grande afeto desde a infância. E quem seria Víctor Hughes? Este personagem
é um arquétipo do homem burguês. Há uma nota a cerca da historicidade de Victor
Hugues em que o autor da obra caracteriza este personagem histórico que “estabelece,
em seu próprio comportamento, uma dramática dicotomia” (CARPENTIER, 1980,
p.163, tradução nossa). Assim seria o protótipo do homem burguês ou da sociedade
P á g i n a | 937
burguesa, subsumido agora, na especulação do mercado, na parceria público-privada e
dos bens exploráveis.
Sofía e Esteban são dois personagens símbolos que são recordados a partir do
que representam moralmente e eticamente no momento de perigo a partir da memória,
do luto e da coragem.
5. Conclusão
Antes de falarmos em Memória é preciso saber de que memória estamos
falando. Antes de mencionar sobre o símbolo, é fundamental saber de que símbolo nos é
apresentado como ser manifesto. Antes de indicarmos a interface entre ficção e
memória ou ficção e história, precisaríamos antes saber a forma artística sobre a qual o
ato memorialístico se dá pela técnica mnemônica, a ficção pelo imaginário ou pacto da
ficcionalidade, a histórica pelas marcas no presente.
No entanto, é necessário não confundir o ato memorialístico com a História, nem
com a ficção. O contexto histórico está ali como referência à forma estética, a memória
é um ato reminiscente, mas não se confunde com a História, mesmo sabendo que um
dos personagens existiu de fato historicamente através de documentos pelos quais o
autor da obra se fundamentou. Na verdade, a intenção do autor se dá por meio da
ficcionalização dos personagens históricos e dos “ambientes” históricos.
Sob a problemática dos primeiros idealizadores da América iluminista, da
América libertária e da América abolicionista, não lograda por causa de inúmeros
fatores de ordem social, histórica e cultural que impulsiona a idéia que a Utopia
européia não havia concretizado nas Américas, pois o continente latino-americano não é
a Europa renascentista, iluminista e moderna, uma vez que os ideais da revolução
francesa sob o estatuto de uma nova ordem sócio-econômica e moral, ou seja, o triunfo
da burguesia, nem ao menos se concretizou no continente europeu, quanto mais em um
outro continente que ainda é grande, não só pela extensão territorial, mas por que a
América antilhana, andina, vulcânica e selvagem continua sendo desconhecida, onde a
civilização não existe. Certamente, a questão do atraso histórico em relação à Europa
como centro e a América como periferia de uma ordem mundial, é um aspecto abordado
pela obra de Alejo Carpentier.
Contudo, a tradução cultural através da transculturação que legitima os
processos da diferença cultural e da alteridade que dialoga com a mera questão da
Identidade cultural, tem como fundamento único: político. A política em legitimar a
cultura é reinscrever a nossa identidade através de estórias, memórias, personagens
autobiográficos, personagens históricos, personagens arquetípicos, ambientes barrocos e
etc.
Referências
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Champourcin. Argentina: Fondo de cultura económica, 2000.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
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P á g i n a | 938
BERGSON, Henri. Matéria e memoria: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.
Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BOLAÑOS, Aimée González. Conciencia de América en Alejo Carpentier.
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CARPENTIER, Alejo. El siglo de las Luces. Barcelona: Editorial Bruguera, 1980.
CARPENTIER, Alejo. Lo barroco y lo real maravilloso. In: La novela latinoamericana
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1981.
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São Paulo: Editora Cultrix, 1973.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma
Hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Editora Vozes,
1999.
LEZAMA LIMA, José. La expresión americana. Madri: Alianza, 1969.
RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.
SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada:Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Petrópolis:
Vozes, 1997.
WALTER, Roland. Afro-América: diálogos literários na diáspora negra das Américas.
P á g i n a | 939
O CONTEXTO SOCIAL NA PRODUÇÃO TEXTUAL EM UMA AULA DE
INGLÊS EM UM CURSO LIVRE DE IDIOMAS
Liane Velloso LEITÃO
Emny Nicole SOUSA
Resumo: O trabalho do professor é imprevisível. Podemos ter toda a atividade
planejada, esperando que os passos definidos sejam seguidos, mas o tempo, os alunos,
as aulas, a mudança de objetivo chegam e nos fazem repensar o que havíamos proposto.
Esse é o nosso trabalho. A atividade baseada no livro The Great Gatsby, de F. Scott
Fitzgerald para prática da oralidade de língua inglesa proposta em uma turma avançada
de língua inglesa de um curso livre de idiomas em João Pessoa, Paraíba, foi o nosso
objeto de pesquisa. A partir da reflexão da professora sobre a atividade com o livro e a
resposta dos alunos em sala de aula, uma nova direção foi tomada: a produção textual.
Trabalhando com o gênero de texto carta e analisando os mecanismos enunciativos
representados pelas modalizações e pelas vozes, pode-se perceber como a escrita reflete
a prática em sala de aula. Adotando o Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) de
Bronckart (1999), analisamos a importância do trabalho de produção textual em um
ambiente onde ela não é o foco, na medida em que os cursos livres de idiomas
centralizam as suas atividades na prática oral da língua estrangeira. O resultado da
pesquisa mostrou como o desenvolvimento de cada etapa de uma atividade é muito
importante para a contextualização do trabalho bem como para um (re)direcionamento
do objetivo inicial proposto para o livro The Great Gatsby.
Palavras-chave: Gênero de texto; Interacionismo Sociodiscursivo; Modalizações;
Vozes.
1. Introdução
A escassez de atividades de escrita de gêneros de textos no ensino de língua
inglesa em um curso livre de idiomas em João Pessoa, na Paraíba foi o ponto de partida
para o desenvolvimento desse artigo. A partir de uma análise do material didático deste
curso, onde a pesquisadora era professora, percebeu-se que vários gêneros eram vistos,
em quase sua totalidade, apenas no livro texto do aluno, onde há a apresentação dos
conteúdos programáticos, com a apresentação do novo vocabulário, explicação
gramatical e informações culturais. Folheando o livro texto de alguns estágios verificase que várias lições abordam diversos gêneros de textos, como por exemplo, artigos de
revistas, charges, piadas, manchetes de jornais, cartas, anúncios de propaganda e emails. Contudo apenas alguns deles são objetos de estudo, sendo o foco especialmente a
interpretação de texto ou a leitura oral. O senso comum advoga que eles são suporte
para assimilação de novos vocabulários, visualização de formatação específica e
ampliação dos domínios culturais, sem que haja foco na sua produção. Partilhando da
ideia do professor da Universidade de São Paulo (USP) Manoel Luiz Gonçalves Corrêa
em um minicurso ministrado na Universidade Federal da Paraíba em maio de 2013,
defendemos que o processo de aquisição e de aprendizagem de uma língua se dá através
dos discursos, principalmente quando a heterogeneidade dos gêneros de textos é
explicitada, explorada e compreendida pelos alunos. Portanto, há a necessidade de se
promover a interação entre os gêneros. Marcuschi (2008) também enfatiza a
P á g i n a | 940
importância do texto no ensino de uma língua: “Que o ensino de língua deva dar-se
através de textos é hoje um consenso tanto entre linguistas teóricos como aplicados.”
O presente artigo foi desenvolvido a partir das impressões e análises da atividade
de leitura do romance The Great Gatsby (1925), de Francis Scott Fitzgerald e do filme
homônimo de 1974. Primeiramente, o foco estava na prática oral da língua inglesa, com
debates sobre os personagens, o contexto histórico e o enredo. Posteriormente a
atividade estendeu-se à prática da escrita, através do gênero de texto “carta”. As
discussões sobre os meios de comunicação nas décadas de 20 e 30 em comparação com
os atuais promoveram uma curiosidade nos alunos, porque alguns deles não estavam
familiarizados com a produção desse gênero, já que se utilizam das mensagens nas redes
sociais para se comunicar com os antigos.
A pesquisa ora apresentada tem como embasamento teórico o Interacionismo
Sociodiscursivo (doravante ISD). “O ISD visa demonstrar que as práticas linguageiras
situadas (ou os textos-discursos) são os instrumentos principais do desenvolvimento
humano, tanto em relação aos conhecimentos e aos saberes quanto em relação às
capacidades do agir e da identidade das pessoas” (BRONCKART, 2006, p.10). Daí a
importância do trabalho contextualizado dos gêneros de textos com os alunos, tanto no
ensino de língua materna quanto no de língua estrangeira.
Com embasamento na teoria sociointeracionista de Vygotsky, Schneuwly e Dolz
(2004, p.43 e 44) afirmam que,
“as práticas de linguagem são consideradas aquisições acumuladas
pelos grupos sociais no curso da história. Numa perspectiva
interacionista, são, a uma só vez, o reflexo e o principal instrumento
social. É devido a essas mediações comunicativas, que se cristalizam
na forma de gêneros, que as significações sociais são
progressivamente construídas.”
A partir da (re) configuração da atividade primeiramente proposta pela
professora, novos objetivos foram acrescentados ao objetivo inicial da prática oral.
Consequentemente outros resultados poderiam ser esperados.
Ao longo da pesquisa procuramos responder as três perguntas abaixo:
1) A pesquisa realizada pelos alunos para a preparação da atividade e a
interação em sala de aula contribuíram para a produção textual?
2) Por que a escolha da carta como gênero de texto nessa atividade?
3) Qual o resultado final obtido nessa atividade? Foi satisfatório? Caso
negativo, o que deveria ser reconfigurado?
Para uma melhor identificação, compreensão e análise do tema abordado, o
artigo está dividido em três seções. Na primeira seção, chamada de SEÇÃO I, a
metodologia estará exposta em duas subseções a fim de que os pressupostos teóricos
que nortearam o desenvolvimento e a reflexão sobre o assunto sejam conhecidos bem
como a apresentação do contexto sociointeracional de produção, onde as coordenadas
que envolveram a atividade serão explicadas. A segunda parte, SEÇÃO II, está dividida
em duas etapas. A primeira abordará a atividade em si por meio de um quadro
explicativo e a segunda, contemplará as análises sobre o corpus. E por fim, na última
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parte, as considerações finais resultantes da análise dos resultados dessa pesquisa, com
a(s) possível(eis) respostas sobre a atividade de produção textual em língua inglesa.
2. Seção I: a metodologia
2.1. As modalizações e as vozes
As referências sobre contexto de produção textual são essenciais para que o
agente-produtor se baseie para produzir o seu texto, seja ele oral ou escrito. “Todo texto
empírico é objeto de um procedimento de observação” (BRONCKART, 1999, p.80).
Nessa perspectiva da produção textual, trazemos um fragmento das reflexões de
Bronckart (1999) sobre a relação direta dos textos e das formações sociais.
“... no nível de um agente particular, a produção de um novo texto
empírico deve ser concebida como o resultado de uma colocação em
interface das representações construídas pelo agente sobre a sua
situação de ação (sobre os motivos, intenções, conteúdo temático a
transmitir, etc.) e das representações sobre os gêneros de textos
indexados disponíveis no intertexto.” (BRONCKART, 1999, p. 137 e
138)
A partir dos conteúdos temáticos encontrados nos textos produzidos, nossas
categorias de análise voltaram-se para as modalizações e as vozes, constituintes dos
mecanismos enunciativos do folhado textual proposto por Bronckart (1999). As
modalizações que fazem partem do folhado se dividem em: lógicas, deônticas,
apreciativas e pragmáticas.
Modalizações lógicas: avaliação do conteúdo temático a partir do mundo
objetivo com o julgamento do valor da verdade;
Modalizações deônticas: avaliação do conteúdo temático a partir do mundo
social com os valores sociais;
Modalizações apreciativas: avaliação do conteúdo temático a partir do mundo
subjetivo com um julgamento mais subjetivo.
Modalizações pragmáticas: relacionadas à “responsabilidade
personagem”. Exposição dos motivos, das intenções e da capacidade de agir.
de
um
As vozes podem ser categorizadas em: vozes do autor, vozes sociais e vozes dos
personagens. As vozes analisadas a partir dos recortes do corpus foram: as vozes sociais
e as vozes dos personagens. As vozes sociais procedem de personagens, grupos ou
instituições sociais que não atuam como agentes em determinados segmentos de texto,
enquanto que as vozes dos personagens podem ser as vozes de seres humanos ou
animais, implicados como agentes nos acontecimentos dos segmentos de texto.
O corpus da pesquisa é formado por quatro textos produzidos por alunos de
estágio avançado de inglês em uma escola particular de idiomas. Alguns recortes foram
P á g i n a | 942
selecionados para ilustrar os pontos abordados pela pesquisa, como veremos na outra
seção.
2.2. O contexto sociointeracional de produção
A comunicação é essencial para o homem interagir com o outro, expressando
suas ideias, seus questionamentos, suas críticas e sua percepção de mundo. Para isso
utilizamos os textos como ligação entre o mundo ao nosso redor, o outro e nós mesmos.
Imersos na nossa zona de conforto, como no nosso país de origem, com a língua
materna sendo falada e ouvida diariamente, não percebemos “racionalmente” como a
função da língua está sendo realizada nas mais diversas situações que naturalmente
ocorrem, fazendo parte do nosso cotidiano. Não temos tantas preocupações quanto ao
uso da língua materna, pois estamos acostumados a ela e sabemos como usá-la. O
contexto no qual estamos imersos diariamente apresenta um importante facilitador nesse
processo de comunicação. Porém o que acontece quando aprendemos outro idioma em
um lugar em que ele não é falado nem ouvido diariamente, onde as interações sociais
não são frequentemente realizadas nessa língua estrangeira?
Para explicar esse processo tomamos como aporte teórico o Interacionismo
Sociodiscursivo. O ISD tem o seu papel relevante no processo dialético da elaboração
dos textos-discursos, na medida em que analisa essas relações presentes no agir
linguageiro e, por muitas vezes, promovendo a sua reconfiguração.
A fim de sistematizar o leitor com a pesquisa abordada e com o questionamento
acima, apresentamos as condições nas quais o corpus foi produzido, com base em
Cristovão (2008), a partir de um dos níveis propostos pelo ISD: o contexto
sociointeracional de produção. Toda linguagem é situada, ou seja, o lugar de produção,
o momento de produção, os emissores, o receptor, o lugar social, o objetivo e o
conteúdo temático são dados vitais para a caracterização de tal contexto.
A atividade objeto dessa pesquisa teve como lugar de produção uma sala de aula
de uma escola particular de idiomas em João Pessoa, capital da Paraíba. A escola é
conhecida nacionalmente por possuir franquias espalhadas no Brasil e em outros países
e por utilizar metodologia audiovisual no ensino de Inglês e de Espanhol. Os momentos
de produção aconteceram em duas aulas: a primeira com duração de 90 minutos,
quando o livro foi debatido pela turma e trechos do filme foram apresentados. Antes
desse primeiro momento de produção a ideia de produção textual ainda não havia sido
cogitada. E o segundo e último momento com a mesma duração de 90 minutos, quando
o gênero de texto carta foi proposto pela professora a partir das reflexões sobre a
dinâmica da aula anterior, sendo aceito e produzido pelos alunos. Os emissores, ou seja,
os produtores das cartas foram seis alunos com idade variando de 16 a 46 anos de idade,
perfil este das turmas dos estágios mais avançados dessa escola, onde há adolescentes e
adultos na mesma classe. Representando o lugar social dos alunos, temos a sala de aula
onde a atividade se desenvolveu. Os conteúdos temáticos, que estavam relacionados
com o romance entre os protagonistas Gatsby e Daisy, foram: a continuação ou o
término do romance ou ainda a possibilidade de uma fuga. Encaminhar a carta para um
final feliz ou para um triste desfecho foi uma decisão individual, onde os alunos tiveram
total liberdade para desenvolver seus argumentos, ou melhor, os do personagem do
livro. O objetivo era escrever uma carta com todos os requisitos estruturais que a
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compõem, tendo atenção ao uso da língua. Finalizando temos o receptor que era o seu
par romântico no livro, representado por um aluno do sexo oposto.
A seguir, explicaremos como a atividade foi conduzida pela professora e
analisada pela pesquisadora.
3. Seção II: a atividade e os procedimentos de análise
3.1) A atividade: literatura americana em sala de aula
A atividade desenvolvida nessa turma de estágio 2 do nível mais avançado de
Língua Inglesa em um total de quatro estágios, teve por primeiro objetivo o trabalho de
três das quatro habilidades na aquisição e aprendizagem da língua inglesa: speaking
(habilidade de falar), listening (habilidade de escutar, compreendendo) e reading
(habilidade de leitura). A quarta habilidade, writing (escrita), foi contemplada
posteriormente, como veremos a seguir. Por enquanto, nos deteremos na explanação
geral da atividade.
O ponto inicial deu-se com a escolha do livro. O lançamento no cinema da
versão mais moderna do livro “The Great Gatsby”, escrito por F. Scott Fitzgerald em
1925 foi a motivação para essa atividade. Os constantes comentários em sala de aula
sobre a estreia do filme com Leonardo di Caprio permitiram que a leitura do livro fosse
vista de forma prazerosa e com um objetivo: debater em sala todo o conteúdo extra que
havíamos visto sobre guerras e sobre cultura norte-americana e fazer uma relação entre
ambos com os acontecimentos narrados no livro. O próximo passo deu-se com a leitura
do livro em inglês e de material, também em inglês, pesquisado na internet sobre os
eventos históricos relacionados com a ambientação do livro (anos 20 e 30), como “A
Grande Depressão”, “A Quebra da Bolsa de NY” (1929) e a “Época do Jazz”. A internet
foi o instrumento utilizado pelos alunos para essa pesquisa por sugestão da professora.
Após a exploração prévia, os alunos assistiram a algumas cenas da adaptação
cinematográfica americana de 1974 do romance homônimo de Fitzgerald, com Robert
Redford no papel de Jay Gastby. A versão antiga foi preferida porque assim os alunos
teriam mais um parâmetro para comparar com a mais atual, além do livro.
Ao todo, foram apresentadas quatro etapas divididas em dois momentos de
produção, citados anteriormente.
As etapas 1 e 2 ocorreram uma semana antes da atividade em sala de aula,
quando o panorama geral foi apresentados assim como qual preparação era necessária
para a discussão a ser realizada na semana seguinte.
Etapa 1: Warm-up
O “aquecimento” para a atividade com o livro “The Great Gatsby” iniciou-se
com a apresentação pela professora dos seguintes aspectos: breve comentário sobre a
vida e as obras de F. Scott Fitzgerald, o enredo, os personagens e os fatos históricos do
romance. A professora fez um esquema no quadro onde os nomes dos personagens
principais se relacionavam, bem como algumas de suas características.
P á g i n a | 944
O objetivo era situar o aluno espacial e historicamente no contexto e
compreender o propósito da atividade. Uma observação importante sobre a realização
dessa primeira etapa: a interação em língua inglesa entre os alunos e a professora era
constante, pois além de alguns assuntos explanados já haverem sido debatidos em outras
aulas durante o semestre, como a crise de 1929, os alunos recuperaram as suas
memórias das aulas de História e Geografia do Ensino Fundamental e Médio, expondo
suas ideias e conhecimentos.
Etapa 2: Homework
A professora deu instruções de como a pesquisa poderia ser realizada em casa.
Ela consistia em leituras de alguns capítulos e resenhas do livro, principalmente com
informações sobre o perfil dos personagens e os acontecimentos mais marcantes além
dos acontecimentos históricos que caracterizam o pano de fundo da sociedade
americana retratada.
Os alunos receberam o roteiro abaixo, com perguntas em inglês, sem tradução, a
fim de nortear a busca pelas informações. Para efeito de compreensão deste artigo, as
perguntas em inglês foram traduzidas.
OUR DIRECTION
1. Describe “The Great Depression” (Descreva “A Grande Depressão”.)
2. Describe “The Jazz Age”. ( Descreva a “Era do Jazz”.)
3. What is Nick Carraway’s role in the book? (Qual o papel de Nick Carraway na
estória?)
4. Describe the way of life in West Egg, district of Long Island. (Descreva o estilo de
vida em West Egg, distrito de Long Island.)
5. Describe Gatsby’s Saturday’s nights’parties. (Descreva as festas dadas por Gatsby
sábado à noite.)
6. Why do you think Jay Gatsby just appeared from SEÇÃO 3 on? (Por que você
acha que Jay Gatsby somente apareceu a partir do capítulo 3?)
7. What happened in the Plaza Hotel’s room? (O que aconteceu no quarto do Hotel
Plaza?)
8. How can you compare Gatsby and the USA? (Como você pode comparar Gatsby e
os Estados Unidos?)
9. Explain the two sides of Fitzgerald: (Explique os dois lados de Fitzgerald:)
- Nick Carraway
- Jay Gatsby
10. What are some differences between the life style in New York and in
Minnesota? (Quais são algumas diferenças de estilo de vida entre Nova Iorque e
Minnesota?)
Etapa 3: Classroom Discussion
P á g i n a | 945
Primeiro momento de produção. A partir do roteiro de perguntas as primeiras
discussões sobre o livro começaram a surgir. O ponto abordado inicialmente foi o
contexto histórico no qual a estória se passava. Os alunos expuseram os seus
conhecimentos sobre o tema, com ampla interação de todos. O próximo passo foi a
caracterização dos personagens baseada na leitura e na interpretação dos alunos. Eles
tiveram liberdade para criticar o comportamento, defender e recriminar certas atitudes
dos personagens, principalmente as de Jay Gatsby, de Daisy Buchanan e de seu marido,
Tom Buchanan. Após esta discussão prévia, algumas cenas do filme foram
apresentadas, com o objetivo de contextualizar todas as informações obtidas, a partir da
visualização das imagens.
Etapa 4: Writing
Refletindo sobre a configuração dessa aula e a resposta dos alunos sobre o
conflito na relação entre Gatsby e Daisy, a professora resolveu se apropriar de um
gênero de texto escrito e reconfigurar a atividade inicial.
Qual era o meio de comunicação bastante utilizado naquela época? A carta. E
como duas pessoas que se amavam nas décadas de 20 e 30 se comunicavam? Através de
telefonemas e de cartas. Se o gênero emerge da prática social, por que não fazer o uso
da carta com o objetivo de praticar a escrita desses alunos?
Uma carta de amor ou de despedida possibilitava uma transposição da realidade
tecnológica e virtual de hoje (o e-mail, nesse caso) para a realidade dos papéis e dos
telefonemas da década de 20. Segundo Bronckart (2006, p.143), “qualquer produção de
texto implica, consequente e necessariamente, escolhas relativas à seleção e à
combinação dos mecanismos estruturantes, das operações cognitivas e de suas
modalidades de realização linguística.” Os aspectos estruturais que compõem a carta
foram retirados do livro trabalhado e dentro de um contexto de produção: local, data,
saudação, emissor, receptor, assunto (motivo) e assinatura.
Na segunda aula, a turma foi dividida em dois grupos: os alunos deveriam
escrever uma carta assumindo o papel de Jay Gatsby, enquanto que as alunas
assumiriam o da personagem Daisy. A carta era endereçada ao seu par romântico no
livro/filme depois do momento decisivo na estória do casal: o acidente provocado por
Daisy que culminou com a morte da amante de seu marido, Myrtle. Aos alunos algumas
opções de conteúdo temático foram propostas: continuação ou término do romance ou
uma proposta de fuga. Estes tiveram liberdade para desenvolver tais conteúdos bem
como propor novos. Os alunos escreveriam a carta com uma proposta e as alunas, a
resposta de Daisy.
3.2) A análise das cartas
Quatro textos foram selecionados: dois escritos por alunos e dois escritos por
alunas. Como a ambientação da obra é os Estados Unidos, escolhemos nomes de
estados americanos para nomear os autores de cada carta. Os alunos serão chamados de
Texas e Minnesota e as alunas, New York e Virginia. Todos esses alunos estudam há
mais de quatro anos nessa escola de idiomas. A faixa etária dos alunos selecionados é a
seguinte: Texas e New York, 16 anos, estudantes do Ensino Médio, Minnesota, 18 anos,
P á g i n a | 946
estudante de Engenharia na UFPB e Virginia, 23 anos de idade, estudante de Jornalismo
na UFPB.
Primeiramente partimos da análise dos conteúdos temáticos mais presentes nas
quatro cartas selecionadas.
Carta
New
York
Carta
Virginia
Carta
Texas
Carta
Minnesota
1. Acidente
X
X
X
X
2. Declaração de amor/ memórias
sobre o amor vivido
X
X
3. Comparação entre o amor de
Gatsby e Tom
X
4. Responsabilidade pelo acidente
X
Conteúdos Temáticos
X
5. Possível ida para a prisão
X
6. Agradecimento pela atitude
tomada
X
7. Esperança por um mundo melhor
X
8. Término do romance
X
X
9. Proposta de fuga
X
10. Decisão final nas mãos de
Daisy
X
Analisando os conteúdos temáticos, percebe-se que os alunos se utilizaram de
várias informações retiradas das discussões prévias para desenvolver a sua produção
textual. O traço comum a todos os textos foi como o amor de Gatsby e Daisy era forte,
porém as circunstâncias não eram favoráveis. As cartas das alunas eram claras sobre o
término do romance ser o ideal, enquanto que Texas via a fuga como uma forma de
manutenção desse amor e Minnesota deixava para Daisy a decisão final.
Alguns segmentos de texto foram selecionados para analisar as modalizações:
Modalizações
1. Apreciativa
Trechos
Autor da
Carta
“I’d never imagine that you’d have done something
like that for me.”
New York
“You have my heart, but I can’t have yours.”
“I know you are sad after the disaster.”
2. Deôntica
Virginia
Texas
“Probably I will go to prison.”
Minnesota
“[ ] see everybody judging you is killing me.”
New York
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3. Pragmática
4. Lógica
“And I am here to propose you a deal.”
Texas
“[ ] that I will assume the murder, because I do not
want anything happen with you, baby.”
Texas
“I can’t see you, that’s why I am writing this letter
now.”
Minnesota
“If the world was a fair place we could stay together
and be happy. But it´s not.”
“Secondly, Myrtle jumped in front of the car.”
Virginia
Texas
A tabela abaixo mostra as vozes sociais e as vozes dos personagens no corpus
analisado:
Vozes
Trechos
Autor da
Carta
Vozes sociais
Sociedade: “[ ] see everybody judging you is killing
me.”
New York
Justiça: “Probably I will go to prison.”
Minnesota
“ I really like Tom, but my love for you is so
different, you know?”
New York
Voz de
Personagem
Daisy Buchanan
“I love you too, Jay.”
“It´s time to say good-bye, Gatsby.”
“[…] you do not need to be upset about it, honey
[…]”
Voz de
Personagem
Jay Gatsby
Virginia
Texas
“Talk to Tom and send me a letter.”
“Think about our history.”
“ The first time we saw each other, our first trip, our
old dreams, our meeting at Nick´s home…”
Minnesota
A partir desses dados, percebe-se como as modalizações e sobretudo, as vozes
estão presentes, confirmando as representações que os alunos realizaram sobre o
propósito de escrever uma carta como o personagem do livro e com conteúdo temático
romântico.
4. Considerações finais
Quando a atividade começou a se desenvolver em sala de aula e refletiu-se que
novas perspectivas poderiam ser expandidas, essa possibilidade não foi desperdiçada:
houve uma reconfiguração da atividade. Esse tipo de sensibilidade precisa existir para
que novas práticas sejam criadas ou para que outras sejam reutilizadas, agora
reconfiguradas.
P á g i n a | 948
Infelizmente o tempo não era o aliado. É muito provável que esse tipo de
situação aconteça com a grande maioria dos professores que fazem da docência o seu
trabalho diário, com dedicação e comprometimento. Um melhor aproveitamento do
tempo durante o semestre pode permitir ao professor algumas aulas para a prática de
escrita em sala.
Só aprendemos quando praticamos. E essa foi uma experiência que ampliou os
horizontes para o trabalho de gênero de texto, seja ele oral ou escrito e mostrou que
trabalhar um texto é um estudo dinâmico que exige uma cooperação mútua entre aluno e
professor.
Referências
BRONCKART, Jean Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um
interacionismo sociodiscursivo. 2ª edição, São Paulo: EDUC, 1999.
_______. Atividade de Linguagem, textos e discursos: por um interacionismo
sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 1999.
CORRÊA, Manoel Luiz Gonçalves. Letramento e heterogeneidade da escrita no ensino
do português. In: Luiz Antonio Marcuschi ... [et al]; Inês Signorini (org.). Investigando
a relação oral/escrito e as teorias do letramento. 2ª edição, Campinas: Mercado de
Letras, 2001
CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes. Estudas da Linguagem à luz do ISD. Campinas:
Mercado das Letras, 2008.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção Textual, análise de gêneros e compreensão. 1ª
Edição - 5ª reimpressão, São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
SCHNEUWLY, Bernard e DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. 3ª
edição, Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004
TOGNATO, Maria Izabel Rodrigues. A (re) construção do trabalho do professor de
inglês pela linguagem. 2008. 335 p. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e
Estudos da Linguagem) – PUC São Paulo, São Paulo, 2008
P á g i n a | 949
INSTRUMENTAL OU COMUNICATIVO: REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE A
OPÇÃO POR ABORDAGENS NO ENSINO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA
Fabrícia ANDRADE (IFBA – Campus Salvador)
Resumo: Durante muitos anos, o ensino de língua inglesa desde a Escola Técnica
Federal até o atual Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia –
IFBA – foi orientado pelos pressupostos da abordagem do ensino de línguas para fins
específicos (abordagem instrumental para leitura de textos). Entretanto, as mudanças
políticas e sociais dos últimos vinte anos têm ocasionado também um repensar sobre as
práticas de ensino de língua estrangeira, em especial de língua inglesa nos institutos
federais, que têm por missão “promover a formação do cidadão histórico-crítico,
oferecendo ensino, pesquisa e extensão com qualidade, socialmente referenciada,
objetivando o desenvolvimento sustentável do país”. Em consonância com esse novo
direcionamento, observamos também uma ampla discussão no plano teórico envolvendo
a questão do ensino de leitura em língua inglesa, com base nos pressupostos da
documentação oficial que rege o ensino de línguas estrangeiras no país – PCN e
OCNEM. Esse trabalho apresenta, primeiramente, uma análise sobre os argumentos
apresentados por diferentes correntes teóricas para a escolha de uma determinada
abordagem para o ensino de inglês. Após essa análise, contemplamos a aplicabilidade,
os desafios e resultados obtidos a partir da escolha pela abordagem comunicativa para o
ensino de inglês no contexto técnico-profissionalizante, buscando ressaltar a
importância dos professores em assumir, conforme explicita Giroux (1997),
“responsabilidade ativa pelo levantamento de questões sérias acerca do que ensinam,
como devem ensinar, e quais são as metas mais amplas pelas quais estão lutando”.
Palavras-chave: Ensino/aprendizagem; Inglês; Abordagens.
1. Introdução
A rede federal de ensino técnico e tecnológico atravessa um momento de ajustes
após a nova estruturação pela qual passou em 2008: a criação dos institutos federais de
ensino técnico e tecnológico. Para além de uma série de mudanças estruturais, as quais
não são o foco desse trabalho, a principal mudança, que tem uma relação direta com o
processo de ensino/aprendizagem, foi a substituição do ensino médio pelo ensino
técnico profissionalizante integrado ao ensino médio. Se o objetivo agora é o de formar
técnicos para o mercado de trabalho e aliar isso a uma formação histórico-crítica dos
alunos, muito deve ser discutido sobre o papel das disciplinas propedêuticas, em
especial daquelas que envolvem ciências humanas, artes e linguagens nesse contexto.
Correlacionando o processo de mudança do ensino do inglês no IFBA – Campus
Salvador com o aporte teórico da Linguística Aplicada (doravante LA), esse trabalho
apresenta algumas considerações e reflexões sobre a nova abordagem de ensino
proposta, com a finalidade de compreender o impacto causado por ela e buscar
alternativas para aprimorar o processo de ensino/aprendizagem dessa disciplina no
contexto pesquisado. A escolha pelo aporte da LA tem como base a sua configuração
como uma área de estudos voltada para a pesquisa sobre questões da linguagem
colocadas na prática social, apresentando uma taxonomia e tradição de pesquisa
P á g i n a | 950
próprias (Almeida Filho, 2005). Além disso, o caráter interdisciplinar da LA corrobora
para uma análise mais pertinente da situação estudada, a qual envolve não somente
questões da Linguística, mas também da Educação e das Ciências Sociais.
Apontamos também a figura do professor-pesquisador, como aquele mais
adequado para compreender seu contexto de atuação e as questões inerentes ao mesmo,
bem como propor as mudanças que julgar necessárias a partir de sua análise, alçando
esse profissional à categoria de intelectual, cuja utilidade nos apresenta Giroux (1997,
p.161):
A categoria de intelectual é útil de diversas maneiras. Primeiramente,
ela oferece uma base teórica para examinar-se a atividade docente
como forma de trabalho intelectual, em contraste com sua definição
em termos puramente instrumentais ou técnicos. Em segundo lugar,
ela esclarece os tipos de condições ideológicas e práticas necessárias
para que os professores funcionem como intelectuais. Em terceiro
lugar, ela ajuda a esclarecer o papel que os professores desempenham
na produção e legitimação de interesses políticos, econômicos e
sociais variados, através das pedagogias por eles endossadas e
utilizadas. [...]
É importante enfatizar que os professores devem assumir
responsabilidade ativa pelo levantamento de questões sérias acerca do
que ensinam, como devem ensinar, e quais são as metas mais amplas
pelas quais estão lutando.
Portanto, na busca pelo aprimoramento da nossa prática docente e legitimados
como professores-pesquisadores, apresentamos a seguir a análise do contexto e das
características do ensino de língua estrangeira na atualidade que motivaram as
mudanças de orientação metodológica e seus impactos.
2. A questão da leitura em LE nas escolas públicas brasileiras
Em 1998, são publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o
Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental de Línguas Estrangeiras. O texto desse
documento incluiu temáticas importantes como cidadania, letramento, hipertexto,
inclusão social, identidade, direitos linguísticos, globalização, dentre outros,
anteriormente não mencionados de maneira tão explícita no ensino de LE. De acordo
com Leffa (1999, p. 16):
Amplos em seus objetivos, os parâmetros estão baseados no princípio
da transversalidade, destacando o contexto maior em que deve estar
inserido o ensino das línguas estrangeiras e incorporando questões
como a relação entre a escola e a juventude, a diversidade cultural, os
movimentos sociais, o problema da violência, o tráfico e uso de
drogas, a superação da discriminação, educação ambiental, educação
para a segurança, orientação sexual, educação para o trabalho,
tecnologia da comunicação, realidade social e ideologia.
P á g i n a | 951
Nesse pormenor, Leffa (1999, p.22) aponta que “enquanto a própria lei baseia-se
no princípio do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, os Parâmetros
restringem o espaço de ação do professor”, o que, inclusive, não corrobora para o
grande objetivo do ensino de LE nas escolas, proposto pelo mesmo documento:
[...] a aprendizagem de Língua Estrangeira é uma possibilidade de
aumentar a autopercepção do aluno como ser humano e como cidadão.
Por esse motivo, ela deve centrar-se no engajamento discursivo do
aprendiz, ou seja, em sua capacidade de engajar outros no discurso, de
modo a poder agir no mundo social. (BRASIL, 1998, p.15)
Muitos professores e pesquisadores em Linguística Aplicada se posicionaram em
relação ao trabalho com ênfase na habilidade da leitura, o que gerou uma polêmica, que
será abordada mais detalhadamente em outra seção. Essa polêmica, porém, foi
extremamente positiva no sentido de rever o texto dos PCN no momento da publicação,
em 2006, de outro instrumento norteador do ensino de LE nas escolas – as Orientações
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCNEM). O texto apresenta por
objetivos:
[...] retomar a reflexão sobre a função educacional do ensino de
Línguas Estrangeiras no ensino médio e ressaltar a importância
dessas; reafirmar a relevância da noção de cidadania e discutir a
prática dessa noção no ensino de Línguas Estrangeiras; discutir o
problema da exclusão no ensino em face de valores “globalizantes” e
o sentimento de inclusão frequentemente aliado ao conhecimento de
Línguas Estrangeiras; introduzir as teorias sobre a linguagem e as
novas tecnologias (letramentos, multiletramentos, multimodalidade,
hipertexto) e dar sugestões sobre a prática do ensino de Línguas
Estrangeiras por meio dessas. (BRASIL, 2006, p. 87)
O grande avanço trazido pelas OCNEM diz respeito ao trabalho com as demais
habilidades linguísticas, que ficaram em segundo plano nos PCN em detrimento da
habilidade de leitura, como podemos perceber na citação abaixo, contida no documento:
Propomos o desenvolvimento da leitura, da comunicação oral e da
escrita como práticas culturais contextualizadas. Imaginamos que a
proporcionalidade do que deve ser trabalhado nas escolas de cada
região deva ser avaliado regionalmente/localmente, levando em conta
as diferenças regionais/locais no que tange às necessidades.
Recomendamos que todas essas habilidades comunicativas sejam
trabalhadas ao longo dos três anos do ensino médio. Os trabalhos de
leitura devem ter continuidade, embora com mudanças de
perspectivas. (BRASIL, 2006, p. 111)
Observo, portanto, que as leis que orientam o ensino de LE, absorvendo as
críticas sofridas, caminham no sentido de propiciar bases legais que vão ao encontro das
P á g i n a | 952
necessidades atuais do contexto educacional, o que, desde o início, revelou-se como o
maior objetivo dos documentos norteadores mais recentes sobre o ensino de LE nas
escolas brasileiras.
Entretanto, Cruz (2006, p. 50) aponta para uma questão mais específica sobre o
ensino de língua estrangeira nas escolas públicas, frente a essas novas propostas
epistemológicas sugeridas nos documentos oficiais. Segundo o autor:
Os próprios órgãos centrais dirigentes dos princípios edcuacionais do
país em nível estadual e federal reconhecem a precariedade do ensino
das escolas públicas e o despreparo de seus professores para o ensino
de línguas estrangeiras. Em vez de solucionar o problema
devidamente, esses órgãos buscam paliativos, retirando ou
consolidando a obrigatoriedade do ensino dessa ou daquela língua
estrangeira, aumentando ou diminuindo a sua carga horária ou
estabelecendo normas acerca da(s) habilidade(s) que deve(m) ser
trabalhada(s) em sala para solucionar problemas de falta de
equipamentos, professores capacitados e número excessivo de alunos
na sala.
Devemos entender, portanto, o desafio do professor de LE. O seu (in)sucesso
depende de uma série de fatores que, muitas vezes, fogem ao seu alcance. Ele deve ser
proficiente na língua para ser capaz de ensiná-la em todas as suas dimensões. Deve
também ser capaz de refletir sobre sua prática, adequando-a às novas propostas de
produção do conhecimento delineadas pela documentação oficial sobre o ensino de LE
no Brasil. Isso exige uma capacitação constante por parte desse profissional.
Um entrave à formação de alunos bem sucedidos no que tange a aprendizagem
de LE diz respeito à fragmentação do conhecimento sobre essa língua, fato que acontece
ao se estudar habilidades linguísticas de maneira não integrada. Mas isso, de fato,
acontece em muitas escolas. Analisamos, a seguir, as razões para a eleição da leitura
como habilidade primordial em sala de aula, bem como as críticas a esse viés para o
trabalho com LE, o que nos orientou para realização das mudanças propostas na seção
seguinte.
3. Argumentos pró e contra o trabalho com leitura m LE nas escolas públicas:
embasamento teórico para reflexão e mudança
Retomando os princípios dos PCN, a leitura deve ser o primeiro foco do ensino
de língua estrangeira, sendo atribuída uma posição periférica às outras habilidades
linguísticas (escuta, fala e escrita). Cabe ao professor ampliar esse foco, porém, o que é
considerado com mais ênfase é o engajamento discursivo do aluno por meio de leitura
em língua estrangeira. Santos (2001) tece uma crítica nesse sentido, pois argumenta que,
para o pleno exercício da cidadania, o aluno deve ter a oportunidade de desenvolver as
quatro habilidades em LE dentro da escola, e não fora dela. A função social da LE
estaria ligada à possibilidade de o aluno sair capacitado a receber e produzir textos orais
e escritos em língua estrangeira. A mesma crítica é ainda corroborada por Klee, Férrua e
Moor (2001). As autoras afirmam que a abordagem comunicativa é “a teoria que melhor
atende a uma das características naturais da comunicação, qual seja, a de estabelecer
P á g i n a | 953
relações sociais” (Klee, Férrua e Moor , 2001, p.144). Tais críticas, porém, são o
resultado de um processo de discussão intenso, motivado a partir da publicação dos
PCN. Retomemos, então, todo esse processo.
Para Moita Lopes (1996), a abordagem que privilegia a leitura parece ser a mais
socialmente justificada. Segundo o autor, as necessidades de se aprender uma língua
estrangeira como o inglês, geralmente, devem-se a dois fatores: leituras de textos em
inglês em certos campos acadêmicos e exames de seleção para programas de pósgraduação. Podemos acrescentar a esses dois fatores os exames para ingresso nas
universidades – vestibular e Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O autor
registra, ainda, que a produção científica, nas diversas áreas do conhecimento, é escrita
em inglês, muitas vezes por falantes não-nativos, portanto, a habilidade da leitura deve
ser privilegiada, para que o ensino de LE de fato atinja o seu objetivo de ter uma função
social. Para além dos argumentos apresentados, Moita Lopes (1996, p, 131) ressalta
que:
No contexto das escolas públicas brasileiras é irreal se advogar o foco
nas chamadas quatro habilidades linguísticas, tendo em vista as
condições existentes no meio de aprendizagem: carga horária
reduzida; um grande número de alunos por turma; domínio reduzido
das habilidades orais por parte da maioria dos professores; ausência de
material instrucional extra além do livro e do giz etc.
Ao argumentar, ainda, sobre o ensino da língua inglesa nas escolas públicas,
Moita Lopes (1996), sugere que, o ensino com foco na leitura, este ensino instrumental,
colabora com o desenvolvimento da habilidade em língua materna, assim como faz
desenvolver a capacidade de letramento global. Ele pontua ainda que, a única
justificativa social para a aprendizagem da língua inglesa no Brasil tem a ver com a
leitura, tendo em vista ser essa a única habilidade que atende as necessidades
educacionais e que o aprendiz pode usar em seu próprio meio e que “considerar o
ensino de Inglês no Brasil como um recurso para a comunicação oral parece negar
qualquer relevância social para a sua aprendizagem” Moita Lopes (1996, pg. 130).
Schimitz (2009, p. 17) ressalta que uma política de ensino de línguas que
enfatiza somente a leitura enfraquece o papel do professor de língua estrangeira.
Segundo o autor:
[...] se o profissional de LE não fizer uso do idioma na sala de aula,
estará abrindo mão da qualificação que mais o caracteriza e que mais
o distingue dos professores de outra matéria: a sua condição de ser
bilíngue, de poder transitar entre duas culturas. O que nós esperamos
de um professor de inglês, espanhol ou japonês? Que fale o referido
idioma estrangeiro e que tenha uma competência profissional na
metodologia de ensino de língua estrangeira.
Dessa forma, de maneira complementar, encontramos
“enfraquecimento” em Tomitch (2009, p. 193) o qual propõe,
sinais
desse
P á g i n a | 954
tornamos a leitura uma ferramenta para que os nossos alunos possam
exercer sua cidadania com mais propriedade e passamos a colocar a
compreensão leitora na LE como o objetivo principal a ser atingido. A
partir daí, buscamos meios para instrumentalizar o nosso aluno para
compreender textos em LE. Nessa perspectiva, o ensino de estratégias
de leitura, e/ou o ensino de gramática e/ou de vocabulário são vistos
apenas como “ferramentas” ou como “meios” para se atingir o
objetivo final e não como “fins” em si mesmos.
Paiva (2003, p. 4) aponta uma tendência mundial para um ensino de LE, em que
essa língua seja vista e estudada como poderoso instrumento para as relações entre as
pessoas e entre as nações (conforme exemplos citados da própria autora sobre a
realidade do ensino de LE em países como a China, Rússia, África do Sul e Estados
Unidos). Portanto, restringir a aprendizagem à habilidade de leitura seria um retrocesso.
Apesar disso, a autora não deixa de reconhecer a importância da leitura em LE:
Não há a menor dúvida de que a leitura é um dos componentes
mais relevantes no ensino de uma LE. Além disso, a leitura é a
maior fonte de exposição ao idioma em contextos como o
nosso, onde há pouco contato com falantes nativos. Pesquisa
realizada na UFMG com alunos bem sucedidos do curso de
Letras da UFMG revelou que a estratégia individual de
aprendizagem mais utilizada por esses aprendizes é a leitura
(Paiva, 1994), o que demonstra a necessidade de se buscar
espaço para as habilidades orais na sala de aula, pois
dificilmente os aprendizes encontram oportunidades para
exercitar a fala.
Os motivos mais utilizados para defender a ênfase na habilidade de leitura
giram, basicamente, em torno dos seguintes fatores: (i) tempo para o ensino, grade
curricular, (ii) exames vestibular e Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), (iii)
falta de qualificação do professor, (iv) oportunidades de uso do idioma, e (v) escolas
mal equipadas. Para cada um desses argumentos, Paiva (2003) pondera questões que os
refutam, como vemos a seguir.
A questão do tempo para ensino de LE na escola não pode ser considerada um
fator que favoreça a ênfase na leitura, pois o estudante tem, atualmente, sete anos, no
mínimo, de ensino dessa língua na escola. Esse tempo é mais que necessário para que
sejam trabalhadas e aprendidas as demais habilidades linguísticas, formando um
aprendiz capaz de comunicar-se oralmente em LE.
Os exames de ingresso nas universidades brasileiras também não podem ser
argumentos favorecedores do trabalho, quase que exclusivo, com leitura em LE.
Recorro novamente a Paiva (2003, p. 6), que expõe as razões para que isso não
aconteça.
(O ingresso na universidade) não pode ser visto como o objetivo final
do ensino médio, pois isto significaria uma visão empobrecida do
processo educacional. O ensino básico não pode ser entendido como
mero caminho para o vestibular, mas como espaço privilegiado para a
P á g i n a | 955
formação da cidadania. No mundo globalizado, ser cidadão do mundo
implica, necessariamente, o conhecimento de pelo menos um idioma
em todas as suas dimensões.
Atribuir a culpa ao despreparo dos professores e à falta de recursos audiovisuais
para justificar a ênfase com o trabalho de leitura é sinônimo de se acomodar à realidade
em vez de tentar transformá-la (Paiva, 2003). Muitas escolas já possuem uma série de
equipamentos que são, na maioria das vezes, pouco ou quase nunca utilizados. A
questão da formação de professores perpassa uma reformulação dos currículos dos
cursos de Letras, movimento esse que já vem ocorrendo, mesmo timidamente, em
algumas realidades. Utilizo, portanto, a fala de Paiva (2003, p. 7) para advogar a não
conformidade com a realidade descrita.
Acredito que como lideranças acadêmicas que somos devemos propor
programas de educação continuada para melhorar a qualificação dos
professores e não uma política de educação que se submeta às
distorções do sistema de formação de professores e proponha uma
opção de ensino que perpetuará essa má formação. É sempre bom
lembrar que os alunos do ensino médio e fundamental cujo contato
com o idioma ficaria restrito à leitura são possíveis candidatos aos
inúmeros cursos de Letras que existem no país.
Quanto às oportunidades para o uso do idioma, defendo a ideia de que não existe
uma garantia de que o aluno egresso do ensino fundamental e médio não possua
oportunidades de utilizar outras habilidades da língua. O acesso à informação, o uso de
novas tecnologias e a expansão das redes sociais são realidades que, pela configuração
que apresentam, exigem o conhecimento para além da habilidade de leitura. Outro
argumento é a necessidade do mercado de trabalho quanto ao domínio de língua(s)
estrangeira(s). Concordo com Paiva (2003, p. 5) que utiliza o seguinte argumento:
Ninguém pergunta a ninguém “Em quantas línguas você lê?”, mas
“Quantas línguas você fala?” Anúncios de jornais requerem, em
profissões diversas, pessoas que falem inglês. Eu nunca vi um anúncio
procurando alguém que leia em inglês, mas que fale inglês.
Apesar dos argumentos contrários ao trabalho exclusivo com a leitura nos níveis
de ensino fundamental e médio, cabe pontuar a concepção de leitura que norteia essa
defesa.
Para Moita Lopes e Rojo (2004), o texto escrito em LE e a conversa sobre ele
em língua materna têm como objetivo fornecer aos alunos uma experiência significativa
de engajamento na construção do significado. Apesar da boa intenção, Schimitz (2008,
p. 42) questiona:
Quais seriam as consequências desta política para os departamentos de
língua inglesa e de educação no ensino superior? Os futuros
professores de inglês deveriam ser preparados para falar o idioma?
P á g i n a | 956
Não existe o perigo de que as escolas particulares, com o intuito de
atrair alunos, contratem professores competentes nas quatro
habilidades?
Outro dado que leva ao questionamento sobre a não eficácia do ensino de leitura
em LE é dado pelos próprios defensores da prática. Segundo Rojo e Moita Lopes (2004,
p.25) “apenas 5,35% dos jovens apresenta capacidades de leitura compatíveis com o que
seria de se esperar ao término do Ensino Médio”. Se esse dado é verdadeiro, cabe o
questionamento de Schimitz (2008, p.42):
O enfoque em leitura em aulas de língua inglesa com a discussão a
respeito dos respectivos textos feita em língua portuguesa não
colocaria a LE a serviço da língua materna com base no fato de os
alunos simplesmente não serem leitores competentes na língua
materna? As línguas estrangeiras não seriam “reféns” da língua
materna?
Quando pensamos em uma escola pública de qualidade, onde o ensino de língua
estrangeira possa estar a serviço da formação do estudante, não somente para a sua
colocação no mercado de trabalho, mas também para a sua formação crítica e reflexiva,
devemos repensar a questão da ênfase na leitura em LE. Sabemos que existem
condições desfavoráveis para o desenvolvimento de todas as habilidades na língua
estrangeira nas escolas públicas, conforme já explicitado nesse mesmo capítulo. Porém,
uma política de restrição do ensino a uma única habilidade, como a que é recomendada
por Rojo e Moita Lopes (2004), tende a aumentar o abismo de qualidade que existe
entre o ensino de inglês nas escolas públicas, e o mesmo ensino nas escolas particulares
e cursos de idiomas. Esse fato pode contribuir para o reforço da crença de que “inglês
não se aprende na escola”.
Diante dos argumentos a favor e contra ao trabalho exclusivo com a habilidade
de leitura, reflito, a seguir, sobre a introdução, aplicabilidade e atual momento do ensino
de inglês na educação profissionalizante, com ênfase na modalidade de curso (técnico
integrado ao ensino médio) contemplada nessa pesquisa.
4. O desafio da mudança: opção pela abordagem comunicativa
Palmer (apud Borges, 2009) possivelmente tenha sido um dos primeiros
estudiosos a destacar uma possível diferença entre um ensino de línguas para fins
específicos (instrumental) e um ensino de línguas para fins gerais (comunicativo).
Krashen (2002) retoma essa noção ao utilizar os termos aprendizagem, para o primeiro
tipo de ensino, e aquisição, para o segundo. Muitos autores têm se dedicado aos pontos
convergentes e divergentes entre essas duas tendências para o ensino de línguas, o que,
inclusive, foi tema da pesquisa (BORGES, 2009). A autora questionou diversos
linguistas aplicados a respeito da seguinte questão: “Contemporaneamente, é possível
falarmos em paradigmas distintos de ensino de língua quando discutimos sobre o
P á g i n a | 957
comunicativo e o instrumental?” Dentre as respostas obtidas57, não existe um consenso,
o que é, no meu entendimento, bastante favorável ao desenvolvimento da ciência. O que
a autora considera um “afrouxamento no tratamento da divisão das abordagens
contemporâneas” pode ser uma característica positiva no momento do desenvolvimento
de uma abordagem própria para um determinado contexto. Primeiramente, o fato
proporciona autonomia ao professor no momento da escolha por características
provenientes de diferentes abordagens para a confecção da sua própria maneira de
ensinar. Essa autonomia, entretanto, deve ser embasada em uma cuidadosa análise das
teorias e a adequação de partes delas ao contexto em que esse professor atua. Em
segundo lugar, ao buscar diferentes abordagens, o professor de LE está diretamente
atendendo às necessidades variadas dos seus alunos, considerando o papel ativo dos
aprendizes, suas crenças, seus estilos e estratégias de aprendizagem, seus objetivos e
seus interesses.
Outro aspecto a ser considerado no repensar das práticas de ensino de inglês no
contexto dessa pesquisa é a mudança das relações de trabalho na sociedade ao longo do
século. Nas últimas décadas, ao lado do modelo de produção taylorista/fordista (ainda
não extinto), um novo paradigma se instala, decorrente das mudanças na base técnica,
com ênfase na microeletrônica, e vai provocando novas demandas para a formação dos
trabalhadores. É principalmente para essas novas demandas que se volta uma questão de
especial relevância que atinge a educação brasileira e particularmente a educação
profissional e tecnológica: a carência de trabalhadores qualificados. (BRASIL, 2008,
p.32). Como pode o ensino de inglês ir ao encontro da qualificação desses
trabalhadores? Qual a abordagem, ou abordagens, que melhor atenderia(m) essa
demanda? O trabalho com as habilidades linguísticas de maneira fragmentada
certamente não representa a melhor maneira de qualificação de um trabalhador. O relato
de muitos estudantes no momento das entrevistas para estágio aponta para o nível de
conhecimento da língua (básico, intermediário ou avançado) que eles possuem, e não
para o nível de conhecimento de uma determinada habilidade, no caso, a leitura.
Ferramentas como tradutores online e a própria tradução da maioria dos manuais em
língua inglesa para o português evidencia que compreender um texto em inglês não se
põe como uma necessidade premente como o era há vinte anos. Além disso,
independente da metodologia ou abordagem escolhida pelo professor, uma forte
tendência no ensino de LE tem sido a adoção de pedagogias críticas e culturalmente
sensíveis. Elas contemplam não somente o estudo da cultura da língua alvo, mas
também da cultura do aprendiz, promovendo o entendimento e respeito às diferenças.
De acordo com Rajagopalan (2003, p. 105) a pedagogia crítica emerge das
“inquietações vividas ou reproduzidas na sala de aula”. Nesse sentido, o pedagogo
crítico tem como principal compromisso a comunidade na qual a sua sala de aula de
insere, como elemento representativo de experiências, práticas, conflitos e tensões entre
os atores sociais envolvidos.
Relacionando a necessidade de um trabalho mais abrangente com ênfase na
abordagem comunicativa e o embasamento desse trabalho em pedagogias críticas para o
ensino de línguas, justifica-se uma mudança no plano da disciplina inglês,
contemplando o ensino das quatro habilidades sob a égide de pedagogias críticas.
57
Dados apresentados em sua tese de doutorado intitulada Uma reflexão filosófica sobre abordagens e
paradigmas na constituição da subárea Ensino-Aprendizagem de LE/L2 na Linguística Aplicada.
P á g i n a | 958
Diante desses argumentos é impossível não pensar em mudanças. Certo? Isso
depende daqueles que podem viabilizar tais mudanças: os professores.
Mesmo sendo um desafio devido às questões estruturais (salas de aulas que não
favorecem a acústica), à escassez de equipamentos audiovisuais, à não adequação do
material didático fornecido pelo MEC e à configuração de turmas com alunos em níveis
diversos de proficiência em LE, um determinado grupo de professores optou por
trabalhar desde 2012 com a abordagem comunicativa.
Após um ano da implementação dessa nova abordagem, tentamos, à luz da
análise de nossos erros e acertos, apresentar os resultados preliminares da opção pela
abordagem comunicativa.
5. Considerações finais: é possível fazer diferente?
Ao longo de todo o ano letivo, e, em especial no momento em que passamos da
condição de professor para a condição de intelectual e pensamos sobre a nossa prática,
nos deparamos com questões que não podem deixar de ser levantadas, discutidas e,
possivelmente, mudadas em relação a esse “fazer diferente”, que já é uma realidade no
campus Salvador em no que tange o ensino de inglês na modalidade integrada.
Primeiramente, a mudança de abordagem foi feita apenas por um grupo de
professores, o que provavelmente não colabora no sentido de proporcionar a todos os
alunos do ensino médio integrado do campus iguais condições em termos de conteúdos
e oportunidades de prática da língua. Por exemplo, se o professor opta pela abordagem
instrumental com ênfase em leitura e compreensão de textos, o aluno terá acesso a uma
visão fragmentada de língua. Por outro lado, uma crítica também deve ser feita aos
professores que elegem a abordagem comunicativa – seus alunos pouco têm trabalhado
com leitura e interpretação, o que é bastante valorizado em exames seletivos e de
ingresso em universidades como o ENEM. Além dessa questão, como se dará a
continuidade da abordagem no ano seguinte, caso o professor não trabalhe dentro da
mesma perspectiva que aquele do ano anterior? Esse é um fator muito grave, pois não se
trata de um consenso entre os docentes. As mudanças não foram feitas nos planos de
disciplina e isso ocasiona problemas sérios de sobreposição e/ou repetição de conteúdos
estudados em séries e turmas diferentes.
Outra questão é a grande diversidade de níveis de proficiência dentro de uma
mesma turma. Para contemplar os alunos que tiveram uma formação deficitária em
inglês no ensino fundamental, os assuntos elencados pelos professores que optam pela
abordagem instrumental são bastante básicos. Ao longo de dois anos letivos de estudo, o
alunos podem chegar, no máximo, ao nível intermediário de proficiência. Esse fato pode
gerar um desestímulo entre aqueles estudantes que já se comunicam e utilizam a língua
nesse nível. E mesmo para os demais alunos, a possibilidade de chegar ao nível
intermediário fica comprometida devido à reduzida carga horária da disciplina no
currículo escolar (100 minutos de aula por semana). Os cursos livres de idioma têm, em
geral, 180 minutos de aula por semana, quase o dobro. Além disso, diferente da maioria
das escolas de ensino médio, em virtude do extenso currículo dos cursos
profissionalizantes, a disciplina Inglês só é oferecida em dois dos quatro anos dos
cursos técnicos.
P á g i n a | 959
Mesmo cientes dessas questões, alguns fatores proporcionam a realização desse
trabalho: as turmas da disciplina Inglês são divididas a partir de 25 alunos, o que
favorece a aprendizagem e proporciona um trabalho de melhor qualidade; os
professores são todos fluentes e com excelente domínio da língua; os alunos recebem
livro didático da disciplina, mas não existe obrigatoriedade por parte do professor
quanto ao uso do mesmo; e é assegurado ao professor um tempo de preparação de aulas
bastante satisfatório, pois a carga horária máxima semanal em sala de aula é de 20
horas.
Cabe também registrar aqui algumas impressões e depoimentos colhidos ao
longo dessa experiência. Muitos alunos, apesar de já estudarem a língua inglesa desde o
6º ano do ensino fundamental, relatam que quase nunca ouviam a língua sendo falada
por seus professores. Também citam o fato de eles mesmos nunca serem estimulados a
se comunicar em inglês. O fato de serem capazes de utilizar a língua na fala e na escrita
é bastante estimulante. Muitos alunos se assustam, ao princípio, com o uso da língua na
sala de aula, mas, em pouco tempo, já se sentem mais estimulados e confiantes,
chegando, inclusive, a realizar exames orais sem maiores dificuldades. E isso desperta a
importância daquele conteúdo e a vontade de prosseguir nos estudos fora do ambiente
escolar.
Então, ciente dos prós e contras, acertos e desacertos na opção pela abordagem
comunicativa, respondemos à questão com uma reflexão e um convite. Como reflexão,
devemos promover um intenso debate entre todos os professores para que todos
compreendam a importância da implementação dessa nova abordagem e possam
trabalhar dentro de uma unidade, a partir da mudança total dos planos de disciplina.
Apesar das boas intenções e da garantia de um ensino de melhor qualidade, aqueles que
optaram pela abordagem comunicativa o fizeram, infelizmente, de maneira equivocada,
deixando de lado a questão da uniformidade e sintonia entre os planos de disciplina e
todos os docentes.
Por fim, como um convite, respondemos que, apesar das dificuldades aqui
colocadas, não só é possível fazer diferente, como se trata de uma orientação que vai ao
encontro das mudanças sociais, políticas e educacionais da atualidade. Temos qualidade
e um mínimo de condições para isso. Aceitar o convite é o primeiro passo.
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P á g i n a | 962
A ANÁLISE LINGUISTICA A SERVIÇO DO GÊNERO, O QUE É, COMO SE
FAZ: UMA PROPOSTA DE TRABALHO COM O CONTO THE NUN’S
PRIEST TALE
John Hélio Porangaba de OLIVEIRA (UNEAL – CAMPUS III)58
Maria Verônica Tavares Neves CARDOSO (UNEAL – CAMPUS III)59
Resumo: A imensa variedade de gêneros textuais existentes manifesta, verbalmente, as
nossas diversas necessidades de interação social mediada pela linguagem, oral e escrita.
Sendo assim, devemos explorar o estudo dos gêneros em nossas aulas de língua materna
ou estrangeira. No entanto, para selecionar um desses gêneros e explorá-lo
pedagogicamente em sala de aula devemos ter familiaridade com ele, com suas formas
de circulação, funcionamento e função. A partir do exposto surge o nosso problema de
estudo: o trabalho com o gênero conto aliado a análise linguística pode ser um atrativo
positivo para o ensino- aprendizagem da língua? A nossa hipótese é que um trabalho
com gênero bem organizado didaticamente e aliado a AL, deve funcionar como uma
importante proposta de trabalho que pode auxiliar o ensino- aprendizagem da língua.
Sendo assim, este estudo objetiva em termos gerais, apresentar uma proposta de
trabalho com o gênero conto no qual procuramos mostrar a estrutura e funcionamento
desse gênero; instigar os alunos a entrarem em contato com esse tipo de gênero e a
reconhecerem as características da tipologia narrativa presente; desvendar a função dos
recursos linguísticos na construção de sentidos desse gênero através da AL (analise
linguística). Como embasamento teórico teve: Bakhtin (1981); Dolz e Schneuwly
(2004); Marcuschi (2002); Oliveira e Castro (2008); Dionísio, Machado, Bezerra
(2005).
Palavras-chave: Análise Linguística. Gêneros textuais. Conto.
1. Introdução
A imensa variedade de gêneros textuais existentes manifesta, verbalmente, as
nossas diversas necessidades de interação social mediada pela linguagem, oral e escrita.
Sendo assim, devemos explorar o estudo dos gêneros em nossas aulas de língua materna
ou estrangeira. No entanto, para selecionar um desses gêneros e explorá-lo
pedagogicamente em sala de aula devemos ter familiaridade com ele, com suas formas
de circulação, funcionamento e função.
Essa proposta de trabalho com a linguagem se insere num paradigma
sociointeracionista de língua, que toma o gênero não como simples estrutura formal,
mas como parte da atividade humana e, portanto, organizado em função de seus
objetivos comunicativos que ajudam a cumprir nos diversos contextos de interação
social (MARCUSCHI, 2002).
Assim pretende-se saber se o trabalho com o gênero conto aliado a análise
linguística pode ser um atrativo positivo para o ensino - aprendizagem de língua? Uma
vez que a importância de se conhecer um gênero (conto) e suas especificidades pode ser
58
Acadêmico do 6º período de Letras, do campus III, UNEAL - CAMPUS III ([email protected]).
Professora
Mestra
do
curso
de
Letras
da
UNEAL
–
CAMPUS
III
([email protected] ).
59
P á g i n a | 963
interessante para aguçar o gosto pela leitura e a discussão dos aspectos da Analise
Linguística a serviço desse gênero, ajudando aos alunos a entenderem a dinâmica de sua
construção, facilitando assim também o processo de produção e uso da língua.
Em função do problema deste estudo, hiposteniza-se que um trabalho com
gênero bem organizado didaticamente e aliado a Analise Linguística, deve funcionar
como uma importante proposta de trabalho que pode auxiliar o ensino- aprendizagem da
língua.
Desse modo, objetiva-se apresentar uma proposta de trabalho com o gênero
conto no qual mostra-se a estrutura e funcionamento do gênero, de modo a instigar o
contato com tipo e as características da tipologia narrativa presente, onde se desvenda a
função dos recursos linguísticos na construção de sentidos desse gênero através da
análise linguística ao passo em que pode-se perceber e compreender a intergenericidade
presentes nos contos de Chaucer.
Nesse sentido, são utilizadas as sequências didáticas produzidas a partir do que
propunha Dolz e Schneuwly (2004); com discussões e definição de gêneros na
perspectiva de compreender onde e como acontecem os gêneros a partir de
(MARCUSCHI, 2008); (BAZERMAN, 2005); (BAKHTIN, 2003) e outros que
contribuem para o desenvolvimento deste estudo.
Nessa perspectiva, tem-se como objeto estudo a análise linguística do gênero
conto “The Nun’s Priest’s Tale” (O Conto do Padre da Freira), que constitui uma fábula
por conferir um debate entre animais. Interessante também para o trabalho com
intergenerecidade.
2. Análise linguística
Compreendemos por análise linguística, como o processo reflexivo de léxico e
gramático na construção composicional - concretizada em textos pertencentes a
determinados gêneros textuais, considerando seu suporte, meio e época de circulação e
produção comunicativa veiculada ao processo de leitura, de construção e de escrita
textual.
Desse modo, se sugere, pois, que siga-se as sequências didáticas de Dolz e
Schneuwly (2004), para que possa ser levada a efeito a análise linguística em dois
momentos, dentro do esquema da figura 1 na parte da apresentação geral para a
proposta de trabalho, um na mobilização dos recursos linguístico e expressivos,
causando assim a produção de sentidos no processo de leitura na abordagem dos
gêneros textuais em que o texto se apresenta, e dois no momento da escrita de texto,
local de aplicação dos elementos composicionais, formais e coesivos das características,
recurso e estilo do gênero textual selecionado para o processo de análise e elaboração de
texto como produção final do gênero trabalhado, sempre de acordo com a situação de
comunicação, socialmente produzida.
Nesse sentido, como este estudo é uma proposta de trabalho de caráter
linguístico voltado para a língua inglesa, o qual aborda o gênero conto The Nun’s
Priest’s Tale da referida língua, cabe ao professor, em sala de aula, estimular esses
momentos, trabalhando como mediador, no sentido de contribuir para ampliar a
competência dos seus alunos nas práticas discursivas, como se pode ver a partir da
perspectiva de Lima (2009), que através do uso da língua, como se espera que faça, o
P á g i n a | 964
professor realize um trabalho coerente, atingindo assim a função de mediador do ensino
aprendizagem:
Se o profissional de língua estrangeira não fizer uso do idioma na sala
de aula, ele estará abrindo mão da qualificação que mais o caracteriza
e que o distingue de professores de outras matérias: a sua condição de
ser bilíngue, de poder transitar entre duas culturas, a materna e a
estrangeira. O que nós esperamos de um professor de inglês, espanhol
ou japonês? Que ele fale o referido idioma estrangeiro e tenha uma
competência profissional na metodologia de ensino de língua
estrangeira (LIMA, 2009, p.17).
Dessa forma, o domínio da linguagem gramatical, lexical, discursiva e
fonológica ganha propriedades de sentido na e pela comunicação real voltada para a AL,
uma vez que o professor estará trabalhando o referido gênero oral e escrito nas
sequências didáticas, mais adiante descritas.
Dessa maneira, a AL deve ser uma proposta que deve ser posta em prática, pois
proporciona uma nova orientação para o ensino, baseado na leitura e escrita de textos,
da análise dos problemas encontrados nos textos, em vez de apenas exercícios
estruturais de gramática.
Assim, no que se pode conferir nas discussões de Mendonça (2006), a AL é
conveniente a uma reflexão das questões tradicionais de gramática de produção textual
no que diz respeito à coesão e coerência dentro do texto, adequação do texto aos
objetivos pretendidos pelo professor, objetivo este, proposto neste trabalho, de levar os
alunos a desvendar a função dos recursos linguísticos na construção de sentidos do
gênero conto através da AL (análise linguística), bem como a organização e inclusão de
informações.
Sendo assim, a AL engloba os estudos gramaticais, mas a partir de um novo
modelo, na medida em que os objetivos alcançados se adequam a outros aspectos não
condizentes ao proposto pela gramática, como descreve Mendonça (2006, p.103), “O
termo análise linguística não foge à regra, ou seja, surgiu para denominar uma nova
perspectiva de reflexão sobre o sistema linguístico e sobre os usos da língua, com vistas
ao tratamento escolar de fenômenos gramaticais, textuais e discursivos”.
Dessa forma, para considerar o ensino de língua inglesa na expectativa de um
trabalho com a análise linguística a serviço do gênero, busca-se em Mendonça (2006),
referente a AL na língua materna um caminho de eixo comum, numa perspectiva
sociointeracionista de língua, onde a AL constitui um dos três eixos básicos de língua
materna, ao lado da leitura e da produção textual. Por isso, a análise linguística
apresenta como objetivo central refletir sobre os elementos e fenômenos linguísticos,
considerando o desenvolvimento das habilidades de falar, ouvir, ler e escrever os textos
na língua alvo como visto em Lima (2009), o professor ao transitar entre a língua
materna e estrangeira seja capaz de assumir seu papel de mediador.
Nesse aspecto, a posição do professor não pode ser centrada unicamente em
regras gramaticais e exercícios de memorização. O ensino exige um exercício prático
pautado na comunicação e na interação entre os indivíduos com papel de trabalhar o
sentido, como propõe as OCEM (2006), no desenvolvimento de sujeitos letrados.
P á g i n a | 965
3. Gêneros textuais
A origem dos gêneros se desenvolve a partir da necessidade de comunicação
humana, de principio com a comunicação oral e com o tempo surge à escrita para
registrar os acontecimentos. Assim a fala e a escrita são componentes fundamentais da
língua, por serem ricos em gêneros primários e secundários.
Assim, nesse contexto, a divisão dos gêneros discursivos apresenta uma
diferença que vale dizer importante e essencial apresentada por Bakhtin (2003, p.263)
como gêneros primários (simples) “que se formaram nas condições da comunicação
discursiva imediata”, ou seja, do cotidiano, descritos como “determinados tipos de
diálogo oral – de salão, íntimo, de círculo, familiar – cotidiano, sociopolítico, filosófico,
etc.” (p.268) e, gêneros secundários descritos como:
(complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie,
os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um
convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido
e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico,
sociopolítico, etc. (BAKHTIN, 2003, p.263).
Essa diferença entre os gêneros primários e secundários, segundo Bakhtin
(2003), mostra a importância da distinção da extrema heterogeneidade dos gêneros
discursivos e entendimento da natureza geral do enunciado. Sendo a extrema
heterogeneidade entendida como a distância dos gêneros no sentido e forma, ligados um
ao outro como um só.
No entanto, a diferença entre os gêneros primários e os gêneros secundários está
no tipo de contato com a ação, ação linguística ou não. É na ação da linguagem que os
gêneros primários se estabelecem e é através de outros mecanismos que os gêneros
secundários se fixam, assim, o processo de formação dos gêneros (primários e
secundários), ao se associarem produz outros gêneros, um sustenta o outro, formando a
natureza geral do enunciado, como pontua Bakhtin (2003, p.263), “No processo de sua
formação eles se incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se
formaram nas condições de uma comunicação discursiva imediata”.
Assim, portanto, Bakhtin (2003), diz que os gêneros se originam como estruturas
ou partes fundamentais do enunciado, sendo, portanto, de infinita heterogeneidade
devido às necessidades de comunicação humana, ricos em quantidades para os diversos
fins da atividade comunicativa, onde cada campo de utilização da língua elabora
diversos tipos de gêneros para determinados contextos e utilidades. Assim eles são ricos
e infinitos
Porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade
humana e porque cada campo dessa atividade é integral o repertório
de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se
desenvolve e se complexifica um determinado campo (BAKHTIN,
2003, p.262).
P á g i n a | 966
A origem dos estudos dos gêneros discursivos começou na antiguidade como
uma qualidade típica de lavor primoroso, sem nunca ser estudado em sua abrangência
linguística geral e tipos enunciativos, local onde Bakhtin (2003, p.263) diz que se
estudavam os gêneros retóricos jurídicos e políticos, o que encobria sua natureza
linguística geral.
Marcuschi (2008), diz que o estudo dos gêneros “surgiu com Platão e Aristóteles,
tendo origem em Platão a tradição poética e em Aristóteles a tradição retórica”, no que
Bakhtin (2003), diz que tais estudos seguiram ate os dias atuais numa perspectivos de
estudo artísticos literário, no âmbito da literatura, sendo delimitado na Idade Média e
ganhou espaço nos dias atuais, a partir de diversas linhas de estudo, como é apresentado
por Marcuschi (2008).
E muitos estudiosos de áreas diversas estão se interessando cada vez
mais por ele, tais como: Teóricos da literatura, retóricos, sociólogos,
cientistas da cognição, tradutores, linguistas da computação, analistas
do discurso, especialistas no ensino de inglês para Fins Específicos e
professores de língua (MARCUSCHI, 2008, p.148-149).
Assim, para complementar, Bakhtin (2011, p.264), diz que os trabalhos com a
língua em seus modos de uso oral escrito faz parte de quase todos os campos da
linguística e da filologia.
Nessa perspectiva, faz-se importante dizer que os gêneros em sua grande
diversidade são restritos a uma tipificação ou tipologias textuais, as quais Koch, Boff,
Marinello (2010, p.19), dizem que “as tipologias textuais são ferramentas essenciais a
serviço dos gêneros textuais, e seu domínio é fundamental no trabalho com leitura e
produção de texto”, onde são apresentadas as tipologias textuais: narrativa, descritiva,
injuntiva, dissertativa, preditiva, explicativa e dialogal como as mais usadas, como são
resumidas:
 Narrativa: relata situações, fatos, acontecimentos, reais ou
imaginários;
 Descritiva: apresenta propriedades, qualidades, características de
objetos, ambiente, ações, ou estados;
 Dissertativa: constrói uma opinião de forma progressiva,
utilizando uma argumentação coerente e consistente;
 Injuntiva: objetiva incitar à realização de uma situação;
 Explicativa: faz compreender um problema da ordem do saber, a
partir da investigação de uma evidência;
 Preditiva: é uma descrição, narração ou dissertação futura em
que o enunciador antecipa situações cuja realização será
posterior ao tempo da enunciação;
 Dialogal: concretiza-se nos discursos interativos dialogados
(KOCH; BOFF; MARINELLO, 2010, p.28).
P á g i n a | 967
Para Marcuschi (2002), Tipologia Textual é um termo que deve ser usado para
designar uma espécie de sequências teoricamente definida pela natureza linguística de
sua composição, no entanto, todos os gêneros textuais se inserem em cada uma dessas
tipologias. No entanto, através dos tipos de gêneros podem-se indicar além das
produções textuais, as atividades humana como organização de trabalhos, realizações
diversas, esporte, trabalho de sala de aula etc. como aponta Bazerman (2005, p.31), ao
dizer que “os gêneros tipificam muitas coisas além da forma textual. São partes do
modo como os seres humanos dão forma às atividades sociais”.
4. O gênero conto
O conto é uma das formas de narrativas mais antigas. Desenvolvido na
transmissão de mitos, fábulas e lendas através da oralidade, esteve presente
ininterruptamente na produção de literatura de diferentes povos e culturas, assim,
também tornou o desenvolvimento de diversas línguas possíveis, como podemos ver em
Burgess (1996), ao tratar do tema “a literatura inglesa”, ele diz que a língua se
desenvolve pela literatura e traz as considerações para Geoffrey Chaucer (1340-1400),
que de certa forma criou a língua inglesa a partir dos contos de Canterbury, autor do
qual não poderia deixar de falar, uma vez que a proposta de trabalho a partir deste
estudo é feita com uma das rescritas dos contos de Chaucer.
O gênero conto apresenta uma historia curta e simples, o qual Gotlib (2003, p.
16), dizer que “O conto é uma narrativa breve; desenrolando um só incidente
predominante e um só personagem principal, contém um só assunto cujos detalhes são
tão comprimidos e o conjunto do tratamento tão organizado, que produzem uma só
impressão”.
Desse modo, o gênero conto apresenta características que a partir de uma
estrutura que é essencialmente objetiva, horizontal e narrado em 3ª pessoa, que foge de
sua forma física para a realidade viva, presente, concreta. A linguagem é objetiva,
normalmente utilizando-se de metáforas de imediata compreensão para o leitor, não
sendo necessárias abstrações e preocupar-se com o rebuscamento. A trama é linear e
objetiva, a qual segue uma cronologia, de modo que os fatos se sucedem numa
continuidade semelhante à vida real. Das características ainda tem o foco narrativo em
1ª e 3ª pessoas que transmite uma única impressão. Esta apresentação das características
foi fita com base no texto do sit. (http://www.asesbp.com.br/literatura/conto.htm).
Assim, Gotlib (2003), diz que o conto literário não tem compromisso fixo com a
realidade, misturando-se, pois com o fictício e que o escritor pode inventar modos de
representar a realidade, onde os modos de se contar uma história, responde apenas as
técnica e estilo da tipologia narrativa. Considerando que o conto é o gênero de menor
tamanho, em questão da brevidade.
5. Brief considerations on The Canterbury Tales and the Nun's Priest's Tale
The Canterbury Tales is a collection of stories written in Middle English by
Geoffrey Chaucer in the 14th century (two of them in prose, the rest in verse). The
tales, some of which are originals and others not, are contained inside a frame tale and
P á g i n a | 968
told by a group of pilgrims on their way from Southwark to Canterbury to visit the
shrine of Saint Thomas Becket at Canterbury Cathedral.
The themes of the tales vary, and include topics such as courtly love, treachery,
and avarice. The genres also vary, and include romance, Breton lay, sermon, beast
fable, and fabliau. The characters, introduced in the General Prologue of the book, tell
tales of great cultural relevance.
Genre: a beast fable, of the sort best known to us in the collection attributed to
the Hellenistic African slave, Aesop. The antagonist in this tale has his own "series" of
beast fables, the "Reynard the Fox" tradition, which exists in many manuscripts in both
French and English. In effect, he's doing a "guest shot" here, but his character would
have been extremely well known to Chaucer's audience and his "modus operandi" as a
chicken thief and liar fits the type perfectly. What makes this a beast fable for adults,
and how does the debate between Chaunticleer the rooster and Pertelote his "wife"
parody human attitudes and values? Would you consider C and P to be "round" or
"flat" characters, and what does that do to your feelings and thoughts about this fable?
Characters: the poor but self-sufficient and honest widow; Chaunticleer, the
handsomest, best-educated, and most perceptive rooster yet seen in life or literature;
Pertelote, his favorite consort among the hens; a murdered traveler who appears in a
dream to his friends in Chaunticleer's inset tale to prove dreams really do foretell the
future; the col-fox, a sometime "dinner host" of Chaunticleer's father and mother; the
dogs, Colle, Talbot and Gerland; Malkyn the maid-servant.
Summary: The rooster, dreaming of an attack by a large, furry, red animal, is
advised by his wife not to worry because a little laxative will put things right. The
rooster, proud of his learning, decisively defeats his wife's argument by citing classical
authors, including one author's anecdote about a murdered traveler who, in a dream,
tells his companions where his killers have hidden his body. The rooster, satisfied, has
a little "whoopee" with Pertelote and then goes to the barnyard where he encounters the
fox. The fox, asking the rooster to sing so he can experience the rapture of hearing
him, nabs the rooster by the throat and is chased by the entire household. The rooster,
thinking quickly, tells the fox that if he were in the fox's position, he should surely turn
and shout defiance at the pursuers. The fox, proud of his success, does so and the
rooster flies away into a tree. The fox tries to trick him again, but the wily bird
triumphs.
6. Apresentação geral para a proposta de trabalho
Seguindo o modelo das sequências didáticas de Dolz & Schneuwly (2004), da
figura 1 logo abaixo, desenvolve-se, pois, a proposta de trabalho com a perspectiva de
trabalhar o conto “The Nun’s Priest’s tale”, o qual constitui uma fábula por conferir um
debate entre animais, apresentando-se neste dialogo três contos curtos, de onde será
retirado um para apresentar uma breve análise linguística.
FIGURA 1
P á g i n a | 969
Fonte: Esquema da sequência didática (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2011, p.83).
Na apresentação da situação faz-se um levantamento a respeito do gênero
conto, com sua definição e estruturação dos aspectos composicionais, apresentando as
sequências narrativas com estrutura e característica do conto, divulgando o que será
realizado.
Como produção inicial fazer uma atividade de observação e de análise do
conto, o qual se mostra um modelo ao fim deste trabalho, em seguida fazer uma leitura
de modo que os alunos entrem em contato com a língua e assim escutando o modelo do
gênero, reconheçam os temas trabalhos.
No modulo 1 fazer uma seleção de temas para que os alunos escrevam um
conto.
No modelo 2 fazer um levantamento de vocabulário com adjetivos,
advérbios,verbos, preposições e substantivos, conferindo assim um desenvolvimento
enciclopédico e cultural da respectiva língua.
No modelo 3 desenvolver estudo com os elementos gramaticais, estabelecendo
os tempos verbais de presente, passado e futuro com suas respectivas formas sintáticas.
Na Produção final produzir a escrita de um texto que se aproxime do gênero
estudado podendo ainda ser feito um momento de socialização onde os alunos poderão
fazer a leitura e ou apresentação de seu texto em perspectivas diversas.
Esse modelo de sequencias didática está de acordo com Lima (2009, p.30),
referente ao ensino aprendizagem de língua inglesa, uma vez que este é de natureza
social e responde a legalidade do Ministério da Educação (MEC), como determina os
PCN. No entanto, o professor contribui para o desenvolvimento do estudante no
processo de leitura e conhecimento dos meios linguísticos presentes no texto,
reconhecendo ainda os gêneros e as tipologias, tornando assim as atividades fácil de ser
realizada
.
6.1 Apresentação prática da análise linguística em um fragmento do conto
Fragment
Two men wanted to sail across the sea, but they had to wait for the right wind. They
went to stay in a city near the sea, and decided to sail early the next day. They went to
bed in the same room. They were happy that they could start their journey soon.
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But in the night one of the men dreamed that he saw a man in their room. This man
said to him, ‘If you sail tomorrow, you’ll die. Stay here, in the city, for one more day.
Then you’ll be safe.’
The man woke up and told his friend the story, but his friend laughed at him. He
didn’t believe that the dream was true.
‘the wind’s right today,’ he said. ‘You stay here if you want to wait. I’m
leaving. Dreams mean nothing! Goodbye!’
He walked away and the man never saw his friend again.
The ship sailed onto some rocks, and all the men in it were killed.
1. SOME ASPECTS OF LINGUISTIC ANALYSIS, WHICH CAN BE
HIGHLIGHTED ON THIS GENRE
The first sentence in bold presents aspects of the tale as a possible topic, the
presentation, which is also a phrase referring to the past tense.
• The second sentence in bold represents a dialogue or actions, according to the
grammar shows a first conditional sentence.
•Third sentence in bold is the complication of the story, finding themselves in the form
of negative simple past and past of verb to be.
• The fourth sentence in bold shows the climax of the story through the past simple
sentence and possessive pronouns.
• The fifth and last sentence in bold shows the outcome with prepositions, simple past
• The presence of past tense is a outstanding characteristic of the tale genre, such as:
(wanted, had, went, decide, were, said, dreamed, saw, walked, woke up, laughed, sailed,
did not believe.
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7. Apresentação de como trabalhar o plano de ensino com o genero seguindo o
modelo das sequências didáticas de Dolz & Schneuwly
Modalidade / Nível de Ensino: Ensino Médio
Componente Curricular: Língua Inglesa e Literatura
Tema: Gêneros textual conto e a análise linguistica
DADOS DA AULA
O que o aluno poderá aprender com esta aula
O aluno poderá aprender o que é o gênero conto, a estrutura e funcionamento,
reconhecer as características da tipologia narrativa presente no conto, desvendar a
função dos recursos linguísticos na construção de sentidos desse gênero através da
análise linguística, ou seja, dos elementos gramaticais e ainda perceber e compreender a
intergenericidade presente no conto.
Duração das atividades
Esta atividade pode durar de 6 aulas até todo um semestre, dependendo de como o
professor queira abordar cada modalidade de execução das sequencias didáticas
referente ao esquema de Dolz & Schneuwly (2004).
Conhecimentos prévios trabalhados pelo professor com o aluno
É importante que os alunos já possuam os conhecimentos básicos sobre o gênero
narrativo conto e estes devem ser estimulados e acrescentados pelo professor, através de
conversas informais, pesquisas orientadas.
Estratégias e recursos da aula
- Conversa informal sobre o autor do conto, Geoffrey Chaucer;
- Situar historicamente e geograficamente o período vivido por Chaucer e sua
importância para o desenvolvimento do inglês moderno, por isso ser conhecido como o
pai do inglês moderno.
- proposta de leitura silenciosa do conto selecionado: The Nun’s Priest’s Tale (O Conto
do Padre da Freira), Geoffrey Chaucer;
- contextualização da época histórica (desenvolvimento da língua inglesa) sobre a qual
escreve o autor, no texto selecionado (The Nun’s Priest’s Tale);
P á g i n a | 972
- pesquisa dos assuntos debatidos, em livros, internet e outros meios de comunicação
disponíveis;
-explorar os temas destacados no conto;
-comparar situações e ações vivenciadas pelos personagens com situações atuais.
- explorar os elementos gramaticais, adjetivos, advérbios, substantivos, vocabulário etc.,
com o auxilio de gramática e dicionário.
AULA 1: APRESENTAÇÃO DA SITUAÇÃO: AS CARACTERÍSTICAS DO
GÊNERO CONTO
- fazer um levantamento a respeito do gênero conto, com sua definição e estruturação
dos aspectos composicionais, apresentando as sequências narrativas com estrutura e
característica do conto, divulgando o que será realizado.
- Para desenvolver esta aula, o professor deverá conversar com os alunos, procurando
sondar o conhecimento que já possuem, e, solicitando-lhes exemplos de contos já
conhecidos por eles; isso em língua materna, para que através disto o professor possa
desenvolver a aula de maneira mais compartilhada.
- no laboratório de informática, os alunos poderão acessar sites para conhecerem um
pouco mais sobre o gênero literário, revendo os seguintes aspectos deste gênero
literário: histórico, enredo, elementos estruturais: apresentação, complicação,
clímax e desfecho.
AULA 2: PRODUÇÃO INICIAL: O CONTO
- fazer uma atividade de observação e de análise do conto, o qual se mostra um modelo
ao fim deste trabalho, em seguida fazer uma leitura de modo que os alunos entrem em
contato com a língua inglesa e assim escutando o modelo do gênero.
AULA 3: MODULO 1
- Fazer uma seleção de temas para que os alunos escrevam um conto, baseado no conto
ouvido e discutido.
- Nesta aula, o professor pedirá a leitura individual e silenciosa do conto: The Nun’s
Priest’s Tale, de Geoffrey Chaucer, disponível no texto que será dado;
- identificar no conto os elementos estudados na aula anterior (histórico, enredo,
elementos estruturais);
- discutir o conteúdo do texto com efeito de trabalhar as funções de sentido exibido no
enredo, como aspecto da língua inglesa.
AULA 4: MODELO 2 CONHECENDO MAIS SOBRE O AUTOR
- Visando conhecer mais sobre Geoffrey Chaucer (biografia, estilo, obra), o professor
poderá fazer jogos de vocabulários, gramática e figuras interessantes relacionadas ao
texto e trabalhar com eles em sala de aula;
- o conteúdo a ser explorado poderá se referir também ao contexto histórico do conto.
AULAS 5: MODELO 3
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- desenvolver estudo com os elementos linguísticos mais presentes no texto,
estabelecendo os tempos verbais de presente, passado e futuro com suas respectivas
formas sintáticas, referente a aula anterior.
- fazer um levantamento de vocabulário com adjetivos, advérbios e substantivos,
conferindo assim um desenvolvimento enciclopédico e cultural da respectiva língua.
- revisar todo o conteúdo para a próxima aula.
AULA 6: Produção final
- produzir a escrita de um texto que se aproxime do gênero estudado de acordo com o
vocabulário e estruturas formais do conto, com o auxilio de dicionários, gramática e a
orientação do professor;
- pode ainda ser feito em outra aula um momento de socialização onde os alunos
poderão fazer a leitura e ou apresentação de seu texto em perspectivas diversas.
RECURSOS COMPLEMENTARES
Nos recursos complementares, o professor pode usar a criatividade e apresentar recortes
de filmes retirados da internet com áudio na referida língua para mostrar outros aspectos
da representação do conto em áudio e vídeo.
AVALIAÇÃO
- No decorrer das atividades, o professor deverá verificar o envolvimento dos alunos nas
atividades desenvolvidas, dando atenção para os aspectos selecionados e as construções
de análise, sempre enfatizando as habilidades do speak, listen and write.
8. Considerações finais
A grande manifestação dos estudos com gêneros textuais possibilita uma grande
quantidade de teorias e diversas formas de trabalho, assim a análise linguística a serviço
do gênero o que é como se faz é um caminho interessante, pois no trabalho com gênero
conto, se bem organizado didaticamente funciona como um importante mecanismo
didático – pedagógico auxiliador do ensino- aprendizagem de uma língua, como
também incentiva o aluno a ler, a fazer o reconto e a retextualização, como também
aprender a gostar de um tipo de gênero literário especifico, sendo conhecedor dos
aspectos formais e linguísticos que o compõem.
O conto em inúmeras vertentes e autores pode ser trabalhado em vários
caminhos, assim como o trabalho com a análise linguística a serviço do gênero conto
The Nun’s Priest’s Tale por ser um clássico vem sendo relido e sempre pode ser
abordado em inúmeras perspectivas, uma vez que este gênero é uma arte que como toda
arte se alimenta da mitologia, do subjetivismo, do social, do histórico, etc., faz-se
P á g i n a | 974
necessário saber criar, recontar o que já foi contado, usando a magia infinita das
ferramentas da linguagem, sempre em evolução.
Assim, a coerência de estudar este tema como uma importante ferramenta de
ensino aprendizagem de língua, abre caminho paro um rico repertório de conhecimentos
culturais, enciclopédico, de vocabulário e também de gêneros, uma vez que o estudo dos
gêneros em todos os seus aspectos e características nos diversos processos de
comunicação real e atual, fazem do individuo um sujeito altamente letrado.
Este estudo foi bastante proveitoso, pois nos revelou as muitas formas de
entender a importância dos gêneros para a formação do homem. Assim quando
oportunidades de encontrar temas, personagens, situações semelhantes ou já vistos em
contos já lidos ou já ouvidos surgirem, tornará possível perceber a presença de
fenômeno linguístico discursivo, característica de todas as criações literárias, nos
aspectos de intertextualidade.
Diante do exposto, foi possível perceber que os resultados obtidos com esse
estudo podem contribuir para o ensino e aprendizagem e também enquanto graduando e
pessoa que utiliza diariamente os diversos gêneros discursivos. Assim, o aprendizado é
um caminho constante de desenvolvimento de sistemas e estratégias, sendo pois vivido
e realizado diariamente por nós estudantes quer na vida diária, quer nos estudos e
trabalho.
Referências
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BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. 2ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAZERMAN, Charles. Atos de fala, gêneros textuais e sistemas de atividades: como
os textos organizam atividades e pessoas: In: DIONÍSIO, Angela; HOFFNAGEL,
Judith (Orgs.). Gêneros textuais, tipificações e interação. São Paulo: Cortez, 2005.
CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2012.
CHAUCER, Geoffrey. The Canterbury tales. Edinburgh Gate, Harlow, Essex CM20
2JE, England: Pearson Education Limited in association with Penguin Books Ltd,
Level 3, 2000.
DOLZ, Joaquim; SCHENEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola.
[Tradução e organização: ROJO, Roxane & CORDEIRO, Glaís Sales]. Campinas, SP:
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Disponível em: < http://www.asesbp.com.br/literatura/conto.htm > acesso em 18 de
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GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do Conto. São Paulo: Editora Ática, Série Princípios,
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KOCH, Vanila, BOFF, Odete, MARINELLO, Adriane. Leitura e produção textual.
Gênero textual do argumentar e expor. Rio de janeiro: vozes, 3ed, 2010.
P á g i n a | 975
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In:
DIONISIO, A.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Orgs.). Gêneros textuais e
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. A oralidade e letramento. In:_____ Da fala para a
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MENDONÇA, M. Análise Linguística no Ensino Médio: um novo olhar, um outro
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NASPOLINI, Ana Tereza. Tijolo por tijolo: práticas de ensino de português. V.
único: livro do professor. São Paulo: FTD, 2009.
P á g i n a | 976
OS EFEITOS DO TRABALHO COLABORATIVO NO PROCESSO ENSINOAPRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA: ANÁLISE DE UMA
ATIVIDADE DE SALA DE AULA
Cristina Vasconcelos PORTO (UFPA)60
Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar os resultados da análise de uma
atividade em sala de aula realizada com alunos de Letras/Inglês de uma universidade
federal. A análise fundamentou-se nos pressupostos de que é por meio da aprendizagem
colaborativa que aprendizes de uma língua estrangeira (LE) ou de uma segunda língua
(L2) tem oportunidades para interagir na língua-alvo. O instrumento utilizado para
coleta e dados foi gravação em áudio das interações. A análise teve como objetivo
principal buscar exemplos de scaffolding, ou seja, os mecanismos de apoio mútuo que
promoveram a co-construção do conhecimento e sua internalização durante a atividade
realizada. A partir da análise dos dados, foi possível concluir que os alunos, por meio do
diálogo colaborativo, sentiram-se motivados e ajudaram-se mutuamente na execução da
tarefa, trocando não somente informações, mas também estratégias de aprendizagem
(SWAIN, 2000).
Palavras-chave: Ensino de Línguas Estrangeiras; Interação; Sociointeracionismo.
1. Introdução
Muitos estudos no campo da Linguística Aplicada (LA) tem mostrado a
importância de fazer do aprendiz de LE/L2 agente de sua própria aprendizagem
(MICOLLI, 2007). Sabemos que alunos autônomos e motivados aprendem mais e
melhor. Assim, é importante engajá-los em atividades de sala de aula que oportunizem
situações que os levem a pesquisar, a conversar, a perguntar, a refletir, ou seja, fazer
desse ambiente um lugar em que possam negociar sentidos, e, dessa forma, desenvolver
cada vez mais sua autonomia e sua competência comunicativa.
Tal competência não pode ser alcançada somente com o conhecimento de regras
gramaticais. Aprende-se a língua fazendo uso dela (MITCHELL, MYLES E
MARSDEN, 2013) e seu ensino, portanto, deve levar em conta as "funções sociais de
uso da linguagem para fins de comunicação efetiva, em que todos os envolvidos na
interação se compreendam e construam significados" (RODRIGUES-JÚNIOR, 2013, p.
21).
Partindo da perspectiva de que a interação em sala "é um dos principais meios de
promover a aprendizagem" (HALL, 2002, p. 187), podemos afirmar que, ao interagir
com o colega, as possibilidades de uso da língua e de aprendizagem surgirão de uma
forma mais natural e mais espontânea do que as interações que tradicionalmente
acontecem entre professor e aluno, em que as tomadas de turno61 de fala, são, na maioria
das vezes, determinadas pelo professor, deixando pouco espaço para a participação dos
alunos. Nessa perspectiva, o professor deve planejar suas aulas de modo a propiciar o
1 Letras-Inglês, Professora. Aluna do Curso de Doutorado em Letras e Linguística da Universidade
Federal de Goiás.
2 Segundo Rosa (2008, p. 12), a tomada de turnos " é um conjunto de orientações normativas da
interação social humana para a distribuição, manutenção ou transferência dos turnos de fala entre os
participantes de uma interação".
P á g i n a | 977
trabalho colaborativo, mas deve também oferecer alternativas para aqueles alunos que
preferem trabalhar sozinhos.
Neste trabalho, apresento os resultados da análise de uma atividade colaborativa
realizada com alunos de língua inglesa de uma universidade federal. A análise teve
como objetivo verificar os efeitos do diálogo colaborativo na aprendizagem desses
alunos, ou seja, de que forma o conhecimento foi co-construído por meio da ajuda
mútua ocorrida em sala de aula, buscando exemplos de scaffolding e suas funções.
Objetivou, também, identificar os padrões de interação (STORCH, 2002), os possíveis
fatores que influenciaram na forma como os alunos interagiram uns com os outros, e
suas percepções sobre a atividade realizada, visto que, dar voz aos alunos é importante
para compreender melhor como as habilidades cognitivas, sociais e linguísticas são
desenvolvidas quando engajados em uma atividade colaborativa (CRANDALL, 1999).
Apresento, a seguir, os principais fundamentos teóricos da teoria sociocultural.
2. A teoria sociocultural: o papel da interação e a Zona de Desenvolvimento
Proximal.
Em sua revisão teórica sobre a interação social e o desenvolvimento humano,
Aranha (1993) observa que as relações sociais interpessoais e reflexões sobre os efeitos
sociais no comportamento humano foram foco de interesse de pesquisadores ainda no
século XIX. Segundo a autora, o pensamento da época sobre essas relações coloca a
experiência de grupo como uma das mais relevantes e determinantes da natureza do
homem. Avançando na história, já na década de 60, poucos estudos foram feitos com
relação às questões interpessoais, e os estudos sobre interação tinham como propósitos a
investigação de como se estabelece o comportamento humano e o que contribui para a
sua manutenção e mudança.
Citando Aldous (1977), Aranha (1993) registra que, nos anos 1970, os
estudiosos não mais se preocupavam com os resultados da interação. O foco de
interesse voltou-se para o delineamento do próprio processo interativo. Nessa época, a
teoria socioconstrutivista do desenvolvimento humano surgiu como uma grande área de
estudos realizados principalmente por Vygotsky e Leontiev, importantes estudiosos da
antiga União Soviética.
A teoria sociocultural de Vygotsky e seus colaboradores tem como ponto central
a premissa de que "cognição e conhecimento são dialogicamente construídos".
(SWAIN, BROOKS e TOCALLI-BELLER, 2002, p. 171). Para Vygotsky (1998), a
atividade humana acontece no contexto cultural em que o indivíduo está inserido e tem,
na linguagem, um dos mais importantes instrumentos de mediação. Tal importância
deve-se ao fato de ser por meio da linguagem que o indivíduo desenvolve suas funções
psíquicas superiores (como planejamento, memorização, raciocínio dedutivo), na
medida em que organiza o pensamento, favorecendo, dessa forma, a interação entre as
pessoas e o ambiente que as cercam. Nessa perspectiva, a língua é concebida como "o
mais importante instrumento de desenvolvimento do indivíduo, tanto no domínio
cognitivo quanto no comportamental" (AHMED, 1994, p. 138).
Segundo Vygotsky (1998), a criança possui dois níveis de desenvolvimento: o
real e o potencial. O primeiro refere-se a tudo aquilo que a criança é capaz de fazer por
si mesma e o segundo refere-se àquilo que ela consegue fazer com o auxílio de outras
P á g i n a | 978
pessoas mais capazes. A diferença entre os níveis real e potencial é chamada de Zona de
Desenvolvimento Proximal (ZDP) e é definida por Vygotsky (1998, p. 112) como
"a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma
determinar através da solução independente de problemas, e o nível de
desenvolvimento potencial, determinado através da solução de
problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes".
Sob a perspectiva da ZDP, o adulto ou o companheiro mais experiente passa a
exercer a função de andaime, também conhecida metaforicamente na literatura como
estruturas de apoio (scaffolding). Wood, Bruner e Ross (1976, p. 90) definem
scaffolding como um "processo que capacita a criança ou principiante a resolver um
problema, realizar uma tarefa ou atingir um objetivo que estaria além de sua
capacidade". O conceito de ZDP é fundamental para identificar "o estágio atual e futuro
do desenvolvimento do aprendiz, revelando não só o que já foi alcançado em seu
desenvolvimento, mas o que está em processo de maturação (...)" (VIEIRAABRAHÃO, 2012, p. 465).
Antón e Dicamilla (1999) apontam seis funções do scaffolding: 1) engajar o
aluno na tarefa; 2) simplificar a tarefa; 3) manter a motivação para a busca do objetivo
da tarefa; 4) identificar pontos importantes durante a realização da tarefa; 5) reduzir o
stress; e 6) explicar e dar soluções parciais para a finalização da tarefa.
Na interpretação de Lantolf e Apel (1994) não é a realização da tarefa que mais
importa, mas sim, os processos cognitivos que são desencadeados nas interações.
Segundo Lantolf e Apel (1994) e Lantolf e Thorne (2006), a ZDP favorece o
engajamento entre o adulto e a criança em um processo dialógico podendo ser utilizado
por educadores como um instrumento conceitual para compreender o que os alunos
conseguem fazer em seus estágios iniciais de maturação.
Nessa breve discussão, apontamos a importância da interação e do conceito da
ZDP no contexto educacional. Vimos que o desenvolvimento deve ser concebido
prospectivamente, ou seja "para além do momento atual, com referência ao que está
para acontecer na trajetória do indivíduo" (OLIVEIRA, 2000, p. 12.), que esse
desenvolvimento é co-construído nas interações sociais, e que o único bom ensino é
aquele que se adianta ao desenvolvimento (VYGOTSKY, 1991).
Para Swain et al. (2011), a teoria de Vygotsky tem contribuído muito para a
pesquisa em sala de aula em várias áreas, nas quais podemos incluir a área de ensinoaprendizagem de L2/LE. A seguir, veremos algumas dessas contribuições.
3. A teoria sociocultural e suas contribuições para a sala de aula de L2/LE
Muitos estudos que se preocuparam em investigar a interação em sala de aula
(JENKS, 2012; PARK, 2012; TOTH ET AL, 2013; PARK, 2013) e os efeitos do
trabalho colaborativo numa perspectiva sociocultural tem apontado grandes
contribuições para a pesquisa de sala de aula de L2/LE. O campo de investigação é
vasto, abrangendo vários temas como o uso da abordagem colaborativa no meio virtual
(Lee, 2004; Souza, 2006; Salomão, Silva e Daniel, 2009), na interação face a face com
P á g i n a | 979
foco em atividades comunicativas (Silva, 1999; Swain e Lapkin, 1998; Junior, 2006;
Figueiredo, 2006); nas habilidades de compreensão e produção escrita (Sabota, 2006;
Wobeto, 2012; Carvalhes, 2013); em atividades de correção com pares (Carvalho, 2006;
Figueiredo, 2001), entre outros.
Discutindo sobre a importância da interação em sala de aula, Swain e Lapkin
(1998, p. 320) observam que as dificuldades que os aprendizes encontram na
decodificação de mensagens em eventos de comunicação os levam a "modificar e a
reestruturar sua interação para que ambos alcancem a compreensão". Para que essa
compreensão seja alcançada, os aprendizes, em um processo de negociação, procuram
fazer ajustes linguísticos, como, por exemplo, mudar palavras, modificar suas formas e
significados, entre outros (PICA, 1994).
Central para essa discussão é o conceito de diálogo colaborativo, definido por
Swain (2000, p. 97) como "o diálogo que constrói o conhecimento linguístico". Para a
autora, é por meio do diálogo colaborativo que o uso da língua e sua aprendizagem são
co-construídos, criando oportunidades para que os aprendizes não apenas troquem
ideias ou informações, mas também estratégias de aprendizagem. A língua é, pois, uma
importante mediadora do processo de construção do conhecimento, constituindo-se em
uma ferramenta cognitiva e social. Cognitiva, pois favorece a produção de sentidos e
social, na medida em que permite a comunicação entre as pessoas (SWAIN ET. AL,
2002).
Vale destacar, aqui, o estudo de Storch (2002) sobre a natureza da interação.
Nesse estudo, Storch (ibid) investigou a natureza da interação entre dez pares de
aprendizes adultos de inglês como segunda língua em uma universidade da Austrália.
As interações com os pares foram gravadas em áudio e os resultados apresentaram
quatro modelos de interação: 1) colaborativo; 2) dominante/dominante; 3)
dominante/passivo e 4) mais experiente/menos experiente. No modelo colaborativo, os
participantes colaboram uns com os outros em todos os momentos da tarefa e fornecem
soluções que são discutidas e aceitas por ambos. No modelo dominante/dominante, por
sua vez, ambos os participantes contribuem para a realização da tarefa, mas há
dificuldades na aceitação da contribuição do outro, discordâncias e dificuldades de se
chegar a um consenso. Já no modelo dominante/passivo, um dos participantes domina e
controla a tarefa. Por fim, no modelo mais experiente/menos experiente, um dos
participantes possui um maior controle da tarefa, mas encoraja a participação do outro.
Uma importante implicação do estudo de Storch (2002) foi evidenciar que os
modelos 1 e 4 são os que mais favorecem a ocorrência de scaffolding nas interações
com pares. O autor conclui, portanto, que a natureza da interação é um importante fator
a ser considerado pelo professor, visto que sua compreensão favorece as oportunidades
de aprendizagem quando os alunos estão trabalhando colaborativamente com seus
pares.
Para Figueiredo (2001), o trabalho colaborativo aumenta a motivação e a
autonomia dos alunos e os auxilia a refletir sobre sua aprendizagem, contribuindo, dessa
forma, para o aumento da autoestima, na medida em que percebem sua capacidade de
escrever em inglês e o fato de que o cometimento de erros é algo normal e que faz parte
da aprendizagem (FIGUEIREDO E ASSIS, 2006). Além disso, Figueiredo (2012, p.
154) observa que, ao trabalhar com o colega, os alunos tem "a oportunidade de discutir
sobre suas próprias dúvidas e de compartilhar com os outros seu conhecimento."
Os benefícios da aprendizagem colaborativa são também observados em
pesquisas realizadas no ambiente virtual. Em um estudo realizado sob o regime de
P á g i n a | 980
tandem62, Souza (2003, p. 90) observou um entusiasmo nas interações dos participantes
pelo fato de poderem trocar informações culturais e pelas oportunidades de
aprendizagem que vão "além das proporcionadas nos livros didáticos".
O trabalho colaborativo tem-se mostrado também benéfico na promoção da
autonomia. Em suas reflexões sobre esse conceito, ainda no regime tandem, Salomão,
Silva e Daniel (2009, p. 91) sugerem que a autonomia é "uma ação co-construída entre
o par, dado que ambos trabalham juntos no entendimento da delimitação de suas
necessidades, bem como na definição de práticas e/ou procedimentos que os levarão ao
alcance mútuo de suas metas".
Em seu estudo, Lee (2004) observou os efeitos do trabalho colaborativo nas
discussões on-line entre falantes de espanhol e alunos americanos. Os resultados
mostraram que os alunos americanos aprenderam muitas palavras e expressões novas,
contribuindo não apenas para o desenvolvimento de sua competência comunicativa,
como também para o aumento da motivação para aprender espanhol. Entretanto, ao
discutir as limitações de seu estudo, o autor adverte que a proficiência linguística, a
idade e o conhecimento do uso do computador são importantes fatores a serem
considerados nas interações online, uma vez que esses fatores afetam diretamente a
qualidade das interações e a motivação dos aprendizes.
Outros fatores podem contribuir para dificultar as interações mediadas pelo
computador, como, por exemplo, a falta de recursos da internet e problemas de conexão
(PAIVA, 1999), a ansiedade de alunos e professores por não saberem utilizar o
computador (LEFFA, 2003) e o não comprometimento com a colaboração mútua, como
observa Figueiredo (2006, p. 27),
"(...) uma das limitações existentes na aprendizagem colaborativa
mediada pelo computador é, a meu ver, justamente a falta de
colaboração que o meio virtual pode ocasionar. O fato de a interação
não ser face a face pode fazer com que os interlocutores não sejam tão
comprometidos e colaboradores uns com os outros e, devido a isso,
não darem termo a alguma tarefa pela qual são responsáveis".
Salomão, Silva e Daniel (2009), em consonância com o pensamento de
Figueiredo (2006) afirmam que "trabalhar colaborativamente implica comprometer-se
na tarefa de aprendizagem e, concomitantemente, comprometer-se com o outro e de
maneira mútua."
As dificuldades de interação no ambiente virtual é uma realidade, no entanto,
compartilho da opinião de Paiva (2001) de que, uma vez superadas, esse ambiente trará
grandes contribuições para a aprendizagem de línguas. Além disso, acredito que as
dificuldades nos processos de ensino e aprendizagem sempre estarão presentes, tanto
nas interações em sala de aula quanto no meio virtual. É preciso que nós, professores,
estejamos sempre na busca de aprimoramento de nossa prática em sala de aula,
conhecendo melhor nossos alunos e suas necessidades para aprender quais ferramentas
utilizar e junto com eles construir um ambiente favorável para que a aprendizagem
aconteça.
3 De acordo com Cavalari (2009, p. 22), o regime tandem "envolve pares de falantes nativos (ou
competentes) de línguas diferentes, trabalhando de forma autônoma e colaborativa para aprenderem a
língua um do outro".
P á g i n a | 981
4. O estudo
Conforme mencionado anteriormente, este estudo apresenta a análise de uma
atividade realizada com alunos de língua inglesa de uma universidade federal e teve
como objetivos verificar os efeitos do diálogo colaborativo por meio de exemplos de
scaffolding e suas funções identificar os padrões de interação e seus possíveis efeitos na
aprendizagem e investigar as percepções dos participantes sobre a atividade proposta.
A atividade foi realizada em pares, em uma disciplina de Língua Inglesa II e foi
gravada em áudio. Segundo a professora, os alunos são muito participativos e possuem
o mesmo nível de proficiência.
A atividade baseou-se no tema "shopping" do livro Touchstone 1(MC CARTHY
ET AL, 2005) e foi realizada em dois momentos. No primeiro momento, os alunos
deveriam simular o recebimento de uma bolsa de estudos para fazer um curso de verão
na Duke University. Eles receberiam um cartão-presente de $10.000,00 de um shopping
center que fica em Durham, cidade onde fica a Duke University. Com esse cartão, os
alunos deveriam, em pares, visitar os sites das lojas do shopping e decidir o que
comprar e onde fariam suas compras. Deveriam ler os comentários das lojas (reviews),
fazer as compras e falar sobre os motivos que os levaram a comprar nesses lugares,
sendo que as compras não poderiam exceder o valor do cartão-presente.
No segundo momento, os alunos postariam as lojas, as compras e seus
comentários no facebook da turma.
A análise dos dados está organizada em duas partes. Na primeira, é feita a
análise das interações com os objetivos de buscar exemplos de scaffolding e suas
funções e identificar os padrões de interação e seus possíveis efeitos na aprendizagem.
Os dados foram organizados em Protocolo A (fase de preparação da tarefa), Protocolo B
(fase de execução da tarefa) e Protocolo C (fase de finalização da tarefa). Na segunda
parte é feita a análise das percepções dos alunos participantes da pesquisa sobre a
atividade realizada.
5. Análise e discussão das interações
A análise dos dados revelou exemplos de scaffolding no momento em que os
alunos estão se preparando para escolher os sites das lojas, como veremos no Protocolo
A.
Protocolo A - Fase de preparação
A01: Flávio:
So, which stores would you like to buy? hum....so many....difficult...
A02: Lola:
Ah, no, let´s find the category first...wait...you go here and here..
A03: Flávio:
Ah...
A04: Lola:
Music, books and entertainment? Would you like to see?
A05: Flávio:
Hum..yes, ok, music, books and entertainment.
P á g i n a | 982
A06: Lola:
(Pausa longa) I just loved this store.
A07: Flávio:
Yes, I just loved this. Would you wear this dress?
A08: Lola:
If I would? yes, it´s beautiful, I would, but many things...it´s...many..
A09: Flávio:
Ok, ok, ladies first (risadas)
A10: Lola:
Do you know this band?
A11: Flávio:
Blood? No, No, is it old?
A12: Lola:
Not really...I forgot....they started the band when I was first year.
A13: Flávio:
I have a friend who draws on t-shirts, so she makes my t-shirts....not this
one...
A14: Lola:
...Ok, a...first let´s find the reviews. Where is it? (pausa longa) where is it? is
it here? (baixinho)
A15: Flávio:
Reviews, reviews...where are the reviews..(longa pausa)
A16: Lola:
Let´s see if we get something here...(longa pausa)
Em (A01), Flávio inicia a interação perguntando quais lojas Lola gostaria de
comprar. Ao invés de responder à pergunta de Flávio (A06), que sente dificuldades na
busca das lojas, Lola acha melhor procurar a categoria primeiro (A02) e em seguida,
ela mesma dá três sugestões (A04): música, livros e entretenimento. As sugestões são
avaliadas e acatadas por Flávio, como podemos observar na sequência de sua fala
hum...yes...ok em (A05). Acreditamos que Lola, ao sugerir essas categorias, esteja
simplificando sua execução, o que constitui uma das funções do scaffolding
(simplificação da tarefa).
Outra função do scaffolding (engajar o aluno na tarefa) pode ser encontrada em
(A14) quando Lola interrompe Flávio e sugere procurar os reviews. Podemos observar
que nessa fase de preparação da tarefa, em geral, é Lola quem toma a iniciativa de
retomar a tarefa, direcionando e dando sugestões, principalmente após as longas pausas
(A06, A14 e A15). Podemos observar, também, que as intervenções de Lola procuram
envolver Flávio ao usar a expressão let´s, sempre que sugere fazer algo.
Protocolo B - Fase de execução
B01:
Flávio:
I just love this store. Is it dollars or reais?
B02:
Lola:
Dollar.
B03:
Flávio:
Why is...they use cifrão in dollars?
B04:
Lola:
Yeah, .....yes, for sure...teacher? we use cifrão in dollar?
B05:
Teacher: Yes, because it´s the symbol for money.
B06:
Lola:
(pausa longa) Humm...you can look at the man´s t-shirt
B07:
Flávio:
Thank you. (risadas) (pausa longa) what´s this?
B08:
Lola:
I guess it´s a t-shirt for girls.
B09:
Flávio:
Oh, ok.
P á g i n a | 983
Durante a fase de execução da tarefa, podemos observar vários exemplos de
scaffolding quando Lola esclarece as dúvidas de Flávio com relação ao uso do cifrão
(B02) e com relação a um item não identificado por Flávio (B07). O próximo trecho
mostra como o conhecimento foi co-construído a partir da ajuda mútua dos alunos, na
tentativa de compreender figuras e uma expressão encontrados em um site da internet.
B18:
Flávio:
Cats...I don´t understand.
B19:
Lola:
Neither did I.
B20:
Flávio:
Cats plus bacon equals (incompreensível).
B21:
Lola:
Which element is this?
B22:
Flávio:
No, like cats, cats.
B23:
Lola:
I know but which element is this?
B24:
Flávio:
Gold.
B25:
Lola:
Oh. ....You got it?
B26:
Flávio:
No.
B27:
Lola:
Cats plus bacon equal gold. It´s expression. It´s unique, something like that.
B28:
Flávio:
I didn´t get it.
B29:
Lola:
You know, gold is rare and everybody likes.
B30:
Flávio:
Yes...
B31:
Lola:
And so does cats and bacon...not rare but everybody likes.
B32:
Flávio:
Cats and bacon? Ok, but I don´t like cats.
B33:
Lola:
Yeah, but it´s more like a general thing (risadas), there´s always exception
(risadas) (pausa longa). This one is for books. I don´t know if I would buy
books at first. .. you can see. I guess I wouldn´t bring a lot of books. I guess
I would buy books I really really wanted to read. Would you?
B34:
Flávio:
(começa a cantar)
B35:
Lola:
Ok, a...what else? (baixinho) (pausa longa). Technology and electronics?
There´s no clothes here....a... (pausa longa)...160 gb.. you know that classic
ipod has 160 gb?
B36:
Flávio:
Really? and how much does it cost?
B37:
Lola:
I have no idea. Let´s check....just like here...I would buy. and would you?
B38
Flávio:
Yeah, I would buy.
B39:
Lola:
(pausa longa) do you usually buy at the shopping mall?
B40:
Flávio:
Sometimes, I really don´t like to go there. I don´t like to go and search
clothes..maybe I guess I should buy on the internet now at home, it´s more
interesting. (laughs)
Observamos em (B18) que Flávio não compreende o uso da palavra cats. Lola
(B19) também sente a mesma dificuldade. Dessa vez, Flávio e Lola não recorrem ao
professor em busca de auxílio. Ao invés disso, eles mesmos procuram chegar a uma
compreensão e resolver suas dificuldades. Em (B020), Flávio lê a expressão,
P á g i n a | 984
procurando fazer sentido do que está lendo. Lola (B21), por sua vez, pede auxílio à
Flávio para identificar um elemento que seria importante para a construção de sentido
da expressão que ambos não conseguem compreender. Flávio responde gold (B24), um
scaffolding importante que ajuda Lola a compreender o significado da expressão. Isto
pode ser observado pelo uso de Oh... seguido da pergunta you got it? em (B25). Na
sequência, Flávio (B26) responde que ainda não compreendeu a expressão. Lola (B29)
explica que gold é algo raro e todo mundo gosta. O mesmo acontece com cats. Flávio,
no entanto, discorda parcialmente da explicação, visto que ele não gosta de gatos. Lola
(B33) procura solucionar o impasse explicando que trata-se de uma expressão usada de
forma genérica, podendo haver exceções.
Os exemplos mostrados em (B18 a B33) mostram a co-construção do
conhecimento favorecida pelo apoio e esforço mútuo dos alunos. Com a ajuda do
colega, os alunos conseguiram compreender uma expressão que possivelmente não
conseguiriam se tentassem compreendê-la sozinhos. O esforço empreendido pelos
alunos na tentativa de resolver o problema e a solução encontrada está de acordo com a
afirmação de Swain et al (2002, p. 171) de que "cognição e conhecimento são
construídos dialogicamente". Esses exemplos confirmam, também, a importância do
diálogo colaborativo no engajamento dos alunos em situações reais de comunicação, na
medida em que a língua é usada para esclarecer dúvidas, fazer hipóteses, trocar idéias,
demonstrar sentimentos etc.
Analisando a fala Lola (B33), observamos que ela, após uma pausa longa,
retoma a tarefa e tece alguns comentários sobre livros. Flávio (B34), por sua vez,
começa a cantar, não demonstrando muito interesse pelo assunto. Lola, no exemplo
(B35), tenta engajá-lo na tarefa sugerindo dois temas como pontos de partida para uma
nova busca na internet: technology e electronics. Após outra pausa, Lola (B35) dá
informações sobre a capacidade de memória do Ipod. Essas tentativas, ao nosso ver,
ilustram duas funções do scaffolding: engajar o outro na tarefa e manter sua motivação.
A reação de Flávio em (B36), mostra que Lola foi bem-sucedida em suas tentativas. Isto
fica claro pelo uso do Really? que, no contexto dessa interação, tem a função de
demonstrar interesse por parte do ouvinte. A pergunta de informação how much does it
cost? seguida do uso do Really? reforça o interesse de Flávio, contribuindo, assim, para
a manter a fluidez da conversação.
Com relação ao interesse de Flávio pela atividade, a análise de dados mostrou
que seu nível de interesse foi mais baixo que o de Lola. Isto pode ser explicado pelo
fato de ele não gostar muito de fazer compras, como ilustra o exemplo (B40). No
entanto, ele admite a possibilidade de fazer suas compras pela internet por achar mais
interessante fazê-las no mundo virtual. Isto pode ser um indício de um movimento de
passagem de regulação pelo outro para a auto-regulação. Nessa tarefa, consideramos
que a regulação pelo outro é caracterizada pela discussão, negociação e compra dos
itens pela internet com o auxílio de Lola e a auto-regulação, por sua vez, pode ser
caracterizada pela possibilidade de Flávio fazer suas compras pela internet em casa. É
importante ressaltar que estamos falando de possibilidades, pois, conforme observa
Liberali (2010, p. 73, citando Vygotsky, 2001), "não existe a determinação do que o
outro constrói, mas a criação de possibilidades para as escolhas que ele fará."
No protocolo C, podemos observar a co-construção de scaffolding quando
Flávio engaja-se mais na tarefa, deixando transparecer que seu nível de interesse pela
atividade aumentou. Isto ocorre quando Flávio: a) sugere a loja Sears (C02); b) pede
explicações sobre algo que não compreendeu: I don´t understand this...on be (C04); c)
procura pelos reviews: And the reviews? (C08); d) pede informações sobre o preço dos
P á g i n a | 985
sapatos para Lola: Hum..how much it would cost if I buy here on the internet ?(C10) e
sobre o valor das taxas de transporte para a professora: Professor? I have doubts about
the price of transportation. (C16).
Protocolo C - Fase de finalização
C01:
Lola:
Ok let´s go to other stores.
C02:
Flávio:
Try Sears.
C03:
Lola:
Sears..I don´t know..there isn´t Sears here...let me check..shoes?
C04:
Flávio:
Shoes..yes, nice. I don´t understand this...on be
C05:
Lola:
I guess the mall is here here on be...here...you can click here... divided.
C06:
Flávio:
Hum...I understood.
C07:
Lola:
I don´t want to see it anymore. (risadas) (pausa longa)
C08:
Flávio:
Hum..this one. And the reviews? no reviews.
C09:
Lola:
I guess this time the reviews are individual, I´m going check the red... yes,
individual, you know, you go to the product and there are the reviews..
C10:
Flávio:
Oh, yes, hum... I´d buy it. Nice. Hum, how much it would cost if I buy
here on the internet?
C11:
Lola:
It depends the transport, but it´s not too expensive anyway. It´s $25,00 it
would be like, I mean the dollar isn´t costing R$2,00, so it would be forty
and something.
C12:
Flávio:
Including the price of the transportation?
C13:
Lola:
No. That´d be the thing. I don´t know how much it costs, it´s probably
expensive. So it´d be fine...if...
C14:
Flávio:
If we go there and buy.
C15:
Lola:
Not go there and buy but if you buy more than one thing.
C16:
Flávio:
Yes, I understand. I understand. I think I´ll see this on the internet later
(pausa longa) I´m hungry.... Professor? I have doubts about the price of
transportation.
C17:
Teacher: The shipping? (a professora explica como funciona as taxas de transporte)
Ok people, let´s go...
Durante a realização da atividade, pudemos observar que Lola, em geral, é
quem tinha o controle da tarefa, ao iniciar, retomar e manter o scaffolding construído
com Flávio. No entanto, é interessante notar que na fase de finalização, é Flávio quem
restabelece e mantém o interesse de Lola pela tarefa após manifestar seu desejo de parar
a atividade (C07). Isto sugere que não há uma sequência linear das funções do
scaffolding. Ele é construído a partir dos interesses, das necessidades e dos níveis de
motivação dos interlocutores.
Com base na atividade proposta neste trabalho, podemos afirmar que o diálogo
colaborativo é dinâmico, imprevisível e rico de oportunidades de uso da língua em
situações de comunicação real que vão além dos diálogos dos livros didáticos que se
restringem às simulações e repetições artificiais, muitas vezes sem sentido para o aluno.
P á g i n a | 986
Isto parece estar de acordo com as próprias percepções dos participantes, como veremos
a seguir.
6. Análise e discussão das percepções dos participantes
Um dos objetivos deste trabalho foi investigar as percepções dos participantes
sobre a atividade realizada em pares. Na entrevista, Flávio declarou ter gostado da
atividade pela oportunidade de usar a língua em um contexto real, além de poder trocar
ideias com seu par, o que não seria possível se tivesse realizado a atividade sozinho.
Pesquisadora:
Você gostou da atividade que você realizou?
Flávio:
Sim porque eu pude ter uma exposição real com a língua inglesa a partir de
um site que foi feito por pessoas...por nativos.
Pesquisadora:
E você preferiria ter feito sozinho?
Flávio:
Não porque eu pude compartilhar ideias com meu par...Gosto mais das
atividades de grupo porque há várias opiniões...é melhor.
Da mesma forma que Flávio, Lola gostou da atividade por ter favorecido o uso
da língua no cotidiano e também por ter promovido a interação com o colega.
Pesquisadora:
Então Lola, você gostou da atividade?
Lola:
Sim gostei, achei bem interessante.
Pesquisadora:
Por que?
Lola:
Porque me fez trabalhar o inglês com meu colega e às vezes eu até penso
melhor em inglês então me fez ver alguma coisa do inglês do dia-a-dia. Muito
bom!
Pesquisadora:
Você preferiria ter feito essa atividade sozinha?
Lola:
Não...não.
Pesquisadora:
Por que?
Lola:
A interação pra mim foi essencial, estar ali falando com ele e ele respondendo
e a gente até ria, se divertia. Isso foi bastante interessante.
Pesquisadora:
Você gosta de realizar suas atividades em grupo ou sozinha?
Lola:
Mais em grupo.
Pesquisadora:
Por que?
Lola:
Porque eu gosto dessa interação, de todo mundo dar sua opinião, a gente chega
num consenso. Eu gosto de estar no meio das pessoas, trabalho melhor assim.
Podemos depreender da fala de Lola que a interação com o seu par foi
importante não apenas para a sua aprendizagem, mas também para a sua motivação,
quando ela fala que achou a atividade interessante e que ela e Flávio riram e se
P á g i n a | 987
divertiram. Esses dados confirmam os resultados de Figueiredo (2001). Para esse autor,
o trabalho colaborativo aumenta a motivação dos alunos, auxiliando-os também, a
refletir sobre sua aprendizagem.
7. Considerações finais
Realizamos este trabalho com o intuito de buscar exemplos de scaffolding e suas
funções (ANTÓN E DICAMILLA, 1999) e identificar os padrões de interação
(STORCH, 2002) e seus possíveis efeitos na aprendizagem. Buscamos, também,
investigar as percepções dos participantes sobre a atividade realizada.
A análise dos dados mostrou uma maior ocorrência de quatro, das seis funções
do scaffolding: 1) engajar o aluno na tarefa; 2) simplificar a tarefa; 3) manter a
motivação para a busca do objetivo da tarefa; e 4) explicar e dar soluções parciais para
a finalização da tarefa.
Com relação ao padrão de interação, os dados evidenciaram o modelo mais
experiente/ menos experiente, visto que um dos pares apresentou um maior controle da
atividade (Lola), fornecendo scaffolding constante ao longo de sua execução,
permitindo uma participação mais ativa na interação com o colega. Isto pôde ser
observado nas seguintes ações: retomada da tarefa após longas pausas, explicações,
tomada de decisão na escolha dos itens a serem comprados e orientações na busca dos
sites.
Embora Lola realizasse a maior parte dessas ações, ela procurava envolver o seu
colega na atividade, estimulando-o a participar da interação. Isto ficou claro nos
exemplos em que Lola fazia perguntas, pedia opiniões e usava a expressão let´s. O uso
dos modais can e would e de expressões como I guess também são indícios de que
Lola manifestava suas opiniões, mas não de forma impositiva, valorizando, dessa forma,
as contribuições de seu colega. Esses dados confirmam a importância do diálogo
colaborativo no sentido de promover o desenvolvimento cognitivo e social dos alunos
(ANTÓN E DICAMILLA, 1999). No plano cognitivo, podemos observar a construção
do diálogo nos exemplos de (B18) a (B33), que mostra o esforço mútuo para a
compreensão da expressão. Já no plano social, como já dito, observamos o uso de
formas polidas como os modais que ajudam a criar um ambiente social favorável para a
participação do par menos participativo.
Do ponto de vista pedagógico, acreditamos que a atividade promoveu a
participação dos alunos de forma significativa, conforme sugere Swain (1995, apud
FIGUEIREDO, 2003) por envolvê-los em situações de uso real da língua. Isto foi
observado pelos participantes quando disseram que gostaram de realizar a atividade
pelo fato de ela ter promovido a interação entre eles e por favorecer o uso da língua com
um objetivo real de comunicação a ser atingido (WILLIS, 1996, apud LIMA, 2010).
Pudemos perceber que, ao receber o auxílio do colega, o diálogo colaborativo se
construiu, possibilitando a negociação de significados e o desenvolvimento de novas
habilidades e de novos conhecimentos.
Para concluir nossas considerações, os dados deste estudo reforçam a
importância do diálogo colaborativo como ferramenta para o desenvolvimento
cognitivo, social e comunicativo dos alunos. O professor deve, portanto, incluir em seu
planejamento, atividades de sala de aula que promovam a participação e a colaboração
P á g i n a | 988
dos alunos, visto que o trabalho colaborativo possibilita a construção de scaffoldings
importantes para que os alunos, independentemente de seus níveis de proficiência
linguística, possam aprender uns com os outros.
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P á g i n a | 992
O TEXTO LITERÁRIO E A ABORDAGEM DO INTERCULTURAL: UMA
ANÁLISE DAS ATIVIDADES PROPOSTAS NOS MANUAIS DIDÁTICOS DE
FLE
63
Divaneide Cruz Rocha LUNA (POSLE-UFCG)
Josilene PINHEIRO-MARIZ (POSLE-UFCG)
64
1. Introdução
Refletindo a respeito da necessária abordagem de textos literários desde o início
da formação do aprendiz de língua francesa, percebemos o quanto o material didático
ocupa um papel determinante no ensino da língua em contexto exolingue. Essa
abordagem se faz preponderante, uma vez que a literatura literária é caminho para novas
descobertas e para a expansão de horizontes. Considerando esse aspecto, observamos
que entre os principais documentos utilizados para o ensino do FLE (Francês como
língua estrangeira), seja no Brasil ou em outras realidades, o peso didático do livro
didático, que é mais conhecido entre os especialistas de FLE como “le manuel
didactique” ou “méthode de français”. Essa perspectiva é ativada, pois, de uma maneira
geral, é o livro que impõe as diretrizes para o ensino da língua francesa; isto é: trata-se
de um dos principais apoios pedagógicos para o ensino, tornando-se base para o
professor no ensino do FLE65.
Cabe dizer que, muito provavelmente, o fato de não se encontrar textos
literários, de modo sistemático, em livros didáticos deve-se a uma história não muito
recente que vê na obra literária apenas o lugar do cânone, não permitindo com isso, que
aprendizes iniciantes da língua tenham acesso à língua na sua mais bela expressão: a
literatura.
Ressaltamos que os textos literários se caracterizam como uma “poderosa
ferramenta”, segundo a afirmação de Albert e Souchon (2000); e, também sob essa
ótica, o professor, como mediador no processo de ensino/aprendizagem pode
sensibilizar o seu aprendiz desde cedo, à leitura literária. O processo de sensibilização
deverá iniciar, primeiramente, no professor, quebrando o primeiro tabu de que a
literatura é intocável e para poucos.
Sabe-se que o trabalho com o texto literário (TL) não é uma tarefa fácil, pois o
aprendiz estará diante de um texto produzido em uma língua que ele está em vias de
aquisição e, portanto, ainda pouco conhecida para ele. Essas dificuldades podem ser
uma das razões enfrentadas pelos professores de FLE, e mesmo de outras línguas
estrangeiras, para não se sentirem seguros ao trabalhar com essa ferramenta. Com
relação a essa ideia, Pinheiro-Mariz afirma que:
63
Divaneide Cruz Rocha Luna é Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino, da
Universidade Federal de Campina Grade.
64
Josilene Pinheiro Mariz é Professora da graduação em Língua Francesa e Língua Portuguesa do
Programa de Pós-Graduação e Linguagem e Ensino, da Universidade Federal de Campina Grande.
65
Os dados analisados neste artigo fazem parte da Dissertação de Mestrado defendida em fevereiro de
2013, sob o título A Abordagem do Intercultural em Atividades com textos literários nos Livros Didáticos
de FLE.
P á g i n a | 993
/.../ trabalhar com texto literário em aula de FLE com iniciantes
implica desafios tais como: o limitado conhecimento de vocabulário e
aspectos gramaticais como tempos verbais, etc.; vencer as dificuldades
impostas pela própria estrutura da língua e, sobretudo, a polissemia
desse tipo de texto, pois em alguns casos uma primeira leitura não
permitia aos alunos a compreensão imediata de aspectos como a
linearidade da narrativa, assim como a identificação de alguns
elementos constituintes da obra literária. (PINHEIRO-MARIZ, 2007,
p. 121).
Sabemos também que as atividades com base na literatura são desafiadoras e
prazerosas, sobretudo quando os resultados positivos são observados na sala de aula.
Essa dificuldade talvez ocorra porque alguns aprendizes chegam à sala de aula, em
alguns casos, com uma espécie de aversão à literatura, mesmo sem ter tido sequer um
primeiro contato. Isso acontece de modo geral, por que eles não foram sensibilizados à
leitura literária em língua materna. Por esse motivo, o professor deverá ter cautela e
paciência na escolha do TL que será abordado, pois deve existir um texto adequado para
cada nível de aprendizagem.
2. A abordagem do texto literário como uma ferramenta no ensino de FLE
Hoje em dia, através dos meios de comunicação, o contato com outras culturas
tornou-se mais acessível. No âmbito do ensino de LE, também ficou mais comum o
acesso a documentos diversos, sejam eles multimodais ou não. Na nossa ótica, no
ensino de LE, o TL é um documento especial, uma vez que, além de ser autêntico, ele é
um material muito rico para ser trabalhado em sala de aula de LE, por conter
peculiaridades que o diferenciam dos demais gêneros textuais. Em consonância com
essa ideia, especialistas como Papo e Bourgain (1989), Peytard (1982), Peytard e
Moirand (1992), Séoud (1997) e Albert e Souchon (2000) chamam a atenção para o
texto literário como um documento capaz de trazer consigo os múltiplos sentidos da
língua e, por essa razão, deve também estar presente na sala de aula de modo
incondicional.
De acordo com Papo e Bourgain (1989, p. 8), o texto literário é um laboratório.
É nele que a língua se revela e exibe as suas estruturas, sejam elas simples ou
complexas. Através dele, o professor tem a oportunidade de mostrar aos aprendizes a
materialização da língua, ou seja, como ela se manifesta em um contexto real,
considerando-se desde as construções mais simples até as mais rebuscadas.
Na concepção de Séoud (1997), a literatura é ao mesmo tempo língua e cultura.
Assim, o ensino de uma língua não pode ser direcionado apenas para sua gramática
padrão, pois as atitudes, os costumes e os diferentes modos de viver também fazem
parte da língua. Por isso, esses elementos fazem da literatura o terreno mais favorável e
propício à expressão intercultural, pois vemos a cultura do outro através da nossa. Nessa
perspectiva, De Carlo (1998) afirma que:
As obras literárias são consideradas o maior nível de expressão
artística e cultural de um país / ... / A França ocupa o primeiro lugar
nesse domínio /... / Encontramos, mais um vez uma unidade
P á g i n a | 994
inseparável entre língua e a civilização, unidade que garante a
superioridade de cada um destes dois elementos. (DE CARLO, 1998,
p. 29)66.
Ao utilizar um TL em sala de aula, o professor tem a oportunidade de realizar
diversas atividades complementares, além de incentivar possíveis leitores no ambiente
da sala de aula. Dessa forma, quanto mais cedo os TL forem introduzidos nas aulas,
mais fácil será trabalhar com esse recurso ao longo da aprendizagem, pois a literatura
serve tanto para ensinar a ler e a escrever, quanto para formar culturalmente o indivíduo.
Acrescente-se, ainda, que, quanto mais o aprendiz for exposto à leitura, mais a sua
capacidade de comunicação será progressivamente desenvolvida (COSSON, 2006, p.
21-22). Entretanto, para que esse desenvolvimento ocorra, cabe ao professor ter a
sensibilidade de escolher o texto adequado para cada nível de aprendizagem, pois uma
escolha inadequada pode comprometer o processo de aprendizagem, além de
desmotivar o aprendiz.
Muitos professores não conseguem abordar o TL em sala de aula de língua por
terem uma visão sacralizada da literatura e por pensarem que ela é intocável, que a
prática da leitura literária não se ensina, que não se decifra e que é para poucos. Nesse
sentido, Moirand e Peytard (1992) desmistificam esta ideia, mostrando que o TL pode
ser trabalhado como auxílio no ensino de LE. Para os referidos autores:
/.../ percebe-se, esquematicamente, uma dupla tendência, quanto à
utilização da literatura. Tendência à sacralizar o texto literário o qual
não se toca, digamos, que com um cuidado, um recuo: repouso do
aprendiz, oferece-se a ele, o texto para ler, para aspirar, saborear,
comunicar com ele por ingestão místico-pedagógica; o texto literário
repousa com os mistérios do seu templo, para ser comtemplado. Sob
outra tendência: o texto literário é um texto-testemunho, um textoproduto, como qualquer outro documento "autêntico"; serve de base e
fonte para inúmeras atividades de língua, encontramos recursos
lexicais, exemplos de frases-modelo, expressões orais ou de análise de
ritmo, o texto literário é, então, uma fonte esplêndida de exercícios
obrigatórios (PEYTARD; MOIRAND, 1992, p. 58, aspas dos
autores)67.
Segundo esses especialistas, a literatura se articula na e sobre a língua e é a
construção concreta, a manifestação das palavras e da sintaxe. Ao utilizar o TL é
possível trabalhar as competências linguísticas primordiais, no que se refere ao
66
Les oeuvres littéraires sont considérées comme le degré le plus élevé de l’expression culturelle et
artistique d’un pays/.../la France se place au premier rang dans ce domine/.../ Nous retrouvon encore une
fois une unité indissociable entre langue et civilisation, unité qui garantit la superiorité de chacun de ces
67
/.../ on peut schématiquement apercevoir une double tendance, quant à l’usage de la littérature.
Tendance à sacraliser le texte littéraire auquel on ne touche, si l’on peut dire, qu’avec recul: repos de
l’apprenti, on le lui offre à lire, à humer, à goûter, à communier avec; le texte littéraire ne se discute pas,
il se savoure, par ingestion mystico-pédagogique; le texte littéraire repose aux arcanes de son temple:
contemplation recommandée.Tendance autre, ou contraire: le texte littéraire est um texte-témoin, un
texte-produit, comme tout autre document “authentique”; on ne fait base et source d’innombrables
activités de langue; on y trouve des ressources lexicales, des exemples de phrases-types, des occasions
d’expression orale ou d’analyse de rythme; le texte littéraire est alors un splendide réservoir: exercices
obligatoires (PEYTARD; MOIRAND, 1992, p. 58).
P á g i n a | 995
ensino/aprendizagem de LE, de ouvir, falar, ler e escrever, além de promover a
motivação e a interação em sala de aula. Séoud (1997) afirma que, ao ser integrado
como forma progressiva de aquisição da língua, o TL pode ser decifrável a partir do
conhecimento de mundo. Essas aquisições linguísticas habilitam os aprendizes a
construírem o sentido do texto.
Conforme Papo e Bourgain (1989, p. 8), se o TL é o laboratório da língua,
dentro dele podemos encontrar todas as formas gramaticais, expressões idiomáticas e
construções linguísticas desde a mais simples até as mais complexas, ele é decifrável a
partir das aquisições linguísticas anteriores. Também para Séoud (1997, p. 28), a
construção dos sentidos é efetuada a partir do vocabulário que o aprendiz já conhece,
por isso, ele, o aprendiz, decifra as informações contidas no TL. É importante destacar
que o TL é uma fonte inesgotável tanto de aquisição cultural, quanto de múltiplos
sentidos da própria língua, uma vez que o TL é a língua na sua melhor materialização.
Ainda segundo Papo e Bourgain (op. cit.), quanto mais cedo se levar os TL aos
aprendizes, melhor será a sua aceitação. O TL pode ser inserido como uma introdução
ao estudo da língua estrangeira, a fim de se adquirir um mais amplo cerne vocabular e,
também, como uma maneira de se conhecer a sintaxe da língua-alvo. Esse tipo de
exercício é proposto nos manuais, com os documentos do tipo anúncios, receitas,
histórias em quadrinhos (HQ) etc. Os autores referidos acima indicam, também, que se
utilizem excertos de textos já conhecidos pelos leitores/aprendizes para se estabelecer
uma ponte entre a língua materna e a língua em estudo. Essa utilização seria, segundo os
estudiosos, uma iniciação modesta, mas enriquecedora, para o TL em sala de língua
estrangeira.
Na concepção de Moirand e Peytard (op. cit.), para se ensinar literatura, ou se
abordar o TL em sala de aula, é preciso ter um conhecimento mínimo da língua alvo,
pois as várias manifestações da língua são reveladas através da leitura literária. Por esse
motivo é que o ensino com o TL deve ser inserido desde o início do processo de
aprendizagem de LE. Por essa razão, o livro didático para o ensino do FLE obtém um
papel determinante, uma vez que se apresenta como um dos primeiros documentos
didáticos com os quais o aprendiz tem contato, configurando, assim como um recurso
primordial utilizado pelos professores de FLE.
Com essas considerações, investigamos, através de pesquisa bibliográfica e
documental, a presença do TL em alguns livros didáticos (LD) já utilizados ou ainda em
utilização na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) ou em escolas de
idiomas da cidade de Campina Grande-PB.
3. Descrição do corpus e do contexto da pesquisa
O corpus da presente pesquisa consta de cinco livros didáticos de língua
francesa, volumes 1 e 2, totalizando dez LD que já foram e são utilizados em escolas de
idiomas da cidade de Campina Grande e na UFCG. A escolha por esses livros baseou-se
nos seguintes critérios: livros elaborados segundo as diretrizes do QECRL (2001);
utilizados pelas instituições de ensino de FLE e indicados para iniciantes.
Assim, o corpus é composto por volumes 1 e 2 dos LD Tout va bien (2005),
Alter ego (2006) e Métro Saint-Michel (2006) e propõem atividades de
ensino/aprendizagem da língua francesa em carga horária que varia entre 120 e 140
P á g i n a | 996
horas. Os demais, Alors? (2007) e Mobile (2012), propõem de 80 a 90 horas de
aprendizagem intensiva da língua. Cada volume possui um CD de áudio para que o
estudante possa praticar sua aprendizagem sem o auxílio do professor, possibilitando,
assim, a sua autonomia nas atividades de fala e escuta.
Levando-se em conta os propósitos deste trabalho, nosso olhar está atento para
as seguintes percepções: identidade cultural e linguística, tomada de consciência do eu e
do outro e estereótipos, clichês e representações.
3.1 Procedimentos para análise dos dados
A análise dos dados desta pesquisa é de natureza qualitativa e investigou a
presença do TL, identificando como as atividades propostas favorecem as trocas
interculturais bem como a sua contribuição para a aprendizagem do FLE. Para executar
essa etapa, usamos a técnica da descrição detalhada de cada LD, destacando a
quantidade de lições, ou unidades, nas quais a rubrica intercultural surge, com qual
objetivo e se as propostas seguem o QECRL (2001).
A partir dessas descrições, selecionamos os textos, e as atividades que se
enquadravam em nossos objetivos, fazemos a análise e a interpretação dos dados, à luz
das teorias apresentadas anteriormente. Em seguida fizemos a quantificação das
atividades que apresentaremos através de quadro.
Em nossa análise, priorizamos três categorias para discussão: identidade cultural
e linguística; consciência do eu e do outro e estereótipos, clichês e representações.
Antes de prosseguir com as análises, vejamos o quadro com a quantificação das
atividades propostas para os textos selecionados e analisados por categorias.
Quadro I: Quantificação das atividades propostas para o texto literário
LIVRO
Métro Saint-Michel
1
TÍTULO DO TEXTO
/ATIVIDADE
QUANTIDADE DE
ATIVIDADES
Sem título
0
(2006, p. 21)
Alter Ego 1
Sept couler magiques
(2006, p. 127)
(Mymi Doinet)
2
Alter Ego 2
Le tour du monde em
famille (Jèróme Bourgine)
3
(2006, p. 84)
L’enfant des neiges
(Nicolas Vanier)
Alter Ego 2
Le Petit Poucet
(2006, p. 150)
(Charles Perrault)
3
P á g i n a | 997
Tout va bien! 2
Le pots de contes
1
(2005, p. 138)
Métro Saint-Michel
1
C’est ça la vie
0
(2006, p. 31)
Tout va bien! 2
Le Petit Prince
(2005, p. 62)
(Antoine de SaintExupéry)
Métro Saint-Michel
2
La Société de la peur
(Christophe Lambert)
4
2
(2006, p. 67)
Métro Saint-Michel
2(2006, p. 57)
La Conversation
amoureuse (Alice Ferney)
1
Métro Saint-Michel
2 (2006, p. 113)
Laissées-pour-compte
1
Métro Saint-Michel
2 (2006, p. 137)
Dernières Nouvelles des
oiseaux
(Robert Bober)
1
(Érik Orsenna)
Alter Ego 1 ( 2006,
p. 94)
Le (s) plus grand (s)
Français de tous les temps
3
Fonte: Divaneide Cruz Rocha Luna (2013, p. 83)
Os textos escolhidos para análise foram selecionados de acordo com os critérios
de inclusão de nossa pesquisa e optamos pelos textos que se enquadravam nas
categorias priorizadas. Identificamos que para cada texto selecionado a quantidade de
atividade proposta é variada. Constatamos, também, que o foco das atividades aponta
para o desenvolvimento das competências linguísticas: oral e escrita, possibilitando que
os aprendizes recorram às informações e expressões adquiridas no decorrer da
aprendizagem. Deparamo-nos apenas com uma atividade que aborda efetivamente o
tema intercultural no excerto do texto Le Petit Poucet, de Charles Perrault e na atividade
Le pots de contes. Constatamos que a presença do TL ainda é sutil nos LD e as
atividades propostas não tem como foco as trocas interculturais elas estão direcionadas
para sondagem de aquisição das competências linguísticas. A análise de tais dados serão
apresentados na sequência deste texto.
4. Identidade Cultural e Linguística
Iniciaremos nossa leitura e com o poema intitulado Sept couleurs magiques, de
Mymi Doinet, o qual nos parece ser um texto literário autêntico, isto é, um texto
literário não didatizado.
P á g i n a | 998
Figura 1: Sete cores mágicas
Fonte: Alter Ego 1 (2006, p.127)
As cores e seus significados fazem parte de diversas culturas. De maneira geral,
nas culturas ocidentais, o branco significa a paz, a pureza; enquanto o preto é sinal de
luto e o vermelho significaria amor, paixão. Essas representações, nas culturas orientais,
podem ter outros significados como: a cor branca seria luto e morte, no Japão e na
China; e na Índia, representaria a infelicidade e o vermelho significaria vida, pureza e
alegria, respectivamente, no Japão e na Índia. Enquanto na China é alegria e o preto, na
China, é a cor favorita para a vestimenta dos adolescentes.
Esse poema, Sept couleurs magiques, revela as cores do arco-íris e, com elas, as
particularidades de alguns países. Ele nos abre portas para realizar trocas interculturais,
indo-se além da cultura da língua em estudo. Considerando-se que as cores fazem parte
de representações de várias culturas, de acordo com Zarate (1986, p. 30), a sala de aula
de língua estrangeira é o lugar onde duas ou mais culturas entram em relação umas com
as outras e, por isso, as representações sociais constróem os limites que definem as
proximidades e afinidades, distanciamento e incompatibilidades.
No livro Alter Ego 1 (2006), duas propostas de atividades são apresentadas para
o poema Sept couleurs magiques: a primeira pede que o aprendiz associe as cores
mencionadas a um animal, um alimento e a um elemento da natureza. A outra sugere a
escrita de um poema seguindo o modelo do poema lido. Na nossa ótica, sugeriríamos,
para esse TL, mais uma atividade que se pode iniciar com a apresentação da fruta
vermelha do México68, o que seria o ponto de partida para motivar o grupo às
descobertas das particularidades das regiões e países mencionados no texto. Dessa
forma, estaríamos confirmando que aprender uma língua estrangeira é também uma
forma de conhecer o mundo. O objetivo dessa atividade seria também promover a
interação entre os aprendizes, além de, evidentemente, trabalhar as quatro
compentências línguísticas, além da intercultural.
68
Algumas das frutas vermelhas do México são: a pitaya (hylocereus undulatus), fruta de cor
avermelhada, cultivada no México, Guatemala, Belize, Honduras e El Salvador, e utilizada pelos Maias,
há milhares de anos. (www.maya-ethnlgumasobotany.org); e, o capulim cereja ou cereja tropical (prunus
salicifolia), uma fruta de cor vermelho-escura, cultivada no México, América Central, Peru e Equador.
No México, serve-se uma panqueca chamada “Talmal” recheada com geleia de capulim. (www.e-
jardim.com)
P á g i n a | 999
Outra proposta seria apresentar as cores da bandeira da França e pedir para que
os estudantes descobrissem o que representa cada uma delas e, na sequência pedir, para
que eles comententassem o que representam as cores da bandeira do Brasil, desde a sua
idealização e qual semelhança teria com outros países citados no poema. Essa é uma
atividade que fortalece a ideia que se encontra, ao se trabalhar na perspectiva do
intercultural, uma importante via para o conhecimento de nossa própria cultura, e que
promove a interação entre culturas através das representações das cores das bandeiras.
Assim, ao compartilhar com os colegas de sala as suas descorbertas, uma parte do grupo
poderá praticar a escrita e a fala, enquanto a outra parte, também, participa ouvindo e
interagindo com os colegas por intermédio das perguntas. Nessa perspectiva, além de
explorar as competências, promove-se a autonomia.
4.1. Consciência do eu e do outro
No manual Tout va bien! 2, identificamos excertos de textos de autores célebres
como Charles Baudelaire, Jules Verne e de autores contemporâneos como Daniel
Pennac. Para nossa análise, entretanto, selecionamos o excerto do livro Le Petit Prince,
de Antoine de Saint-Exupéry, obra que foi traduzida em vários idiomas.
Figura 2: O pequeno príncipe
Fonte: Tout va bien! 2 (2005, p. 62)
O excerto acima refere-se ao capítulo XX, no qual o personagem que dá título ao
romance se encontra com a raposa que ensina a ele o ritual da amizade, ou seja, como se
conquista um amigo. Depois que o Pequeno Príncipe aprende como se conquista um
amigo, reconhece o outro e, então, a raposa deixa lições, por assim dizer, interculturais:
a primeira é olhar para o outro com o coração, porque “o essencial é invisível aos
olhos”. Nesse sentido, esse trecho nos apresenta uma lição de alteridade, ressaltando-se
o respeito ao outro, isto é, aceitar o outro sem se prender ao que se vê, ou aos
estereótipos negativos que muitas vezes nos afastam. A segunda lição é a importância
do tempo que se leva para conhecer o outro, pois, a descoberta do outro é constante,
assim como o prendizado de uma LE, quando a cada dia se aprende algo novo. A
terceira lição ensina sobre a responsabidade de se cuidar daquilo que se cativa,
conforme nos sinaliza a raposa nos dando uma lição de respeito ao outro.
P á g i n a | 1000
A respeito do excerto acima, constatamos que o LD Tout va bien! 2 sugere
quatro atividades: uma de escuta, outra de produção oral, nas quais os aprendizes, em
grupo, devem comentar o texto de acordo com algumas questões previamente
formuladas; uma atividade de produção escrita; e a leitura do texto, feita em voz alta
pelo aprendiz. A partir desse excerto todas as compêtencias são trabalhadas e a proposta
de pontes interculturais, sugestão nossa, poderia ser mediada pelo professor, pois o tema
está implícito no texto.
4.2 clichês e representações
Enquanto o LD Métro Saint-Michel 1 tem a proposta de sensibilizar os
aprendizes para a leitura literária, o Métro Saint-Michel 2 já traz excertos de romances
na rubrica Le coin des livres (O canto dos livros) destinada à leitura. Cada excerto vem
com uma nota sobre o autor, bem como noções gerais a respeito da obra e um breve
resumo do romance. Esse detalhe pode aguçar a curiosidade do aprendiz dando a ele a
liberdade para escolher entre ler a obra completa ou não. Seguindo com a nossa análise,
selecionamos o texto La société de la peur, de Christophe Lambert.
Figura 6: La société de la peur
P á g i n a | 1001
Fonte: Métro Saint-Michel 2 (2006, p. 67)
Nesse excerto, identificamos um livro cujo autor é presidente de uma grande
agência publicitária, e esse romance tenta trazer respostas às perguntas que os franceses
se fazem, em um período conturbado. Longe de ser fatalista, o romance propõe as
soluções para curar os franceses de suas fobias. A partir do título, podemos fazer várias
inferências como, por exemplo, de qual sociedade estamos falando? Percebemos que a
violência nas ruas pode aproximar culturas de forma determinante, por se tratar de um
tema comum vivenciado por muitos povos. Logo, aquela imagem de que o país do
“outro” é o lugar ideal por ser tranquilo pode começar a se desfazer a partir da leitura de
um excerto como esse. Ao fazer tal leitura, o aprendiz tem a oportunidade de descobrir
que o costume de ficar conversando com os vizinhos na calçada é o mesmo dos tempos
em que as noites eram seguras. Esse costume não é mais percebido nos dias de hoje,
posto que tal hábito cedeu seu lugar ao medo de quem vive nas cidades, como nas
páginas do romance de Christophe Lambert.
Pela leitura do excerto, percebe-se que, para escapar da violência em suas mais
variadas formas, os comportamentos dos sujeitos parecem ser os mesmos tanto na
cultura do aprendiz, quanto na cultura da língua alvo. O texto mostra que, em tempos
passados, nas cidades do interior da França, as pessoas tinham o costume de esperar a
P á g i n a | 1002
noite chegar para ficarem, nas calçadas, conversando com os vizinhos. Essa prática
também era costume nosso. No entanto, nos dias atuais, as pessoas estão mais reclusas
em suas casas, esperando o jornal das 20h para, no dia seguinte, comentar as notícias
com os vizinhos. Após o jornal, assistem à série que é exibida semanalmente e cujo
episódio também é tema das conversas no dia seguinte. A internet, igualmente, parece
ser responsável pelo isolamento das pessoas. Esse tema está tão próximo de nossa
realidade, que o aprendiz é facilmente conduzido a fazer as suas comparações, baseado
em nossa sociedade, fazendo-se a ressalva de que, no Brasil, a diferença está apenas no
fato de que, depois do jornal, não há uma série semanal, mas uma telenovela que,
segundo muitos estudos sociológicos, é um elemento da cultura e da identidade
brasileira, uma vez que o espectador se identifica com as personagens das telenovelas
que, por essa razão, é um gênero muito popular no Brasil.
Como podemos ver, uma proposta de atividade a partir do TL além de aproximar
os aprendizes da outra cultura, pode mostrar o quanto há de aproximações e como os
problemas vivenciados em uma sociedade também são vivenciados pela outra. Isso
reforça as trocas interculturais, mostrando que o intercultural pode, por certo, ser o
encontro com o outro.
Quanto à proposta de atividade, sugerida no LD Métro Saint-Michel 2, há duas
questões: uma, de interpretação de texto voltada para as causas do isolamento das
pessoas; e, a outra, em que se pede a opinião do aprendiz-leitor quanto ao uso da rede
mundial de computadores. Como sugestão, acrescentaríamos ainda as seguintes
questões: a) Você acredita que existe alguma semelhança entre o comportamento dos
franceses e o dos brasileiros, no que diz respeito ao medo da violência? Para responder a
esse questionamento, o aprendiz precisa descrever ou fazer uma comparação entre os
programas de TV que os brasileiros assistem e também elencar os motivos que tiram as
pessoas das ruas à noite. Assim, consequentemente, terá a oportunidade de se expressar
na língua alvo; b) O uso da internet aproxima ou isola as pessoas?
Sob nossa ótica, essas atividades podem auxiliar no desenvolvimento dos
aprendizes e promover a interação entre eles, tornando o ambiente da sala de aula bem
mais dinâmico. Isso se torna possível porque o grupo tem a oportunidade de se
expressar na língua alvo expondo suas ideias sobre um tema tão atual.
5. Considerações finais
Ainda hoje, parece existir certo tabu ao se usar o texto literário como ferramenta
para o ensino de FLE. Talvez a falta de experiência ou uma escolha inadequada do texto
deixem o professor inseguro ao utilizá-lo em sala de aula.
Embora seja um caminho lúdico para a aprendizagem da língua e da cultura,
confirma-se que propor TL nos LD parece ser uma atividade muito complexa, e por esse
motivo, os autores dos LD ainda parecem negligenciar o uso do TL para o ensino de
FLE, provavelmente, diante do fato de a obra literária demandar competências múltiplas
e leituras variadas, tais como a contextualização da obra, vocabulário para decodificar e
ajudar na construção de um sentido para o texto, além da habilidade do professor para
conduzir a aula.
Referências
P á g i n a | 1003
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P á g i n a | 1005
VARIABILIDADE NA PRONÚNCIA DO INGLÊS BRASILEIRO E EFEITOS
NA INTELIGIBLIDADE
Neide Cesar Cruz (UFCG)
Resumo: Aspectos da pronúncia que caracterizam o protótipo do inglês brasileiro têm
sido apresentados na literatura há décadas, em estudos desenvolvidos por Mascherpe
(1970), Lessa (1985), Lieff e Nunes (1993), Rebello (1997) e Baptista (2001). Esses
aspectos, reconhecidos com sendo previstos, estão agrupados em cinco categorias: (1)
acentuação de palavras; (2) consoantes; (3) vogais; (4) inserção de vogais; e (5)
interferência da grafia. Devido à variabilidade linguística, a previsibilidade desses
aspectos é questionada na presente pesquisa, que apresenta dois objetivos: (1) identificar
aspectos da pronúncia do inglês na fala espontânea de aprendizes brasileiros não
previstos na literatura; e (2) investigar como esses aspectos afetam a inteligibilidade da
fala desses aprendizes para ouvintes britânicos. Dados coletados para um estudo anterior
(CRUZ, 2006) foram revisitados. A coleta de dados para o referido estudo ocorreu com
dois grupos de participantes. O primeiro envolveu 10 aprendizes brasileiros
participantes dos cursos extracurriculares da UFSC, que foram entrevistados. Trinta
amostras contendo aspectos de pronúncia que caracterizam o protótipo do inglês
brasileiro previstos na literatura produzidas pelos aprendizes foram selecionadas e
apresentadas ao segundo grupo de participantes: vinte e cinco ouvintes britânicos não
familiarizados com o falar em inglês dos brasileiros. Os ouvintes foram solicitados a
ouvir cada amostra uma vez e a escrever o que tinham ouvido. A fim de alcançar os
objetivos propostos para a presente pesquisa, as trinta amostras produzidas pelos
aprendizes brasileiros e os dados dos ouvintes foram revisitados. Os resultados revelam
que o protótipo do inglês brasileiro apresenta mais variações do que é sugerido na
literatura, e que os aspectos não previstos podem afetar a inteligibilidade da fala dos
aprendizes brasileiros para ouvintes britânicos.
Palavras-chave: Pronúncia; Aprendizes brasileiros; Inteligibilidade.
1. Introdução
Uma vez que variabilidade é inerente à linguagem humana, é impossível estudar
uma língua sem considerar a variabilidade linguística (REPPEN et al., 2002).
Variabilidade pode ocorrer no nível gramatical, morfológico e fonológico.
Variação no nível fonológico refere-se ao sotaque. Um sotaque estrangeiro é uma
variação na pronúncia de um falante não nativo de uma língua estrangeira. Falantes
brasileiros de inglês, por exemplo, apresentam variação na pronúncia, e essa variação
revela o protótipo do inglês brasileiro ou o sotaque brasileiro.
Características desse sotaque têm sido descritas na literatura há décadas, em
estudos desenvolvidos por Mascherpe (1970), Lessa (1985), Lieff e Nunes (1993),
Rebello (1997) e Baptista (2001). Elas são, portanto, previsíveis.
Em estudo anterior (CRUZ, 2006), essas características previsíveis foram
identificadas na fala espontânea de aprendizes brasileiros de inglês, e os seus efeitos na
inteligibilidade foram investigados. Considerando a variabilidade linguística,
questionamos a previsibilidade dessas características de pronúncia, e decidimos revisitar
os dados dos aprendizes brasileiros do estudo anterior, a fim de identificar
P á g i n a | 1006
características de pronúncia não previstas na literatura e os seus efeitos na
inteligibilidade da pronúncia de aprendizes brasileiros para ouvintes britânicos. Este
estudo, portanto, apresenta dois objetivos: (1) identificar características de pronúncia na
fala espontânea de aprendizes brasileiros de inglês não previstas na literatura 69; e (2)
investigar quais dessas características afetam a inteligibilidade da fala dos aprendizes
brasileiros de inglês para ouvintes britânicos70.
2. Coleta de dados
Como os dados coletados para o estudo anterior foram revisitados, uma
descrição dessa coleta é apresentada aqui.
A coleta ocorreu em duas etapas. Na primeira, dez aprendizes brasileiros de
inglês matriculados nos cursos Extracurriculares da UFSC (Universidade Federal de
Santa Catarina),71 foram entrevistados por um falante nativo da língua inglesa de
origem britânica. O nível de proficiência dos aprendizes variou entre o nível 5
(correspondendo ao intermediário) e o nível 8 (equivalente ao pós intermediário), e as
idades variaram entre 18 e 24 anos. Nenhum deles tinha tido experiência com a língua
inglesa no exterior. Portanto, todo o conhecimento de inglês dos participantes, bem
como a pronúncia dos mesmos, tinha sido adquirido no Brasil.
Trinta amostras contendo características do protótipo do inglês brasileiro, e não
contendo desvios no nível gramatical e lexical, uma vez que inadequações lexicais e
gramaticais também podem interferir na inteligibilidade (TOMYIAMA, 1980; WANG,
1987), foram selecionadas das entrevistas, através de edição no programa Cool Edit. Em
seguida, foram transferidas para um CD áudio, e apresentadas em um aparelho de CD
para o grupo de ouvintes, que participou da segunda etapa da coleta de dados.
A segunda etapa incluiu vinte e cinco ouvintes nativos do inglês, residentes em
Birmingham, Inglaterra, não familiarizados com o falar em inglês dos brasileiros. A
idade dos ouvintes variou entre 20 e 65 anos, sendo 11 do sexo feminino e 14 do sexo
masculino. Nenhum deles tinha profissão relacionada ao ensino de línguas e linguística.
Através de respostas dadas a um questionário, a falta de familiaridade dos ouvintes com
o falar em inglês dos brasileiros foi confirmada, uma vez que brasileiros não foram
incluídos entre os falantes de inglês que todos os ouvintes informaram ter contato.
Portugueses também foram excluídos. Os ouvintes relataram que tinham contato
principalmente com asiáticos e europeus falantes de inglês.
Os nativos ouviram cada amostra uma vez, já que inteligibilidade é considerada
aqui como sendo a primeira impressão, e foram solicitados a: (1) avaliar o grau de
inteligibilidade das amostras em uma escala de 1 a 6, onde 1= impossível de entender e
6 = muito fácil de entender; e (2) escrever as amostras.
69
Este objetivo foi motivado por um questionamento feito durante o debate do Simpósio “Fonética,
Fonologia e ensino de línguas”, realizado no IX CBLA, Rio de Janeiro, 2010, após a apresentação do meu
trabalho intitulado “Inteligibilidade de pronúncia de aprendizes brasileiros de inglês”.
70
A possível razão que justifica a ocorrência das características de pronúncia não é discutida neste estudo.
Meu principal interesse é a identificação dessas características e até onde a ocorrência das mesmas na
pronúncia de aprendizes brasileiros de inglês afeta a inteligibilidade da fala desses aprendizes para
ouvintes britânicos.
71Cursos extracurriculares são cursos livres de línguas oferecidos pela UFSC. Cada nível do curso tem a
duração de um semestre, e inclui três horas de aulas semanais.
P á g i n a | 1007
Para o presente estudo, a fim de responder ao primeiro objetivo, as trinta
amostras selecionadas da fala dos brasileiros foram revisitadas; a fim de responder ao
segundo objetivo, os dados dos ouvintes concernentes a segunda atividade foram
revisitados.
3. Características de pronúncia previstas na literatura
A fim de identificar as características de pronúncia previstas na literatura nas
trinta amostras selecionadas, adotamos como guia os fonemas do inglês que são
considerados difíceis para aprendizes brasileiros produzirem, e os sons que esses
aprendizes pronunciam devido a essas dificuldades. Esses sons são identificados em
cinco estudos: Mascherpe (1970), Lessa (1985), Lieff e Nunes (1993), Rebello (1997), e
Baptista (2001). As características de pronúncia previstas foram agrupadas em cinco
categorias: (1) acentuação de palavras; (2) produção de consoantes; (3) produção de
vogais; (4) inserção de vogal; e (5) interferência da grafia. A seguir, apresentamos um
sumário dessas características.
(1) Acentuação de palavras
 A palavra comfortable tende a ser pronunciada com o acento primário na sílaba ‘-ta’
(LIEFF; NUNES, 1993).
(2) Consoantes

// e // são pronunciados com uma articulação dental (MASCHERPE, 1970).
 A fricativa dental desvozeada // tende a ser produzida como //, // ou //, e a
fricativa dental vozeada // como //, // ou // (MASCHERPE, 1970; LIEFF;
NUNES, 1993; BAPTISTA, 2001).
 As nasais //, // e // podem ser omitidas em posição final de sílaba e de vocábulo,
causando a nasalização da vogal que precede (MASCHERPE, 1970; BAPTISTA,
2001).
(3) Vogais
 As vogais anteriores // e // podem ser pronunciadas como //, e // e // como //
(MASCHERPE, 1970; LIEFF; NUNES, 1993; BAPTISTA, 2001).
 As vogais posteriores // e // tendem a ser pronunciadas como //, e // e //
como // (MASCHERPE, 1970; LIEFF; NUNES, 1993; BAPTISTA, 2001).
 A vogal central // pode ser difícil de pronunciar, especificamente na fala
espontânea (LIEFF; NUNES, 1993).
(4) Inserção de vogal
 A vogal [] tende a ser adicionada em posição final de palavras depois das oclusivas,
das fricativas //, //, // e //, e das africadas // e //. [] ou [] podem ser
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inseridos no início de grupos consonantais com // (MASCHERPE, 1970; LIEFF;
NUNES, 1993; BAPTISTA, 2001).
 Sonorização da fricativa // pode ocorrer no início de grupo consonantal com //
(REBELLO, 1997).
(5) Interferência da grafia
A lateral velar [], quando em final de sílaba ou de palavra, tende a ser substituída pela
semi-vogal [] (MASCHERPE, 1970; LESSA, 1985), ou pela vogal [] (BAPTISTA,
2001).
 A terminação < ed > do passado pode ser pronunciada como [], [] ou como
[] (LESSA, 1985; LIEFF; NUNES, 1993; BAPTISTA, 2001).
4. Características de pronúncia não previstas na literatura e seus efeitos na
inteligibilidade
Entre as 30 amostras selecionadas, 14 contêm características de pronúncia não
previstas na literatura, e foram divididas em dois grupos: (1) características inseridas
nas três das categorias mencionadas na seção anterior, denominadas sistemáticas; e (2)
características que não pertencem a nenhuma das categorias mencionadas, denominadas
não sistemáticas.
Características sistemáticas
As características sistemáticas não previstas são inseridas em 3 categorias: (1)
acentuação de palavras; (2) produção de vogais, especificamente schwa; e (3) inserção
de vogal. Cada uma será apresentada separadamente e seus efeitos na inteligibilidade
descritos.
(1)
Acentuação de palavra
Entre os cinco estudos mencionados anteriormente, apenas o de Lieff e Nunes
(1993), identificam acentuação de palavras. As autoras mostram desvio do acento
primário, que deveria ser produzido na primeira sílaba, como na palavra comfortable, e
tende a ser pronunciado por brasileiros com o acento na sílaba ‘ta’.
Além da ocorrência desse desvio de acentuação previsto, em palavras como
vegetables, interesting e hamburger (CRUZ, 2006), dois outros foram encontrados: (1)
acento na primeira sílaba ao invés da segunda; e (2) acento na primeira ao invés da
terceira sílaba. Exemplos do primeiro caso incluem terrific [ki], e do
segundo university [junivsiti].
Efeito na inteligibilidade
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Ambos terrific [ki]
compreendidos incorrretamente.
e
university
[junivsiti]
foram
Terrific, foi escrito de 7 formas: terrible (3 vezes); stuck (uma vez); stealth (4
vezes); itself (uma vez); terrifying (uma vez); dark (uma vez) e stark (uma vez). Um
total de 12 ouvintes escreveu terrific diferentemente. Duas transcrições ortográficas dos
ouvintes são “in the winter, it’s terrible” e “in the winter it’s dark”.
University, com acento na primeira sílaba ao invés da terceira, foi entendido de 2
maneiras: useless e universe, uma vez cada.
(2) Produção da vogal schwa //
Como mencionado por Lieff e Nunes (1993), aprendizes brasileiros têm
dificuldades em produzir o schwa, especificamente na fala conectada. Essas autoras, no
entanto, não especificam o contexto específico em que essas dificuldades podem
ocorrer. Nas amostras revisitadas, a pronúncia da vogal schwa dos aprendizes
brasileiros está relacionada principalmente à pronúncia de formas fracas de palavras
gramaticais onde fonemas diferentes são produzidos ao invés de //. Exemplos
incluem: (1) a vogal [], em at //, pronunciado como [], e em and //,
produzido como []; (2) a vogal [], nas produções do artigo definido the //,
produzido como []; e (3) a vogal [] em a //, pronunciado como [].
Efeito na inteligibilidade
O único caso identificado como tendo interferido na inteligibilidade ocorreu em
and, que imediatamente segue o vocábulo sit, em “just sit and talk with friends”,
pronunciado com a vogal [] ao invés de schwa. Cinco ouvintes escreveram sitting ao
invés de sit and. Uma vez que a pronúncia inapropriada prevista na literatura da vogal
[] em sit (MASCHERPE, 1970; LIEFF; NUNES, 1993; BAPTISTA, 2001) não causou
incompreensão, esses ouvintes podem ter sido influenciados pela produção da vogal em
and, já que sitting, comparado a sit, tem uma sílaba extra.
(3) Inserção de vogal
A adição da vogal [] em posição final de vocábulo após as oclusivas vozeadas e
desvozeadas, as fricativas //, //, // e //, e as africadas // e // é o único caso
identificado nos estudos realizados por Mascherpe (1970) e Baptista (2001),
mencionados anteriormente.
Nas trinta amostras revisitadas, além da vogal [], prevista na literatura, dois
outros casos foram identificados: (1) a adição de outras duas vogais em posição final de
vocábulo; e (2) uma ocorrência de assimilação, onde a fricativa desvozeada // no grupo
consonantal // em posição inicial de vocábulo é pronunciada como vozeada. Uma das
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vogais inseridas é [], adicionada em posição final de vocábulo após as oclusivas
alveolares // e //. Exemplos incluem great [gi], com inserção de vogal após //,
e food [fu] com a vogal [] adicionada após []. A outra vogal é referida como a
vogal reduzida [], adicionada após a oclusiva velar [] em [wki].
Quanto à ocorrência de assimilação, onde a fricativa desvozeada //, no grupo
consonantal // em posição inicial de vocábulo é pronunciada como vozeada, como
em smallest [st], há uma diferença do que é previsto na literatura. De acordo
com Rebello (1997), como mencionado anteriormente, a sonorização da fricativa // em
início de grupo consonantal // com //, // ou // tende a ocorrer se a vogal é inserida.
Nos dados deste estudo, como também em Rauber (2002) e Cornelian Jr. (2003),
nenhuma vogal é inserida neste grupo consonantal, mas a sonorização da fricativa //
ocorre: smallest [st].
Efeito na inteligibilidade
Incompreensões ocorreram com a inserção de [] em great [gi] e food
[fu], e com a sonorização da fricativa // em smallest [st]. A inserção da
vogal reduzida [] não causou problema de inteligibilidade.
Great, foi escrito como greatest por três ouvintes, e grateful por um ouvinte. A
inserção de schwa é interpretada aqui como tendo influenciado a percepção dos ouvintes
por duas razões: (1) uma sílaba é adicionada a great; e (2) essa sílaba contém schwa:
greatest //, e grateful //. As transcrições ortográficas dos ouvintes
são “our greatest pollution of rivers” e “I’m grateful to”.
Food pronunciado como [fu] foi mal compreendido por dezenove ouvintes:
oito escreveram diferentemente da palavra pretendida pelo aprendiz, e onze deixaram o
espaço em branco. Algumas das transcrições dos ouvintes não têm nenhum sentido:
“you book holiday” e “you took him up all day”.
Smallest, foi escrito das seguintes formas por cinco ouvintes: (1) “I think that
there’s more than through you”; (2) I think it is more of a cattle group”; (3) “I think that
there’s more, there’s cattle”; e (4) “I think it’s the – more in the capital Brazil”.
Reconhecemos a dificuldade em identificar as palavras que foram escritas em
lugar de smallest. No entanto, uma comparação entre as transcrições fonéticas de “the
smallest” e das palavras “there’s more” nas transcrições (1) e (3) sugere uma provável
interpretação. As transcrições são as seguintes:
“the smallest” []
“there’s more”
//
Considerando as sequências de sons em negrito em the smallest e aquelas na
transcrição dos ouvintes, dois aspectos são identificados: (1) sons semelhantes, tais
como [] estão na mesma ordem; e (2) a fricativa vozeada [] ocorre em ambas as
transcrições. Os ouvintes, portanto, podem ter ouvido essa fricativa, e,
consequentemente, escreveram as sequências de palavras que fizeram sentido para eles.
Quanto à (4), o ouvinte escreveu “it’s the – more”, um traço escrito entre the e more.
Uma vez que more pode ser considerado como correspondendo aos sons [] de
smallest, esse traço pode provavelmente indicar a dificuldade do ouvinte em entender a
fricativa vozeada. Em (2), o ouvinte escreveu it is more; a única interpretação possível é
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que, assim como em (4), more pode também ser considerado como correspondendo aos
sons [] de smallest, indicando a dificuldade do ouvinte em entender a fricativa
vozeada.
Características não sistemáticas
As características não sistemáticas são agrupadas em duas categorias: (1) o
vocábulo culture; e (2) sinal de hesitação. As categorias e seus efeitos na inteligibilidade
são descritos separadamente.
(1) O vocábulo culture
Entre as 14 amostras contendo características de pronúncia não previstas na
literatura, quatro contêm o vocábulo culture, pronunciado por quarto participantes
diferentes das seguintes formas:
(1) [kjutS];
(2) [ju]
(3) [kjut]
(4) [jut]
Uma semelhança na pronúncia da primeira sílaba cul pode ser identificada nas
quatro produções: a pronúncia de [] ao invés de / /. Esse tipo de pronúncia pode
sugerir que houve interferência da grafia, isto é, as letras < ul > sendo pronunciadas
como []. No entanto, a ocorrência nos dados do vocábulo agriculture, em que as
letras < ul > são pronunciadas como [], [a], pode ser considerada
como uma ocorrência que não valida a inclusão de [] como sendo interferência da
grafia. A inclusão em uma categoria da forma como o vocábulo culture foi pronunciado
é, portanto, difícil de ocorrer.
Efeito na inteligibilidade
Nenhum dos ouvintes foi capaz de compreender culture corretamente. A maioria
ficou surpresa quando foi informada que o vocábulo era culture, e reconheceu a
dificuldade em compreendê-lo.
Culture, na amostra “I say sometimes that I don’t have culture”, foi escrito de
três formas diferentes: (1) future por 19 ouvintes; (2) children por três; e (3) chew por
um ouvinte. Dois ouvintes deixaram o espaço em branco. Quatro exemplos de
transcrições incluem: (1) “I think sometimes that I don’t have a future”; (2) “I say
sometimes I don’t have a future”; (3) “It seems sometimes I don’t like children”; e (4) “I
think sometimes I don’t like to chew”.
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Na amostra “we learn about the other culture” culture foi escrito de oito formas
distintas. Um total de nove ouvintes escreveu o vocábulo children, em transcrições tais
como “we learn about the other children”. Oito deixaram o espaço em branco, e os oito
restantes escreveram uma palavra diferente. Quatro delas - catering, tutor, tutoring e
countries – fazem parte do léxico do inglês. Dois exemplos incluem: (1) “we learn
about the other countries and now”; e (2) “we learn about the order of catering and
now”.
As quatro restantes – cutarian, cuterin, ater terain, e cuter – não existem no
léxico da língua inglesa. Quando solicitados a explicar o significado dessas palavras, os
ouvintes não souberam explicar e informaram que escreveram o que tinham ouvido.
Na amostra “it’s not bringing a lot of culture to people”, dez ouvintes deixaram o
espaço em branco. Os quinze restantes escreveram palavras diferentes: (1) cute port três
ouvintes, como em “it’s not really a lot of cute people”; (2) future, queues e kill por dois
ouvintes cada, como em “it’s not a law to kill people”; e (3) cue, children, clear, cuta e
cutar por um ouvinte cada. As duas últimas palavras não fazem parte do léxico da língua
inglesa, e as transcrições, como em “bring a lot of cuta to people”, não fazem sentido.
Finalmente, na amostra “Na Itália a cultura romana” onze ouvintes deixaram o
espaço em branco. Os quatorze restantes escreveram palavras diferentes: (1) queue,
como em “In Italy the Roman queue to …”; e (2) use them, queued, came, kill me, like
you, cuter, children, queues, kill them, e queu (não existentes). Dois exemplos incluem:
(1) “In Italy they run like you”; e (2) “In Italy the women are cuter”.
É possível perceber que as formas como os aprendizes brasileiros participantes
pronunciaram o vocábulo culture fizeram tal vocábulo ininteligível para todos os
ouvintes.
(2) Sinal de hesitação
O sinal de hesitação identificado referre-se à eh72, pronunciado por quarto
participantes diferentes. Esse sinal foi percebido e interpretado como sendo semelhante
à hesitação em português produzida por falantes brasileiros em interações. Isso pode ser
confirmado através de dados de fala espontânea envolvendo brasileiros apresentados em
Marcuschi (1986).
Transcrições de fala espontânea autêntica de falantes de inglês de partes
diferentes da Grã Bretanha apresentadas em Cauldwell (2002), incluem er, erm, e em
como sinais de hesitação. O eh pronunciado por aprendizes brasileiros, e que foi
percebido como sendo semelhante ao sinal de hesitação do português, é transcrito
foneticamente como [], e como []. Tais tipos de pronúncia são claramente
diferentes de er, erm em identificadas em Cauldwell (2002); er sendo a única
apresentada em transcrições que seguem RP e GA: [], sendo referente ao RP, e [],
ao GA. Apesar desse sinal de hesitação ser uma característica de fala espontânea, é
discutido e incluído aqui com uma característica de pronúncia não prevista, uma vez que
diverge da norma usada como referência aqui, RP e GA, e é um fator indicado em
inteligibilidade.
72
A transcrição ortográfica eh segue as notações sugeridas por Marcuschi (1986).
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Efeito na inteligibilidade
Na amostra “meat eh fish vegetables”, o sinal de hesitação eh não foi transcrito
por nenhum ouvinte. No entanto, uma vez que esse sinal segue imediatamente o
vocábulo meat, já que nenhuma pausa é identificada entre eh e meat, e tal palavra foi
escrita diferentemente por 16 ouvintes, [] provavelmente interferiu a percepção dos
mesmos. Isso pode ser corroborado pelo comentário feito pelo ouvinte 23, a seguir: “I
didn’t really understand meat as such. I didn’t. but then he said fish. and then I
thought … oh, he must have said meat first, because I linked, because it sounded like a
list erm and then he said vegetables, so the meat part wasn’t very clear. that word
wasn’t very clear. but I guessed. and it sounded it was an i sound”
Esse ouvinte explica que realmente não entendeu meat, e que meat não foi muito
claro, mas ela percebeu o som [i]. Uma vez que esse som foi percebido em meat, é
possível inferior que a pronúncia do sinal de hesitação serviu como um obstáculo para
essa ouvinte reconhecer meat corretamente.
Na amostra “eh we don’t have time to read”, o sinal de hesitação pronunciado
como [] foi escrito como and por seis ouvintes, e como ah por dois. Duas das
transcrições ortográficas são “and we don’t have time to read” e “ah we don’t have time
to read”. O sinal [], portanto, foi escrito tanto como and quanto como ah.
5. Considerações finais
Os resultados deste estudo revelam que o protótipo do sotaque brasileiro
apresenta mais variabilidade do que tem sido sugerido na literatura, e que os aspectos de
pronúncia não previstos que caracterizam essa variabilidade podem afetar a
inteligibilidade da pronúncia de aprendizes brasileiros de inglês para ouvintes
britânicos. Esses aspectos de pronúncia não previstos são denominados aqui como
sistemáticos e não sistemáticos. Os sistemáticos incluem: (1) acentuação de palavras na
primeira sílaba ao invés da segunda e da terceira; (2) ausência de schwa // em formas
fracas de palavras gramaticais; e (3) vogais [] e [] inseridas em posição final de
vocábulos e sonorização da fricativa // no grupo consonantal //. As características
não sistemáticas compreendem: (1) a pronúncia do vocábulo culture; e (2) a pronúncia
de sinais de hesitação. Com base nos resultados encontrados neste estudo, sugerimos
que as características não previstas devem ser focalizadas no ensino da pronúncia do
inglês para brasileiros, já que elas podem interferir na inteligibilidade.
Este estudo apresenta limitações quanto ao tipo de características de pronúncia
investigadas. Devido ao tipo de dados elicitados, fala espontânea ao invés de leitura em
voz alta, foi impossível selecionar das entrevistas um maior número de amostras sem
conter inadequações gramaticais e lexicais (ver coleta de dados), e obter dados que
poderiam revelar outros tipos de características não previstas. Sugerimos que outros
estudos incluindo dados de fala de aprendizes brasileiros podem auxiliar a caracterizar
aspectos do protótipo do inglês brasileiro que não foram revelados na literatura até o
momento.
O presente estudo também é limitado quanto ao tipo de ouvintes participantes:
britânicos, não familiarizados com a forma que brasileiros pronunciam vocábulos em
inglês. Devido a essa limitação, sugerimos que outros estudos envolvendo ouvintes
P á g i n a | 1014
diferentes podem revelar se as características de pronúncia não previstas na literatura
que foram mal compreendidas neste estudo podem ser ininteligíveis para outros grupos
de ouvintes.
Referências
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