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#05 | setembro 2014 distribuição on-line gratuita Luca Argel 5 Fabrício Corsaletti 21 Julianna Motter 10 Déa Paulino 27 Barbara Mastrobuono 15 Tao Lin em tradução de Bruna Beber 31 Editorial 3 Créditos e contato 64 Daniel Francoy 41 Vanessa Rodrigues 45 Julio Perestrelo 53 d as esperas e intervalos da vida. Gestamos essa edição por um tempo maior que as filhas anteriores, nossas desculpas. Mas é que a Parênteses é feita por amigos nos intervalos da vida (que é quando a vida acontece de verdade). E como bravos amadores tivemos de fazer um alongamento, sarar alguma lesão, revisar o trajeto. Foi um tempo bem aproveitado. E aqui estamos, apaixonados amadores, tênis calçados, felizes por correr mais um trecho. Sem muito barulho, a revista completou, esses dias atrás, um ano. Seguimos aprendendo a editar, conhecendo amigos e admirando belezas pelo caminho. É verdade que por aí a coisa anda brava, mas não percamos a ternura jamás. Sigamos semeando gentilezas. Vai ver é porque estamos meio sentimentais, mas olhando bem parênteses são palavras entre abraços. Obrigado. os editores Teoria dos afectos Gosto muito mais dos supermercados desde que dei- É preciso procurar sempre os produtos mais novos, os que vão xei a casa dos meus pais. Lembro da minha mãe dizendo que durar mais. Quando chegávamos em casa, meu pai também ar- eles sempre colocam os produtos que estão quase vencendo na rumava as compras assim. As comidas recém compradas iam frente, e os mais novos atrás. Sempre achei que essa era uma para o fundo do armário, e tudo o que já estava lá dentro há verdade universal: “Todo supermercado tem a política de guar- mais tempo vinha para a frente. Durante um período na mi- dar os produtos mais novos no fundo, e deixar sempre os mais nha infância eu cheguei a desconfiar que meus pais haviam se velhos na frente, para as pessoas pegarem.” Mas nem sempre conhecido num supermercado. Um dia ela estava procurando isso é verdade. Hoje, por exemplo, as ervilhas do fundo da prate- os palmitos mais novos, e ele no corredor de trás, procurando a leira tinham exatamente a mesma data de validade das que es- maionese mais nova, e quando chegam ao fundo da prateleira, tavam na frente. Geralmente na seção de alimentos enlatados a prateleira não tinha fundo, e eles dão de cara um com o outro. essa regra não se aplica. Na de pães sim. Na de pães é infalível. Luca Argel 5 Não se trata de uma gripe mal-curada (para uma canção de Gyorgy Kurtág) o que você está sentindo agora é só o pico de uma febre constante e quando eu digo constante eu quero dizer que não se trata de uma gripe mal-curada que não se trata sequer de uma enfermidade o que você está sentindo agora é só a outra metade (o verso da folha, se quiser) do contrato que assim como a vigília das abelhas operárias no inverno ninguém vê e assim como o cometa halley talvez passe uma vida inteira sem ver Jean Jacques (5 anos) tenta voar e se enforca na corda da cortina Alain disse que não odeia a vida Alain disse que odeia o que há dentro da vida Eu olho para você sentada no colchão lendo um manual de urinoterapia e penso que Quando Alain disse isso ele só podia estar pensando Na vinheta de algum programa de televisão de domingo Ou comendo guarda-chuvinhas de chocolate antes deles terem ganhado a forma de guarda-chuvinhas. 6 Brinquedos (para uma foto de Antanas Sutkus) “você tem estudado mais sobre a quantidade de objetos que consegue carregar ao mesmo tempo, hoje estamos com sorte vamos, arranje um barbante e uma moeda e teremos um novo recorde se você me acomodasse em qualquer um desses degraus e fosse parafuso, ramo de urtigas eu ainda me recuso a comer o que você tem comido ou o que quer que você venha me oferecer, de qualquer um desses degraus, mesmo o mais estreito, você sabe que eu sequer me esforçaria para mantê-la no meu campo de visão hoje estamos com sorte, calendários velhos, uma rodela de chouriço, lápis muito pequenos por terem sido afiados muitas vezes” 7 Falso monólogo de Nileu, que dizia ser filho do Nilo, da embocadura de sete braços, e que no escudo fizera até cinzelar sete canais, parte em prata, parte em ouro (para um poema de Ovídio) Dormir em pé é o de menos. O maior problema é a boca aberta, por onde já entrou todo tipo de porcarias que cinco milênios são capazes de imaginar. Claro, há também esta pose ridícula, e a tonalidade mineral que em nada valoriza as minhas antigas feições. Se ao menos eu não tivesse sido interrompido na metade da frase (ou se ao menos alguém aqui tivesse tido a preocupação de escrever uma tabela informativa ao pé de mim) a humanidade poderia tirar uma lição também da minha história: “Meninos, sempre que vocês resolverem passar a eternidade brincando de estátua Luca Argel (1988) nasceu entre o macaco rhesus empalhado e a coleção de salamandras no Rio de Janeiro. É forma- de um museu de província que ninguém mais visita, do em música pela UNIRIO. tenham pelo menos a sabedoria de escolher uma posição confortável.” Em 2012 publicou o livro de poemas esqueci de fixar o grafite (7letras), e em 2014 o Livro de Reclamações (Escalpo de Mársias). Vive e trabalha em Portugal atualmente, onde está cursando um mestrado em Literatura pela Universidade do Porto. 8 Julianna Motter III. a vida nada mais é que ir do parto à partida 10 II. e depois de tudo do nascer do sol do teu corpo se pondo sobre o meu da tua presença nascendo em mim dos teus olhos tua língua e tuas palavras afiadas sonolentos em meus braços e depois do nada e depois de tudo quando além do vinho das uvas da água dos dias das horas da pressa do amor do amor sem fim do amor sem fundo das flores depois das pétalas do amor sem trégua dos minutos das tardes da praia quando nos restar nada mais que uma estrada dos brotos dos beijos dos surtos e uma bifurcação desejar tuas mãos teus joelhos teus lábios e depois de tudo teus erros teus acertos acertar teus ponteiros dos abraços das transas dos transes dos cheques desejar teus buracos das contas dos filhos me enfiar em teus descaminhos te desejar de novo desejar teus furos e tuas falhas depois de tudo desejar teu começo teu meio teu fim tuas sobras e desejar que volte tuas beiras e tuas beiradas quando ainda estiver indo quando perceber que todo buraco que é fundo é findo desejar acima de tudo que a tua ausência não seja aquilo que me falta 11 V. desejar teus dedos teus dados te calcular e encontrar um número uma unidade um erro ignorar o erro e ainda por cima te somar comigo e te multiplicar em mim elevada ao infinito ignorar a esgotabilidade do tempo desejar tuas horas e cada um dos teus dias desejar teus filhos teus acertos teus próprios erros teus lábios tuas coxas teus óvulos desejar teu futuro e te conjugar como fôssemos sempre nós te amarrar bem forte comigo não te soltar nunca ao menos desejar que não te pedir que fique e um dia IX. quem sabe em brasília, apesar de tudo nem ciclo-vias te assistir ir embora já que não enxergavas e desejar mais nada nada 12 VII. a saudade se derramou no meio da noite caindo da cama escorrendo pelo piso do quarto a saudade veio e me mordeu onde você um dia me apertava a saudade me pegou pela cintura e disse: sinto muito mas por você não sinto mais nada Julianna Motter tem 22 anos, é graduanda em Filosofia pela Universidade de Brasília e Jornalismo pelo Centro Universitário de Brasília. É blogueira desde 2007. Em maio de 2014 lançou seu primeiro livro, De carne e concreto, do gênero poesia, pela Editora Patuá. Participa do coletivo de poetas Exestranhos, mas não tem certeza se é mesmo poeta ou se na hora de pegar um desvio, foi parar na linha certa. 13 Barbara Mastrobuono Fragmentos De não querer sair do carro Não estou com vontade de sair do carro. Posso criar meu universo aqui. A escola será em baixo do banco de passageiros, e o banco será no porta-luvas. As luvas serão dentro do rádio, e a noite vai entrar pelo teto solar, arrancar a minha pele e o vento dos meus olhos, e me engolir total e completamente, seus dentes estrelados se tornando o meu eterno coração. 15 De ver uma pessoa conhecida no metrô De sonhar com a Rússia e um homem rindo de mim Acho que vi um rosto conhecido e Sonhei que estava na Rússia com estava sentada diretamente em cima do acho que o rosto me viu. Passado passado V. e C. Por alguma razão fomos passar a banco, sem a proteção de uma cadeirinha bem me quer ou mal me quer? Não con- noite em uma casa de família, com mãe, de crianças. Peguei-a no colo e a deitei so- sigo expressar meus poemas de jardim avô e vários filhos meninos. Havia uma bre os meus joelhos durante a viagem. De de infância na gramática nova. mulher que não falava nada, mas me se- repente estávamos no campo, em uma guia, repreendendo tudo que eu fazia. V. estrada de terra. Paramos ao lado de uma e C. precisavam se desculpar por mim. pequena colina coberta de grama verde Tudo que eu fazia era errado. Fomos dor- e descemos. O dia estava lindo. Ao me mir em um sofá em uma sala junto com despedir do homem, agradeci sua ajuda todos os outros. e dei-lhe uma sugestão: que comprasse Eu estava em frente a um velho e feio uma cadeira de bebê para a menina, que teatro, ainda era na Rússia, mas parecia ela realmente não deveria estar andan- São Paulo. De repente surgiram homens do sem proteção. O homem arregalou os armados, e todos saíram correndo. Tenho olhos e riu de mim: “Você achou que era a impressão que era um atentado contra uma bebê de verdade? É uma boneca!”. um tipo de pessoa específica, e eu como Continuou rindo de mim. Olhei para o mulher corria perigo. Corri pela lateral banco de trás, e, de fato, era uma boneca. do prédio (que parecia um dos prédios do Senti a vergonha ocupando o meu peito, centro de São Paulo – como a São Fran- e o homem continuou rindo de mim. cisco) e na parte de trás eu e uma mulher conseguimos entrar no carro de um homem de meia idade e pedir para ele nos tirar de lá. Ele nos ajudou, e nos levou para o campo. Ela sentou na frente, e eu sentei no banco de trás. Quando sentei, vi que havia uma bebê ao meu lado, mas ela 16 De olhar para os dois lados ao atravessar a rua Quando A. se encontrou no mo- mento presente da vida, viu que todo rumo e resolução haviam abandonado o seu corpo – vazia, vazia, ela se orgulhava de ter escondido a sua humanidade em um toca-discos portátil que guardava no céu da boca. Quando a solidão lhe batia à porta, ela tocava Simon e Garfunkel no mais alto volume para não ouvir as batidas. Toc toc toc Toc toc toc Às vezes confundia o som da batida de seu coração com o som da solidão batendo. Toc toc toc Toc toc toc Aumentava o volume e fingia não ouvir. Como A. sempre andava com dois homens cantando alto em sua cabeça e não ouvia nada ao seu redor, se viu um dia atropelada, atropeladíssima, por um ônibus de quatro rodas e um andar. A., ele havia buzinado, mas você não conseguiu ouvir! E no fim não importa o volume da música que ouvia, se ao menos tivesse olhado para os dois lados antes de atravessar a rua, nada disso teria acontecido. 17 De cansar de ser B. cansou e quis sair da cidade. “Cansei de ser gato pingado” disse. “Agora quero ser gato transado.” Pegou seus óculos escuros e jaqueta de couro e foi ser transada longe de São Paulo. Fumou cigarros Camel e contou aos pássaros a diferença entre Jack Kerouac e Allan Guinsberg. É difícil ser transada quando não tem ninguém por perto para te ver transeando. Tentou pegar carona de volta para a cidade, mas na hora ficou com medo e comprou uma passagem de ônibus. Em São Paulo, guardou a jaqueta de couro no armário e os óculos escuros na gaveta. “Cansei de ser gato transado” disse. “Agora quero mesmo é ser gato pardo.” Com isso, vestiu seu suéter de gola rulê preto e suas calças pretas. Queria sair de casa para rodar uns becos, mas na hora ficou com medo e em vez disso foi deitar. “Cansei de ser gato pardo.” E então, silêncio. 18 De uma noite na praia Deitamos sob as estrelas. Milhões de rasguinhos no tecido do céu, deixando entrar a luz do que quer que esteja por fora desse universo. Na escuridão, quanto mais você olha para as estrelas, mais consegue ver suas profundidades, que algumas estão à frente e algumas estão atrás. Elas se tornam reluzentes e, (“pai, achei mais uma” grita uma menina agora da praia) como se mergulhadas em formol, ondulam perante a minha visão. Fico triste quando percebo que além dessas há milhões de estrelas que eu não estou enxergando. A areia mancha a minha perna e fico feliz que logo estarei vendo esse céu de vários lugares diferentes pelo Brasil. As estrelas serão as mesmas, mas não serão as mesmas, e eu já terei morrido e uma nova eu, alimentada por todas essas experiências, engordada, sua barriga saliente de vida, consciência escorrendo de sua boca aberta, estará no meu lugar. Agora estou faminta, esquelética, meus braços e pernas enfraquecidos de tanto sentar, meus olhos cegados pela luminosidade de meu computador, minha barriga seca, seca, curvando para dentro, exibindo fileiras de costelas que como uma mandíbula dentada esperam algo para destroçar e guardar em si. Tenho fome, tenho tanta fome, mas meu coma induzido faz com que ela emudeça, mantenha-se registrada no fundo de minha mente, abafando meus sentidos e minhas necessidades e meu eu. As estrelas desceram pelas minhas veias como se inseridas por um cateter, entraram nos meus olhos rasgados e me alimentaram. Senti o gosto metálico de seus gases, e percebi como éramos gigantes, deitados, observando calmamente o espetáculo violento que é o autoconsumo dessas bolas, pegando fogo, sozinhas na escuridão e no silencio do espaço. Embora no vácuo não se ouça ruídos, ouvi seus gritos por socorro e por piedade ecoando nos túneis de meus ouvidos, milhões e milhões de corpos queimando e morrendo sozinhos, sozinhos, como eu o farei um dia. Éramos quatro, deitados, assistindo esses cadáveres em formação, comentando daqueles que caiam, fazendo desejos, e nos mantendo impassíveis perante sua lenta, lenta, lentíssima aniquilação. Barbara Wagner Mastrobuono é formada em Russo e Português pela Universidade de São Paulo. Trabalha como assistente editorial na Cosac Naify. 19 Fabrício Corsaletti Vizinha é uma senhora simpática sem netos sem cachorro sem queixas contra o horário de retirada do lixo a data da dedetização sou fã dos seus sapatos classudos sabe-se que matou a amante não conversa sobre o tempo das luvas brancas no inverno do ex-marido no elevador dos guarda-chuvas exóticos alguns anos atrás anda a pé dizem que nos fins de semana tem um único amigo no prédio é claustrofóbica traz garotos de programa às vezes sobe de escada para casa não reclama do trânsito infelizmente não sou eu 21 Lígia e os idiotas naquela época eu vivia cercado de idiotas para onde olhasse enxergava idiotas no espelho flagrava um perfeito idiota a multidão do colégio era um desfile de idiotas Lígia não era idiota nunca fui seu amigo porque acabei me aproximando de idiotas e fiquei mais idiota e Lígia não gostava de idiotas hoje sei que existem muitas Lígias no mundo mas sei também que existem idiotas e por mais que eu tente me dizer que essas coisas andam juntas que dentro de cada um existe uma Lígia e um idiota aprendi que é preciso ficar perto de Lígia e longe dos idiotas 22 Pleno agosto meus óculos de sol minha cara de lua — tem gente que tem uma máscara tem gente que tem duas minha avó usava blush por cima da verruga eu tive uma namorada que tirava a roupa e não ficava nua o bigode cresce ao contrário da peruca minha amiga Beth Vargas a poesia impede a vida só gosta de carne crua de virar literatura o mal nasce com a pessoa ou se aprende na rua o mal nasce com a pessoa a bondade custa — meus óculos de sol guardados e minha cara de chuva 23 Aventura quem não tem uma chaleira ovos na geladeira e um único dia verdadeiro diante de seus olhos? quem não usa um lençol como cortina? quem não prega um haicai de Bashô na parede? quem não ama cada ruga de seu rosto? quem não escreve um poema porque viu demais ou para ver? quem depois de ter visto não anda pela casa com uma caneca cheia de fumaça? 24 Feliz com as minhas orelhas como sou feliz com as minhas orelhas saber que depois de tudo elas não me abandonaram não me maltrataram não me julgaram mal pelo contrário me esperaram esse tempo todo de braços abertos e nunca botaram outro malandro Fabrício Corsaletti nasceu em no meu lugar com as minhas orelhas Foto: Renato Parada. como sou feliz 1978 e publicou mais de dez livros, entre eles Esquimó (Companhia das Letras, 2010), que recebeu o prêmio Bravo!. É colunista da revista sãopaulo, do jornal Folha de S.Paulo. 25 dar a cara a tapa fugir do mapa e tatear com passos firmes o mundo que desaba sob meus pés Déa Paulino “não alimente os animais mortos” diz o aviso cravado sobre o sonho que agoniza rente ao muro da razão 27 Decúbito dorsal não há asfalto quente que queime os calos nos pés descalços da alegre menina morta ser marítima à deriva desconhecer grandezas oceânicas sob o peso do céu aberto ser vítima da própria seca acometida pela falta de doçura ser tão 28 penso que nossos três pontos reticentes um dia colocarão os pingos nos is Sou bailarina, coreografo [entre]linhas em publicações digitais há mais de dez anos e guardo em mim a visão dos corpos de baile dispostos nas estantes de inúmeras visitas a bibliotecas públicas nas quais ensaiei os primeiros elevés, que traziam os livros para o alcance das minhas mãos. Alguns dos meus textos em prosa foram publicados em antologias impressas. Retiro das coxias os poemas que pretendo abandonar no palco, para que finalmente deixem de ser meus. 29 tradução de Bruna Beber Tao Lin 31 hoje é terça; me escreva sábado o segredo da vida é saber escolher e para descrevê-lo eu escolho a distância e vou de encontro a ela agora estou realmente sozinho daqui percebo que um hamster é uma embreagem solitária que meus poemas existem para dissipar fúrias irracionais que eu quero segurar a sua cara com a minha cara como mãos o segredo da vida é que eu sinto a sua falta, e isso resume a vida hoje meu coração está sereno e fúlgido como uma estrela-do-mar digo tudo isso à distância, depois fujo today is tuesday; email me on saturday the secret of life is decisiveness and to describe something i see the distance and move immediately into it now i am really alone from here i know these things: that a hamster is a lonely fist that my poems exist to dispel irrational angers, that i want to hold your face with my face like a hand the secret of life is that i miss you, and this describes life tonight my heart feels shiny and calm as a soft wet star i describe it from a distance, then move quickly away 32 eu vou aprender a amar e vou te ensinar e nós vamos conseguir de muito longe eu não posso ser visto e acho que isso difere completamente de me sentir pequeno; o bom das crianças é que elas são afirmativas e olham bem na sua cara com uma expressão de ‘você é incapaz de fazer o mesmo pelas pessoas que ama’, eu sinto o universo se expandindo i will learn how to love a person and then i will teach you and then we will know seen from a great enough distance i cannot be seen i feel this as an extremely distinct sensation of feeling like shit; the effect of small children is that they use declarative sentences and then look at your face e parece que ninguém está se esforçando o bastante with an expression that says, ‘you will never do enough a consequência disso é uma sensação de vazio extremo for the people you love’; i can feel the universe expanding de ser a única pessoa viva no mundo; estou sozinho and it feels like no one is trying hard enough faz tempo e vai demorar muito até alguém consega mudar isso the effect of this is an extremely shitty sensation of being the only person alive; i have been alone for a very long time o bom de estar sozinho durante muito tempo it will take an extreme person to make me feel less alone é que tenho lido e pensado bastante sobre the effect of being alone for a very long time vida, morte solidão, pessoas, coletividade, e amor; temo apenas a lentidão desse aprendizado; eu posso sentir o universo se expandindo is that i have been thinking very hard and learning about existence, mortality loneliness, people, society, and love; i am afraid that I am not learning fast enough; i can feel the universe expanding 33 e parece que ninguém nunca se esforçou o bastante; quando chorei na porta da sua casa tive uma sensação que difere completamente de “eu sou a única pessoa and it feels like no one has ever tried hard enough; when i cried in your room it was the effect of an extremely distinct sensation that ‘i am the only person alive,’ ‘i have not learned enough,’ and i can feel the universe expanding and making things be further apart viva’, ‘eu não aprendi quase nada’, e ‘eu posso sentir o universo and it feels like a declarative sentence se expandindo e separando tudo whose message is that we must try harder’ e isso parece afirmar que devemos nos esforçar mais’ 34 poema de onze páginas, página cinco minhas situações favoritas incluem ‘pessoas que falam & fazem’ ‘pessoas pensando, de fato,’ e ‘pessoas chorando sozinhas na cama’ eu não sei consertar um discman sem apelar pra filosofia sou incapaz de me mover tão rápido como nos filmes de ninja os grandes sentimentos de realização um dia se tornam insignificantes sentimentos de dependência; eu fui embora de todas as casas que você morou esperando encontrar você no ponto de ônibus eleven page poem, page five my favorite situations include ‘people doing what the say’ ‘people thinking factually,’ and ‘people crying alone in bed’ i don`t know how to fix this mini-disc player without a meaningful philosophy of life i feel severely unable to move as fast as they do in martial art movies strong feelings of achievement later become barely perceptible feelings of immense helplessness; I moved my body outside your house past seven other houses to meet you at the bus stop 35 poema de onze páginas, página três minhas emoções favoritas incluem ‘calma momentânea em tempo firme’ e ‘eu sou a única pessoa viva no mundo’ com alguma certeza me sinto desesperadamente sozinho e louco mas tenho passado longe da insignificância, muito além do sentido para algo maior, que afirme a vida, e seja potencialmente vendável tenho canalizado toda a minha fúria para construir e sustentar ‘minha indignação’ eu peguei um copo médio de café e usei de um jeito convencional porque eu sou convencional em todas as situações, volto já eleven page poem, page three my favorite emotions include ‘brief calmness in good weather’ and ‘i am the only person alive’ without constant reassurance i feel terribly lonely and insane i have moved beyond meaninglessness, far beyond meaninglessness to something positive, life-affirming, and potentially best-selling i have channeled most of my anger into creating and sustaining an ‘angry face’ i have picked up a medium-size glass of coffee and used in the conventional way because i’m conventional in all situations, i’ll be right back 36 that was bad; I shouldn’t have done that to prevent you from entering a catatonic state i am going to maintain a calm facial expression with crinkly eyes and an overall friendly demeanor vacilei, foi mal para impedir que você fique catatônica eu vou manter uma expressão serena i believe in a human that is not upset i believe if you are working I should not be insane or upset – why am i ever insane or upset and not working? i vacuumed the entire house this morning i cleaned the kitchen and the computer room and i made you a meat helmet with computer paper os olhos abatidos mas uma aparência amigável the opportunity for change exists in each moment, all moments are eu acredito nas pessoas que não são tristes alone eu sei que quando você está trabalhando eu não devo brincar and separate from other moments, and there are limited number of ou ficar triste – por que estou sempre brincando ou triste ou sem fazer nada? moments and the idea of change is a delusion of positive or negative thinking your hands are covering your face hoje de manhã eu aspirei a casa inteira and your body moves like a statue limpei a cozinha, o quartinho do computador when i try to manipulate an appendage e fiz um capacete com o papel da impressora pra você if i could just get you cry tears of joy one more time a chance de mudar existe em cada momento, todos os momentos são únicos e separados uns dos outros, e há um número limitado de momentos e a ideia de mudança é uma ilusão que varia de acordo com o pensamento quando simulo um golpe de karatê você cobre o rosto com as mãos e fica parecendo uma estátua ah se eu pudesse fazer você chorar de alegria novamente 37 tudo bem? are you ok? eu não acho que dizer ‘não fique triste’ sirva de consolo i don’t think telling someone ‘don’t feel sad’ will console them você deve fazer o que pode para melhorar a situação you need to do whatever you can to make them feel better whenever your actions make them feel sad mesmo que suas ações provem o contrário and not stop until they feel better e não desista até conseguir read my text message and think about it leia meu sms e pense um pouco você nunca foi muito feliz comigo embora eu te faça rir you just never seem happy with me anymore even if I make you laugh i think the damage I’ve done has become irreversible i’m surrounded by endless shit eu sei que a cagada é irreversível i can’t move estou ilhado em merda where are you não consigo me mexer cadê você eu sonhei que ia pra NY sem avisar e pegava i just had a dream where I came to nyc but I didn’t tell you and I took the subway to your apartment and waited for your roommate to come out so I could sneak in o metrô then I went into your room and crawled under your sheets from the pro seu apartamento e esperava seu roommate sair end of your bed pra eu entrar então eu ia pro seu quarto e entrava embaixo dos lençóis e ia me arrastando até em cima and crawled to your face and kissed you then pet and hugged you and we fell asleep happy birthday i drew you an ugly fish comic e te cheirava e te apertava e te beijava e te abraçava forte will you visit me today e nós dormimos i want to hold you feliz aniversário desenhei um peixe feioso pra você and kiss your face i miss walking with you at night você vai me visitar hoje? eu quero te abraçar e te beijar eu sinto falta de andar com você por aí 38 Bruna Beber nasceu em 1984, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro, e vive em Tao Lin nasceu na Virginia (EUA) em 1982, filho de pais taiwaneses. É poe- São Paulo desde 2007. Estreou em livro com a fila sem fim dos demônios des- ta e romancista. É autor dos livros de poemas you are a little bit happier contentes (7Letras, 2006), e também é autora de balés (Língua Geral, 2009), than i am (2006) e cognitive-behavioral therapy (2008). Da novela Eeeee rapapés & apupos (7Letras, 2012) e Rua da Padaria (Record, 2013). Seus poemas Eee Eeee e do livro de narrativas curtas bed, ambos de 2007. É autor de três já foram publicados em antologias e sites na Alemanha, Argentina, Espanha, romances Shoplifting from American Apparel (2009), Richard Yates (2010) Itália, México e Portugal. e Taipei (2013). Criou a Muumuu House, editora independente localizada em Manhattan (NY), e publica poetas e prosadores iniciantes. Para mais: www. taolin.info 39 Daniel Francoy o ano passado “O que sucede não tem explicação. A colina estava desabitada.” -Bioy Casares, A Invenção de Morel Não é queda, apenas é uma casa que percorro arquejar dentro da chuva uma lenta deriva a que chamo cômodo a cômodo. e tudo vindo ao mesmo tempo: permanecer. O meu rosto A cozinha, as flores cultivadas portas que batem na escuridão, fraturado, em silêncio, (a primeira delas foi um girassol) o cheiro de terra molhada, oscilante sobre a face Não é queda. Não é medo. o forte vento, o branco véu das águas que também é a sua – Trago a felicidade as cortinas em louca agitação raízes de névoas, de espuma, como uma noite de tempestade. como uma revoada de gaivotas ou talvez não mais do que olhos Deitamo-nos na cama, as luzes ou uma invasão de pétalas de jasmim vitórias régias que boiam apagadas, as janelas escancaradas, ou um sudário desfraldado sobre o pântano dos dias. a contemplar os estrondosos clarões na noite ou mesmo o fantasma Sou um sonâmbulo no para-raios do prédio vizinho do amor em lençóis sujos de sangue. em mim mesmo e o que naufraga e nós imóveis, eu a escutando 41 acostuma-se Acostuma-se, todos os dias, a vestir um terno salpicado de lama. Paga-se o preço, apenas: deita-se ao fim da jornada, a cabeça sobre o travesseiro e o esforço inútil de escolher o sonho vindouro – a memória de algum dia fora daqui, tatear, sobre a epiderme do espírito, a superfície da cicatriz que não sabemos quando se abriu. Existiam estas chagas na infância? Já antigas as mutilações e deformações? Desde quando a luz crua da manhã Acostuma-se, diante do espelho, machuca? E, no entanto, a ter palavras ulceradas presas na garganta. ama-se ainda: por hábito, por fome, Diante do mármore branco, acostuma-se talvez por ambos. a cuspir o sangue do que não foi um poema de raiva, um poema de ódio, do que não foi, sobretudo, um poema de amor – e, no entanto, ama-se ainda, ainda se ama, mas tão longo é janeiro e cada dia de sol vem com o instinto canino de revolver a terra, de dispersar as sementes, de atiçar os cheiros de mortos que ninguém lembra ou que ninguém esquece – são dias em que já não há diferenças entre eles. 42 Tornou-se o poema de amanhã uma conta a se pagar quando se tem os bolsos vazios – uma dívida mas não como a que a terra tem para com as suas sementes, não como a que os homens têm perante uma violada sacralidade. Se tenho irmãos, se caminhamos juntos ignoro: tornou-se o poeta de amanhã mais solitário do que os assassinos. 43 a chuva A chuva distorce o claro e o escuro e quase apaga os rostos contemplações do homem e da mulher que estão parados na esquina, sob a marquise. Mais de uma vez tenho olhado Talvez seja melhor assim: para além da transparência vítrea pensar que os rostos ainda existem de uma vidraça cerrada, com alguns porque a esquina ainda existe vasos de flores sobre o peitoril. e porque chove como antes. Então a vida, o mundo construído Talvez seja melhor esquecer sob a luz mais suja assemelha-se que os rostos se desmancharam a um indevassável jardim de inverno como se fossem feitos de cera e os meses, todos eles, são ou de qualquer outra matéria pálida. abril e maio prolongados esse outono de luz e de brisas que me repete a descoberta da cidade e as suas árvores. Daniel Francoy, 1979, em Ribeirão Preto. Apenas assim, apartado Arrisca versos desde o final dos anos 90. da fuligem que me turva os olhos, Apesar de brasileiro, estreou em Portugal com Em Cidade Estranha (Editora Artefacto, 2010). Também participou das reencontro um verso que dure ainda, com a pureza coletâneas 4 Poetas da Net (Editora Sete de um milagre efêmero: Sílabas, 2002), Revista Agio, Número 1 habitar a branda claridade, (Editora Artefacto, 2011), Mixtape (dola- estar a ela entrelaçado doesquerdo, 2013) e recente do Caderno 2 (Fyodor Books, 2014), todas editadas em Portugal. No Brasil, gasta o seu dia como igual ao vento que sobe em espirais ou o ramo que se retorce burocrata nos corredores do Tribunal de em florações de cores grávidas. Justiça do Estado de São Paulo. Ainda há um instante: inteiro, intacto. 44 Vanessa Rodrigues Autoterapia grafológica 45 Se pela análise da caligrafia é pos- da letra, a mudança de seus aspectos psi- sível analisar o caráter de alguém, então, cológicos. E esse desejo transfigurou-se pensando no caminho inverso, é possível num desejo mais ousado de eu mesma mudar o caráter mudando a caligrafia. É imitar, ou traduzir, esse processo, replicá- nisso que consiste a terapia, sugerida por -lo ao mundo. um amigo louco, que o protagonista de El Isso veio ao encontro de outra convic- discurso vacío, de Mario Levrero, impõe- ção que é cada vez mais forte em mim: -se por um tempo. Esse romance, incrível escrevemos com o corpo, lemos com o em sua estrutura, apresenta a vida des- corpo, o processo mental de decodificar se personagem através desses exercícios esses símbolos (impressos ou manus- grafológicos. Sabemos de seus desejos e critos) depende não só do movimento das questões comezinhas e de suas an- dos olhos, mas do sangue percorrendo o gústias não só por aquilo que ele escreve corpo inteiro, e da respiração, é um cor- nos exercícios, mas, principalmente, por po pulsante que lê e escreve a partir de aquilo que ele não diz. E por tudo isso, foi memórias, entre as quais, a memória do (tem sido, é) uma leitura muito impac- movimento dos dedos (segurando uma tante para mim. caneta ou sobre um teclado padrão). Paul Não me lembro como cheguei até ele, Zumthor diz que entre a leitura e a dança mas considerei um quase milagre encon- só há uma diferença de intensidade, pois trar uma edição espanhola desse roman- o corpo inteiro responde, assim como à ce na livraria preferida da cidade. En- música, às percepções daquilo que lê. Da quanto lia, senti uma vontade enorme de mesma forma, escrever é um ato físico, ver esses exercícios, não transpostos em há um movimento gigantesco e ances- letras impressas, mas em seus manuscri- tral de esforço físico (talhar poemas em tos, os textos rasurados. Queria, porque pedras duras) em todo ato de escrita. Eu de certa maneira tudo aquilo me chegou quis apresentar um corpo escrevendo como verdade, acompanhar a mudança nesses vídeos. 46 50 51 nota dos editores: Visite grafologica.tumblr.com para acompanhar o projeto. Vanessa C. Rodrigues é formada em Letras pela Universidade Federal do Paraná. Publicou alguns contos em revistas, como a Arte e Letra: Estórias, participou da antologia Fantasma Civil, parte da programação literária da XX Bienal Internacional de Curitiba, e publicou ensaios no Jornal Rascunho. Atualmente vive em São Paulo, onde trabalha como preparadora de texto. Mantém o blog: vanrodrigues.wordpress.com 52 Julio Perestrelo Julio descobriu a fotografia quando mais precisava e desde então não sabe fazer outra coisa. Usa a imagem como espelho para autodescoberta e reinvenção de si mesmo, desenvolvendo um trabalho autobiográfico e de ficções possíveis. Gosta de explorar os limites da foto como suporte e como síntese visual de narrativas. Edição Bruno Palma e Silva Lubi Prates Stephanie Borges Fotos Mariana Caldas cargocollective.com/maricaldas Projeto gráfico Bruno Palma e Silva palmaesilva.com.br A Parênteses tem distribuição livre e gratuita, sinta-se à vontade para compartilhar. Não encorajamos, porém, nenhum tipo de adaptação e/ou de uso comercial dos materiais. Nesses casos, os autores devem ser consultados. Todos os textos e imagens aqui reunidos são, e sempre serão, de propriedade de seus autores, cuja gentileza agradecemos. Novas contribuições são sempre bem-vindas, fale conosco! revistaparenteses.com.br facebook.com/revistaparenteses [email protected] Lista de autores já publicados Ana Guadalupe, Ana Martins Marques, Ana Rüsche, Bruno Palma e Silva, Deborah Prates, Dimitri br, Edu Suppion, Fabiano Calixto, Grazi Shimizu, Guilherme Damasceno, J.F. de Souza, Juliana Amato, Juliana Krapp, Luana Vignon, Ismar Tirelli Neto, Jeanne Callegari, Leandro Lyn Hejinian, Jardim, Leo Ventura, Lilian Aquino, Lubi Prates, Luci Collin, Maíra Ferreira, Maíra Matthes, Marília Garcia, Mirella Carnicelli , Múcio Góes, Nathalie Lourenço, Pierre Masato, Raimundo Neto, Rodrigo Garcia Lopes, Sergio Mello, Stephanie Borges, Vanessa Rodrigues, Victor Heringer, Virna Teixeira Fotógrafos Adelaide Ivánova, Alexandre Santos, Carol de Andrade, Camila Lordelo, Edu Suppion, Rodrigo Sommer, Thany Sanches