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O CÂNTICO NA ADORAÇÃO CRISTÃ1 Ailton Sudário de Souza2 Tarcisio Caixeta de Araujo 3 RESUMO A partir da segunda metade do século XX, o advento do neopentecostalismo, intensificado no Brasil nas décadas de 1970 e seguintes, demonstra que as expectativas do começo do século a respeito de um declínio nas convicções religiosas não se confirmaram. O canto, que desempenhou na religião cristã importante papel, foi cultivado e utilizado como instrumento de culto, divulgação de valores e afirmação de identidade nos tempos bíblicos, na tradição, nos períodos antecedentes e posteriores à Reforma. Palavras-chave: Cântico, Neopentecostalismo. Louvor, Hinários, Protestantismo, Pentecostalismo, ABSTRACT From the second half of the twentieth century, the advent of neo-Pentecostalism, intensified in Brazil in the 1970s and later, shows that the expectations of the beginning of the century about a decline in religious beliefs were not confirmed. The chants that played an important role in Christian religion were cultivated and used as an instrument of worship, dissemination of values and identity affirmation in biblical times. They also played an important part in the tradition, and pre and post-reform period histories. Keywords: Chant, Pentecostalism. Worship, Hymnals, Protestantism, Pentecostalism, Neo- 1 INTRODUÇÃO 1 Este artigo nasceu da dissertação de mestrado do Pr. Ailton Sudário. Pastor Batista, bacharel em Teologia pelo Seminário Bíblico Mineiro (2004), graduação em Educação Artística com habilitação em música pela Universidade do Estado de Minas Gerais(2003), especialização em Psicopedagogia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2005), especialização em Língua Portuguesa pela Universidade Castelo Branco (2006) e mestrado em Ciências da Religião pela PUCMinas (2014). Experiência na área de Educação, com ênfase em Ensino-Aprendizagem. 3 Pastor interino da Igreja Batista Manancial em Santa Luzia-MG. Professor de Hebraico e editor da Revista Davar Polissêmica da FBMG. Mestre em Teologia (SWBC – País de Gales); Bacharel em Teologia (STBM/FBMG); Licenciado em Letras (UNI-BH); alfabetização Braille pelo Instituto São Rafael, Belo Horizonte-MG. 2 2 A modernidade pode ser entendida como um período da história que tem seus fundamentos calcados no Renascimento, porém que se torna efetivamente importante com o advento do Iluminismo, no século XVII, quando a razão se torna a tônica rompendo com a filosofia e a cosmovisão bíblico-teológica reinante no Ocidente desde Agostinho. Embora não muito extensa cronologicamente, a modernidade exerceu forte influência sobre a religião cristã. Na sua vertente protestante, os enunciados dos reformadores a respeito da criação, de Deus, do homem e do pecado e especialmente a noção de um plano ou propósito divino, ou seja, uma teleologia conduzida pelo transcendente para a humanidade foram seriamente abalados. José Carlos Aguiar de Souza em “O projeto da Modernidade”, contrapondo a escatologia cristã e sua interpretação progressiva da história rumo a um fim determinado com a modernidade, informa: A modernidade rejeita toda e qualquer teleologia divina na história. O futuro pode ser criado e provido pela vontade do próprio homem. Os pensadores iluministas conceberam a história como o desvelamento universal da razão, que, ao brilhar sobre toda escuridão e superstição, iria iluminar a totalidade da história com sua própria luz. Esse processo do desabrochar da razão no horizonte histórico da humanidade foi concebido como um processo inevitável e irreversível. (SOUZA, 2005, p. 59). O mesmo autor afirma que um novo horizonte se descortinou em consequência e caracterizou-se pela “esperança sem par num progresso ilimitado, testemunha da capacidade humana de melhorar a vida e de prover sua própria felicidade terrena.” (SOUZA, 2005, p. 61). No começo do século XX, momento de reforço das ideias a respeito de um indivíduo racional autônomo, com espírito pragmático, capaz de pensar a verdade objetivamente e, portanto, emancipado de qualquer referência às forças divinas, podese perceber mais uma vez, a expectativa de fenecimento das convicções religiosas. Para Daniel Rocha em “Venha a nós o vosso reino: relações entre escatologia e política na história do pentecostalismo brasileiro”: O último século teve um início marcado por expectativas otimistas quanto ao desenvolvimento da razão humana e pela esperança em um progresso técnico, cultural e, também das instituições políticas. Pode-se dizer que o final do século XIX e o início do século XX seriam o ápice do otimismo iluminista e da crença no progresso. A religião perdia sua relevância em tal contexto e as esperanças escatológicas acabariam por se secularizar quase por completo. (ROCHA, 2012, p. 62). 3 A visão negativa da religião traçada por Freud no ano de 1927, em “O futuro de uma ilusão”, especialmente no sétimo capítulo que corrobora o que o autor já havia afirmado nos capítulos anteriores a respeito das doutrinas religiosas identificadas como ilusões, parece ser o resultado de um olhar para uma Europa plenamente desapontada com as instituições eclesiásticas. A este desencanto deve-se juntar um sentimento paradoxal: otimista quanto ao desenvolvimento científico e tecnológico e pessimista quanto à manutenção das estruturas e paradigmas anteriores. Essa mistura de humores estava disseminada pelo continente europeu e era o resultado da perda da hegemonia no período pós Primeira Guerra levando à consideração de que tudo o que conduzira ao grande conflito era digno de reprovação e mudança. Nem mesmo o trauma produzido pelas duas grandes guerras que acenava para a possibilidade de um desfecho trágico para a humanidade, foi capaz de reverter a expectativa de emancipação humana de toda e qualquer necessidade de explicação metafísica. Um importante aspecto do pensamento de Max Weber que se tornou mais evidente após a 2ª Grande Guerra (1939-1945), previa um "desencantamento" com o sobrenatural, com a religião, graças ao desenvolvimento do pensamento científico, capitalista e industrial, ou seja, a substituição da interpretação mítica da realidade por uma visão racional. Essa desilusão metafísica não deveria significar para a religião cristã o seu fim e sim sua eticização com a transferência da via de salvação a outros caminhos como a observância de preceitos éticos e racionais. (WEBER, 1991). Discorrendo sobre o ponto de vista weberiano, João Décio Passos, em “Pentecostalismo e violência” afirma: A ideia de racionalização explica, segundo o sociólogo, a relação entre ética religiosa e ética intramundana, quando de fato, as concepções religiosas conduzem os sujeitos crentes para um determinado modo de portar-se e de intervir no mundo. No caso do Ocidente, as tradições judaico-cristãs se tornam cada vez mais uma ação racionalizada em consonância com o movimento da razão que vai assumindo a direção de todas as expressões sociais, políticas, culturais e religiosas. (PASSOS, 2008, p. 286). Uma mudança considerável ocorre, contudo, a partir de meados do século passado. Trata-se de uma onda de efervescência religiosa em reação à razão iluminista e à sua consequência imediata, a secularização. 4 Para Libanio (2002, p. 64), “pisando-se e recalcando-se a dimensão religiosa, esta se vinga numa explosão. É a revanche do sagrado.” Essa guinada no pensamento deu ensejo, no meio religioso cristão, aos pentecostalismos, às renovações carismáticas e aos adventismos e apocalipsismos recolocando “‘as coisas relacionadas ao fim’ novamente na pauta das discussões.” (ROCHA, 2012, p. 67). O ressurgimento de aspectos que na comunidade acadêmica e até mesmo no meio religioso mais liberal já se consideravam extintos ou em vias de extinção, explorado ao extremo pela indústria cinematográfica, pregado nos púlpitos e escrito em centenas de livros, pode ter sido resultado do medo característico dessa época de uma hecatombe nuclear, porém, serviu para demonstrar que a fé estava bem viva sob uma aparente camada de racionalismo e incredulidade. Neste artigo consideramos os cânticos, mais precisamente as letras dos cânticos do Protestantismo Histórico de Missão4, do Pentecostalismo e do Neopentecostalismo. O primeiro, resultante do trabalho iniciado em meados do sec. XIX por missionários congregacionais, presbiterianos, metodistas e batistas. (MARIANO, 2005). O segundo, em sua vertente “clássica” (MARIANO, 2005, p.24), representado principalmente pelos pentecostais das igrejas Congregação Cristã no Brasil e da Assembleia de Deus; e em vertente “autônoma”, também denominada “deuteropentecostalismo” formado pelas Igrejas pentecostais fundadas no Brasil a partir de meados do século XX, como a Brasil para Cristo e Igreja do Evangelho Quadrangular. (MARIANO, 2005, p. 23). Ao Neopentecostalismo queremos nos referir não como um grupo de igrejas ou como uma onda do Protestantismo, mas sim como uma disposição disseminada hoje entre os evangélicos brasileiros. Pretende-se abordar o termo no seu sentido transversal, como tendência que perpassa as denominações cristãs evangélicas. Quando nos referirmos aos evangélicos, o faremos com o mesmo sentido do trabalho de Ricardo Mariano (2005, p.10): [...] o termo evangélico, na América Latina, recobre o campo religioso formado pelas denominações cristãs nascidas na e descendentes da Reforma 4 Utilizamos este termo, referenciado na obra de Cunha (2004, p. 17) por delimitar melhor o objeto de estudo desta pesquisa e em contraposição ao Protestantismo Histórico de Migração representado pelas Igrejas Luterana, Anglicana e Reformada já presentes no Brasil em consequência de fluxos migratórios e sem preocupações conversionistas. 5 Protestante europeia do século XVI. Designa tanto as igrejas protestantes históricas (Luterana, Presbiteriana, Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista) como as pentecostais (Congregação Cristã no Brasil, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, Brasil para Cristo, Deus é Amor, Casa da Bênção, Universal do Reino de Deus, etc). Este artigo nasce de um levantamento bibliográfico sobre o uso da música religiosa em diferentes momentos da história, a sua utilização na contemporaneidade e o papel do canto nas denominações evangélicas brasileiras. Concomitantemente estendemos o olhar a algumas dissertações e teses relacionadas ao assunto já publicadas ou disponíveis nos meios eletrônicos. Procuramos nos hinários com os quais trabalhamos, o Salmos e hinos, o Cantor cristão e a Harpa cristã, os dois primeiros do Protestantismo Histórico de Missão e o terceiro do Pentecostalismo Clássico, mostra do que se cantava em passado recente. Nas diversas mídias buscamos identificar os principais elementos dos cânticos contemporâneos. Para melhor entendimento do elemento musical no culto cristão, buscaremos, em breve retrospectiva, apresentar o canto nos primórdios da adoração cristã, suas funções, seus antecedentes e importância na tradição e na Reforma Protestante do século XVI. 2 O CÂNTICO NA ADORAÇÃO CRISTÃ O canto sempre esteve presente na adoração cristã. Antes do cristianismo ele já se fazia ouvir na religião dos hebreus e foram melodias do judaísmo, seus salmos e seus hinos, as primeiras a serem entoadas pela comunidade dos seguidores de Jesus. Na tentativa de demonstrar a importância dos cânticos nas origens da Igreja iniciamos este capítulo apontando alguns dos registros da adoração bíblica. Abordaremos brevemente a intertextualidade entre as duas grandes divisões da Bíblia – o Primeiro e o Segundo Testamentos – como evidência da prática cristã primitiva do uso de textos do judaísmo com aplicação de sentido cristológico. Em seguida, apontaremos os antecedentes na tradição, a passagem do canto dos salmos para os hinos, a profissionalização ou “clericalização” do canto como forma de garantir a ordem no culto e a busca eclesiológica por uma forma padronizada de canto cristão, o gregoriano. 6 Demonstraremos que o canto da Reforma Protestante, com a pretensão de tornar-se de fácil compreensão e acessibilidade terminou por produzir o coral luterano. Este, embora não primasse pela originalidade, uma vez que buscava suas melodias no cancioneiro popular e no catolicismo, influenciou toda a religiosidade de sua época e se refletiu posteriormente na música transportada para o Brasil, primeiro por imigrantes europeus e posteriormente pelos missionários em maioria, provenientes dos Estados Unidos. 2.1 As funções do canto na religião cristã A religião cristã, herdeira das tradições musicais do judaísmo, constituiu uma relação de afinidade com a música praticamente desde os seus primórdios, tornando-a um dos elementos funcionais de sua liturgia. Donald Hustad, em “Jubilate! A música na Igreja” (1986) identifica algumas das funções da música nas igrejas. A primeira delas é associar prazer à atividade religiosa. “Tendo como base o apelo da música ao prazer, muitas igrejas desenvolveram os seus programas musicais tendo em vista a promoção da igreja.” (HUSTAD, 1986, p. 34). Embora muitos líderes eclesiásticos relutem em admitir, o prazer é uma das funções da arte musical na adoração concorrendo para a atração de fiéis de faixas etárias e cultura musical diversas. A segunda função na opinião de Hustad é a expressão de emoções. “Na tradição evangélica, em que se enfatiza a experiência religiosa pessoal, este é um dos importantes significados da música.” (HUSTAD, 1986, p. 35). Longe de ser exclusividade de um segmento do cristianismo, esta parece ter sido uma realidade de todo o universo cristão. O mesmo autor cita as palavras de Agostinho, no sec. V: “Como chorei abundantemente durante os teus hinos e cânticos, profundamente comovido pelas vozes de tua Igreja, que fala tão docemente.” (HUSTAD, 1986, p. 35). A terceira função listada por Hustad para a música dentro do ambiente religioso pode ser relacionada com o conceito de ethos – da influência da música sobre formação dos traços característicos de um indivíduo ou de um grupo. [...] é evidente que os sons musicais na verdade tendem a encorajar certo tipo de atividades na pessoa que frequenta a igreja. Por causa da sua longa associação com a igreja, o som do órgão no prelúdio do culto pode ajudar os 7 crentes a se prepararem para a adoração. Certos tipos de melodia e de formas vocais podem fazer as pessoas lembrarem de que estão em no lugar tradicional de adoração e encorajá-las a pensar em Deus e em sua revelação aos seres humanos. Os sons musicais frequentemente são usados para dar sinal à congregação para ficar de pé (como no caso do Gloria Patri), para se assentar, ou para orar. (HUSTAD, 1986, p. 38). O pensamento sobre o ethos em música remonta à Grécia antiga e consiste em relacionar intimamente modos, movimentos e timbres musicais com os estados de ânimo e a formação de caráter do ser humano. Para os gregos, a escolha correta de um determinado tipo de música podia conduzir de um estado de passividade a um de grande atividade e vice-versa. De acordo com J. Carvalhal Ribas em “Música e medicina”, na “doutrina ética musical dos gregos, cada um dos modos, assim como dos gêneros e dos ritmos, encerrava determinado poder moral. Esses caracteres morais atribuídos à música constituíram o ethos.” (RIBAS, 1957, p. 108). Concordamos com Henrique de Lima Vaz em “Escritos de filosofia IV: introdução à ética filosófica” (1999), que afirma: [...] ethos (com eta inicial) designa o conjunto dos costumes normativos da vida de um grupo social, ao passo ethos (com épsilon) refere-se à constância do comportamento do indivíduo cuja vida é regida pelo ethos-costume. É pois a realidade histórico-social dos costumes e sua presença no comportamento dos indivíduos que é designada pelas duas grafias do termo ethos. Nesse seu uso, que irá prevalecer na linguagem filosófica, ethos (eta) é a transformação metafórica da significação original com que o vocábulo é empregado na língua grega usual e que denota a morada, covil ou abrigo de animais, donde o termo moderno Etologia ou estudo do comportamento animal. A transposição metafórica de ethos para o mundo humano dos costumes é extremamente significativa e é fruto de uma intuição profunda sobre a natureza e sobre as condições de nosso agir (práxis), ao qual ficam confiadas a edificação e a preservação de nossa verdadeira residência no mundo como seres inteligentes e livres: a morada do ethos cuja destruição significaria o fim de todo sentido para a vida propriamente humana. (VAZ, 1999, p. 13). Na civilização helênica, a procura era pela edificação e preservação desse ethos de maneira que resultasse em vantagens para o Estado com melhores cidadãos e guerreiros e em torno deste ideal toda uma doutrina foi elaborada em torno dos sete modos musicais conhecidos, dos gêneros e dos ritmos. Assim, O modo frígio excitava furor e coragem. O lídio, tristeza, arrependimento, contrição. O eólio, amor. O dórico, gravidade, recolhimento, concentração. Da mesma maneira, uns gêneros e ritmos eram enervantes, outros sensuais, outros virilizantes, etc. Certa música, em determinado modo, gênero e ritmo, 8 despertava volutuosidade, ou religiosidade, ou agressividade, etc. (RIBAS, 1957, p. 108). Coerente com a ideia da utilização da música em benefício do Estado, Platão procura demonstrar a transcendência do fenômeno musical na formação das novas gerações. Na sua “República”, todas as crianças, logo depois de nascidas, seriam afastadas dos pais e, em instituições públicas, receberiam indistintamente educação por conta do Estado e em regime de coeducação de sexos até a idade de sete anos. A educação deveria ser predominantemente física, à custa de ginásticas, esportes e jogos, até os dez anos de idade. Mas a prática exclusiva dos exercícios ginásticos desenvolveria unilateralmente a capacidade física dos indivíduos. Seria preciso também cultivar o espírito. Por isso, Platão aconselhou a prática da música aos jovens entre catorze e dezesseis anos de idade. Mas só seriam permitidos dois gêneros de música: a música violenta, adequada à guerra, a tranquila, propícia à prece e à concentração. A música guerreira, assim como a dança do mesmo gênero, asseguraria o desenvolvimento do espírito, o cultivo da justiça e do equilíbrio, a educação do caráter. (RIBAS, 1957, p. 108). Como se vê, a utilização da música como meio auxiliar na motivação, na educação e na formação humana não era exclusividade da religião. Comprova-o o emprego de músicos profissionais nos exércitos e forças armadas de tantas épocas e lugares. Mas no cristianismo, a música teve seu uso ampliado, chegando em alguns momentos a tornar-se a sua finalidade precípua. Ribas (1957) informa: Na Idade Média, considerou-se a música uma linguagem não só capaz de por o crente em comunicação com Deus, mas ainda de agir sobre o comportamento das criaturas. Daí se patenteou a necessidade de ser utilizada em obediência a um critério ético, a exemplo do que aconselhava a sabedoria grega. (RIBAS, 1957, p. 113). Não obstante alguns excessos medievais, a religião cristã, assim como sua antecessora judaica, nunca prescindiu de se utilizar e se beneficiar da música como uma de suas mais importantes ferramentas para a construção e preservação da identidade. De fato, para Hustad (1986), a música pode ajudar a reforçar o sistema de valores de uma cultura tornando-se assim a sua declaração mais significativa – a expressão coletiva de fé. Recorremos às palavras deste autor por considerá-las elucidativas sobre este assunto: 9 Obviamente, a linguagem comum de cada grupo é importante para os seus membros. Ela serve para estabelecer a sua identidade característica. Pelo fato de a entenderem melhor, ela os ajuda a experimentar plenamente as suas atividades religiosas características. Não é necessário que os frequentadores da igreja compartilhem plena e minuciosamente da análise racional de seus líderes de adoração, nem que entendam as técnicas musicais e formas hinológicas que são usadas; a música da sua igreja tem significado associativo básico para eles, que eles aprenderam por a terem ouvido repetidamente. Os episcopais “entendem” o som do cantochão de salmos, porque o ouvem toda vez que vão à Oração Matutina. Da mesma forma, os evangélicos descobrem significado em sua herança característica de hinos, corinhos, música folclórica cristã ou antemas (ou uma combinação destas variações) porque fazem parte integrante das suas experiências de adoração. (HUSTAD, 1986, p. 43). Sob esta perspectiva é possível perceber tanto as dificuldades do Protestantismo de Missão no empreendimento de mudança de toda uma identidade, um ethos já estabelecido, como o sucesso do reprocessamento pentecostal. Se compreendido e aplicado o princípio do Evangelho de Mateus de que “a boca fala do que está cheio o coração” (Mt 12, 34), é evidente que canções que buscam fazer transbordar sentimentos, influenciarem positivamente o dia-a-dia com uso do vocabulário corrente e ainda prometem vitórias e conquistas imediatas serão muito melhor acolhidas que aquelas que apresentam um “celeste porvir” após uma jornada de lutas no aquém. A estas funções da música na religião cristã, Mendonça (2008) acrescenta algumas outras características dos cânticos no Protestantismo Histórico de Missão. Eles tinham o papel de corroborar a pregação: O culto protestante não inclui o gesto e a imagem, não oferece o apoio do sensível: ele é discursivo e racional, mais uma aula do que o encontro com o sagrado. O pequeno espaço reservado à emoção corre por conta do cântico congregacional, mas os hinos também são discursos. (MENDONÇA, 2008, p. 227). Um pouco mais adiante em sua obra, Mendonça diz acreditar “que o melhor material para um levantamento da teologia dos missionários é a hinódia do Protestantismo brasileiro” (MENDONÇA, 2008, p. 267), confirmando que os hinos serviam de autenticação ao discurso pregado. Como o padrão de pregação era avivalista, moralista e polêmico, esses eram também os temas, especialmente os dois primeiros, preferidos das letras dos cânticos. Este exemplo, retirado do hinário Salmos e Hinos, de autoria de John Henry Sammis, de 1887, é sugestivo: 10 Em Jesus confiar, sua lei observar, Oh, que gozo, que bênção, que paz! Satisfeitos guardar tudo quando ordenar Alegria perene nos traz. Crer e observar Tudo quanto ordenar; O fiel obedece Ao que Cristo mandar! O inimigo falaz e a calúnia mordaz Cristo sabe desprestigiar; Nem tristeza, nem dor, nem angústia maior Pode o crente fiel abalar. Que delícia de amor, comunhão com o Senhor Tem o crente zeloso e leal; O seu rosto mirar, seus segredos privar, Seu consolo constante e real. Resolutos, Senhor, e com zelo e fervor, Os teus passos queremos seguir; Teus preceitos guardar, o teu nome exaltar, Sempre a tua vontade cumprir. (ROCHA, 2003, n. 439). Os hinos do Protestantismo Histórico de Missão também acabaram por ter a função de manutenção de uma unidade teológica entre os crentes das diferentes denominações. A teologia explícita nos sermões e hinos dos congregacionais, presbiterianos, metodistas e batistas, nos seus contornos gerais, é a do metodismo americano: o amor de Deus por todos os homens pecadores, o perdão gracioso pela aceitação, através da fé, do sacrifício expiatório de Cristo, a vida regenerada visível na ética mundana e a expectativa da vida eterna no Céu. [...] A unidade teológica produziu, desde o início, franca colaboração entre os protestantes. (MENDONÇA, 2008, p. 293). Érica de Campos Vicentini em “A produção musical evangélica no Brasil” (2007) nos informa que com o passar dos anos e a confecção de vários hinários, foram sendo adicionadas contribuições de autores nacionais, porém “o estilo e a temática usados nessas novas composições em nada diferiam das já existentes. E em termos teológicos doutrinários seguiam a linha puritano-pietista do Protestantismo brasileiro.” (VICENTINI, 2007, p. 102). A mesma autora explica que as barreiras denominacionais no que tangia à música eram frágeis: [...] visto que há uma intensa circulação de músicas e cantores, não havendo uma barreira institucional e/ou doutrinária capaz de barrar este ou aquele tipo de música e/ou cantor. É interessante pensar que os pontos mais nevrálgicos não aparecem na composição musical, como por exemplo, a guarda do sábado, o tipo de batismo, interpretação escatológica, etc. (VICENTINI, 2007, p. 101). 11 Os hinos do Protestantismo Histórico de Missão serviam também para trazer dramaticidade aos apelos conversionistas, segundo a maneira como eram cantados, por um solista ou por toda a congregação, às vezes por um coral ou ainda por um grupo infantil. Tudo nos moldes das campanhas de avivamento da Inglaterra ou dos Estados Unidos. Para Mendonça (2008) era necessário “aliar ao sermão, já na maior parte das vezes dramático, cânticos apropriados para auxiliar a elevação do tom emocional da reunião, formando ambiente favorável às decisões individuais (conversão).” (MENDONÇA, 2008, p. 301). Os evangélicos empreenderam o cultivo destas finalidades do canto, mas foram principalmente os grupos neopentecostais que as expandiram. Empregaram a música como reforço no seu sistema de valores ao levar cada fiel à interação com a dinâmica ritual ao ponto de fazer-se “participante ativo da louvação, repetindo seus refrãos, que o ligam com o mundo sagrado.” (PASSOS, 2005, p. 110). De maneira nunca antes pensada pelo Protestantismo Histórico de Missão ou o Pentecostalismo Clássico, os neopentecostais utilizaram-se do canto para provocar emoções e ao fazê-lo tiraram proveito disso nos apelos a uma teologia de prosperidade e à contribuição financeira. Usaram o chamado “período de cânticos” para marcar caracteristicamente suas crenças e valores de forma tão entusiasta que hoje é extremamente difícil encontrar denominação evangélica no Brasil que não tenha sido influenciada por seus cantos. Consideramos, entretanto, para melhor exploração deste ponto, necessária breve consideração sobre os antecedentes da adoração cristã. 2.2 Antecedentes bíblicos A exortação do Salmo 96 – “Cantai ao Senhor um cântico novo!” – era levada a sério pelo povo de Israel, um povo cantor: “Celebrar-te-ei, pois, entre as nações, ó Senhor, e cantarei louvores ao teu nome.” (II Sm 22, 50). Segundo José Freitas Campos em Música e missão, “já foram anotadas mais de 600 referências ao canto e à música na Sagrada Escritura.” (CAMPOS, 2012, p. 284). A música estava presente em praticamente todos os acontecimentos do povo de Israel: reuniões de família (Gn 31, 27), aclamação de heróis (Jz 11, 34), entronizações 12 de reis e guerras (Jz 7,18), nas festas (Is 5,12), nos funerais (II Sm 1,17-18). Além disso, havia ainda os cânticos ocupacionais (Nm 21, 17; Jz 9, 27). No trabalho de Ribas, lê-se que: Entre os hebreus, a música, investida de poderes sobrenaturais, desempenhava papel de relevo nas práticas religiosas, conforme se depreende da leitura da Bíblia. Os antigos israelitas, a exemplo dos povos primitivos, serviam-se de cantos e de instrumentos para obterem estados de excitação psíquica, até as raias do delírio extático. (RIBAS, 1957, p. 105). O livro de Salmos (ou saltério), a coleção de cânticos sagrados de Israel para adoração a Javé é uma série de hinários. Ocupa um lugar de destaque entre os escritos e a liturgia dos judeus. Seu título, na versão grega do Primeiro Testamento, refere-se ao som de um instrumento usado para acompanhamento musical, o saltério. Posteriormente, salmo passa a ser significado de qualquer cântico espiritual com acompanhamento ou não. Conforme Denise Frederico, O Livro dos Salmos é o livro litúrgico por excelência da religião judaica, contendo cantos e orações coletados ao longo dos séculos. Recebeu o nome hebraico seper tehillîm, livro de louvores, usado principalmente sob a responsabilidade dos músicos levitas durante a liturgia hebraica. O nome “Salmos” veio da versão grega do Antigo Testamento. Sua estrutura atual só foi definida no século IV da era cristã, quando passou a ser lido como extensão da lei mosaica e dividido em cinco livros. Essa divisão levou em consideração a expressão “Bendito seja o Senhor Deus de Israel”, elemento divisor dos cinco livros dos Salmos por analogia com o Pentateuco. Sua colocação litúrgica poderia ser ou no início ou no fim de uma oração. Supõe-se que os escribas a tenham registrado no final de pequenas coleções de salmos. (FREDERICO, 1998). Os Salmos constituem a espinha dorsal do culto na Sinagoga Judaica. Alguns deles, como por exemplo, Salmo 105, 1-6 e Salmo 96, tornaram-se uma forma diária de oração para os judeus piedosos. A mesma autora informa: Durante os primórdios do culto no Templo, o canto dos salmos era da alçada dos músicos levitas, mas, com o passar dos tempos, a congregação mudou a sua participação, tornando-se mais ativa. Isso resultou no canto responsorial, com a congregação expressando-se através de pequenas aclamações, até atingir o canto antifonal, com a repetição de refrãos. Durante o período do exílio na Babilônia, os salmos serviram de consolo e se tornaram muito populares. No retorno do exílio, os salmos passaram a ser de domínio de todos os judeus e não mais ficaram confinados aos átrios do Templo ou às ocasiões das grandes festas oficiais. As pessoas cantavam os salmos em suas festas particulares e ainda durante as festas religiosas nacionais, onde aconteciam as refeições comuns de sacrifício, que eram acompanhadas de música. (FREDERICO, 1998). O Segundo Testamento trouxe para a religião cristã os Salmos do Primeiro: “na igreja cristã primitiva participava o povo diretamente dos ofícios religiosos cantando 13 Salmos.” (BRAGA, 1958, p. 7) e acrescentou outros. Para Campos (2012, p. 284), “os textos do Novo Testamento nos oferecem indicações muito claras, no que diz respeito ao canto e à música na vida das primeiras comunidades cristãs. Os Salmos são repetidas vezes citados por Mateus, Marcos e Lucas.” O Evangelho de Lucas inicia-se com os cânticos de anunciação. O Magnificat (Lc 1, 46-55) expressa o louvor de Maria pelas misericórdias salvíficas de Deus; o Benedictus (Lc 1, 68-79), são ações de graças de Zacarias, por causa de seu filho João Batista que haveria de ser precursor dos caminhos de Cristo; e o Nunc Dimittis (Lc 2, 29-32), o Salmo de Simeão ao ver o menino Jesus no Templo. Todos três traduzem regozijo e exaltação pelos atos da salvação em contraste com o pano de fundo dos cantos do Primeiro Testamento que eram de expectativa. Na Igreja Primitiva havia oração e cânticos mesmo nos momentos de tribulação. Depois de terem sido açoitados e aprisionados em Filipos, Paulo e Silas cantavam. (At 16, 25). A despeito das circunstâncias não houve uma interrupção na prática do louvor e provavelmente isto soasse estranho para os demais presos e para o carcereiro. Se procedermos a um exame na epístola de Paulo aos Filipenses, não encontraremos nenhuma alusão à prática do canto. Nesta carta fraterna e carinhosa, o apóstolo agradece, elogia e exorta: “Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus” (Fp 2, 5). Porém, na continuação deste texto o apóstolo ao invés de continuar com o seu discurso em prosa, irrompe em versos; são versos de um cântico, talvez o mais antigo hino genuinamente cristão conhecido: Ele tinha a condição divina, E não considerou o ser igual a Deus Como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo, E assumiu a condição de servo, Tomando a semelhança humana. E, achado na figura de homem, Humilhou-se e foi obediente até a morte, E morte de cruz! Por isso Deus o sobre-exaltou grandemente E o agraciou com o Nome Que é sobre todo o nome, Para que ao nome de Jesus, Se dobre todo joelho dos seres celestes, Dos terrestres e dos que vivem sob a terra, E, para a glória de Deus, o Pai, Toda língua confesse: Jesus é o Senhor. (Fp 2.6-11). 14 Se na prisão, o objetivo do canto era testemunhar, aqui é exortar, edificar, ou seja, a ênfase é na função didática do canto. “O culto cristão primitivo recebeu uma influência dos serviços sacerdotais judeus e entre eles o canto dos salmos e hinos. Com a destruição do Templo no ano 70, desaparece a refinada arte musical dos levitas, sacerdotes de Javé.” (CAMPOS, 2012, p. 285). Uma visão ampliada a respeito do canto está na epístola aos Colossenses que à função didática do cântico acrescenta o louvor e a gratidão, num redirecionamento de textos do Primeiro Testamento. O texto do capítulo primeiro, versículos 15 a 20, uma espécie de hino ou doxologia do cristianismo primitivo, é um exemplo desta adaptação de trechos dos livros sapienciais de Provérbios e Sabedoria. O culto cristão dos primeiros séculos e mais precisamente sua expressão músico-vocal, vive a influência dinâmica de um duplo legado: a tradição judaica e a cultura grega. As investigações mais recentes destacam fortemente a concepção genética, o “cordão umbilical” que une o culto cristão primitivo com o mundo judeu, tanto bíblico como extra bíblico. (CAMPOS, 2012, p. 285). O fato é que Paulo logo no começo da epístola “redireciona” a literatura sapiencial do período intertestamentário para o seu objetivo de apresentação de Cristo como Senhor, misturando textos dos livros bíblicos de Provérbios e Sabedoria. Ao fazêlo, propõe-se alcançar leitores judeus e, portanto conhecedores do estilo sapiencial ao mesmo tempo em que se comunica de forma poética com os gentios, oriundos do paganismo. Além disso, assume com vigor o estilo sapiencial descolando-lhe o sentido, o que pode ser observado numa comparação entre os textos. (Apêndice A). O Apocalipse é o anúncio do momento em que na visão cristã finalmente a criação inteira – no céu, na terra e debaixo da terra – se rende em reconhecimento à soberania de Cristo, o Cordeiro de Deus (Ap 15, 3). E rende-se cantando. E cantando o “cântico de Moisés” transposto incluindo palavras dos Salmos (Sl 145. 7), dando-lhes significado cristológico. Repete-se o elemento intertextual. Nas palavras de Campos (2012, p. 285), “a liturgia celeste do Apocalipse é, em grande parte, uma transposição da liturgia cristã primitiva. As orações, os gestos cultuais e os cantos que ali se entoam são vestígios de usos litúrgicos da comunidade judaica.” Assim como Moisés cantou a libertação do Egito depois da travessia do Mar Vermelho, o último livro da Escritura canta a libertação definitiva dos poderes do sistema mundano. 15 2.3 Antecedentes na tradição O cristianismo, pós primeiro século, em meio à afirmação de dogmas, combate às heresias e definição do cânon, não abdicou do canto de origem judaica, mantendo a sua importância nas celebrações. “Imitando o modelo dos Salmos do Antigo Testamento, os cristãos dos primeiros tempos criaram cantos de inspiração própria.” (CAMPOS, 2012, p. 285). Manteve-se viva também a importância do canto como método de apoio ao ensino dos enunciados e valores do Primeiro Testamento. Nos dizeres de Xabier Basurko em O canto cristão na tradição primitiva, “os Padres valorizaram muito o cântico dos salmos sob o aspecto da instrução para o cristão” (BASURKO, 2005, p. 34). Na explicação de Hustad (1986, p. 39), “[...] os pais da igreja primitiva consideraram que a cantilena com que os hebreus liam as Escrituras era tão inspirada quanto as próprias palavras; consequentemente eles tentaram perpetuar aquelas melodias na adoração cristã.” O quarto século é marcante no cenário da religião cristã conforme se pode depreender das Constituições Apostólicas de cerca de 380 depois de Cristo, um livro anônimo escrito “em nome de Clemente” que havia sido Bispo de Roma no século I e que apresenta “ordens de culto” com Salmos, doxologias e améns entremeados. (HUSTAD, 1986). O decreto do Imperador Constantino autorizando a prática da religião cristã em todo o Império Romano de 313 d.C. inicia um processo de grandes mudanças e expectativas. O Cristianismo passa de religião perseguida a tolerada, depois prestigiada e em vias de ser oficializada, o que de fato ocorreu em 392 d.C., sob Teodósio. Com o século III chega a paz de Constantino e um crescimento maciço das comunidades cristãs. Erguem-se por toda parte basílicas, e o culto cristão experimenta um grande desafio em vários aspectos. Dentro destas coordenadas, também a música e o canto conheceram um novo contexto. (CAMPOS, 2012, p. 285). Não é difícil imaginar a profundidade das mudanças no que concerne aos cânticos e à liturgia. Com a adesão de membros da aristocracia romana influenciados pela atitude favorável do Imperador, o culto caminhou em direção à sua formalização e imitação de costumes da corte. Em reação a esta tendência cada vez mais excludente 16 das pessoas comuns e não ligadas à nobreza, surge a ideia da antífona que envolvia dois coros, uma evolução do canto responsorial que envolvia apenas um coro (que às vezes limitava-se a alguns “améns e aleluias”) e um solista. Junto ao canto responsorial (resposta à Palavra de Deus), uma nova forma de cantar se introduz na Igreja até a metade do século IV, é o canto antifonal. É evidente que esse novo gênero de canto responde ao desejo de uma maior participação do povo. Surge no Oriente, onde alcança uma rápida difusão e logo chega ao Ocidente. Santo Ambrósio é o primeiro a introduzir o canto em suas comunidades de Missão, bem como testifica Santo Agostinho em sua obra Confissões. (CAMPOS, 2012, p. 285). Porém as modificações no canto e na liturgia decorrentes da nova situação dos cristãos também foram decisivas para que muitos optassem pelo ideal monástico e, portanto, conservador dos costumes anteriores. Para Denise Frederico: Os defensores da tradição entenderam que as melodias populares possuíam um etos não-sacro e por isso estavam banidas de seus cultos. Os defensores de uma contextualização viram nessas melodias um meio saudável de propagar o cristianismo. Ambrósio é exemplo de que melodias populares e atuais podem ajudar a defender a fé diante das ameaças heréticas e até, pela emoção que carregam, atingir profundamente a alma humana, fato que marcou profundamente Agostinho. (FREDERICO, 1998) É provável que seja deste período, a distinção entre salmos e hinos. Embora os salmos representassem o que havia de mais tradicional e fizessem parte da rotina diária dos cristãos, surgiu a necessidade de uma forma que cantasse os valores e as doutrinas, fornecendo aos novos crentes arma contra as heresias abundantes do período. A contemporaneidade da música, portanto, ocorria com a inclusão dos “hinos e cânticos espirituais”. Originariamente os hinos eram os cantos entoados em honra a algum deus ou herói. Aqui, hinos são os cantos que foram “cristianizados”, como os citados por Lucas no seu Evangelho e em alguns trechos de algumas epístolas. Plínio, ao descrever o resultado de sua pesquisa sobre os usos e costumes dos primeiros cristãos nas suas Cartas X.96, assim se expressou: “(…) acostumados a se reunirem em um dia determinado, antes do irromper do dia, a fim de cantarem um hino [grifo da autora], como uma antífona, a Cristo, como se este fosse uma divindade”. (FREDERICO, 1998). Os hinos, embora algumas vezes tivessem sua origem musical em melodias populares, foram considerados superiores aos salmos por se constituírem em arma contra o afastamento dos ensinos da Igreja.5 5 Além dos salmos e dos hinos, havia ainda os chamados cânticos espirituais. Segundo Denise Frederico: Os cantos de caráter espontâneo são os cânticos espirituais [...]. Esses cantos seriam os da “tradição profética”, cujo exemplo no NT é retirado do apóstolo Paulo, em Ef 5.19: “Falando entre vós em salmos, e 17 [...] Também dentro da categoria “hinos” podem ser arrolados os cantos em que os cristãos podiam proclamar sua fé, os denominados “doutrinários”, alguns escritos na forma de poemas métricos, por influência grega, com estrofes e versos, o que permitia que fossem cantados sempre da mesma forma como a primeira estrofe era apresentada. (FREDERICO, 1998). Conforme afirma Basurko (2005, p. 213), “que o hino seja superior ao salmo é um pensamento comum nos Santos Padres. O hino é considerado como o símbolo de uma vida superior, de um conhecimento mais elevado das coisas celestiais; cantar hinos – dir-se-á é a vida dos anjos.” Porém o mesmo autor prossegue afirmando que, Não é fácil encontrar fundamento para tal distinção. Poder-se-ia pensar que o salmo cantado responsorialmente tenha feito ver no “refrão” intermitentemente repetido pelo povo, a imagem de um louvor descontínuo e como que por saltos, o que propriamente corresponde ao homem em seu peregrinar terreno; os hinos seriam pelo contrário, cantados de forma contínua e coral, para que neles se pudesse ver o símbolo de um louvor contínuo e incessante, próprio dos anjos e dos que levam a vida angélica. No entanto, devemos reconhecer que não encontramos alusão alguma a isso nos escritos dos Padres. (BASURKO, 2005, p. 213). Importante também é ressaltar que as afirmações a respeito de todas estas mudanças são resultado da observação de textos do período, já que pela inexistência de notação não é possível saber sobre a música desses cânticos. A respeito, observa Campos: Em suma, lamentavelmente, não chegaram até nós as melodias utilizadas pelas comunidades cristãs do primeiros séculos. Felizmente quanto aos textos, já há um bom número a partir da Patrística. São vários os testemunhos literários. Eles nos levam a crer que havia: - assembleias que se expressavam cantando; - pastores que educavam o povo para o canto; - a primazia do logos sobre o melos; - o canto brotando da vida, como uma concretização do tema: culto, existência, fé e vida. (CAMPOS, 2012, p. 286). O conflito entre os conservadores da tradição dos salmos e os que defendiam uma contextualização musical com o uso de melodias seculares terminou por favorecer aos primeiros. Henriqueta Rosa Fernandes Braga em Do coral e sua projeção na história da música afirma que a concessão para cantar salmos nos ofícios religiosos foi hinos, e cânticos espirituais: cantando e salmodiando ao Senhor no vosso coração”, repetido em Cl 3.16. Nessas passagens bíblicas, o apóstolo sugeria o uso da tradição litúrgica (aqui expressa pela continuação dos salmos), mas, ao mesmo tempo, incentivava a expressão mais atual, através dos novos hinos e cânticos espirituais, categorias que abarcavam tanto os que falavam a respeito do Cristo ressurreto, mesmo usando formas antigas, quanto os improvisados, de caráter extático, que traduziam a “tradição profética”. (FREDERICO, 1998). 18 retirada do povo em 364 pelo Concílio de Laudicea “que a tornou privativa dos salmistas canônicos”. (BRAGA, 1958, p. 7) A consequência foi uma “clericalização” dos cânticos. A Igreja tornou-se detentora da música religiosa distanciando-se do povo. “Os pais prepararam o caminho da profissionalização da música através de uma atitude de negação das manifestações populares no culto cristão.” (FREDERICO, 1998). Hustad descreve esta mudança como uma atitude tomada com o sentido de prevenir eventuais desordens num culto que se tornara a religião do Império: A história da Igreja registra que por volta do século V o cântico congregacional foi em grande parte eliminado da adoração cristã, e a música foi confiada a conjuntos corais compostos de clérigos, tendo em vista um procedimento ordeiro, e para impedir a introdução de hinos heréticos nas reuniões de adoração. Esta era apenas uma indicação da transformação da adoração simples e de um estilo de vida simples, para uma organização política poderosa que representava a religião oficial do Império Romano e adotava os símbolos de autoridade que anteriormente estavam associados ao imperador e seus governadores. Teologicamente, a Igreja retornou a grande parte da sua herança judaica [...]. (HUSTAD, 1986, p. 59). A consciência de que em regiões mais afastadas o cântico tomava feições locais produziu a necessidade de uma sistematização que impedisse a desagregação litúrgica. Gregório Magno, papa entre 590 e 604 assumiu esta tarefa e nos dizeres de Campos: [...] querendo promover uma reforma e organização da liturgia, ele deu especial atenção ao canto. Formou um colegiado de religiosos que percorreu todas as regiões, colheu informações, observou a prática de cantos e trouxe tudo a Roma. Ali o papa iniciou uma seleção dos melhores e mais adequados cantos para a Igreja. Impôs regras e reformulou a SCHOLA CANTORUM romana. Ele reuniu todo o repertório em dois livros: o ANTIPHONARIUM e o CANTATORIUM. Naquela época algumas autoridades da Igreja já tinham estabelecido formas de cantar bem solidificadas em seus domínios, como Santo Efrem em Bizâncio e Santo Ambrósio em Milão, Itália. (CAMPOS, 2012, p. 286). Mesmo tendo sido contribuição importante, especialmente no âmbito da península Itálica, o canto bizantino e o ambrosiano não alcançaram as dimensões geográficas e cronológicas do sistema de Gregório Magno que se difundiu por todo o Império Romano e serviu de base para a notação musical ocidental. A forma gregoriana de cantar predominou por toda a Idade Média. Nela o cantochão teve suas fases de pujança e declínio. Foi na fase final do período medieval, início do século XI, que o monge Guido d’Arezzo, mestre do coro da Catedral de Arezzo. na Itália, criou um sistema mnemônico para memorizar as escalas dos tons que todo mundo utiliza até hoje: escala engenhosamente tirada de Hino a São João Batista. (CAMPOS, 2012, p. 286). 19 Embora existissem manifestações musicais profanas, delas os vestígios são raros tanto pela ausência de notação quanto pela impossibilidade de reprodução de fenômenos acústicos. Segundo Denise Frederico, “a música sacra nessa época tinha as seguintes características: era a única música escrita, liderada e executada por um corpo de homens profissionais, com traços marcantes que a tornavam distinta da secular.” (FREDERICO, 2012). Como não havia participação popular no culto medieval, também não havia valorização de outra forma de arte musical que não fosse a da Igreja. Hustad ensina: Admitimos que, durante o longo período desde 392 d.C. (quando o Imperador Teodósio fez do cristianismo a religião oficial do Império Romano) até a Renascença, a música eclesiástica e a “grande arte” foram essencialmente a mesma coisa, porque todas as artes estavam sob o controle do clero, e esperava-se que elas apoiassem e ajudassem a Igreja. (HUSTAD, 1986, p. 45). Embora durante longo período da história cristã, o canto gregoriano tenha sido considerado a música de adoração mais elevada, teve a sua existência e registro ameaçados pelas mudanças litúrgicas ocorridas a partir do final da Idade Média. A conservação deste canto só foi possível pela força da tradição litúrgica da Igreja Católica Romana. Segundo constata Campos: A grande força da tradição litúrgica da Igreja manteve vivo este legado cultural e espiritual para a humanidade. Somente em meados do século XIX é que novas pesquisas e novos estudos trouxeram outra vez, à luz, esse tesouro mantido na tradição da Igreja. (CAMPOS, 2012, p. 286). Nos séculos XV e XVI a música se tornou arte desejada, procurada e incentivada por nobres e eruditos. Os músicos “profissionais”, geralmente membros do clero passam a receber convites para apresentação em ambientes profanos “e o canto gregoriano foi desaparecendo do cenário litúrgico-bíblico e permanecendo nos manuscritos e em alguns mosteiros sobreviventes deste período.” (CAMPOS, 2012, p. 286). A música sacra e a secular se influenciam mutuamente e abre-se a possibilidade eclesiástica para uma forma até então rejeitada no canto religioso: a polifonia - uma técnica na qual as vozes, duas ou mais, preservam o caráter ritmico e melódico independentes. Conceição Rezende em Aspectos da música ocidental, discorrendo sobre a missa e o moteto polifônicos afirma que, A missa difere do moteto não na escrita musical, mas na organização formal, sendo a missa divida em 5 partes segundo o “Ordinarum Romano” da Igreja 20 Católica. Cada uma das partes tem o espírito próprio conforme o texto de cada parte. É uma peça muito grande. O moteto é menor, e não tem uma estrutura formal definida e sua escrita na Renascença se assemelha a do madrigal diferenciando-se dele pelo texto que é sacro. (REZENDE, 1971, p. 119). Esta nova forma de cantar embora mantivesse a importância do texto em relação à música propriamente dita, produziu, contudo, pelo excesso de vozes, a diluição e a incompreensão do sentido mesmo pelos mais letrados, o que levou, na tentativa de solução do problema, à preferência pelo estilo “a cappella”6 em sua execução. 2.4 O canto da Reforma A dificuldade de compreensão do texto, tanto na prédica quanto na música, levou os reformadores a afirmarem e defenderem a necessidade de uma volta aos primórdios da religião cristã, quando, nos dizeres de Braga (1958, p. 7), “participava o povo diretamente dos ofícios religiosos cantando Salmos.” O Protestantismo nasce com a pretensão de combater toda sorte de idolatria, intermediação e opulência do Catolicismo Romano. Como geralmente estas manifestações se davam por meio das artes plásticas ou da arquitetura, aos reformadores só restou a música. Segundo Ribas: No século XVI, ao mesmo tempo em que desponta a música profana e popular, irrompe outra fase de florescimento da música sacra, graças à Reforma Protestante. De todas as artes, somente a música foi posta conscientemente a serviço da fé protestante. (RIBAS, 1957, p. 113). Na busca pela participação da congregação, cada um dos reformadores adotou uma linha distinta de ação. Nos dizeres de Denise Frederico (1998), “Calvino determinou que só os Salmos fossem cantados no seu culto: achava que outro tipo de canto era profano e contrário às determinações bíblicas.” Seu objetivo era um retorno às práticas e “costumes litúrgicos da igreja primitiva; embora ele tenha falhado em consegui-lo, precisamos reconhecer que ele não tinha as informações históricas completas.” (HUSTAD, 1986, p. 118). Na tentativa de elaborar um culto que enfatizasse mais o aprendizado do que a atitude de devoção. Zwínglio reduziu as celebrações à leitura da Escritura, pregação e oração. [...] Zwínglio entendeu a questão de modo diferente. Fundamentando-se mais na filosofia humanística, [...] interpretou existirem duas possibilidades de culto: o 6 A cappella - expressão de origem italiana para designação da música vocal sem acompanhamento. 21 culto a Deus e o culto ao ser humano. Era de opinião que toda música era secular, portanto imprópria para o culto a Deus. Julgava que os esforços empreendidos para a execução perfeita da música viriam atrapalhar o verdadeiro sentido do culto, que era a adoração pessoal, feita no coração, sem expressão audível. Por essa razão, num gesto de radicalização, baniu a música de seus cultos. (FREDERICO, 1998). Porém, foi na Alemanha, com Lutero, que a música mereceu e chamou mais atenção. Ribas (1957) descreve assim a atitude deste reformador em relação à música: A música – proclama Lutero, melômano, instrumentista e compositor – ‘é a arte dos profetas, e a única arte, além da teologia, que tem o poder de acalmar as agitações da alma e afugentar o demônio’. Então cria o Coral Protestante, de estrutura polifônica, onde, pela primeira vez, os crentes entoam hinos na língua do povo e, não em latim. A música protestante atinge o máximo esplendor com a contribuição de Johann Sebastian Bach e continua a brilhar com as representações musicais de episódios religiosos nos oratórios de Handel, que ‘pôs toda a Bíblia em música’. (RIBAS. 1957, p. 113). Por ser músico, compositor, Lutero compreendia melhor que os outros reformadores a importância do elemento musical nas celebrações; e com o objetivo de proporcionar a oportunidade de participação ao maior número possível de pessoas “propagou, junto com a doutrina da Reforma, a sua música de criação: o ‘coral’”. (REZENDE, 1971, p. 122). É de autoria de Martinho Lutero, o hino Castelo Forte, posteriormente incluído nos hinários do Protestantismo brasileiro: Castelo forte é nosso Deus, Espada e bom escudo, Com seu poder defende os seus, Em todo transe agudo. Com fúria pertinaz, Persegue Satanás, Com artimanhas tais, E astúcias tão cruéis, Que iguais não há na terra. A nossa força nada faz, Estamos sim perdidos; Mas nosso Deus socorro traz, E somos protegidos. Defende-nos Jesus, O que venceu na cruz, Senhor dos altos céus; E sendo o próprio Deus, Triunfa na batalha. Se nos quisessem devorar, Demônios não contados, Não nos podiam assustar, Nem somos derrotados. O grande acusador, 22 Dos servos do Senhor, Já condenado está; Vencido cairá, Por uma só palavra. Sim, que a Palavra ficará, Sabemos com certeza, E nada nos assustará, Com Cristo por defesa. Se temos de perder, Os filhos, bens, mulher, Embora a vida vá, Por nós Jesus está, E dar-nos-á seu Reino.7 (CANTOR..., 1987, n. 323, destaque nosso). Neste cântico, embora ainda se ressaltem os poderes malignos de Satanás, seus demônios, as batalhas dos fiéis e as dificuldades que podem advir de sua opção religiosa, fica claro que tudo isto será vencido com o poder da Palavra de Deus (como se pode notar pelas frases em itálico, nosso), deixando evidente certa ambiguidade característica da época (século XVI); apregoa-se o triunfo da razão, porém esta ainda está às voltas com o sobrenatural. O coral luterano, por suas finalidades circunstanciais8 “não tem pretensões de ser original e busca as suas melodias principais entre o repertório da canção popular já existente, mesmo no repertório profano.” (REZENDE, 1971, p. 122). A célebre afirmação de Lutero segundo a qual “o diabo não precisa de tantas melodias belas...” (REZENDE, 1971, p. 122) ensejou que tanto textos como melodias fossem amplamente aproveitados do cancioneiro popular, dos hinos populares medievais e do repertório musical católico, sempre de maneira a tornar a religião simples e acessível, um ideal perseguido, mas não plenamente alcançado. Hustad afirma que conquanto Lutero seja lembrado como alguém que deu ao povo alemão a Bíblia e o hinário na sua língua em apoio à sua defesa do sacerdócio 7 Nas citações de hinos e cânticos, adotaremos o modelo como eles aparecem nos hinários (sem partituras) com a primeira estrofe seguida do estribilho (quando há) em negrito. Para destacar as ideias concernentes ao texto, usaremos itálico. 8 O grande mérito musical do Coral Luterano foi fornecer material para grandes músicos como Bach, Schutz, Brahms, Handel, entre outros. Como observa Braga (1958, p. 39): De Lutero a J. S. Bach produziram-se cerca de cinco mil Corais que, em 1697, foram reunidos numa coleção em oito volumes e publicados em Leipsig sob o título Andachtiger Seelen geistliches Brand und Gantz-Opfer (Supremo sacrifício das almas piedosas). J. S. Bach possuía um exemplar dessa coletânea, à qual recorria com frequência em busca de elementos para a sua obra. 23 individual dos crentes, “na Formula missae, só os hinos, a leitura da Escritura e o sermão estão no vernáculo. (HUSTAD, 1986, p. 112). Tudo mais continuava a ser em latim.” Segundo Braga (1958), Os corais alcançaram sucesso e larga divulgação, integrando-se na vida religiosa, comunal e doméstica alemã, não apenas naquela época, porém ainda nos séculos seguintes. [...] É interessante assinalar que esta expansão se verificou não apenas nas regiões protestantes; as partes católicas do país também adotaram os Corais usando-os tal qual, quando o texto podia servirlhes; substituindo este, em caso contrário; e até, compondo peças originais nos moldes luteranos. (BRAGA, 1958, p. 10). Evidencia-se aqui uma mudança, a música do Protestantismo, antes influenciada e tendo no Catolicismo Romano as fontes para os seus corais passa por sua popularidade a influenciá-lo. Porém havia preocupações diferentes: na música da reforma, a submissão do elemento musical ao textual. “O Coral é uma ampla melodia adaptada a um texto versificado.” (BRAGA, 1958, p. 19). E foi com o intuito de clarear ainda mais o sentido da letra do cântico, assim como o aprendizado de sua melodia, antes praticamente impossível de distinguir, que a partir do final do século XVI transferiu-se nas partituras do Coral protestante a melodia até então no tenor para o soprano. Na obra de Braga, encontramos a seguinte afirmação: Foi [...] Lucas Osiander quem, em 1586, publicou a primeira coleção de Corais e Salmos harmonizados silabicamente a quatro partes nota contra nota, todos com melodia no soprano, fundindo, assim, os elementos característicos do Choralstyl, do qual essa coletânea assinala a constituição definitiva. No prefácio declara que apresenta os cânticos dessa maneira ‘a fim de que todos na congregação deles possam participar.’ (BRAGA, 1958, p. 21). É neste formato que a maioria dos hinários das diversas denominações protestantes e pentecostais brasileiras foram confeccionados, como se pretende demonstrar adiante. Mas esta música não chegou ao final do século XIX e início do século XX, momento da inserção do Protestantismo no Brasil, isenta de influências, contestações e polêmicas. Houve reação às tendências de ‘simplicidade bíblica’ do puritanismo inglês que entre os seus postulados insistia na completa eliminação de qualquer tipo de rebuscamento – “nenhuma música coral ou instrumental, nenhuma liturgia escrita e nenhum simbolismo”. (HUSTAD, 1986, p. 114). 24 Após um período de resistência inicial refletida nas primeiras edições de hinários, a hinódia brasileira inclinou-se na direção das ideias dos pietistas alemães dos séculos XVII e XVIII que clamavam contra o formalismo e enfatizavam a experiência pessoal de exame e estudo das Escrituras sem a supervisão eclesiástica. Os pietistas rejeitavam toda a música artística na adoração, por causa das ‘tendências da ópera’. [...] Esse movimento inspirou um dilúvio de hinologia subjetiva. [...] Uma das imagens favoritas da hinologia pietista – o relacionamento de Cristo (o noivo) com a igreja, e com o crente individualmente (a noiva), aparece ainda em hinos mais antigos. (HUSTAD, 1986, p. 127). É evidente esta herança de subjetivismo e apego aos sentimentos em prejuízo da reflexão racional e sistematizada nos hinos do Protestantismo brasileiro. Alguns exemplos podem ser citados: O sol ao meio-dia Não tem o resplendor Qual há de ter a igreja Na vinda do Senhor; Eis que do Esposo as jóias A noiva há de ostentar, Quando Cristo, triunfante, aqui reinar! (CANTOR..., 1987, n. 95, destaque nosso). Meu Noivo vem, meu Noivo vem; Vou encontrá-Lo no céu! Os anjos nas harpas tangem, Dando louvores a Deus! (HARPA..., 1981, n. 451, destaque nosso). A Cristo unida está a minh'alma, Pois nEle eu tenho meu vero sustento; Me enche de gozo do céu, e de calma; Também me ensina os seus mandamentos. Ó Noiva de Jesus, apronta-te para ir Para o eterno e santo reinado; Que divinal amor irás lá, então, fruir Com Jesus Cristo, o teu amado! (HARPA..., 1981, n. 250, destaque nosso). Os três exemplos, citados apenas em parte, são pródigos na analogia ao relacionamento do fiel ou igreja com um Cristo noivo ou esposo. Ao concederem ao crente a posição privilegiada de noiva do Amado Celestial não deixavam de lembrar-lhe das responsabilidades de se aprontar e buscar aprender os mandamentos. Finalmente, a hinódia brasileira se rendeu aos hinos evangelísticos do século XVIII, momento do avivamento dos irmãos Wesley e de florescência da teologia arminiana. É deste contexto o aparecimento dos hinos de “apelo”, hinos que 25 convidavam à conversão, presentes em abundância nos hinários evangélicos brasileiros. O capítulo seguinte é direcionado a descrever alguns dos hinários que desde a chegada do Protestantismo Histórico de Missão em meados do século XIX, foram utilizados no Brasil, com o propósito de dotar as diversas denominações de uma música, senão própria, pelo menos condizente com a respectiva teologia, eclesiologia e estilo de culto. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS O começo do século XX não fazia supor um futuro de pujança nem para a religião e muito menos para a instituição religiosa. O otimismo a respeito das possibilidades humanas iluminadas pela razão levava ao pensamento de que em pouco tempo, com a possibilidade de explicações científicas e racionais aliadas ao desenvolvimento de soluções tecnológicas, tudo que se referisse a fenômenos metafísicos estaria em franca decadência. O Protestantismo, vertente do cristianismo iniciada com o movimento da Reforma do século XVI, parecia antecipar-se a esta tendência ao tomar-se de um racionalismo que excluía de seu conteúdo quase tudo que sugerisse o sobrenatural ou milagroso. No Brasil, a partir de meados do século XIX, missionários vindos em sua maioria dos Estados Unidos, apregoaram uma “nova religião” que reagia ao Catolicismo Católico Romano, oficialmente instalado e principalmente ao Catolicismo de origem popular com uma mistura de elementos ideológicos e a racionalização ou sistematização de seu conteúdo de fé. Porém, não obstante este esforço, o empreendimento missionário nunca foi capaz de eliminar totalmente da vida dos conversos a influência das vertentes religiosas já estabelecidas no Brasil, com expressões e práticas já consolidadas. O que se conseguiu foi a substituição de alguns elementos, mantendo-se na “alma” dos que aderiram uma lembrança viva do conteúdo de crenças anteriores expectante apenas de momentos propícios para aflorar. 26 O amálgama religioso indígena, africano e católico, formador da mentalidade brasileira nunca deixou de fazer parte da maneira de ver o mundo desses convertidos que apesar da afirmação verbal de uma nova fé, permanecem, como se pretendeu demonstrar, em muitos aspectos, ligados à religiosidade popular. Embora o Catolicismo Romano da segunda metade do século XIX e começo do século XX já tivesse aprendido a conviver com a religiosidade popular, o Protestantismo Histórico de Missão e posteriormente o Pentecostalismo Clássico a encararam como um inimigo a ser combatido e vencido. Essas maneiras diferentes de lidar com a Matriz Religiosa Brasileira foram determinantes na formação dos respectivos discursos religiosos, porém não tão decisivos na mentalidade e na prática dos fiéis evangélicos. Postura diversa tiveram os Deuteropentecostais e os Neopentencostais que demonizando alguns elementos, sacralizando outros, assimilaram e deixaram de combater a religiosidade popular trazendo para dentro de seu culto o que fazia parte da mente e do imaginário do povo, esta talvez, a principal explicação para o seu crescimento numérico expressivo das últimas décadas. As mudanças produzidas no cenário religioso, cultural e político por esses evangélicos contemporâneos não foram resultado apenas da pregação, dos apelos, da teologia da prosperidade, da confissão positiva, da inauguração de templos, dos milagres ou dos exorcismos. Contou-se sempre com o apoio da música, do cântico coletivo ou individual. A religião cristã pós-primeiro século manteve viva a importância do canto e continuou a usá-lo como método de apoio ao ensino dos enunciados e valores do Primeiro Testamento. A ampla adesão ao cristianismo que se deu no século IV implicou na formalização do canto limitando a participação popular. O movimento da Reforma Protestante pretendeu fazer voltar o canto ao maior número possível de fiéis utilizando-se para isto da criação de corais. Para este empreendimento aproveitou-se amplamente do cancioneiro popular, dos hinos medievais e do repertório Católico Romano. No Brasil, as variadas denominações do Protestantismo Histórico de Missão perceberam a necessidade de produção de hinários que servissem e padronizassem o 27 canto, ao mesmo tempo em que evitavam que a música profana ou de tradições religiosas diferentes fosse introduzida nos cultos. Pelo que se pode observar a respeito dos hinários brasileiros, é possível traçar algumas características do que se cantava (ainda se canta, embora o uso dos hinários seja restrito a algumas igrejas e ocasiões especiais) nas igrejas do Protestantismo Histórico de Missão e do Pentecostalismo Clássico até bem pouco tempo. A observação do primeiro hinário protestante produzido no Brasil, o Salmos e hinos, levou Mendonça (2008) a dividir o Protestantismo refletido nos cânticos em pietista, guerreiro, peregrino e milenarista. De maneira geral, os hinários mais usados pelos evangélicos brasileiros conduziram ao cântico com estas mesmas características. A influência do pietismo pode ser comprovada pela subjetividade individualista das letras que geralmente conclamam à conversão pessoal, à santificação, à experiência religiosa carregada de emoções, além de enfatizarem o relacionamento Cristo/igreja ou Cristo/fiel em termos de casamento ou noivado. Os cânticos guerreiros eram conclamação a uma guerra sem tréguas contra o reino das trevas, quase sempre representado pelo mundo e o sistema secular. O uso de termos de origem militar e a consideração da igreja como um exército em luta contra o mal faz de cada crente um soldado sempre preparado para a batalha. Os hinos dos peregrinos cantavam as expectativas de um reino celestial, esperança dos crentes sinceros, o “celeste porvir”, apresentação da vida terrestre sempre com sentidos de transitoriedade e insuficiência em contraste com a celeste, eterna, feliz e definitiva. Os cantos milenaristas (ou pré-milenaristas) proclamavam a vitória final dos crentes com a implantação de um reino milenar após a volta de Cristo. Os cânticos com esta característica constituíram bálsamo contra as desilusões de uma sociedade de desigualdades e por isso mesmo propícia ao caciquismo e ao messianismo. Estas quatro características no seu conjunto constituíam um reforço à visão da religião como trabalho/aprendizagem. O trabalho cristão incluía o culto propriamente dito, o esforço para a conversão de outros, a luta contra o reino das trevas e a expectativa de conquista do descanso celestial. 28 Como demonstrado, a música cantada no começo do cristianismo procedia do judaísmo e mantinha as funções de manutenção dos vínculos sociais, confissão da religiosidade, testemunho, exortação, agradecimento e expressão de expectativas futuras. A religião cristã pós-primeiro século manteve viva a importância do canto e continuou a usá-lo como método de apoio ao ensino dos enunciados e valores do Primeiro Testamento. A ampla adesão ao cristianismo que se deu no século IV implicou na formalização do canto limitando a participação popular. O movimento da Reforma Protestante pretendeu fazer voltar o canto ao maior número possível de fiéis utilizando-se para isto da criação de corais. Para este empreendimento aproveitou-se amplamente do cancioneiro popular, dos hinos medievais e do repertório Católico Romano. No Brasil, as variadas denominações do Protestantismo Histórico de Missão perceberam a necessidade de produção de hinários que servissem e padronizassem o canto, ao mesmo tempo em que evitavam que a música profana ou de tradições religiosas diferentes fosse introduzida nos cultos. Pelo que se pode observar a respeito dos hinários brasileiros, é possível traçar algumas características do que se cantava (ainda se canta, embora o uso dos hinários seja restrito a algumas igrejas e ocasiões especiais) nas igrejas do Protestantismo Histórico de Missão e do Pentecostalismo Clássico até bem pouco tempo. A observação do primeiro hinário protestante produzido no Brasil, o Salmos e hinos, levou Mendonça (2008) a dividir o Protestantismo refletido nos cânticos em pietista, guerreiro, peregrino e milenarista. De maneira geral, os hinários mais usados pelos evangélicos brasileiros conduziram ao cântico com estas mesmas características. A influência do pietismo pode ser comprovada pela subjetividade individualista das letras que geralmente conclamam à conversão pessoal, à santificação, à experiência religiosa carregada de emoções, além de enfatizarem o relacionamento Cristo/igreja ou Cristo/fiel em termos de casamento ou noivado. Os cânticos guerreiros eram conclamação a uma guerra sem tréguas contra o reino das trevas, quase sempre representado pelo mundo e o sistema secular. O uso 29 de termos de origem militar e a consideração da igreja como um exército em luta contra o mal faz de cada crente um soldado sempre preparado para a batalha. Os hinos dos peregrinos cantavam as expectativas de um reino celestial, esperança dos crentes sinceros, o “celeste porvir”, apresentação da vida terrestre sempre com sentidos de transitoriedade e insuficiência em contraste com a celeste, eterna, feliz e definitiva. Os cantos milenaristas (ou pré-milenaristas) proclamavam a vitória final dos crentes com a implantação de um reino milenar após a volta de Cristo. Os cânticos com esta característica constituíram bálsamo contra as desilusões de uma sociedade de desigualdades e por isso mesmo propícia ao caciquismo e ao messianismo. Estas quatro características no seu conjunto constituíam um reforço à visão da religião como trabalho/aprendizagem. O trabalho cristão incluía o culto propriamente dito, o esforço para a conversão de outros, a luta contra o reino das trevas e a expectativa de conquista do descanso celestial. Além disso, os hinários se tornaram repositórios das tradições litúrgicas, musicais e teológicas dos evangélicos brasileiros, ou seja, os cânticos dessas coletâneas fizeram-se marcas, às vezes, da identidade denominacional, às vezes da identidade da igreja local que tinha dentro de um número grande de músicas as de sua preferência; mais tarde, foram ferramentas na luta pela manutenção e perenidade, principalmente nas denominações históricas, mais conservadoras, de determinados estilos e práticas. REFERÊNCIAS BASURKO, Xabier. O canto cristão na tradição primitiva. São Paulo: Paulus, 2005. BÍBLIA. A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1980. 1v. BÍBLIA. A Bíblia Sagrada: contendo o velho e o novo testamento. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995. 1v. BRAGA, Henriqueta Rosa Fernandes. Do coral e sua projeção na história da música. Rio de Janeiro: Kosmos, 1958. CAMPOS, José Freitas. Música e missão. In: NODARI, Paulo César (Org.). Viver, amar e servir. 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