O KITSCH EM ROMEU E JULIETA: LUHRMAN E SHAKESPEARE

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O KITSCH EM ROMEU E JULIETA: LUHRMAN E SHAKESPEARE
Revista JIOP no1 – Departamento de Letras Editora – 2010
ISSN 2176604-5
Universidade
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Maringá
O KITSCH EM ROMEU E JULIETA: LUHRMAN E SHAKESPEARE
Marisa Corrêa Silva
"Adaptação" e "transcriação" são termos-chave para a compreensão da
transposição de obras, seja na mesma modalidade, seja para outra. Os dois termos
possuem significados diferentes mas, neste texto, referem-se ao mesmo processo
artístico. A nomenclatura adaptação é utilizada quando, baseado numa obra original,
um autor cria outra que tem liberdade para romper com certas estruturas fundamentais
na primeira, independente dessa ruptura ser devida à liberdade criativa do adaptador
ou a exigências da censura, como era comum no cinema americano durante a
vigência do chamado “código Hays” (1934-1964). Este era uma série de normas de
censura que proibia nudez, adultérios, assassinatos, consumo de drogas e outras
coisas consideradas “moralmente repugnantes” de serem explícitas na tela. Essas
situações poderiam ser discretamente insinuadas, mas jamais mostradas aos olhos do
público. Outras eram completamente proibidas, mesmo em insinuações sutis, como
miscigenação racial, homossexualismo ou qualquer tipo de ofensa à religião ou aos
padres e pastores, que não poderiam ser vilões nem cômicos.
O leitor pode imaginar os transtornos que esse código criava para os
roteiristas e diretores. Um filme como Má Educação, de Pedro Almodóvar, jamais
poderia existir. Mesmo após a extinção da censura, porém, o chamado “cinemão”
norteamericano continua evitando mostrar situações passíveis de levar o público a
uma rejeição baseada em princípios morais. Na adaptação do best-seller Hannibal, de
Thomas Harris, houve uma mudança importante no final. Em vez de mostrar a agente
do FBI Clarice Sterling vivendo maritalmente, feliz e apaixonada, com o assassino em
série Hannibal “The Cannibal” Lecter, o filme optou por um final menos “escandaloso”,
mantendo a situação em aberto, para possíveis e oportunistas continuações.
Já a palavra transcriação foi utilizada pelos irmãos Campos e Décio Pignatari
para significar o real esforço de traduzir uma obra literária de língua estrangeira. Como
os recursos de expressão de duas línguas diferentes jamais coincidem, o tradutor
estaria, na verdade, criando uma obra diferente, baseada na primeira e procurando ser
fiel não à letra, mas ao espírito desta. Um tradutor do romance A História do Cerco de
Lisboa, de José Saramago, para o inglês, precisou lidar com o problema de a palavra
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“não'” ter duas formas em inglês (not e no), tornando impossível a Raimundo Silva
orgulhar-se de não ter mentido quando o assessor vem buscar as provas e pergunta
se houve alguma mudança importante. Raimundo responde “Não”, e foi exatamente a
introdução do “não” que alterou o sentido do texto original. Em inglês, Raimundo altera
para “not” e, indagado se houve mudança, responde “No”, fazendo com que o leitor
anglófono fique sem compreender o que houve. Um tradutor que quisesse manter o
sentido da passagem teria alterado o monossilábico “não/no” da resposta de
Raimundo para algo como “There was not”, o que manteria o sentido do texto original
mas soaria pedante ou estranho, ou incaracterístico do protagonista, homem de usar o
mínimo possível de palavras.
Tais problemas são extremamente comuns no ato da tradução, e ainda mais
complexos quando se trata de poesia, cujo ritmo e sonoridade são fundamentais, para
além da falta de correspondência de polissemia e de conotações entre vocábulos de
cada língua. Imaginemos agora o que é trabalhar não mais dentro de um mesmo meio,
utilizando apenas a linguagem, mas trocar de meio, tendo que lançar mão de recursos
estranhos ao meio original. Qual era a cor dos olhos de Helena de Tróia? Ao
transformar um romance realista em peça de teatro, vale a pena manter o narrador e
as longas descrições, fundamentais para o romance? Ao musicar um poema de Carlos
Drummond de Andrade, seria apropriado gravá-lo em ritmo de samba? É preciso
tomar essas e inúmeras outras decisões ao longo do processo. Quando se transpõe
uma obra de um meio para outro, é inevitável distorcer o original de alguma forma.
Para os fins deste texto, a transcriação é uma forma de adaptação: afinal, é
difícil, na prática, distinguir as fronteiras entre uma e outra. Por exemplo, o filme West
Side Story, de Jerome Robbins, é claramente uma adaptação de Romeu e Julieta,
mas o filme Romeu + Juliet de Baz Luhrman é uma adaptação ou uma transcriação?
Ele mantém o texto original de Shakespeare, "traduzindo-o" para uma época mais
contemporânea apenas através da imagem, do movimento de câmara e da trilha
sonora. Portanto, para evitar maiores confusões, vamos utilizar o termo "adaptação"
como forma genérica, ficando entendido que ele cobre os significados das duas
palavras.
A diferença entre uma simples representação artística inspirada num tema
conhecido e uma adaptação é que a segunda exige um conhecimento mais amplo da
obra original. Se Ofélia foi tema de diversos pintores, isso não quer dizer que nenhum
deles tenha adaptado Hamlet. A representação da infeliz Ofélia seduz a imaginação
criativa do pintor, e isso é tudo. Se o pintor quiser representar a moça com roupas
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anacrônicas, isso não exige nenhuma explicação. Já uma adaptação exige recriar um
todo. Se no Hamlet de Kenneth Branagh o guarda-roupa é anacrônico em relação à
peça, isso significa que a ação foi transposta para outra época, exigindo um esforço
para harmonizar e tornar coerentes todos os outros aspectos. Não basta “explicar”
visualmente que a ação é moderna, é preciso que as ações e motivações de cada
personagem mantenham um sentido lógico, uma coerência.
Curiosamente, isso nem sempre é problemático quando se trata das tragédias
maiores da obra de Shakespeare. A temática e as motivações elizabetanas abordadas
pelo dramaturgo não diferem exageradamente dos preconceitos e valores em voga no
século XXI. É possível entender o desejo de vingança de Hamlet, bem como suas
dúvidas sobre a própria sanidade; o amor de Romeu e Julieta; o egocentrismo cego e
a raiva de Lear. Já a comédia A Megera Domada precisa de uma reelaboração
bastante séria, mesmo quando vivida por Richard Burton e Elizabeth Taylor, para não
ser devidamente execrada como misógina e incitadora de maus-tratos. A solução
encontrada pelo diretor Franco Zefirelli foi explorar, através da câmara, a evidente
tensão sexual entre o então casal Taylor/Burton, transformando a comédia
shakespeariana numa versão histórica de comédia romântica, na qual o galão precisa
mostrar-se mais forte do que a mocinha, a fim de merecê-la no final.
Adaptar obras de um media para outro é, portanto, um trabalho que envolve
uma série de habilidades distintas. A primeira, senão a mais importante delas, é a
consciência das diferenças básicas entre os media envolvidos. A partir daí,
desenvolve-se uma busca de analogias e paralelismos, tanto mais intensa quanto
maior for a procura de fidelidade à obra original. Cada media possui recursos que
alteram a configuração dos sentidos quando se adapta. Uma minissérie de TV da
BBC, Madame Bovary, ao ser apresentada na TV brasileira, sofreu o sério equívoco
de a versão brasileira utilizar um dublador com uma voz belíssima para o pobre
Charles. Embora Flaubert não tenha detalhado o timbre do Sr. Bovary, a voz sedutora
e educada da dublagem criava uma atratividade que o médico não tinha no romance,
fazendo com que, em vez de estúpido e quase grosseiro, o marido de Emma
parecesse apenas ingênuo e bom.
Para voltar às obras shakespearianas, Romeu e Julieta rendeu peças
musicais de Tchaikovsky e Prokoffiev e ballets. Dentre os filmes, destacam-se os já
mencionados de Baz Luhrman, de 1996, com Claire Danes e Leonardo DiCaprio; e
West Side Story, de Jerome Robbins, com música de Leonard Bernstein, de 1961. A
mesma obra de Shakespeare inspirou duas películas radicalmente diferentes. A
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transposição do original para cada um desses filmes envolveu processos semelhantes
– escolha de elenco, transposição de tempo e espaço, uma escolha do que mostrar ao
olhar do espectador, uma trilha sonora, opções por ritmos de ação, por
enquadramentos, enfim: o que mudar e o que conservar da obra original. A partir daí,
os caminhos que os dois filmes tomaram foram radicalmente diferentes.
Luhrman manteve o texto de Shakespeare, adaptando o cenário para uma
suposta Verona Beach, na Flórida contemporânea, com dois tubarões da indústria
capitaneando os clãs rivais. Num rasgo politicamente correto, os papéis de Mercúcio e
do Príncipe (transformado no chefe de polícia Prince) foram entregues aos atores afroamericanos Harold Perrineau e Verdie Curtis-Hall. Tal mudança, para Mercúcio, é
totalmente justificável: o Mercucio original é irreverente, ri muito e, mais importante, faz
piadas à vontade com a sexualidade. O norteamericano branco e protestante
dificilmente assume tal comportamento, devido às pressões da própria cultura; já o
afroamericano, que durante séculos foi insultado como “inferior”, “primitivo”, rebateu a
ofensa tranformando-a em bandeira político-cultural: sim, nós somos sensuais, não
temos vergonha de fazer sexo, somos muito mais saudáveis do que vocês, brancos
reprimidos. O comportamento de Mercucio é perfeitamente compatível com certos
aspectos da cultura urbana afrodescendente nos EUA.
Já a reprovação de Prince sobre a morte dos amantes, "Perdi hoje dois
parentes", soa, no mínimo, incongruente, após a construção da figura do policial como
homem que apela para o abuso de poder a fim de manter o controle sobre a cidade.
Esse "parentesco" fica inverossímil, seja do ponto de vista objetivo (um casamento
inter-racial é muito mais problemático nos Estados Unidos do que no Brasil), seja do
simbólico (o policial que abusa do poder a ponto de ameaçar de morte e mandar banir
jovens delinquentes não seria capaz de sentir-se "parente" dos jovens).
O único momento em que Lurhmann foge deliberadamente do drama original
é o momento da dupla morte: na peça, Romeu morre e logo a seguir Julieta acorda,
vivendo seu drama em plena solidão e tomando a decisão de matar-se. No filme, ela
acorda antes do veneno fazer efeito sobre Romeu, permitindo aos amantes uma última
troca de palavras. O efeito emocional barato e apelativo, adocicado mesmo, da cena,
pode ser qualificado como tipicamente kitsch.
O kitsch será aqui (grosseiramente) definido como o deslocamento de um
elemento para um contexto no qual ele perde totalmente seu significado, tornado
decorativo por imposição, sem lógica nem necessidade. Ou, em termos platônicos,
uma cópia cuja relação com o original é tênue e distorcida. Por exemplo, um pinguim
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de geladeira. Não é o animal, mas uma peça de gesso ou de louça; não tem função
nenhuma a desempenhar em cima do eletrodoméstico; não tem valor afetivo,
simbólico, financeiro e seu valor estético é questionável: só se pode afirmar que é uma
piada com a idéia de “frio”. Idem, um flamingo de louça espetado no meio de um
jardim, imitando o flamingo verdadeiro que habitaria o jardim de um aristocrata. O
kitsch pressupõe inadequação entre o objeto e seu formato, tamanho, finalidade,
material. Assim, vários elementos que compõem o universo shakespeariano
aparecerão deslocados, como o outdoor do uísque Próspero (remetendo à
Tempestade), ou as armas de que trataremos adiante.
A sequência inicial do filme é antológica, com um aparelho de TV entrando
em sintonia sobre um fundo preto e mostrando uma âncora recitando o prólogo,
enquanto as imagens piscam atrás dela, imitando noticiários sensacionalistas. O
aparelho de TV é vagamente antiquado: é a primeira indicação da estética do filme,
que entre outras coisas, utiliza o kitsch de maneira a fazer o espectador atento
questionar o deslocamento e o apagamento das origens do universo shakespeariano –
e, por extensão, da chamada “alta cultura”.
Acabado o prólogo, uma voz, cujo emissor não se vê, repete as primeiras
linhas, enquanto tipos gráficos vão sendo projetados na tela, repetindo partes do
mesmo texto. A velocidade das palavras projetadas é alta e tudo leva o espectador a
uma sensação de vertigem, como se um encantamento estivesse sendo lançado. A
seguir, principia a ação quando um grupo de jovens usando tatuagens e camisas
berrantes desabotoadas, deixando ver os coldres das armas, chega num posto de
gasolina, onde acontecerá o primeiro confronto entre Montéquios e Capuletos. A fala
inicial "I'm a pretty piece of flesh" (sou um belo pedaço de carne) é acompanhada da
imagem do ator lambendo o próprio mamilo, com a intenção de provocar e chocar os
circunstantes. As espadas e floretes são transformadas em armas de fogo cujas
marcas são "Sword", "longsword", "dagger" e "rapier" (espada, adaga, florete). Aliás, o
fato das marcas dos revólveres serem mostradas nitidamente enquanto as vozes dos
atores as pronunciam não é só recurso didático: juntamente com as palavras
impressas que surgem na tela durante o prólogo, elas remetem ao universo da palavra
impressa, ou mais simplesmente ainda ao universo da palavra, a palavra
shakespeariana, mas de uma forma inegavelmente kitsch: para que batizar armas de
fogo com o nome de armas brancas antigas?
Mas o filme joga o tempo todo com o duplo código: a palavra ora como
sublime, encantatória, instrumento da Poesia; ora como degradada, tranformada em
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objeto de consumo de uma burguesia ascendente incapaz de dominar os códigos
estéticos da aristocracia, contentando-se com simulacros baratos. Em dois momentos
do filme, aparece um out-door com a palavra "Love" (amor) escrita com a fonte do
logotipo da Coca-cola, trazendo uma associação rica do sentimento puro com o
consumo, a reificação daquilo que o homem tem de mais humano (o próprio consumo
do filme!) ou, numa outra leitura, o fato do amor permear toda a estória de forma tão
onipresente quanto a Coca-cola no mundo contemporâneo. Na sequência inicial, a
briga no posto de gasolina, os esforços de Benvolio para "apagar" os ânimos serão
inutilizados pela disposição assassina de Tebaldo; logo antes do aparecimento deste
último, o rangido da placa do posto assusta Benvolio; a câmara mostra as palavras
"add more fuel to your fire" (ponha mais combustível no seu fogo), slogan suposto da
distribuidora de combustível, mas na prática indicando o que irá acontecer a seguir.
Jornais e revistas também aparecerão com imagens e palavras impressas,
além das legendas. Especialmente na brilhante sequência de abertura, num ritmo
rapidíssimo, trechos como "ancient grudges" (antiga inimizade), new mutiny (novo
confronto) e "civil blood makes civil hands unclean" (sangue de cidadãos mancha as
mãos de cidadãos) surgem em jornais; e, nas revistas, os cortes são rápidos, mas
permitem ao espectador decifrá-los. A revista Timely reza "Mont vs. Capul", seguida
de uma foto de Benvolio e, abaixo, "yout(h) braw(l)" (jove(ns) desord(eiros); as
palavras "they bleed" (eles sangram) surgem na revista cujo nome é parcialmente
mostrado, Prophes(y?), e a revista Bullet traz o anúncio de um revólver com o slogan
"shoot forth thunder" (atire/arremesse/ um trovão, com trocadilho). A palavra
shakespeariana não somente vem anunciar a tragédia, mas também foi ironicamente
apropriada pela sociedade de consumo, como no out-door que anuncia o uísque
Prospero, nome do protagonista de A Tempestade, outra peça de Shakespeare.
A atmosfera de pesada religiosidade da Verona shakespeariana é bem
traduzida pelas estampas de certas camisetas usadas pelos personagens,
especialmente os Capuleto, e a decadência moral das famílias é bem mais explorada
no filme do que na peça original. Já o cenário da abertura, as duas torres das famílias
rivais separadas por um enorme Cristo de braços abertos, num gesto ambíguo entre
abençoar e separar, dá à dimensão religiosa uma proporção mais contemporânea: a
câmara mostra a estátua gigantesca para, logo a seguir, recuar e mostrar como essa
mesma estátua fica pequena junto às torres dos magnatas. O helicóptero de Prince
sobrevoa tal cenário, como se, do alto, controlasse tudo. Na praia, surge uma
marquise velha anunciando um "Globe Theater", nome do teatro onde as peças do
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Bardo eram apresentadas na Londres dos Tudors; e o duelo de Tebaldo e Mecúcio se
dá nas ruínas de um teatro semi-enterrado na praia; Shakespeare é citado novamente,
através do cenário. Essa onipresença é, ao mesmo tempo, uma homenagem à sua
influência na cultura ocidental e uma ironia contra uma sociedade que se apropriou
dos símbolos dessa cultura para transformá-los em objeto de consumo. Por isso, o
teatro está em ruínas e os out-doors e anúncios de revistas estão em ótima forma.
A árvore genealógica das famílias é mostrada numa página de revista, com a
estátua do Cristo a separá-las na mesma posição em que separa os arranha-céus. Os
pais dos jovens são fisicamente parecidos: é como se fossem equivalentes. Já as
mães de ambos são notavelmente diferentes. Lady Montéquio, aristocrática e
silenciosa, tem um olhar expressivo e sofrido, sugerindo ao espectador toda uma
estória anterior de "pobre menina rica" que teria, inclusive, atingido seu único filho. Já
Lady Capuleto é mostrada de forma tão caricata quanto a ama de Julieta: sempre aos
berros e movendo-se o tempo todo, com o recurso da câmara rápida para acentuar
isso. Sua própria beleza é vulgar; ela flerta abertamente com Tebaldo e Páris. Aliás,
seu envolvimento com Tebaldo explica perfeitamente a histeria vingativa quando o
sobrinho morre. O único momento em que ela surge lenta e grave é quando dá as
costas a Julieta no momento em que esta desafia o pai, recusando o casamento com
Páris. Trata-se de um simulacro de grande dama, enfeitada e coberta de jóias, mas
incapaz de esconder a falta de “qualidades” (educação, refinamento, discrição –
mesmo quando tinha casos extraconjugais, a dama devia ser discretíssima) que
constituíam o modelo imitado.
Frei Lourenço é mostrado como uma espécie de ponte entre o mundo dos
tubarões da indústria, suas esposas entediadas, seus acordos políticos (Páris corteja
mais Capuleto pai do que a filha) e o mundo dos jovens herdeiros, cheios de uma
energia que precisa encontrar vazão; as drogas e a violência são opções naturais.
Assim, Frei Lourenço tem uma enorme tatuagem representando uma cruz nas costas,
sob a batina, mostrando seu lado anticonvencional; mas dedica-se a promover o
casamento entre Romeu e Julieta na esperança de reconciliar as famílias, obtendo
uma vitória não somente moral, mas política, como indicam as imagens que
acompanham seu pensamento quando resolve casar os jovens. Fotos dos noivos e
uma primeira página de jornal mostrando os pais de ambos apertando as mãos
sugerem que Frei Lourenço, apesar de bem-intencionado e genuinamente interessado
no destino do casal, não deixa de enxergar o quanto essa reconciliação pode significar
para si em termos de prestígio. A mídia, como já dissemos, permeia a ação, desde os
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flashes de tele-reportagem, da primeira aparição de Páris (não pessoalmente, mas na
capa de uma revista, com o subtítulo "O solteiro do ano"), até à própria sequência do
helicóptero de Prince, mostrada como num seriado de TV.
A festa a fantasia na mansão dos Capuleto permite uma série de ironias a
partir das fantasias: Romeu de cavaleiro medieval estilizado, Julieta de anjo (os
puros), sua mãe de Cleópatra, o pai de Marco Antônio (os devassos), Tebaldo de
demônio, o pretensioso Páris de astronauta e Mercúcio de drag queen. Aliás, a
sexualidade polimorfa de Mercúcio também foi sugerida, embora de forma mais
ostensiva, no ballet coreografado por Rudolf Nureyev onde, após uma série de
brincadeiras de cunho sexual com a ama de Julieta, Mercucio é beijado na boca por
Romeu, que se coloca como viúva num enterro de brincadeira, no momento em que
todos pensam que o ferimento mortal feito por Tebaldo era apenas um arranhão.
Northrop Frye aborda a questão de forma diferente, colocando o problema no molde
elizabetano da amizade masculina que deve se sobrepor ao amor no seu ensaio sobre
Romeu e Julieta (1999: 37).
Os meios de comunicação falham: a carta registrada urgente não alcança o
destinatário, nem o telefone o alcança no parque de trailers, onde o exilado Romeu se
refugia após o banimento. Uma versão um pouco mais atual teria que dar conta
também das falhas do telefone celular e talvez no e-mail do laptop.
Uma das passagens poéticas mais felizes do texto original, o belo trecho no
qual Mercucio descreve a Romeu a Rainha Mab, é transformado numa apologia ao
LSD, ou ao ecstasy que matiza a primeira visão que Romeu terá de Julieta. Isso dá o
que pensar: o ecstasy é a droga que detona sensações descritas como “estar
apaixonado”. O encontro de Romeu, sedento por estar sob efeito do ecstasy, com
Julieta, insinua-se, também é um simulacro: o da paixão arrebatadora e pura tornada
efeito de uma droga.
O fecho, com a âncora repetindo as palavras finais e a TV saindo de sintonia,
seguido pela sequência da retirada dos corpos, a reprovação de Prince e o encontro
perplexo dos pais dos jovens à guisa de epílogo, alterando a ordem original da peça,
também
segue
uma
convenção
utilizada
principalmente
em
narrativas
cinematográficas e televisivas, bem como na estratégia de certos comerciais de TV:
após a apresentação da "mensagem principal", a diegese (ou a persuasão) encerrada,
surgem mais fragmentos de ação como uma espécie de "brinde" ao espectador,
assegurando o prosseguimento lógico da ação, sem maiores surpresas.
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A bela adaptação de Baz Luhrmann joga com o universo shakespeariano e o
mundo contemporâneo de forma sempre dúplice: ora através da recuperação dos
elementos elizabetanos (que não se esgotam neste estudo; já observamos a sábia
utilização dos quatro elementos de Galeno no mesmo filme em “Os Quatro Elementos
em Romeu & Julieta, de Baz Luhrmann”), podendo ser lida como homenagem ao
universo do criador seiscentista, ora como degradação dos mesmos através do kitsch.
Mas mesmo essa visada não é invenção do roteirista, senão um conhecimento do
mundo de Shakespeare: suas peças eram apresentadas à côrte, mas também nos
teatros londrinos, onde eram vistas pelo populacho, que comia e bebia durante as
cenas mais sublimes, gritava avisos a Romeu de que Julieta não estava morta,
xingavam Iago ou jogavam restos de comida no ator que o representava. Séculos
depois, a obra será entronizada no cânone ocidental e considerada “alta literatura”,
portanto difícil e sublime demais para o mesmo populacho que com ela se divertia e se
emocionava em 1600. A ambiguidade na difusão e na recepção das obras do
dramaturgo inglês é uma característica que esteve presente desde suas primeiras
representações.
REFERÊNCIAS
FRYE, N. Sobre Shakespeare. 3 ed. São Paulo: EDUSP, 1999.
LUHRMAN, B. (dir.). Romeo + Juliet. EUA, 1996.
MOLES, A. – O Kitsch. São Paulo: Perspectiva, 1991.
ROBBINS, J. West Side Story. EUA, 1961.
SHAKESPEARE, W. Romeo & Juliet. London: The New Folger Library, s/d.
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