O Jusnaturalismo de Cícero e de Francisco Suárez

Transcrição

O Jusnaturalismo de Cícero e de Francisco Suárez
O JUSNATURALISMO DE CÍCERO E DE FRANCISCO SUÁREZ
Michele Eduarda Brasil de Sá
Professor Assitente de Língua e Literatura Latina – UFRJ
Bacharel em Direito – Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas (RJ)
O presente trabalho tem por objetivo apresentar, ainda que de maneira superficial,
um dos temas mais ricos da Filosofia do Direito, a saber, o Jusnaturalismo, na visão de dois
de seus grandes expoentes: Marco Túlio Cícero (106 – 43 a.C.) em seu De Legibus e
Francisco Suárez (1548-1617 d.C.) em seu Tractatus de legibus ac Deo Legislatore. Apesar
de separados por séculos, ambos integram o esteio dos debates acerca do Direito Natural,
que encontra desdobramentos atualmente em questões relativas principalmente ao direito
internacional (v.g.: conceito de guerra justa) e aos direitos humanos (v.g.: pena de morte,
eutanásia, sacrifícios humanos), para citar apenas alguns exemplos.
Na Antigüidade, na transição da Idade Média para a Moderna ou no dias de hoje,
o estudo do Jusnaturalismo encontra muito espaço. Seja qual for a maneira de se interpretar
o que seja o Direito Natural, ele diz respeito à natureza do próprio homem – por isso, sua
discussão atravessa os séculos.
CÍCERO E O DE LEGIBUS
A construção do direito, nos primórdios da história de Roma, era incumbência dos
pontifices maximi1. Estes sacerdotes tinham a responsabilidade de zelar pela tradição
romana, estabelecendo a ordem temporal – através da marcação dos dias fastos e nefastos –
presidindo as orações e cultos aos deuses, pregando os mores maiorum2. As leis eram assim
ditadas por estes pontífices e o julgamento acontecia à sombra das tradições dos
antepassados.
Já durante o período da res publica, os Decênviros iniciaram uma codificação do
direito que ficou conhecida como as Leis das XII Tábuas (Leges Duodecim Tabularum),
1 Pontifex maximus – “sumo pontífice”, responsável pelos rituais religiosos. Cf. pons, pontis: eles eram
considerados a “ponte” entre o humano e o divino.
2 Mores maiorum – “costumes dos antepassados”.
1
por volta do ano 450 a.C., que foi uma iniciativa de fixação por escrito do direito em
vigência, o qual deveria estar exposto no Fórum, para público conhecimento. Isto fazia
enorme diferença: um cidadão poderia defender-se contra arbitrariedades de poderosos
inescrupulosos com uma arma muito mais poderosa que simplesmente a tradição e o
costume. Afinal de contas, os procedimentos e as penalidades bem definidas davam maior
segurança a um número maior de pessoas. Isto acarretou um processo que podemos chamar
de laicização do direito insurgente. Já não eram mais os pontífices que detinham consigo o
poder de legislar e julgar, mas sim alguns nobres que foram paulatinamente – e no decorrer
dos séculos seguintes – se especializando na interpretação, na criação e na execução das
leis.
Mudaram as coisas? Em termos. Afinal, a interpretação do direito continuou
privativa de quem detinha o poder na cidade. Também não significa que o caráter sacro das
leis tivesse sido enfraquecido – antes pelo contrário, a lei ganhou força maior por
constituir-se uma forma de manter a ordem interna na Urbs e, depois, no Império
conquistado.
Começam a destacar-se, então, os primeiros grandes pensadores do direito romano –
que serve de esteio para o direito ocidental moderno, direta ou indiretamente. Um dos
principais representantes deste grupo é, sem dúvida, Marco Túlio Cícero, que, embora
tenha se destacado muito mais pelos seus discursos jurídicos e por seu papel de defensor
público, contribuiu de maneira notória para a formulação do conceito e dos elementos das
leis em dois de seus tratados filosóficos: o De Republica e o De Legibus.
Influenciado por Platão, Cícero escreveu o De Republica, na qual defende o modo
republicano de Roma, no qual aos aristocratas mais educados e ricos detinham cabia todo o
poder político. Complementando esta obra, Cícero escreveu o De Legibus, na qual ele
apresenta sua noção a respeito de lei e justifica certas leis romanas de então. O De Legibus
é composto de cinco livros, mas apenas os três primeiros chegaram até nós.
É evidente, ao longo do texto, que Cícero não tem como meta propor uma nova
legislação, antes colaborar com a já existente, até certo ponto tentando refrear mudanças.
No De Legibus, escrito em forma de diálogo, Cícero debate com seu irmão Quinto e seu
amigo Ático sobre a sua idéia a respeito de lei e sobre quais as leis mais importantes para
proteger a religião e a tradição. Note-se que o contexto histórico do De Legibus é o
2
momento da explosão demográfica e da expansão territorial de Roma, que deixava de ser
uma cidade-Estado para se tornar o centro de um extenso Império territorial.
Baseando-se em preceitos da filosofia grega estóica e da Academia, Cícero concebe
o direito como algo racional e natural:
“A lei é a razão suprema da Natureza, que ordena o que
se deve fazer e proíbe o contrário. Esta mesma razão, uma vez
confirmada e desenvolvida pela mente humana, se transforma em
lei. Por isso, afirmam que a razão prática é uma lei cuja missão
consiste em exigir as boas ações e vetar as más.” (I, 6)3
É a natureza que faz com que os homens sejam capazes de discernir entre o bem e o
mal, o honroso do desonroso. Desta forma, na concepção ciceroniana de lei, o agir com
justiça e honestamente é simplesmente seguir a natureza, de acordo com a vontade das
divindades. Dada esta proporção universal/natural da lei, torna-se evidente o motivo pelo
qual a lei romana para Cícero era em si natural e comum a todos os seres humanos, e
justifica a transmissão desta lei a todos os povos através do Império territorial. A lei natural
une os homens entre si e, ao mesmo tempo, une homens e deuses.
“Mas os que possuem a lei em comum também
participam em comum do Direito, e os que partilham a mesma lei e
o mesmo direito devem considerar-se como membros de uma
mesma comunidade. Muito mais evidente ainda é tudo isto se
obedecem às mesmas autoridades e aos mesmos poderes. Eles (os
homens) obedecem também à presente ordem celestial, à mente
divina e aos deuses onipotentes. Logo, devemos considerar que o
nosso universo é uma só comunidade, constituída pelos deuses e
pelos homens.” (I, 7)4
3 CÍCERO, Das Leis, p. 40.
4 Ibidem, p. 42.
3
Pela sua origem e pelas suas características, a lei natural exclui a necessidade –
embora não negue a existência – de registro escrito:
“Assim, existe um só Direito, aquele que constitui o vínculo
da sociedade humana e que nasce de uma só Lei; e esta Lei é a
acertada em tudo quanto ordena e proíbe. Quem a ignora é
injusto, esteja ela escrita ou não em alguma parte.” (I, XV, 42)
“Existia, pois, uma razão derivada da natureza das coisas,
incitando ao bem e afastando do mal, que para chegar a ser Lei
não necessitou ser redigida, pois que já o era desde sua origem. E
sua origem é tão antiga como a mente divina.” (II, IV, 10)5
O segundo livro do De Legibus é um comentário a respeito das leis sacras – a
legislação romana reguladora do culto aos mortos e das prescrições religiosas para cultos e
realização de sacrifícios. É verdade que a religião romana era impregnada de práticas ricas
em detalhes e ritos cheios de condições; tudo deveria ser feito de acordo com a tradição,
sob o risco de se transformar a bênção pedida em maldição. Algumas destas crenças, por
influência de religiões estrangeiras, acabaram sendo deixadas em segundo plano. No
período histórico do fim da República, estas leis vinham valorizar o mos maiorum e
garantir o governo aristocrático.
Era imprescindível preservar os cultos aos heróis romanos e às virtudes, conceder
poder moderado aos áugures (que, tendo poder religiosos, muitas vezes acabavam por
influir de maneira direta e decisiva nas questões políticas), regularizar a prática dos
funerais, organizar a utilização dos campos, restringindo a sua consagração a divindades, o
que os tornaria improdutivos. Estas leis sacras, na verdade, eram muito mais que
ordenadoras da vida religiosa de Roma: elas alcançavam também a política, a sociedade e a
economia. A religião tradicional seria capaz de abrandar os levantes populares – bastante
comuns àquela época de conjurações e guerras civis – e se tornaria uma arma importante a
fim de garantir a ordem.
5 CÍCERO, Das Leis, pp. 42 e 65.
4
Por fim, o terceiro livro do De Legibus trata dos poderes e atribuições dos
magistrados romanos, dos quais dependia, segundo Cícero, a conservação do Estado. Não é
à toa que Cícero é conhecido como um dos maiores defensores da República, pois dá suma
importância ao cursus honorum6, uma das características estruturais do sistema. No entanto,
para o presente trabalho, que versa sobre o jusnaturalismo, este terceiro livro encontra-se
em plano secundário, apesar de terem os magistrados prerrogativas de natureza religiosa.
SUÁREZ E O DE LEGIBUS
Francisco Suárez (1548-1617) foi padre jesuíta e professor de teologia na
Universidade de Salamanca, na Espanha. Suárez vivenciou o momento crítico da transição
entre a era medieval e a moderna, com todos os seus conflitos, especialmente no
concernente à ordem política e religiosa, perturbada por debates e guerras entre os povos
europeus e entre confissões cristãs (Catolicismo e Protestantismo).
Das muitas obras que escreveu, todas de considerável relevância para estudos de
teologia, filosofia e política7, uma das mais importantes é o Tractatus de legibus ac Deo
Legislatore (chamado mais comum e simplesmente de De Legibus), obra pormenorizada a
respeito das leis e uma defesa cabal da figura divina como a fonte suprema não só da
justiça, mas também do direito. Suárez levou trinta anos para concluir o De Legibus.
Os dez livros do tratado De legibus contêm os conceitos da lei em geral; as
relações entre moral e direito e entre direito internacional e direito natural; princípios
fundamentais do ius gentium; considerações acerca da origem do poder político, da
obrigação política e da legitimidade da lei humana positiva; a interpretação, aplicação e
revogação das leis; sua teoria geral da lei canônica, direito eclesiástico e direito penal; e o
seu entendimento a respeito da relação entre o Estado e as Igrejas – principalmente no que
tange ao poder político. Sua abordagem é escolástica/tomista, reforçada sempre por muitas
6 Cursus honorum – a “carreira das honras”, ou “carreira das magistraturas”: cargos públicos estabelecidos
em hierarquia, com mandato de um ano.
7 “O lugar cimeiro de Suárez entre os pensadores políticos do Ocidente que ajudaram a recriar uma ordem
intelectual, resulta de ele ser o derradeiro doutor escolástico a transmitir a herança medieval como também o
inaugurador de um mundo novo, uma evidência habitualmente encoberta pelos lugares comuns da ciência
política, pela argumentação juspositivista ou, tão só, pela ignorância.” HENRIQUES, Francisco Suárez:
Introdução para o leitor do séc. XXI.
5
citações. Até pela maneira como foi elaborada, “a obra de Suárez teve um papel decisivo no
restabelecimento de critérios teóricos no debate do início do séc. XVII, completamente
degradado pelo choque das idéias político-religiosas”8.
Já no prólogo do seu De Legibus, Suárez apresenta a sua justificativa para que um
teólogo se ocupe de leis (um assunto considerado particular aos juristas)9, apresentando três
argumentos básicos, dado que a teologia é sobrenatural e outras ciências (filosofia, direito,
por exemplo) se apropriam das leis divinas em seus estudos: a) De Deus procedem todas as
leis, tanto as divinas quanto as humanas; b) a retidão de consciência está baseada na
observância das leis, ou seja, a lei torna-se vínculo da consciência; c) a medida da
obediência às leis está na fé.
Como Cícero10, Suárez também oferece à filosofia um lugar de destaque,
principalmente na questão da interpretação das leis e da jurisprudência. Para ele, a
jurisprudência nada mais é que “uma aplicação extensiva da filosofia moral em ordem à
direção e governo da conduta cívica dos cidadãos”11. Baseia-se em Cícero e em Platão ao
argumentar que a lei é medida de retidão12, ou seja, preceitos injustos não devem ser
considerados leis, porque é prerrogativa da lei o ser ela justa.
A fim de tratar da distinção entre lei e direito, Suárez parte, tradicionalmente, da
etimologia. Apesar de não apresentar a sua própria etimologia da palavra “lei”, nem sugerir
dentre as apresentadas a que ele considera a mais apropriada, Suárez mostra as várias
possibilidades, pelos argumentos de Tomás de Aquino, Agostinho, Isidoro, Cícero e até por
passagens das Sagradas Escrituras. “Lei” pode advir da mesma raiz de ligare, ou da raiz de
8 HENRIQUES, Francisco Suárez: Introdução para o leitor do séc. XXI.
9 “A nadie debe sorprender que un teólogo se dedique a escribir de leyes. El alto rango que la teología posee
y que le viene de Aquel que constituye su muy elevado objeto, disipa cualquier motivo de sorpresa. Es más, si
nos fijamos bien, nos daremos perfecta cuenta de que hablar de leyes entra dentro del ámbito de la teología,
de tal forma que no podrá el teólogo agotar hasta el fondo la matéria teológica, si no se detiene a estudiar las
leyes. Em efecto, uno de los muchos aspectos que el teólogo há de examinar en Dios es el de que constituye el
fin último al que tienden las criaturas racionales y que en El se basa su única felicidad.” (SUÁREZ, De
Legibus, I, p. 2.
10 “(...) a ciência do Direito não deve ser haurida no edito do pretor, como hoje se pensa geralmente, ou na
Lei das XII Tábuas, como antes se fazia, e sim no âmago mesmo da filosofia.” CÍCERO, Das Leis, p. 39.
11 Ibidem, p. 5.
12 “(...) la ley es una medida de rectitud; ahora bien, la ley injusta no es medida de rectitud del
comportamiento humano, sino que, más bien, la acción conforme a aquélla es injusta; luego no es ley, sino
que recibe el nombre de ley por cierta analogía, en cuanto que establece un determinado modo de obrar con
miras a un fin.” SUÁREZ, De Legibus, I, I, 6.
6
legere, que significa “ler” – pressupõe-se neste caso a norma escrita – ou ainda
“escolher”13.
Em se tratando da origem etimológica de ius, iuris (“direito”), Suárez apresenta
três diferentes explicações e assume a terceira como aquela com a qual ele concorda14. De
acordo com a primeira, ius deriva-se do verbo iungo, iuxtum, que significa “unir”, “atar” e,
por extensão de sentido, “estar bem próximo”. Esta versão corresponde, como podemos
perceber, ao entendimento de que lex provém de ligare. A segunda propõe que ius esteja
relacionada ao verbo iubeo, iussum, que quer dizer “dar ordem”, “determinar”, “mandar”.
A terceira, abraçada por Suárez, deriva ius de iustitia e iustus, -a, -um (e não o contrário, ou
seja, iustitita e iustus de ius). Isto para fazer valer a idéia de que o direito nasce do que é
justo e reto, e da própria justiça em si – até mesmo porque ela era amplamente louvada
entre os romanos, a ponto de ter sido personificada e divinizada numa imagem que perdura
até hoje, uma figura de mulher com uma balança na mão e olhos vendados. Este
pensamento corrobora Suárez afirmar que só é lei de verdade a lei que for realmente justa15.
A LEI NATURAL EM CÍCERO E SUÁREZ
Tanto Cícero quanto Suárez são reconhecidamente autores jusnaturalistas. Diante de
circunstâncias de conflito político e crise religiosa, embora por motivações e em proporções
diferentes, é claro, tornaram-se baluartes do jusnaturalismo. O debate a respeito do direito
natural e do direito positivo continua até hodiernamente. Mesmo os filósofos do Direito
contemporâneos, como Hart e Dworkin, reconhecem que a lei positiva não basta para
estabelecer o Direito16. Como já dissemos anteriormente, ainda que pareça tratar-se de um
assunto vendido ao passado, a discussão é muito atual – principalmente no que diz respeito
13 Este é o mesmo entender de Cícero: “Julgam que esta lei deriva seu nome grego da idéia de dar a cada um
o que é seu, e eu julgo que o nome latino está vinculado à idéia de ‘escolher’: pois sob a palavra lei eles
apresentam um conceito de eqüidade e nós um conceito de escolha, e ambos são atributos verdadeiros da lei.”
E ainda: “Para maior clareza, na própria definição da palavra lei, estão incluídos o propósito e a idéia de
eleger o justo e o verdadeiro.” CÍCERO, Das Leis, pp. 40 e 66.
14 SUÁREZ, De Legibus, I, II, 1-3.
15 Após os esclarecimentos de ordem conceitual e etimológica, Suárez escolhe tratar “direito” e “lei” como
sinônimos. Isto se estende, obviamente, às expressões “direito natural” e “lei natural”, as quais ele utiliza
indistintamente. Ibidem, I, II, 11.
16 BEUCHOT, p. 287.
7
ao “direito dos povos”, ou “direito das gentes” (ius gentium), tema que pertence tanto ao De
Legibus de Cícero quanto ao de Suárez.
A própria definição ciceroniana de lei (“a lei é a razão suprema da Natureza, que
ordena o que se deve fazer e proíbe o contrário”) parte da Natureza, e encontramos este
entendimento ao longo de todo o livro I do De Legibus:
“Temos de explicar a natureza do Direito e buscaremos a
explicação no estudo da natureza do homem.” (I, V, 17)
“Por isso buscarei a fonte do Direito na Natureza, que há
de ser nosso guia no curso de toda essa discussão.” (I, VI, 20)
“Mas, entre todas as questões que constituem o objeto
das discussões científicas, nada é tão essencial como o
compreender plenamente que nascemos para a justiça e que o
Direito não se baseia em convenções, mas sim na Natureza.”
(I, X, 28)
“Já não se acredita que um tema como o nosso possa
esgotar-se sem estabelecer previamente, mas paralelamente, que a
Natureza é a fonte do Direito.” (I, XIII, 36)17
Das quatro categorias de leis estabelecidas por Platão18 – divina, natural, humana e
celeste – esta última não encontra defesa entre os teólogos como Suárez. Quanto às
categorias restantes, Suárez as aceita e sobre elas trabalha uma classificação própria. Faz
equivaler a lei divina à lei chamada eterna pelos teólogos. A lei humana é chamada de
positiva. A lei natural não recebe outro designativo. O mais importante, porém, é que
Suárez diz que tanto a lei natural quanto a positiva (seja ela civil ou eclesiástica) são
também divinas na medida em que são dadas por Deus19.
17 CÍCERO, Das Leis, pp. 40, 41, 44 e 47.
18 SUÁREZ, De Legibus, I, III, 5.
19 Ibidem, I, III, 9 e 20.
8
Suárez adota um conceito de lei natural mais abrangente que o tradicional,
encontrado no Corpus Juris Civilis: “Neminem laedere, suum cuique tribuere et pie
vivere”20. Para ele, a vontade humana é integrante da lei natural, mas a origem desta está
em Deus. A lei natural, para Suárez, não tem sua obrigatoriedade toda relegada ao comando
divino, mas parte dela está fixada na própria razão humana21. Quanto à natureza humana,
Suárez não a considera como lei de maneira alguma. A natureza humana é o fundamento da
lei natural, mas não é uma lei natural por si mesma22. Esta natureza humana racional é o
ponto fulcral de sua argumentação:
“O primeiro esforço de Suárez é o de distinguir entre
natureza racional e lei natural. A natureza racional funda a
bondade objectiva dos actos morais dos seres humanos, mas não
pode ser chamada lei. É um critério mais extenso do que a lei (II,
5,6). Enquanto base da conformidade dos actos humanos consigo
próprios, a natureza racional é base da rectidão natural, sendo a
razão natural o poder de discriminar actos que estão em harmonia
consigo mesmo (II, 5, 9). Em sentido estrito, a lei natural consiste
no julgamento da mente.” 23
Como a natureza é comum a todos os homens, Suárez (acompanhando Aristóteles,
Tomás de Aquino e Cícero) compreende que a lei natural é uma só para todos os homens,
em qualquer lugar. Apesar da objeção de que muitos povos tenham criado leis contrárias à
lei natural, Suárez responde que ainda assim a lei natural é uma só para todos, mas nem
todos têm pleno conhecimento a respeito dela.
“Respondo brevemente, con palabras de Santo Tomás,
que la ley natural es única en su esencia para todos los hombres,
20 “A ninguém prejudicar, dar a cada um o que é seu e viver piedosamente.”
21 BEUCHOT, La ley natural en Suárez, p. 281.
22 Ibidem, p. 280.
23 HENRIQUES, Francisco Suárez: Introdução para o leitor do séc. XXI.
9
pero que no todos ellos tienen um conocimiento – digamos –
completo de ella.”24
Também no raciocínio ciceroniano, razão, natureza e lei estão de tal forma
interligados que se identificam. Assim como esta razão é una e própria de todos os homens,
segundo a sua natureza, a lei natural é também uma só:
“Assim, os que receberam a razão da Natureza, também
receberam a justa razão e conseqüentemente a Lei, que nada mais
é que a justa razão no campo das concessões e das proibições. E,
se receberam a Lei, também receberam o Direito.” (I, XII, 33)
“Assim, existe só um Direito, aquele que constitui o
vínculo da sociedade humana e que nasce de uma só Lei; e esta
Lei é acertada em tudo quanto ordena e proíbe.” (I, XV, 42)25
Vinculando a Natureza, a Razão e a Lei, Cícero advoga ser natural ao homem
buscar a justiça e o Direito, uma vez que só é possível amar algo se a natureza assim
impelir. Desta maneira, a justiça não se satisfaria através de recompensas, mas bastaria a si
própria em sua concretização. A Natureza conduziria à elaboração de leis em plena
conformidade com ela. A ordem gerada por essas leis traria a felicidade completa, o bem
supremo. É natural do homem o repelir a injustiça, e a distinção entre o bem e o mal se dá
pela Natureza:
“Se o que separa os homens da injustiça fosse somente o
castigo e não a Natureza, os maus não sentiriam preocupação
alguma, tão logo desaparecesse o temor aos suplícios.”
(I, XIV, 40)26
24 SUÁREZ, De Legibus, II, VIII, 5.
25 CÍCERO, Das Leis, pp. 42 e 49.
26 Ibidem, p. 48.
10
“E nós, para distinguirmos o bem do mal, não temos outra
solução que não seja recorrer à Natureza. É ela que nos permite
discriminar o Direito e a justiça como também o honroso do
desonroso em geral. A Natureza nos deu inteligências comuns e
implantou seus gérmens em nossos espíritos para que pudéssemos
relacionar o honroso com a virtude e o desonroso com o vício.
Seria preciso ser louco para crer que estas distinções se baseiam
em convenções e não na Natureza.” (I, XVI, 44-45)27
Tanto Cícero quanto Suárez chamam à discussão política as autoridades religiosas.
Suárez, como teólogo, apresenta-se para discutir a política num período em que a religião e
o Estado ainda estão presos um ao outro. Na Antigüidade, é indiscutível o poder político
dos áugures, destacado por Cícero no livro II do De Legibus:
“No Estado, porém, o direito de maior importância e de
maior prestígio é o dos áugures, ao qual está ligada a
autoridade.(...)Pois, em matéria jurídica, que pode ser superior ao
direito de adiar ou dissolver comícios ou assembléias marcadas ou
iniciadas por ordem dos magistrados dotados do maior império ou
de maior poder? Pode haver algo mais imponente que o ato de um
só áugure que, ao pronunciar as palavras ‘outro dia’, interrompe
o curso de uma discussão? (...)” (II, XII, 31)28
A lei positiva é incompleta. Disto, Cícero e, mais tarde, Suárez já tinham noção.
Não é à toa que a obra de Suárez se intitula Tractatus de legibus ac Deo Legislatore. A
imagem de Deus como o supremo legislador, o idealizador da própria natureza, reveste de
um caráter de perfeição (logo, retidão e justiça) o que se quer fazer entender por direito
27 CÍCERO, Das Leis, p. 50.
28 Ibidem, p. 75.
11
natural.29. Se Deus é o autor da lei, ela deve ser necessariamente reta e boa e deve mandar o
que é de acordo com a natureza racional e proibir o contrário30. Acaso não é a perfeição o
que todos os homens sempre almejaram? Entre todos os povos, não há legislação positiva
que supra totalmente as necessidades – a lei positiva não é perfeita, não é completa. A
imperfeição é da natureza do homem – como é também a busca eterna pela perfeição.
CONCLUSÃO
A laicização do Estado não afastou a religião da política. Tanto religião quanto
política pertencem ao mais íntimo das convicções humanas. Tanto Igreja quanto Estado
cumprem o papel de “formadores de opinião”. Cada qual tem suas leis – que às vezes se
chocam – e carrega nas costas as suas inúmeras guerras. Cada qual tem seus erros e seus
acertos. Cícero diria: “De gustibus et coloribus non est disputandum”.31 Hoje, a nossa
versão é: “Não se discute política nem religião”. Mas não se pode abrir mão de nenhuma
delas para estudar o Jusnaturalismo.
Apesar de não vivermos como Cícero na efervescência da República Romana em
seu estágio máximo de expansão, nem como Suárez no surgimento do absolutismo e na
“manifestação” do poder divino dos reis, não podemos negar que ainda hoje religião,
filosofia e política andam de braços dados – talvez até entrelaçados, ou emaranhados. Isto
se deve ao fato de não estarem elas ligadas a uma circunstância histórica, mas à própria
Natureza do homem, seja ele de qualquer lugar, em qualquer época.
29 “Por eso Suárez tiene que acudir a un legislador, porque la naturaleza no legisla, y sería abusivo ver sus
hechos como leyes. Ese legislador es Dios, sin el cual la naturaleza sola no engendra la ley natural.”
BEUCHOT, p. 282.
30 SUÁREZ, De Legibus, II, VII, 1.
31 “Sobre gostos e cores não se deve discutir.” – provérbio romano.
12
BIBLIOGRAFIA
1. BEUCHOT, Mauricio. “La ley natural en Suárez”. In: CARDOSO, A. et alii
(coord.). Francisco Suárez (1548-1617) – tradição e modernidade. Lisboa:
Colibri, 1999.
2. CÍCERO, Marco Túlio. Das Leis. Trad., intr. e notas de Otávio T. de Brito. São
Paulo: Cultrix, 1967.
3. CICÉRON. Traité des Lois. Paris: Société d’Édition Les Belles-Lettres, 1959.
4. GONÇALVES, Ana Teresa Marques. Lei e ordem na República romana: uma
análise da obra De Legibus de Cícero.
Disponibilidade e acesso:
<http://www.unicamp.br/nee/arqueologia/arquivos/historia_militar/lei_ordem.html>
13.jan.2006.
5. SUÁREZ, Francisco. De Legibus. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones
Cientificas, 1971-1973. Vol. I-IV, livros I e II (1ª ed. 1611).
6. HENRIQUES, Mendo Castro. Francisco Suárez: Introdução para o leitor do séc.
XXI. Disponibilidade e acesso: <http://pwp.netcabo.pt/netmendo/Artigo%20Francis
co%20Suarez.htm> 07.jan.2006.