pdf completo - Revista Papeis

Transcrição

pdf completo - Revista Papeis
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)
Papéis : Revista do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagens / Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997)- . Campo
Grande, MS : A Universidade, 1997- .
v. : il. ; 23 cm.
Semestral
Subtítulo anterior: revista de Letras.
ISSN 1517-9257
1. Literatura - Periódicos. 2. Lingüística - Periódicos.
3. Semiótica - Periódicos. I. Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul.
CDD (22)-805
CORRESPONDÊNCIA EDITORIAL
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Centro de Ciências Humanas e Sociais
Papéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
Cidade Universitária, Cx. Postal 549, UNIDADE 4, Campo Grande, MS.
Fone: (67) 3345-7634
e-mail: [email protected]
EDITORA UFMS
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Estádio Morenão, Portão 14, Caixa Postal 549
Campo Grande, MS.
Fone: (67) 3345-7200
e-mail: [email protected]
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
REITORA
Célia Maria Silva Correa Oliveira
VICE-REITOR
João Ricardo Filgueiras Tognini
DIRETORA DE CENTRO
Élcia Esnarriaga de Arruda
COORDENADOR DO PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO
Geraldo Vicente Martins
EDITOR CIENTÍFICO
Geraldo Vicente Martins
EDITORA ADJUNTA DESTA EDIÇÃO
Aparecida Negri Isquerdo
IMAGEM DE CAPA
Carla de Cápua
João de Barro, 2003
Pastel seco sobre papel
39 x 60 cm
Acervo particular
PROJETO GRÁFICO
Eluiza Bortolotto Ghizzi
REVISÃO
A revisão linguística e ortográfica é de
responsabilidade de Aparecida Negri Isquerdo
TRADUÇÃO PARA O INGLÊS
DO TEXTO DA ORELHA
Daniela de Souza Silva Costa
CÂMARA EDITORIAL
Eluiza Bortolotto Ghizzi – Geraldo Vicente Martins – Maria Luceli Faria Batistote – Raimunda
Madalena Araújo Maeda – Willie Macedo de Almeida
CONSELHO CIENTÍFICO
Álvaro Cardoso Gomes [UNIMARCO] – Benjamin Abdala Junior [FFLCH/USP] – Clotilde Azevedo
Almeida Murakawa [FCLAR-UNESP] – Daniel Abrão [UEMS] – Eduardo de Oliveira Elias [UNAES] Gladis Maria de Barcellos Almeida [UFSCAR] – Jacyra Andrade Mota [UFBA] – Jaime Ginsburg [USP]
– Luiz Carlos Santos Simon [UEL] – Luiz Gonzaga Marchezan [FCLAR-UNESP] – Márcia Valéria Zamboni
Gobbi [FCLAR-UNESP] – Maria Cândida Trindade Costa de Seabra [UFMG] – Marilene Weinhardt
[UFPR] – Richard Perassi Luiz de Sousa [UFSC] - Silvia Maria Azevedo [FCL-ASSIS/UNESP] – Thomas
Bonnici [UEM] – Vanderci de Andrade Aguilera [UEL].
Sumário
Apresentação
Dialetologia, Sociolinguística e Toponímia
13
O /R/ CAIPIRA ESTÁ GANHANDO STATUS? O QUE DIZEM OS
DADOS DO ATLAS LINGUÍSTICO DO BRASIL COLETADOS NO
PARANÁ
Vanderci de Andrade Aguilera
27
O PAPEL DAS PESQUISAS SOCIOLINGUÍSTICAS E DIALETOLÓGICAS PARA OS ESTUDOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Suzana Alice Marcelino Cardoso
51
O SENTIDO DE UM ATLAS LINGUÍSTICO NACIONAL (POR QUE
UM ATLAS LINGUÍSTICO NACIONAL?)
Suzana Alice Marcelino Cardoso
65
ETNOTOPONÍMIA EM MINAS GERAIS
Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick
Maria Cândida Trindade Costa de Seabra
75
O PROCESSO DE MONOTONGAÇÃO: UMA REALIDADE EM
TEXTOS ESCOLARES DO ENSINO FUNDAMENTAL
Dermeval da Hora
Greiciane Pereira Mendonça
85
COROTOPÔNIMOS NA TOPONÍMIA SUL-MATO-GROSSENSE:
REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
Aparecida Negri Isquerdo
Carla Regina de Souza Figueiredo
5
Linguística Indígena
109
OS PROCESSOS DE NOMINALIZAÇÃO NA LÍNGUA MATIS
(FAMÍLIA PANO)
Rogério Vicente Ferreira
Linguística Aplicada
119
DISCURSOS DO PROFESSOR DE LÍNGUA MATERNA: UM OLHAR
Cláudia Graziano Paes de Barros
129
LA ENSEÑANZA DE LENGUAS DESDE UNA PERSPECTIVA COGNITIVA
Elizabete Aparecida Marques
Análise do Discurso
145
DISCURSO INDÍGENA: IMAGENS PROJETADAS PELO IMAGINÁRIO
Rita de Cássia Pacheco Limberti
159
DISCURSO DA EXCLUSÃO: A CONSTRUÇÃO DO ETHOS
DE ADOLESCENTES DA UNIDADE EDUCACIONAL DE
INTERNAÇÃO (UNEI) NA CIDADE DE CAMPO GRANDE - MS
Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento
Heloísa Rení da Silva
Lidiane Campos Salazar da Silva
Semiótica
177
O SIGNIFICADO EM ARQUITETURA: CONSIDERAÇÕES
BASEADAS NOS MODOS DE RACIOCÍNIO EM PEIRCE
Eluiza Bortolotto Ghizzi
195
A EVOLUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO DA SINTAXE E DA SEMÂNTICA NARRATIVAS
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello
211
A CONSTRUÇÃO DA MASCULINIDADE - UMA ABORDAGEM
SEMIÓTICA
Antonio Vicente Pietroforte
6
Apresentação
Este número especial da PAPÉIS: Revista do Programa de PósGraduação em Estudos de Linguagens, destinado à publicação de
trabalhos nas áreas de Semiótica e Linguística, reúne artigos que
focalizam resultados de pesquisas relacionadas a diferentes abordagens
dos estudos sobre a linguagem – estudos descritivos; relações entre
texto e discurso; linguística e ensino e semiótica do texto verbal e nãoverbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do
Sul, promovido pela ABRALIN – Associação Brasileira de Linguística em
parceria com o Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens,
do Centro de Ciências Humanas e Sociais (CCHS), da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em setembro de 2008.
A Papéis, seguindo a sua política de destinar números especiais
à publicação de trabalhos apresentados em eventos de grande porte
promovidos pela UFMS, a exemplo do ocorrido com o volume 7 – 2003
– número especial, partes 1 e 2, que reuniram trabalhos apresentados
no I Encontro Nacional do Grupo de Estudos da Linguagem do CentroOeste (GELCO) e II Encontro de Professores de Letras do Brasil Central
(EnPROL), realizados em outubro de 2001, no CCHS/UFMS, abre espaço
para a disseminação de trabalhos produzidos por ilustres pesquisadores
vinculados a diferentes universidades brasileiras que integraram a
programação do evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, evento
que, atendendo à política de descentralização, implantada pela Diretoria
da ABRALIN, gestão 2007-2009, sob a presidência do Prof. Dr. Dermeval
da Hora, teve como objetivo promover o intercâmbio entre pesquisadores
das diversas regiões brasileiras, priorizando as linhas de pesquisa existentes
nos Programas de Pós-Graduação da instituição sede do evento. No caso
específico do ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, a programação foi
organizada com base nas linhas de pesquisa da área de concentração
7
Linguística e Semiótica do Programa de Pós-Graduação em Estudos de
Linguagens (PPGEL) – Constituição do saber linguístico e Produção de
sentido no texto/discurso – e os projetos de pesquisa a elas vinculados.
Essa característica da programação do evento também justificou a opção
do Conselho Editorial da Papéis de publicação de um número da revista
com trabalhos apresentados nesse evento e submetidos para publicação.
Em razão dessa particularidade, a organização dos trabalhos obedeceu a
uma estrutura diferenciada do padrão do sumário da Revista, de maneira
a dar melhor visibilidade à diversidade das temáticas abordadas. Nessa
perspectiva, os trabalhos foram organizados segundo a natureza das áreas
de conhecimento a que estão vinculados.
O tema “Dialetologia, Sociolinguística e Toponímia”, por exemplo,
abriga um trabalho de cunho teórico, apresentado por Suzana
Cardoso na conferência de abertura do evento: O papel das pesquisas
sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro.
Integram esse bloco também os trabalhos relacionados às contribuições da
Sociolinguística e da Dialetologia para os estudos sobre a variação – artigos
de Aguilera e de Hora e Mendonça acerca de fenômenos de natureza
fonético-fonológica no âmbito do português do Brasil, respectivamente,
o “/r/ caipira” e a “monotongação”, e o texto de Cardoso que discute o
sentido de um atlas linguístico nacional do português do Brasil. Os dois
últimos artigos reunidos nesse bloco, por sua vez, focalizam diferentes
olhares sobre a pesquisa toponímica no Brasil – o de Dick e Seabra que
aborda a temática da etnotoponímia no Estado de Minas Gerais e o de
Isquerdo e Figueiredo que discute a categoria dos corotopônimos com
base em dados da toponímia sul-mato-grossense.
O tema “Linguística indígena”, por seu turno, é presentificado pelo
trabalho de Ferreira acerca de processos de nominalização na língua
Matis (família Pano).
Já os artigos de Marques e de Barros, associados ao domínio
da Linguística Aplicada, abordam questões que afetam o ensino. O
primeiro volta-se para a abordagem cognitiva no ensino de línguas,
especificamente o espanhol, enquanto o segundo discute diferentes
olhares sobre o discurso do professor acerca do ensino.
8
Na sequência, o bloco temático “Discurso, Identidades e Imagens”
reúne dois artigos que têm como foco o discurso sobre a identidade de
grupos minoritários. O artigo de Limberti traz à tona o discurso indígena
sob a perspectiva das imagens projetadas pelo imaginário, enquanto o
de Nascimento, Silva e Salazar da Silva focaliza a questão do discurso
da exclusão, com ênfase para a construção do ethos de adolescentes
internos em uma unidade educacional.
Por fim, a unidade temática “Diálogos semióticos: o texto verbal
e não verbal” concentra três artigos: o de Ghizzi aborda estudos na
perspectiva da semiótica peirceana sobre o significado na área da
arquitetura; o de Migliozzi centra-se na discussão da evolução do objeto
de estudo da sintaxe e da semântica narrativas pelo viés da semiótica
greimasiana, enquanto o de Pietroforte, também sob a óptica dos
estudos greimasianos e seus seguidores, analisa a competência modal do
sujeito que já se definiu homem em suas conotações sociossemióticas a
partir de um corpus material recolhido nas linguagens do cinema e da
história em quadrinhos.
Na expectativa de que a diversidade de temas e enfoques teóricos
materializados nos artigos reunidos neste número da Papéis estimule
novas pesquisas nas áreas de Linguística e Semiótica, registramos os
nossos agradecimentos aos pesquisadores que colaboraram com
esta publicação por meio do envio dos seus respectivos trabalhos,
originalmente apresentados no ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul
e, posteriormente, revisados, ampliados e adequados aos propósitos
deste número da Papéis.
Geraldo Vicente Martins
Editor
Aparecida Negri Isquerdo
Editora adjunta desta edição
9
Dialetologia,
Sociolinguística e
Toponímia
O /r/ caipira está ganhando status? O que
dizem os dados do Atlas Linguistico do Brasil
coletados no Paraná1
Is the rural /r/ gaining status? What the data from the
Linguistic Atlas of Brazil collected in Paraná say
Vanderci de Andrade Aguilera
Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas
Universidade Estadual de Londrina
[email protected]
Resumo: Este artigo tem como proposta apresentar e discutir a vitalidade
do /r/ retroflexo em dados coletados em 17 localidades paranaenses e
transcritos para compor o Atlas Linguístico do Brasil. O corpus constituise de cerca de 3.100 registros fonéticos do /r/ em coda silábica interna
e externa, retirados das respostas dadas ao QFF dos Questionários
do ALiB (Comitê Nacional do ALiB, 2001), pelos 72 informantes que
compõem o universo de falantes dos pontos linguísticos distribuídos pelo
território paranaense. Os dados demonstram que, no Paraná, o [}] em
coda silábica interna vem se mantendo, também, na fala de informantes
urbanos, sendo introduzido, por falantes jovens, gradativamente, em
áreas de predominância do tepe.
Palavras-chave: /r/ retroflexo. Fala paranaense. Estudo geossociolinguístico.
Abstract: This article aims at presenting and discussing the vitality of retroflex
/r/ in data collected in 17 localities in Paraná and transcribed for the
Linguistic Atlas of Brazil. The corpus consists of approximately 3.100
phonetic records of /r/ in internal and external syllable coda, extracted
from the answers given to the QFF of the Questionnaires of ALiB (ALiB
National Committee, 2001), by 72 informants that constitute the universe
of speakers from the linguistic spots distributed along Paraná territory. The
data show that, in Paraná, [}] in syllable coda still exists also in the speech
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
13
Vanderci de Andrade Aguilera [13-25]
of urban informants, and it has been gradually introduced by young
speakers in areas where the flap consonant predominates.
Keywords: Retroflex /r/. Spoken language from Paraná. Geo-sociolinguistic
study.
Apresentação
Este artigo tem como proposta apresentar e discutir a vitalidade
do /r/ retroflexo na fala dos paranaenses. Essa variante do fonema /r/,
mais conhecido como /r/ caipira1 - aqui representado foneticamente
como [}] - foi selecionado por Amaral (1920) como um dos traços mais
marcantes do dialeto caipira do interior de São Paulo. Assumimos,
neste artigo, como [}], a variante fônica que articulatoriamente se
realiza quando o ápice da língua está curvado para trás na direção da
parte anterior do palato duro, isto é, logo atrás do alvéolo. Segundo
Crystal (2000, p. 229)2, o grau de retroflexão varia consideravelmente
dependendo dos sons e dos dialetos.
O corpus constitui-se de cerca de 3.100 registros fonéticos
retirados das respostas dadas ao QFF dos Questionários do ALiB
(Comitê Nacional do ALiB, 2001), pelos 72 informantes que compõem
o universo de falantes dos 17 pontos linguísticos distribuídos pelo
território paranaense. Devido ao baixo número de ocorrências do /r/
retroflexo em início de sílaba, o foco da análise passa a ser a sílaba
travada por rótico, isto é, em codas silábicas interna e externa.
Castro (2005, p. 30), em sua tese defendida na UNICAMP, ao tratar da vitalidade do
dialeto caipira, discorre que: “em contraste com esses fatos de ocorrência mais geral,
algumas características têm sido consideradas específicas do dialeto caipira (apontando-se, em geral, como áreas de uso da variedade, São Paulo, Minas Gerais (sul, sudoeste), Paraná, Mato Grosso e Goiás, sem definição precisa de limites). Essas características
são: a) o “r retroflexo”; b) a realização africada [tS] - chave > [tS]ave; c) a realização
africada [dZ] - gente > [dZ]ente]”.
2
“Retroflexão (retroflexo). [...] Refere-se aos sons feitos quando o ápice da língua está
curvado para trás na direção da parte anterior do palato duro – em outras palavras, logo
atrás do alvéolo. O grau de retroflexão varia consideravelmente dependendo dos sons
e dos dialetos” (CRYSTAL, 2000, p. 229).
1
14
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O /R/ caipira está ganhando status? [13-25]
Esses informantes do ALiB, ao contrário dos informantes dos atlas
estaduais anteriores que eram oriundos ou moradores da zona rural, são
pessoas naturais e moradoras de centros urbanos, têm escolaridade máxima
até a 8ª série do Ensino Fundamental e se distribuem por quatro grupos: 17
homens de 18 a 30 anos de idade; 17 mulheres de 18 a 30 anos de idade, 17
homens na faixa dos 50 aos 65 anos e 17 mulheres, também na faixa etária
de 50 a 65 anos. Na capital, Curitiba, além dos quatro informantes com nível
básico de escolaridade, foram entrevistados mais quatro, nas mesmas faixas
etárias, mas com nível de escolaridade superior.
Os resultados a que chegamos, em relação ao [}] no Paraná, vêm,
de certa forma, contrariar os prognósticos de Amaral (1920) que antevia
para o dialeto caipira – do qual o [}] é uma de suas marcas mais legítimas
e salientes – uma vida, ou sobrevida, relativamente curta, pois, já no
início do século passado achava-se esse dialeto acantoado em pequenas
localidades que não acompanharam de perto o movimento geral do
progresso e subsiste fora daí, na boca de pessoas idosas, indelevelmente
influenciadas pela antiga educação (AMARAL, 1920, p. 42).
Esse fonema tem chamado a atenção de pesquisadores de várias regiões
do Brasil e tem servido de objeto de estudo das mais variadas pesquisas
acadêmicas, como dissertações, teses, artigos em periódicos, entre outros.
Conforme afirmamos em outras ocasiões, uma das sínteses mais
bem feitas sobre a vitalidade do [}] no português brasileiro acreditamos
ter sido elaborada por Brandão (2007, p. 265-283), uma vez que
investiga nada menos que trinta e três trabalhos, dentre os quais se
destacam doze atlas3: Rossi, 1963; Ribeiro et al., 1977; Aragão e
Menezes, 1984; Ferreira et al, 1987; Aguilera, 1987; Aguilera, 1994;
Koch et al., 2002; Cruz, 2004; Razky, 2004; Cardoso, 2005; Lima,
2006 e Pereira, 2007. Ao final, a autora demonstra, num mapa do
Brasil, mas sem a preocupação de tratamento quantitativo, os Estados
onde foi registrada essa variante nos estudos pesquisados. Isto significa
que o [}] se encontra em uma ou algumas localidades do Estado, não
necessariamente em todo o território.
Dentre esses atlas, alguns são o resultado de trabalhos de grupos de pesquisa; outros
foram objeto de tese ou de dissertação.
3
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
15
Vanderci de Andrade Aguilera [13-25]
Figura 1. Mapa dos róticos no Brasil (BRANDÃO: 2007, p. 280)
O artigo de Brandão (2007, p. 265-283), por se constituir
em pesquisa mais extensiva, envolvendo não só os atlas, mas teses,
dissertações e artigos, mostra a expansão do [}] nos demais Estados
brasileiros, além de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso do
Sul, Mato Grosso e Goiás. A ausência de estudos específicos sobre o
/r/ posvocálico nas capitais e no interior de Roraima, Acre, Rondônia,
Amapá, Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco, Alagoas e Espírito Santo
não permite confirmar nem a ausência nem a presença do [}] nesses
Estados.
No Amazonas e no Rio Grande do Norte, no entanto, Cruz
(2004) e Pereira (2007), respectivamente, não detectaram essa variante
de rótico: a primeira pesquisando em nove municípios do interior
amazonense e a segunda em localidades do litoral potiguar.
1. Estudos sobre o /r/ em coda silábica com base nos dados do
ALiB-Paraná
O banco de dados do Atlas Linguístico do Brasil, referente às
entrevistas realizadas no Paraná, em 17 pontos, conta com 72 entrevistas:
oito na capital, Curitiba, onde foram entrevistados informantes, de
ambos os sexos, de dois níveis de escolaridade (fundamental e superior)
16
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O /R/ caipira está ganhando status? [13-25]
e de duas faixas etárias (18 a 30 anos e de 50 a 65 anos). As demais 64
foram realizadas no interior, em 16 localidades, em cada uma das quais
foram inquiridos quatro informantes com apenas o nível fundamental,
de ambos os sexos e das mesmas faixas etárias.
Para melhor compreensão da distribuição dos róticos e para facilitar
a leitura dos comentários que fazemos na sequência, incluímos o mapa
a seguir com a distribuição desses pontos do ALiB sobre o território
paranaense:
Mapa 1 – Distribuição dos pontos linguísticos do ALiB no Paraná4
Uma vez apresentada a rede de pontos linguísticos, é importante
observar que o Questionário Fonético Fonológico – QFF, que integra os
Questionários do ALiB – 2001, contém 159 questões. Dentre elas, 16
trazem como resposta itens lexicais5 com o rótico em coda silábica interna,
13 em coda externa (final de vocábulo), quatro que oferecem contexto
Mapa elaborado por Kika Milani para este trabalho.
Neste artigo, tomamos item lexical, vocábulo e palavra como sinônimos, independentemente
das divergências conceituais que possam suscitar entre os especialistas.
4
5
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
17
Vanderci de Andrade Aguilera [13-25]
propício à metátese do rótico e 11 casos de /l/ em codas interna e externa,
passíveis de rotacismo, o que totaliza um corpus com cerca de 3.100 dados.
Apresentamos nos quadros a seguir a relação das palavras que
trazem o /r/ nos vários contextos fônicos. Iniciamos com o Quadro 1 e
a relação dessas palavras com o /r/ em coda interna:
Questão
012
014
022
027
039
046
062
065
092
105
110
144
148
150
152
158
Vocábulo pesquisado
torneira
(fecha a) porta
gordura
fervendo
árvore
borboleta
tarde
catorze/quatorze
pernambucano
certo
perdão
perfume
dormindo
perdida
perguntar
esquerdo
Quadro 1 - Questões do QFF ALiB com róticos em coda interna
Os dados, que irão compor o Atlas Linguístico do Brasil, coletados junto
aos 72 informantes urbanos paranaenses, mostram o seguinte quadro do [}]
em coda silábica interna: (i) é categórico em dez das dezessete localidades:
Nova Londrina (207), Londrina (208), Terra Boa (209), Umuarama (210),
Tomazina (211), Cândido de Abreu (213), Adrianópolis (216), Imbituva
(218), Morretes (221) e Lapa (222); (ii) é altamente favorável em Campo
Mourão (212), Piraí do Sul (214), São Miguel do Iguaçu (217) e Guarapuava
(219); (iii) favorável em Toledo (215), uma vez que os jovens é que estão
implementando a variante retroflexa e os idosos mantendo a vibrante
simples ou tepe; (iv) em Barracão (223), predomina o tepe, com baixo
índice de [}]; e (v) está em competição em Curitiba, onde os informantes de
baixa escolaridade, com ênfase na faixa dos idosos, registram o [}] com mais
frequência, próximo de 75%; ao contrário, os de nível superior mantêm o
tepe em aproximadamente 70% dos casos.
18
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O /R/ caipira está ganhando status? [13-25]
Neste estudo constatamos também que, dos 11.16 registros
de róticos em coda interna, 87% são de [}]. Alguns vocábulos,
independentemente de fatores extra ou intralinguísticos, isto é, do
ponto linguístico e da posição no vocábulo, se mostram mais sensíveis a
essa variante: esquerdo (91%), tarde, pernambucano (90%), borboleta,
catorze, perguntar (89%), fervendo, árvore, dormindo, perdida, gordura
(88%), perfume (87%), certo, perdão (85,5%) e torneira, porta (84%).
Os resultados estão, pois, muito próximos dos já documentados
pelo Atlas Linguístico do Paraná (AGUILERA, 1994), junto a informantes
rurais, analfabetos ou semialfabetizados, situados na faixa etária dos 30
aos 60 anos. Aproximam-se também dos dados constantes do ALERSParaná, citados por Brandão (2007, p. 271), que registrou a presença
desse rótico em 94% das localidades investigadas.
O Quadro 2 traz a relação dos vocábulos, procedentes do QFF do
ALiB, que contêm o /r/ em coda externa (verbos e substantivos).
Questão
018
025
026
036
043
061
080
088
129
146
151
152
153
Vocábulo pesquisado
varrer
colher (substantivo)
liquidificador
botar
montar
calor
trabalhar
rasgar
mulher
beijar
encontrar
perguntar
sair
Quadro 2. Questões do QFF ALiB com róticos em coda externa
Sobre os róticos em coda externa, lembramos Amaral ([1920]
1976, p. 52):
o r cai, quando final de palavra: andá, muié, esquecê, subi, vapô,
Artú. Conserva-se, entretanto, geralmente, em alguns monossílabos
acentuados, tendo de certo influído nisso a posição proclítica habitual:
dor, cor, cor, par. Conserva-se também no monossílabo átono por, pela
mesma razão, assim como, raras vezes, em palavras de mais de uma
sílaba: amor, suor. Nos verbos, ainda que monossílabos, cai sempre,
provavelmente pela influência niveladora da analogia: vê, vi, pô.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
19
Vanderci de Andrade Aguilera [13-25]
Amaral, como se observa, não separa os vocábulos em classes
gramaticais, generalizando a apócope para todos eles.
Pierson (1951, p. 236), no entanto, relativiza esse fenômeno
fonético ao afirmar que:
Há tendência para omitir o r final, especialmente dos verbos, e para
acentuar a vogal precedente; por exemplo:
“convidá” ao invés de convidar
“familiá” ao invés de familiar
“ficá” ao invés de ficar [...]
“lugá” ao invés de lugar [...] (os sublinhados são meus)
Neste estudo, verificamos que a distribuição do cancelamento não
é simétrica entre verbos e nomes (substantivos e adjetivos). Para facilitar a
análise, os vocábulos com róticos em coda silábica externa foram distribuídos
em dois grupos. Os do primeiro dizem respeito aos verbos no infinitivo
(varrer, botar, montar, trabalhar, rasgar, beijar, encontrar, perguntar e sair) e
apresentam as variantes: retroflexa, vibrante simples/tepe e cancelamento.
A presença do rótico é menor que o apagamento do fonema neste
contexto, pois, de 560 registros, 53% são de zero fonético. Os demais 47%
distribuem-se pelas variantes retroflexa (40%) e o tepe (7%).
Caso interessante é o da resposta dada à questão 153 que indaga
sobre o verbo sair em que a manutenção do rótico ocorre em 78% dos
registros, seja com a variante retroflexa ou com a alveolar. As demais
questões, que buscam os verbos no infinitivo (perguntar, botar, montar,
trabalhar, rasgar, beijar e encontrar), são formuladas com expressões,
como “o que é que se tem que/precisa fazer...?”. Neste caso, o
informante tem que buscar na memória um verbo que indique a ação
pedida. É o que ocorre, por exemplo, com a questão 43: Para andar a
cavalo, o que é que se tem que fazer? ou a 80: Para ganhar dinheiro, o
que é que se precisa fazer? No caso da questão para obter sair, o verbo
no infinitivo entrar está no final da pergunta: Qual é o contrário de
entrar? e, parece-me que a tendência do entrevistador é manter o rótico
final, no que é seguido pelo informante. Isto talvez tenha influenciado
na alta taxa de manutenção do rótico, próxima de 80%.
Na sequência, com menor índice de cancelamento do rótico, vêm
os verbos: encontrar (55%), trabalhar (51%) e beijar (50%). Acreditamos
20
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O /R/ caipira está ganhando status? [13-25]
que um corpus mais extenso poderá esclarecer a influência das possíveis
variáveis linguísticas ou extralinguísticas sobre os resultados obtidos
para este estudo.
Quanto aos nomes (colher, liquidificador, calor e mulher), dos 289
registros, menos de 4% são de apagamento do rótico, predominando,
como previsto, a variante [}] em 86% dos casos e a alveolar em 10% deles.
O cancelamento do rótico em coda externa, nos falantes do
interior, não se mostrou influenciada pelas variáveis sexo e faixa etária.
Na capital, porém, onde foram investigados dois níveis de escolaridade,
os informantes do nível fundamental apresentam um índice mais
elevado de cancelamento (60%) em relação aos do nível superior
(40%). A manutenção do rótico, em Curitiba, nos verbos no infinitivo
indica que 67% dos registros são de [R] e 33%, de [}].
O Quadro 3 traz a relação dos vocábulos do QFF do ALiB que
contêm o /r/ em encontro consonantal, mas passível de metátese na fala
popular e/ou informal.
Questão
003
083
107
142
Vocábulo pesquisado
prateleira
prefeito
procissão
braguilha
Quadro 3. Questões do QFF ALiB com contexto propício à metátese do rótico.
Sobre as questões suscetíveis de metátese: prateleira (003), prefeito
(83), procissão (107) e braguilha (142), ocorreram:
i. Das 72 respostas para prateleira, 33% apresentam a sílaba inicial
com metátese do rótico par-, a maioria absoluta (92%) com a
variante [}]. Os casos de metátese em prateleira não parecem
estar condicionados pelo fator idade, uma vez que há um
equilíbrio entre esses registros, isto é, 12 informantes da 1ª faixa
etária (18-30 anos) e 11, da 2ª (50-65), apresentam a forma com
transposição de fonemas na sílaba inicial; o mesmo ocorre com a
variável sexo/gênero em que 11 homens e 12 mulheres registram
a variante com metátese. Os dados sugerem que a analogia é
feita com o próprio móvel que se compõe de partes onde se
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
21
Vanderci de Andrade Aguilera [13-25]
colocam os objetos, não estando na memória do falante atual
que a prateleira há algum tempo servia para acondicionar pratos;
ii. quanto a prefeito não ocorreu nenhum caso de metátese,
sugerindo que na linguagem popular não se costuma confundir
ou alternar o prefeito com a qualidade de perfeito;
iii. a resposta da questão 107 – procissão – sofreu metátese apenas
na fala de quatro informantes: dois da faixa 1 e dois da faixa 2
do nível fundamental;
iv. a forma mais produtiva com metátese é a da questão 142, se
considerarmos apenas a resposta braguilha, com dezoito registros:
11 na faixa 1 e sete na faixa 2, sendo 11 de registros masculinos
e sete femininos. Essa questão foi inserida nos Questionários do
ALiB com o objetivo de verificar tanto o comportamento do rótico
no encontro consonantal como o da sílaba final com a palatal
ou iotizada. Apenas em quatro localidades: 208 Londrina, 213
Cândido de Abreu, 214 Piraí do Sul, 220 Curitiba não se registrou
a metátese em nenhum dos quatro itens investigados.
O Quadro 4 traz a relação dos vocábulos do QFF que contêm o
/l/ em coda externa, portanto passível de roticização na fala popular.
Questão
017
019
028
045
058
089
090
093
098
134
143
Vocábulo pesquisado
pólvora/pórvora/porva
almoço/armoço
sal/sar
mel/mer
sol/sor
azul/azur
Brasil/Brasir
soldado/sordado
calção/carção
alta/arta
anel/aner
Quadro 4. Questões do QFF ALiB com possibilidade de roticização do /l/ > /r/.
Os casos de roticização da líquida são pouco frequentes na
linguagem oral analisada, sobretudo se considerarmos que foram
obtidos junto a falantes urbanos, embora de baixa escolaridade. Essa
marca do dialeto caipira, apresentada por Amaral (1920, p.52), parece,
22
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O /R/ caipira está ganhando status? [13-25]
sim, estar com os dias contados na fala paranaense. Dos 792 dados
coletados, apenas 18 registros, representando pouco mais de 2%,
apresentaram o rótico: pólvora/porva (9 registros), almoço/armoço (4
registros); soldado/sordado (3 registros) e calção/carção (2), a maioria
dos quais com [}].
Conclusões
Os dados do ALiB – PR apontam para as seguintes direções do /r/
em coda silábica:
i. o [}] se mantêm resistente junto a falantes urbanos na mesma
proporção registrada anteriormente, em coletas realizadas há
cerca de duas décadas, em atlas de base rural, como o ALPR
e o ALERS;
ii. em apenas três das dezessete localidades pesquisadas predomina
o [R]: Barracão, Curitiba e Toledo – e nestes dois últimos concorre
com o [}], principalmente na fala dos mais jovens;
iii. os casos de rótico em coda interna mostram que há contextos
mais favoráveis ao [}] em detrimento de outros, mas que não
foram aqui analisados;
iv. a metátese em encontros consonantais é pouco produtiva
em palavras de uso mais frequente. A produtividade mais
acentuada ocorreu na palavra braguilha > barguilha, obtida
a partir do questionamento sobre o nome dado à abertura da
calça do homem, fechada por botões ou zíper.
v. os róticos em coda externa ora se mantêm, ora sofrem apócope,
principalmente nos verbos no infinitivo; os nomes mantêm,
com mais frequência o rótico que se realiza, em sua maioria,
como [}].
vi. os casos de roticização da líquida estão cada vez mais raros
realizando-se em pouco mais de 2% dos 192 registros
coletados.
Concluída a pesquisa com os dados acima, podemos voltar ao título
deste artigo: O /r/ caipira está ganhando status? e podemos afirmar, com
segurança - por meio dos dados coletados no Paraná para a elaboração
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
23
Vanderci de Andrade Aguilera [13-25]
do Atlas Linguístico do Brasil - que o [}] em coda silábica interna vem se
mantendo na fala de informantes urbanos, em regiões onde se pesquisara,
há duas décadas, a sua ocorrência junto a falantes rurais (AGUILERA:
1987; MERCER, 1992; AGUILERA, 1994; GUSMÃO, 2000 e GUSMÃO,
2004). Outro dado que reforça essa assertiva é a sua introdução gradual
junto aos falantes jovens em áreas até então de predominância do tepe.
Referências
AGUILERA, Vanderci de Andrade. Aspectos lingüísticos da fala londrinense: esboço de
um atlas lingüístico de Londrina. Curitiba/Londrina: CONCITEC/Universidade Estadual
de Londrina, 1987.
AGUILERA, Vanderci de Andrade. Atlas lingüístico do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial
do Estado: 1994.
AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. 3 ed. São Paulo: HUCITEC, Secretaria da Cultura,
Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, [1920], 1976.
ARAGÃO, Maria do Socorro; MENEZES, Cleuza Bezerra de. Atlas lingüístico da Paraíba.
2 v. João Pessoa/Brasília: UFPB/CNPq, 1984.
BRANDÃO, Sílvia Figueiredo. Nas trilhas do –R retroflexo. Signum: estudos da
linguagem. Londrina, v. 10, n. 2, p. 265-283, 2007.
CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. Atlas lingüístico de Sergipe- II. Salvador: EDUFBA, 2005.
CASTRO, Vandersí Sant’Ana. A resistência de traços do dialeto caipira: estudo com
base em Atlas lingüísticos regionais brasileiros. 2006. Tese (Doutorado em Lingüística) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB (Brasil). Atlas lingüístico do Brasil:
Questionários 2001. Londrina: Ed. UEL, 2001.
CRUZ, Maria Luiza. Atlas lingüístico do Amazonas. 2v. Tese (doutorado em Letras) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2004.
CRYSTAL, David. Dicionário de Lingüística e Fonética. Tradução e adaptação da [2.a
ed. inglesa ver. e ampliada, publicada em 1985]. Maria Carmelita Pádua Dias.–Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
FERREIRA, Carlota et al. Atlas lingüístico de Sergipe. Salvador: UFBA/FUNDESC, 1987.
GUSMÃO, Alessandra Babler. As realizações da vibrante na variedade lingüística rural do
Paraná: uma abordagem geovariacionista. 2004. Dissertação (Mestrado em Estudos da
Linguagem). Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2004.
GUSMÃO, Alessandra Babler. Realizações do /R/ na variedade lingüística falada em
24
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O /R/ caipira está ganhando status? [13-25]
Cândido de Abreu - Paraná. 2000. Monografia (Especialização em Língua Portuguesa).
Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2000.
KOCH, Walter; KLASSMANN, Mário Silfredo; ALTENHOFEN, Cléo Vílson. Atlas
Lingüístico-Etnográfico da Região Sul. 2 vols. Porto Alegre/Florianópolis/Curitiba.: Ed.
UFRGS/ Ed. UFSC/ Ed. UFPR. 2002.
LIMA, Alcides. A pronúncia do /r/ pós-vocálico na cidade de Cametá-PA. In: RAZKY, A.
(org.) Estudos Geo-Sociolingüísticos no Estado do Pará. Belém: UFPA, 2003, P. 54-78.
LINO, Fádua Maria Moisés. Aspectos lingüísticos da fala de Cândido de Abreu: um
estudo geossociolinguístico. 2000. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade
Estadual de Londrina, Londrina.
MERCER, José Luiz da Veiga. Áreas fonéticas do Paraná. 2 v. Tese (Concurso para
professor Titular de Lingüística). Curitiba, Universidade Federal do Paraná, 1992.
PEREIRA, Maria das Neves. Atlas Lingüístico do Litoral Potiguar. Tese. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.
PIERSON, Donald. Cruz das Almas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1966.
RAZKY, Abdelhak. Atlas lingüístico sonoro do Pará (ALISPA). Belém: CAPES/ UFPA/ UTM, 2004.
RIBEIRO, José et al. Esboço de um Atlas Lingüístico de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ministério
da Educação e Cultura/Casa de Rui Barbosa/Universidade Federal de Juiz de Fora, 1977.
ROSSI, Nelson. Atlas prévio dos falares baianos. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1963.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
25
O papel das pesquisas sociolinguísticas e
dialetológicas para os estudos do português
brasileiro.
The role of sociolinguistic and dialectological research in the
study of brazilian portuguese
Suzana Alice Marcelino Cardoso
Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura e no Programa de
Pós Graduação em Literatura e Cultura
Universidade Federal da Bahia
Membro Associado do LDI-Lexiques, Dictionnaires, Informatique da
Université Paris 13
[email protected]
Podemos concluir, sin embargo, que las perspectivas de una mejor
convivencia en la diversidad tendrán que superar tanto las posiciones
universalistas y monoculturales, como también las visiones esencialistas
que dificultan la construcción de puentes de entendimiento, para
transitar hacia orientaciones pluriculturales y plurilingües que permitan
el encausamiento de las contradicciones en un nivel cualitativo superior
de comprensión y aceptación de la diversidad en el marco de la
democratización radicalizada (HAMEL, 2008, p. 46).
Resumo: Neste texto examina-se o papel das pesquisas sociolinguísticas e
dialetológicas para o desenvolvimento dos estudos do português brasileiro.
Apresentando os caminhos da Dialectologia e da Sociolinguística, discute-se
a perspectiva de enfoque de cada um desses ramos dos estudos linguísticos,
salientando-se o caráter de complementariedade que entre os seus objetivos
existe e destacando a contribuição (i) para o entendimento da realidade
linguística num país multidialetal; (ii) no trabalho de resgate das nossas marcas
africanas; (iii) na convivência com as línguas indígenas; (iv) e na construção do
MERCOSUL onde espanhol e português devem e precisam crescer juntos.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
27
Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]
Palavras-chave: Dialectologia. Sociolinguística. Política linguística. Língua
Portuguesa. Variação linguística.
Abstract: This text is intended to investigate the role of sociolinguistic and
dialectological researches for the development of Brazilian Portuguese
studies. Grounded in Dialectology and Sociolinguistics, it fosters the
discussion about the perspective of approach of each of these branches of
the linguistic studies, and points out the complementarity of its objectives
and the contribution (i) to the understanding of the linguistic reality in a
multidialectal country; (ii) in the recapturing of our African marks; (iii) in
living with Indian languages; (iv) and in the construction of MERCOSUL,
where Spanish and Portuguese ought and need to grow together.
Keywords: Dialectology. Sociolinguistics. Language policy. Portuguese language.
Linguistic variation.
O texto em epígrafe, de Rainer Enrique Hamel, em afirmação
feita recentemente, por ocasião do Congresso Internacional de Política
Linguística na América Latina, realizado em João Pessoa (2006), aqui
é trazido com o objetivo de pôr em destaque alguns aspectos do
pensamento que expressa. Primeiramente, a “receita” para assegurar
a melhor convivência no âmbito da diversidade: superar as posições
universalistas e monoculturais que dificultam a construção de pontes de
entendimento. Em segundo lugar, a necessidade de, firmados nos meios
que vêm de delinear, caminhar na direção de orientações pluriculturais
e plurilíngues. Por fim, a compreensão e aceitação da diversidade que
se converte, para o autor, em marco da democratização generalizada.
1. Compreensão e aceitação da diversidade
Ao trazer este pensamento, faço-o para formular uma pergunta
retórica: E que buscam a Dialectologia e a Sociolinguística senão,
exatamente, “a compreensão e a aceitação da diversidade”? E sob esse
signo nasceram esses dois ramos dos estudos linguísticos, dando, cada
um, a resposta condizente com a sua proposta particular.
28
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os
estudos do português brasileiro [27-49]
1.1 A resposta/proposta da Dialetologia
Somente ao final do século XVIII os linguistas dirigem, de maneira
constante, a sua atenção para os dialetos, e os trabalhos concernentes à
Dialetologia afloram de maneira exuberante. São numerosos os autores
que se debruçam sobre questões dialetais e dentre eles quero destacar
o Abbé Grégoire que realiza, em 1790, na França, uma pesquisa com o
fim específico de conhecer a situação dos patois.
O cura de Embermesnil, Henri-Baptista Grégoire, bispo
constitucional de Blois, tinha o desejo de levar à Convenção um
projeto com vistas ao extermínio, à erradicação dos patois, a fim de
alcançar a unidade linguística do país. Para tanto, empenha-se, antes,
em documentar o estágio desses patois, e se dedica a essa tarefa (POP,
1950, p. 6-7), enviando, em 13 de agosto de 1790, uma circular para
obter informações objetivas e precisas sobre esses usos linguísticos.
Distribui, assim, um questionário acompanhado de solicitação na qual
apresenta a sua intenção de conhecer a realidade da língua e dos
costumes do homem do campo, declarando que esse questionário
tinha “un but d’utilité publique” (POP, 1952, p.7). O questionário
contém 43 perguntas, com questões como as que se tomam para uma
breve ilustração a seguir:
1. L’usage de la langue française est-il universel dans votre contrée: y parlet-on un ou plusieurs patois?
2.Ce patois a-t-il une origine ancienne et connue?
19. Les campagnards savent-ils également s’énoncer en français?
As respostas obtidas pelo Abbé Grégoire foram publicadas, como
assinala POP (1950, p.7-9), por A. Grazier e flutuavam entre os que se
manifestavam favoráveis à extinção dos patois e os que os defendiam
ardentemente. Desses últimos, há uma manifestação que merece ser
lembrada. Trata-se de um falante da Languedoc que, na sua resposta,
afirma que para destruir o patois (POP. 1950, p.9) “il faudrait détruire
le soleil, le fraîcheur, des nuits, le genre des aliments, la qualité des
eaux, l’homme tout entier”. Travam-se acaloradas discussões em
torno da questão levantada pelo Abbé Grégoire, assinala-se o perigo
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
29
Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]
da existência de patois para a harmonia e a estabilidade da nação,
mas cresce, também, o lado dos que a isso se contrapõem. E Pop
considera o nascimento da Dialetologia na França exatamente nesse
momento, como claramente se manifesta, ao afirmar que “On peut
même considérer les commencements des études dialectologiques en
France (et ailleurs) comme une sorte de reaction contre les dispositions
prises pour l’anéantissement des patois» (1950, p. 13).
E, assim, o efeito foi contrário!
Não vamos, para esse momento, fazer um histórico da Dialetologia,
mas para entender o seu papel na construção dos estudos linguísticos,
pelo menos necessário se faz assinalar alguns pontos, o que passo a
fazer a seguir.
Destaco, assim, inicialmente, o inquérito por correspondência
feito, em 1807, sob os auspícios do Ministère de l’Intérieur, pelo Barão
Charles-Étienne Coquebert de Montbret, por constituir-se no primeiro
grande inquérito do gênero. Tendo como base a Parábola do Filho
Pródigo, escolhida por tratar-se de um texto de estruturas simples e
de conhecimento generalizado, foi enviada solicitação aos prefeitos e
subprefeitos das regiões escolhidas, para que se dirigissem a pessoas
consideradas conhecedoras do patois da área, às quais era pedido que
fizessem uma tradução do texto para o seu uso específico da língua. O
conjunto de respostas contém 86 traduções da Parábola, das quais a
maior parte representa variedades do francês e do provençal.
Nada obstante as críticas que são feitas às traduções da Parábola, Pop
(1950, p. 23) salienta a importância desses inquéritos, afirmando que
Malgré ces critiques, on doit toutefois considérer cette collection comme
la première grande enquête linguistique que eut un grand retentissement
dans plusieurs pays romans (et non romans). Elle seule donna, jusque vers
la fin do XIXe. siècle, une orientation sur les patois de la langue française
ainsi que sur le provençal.
Os estudos dialetológicos propriamente ditos vêm a se iniciar num
momento da história, século XIX, em que a individualidade geográfica
de cada região estava resguardada seja pelo isolamento decorrente da
30
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os
estudos do português brasileiro [27-49]
frágil rede de estradas, seja pela dificuldade de comunicação, seja, ainda,
pela inexistência de meios tecnológicos que permitissem a interação à
distância entre as diferentes áreas, mas resultaram, principalmente, da
preocupação com o resgate de dados e a documentação dos diferentes
estágios da língua, pois, como já assinalava o Abbé Rousselot, em 1887
(apud POP, 1950, p. 41),
Chaque année qui s’écoule emporte avec elle des sons, des constructions,
des mots dont la perte est irréparable. Il faut donc se hâter de sauver ce
qui a été épargné jusqu’ici. C’est une oeuvre qui intéresse la science et
l’honneur du pays. Plusieurs l’ont senti, et les ouvrages sur les patois se
sont multipliés. [...]. Mais, il faut bien reconnaître, ce qui a été fait est
bien peu en comparaison de ce qui reste à faire (grifos nossos).
As preocupações que manifestava o Abbé Rousselot merecem
comentário especial, porque suas palavras, ditas no final do século XIX,
não perderam nem a atualidade nem a pertinência. Preliminarmente,
a ação inexorável do tempo como elemento responsável pelas
transformações, pela substituição de estágios da língua, que se perdem,
irremediavelmente, no curso da história. O segundo aspecto a destacarse diz respeito ao caráter de que se reveste o trabalho de tal natureza: é
uma questão que interessa a “la science et l’honneur du pays”.
Ao citar essas palavras do Abbé Rousselot, Pop faz um breve
comentário que não posso me furtar de transcrever (POP, 1950, p.
41): “J’ai reproduit intentionnellement ces lignes de l’abbé Rousselot,
car elles renferment plus d’une vérité et marquent le commencement
heureux (grifo nosso) des études dialectales en France”.
Transcorria, pois, o século XIX. A sociedade passava por
transformações que se consolidariam no século seguinte, dando nova
conformação aos aglomerados sociais e redefinindo a rede de relações
entre os povos.
Nascida, portanto, nesse contexto e sob a égide de conhecer,
identificar, localizar e descrever a realidade linguística da França, a
Dialetologia teve, de início, um objetivo eminentemente diatópico:
mostrar a diversidade de um rincão para outro, reconhecer a validade
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
31
Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]
das diferenças e interpretá-las à luz da história. E isso é o que revela o
primeiro e principal trabalho de cunho geolinguístico, publicado entre
1902 e 1910, o Atlas Linguistique de la France, obra de Jules Gilliéron
produzida com a participação de Edmond Edmont.
Elegendo um único inquiridor, Edmond Edmont, Gilliéron
empreende a documentação do falar de 639 localidades a partir
da aplicação de um questionário de, inicialmente, cerca de 1.400
perguntas, vindo a alcançar um total de 1.900 perguntas ao final
dos inquéritos. Reconhecendo as dificuldades na elaboração de
questionários, Gilliéron, respondendo a críticas que lhe foram
dirigidas, faz uma afirmação categórica: “Le questionnaire... pour être
sensiblement meilleur, aurait dû être fait après l’enquête”(apud POP,
1950, p. 120).
Na grande maioria das localidades – 550 – foi ouvido apenas
um informante. Em 72, foram documentados dois informantes,
observando-se, nesse caso, a diferenciação de idade, ou seja, se o
primeiro informante ouvido fosse idoso, o segundo deveria ser, o que
quase sempre o foi, uma pessoa jovem, mas não se observa o controle
sistemático do grau de escolaridade nada obstante agrupar os seus
informantes levando em consideração os que têm profissão que supõe
instrução secundária e aqueles cuja ocupação indica a necessidade
apenas de instrução primária.
As variáveis sociais, no entanto, não se encontram registradas nas
cartas linguísticas. Introdutor da Dialetologia, implantando-a numa
perspectiva metodológica monodimensional, Gilliéron tem o mérito
maior de definir o rumo para os estudos dialetais e, como afirma Rossi
(1980, s. v. Dialectologia):
[...] inscreve-se entre os responsáveis por uma das mais importantes
tendências da passagem do séc. XIX ao séc. XX nos estudos lingüísticos: o
deslocamento do centro de interesse do som fônico à palavra (da fonética
histórica à lexicologia histórica).
Nascida sob uma visão monodimensional, a Dialetologia avança
no sentido da pluridimensionalidade.
32
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os
estudos do português brasileiro [27-49]
Se a intenção de localizar os fatos linguísticos nos espaços
geopolíticos é uma constante na história dos estudos dialetais, a
preocupação com as características sociais dos informantes e as suas
implicações no uso que fazem da língua não tem passado à margem dos
objetivos da Dialetologia. Fatores sociais – idade, gênero, escolaridade,
profissão – têm-se constituído em aspectos da variação que, de forma
diferenciada e com graus distintos de focalização, vêm ocupando lugar
nos estudos dialetais, especificamente naqueles que se desenvolvem sob
a metodologia geolinguística, motivados pelo que assinalam Chambers e
Trudgill (1994, p. 81-82):
Algunos dialectólogos empezaron a reconocer que se había puesto mucho
énfasis en la dimensión espacial de la variación lingüística, excluyendo
la dimensión social en cambio. Gradualmente esto supuso un lastre
para algunos estudiosos, ya que la variación social en la lengua es tan
común e importante como la variación espacial. Todos los dialectos son
tanto espaciales como sociales, puesto que todos los hablantes tienen un
entorno social igual que una localización espacial.
Esse “espaço social” recobre a variação diageracional, a variação
diagenérica, a variação diastrática e a variação diafásica. As cartas
linguísticas passam a apresentar, de forma sistemática, dados que
fornecem o perfil social do falante e estabelecem as bases para a
definição das relações/implicações língua fatores sociais.
Esse novo pensamento estreia no trabalho de Hans Kurath, o
Linguistic Atlas of New England (LANE), publicado de 1939 a 1943,
com 734 cartas linguísticas que trazem dados referentes aos Estados de
Connecticut, Rhode Island, Massachusetts, Vermont, New Hampshire
e Maine e da Long Island, aos quais foi acrescentada a província
canadense de New Brunswich, que, com as demais, constitui o conjunto
de colônias da Nova Inglaterra, fundadas no século XVII (POP, 1950, p.
914-923).
A grande novidade do atlas de Kurath está no estabelecimento de
critérios para escolha dos informantes envolvendo o aspecto geográfico e
o social. Desse modo, foram três os níveis de escolaridade abordados: a)
pessoas com escassa educação formal, pouca leitura e com reduzido contato
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
33
Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]
social; b) pessoas com educação formal mediana, tendo frequentado a escola
média e familiarizadas com maior leitura do que o grupo anterior, além
de apresentarem contatos sociais mais amplos; e c) pessoas portadoras de
educação de nível superior, afeitas a leituras e com amplos contatos sociais.
A esses três níveis, somam-se duas faixas etárias: a) idosos, geralmente de
mais de 70 anos; e b) pessoas de meia-idade ou mais jovens.
O controle de variáveis socioculturais na escolha dos informantes
estabelecido no Atlas da Nova Inglaterra abre para a Geografia Linguística
novas perspectivas e faz da obra de Kurath “la première tentative de
donner, sur une grande échelle, des indications plus précises sur l’aspect
social du langage” (POP, 1950, p. 922).
Estavam, assim, implantados os fundamentos da Geolinguística
Pluridimensional que, na atualidade, tem numerosos atlas representativos,
entre os quais, e para ficarmos com exemplo do nosso continente, se encontra
o Atlas Lingüístico Diatópico y Diastrático del Uruguay, que se desenvolve
sob a responsabilidade de Adolfo Elizaincín, da Faculdad de Humanidades
da Universidad de la República (Uruguai), e Harald Thun, do Romanisches
Seminar da Christian-Albrechts-Universität zu Kiel (Alemanha).
A grande inovação que traz o ADDU consiste no tratamento das
variáveis diageracional, diagenérica, diastrática e diafásica, apresentadas
em mapas monodimensionais e pluridimensionais.
Pensada, pois, inicialmente, como ciência dos espaços, a Dialetologia
assume no seu percurso histórico, a inclusão de fatores sociais na composição
do perfil dos dados que levanta e analisa. Isso poderá levar a uma,
imaginemos, afirmação dessa natureza: “Dialetologia e Sociolinguística se
encontram e consequentemente já não se diferenciam”. Vejamos a resposta/proposta da Sociolinguística.
1.2 A resposta/proposta da Sociolinguística
Ramo dos estudos linguísticos que se consolida na segunda
metade do século XX, a Sociolinguística assume como tarefa explicitar,
na medida do possível, a correlação entre os fenômenos linguísticos
34
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os
estudos do português brasileiro [27-49]
e sociais, estabelecendo, quando possível, uma “relação de causa e
efeito”, como assinala Dubois (1973, p.561).
Da variação dialetal já vinha dando conta a Dialetologia,
mas a ausência de uma ação especificamente direcionada para
a compreensão das relações língua-falante, usos diferenciadoscaraterísticas sociais dos usuários conduziu à formalização
desses estudos concebidos, não de forma desvinculada dos
espaços geográficos, mas particularmente comprometidos com o
comportamento sociolinguístico dos usuários da língua.
Assume-se outra forma de ver as diferenças linguísticas e de
interpretar as distinções. Quantificação e qualificação dos fenômenos
ocorridos tornam-se chave para descrever a variação e interpretar os
processos de mudança linguística.
O espaço, porém, não se torna desprezível. O fato de um
sociolinguista enfrentar uma empreitada dialetológica é prova disso,
como se atesta com a recente publicação de Labov, Ash e Boberg (2006)
que, ao produzir o seu Atlas of North American English (ANAE), traz
uma amostra dos dialetos regionais do inglês falado nas áreas urbanas
dos Estados Unidos e do Canadá, recolhida entre 1992 e 1999.
Nessa introdução, na qual trago a presença e um pouco do
percurso histórico de duas das manifestações dos estudos linguísticos
– a Dialetologia e a Sociolinguística – tenho um objetivo definido:
(i) mostrar que Dialetologia e Sociolinguística não se opõem nem se
excluem, mas caminham juntas e de forma complementar; (ii) que
a variação interessa a cada uma delas e na mesma intensidade; (iii)
que os enfoques, sem serem exclusivistas, estabelecem prioridades de
tratamento o que faz da Dialetologia um ramo dos estudos linguísticos
que partindo do que revelam os espaços aponta as diferenças e
pode correlacioná-las à natureza social do falante, e o que torna a
Sociolinguística a responsável pela interpretação das relações línguafatores sociais, sem, contudo, desconsiderar a correlação com os
espaços geográficos.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
35
Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]
Com isso quero justificar o título desta conferência, particularmente
o “papel” que procuro atribuir a esses ramos da ciência no ensino da
língua portuguesa.
2. O ensino da língua portuguesa e sua relação com a Dialetologia
e a Sociolinguística
Para tratar da língua, muitos caminhos existem, muitos enfoques
se apresentam, muitas perspectivas podem ser selecionadas. Dentre
tantas possibilidades, situa-se a visão geo-sociolinguística recoberta
pela Dialetologia e pela Sociolinguística, que buscam destacar as
relações entre língua, espaço e sociedade e dar ênfase à importância do
reconhecimento da diversidade de usos, fato estritamente relacionado
à pluralidade cultural do nosso país.
2.1 Pluralidade cultural
E para esse entendimento é preciso que se comece, ainda que
de maneira breve, tecendo considerações sobre o entrelaçamento
cultural que, no dizer de Diegues Junior (1955, p. 5), ao se referir às
relações de raça e de cultura no Brasil, “se verificam desde o instante
da descoberta, quando a armada portuguesa de Pedro Álvares Cabral
entrou em contato com a terra brasileira e os grupos aborígines aí
encontrados”. Entendê-la requer percorrer os caminhos da história,
desbravar a constituição demográfica do país, encontrar as motivações
em que se sedimentam núcleos sociais, ver as bases das diferentes
comunidades, traçar, enfim, o perfil de cada rincão, porque as raízes
dessa pluralidade cultural infiltram-se por muitas veredas, por muitos
atalhos e se refletem na língua.
Entender a pluralidade cultural requer, assim, sentir os caminhos
da história, da formação política do Brasil. E isso começa pela
compreensão dos nossos sistemas de governo – fomos monarquia,
somos república – e como esses sistemas vêm construindo o nosso
espírito de Nação, o que leva a uma indagação: por que livres da
dominação colonizadora – ao menos teoricamente – sustentamos uma
monarquia por um, relativamente, longo tempo, quando eclodiam
36
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os
estudos do português brasileiro [27-49]
as repúblicas à volta? Isso leva Schwarcz (1999, p.13) a perguntar na
Introdução do seu livro As barbas do Imperador:
Afinal, como explicar a permanência, por quase sessenta anos, de uma
monarquia rodeada de repúblicas por todos os lados? Como entender
o enraizamento de uma realeza Bragança, mas também Bourbon e
Habsburgo, em um ambiente tropical, cercado de indígenas, negros e
mestiços?
Dessa citação quero destacar a menção ao “ambiente tropical,
cercado de indígenas, negros e mestiços”, para uma referência inicial à
miscigenação que marca nossa história desde os seus primórdios. E retorno
à autora que evoca a situação da capital da monarquia brasileira – o Rio
de Janeiro – para mostrar que, em 1838, do total de 97 mil habitantes, 37
mil eram escravos, números que, em 1849, se modificam para 206 mil
pessoas, das quais 79 mil eram cativos, destacando que “nesse ambiente, a
corte e os paços representavam ilhas com pretensões européias cercadas de
mares tropicais, e sobretudo africanos, por todos os lados” (SCHWARCZ,
1999, p.13). As relações entre Brasil e África exibiram, desde os tempos
coloniais, uma política muito ampla de trocas, a que se refere a autora
como “mais alargada do que se pode, à primeira vista, imaginar” (p.14).
Eram contribuições africanas incorporadas aos usos brasileiros, mas eram,
também, usos indígenas transportados ao continente africano, o que leva
Costa e Silva (apud SCHWARCZ, 1999, p.14) a afirmar que “a África
recebeu e africanizou a rede, a mandioca e o milho, enquanto o Brasil
fazia seus o dendê, a malagueta e a panaria da Costa”.
Entender a pluralidade cultural leva a que se procure desbravar a
constituição demográfica do país. Com uma base inicialmente tripartite
– índios, portugueses, africanos –, o Brasil se torna, sobretudo a partir do
século XIX, quando o príncipe regente, D. João, não só abre os portos
brasileiros a todas as nações amigas, mas assina outro ato permitindo a
concessão de terras aos estrangeiros (DIEGUES JUNIOR, 1955, p.12), uma
nação da pluralidade de raças, com fluxos de imigração procedentes de
várias partes, que se fixam em regiões diferenciadas do país e conforme os
anseios e necessidades de cada um dos que se achegam à terra brasílica.
Essa diversidade de conformação demográfica leva a peculiaridades
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
37
Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]
de usos linguísticos que vão distinguir áreas e caracterizá-las conforme
o elemento humano presente na sua constituição. Tal fato nos leva a
constatações como as que trago à consideração na “Apresentação” do
livro Quinhentos anos de história linguística do Brasil (CARDOSO, 2006),
ao chamar a atenção para a densidade da inter-relação existente entre os
diferentes grupos e as diferentes culturas, particularmente, na constituição
do léxico do português brasileiro. São numerosos os itens resultantes da
contribuição das línguas indígenas. São abundantes os africanismos que
permeiam os usos cotidianos do nosso vernáculo. São representativos, em
áreas particulares, os empréstimos tomados às línguas de imigração. Não
escapamos, assim, de exigir, no Rio Grande do Sul, a presença do chimier
(alemão schmiere, ‘geleia’) para o nosso café da manhã, do mesmo
modo que, à mesma hora e a essa mesa do desjejum, comparece por
todo o Nordeste a maravilhosa tapioca (tupi tïpï’oka ‘fécula alimentícia
da mandioca’), perpassando por qualquer horário e a qualquer pretexto
o irresistível acarajé (iorubá akara ‘bolo de feijões’ + ije ‘comida’). Mas,
também, vai noutra direção a troca, como ilustra a presença, na Língua
Geral Amazônica do século XVIII, da forma wajmí~myrapára para ‘arcoíris’, que, literalmente, se traduz ‘arco [de flecha] da velha’ (e não seria
o mesmo arco-da-velha, corrente no português do Brasil para, também,
‘arco-íris’?).
As diferentes correntes migratórias e a base demográfica de cada
região vão responder por outro tipo de pluralidade cultural que se
constata: as diferentes motivações em que se sedimentam os núcleos
sociais que levam a escolhas diversificadas e, consequentemente, a
denominações particulares para os elementos do mundo biossocial. O
espaço sideral, a ideia do infinito e do não totalmente dominado pelo
homem e a curiosidade pelo, ainda, não desvendado por meio do
conhecimento científico ou do saber feito de experiências constituem-se,
por exemplo, num foco de revelação de concepções e de indicadores da
imaginação que se traduz nas denominações utilizadas para referentes
nesse campo semântico, em muitos casos, figurações do imaginário e
das “verdades” que povoam a cabeça de cada falante, de cada grupo
humano.
38
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os
estudos do português brasileiro [27-49]
Exemplo a ilustrar a questão é a pluralidade de nomes em áreas
brasileiras para designar o arco-íris os quais, além de estimulantes para
uma reflexão mais ampla que ultrapasse os limites da diatopia e da
descrição linguística, são atraentes e, no que diz respeito a alguns deles,
intrigantes: arco, arco-celeste, arco-da-aliança, arco-da-velha, arco-deboi, arco-de-celeste, arco-de-velho, arco do sol, arco inselente, barra
de nuvem, as torres, olho-de-boi, rabo de pavão, sete-e-um-couros
(CARDOSO, 2004).
O Brasil, na sua ampla extensão territorial – país-continente –,
apresenta-se como uma terra de grandes contrastes, marcada pela
heterogeneidade cultural, social e econômica que se vai refletir, também,
na língua portuguesa, hoje majoritariamente falada. A diversidade da
língua está, pois, vinculada à diversidade cultural tomada nos seus mais
diferenciados aspectos.
2.2 A unidade e a diversidade no português do Brasil
Nesse quadro, a unidade do português do Brasil, enquanto
uniformidade de usos, não passa de uma abstração, cujo reconhecimento
se justifica apenas no pensar-se a língua como um sistema único,
conjunto de possibilidades responsáveis pela continuidade histórica que
representa através dos tempos, como bem conceitua Coseriu (1982).
Assim entendendo, a primeira grande distinção para a língua
decorre da sua relação com o espaço. A amplitude do território traz
como consequência a diversidade diatópica. Traços que são regionais,
definidores de áreas geográficas, afetam a todos os falantes da região,
não se constituindo, no seu interior, como distintivo de classes sociais
e, portanto, estigmatizantes. Apresentam-se, ao contrário, como
manifestações do padrão, da norma linguística da área e, portanto,
perfeitamente incorporados na fala de todos os usuários do português
como se pode ilustrar com a realização aberta das vogais médias em
distribuição pretônica, exemplo típico de variação diatópica, que se
vê na parte Norte-Nordeste do Brasil, fato já assinalado por Nascentes
(1953), ao tomar esse fenômeno como marco distintivo entre a Região
Norte e a Região Sul da sua divisão dialetal do Brasil. Os falantes da área,
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
39
Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]
independentemente das suas próprias características sociais, utilizam-se
de uma das duas possibilidades assinaladas para a realização das vogais
médias pretônicas. O estudo do /r/ posvocálico que, no português
do Brasil, se realiza como vibrante apical múltipla, vibrante uvular,
fricativa velar, fricativa laríngea, vibrante apical simples, aproximante
retroflexa ou zero fonético, mostra, por exemplo, a existência de duas
áreas distintas, conforme os dados do Projeto NURC1, em trabalho
apresentado por Callou, Leite e Moraes (1995). De um lado ficam São
Paulo e Porto Alegre, onde se registra a presença de uma vibrante, de
outro, Rio de Janeiro, Salvador e Recife onde essa variante quase não
se registra.
E outro fato, ainda a título de ilustração: a presença de um elevado
índice de palatalização atingindo realizações africadas, como sucede ao
/ t / e ao / d / quando seguidos da / i /, na pronúncia dos cariocas e, já
agora, na de outras áreas, como vêm mostrando aprofundados estudos
sobre esse fenômeno feitos por Mota (1994), Mota e Rollemberg (1995),
Hora (1990; 1997), Noll (2008), entre outros.
Esses traços, e muitos outros que poderão ser arrolados, figuram
como marcas regionais fonéticas que refletem uma continuidade ao
interior da área em que se documentam, produzindo uma unidade
da qual só se vêm a tomar plena consciência no momento em que
se põe em confronto o que se passa nessa com o que ocorre em
outras regiões.
Outra gama de traços diferenciadores foge à continuidade numa
mesma área, quebrando o caráter generalizante de que outros traços,
como os apontados anteriormente, se revestem. São aqueles que
assinalam diferenças diastráticas, etárias, de gênero, que não têm marca
de regionalismo, mas trazem uma definição de categorias sociais. Ilustram
esse caso, no campo da diastratia – para ficarmos em apenas uma das
1
Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta no Brasil, desenvolvido em
cinco capitais – Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre – de que
resultou a constituição de um amplo corpus que vem servindo a numerosos estudos,
destacando-se teses e dissertações de mestrado.
40
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os
estudos do português brasileiro [27-49]
categorias –, a presença do ieísmo – mulher/muié, folha/foia –, a ausência
da concordância verbal – nós vai, a gente fomos –, a simplificação na
morfologia verbal com a redução das oposições mórficas – tu vai, ele vai, nós
vai, eles vai –, entre outros. Esses traços ultrapassam os limites geográficos
de uma área e vão se constituir em instrumento de unidade entre falantes
de diferentes regiões, identificados pelo estrato social a que pertencem. Tal
situação levou Teyssier (1982, p. 79) a fazer a seguinte afirmação:
A realidade, porém, é que as divisões “dialectais” no Brasil são menos
geográficas que sócio-culturais. As diferenças na maneira de falar são
maiores, num determinado lugar, entre um homem culto e o vizinho
analfabeto que entre dois brasileiros do mesmo nível cultural originários
de duas regiões distantes uma da outra.
A essa diferenciação de usos, quero acrescentar um terceiro grupo,
sem, a princípio, classificá-lo ou denominá-lo como da primeira ou da
segunda categorias que acabam de ser citadas. Refiro-me, primeiramente
a título de exemplo, à tendência que se vem tornando frequente no
português do Brasil de usar a preposição de depois de certos verbos,
fenômeno identificado, a partir dos estudos de Rabanales para o
espanhol do Chile, como dequeísmo. Os exemplos que tenho anotado
(CARDOSO, 1996) e os que vêm citados por Mollica (1995) mostram
que o fenômeno atinge uma gama variada de verbos e se apresenta
também em distintas situações discursivas. Surpreendentemente os
usuários, autores do dequeísmo, não se têm dado conta do fenômeno.
A realidade, porém, mostra que o dequeísmo vem-se expandindo.
Seguindo a mesma perspectiva, a de buscar fatos não
estigmatizados, mas diferenciados nas coletividades consideradas, trago
alguns exemplos da área rural, tomados de inquéritos linguísticos feitos
para o Atlas Linguístico de Sergipe (1987) e de referência à categoria
dos pronomes. Trata-se do uso de clíticos, anotados em frases do tipo:
“... tem um lugarzinho que chama-se Cajueiro”.
“Chama-se uma jarra”
“Se travessa de canoa”
A observação de tais exemplos permite verificar que:
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
41
Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]
(i) a ênclise não está fora dos padrões desses dialetos rurais, apesar
de considerada uma forma de expressão do português padrão, ocorrendo
tanto em situações que podem ser consideradas estereotipadas, por
introduzirem com certa sistematicidade respostas a perguntas com a
formulação “Como se chama...”, a que o informante acorria com a
resposta “Chama-se...”, como também em construções sem essa marca
discursiva, como em “... tem um lugarzinho que chama-se Cajueiro”;
(ii) o uso do clítico está presente no dialeto de falantes daquela
coletividade, nada obstante se tratar de um dialeto rural e de usuários
de baixa ou nula escolaridade.
As diferentes formas de expressão da variação, que, com parcimônia,
se procurou ilustrar com os exemplos trazidos, constituem-se numa
intricada malha tecida, por um lado, com traços estráticos, geralmente
sem demarcações espaciais, de caráter generalizante, porque passíveis
de serem encontrados independentemente dos limites regionais, como
ilustram os casos de não concordância sujeito-verbo, de iotização, aqui
lembrados. Por outro, figuram os traços diatópicos, sem marcação estrática,
mas definidores de limites espaciais. Por último, estão as ocorrências de
usos que mostram que certas inovações entram no cotidiano do falante,
sem estigma, como é o caso do dequeísmo; ou que demonstram que
fatos tidos como típicos de estratos sociais com certo grau de escolaridade
ocorrem nas falas rurais, indicando a sua generalidade, como sucede com
os casos de ênclise documentados entre informantes do campo.
Já é hora, pois, de relacionar o quadro que tentei descrever com o
papel que têm a desempenhar a Dialetologia e a Sociolinguística no ensino
das línguas, particularmente da língua materna, mas no mundo globalizado
em que vivemos, também no ensino de uma segunda ou terceira língua.
2.3 Dialetologia, Sociolinguística e ensino
O pressuposto básico para essa consideração reside na definição
do que se deve ensinar, para quem e para que. Parece claro e já de
muito assente que à escola cabe ensinar ao aluno as modalidades de
uso da língua que escapam ao seu domínio, como forma de integrálo linguística, social e politicamente e de torná-lo capaz de exercitar
42
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os
estudos do português brasileiro [27-49]
quaisquer dos dialetos que constituem a língua nacional de seu uso e
a oficial do país.
Deparamo-nos, no entanto, com alguns óbices. A dimensão
da diversidade linguística do Brasil ainda está por ser devidamente
traçada. Os estudos de Geolinguística e de Sociolinguística, apesar do
esforço que em muitas áreas e sob a responsabilidade de um número
considerável de pesquisadores se vem fazendo, estão muito longe de
permitir uma caracterização completa dos usos do português brasileiro
e definir o conjunto de normas-padrão ou de uma possível, vamos
denominar, “arquinorma” a se constituir no modelo a ser seguido.
Tal fato decorre do desconhecimento das realidades regionais o que,
consequentemente, inviabiliza a identificação de parâmetros regionais
e serem tomados como modelo. Trabalho de fôlego nacional, com
base em dados coletados in loco e representativos das diferentes áreas
geográfico-culturais e linguísticas do país vêm sendo desenvolvidos,
mas não têm amplitude nacional. Reportam-se a áreas, regiões mais
ou menos extensas, como se observa com o Projeto da Norma Urbana
Culta, o Projeto Censo Linguístico do Português do Rio de Janeiro, o
Projeto Variação do Português no Sul, o Projeto Variação Linguística
no Estado da Paraíba, entre outros. De amplitude nacional surge, a
partir de 1996, o Projeto Atlas Linguístico do Brasil que tem por
meta documentar a fala de 1.100 cidadãos representativos das áreas
consideradas ilustrativas das diferentes regiões geográfico-culturais,
fixadas em número de 250. O resultado desse trabalho, que já conta,
neste ano de 2008, com 58 % da documentação recolhida e com a
preparação dos primeiros resultados a serem divulgados – referentes
às capitais de estado2 – há de nos fornecer, espera-se, pelo menos as
linhas mestras dos parâmetros referidos que possam contribuir para a
concepção de um processo de ensino-aprendizagem da língua materna
perfeitamente integrado às diferentes realidades do país.
Das reflexões aqui trazidas pode-se concluir que não existe
ainda um modelo real da norma brasileira ou das normas regionais no
No momento em que se faz esta publicação, 2011, a documentação recolhida já
atingiu o índice de 91.6%.
2
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
43
Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]
Brasil descritos na sua inteireza. O que temos são descrições esparsas
e pontuais, focalizando esse ou aquele fenômeno, abordando tal ou
qual nível da língua, numa região ou num conjunto de regiões. E nisto
está o cerne da competência, responsabilidade e possibilidade de
contribuição dos estudos dialetais e sociolinguísticos para os estudos do
português brasileiro, cujas linhas gerais procurarei, a seguir, traçar e já à
busca de uma conclusão.
3. Para concluir: o que se espera da Dialetologia e da Sociolinguística
O que se espera da Dialetologia e da Sociolinguística num país
pluricultural e multidialetal, onde permeiam diferentes línguas com
diferenciados status? O que se espera da ação desses dois ramos dos
estudos linguísticos num mundo globalizado onde a hegemonia do inglês
convive com a diversidade de línguas? O que se espera desses estudos
no resgate das nossas marcas linguísticas africanas e na convivência com
as línguas indígenas? O que se espera dos estudos geo-sociolinguísticos
na construção do MERCOSUL onde espanhol e português devem e
precisam crescer juntos? São perguntas que implicam tarefas muito
particulares para os estudos dialetais e sociolinguísticos. Nesse sentido,
e para concluir, me imponho algumas considerações.
3.1 O que se espera da Dialetologia e da Sociolinguística num país
pluricultural e multidialetal, onde permeiam diferentes línguas
com diferenciados status?
Sem dúvida, os primeiros passos devem ser na direção do
conhecimento da realidade nacional. E para isso, necessário se faz
buscarem-se os meios de apresentar o nosso panorama linguístico,
no conjunto de línguas que o constituem: a língua portuguesa com as
suas variedades; as línguas indígenas nas suas diferentes situações de
uso e de expansão; os vestígios das línguas africanas; e as línguas de
imigração. E esse trabalho, graças a Deus, está bem começado. São
numerosos os projetos – Projeto NURC, Projeto Censo, Peul, VARSUL,
VARLParaíba, para ficar apenas numa breve exemplificação – muitos
deles com reconhecimento e apoio de instituições financiadoras da
pesquisa em nosso país, mas ainda sem resultados que permitam ou
44
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os
estudos do português brasileiro [27-49]
uma macro visão do território nacional ou a intercomparação sistemática
entre áreas, com base em fenômenos comuns estudados, ou, ainda,
a identificação de variedades de usos segundo as categorias sociais
em que se situam os grupos de falantes, tudo isso numa perspectiva
nacional. O Projeto ALiB, presentemente, tem o objetivo de mapear
linguisticamente o Brasil, no que diz respeito à língua portuguesa, o
que nos dará em breve – espera-se – um primeiro retrato geral do nosso
território. E essa é uma tarefa da Dialetologia e da Sociolinguística.
3.2 O que se espera da ação desses dois ramos dos estudos
linguísticos num mundo globalizado onde a hegemonia do inglês
convive com a diversidade de línguas?
Atualmente se falam cerca de 6.500 línguas, o que significa a
existência de 6.500 grupos e povos etnolinguísticos no mundo (HAMEL,
2008, p.46). A distribuição desse imenso conjunto é, porém, muito
desigual no que se refere à relação línguas/falantes/espaços políticos onde
se fazem presentes. Nesse contexto, presenciamos o desaparecimento
de línguas minoritárias, motivado por diferentes fatores.
Por outro lado, observa-se, a partir do século XX, a expansão do
inglês, a sua “mundialização”, no dizer de Hamel (2008, p.51), presença
que se sente nas diferentes manifestações da vida atual, e sobre a qual
assim se manifesta esse autor (HAMEL, 2008, p.60):
La globalización y el monopolio del inglés se fomentan desde posiciones
de mucha fuerza política y con amplios recursos económicos y científicos
No puede sorprender que estos actores provengan en su mayoría de
los países anglófonos mismos y de sus satélites que se ven directamente
beneficiados. Encuentran adhesión también entre las elites de países
medianos y pequeños, así como entre representantes de lenguas que
sufren la opresión de otras lenguas nacionales e internacionales.
O pensamento de Hamel, aqui trazido, tem o objetivo de chamar
a atenção para o quadro no qual se expande o inglês, destacandose o papel dos países anglófonos, em situação econômico-política
privilegiada e a posição que assumem “as elites de países medianos y
pequeños”, bem como povos cujas línguas são reprimidas.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
45
Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]
Com isso, quero assinar que cabe à Dialetologia e à Sociolinguística
um aprofundamento dessa questão, sem xenofobia e sem recurso a
“decretos” radicais, mas, analisando os novos contextos e buscando
elementos para avaliar o redimensionamento das relações entre as
línguas que cá entre nós convivem com o inglês que se expande. Essa
é mais uma tarefa!
3.4 O que se espera desses estudos no resgate das nossas marcas
linguísticas africanas e na convivência com as línguas indígenas?
E novamente caminho na trilha do reconhecimento, identificação,
descrição e análise dessas línguas. Reconheço que núcleos de especialistas
nesses campos vêm, intensamente, se dedicando à causa. Mas,
pergunto, não estaria, para além dos objetivos gerais da Linguística, um
compromisso, específico, da Dialetologia e da Sociolinguística no sentido
de buscar, ao lado do conhecimento, desvendar os intrincados meandros
das relações entre língua indígenas/línguas-vestígio de línguas africanas e
o português e, assim, dar elementos para a construção da sócio-história
da nossa língua majoritariamente falada? Fica mais essa tarefa!
3.4. O que se espera dos estudos geo-sociolinguísticos na
construção do MERCOSUL onde espanhol e português devem e
precisam crescer juntos?
Não se pode desconhecer a nova fisionomia que se delineou
com o MERCOSUL pelo menos no tocante, especificamente, às
relações português-espanhol e ao papel de cada uma dessas línguas,
individualmente, na América Latina. As relações linguísticas se
estreitaram, e não seria essa a hora de serem articulados grandes projetos
comuns, envolvendo cada uma dessas línguas? Por que não se pensar
no dequeísmo na América Latina? Ou na categoria dos pronomes com
as suas diferentes reordenações? Ou, ainda, no intercâmbio do léxico?
Seriam, esses, voos mais amplos que se fariam preceder de uma base
comum, geral, de aprendizado da “língua do vizinho” com o ensino
vulgarizado em todos os níveis escolares.
O âmbito da ALFAL, com o espaço já criado para projetos, poderá
converter-se no locus ideal para a concretização de trabalhos dessa
natureza, espaço que, certamente, deve ser ampliado pela ação da
ABRALIN e da ANPOLL. E fica uma última tarefa!
46
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os
estudos do português brasileiro [27-49]
Ao concluir essa exposição quero chegar a um ponto, que é final,
mas é também conclusivo: a Dialetologia e a Sociolinguística têm no
momento atual importante papel, relevante missão de assumindo uma
reflexão sobre a língua portuguesa dar o salto da teoria à práxis para
que encontrem os veios do aperfeiçoamento ensino-aprendizagem da
língua materna; e, por outro, deve colaborar na construção de políticas
de convivência com outras línguas, particularmente o espanhol e,
inevitavelmente, o inglês, aproximando-se, assim, do que sugere a
organização dos Estados Iberoamericanos para a Educação, a Ciência e
a Cultura com a recomendação:
Resulta válida la recomendación de que se promueva el manejo generalizado,
por parte de los hablantes, de al menos tres lenguas: la lengua materna, la
lengua de la comunidad lingüística vecina, y una lengua da amplio alcance
internacional. Y eso porque de ese modo se cubre un aspecto realmente
global sin olvido de lo local (apud ARNOUX, 2008, p.20).
Sigamos, pois, o caminho que se mostra à nossa frente.
Referências
ARNOUX, Elvira Narvaja de. El conocimiento del otro en el proceso de integración
regional. Propuestas para la enseñanza media. In: HORA, Dermeval da; LUCENA,
Rubens Marques de (Orgs.). Política lingüística na América Latina. João Pessoa: Idéia/
Editora Universitária, 2008, p. 11-31.
CALLOU, Dinah; LEITE, Yonne; MORAES, João. Neutralização e realização fonética: a
harmonia vocálica no português do Brasil. In: DUARTE, Inês e LEIRIA, Isabel (Orgs.).
Congresso Internacional sobre o Português. Actas... Lisboa: A. P. L. ; Colibri, junho
1996, p.395-413.
CARDOSO, Suzana Alice Marcelino da Silva. Dequeísmo: um fenômeno da România
Nova?. Estudos Língüísticos e Literários, Salvador, nº esp., p. 239-246, 1996.
CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. Apresentação. In: CARDOSO, Suzana Alice
Marcelino; MOTA, Jacyra Andrade; MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (Orgs.). Quinhentos
anos de história lingüística do Brasil. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado
da Bahia, 2006.
CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. As « cores » do arco-íris no Brasil. In: AGRELO,
Ana Isabel Boullón (ed.). Novi te ex nomine. Estudos filolóxicos ofrecidos ao Prof. Dr.
Dieter Kremer. A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, 2004. p. 69-81.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
47
Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]
CHAMBERS, J. K. (Jack); TRUDGILL, Peter. La dialectología. Madrid: Visor Libros, 1994.
COSERIU, Eugênio. A geografia lingüística. In: COSERIU, Eugenio. O homem e sua
linguagem. Rio de Janeiro/São Paulo: Presença/USP, 1982.
DIÉGUES JUNIOR, Manuel. Estudos de relações de cultura o Brasil. Rio de Janeiro:
Ministério de Educação e Cultura, 1955.
DUBOIS, Jean et al. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1993.
FERREIRA, Carlota; FREITAS, Judith; MOTA, Jacyra; ANDRADE, Nadja; CARDOSO,
Suzana; ROLLEMBERG, Vera; ROSSI, Nelson. Atlas Lingüístico de Sergipe. Salvador:
Universidade Federal da Bahia; Fundação Estadual de Cultura de Sergipe, 1987.
GILLIÉRON, Jules; EDMONT, Edmond. Atlas Linguistique de la France. 35 fasc. Paris:
Honoré Champion, 1902-1910.
HAMEL, Rainer Enrique. La globalización de las lenguas en el siglo XXI entre la
hegemonía del inglés y la diversidad lingüística. In: HORA, Dermeval da; LUCENA,
Rubens Marques de (Orgs.). Política lingüística na América Latina. João Pessoa: Idéia/
Editora Universitária, 2008, p. 45-77.
HORA, Demerval da. A palatalização das oclusivas dentais /t/ e /d/ e as restrições sociais.
Graphos: revista da Pós-Graduação em Letras. João Pessoa: Curso de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal da Paraíba, ano II, v. 2, n. 1, p. 135-141,1997.
HORA, Dermeval da. A palatalização das oclusivas dentais: variação e representação
não-linear. Rio Grande do Sul: PUC, 1990. Tese de Doutorado.
KURATH, Hans. et al. Linguistic Atlas of New England (LANE). New York: Brown
University Press, 1939-1943.
LABOV, William; ASH, Sharon; BOBERG, Charles. The atlas of North American English.
Phonetics, Phonology abd Sound Change. Berlin: Mouton de Gruyter, 2006.
MOLLICA, Maria Cecília de Magalhães. (De) que falamos?. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1995.
MOTA, Jacyra Andrade. Consoantes constritivas implosivas e vogais pretônicas no
nordeste. ABRALIN, Salvador: ABRALIN/UFBA, v. 15, p. 233-237, 1994.
MOTA, Jacyra Andrade; ROLEMBERG, Vera. Constritivas implosivas em área nordestina.
Estudos Lingüísticos e Literários, Salvador: Mestrado em Letras, v. 17, p. 79-86, 1995.
NOLL, Volker. O português brasileiro. Formação e contrastes. Traduzido do alemão por
Mário Eduardo Viaro. São Paulo: Globo, 2008.
POP, Sever. La dialectologie. Aperçu historique et méthodes d’enquêtes linguistiques, v.
1 e 2. Louvain: Chez l’Auteur; Gembloux, Duculot, 1950.
ROSSI, Nelson. Dialectologia. In: HOUAISS, Antônio (Ed.). Enciclopédia Mirador
Internacional. São Paulo; Rio de Janeiro: Encyclopædia Britannica do Brasil, 1980.
48
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os
estudos do português brasileiro [27-49]
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador. D. Pedro II, um monarca nos
trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Trad. port. de Celso Cunha. Lisboa: Sá
da Costa, 1982.
THUN, Harald; ELIZAINCÍN, Adolfo. Atlas Lingüístico Diatópico y Diastrático del
Uruguay (ADDU). Kiel: Westensee, 2000.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
49
O sentido de um atlas linguístico nacional
(por que um atlas linguístico nacional?)
The meaning of a national linguistic atlas (why a national
linguistic atlas?)
Suzana Alice Marcelino Cardoso
Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura e no Programa de
Pós Graduação em Literatura e Cultura
Universidade Federal da Bahia
Membro Associado do LDI-Lexiques, Dictionnaires, Informatique da
Université Paris 13
[email protected]
Resumo: Apresentam-se o entendimento e as razões para a produção de
um atlas linguístico geral do Brasil no tocante à língua portuguesa.
Retomam-se dados históricos relativos à concepção da ideia, em 1952,
e são fornecidos dados sobre o Projeto Atlas Linguístico do Brasil, com
informação sobre o seu desenvolvimento e sobre a sua contribuição para
a constituição da sócio-história do português brasileiro e o lugar que
ocupa nos estudos linguísticos brasileiros.
Palavras-chave: Dialetologia. Geolinguística. Atlas linguístico. Variação.
Abstract: This work is intended to present the understanding and the reasons
for the production of a general Brazilian linguistic Atlas with regard to
Portuguese. Historical records from 1952 are resumed and data about the
Projeto Atlas Linguístico do Brasil are supplied, with information about
its development and contribution to the constitution of the social history
of the Brazilian Portuguese and the role it plays in the Brazilian linguistic
atlases.
Keywords: Dialectology. Geolinguistics. Linguistic Atlas. Linguistic Variation.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
51
Suzana Alice Marcelino Cardoso [51-63]
O título desta comunicação, ao qual é aposto um subtítulo
provocativo — Por que um atlas linguístico nacional? —, levanta
uma questão de fundo que diz respeito ao entendimento de um atlas
nacional, da sua importância, da sua finalidade, em suma, do sentido
linguístico, político e social de que se reveste.
Sabe-se que perguntas, adjungidas a esta formulada, podem ser
acrescentadas. Por exemplo, pode-se indagar:
A que serve um atlas linguístico nacional?
Porque se empreende um atlas nacional, agora, começando dos
seus primórdios, quando já existem atlas linguísticos regionais?
Por que não se juntam esses atlas regionais e, completando-os,
chega-se a um atlas geral do Brasil?
Esses e outros porquês podem ser formulados. Nesta oportunidade
busca-se dar uma resposta, entender este sentido posto em destaque.
Espera-se tirar a dúvida, encontrando o que distingue a repetição da
novidade, o sobejo do essencial, o que acrescenta do que é apenas
redundante.
Para isso, retomam-se alguns dos passos da Geolinguística assim
identificados:
a. O surgimento da ideia de um atlas linguístico geral do Brasil.
b. A prioridade dada aos atlas regionais.
c. A construção de um atlas nacional.
d. Os lucros advindos de um atlas nacional.
1. O surgimento da ideia de um atlas linguístico geral do Brasil.
A ideia e o desejo de um atlas linguístico do Brasil estavam
em cogitação nos meios acadêmicos desde meados do século XX e
nos objetivos do Governo Federal que, ao promulgar o Decreto
30.643/20.03.1952, assentava no Art. 3°, como principal finalidade da
Comissão de Filologia da Casa de Rui Barbosa, a elaboração do atlas
linguístico do Brasil, como se lê no texto legal:
52
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O sentido de um atlas linguístico nacional [51-63]
3º - A Comissão de Filologia promoverá pesquisas em todo o vasto
campo de filologia portuguesa-fonologia, morfológicas, sintáticas, léxicas,
etimológicas, métricas, onomatológicas, dialetológicas bibliográficas,
históricas, literárias, problemas de texto, de fontes, de Autoria, de
influências, sendo sua finalidade principal a elaboração do Atlas
Lingüístico do Brasil (grifo nosso).
Aflorar em começos/meados do século XX esse desejo tem
um sentido histórico bem delineado e razões de ordem linguística
sustentáveis.
Ao se iniciar esse século, a Europa assiste ao lançamento do
primeiro atlas linguístico nacional, o Atlas Linguistique de la France –
ALF (1902-1910), obra de Jules Gilliéron e de Edmond Edmont que,
como salienta Pop (1950, p. 113):
On reconnaît bien aujord’hui que J. Gilliéron avait parfaitement raison
lorqu’il déclarait, en 1904, en réponse à la critique trop injuste d’A.
Thomas (J. Gilliéron, A. L. de la France: compte rendu de M. Thomas,
Paris, Champion, 1904, p.8), qu’une nouvelle ère (grifo nosso) allait
s’ouvrir dans l’étude du langage par la publication de l’Atlas linguistique
de la France1.
A nova era, referida por Pop, que se instala, representa o
enfrentamento da língua a partir da realidade colhida in loco, a
descoberta de fatos e fenômenos linguísticos que vão revelar o estágio
em que se encontra e a diversidade de usos de que se reveste. Com o
ALF quebra-se a ideia de regularidade dos fatos e de uniformidade dos
usos. Sincronia e diacronia vão se encontrar nos espaços como a mostrar
o percurso que segue cada idioma na sua caminhada: modificando-se,
variando de cá para lá, refazendo a sua história.
Gilliéron aprofunda o estudo da variação e ao mesmo tempo os
problemas de ordem dialetal, procurando mostrar de que maneira se podia
configurar o seu estudo numa perspectiva científica (POP, 1950, p.114).
Reconhece-se, hoje, que J. Gilliéron tinha perfeitamente razão quando declarou, em
1904, em resposta à crítica de A. Thomas (J. Gilliéron, A.L. de la France: recensão de
M. Thomas, Paris, Champion, 1904, p. 8) que uma nova era se abria para os estudos da
linguagem com a publicação do Atlas lingüístico da França.
1
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
53
Suzana Alice Marcelino Cardoso [51-63]
Dado o primeiro passo, novos atlas vão surgindo e se apresentam
diferenciadamente segundo os espaços a que se reportam – atlas regionais,
atlas nacionais, inicialmente, mas também atlas de famílias de línguas e
atlas de um continente, mais ao final do século XX. O enfoque inicial,
priorizando a distinção espacial, se amplia com a preocupação em ver
outras formas de se apresentar a variação. As variáveis sociais passam a ser
acopladas à variável diatópica e a Dialetologia amplia a sua perspectiva
metodológica, passando de um estágio monodimensional para uma
abordagem pluridimensional. Aos atlas inicialmente voltados para
detectar a variação no espaço geográfico, juntam-se outros que reúnem
informações diatópicas, diastráticas, diagenéricas, diageracional. As duas
formas de abordagem, porém, continuam convivendo, validamente, pois,
a depender do objetivo a atingir-se, um ou outro dos caminhos pode ser o
ideal e o recomendável. Assim, e para citar exemplos bem atuais, encontrarse ao lado do Atlas Linguistique Roman - ALiR, monodimensional, o Atlas
Diatópico y Diastrático del Uruguay - ADDU, pluridimensional.
Nesse contexto mundial o Brasil também procura se situar. Surgem
as primeiras manifestações em favor de que se elabore um atlas linguístico
do Brasil. Linguistas e dialetólogos brasileiros manifestam-se nesse
sentido. Ouvem-se vozes como as de Antenor Nascentes, Serafim da
Silva Neto, Celso Cunha, Nelson Rossi. O Brasil reconhece a importância
de um estudo geral, mas também tem consciência das dificuldades para
concretizar um projeto desse vulto. E a solução, vem, pois, do pensamento
abalizado de Antenor Nascentes (1953, p. 7) que assim se exprime:
Embora seja de toda vantagem um atlas feito ao mesmo tempo para
todo o país, para que o fim não fique muito distanciado do princípio, os
Estados Unidos, país vasto e rico e com excelentes estradas, entregou-se
à elaboração de atlas regionais, para mais tarde juntá-los no atlas geral.
Assim também devemos fazer em nosso país, que é também vasto...
2. A prioridade dada aos atlas regionais
O reconhecimento das dificuldades advindas, sobretudo da
extensão territorial do país, da precariedade das vias de comunicação e
da inexistência de equipes de pesquisadores preparados nesse campo
54
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O sentido de um atlas linguístico nacional [51-63]
fizeram com que o seu conselho fosse seguido e determinaram a opção
inicial dos estudos geolinguísticos no Brasil: empreender-se o trabalho
começando pelos atlas regionais.
Partiram, assim, os dialetólogos brasileiros para a execução de
atlas regionais, o primeiro dos quais, o Atlas Prévio dos Falares Baianos
- APFB, de autoria de Nelson Rossi, Dinah Isensee e Carlota Ferreira,
publicado em 1963, atingindo-se, na atualidade, o total de nove atlas
publicados, como se apresenta no Quadro 1, aos quais se somam duas
teses de doutorado (atlas da Amazônia e do Litoral Potiguar).
Quadro 1 - Atlas Linguísticos Regionais
A observação dos dados constantes do quadro apresentado
permite alguns comentários:
1. As datas de publicação recobrem um período de 45 anos, ou
seja, quase meio século, o que permite entrever-se a existência de
pelo menos duas gerações aptas a se constituírem em informantes
documentáveis em pesquisa de natureza geolinguística.
2. A rede de pontos reflete diferentes relações com a densidade
demográfica da área documentada.
3. Os informantes não se encontram, de forma generalizada,
identificados em cada ponto.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
55
Suzana Alice Marcelino Cardoso [51-63]
4. A metodologia seguida é monodimensional.
5. A metodologia seguida é pluridimensional.
6. As cartas linguísticas apresentam notas com comentários aos
dados registrados.
7. A natureza dos dados registrados recobre os níveis fonéticofonológico, semântico-lexical e morfossintático.
8. Presença de comentários às cartas.
9. Distinto número de informantes por ponto da rede.
3. Começando a responder...
Como se pode observar, não há entre os atlas apresentados uma
coincidência total dos princípios metodológicos seguidos. A diversidade
de técnicas, o distanciamento no tempo, a natureza diversificada
dos dados exibe uma heterogeneidade, explicável e justificável pela
própria origem de cada atlas, incompatível com a homogeneidade de
tratamento que uma visão macro do Brasil requer. E esta se configura
uma razão, fundada em base científica, para a não construção de um
atlas nacional a partir da consolidação de dados dos atlas regionais
existentes. Sem negar a importância e até mesmo a necessidade de
que se continue a produção de atlas regionais, não se pode conceber
uma visão geral do território nacional desvinculada de um processo
metodológico perfeitamente integrado e nacionalmente ajustado.
3.1 A construção de um atlas nacional.
Nesse quadro geral, passados cerca de cinquenta anos e com a
clareza de visão da realidade nacional, retoma-se a ideia de realização
de um atlas linguístico do Brasil no que tange à língua portuguesa,
motivados (i) pela urgência de descrever o português brasileiro antes
que se percam dados e fatos capazes de esclarecer aspectos da história
linguística do país (ii) e pelo papel relevante que, no momento, a
Geografia Linguística assume nos estudos linguísticos, no exterior e
no Brasil.
Concebe-se, para a concretização do desiderato, o Projeto Atlas
Linguístico do Brasil (Projeto ALiB), cujas bases se lançam no Seminário
56
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O sentido de um atlas linguístico nacional [51-63]
Caminhos e Perspectivas para a Geolinguística no Brasil, realizado na
Universidade Federal da Bahia, em novembro de 1996 e promovido
pelo Grupo de pesquisadores em Dialetologia dessa Universidade, o qual
contou com a participação de representativo número de pesquisadores
da área no Brasil, entre eles a presença de autores de todos os atlas até
então publicados e de representantes de atlas em andamento, e com
a presença do Prof. Dr. Michel Contini, do Centre de Dialectologie de
Grenoble, Diretor do Atlas Linguistique Roman e membro do Comitê
Diretor do Atlas Linguarum Europae, dois dos principais atlas linguísticos
em fase de publicação, na Europa.
O Projeto ALiB centra-se no estudo da língua portuguesa no
Brasil cuja implantação, na América, data do século XVI, atingindo,
assim, cinco séculos de uso. O curso do tempo, as mudanças sociais
operadas na sociedade, o perfil dos contatos com outras línguas,
a distribuição demográfica do País e a própria constituição dos
núcleos populacionais, a natureza do desenvolvimento implantado
e implementado, a estrutura social e o confronto cidade-campo,
rural-urbano são aspectos da história do Brasil que têm ampla
repercussão na língua aqui, majoritariamente, falada. Essa visão está
na base do Projeto ALiB e a compreensão da significância de cada
um desses aspectos fundamenta o reconhecimento e a definição dos
problemas a serem abordados.
Um projeto voltado para a língua, especificamente a língua
materna de um país, impõe-se, pela sua própria natureza,
como um modo de serviço à Nação de onde advêm diferentes
formas de contribuição, que pressupõem uma base preliminar.
Esse pressuposto básico e fundamental consubstancia-se no
entendimento de que a realidade de uma língua precisa ser
descrita para tornar-se conhecida a fim de permitir a assimilação e
a absorção das vantagens que tal fato possa propiciar. A consciência
desse valor, que provém do conhecimento da realidade linguística,
levou J. Grimm, o fundador da filologia germânica, a afirmar (apud
POP, 1950, p. XXXI) que ‘Toute individualité doit être tenue pour
sacrée, même dans le langage [...]”.2
2
“Toda individualidade deve ser reconhecida como sagrada, mesmo na linguagem”.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
57
Suzana Alice Marcelino Cardoso [51-63]
Nessa citação clássica de Grimm, dois aspectos tornam-se evidentes: o respeito às individualidades linguísticas, ou seja, à diversidade de que se reveste toda e qualquer língua, a que se acrescenta
o entendimento de que todos os dialetos sejam preservados, porque
cada um deles tem o seu valor.
Com essa compreensão, o estudo da realidade linguística do Brasil, no tocante à língua portuguesa, que se propõe realizar o Projeto
ALiB impõe-se como contribuição social e pelo aporte que pode trazer
ao processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa.
As relações dos estudos geolinguísticos com a sociedade usuária
da língua descrita explicitam-se por meio de diferentes formas de contribuição, identificadas, com os objetivos do Projeto ALiB, como a possibilidade de:
i. Permitir o conhecimento da realidade espacial do domínio do
português, explicitando as diferenças e convergências que se
registram no território nacional.
ii. Identificar áreas linguísticas e relacionar áreas dialetais a áreas
socioculturais.
iii. Oferecer ao sistema organizado de ensino-aprendizagem da
língua materna dados da realidade linguística que venham a
contribuir para o aperfeiçoamento do ensino do português.
iv. Contribuir para o entendimento da variação linguística como
fenômeno peculiar a toda e qualquer língua, de forma a eliminar preconceitos e discriminações sociais decorrentes de uma
falsa interpretação da realidade da língua no país.
v. Mostrar como convivem diferenças e convergências, reconhecendo, porém, a validade da existência de um padrão culto
necessário à comunicação oficial, à ministração do ensino, à
efetivação do discurso formal e às opções de grupos de falantes.
vi. Fornecer elementos para a construção da história da língua
portuguesa no Brasil, quer pela indicação dos caminhos
58
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O sentido de um atlas linguístico nacional [51-63]
seguidos, quer pela natureza das opções de mudança feitas,
quer pelo estabelecimento de camadas caracterizadas
linguística, social e geograficamente, quer, ainda, pela
referência a resultados de contato com outras línguas ou à
adoção de empréstimos linguísticos.
vii. Permitir a atualização de dicionários da língua portuguesa.
viii.Contribuir para a construção de uma gramática voltada para a
realidade do português brasileiro.
A essa contribuição de cunho social acrescenta-se uma potencial
contribuição de natureza econômica que não se quantifica em moeda,
mas que se fará sentir no curso da história. Assim, e a título de ilustração,
a melhoria do ensino é um agente de progresso e um dos grandes
responsáveis pela qualidade da produção e pelo aperfeiçoamento da
mão-de-obra qualificada, e para atingir-se essa meta a contribuição dos
estudos geolinguísticos é de fundamental valia.
Agrega-se, às razões apontadas, o caráter multi e interdisciplinar
do Projeto Atlas Linguístico do Brasil, na sua essência um projeto
linguístico, porque busca documentar, descrever e interpretar a
realidade do português brasileiro e tem, exatamente por esse caráter,
uma evidente interface com diferentes ramos do conhecimento
organizado, decorrente do fato de que a história de uma língua é a
história do próprio povo que a fala.
Esse caráter de que se reveste o Projeto ALiB tem duas evidentes
implicações: por um lado, inspira e fundamenta a sua concepção na
pluralidade do conhecimento; por outro, permite que, dos resultados
que venha a oferecer, se beneficie amplo espectro das ciências na
atualidade.
Com essa fundamentação, o Projeto ALiB oferece, pela própria
natureza dos dados que se propõe reunir, uma ampla interface com outros
ramos das ciências o que lhe assegura o caráter multi e interdisciplinar,
como se procura, a seguir, ilustrar, ainda que não de forma exaustiva.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
59
Suzana Alice Marcelino Cardoso [51-63]
No que concerne ao tipo de recolha previsto, os dados
vão evidenciar diferentes formas de comportamento linguístico
correlacionadas ao tipo de discurso. A postura linguística que assume o
falante, a depender da natureza da sua elocução, oferece aos estudos
no campo da psicologia e da sociologia vasto material de análise para
o conhecimento do comportamento humano. As respostas não dadas
e as restrições que muitas vezes ficam claras na fala dos informantes,
bem como o recurso a metáforas e a circunlóquios, permitem reflexões
no campo dos estudos culturais, em geral, que evidenciam tabus
existentes, construídos no curso da história e motivados por impulsos
diferenciados. O conjunto de dados que um atlas linguístico espelha,
na sua amplitude maior, pode (i) mostrar coordenadas seguidas no
povoamento do país, desfazendo dúvidas sobre roteiros de penetração
ou oferecendo elementos comprobatórios de levas de povoamento
fixadas nesses locais ou que por eles transitaram; (ii) assinalar o papel
de acidentes geográficos na difusão de hábitos linguísticos — como
se pode ver, examinando, por exemplo, o papel dos rios — ou no
isolamento de fenômenos que se detêm por trás de montanhas
ou incrustados em vales; (iii) fornecer elementos específicos para
estudos pontuais como no campo da medicina, mostrando nomes de
doenças, diagnósticos e curas que estão na sabedoria popular e que
afloram em perguntas nessa direção, ou no campo da geologia, com
a caracterização e denominações para tipos de terreno, por exemplo,
ou ainda na forma de designar os elementos do mundo biossocial,
vasto campo para os psicanalistas. Com a educação, é altamente
significativa a relação do Projeto ALiB, cujos resultados propiciarão
um melhor equacionamento do ensino-aprendizagem à realidade de
cada região, uma vez que, descritas as peculiaridades de cada área
e caracterizada a variedade de uso da língua ali dominante, pode-se
construir um modelo de ensino do vernáculo mais eficaz.
A esses aspectos relacionados, com os quais não se pretendeu
esgotar a indicação das possibilidades de interdisciplinaridade do
projeto, mister se faz destacar o que advém de um atlas para os estudos
linguísticos especificamente nos seus diferentes campos — semântica,
60
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O sentido de um atlas linguístico nacional [51-63]
lexicologia,
discurso.
sintaxe,
morfologia,
fonética/fonologia,
pragmática,
3.2 O sentido do Atlas Linguístico do Brasil para os estudos do
português brasileiro
Nesse campo, dois aspectos merecem destaque: a contribuição
para o conhecimento da realidade nacional no tocante à língua
portuguesa e o fornecimento de dados que permitam uma divisão
dialetal do Brasil com base em dados empíricos recolhidos in loco.
No tocante ao primeiro aspecto, o português do Brasil não possui,
ainda, uma descrição geral que permita a intercomparação de dados
entre as diversas regiões do país a partir de um levantamento único da
realidade linguística em todo o território nacional. Há estudos esparsos,
seja na perspectiva dialetológica, seja numa visão sociolinguística, mas
todos eles circunscritos a áreas determinadas ou focalizando fenômeno
específico, o que permite, sem dúvida, um estudo comparativo, mas
numa micro visão. Projetos mais amplos, como o Projeto NURC Projeto de Estudo Conjunto e Coordenado da Norma Linguística Culta
no Brasil, que se ocupa de cinco capitais brasileiras (Recife, Salvador,
Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), não chegam a se envolver
com todo o território nacional, embora tenham a vantagem de aplicar
a mesma metodologia em todos os pontos pesquisados. Temos, assim,
uma efervescência de esforços na busca do conhecimento sistemático
do português brasileiro, seja na linha da Dialetologia, com inúmeros
trabalhos publicados e com teses e dissertações aprovadas, seja na linha
da Sociolinguística que tem florescido vivamente em nossos centros
de pesquisa. A macrovisão, um retrato global da realidade linguística
no tocante ao português brasileiro inexiste. E isso se constitui em uma
lacuna da qual precisamos nos desvencilhar.
3.4 Que lucros advêm de um atlas nacional?
O ALiB vem, assim, em boa hora, preencher esse vazio uma vez
que busca, com a aplicação de uma metodologia homogeneamente
utilizada, recolher dados de diferentes pontos e representativos de
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
61
Suzana Alice Marcelino Cardoso [51-63]
todas as regiões os quais, submetidos a análise, fornecerão, sem dúvida,
um perfil da realidade do português aqui falado, abrindo caminhos
para considerações as mais diversas sobre a sua formação, a variação
que nele se registra, as mudanças que se operam de um sítio a outro, de
um tipo de falante para outro, enfim, apontando coordenadas para a
construção da sua sócio-história e para a interpretação das diferenciadas
bases que interferiram na sua conformação.
O percorrer desse caminho levará, sem dúvida, a atingir um
aspecto relevante da sua atualidade: fornecer elementos para uma
divisão dialetal do Brasil, fundada em dados empíricos.
Sabemos, todos, que temos apenas uma única divisão dialetal
do Brasil, feita com base em fatos linguísticos: a divisão de Nascentes
(1953). Trabalho magnífico, se considerarmos as circunstâncias e o
momento de sua execução, mas a divisão necessita, passados mais
de cinquenta anos, ser retomada, a partir de dados coletados in loco,
para que se verifiquem as transformações sócio-históricas havidas e as
consequências delas advindas para o comportamento linguístico da
população de cada área, e com isso apurar-se a atualidade dessa divisão
ou detectarmos outros limites que, certamente, encontrarão justificativa
nas transformações sociais, políticas e econômicas ditadas pelo curso da
história. E essa contribuição, sem dúvida, será dada pelo atlas do Brasil,
uma vez que a rede de pontos estabelecida o foi pensando-se, também,
na investigação de limites dialetais e na investigação das diferenças que
possam gerar os limites de área geograficamente identificada.
Para concluir
Nesta apresentação do Projeto ALiB imperou a preocupação de,
respondendo à questão inicialmente levantada, apresentar as linhas gerais
do Projeto, a sua contribuição para a constituição da sócio-história do
português brasileiro e o lugar que ocupa nos estudos linguísticos brasileiros.
Referências
AGUILERA, Vanderci de Andrade. Atlas Lingüístico do Paraná. Curitiba: Imprensa
Oficial do Estado, 1994. 2 v.
62
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O sentido de um atlas linguístico nacional [51-63]
ARAGÃO, Maria do Socorro; MENEZES, Cleuza. .Atlas Lingüístico da Paraíba. Brasília:
UFPB/CNPq, Coordenação Editorial, 1984.
Atlas Linguarum Europae (ALE). Assen-Maastricht: Van Gorcum, 1983-1990. v. 1-4.
Roma: Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato, 1998. v. 5.
Atlas Lingüístico Diatópico y Diastrático del Uruguay (ADDU). Dirigido por THUN,
Harald; ELIZAINCÍN, Adolfo. Fasc. A.1. Kiel: Westensee, 2000.
Atlas Linguistique Roman (ALiR). Roma: Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato; Libreria
dello Stato, 1996. v. 1, 1996, v. 2, 2002.
BRASIL. Decreto n.° 30.643, de 20 de março de 1952. Institui o Centro de Pesquisas
da Casa de Rui Barbosa e dispõe sobre seu funcionamento.
CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. Atlas Lingüístico de Sergipe-II. Salvador: EDUFBA,
2005.
FERREIRA, Carlota; FREITAS, Judith; MOTA, Jacyra; ANDRADE, Nadja; CARDOSO,
Suzana; ROLLEMBERG, Vera; ROSSI, Nelson. Atlas Lingüístico de Sergipe. Salvador:
Universidade Federal da Bahia; Fundação Estadual de Cultura de Sergipe, 1987.
GILLIÉRON, Jules; EDMONT, Edmond. Atlas Linguistique de la France. 35 fasc. Paris:
Honoré Champion, 1902-1910.
KOCH, Walter; KLASSMANN, Mário; ALTENHOFEN, Cléo. Atlas Lingüístico-Etnográfico
da região Sul do Brasil. V. I e II. Porto Alegre/Florianópolis/Curitiba: Editora da UFRGS/
Editora da EFSC/Editora da UFPR, 2002.
NASCENTES, Antenor. O linguajar carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Organização Simões,
1953.
OLIVEIRA, Dercir Pedro (org.). Atlas Lingüístico de Mato Grosso do Sul. Campo Grande:
Ed. UFMS, 2007.
POP, Sever. La dialectologie. Aperçu historique et méthodes d’enquêtes linguistiques,
I-II. Louvain: Chez l’ Auteur-Gembloux, Ducolot, 1950.
RAZKY, Abdelhak. Atlas Lingüístico Sonoro do Pará. Belém: CAPES/UFPAUTM (Robert
Gauthier), 2004. CD. ISBN 85904127-1-7.
RIBEIRO, José; ZÁGARI, Mário Roberto Lobuglio; PASSINI, José; GAIO. Antônio
Pereira. Esboço de um Atlas Lingüístico de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ministério da
Educação e Cultura; Casa de Rui Barbosa; Universidade Federal de Juiz de Fora, 1977.
ROSSI, Nelson; FERREIRA, Carlota; ISENSEE, Dinah. Atlas Prévio dos Falares Baianos.
Rio de Janeiro, Ministério de Educação e Cultura - Instituto Nacional do Livro, 1963.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
63
Etnotoponímia em Minas Gerais
Ethnotoponymy in Minas Gerais
Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick
Programa de Pós-graduação em Linguística
Universidade de São Paulo
[email protected]
Maria Cândida Trindade Costa de Seabra
Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
Resumo: Este artigo, que versa sobre nomes de lugares que tiveram como
motivação grupos indígenas, apresenta resultados parciais do Projeto
ATEMIG – Atlas Toponímico do Estado de Minas Gerais – variante regional
do ATB – Atlas Toponímico do Brasil, e funda-se na compreensão de
que o topônimo, a par do seu papel sígnico, evidencia comportamentos
extintos, resgata memórias de um povo e de uma cultura.
Palavras-chave: Toponímia. Grupos indígenas. Minas Gerais.
Abstract: This paper aims to broach place names of indigenous background,
and highlights partial results of the Projeto ATEMIG – Project Toponimic
Atlas of the State of Minas Gerais – regional variant of the ATB - Toponimic
Atlas of Brazil, and is based on the understanding that a toponym, aware
of his/her signic role, evidences extinct behaviors, salvages memories of
peoples and cultures.
Keywords: Toponimy. Indigenous groups. Minas Gerais.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
65
Maria Vicentina do Amaral Dick / Maria Cândida Costa de Seabra [65-74]
O vocábulo etnia costuma ser definido pelos lexicógrafos
contemporâneos como termo da antropologia, embora saibamos não
se tratar de um termo exclusivo dessa área, mas de toda ciência que
se utiliza da história, das religiões e, principalmente, da sociologia.
Na definição de Houaiss (2001), etnia refere-se à “coletividade de
indivíduos que se diferencia por sua especificidade sociocultural,
refletida, principalmente na língua, religião e maneiras de agir; grupo
étnico”. Esse lexicógrafo acrescenta, ainda, que, para alguns autores, o
termo “etnia pressupõe uma base biológica, podendo ser definido por
uma raça, uma cultura ou ambas”, por isso, complementa, “o termo
é evitado por parte da antropologia atual, por não haver recebido
conceituação precisa”.
Em sua definição, Houaiss não menciona “região”, muito embora
a questão da localização espacial deva, também, ser levada em conta
para a definição de etnia, conforme aponta Dick (2008, p.177):
O entendimento significativo do termo etnia, ou o seu próprio conceito
definidor, passa, antes pelo crivo de vários fatores intricados entre si,
como localização espacial do grupo em questão, situação sociológica
interna, tipologia das sociedades, práticas culturais características dos
contatos, por exemplo. Além disso, posicionou-se, também, como dado
fenomenológico a exigir atenção analítica, o próprio corpus linguístico
utilizado no extrato comunicativo dos vários patamares da escala social
(função diafásica da linguagem). Essa forma de expressão típica do
local, do grupo étnico ou, mesmo, de indivíduos isolados (idioletos),
insere-se nos chamados níveis sociolinguísticos de manifestação da
linguagem propriamente dita, tanto do ponto de vista fonológico, como
da realização sintagmático-semântica.
Derivado do grego éthnos, cujo significado é “raça, povo”, etnia
era uma palavra usada na antiguidade, geralmente, como referência
aos estrangeiros, aos povos não gregos. Podemos dizer que resulta
daí a dificuldade em definir a palavra, pois, para a mesma, não existe
uma explicação conceitual – etnia não é um conceito fixo, podendo
mudar com o passar do tempo – é um termo que ainda vem sendo
cunhado, principalmente, por historiadores, sociólogos e antropólogos.
66
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Etnotoponímia em Minas Gerais [65-74]
Dentre eles podemos citar alguns estudiosos com trabalhos de grande
expressividade: Weber (1993), Fenton (1999), Barth (1976), entre
outros. Esse último trata, ainda, de etnicidade.
Termo da antropologia, oriundo da década de 60, etnicidade é
definido por Fredrk Barth (apud VILLAR, 2004) como a maneira que
os grupos se organizam na esfera social, ou seja, é a identificação que
se faz nos múltiplos contatos, o que resulta em ações de interação.
Villar (2004) comenta sobre a obra de Barth e sua discussão para o
entendimento dos grupos étnicos, mas chama a atenção para o fato de
que “não podemos aceitar sem mais a ideia de um ator que ‘opta’ ou
‘escolhe’ em cada contexto uma identidade étnica, para abandoná-la
tão logo lhe resulte inconveniente”.
Apoiando-se em Barthes (1971), Dick (2008, p. 179), visando à
realização de trabalhos onomásticos, mais especificamente, estudos
toponímicos, apreende o sentido de etnia e etnicidade, “começando
por definir grupo como um conjunto de pessoas participantes de um
sentido étnico, que possuem o entendimento comum ou próximo àquele
geral ou dominante nas categorias envolvidas”, pois só assim, segundo
essa autora, pode-se chegar a entender os valores que conformam esses
conceitos (etnia e etnicidade), conceitos esses fundamentais quando se
pretende fazer um estudo etnotoponímico.
1. Famílias linguísticas em território brasileiro
Antes da chegada de Colombo, as línguas autóctones das Américas
encontravam-se disseminadas por todo o continente e eram bastante
numerosas. Algumas sobreviveram à chegada dos europeus, mas muitas
desapareceram. No vasto território em que se localiza a América do Sul,
calcula-se que haja cerca de 600 línguas distintas e só no Brasil perto
de 250. O mapa que mostramos, a seguir, dá uma visão das famílias
linguísticas da América do Sul.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
67
Maria Vicentina do Amaral Dick / Maria Cândida Costa de Seabra [65-74]
Mapa 1: Famílias linguísticas da América do Sul1
Conforme podemos ver, dois foram os troncos linguísticos
predominantes no Brasil: tupi e macro-gê. O primeiro, através das
bandeiras que penetraram todo o interior do Brasil, foi-se espalhando,
posteriormente, por áreas diversas do território nacional. Já o
segundo, em convivência menos “pacífica” com o homem europeu,
ficou, em decorrência desse fato, menos conhecido, portanto,
menos estudado.
1
Conrie (2001, p. 135).
68
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Etnotoponímia em Minas Gerais [65-74]
2. Grupos étnicos em Minas Gerais
Como em vários estados brasileiros, em Minas Gerais, houve,
desde épocas anteriores ao desbravamento do País, agrupamentos
indígenas diversos, mas poucos resquícios ficaram desses povos précabralinos. Torna-se, portanto, dificultoso, reconstituir o que foi social,
política e etnologicamente o passado desse território. Sabe-se, porém,
com certeza, que as tribos ameríndias que povoaram Minas Gerais
pertenciam com raras exceções ao grupo gê ou tapuia. José (1965, p.
14-A) dá-nos orientação de suas localizações (ver Mapa 2):
Mapa 2: Povos indígenas em Minas Gerais
Dentre esses grupos, distribuídos por Oiliam José (1965), interessanos, para este estudo, observar as etnias indígenas que permaneceram
como topônimos em Minas Gerais, nomeando municípios, povoados,
serras e rios desse Estado.
• Abaetés – Nome dado aos índios que habitavam a região onde
hoje se localiza o município de Abaeté e, também, na parte
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
69
Maria Vicentina do Amaral Dick / Maria Cândida Costa de Seabra [65-74]
alta da Bacia do São Francisco, hoje representada por diversos
municípios. Os abaetés foram dizimados em fins do século XVIII.
De acordo com Senna (1926, p. 337), o verdadeiro nome desse
grupo é “abaité (alcunha tupi, decomposta em aba-ité, com a
significação de gente feia, horrenda, de aspecto repulsivo). A
outra etymologia abá-été, “homem abalizado”, não se aplica a
este gentio”. Abaetés > Abaeté.
• Abatipós – Grupo indígena que habitava a região onde hoje se
situam os municípios de Matipó, Abre Campo. “Sua alcunha tupi
abá-ti-pó mostra que esse gentio tinha certo mal de pelle toda
‘pampa’ ou cheia de manchas esbranquiçadas, nas mãos e pés”
(SENNA, 1926, p. 337). Abatipós > Matipó.
• Aimorés – Indígenas de origem tapuia. Segundo José (1965, p.
14), “formavam diversas tribos e moravam, inicialmente, nos
limites dos atuais Estados da Bahia, Espírito Santo e Minas Gerais.
Premidos pelos bandeirantes e outros devassadores, desde o
século XVI ao início do século XVIII, emigraram defensivamente
para leste ou sudeste, indo fixar-se nas cordilheiras componentes
da Serra dos Aimorés, nas divisas com o Espírito Santo”. Conforme
Senna (1926, p. 338), os colonos portugueses costumavam chamar
os aimorés, também, de amorés, aimbirés, aimborés, amborés e
ambarés. “Em tupi, a expressão amo-ré designa a ‘gente diversa’,
isto é, de sangue, raça e costumes differentes da nação Tupi”. Essa
tribo nomeia, hoje, o município de Aimorés.
• Araxás – Esse grupo indígena foi muito perseguido pela bandeira
de Lourenço Castanho Taques, extinguindo-se desde então.
Habitaram o Oeste de Minas, dominando vasta área até o Triângulo
Mineiro. É nome de município mineiro: Araxá < Araxás.
• C arijós – Esses índios viveram onde hoje se localiza o
município de Conselheiro Lafaiete. Segundo José (1965, p.
19), “provieram da nação carijó, que os desbravadores, no
70
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Etnotoponímia em Minas Gerais [65-74]
século XVI, fizeram sair da Guanabara e refugiar-se no interior,
até alcançar e transpor a Mantiqueira”. De acordo com Senna
(1926, p. 341), “além de designar, genericamente, os escravos
indígenas que tomavam parte nas expedições de descoberta e
conquista de Minas, o nome Carijós foi conservado, outrora,
no antigo ‘Arraial dos Carijós’, hoje cidade mineira de Queluz
– região essa até onde chegaram os restos de tribus da grande
nação Carijó, expulsa do Rio de Janeiro pelos portuguezes, no
século XVI”. Arraial dos Carijós > Campo Alegre dos Carijós >
Villa de Queluz > Conselheiro Lafaiete.
• Cataguás – Viveram no centro, a oeste e no Sul de Minas até o
século XVIII, subdividindo-se em diversas tribos. De acordo com
José (1965, p. 20), “a enorme extensão de seus domínios em solo
mineiro, até o início do século XVIII, fazia com que nosso território
se chamasse de início, Campos Gerais dos Goitacases e, depois,
Minas Gerais dos Goitacases”. Senna (1926, p. 341) diz ter sido
essa “nação” completamente abatida pela bandeira de Lourenço
Castanho, o “Velho”. Hoje, cataguás dá nome à cidade mineira de
Cataguases.
• Chonins – Viviam no aldeamento de Dom Manuel, às margens do
Rio Doce, até as primeiras décadas do século XIX. Chonim é, hoje,
nome de distrito pertencente à cidade mineira de Governador
Valadares. Nomeia, também, córrego.
• Guanaãs – Constitui uma das tribos dos “botocudos”, “do antigo
aldeamento de Dom Manoel, perto da Figueira do Rio Doce, e
o seu nome ficou conservado no districto, povoado e ribeirão
do Chonin” (SENNA, 1926, p. 341). Segundo José (1965, p. 28),
esses índios “habitavam em solo banhado pelos Rios Guanhães,
Correntes e Santo Antônio, até o início do século XIX, quando se
extinguiram, deixando, porém, fundas influências na mentalidade
das populações locais. Guanaã, em tupi, significa andarilho,
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
71
Maria Vicentina do Amaral Dick / Maria Cândida Costa de Seabra [65-74]
corredor”. Guanhães é, hoje, nome de município da Região do
Rio Doce.
• Mutuns – Poucos numerosos, extinguiram-se ao findar do século
XVIII. Segundo Senna (1926, p. 349), esse grupo vivia “a Léste, no
Valle do rio Mutum, entre Minas e Espirito Santo, e inimigos dos
Crakmuns e Guicraks da mesma região do Rio Doce”. Mutuns >
Mutum deu origem ao topônimo Mutum, município mineiro.
• N acnenuques – Botocudos que dominavam desde a região
onde se situa o município mineiro de Teófilo Otoni até o
município de Caravelas na Bahia. De acordo com José (1965,
p. 31), o nome nacnenuque significa morador das serras. Em
Senna (1926, p. 349), encontramos outras informações: “o
gentio nak-nanuk ou nenuk dominou uma parte do Valle do
Rio Doce até a primeira metade do século dezenove, da barra
do Piracicaba ao Cuyeté. Era tribu numerosa e com a qual
Guido Marlière se poz em relações, para chamal-a ao grêmio
da gente civilizada, naquella época. Veja-se a predominância
do thema Nack ou Nak, nos nomes dessas hordas de bugres:
naknanuk, nakná, Crenak, Nakrehê, nak-nak”. Nanuque se
perpetua como nome de município mineiro.
• Xopotós – Conforme José (1965, p. 37), “alguns agrupamentos
botocudos subiram o Rio Doce até suas cabeceiras e, em terras
vizinhas”. Extinguiram-se no século XVIII. Senna (1926, p. 353)
enaltece a coragem desse povo: “valente gentio que deo nome
ao rio ora denominado Chopotó, nos altos valles mineiros do
Rio Doce”. Segundo Seabra (2004, p. 301), Xopotó dá nome a
povoado e fazenda no município mineiro de Ponte Nova.
Podemos inferir que a onomástica diz muito da origem dos
habitantes que outrora habitaram uma determinada região. A análise
da documentação cartográfica – Mapa 2 – publicada por José (1965,
72
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Etnotoponímia em Minas Gerais [65-74]
p. 14 – A) bem mostra um grande paralelismo entre as áreas étnicas
apontadas por esse estudioso e a etnotoponímia mineira de motivação
indígena, destacada no Mapa 3, que apresentamos a seguir:
Legenda
Mapa 3: Etnotoponímia mineira de motivação indígena
1-Abaeté
2-Aimorés3-Araxá 4-Chonim
5-Cataguases 6-Carijós
7-Guanhães 8-Matipó9-Mutum10-Nanuque 11-Xopotó
Olhares atentos de linguistas aos nomes dos municípios de Minas
Gerais fazem com que se reconheçam algumas áreas que indicam
como pode a denominação geográfica revelar a região já ocupada por
determinado tipo étnico.
Temos muito a descobrir sobre esses povos. Os dados aqui apresentados
são, ainda, parciais, mas revelam como pode ser surpreendente um estudo
sobre a etnotoponímia. Por meio do Projeto ATEMIG – Atlas Toponímico
do Estado de Minas Gerais, variante regional do ATB – Atlas Toponímico do
Brasil, vamos desenvolvendo nosso trabalho.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
73
Maria Vicentina do Amaral Dick / Maria Cândida Costa de Seabra [65-74]
Referências
BARTH, Fredrik (org.). Los grupos étnicos y sus fronteras. México: Fondo de Cultura
Económica, 1976. BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1971.
CONRIE, Bernard; MATTHEWS, Stephen; POLINSKY, Maria. O Atlas das Línguas.
Lisboa: Editorial Estampa, 2001.
DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Etnia e Etnicidade. Um outro modo de
nomear. In: ISQUERDO, Aparecida Negri; FINATTO, Maria José Bocorny (Orgs.). As
ciências do léxico. Lexicologia, Lexicografia e Terminologia. Vol. IV. Campo Grande,
MS: Editora UFMS, 2008, p. 177-197.
FENTON, Steve. Ethnicity, racism, class and culture. London: MacMillan, 1999. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro; FRANCO, Francisco Manuel de Melo. Dicionário
Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
JOSÉ, Oiliam. Indígenas de Minas Gerais: aspectos sociais, políticos e etnológicos. Belo
Horizonte: Edições Movimento Perspectiva, 1965.
SEABRA, Maria Cândida Trindade Costa de. A formação e a fixação da língua portuguesa
em Minas Gerais: a toponímia da região do Carmo. Belo horizonte: FALE/UFMG, 2004.
Tese de Doutorado, inédita.
SENNA, Nelson de. Nótulas sobre a toponímia geográfica brasílico-indígena em Minas
Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro, v.20, 1926.
VILLAR, Diego. Uma abordagem crítica do conceito de etnicidade na obra de Fredrik
Barth. Revista Mana. V. 10 n.1. Rio de Janeiro: 2004
WEBER, Max. Ensayos sobre metodología sociológica. Amorrortu, Buenos Aires, 1993. 74
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O processo de monotongação: uma realidade
em textos escolares do ensino fundamental
The process of monophthongization: a reality in the basic
school textbooks
Dermeval da Hora
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
Universidade Federal da Paraíba
[email protected]
Greiciane Pereira Mendonça
Universidade Federal da Paraíba
[email protected]
Resumo: A monotongação, processo quase que categórico no PB, não implica
atitude negativa por parte do ouvinte, e vale observar que o tratamento
dado pela escola à existência desse fenômeno parece não ser motivo
para um registro especial em seus ensinamentos. O apagamento do glide
em ditongos decrescentes do tipo [ej] (f[ej]ra > f[e]ra), [aj] (c[aj]xa > c[a]
xa), [ow] ([ow]ro > [o]ro), [wa] (guarda > garda), tem sido atestado em
diferentes falares. Utilizamos como corpus 177 redações que fazem parte
do acervo do Laboratório de Aquisição da Fala e da escrita –– LAFE ––
recolhida pelos bolsistas participantes deste projeto, durante o período
do mês de maio de 2006. As redações foram analisadas uma a uma e a
partir daí recolhemos todos os dados necessários para a elaboração da
pesquisa. Neste trabalho, constatamos que se pode encontrar na escrita,
principalmente quando se refere a alunos em processo de aprendizagem,
resquícios da fala. E a monotongação de ditongos, por ser, como já foi
dito, categórico na fala, não poderia deixar de ser encontrado em textos
escritos.
Palavras-chave: Sociolinguística. Monotongação. Sílaba.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
75
Demerval da Hora / Greiciane Pereira Mendonça [75-83]
Abstract: The monothongation, an almost crucial process in Brazilian
Portuguese, does not imply a negative attitude on the part of the listener,
and is worth noting that the treatment given by schooling to the existence
of this phenomenon seems to be of no reason for a particular record
in its teachings. The deletion of the glide in falling diphthongs like [j] (f
[ej] ra> f [e] ra), [j] (c [aj] x> c [a] x), [ow] ([ ow] ro> [o] ro), has been
certified in different speeches. 177 compositions, which are part of the
Laboratory of Speaking and Writing Acquisition – LAFE - collected by the
participants in this project during the month of May 2006, were used as
the corpus. These compositions were analyzed one by one, so that all the
necessary data could be collected in order to perform the research. In this
work, we see that it is possible to find in writing, especially when referring
to students in the learning process, much of the speaking. Although
monothongation of diphthong is a special feature of the speaking, it may
be found, nonetheless, in written texts.
Keywords: Sociolinguistics. Monothongation. Syllable.
Introdução
O Projeto Variação Linguística no Estado da Paraíba (VALPB),
iniciado em 1993, registra em seu Corpus a realidade linguística da
comunidade de João Pessoa e mostra o perfil linguístico, em nível fonéticofonológico e gramatical, dos seus falantes. Dentre os seus objetivos, observa
fatores estruturais e sociais que interferem no uso da língua, visando a
subsidiar o ensino da língua portuguesa em todos os níveis.
Nossa pesquisa se fundamenta na Teoria da Variação, proposta por
Labov na década de 60, com o objetivo de descrever a língua e seus
determinantes sociais e linguísticos, levando em conta seu uso variável.
Esse modelo teórico-metodológico busca evidências na relação intrínseca
existente entre língua e sociedade, utilizando-se de modelos matemáticos
e admitindo a heterogeneidade linguística dos falantes como passível de
sistematização. Assim, observa-se qual elemento, social e/ou linguístico,
influencia no contexto onde se configura a realização de cada variante.
76
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O processo de monotongação [75-83]
Utilizando como corpus textos de escolares do ensino básico,
armazenados no Projeto de Aquisição da Fala e Escrita – LAFE – e
com base nos pressupostos da sociolinguística variacionista, à luz de
Winreinch, Labov (1994; 2001), Herzog (1968), a sistematização dos
dados permitiu que discutíssemos o processo de monotongação de
ditongos orais, contando com a análise quantitativa baseada no pacote
de programas VARBRUL (PINTZUK,1998; 1989).
As redações foram reunidas após atividades propostas e planejadas
pelas próprias professoras das escolas, com tema já previsto para o mês
de maio. As redações que os alunos produziram tinham por tema o Dia
das Mães, significando que todos escreveram mensagens e declarações
para suas mães.
Após recolher as redações escolares, cada texto foi analisado com
o objetivo de verificar grafias que reproduzissem a língua falada, ou
seja, com a redução dos glides, [j] e [w]. Essa representação gráfica nos
dá suporte empírico para determinar se a fala influenciaria o processo
de aprendizagem desses alunos, quando se trata de apagamento desses
elementos.
1. Sobre a sílaba e o ditongo
Basicamente, há duas teorias sobre a sílaba, uma Autossegmental,
formulada por Kahn, indica que cada sílaba (σ) é composta de camadas
independentes entre si, como em 1.
(1)
A teoria métrica da sílaba, na qual se baseou esta pesquisa, que
afirma que a sílaba é composta por 4 elementos: A (Ataque), R (Rima),
Nu (Núcleo) e Co (Coda). Destes elementos o único que não pode
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
77
Demerval da Hora / Greiciane Pereira Mendonça [75-83]
aparecer nulo é o Núcleo, já que a vogal é componente que dá a força
à sílaba, quer dizer, é o ápice de sonoridade, como representado em
(2):
(2)
O sistema ortográfico da língua portuguesa reconhece como
ditongo decrescente encontros de uma vogal mais uma semivogal.
2. A monotongação
Dos vários fenômenos linguísticos que se encontram em variação
no Português do Brasil, interessa-nos o apagamento do glide em
ditongos orais decrescentes a exemplo de — ba[j]xo – “baxo”, pe[j]xe –
“pexe”, co[w]ro – “coro”, caracterizando o processo de monotongação,
conhecido como a redução do ditongo a uma vogal simples, o
monotongo.
Essa tendência a reduzir o ditongo a uma vogal simples já se dava
desde o latim vulgar. O enfraquecimento do segundo elemento se deu
nas línguas derivadas, passando a ditongos breves ou a simples vogais
(no caso da queda do segundo elemento).
Os ditongos latinos eram quatro: [ae], [oe], [aw] e [ew]. Os dois
primeiros reduziram-se ainda na língua clássica a [é] e [ê] , respectivamente,
como nos casos do tipo: caelebes => celebes; saeta => seta. O ditongo
[aw] passou a [o], [ow] e ainda a [a]. Já o ditongo [ow], o mais raro na
língua latina, foi reduzido à vogal [o].
A monotongação é um processo em que, numa sílaba, a Coda
Silábica, que comporta uma dos glides [w] ou [j], reduz-se, restando,
apenas, a vogal pertencente ao núcleo desta sílaba.
78
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O processo de monotongação [75-83]
3. A monotongação e os textos de escolares
No processo de aprendizagem da escrita pelas crianças, podemos
encontrar traços da fala no momento da produção textual, já que,
nesse momento, a criança ainda não tem consciência de que há uma
diferença entre a fala e a escrita. Essa tomada de consciência somente
ocorrerá ao longo de sua vida escolar, a partir das exposições feitas
pelos professores.
Algumas palavras que, normalmente, na fala, implicariam a
ocorrência de monotongação, como aldeia à [awdea], trigueiro à
[trigero], monteiro à [montero], foram grafadas de forma “correta”.
Acreditamos que essas palavras não sofreram interferência da fala, pelo
fato de se tratarem dos nomes das escolas em que os alunos estudam e,
por estarem acostumados a copiarem do quadro como cabeçalho, não
haveria a possibilidade de redução desses ditongos.
Após o levantamento dos dados, encontramos 155 casos em
que poderia haver a possibilidade de apagamento dos glides [w] e [j].
Dentre esses casos, percebemos que 41 palavras foram escritas como
são faladas, correndo, assim, a monotongação (“bejo”, “baxa”, “poço”).
26%
Monotongação
Não-monotongação
74%
Gráfico 1 - Dados da monotongação
De acordo com o Gráfico 1, percebemos que, dentre as
possibilidades de monotongação, 26% dos dados favoreceram a
redução. Esse percentual, obviamente, varia de acordo com o contexto.
Um dado nos chamou a atenção. As palavras respeitar e remédio
foram escritas de forma bastante peculiar. A palavra respeitar apareceu
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
79
Demerval da Hora / Greiciane Pereira Mendonça [75-83]
4 vezes, vale salientar, em redações de diferentes alunos, com o ditongo
reduzido [ej], respeitar à /respetar/, fato que não é verificado na fala.
Quanto à palavra remédio, ocorreu não a redução, mas sim a mudança
de lugar do glide [j] dentro da palavra. O glide [j] passou da última
sílaba para a penúltima sílaba, processo conhecido como Metátese,
fenômeno observado já na passagem do Latim para as língua românicas
–– Português, Francês, Espanhol etc., como em (3):
(3)
Dentre os tipos de consoantes que seguem os ditongos, comparamos
as ocorrências entre as seguintes: alveolar [r, t, d] e palatal [ , ,  ]. De
acordo com os dados, o processo de monotongação é mais produtivo
quando o contexto fonológico seguinte é uma consoante alveolar, de
44 ocorrências de ditongo nesse contexto, 17 foram reduzidos à vogal
simples. Já com consoantes palatais, de 33 palavras, 9 apresentam
ditongos reduzidos.
30
25
20
15
10
28
17
9
5
0
23
Consoante Alveolar
Consoante alveolar
Monotongação
Monotongação
Consoante Palatal
Consoante palatal
Não Monotongação
Não-monotongação
Gráfico 2 - Oposição entre as consoantes alveolar e palatal
Analisamos, individualmente, cada ditongo. Confirmando, vários
estudos a respeito deste tema, verificamos que a monotongação do
ditongo decrescente, especificamente /ej/, é mais produtiva quando o
80
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O processo de monotongação [75-83]
segmento seguinte é uma consoante alveolar – brigad[ej]ro – do que
quando palatal – b[ej]jô.
25
20
22
15
10
13
5
0
0
Vogal
Vogal
10
4
5
Consoante Alveolar
Consoante alveolar
Monotongação
Monotongação
Consoante palatal
Consoante palatal
Não-Monotongação
Não-monotongação
Gráfico 3 - Monotongação de ditongo [ej]
Quando se trata do ditongo [ow], constatamos que não houve
monotongação se fossem seguidos de vogal, formando tritongos, ou
de consoante palatal. Mas, encontramos palavras em que os ditongos
foram reduzidos quando seguidos de uma consoante alveolar; neste
caso, de forma categórica, todas as crianças apagaram o glides [w]
nesse contexto. Se analisarmos, proporcionalmente, os ditongos [ow]
reduzem-se a [o] com maior frequência na escrita desses alunos,
principalmente, quando aparecem em posição final de palavra, fato
que ocorre com a mesma frequência na fala, como em (4):
(4)
Vou à /voO/
Pouco à /poOko/
O Grafico 4 apresenta a oposição entre a monotongação e a
não-monotongação, quando a consoante seguinte é uma alveolar e
quando as duas vogais estão em final de palavra.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
81
Demerval da Hora / Greiciane Pereira Mendonça [75-83]
30
25
28
20
15
10
4
2
5
0
Consoantes
Alveolar
Consoante
alveolar
9
Final
Final
Monotongação
Não-monotongação
Não-monotongação
Monotongação
Gráfico 4 - Oposição entre monotongação e não-monotongação
O que podemos observar é que a não-monotongação é sempre
mais favorecida pela posição final.
Considerações finais
Através da análise dos dados obtidos não podemos constatar que
o contexto fonológico seguinte ao ditongo decrescente, sendo uma
consoante palatal, ao contrário do que ocorre com a fala, propicia
o apagamento do glide, com mais frequência. Esse fato impede que
confirmemos alguns estudos feitos a esse respeito, no que se refere
à escrita infantil. Constatamos, também, que como fala, o ditongo
crescente [ow] tem maior probabilidade de redução em posição final,
que qualquer outro ditongo.
Portanto, após analisarmos todos os dados, confirmamos a
hipótese de que, na escrita de crianças em processo de aprendizagem,
há influência da fala, considerando que, no início deste processo,
o aprendiz ainda tem a concepção de escrita como um reflexo da
fala. Porém, no decorrer de suas experiências escolares, passarão a
ser “corrigidos” pelos professores e, então, internalizarão as regras da
escrita, mesmo sem que realmente saibam o porquê.
82
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O processo de monotongação [75-83]
Referências
BISOL, Leda (Org.). Introdução a Estudos de Fonologia do Português Brasileiro. 3. ed.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. v. 1. 254 p
BATTISTI, Elisa.VIEIRA, Maria Jose B. O sistema vocálico do português. In: __________.
Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 3 ed. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2001. p. 159.
COLLISCHONN, Gisela. A sílaba em português In: ______. Introdução a estudos de
fonologia do português brasileiro. 3 ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2001. p. 91.
HORA, Dermeval da. Estudos Sociolinguisticos: perfil de uma comunidade. Santa
Maria: Gráfica e Editora Pallotti. 2004, p. 13-28.
LABOV, William. Principles of linguistic change: internal factors. Oxford: Blackwell,
2001.
________. Principle of Linguistic Change: Social Factors. Vol 1. Oxford: Blackwell
Publishers, 2001.
________. Principles of linguistic change: internal factors. Oxford Blackwell, 1994.
________., SMOLENSKY, Paul. Optimality theory: constraint interaction in generative
grammar, 1996.
PEREIRA, Gerusa. Monotongaçao. Dos Ditongos /aj/, /ej/, /ow/ No Português falado de
Tubarão (SC): um estudo de Caso. 2004. Dissertação de Mestrado. Tubarão - Santa
Catarina
PRINCE, Alan, McCARTHY, John. Prosodic morphology I: constraint interaction and
satisfaction, 1993.
SILVA, Fabiana de Souza. O processo de monotongação em João Pessoa. In: HORA,
Dermeval da (org.). Estudos Sociolinguísticos: perfil de uma comunidade. Gráfica Ed.
Palloti: João Pessoa, 2004, p. 35-49.
SIMÕES, Darcilia. Fonologia em nova chave: considerações metodológicas sobre a fala
e a escrita. Rio de Janeiro: H. P. Comunicação, 2003. v. 1. 150 p.
WEINRICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin. Empirical foundations
for a theory of languagem change. In: LEHMANN, Winfred; MALKIEL,Yakov. (eds).
Directions for historical linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968, p. 95-188.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
83
Corotopônimos na toponímia sul-matogrossense: reflexões teórico-metodológicas
Corotoponyms in toponymy of mato grosso do sul:
theoretical and methodological reflections
Aparecida Negri Isquerdo
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem
Universidade Estadual de Londrina
[email protected]
Carla Regina de Souza Figueiredo
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul / Campo Grande
[email protected]
Resumo: Este trabalho focaliza a categoria de topônimos relacionada à
corotoponímia e, a partir da análise dos nomes de lugares dessa natureza,
cadastrados no Banco de Dados do ATEMS (Atlas Toponímico do Estado
de Mato Grosso do Sul) e de topônimios estudados por Souza (2006),
discute o estatuto de topônimos classificados como corotopônimos
(DICK, 1992), apontando dificuldades enfrentadas pelos estudiosos
da toponímia, não só na busca da motivação para a escolha de
corotopônimos para nomeação de um espaço geográfico, como também
a importância de serem consideradas peculiaridades extralinguísticas na
elucidação desse mecanismo de nomeação.
Palavras-chaves: Toponímia. Mato Grosso do Sul. Corotopônimos.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
85
Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]
Abstract: This paper aims corotoponyms, and through the analysis of this
kind of places names registered in ATEMS database (Toponymic Atlas
of Mato Grosso do Sul Brazilian State) besides studies of Souza (2006),
it discuss toponyms classified as corotoponyms (DICK, 1992), pointing
faced difficulties by toponymic researches, not only by the search for
choice motivation of these toponyms to name geographic spaces, but also
showing the importance to consider extralinguistics particularities on this
naming mechanism1.
Keywords: Toponymy. Mato Grosso do Sul. Corotoponyms.
Introdução
Desde a criação do mundo, segundo o livro do Gênesis (I, 1-31),
a palavra tende a constituir uma realidade dotada de poder em que
o referente que ela nomeia a assume não só como um instrumento
identificador, mas como parte integrante do seu próprio ser. Trata-se
não apenas de um signo arbitrário, mas de um elemento mágico capaz
de personificar o objeto que designa com todas as características gerais
ou específicas que o constituem (BIDERMAN, 1998, p.81-2). Assim
são os topônimos – signos dotados de especificidades que os tornam
diferentes dos nomes comuns, pois consubstanciam a intencionalidade
do denominador que, acionando as várias circunstâncias que o
rodeiam, seleciona um determinado nome para este ou aquele
acidente geográfico, que evoca em seu significado a justificativa para a
sua própria existência (DICK, 1990, p.38-39).
Como em uma peça teatral, os topônimos são como atores que
emprestam seu talento, suas características e peculiaridades ao papel que
desejam representar. Passam a delinear, a construir uma identidade própria
do acidente que estão nomeando, encontrando, sobretudo na Linguística,
o respaldo que lhe garanta o papel principal. À Antropologia, à História,
à Geografia, entre outras, cabe a construção do cenário, ou seja, essas
disciplinas funcionam como um pano de fundo revelador, por exemplo,
Agradecemos a Daniela de Souza Silva Costa pela tradução do título, do resumo e das
palavras-chave para a língua inglesa.
1
86
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]
das bases étnicas da população, do cotidiano de um grupo e/ou das
particularidades naturais do espaço geográfico a que o topônimo se refere.
1. Nomes geográficos: questões terminológicas
Os nomes geográficos recorrentes em um território são legitimados
pela representação cartográfica e identificados por uma terminologia
específica própria do domínio de conhecimento da Geografia. Nesse
contexto, situam-se diferentes termos formados com coro-: “elemento
de composição culta, que traduz as idéias de “região, país, território“, do
gr. chõros, “espaço, intervalo entre objetos isolados; lugar determinado,
sítio limitado; território, região; campo, em oposição à cidade; bens
rurais” (MACHADO, 1987). Dentre os termos formados com o radical
coro- encontram-se a coronímia e a corografia, que são definidos por
Houaiss (2001), respectivamente, como: “GEO 1. Parte da onomástica
dedicada ao estudo e à etimologia dos nomes designativos de
continente, país, região, pátria, estado, província, divisão administrativa
qualquer (abrangido pela toponímia ou geonímia); 2. estudo ou teoria
dos corônimos”; “Descrição representação de um país, região ou área
geográfica particular, num mapa ou carta, que explicita visualmente,
através de código(s) as suas características mais notáveis”. No âmbito
desse domínio terminológico, convivem também os termos topônimo e
geônimo. Este último vem sendo objeto de investigação de pesquisadores
da área de Geografia que defendem a preferência pelo uso desse termo
no âmbito desse domínio de conhecimento. Santos (2007, p. 34), por
exemplo, pondera: “a partir do primeiro registro de um geônimo num
documento cartográfico, seria como se a feição terrestre aí denominada,
nascesse para a sociedade, e a partir de então, fosse reconhecida como
uma ocorrência com uma existência real”.
Tradicionalmente os nomes próprios de lugares e de acidentes
geográficos são estudados pela Toponímia, disciplina a princípio
vinculada aos estudos de natureza geográfica. O surgimento no Canadá,
em 1966, de um grupo de Estudos de Coronímia e Terminologia
Geográfica atesta a importância científica desse ramo de estudos. Já
a Toponímia como campo de investigação linguística surge na França,
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
87
Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]
em 1798, com as pesquisas de Auguste Longnon. Esses estudos tiveram
continuidade sob o comando do linguista francês, Albert Dauzat, a partir
de 1922, com uma conferência na École Pratique e com a publicação do
artigo “Chronique Toponymie”, na revista Révue des Étude Anciennes
por ele fundada. A promoção do I Congresso Internacional de
Toponímia e Antroponímia, organizado pelo mesmo linguista em 1938,
representou um marco para os estudos onomásticos na Europa que aos
poucos foram se expandindo para os demais continentes (DICK, 1990).
No Brasil, as pesquisas de Theodoro Sampaio (1901), Armando
Levy Cardoso (1961), Carlos Drumond (1965), respectivamente, sobre
a toponímia dos estratos tupi, aruaque e bororo configuram-se como
trabalhos pioneiros na área (DICK, 1990). Todavia, são as pesquisas
de Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick, na Universidade de São
Paulo, a partir de 1980, que sistematizam esses estudos, à medida que
constroem um modelo teórico que contém as bases para a pesquisa
toponímica no Brasil. Para essa toponimista, os topônimos “são
verdadeiros ‘testemunhos históricos’ de fatos e ocorrências registrados
nos mais diversos momentos da vida de uma população e que encerram,
em si, um valor que transcende ao próprio ato da nomeação [...]” (DICK,
1990, p. 22).
Contemporaneamente, Menezes e Santos (2006), ao discutirem a
questão do espaço ocupado pela Geonímia (ramo da onomástica que
estuda os nomes geográficos, os geônimos) e pela Toponímia (ramo da
onomástica que estuda os nomes próprios de lugares, os topônimos),
esclarecem:
O estudo dos nomes geográficos já foi, no Brasil, bastante desenvolvido,
por volta do fim do século XIX e meados do século XX (1930 a 1970).
Hoje em dia, porém, exceto por estudos desenvolvidos em algumas áreas
lingüísticas, está voltando a ser objeto de estudo, devido às inúmeras
relações que podem ser estabelecidas (MENEZES; SANTOS, 2006, p. 76).
Em síntese, a Toponímia (dos radicais gregos topos + onoma),
tradicionalmente vinculada à Geografia, vem conquistando a sua autonomia
como ramo dos estudos do léxico, fundamentada nos princípios teóricos das
teorias linguísticas, à medida que concebe o topônimo como signo de língua
88
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]
e como tal é analisado. Dada a estreita relação entre topônimo e cultura, em
especial no que tange às bases éticas que subjazem a uma nomenclatura
geográfica, os estudos toponímicos buscam suas bases teóricas também na
Etnolinguística, na relação entre léxico, etnia e etnicidade. Nessa perspectiva,
Dick (1990, p. 36) define a Toponímia como “um imenso complexo
línguo-cultural, em que dados das demais ciências se interseccionam
necessariamente e não exclusivamente”. Assim, a Toponímia, em sua feição
intrínseca, “deve ser considerada como um fato do sistema das línguas
humanas” e como tal é passível de sistematização e categorização, segundo
diferentes pontos de vista, dentre eles o taxionômico.
Dada à heterogeneidade dos diferentes sistemas onomásticos, modelos
classificatórios são concebidos, na tentativa de estabelecer parâmetros de
análise que permitam traçar matrizes toponímicas, segundo diferentes
olhares. Na esfera do viés taxionômico, o modelo de Dick (1990), por
exemplo, prevê, dentre as suas 27 taxes classificatórias, a dos corotopônimos,
que abriga nomes de cidades, países, estados, regiões e continentes
transplantados para um novo universo toponímico. O termo resgata o
elemento de composição coro-, associando-o ao termo identificador da
área, o topônimo, dando origem a uma categoria de topônimo muito
produtiva em regiões que passaram por processo de colonização recente
e cujo povoamento se singulariza pela presença de muitos e diversificados
fluxos migratórios. O sema básico que identifica essa taxe é fornecido pelo
elemento de composição “trans-, «para além»; do lat. trans-, de trans, prep.,
mesmo sentido” (MACHADO, 1987), associado a plantar, do latim plantare,
que deu origem a transplantar: “transferir (algo) de um lugar ou contexto
para outro” (HOUAISS, 2001). A categoria dos corotopônimos é examinada
ao longo deste trabalho a partir de dados da toponímia sul-mato-grossense.
2. Toponímia: alguns fundamentos
Qualquer tentativa de descrever a linguagem de um grupo social
resulta no conhecimento das bases culturais em que ele se assenta. No
caso dos estudos onomásticos, a partir do estudo do topônimo, nome
próprio de um lugar, pode-se descobrir aspectos do modus vivendi de cada
comunidade linguística, já que toda movimentação lexical de uma língua
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
89
Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]
deve ser encarada como um fato que ultrapassa o simples ato da fala e
se configura como um fato social de grande importância. Ainda que o
denominador selecione um topônimo já existente, ao fazer uma escolha a
partir de um leque de possibilidades, demonstra o seu caráter intencional
e motivador, os seus valores ideológicos. Assim, “dizer-se que a Toponímia
reflete de perto a vivência do homem enquanto entidade individual e
enquanto membro do grupo que o acolhe, nada mais é que reconhecer o
papel por ela desenvolvido, no ordenamento dos fatos cognitivos” (DICK,
1990, p.19).
Tolhido, na maioria das vezes, dos elementos que possam esclarecer
a real intencionalidade manifesta na denominação em análise, o
pesquisador tende a decifrar as tessituras de um topônimo sob dois
planos: i) o objetivo ou extrínseco, pelo qual, a partir das circunstâncias
exteriores de natureza ambiental do acidente físico, procura respaldo
para justificar a escolha do nome; ii) os subjetivos ou intrínsecos, em que
a maneira de “perceber” e de “sentir” o local e o vínculo estabelecido
entre o topônimo e o indivíduo não só são explicitados, como também são
apontados como a(s) causa(s) motivadora(s) da denominação do acidente
(DICK, 1992, p.55). É, pois, na graça de revelar a “faceta personalíssima”
do homem que, no momento do batismo do lugar, foi materializada
naquela designação, que o estudioso da toponímia procura o nexo
causal, ora nas particularidades ambientais do próprio território em que
o acidente está localizado, ora nas tendências e costumes dominantes na
época da nomeação. No primeiro caso, considera que, principalmente
antes da chegada dos europeus ao Brasil, era costume das populações
autóctones imprimir, aos nomes de lugares, ora impressões que as
reservas hídricas ou a topografia despertavam nos habitantes por meio
da utilização de um denominador básico como córrego, vale, rio, dentre
outros, acrescido da indicação de características como a cor, o volume e
a extensão do acidente; ora tendências e costumes dominantes na época
da nomeação. Já a segunda perspectiva parte da elucidação dos aspectos
psicossociais do denominador na crença de que provavelmente possam
ter motivado o signo toponímico.
Ainda que desafiadora, verifica-se que a Toponímia é uma
disciplina dinâmica e de caráter amplo, não só por não limitar a
90
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]
sua investigação aos aspectos linguísticos e à categorização dos
nomes, mas também por se voltar para o estudo das motivações que
impulsionaram o denominador no ato da nomeação. Daí manter
interface com outras áreas de conhecimento como a História, a
Geografia, a Antropologia, a Etnolinguística. Assim, por meio de
investigações toponímicas, podem-se descobrir áreas de colonização,
o percurso de línguas até então fadadas ao esquecimento, à memória
de um grupo, entre outros fatores.
Na trajetória dos estudos toponímicos, várias concepções foram
sendo lapidadas. Da perspectiva de que a investigação linguística dos
nomes geográficos limitava-se basicamente à Etimologia, passou-se
a admitir que um topônimo perpassa uma realidade sócio-histórica,
econômica e antropocultural de um grupo, o que o torna um signo
linguístico autêntico, mas com uma carga motivacional diversificada,
que só será revelada se houver uma intersecção entre as várias áreas
de conhecimento. Deste modo, é a junção de elementos linguísticos e
extralinguísticos que garante a autenticidade e a própria subsistência do
nome de um lugar em meio à dinamicidade do acervo lexical de uma
comunidade de falantes.
Dentre as várias propostas e tentativas de classificação
taxionômica do topônimios, destaca-se o modelo desenvolvido
por Dick (1992) para o estudo da toponímia brasileira. Para a
elaboração das taxes, a pesquisadora acenou para a autonomia do
topônimo enquanto objeto de investigação, que tanto pode ser de
ordem física quanto de ordem antropocultural. Uma vez admitida
essa duplicidade de visão, passou a buscar uma terminologia técnica
que fosse capaz de enquadrar os nomes de lugares em modalidades
particularizantes. Assim, definiu que o topônimo propriamente dito
seria antecedido por um elemento genérico que definiria a respectiva
classe onomástica a que pertence, numa tentativa de contar a
suficiente explicação de sua substância ou a clareza lógica para
justificar a escolha de uma designação que não outra. O primeiro
membro do sintagma teria por finalidade definir a classe genérica
do topônimo, acentuando o tipo de acidente nomeado se um rio,
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
91
Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]
se uma rua ou se uma propriedade rural, por exemplo. É o segundo
elemento do sintagma nominal que determinaria a procedência do
campo de estudo específico, ou seja, o topônimo propriamente dito
(DICK, 1992, p.26).
Das vinte e sete taxes propostas por Dick (1992, p.31-34), onze
referem-se aos nomes que resgatam, de alguma maneira, peculiaridades
do ambiente físico e por isso mesmo enquadram-se às Taxionomias de
Natureza Física (astrotopônimos, fitotopônimos...), e as outras dezesseis
remetem a relações sociais e culturais do homem no lugar em que
estiver inserido, integrando as Taxionomias de Natureza Antropocultural
(animotopônimos, corotopônimos...). Como já anunciado, neste
trabalho, serão os topônimos relacionados aos nomes de cidades,
países, estados, regiões e continentes o objeto de discussão, ou seja, os
corotopônimos.
3. Contextualização e objetivos
Pesquisadores de diferentes Instituições brasileiras, ao partilharem o
interesse comum de investigar os topônimos, têm desenvolvido trabalhos
diversificados no Brasil, incluindo os que têm como produto final atlas
toponímicos. Dentre esses, situa-se o projeto ATEMS (Atlas Toponímico do
Estado de Mato Grosso do Sul)2, variante regional do ATB (Atlas Toponímico
do Brasil), idealizado e em execução pela renomada toponimista brasileira,
Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick, na Universidade de São Paulo
(USP). A primeira versão do ATEMS, ainda de caráter inédito e na fase de
revisão final, foi concebida, por ora, em dois volumes3.
2
O ATEMS foi financiado pela Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino,
Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul – FUNDECT (2008/2011), e
desenvolvido sob a coordenação da Profa. Drª. Aparecida Negri Isquerdo (UFMS) com
a assessoria científica da Profa. Drª. Maria Vicentina do Amaral Dick (USP). O ATEMS
teve como objetivos mais amplos catalogar e analisar os topônimos registrados nos
mapas oficiais do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, relativos aos 78
municípios de Mato Grosso do Sul, buscando demonstrar peculiaridades linguísticas,
históricas, geográficas, culturais, sociais e ambientais do espaço pesquisado a partir do
estudo da designação dos topos. Com sede na UFMS, o Projeto ATEMS foi executado
em parceria com a UEMS e a UFGD.
3
O volume I foi destinado à descrição dos fundamentos teórico-metodológicos
que orientaram a execução do projeto e o conjunto de 80 mapas toponímicos até
então elaborados a partir dos dados armazenados no Banco de Dados. Já o volume
92
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]
Os dados analisados neste artigo foram extraídos de duas fontes:
Banco de Dados do ATEMS (2011) e base de dados da pesquisa de Souza
(2006)4, ambos os corpora foram obtidos das cartas topográficas do IBGE.
O corpus do ATEMS reúne no estágio atual dos estudos toponímicos em
Mato Grosso do Sul um total de 7.513 (sete mil quinhentos e treze)5,
predominantemente da área rural, enquanto a Dissertação de Souza
(2006) analisou 1.480 topônimos, das áreas rural (915) e urbana (565)
de quatro municípios sul-mato-grossenses: Bela Vista, Jardim, Guia
Lopes da Laguna e Nioaque6. As duas pesquisas foram orientadas,
fundamentalmente, pelo modelo teórico de Dick (1990; 1992).
Este texto, como já assinalado, discute a aplicação do modelo de Dick
(1992), no que diz respeito à categoria dos corotopônimos, designativos
de lugares que recuperam nomes de grandes espaços geográficos,
como cidades, países, estados, regiões e continentes, ou melhor, nomes
transplantados que passam a identificar acidentes físicos e humanos de
outras paragens, geralmente motivados pela intenção do denominador
de homenagear a sua terra de origem e/ou os primeiros povoadores
da região. O estudo, pautando-se em dados da toponímia sul-matogrossense, examina dificuldades geradas na classificação de topônimos
dessa categoria, sobretudo em casos de topônimos que, dependendo
do olhar do pesquisador e das informações disponíveis acerca da história
do nome e/ou do processo de povoamento ocorrido na localidade e a
respectiva localização geográfica do acidente geográfico nomeado, podem
suscitar impasses de interpretação. Assim, a exemplificação apresentada
neste artigo serve para abonar as afirmações feitas e demonstrar que um
mesmo nome pode assumir mais de uma classificação se as características
II reúne seis estudos realizados pelos pesquisadores acerca de tendências marcantes
evidenciadas pela toponímia de Mato Grosso do Sul.
4
Dissertação de Mestrado Toponímia e Entrelaçamentos Históricos na Rota da Retirada
da Laguna, orientada pela Drª. Aparecida Negri Isquerdo e defendida no Programa
de Pós-graduação stricto sensu da UFMS - Campus de Três Lagoas (2006). Pesquisa
desenvolvida com bolsa da FUNDECT.
5
Consulta realizada no dia 22/11/2011.
6
A seleção dessas áreas administrativas foi pautada na localização desses lugares/espaços na
rota da Retirada da Laguna, episódio bélico de significativa importância para a história regional
de Mato Grosso do Sul. Os quatro municípios pertencem à Microrregião de Bodoquena.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
93
Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]
históricas, geográficas, sociais e ambientais que permeiam um acidente
físico e/ou humano forem observadas. Para tanto, são considerados dados
da toponímia rural extraídos do Banco de Dados do ATEMS e da toponímia
urbana, estudados por Souza (2006).
4. Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense
Tomando-se como parâmetro os topônimos dos dois corpora
mencionados, a análise aqui apresentada focaliza as dimensões
quantitativa e qualitativa dos dados examinados. O mapa, na sequência,
demonstra a distribuição da produtividade dos corotopônimos nos 78
municípios do Estado de Mato Grosso do Sul.
Fonte: ATEMS (2011)7.
A cor original do mapa foi formatada para a escala cromática em tons de cinza por
Luciene Gomes Freitas Marins, para este trabalho.
7
94
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]
Observando-se o Mapa 28 do ATEMS (2011), percebe-se que
o município de Corumbá, oeste de Mato Grosso do Sul, concentra
o maior contingente de corotopônimos na toponímia sul-matogrossense já catalogada pelo ATEMS – 05 acidentes geográficos são
nomeados com 03 topônimos dessa categoria: Coimbra que designa
um porto, uma vila e um morro; Brasil que motivou o nome de um
porto; Fortaleza, nome transplantado para dar nome a um córrego.
Nota-se a marca do colonizador luso na corotoponímia pantaneira
materializada na produtividade do corotopônimo Coimbra que,
além de nomear esses três elementos geográficos, designa um forte
colonial, também situado no município de Corumbá, às margens
do rio Paraguai. O Forte de Nossa Senhora do Carmo de Coimbra,
topônimo que sofreu redução ao longo da história, resultando no
designativo Forte Coimbra, foi construído pela Coroa Portuguesa
como estratégia de defesa de território, no final do século XVIII,
tendo se constituído um dos mais importantes pontos de defesa do
território brasileiro e importante ponto de expansão deste na época
do império. Na atualidade, o topônimo Forte Coimbra nomeia, além
do forte propriamente dito, um pequeno vilarejo situado às margens
do rio Paraguai, pertencente ao município de Corumbá-MS, quase na
fronteira do Brasil com a Bolívia e o Paraguai.
Dentre os corotopônimos atualmente cadastrados no Banco
de Dados do ATEMS, figuram topônimos que representam nomes
transplantados de espaços geográficos distantes e de diferentes
dimensões (continentes, países, cidades de países distantes), como
Europa, América, Israel, Bolívia, Peru, México, Brasil, Canadá, Coimbra,
Flórida, Canaã; nomes de estados, de capitais de estados, de cidades
brasileiras situadas em diferentes regiões do Brasil, como: Pernambuco,
Fortaleza (CE), Medianeira (PR)8, Altamira (PA), Pirinópolis (GO),
Xavantina (SC), Nova Xavantina (MT), Santa Fé (SP), Pelotas (RS); nomes
Medianeira também nomeia um bairro das seguintes cidades do Rio Grande do Sul:
Porto Alegre; Cachoeira do Sul; Eldorado do Sul.
8
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
95
Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]
de municípios de Mato Grosso do Sul: Brasilândia, Sonora, Ladário,
Douradina, Costa Rica.
Já o Gráfico I, a seguir, ilustra a produtividade dos corotopônimos
na toponímia rural (nomes de córregos, rios, serras, fazendas...)
e urbana (bairros, ruas...) das cidades sedes dos 04 municípios
estudados por Souza (2006): Bela Vista, Guia Lopes da Laguna, Jardim
e Nioaque.
Gráfico I - Distribuição dos corotopônimos nas áreas rural e urbana nos municípios
inventariados por Souza (2006).
Na toponímia urbana dos municípios pesquisados por Souza
(2006), os corotopônimos que retomam nomes de estados brasileiros
e suas capitais foram os mais produtivos, seguidos, respectivamente,
por aqueles que homenageiam municípios sul-mato-grossenses,
países e outras localidades situadas no território nacional. Jardim foi
a cidade que mais rendeu condolências aos migrantes responsáveis
pela construção de sua história por meio da toponímia. Das vinte e
sete designações referentes aos estados e capitais do Brasil, 26 foram
encontradas no mapa urbano de Jardim, assim como 10 entre os 14
nomes de municípios de Mato Grosso do Sul. O Quadro I, a seguir,
traz a relação dos topônimos coletados por Souza (2006) na área
urbana dos municípios estudados, que resgatam nomes de estados e
capitais do território brasileiro.
96
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]
TOPÔNIMO
ACIDENTE/MUNICÍPIO
Amazonas
Rua/ Jardim
Bahia
Rua/ Jardim
Belém
Bairro/ Nioaque
Campo Grande
Rua/ Jardim
Rua/ Guia Lopes da Laguna
Ceará
Rua/ Jardim
Cuiabá
Rua/ Bela Vista
Rua/ Guia Lopes da Laguna
Espírito Santo
Rua/ Jardim
Maceió
Rua/ Jardim
Manaus
Rua/ Jardim
Maranhão
Rua/ Jardim
Mato Grosso
Avenida/ Jardim
Minas Gerais
Rua/ Jardim
Pará
Rua/ Jardim
Paraíba
Rua/ Jardim
Paraná
Rua/ Jardim
Pernambuco
Rua/ Jardim
Piauí
Rua/ Jardim
Porto Velho
Rua/ Jardim
Recife
Rua/ Jardim
Rio Branco
Rua/ Jardim
Rio Grande do Norte
Rua/ Jardim
Rio Grande do Sul
Rua/Bela Vista
Rua/ Jardim
Santa Catarina
Rua/ Jardim
São Luiz
Rua/ Jardim
São Paulo
Rua/ Jardim
Sergipe
Rua/ Jardim
Vitória
Rua/ Jardim
Quadro I- Topônimos da área urbana dos municípios de Bela Vista, Jardim, Guia Lopes
da Laguna e Nioaque, referentes a nomes de estados e capitais do território brasileiro
(SOUZA, 2006).
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
97
Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]
Acredita-se que o processo de povoamento ocorrido em Mato
Grosso do Sul tenha interferido na escolha dos nomes elencados. A
alta incidência de homenagens prestadas aos migrantes provenientes
das regiões Norte e Nordeste se justifica por terem se fixado, na sua
maioria, no sul do Estado, onde se localizam os municípios estudados.
O tributo aos municípios sul-mato-grossenses também chama a atenção
pelo fato de valorizar cidades pertencentes ao mesmo Estado que, de
alguma forma, tiveram as histórias e conquistas correlacionadas. É o
que se observa nos dados relativos às cidades de Jardim e de Guia
Lopes da Laguna que recuperam nomes de municípios, na maioria
das vezes, circundantes aos seus territórios, como atestam os dados
do Quadro II:
TOPÔNIMO
ACIDENTE/MUNICÍPIO
Aquidauana
Rua/ Guia Lopes da Laguna
Bataguassu
Rua/ Jardim
Bela Vista
Rua/ Jardim
Bonito
Rua/ Guia Lopes da Laguna
Corumbá
Rua/ Jardim
Iguatemi
Rua/ Jardim
Jardim
Rua/ Guia Lopes da Laguna
Maracaju
Rua/ Jardim
Rua/ Guia Lopes da Laguna
Ponta Porã
Rua/ Jardim
Rua/ Guia Lopes da Laguna
Porto Murtinho
Rua/ Guia Lopes da Laguna
Rio Verde
Rua/ Guia Lopes da Laguna
Sidrolândia
Rua/ Guia Lopes da Laguna
Tacuru
Rua/ Jardim
Três Lagoas
Rua/ Jardim
Quadro II – Topônimos da área urbana dos municípios de Bela Vista, Jardim, Guia
Lopes da Laguna e Nioaque, referentes a nomes de cidades sul-mato-grossenses
(SOUZA, 2006).
98
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]
5. Corotopônimos sul-mato-grossenses: casos da toponímia rural e
da toponímia urbana
Conforme o exposto nos itens anteriores, o universo de topônimos
em análise considera duas categorias de topônimos em termos de área
geográfica do designativo: rural e urbana. Assim, a discussão do assunto
neste tópico parte dos dados do ATEMS, relativos à toponímia rural,
estabelecendo-se os devidos paralelos com os da toponímia urbana
analisados por Souza (2006). Conforme já assinalado, o Banco de
Dados do ATEMS tem armazenados um montante de 7.513 (sete mil
quinhentos e treze), dentre os quais, 44 (quarenta e quatro) foram,
a princípio9, classificados como corotopônimos, o que representa,
aproximadamente, 0,6% do montante de nomes da toponímia sulmato-grossense. Mesmo que quantitativamente essa taxe pareça pouco
representativa, tem suscitado muitas discussões haja vista a dificuldade
de se confirmar se um determinado topônimo representa realmente,
no espaço em que se localiza, um nome transplantado.
O princípio básico definidor da taxe corotopônimo é o fato de um
nome ser transplantado de um lugar para outro. Mas qual seria afinal
o “alcance” do conceito de transplantar? Aplicando-se esse conceito
ao modelo de classificação taxionômico de Dick (1992), só seriam
considerados corotopônimos os nomes de cidades, estados e regiões,
oriundos de outros países que não o Brasil. Nomes como Bolívia, Canadá,
México e Peru, por exemplo, utilizados para denominar acidentes
físicos em Mato Grosso do Sul, adequar-se-iam sem problemas ao
modelo em questão. Constatou-se, no entanto, ao longo da pesquisa
que boa parte dos topônimos, a princípio, assim classificados careceria
de maior aprofundamento. A inquietude dos pesquisadores do Projeto
ATEMS tem proporcionado estudos e reflexões sobre o assunto,
por entenderem que na toponímia sul-mato-grossense havia casos
perceptíveis de que o denominador de um determinado acidente físico
ou humano “transplantou” nomes de espaços circunscritos ao território
9
Diz-se, a princípio, porque os dados estão sendo rigorosamente revisados pelos
pesquisadores do Projeto ATEMS, o que poderá eventualmente alterar o quadro atual
de classificação dos topônimos catalogados no Banco de Dados.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
99
Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]
brasileiro, ao batizar um córrego, por exemplo, com nomes de Estados
do Brasil de onde migraram muitas pessoas para o território sul-matogrossense10. O corotopônimo Pernambuco (córrego/Paranaíba) é um
exemplo típico de homenagem prestada por migrantes à sua terra natal.
Além da dificuldade de estabelecer, frente às especificidades do
território sul-mato-grossense, a amplitude do conceito de transplantar,
passou-se a perceber o desafio de estratificar o nome de um lugar, sobretudo
quanto à sua classificação como corotopônimo, a partir da área (espaço rural
ou urbano), onde se situa o elemento geográfico nomeado, dada à evidência
de comportamentos muitas vezes distintos entre essas duas categorias de
designativos. Assim, é necessário sopesar não apenas o tipo de acidente, se
físico ou humano, mas também a área em que ele se localiza.
Souza (2006), em sua Dissertação de Mestrado, analisou topônimos
tanto da área rural quanto da urbana dos quatro municípios estudados
e constatou, por exemplo, que várias ruas da cidade de Guia Lopes da
Laguna faziam referência às capitais dos Estados de Mato Grosso e de
Mato Grosso do Sul e a municípios que circundavam aquele território:
rua Aquidauana, rua Bonito, rua Campo Grande, rua Cuiabá, rua Jardim,
rua Maracaju, dentre outros. Nesses casos são evidentes as homenagens
prestadas aos municípios que de alguma forma influenciaram a história
da localidade. A mesma relação não se estabelece quando se trata
de um acidente físico como, por exemplo, Serra de Maracaju. Esse
não poderia ser classificado como corotopônimo, já que a criação do
município de Maracaju foi posterior à existência e à própria nomeação
desse acidente (serra). Historicamente se confirma que a nomeação de
acidentes geográficos precede, na maioria das vezes, a de acidentes
humanos.
Sublinhe-se ainda que, diante do complexo quadro de dificuldades
que envolvem a classificação dos corotopônimos, tem-se buscado uma
reflexão acerca do conceito de corotopônimo com base nos dados
disponíveis no recorte toponímico estudado, principalmente, no diz
Um primeiro estudo sobre a taxe dos corotopônimos foi realizado por Figueiredo
(2009). Essa versão do trabalho foi recuperada e ampliada para este texto.
10
100
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]
respeito aos nomes de cidades, de estados e de regiões pertencentes ao
território brasileiro. No entanto, a prática tem demonstrado que a questão
exige muita cautela, para que não se classifique equivocadamente
um nome com essa taxe. Topônimo bem ilustrativo nesse sentido é
Belo Horizonte, que nomeia um córrego em São Gabriel do Oeste –
MS, microrregião do Alto Taquari, e outro córrego em Iturama – MG.
Sabendo-se que no município mineiro de Iturama também existe um
córrego denominado Viçosa (outra cidade mineira), a classificação de
Belo Horizonte como corotopônimo nesse território parece mais coerente
do que no Estado de Mato Grosso do Sul.
Vale pontuar, nesse contexto, que no modelo classificatório
proposto por Dick (1992) figura em primeiro plano o conteúdo
semântico perceptível nos topônimos, enquanto signos linguísticos e,
em segundo plano, a intenção do denominador no ato da nomeação
visando, por meio de uma investigação sem muito recuo ao passado
histórico, a buscar as causas motivadoras, os pressupostos semânticos
que dão vida aos designativos geográficos. Todavia, a toponimista não
descarta a possibilidade de muitas vezes haver necessidade de um recuo
no tempo em busca, não só da apreensão do significado do item lexical
do vocabulário comum da língua elevado à categoria de topônimo,
como também identificar registros na cartografia histórica e/ou em
obras produzidas em sincronias pretéritas, na tentativa de elucidar o
uso contemporâneo do topônimo. Assim, uma vez não confirmados
indícios reais e esclarecedores de que a relação entre a denominação do
acidente esteja ligada a uma homenagem prestada, no caso analisado
à cidade de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, o topônimo sulmato-grossense poderia ser classificado como animotopônimo, já que
parece recuperar uma impressão do denominador frente ao acidente11.
Como as pesquisas toponímicas procuram classificar, descrever e
explicar os topônimos, parte-se do que está mais próximo e tenta-se
recuperar a visão etnolinguística do grupo responsável pela atribuição
Reforça essa posição o fato de Belo Horizonte nomear um córrego no município de
São Gabriel do Oeste, que foi povoado por gaúchos.
11
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
101
Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]
do nome. Assim, no decorrer da investigação, o pesquisador deve
ponderar que estudos desta natureza seguem um percurso indutivo >
dedutivo, ou seja, partem do nome do acidente para depois descobrirem
os condicionantes que o envolvem. Nesse sentido, vale registrar que,
assim como Belo Horizonte, o topônimo Fortaleza – o mais recorrente
entre aqueles classificados como corotopônimos no Banco de Dados do
ATEMS (10,4%) –, pelos mesmos motivos, poderia ser considerado um
animotopônimo. Todavia, a representativa incidência desse topônimo
em diferentes pontos geográficos do Estado12; o grande contingente de
nordestinos, incluindo os cearenses, que migraram para o Mato Grosso
do Sul, durante diferentes fases de povoamento da região, somados
à falta de informações acerca da motivação do batismo desses seis
acidentes físicos e de um acidente humano corroboram a decisão de
manter a classificação desses designativos como corotopônimos.
5.1. Paraguai e Uberaba: pseudos corotopônimos?
Dentre os dados inventariados no Projeto ATEMS, Paraguai e
Uberaba estão entre os que, numa primeira instância, poderiam ser
classificados como corotopônimos, mas que, ao mesmo tempo, geram
dúvida quanto a essa classificação, se consideradas razões de natureza
histórica. No caso do topônimo Paraguai que nomeia o principal rio da
bacia hidrográfica do Paraguai, a equipe de pesquisadores do ATEMS
considerou a proximidade geográfica entre Mato Grosso do Sul e o país
vizinho Paraguai e a consequente interinfluência linguístico-cultural
característica dessa faixa de fronteira; a nomeação anterior do rio e
informações de natureza histórica para subsidiar a sua não classificação
como um corotopônimo. É preciso considerar que os relatos de viagens
de conquistadores europeus confirmam que o rio em questão já era
batizado com o topônimo Paraguay desde o século XVI.
Magalhães (2008), pautando-se em consulta de vasta bibliografia
sobre relatos de viajantes que percorreram as terras do continente sulamericano no século XVI, registra que o português Aleixo Garcia foi “o
Fortaleza aparece nos municípios de Ribas do Rio Pardo, Rochedo, Campo Grande,
Camapuã, Rio Verde de Mato Grosso e Ponta Porã.
12
102
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]
primeiro homem branco a navegar o rio Paraguay [...] O aventureiro
luso teria penetrado selvas sul-americanas em 1526, atrás de tesouros
nas mágicas montanhas andinas...” (MAGALHÃES, 2008, p. 27). Ainda
conforme o mesmo pesquisador, o “segundo branco a comandar uma
expedição que subira o grande rio [...] foi Juan de Ayolas (1536) que
levava consigo como companheiro Domingo Martinez de Irala. Ambos
tinham o encargo recorrente de consolidar os domínios espanhóis e
encontrar riquezas para a Cesárea Majestad Catolica” (MAGALHÃES,
2008, p. 27). Todavia, a obra Naufragios y Comentarios [1555], de Álvar
Núñez Cabeza de Vaca (1540-1545) foi a primeira a noticiar ao mundo
moderno o grande rio, ou seja, o rio Paraguai13. Especificamente a parte
intitulada Comentarios14 narra a viagem realizada pelo conquistador
espanhol em rumo a Assunção, percorrendo o rio Paraguay. Ilustram
isso, dentre outras, as referências a esse rio contidas no excerto a seguir:
Y de esta manera caminando (según dicho es), fue nuestro Señor servido
que a 11 días del mes de marzo, sábado, a las nueves de la mañana, del
año 1542, llegaron a la ciudad de la Ascensión, donde hallaron residiendo
los españoles que iban socorrer, la cual está asentada en la ribera del río
del Paraguay, en veinte y cinco grados de la banda del sur […] (grifo nosso)
(NÚÑEZ CABEZA DE VACA, 2005 [1555], p. 160).
Já com relação ao topônimio Uberaba, encontram-se em Magalhães
(2008) diferentes menções a essa lagoa, dentre elas, a transcrição de excertos
do Diário de Viagem, de Francisco José de Lacerda e Almeida, apontamentos
escritos por volta de 1786 e pela primeira vez publicados em 1944. Reza o
texto de Almeida (1944 apud MAGALHÃES, 2000, p. 97):
Perto desse monte corriam as águas muito e com muita largura; e
supondo que por este novo rio (que assim se pode chamar pelo fundo e
largura) se comunicaram a lagoa Uberaba com a Gaíba [...] Seguimos o
sangradouro que saía no grande lago de que tenho tratado, e que hoje
assento ser a Lagoa Uberaba... (grifo nosso).
13
É por meio desses relatos que a região do Pantanal torna-se conhecida no Ocidente,
sob a designação Laguna del Xarayés. Cf. Isquerdo (2006): De Laguna de los Xarayes a
Pantanal: mito e realidade impressos na Toponímia.
14
As crônicas da aventura do adelantado, governador e capitão geral da Província do
Rio da Plata, Cabeza de Vaca (1540-1545), foram escritas provavelmente por Pero
Hernández, secretário da província.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
103
Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]
Também Casal, na Corografia Brasílica [1817] (1976), destaca o
rio Paraguai como o “mais celebrado”, na Província de Mato Grosso
e registra as seguintes informações que incluem a menção à lagoa
Uberaba:
[...] vinte léguas abaixo da Ponta Escalvada começa a margem ocidental [do
rio Paraguai] a ser bordada por uma serra de outras tantas, ou mais léguas
de comprido, mas estreita, e cortada em várias paragens para dar saída às
águas de 3 lagos, que ficam por detrás dela [...] A porção setentrional desta
serra é designada com o nome de Insua, a meridional com o de Chainez,
e a central com o da Serra dos Dourados. Uberaba, Guaíba, e Mandioré
são os nomes dos mencionados lagos” (CASAL, 1976, p. 136). (grifo nosso).
Nota-se que os relatos introduzem o topônimo Uberaba como
designativo de um lago/lagoa do Pantanal. Esse topônimo também é citado
por Souza (1973, p.29): “A oeste estende-se o cordão das grandes lagoas,
regionalmente conhecidas por “baías” e que se comunicam com o rio
através de sangradouros, sendo por eles alimentadas. Destacam-se as de
Uberaba, Gaíva, Mandioré e Cáceres, escalonadas de norte sul...” (SOUZA,
1973, p. 29) (grifo nosso). Nos mapas contemporâneos, o topônimo Uberaba
continua a nomear a maior das três grandes lagoas do Pantanal, ao lado das
lagoas Guaíba e Mandioré, todas localizadas na região da serra do Amolar,
na confluência entre os Estados de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso e a
Bolívia.
O nome Uberaba, de acordo com Sampaio (1987, p.338), é de
origem tupi “Y-beraba, a água brilhante, clara, transparente, cristalina”.
Logo, o topônimo Uberaba deve ter sido motivado pelas características
da água. O mesmo se aplica ao rio Uberaba que motivou o surgimento da
próspera cidade mineira do mesmo nome. Esse designativo nomeia, pois,
uma grande lagoa no município de Corumbá – MS (microrregião do Baixo
Pantanal) e um rio e um município do Estado de Minas Gerais (Triângulo
Mineiro). Pela documentação histórica, nota-se o registro desse topônimo
em diversos relatos de viajantes dos primeiros séculos da colonização do
Brasil, o que confirma não se configurar o nome da lagoa do Pantanal um
nome transplantado, mas sim um nome descritivo motivado pela riqueza
hídrica, típica dos pantanais, os hidrotopônimos. O mesmo raciocínio
se aplica ao topônimo Paraguai que, também segundo Sampaio (1987,
p. 294), deriva do tupi “Paraguá-y, o rio dos papagaios. Pode também
significar o rio dos cocares ou das coroas”. Paraguá, segundo o mesmo
104
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]
tupinólogo, vem de “Para-guá, a coroa de plumas variegadas, o cocar.
Significa também seio de mar, baía, golfo. Significa ainda papagaio”.
Magalhães (2000, p. 28) também pontua a polêmica existente quanto à
etimologia do “rio dos Papagaios”: “Para – mar, no sentido de parecer um
oceano e gua’a, papagaio”. Pelo exposto, conclui-se que os topônimos
Paraguai e Uberaba, no âmbito da toponímia sul-mato-grossense, não se
configuram como corotopônimos enquanto os topônimos Paraguai (país)
e Uberaba (cidade de Minas Gerais) são motivados pelos nomes dos rios
homônimos, respectivamente, o rio Paraguai e o rio Uberaba.
Considerações finais
A partir dessa amostragem, objetivou-se discutir o estatuto da taxe
dos corotopônimos (DICK, 1990), com base em dados da toponímia sulmato-grossense. Os resultados deste estudo apontam para os seguintes
encaminhamentos teórico-metodológicos: i) necessidade de ser considerado o
sentido lato do formante trans-, «para além», na definição de corotopônimos, o
que permite um repensar do raio de extensão do sentido do verbo transplantar,
considerando também nomes que migram dentro de um mesmo território;
ii) valorização de informações registradas em obras de sincronias pretéritas,
para fins de classificação dos corotopônimos; iii) identificação do topônimo em
exame em mapas representativos da cartografia histórica; iv) consideração das
variáveis “toponímia rural” e “toponímia urbana” no exame dos corotopônimos;
exame dos processos migratórios ocorridos na área investigada, informações
essas que podem fornecer pistas para a identificação de corotopônimos no
âmbito de um sistema onomástico regional. Os resultados aqui apresentados
não têm ainda caráter conclusivo, carecendo de aplicação dos princípios
adotados no exame de novos dados. Todavia, uma coisa é certa: “o interesse
e a necessidade da pesquisa superam todos os empecilhos perturbadores do
processo de análise, principalmente se se considerar que uma Toponímia
científica, sólida e eficaz só se consolida pelo conhecimento seguro das fontes
documentais que a amparam” (DICK, 1996, p. 41).
Referências
ATEMS – Atlas Toponímico de Mato Grosso do Sul. Banco de Dados. Campo Grande:
UFMS, 2011 (acesso restrito).
BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Dimensões da Palavra. In: Filologia e Lingüística
Português. n. 2. Araraquara: UNESP, p.81-118, 1998.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
105
Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]
CARDOSO, Armando Levy Toponímia brasílica. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército
Editôra, 1961.
CASAL, Manuel Aires, de. Corografia Brasílica. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, [1817], 1976.
DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. A motivação toponímica e a realidade
brasileira. São Paulo: Edições Arquivo do Estado, 1990.
_______ Toponímia e Antroponímia no Brasil. Coletânea de Estudos. São Paulo: FFLCH/
USP, 1992.
_______. Atlas toponímico: um estudo de caso. In: Acta Semiotica et Lingvistica. SBPL.
São Paulo: Plêiade, v. 6, p. 27-44, 1996.
DRUMOND, Carlos. Contribuição do bororo à toponímia brasílica. São Paulo: USP/
IEB, 1965.
FIGUEIREDO, Carla Regina de Souza. Um estudo dos corotopônimos no Projeto
ATEMS. Comunicação apresentada no XIX Seminário do Centro de Estudos Linguísticos
e Literários do Paraná - CELLIP, realizado em Cascavel no ano de 2009.
ISQUERDO, Aparecida Negri et al. ATEMS – Atlas Toponímico do Estado de Mato
Grosso do Sul. Vol. I. Campo Grande: UFMS, 2011 (inédito).
ISQUERDO, Aparecida Negri. De Laguna de los Xarayes a Pantanal: mito e realidade
impressos na Toponímia. In: SEABRA, Maria Cândida Trindade Costa de. O léxico em
estudo. Belo Horizonte: Editora da Faculdade de Letras – UFMG, 2006, p. 119-135.
MACHADO, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. ed. Lisboa:
Livros Horizonte, Ltda, 1987.
MAGALHÃES, Luiz Alfredo Marques. Rio Paraguay – Da Gaíba ao Apa. Campo Grande
- MS: Editora Alvorada, 2008.
MENEZES, Paulo Márcio Leal de; SANTOS, Claudio João Barreto dos. Geonímia do Brasil:
pesquisa, reflexões e aspectos relevantes. Revista Brasileira de Cartografia. N. 58/02, agosto, 2006.
NÚÑEZ CABEZA DE VACA. Álvar. Naufragios y Comentarios. Madrid: Editorial Espasa
Calpe, S. A. [1555] 2005.
SAMPAIO, Teodoro. O tupi na geografia nacional. São Paulo: Editora Nacional, [1901], 1987.
SANTOS, Claudio João Barreto dos. A retomada da pesquisa da Geonímia do Brasil: algumas
reflexões e aspectos relevantes. Geo UERJ - Ano 9, nº 17, vol. 2, 2º semestre de 2007.
SOUZA, Carla Regina de. Toponímia e entrelaçamentos históricos na rota da Retirada
da Laguna. 2006. 000 p. Dissertação (Mestrado em Letras). Campus de Três Lagoas –
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Três Lagoas, 2006.
SOUZA, Lécio Gomes. História de uma região: Pantanal e Corumbá. São Paulo: Editora
Resenha Tributária Ltda, 1973.
106
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Linguística Indígena
Os processos de nominalização na língua
matis (família Pano)
The nominalization processes of matis language (Panoan family)
Rogério Vicente Ferreira
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/ Três Lagoas
[email protected]; [email protected]
Resumo: O presente trabalho busca uma reflexão sobre a nominalização em
uma língua indígena da família Pano, a saber, a língua Matis. Segundo
Sautchuk (2004, p. 11), “as palavras existentes em qualquer língua
são agrupadas em várias classes, conforme a semelhança de formas
que apresentam, ou, para alguns autores, conforme o tipo de funções
que podem desempenhar ou, ainda, conforme o sentido que podem
expressar”. Diante disso, procuraremos compreender como funciona na
língua Matis o processo de nominalização. Também como tal processo
ocorre em outras línguas da família, por exemplo, Shanenaua, Marubo,
Cashinauá, Shipibo-Konibo, entre outras.
Palavras-chave: Família Pano. Nominalização. Língua Matis.
Abstract: The present study attempts a reflection on the nominalization in
an indigenous language of the Pano family, namely the Matis language.
According to Sautchuk (2004, p. 11) “The existing words in any language
is grouped into several classes, according to the similarity of structures they
have, or, for some authors, according to the type of functions that they
can play, or even as the sense that they can express”. Therefore, we try to
understand how this nominalization process works in the Matis language.
Also as this process occurs in other languages of the Pano family, for example,
Shanenaua, Marubo Cashinawa, Shipibo-Konibo, among others.
Keywords: Panoan family. Nominalization. Matis language.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
109
Rogério Vicente Ferreira [109-116]
Introdução
A família pano é constituída por vinte e nove línguas, cujos falantes
habitam as regiões fronteiriças entre Brasil (doze línguas), Peru (quatorze
línguas) e Bolívia (três línguas). No Brasil, os falantes de línguas Pano
estão concentrados nos estados do Acre, Rondônia e Amazonas. Este
trabalho terá como fonte dados coletados e analisados de um grupo
indígena localizado no Amazonas, habitantes do rio Ituí.
Os Matis habitam a região norte do país, no Amazonas, vivendo 250
pessoas em várias casas na mesma aldeia. Sua língua pertence à família
linguística Pano. As línguas dessa família estão distribuídas no Brasil, no
Peru e na Bolívia. No Brasil, os falantes vivem no Amazonas e no Acre.
A língua Matis como todas as outras línguas da família Pano é de
ordem SOV, aglutinante e de sistema ergativo/absolutivo, sendo os
alomorfes {-n} ~{-n} a marca ergativa (FERREIRA, 2005).
Da mesma forma que em Matsés (também conhecidos como
mayorunas) os morfemas nominalizadores, em Matis, possuem
funções de agente, paciente, objeto e instrumento. Fleck (2003)
vai um pouco mais adiante na análise da língua matsés, pois além
dos verbos nominalizados por vários sufixos nominalizadores, tais
sufixos também podem nominalizar toda uma sentença, incluindo
os argumentos e qualquer oblíquos/advérbio.
1. Nominalização
A nominalização tem sido objeto de investigação linguística há
mais de trinta anos nas mais diferentes perspectivas teóricas. Em cada
uma das corretes teóricas as respondem diferentes questões aos mais
diferentes dados e apresentando resultados que ora divergem quanto
à sua classificação, generalização, regras, fórmulas, configurações e
argumentações (HOPPE, 2003, p. 145).
Payne (2001, p.223) aponta que as línguas têm caminhos para
ajustar a categoria gramatical de uma determinada raiz, por exemplo,
o verbo passa a função de nome, ou seja, nominalização, [v] à [v]N.
110
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Os processos de nominalização na língua Matis (família Pano) [109-116]
Tendo isso em vista, apresentaremos quais estratégias a língua Matis
utiliza para o processo de nominalização, como Payne descreve,
encontraremos em Matis a nominalização de agente; de particiente; de
instrumental; de locação, entre outros.
A língua Matis tem como nominalizadores os morfemas {-kid}, {-akid},
{‑bokid}, {-bondakid}, {-anpikid}, {-esma} e {-te}, diferentemente
da língua matsés que, apesar de apresentar morfemas de nominalização
semelhantes aos do Matis, apresenta também o morfema {-tequid}, que
funciona como “instrumento específico”(FLECK, 2003, p.1101).
1.1 Nominalizador {-kid}
Os nomes formados a partir do morfema {-kid} podem ser
semanticamente caracterizados como “ator” ou “agente”. Comrie &
Thompson (2007, p. 348) referem-se a esse processo como “nominalização
agentiva”, na qual os verbos nominalizados por esse morfema tornamse nomes atributivos, do tipo “cozinheiro, nadador, atirador, matador”.
Assim sendo, quando estão em posição atributiva, como em “Antônio
enfermeiro”, eles estarão na função predicativa “ser algo”. No exemplo
01 (a), o verbo nominalizado se encontra em posição de argumento de
verbo intransitivo, isto é, está em função de S. Já em 01 (b), o verbo
nominalizado se encontra em função de A, em argumento de verbos
transitivos e em 01 (c) e (d) está em função atributiva. Em qualquer uma
dessas situações, o que colabora para a afirmação que esse morfema é
um nominalizador é o fato de o verbo nominalizado passar a receber a
mesma morfologia nominal e a fazer parte da mesma função dentro da
sintaxe, aquela que determina a classe de Nome.
(1)
S
a) tikeS-kid
ter.preguiça -ag.nzr
-bo
-col.
V
-
kapu- -e
-emen
-abs. caçar- -n.pass. -neg.n.pass.
“Os preguiçosos não vão caçar.”
b) kodokacozinhar-
-kid
-n awad
-ag.nzr -erg. anta
-
kodoka- -e
-abs. cozinhar- -n.pass.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
-k
-decl.
111
Rogério Vicente Ferreira [109-116]
“O cozinheiro cozinha a carne de anta.”
c) café
café
tsinid- -kid
sobrar- -ag.nzr
antokadentro- jogar-
-ta
-imp.afirm.
“Jogue o resto de café!”
d) nden
antes
bi
1sg.abs.
[ta
[dente
tik- -kid ]
ik-bonda
-k
tirar- -ag.nzr] aux.- -pass.dist. -1/2:decl.
“Antes eu era dentista.” ( lit.: “Antes eu era tirador de dente.”)
1.2 Nominalizador {-akid}, {-bondakid} e {-anpikid}
A nominalização feita pelos morfemas {-akid} “nominalizador de
passado recente paciente”, {-bokid} “nominalizador de passado não
recente paciente”, {‑bondakid} “nominalizador de passado distante
paciente” e {-anpikid} “nominalizador de passado remoto paciente”
forma nomes que participam como objeto, diferenciando-se somente na
referência temporal. Podem, ainda, nominalizar sentenças, formando as
relativas.
(2)
a) sinkuin tamobanana assarmmão-
tamanqueimar-
-akid
-n
- nzr.pass.rec.pac. -erg.
-bo
-pass.n.rec.
bi
1sg.abs
-
-3.exp.
“A banana, aquela que é assada, me queimou na mão”.
b) gabrieu
Gabriel
-n
-erg.
bkatsk
vagaroso
dadawa -akid
tanawa-e
escrever - nzr.pass.rec.pac. saber-n.pass.
-k
-decl.
dadawa- -ek
nbi
tudemen
dadawa- -e
-k
escrever- -n.pass. 1sg.erg. rápido
escrever- -n.pass. -decl.
“O Gabriel sabe escrever, mas ele escreve devagar e eu escrevo rápido.”
c) dunu -n
cobra -erg.
112
pe-bondakid
bi
morder- - nzr.pass.dist.pac. 1sg.abs.
ne- -e
ser- -n.pass.
-k
-decl.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Os processos de nominalização na língua Matis (família Pano) [109-116]
“Eu tenho uma velha mordida de cobra. (Lit. Eu sou alguém que foi mordido
por uma cobra há muito tempo.)”
d) i
arraia
-n
tk-erg. ferrar-
-anpikid
bi
ne-e
-k
- nzr.pass.rem.pac. 1sg.abs. ter- -n.pass. -decl.
“Eu tenho uma velha ferroada de arraia.(Lit. Eu sou alguém que tem uma
cicatriz muito velha feita por uma ferroada de arraia)”.
1.3 {-esma} nominalizador negativo
Em Matis há, ainda, um nominalizador negativo para S ou A. Uma
forma livre de tradução seria “nunca” e “raramente”. Para notarmos
que esse é realmente um nominalizador negativo, podemos observar
os exemplos 03 (a) e (b): em (a) há a forma afirmativa e em (b) a forma
negativa, sendo a única diferença entre os dois exemplos a presença de
-akid e de -esma.
(3)
Forma afirmativa
a) jose kodoka- -akid
José cozinhar - nzr.pac.
ikaux.-
-bonda
-k
-pass.n.rec. -decl.
“José era cozinheiro. (Lit. José era aquele que cozinha).”
Forma negativa
b) jose kodoka- -esma
José cozinhar- -nzr.neg.
ik-bonda
-k
aux.- -pass.n.rec. -decl.
“José nunca foi cozinheiro. (Lit. José foi aquele que não cozinha)”
c) paulo -n nawa
wtsi -
tonka-esma
Paulo -erg. não-índio outro -abs matar c/ arma- -nunca
“Paulo nunca matou um não-índio. (Lit. Paulo é aquele que não mata não-índio)”
d) rogeru -
u-esma
Rogério -abs. dormir- -nunca
“O Rogério nem sempre dorme. (Lit. Rogério é aquele que não dorme.)”
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
113
Rogério Vicente Ferreira [109-116]
Com os verbos onke- “falar”, kuak- “ouvir”, is- “ver” a sufixação
de {-esma} tem um sentido ambíguo, isto é, dependendo do contexto,
pode significar, respectivamente, “mudo”, “surdo”, “cego”.
(4)
a) tanpi
-
onke-
-esma
menina -abs. falar-
-nunca
“A menina nunca fala. (Lit. A menina é aquela que não fala, ou fala pouco)”
a1) tanpi onkesma “A menina é muda”
b) dadasibo -
kuak- -esma
velho
-abs. ouvir- -nunca
“O velho nunca ouve. (Lit. O velho é aquele que não ouve, ou ouve pouco)”
b1) dadasibo kuakesma “O velho é surdo.”
1.4 Nominalizador {-te} e {-tekid}
O nominalizador {-te}, quando sufixado ao verbo, forma um nome
significando “aquilo que é usado para”, denominado ‘nominalizador de
instrumento’. Dos sufixos nominalizadores, esse é o mais produtivo por
estar sempre formando novos itens lexicais, como vários instrumentos
inseridos na cultura: nunte “canoa”, anundante “anzol”, tonkate
“espingarda”, datonkete “camisa”.
(5)
a) nbi
Gabrieu - te-
1sg.erg. Gabriel
-abs
-te
ak-
-me
-e
engolir- -nzr. O beber- -caus. -n.pass.
-k
-decl.
“Eu fazendo o Gabriel beber o remédio.”
b) Antonio
-n
tonka-
-te
Antônio -erg. matar c/ arma- -instr.nzr.
114

bi
semente 1sg.abs.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Os processos de nominalização na língua Matis (família Pano) [109-116]
bed
-un
-bo
-
comprar -benef. -pass.n.rec. -3.exp.
“Antônio comprou cartucho (semente de espingarda) para mim”
c) nukun
1p.poss.
anud-an-te
boca- fisgar- -antipass. -instr.nzr.
iksamadap
ruim
“Meu anzol não presta”.
1.5 {-tekid}
O morfema {-tekid}, semelhantemente ao {-te}, também é um
nominalizador de instrumento, mas a diferença semântica que há
entre eles é com respeito à especificidade. O morfema {-te} indica um
instrumento que realiza uma função instrumental, por exemplo, “canoa”
e “vassoura”: nun- “nadar” > nunte “canoa”, beska- “limpar varrendo” >
beskate “vassoura”; enquanto {-tekid} indica uma ação intrumental, como
em: nes- “tomar banho” > neste > “algo utilizado para tomar banho” >
nestekid > “algo utilizado para banhar com função de remédio”.
(6)
a) mibi
nes
2sg.abs. tomar banho
-tekid
- nzr.esp.instr.
“Aquele com que você toma banho [para curar].”
b) bi
1sg.abs.
dadawaescrever-
-tekid
- nzr.esp.instr.
“Aquele com que eu escrevo.”
c) beskate
vassoura em geral
d) kueste
pau utilizado para bater
beskatekid
vassoura esp.
kuestekid
pau utilizado para bater em algo específico,
como o utilizado no ritual do madiwin.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
115
Rogério Vicente Ferreira [109-116]
Conclusão
Os estudos sobre a nominalização na língua Matis ainda são recentes,
um motivo é por essa família linguística ainda não possuir um grande leque
de estudos descritivos. Outro motivo a ser levado em consideração é que
este é o primeiro ensaio sobre esse tema na língua. Nota-se que o processo
de nominalização tem sua complexidade, visto que existem sete morfemas
de nominalização, os quais serão utilizados dependendo da formação de
palavra e de seu contexto. Ainda falta-nos estudar com mais detalhes tal
processo de formação de palavras no contexto semântico, principalmente no
que refere aos neologismos, pois o contato recente com a língua portuguesa
tem elevado o número de itens lexicais novos que são realizados também
por meio desses morfemas nominalizadores. Assim, deseja-se que este breve
estudo contribua para o conhecimento de mais uma língua da família pano
e desperte interesse em novos pesquisadores sobre o processo de formação
de palavras, particularmente no que se trata das línguas indígenas brasileiras.
Referências
COMRIE, Bernard; THOMPSON, Sandra Annear. ‘Lexical nominalization’. In Timothy
Shopen, ed.: Language Typology and Syntactic Description, volume III: Grammatical
Categories and the Lexicon, 349–398. Cambridge: Cambridge University Press. [Revised
version in 2nd edition, 334–381. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
FERREIRA, Rogério Vicente. Língua Matis (Pano): uma descrição gramatical. Campinas,
2005. 341 f. Tese (Doutorado em Lingüística) - Instituto de Estudos da Linguagem.
Universidade Estadual de Campinas, 2005.
FLECK, David W. A Grammar of Matses. 2003. 1217 f. Tese (Doutorado em Lingüística).
Houston: Departamento de Lingüística, Rice University, 2003.
HOPPE, Paulette M. The structure of nominalization in Burmese. 2003, 326 p. Tese (Doutorado
em Lingüística). Department of Linguistic - The University of Texas at Arlington, 2003.
SAUTCHUK, Inez. Prática de morfossintaxe: como e por que aprender análise (morfo)
sintática. Bareri-SP: Manole, 2004.
PAYNE, Thomas Edward. Morphosyntax: a guide for fiel linguistics. Cambridge:
Cambridge University Press, 1997.
116
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Linguística Aplicada
Discursos do professor de língua materna:
um olhar
Mother Language Teacher´S Discourse: A Look
Cláudia Graziano Paes de Barros
Universidade Federal de Mato Grosso - Cuiabá
[email protected]
Quanto a mim, tudo o que ouço
são vozes e relações dialógicas entre elas
Mikhail Bakhtin
Resumo: Neste texto, apresentamos alguns achados iniciais de dados coletados
pelo Grupo de Pesquisa Estudos Linguísticos e de Letramento em Mato
Grosso. Neste recorte, discutiremos alguns aspectos do discurso de professores
de língua portuguesa à luz das considerações do Círculo de Bakhtin sobre
linguagem (1992; 2002) e as discussões de Fairclough (1989; 1992; 2003;
2001) que toma o discurso como modo de ação, como uma forma pela qual
as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros.
Palavras-chave: Professor. Discurso. Linguagem.
Abstract: In this paper, we present some initial findings of data collected
by the Research Group of Language and Literacy Studies in
Mato Grosso. In this paper, we discuss some aspects of the speech of portuguese-speaking teachers in the light of the considerations about
language Bakhtin Circle (1992; 2002) and discussions of Fairclough
(1989; 1992; 2003; 2001) that takes the speech as a mode of action as a way
in which people can act upon the world and especially about others.
Keywords: Teacher. Speech. Language.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
119
Cláudia Graziano Paes de Barros [119-128]
Este texto tratará de alguns dados relacionados a pesquisas
realizadas pelo Grupo de Estudos Linguísticos e de Letramento em
Mato Grosso, que congrega pesquisas que tratam de formação de
professores de língua materna, abordando questões que vão, desde o
ensino-aprendizagem de línguas e transposição didática dos gêneros
discursivos, à escolha e uso de livros didáticos.
Revendo o título deste texto, refletimos que talvez devesse ter colocado,
ao invés de ‘olhar’, no singular, olhares, com um plural bem marcado,
que revelasse não somente o olhar que lançamos para os discursos dos
professores que têm nos ajudado a traçar caminhos para as nossas pesquisas,
que também envolvem a formação de Professores da rede pública do Estado
de Mato Grosso, mas também porque, ao selecionar algumas de suas falas
para este nosso encontro, acabamos por perceber outros fios discursivos,
que desvelam outros olhares: o olhar do ‘outro’, o professor de português,
olhando para os discursos que outros proferem sobre sua prática. Outros
olhares também que encaminham o recorte de dados e o enquadre teórico
e metodológico sobre o qual construímos este texto: tomando o discurso do
professor de língua materna como parte de práticas sociais historicamente
situadas.
A partir dessa perspectiva, buscaremos como aporte teórico as
considerações do Círculo de Bakhtin sobre linguagem (1926; 1992;
2002) e as discussões de Fairclough (1989; 1992; 2001; 2003) que
toma o discurso como modo de ação, como uma forma pela qual as
pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros.
Nesse ponto de vista, compreender o uso da linguagem como
prática social implica compreendê-lo como uma forma de ação
historicamente situada que se constitui socialmente e é constitutiva de
relações sociais, identidades, sistemas de conhecimento e crenças.
Volochinov/Bakhtin (1926), na obra “Discurso na Vida e Discurso na
Arte”, defende que o discurso verbal, tomado no seu sentido mais largo
como um fenômeno de comunicação cultural, deixa de ser alguma coisa
auto-suficiente e não pode mais ser compreendido independentemente da
situação social que o engendra (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 1926, p.03).
120
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discursos do professor de língua materna [119-128]
Em Bakhtin, vemos que a palavra veicula, de um modo privilegiado, a
ideologia; a ideologia é uma superestrutura em que as transformações
sociais da base se refletem na língua que as veicula. Nessa perspectiva, a
palavra serve como um “indicador” das mudanças.
Tendo como pontos de partida esses pressupostos, temos buscado a
interlocução com professores da rede pública do Estado de Mato Grosso,
procurando ouvir suas vozes, de modo que sua palavra possa ser indicadora
de mudanças no contexto do ensino-aprendizagem de Língua Materna. O
que pretendemos nesses encontros é criar um espaço para uma reflexão
crítica das práticas docentes a partir de seu ponto de vista, suas impressões,
seu discurso. Nas palavras de Magalhães (2004, p. 25),
Ao apontar a natureza social e dialógica constitutiva da linguagem o
quadro da pesquisa sócio-histórica/cultural pressupõe um conceito de
ensino-aprendizagem que aponta para um diálogo permanente entre os
discursos dos participantes da interação, que, em geral, não é simétrico
ou harmonioso, uma vez que configura significações de comunidades,
de culturas, e de experiências diferenciadas.
Para este texto, selecionamos algumas dessas vozes, que dividimos
em três grupos: “As imagens e a Língua Portuguesa”, “Valor da Disciplina”
e “O que ensinar”?
1. As imagens e a Língua Portuguesa
[...] Eu cuido da minha postura, eu cuido da minha aparência, cuido do
meu jeito de andar, do meu jeito de expressar, da minha mímica, e eu
procuro assim... ver se tá coordenando meus movimentos, eu acho que
é importante a harmonia em seu corpo com aquilo que você fala, com
suas idéias, tem que tá ligado (Prof. A. A)
[...] eu sempre cobrei uma postura dos meus colegas, uma postura
profissional, a partir do momento que você se dá... é... não é ao luxo...
mas que você se oferece para trabalhar com a língua, como profissional
dela, você tem que ter uma postura de profissional, de uma criticidade,
de um avanço, de uma modernidade... (Prof. J.A.)
[...] acontece que eu não me encontro atualizada pra pisar numa sala do 2º
grau pra dar inglês, não me encontro atualizada e não vou pisar lá pra queimar
a minha imagem de professor de português que eu demorei anos pra construir,
num dia, você queima sua imagem, num dia, numa aula... (Prof. G. A.)
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
121
Cláudia Graziano Paes de Barros [119-128]
[...] Olha, eu me preocupo sim, porque a gente tá dentro de um sistema,
né, então a gente tem que se preocupar com certas coisas, mas não faço
disso uma coisa constante na minha cabeça: tenho que ser assim porque
sou professora de português. Pra mim, o objetivo, tem que ser natural o
mais natural possível, né?[...] primeiro eu sou uma pessoa, eu sou gente,
então de repente eu não vou ser um computador que vai ser perfeito,
mas eu procuro passar uma imagem, né de que eu tenho conhecimento
daquilo com que eu trabalho, com que eu me propus trabalhar, né, eu
procuro... os alunos precisam disso... (Prof. A. A.).
Nesses excertos, observa-se que, quando se trata da imagem do
professor, aparece a palavra ‘postura’ que em alguns relatos remetem
à apresentação física, em outros, relaciona-se com postura profissional.
Tanto na acepção de apresentação física, quanto na de atitude profissional,
pode-se notar um traço comum em ambas: ensinar a Língua Portuguesa
traz responsabilidades, é preciso se apresentar ‘bonito’ ou ‘bem’, que,
no dizer de Padilha (1997, p. 67), confunde-se com um chamamento a
“uma postura profissional”, que denota uma cobrança em “Tom maior”,
não só do fazer e do saber, mas do como mostrar esse saber e esse fazer.
Refletindo, com Bakhtin (2000, p. 50-51), sobre o assunto,
encontramos:
Para dar vida à minha imagem externa e para fazê-la participar do todo
visível [...], o da validação emotivo-volitiva da minha imagem a partir do
outro e para o outro; porque, dentro de mim mesmo, tenho apenas a minha
própria validação interna, uma validação que não posso projetar sobre
minha expressividade externa, pois esta é separada da minha percepção
interna, o que faz com que me pareça ilusória, num vazio absoluto de
valores. Entre minha percepção interna – de onde procede minha visão
vazia – e minha imagem externa, é absolutamente necessário introduzir,
tal como um filtro transparente, o filtro da reação emotivo-volitiva – amor,
espanto, piedade etc. – que um outro pode ter para comigo.
É essa validação emotivo-volitiva da imagem a partir do olhar do
outro que parecem buscar os professores entrevistados: a apreciação
estética do outro sobre o professor traduz-se em apreciação ética sobre
a sua competência profissional. Para os professores entrevistados, essa
‘postura’ (física ou de atitude profissional) é fundamental quando se
trata de ensinar a língua portuguesa:
122
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discursos do professor de língua materna [119-128]
[...] eu sempre cobrei uma postura dos meus colegas, uma postura
profissional, a partir do momento que você se dá... é... não é ao luxo...
mas que você se oferece para trabalhar com a língua, como profissional
dela, você tem que ter uma postura de profissional, de uma criticidade,
de um avanço, de uma modernidade... (Prof. J. A.).
A partir dessas considerações, procuramos investigar o valor da
disciplina para os professores e os outros que lhes lançam olhares.
2. Valor da Disciplina
Uma vez a gente estava conversando, na época eu dava língua, eu disse
que a colega me perguntou: O que é que você leciona? Eu disse – Língua
portuguesa – ela disse: “Eu acho esse nome muito pomposo, eu digo que
dou só português”... (Prof. R. A)
O valor atribuído ao professor de língua portuguesa na escola, vamos
dizer assim, é um mega-valor, eles veem você como uma pessoa
diferente, inclusive quando eles vêm dialogar com você, ele se preocupa
de se manter uma postura que não é o hábito dele, correto? [...] há um
certo forjar de vocabulário na fala, na maneira de falar, na postura, na
procura das palavras, de léxico, de vocabulário... (Prof. J. A)
[...] a gente percebe mesmo até a maneira [...] as pessoas se dirigem a você
diferente, já tenho experiências diversas assim das pessoas às vezes falando
normalmente uma com a outra, tal, e de repente fala comigo, já muda de
tom, muda de entonação usa outras expressões [...] eu já tive experiências
com diretores de escola, é, supervisores, que vão falar comigo toda hora fica
assim: - Eu não sei se falei certo, você que é professor de língua portuguesa,
eu não sei se essa expressão está certa, a senhora deve saber mais porque a
senhora é professora de português... então eu fico assim, falá o que? Eu não
tô preocupada com a maneira com que ele tá falando, mas ele tá, assim se
justificando tudo o que ele tá falando pra mim [...].
[...] Depois eu não sei o que eu escrevi e faltou, acho que uma crase,
ela, minha colega, falou assim: PRO-FES-SO-RA M.! Quando chama de
“Professora M.”, você já percebe a bronca, aí tem... (Prof. M. A).
A questão da tradução de termos, dentro de radicais gregos e latinos, dentro
da biologia, da matemática [...] toda aquela questão técnica da disciplina, ele
acha que o professor de português não pode esquecer, e, além de não poder
esquecer naquele momento, o professor de português tem que guardar
inclusive os nomes de livros e autores pra tá indicando [...] (Prof. J. A).
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
123
Cláudia Graziano Paes de Barros [119-128]
[...] talvez o professor de português se sinta envaidecido porque tá tendo
o privilégio, a oportunidade de ensinar a língua, o vernáculo... (Prof. J. B.).
[...] vejo até com um pouco de tristeza o estigma que tem em volta do
professor de língua portuguesa, sabe, que língua portuguesa é o bicho
de sete cabeças, que é ruim que gramática é péssima... Professor de
português é um horror, matemática a mesma coisa [...] (Prof. S. A).
O papel social do professor de língua portuguesa está vinculado,
na concepção dos professores, ao valor da disciplina, desvelado nas
falas dos professores “J. A.” – um mega-valor, eles veem você como
uma pessoa diferente – e “J. B.” – é o papel de quem tem o privilégio de
ensinar a língua, o vernáculo...
A partir dessa perspectiva de valor, em que o ensinar a língua
materna traduz ‘mais responsabilidade’, mais exigências que partem dos
colegas professores, da instituição escolar, dos pais dos alunos, colocando
o professor ora como alguém bastante avaliado, observado pelos outros
como detentor (protetor, cuidador) de um “saber privilegiado”, veículo de
poder e ideologias, a quem, nesse posto de guardião, não é permitido
errar, esquecer, se ausentar da guarda nem por instante; caso um erro ou
esquecimento, um deslize gramatical ocorra, como exprime a Prof. C., “já
tem bronca...”. Refletindo sobre esses relatos, observamos a expressão língua
portuguesa, traduzida nos excertos apenas como a variante culta da língua
que o professor tem de conhecer e expressar em todas as circunstâncias da
vida social, a língua como veículo de poder e autoridade...
Observamos, nesses excertos, a expressão língua portuguesa
denotando aquilo que Bakhtin (1992) traduz como a palavra enquanto
signo ideológico por excelência; que registra as menores variações das
relações sociais, não somente para os sistemas ideológicos constituídos,
mas também para o que denominou de “ideologia do cotidiano”, que
se exprime na vida corrente, a palavra como o cadinho onde se formam
e se renovam as ideologias constituídas.
Essa renovação das ideologias constituídas que relegam formas
de falar variadas a uma redução da variante culta como única forma
aceitável e permitida ao professor de português, uma variante que ele
124
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discursos do professor de língua materna [119-128]
não pode esquecer ou deixar de usar em quaisquer outras esferas da
vida, não somente a escolar, ocasiona, algumas vezes, o que apontou o
Prof. J. A.: um certo forjar de vocabulário na fala, na maneira de falar, na
postura, na procura das palavras, de léxico, de vocabulário...
Emprestando o conceito de ideologia da Análise do Discurso Crítica,
fundamentada na Teoria de Thompson (1995), vemos que a ideologia,
por natureza, é hegemônica, no sentido de que estabelece e sustenta
as relações de dominação e, por essa razão, serve para reproduzir a
ordem social que favorece indivíduos e grupos dominantes.
Em Fairclough (2003), encontramos a explicação de que ideologias
são, em princípio, representações, que podem ser legitimadas em formas
de ação social e inculcadas nas identidades de agentes sociais. Essas
legitimações são desveladas nas falas dos professores, em expressões
que per si denotam tristeza, estigma, um horror, bicho de sete cabeças...
Tais contextos, aliados a uma formação deficitária, carente de
um bom embasamento teórico, não somente de teorias de ensinoaprendizagem de línguas, mas do conhecimento mesmo da língua
enquanto sistema, ocasionam uma série de confusões (ou problemas)
no contexto do ensino-aprendizagem de língua materna.
Na seção que segue, apresentamos uns poucos excertos que
procuram retratar o professor frente ao que deve ensinar.
3. O que ensinar?
Eu vou falar a verdade, professora, fico muito confusa, porque tem
muita gente que diz que num tá mais na moda ensinar gramática... aí eu
pergunto... como vou mostrar pra eles que aquele verbo está errado, a
conjugação está mal empregada? (Prof. G. A).
[...] Na minha escola, o pessoal tava falando que era pra gente ensinar
através de projeto, daí a gente sentava, planejava projetos interdisciplinares,
botava os meninos pra fazer a pesquisa, tipo, uma pesquisa de ciências,
que a professora de ciências definia o tema, eles pesquisavam, escreviam,
aí eu corrigia os textos para eles prepararem os cartazes, mas o pai vinha
e dizia, num tem aula mais de português? Quando a senhora vai ensinar
verbo, professora? É difícil, entende?... Então, paramos de fazer os projetos
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
125
Cláudia Graziano Paes de Barros [119-128]
e cada um tá fazendo do seu jeito, eu vou seguindo meus livros, um que
trabalha bem os temas dos textos, a interpretação, umas regrinhas... assim...
Olha, esse negócio de fazer cursinhos de reciclagem vai dando um
cansaço na gente... Por que uma hora, tá na moda ensinar texto, outra
hora ninguém mais tá falando em texto por que tá na moda ensinar
gênero [...] (Prof. J. B. A).
Se observarmos as recomendações dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (1998) sobre o ensino língua portuguesa, vemos que este deve
ocorrer a partir de uma visão e de uma dimensão discursiva, em que se
tome o texto como unidade de ensino a partir da qual se realizam as
atividades de ensino-aprendizagem em um eixo USO - REFLEXÃO – USO:
Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade
de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que
o falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua
Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma
prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e
de produção de textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da
análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e
construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente,
ampliar sua competência discursiva (PCN, 1998, p. 27).
O que se observa, no entanto, no discurso dos docentes é uma
profunda distância entre o que preconizam os Parâmetros Curriculares e
a prática dos docentes. Utilizar-se dos gêneros discursivos, desenvolver
projetos, deixar de ensinar gramática... Todas essas noções disseminadas
em breves cursos de capacitação, muitas vezes ministrados por pessoas
mal preparadas, que não promovem conhecimento ou mesmo discussões
e reflexões sobre as atividades que se devem ensinar na escola, acabam
por criar confusão e um esvaziamento das aulas de língua portuguesa, que
muitas vezes se reduzem, hoje, a leitura de textos descontextualizados,
a projetos interdisciplinares em que se perde o foco dos tópicos de
desenvolvimento linguístico que se deveria trabalhar, ocasionando, dessa
forma, a perda dos objetivos e do objeto de seu trabalho.
Os trechos selecionados das falas dos professores são parte dos dados
que coletamos para pensar sobre a organização do curso de formação
126
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discursos do professor de língua materna [119-128]
de professores de Língua Portuguesa para o trabalho com os gêneros
discursivos em salas de aula do Ensino Fundamental, em convênio do
Grupo de Estudos linguísticos e de Letramento em Mato Grosso, vinculado
ao Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato
Grosso e a rede municipal de Várzea Grande, MT. Procuramos, através
dos relatos, entrevistas, depoimentos e diários “ouvir as suas vozes”,
buscando estabelecer as relações dialógicas entre elas. Estamos, neste
momento, entrando nesse diálogo, ora com reconhecimento de cenários
e situações semelhantes aos que já vivenciamos como professoras de
português, ora com espanto, frente à profusão de idéias sobre o que deve
(ou pode) ser ensinado nas aulas de língua materna.
Em Volochinov/Bakhtin (1926, p. 10) os autores defendem que na
poesia, como na vida, o discurso verbal é o um “cenário” de um evento.
No âmbito dessa investigação, procuramos entender o evento, para
que o cenário se descortinasse com mais clareza aos nossos olhos.
Refletimos, com Bakhtin (2000, p. 86) que
O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado
momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios
dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um
dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo no
diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento,
como sua réplica [...].
Não pretendemos, neste momento, fechar as possibilidades de
análises e discussões possíveis, nem apresentar respostas para questões
acerca da formação e das crenças docentes sobre si, sua prática e seu
papel social, fechamos as nossas reflexões neste texto, o qual, como
parte dessa corrente discursiva, não pretende encerrar, mas sim tocar
os infinitos fios dialógicos que têm sido tecidos nas últimas três décadas.
Diante de uma profusão de teorias de ensino-aprendizagem, de
modismos, de falas apressadas de alguns agentes institucionais que, muitas
vezes, nem têm uma formação em um curso de Letras ou Linguística e
procuram impor o que deve ou não ser feito nas aulas de língua materna,
observamos um professor procurando encontrar saídas, respostas...
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
127
Cláudia Graziano Paes de Barros [119-128]
Retomando, nesta conclusão, a perspectiva teórico-metodológica
que traçamos do discurso do professor de língua materna como parte de
práticas sociais historicamente situadas, nossa próxima etapa de trabalho
é refletir sobre esses discursos com os professores, de forma a situarem
seu discurso e sua prática enquanto agentes de transformação social.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. /VOLOCHINOV, Valentin. Discurso na vida e discurso na arte (sobre
poética sociológica). Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. Circulação
restrita, 1926.
______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1992.
BAKHTIN, Mikhail. M. O autor e o herói. In Bakhtin, Mikhail. M. Estética da Criação
Verbal. São Paulo: Martins Fontes, p. 23-220, 2000.
______ O discurso na poesia e o discurso no romance. In: Questões de Literatura e
Estética – a teoria do romance. São Paulo: Editora UNESP- Hucitec, 2002. p.85-106.
______ Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins
Fontes, p. 277-326, 2000.
_________ Apontamentos In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, p.
369-397, 2000.
BRASIL SEF/MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais, Língua Portuguesa, 1998.
FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. New York: Longman, 1989.
________ Discourse and social change. Cambridge: Polity Press, 1992.
________ A análise crítica do discurso e a mercantilização do discurso público: as
universidades. In: MAGALHÃES, Cecília. (Org.) Reflexões sobre a análise crítica do
discurso. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, UFMG, p. 31-82, 2001.
________ Analysing discourse. Routledge: Taylor & Francis Group. London and New
York, 2003.
MAGALHÃES, Cecília. (Org.) A formação do professor como um profissional crítico:
linguagem e reflexão. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.
PADILHA, Simone. J. Olhares sobre o Professor de Língua Portuguesa: um estudo de
Representações Sociais. 1997.
THOMPSON, John. B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995.
128
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
La enseñanza de lenguas desde una perspectiva
cognitiva: foco sobre los fraseologismos
Language teaching from a cognitive perspective: focusing on
phraseology
Elizabete Aparecida Marques
Centro de Ciências Humanas e Sociais
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/ Campo Grande
[email protected]
Resumen: Este trabajo tiene como objetivo general discutir algunos aspectos
de la enseñanza de los fraseologismos a aprendices brasileños de español
como lengua extranjera desde una perspectiva cognitiva. Situado en el
marco teórico de la Teoría Cognitiva sobre la Metáfora y la Metonimia
(TCMM), desarrollada inicialmente por Lakoff y Johnson (1980), buscamos
aplicar sus principios al análisis de algunas unidades fraseológicas del
español y del portugués y, acto seguido, mostrar la importancia de esa
teoría para la enseñanza de los fraseologismos a aprendices brasileños
de E/LE. Los resultados indican que la visión que ofrece la TCMM puede
facilitar la enseñanza y el aprendizaje de muchas unidades fraseológicas.
La motivación metafórica subyacente a los fraseologismos permitirá al
profesor no sólo agruparlos en torno a las imágenes que suscitan, sino
también establecer paralelismos (metafóricos, léxicos, morfológicos y
sintácticos etc.) entre los fraseologismos de la lengua materna y los de la
lengua meta, contribuyendo a su memorización.
Palabras-clave: Enseñanza. Lengua. Cognitivismo. Metáfora. Fraseologismos.
Abstract: The objective of this paper is to discuss some aspects of the teaching of
phraseology units of the Spanish language from a cognitive perspective, as
our theoretical point of view is based on the Cognitive Theory of Metaphor
and Metonymy (CTMM), initially developed by Lakoff and Johnson (1980).
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
129
Elizabete Aparecida Marques [129-141]
Specifically, we have tried to apply the principles of this theory to the
analysis of some phraseological units of Spanish and Portuguese to show
the importance of this theory to the teaching of phraseology units to
Brazilian learners of Spanish as a foreign language. Our discussions
indicate that the vision that the CTMM offers can facilitate the teaching/
learning of phraseology, as the metaphorical motivation of meaning of
these units will make possible to group them according to the images they
raise, enabling the learners to establish parallels (metaphorical, lexical,
morphosyntactic, etc.) between the phraseology of their mother tongue
and target language.
Keywords: Teaching. Language. Cognitivism. Metaphor. Phraseology.
Introducción
En nuestra labor docente en la enseñanza de Español como
Lengua Extranjera (E/LE) en Brasil nos hemos encontrado muchas veces
con las dificultades que presentan los aprendices en su proceso de
adquisición/aprendizaje1 de las unidades fraseológicas. Esas dificultades
se evidencian y son más acentuadas cuando se trata, principalmente,
de aquellas unidades que tienen un alto grado de idiomaticidad. Es
decir, las expresiones que parecen reflejar en su formación léxicosemántica, factores históricos, sociales y culturales de la lengua meta2.
En este sentido, Kövecses & Szabó (1996, p. 326-331) ya señalaban
que los fraseologismos3 constituyen una de las áreas más difíciles del
aprendizaje de una lengua extranjera, tanto para el alumno como para
el profesor, debido a razones prácticas y teóricas.
Podemos decir, incluso, que existe un sentimiento generalizado de
frustración cuando, después de muchas horas de clases y de ejercicios
Cf. Krashen (1981).
En la literatura sobre enseñanza/aprendizaje de lenguas se emplean también los
términos “lengua de llegada”, “segunda lengua” o “L2”.
3
Unidades fraseológica, expresiones fijas, formas plurilexicales, entre otros términos. En los
estudios fraseológicos del portugués generalmente se usa el término expresión idiomática.
1
2
130
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva [129-141]
que objetivan posibilitarle al aprendiz la asimilación de las unidades
fraseológicas, nos sorprendemos con la escasez de su ocurrencia
en las producciones tanto orales como escritas de los alumnos, que
generalmente, emplean las siguientes estrategias:
- el uso de estructuras libres;
- el intento de traducción literal de la expresión correspondiente
en portugués;
- la inadecuación de la construcción sintáctica;
- la solicitación de interferencia al profesor, que a veces desconoce
o no se acuerda de la expresión española, y tiene que investigar en
los diccionarios, lo que le hace aplazar su presentación para otro
momento, cuando la necesidad comunicativa del aprendiz ya no
está en foco.
Relacionamos, anteriormente, la escasez de ocurrencia de las
unidades fraseológicas a las producciones orales de los aprendices
porque entendemos que el uso de los fraseologismos es más bien
pertinente y más abundante en el discurso oral, dadas las condiciones
que favorecen su empleo, es decir, el habla coloquial y espontánea,
propias de este nivel de la lengua.
No obstante, los planteamientos antes expuestos nos han conducido
a una reflexión acerca del tema con el fin de encontrar posibles
respuestas que pudieran arrojar luz a algunas indagaciones iniciales y
que, evidentemente, tienen que ver con las dificultades de nuestros
aprendices:
1. ¿Qué mecanismos utilizan las lenguas en el proceso de formación
de las unidades fraseológicas?
2. ¿Qué hacer para que el aprendizaje de las unidades fraseológicas
ocurra de manera más efectiva?
Para dar cuenta de estas cuestiones, pensamos que la lingüística
cognitiva, especialmente la teoría cognitiva sobre la metáfora y la
metonimia, puede explicar el mecanismo de formación de las UFs y
contribuir a la enseñanza y el aprendizaje de las mismas.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
131
Elizabete Aparecida Marques [129-141]
1. La lingüística cognitiva
La lingüística cognitiva es una rama de la lingüística que surge a
finales de los años ochenta de la mano de algunos disidentes de la
gramática generativa, concretamente, Lakoff y Langaker. Desde el inicio,
se presenta como un modelo integrador y heterogéneo, pues resulta de
la confluencia de distintos enfoques de investigación que comparten
principios comunes sobre el lenguaje y el estudio de las lenguas, por
lo que se puede decir que se trata de un paradigma interdisciplinario.
En líneas generales, los fundamentos principales que definen este
paradigma consisten en la concepción del lenguaje como un fenómeno
de naturaleza cognitiva y simbólica de carácter no autónomo, por lo
que las estructuras lingüísticas están intrínsecamente conectadas con
el conocimiento y el pensamiento y deben entenderse en relación con
la función comunicativa del lenguaje. El conocimiento, a su vez, se
fundamenta en modelos de la experiencia corporal, creados a través de
la actividad sensorial y motora. Así, pues, la lingüística cognitiva plantea
cómo interactúan el cuerpo, la mente y el lenguaje y, en consecuencia,
este último refleja, en cierta medida, la estructura de la experiencia,
incluida la experiencia del mundo. La lingüística cognitiva da mucha
importancia a la interrelación de la semántica y la pragmática, lo que,
entre otras implicaciones, conlleva la idea de que existe una relación
entre los componentes de la gramática, que, a su vez, se concibe como
una entidad de carácter dinámico, siempre cambiante por el uso.
1.1. Metáfora y metonimia: fenómenos fundamentales de
motivación fraseológica
Para el estudio de las unidades fraseológicas, resulta de especial interés
los conceptos de metáfora y de metonimia. La semántica cognitiva define la
metáfora como un mecanismo cognitivo de organización e interpretación
del mundo, por lo que, según Lakoff y Johnson (1980), forma parte de la
vida cotidiana del ser humano. Por medio de este mecanismo, el individuo
organiza el mundo a partir un proceso de relaciones de similitud, analogía y
transferencia semántica entre los dominios del conocimiento, estableciendo
para ello, correspondencias de tipo ontológico, estructural y espacial
132
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva [129-141]
entre un dominio denominado fuente y otro dominio denominado meta,
mientras que la metonimia es un mecanismo referencial que establece
relaciones dentro de un mismo dominio.
Gran parte de los significados figurados de muchas unidades
fraseológicas (UFs) son parcialmente motivados (y no enteramente
arbitrarios) por diferentes metáforas conceptuales que proyectan la
información desde un dominio conceptual (dominio fuente) hasta otro
dominio (dominio meta). Así, los significados literales e idiomáticos
interactúan en el lexicón mental de los hablantes, de manera que se
establece una estrecha relación entre la base de motivación metafórica
y el significado unitario de la unidad fraseológica. Por eso, una
unidad fraseológica no se configura únicamente como una expresión
que tiene un significado especial con relación al significado de sus
partes constituyentes. Surge del conocimiento general del mundo
(corporeizado en nuestro sistema conceptual).
En consecuencia, las personas deben de tener un conocimiento
tácito de la base metafórica de las expresiones, puesto que los
significados idiomáticos están motivados por imágenes convencionales
y metáforas conceptuales, lo que guía el proceso interpretativo. La
motivación metafórica y metonímica permite la agrupación de las
unidades fraseológicas pertenecientes a un campo –dominio meta- de
acuerdo con sus ámbitos conceptuales figurativos –dominios fuentes-.
De esta manera, la metáfora es pertinente al modelo cognitivo ya
que constituye generalmente creaciones personales del hablante que se
han establecido en la lengua o están en vías de hacerlo como estructura
de discurso repetido, convirtiéndose en combinación fija de palabras,
es decir, en unidad fraseológica. En otras palabras, procedimientos
como la metáfora y la metonimia han posibilitado la fosilización de un
enunciado figurado.
A continuación presentaremos algunos tipos de metáfora que están
en la base de la constitución fraseológica. Los ejemplos de unidades que
ofrecemos se han extraído del Diccionario Fraseológico Documentado
del Español Actual y de los diccionarios Houaiss y Aurelio de la lengua
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
133
Elizabete Aparecida Marques [129-141]
portuguesa. Entre la tipología metafórica, propuesta por Ruiz Gurillo
(2001), podemos encontrar muchas locuciones que se estructuran en
torno a:
1. Metáforas orientacionales: generalmente se construyen en
torno a la idea de movimiento en sentido “hacia arriba/abajo”, “hacia
la derecha/izquierda”. Específicamente, en torno a la noción de que
“más es arriba”; “menos es abajo”, como ocurre en las locuciones
adverbiales hasta las narices, hasta la coronilla, hasta el gorro, hasta el
culo, hasta la polla, hasta la coña etc., que según Ruiz Gurillo (2001),
“conceptualizan la idea como espacio físico en términos de más o
menos”.
Así, la idea de “hartazgo” aparece a partir de la señalización de
un límite físico encontrado en la parte superior del cuerpo en términos
de más o menos. Si contrastamos con la locución equivalente en
portugués “estar até o pescoço”, “estar de saco cheio”, se nota que hay
también una idea de cuerpo como espacio físico para señalar, en el
primer ejemplo, hasta que punto uno soporta determinada situación o
que este espacio (“los cojones”) ya está lleno, es decir, ya ha agotado su
límite, idea que prevalece en el segundo ejemplo.
2. Metáforas conceptuales: en este grupo se encuentran las unidades
fraseológicas que constituyen formas de considerar acontecimientos,
actividades, emociones, ideas etc., como entidades y sustancias. De
esta manera, muchas locuciones se construyen a partir de la noción
del campo visual como un recipiente, pues conceptualizamos lo que
vemos como parte integrante del espacio que dominamos con la vista.
Son ejemplos las locuciones a un tiro de piedra, a la vuelta de la esquina
(para expresar proximidad espacial o temporal), pasar de largo (con el
sentido de ignorar algo), que en portugués se construyen a partir del
empelo de otras imágenes que no coinciden con ésas.
Por otro lado, hay locuciones que comportan una imagen
esquemática que permite establecer o reconocer semejanzas entre los
134
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva [129-141]
objetos o hechos físicos y las situaciones. Así, en las locuciones sin tapujo,
sacar la lengua (a uno), que expresan, respectivamente, las ideas de
claridad y burla tienen un hecho físico como mecanismo originario e
instrumento motivador del nuevo sentido figurado, cuya interpretación
puede estar garantizada por el proceso de inferencia del interlocutor. Es
decir, en las expresiones originarias de procedimientos metafóricos y
metonímicos, el trasvase semántico puede resultar de procedimientos
inferenciales posibilitados por el conocimiento de mundo, el
conocimiento del contexto sociolingüístico y cultural compartido por los
interlocutores. Esta perspectiva se basa en la idea general de que parte
de nuestras creencias, conocimientos e ideas son producto de nuestra
experiencia perceptual y de nuestro desarrollo conceptual y verbal. De
esa manera, la formación de las unidades fraseológicas es, por un lado,
producto de nuestra experiencia perceptual del mundo, y por otro,
producto de construcciones discursivo-culturales que interiorizamos a
partir de nuestras prácticas discursivas ligadas a entornos y contextos
diversos.
En esta misma línea, Iñesta Mena y Pamies Bertrán (2002) crean un
modelo metodológico, denominado modelos icónicos y archimetáforas.
Aplicando este modelo a ejemplos más concretos, la metáfora particular
“estar hasta las narices” tiene un dominio meta, en este caso, la idea de
“hartazgo”, o en términos más generales, la idea de ira, y está basada
en un modelo icónico, en este caso, una combinación de dominios
fuente (movimiento + cuerpo), es decir, en una archimetáfora cuyo
movimiento corporal va hacia arriba.
Para demostrar que los modelos icónicos como las archimetáforas
se repiten en el análisis de otros dominios y en otras lenguas, se
presentan ejemplos en los que el modelo icónico (movimiento +
cuerpo) es aplicable a otros dominios meta, como por ejemplo, el
miedo, la ira y el trabajo. Estableciendo comparaciones entre el español
y el portugués tendríamos los dominios conceptuales que se presentan
a continuación.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
135
Elizabete Aparecida Marques [129-141]
1. El miedo
Entre las imágenes que suscita el miedo destaca la que relaciona esa
emoción a un movimiento corporal vibratorio. Este modelo metafórico
se apoya en la idea de descontrol desde una motivación natural, es
decir, la metonimia efecto-causa. Aunque las lenguas pueden diferir
en qué partes anatómicas eligen para simbolizar el miedo a través del
movimiento involuntario, lo que sí es común y muy productivo en todas
ellas es la pérdida de control sobre la motricidad. Ocasionalmente, a
dicha metonimia se le añade otra metáfora que proyecta la forma de
vibrar de ciertos objetos o sustancias (vibrar como un flan, por ejemplo),
como puede observarse en las siguientes unidades:
ESPAÑOL
PORTUGUÉS
Temblar de miedo
Tremer de medo
Estremecerse de miedo
Tremer de susto
Temblarle las piernas (a alguien)
Tiritar de susto
Temblarle las carnes (a alguien)
Tremer nas bases
Dar diente con diente
Tremer as pernas
Temblar como un azogado
Sentir o coração aos pulos
Temblar como un flan
Tremer como vara(s) verde(s)
Estar como un flan
Tremer como un ramo
Temblar como un azogue
2. La ira
El segundo modelo icónico que estudian Iñesta Mena y Pamies
Bertrán (2002, p.129-150) es la expresión de la ira, cuyos dominios
fuente son en buena medida los mismos que intervienen en la expresión
del miedo. No obstante, la ira va casi siempre relacionada con la
temperatura. De esta manera, el cuerpo se ve como un recipiente cuyo
contenido se calienta a causa de la ira y que, si se calienta hasta cierto
punto límite, se produce explosión o fuego. Este mecanismo se verifica
incluso por simetría en expresiones antónimas. Es decir, la imagen del
136
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva [129-141]
frío se usa para describir el control de los sentimientos, especialmente
el de la ira. Obsérvense como la relación cuerpo-temperatura se
manifiesta en las expresiones abajo:
ESPAÑOL
PORTUGUÉS
Ponerse a cien
Explodir de raiva
Estar que arde (alguien)
Ficar esquentado
Echar rayos y centellas
Deitar fogo pelos olhos
Echar fuego por los ojos
Soltar faíscas pelos olhos
Echar chispas
Cuspir fogo*
Echar centellas/chiribitas
3. El trabajo
Según Iñesta Mena y Pamies Bertrán (2002, p.209), existe una
gran cantidad de unidades fraseológicas relacionadas con el concepto
de trabajo. Dichas expresiones aluden a la idea de esfuerzo, sea físico
o mental. Dentro de este concepto, aparece el modelo icónico según
el cual el trabajo, en este caso de la mente, es un calentamiento del
cuerpo:
ESPAÑOL
PORTUGUÉS
Cocerse los sesos
Cozinhar os miolos
Calentarse los sesos
Esquentar os miolos
Calentarse los cascos
Esquentar o cérebro
Calentarse la cabeza
Esquentar a cabeça
1. La enseñanza de los fraseologismos desde una perspectiva cognitiva
Tras abordar ciertos aspectos cognitivos relacionados a los
mecanismos de construcción y fijación de las unidades fraseológicas
a partir de los presupuestos teóricos de la teoría cognitiva sobre la
metáfora, nos parece útil e interesante reflexionar sobre el proceso de
enseñanza/aprendizaje de dichas unidades.
Partimos del supuesto de que en el proceso de adquisición
lingüística, los seres humanos van adquiriendo gran cantidad de
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
137
Elizabete Aparecida Marques [129-141]
estructuras fraseológicas que se van integrando a su conocimiento
enciclopédico cultural, social y del medio en que viven. Según
Levorato y Cacciari, citadas por Ruiz Gurillo (2001), las etapas de
adquisición de las estructuras idiomáticas están condicionadas por el
desarrollo del lenguaje y por el desenvolvimiento de otras capacidades
cognitivas. En su estudio, las autoras demostraron que a los siete
años, aproximadamente, el niño ya es capaz de comprender y usar
expresiones idiomáticas. Tal estudio, referente principalmente a las
locuciones verbales, demuestra que el contexto es el elemento más
importante para su correcta interpretación y producción. Otros factores
como la familiaridad con la estructura, actúan de forma secundaria.
De hecho, como postula Ruiz Gurillo (2001), “el niño procurará una
interpretación coherente usando las diversas formas de interpretación
que se encuentran a su alcance como el contexto, la familiaridad,
etc”. Cuando no se puede interpretar una estructura de forma literal
se procurará su interpretación a partir del contexto. En este proceso,
la estructura semántica y la transparencia de la combinación figurada
desempeñan un importante papel.
De la misma manera que las metáforas, la ironía o los chistes, las
expresiones idiomáticas son construcciones, generalmente, ambiguas que
pueden provocar dificultades de comprensión y producción, tanto oral como
escrita, a los aprendices de lenguas extranjeras (LE). Ya que la mayoría de las
expresiones idiomáticas se constituyen en sintagmas fijos que forman parte
del acervo cultural de un pueblo, cuesta mucho aprender las expresiones de
una lengua, su forma, su significado y sus condiciones de uso.
En lo que se refiere a la enseñanza/aprendizaje de lenguas son
frecuentes las referencias a las dificultades, como también apuntamos
anteriormente, que supone aprender las unidades fraseológicas de
una lengua extranjera. El carácter definitorio y, a la vez, peculiar de
las unidades fraseológicas: ser una combinación fija de palabras y, en
muchas ocasiones, presentar un significado que no se puede desprender
del significado de los elementos que la constituyen, justifica la dificultad
que tiene, por ejemplo, el aprendiz brasileño de español como lengua
138
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva [129-141]
extranjera para incorporar a su competencia comunicativa tales
unidades. No obstante, como destaca Penadés Martínez (1998, p. 7),
las dificultades no existen solamente en la parte discente y no se
relacionan de modo exclusivo al carácter intrínseco de las unidades
fraseológicas. Según la autora, para el profesor de ELE resulta muy
complejo enseñarlas no sólo por la fijación formal por su idiomaticidad,
sino también por la carencia de investigaciones que indiquen que
expresiones se deben enseñar en cada nivel, por la escasez de material
específico sumada a la falta de conveniencia que presentan, en general,
los libros de texto y diccionarios y, finalmente, por la falta de adecuación
de algunos procedimientos didácticos empleados en la presentación de
estas unidades a los alumnos.
Nos surgen algunas propuestas que podrían arrojar luz a la
cuestión. Primeramente, planteamos la enseñanza/aprendizaje
de lenguas dentro de un modelo comunicativo que posibilite al
aprendiz vivenciar, experienciar la lengua meta a partir de situaciones
reales de comunicación. Es decir, poner el alumno en contacto con
muestras discursivas que contextualicen el sistema lingüístico que
está aprendiendo. De ahí surge también la necesidad de materiales
auténticos que posibiliten el trasvase de informaciones sociolingüísticas
y socioculturales, que generalmente son transmitidas por medio de las
situaciones de uso de la lengua meta.
En lo que se refiere al aprendizaje de las unidades fraseológicas,
aparte de materiales adecuados para su presentación, se hace necesario
que el profesor sensibilice al alumno acerca de los factores históricos,
sociales y culturales que han colaborado para la formación de las tales
unidades, principalmente cuando éstas reflejan la visión de mundo,
convertida en imágenes mentales, de los hablantes que las utilizan.
Quizás el confronto de las unidades fraseológicas de la lengua meta
con las unidades de la lengua materna del aprendiz pueda contribuir
para su concienciación lingüística/cultural.
Consideraciones finales
A modo de conclusión, la realización de este trabajo indica que la teoría
cognitiva de la metáfora y la metonimia se revela como un instrumento
de gran utilidad para explicar el origen de muchas unidades fraseológicas.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
139
Elizabete Aparecida Marques [129-141]
En gran medida, este paradigma consigue explicar algunos fenómenos,
como, por ejemplo, la relación entre el significado literal y el significado
fraseológico. De ahí que podamos apuntar la metáfora y la metonimia
como dos fenómenos fundamentales de motivación fraseológica.
Al observar la motivación metafórica de unidades de diferentes
lenguas, en este caso el español y el portugués, se nota la existencia
de un principio metafórico bastante similar que da lugar al origen de
unidades parecidas en las dos lenguas. De este modo, establecer las leyes
universales del pensamiento imaginativo y asociativo del hombre, pues
el mundo se encuentra reflejado en el lenguaje a través de imágenes.
Por eso, los conceptos podrían ser universales y esta universalidad de
los conceptos constituiría la base de la inferencia fraseológica.
Sin embargo, como advierten algunos investigadores, este
mecanismo sufre también la influencia de factores socioculturales.
Desde el punto de vista aplicado, estamos de acuerdo en que la
visión que ofrece la semántica cognitiva puede facilitar la enseñanza
y el aprendizaje de muchas unidades fraseológicas. La motivación
metafórica subyacente a los fraseologismos permitirá al profesor no
sólo agruparlos en torno a las imágenes que suscitan, sino también
establecer paralelismos (metafóricos, léxicos, morfológicos y sintácticos
etc.) entre los fraseologismos de la lengua materna y los de la lengua
meta, contribuyendo a su memorización por parte de los aprendices.
Estudios empíricos orientados a averiguar los resultados de la enseñanzaaprendizaje de las unidades fraseológicas, a partir del marco cognitivo,
a aprendices brasileños de español como lengua extranjera podrían
comprobar o falsear la eficacia del modelo en este ámbito.
Referências
CUENCA, María José; HILFERTY, José. Introducción a la lingüística cognitiva. Barcelona:
Ariel, 1999.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda Dicionário Aurélio eletrônico – século XXI. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
140
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva [129-141]
FORMENT FERNÁNDEZ, María del Mar. La didáctica de la fraseología ayer y hoy: del
aprendizaje memorístico al agrupamiento en los repertorios de funciones comunicativas.
In: MORENO Francisco; GIL, María; ALONSO, Kira. (Eds.). La enseñanza del español
como lengua extranjera: del pasado al futuro. Actas del VIII Congreso Internacional de
ASELE. Alcalá de Henares: Publicaciones de la Universidad de Alcalá de Henares, pp.
339-347, 1998.
HOUAISS, Antonio. Diccionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, Rio de
Janeiro, Objetiva, 2002.
IÑESTA MENA, Eva María; PAMIES BERTRÁN, Antonio. Fraseología y metáfora: aspectos
tipológicos y cognitivos, Granada: Método Ediciones, 2002.
KÖVECSES, Zoltán; SZABÓ, Péter. Idioms: a view from cognitive semantics. Applied
Linguistics, 17, 3; 326-355, 1996.
KRASHEN, Stephen. Second language acquisition and second language learning. Oxford:
Pergamon Press, 1981.
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors we live by, Chicago. Chicago: The
University of Chicago Press, 1980.
PENADÉS MARTÍNEZ, Inmaculada. Materiales para la didáctica de las unidades
fraseológicas: estado de la cuestión. Revista de Estudios de Adquisición de la Lengua
Española, 9-10, pp. 125-145, 1998.
RUIZ GURILLO, Leonor. La fraseología como cognición: vías de análisis. Lingüística
Española Actual, XXIII/1, pp. 107-132, 2001.
SECO, Manuel; ANDRÉS, Olimpia; RAMOS, Gabino. Diccionario fraseológico
documentado del español actual, Madrid: Aguilar, 2004.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
141
Análise do Discurso
Discurso indígena: imagens projetadas pelo
imaginário
Aboriginal speech: projected images by the imaginary one
Rita de Cássia Pacheco Limberti
Faculdade de Comunicação, Artes e Letras
Universidade Federal da Grande Dourados
[email protected]
Melhor jeito que achei para me reconhecer foi fazendo o contrário
(Manoel de Barros)
Resumo: O objeto deste estudo é a construção de imagens como parte de
uma teoria semiótica de análise do discurso, especificamente a construção
de imagens do Índio, através de textos e de discursos. O objetivo deste
trabalho é realizar uma investigação das formas de representação do
índio da Reserva Indígena Kaiowá de Dourados - Mato Grosso do Sul
(MS). Como foco da análise, procura-se estabelecer uma relação entre
imagem e fala, ou seja, a trajetória narrativa das imagens e identificar
as representações que os discursos configuram. A palavra imagem,
mais do que uma representação visual, deve ser entendida também
como representação ideológica, como um conjunto de ideias. Diferentes
formações sociais produzem diferentes formas de representação e
interpretação de imagens; ainda não há uma imagem universal como ícone
das representações e interpretações. É como se ela fosse a síntese de tudo o
que estamos tentando representar ou interpretar. Como uma representação,
a imagem provoca os sentidos; como a interpretação, ela catalisa.
Palavras-chave: Discurso do Índio. Identidade. Alteridade. Transculturalidade.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
145
Rita de Cássia Pacheco Limberti [145-157]
Abstract: The object of this study is the construction of images as part of a theory
semiotics of analysis of the speech, specifically the construction of images
of the Indian, through texts and of speeches. The objective of this paper
is to carry through an inquiry of the forms of representation of the indian
of the Reserva Indígena Kaiowá de Dourados - Mato Grosso do Sul (MS).
As focus of the analysis, it is looked to establish a relation between image
and speaks, that is, the trajectory narrative of the images and to identify
the representations configured by the speeches. The word image, more
than what a visual representation, must also be understood as ideological
representation, as a set of ideas. Different social formations produce
different forms of representation and interpretation of images; not yet has
a universal image as icon of the representations and interpretations. It is
as if it was the synthesis of everything what we are trying to represent or
to interpret. As a representation, the image provokes the directions; as the
interpretation, it catalysis.
Keywords: Speech of the Indian. Identity Alterity. Transculturality.
Considerações semânticas
Identidade - [Do lat. escolástico identitate] s.f. 1. Qualidade de
idêntico: Há entre as concepções dos dois perfeita i d e n t i d a d e. 2.
Conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome,
idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões digitais etc.
3. Reconhecimento de que um indivíduo morto ou vivo é o próprio. 4.
Carteira de identidade. 5. Mat. Relação de igualdade válida para todos
os valores das variáveis envolvidas (FERREIRA, 2010, p. 815).
Identificação - s.f. 1. Ato ou efeito de identificar (-se). 2.
Reconhecimento duma coisa ou dum indivíduo como os próprios
(FERREIRA, 2010, p. 815).
Identificar - [Do lat. Identicu + -ficar) V.t.d. 1. Tornar idêntico, igual:
A individualidade é tão forte que é impossível i d e n t i f i c a r duas
pessoas. 2. Determinar a identidade (2) de: Tentava-se i d e n t i f i c a r
os acidentados. 3. Fazer de (várias coisas) uma só: Um raciocínio rigoroso
146
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso indígena [145-157]
não pode i d e n t i f i c a r categorias diferentes. T. d. e i. 4. Tornar
idênticos: Sua atuação o i d e n t i f i c a aos desonestos P. 5. Tomar
o caráter de. 6. Confundir o que é seu com o alheio; compenetrar-se
do que outrem sente ou pensa. 7. Conformar-se, afazer-se, ajustar-se
(FERREIRA, 2010, p. 815).
Identificável - Adj. 2. g. Que pode ser identificado. (FERREIRA, 2010,
p. 815). Muito interessantes as relações de contraste semântico entre os
significados dessas palavras. Ao mesmo tempo em que idêntico significa
“perfeitamente igual”, identidade é sinônimo de “2. conjunto de caracteres
próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo,
defeitos físicos, impressões digitais etc ou 5. Mat. Relação de igualdade válida
para todos os valores das variáveis envolvidas” (FERREIRA, 2010, p. 815).
Guardadas as condições contextuais em que tais vocábulos são
empregados, ainda assim, por se tratar de um termo tão marcadamente
empregado para designar individualidade (curiosamente gerada pela
coletividade) e diferenciação, torna-se, no mínimo, estranho que a palavra
identificar possa significar “P. 5. Tomar o caráter de 6. Confundir o que é seu
com o alheio; compenetrar-se do que outrem sente ou pensa. 7. Conformarse, afazer-se, ajustar-se” (FERREIRA, 2010, p. 815). É como se as próprias
palavras perdessem a identidade para identificarem-se com as situações de
uso, como se o contexto fosse o meio social e a significação fosse a identidade.
Interessante, no entanto, é notar que a construção de identidade
(enquanto conjunto de caracteres próprios e exclusivos) se dá através
da identificação (enquanto P. 5. Tomar o caráter de 6. Confundir...)
grupal que, intensificada, assume proporções tais que identidade passa
a ser um traço comum.
É exatamente essa forma de identidade que será abordada, mais
exatamente a discursivização da perda desse conjunto de características
que distingue o agrupamento humano que vive na Reserva Indígena de
Dourados- MS como povo Kaiowá. Esse conjunto de características constitui
um traço distintivo em relação a outras comunidades e, por oposição, um
traço comum entre os elementos da própria comunidade Kaiowá.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
147
Rita de Cássia Pacheco Limberti [145-157]
Os conceitos de identidade começam a se delinear no interior de
cada grupo étnico: significados 5 e 6 do dicionário, quais sejam, 5. Tomar
o caráter de. 6. Confundir o que é seu com o alheio; compenetrar-se
do que outrem sente ou pensa (FERREIRA, 2010). Existem fortes traços
pertinentes, de toda ordem, físicos ou culturais, a tal ponto que o uso do
artigo definido para designar índio perde seu valor restritivo para adquirir
um caráter globalizante e grupal, ou seja, todo e qualquer elemento do
grupo é designado por ele da mesma maneira que é designado pelo artigo
indefinido. O referente de índio é uma figura única e bem definida, que
qualquer elemento daquele grupo étnico pode preencher.
Podemos conceber o termo identidade dividido em dois conjuntos:
o conjunto das similaridades e o conjunto das diferenças.
1. Identidade e cultura
Em primeiro lugar é importante observar que, em se tratando de
identidade relacionada à cultura, se lida simultaneamente com dois
sujeitos: um sujeito individual, um homem, um exemplar unitário do
grupo (cada um dos membros da tribo); e um sujeito coletivo, o Kaiowá,
que mais que uma pessoa é um conceito, um simulacro que deve ser
preenchido individualmente pelos membros do grupo.
As estratégias de que esses membros lançam mão para configurar
sua identidade individual são baseadas em escolhas (querer) enquanto
aquelas que configuram sua identidade kaiowá, coletiva, baseia-se em
imposições (dever).
No primeiro caso, o índio conduz-se por um comportamento
relativamente universal, de que cada ser humano se serve toda vez
que, em presença do outro, destaca algumas de suas características,
formando um bloco identificador de sua personalidade, de seu modo
próprio de ser que, por sua vez, deverá pontuar a sua relação com o
outro e vice-versa.
No segundo caso, o da identidade coletiva, existe uma conduta préestabelecida, a ser seguida como uma norma. Algumas particularidades,
entretanto, desautorizam, hoje, tanto a conduta quanto a norma.
148
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso indígena [145-157]
Explicando: a formação do conjunto de princípios que configuram
o padrão do modo de ser kaiowá deu-se no seio da comunidade e,
durante séculos, foi acatado por seus membros e reforçado pela prática
por parte de cada um deles. A partir do momento em que travaram
contato com a cultura branca, de padrão cultural muito diferente, a
posição de contrariedade produziu em seus hábitos e costumes e no
universo filosófico-religioso um sentido de exotismo que, mediante a
exposição contínua e prolongada aos hábitos e costumes e ao universo
em oposição, foi ganhando aos poucos conotações pejorativas.
A partir dessa situação, o padrão do modo de ser kaiowá começa a
sofrer desacato por parte de seus membros e, ao invés de ser praticado,
passa apenas a ser reproduzido de maneira acentuadamente artificial.
Desse modo, sua indumentária, suas danças, seus rituais, seus mitos e
crenças e suas estórias passam a ser o texto da cultura cujo código se
perdeu, um texto sem língua (LANDOWSKI, 1997, p.1-2). O sujeito
erigido coletivamente perde seu referencial, deixa de ser definido
por ele para ser definido pelo outro. Antes, o outro para ele era seu
espelho, com quem ele se identificava (conjunto de similaridades),
hoje o outro “é outro”, seu oposto contraditório, que golpeia, com
o conjunto das diferenças, sua identidade kaiowá que aquele outro
define por oposição.
Essas relações intersubjetivas de identidade manifestamse essencialmente no discurso, onde tiveram sua origem, pois
ele representa o acesso às especificidades, à identidade, porque
a palavra é a materialização desse processo, que se espelha no
próprio discurso. Então se tem um discurso em português, que
mesmo em situação de especificidade, onde o sujeito é portador
de outra língua materna e se dirige ao portador da língua em
que ele está enunciando, mesmo assim, contendo esse fator
limitante, estão presentes duas vozes, a voz do índio e a voz do
branco, que particularizam o modo de significação desse discurso,
transcendendo seu modo de funcionamento ao sincretizar
formações ideológicas e referenciais culturais diferentes.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
149
Rita de Cássia Pacheco Limberti [145-157]
Observar como o índio apresenta a identidade kaiowá nos
discursos para o branco é um dos meios de poder-se aquilatar o grau de
comprometimento em que ela se encontra e a partir daí fazer relações
com a manifestação das duas vozes nos referidos discursos.
2. As marcas da identidade
Não se pode falar de identidade sem falar de relações do mesmo
modo que não se pode falar de relações sem falar de papéis sociais. O
contato entre os indivíduos estabelece uma relação de injunção mútua, não
restrita à individualidade, demarcando um campo de referências, como
um tabuleiro de xadrez. À medida que essas demarcações configuram
campos de referências diferentes, os indivíduos, que são naturalmente
sujeitos e metaforicamente “peças do jogo”, vão adquirindo valores,
papéis e limitações diferentes, de acordo com a formação ideológica
em que estejam inseridos (“regras do jogo”). Analogamente, o conjunto
de peças de cada tipo de jogo pode ser considerado um grupo cultural
diferente, com ideologia e valores próprios.
A partir do contato intercultural, a identidade passa a possuir vários
tipos de assimetrias: étnicas, sociais, políticas, que se hierarquizam segundo
seu grau de legitimidade. Um processo de remessa de valores e pontos de
vista desencadeia-se em mão dupla, transportando significações e recortes,
que vão sendo internalizados pelos grupos em diferentes proporções. O
patrimônio cultural de cada grupo coloca-os, um em relação ao outro, em
posição de resistência e defesa a partir de um pré-julgamento que tende a
desqualificar os valores do outro em benefício da constituição de um padrão
ideal a partir de si mesmo. Não considerando que a outra interage da mesma
maneira, cada formação social reserva-se o direito exclusivo de permanecer
autêntica, sem qualquer forma de interferência, o que vai se acentuando e
definindo, por meio desse jogo de forças entre o grupo dominador e o grupo
dominado. Paralelamente ao programa de dominação, que é um programa
de manipulação constante, um processo de estranhamento desenvolve-se
em graus crescentes, de modo a configurar aos olhos de ambos os grupos
uma visão ridicularizada do grupo dominado e uma visão de padrão
exemplar do grupo dominador (LANDOWSKI, 1997, p. 2).
150
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso indígena [145-157]
As identidades, postas em oposição, revelam-se, uma à outra,
evidenciando seus traços característicos, que passam a ser distintivos.
O conjunto de estereótipos que cada identidade encerra determina,
ao mesmo tempo, o modo de ser do “um” (portador da referida
identidade) e do “outro” (sujeito que se opõe a ela), transformando-se
num referencial. Considerando-se, contudo, que semioticamente toda
relação implica uma manipulação, observa-se o estabelecimento de uma
assimetria desencadeada por uma situação econômica, política e social
díspar, em que a própria condição privilegiada cultua e alimenta, de um
lado, um padrão de vida ideal a ser seguido e, de outro lado, um modus
vivendi que tão mais negativamente será avaliado quanto mais se afastar
do eixo de normalidade estabelecido a partir do referencial oponente.
Não se pode deixar de observar, entretanto, que o grupo
discriminado por sua alteridade, manipulado para reproduzir o padrão
do dominador, não deixa de repudiá-lo ao internalizá-lo. Então, isso
que a princípio pode parecer uma contradição passa a ser interpretado
como a gênese de um processo de adaptação que se justifica pelo que
se poderia chamar de “instinto de preservação da cultura”, ou seja, é
preciso aceitar e adotar alguns novos hábitos para não sucumbir. Para
que tudo permaneça é preciso que tudo mude (LAMPEDUSA).
Um dos fatores sobre o qual o índio se alicerça é a posse do
território, que legitima sua presença e sua origem e coloca o “outro” na
incômoda e desfavorável posição de intruso. Além disso, cada um dos
caracteres de sua identidade forma um patrimônio de valor inestimável,
capaz de suportar a pressão exercida pelas disparidades já citadas entre
as situações políticas, econômicas e sociais. O processo histórico em
que tudo isso se deu criou um ambiente de coesão grupal, em que cada
elemento compõe e vê com os demais uma realidade praticamente
imutável. Essa é a força de resistência que mantém a voz do índio na
superfície do discurso, quebrada, eventual, porém sistematicamente
pela força de penetração da voz do branco. Essa força mantém,
ainda, a identidade como um todo na superfície, na exterioridade
(origem genética e territorial), porque é mantida na interioridade pelos
elementos básicos de sua formação: o idioma e a ideologia.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
151
Rita de Cássia Pacheco Limberti [145-157]
Toda essa manifestação exterior, que abrange desde o aspecto
físico até as múltiplas formas de comportamento mediante as variadas
situações, foi engendrada no interior da convivência por um processo de
espelhamentos e ressonâncias, de modo que cada um represente para o
outro o que representa para si mesmo. Assim, pelo princípio de alteridade,
um índio tão mais evidentemente parecerá índio aos outros quanto
se aproximar de seus iguais. Existe um padrão, como uma caricatura,
cristalizado no ideário da sociedade circundante a partir dos primeiros
contatos, que controla esse quadro de referências e a que o próprio
índio recorre ao sentir seu reconhecimento ameaçado. A identidade é
um simulacro que cada um faz a si mesmo a partir do outro e vice-versa.
A identidade é um jogo de simulacros (LANDOWSKI, 1997, p. 1).
3. O sujeito e as circunstâncias
O aspecto dinâmico da relação sujeito - discurso — o outro tende
a cristalizar as posições polarizadas com certa rigidez, mascarando a
condição de existência circunstancial, que cada um desses elementos tem.
Em se focalizando especialmente a identidade, a fixação das
posições e da forma de existência do sujeito, do discurso e do outro
apresenta uma rigidez maior porque existe uma ideia de imutabilidade
implícita no conceito de identidade, principalmente em se tratando da
identidade do índio.
Muitas vezes a fala do índio enfoca particularmente o eu, muitas
vezes colocado em 3ª pessoa, o que conota o estranhamento inerente
ao exercício da subjetividade. Em situações de enunciação, ocorre de o
sujeito passar durante todo o tempo entre a 1ª e a 3ª pessoas para falar
de si mesmo. Vários caminhos poderiam proporcionar uma abordagem
bastante interessante sobre a questão, como o da psicanálise, o da
antropologia, o da sociologia, ou o da história, entretanto elegemos a
teoria semiótica como o farol do que se poderia chamar de a captura
desse sujeito camaleônico (LANDOWSKI, 1997, p. 8).
Entenda-se por isso a circunscrição de um ambiente teórico com
a intenção de, ao mesmo tempo, controlar a interpretação dos dados e
152
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso indígena [145-157]
dilatar a abrangência dessa interpretação, posto ser a Semiótica capaz
de trilhar todos os outros caminhos teóricos citados sem sair de seu
campo de atuação: a significação.
O ponto de partida desta análise é apontado pela existência de
um sujeito (índio) cuja produção discursiva é exposta a outro (branco),
que se opõe a ele para defini-lo como índio, ao mesmo tempo em que
desencadeia um processo de anulação de sua condição existencial de ser
índio. Esse processo pauta-se pelas alterações provocadas no conjunto
de características próprias do modo de ser do índio, a que se chama
identidade.
O ponto crucial desse processo parece ser a transcodificação
idiomática que seu discurso sofre, refletindo nas demais alterações em
cascata, partindo da visão de mundo e da construção da realidade que
a linguagem proporciona a partir de um código linguístico.
Há, ainda, outros pontos. O primeiro ponto a ser considerado é
a refração que a visão da realidade sofre com a mudança de idioma e
com o próprio contato intercultural. Ao enunciar-se, expor sua situação,
o índio aponta os passos do processo aculturativo e seus autores. Sob o
ponto de vista linguístico, enunciar-se a si mesmo é a oportunidade de
construir-se como sujeito e de compor sua própria identidade, a despeito
de causar, no próprio sujeito, algum estranhamento. Homologar ou
rejeitar esse sujeito que se configura externamente pelo ato enunciativo
é uma forma de tecer, implicitamente, uma alusão à autoria desse
processo, bem como de legitimar sua existência. Enunciar-se é ainda
uma alternativa de “des-repressão”, porque o “calar-se” é uma forma
de ser oprimido.
A discursivização que o índio faz do processo aculturativo,
organizado cronologicamente e disposto passo a passo na
enunciação, é a oportunidade de o sujeito mostrar-se a si mesmo e,
independentemente de reconhecer-se ou estranhar-se, demarcando
esse processo e visualizando-o com o distanciamento necessário à
focalização de seus danos e da necessidade de denúncia.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
153
Rita de Cássia Pacheco Limberti [145-157]
O segundo ponto a ser considerado é a posição da identidade
em xeque mediante a exposição constante ao processo aculturativo.
O distanciamento que o ato de falar proporciona, além de permitir
que a identidade seja avaliada pelo próprio sujeito, oferece a ele a
oportunidade de detectar as relações avariadas, dando maior mobilidade
a seu ponto de vista, condição única, segundo esta abordagem, para
a busca do restabelecimento da ordem na própria relação. O ato do
enunciador, de colocar-se no discurso, é uma auto-referencialização.
Na discursivização, o eu é um produto de si mesmo e assume essa
autoria. O exercício da enunciação pode revelar os mecanismos
alienantes do processo aculturativo.
O terceiro ponto a ser considerado é a exposição a que as
condições de produção e o interesse da opinião pública expõem o
enunciador. Leia-se condições de produção como sendo a relação
ideológica contida na relação face a face entre elementos de culturas
diferentes. Quando estes se comunicam, não é o sujeito individual
que fala, mas o sujeito portador de uma voz coletiva. Leia-se opinião
pública como sendo o conjunto de sujeitos da outra cultura, mais
os sujeitos da própria cultura, que desempenham o controle sobre a
atuação dialógica do sujeito enunciador.
O ‘dialogismo’ do círculo de Bakhtin, como se sabe, não tem como
preocupação central o diálogo face a face, mas constitui, através de uma
reflexão multiforme, semiótica e literária, uma teoria da dialogização
interna do discurso. As palavras são, sempre e inevitavelmente, ‘as
palavras dos outros’: esta intuição atravessa as análises do plurilinguismo
e dos jogos de fronteiras constitutivas dos ‘falares sociais’, das formas
linguísticas e discursivas do hibridismo, da bivocalidade que permitem a
representação no discurso do discurso do outro [...] (AUTHIER-REVUZ,
1990, p. 27) (grifo do autor).
A enumeração desses pontos leva à inferência de que o sujeito
constitui-se como seu próprio objeto, que ele parte de si em direção
a si mesmo por um caminho sem retorno, porque muitas vezes ele se
encontra no outro.
É o sujeito em busca de sua complementação, que na verdade
nunca chega a termo.
154
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso indígena [145-157]
4. O mosaico ideológico
Em todos os pontos abordados, existe a ênfase do eu por parte do
sujeito. Quer em 1ª pessoa, quer em 3ª pessoa, seja centrado no eu ou
no outro, o que o sujeito faz o tempo todo é discursivizar-se, buscando
compor-se. O discurso passa a ser o próprio sujeito, anulando-se as
fronteiras entre o quem diz e o que é dito.
Em uma macro-narrativa, pequenos episódios vão sendo narrados
como se fossem peças de um mosaico, cuja representação dá a medida
da significação de cada uma delas. Há uma releitura dos pequenos atos
cotidianos, que isoladamente não teriam o mesmo sentido. A relação
de umas peças com as outras e de cada uma com o todo estabelece
esse sentido. Cada ato contido na formação discursiva se reveste de uma
significação ideológica porque é narrado e, assim, compõe a identidade.
Muitas vezes, a legitimidade desses atos, enquanto indícios de
identidade, é questionada. Entretanto, como o mosaico (discurso) é
visto como um bloco único, é tomado como um todo significativo. O
que emerge dele como uma dissidência da significação são as duas
vozes em alternância, que, como uma clave, vão estabelecendo escalas
de sentido. Todas as nuances de conotações que vão se acumulando
em camadas dão origem a outra formação multifacetada, o discurso
aculturado, que é o discurso em que duas vozes, provenientes de
culturas distintas, mesclam-se. Essa é a questão mais importante: o
discurso aculturado é um discurso com duas vozes.
A identificação da manifestação da outra voz se faz basicamente
de duas maneiras: por meio de pontos fragmentários de constituição
diferente na regularidade da sequência discursiva e por meio da
alteridade a que esses pontos aludem. As características formadoras
dessa alteridade apresentam-se mais ou menos precisas, de acordo
com o campo temático e o contexto linguístico em que se encontram
inseridas. Por outro lado, todo o restante da sequência enunciativa
que não apresenta essas características de alteridade considera-se,
por oposição, como sendo a voz própria do sujeito da enunciação. A
proporção em que uma e outra voz se manifesta varia em relação aos
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
155
Rita de Cássia Pacheco Limberti [145-157]
fatores temáticos e linguísticos, ressaltando-se, no discurso indígena,
a situação de enunciação em outra língua, o que potencializa a
capacidade de inserção da outra voz, se não invertendo, pelo menos
alterando a proporção direta entre a voz do índio, do próprio sujeito,
em relação ao predomínio de presença no discurso e a voz do outro,
do branco, em relação à menor incidência durante a enunciação.
A presença de outra voz no discurso é bastante sutil, posto
não apresentar marcas externas de qualquer ordem, exceto se fosse
discurso direto ou indireto. Por apresentar-se assim, tão implicitamente,
a detecção da outra voz fica por conta da interpretação, da apreensão
do sentido produzido de modo diferente, da elaboração operada para
produzi-lo e do ambiente ideológico a que ele pertence (AUTHIERREVUZ, 1990, p. 32).
Outras observações interessantes podem-se depreender dessas
ocorrências. Existe uma transposição de pessoas para traduzir cada uma
delas: a 1ª pessoa pode ser colocada para falar da 3ª, do mesmo modo
que a 3ª pode estar representando a 1ª, ou ainda, a 1ª pessoa referindose francamente a si mesma. Dependendo do efeito de sentido a ser
criado, o discurso veicula essas combinações sem que fique claro qual
delas está sendo privilegiada.
A identidade pode, porém, ser vista sob outra perspectiva. Antes de
conhecer o “homem branco”, o índio não se sabia índio, não se percebia
como índio. Somente a partir do momento em que o conheceu estabeleceuse uma relação de oposição, fazendo com que suas características passassem
a significar características e o conjunto delas passasse a conformar sua
identidade. A identidade do índio o é por oposição à identidade do branco.
E antes, o que era? Todo o sentido da vida anterior ao contato com o branco
é dado pela oposição que o contato cultural estabelece. Os conceitos de
quantidade e de posse de terra, de liberdade, de mobilidade, foram todos
formados a partir das modificações que as coisas sofreram, fazendo-as
parecer, antes de diferentes, as coisas que são (ou eram). Sendo assim, o
sujeito, para saber-se, precisa saber o outro.
Investigar o sujeito é, portanto, investigá-lo no interior das
circunstâncias. Investigar sua identidade é investigar as circunstâncias
em seu interior.
156
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso indígena [145-157]
Referências
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Cadernos de Estudos Linguísticos 19. Campinas: Editora
da UNICAMP, jul./dez. 1990, p. 25-42.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5ª
ed. São Paulo: Editora Positivo, 2010.
LANDOWSKI, Eric. Presencies de l’autre. Paris: P.U.F., 1997.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
157
Discurso da exclusão: a construção do ethos de
adolescentes da unidade educacional de internação
(UNEI) na cidade de Campo Grande-MS
Discourse of exclusion: the construction of the ethos of
adolescents in the “unidade educacional de internação”
(UNEI) in the city of Campo Grande – MS
Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Três Lagoas
[email protected]
Heloísa Rení da Silva
Licenciada em Letras pela Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul/Três Lagoas
PIBIC/UFMS, 2007/2008
[email protected]
Lidiane Campos Salazar da Silva
Licenciada em Letras pela Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul/Três Lagoas
PIBIC/UFMS, 2008/2009
[email protected]
Resumo: Este trabalho reflete sobre a construção do Ethos de adolescentes da
UNEI na cidade de Campo Grande, baseando-se no rastreamento das
manifestações linguísticas da suas identidades, uma vez que a identidade
do sujeito passa por representações sociais. Trata-se de uma pesquisa
de base qualitativa, para a qual recorremos a entrevistas e questionários
semiestruturados. Observamos que os ethé da credibilidade e da exclusão
foram mais presentes no discurso dos adolescentes. E, ainda, a identidade
construída por esses sujeitos é a de “excluído”, “impotente”, que um dia já
fora “normal”, ou seja, era tido por todos como uma pessoa igual às outras
e hoje se encontra sob os estereótipos sociais de ex-internos que podem
voltar a praticar delitos a qualquer momento, fato que conduz à rejeição.
Palavras-chave: Identidade. Adolescentes infratores. Exclusão.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
159
Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]
Abstract: This work reflects about the construction of the Ethos of the
adolescents of UNEI in the city of Campo Grande, based on the trace
of the linguistics manifestation of their identities, once the identity of
the subject goes through social representations. It’s about a qualitative
research in which we used interviews and questionnaires half structured.
We watch that the credibility and exclusion ethé were more present in the
adolescents speech. And the identity build by those persons is the one
of ‘excluded’ and ‘impotent’, that one day was normal, that means one
day was considered normal like the others and today is under the social
stereotype of ex-inners that can go back to practice felony any time, fact
that leads to rejection.
Keywords: Identity. Adolescents-contravencioners. Exclusion.
Introdução
A identidade do sujeito apresenta-se no centro das discussões do
mundo pós-moderno como algo que se encontra em crise constante,
conforme observa Silva (2005), visto que as entidades responsáveis pela
sua consolidação até hoje têm sido povoadas por novos grupos que
vêm tentando afirmar seu espaço. Ao refletirmos sobre as manifestações
identitárias atuais, com base nos estudos desenvolvidos por Hall (2005),
observamos que a antiga visão de indivíduo estável que tornava o mundo
social também estável, encontra-se em decadência, já que esse, antes
unificado, desaparece com o surgimento do mundo moderno, dando lugar
a um sujeito com identidade fragmentada. Trata-se da “crise de identidade”,
fator tão pouco discutido ou desenvolvido pela ciência social, mas que
abala as sólidas localizações dos indivíduos sociais modernos, aliada ao
ethos que se situa nas formações imaginárias presentes na identidade.
Com a finalidade de fundamentar as mudanças observadas na
identidade do sujeito, aludimos à globalização, fator de distinção entre as
sociedades tradicionais e as sociedades modernas, visto que essas últimas
encontram-se em constante mudança, tida como uma desarticulação das
identidades estáveis do passado, de forma a acender possibilidades para
a criação de novas identidades.
160
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso da exclusão [159-174]
Objetivamos interpretar como o adolescente constrói seu ethos
e quais representações fazem de si e sobre a UNEI. Para refletir sobre
o quadro até então delineado, esta pesquisa, de campo e de base
qualitativa, pretende rastrear as manifestações linguísticas presentes no
discurso dos internos da UNEI de Campo Grande-MS, uma vez que a
identidade do sujeito passa por representações sociais.
Para a coleta dos dados, adotamos como procedimentos a
descrição e a interpretação por meio da aplicação de questionário1 e
de entrevistas. Os temas abordados foram: a) opinião dos adolescentes
sobre os pais; b) opinião dos adolescentes sobre o uso e venda de drogas;
c) noções de justiça, amor, abandono, indignidade, exclusão social; d)
opinião em relação à sociedade; e) opinião sobre a UNEI. Além do
questionário, optamos pela entrevista semiestruturada por avaliarmos,
em outras coletas, que os adolescentes sentem-se mais à vontade
dialogando do que respondendo a questionários, sendo que nossa
pretensão foi a de manter um diálogo interativo e não propriamente
uma entrevista com respostas concisas e estruturadas.
Assim, a entrevista, ao privilegiar a fala dos adolescentes, “permite
atingir um nível de compreensão da realidade humana que se torna
acessível por meio de discursos, sendo apropriada para investigações
cujo objetivo é conhecer como as pessoas percebem o mundo”
(FRASER; GONDIM, 2004, p. 2). Ela favorece o acesso às opiniões,
às crenças, aos valores e significados que as pessoas atribuem a si e
aos outros. Desta forma, procuramos dar voz ao adolescente, a fim
que falasse sobre os temas variados e de seu interesse, numa constante
busca interativa do discurso compartilhado.
A Unidade Educacional de Internação (UNEI) de Campo Grande
é dirigida por um diretor e um inspetor de ações socioeducativas,
composta, até fevereiro de 2008, por um número considerado alto
O roteiro do questionário e da entrevista foi retirado da dissertação de Mestrado da
pesquisadora Vânia Cristina Torres de Almeida (2007) e do mestrando Douglas Pavan
Brioli, que também integram o grupo de pesquisa “Grupo Sul-Mato-Grossense de Estudos
do Discurso e Identidade da Criança e Adolescente da UNEI – Rede Latino-americana”.
1
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
161
Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]
pelo diretor, visto que os internos só são aceitos, a partir do doze anos
de idade e a maior incidência das infrações praticadas por eles, incide
sobre a prática de roubos e tráfico de drogas.
Conforme a fala do diretor, a função da Unidade é a “recuperação
total dos adolescentes”, dado seu regime rígido e de conscientização,
ao lado de uma “ótima rotina que os ajuda a refletir sobre os atos
praticados”, além de se sentirem “capazes” pelo fato de aprenderem
profissões que poderão incentivar estes a deixarem a vida do crime
por uma existência digna. Segundo ele, a maior reclamação dos jovens
advém da falta que sentem dos familiares, apesar de receberem visitas
das mães, pais e avós, regularmente aos sábados e domingos. O
regimento interno, apesar de não ter sido explicitado pelo diretor, é
uma minuta baseada no ECA e no Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (SINASE), sendo que o momento da saída de um
interno é submisso a um alvará de soltura, expedido pela promotoria,
após uma audiência com o juiz.
1. Fundamentação teórica – Sobre a noção de Ethos
Nossa pretensão é pesquisar as formações imaginárias presentes
na identidade daqueles que, em um dado momento histórico, ajudam
a moldar os rumos da linguagem e da identidade, ao lado da distinção,
feita por Charaudeau (2006) dos variados ethos relacionados aos
discursos, procurando interpretar a sua diversidade, visto que esse se
situa na aparência do ato da linguagem, naquilo que o sujeito falante
diz ou escreve, ou seja, trata-se da presença dos ideais do enunciador
que se mostra implícita ou explícita no discurso, transmitindo, assim,
seus estereótipos culturais.
Segundo Eggs (2005), pode-se dizer que o ethos constitui a mais
importante das três provas engendradas pelo discurso: logos, ethos e
pathos. Aristóteles, ao trabalhar com esses conceitos, discute-os vinculados
à persuasão, o que o distancia dos retóricos de sua época que entendiam
que o ethos não contribui para a persuasão, sendo que as escolhas vão
variar entre as diversas possibilidades linguísticas e estilísticas.
162
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso da exclusão [159-174]
Já Maingueneau (2006, p. 61) discute sua concepção pelo viés da
análise do discurso, explicando que sua perspectiva vai além do nível
da argumentação:
[...] a noção de ethos é interessante por causa do laço crucial que ela
mantém com a reflexividade enunciativa, mas também porque permite
articular corpo e discurso em uma dimensão diferente da oposição
empírica entre oral e escrito. A instância subjetiva que se manifesta por
meio do discurso não pode ser concebida como um estatuto, mas como
uma “voz” historicamente especificada.
Assim, o Ethos é tido aqui como um “enunciador encarnado”,
como observa Maingueneau (2001, p.97-99), presente até mesmo em
discursos escritos, isto é, uma voz de um sujeito para além do texto,
atribuindo ao discurso a capacidade de “encarnar” o mundo que ele
representa, evocando suas propriedades e provocando uma adesão
dos leitores que se identificam com o discurso. Cada enunciação
traduz o estilo do enunciador, encarnando o ritmo e a figura que este
deseja representar por meio de uma instância subjetiva, denominada
“fiador”, à qual são atribuídos um “caráter” – traços psicológicos – e
uma “corporalidade” – vivência social – mostrando-se mediante a
identidade discursiva que ele constrói para si, propiciando a aderência
do enunciatário ao ideal transmitido. Sobre isso, Charaudeau (2006, p.
116) comenta:
O sentido veiculado por nossas palavras depende ao mesmo tempo
daquilo que somos e daquilo que dizemos. O ethos é o resultado dessa
dupla identidade, mas ele termina por se fundir em uma única. [...] ‘Eu
sou o que desejo ser, sendo efetivamente o que digo que sou’. Identidades
discursiva e social fusionam-se no ethos.
Diante do exposto, o sentido no discurso resulta da união ethos +
ideias que têm por destino promover um poder de persuasão perante
o enunciatário e o tipo do ethos remete à imagem do enunciado que,
a partir da fala, constrói uma identidade compatível com o mundo de
seu enunciado; fato que confirma a interdependência da organização
de conteúdos e legitimação da cena de fala. E ainda, em se tratando da
ação do ethos sobre o enunciatário, observamos que a incorporação do
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
163
Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]
enunciador envolve uma correspondência deste com um estereótipo
de uma comunidade imaginária, ou seja, o ethos do fiador do discurso
deve corresponder aos anseios do enunciatário, proporcionando ao
discurso a capacidade de encarnar aquilo que ele evoca, tornando-o
mais sensível.
Maingueneau (2001) define o ethos como sendo um fenômeno
pelo qual a personalidade do enunciador é revelada, ao realizar uma
enunciação e a eficiência desse depende de alguma forma do seu
envolvimento com a enunciação, sem transparecer no enunciado.
Afirma que o “tom” pode ser percebido num texto escrito, dando
autoridade ao que é dito, e por meio dele, o leitor é capaz de criar
uma representação “do corpo do enunciador (e não, evidentemente,
do corpo do autor efetivo). A leitura faz, então, emergir uma instância
subjetiva que desempenha o papel do fiador do que é dito” (p. 98).
(grifos do autor).
Já em obra mais recente, Maingueneau (2006), ao tratar do ethos
retórico, comenta que “a prova pelo Ethos consiste em causar boa
impressão pela forma como se constrói o discurso, a dar uma imagem de
si capaz de convencer o auditório, ganhando confiança” (p. 53). E que
o enunciatário deve apropriar-se de certas propriedades no momento
que é posta como fonte do acontecimento enunciativo. Envolve tom de
voz, modulação da fala, escolha das palavras e dos argumentos, gestos,
mímicas, olhar, postura, adornos etc, imagens psicológicas e sociológicas
transmitidas pelo enunciador, a fim de emitir ao enunciatário a sua
imagem em questão. E esse constrói de forma dinâmica a representação
do enunciador por intermédio da própria fala, não sendo esse, um
processo estático.
Enfim, Maingueneau (2006) afirma que “o ethos retórico está ligado
à própria enunciação, e não a um saber extra-discursivo sobre o locutor”.
Acrescenta que “a eficácia do ethos tem a ver com o fato de que ele
envolve de alguma forma à enunciação, sem ser explicitado no enunciado”
(p.55). O ethos também está ligado à construção da identidade, sendo
que a cada tomada da palavra, um indivíduo constrói a representação do
outro e a sua estratégia discursiva incita certa identidade.
164
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso da exclusão [159-174]
A concepção adotada neste texto, na esteira de Charaudeau (2006,
p. 114-116), é a de uma concepção discursiva em que o ethos perpassa
o sujeito falante. Entende-se o “ethos enquanto imagem que se liga
àquele que fala, não é uma propriedade exclusiva dele” (p. 115). Assim, a
identidade do enunciador se desdobra em dois componentes: i) identidade
social do enunciador, em função do lugar social que lhe é atribuído pela
situação de comunicação; e ii) o enunciatário constrói para si uma figura
daquele que enuncia, que é a identidade discursiva do enunciador que se
atém aos papéis que ele se atribui em seu ato de enunciação, resultado das
coerções da situação de comunicação que se impõe a ele e das estratégias
que ele escolhe seguir. O Ethos é, segundo o pesquisador, o resultado dessa
dupla identidade, mas se funde em uma única.
2. Interpretação dos dados – Sobre o Ethos dos adolescentes “infratores”
2.1 Ethos da credibilidade: competência e virtude
De acordo com Charaudeau (2006), os Ethé que envolvem a
credibilidade dizem respeito a identidades discursivas produzidas pelo
enunciador, com o intuito de que os outros o considerem digno de
crédito, formando uma imagem que corresponda a essa qualidade. Aqui
é necessário que aquilo que o falante diz corresponda sempre ao que
ele pensa (condição de sinceridade ou de transparência), que ele seja
capaz de pôr em prática o que anuncia (condição de performance) e
que isto seja seguido de efeito (condição de eficácia). Para corresponder
a essas condições, é necessária a virtualidade e a competência.
Seq. 01: [...] pensei2 “se eu mudar... aí minha mãe vai ver que eu não
sou esse menino”... todo mundo vai ver que eu não sou essa pessoa
ruim que todo mundo pensa. Eu quero mudá e ficá de boa... sussegado.
Eu vou mudá, eu vou mudar meu pensamento, ai o pessoal lá fora vai
continuar pensando isso né, mas quando vê que eu tô com um serviço,
com um emprego bom, que eu tô subindo na vida não com dinheiro
de roubo, mas sim com dinheiro do meu suor... aí o pessoal vai pensá
diferente (grifo nosso)3 (Aluno 1).
2
3
A solicitação foi “Comente um acontecimento que marcou a sua vida”.
Os trechos destacados nas sequências discursivas foram feitos pelos pesquisadores.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
165
Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]
Na sequência (01), os Ethé que compõem o da “credibilidade”
aparecem reunidos, sendo o trecho “mas quando vê que eu tô
com um serviço, com um emprego bom, que eu to subindo na vida
não com dinheiro de roubo, mas sim com dinheiro do meu suor”
correspondente à competência; “se eu mudar [...] Eu quero mudá e ficá
de boa, sussegado”, demonstra o ethos de “virtuoso”, já que reconhece
que é necessária uma mudança de conduta, conduzindo à hipótese
que praticou atos ilícitos, no entanto anseia mudança. Todo o trecho
corresponde ao arrependimento para ter credibilidade, visto que o
adolescente demonstra demandar o saber e a habilidade necessários para
alcançar seus objetivos, obtendo resultados positivos, fato representado
pela presença da partícula “se” (“se eu mudar”), que indica condição,
ou seja, ele tem conhecimento das qualidades necessárias para ser
crível e, ao proferir as condições correspondentes ao ethos da “virtude”,
demonstra essas qualidades. Desta forma, observamos que o adolescente
pretendeu que o seu interlocutor o considerasse como digno de crédito,
já que, além de conhecer os fatores necessários para que isto ocorresse,
diz pretender mudar sua postura. Note que são representações de um
jovem-adolescente que talvez necessite de crédito.
O ethos de credibilidade, conforme Charaudeau (2006), “repousa
sobre um poder fazer, e mostrar-se crível é mostrar ou apresentar que a
prova de que se tem esse poder”, ou seja, a própria condição atual em
que o sujeito encontra-se num determinado contexto sociocultural. Esse
surge em diversos trechos dos dizeres dos adolescentes, especialmente,
quando se veem arrependidos pelo ato infracional, ao ser influenciado
por má companhia:
Seq.02: “rapaz4... entrou porque que, não é não, você vê os outros
fazendo assim, “poxa, eu sou o único bóió da turma... eu vou fazê
também... aí os muleque fica te influenciando ”vamu faze, vamu faze” e
tal aí você vai e acaba fazendo também... coisa de errado” (A 3).
Esse adolescente representa sua identidade representada entre os
que cometem ato infracional e os que não cometem que, por sua vez, são
designados por “boiolas” pelos companheiros. Portanto, para eles cometer
4
Foi perguntado: “Como você avalia sua vida?”.
166
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso da exclusão [159-174]
uma infração representa heroísmo, motivo de admiração e respeito. Significa,
ainda, não ser diferente, não ser o “boiola”, vindo à tona identidades
contraditórias ou não definidas historicamente (cf. HALL, 2005).
A “virtude”, conforme Charaudeau (2006), está ligada à
demonstração de sinceridade e fidelidade, a que se deve acrescentar
uma imagem de honestidade pessoal; trata-se de uma pessoa capaz de
reconhecer a validade do julgamento do outro e mesmo seus próprios
erros, sem jogos fantasiosos, respectivamente. Vimos em alguns trechos,
especialmente quando abordam sobre os pais, que são tidos como
pessoas capazes de aceitá-los, mesmo depois de seus atos impensados.
Seq.03: Pelo que eu aprontei5... eu acho que eles tão sendo bom
demais né, eu acho que [...] eles nunca deixaram... nunca faltaram em
nenhuma visita, sempre eles tavam aqui pra [...], sempre na quinta-feira
eles vêm e traz as coisa pra mim... o que eu preciso eu ligo quarta-feira e
eles me ajudam [...]. (A 8).
Em (03), o sujeito-adolescente constrói uma imagem de sinceridade
e honestidade ao assumir que sua postura não era digna de aceitação por
parte dos pais, assim, representa a identidade discursiva de quem reconhece
os atos praticados. A “virtude” emerge também em situações em que os
adolescentes narram seus feitos antes da internação na UNEI, embora
apresentem desvio de conduta, sabem que os atos cometidos são “errados”,
na sua concepção de cidadão digno, no entanto, continuam a praticá-los.
Seq. 04: [...] Ah [...]6 eu acho errado roubá [...] roubá, mas eu faço coisa
errada... mas eu acho errado.[...]. (A 2)
Seq. 05: [...] Eu acho que eu tinha que fazê diferente, fazê o que eu
acho certo... às vezes eu faço. (A 7)
Na sequência (04), o adolescente vê o roubo como algo considerado
“errado”, no entanto, afirma que continua fazendo, embora admita ser
um “erro”; a repetição do item lexical “eu acho errado” enfatiza sua
representação em relação às atitudes, reforçando o ethos de “virtude”.
Quando enuncia: “mas eu faço coisa errada”, prevalece o “erro”, em
5
6
A questão aqui foi: “Qual sua opinião sobre seus pais?”.
Resposta dada à questão: “Você acredita que há justiça?.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
167
Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]
seguida, reafirma “mas eu acho errado”, permanecendo, enquanto
argumento final e definitivo, o reconhecimento do “erro”, vindo
reforçar o ethos da credibilidade.
Já em (05), diferentemente da anterior, o sujeito-adolescente
assume que “tinha que fazê diferente, fazê o que eu acho certo”,
representando seu fazer como algo lícito, no entanto, assume uma
postura que talvez seja influenciada pelo outro, porém diz: “às
vezes”, na pretensão de justificar-se em direção a uma conduta ética
e moral.
2.2 Ethos de sério
O ethos de sério, para Charaudeau (2006), é construído a
partir de índices corporais e mímicos, observados a partir da postura
corporal e expressiva, e de índices verbais, relacionados ao tom e
à escolha de palavras ou frases, evitando o exagero de alcançar a
austeridade, fundado em um discurso da razão. Esse ethos, embora
pouco observado na fala dos adolescentes, ocorre quando abordam
a possibilidade de mudança de suas vidas, tornando, assim, a UNEI
como um local para reflexão.
Seq. 06: [...] Quando você puxa cadeia7, você pensa de NOVO, você
pensa o quê que você fez, cê se arrePENde, você[...] pensa em muDAR,
você pensa em caÇAR um serviço [...]” (A 7).
Em (06), o sujeito se vê arrependido pela condição de interno
da UNEI, alegando que, “quando você puxa cadeia, você pensa de
novo, se arrepende, você [...] pensa em mudar”, pois estar privado de
liberdade o faz refletir e desejar mudança de vida. Esse discurso indica
que até a sua ida para a UNEI, talvez não se visse enquanto pessoa séria,
o que o torna, após refletir sobre a atual condição, comprovado pelo
desejo de trabalhar, caracterizado como o ethos de sério, de pessoa
que pretende ser responsável e respeitada.
Outro trecho semelhante, pertencente ao mesmo sujeito:
7
A pergunta foi: “Você acredita que há justiça?”.
168
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso da exclusão [159-174]
Seq. 7: Porque AQUI8 é um luGA pra você refletir... o quê que você
fez refleti melhor... pra você saí daqui com outra cabeça... caÇÁ um
serviço aqui já deu curso de bicicletaria pra gente... deu diploma e
tudo mais, saí daqui a gente vai pra outro curso no Senai... vai dá o
curso e de lá[...] talvez, vai dá uma profissão pra gente. Cê sai daqui
com OUTRA MENtalidade, não sei eu né ((querendo dizer que não sabe
sobre a opinião dos outros)), eu saio daqui com essa mentalidade, não sei
os outros, que vai e volta (A 7).
Esse sujeito-adolescente se vê novamente na necessidade de
corresponder à responsabilidade adquirida enquanto interno da UNEI, no
entanto, acrescenta que, embora veja o lugar como uma forma de fazê-lo
refletir, existem outros que não apresentam a mesma imagem, segundo o
qual, o fato de estar lá não interfere em nada na sua conduta, particularizando
sua situação: “Cê sai daqui com outra mentalidade, não sei eu né, eu saio
daqui com essa mentalidade, não sei os outros, que vai e volta”.
Uma observação relevante é que esse sujeito-adolescente, antes de
estar privado de liberdade, embora pudesse não possuir o ethos de sério, ao
relatar o acontecimento que desencadeou a sua ida para a UNEI, apresenta
manifestações de uma conduta de seriedade, observado no trecho a seguir:
Seq. 8: Aí meu padrasto9 queria me levar pro Ceará que lá... depois dos
dezoito ano ninguém ia perguntá e num ia dá nada e eu falei: “NÃO
é melhor eu me apresentar agora”... porque eu tenho SONHO de
servir o quartel eu tenho mais de quarenta colega meu que é da base
aérea eu tenho um padrinho que é da base aérea e eu SONHO entrá no
quarTEL, aí eu tô de BOA. Ai eu falei “não, eu tenho que me apresentar
conforme dezoito ano eu [...]” ai minha advogada falou “não, você vai
pegá três anos [...]” que num sei o que lá “você que sabe de todas as
coisa” ai eu falei “NÃO... eu vou me apresenTÁ” (A 7).
Em (8), o mesmo adolescente se mostra perpassado pela
seriedade, comprovada pelos trechos destacados, pois se manifesta
capaz de reconhecer seus erros e suportar as consequências, mesmo
sob a influência de pessoas que tentaram convencê-lo a fugir da
8
Este trecho se refere à questão: “Descreva o que pensa sobre a UNEI e como se sente
enquanto interno desta instituição?.
9
A resposta é referente à questão: “Como você avalia sua vida?”.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
169
Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]
responsabilidade: “Aí meu padrasto queria me levar pro Ceará, que lá,
depois dos dezoito ano ninguém ia perguntá e num ia dá nada [...] aí
minha advogada falou ‘não, você vai pegá três anos [...]’ que num sei o
que lá ‘você que sabe de todas as coisa’”.
O ethos de sério nos trechos mostrados é tido como uma
representação de uma imagem que o sujeito constrói a partir de um
desejo de transformação de sua vida, conforme enfatiza Charaudeau
(2006), “o ethos de sério depende evidentemente, das representações
que cada grupo social faz de quem é sério e de quem não é”, desta
forma, para o grupo social ao qual o sujeito em questão pertence, ser
sério está intrinsecamente ligado ao fato de ter ou não um “emprego
digno” que resulte em um capital “limpo” e honesto. Isso transparece
nos momentos em que os adolescentes foram interrogados a respeito
do que desejavam ser no futuro, confirmando ainda mais a asserção,
como nos trechos a seguir, em que eles representam-se com desejos de
mudanças, em busca de um trabalho e prosperidade.
Seq. 9: Eu pretendo terminar meus estudos né, fazê uma faculdade
fazê uma complementação e me tornar um empresário (A 4).
Seq. 10: Com certeza trabalhá, procurá outra coisa, estudá, terminá
meus estudo... ficá de boa, minha mulher tá grávida (A 10).
O tom assumido por esses adolescentes sugere seriedade e
compromisso com o futuro, o trabalho e a família, a fim de adquirir a
adesão do pesquisador, que naquele momento lhe dá a voz e a “vez” e
passa a ouvi-lo, emergindo aí diferentes vozes que visam à (re)inserção
à vida social e a seriedade.
2.3 Ethos da exclusão
Enfim, observamos que o ethos da exclusão foi o mais recorrente
nos discursos dos sujeitos analisados, em diferentes questões:
Seq. 11: [...] vive muito discriminado10, que às vezes vai preso e tudo
mais e agente vai fora aí a gente é muito discriminado... aí é injustiça...
isso daí é injustiça... pelo menos da minha parte eu acho isso (A 12).
10
A questão aqui foi: “Você acredita que há justiça? Por quê?”.
170
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso da exclusão [159-174]
Seq. 12: Cê sai lá fora11 os outro vai ter preconceito “ah já puxou
cadeia, ah é malandro”. Eu vou caçar um serviço apresenta a ficha “aí
você matou você roubô... você fez isso [...]” (A 13).
Seq. 13: Muita discriminação12... esses tipo de coisa assim... a gente
andando assim a polícia parava e cê já apanhava só porque você tem
passagem... esses tipo de coisa. Andando... tipo, você pára num lugar...
tipo numa festa e tá indo embora... a polícia já pára... puxa teu nome e
já vê já, ai cê já apanha essas coisa (A 14).
Os adolescentes das sequências (11), (12) e (13) veem-se
como pessoas que passam por preconceitos, pelas privações tidas,
principalmente, após o internato na UNEI. Os efeitos de sentido
aparecem pela ênfase dada por eles ao abordarem sobre “discriminação,
injustiça e falta de respeito”, de forma que o preconceito é latente,
pelo fato de serem ex-internos. A imagem que eles fazem de si é que
torna difícil uma vida livre de preconceito em relação à UNEI, por ser
um “espaço de docilização do corpo”, que acaba proporcionando a
exclusão desses internos da sociedade. Acrescentamos, aqui, a reflexão
feita por Woodward (2005), na qual a autora aborda a importância
particular da diferença na construção dos significados e de identidades.
Para a pesquisadora, a diferença pode ser construída negativamente para
a exclusão ou a marginalização ou como fonte enriquecedora e marca de
diversidade e, a partir de oposições binárias, observa que uma sempre se
sobressai à outra. Nesse caso, salta aos olhos do outro, a exclusão.
Seq.14: “Que [...]13 devia ter um pouco mais de respeito, não é porque
a gente sai daqui, igual puxamos aí uns seis... sete meses e saímos daqui
que continua a mesma mentalidade” (A 20).
Seq.15: “Ah!14 Isso daí é a mesma coisa da injustiça... a sociedade
é aquelas pessoas, igual a gente na gíria “é o Zé povinho... a
sociedade”. Se acontece uma coisa ali [...] o pessoal já tá na boca do
povo, já aumentaram, já fizero isso. Bom... pelo menos no meu ponto de
vista é esse” (A19).
Resposta dada à questão: “O que significa ser cidadão para você?”.
A pergunta foi: “Qual sua opinião sobre a sociedade?”.
13
Resposta dada à questão: “Você acredita na justiça? Por quê?”.
14
Trecho obtido a partir da pergunta: “Qual sua opinião sobre a sociedade?”.
11
12
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
171
Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]
Seq.16: “Se15 sai lá fora os outro vai ter preconceito “ah já puxou
cadeia... ah é malandro. Eu vou caçar um serviço... apresenta a ficha
“aí você matou você roubou, você fez isso [...]” aí eu num sei como é lá
fora entendeu só saindo lá fora mesmo pra sabe mais tem muitas pessoa
que chegaram aqui aí voltaram e falaram assim que ia procurá emprego
chegava lá [...] puxava ficha criminal do menino... achava que o menino ia
roubá, ia ter problema dentro do serviço, acabava num contratando...
aí o muleque no mundo do crime... daí acontece isso” (A 17).
Os adolescentes das sequências (14), (15) e (16) veem-se perpassados
pela discriminação e preconceito, por estarem na condição de internos
ou ex-internos. Surge a discriminação quando dizem sair à procura de
um recomeço e, segundo eles, a sociedade os intitula e rotula como
incapazes, além da desconfiança ao empregar esses jovens, vistos pela
sociedade como “menores” infratores. Em (14), o adolescente reconhece
a sociedade como excludente, por não mudar a imagem negativa que
tem dele, em consequência, ele será sempre rejeitado. Em (15), para ele,
a sociedade é um “Zé povinho”, talvez composta por pessoas medíocres
e que só veem o lado negativo desses adolescentes. Em (16), os sentidos
são de que a “ficha” é como um banco de dados enquanto instrumento
de identificação, separação e exclusão, controlada pela UNEI, que marca
a sua identidade, pois serão sempre os que cometeram algum “delito”. A
representação que fazem de si é que desejam integrarem-se à sociedade,
porém, a partir do momento que deixam a UNEI, são automaticamente
excluídos por ela, por serem ex-internos, o que não condiz com o
Estatuto da Criança e do Adolescente –ECA (1990), ao tratar dos direitos
dos adolescentes enquanto cidadãos:
“ART. 17 - O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade
física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a
preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores,
idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”, o adolescente sendo
amparado pela lei em diversas circunstâncias.
O ethos construído por esses sujeitos é o de “excluído”, da
“impotência”, que um dia já foram “normais”, ou seja, eram considerados
15
A solicitação feita foi: “O que significa ser cidadão para você?”.
172
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Discurso da exclusão [159-174]
pelos seus próximos como pessoas nas mesmas condições às outras e
hoje se encontram sob os estereótipos sociais de ex-internos, que podem
voltar a praticar atos infracionais a qualquer momento, desconforto
esse que conduz à rejeição pelo outro. Trata-se de identidades que,
na visão de Hall (2005), não se apresentam como prontas e acabadas,
por estarem, constantemente, sendo “reconstruídas”, ocasionando a
descentralização do sujeito.
Vemos que os dizeres desses adolescentes vão ao encontro do
conceito de “crise de identidade”, discutido por Hall (2005, p. 13), sendo
que a maioria dos adolescentes é caracterizada por várias identidades,
algumas vezes, contraditórias e em formação, definidas historicamente,
visto que, embora se apresentem enquanto adolescentes infratores,
que praticam tais atos por necessidades financeiras ou mera satisfação,
às vezes reconhecem sua própria conduta como inadequada e até
anseiam por mudanças. Porém, a maioria vivencia um histórico de
reincidência na UNEI, fato que demonstra a crise em que vivem, trata-se
de identidades construídas sob o domínio da exclusão; ou nas próprias
palavras de Hall (2005), “[...] à medida que os sistemas de significação
e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante [...] de identidades possíveis, com cada
uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente”.
Assim, conforme postula Laclau (1990, apud HALL, 2005), o que
ocorre é uma desarticulação das identidades estáveis do passado, de
forma a instigar possibilidades para a criação de novas identidades.
Trabalhar com ela é, nas palavras de Rajagopalan (2003, p. 126),
“necessariamente intervir na realidade social da qual ela faz parte.
Linguagem [e linguística são] [...] uma prática social [...] repleta de
conotações ideológico-políticas que as práticas sociais acarretam”.
Considerações finais
Este trabalho pretendeu interpretar as formações imaginárias
presentes no ethos dos adolescentes. Observamos a presença dos ethé
da credibilidade, de sério e, com maior incidência, o da exclusão.
É importante ressaltar que tais resultados estão estritamente ligados,
de forma que a ocorrência da credibilidade pode ser justificada pela
existência da seriedade. Já o ethos da exclusão aparece relacionado
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
173
Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]
ao sistema de coerção e repressão da sociedade que não os reconhece
enquanto cidadãos dignos, após passarem pela UNEI.
Notamos que os sujeitos-adolescentes apresentam-se com
identidades de excluídos do meio social em que vivem, ou seja, de
indivíduos marginalizados, que pela voz buscam convocar o outro para
ouvir-lhes e dar-lhes créditos, a fim de que o outro (a sociedade) os veja
como indivíduos críveis e merecedores de maior atenção da sociedade
atual. Enfim, eles são silenciados, não têm voz, são marginalizados pelo
poder.
Referências
BRASIL. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Lei nº 8.069, de 13 de julho
de 1990. Brasília, 1990.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. Trad. Fabiana Komesu e Dílson Ferreira da
Cruz. São Paulo: Contexto, 2006.
EGGS, Ekkehard. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In: Ruth Amossy (org.).
Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005, p.29-56.
FRASER, Márcia Tourinho Dantas; GONDIM, Sônia Maria Guedes. Da fala do outro
ao texto negociado: Discussões sobre a entrevista na pesquisa qualitativa. Salvador:
Universidade Federal da Bahia, 2004.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da
Silva e Guacira Lopes Louro. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
MAINGUENEAU, D. Análise de Textos de Comunicação. Trad. Maria Cecília Perez de
Souza e Silva; Décio Rocha. São Paulo-SP: Cortez, 2001, p. 95-112.
_________. Problemas de Ethos. In: Cenas da Enunciação. Trad. Maria Cecilia Perez de
Souza e Silva et. al. Curitiba – PR: Editora Criar, 2006, p.52-71.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e a
questão ética. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos
Culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual;
In: SILVA, Tomaz T. (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 4.
ed. Petrópolis: Vozes, 2005, p.07-72.
174
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Semiótica
O significado em arquitetura: considerações
baseadas nos modos de raciocínio em peirce
The meaning in the architecture: considerations based
on kinds of reasoning in peirce
Eluiza Bortolotto Ghizzi
Centro de Ciências Humanas e Sociais/Campo Grande
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS
E-mail: [email protected]
Resumo: Este artigo toma como objeto de estudo a significação em um campo
específico de linguagem: o da arquitetura. Após uma breve introdução
sobre a questão em sentido amplo, aborda uma semiótica específica
da arquitetura. Adota como referencial metodológico a Semiótica de
Charles S. Peirce (1839-1914), com ênfase na segunda parte, chamada
de Lógica Crítica. Nesta, esse filósofo estudou os modos de raciocínio,
denominados abdução, dedução e indução. Esta abordagem aponta para
uma análise da significação do ponto de vista do interpretante do signo
e, além disso, para a arquitetura tomada nos seus aspectos simbólicos.
Isso é feito sem deixar de observar, contudo, as contribuições dos signos
icônicos e indiciais no processo de significação. As conclusões apontam
para diferentes modos de entender o como os signos arquitetônicos são
interpretados, embasados nas potencialidades das obras para estimular
um ou mais dentre os modos de raciocínio.
Palavras-chave: Significação. Arquitetura. C.S. Peirce. Semiótica. Lógica Crítica.
Abstract: The object of this communication is the meaning in a specific field of
language: architecture. After a small introduction about this question in a
large sense, approach a specific semiotic of architecture. This paper adopts,
as its methodological reference, the Semiotics of Charles S. Peirce (18391914), especially part two, called Critical Logic. In this part of his work, the
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
177
Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]
philosopher studied the three kinds of reasoning: abduction, deduction
and induction. This approach points towards an analysis of signification
from the point of view of the sign’s interpreter and, in addition to that,
towards architecture taken in its symbolic aspects. This is done, however,
without disregarding the contributions made by the iconic and indexical
signs in the process of meaning. The conclusions point to different ways
of understanding how architectonic signs are interpreted, based on the
potentialities of the works to stimulate one or more kinds of reasoning.
Keywords: Signification. Architecture. C.S. Peirce. Semiotics. Critical Logic.
A questão da significação em arquitetura extrapola o sentido
que damos ao “como se parece” e ao “como age”. Questões sobre
o como se parece remetem, de um lado, àquelas sobre a forma que
alguma coisa assume, considerado aqui o significado que esse termo
– forma – adquiriu no campo das artes em geral e da arquitetura; ou
seja, da forma como a aparência visual das obras, enquanto existentes.
De outro lado, questões sobre forma têm permitido abordagens sobre
as artes e a arquitetura, quer estéticas, fenomenológicas, semióticas,
ou outras, para as quais o significado desse termo abarca experiências
mais amplas que as limitadas ao sentido da visão. Questões sobre como
age, por sua vez, remetem ao funcionamento de alguma coisa. No
sentido mais usual, são aplicadas às coisas animadas (casos em que a
ação ou o funcionamento envolvem algum tipo de movimento físico).
A arquitetura não se caracteriza como coisa animada (exceção feita
aos recentes experimentos com arquitetura móvel). Para se falar do
funcionamento ou da ação da arquitetura, é preciso que se recupere
o sentido geral de “ação” como “influência (sobre alguém ou alguma
coisa)”; ou o sentido filosófico de ação como “processo que decorre
da natureza ou da vontade de um ser, o agente, e de que resulta
criação ou modificação da realidade”; e, ainda, o próprio “resultado ou
efeito desse processo” (FERREIRA, 2000). Esses são sentidos afeitos aos
adotados pela semiótica.
178
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O significado em arquitetura [177-193]
Tanto a significação de forma como algo que não se limita ao que
é percebido pelo sentido da visão, como a de ação como também
não-física, são pertinentes ao problema da abordagem semiótica da
arquitetura. Pode-se dizer que a relação entre o como parece e o
como age, embora nem sempre com esses termos, tem permeado as
discussões sobre arquitetura ao longo da sua história.
Em sentido amplo, as preocupações relativas à significação da
arquitetura podem ser encontradas, já, em Vitrúvio1 (que viveu na
época da Roma antiga). No tratado de sua autoria Os Dez Livros de
Arquitetura, lemos:
Em tudo na verdade, máxime certamente na arquitetura, essas duas coisas
estão presentes: o que é significado e o que significa. O que é significado
é algo proposto do qual se fala; o que significa é a demonstração explicada
pelas regras das doutrinas (POLIÃO, 1999, p. 49-50).
Nesse tratado Vitrúvio cita os vínculos do ofício do arquiteto com
outros da sua época, não específicos da arquitetura, mas, dos quais o
arquiteto deveria se inteirar para atingir seus objetivos satisfatoriamente,
tanto na teoria quanto na prática. São eles o desenho, a geometria, a
história, a filosofia, a música, a medicina, as leis e a astrologia, além dos
conhecimentos da leitura e da escrita. Alguns conhecimentos específicos
desses ofícios integram o Tratado e, enquanto uma parte (a das técnicas)
é associada à execução (concreção) da obra (a o que é significado), outra
é vinculada a um universo imaterial (a o que significa), que é relacionado
às doutrinas, ao conhecimento teórico. Assim, de um lado, no Tratado,
temos os textos dedicados às águas, aos sons e ao movimento solar, tudo
relacionado com a atividade construtiva; de outro, a história e a filosofia,
por exemplo, são associadas àquilo que justifica essa atividade.
Séculos depois do livro de Vitrúvio, já no período da construção
do Movimento Moderno, final do século IX e início do XX, a profissão
do arquiteto não envolve mais o mesmo tipo de correlação entre teoria
Trata-se de Marco Vitrúvio Polião, arquiteto da Roma antiga e autor do primeiro tratado
de arquitetura de que se tem conhecimento até então, amplamente citado na bibliografia
simplesmente como Vitrúvio; daí adotarmos esse nome também neste texto.
1
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
179
Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]
e prática. Mas a questão da significação permanece em pauta e ganha
um tratamento particular dado pelo racionalismo funcionalista, que
desenvolve a ideia de uma correlação estrita entre forma e função,
com primazia da primeira sobre a segunda.
Os adeptos dessa formulação particular da ação da arquitetura
partilhavam do ideal de que a forma deveria (e poderia) traduzir sua
função de modo verdadeiro. Consideravam a possibilidade de se chegar
a formas que fossem as mais apropriadas ou naturais para cada função.
A forma é, desse ponto de vista, regida por uma determinante ética. E o
usuário é compreendido como mero reconhecedor da forma enquanto
organização espacial do programa (conjunto de funções).
Decorre daí um sentido limitado de função. A casa, por exemplo, é
responsável pela necessidade de habitar, entendida como pertinente a
todo homem comum, o que se constitui na sua função. As necessidades
que são atendidas, de abrigo, dormitório, refeitório, mais as de conforto
ambiental (insolação e ventilação) e as da relação com a cidade
(proximidade de áreas de lazer, serviços etc.) são concebidas para o
homem em geral. Tais necessidades ou funções são caracterizadas, pelo
funcionalismo, por uma universalidade. Essa ideia de arquitetura tipo
para um homem tipo é um importante aspecto dessa doutrina destacado
pela crítica, que reclamou atenção às diferenças, às necessidades
simbólicas e a uma dimensão estética para além do vínculo com a ética.
Mas a crítica ao funcionalismo ou ao modernismo dito ortodoxo foi
além. Na prática, como Robert Venturi (1995) bem observou, em seu texto
manifesto “Complexidade e Contradição em Arquitetura”, entre alguns dos
mais importantes arquitetos modernistas - Le Corbusier e Alvar Aalto são
exemplos desse autor -, os edifícios são portadores de inúmeras contradições
internas (que se opõem à formulação idealizada de que a forma segue a
função em sentido estrito). Isso, para Venturi (1995), é exemplo de como a
arquitetura de qualidade não se submete à simplificação proposta.
Durante a segunda metade do século XX, principalmente, o sentido
de função foi discutido e incluiu significados psicológicos e culturais,
associados aos modos de vida dos indivíduos ou famílias. Uma nova
180
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O significado em arquitetura [177-193]
corrente funcionalista se formou; todavia, ainda defendendo uma
predominante técnica e objetiva para a arquitetura, no tratamento da
função, na medida em que o arquiteto deveria ser capaz de interpretar
isso em termos de formas tecnicamente apropriadas a cada caso.
Esse novo entendimento de função, portanto, embora legítimo como
corrente de pensamento que define para si mesma um ideal/um fim,
ainda nos parece insuficiente para resolver o problema do significado
na arquitetura.
Mas, se a forma não segue meramente a função, o que mais ela
pode seguir? Em muitos casos, como constatou Robert Venturi (1995,
p. 33), mais do que seguir uma função e especializar-se nela, “forma
evoca função”. Além disso, pode-se dizer que no funcionalismo a
forma estabeleceu outros vínculos, que não os estritamente funcionais.
A abstração geométrica e cromática, as composições que excluíam
aparatos decorativos (baseadas em linhas ortogonais, volumes brancos,
paredes lisas, panos de vidro), acabaram identificadas pela crítica como
resultando em formas-tipo, que na origem não decorrem estritamente
do programa2. Seu propósito era o de opor-se às formas da tradição
arquitetônica; de significar uma ruptura. Com isso se pretendia que ela
fosse verdadeira em outro sentido, no de significar o “espírito da época”,
nas palavras de Le Corbusier. Mesmo isso, contudo, é questionado.
Veja-se o caso da crítica que Peter Eisenman3 faz à ideia de que
o modernismo representou uma ruptura em relação à arquitetura préindustrial. Para Eisenman (2006), o funcionalismo está em relação
de continuidade (não de ruptura) com cinco séculos de história da
arquitetura e se caracteriza mais como uma fase tardia do humanismo.
A ideia de ruptura, segundo o autor, se deve a uma espécie de ilusão
da forma. Nas palavras dele:
2
É essa forma-tipo que, na prática, se descola das questões programáticas (e funcionais)
e passa a ser tomada como mais um estilo (entre outros registrados ao longo da história); isso, contrariando a proposta do modernismo de que a correlação entre forma e
função deveria agir como um método e não como estilo.
3
Arquiteto da atualidade, autor de importantes textos e obras (projetos) teóricos sobre
arquitetura.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
181
Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]
De fato, o funcionalismo, não importa quais sejam suas pretensões, levou
adiante a ambição idealista de produzir arquitetura como um processo
eticamente constituído de ‘doação de forma’. Mas, por revestir essa
ambição idealista com as formas radicalmente desnudas da produção
tecnológica, o funcionalismo deu a impressão de representar uma ruptura
com o passado pré-industrial (EISENMANN, 2006, p. 99).
A ilusão da forma a que Eisenman se refere (de que não só a
forma não segue estritamente a função, como engana ao significar o
rompimento com a tradição), independente de se a crítica dele ao
funcionalismo procede ou não, aponta para um modo de agir possível
a toda forma, dada sua abertura significante.
Outra linha de pensamento relacionada à significação da arquitetura
– ainda em sentido amplo - coloca o foco da questão na experiência
das pessoas com os edifícios e não na produção da arquitetura. Tratase da corrente fenomenológica (que se apóia em leituras de Edmund
Husserl, Martin Heidegger e Gaston Bachelard). Mais precisamente,
essa corrente vai considerar a experiência das pessoas com os lugares,
tal como pode ser observada na dimensão da consciência. Essa linha
de pensamento, ainda, toma as questões de forma como importantes,
todavia, trata a experiência da arquitetura para além da visualidade.
Um autor que trabalha a abordagem fenomenológica, Kenneth
Frampton (2006, p. 476), recorre a Heidegger, particularmente à
distinção (no inglês, verificada, também, no português) entre as palavras
espaço [space] e lugar [place]4. Analisa a opção que fazemos pelo termo
espaço (em detrimento de lugar) e pelo entendimento da arquitetura
em um sentido abstrato, desvinculado da experiência social, portanto,
da ideia de lugar.
Norberg-Schulz (2006), autor que trabalha com base em Heidegger
e na distinção entre espaço e lugar, acrescenta que a arquitetura como
lugar5 teria uma natureza dual, que contém, de um lado, o sentido
abstrato de espaço (este mais ligado à geometria e à matemática) e, de
4
5
O que não ocorre na palavra alemã Raum.
Ou Raum, no alemão.
182
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O significado em arquitetura [177-193]
outro, o sentido decorrente das vivências. Essa arquitetura reconhecida
como lugar das vivências sociais seria a verdadeira Arquitetura. Para
esse ponto de vista a mera existência das coisas enquanto materialidade
– mesmo que apropriada a certos funcionamentos de ordem geral – não
lhes garante significação. Para oportunizar a verdadeira vivência ela
precisa ter vínculos com a memória.
Outro teórico dessa corrente, Juhani Pallasmaa (2006, p.481), vai
se deter no problema de muitos terem enfatizado a dimensão visual
da arquitetura. Ele analisa que isso é decorrente dos “princípios do
elementarismo e do reducionismo [que] têm dominado o progresso
da ciência moderna [para o qual] Todo fenômeno estudado é dividido
em seus elementos e relações básicas e visto como a soma desses
elementos” (2006, p. 483). Ele escreve:
A visão elementarista também predomina na teoria, no ensino e na
prática da arte da arquitetura. Estas últimas foram ao mesmo tempo
reduzidas exclusivamente a artes do sentido da visão. Com base na
ideologia da escola Bauhaus, a arquitetura é ensinada e analisada como
um jogo de formas que combina diversos elementos visuais de forma
e espaço. Acredita-se que esses elementos adquirem uma qualidade
peculiar que estimula nossos sentidos da visão a partir da dinâmica da
percepção visual, conforme estudada pela psicologia da percepção.
Considera-se um edifício como uma composição concreta construída a
partir de uma seleção de elementos básicos dados, mas não mais em
contato com a experiência fora de si mesma, isso para não mencionar o
esforço consciente de descrever e articular a esfera de nossa consciência
(PALLASMAA, 2006, p. 483).
O que essa abordagem (elementarista) deixa de lado, na visão do
autor, é a essência artística da arquitetura, para a qual não são as partes
ou qualquer soma delas que importa, mas, uma visão do todo, que
integra e não, meramente, soma.
Além dos estudos sobre a significação da arquitetura em sentido
amplo, que podem ser localizados em diferentes épocas e sob
enfoques variados, desde a segunda metade do século XX temos
autores que se dedicam a uma semiótica da arquitetura em sentido
estrito. Broadbent (2006) faz uma síntese das teorias principais,
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
183
Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]
provenientes de Peirce (1839-1914) e de Saussure (1857-1913), bem
como dos desenvolvimentos a partir dessas, conduzidos por outros
teóricos. Renato de Fusco e Maria Luiza Scalvini, além de Umberto
Eco, são citados como tendo se perguntado, com base nos conceitos
de “significante” e “significado” de Saussure, o que pode ser entendido
como um ou outro na arquitetura:
[Renato] De Fusco e [Maria Luiza] Scalvini, por exemplo, comparam
o exterior de um prédio (a Rotunda de Palladio em Vicenza), com o
significante de Saussure e o interior com o significado, um esquema
simples que eles elaboraram com sutileza. Contudo, [Umberto] Eco
seguiu uma linha bem diferente de pensamento. O significante poderia
ser uma escada, significando o ato de subir – o qual se torna, então o
significado (BROADBENT, 2006, p. 154).
O próprio Broadbent (2006) acrescenta a essas duas interpretações
uma terceira, acompanhando os conceitos de Ogden e Richards que,
segundo esse autor, em um desenvolvimento teórico a partir de Saussure,
“tomaram o significante (que chamaram de símbolo) e o significado
(que denominaram de pensamento ou referência) e acrescentaram um
terceiro elemento, o referente, que é o objeto, pessoa ou fato a que nos
referimos” (BROADBENT, 2001, p. 143). Para essa terceira interpretação
de Broadbent (2006) qualquer edifício pode ser considerado tanto em
termos de significante, quanto de significado e de referente.
Os conceitos de ícone, índice e símbolo de Peirce (1977) também são
parâmetros teóricos para investigações na arquitetura. Conforme Broadbent
(2006, p. 156), referindo-se à noção peirceana de ícone e às muitas
definições de Peirce acerca do conceito, ele próprio, além de “Eco, Voli,
[Tomás] Maldonado [...] e outros têm feito contribuições para esse debate”.
Ainda segundo Broadbent (2006), os conceitos de sintática,
semântica e pragmática de Charles Morris, provenientes de
desenvolvimentos a partir dos conceitos peirceanos, também têm sido
aplicados à arquitetura. Apoiado nesses conceitos Broadbent (2006,
p. 158) afirma que todo edifício tem uma sintática, uma semântica e
uma pragmática e que, portanto, uma vez que “aceitamos isso como
inevitável, podemos tratar de garantir que seja feito de maneira correta”.
184
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O significado em arquitetura [177-193]
Tratando da pragmática arquitetural – que observa a experiência das
pessoas com a arquitetura nos efeitos do signo arquitetônico manifestos
nos usos, na esfera do comportamento – Broadbent observa que
[...] a arquitetura afeta inevitavelmente vários sentidos ao mesmo tempo:
visão audição, olfato, sensação de calor e frio (através da pele), para não
falar de sentidos mais esotéricos como os de equilíbrio e das posturas e
movimentos de nossos músculos e articulações (cinestesia) (BROADBENT,
2006, p.146).
Embora isso possa parecer óbvio para alguns, esse modo de ver a
arquitetura não é sempre reconhecido, ou valorizado, mesmo pelos que
adotam uma abordagem semiótica, como constatou o próprio Broadbent:
Alguns arquitetos estudiosos da semiótica tendem a “ler” a arquitetura
como uma questão inteiramente visual, ignorando todos os outros modos
pelos quais a arquitetura nos “transmite” significado e, dessa maneira [...]
acabam por banalizá-la (2006, p.146).
Dentre os teóricos no Brasil que trabalharam sobre uma semiótica
da arquitetura e, também, do urbano, tomando por base a semiótica de
Peirce, destacam-se Décio Pignatari (1981) e Lucrécia D’Aléssio Ferrara
(1981; 2000; 2002). Esta última autora, que trabalha a semiótica do
urbano, distingue entre “visualidade” e “visibilidade”, para o que faz
uso, também, do conceito de “lugar”. Ela escreve:
Do espetáculo à experiência da cidade passa-se às diferenças entre
visualidade e visibilidade, passa-se da cidade ao lugar e, de uma semiótica
visual da cidade à semiótica do lugar invisível. Entre as duas cognições
processa-se a complexidade da semiótica da cidade que, em sua raiz, é
obrigatoriamente, uma semiótica visual (FERRARA, 2002, p. 121).
Na linha dessa semiótica, elaboramos a seguir algumas
considerações sobre a significação da arquitetura. De início, cabe dizer
que a semiótica de Peirce está fundamentada na sua fenomenologia, na
qual os fenômenos que nos aparecem à mente são classificados em três
grandes classes. Da primeira à terceira há um sentido de evolução; em
outras palavras, de passar da experiência meramente qualitativa com as
coisas (meras formas, cores, sons, odores) à experiência de significação
propriamente dita (racional).
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
185
Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]
De acordo com Peirce (1977), as qualidades são mais proeminentes
na chamada consciência qualitativa (ou de primeiridade), de pura
presentidade, anterior ao nosso contato com a materialidade das
coisas ou com os fatos; estes desencadeiam outro tipo de consciência
caracterizada como de alteridade (de confronto com o que é outro/
segundo para a consciência). Ambas são distintas de um terceiro
estágio da consciência, o responsável pela mediação (que se traduz na
experiência de significação). Este inclui os anteriores e é influenciado
por eles, em maior ou menor grau, conforme as características
da relação entre o signo, o objeto de representação e o que Peirce
chamou de interpretante do signo (que em uma de suas nuances – a
do interpretante dinâmico - pode ser entendido como interpretação).
Para essa semiótica, embora todas as coisas que têm qualidades
e materialidade tenham potencial significante, para participarem de
um processo que Peirce (1977) chamou de genuíno de significação,
devem envolver mais do que forma e matéria, devem incluir a ação
de certas leis, hábitos ou convenções. Estes permitem correlacionar
uma experiência sígnica de tipo meramente qualitativa (como uma
impressão, uma sensação), ou um fato em particular, com categorias ou
classes gerais de coisas.
Na gramática especulativa – primeira parte da semiótica peirceana
– o autor elabora algumas tríades de signos (correlacionadas com as
categorias fenomenológicas) e relações triádicas entre os tipos de
signo, as quais resultam em classes de signos logicamente possíveis. Os
três tipos de signos supracitados (ícone, índice e símbolo) compõem
uma das tríades mais conhecidas, dentre as desenvolvidas por Peirce
(1977). A que toma por base os modos de relação entre o signo e seu
objeto dinâmico, respectivamente, por similaridade, contiguidade ou
convenção.
A semiótica da arquitetura se apóia grandemente nas qualidades
formais que são percebidas visualmente; e para compreender a
significação com base nelas uma semiótica visual, principalmente, tem
sido aplicada. Mas um estudo pleno da significação na arquitetura deve
186
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O significado em arquitetura [177-193]
considerar, também, uma semiótica do espaço, do caráter tectônico,
dos usos e do lugar (este último tomado como o espaço impregnado
de valores históricos, culturais, sociais). Para tanto deve levar em
consideração diferentes tipos de signo.
Abaixo abordamos rapidamente o ícone, o índice e o símbolo,
apontando aspectos da arquitetura que remetem ao seu modo próprio
de estabelecer relação com um objeto. Em seguida, ainda brevemente,
abordamos o modo próprio do símbolo genuíno de gerar um
interpretante argumental, adentrando nos tipos de argumento. Com
isso damos continuidade a uma linha para a qual temos direcionado
nossos estudos, que busca compreender a significação na arquitetura
com base nesses tipos de argumento. Desta vez, todavia, tomando como
referência principal a relação da arquitetura com o usuário; enquanto
outras vezes abordamos os modos de raciocínio (especialmente o
dedutivo) no processo de elaboração do projeto.
O ícone é um signo cuja natureza significante está apoiada em uma
relação entre signo e objeto regida por mera similaridade formal entre
qualidades de um e de outro. E esta é a origem do seu potencial para
representar um objeto na mente. E, dado que tudo deve ter alguma qualidade,
tudo pode funcionar como ícone e remeter a outras coisas por semelhança.
O que o ícone faz é representá-los qualitativamente, por semelhança.
As qualidades da arquitetura incluem formas visuais, cores,
texturas, composição, volume. Entre outros modos de funcionamento,
essas podem evocar objetos possíveis: outras obras de arquitetura,
coisas externas à arquitetura, sentimentos ou pensamentos. Se apoiadas
em meras relações de semelhança elas não fazem mais do que apontar
para um poder ser. Todavia, embora de um baixo grau de definição, esse
tipo de significação é dotado de um apelo que chamamos de estético,
capaz de causar forte impressão. Esse é um tipo de significação muito
valorizado por quem considera a arquitetura uma linguagem artística.
O índice é um signo cuja natureza significante está apoiada em
uma relação entre signo e objeto regida por contiguidade. Daí resulta
seu potencial para significar um objeto em uma mente. O que ele faz
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
187
Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]
é fornecer informação sobre as singularidades de alguma coisa ou fato
que existe. E, dado que tudo o que existe deve ter um modo específico
de se constituir materialmente, todos os existentes podem vir a ser
representados por meio de um índice.
A arquitetura gera representações dessa natureza, as quais permitem
ultrapassar o recorte icônico (das meras qualidades) para adentrar na sua
natureza existencial e concreta. Essa concretude carrega informações
de fato sobre materiais, técnicas e outros. Mas o mais importante para
a arquitetura é, talvez, que certas relações indiciam sob a forma de uma
referência. É o caso dos signos que são reconhecidos como indicadores
de funções estabelecidas culturalmente; ou, de modo mais básico, o
de que a natureza concreta da arquitetura é fundamental à indicação
de sua função de abrigo. Os interpretantes dos índices, todavia, geram
meros reconhecimentos de algo positivo ou negativo, sem serem
capazes de justificar suas proposições.
O símbolo, por sua vez, é um signo cuja natureza significante
está apoiada em uma relação entre signo e objeto regida por uma
convenção, regra ou lei. O que o símbolo representa é a generalidade
das coisas. Esse tipo de interpretação exige que a mente interpretante
tenha acesso, por meio de aprendizado, aos conceitos que incorpora,
o que a prepara para reconhecê-los em ocorrências particulares. Sua
significação é tida como genuinamente triádica e como contendo a
própria estrutura do raciocínio.
A arquitetura tem uma natureza simbólica desde que cada obra
é produto de elaboração conceitual. Esta tem vínculos tanto com a
subjetividade quanto com a formação erudita do autor (quando é o
caso), a história, a cultura, a sociedade. Sempre que se apreendem
informações culturais, por exemplo, sobre o modo como a obra
organiza sua proposta de espaço e de vivência, se está interpretando
por meio de relações simbólicas.
O interpretante do símbolo genuíno é um argumento, forma de
raciocínio estudada por Peirce na segunda parte da sua semiótica,
a lógica crítica. Nesta Peirce classifica os raciocínios em três tipos:
188
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O significado em arquitetura [177-193]
abdução, dedução e indução. A subdivisão, à semelhança das
categorias fenomenológicas, bem como dos tipos de signo (ícone,
índice e símbolo), implica em diferentes graus de definição para cada
tipo de raciocínio. Mas, principalmente, cada um deles é responsável
por uma espécie de método do nosso pensamento para significar em
situações diferentes. E cada um desses, por sua vez, exerce um papel
único e insubstituível na nossa busca por dar significado às coisas de
modo a podermos agir com base neles.
O raciocínio abdutivo é também chamado de originário;
seu processo é o da formação de uma hipótese. Ele se aplica
especialmente às situações nas quais buscamos entender algo novo.
Mais especificamente, quando somos levados a interpretar um caso
particular com base no que conhecemos (regra ou lei); todavia, sem que
o caso esteja previsto na regra ou decorra diretamente da observação.
Configuram-se aí os casos em que o raciocínio é levado a considerar
relações meramente possíveis entre caso e regra. A legitimidade desse
modo de raciocínio para uma mente científica está apoiada na validade
do que Peirce (1977, p. 221) chamou de introvisão ou insight, que
é semelhante ao instinto animal para sobreviver; no nosso caso, para
aprender coisas novas.
Pode-se dizer que o modo de raciocinar por abdução é estimulado
no usuário da arquitetura por aqueles designers que a defendem como
algo que se renova constantemente. Tal arquitetura é concebida como
arte; e o que ela propõe é um interpretante predominantemente
estético. Seus arquitetos defendem-na justamente como um tipo de
signo novo e, portanto, estranho; que na relação com o usuário deve,
no máximo, funcionar como uma sugestão hipotética. Defendem a
novidade da experiência, usos não-automatizados; uma arquitetura
que não prioriza, ou mesmo rejeita, significações gerais, consolidadas,
quaisquer que sejam. Uma arquitetura em defesa da constante
renovação dos modos de viver, ou do constante aprendizado das nossas
possibilidades de viver. Em termos desta semiótica, estimulam um agir
por abdução, um descolar-se – na medida do possível – das crenças; um
aprender arriscando-se e criando possibilidades em meio a incertezas.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
189
Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]
Essa arquitetura está altamente apoiada em uma semiótica visual
que enfatiza as relações icônicas mais puras; suas formas rejeitam os
padrões formais constituídos. No que se refere às opções formais, é
fundamental para Eisenman (um importante arquiteto da atualidade)
a não-perspectiva, a não linearidade; a forma cujo interpretante não
remete a algo que na base é simples e facilmente identificável como
caso de aplicação de uma regra (a exemplo da unidade ético-estética
do funcionalismo), mas, a algo que é, na base, necessariamente
fragmentado, múltiplo por natureza.
O raciocínio dedutivo, por sua vez, extrai consequências de
uma regra qualquer para casos particulares, meramente pelo fato
de se vincular o caso à regra. Se visto desse, modo parece mero
reconhecimento do caso como aplicação da regra, de outro a dedução
ganha uma perspectiva evolutiva. Nas palavras de Peirce (1977, p. 215),
a dedução “desenvolve as consequências necessárias de uma hipótese
pura”. Nesse caso seu processo é o das ações explicativas da hipótese;
o que transcende o mero caso.
Algumas das hipóteses formuladas arquitetonicamente tendem a
influenciar processos que bem podem ser entendidos como dedutivos.
No âmbito da prática da arquitetura isso deve ocorrer sempre que um
modo novo de ver a arquitetura é proposto – conceitualmente ou por
meio de projetos ou obras – e, a partir disso, os próprios proponentes,
ou outros, passam a experimentar suas consequências. Esse é o caso das
variações dos princípios da arquitetura moderna, praticadas por arquitetos
da primeira metade do século XX. Aponta-se como experiências mais
puramente vinculadas às hipóteses modernistas as obras arquitetônicas
de Le Corbusier, Mies van der Rohe, Rietveld, entre outros.
No âmbito do usuário, ainda em uma perspectiva evolutiva,
podem-se localizar como procedimentos dedutivos os casos em que
esse é estimulado a agir segundo uma hipótese já elaborada e em função
do que decore dela; por exemplo, diante de arquiteturas inovadoras,
logo após esse usuário ter formulado uma hipótese de uso. Mas
procedimentos dedutivos também podem ocorrer mais desvinculados
190
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O significado em arquitetura [177-193]
da intenção de testar uma ideia; por exemplo, diante de arquiteturas
cujo tipo ou padrão já é bem conhecido do usuário, de modo que ele
meramente reconhece ali o caso de aplicação de uma regra e age com
base nisso. Neste último caso meramente se aplica uma regra geral a
um caso particular.
A indução, por outro lado, nas palavras de Peirce (2008, 173), é
o modo de raciocínio por meio do qual “generalizamos a partir de um
número de casos nos quais algo é verdade e inferimos que a mesma
coisa é verdade para uma classe inteira”; nas palavras de Ferrara (1981,
p.59), que segue a base teórica peirceana, a indução “oferece uma
implicação repetitiva, redundante, quantitativa do conhecimento. Pela
observação e pela experimentação, a indução registra uma concordância
regular entre alguns fatores e propõe hipóteses de generalização para a
realidade objetiva”. Ela vai dos casos à regra.
No âmbito da arquitetura pode-se dizer que tal procedimento foi
adotado, por exemplo, quando, elaboradas as hipóteses funcionalistas
e as suas primeiras deduções, se propôs adotar o funcionalismo como
modelo ideal de arquitetura social. Também quando se acordou
entre os arquitetos em geral que sua combinação ético-estética era
apropriada para a época e se adotou seus princípios, generalizando a
prática. No âmbito do usuário esse é o processo pelo qual ele elabora
seu conhecimento sobre a arquitetura, generalizando, de modo a estar
preparado para as vivências futuras.
Segundo a hipótese de Peirce, esses raciocínios não agem
isoladamente, mas, todos ao mesmo tempo. Daí que toda arquitetura,
mesmo a mais tradicional, deve permitir um agir hipoteticamente,
na medida em que não está fechada a novas possibilidades de uso
e de viver. De outro lado, mesmo a arquitetura mais exótica deverá
permitir seu reconhecimento como arquitetura e, além disso, estar
comprometida com certas regras e ter certo grau de redundância, o que
permitirá agir em relação a ela com base em um mínimo de certeza.
Todavia, o modo como os signos estão organizados pode estimular
mais o proceder segundo um modo de raciocínio ou outro. Um modo
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
191
Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]
de entender isso é pensando que os arquitetos podem estimular tanto a
preservação quanto a diversificação dos modos de viver. Aqui não se está
apontando o certo ou o errado. O que importa a esta linha de estudos
é apontar para essa parte da semiótica de Peirce como uma importante
ferramenta para investigação da arquitetura como linguagem; ou
como a linguagem se manifesta em termos de arquitetura; ou para a
investigação dos modos como a arquitetura age em relação com o nosso
raciocínio, o que nos parece mais atraente do que o estudo de aspectos
meramente formais, de composição ou tecnológicos ou outros.
Quando aplicamos isso à compreensão de como a arquitetura
se manifesta na contemporaneidade, é impossível não notarmos a
tendência da arquitetura chamada digital ou da chamada genética
para romper com as regras tradicionais no interior da linguagem, tanto
em forma e composição, quanto nas relações entre forma e função
– prática ou simbólica. Isso ocorre de um modo muito mais radical
do que ocorreu no período entre–guerras. Ainda que essa arquitetura
mantenha, em muitos casos, o caráter monumental, tão tradicional, nos
parece inegável que provoca no usuário muito mais um estar diante de
algo novo e estranho do que um mero reconhecimento.
Isso diz algo não meramente sobre a arquitetura, mas, sobre nossa
época. Fala de uma valorização do incerto; não apenas nas imagens da
publicidade, do cinema, das artes plásticas e digitais, mas, na parte do
ambiente com a qual interagimos espacialmente, não como em uma
instalação artística, de onde se pode sair como se sai de um sonho, mas
na vivência do dia-a-dia.
Referências
BROADBENT, Geoffrey. Um guia pessoal descomplicado da teoria dos signos na
arquitetura. In NESBIT, Kate (Org). Uma Nova Agenda para a Arquitetura – Antologia
Teórica (1965 – 1995). Tradução Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
EISENMAN, Peter. O pós-funcionalismo. In NESBIT, Kate (Org). Uma Nova Agenda para
a Arquitetura – Antologia Teórica (1965 – 1995). Tradução Vera Pereira. São Paulo:
192
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
O significado em arquitetura [177-193]
Cosac Naify, 2006.
FERRARA, Lucrécia D’Alessio. A Estratégia dos Signos. São Paulo: Perspectiva/Secretaria
de Estado da Cultura SP, 1981.
FERRARA, Lucrécia D’Alessio. Os Significados Urbanos. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo; FAPESP, 2000.
FERRARA, Lucrecia. Design em Espaços. São Paulo: Edições Rosari, 2002.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
Aurélio Eletrônico (CD-ROM), V 5.0. 40. Curitiba: Positivo Informática, 2000.
FRAMPTON, Kenneth. Uma leitura de Heidegger. In NESBIT, Kate (Org). Uma Nova
Agenda para a Arquitetura – Antologia Teórica (1965 – 1995). Tradução Vera Pereira.
São Paulo: Cosac Naify, 2006.
IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noetós: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo:
Perspectiva/Hólon, 1992.
NESBIT, Kate (Org). Uma Nova Agenda para a Arquitetura – Antologia Teórica 1965
– 1995. Tradução Vera Pereira. Revisão Técnica José Tavares Correia de Lira e Joana
Mello. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
NORBERG-SCHULZ, Christian. O fenômeno do lugar. In NESBIT, Kate (Org). Uma
Nova Agenda para a Arquitetura – Antologia Teórica (1965 – 1995). Tradução Vera
Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
NÖTH, Winfred. Panorama da semiótica: de Platão a Peirce. São Paulo: ANNABLUME,
1995.
PALLASMAA, Juhani. A geometria do sentimento: um olhar sobre a fenomenologia da
arquitetura. In NESBIT, Kate (Org). Uma Nova Agenda para a Arquitetura – Antologia
Teórica (1965 – 1995). Tradução Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
PEIRCE, Charles S. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1977.
PEIRCE, Charles S. Ilustrações da Lógica das Ciências. Trad. E Intr. Renato Rodrigues
Kinouchi. Aparecida, São Paulo: Idéias e Letras, 2008.
PIGNATARI, Décio. Semiótica da arte e da arquitetura. São Paulo: Cultrix, 1981.
POLIÃO, Marco Vitrúvio. Da Arquitetura. Tradução e notas Marco Aurélio Lagonegro.
São Paulo: Hucitec, Fundação Para a Pesquisa Ambiental, 1999.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.
VENTURI, Robert. Complexidade e Contradição em Arquitetura. Tradução Álvaro
Cabral. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1995.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
193
A evolução do objeto de estudo da sintaxe e
da semântica narrativas
The evolution of the object of study of syntax and semantics
of narratives
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello
Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas
Centro de Ciências Humanas
Universidade Estadual de Londrina [email protected]
Resumo: O objetivo deste texto é mostrar a evolução do objeto de estudo da
Semiótica de linha francesa no que diz respeito ao seu nível narrativo. Em
um primeiro momento, serão apresentadas as fases do desenvolvimento
da disciplina, iniciando pela ação transformadora do sujeito até chegar à
Semiótica das Paixões. Em um segundo momento, esse modelo clássico
será contrastado criticamente com os quatro regimes de interação e de
sentido concebidos por Eric Landowski (C.N.R.S/Paris), a saber: o regime
da programação, da manipulação, da união e do acidente.
Palavras-Chave: Semiótica. Interação. Regime da União. Regime do Acidente.
Objeto-Valor.
Abstract: The objective of this text is to show the evolution of the object of study
of the French Semiotics concerning the narrative level. Firstly, the phases
of its development will be presented, starting from the transforming action
of the subject and finishing with the Semiotics of the Passions. Secondly,
this classic model will be contrasted critically with the four regimens of
interaction conceived by Eric Landowski (C.N.R.S/Paris): the programming,
the manipulation, the union and the accident.
Keywords: Semiotics. Interaction. Regimen of the Union. Regimen of the
Accident. Object Value.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
195
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]
Introdução
O modelo de análise da Semiótica prevê três níveis de investigação,
a saber: o nível profundo ou fundamental, o narrativo e o discursivo. É na
etapa narrativa (sintaxe e semântica narrativas) que o analista encontra
seu porto seguro. É ali que a Semiótica mais avançou. Contudo, o
modelo existente é aquele que já havia sido concebido pelo próprio
Greimas em Semântica Estrutural (1976)1. Mais recentemente, Eric
Landowski propõe um desdobramento teórico do modelo tradicional.
Não se trata de substituir a abordagem anterior por outra, mas sim de
acrescentar algo novo ao arcabouço teórico já existente para poder dar
conta de explicar diferentes formas de interação.
A finalidade deste texto é mostrar a mudança de paradigma
proposta por Landowski ao propor dois novos regimes de interação e
de sentido, a saber: o regime da união e do acidente. Antes disso, fazse uma síntese das diferentes fases da Semiótica no que diz respeito ao
desenvolvimento do seu nível narrativo de análise.
1. A ação transformadora do sujeito
A primeira fase da Semiótica, dos anos sessenta e início dos
setenta, relaciona-se à análise estrutural da narrativa, desenvolvida
em torno da sintaxe da ação. Nesse aspecto, o nascimento da
Semiótica deve muito aos trabalhos desenvolvidos por Propp e por
Lévi-Strauss. Ainda em relação à estrutura da narrativa, Fiorin (1995,
p. 72) observa que tanto Greimas como Propp queriam revelar o que
havia de constante e sistemático nas mais diferentes variedades de
narrativas. Buscaram, assim, perceber o que havia de invariável na
imensa variedade de manifestações narrativas (oral, escrita, gestual,
pictórica etc.) e nos mais diferentes tipos de narrativas, como, por
exemplo, nos mitos, nos romances, nas epopeias, nas tragédias, nas
comédias, nas fábulas etc.
Cf. especialmente o capítulo intitulado “Estrutura elementar da significação”, subitens
“Continuidades e descontinuidades” e “Conjunção e Disjunção”.
1
196
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]
Com isso, a Semiótica dava um salto qualitativo muito importante,
uma vez que extrapolava os limites da análise da frase, que era, até
aquele momento, a unidade última da análise linguística estrutural.
Barros (1995, p. 83) lembra que a narratividade, nesse momento, era
concebida como uma transformação de estados, feita por meio da
ação de um sujeito que quer entrar em conjunção com o seu objetovalor. Os conflitos entre os sujeitos estão relacionados à conjunção ou
à disjunção com os objetos-valores.
A Semiótica sofreu muitas críticas nessa fase, visto que muitos
a viam como uma coisa já “acabada” e “definitiva”, portanto, como
reducionista. Além dessa abordagem estruturalista, as análises, nessa
fase, restringiam-se a determinados tipos de textos, a saber: o verbal,
figurativo e da chamada “pequena literatura”, como folclore, conto etc.
2. A competência modal do sujeito
A segunda fase da Semiótica coincide com o aprofundamento nos
estudos sobre as modalizações. Na primeira fase, falava-se de uma ação
transformadora de um sujeito. Agora, fala-se das condições necessárias
para a realização da ação desse sujeito. Enfatizam-se, nesse momento,
estudos sobre a competência modal do sujeito. Se, na primeira fase, a
ênfase recaía sobre a ação, agora, o foco de atenção se volta para os
programas narrativos que modalizam o sujeito pelo querer fazer, pelo
dever fazer, pelo poder fazer e pelo saber fazer. Em outras palavras,
quer-se saber como o sujeito se torna competente para uma ação.
Com os estudos sobre a modalização do sujeito, a partir da qual o
sujeito se instaura como sujeito do fazer, a Semiótica começa a percebe
os modos de existência dos sujeitos. O modo de existência do sujeito leva
em consideração a relação que o sujeito mantém com o querer fazer, o
dever fazer, o poder fazer e com o saber fazer. Foi nesse momento que
a Semiótica estabeleceu três modos para a existência modal do sujeito:
a. sujeito virtual – aquele que quer e/ou que deve fazer. Na sua
relação com o objeto, trata-se de um sujeito não-conjunto, mas
que tem as condições mínimas necessárias para executar o fazer.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
197
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]
b. sujeito atualizado – aquele que pode e que sabe fazer. Trata-se
de um sujeito disjunto com o seu objeto.
c. sujeito realizado – aquele que executou a ação, que foi
responsável pela transformação de estado da narrativa. O
sujeito está conjunto com o seu objeto.
Greimas e Fontanille (1993, p. 52-53) falam, ainda, de uma quarta
existência modal para o objeto. Trata-se do sujeito potencializado: um
estado intermediário entre o sujeito realizado e o sujeito atualizado. Na
verdade, fala-se de uma pré-disposição do sujeito para executar a ação.
Dessa forma, é uma existência modal pressuposta a partir da existência
de um sujeito conjunto com seu objeto, isto é, realizado.
Ao tratar dos modos da existência do sujeito, a Semiótica analisa
não apenas o sujeito que tem sua competência modal alterada, mas
pensa também no sujeito operador dessa mudança modal. Nesse
sentido, a Semiótica envereda para o exame da manipulação. Com
isso, a mudança foi extraordinária: a Semiótica, agora, não só pensa
no sujeito em relação ao seu objeto, mas também se aprofunda no
exame das relações entre os sujeitos, que estabelecem e rompem
contratos. Com isso, o esquema narrativo canônico passou a abranger
três percursos: o da manipulação, o da ação e o da sanção.
Ainda nessa segunda fase, busca-se analisar os contratos e os
conflitos entre os sujeitos. Contudo, diferentemente da primeira fase
dos estudos semióticos, o conflito, agora, advém porque os sujeitos
possuem sistema de valores diferentes e, portanto, assumem diferentes
papéis contratuais. Dessa forma, o conflito entre sujeitos da narrativa
não se resume às polêmicas entre diferentes sujeitos que querem os
mesmos objetos, o que acontecia na primeira fase.
Outro avanço dessa segunda fase diz respeito ao processo da
comunicação entre os sujeitos. Em razão do percurso do sujeito
destinador manipulador, aquele que faz querer, a comunicação entre os
sujeitos deixou de ser um fazer saber e passou a ser compreendido como
um fazer crer. Com isso, a comunicação deixou de ser vista como uma
198
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]
mera troca de informação entre os sujeitos (destinador e destinatário).
Fala-se, agora, do fazer persuasivo do destinador e do fazer interpretativo
do destinatário. Em relação a esse assunto, Fiorin (1989, p. 52) observa:
A finalidade última de todo ato de comunicação não é informar, mas
é persuadir o outro a aceitar o que está sendo comunicado. Por isso, o
ato de comunicação é um complexo jogo de manipulação com vistas a
fazer o enunciatário crer naquilo que se transmite. A linguagem é sempre
comunicação (e, portanto, persuasão), mas ela o é na medida em que é
produção de sentido. Nesse jogo de persuasão, o enunciador utiliza-se
de certos procedimentos argumentativos visando a levar o enunciatário a
admitir como certo, como válido o sentido produzido.
Isso abriu novas perspectivas no tratamento do processo da
comunicação, nas relações interacionais entre os sujeitos, nas estratégias
de argumentação etc. A comunicação, mais do que um fazer saber,
passa a ser entendida como um fazer crer. A respeito disso, Fiorin
(1988, p. 53) escreve:
A comunicação não deve ser entendida apenas como um fazer
informativo, mas também e principalmente como uma estrutura complexa
de manipulação, em que o enunciador exerce um fazer persuasivo e o
enunciatário, um fazer interpretativo. [...]. O primeiro, dotado de um
querer/saber/poder fazer-crer, faz o segundo crer em seu discurso.
Soma-se a isso o fato de que, com essa nova abordagem, a sintaxe
narrativa começa a ser aplicada não somente a textos de ação (como
era característico da primeira fase), mas também a textos temáticos.
Alarga-se, dessa forma, o campo de ação da Semiótica.
3. A existência modal do sujeito
Se com as modalizações que instauram o sujeito do fazer a
Semiótica viveu sua segunda etapa, com a modalização do ser, ela
inaugura sua terceira fase.
Como se sabe, as modalizações (querer, dever, poder e saber,
com todas as suas sobremodalizações) estão diretamente ligadas ao
relacionamento entre o sujeito e seu objeto. Essas modalidades podem
ser “intencionais” ou do fazer (modalização do fazer) ou, então,
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
199
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]
“existenciais” ou do ser (modalização do ser). As modalizações do fazer
são aquelas que qualificam o sujeito para a ação.
Por outro lado, a modalização do ser marca a relação que o sujeito
mantém com o objeto. Ou seja, o tipo de relacionamento que o sujeito
mantém com o objeto determina sua “existência modal”.
As modalidades que caracterizam o sujeito de estado são
determinadas pela conversão das categorias de tensão ou de
relaxamento. Fica claro que é necessário pensar não só na relação do
sujeito com o objeto, mas também na relação do sujeito com o valor.
Ou seja, é necessário analisar o investimento de valor que o sujeito faz
no objeto e a natureza desse valor.
A primeira coisa a esclarecer é que o investimento semântico que
se faz no objeto é determinado pela relação que o sujeito mantém
com esse objeto. Isso equivale a dizer que o valor investido no objeto
modaliza o sujeito de estado. Com isso, fica claro que a modalização
do sujeito de estado passa pela modalização do objeto.
Se a modalização do sujeito do fazer é caracterizada por um
querer fazer, dever fazer, poder fazer e saber fazer, a modalização
do sujeito de estado, em relação ao objeto, descreve-se pelo querer
ser, dever ser, poder ser e saber ser, entendendo-se o “ser” como
uma relação juntiva entre sujeito e objeto. Em outras palavras, o
sujeito de estado concebe sua relação com o objeto investindo-lhe
um determinado valor, definindo, assim, uma “existência modal” para
o objeto e, consequentemente, para si mesmo. Nesse sentido, se o
valor investido por um sujeito num objeto desejável, mas, ao mesmo
tempo, impossível, diz-se que o sujeito de estado tem sua existência
modal marcada pelo querer ser e pelo não poder ser. Por outro lado,
se a relação que o sujeito mantém com o objeto é indesejável, mas
impossível de ser rompida, tem-se, então, um sujeito de estado que
caracteriza sua existência modal pelo não quer ser e pelo não poder
não ser, e assim por diante.
200
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]
Barros (2007) observa que os termos escolhidos servem para
caracterizar o objeto. Dessa forma, um objeto poderá ser desejável,
indispensável, possível ou verdadeiro quando a relação do sujeito com
o valor investido no objeto for marcada pelo querer-ser, dever-ser,
poder-ser e saber-ser.
Em síntese, há três tipos de modalização dependendo do local
onde a modalização incide no enunciado: modalização da junção,
modalização do sujeito do fazer e modalização do objeto. Como se
mostra, a modalização do enunciado caracteriza-se pelas modalidades
veridictória e epistêmica. A modalização do sujeito do fazer prepara
o sujeito para a ação, atribuindo-lhe um querer, dever, poder e saber
fazer. A modalização do objeto é determinada pelo valor que o sujeito
de estado atribui ao objeto. Nesse caso, o sujeito é modificado pelo tipo
de investimento modal que marca seu relacionamento com o objeto.
4. O estado de alma do sujeito
É somente a partir dos estudos sobre esses três tipos de
modalização que a Semiótica aventura-se no campo das paixões:
sua quarta fase. Mais especificamente, é a partir dos estudos sobre a
modalização do ser (modalização da junção e modalização do objeto)
que a Semiótica encontra um campo fértil para investigar e descrever
as emoções humanas. A paixão surge como o resultado do jogo entre
as modalidades do querer ser, do dever ser, do saber ser e do poder ser.
Cada uma dessas modalidades pode desdobrar-se em quatro posições
modais, já que se pode negar cada um dos predicados ou os dois ao
mesmo tempo. A partir da modalidade do querer ser, por exemplo,
pode-se chegar ao querer ser, ao não querer ser, ao querer não ser e ao
não querer não ser. Uma paixão é, então, o fruto de arranjos modais,
que determinam certos “estados de alma”. A literatura sobre o assunto
mostra que um “estado de coisas” leva a um “estado de alma”.
Assim, se a Semiótica estuda a busca do sujeito por objetos-valores, pode-se dizer que os “estados de alma” aparecem, porque esses sujeitos, tentando entrar em conjunção com seus objetos-valores,
criam “conflitos”, “polêmicas” entre si ou, então, estabelecem entre si
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
201
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]
“situações de cumplicidade”, “de benevolência”. As paixões podem,
então, ser definidas como modalizações do ser dos sujeitos de estados narrativos que, no nível discursivo, aparecem concretizadas por
lexemas.
Com os valores investidos pelo sujeito no objeto, podem-se
reconhecer determinados “estados de alma” desses sujeitos. Assim, se
ele não quer ser, mas não pode não ser, pode-se entrever aí o desespero,
a angústia, o medo, a vergonha. No entanto, uma investigação sobre
paixões não deve restringir-se apenas às investigações dos arranjos
modais, embora essa atitude seja indispensável. Um estudo sobre paixão
que se limita à análise dos arranjos modais não consegue explicar o
fato de uma mesma sequência modal poder produzir diferentes efeitos
passionais. Por exemplo, um não querer ser, associado a um não poder
não ser, pode levar o sujeito ao desespero, à angústia, ao medo, à
vergonha. Torna-se claro, assim, que o estudo sobre as paixões deve ir
além dos arranjos modais.
E ir além dos arranjos modais significa analisar não fragmentos do
discurso (sobretudo daquelas partes relacionadas ao sujeito de estado),
mas ao discurso como um todo. E, para isso, faz-se necessária uma
investigação sobre as relações actanciais do discurso, dos programas
e dos percursos narrativos e não apenas dos arranjos de modalidades,
que, de forma mais direta, constituem a existência dos sujeitos. Ou
seja, para uma investigação e descrição das paixões complexas, não
basta uma análise das modalidades que constituem o sujeito patêmico.
Faz-se necessário organizar os percursos em estados passionais e
verificar as transformações modais que determinaram aquele estado
passional. Com isso, (re)constrói-se a organização modal e passional
da narrativa.
5. A contribuição landowskiniana
Todas as situações descritas até este ponto mostram a busca do sujeito
por seu objeto-valor e a polêmica que se instaura na narrativa. É o que Eric
Landowski denomina “regime da junção”, porque se trata de uma situação
mediatizada por um objeto-valor. A partir disso, Landowski desenvolve
dois regimes de interação: o regime da manipulação e o da programação.
202
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]
6. O regime da programação
Landowski explica que a programação está baseada em princípios
empíricos, como as leis da Física, por exemplo. Como se enquadra
dentro do regime da junção, a programação conta com a atuação de três
actantes: o sujeito, que realiza ações na busca do valor investido num
objeto; o objeto-valor, fim último das ações do sujeito; e o destinatário,
aquele que “deseja” o objeto e entra em conjunção ou disjunção com
ele. Cabe ressaltar, porém, que os papéis de sujeito e de destinatário
podem ser desempenhados por um mesmo indivíduo: situação essa
quando ocorre o sincretismo de sujeitos.
Como as ações decorrentes desse regime – como o próprio nome
o diz – são programadas, há uma sequência predeterminada a ser
seguida, objetivando-se certo resultado, já esperado. Em outras palavras,
o sujeito, ao “querer” entrar em conjunção com determinado objetovalor, realiza procedimentos ordenados para que sua performance seja
alcançada. Entende-se como performance, segundo Barros (2007, p.
26), a “ação do sujeito com vistas à apropriação dos valores desejados”.
Para deixar tal conceito mais claro, pode-se tomar como exemplo
um homem (o sujeito) que queira estacionar seu carro numa vaga
qualquer de um estacionamento, entre dois outros veículos. Para entrar
em conjunção com seu objeto-valor, representado aqui pelo “carro
devidamente estacionado”, o motorista deve realizar uma série de
manobras específicas para. Ele, evidentemente, sabe o momento de
troca das marchas, a direção para a qual o volante deverá voltar-se,
enfim, o sujeito está programado para executar sua performance.
O mesmo aplica-se a situações em que pessoas querem, por
exemplo, congelar água ou fervê-la. Tais pessoas sabem o que devem
fazer, baseando-se em resultados de experiências anteriores, que já se
tornaram espécies de “regras” a serem seguidas para a concretização de
determinadas atividades.
Assim sendo, é possível dizer, segundo os estudos de Landowski,
que o regime da programação também é o da certeza, uma vez
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
203
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]
que, caso os procedimentos forem realizados de modo correto,
dificilmente o resultado será diferente do esperado pelo sujeito. Por
isso, a programação leva à performance do sujeito, à (quase) perfeição,
a menos que fatores externos (como o acidente, que será discutido
posteriormente) interfiram no curso de suas ações.
7. O regime da manipulação
Assim como a programação, a manipulação, explica Landowski,
enquadra-se no regime da junção, também com a participação de três
actantes. Porém, Landowski mostra que aqui a certeza dá lugar à dúvida
ou à incerteza, porque o resultado não depende de fatores empíricos.
Como já foi dito, um mesmo sujeito pode assumir diversos papéis,
agindo sobre si mesmo ou, então, trabalhando para que o outro faça o que
ele quer, colocando-o em conjunção com seu objeto-valor. No entanto, para
convencer/persuadir, como explica Barros (2007, p. 28), é preciso que “o
destinador doe ao destinatário-sujeito os valores modais do querer-fazer, do
dever-fazer, do saber-fazer e do poder-fazer”, modalizações indispensáveis
para a efetivação da performance. É justamente nisso que reside a dúvida, a
incerteza da interação, característica desse regime, como ressalta Landowski.
Explica, ainda, o pesquisador que sujeito manipulado, dotado do livrearbítrio, é quem decide se realizará ou não a performance. Em outras
palavras, a mudança de estado daquele que manipula (sujeito manipuladordestinador), daquele que deseja o objeto, fica nas mãos do sujeito do fazer.
Para o sucesso da ação, para que seu objetivo seja alcançado, o
manipulador pode lançar mão de algumas estratégias2. A manipulação
pode dar-se de quatro maneiras: por provocação, por sedução, por
intimidação ou, ainda, por tentação. O modo de ação dependerá
da relação estabelecida entre os sujeitos, o que manipula e o que é
manipulado. Para tanto, faz-se necessário que o manipulador conheça
bem o manipulado, para que, com base nesse conhecimento, possa
persuadi-lo com sucesso.
Landowski prefere a utilização do termo “estratégia” para designar os atos de manipulação.
2
204
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]
Desse modo, Landowski mostra que a manipulação é o regime da
intencionalidade por existir sempre uma intenção por trás das ações
do sujeito que manipula, que quer ter a posse do seu objeto-valor por
intermédio da performance de um outro sujeito.
Landowski salienta que, embora sejam distintas, cada um com
suas peculiaridades, a programação e a manipulação são regimes em
que objetos, revestidos por valores, circulam entre os sujeitos e podem
ser considerados os principais “agentes” mediatizadores das interações
entre esses indivíduos. Contudo, nem todas as relações interativas
podem ser descritas por esses dois modelos, com será demonstrado a
seguir. E é justamente nesse ponto que, mais uma vez, se destacam as
contribuições de Eric Landowski.
8. O regime da união
Eric Landowski envereda-se pelo campo das interações sociais,
visto que é ali que ocorrem as significações em ato, as significações
em situações vividas. É ali, portanto, que o “sentido é sentido”
(LANDOWSKI, 1996, p. 39). Em 2004, ele publica Passions sans nom
no qual desenvolve o “regime da união”.
Há situações específicas em que o tipo de interação desenvolvido
não pode ser descrito pelo modelo clássico, isto é, em que um sujeito
busca a junção com um determinado objeto-valor. Existem situações em
que a situação é bem mais complexa de ser descrita e exige do analista
um novo desdobramento do modelo clássico (regime da junção). O
regime de sentido deixa de ser baseado na existência de objeto-valor e
alicerça-se na co-presença sensível dos actantes. Isso dá início ao que
se convencionou chamar de semiótica da presença. A esse propósito,
ressalta Landowski (2005b, p. 19):
Ao lado da lógica da junção entre sujeitos e objetos, que fundamenta
a abordagem dos fenômenos de interação pensados em termos
de estratégias de persuasão e de fazer fazer, devemos prever uma
problemática do fazer ser que ponha em jogo um outro tipo de relações
entre actantes, da ordem do contato, do sentir e, em geral, daquilo que
chamaremos de união.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
205
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]
Esse “fazer fazer”, próprio do regime da junção, mais
especificamente com a manipulação, em que sujeitos agem sobre si
mesmos ou sobre outros, para atingir determinado fim, dá lugar ao
“fazer ser”, em que corpos interagem por meio da estesia.
Diferentemente do regime da junção (programação e manipulação),
no regime da união, além de não haver mais a circulação de objetos, não se
fala mais em sujeitos, mas sim em corpos que entram em contato, criando
valores no ato da interação. A esse respeito, Landowski (2005b, p. 19) afirma:
enquanto é próprio do regime da junção fazer circular entre os sujeitos,
objetos que têm uma significação e um valor já definidos, segundo o
regime de união, no qual os actantes entram estesicamente em contato
dinâmico, é sua co-presença interativa que será reconhecida como apta
a fazer sentido, no ato, e a criar valores novos.
Desse modo, as ideias de regularidade e de intencionalidade,
características da programação e da manipulação, dão lugar a novas
formas interativas, baseadas sobretudo na sensibilidade. A relação
entre os sujeitos caracteriza-se por um ajustamento constante em que a
estesia rege as relações entre os corpos.
No ajustamento, ocorre um ajuste entre os corpos. Eles entram
em contato e, também por meio da sensibilidade, compartilham
características, sensações, experiências. Um casal que faz uma exibição
de dança necessita desse “ajuste” para que o resultado do espetáculo
seja satisfatório aos olhos de quem assiste. Cada passo conduzido por um
deles deve levar o outro a se posicionar de modo reativo e adequado.
Não há mais aqui a intencionalidade de “fazer o outro fazer”
(descrição típica do regime da junção), porquanto há o “fazer junto”,
numa concomitância de intenções, com corpos que agem por meio da
reciprocidade. É essa concomitância que justifica a criação do “valor
em ato”, já que os corpos trabalham juntos na construção do sentido.
Ainda ao discorrer sobre esse regime, Landowski (2005b)
desenvolve o conceito de contágio e toma a gargalhada como exemplo.
Ele explica que a gargalhada pode ter início em um corpo e passar
a outro, apenas por se presenciar o fato, já que, como ele explica
206
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]
(2005b, p. 24), “estar presente para outrem já é comunicar”, não
sendo necessário, portanto, haver discurso, pois o efeito é apreendido
estesicamente pelos sentidos.
9. O regime do acidente
Em 2005, dando sequência ao desdobramento teórico do nível
narrativo da Semiótica, Landowski publica Les interactions risquées no
qual apresenta as premissas teóricas do regime do acidente. Segundo
ele, o princípio fundador deste regime é o “elemento aleatório”,
manifestado pela figura do “acaso” e, por consequência, do risco.
Este não possui regularidade ou, pelo menos, esta não é conhecida.
Explica que o acaso ainda não tem uma competência definível dentro
do quadro teórico da Semiótica, nem de ordem modal nem de ordem
estética. Do ponto de vista modal, isso significa que ele não é motivado,
isto é, ele age sem razão. Se existe nele uma intencionalidade, esta não
é conhecida. Do ponto de vista estésico, o acaso é indeterminado, não
possui corpo; não é, portanto, da ordem do sensível.
Ainda segundo Landowski (2005a, p. 70), os acidentes podem ser
“desastrosos” (valores disfóricos) ou “encantadores” (valores eufóricos),
dependendo dos sujeitos envolvidos no julgamento dos resultados.
Ganhar na loteria, por exemplo, pode ser considerado um acidente,
visto que é algo incerto, mas muito diferente de um acidente de trânsito,
pois, em princípio, não traz danos negativos.
Essa dualidade da natureza de um acidente, ora desastroso, ora
encantador, dá margem para uma breve discussão acerca do risco, princípio
fundador desse regime de interação. Landowski (2005a, p. 70) diz que há
duas formas de risco: aquele resultante de uma “probabilidade matemática”
e aquele resultante de uma “probabilidade mítica”. No primeiro caso, temse o acaso como fenômeno “imanente e vazio de sentido”. Por isso mesmo
o risco é percebível apenas enquanto probabilidade matemática calculável a
partir de manifestações supostas, como o “ganhar na loteria”, por exemplo.
No segundo caso, o risco está vinculado à fatalidade, que é um fenômeno
“transcendente e impenetrável”, como uma catástrofe natural.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
207
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]
Os demais regimes de interação (a programação, a manipulação
e o ajustamento), cujos princípios definem a regularidade, a
intencionalidade e a sensibilidade, também apresentam riscos, ou
melhor, graus de risco, porque a relação estabelecida entre os sujeitos,
mesmo que numa possibilidade remota, pode ter resultados inesperados.
No regime do acidente, os riscos aparecem em intensidade maior do
que nos outros regimes. Na programação, por exemplo, o risco é quase
nulo; trata-se do campo da segurança. Na manipulação, os riscos
são limitados, são, portanto, maiores do que na programação. Já o
ajustamento caracteriza-se pela insegurança da relação. E, finalmente,
o acidente, que se caracteriza pela total falta de segurança, é risco
puro. Landowski explica, ainda, que a programação e a manipulação
caracterizam prudência nas interações, enquanto o ajustamento e o
acidente configuram-se como aventura.
Considerações Finais
Sem dúvida alguma, a abordagem landowskiniana sobre os
regimes de interação e de sentido amplia o conhecimento sobre o
nível narrativo e contribui para a consolidação de uma epistemologia
semiótica sobre os processos de interação. Ao contrapor o regime da
união ao da junção, Landowski retorna aos prolegômenos da estrutura
narrativa canônica proposta em Semântica estrutural e propõe uma
análise mais criteriosa da questão.
A bem da verdade, nos últimos vinte anos, sempre em busca
dos processos de interação, Landowski forja uma fundação teórica e
uma metodologia de investigação que se concretizam em lexemas,
tais como: regime; regime de sentido; regime de interação; regime de
junção; regime da programação; regime da manipulação; regime do
ajustamento; regime do acidente; regime da aleatoriedade; regime de
risco; princípio da regularidade; princípio da sensibilidade; princípio da
intencionalidade; princípio da aleatoriedade; interações mediatizadas e
não mediatizadas por objetos; competência estésica; papel catastrófico;
ajustamento sensível; contágio estésico; reciprocidade; presença, dentre
outros.
208
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]
Com isso, é fundamental destacar a originalidade, a importância e a
contribuição da abordagem de Landowski no quadro epistemológico da
Semiótica atual. O modelo por ele apresentado aprofunda-se e, ao mesmo
tempo, faz um prolongamento do arcabouço teórico da Semiótica.
A abordagem landowskiana dos quatro regimes de interação e de
sentido constitui uma metodologia de trabalho que permite explicar
como os sentidos do texto foram criados e como os sujeitos interagem
socialmente no mundo, e isso permite compreender como o homem
vive em sociedade e como ele percebe as coisas do seu cotidiano.
Contudo, a existência de um arcabouço teórico apenas não basta. É
preciso que o analista conheça em profundidade o seu objeto. Fazse necessário também ultrapassar limites, enxergar aquilo que não
havia sido percebido antes, promover rupturas e continuidades. Urge
perceber que o sentir do sentido é anterior ao método e que este serve
para explicar o sentido, e não o inverso. Os modelos de análise não
podem ser concebidos como uma estrutura rígida, que se transforma
em uma “camisa de força” e que impede o sentir do sentido.
Quando se analisa a trajetória percorrida pela Semiótica Discursiva ao
longo de sua curta história, ficam evidentes que suas preocupações e seu
método de trabalho foram sendo repensados e reformulados. Mais importante
do que isso é perceber o salto qualitativo que houve. Se em sua origem a
Semiótica Discursiva ainda trazia em seu bojo um ranço estruturalista, isso
foi abandonado ao longo de sua história, sobretudo com os trabalhos
desenvolvidos por Eric Landowski. Dessa forma, se há trabalhos estruturalistas
dentro da linha semiótica, a falha não está no método, mas sim no analista.
Referências
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Sintaxe narrativa. In: OLIVEIRA, Ana Claudia;
LANDOWISKI, Eric (orgs.). Do inteligível ao sensível: em torno da obra de Algirdas Julien
Greimas. São Paulo: EDUC, 1995, p.81-97.
_______________ Teoria semiótica do texto. 4 ed. São Paulo: Ática, 2007.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
209
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]
FIORIN, José Luiz. As figuras de pensamento: estratégia do enunciador para persuadir
o enunciatário. Alfa. São Paulo: UNESP, 1988. [vol. 32 N. 1, p.53-67]
_______________ Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto-Edusp, 1989.
_______________ Greimas e Propp: conjunções e disjunções. In: OLIVEIRA, Ana
Claudia, LANDOWISKI, Eric (orgs.). Do inteligível ao sensível: em torno da obra de Algirdas
Julien Greimas. São Paulo, Educ, 1995, p. 71-79.
GREIMAS, Algridas Julien. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix, 1976.
GREIMAS, Algridas Julien & FONTANILLE, Jacques. Semiótica das paixões. São Paulo:
Ática, 1993.
LANDOWSKI, Eric. Viagem às nascentes do sentido. In: SILVA, Ignácio Assis (Org.).
Corpo e sentido: a escuta do sensível. São Paulo: EDUNESP, 1996, p. 21-43.
_______________. Passions sans nom. Paris: PUF, 2004.
_______________. Les interactions risquées. Limoges: Pulim, 2005a.
_______________ Aquém ou além das estratégias, a presença contagiosa: In:
Documentos de Estudo - Centro de Pesquisas Sociossemióticas. São Paulo: Edições CPS,
2005b, p.07-50.
210
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A construção da masculinidade – uma
abordagem semiótica
The building of the masculinity - a semiotic approach
Antonio Vicente Pietroforte
Departamento de Lingüística
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo: A masculinidade é, antes de tudo, um efeito de sentido – ser homem
depende das conotações sociossemióticas que o fazem assim. Investigar
tais conotações, portanto, redundaria em descrever os valores semânticos
definidores da hombridade em determinada época e em determinada
cultura, e os modos de existência semiótica do sujeito que se define
em relação a eles. Outro modo de descrever a masculinidade, porém,
diz respeito à articulação da competência do sujeito masculino, o que
permite indagar: uma vez homem, como ele pode se comportar ao realizar
suas performances? O estudo “A construção da masculinidade – uma
abordagem semiótica” vem ao encontro desse último questionamento,
trata-se de uma análise da competência modal do sujeito que já se
definiu homem em suas conotações sociossemióticas. Para tanto, é
utilizado como corpus material recolhido nas linguagens do cinema e da
história em quadrinhos.
Palavras-chave: Masculinidade. Semiótica. Semiótica tensiva. Cinema. História
em quadrinhos.
Abstract: Masculinity is, primarily, an effect of meaning – to be a man depends
on the sociosemiotic connotations that make him a man. To investigate
such connotations, therefore, would result in describing the defining
semantic values of masculinity in a pre-determined time and in a predetermined culture, and the forms of semiotic existence of the subject
who defines himself in relation to them. Another form of describing
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
211
Antonio Vicente Pietroforte [211-226]
masculinity, however, involves the articulation of the competency of
the male subject, which allows us to question: how must he, as a man,
behave at his performances? The study “The construction of masculinity
– a semiotic approach” answers the latter question; it is an analysis of the
modal competence of the subject who has defined himself as male and
his sociosemiotic connotations. In order to do so, material collected in the
language used in movies and in comic strips is used as corpus.
Keywords: Masculinity. Semiotcs. Tensive semiotics. Movies. Comic strips.
Ser homem, à revelia do código genético, é estar de acordo
com determinada orientação ideológica. Não se trata apenas de ser
humano, ser do sexo masculino XY, possuir pênis etc. – ser homem é,
antes de tudo, uma questão semiótica. Uma vez definido no discurso
que o realiza, qualquer sistema de valores semânticos está pronto para
ser atualizado pelos co-enunciadores que se valem dele; o sujeito
narrativo homem, portanto, entra em junções com os valores desse
sistema que definem a masculinidade e pode ser descrito, em relação
a esses valores, em estados de conjunção, não-conjunção, disjunção e
não-disjunção, de modo que a junção garante a existência semiótica
daquele sujeito narrativo.
Na medida em que ser homem depende da junção com tais
valores, a masculinidade se torna um processo narrativo, em que o
sujeito realiza a performance de manter sua existência semiótica, indo
ora ao encontro de, ora de encontro a ela. Desse ponto de vista, a
performance masculina pode ser definida, pelo menos, em relação à
articulação modal da competência para realizar a performance – ou
seja, determinar como estão articulados o saber e o poder desse sujeito
– ou em relação aos objetos de valor determinados pelo discurso.
Esses valores, ditos descritivos, variam de acordo com o processo
histórico. Ser como Aquiles implica considerar Pátroclo entre os valores
descritivos na formação da masculinidade grega daquele período
histórico; ser como Jesus implica no sacrifício próprio de homens como
Pedro, Paulo, João. Insistir em análises semióticas da masculinidade
212
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A construção da masculinidade [211-226]
baseada nesse tipo de conotação social redunda em descrever tais
conotações e elaborar paradigmas de comportamento, que dependem
antes de análises históricas que semióticas. Se a análise dos valores
descritivos pouco tem a oferecer além de determinar os objetos
descritivos da performance masculina, de ordem histórica, a análise da
articulação dos valores modais da competência tem a vantagem de, em
sua abstração, verificar formas de ser masculinas baseadas em como
o homem faz para realizar a performance, independentemente dos
valores descritivos considerados. Trata-se da analisar, dessa vez, como
se faz quando se é ou pretende-se ser homem.
1. Os fortes e os ardilosos
Uma vez em conjunção com os valores que definem o que é
considerado ser homem, o sujeito narrativo está pronto para agir como
tal; se competente, esse homem deve saber-fazer e poder-fazer; na
articulação dos objetos modais saber e poder, portanto, é possível
definir a competência masculina. Como está dito antes, de acordo com
a semiótica, a existência do sujeito narrativo é descrita em relações
juntivas estabelecidas com os valores determinados: se está em
disjunção, é chamado sujeito virtualizado; se está em não-disjunção, é
chamado sujeito atualizado; se está em conjunção, é chamado sujeito
realizado; se está em não-conjunção, é chamado sujeito potencializado.
Colocadas no quadrado semiótico, as relações são estas:
conjunção
sujeito realizado
não-disjunção
sujeito atualizado
disjunção
sujeito virtualizado
não conjunção
sujeito potencializado
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
213
Antonio Vicente Pietroforte [211-226]
O homem em questão já está em conjunção com os valores
masculinos determinados por sua cultura; trata-se, por isso, do sujeito
realizado com a hombridade e, uma vez homem, está pronto para agir
como se espera dele. Colocado em programas narrativos, esse homem
está apto a realizar outras performances, em que o estatuto adquirido
faz parte de sua disposição modal – é justamente nesse modo de
agir em suas performances que se pretende analisar a construção da
masculinidade.
Uma vez competente, o homem deve articular saber e poder
em sua disposição masculina. Nessa articulação há, pelo menos, dois
regimes básicos do fazer masculino: ou o saber determina o poder, o
homem é ardiloso; ou o poder determina o saber, o homem é musculoso.
Comparar os fazeres de dois modelos masculinos do imaginário
cinematográfico exemplifica as formas de ser desses dois regimes; são
bons exemplos as imagens masculinas realizadas por George Clooney
em Onze homens e um segredo e por Vin Diesel em Triplo XXX, nos dois
filmes os heróis são competentes, ambos são belos, bons e verdadeiros.
Atenção, não é o caso de analisar atores e atrizes, mas de papéis vividos
por eles; o George Clooney de Um drink no inferno é outro homem, já
Vin Diesel varia bem menos em suas atuações.
Onze homens e um segredo é uma história de trapaceiros. Depois
de quatro anos de prisão, Daniel Ocean, interpretado por George
Clooney, obtém liberdade condicional; fora das grades, seus primeiros
passos são formar uma quadrilha e executar o roubo de três cassinos,
em Las Vegas. A vítima é o empresário Terry Benedict, vivido por Andy
Garcia; além de dono dos cassinos, Benedict vive com a ex-esposa do
trapaceiro, o que faz do golpe assalto e disputa pela recuperação do
amor e da admiração da dama.
Daniel Ocean é um cavalheiro distinto, em nenhuma passagem
do filme ele se vale de violência; antes furtos que roubos, é sempre
por meio de ardis que o herói realiza suas façanhas, inclusive a da
reconquista amorosa. Não há uma luta no filme – o único espancamento,
sofrido por Daniel, é também outra farsa – nenhum dos atores aparece
214
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A construção da masculinidade [211-226]
mostrando os bíceps ou os punhos, todos vestem paletós e gravatas,
ninguém morre ou se fere gravemente na história. O furto é realizado
mediante planejamentos engenhosos, nos quais as personagens
lançam mão de esquemas, mapas, gráficos, máquinas e acrobacias;
enfatizando o cérebro no lugar dos músculos, nos homens de Ocean o
saber determina o poder.
Utilizando algumas das propostas de Fontanille e Zilberberg
(2001, p. 15-37), é possível descrever esse tipo de regência modal.
Em seus encaminhamentos teóricos, ambos os autores recuperam
conceitos da glossemática, de Hjelmslev, entre eles, os conceitos de
constituintes e caracterizantes da forma linguística. Os constituintes são
os componentes descontínuos dos planos da linguagem: no plano de
expressão, são os fonemas e, no plano de conteúdo, são os significados
dos radicais e afixos; os caracterizantes são os componentes contínuos
desses dois planos: no plano de expressão, trata-se da curva entoativa
e de seus acentos tônicos enquanto, no plano de conteúdo, são as
desinências verbais e nominais.
Os componentes descontínuos podem ser descritos em centrais
e marginais, uma vez que podem ser isolados uns dos outros. Desse
modo, no plano de expressão as vogais são centrais, pois há sílabas de
uma só vogal, e a consoantes, são marginais; no plano de conteúdo, os
radicais são centrais e os afixos, marginais. Entretanto, os componentes
contínuos, diferentes dos componentes anteriores, justamente porque
não podem ser divididos em unidades discretas, como fonemas ou
sememas, devem ser tratados em termos de extensidade e intensidade.
No plano da expressão, a curva entoativa é extensa e os acentos tônicos,
intensos; no plano de conteúdo, as desinências verbais são extensas e
as nominais, intensas.
A extensidade, grosso modo, dá conta de descreve grandezas que
cuidam da totalidade do objeto enfocado, como a curva entoativa, que
se coloca sobre os segmentos fonológicos, ou as desinências verbais,
que cuidam de relacionar, por meio da concordância e da regência,
todas as palavras enunciadas nas frases. A intensidade, por sua vez,
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
215
Antonio Vicente Pietroforte [211-226]
descreve ocorrências pontuais na extensidade, como os acentos tônicos,
no plano de expressão, ou os nomes, no plano de conteúdo.
Recuperando os conceitos de extensidade e intensidade para
tratar de grandezas contínuas envolvidas nos processo de significação,
Fontanille e Zilberberg propõem uma articulação deles entre dois eixos,
representada assim:
Voltando à questão da regência modal, no caso de Onze homens e
um segredo é possível afirmar que o saber é da ordem da extensidade,
pois acompanha o herói em suas performances, fazendo com que as
manifestações do poder sejam pontuais. Em pelo menos dois momentos
da história, o poder surge com intensidade, pois, modalizado pelo saberfazer, Daniel Ocean recruta, entre seus comparsas, duas figurativizações
dessa modalidade: o amigo Reuben, que financia a farsa; e o acrobata
chinês, que salta sobre os sensores do piso do cofre. No modelo dos eixos extensidade vs. intensidade, há a previsão
de dois tipos de curvas na relação entre as grandezas: ou extensidade
e intensidade crescem e diminuem juntas, formando a curva conversa;
ou enquanto uma cresce, a outra diminui, formando a curva inversa:
216
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A construção da masculinidade [211-226]
Em Onze homens e um segredo, trata-se de uma relação conversa
pois, à medida que o saber cresce, cresce também o poder – quanto
mais conhecimento eles adquirem do funcionamento dos cassinos e
do comportamento previsível de Benedict, maior a capacidade para
realizar a performance.
No universo das histórias em quadrinhos, uma personagem que
se comporta de acordo com esse tipo de modalização é o super-herói
Batman, que também já foi interpretado por George Clooney em uma
de suas versões cinematográficas. Batman não tem super poderes,
Bruce Wayne é apenas um homem fantasiado; sua mente analítica e
engenhosa, no entanto, garante seu saber fazer extensamente, enquanto
seu poder fazer é regido por ela em ações pontuais, quando se vale do
cinto de utilidades, do batmóvel, dos computadores e laboratórios da
batcaverna. Assim são o Homem de Ferro e o Arqueiro Verde, dois
homens comuns que contam primeiro com a inteligência, inclusive
para construir suas super armas, respectivamente, a armadura e as
flechas especiais.
Triplo XXX é uma história de espionagem internacional em que,
mais uma vez, os valores democráticos devem vencer o autoritarismo
ou a anarquia; no filme, o inimigo é o grupo Anarquia 99, que pretende
dominar o mundo com armas biológicas e Vin Diesel é Xander Cage,
um rebelde recrutado para se infiltrar no grupo terrorista e resolver o
problema.
X, como gosta ser chamado, é o novo modelo de homem e de agente
secreto. Em uma paródia bem articulada com os filmes de James Bond, um
agente secreto bem arrumado, de smoking, limpinho e penteado, fracassa
ao tentar se contrapor ao Anarquia 99. Perdido em uma danceteria em
plena Praga, mal sabe como fazer cercado por homens e mulheres vestidos
de couro, tatuados, bem menos arrumados que ele; visível na multidão
devido ao estilo de ser, é facilmente baleado e morto.
Esse 007 “bundinha” deve ser substituído por Vin Diesel: careca,
musculoso, coberto de tatuagens, metrossexual. Saudável – pois não
bebe, não fuma, faz surfe, snowboard, paraquedismo, automobilismo,
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
217
Antonio Vicente Pietroforte [211-226]
motociclismo, joga vídeo games – Xander Cage não respeita autoridades,
sua primeira ação é desafiar um senador reacionário, combatente do
rap, da Internet, dos videogames. Rouba-lhe a Corvette e a lança de
uma ponte, tudo é filmado e colocado na Internet; uma vez preso, X
deve trabalhar para o governo Norte Americano pela anistia de suas
contravenções. Vai parar na República Tcheca, conhece Yelena, vence
o Anarquia 99.
Longe dos brutamontes abobalhados, X é inteligente e bem
articulado quando argumenta; submetido a várias provas qualificantes,
passa por todas porque não se deixa enganar. A cena da falsa lanchonete é
exemplar: X mostra que lê jornais, conhece armas, conhece garçonetes;
nas cenas nas plantações de coca na Bolívia e contra o Anarquia 99, em
Praga, Xander Cage sempre se salva ao articular conhecimento e poder,
mas não como o herói de Onze homens e um segredo.
X é, antes de tudo, forte e musculoso; modalizado antes pelo
poder, é por meio dele que determina o saber. Contrariamente ao herói
anterior, em heróis como X o poder é da ordem da extensidade, ele
acompanha o herói, em sua competência, ao longo da realização da
performance. O saber, por sua vez, é pontual, ocorre intensamente em
função da extensidade do poder. Ainda na relação tensiva conversa,
o saber cresce à medida que cresce o poder: quando mais pode,
mais o herói sabe como fazer. Entre os super-heróis das histórias em
quadrinhos, Super-Homem, Lanterna Verde, Flash, Capitão América,
Thor, Homem Aranha, os X-Mem, Surfista Prateado, entre muitos, são
modalizados assim.
O que há de comum nos super-heróis citados é a relação com o
super poder. Não importa se são alienígenas vivendo na Terra -– SuperHomem, Surfista Prateado; se possuem objetos mágicos, que somente
eles podem usar – Lanterna Verde, Thor; ou se adquiriram poderes
em mutações, acidentes ou experiências científicas – os X-Men, Flash,
Homem Aranha, Capitão América. Todos eles são super humanos quando
poderosos, nenhum deles é apenas um homem habilidoso e fantasiado,
como são o Batman, o Arqueiro Verde ou o Homem de Ferro.
218
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A construção da masculinidade [211-226]
Tanto Daniel Ocean quanto Xander Cage são sujeitos narrativos
competentes, articulam tanto saber quanto poder em suas competências
masculinas. Realizados com valores masculinos determinados em
conotações sociais, ambos agem como homens e, quando são
convocados a realizar outras performances, continuam competentes,
são heróis sempre realizados ou em vias de se realizar. De acordo com
a articulação extensiva do saber ou do poder, podem ser chamados,
respectivamente, herói realizado cognitivamente e herói realizado
pragmaticamente.
2. Os fortes ou os ardilosos
O herói realizado age quase sempre sozinho ou, quando em
grupo, exerce a liderança; há, no entanto, outro tipo de herói, que
sempre precisa de ajuda, sem deixar de cumprir com as expectativas
do que se espera de um homem. Ainda no universo do cinema, há
dois filmes em que esses heróis, quase incompetentes, realizam outras
performances além daquela que os faz homens: Silvester Stalone, em
Rocky, um lutador, e Matthew Broderick, em Godzila – respectivamente,
o “gigante bonzinho” e o “nerd sensível”, também são heróis belos,
bons e verdadeiros, no entanto, um é um pouco ingênuo, e o outro,
meio franzino.
Em Godzila, o biólogo Dr. Niko Tatopoulos, interpretado por Matthew
Broderick, estuda os efeitos da radioatividade em minhocas mutantes;
obstinado, enfrenta chuvas torrenciais nas vizinhanças dos destroços da
usina nuclear de Chernobyl para realizar suas pesquisas. Não é bruto nem
frio, é um cientista bonzinho, como é o professor Antonio, do desenho
das Meninas Super Poderosas; longe do gênio deformado pela feiura, pela
velhice e pela misantropia, como Fausto, Niko Tatopoulos é “bonitinho” –
sua colega cientista, a paleontóloga Drª Elsie Chapman, em uma passagem
do filme, refere-se a ele como sendo cute.
Para vencer o monstro, contudo, suas qualidades não bastam; faltalhe o poder fazer, por isso ele precisa da ajuda do agente do serviço secreto
francês, Philippe Roach, interpretado por Jean Reno – Sem sua ajuda, não
há poder para derrotar Godzila. Como o herói realizado cognitivamente,
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
219
Antonio Vicente Pietroforte [211-226]
esse tipo de homem tem o saber da ordem da extensidade e o poder
da ordem da intensidade, a curva tensiva, porém é inversa: quanto mais
saber fazer, menos poder fazer; à medida que sabe como fazer, o sujeito
narrativo sabe também o quanto não pode.
Em Godzila, quando Niko Tatopoulos é desligado das forças
armadas americanas, é quando ele sabe o quanto é necessário derrotar
o monstro – ele acaba de descobrir que o réptil está “grávido”, pronto
para gerar dezenas de outros gigantes. Sem poder algum, nesse
momento do filme o agente Phillipe Roach aparece como seu aliado
e para garantir a performance. Unidos pelo mesmo objetivo, a cena
da fuga no táxi, em que os heróis são perseguidos pela criatura, é o
melhor exemplo dessa relação semiótica; enquanto o agente secreto
dirige o automóvel, partem do biólogo as orientações para derrotar o
inimigo: Niko Tatopoulos consegue estabelecer comunicação com os
soldados, jogando para um deles o número de registro do táxi, que
permite localizar as chamadas de rádio; ele liberta o automóvel das
garras do monstro no túnel, com a ideia da utilização de faróis altos
para confundir Godzila; liberta o automóvel da boca do monstro,
quando se vale de cabos elétricos; vem dele o plano de enredar o
gigante nos cabos de aço da ponte do Brooklyn, que torna possível
sacrificar a fera. Entretanto, sem o motorista, habilidoso na condução
do táxi, nada disso seria realizado.
No universo das histórias em quadrinhos há homens assim.
Geralmente, em suas identidades secretas, alguns super-heróis são
nerds sensíveis e simpáticos: Peter Parker, o Homem Aranha, e Bruce
Banner, o Hulk. Mas, quando são reveladas suas identidades, não se
trata do herói propriamente dito, por isso, talvez o melhor exemplo seja
o adolescente chamado Cifra, dos Novos Mutantes, cujo super poder
é decodificar sistemas, seu poder é falar todas as línguas por meio do
conhecimento de apenas algumas palavras – em termos linguísticos,
Cifra é um herói saussuriano. Cifra decodifica não apenas línguas, mas
quaisquer sistemas; em suas aventuras, quanto mais sabe do problema,
menos é capaz de resolvê-lo pragmaticamente, por isso, nas histórias
dos Novos Mutantes, Cifra depende sempre da ajuda de Warlock,
220
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A construção da masculinidade [211-226]
um ser alienígena que se incorpora a ele e, nessa simbiose, ambos
realizam a performance. Em termos semióticos, Cifra entra com o saber
e Warlock, com o poder.
O modelo masculino em Rocky, um lutador é diferente; de modo
contrário, Rocky Balboa é um homem simplório, por pouco não seria
bobalhão. Contudo, trata-se do homem bom: Rocky começa sua
história trabalhando como cobrador para agiotas, mas, ao invés de
surrar os devedores, negocia com eles sem intimidações violentas, além
de distribuir conselhos para as crianças e adolescentes do bairro, como
não fumar, não dar moleza aos meninos etc. Lutador de box amador,
Rocky é a imagem do looser; modalizado unicamente pelo poder, pois
é um brutamontes, basta um bom treinador para delegar a ele o saber
necessário para vencer, ainda que apenas moralmente, a luta final.
Como o herói realizado pragmaticamente, esse tipo de homem tem
o poder da ordem da extensidade e o saber da ordem da intensidade;
a curva tensiva, porém, é inversa como no caso anterior: quanto mais
poder fazer, menos saber fazer; à medida que pode fazer, o sujeito
narrativo não sabe como fazer com o quanto pode.
Enquanto o poder de Rocky Balboa cresce, pois ele pára de fumar,
muda a alimentação e começa a se concentrar cada vez mais nos treinos,
o lutador mal sabe o que fazer com a técnica em crescimento. Nesse
momento, aumenta a necessidade das orientações de Mickey, o velho
e experiente treinador, interpretado por Burgess Meredith. No universo
das histórias em quadrinhos, o melhor exemplo de heróis modalizados
assim é o incrível Hulk: quanto mais forte, mais insano o Hulk se torna;
quanto mais poder, menos saber – sem as manipulações da noiva Beth
Ross e do amigo Rick Jones, o gigante verde só causaria destruição.
Ou fortes ou ardilosos, esses homens não são como os homens
fortes e ardilosos descritos anteriormente. Embora realizados com valores
masculinos determinados em conotações sociais, pois ambos agem
como homens, quando são convocados a realizar outras performances
são incompetentes. Apenas atualizados por meio do saber ou do poder,
esses homens só se realizam quando outra pessoa do discurso funciona
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
221
Antonio Vicente Pietroforte [211-226]
para completar sua competência sempre incompleta; de acordo com
a articulação extensiva do saber ou do poder, podem ser chamados,
respectivamente, herói atualizado cognitivamente e herói atualizado
pragmaticamente.
3. Homens, heróis e mulheres
Nas descrições anteriores, é possível determinar quatro tipos de
homens, independentemente das conotações sociais que os tornam
assim, mas de acordo com o tipo de herói narrativizado, definido em
sua competência para realizar performances de homem.
Recapitulando, há o homem realizado cognitivamente, em que o
saber é da ordem da extensidade e se articula com o poder, da ordem
da intensidade, em uma curva conversa; e há o homem realizado
pragmaticamente, em que o poder é da ordem da extensidade e
se articula com o saber, da ordem da intensidade, em uma curva
também conversa.
homem realizado cognitivamente
não saber
saber
extensidade
homem realizado pragmaticamente
não poder
poder
extensidade
Há ainda o homem atualizado cognitivamente, em que o saber é da
ordem da extensidade e se articula com o poder, da ordem da intensidade,
em uma curva inversa; e há o homem atualizado pragmaticamente, em
222
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A construção da masculinidade [211-226]
que o poder é da ordem da extensidade e se articula com o saber, da
ordem da intensidade, em uma curva também inversa.
homem atualizado cognitivamente
não saber
saber
homem atualizado pragmaticamente
não poder
extensidade
poder
extensidade
Ao longo de todas as descrições anteriores, os termos herói e
homem são tomados quase sem distinções; com os dados baseados em
personagens masculinas que figurativizam o sujeito narrativo em todas
as ocorrências estudadas, é impossível não assimilar a figura do homem
ao papel temático do herói.
De cunho ainda predominantemente patriarcal, a maioria das
culturas humanas está baseada em feitos de homens e heróis; mesmo
algumas mulheres, como Joana D’Arc, são semiotizadas com valores
masculinos, basta lembrar que Ingrid Bergman e Milla Jovovich atuam
nos filmes a respeito da Santa vestidas com armaduras de guerreiros.
Os tipos de homens realizados pragmática e cognitivamente propostos
são inspirados nos heróis homéricos Aquiles e Ulisses, respectivamente;
tanto um quanto o outro são deveras homens, nenhum dos dois é néscio,
nenhum é franzino, tampouco precisam de ajuda. Embora amigos – é a
Ulisses a quem Agamenão recorre para convencer Aquiles a voltar aos
campos de batalha – enquanto Aquiles é o homem que age além da
retórica, modalizado extensamente pelo poder, Ulisses é hábil na técnica
de persuadir, modalizado que é, extensamente, pelo saber.
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
223
Antonio Vicente Pietroforte [211-226]
Há na literatura, ainda, homens atualizados pragmática e
cognitivamente. O rei Artur é um homem atualizado pragmaticamente,
falta-lhe saber; Artur é deveras homem, apesar de Lancelot e Guinevere,
mas, não fossem as instruções de Merlim, mal saberia o que fazer com a
espada e a administração do reino. José, filho de Jacó, por sua vez, é um
homem atualizado cognitivamente: amoroso, belo, profeta; contudo,
falta-lhe poder, pois é subjugado com facilidade pelos irmãos e, sem o
faraó, não passaria da condição de escravo com que foi vendido.
Gilgamesh, Aquiles, Ulisses, Perseu, Arjuna, Artur, Sansão, José,
Davi, Jesus etc são todos homens. Alguns têm suas mulheres: Circe,
Calipso, Penélope, Andrômeda, Draupedi, Guenevere, Dalila, Betsabá,
Madalena, Marta e Maria etc; mas, quando não são mães, são esposas,
nem sempre fiéis; sempre adjuvantes, raramente as mulheres assumem
o papel de heroínas nas tradições mitológicas e literárias tanto ocidentais
quanto orientais.
Há textos perdidos? A cultura patriarcal se encarrega de veicular
apenas discursos em que a mulher não passa de algo em função do
homem? Quando Charles Moulton, pseudônimo do psicólogo Willian
Moulton Marston, foi encarregado de conceber uma super heroína que
conquistasse leitoras para as histórias de super heróis, então exclusivas
do público masculino, surgiu a Mulher Maravilha; no entanto, embora
inspirada nos mitos gregos das Amazonas, Diana Prince é antes fruto do
imaginário masculino que do feminino, basta ver o busto e os quadris
da Mulher Maravilha – herdeiras dela, a Moça Invisível, Jean Grey,
Tempestade, Vampira, Lara Croft, Mulher-Hulk etc são todas frutos
antes do onanismo que da emancipação feminina.
Quais são os atuais modelos de mulher para mulher? Frida Kalo,
Rosa de Luxemburgo, Isadora Duncan, Virgínia Wolf, Valerie Solanas?
Como seriam uma condessa de Monte Cristo, uma Dona Dulcinéia de La
Mancha, uma Beatriz nos infernos? E se ao invés de Moisés, Zéfora tivesse
guiado o povo de Sara através do deserto? Como seria a semiótica se, no
lugar de Greimas, Teresa tivesse proposto o percurso gerativo do sentido?
Fora da história virtual, somente pesquisas são capazes de
estabelecer a construção da feminilidade. Potencialmente possíveis,
224
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
A construção da masculinidade [211-226]
uma vez que a mulher seja identificada ao papel temático de heroína,
há mulheres realizadas ou atualizadas pragmatica e cognitivamente. No
entanto, resta verificar se essa identificação entre mulher e heroína se
dá do mesmo modo que com os modelos masculinos, uma vez que o
próprio conceito de herói é próprio dos patriarcados.
4. Nem fortes, nem ardilosos
Nas relações tensivas propostas para a descrição da masculinidade,
há algumas possibilidades que não foram analisadas.
Recapitulando, no homem atualizado, o poder ou o saber
modalizam sua competência de modo extensivo. Nos casos descritos,
apenas foi examinado o que se dá quando a modalidade extensa
cresce e a intensa, em relação inversa, diminui. O que se passa, porém,
quando a extensidade diminui e a intensidade cresce?
Como o homem atualizado depende da modalidade extensa para
se definir, a tendência é, com o decréscimo da extensidade, que o
crescimento da modalidade intensa faça que ela se torne extensa e o
homem mude de atualização pragmática para cognitiva, ou vice versa.
Atualizado cognitivamente, o doutor Bruce Banner, ao se transformar
no incrível Hulk, vê seu saber extenso diminuir e seu poder intenso
aumentar em relação inversa; uma vez monstro, o Hulk é atualizado
pragmaticamente, seu poder é extenso e o saber intenso em relação
inversa; em contra partida, basta o gigante se acalmar para que o
poder diminua e o saber aumente, ressurge o doutor Banner atualizado
extensivamente pelo saber.
Por fim, no homem realizado, tanto pragmática quanto
cognitivamente, só é examinado o crescimento converso entre poder
e saber. Cabe perguntar, portanto, como se dá masculinidade na
diminuição conversa?
Se o poder diminui com o saber ou vice-versa, não há homem
competente, sua competência é sempre virtual; trata-se do trapalhão,
do desajeitado, do néscio. Podem até ser belos, como Páris, filho de
Príamo, ou feiosos, como as personagens neuróticas criadas por Woody
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
225
Antonio Vicente Pietroforte [211-226]
Allen; contudo, ao invés de só necessitarem de saber ou de poder
alheios, como os homens atualizados, esses homens sempre precisam
de outros, mais homens que eles, para realizar as performances em que
sempre fracassam. Sem poder e saber, Páris precisa de Heitor e Woody
Allen, do fantasma de Hunfrey Bogart.
Referências
FONTANILLE, Jacques; e ZILBERBERG, Claude. Tensão e significação. São Paulo:
Humanitas, 2001.
226
Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012
Projeto Editorial e Normas para Publicação
Projeto editorial
PAPÉIS: Revista do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens tem
como objetivo a divulgação de ensaios inéditos, resenhas, entrevistas, elaborados
por professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação, voltados para a
grande área de Letras, Linguística e Artes, mais especificamente para as linhas
de pesquisa do Programa, e que apresentem contribuições relevantes para
a ampliação e o aprofundamento do debate teórico, da análise de questões
estéticas e culturais.
Os trabalhos que atendam à linha editorial da revista são submetidos ao conselho
editorial e encaminhados para análise por dois pareceristas ad hoc.
A partir de 2006, ano de implantação do Programa de Pós-Graduação - Mestrado
em Estudos de Linguagens, a revista Papéis aceita contribuições com a seguinte
temática:
As edições de número par se dedicam aos estudos da literatura e as de número
ímpar, aos estudos linguísticos e de semiótica.
Para os estudos literários, aceitam-se artigos sobre:
Poéticas modernas e contemporâneas, em abordagens individuais ou interrelacionadas; comparações entre objetos de linguagens diferentes (artes visuais,
artes plásticas, música, por exemplo); poesia ou narrativa.
Literatura e memória cultural, compreendendo o estudo de textos literários
em suas relações com outros textos, tratando as questões memorialistas como
manifestações de uma dada cultura.
Para os estudos linguísticos e de semiótica, aceitam-se artigos sobre:
Constituição do saber linguístico: estudos relativos às várias dimensões do saber
linguístico, tendo a língua como complexo fenômeno de natureza sociocultural
e histórica.
Produção de sentido no texto/discurso: estudos sobre os procedimentos de
organização textual, as variáveis sócio-históricas ou condições de produção que
engendram o sentido do discurso em relação ao contexto.
Normas para publicação
O artigo deve ter extensão máxima, preferencialmente, de quinze laudas e vir
acompanhado de resumo, contendo de três a cinco palavras-chave, e de abstract
e keywords.
Formatação: papel A4, margens de 3 cm, fonte Times New Roman, corpo 12,
parágrafos justificados, primeira linha com recuo de 0,8 cm, espaçamento 1,5
entre linhas.
Estrutura: título alinhado à esquerda na primeira linha, nome do autor alinhado à
direita na segunda linha, subtítulos das seções alinhados à esquerda, em negrito
e sem recuo de parágrafo.
Citações: o sobrenome aparece apenas com a primeira letra em maiúscula - Ex.:
Hernandes (2006, p. 30) - ou com todas as letras maiúsculas - Ex: (HERNANDES,
2006, p. 30).
Notas: se necessárias, devem constar do rodapé, com corpo 10 e espaçamento
simples.
Referências: apresentadas ao final do texto, de acordo com as normas da ABNT.
(Ver exemplos abaixo).
Livro:
HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques. São Paulo: Contexto, 2006.
Ensaio em periódico:
NOLASCO, Edgar César. A pobreza é feia e promíscua. Revista Cerrados,
Brasília, n. 21, p. 47-59, 2006.
Capítulo de livro:
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cultural em ritmo latino. In: MARGATO,
Izabel & GOMES, Renato Cordeiro (orgs.) Literatura/Política/Cultura. (19942004). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 239-252.
Documentos eletrônicos:
CAMPOS, Haroldo de. Uma leminskiada barrocodelica. Disponível em:
www.planeta.terra.com.br/arte/PopBox/Kamiquase/ensaios.htm.
Acesso
em 08 mai. 2007.
Os autores deverão encaminhar, separadamente, sua identificação (nome do
artigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo, últimas publicações, etc)
em texto que não ultrapasse 6 linhas; endereço, telefones para contato e e-mail.
Envio dos originais: os textos devem ser enviados por e-mail, em dois arquivos
diferentes; o primeiro contendo identificação (nome, função, instituição e
endereço); o segundo, o texto sem identificação de autoria.
Para: [email protected]
Assunto: Revista Papéis
Obs.: 1. O nome dos arquivos a serem enviados à revista devem iniciar sempre
com o último nome do autor, seguido de outras informações para identificação do
mesmo. Ex: no caso de o nome do autor ser Maria Fernanda Pereira, o nome do
primeiro arquivo poderá ser ‘pereira_identificação’ e o do segundo ‘pereira_texto’.
2. No caso de o texto ser acompanhado de imagens essas deverão ser encaminhadas
em arquivo separado (nomeado com o último nome do autor, seguido do número
da figura, conforme citada no texto), com largura mínima de 10 cm e resolução
mínima de 300x300 dpi.

Documentos relacionados