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BIBLIOTECA VIRTUAL DE CIÊNCIAS HUMANAS
METABOLISMO SOCIAL
DA CIDADE
e outros ensaios
Ruben George Oliven
Ruben George Oliven
Metabolismo Social da
Cidade e Outros Ensaios
Rio de Janeiro
2009
Esta publicação é parte da Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro
Edelstein de Pesquisas Sociais – www.bvce.org
Copyright © 2009, Ruben George Oliven
Copyright © 2009 desta edição on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais
Ano da última edição: 1974
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por
qualquer meio de comunicação para uso comercial sem a permissão escrita
dos proprietários dos direitos autorais. A publicação ou partes dela podem ser
reproduzidas para propósito não-comercial na medida em que a origem da
publicação, assim como seus autores, seja reconhecida.
Para Arabela
ISBN 978-85-7982-012-0
Para Paulo Martins Machado
Centro Edelstein de Pesquisas Sociais
www.centroedelstein.org.br
Rua Visconde de Pirajá, 330/1205
Ipanema – Rio de Janeiro – RJ
CEP: 22410-000. Brasil
Contato: [email protected]
I
TABELA DE CONTEÚDO
1 – Metabolismo social da cidade .......................................................1
1.1 - O episódio................................................................................2
1.2 - A cidade como pólo de irradiação e atração ...........................2
1.3 - O êxodo rural...........................................................................3
1.4 - A cidade e seu metabolismo....................................................6
1.5 - As regras do jogo ....................................................................7
1 – METABOLISMO SOCIAL DA
DA CIDADE
2 - Progresso, felicidade & Cia. Ltda. ...............................................10
3 – Cultura e personalidade ...............................................................19
3.1 – Introdução.............................................................................20
3.2 - Freud .....................................................................................20
3.3 - Koestler .................................................................................23
3.4 - Bertrand Russell ....................................................................23
3.5 - Malinowski e Radcliffe-Brown.............................................25
3.6 - Durkheim...............................................................................26
3.7 - Merton ...................................................................................27
3.8 - Estudos psicológicos e culturalistas ......................................31
3.9 - Conclusão..............................................................................34
4 – O mito de Abel e Caim e o surgimento da cidade bíblica ...........38
4.1 - O aspecto histórico-social .....................................................40
4.2 - A análise do mito ..................................................................41
5 - América Latina: educação e desenvolvimento.............................46
II
1
1.1 - O episódio
Em 1964, no calmo bairro residencial de Queens, em New York,
uma moça de 28 anos, Catherine Genovese, foi morta a punhaladas
por um louco homicida. O fato ocorreu aproximadamente às três
horas da manhã e 38 pessoas assistiram, por trás das janelas de seus
lares, ao crime, que durou trinta minutos. Ninguém fez qualquer coisa
para impedir a morte de Catherine, que estava a apenas trinta metros
da porta de sua casa quando recebeu a última punhalada.
Nenhuma das testemunhas do crime tomou qualquer atitude para
evitá-lo. Se alguém tivesse telefonado à polícia, esta poderia estar no
local em poucos minutos. Entretanto, a polícia recebeu um primeiro
telefonema depois de Catherine ter morrido.
Como explicar este acontecimento que teve repercussão mundial
e inspirou algumas peças teatrais?
que no campo ou nas pequenas cidades, onde as excentricidades não
são tão facilmente aceitas.
Na cidade é possível viver num doce anonimato sem o controle
que se verifica no campo. O elemento vergonha - muito forte no meio
rural - é bem mais tênue na cidade, onde os comportamentos
considerados excêntricos no campo são tolerados e no qual as
peculiaridades individuais são diluídas e aceitas.
A cidade funciona, sob este aspecto, como um cadinho que
tolera e reforça as diferenças individuais.
A situação da cidade como um pólo de irradiação e atração
acentua-se cada vez mais com a grande utilização dos meios de
comunicação de massa. Forma-se uma pressão dos valores urbanos
que não encontram possibilidade de realização no meio rural. A
cidade invade o campo (e as cidades menores) bombardeando-o de
mensagens e estende sua atração até ele.
1.2 - A cidade como pólo de irradiação e atração
A cidade funciona como um pólo de irradiação e de atração em
relação ao campo e às cidades menores. À primeira vista a força deste
pólo é diretamente proporcional a seu tamanho. Entretanto, o poder
de irradiação e atração de uma cidade não é fruto exclusivo do
número de seus habitantes, mas também da concentração de
equipamentos e de atividades e da vida social nela existente.
1.3 - O êxodo rural
Visando a maiores oportunidades sociais, econômicas ou
culturais, as pessoas abandonam o campo e dirigem-se à cidade. Para
esta, trazem seus antigos hábitos e padrões que nela persistem. A
própria maneira de perceber a nova realidade é feita com os antigos
padrões.
Um bom indicador desta força é o grau informativo das cidades.
Richard Meier (1962) estima que nas grandes metrópoles cada
cidadão receba 100 milhões de informações por ano, ou seja, cem
vezes mais do que ocorre na média das cidades menos desenvolvidas.
O ajustamento à cidade vem acompanhado de dificuldades
características das fases de transição e, até que ocorra a aceitação e
integração de novos padrões e valores, é frequentemente
caracterizado por um processo de anomia pessoal e social.
A cidade transmite uma série de mensagens que chegam ao
campo e cidades menores, lá exercendo um forte fascínio. Ela é vista
como um lugar onde é possível ascender social e economicamente,
onde os rígidos controles sociais do meio rural inexistem e onde é
possível dar vazão às aptidões e vocações individuais.
Anomia (pessoal), segundo MacIver, significa "o estado de
espírito de alguém que foi arrancado de suas raízes morais, que já não
segue quaisquer padrões mas somente necessidades avulsas, que já
não tem qualquer senso de continuidade, de grupo e de obrigação. O
homem anônimo tornou-se espiritualmente estéril, reage somente
diante de si mesmo, não é responsável para com ninguém. Ele ri dos
valores de outros homens. Sua única fé é a filosofia da negação. Vive
A cidade realmente oferece maior número de oportunidades
individuais. O número de comportamentos alternativos é muito maior
2
3
sobre a débil linha da sensação entre nenhum futuro e nenhum
passado. A anomia é um estado de espírito no qual o senso de coesão
social - mola principal da moral - está quebrado ou fatalmente
esquecido?”a.
Merton afirma que a anomia (social) é "concebida como uma
ruptura na estrutura cultural, ocorrendo, particularmente, quando há
uma disjunção aguda entre as normas e metas culturais e as
capacidades socialmente estruturadas dos membros do grupo em agir
de acordo com os primeiros. Conforme esta concepção, os valores
culturais podem ajudar a produzir um comportamento que esteja em
oposição aos mandatos dos próprios valores"b.
Disto pode-se inferir que existe não somente uma marginalidade
econômica ocasionada pela incapacidade do sistema econômico
absorver o contingente formado pelo êxodo rural, mas também uma
marginalidade psicossocial decorrente da dificuldade de entender a
cidade e de assimilar seus valores.
Uma das principais características do meio rural é a sensação de
pertencer a algo. No campo, o indivíduo, qualquer que seja sua
posição social, tem nítida consciência de fazer parte de grupos. A
família é um grupo sólido, a vizinhança também o é. Igualmente, a
posição individual dentro da comunidade é bem definida. As relações
individuais baseiam-se predominantemente em contatos primários e
diretos.
A cidade como pólo de atração é vista como um sistema
inclusivo. E é justamente sua inclusividade que funciona como força
de atração. O indivíduo que consegue chegar à perimetria deste
sistema quer estar nele incluído.
A cidade, entretanto faz com que os antigos vínculos do
indivíduo sejam enfraquecidos ou rompidos sem oferecer uma
alternativa que compense imediatamente esta perda.
Com o êxodo rural, a família grupo primário por excelência é
acentuadamente modificada. Ela deixa de ser extensa e torna-se
a
MERTON, Robert K. Sociologia, Teoria e Estrutura. São Paulo, Mestre Jou, 1970. P.236.
b Ibid.
4
nuclear. A autoridade paterna é consideravelmente diminuída,
quando não entra em falência como entidade tal como é concebida no
campo. Neste, a família é uma célula de produção e de consumo,
enquanto na cidade ela não desempenha nenhum destes dois papéis,
pois cada membro trabalha noutro local e o consumo de refeições,
por exemplo, frequentemente é feito perto do local de trabalho.
Os grupos aos quais o indivíduo se filia são divergentes, pois
cada um deles atende a uma necessidade ou interesse específico,
envolvendo apenas um aspecto de sua personalidade e contribuindo,
por conseguinte, para sua fragmentação e marginalidade psicossocial.
Nas comunidades rurais ou nas sociedades menos diferenciadas,
os grupos aos quais o indivíduo deve fidelidade obedecem a uma
ordenação hierárquica. Como, na cidade, "os grupos aos quais a
pessoa está tipicamente filiada são tangenciais uns aos outros ou se
entrecortam de forma altamente variada e nenhum grupo isolado é
possuidor de fidelidade exclusiva do indivíduo"c, este fica
desorientado, sem saber a que grupo pertence integralmente.
Esta desorientação nada mais é do que a dificuldade de perceber
e compreender a nova estrutura na qual está vivendo. E como a
principal característica desta estrutura (a cidade) é o seu rápido ritmo
de auto-transformação, torna-se impossível captá-la no seu sentido
estático. São os antigos padrões de percepção que impossibilitam ao
indivíduo perceber a nova realidade dinâmica.
A estrutura social também é menos rígida e mais complexa no
meio urbano, possibilitando ao cidadão um status mais flutuante que
no campo. Sua vida social envolve uma grande variedade de tipos de
indivíduos com os quais se depara nos grupos sociais diferenciados
que compõem a estrutura social na cidade. Por isto, o cidadão "tende
para a aceitação da instabilidade e insegurança no mundo como
norma geral. Esse fato contribui, também, para a sofisticação e o
cosmopolitismo do habitante da cidade"d.
c WIRTH, Louis. “O Urbanismo como modo de vida”. In VELHO, O . G. O Fenômeno
Urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1967. P.113).
d Ibid.
5
Torna-se claro porque as cidades, principalmente as grandes
cidades, encontram-se em equilíbrio instável.
1.4 - A cidade e seu metabolismo
Chama-se de metabolismo social da cidade sua capacidade de
moldar o caráter da vida social a sua forma especificamente urbana.
Isto implica em saber qual é o grau de integração do indivíduo na
cidade.
Vimos que a cidade tende a substituir os contatos e o
relacionamento subjetivos por um padrão baseado na objetividade e
no interesse específico. Isto alivia a pressão, o controle e o
envolvimento existentes no meio rural, dando ao indivíduo maior
liberdade. Entretanto, por ser grande demais, a cidade não lhe dá a
sensação de a ela pertencer. Ele sente-se mais facilmente isolado que
integrado neste sistema que ainda não captou ou conseguiu
compreender.
O primeiro movimento do recém-chegado à cidade ainda é de
pertencer a algo. Logo perceberá que os novos vínculos que tenta
estabelecer são bem mais fluidos e que os grupos a que pertencia são
muito menos sólidos. A maior parte de seus contatos passa a ser
secundária. Sua vizinhança, por exemplo, não é mais aquele grupo
coeso, mas algo bastante fluido, no qual existem pessoas de posições
mais altas e mais baixas que as suas e de cuja existência ou tipo de
vida não tem noção. Os edifícios são um exemplo típico disto.
Desconhecer quem é o morador do apartamento de baixo ou de cima
é um fato corriqueiro.
O novo tipo de família que se constitui passa a ter novos papéis
e características. O que ela perde em extensão e quantidade, teria
condições de ganhar em profundidade, já que é o único grupo na
cidade onde o indivíduo tem maiores possibilidades de integrar todos
seus aspectos no relacionamento.
criança em idade de socialização sofre influência não só dos pais,
mas de outros parentes e vizinhos.
Ocorre que o indivíduo é submetido às mais diversas formas de
contato no meio urbano. Se a família é muito importante na
socialização da criança na cidade, a própria cidade se encarrega, mais
tarde, de se constituir em um modelador de sua personalidade, posto
que a submete a diferentes situações e lhe fornece informações.
1.5 - As regras do jogo
A cidade caracteriza-se simultaneamente por sua tolerância e
indiferença em relação à vida de seus habitantes.
A aspiração a incluir-se no sistema em que a cidade se constitui
faz com que os indivíduos aprendam as regras de seu jogo. Cada um
está interessado em ser bem sucedido nesta tarefa. O que importa,
portanto, é o sucesso pessoal e não o coletivo. Interessa vencer
apenas.
Isto, evidentemente, cria uma indiferença para com os demais. A
indiferença, igualmente, é um mecanismo de defesa que o indivíduo
cria para poder suportar as tensões a que é submetido diariamente. O
conhecido exemplo de muitos não pararem para assistir a alguém que
está caído na rua não significa apenas que o cidadão comum não tem
tempo a perder na luta diária, mas que se ele for se angustiar com
todos os fatos que presencia, sua carga de angústia se tornaria
intolerável, impedindo-o de prosseguir.
A maior tolerância que se verifica na cidade é consequência da
indiferença. Ambas estão intimamente associadas constituindo-se em
faces opostas de uma mesma moeda.
Este contínuo indiferença/tolerância explica, igualmente, mais
alguns fenômenos.
Igualmente para a socialização da criança, a família nuclear
urbana exerce um papel mais preponderante que no campo, no qual a
O primeiro deles é o que se chama de contraculturas. Estas são
formadas por grupos, geralmente jovens, que se recusam a aceitar as
regras do jogo que se desenvolve nas grandes cidades. Não se trata de
um grupo que tenta se integrar ou combater o sistema, mas de uma
6
7
contestação que se materializa sob forma de recusa. O exemplo mais
atual são os hippies. Ocorre que a relativa tolerância (maior ou
menor, de acordo com o grau de urbanização e desenvolvimento do
lugar) para com o fenômeno acabou por neutralizá-lo, e de certa
forma reintegrá-lo na medida que várias de suas características foram
incorporadas e até comercializadas pelo sistema, através de slogans
(faça o amor, não a guerra) veiculados pela publicidade ou através de
produtos (principalmente a indumentária). Este processo de pseudoabsorção de ideias e costumes hippies conseguiu neutralizar a
contestação que o mesmo apresentava no seu surgimento.
O segundo fenômeno é o que Riesman (1950) chama de
multidão solitária. Esta é composta por indivíduos que não possuindo
o arraigamento e identificação com os valores que o meio rural
proporciona, tampouco conseguem identificar-se e assumir uma
identidade na cidade. Rodeados constantemente por outros
indivíduos, podendo gozar o doce anonimato são no entanto uma
massa de solitários que sente a grande cidade como um ambiente de
extrema frieza.
Bibliografia Consultada
1. MEIER, Richard. A communication theory of urban growth, Cambridge,
M.I.T., 1962.
2. MERTON, Robert K. Sociologia, Teoria e Estrutura. São Paulo, Mestre
Jou, 1970.
3. RIESMAN, David. The lonely crowd. New Haven, Yale University,
1950.
4. WIRTH, Louis. “O Urbanismo como Modo de Vida”. In: VELHO, O. G.
O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1967, p. 97-122.
O terceiro fenômeno é a procura da privacidade. Submetido
diariamente aos mais variados contatos e tensões, o indivíduo sentese invadido em sua intimidade pela constante necessidade de
enfrentar e responder a situações e problemas. O anseio pela
privacidade caracteriza uma necessidade de recolhimento e
introspeção em busca de restabelecer o equilíbrio pessoal.
O quarto fenômeno é representado pelo episódio relatado no
início deste ensaio. O contínuo indiferença/tolerância nos permite
agora compreender porque nenhuma das trinta e oito testemunhas
tomou qualquer atitude senão a de assistir ao crime. O
acontecimento, visto à luz desta explicação, nos permite perceber que
não se trata de julgar as testemunhas, mas de compreender o que
houve de subjacente a sua passividade e não-envolvimento.
8
9
Oscar Wilde afirmou que o homem sofre uma desilusão em dois
casos: quando seus ideais não se realizam e quando eles se realizam.
Ironia à parte, esta afirmação encerra questões bastante sérias
que este ensaio pretende analisar.
Os termos progresso e felicidade são, atualmente, muito
empregados, mas pouco questionados. A pergunta que precisa ser
formulada é: progredir por quê e para quê? À primeira vista a
pergunta pode parecer absurda ou reacionária, mas sua resposta
implica em analisar quais são os objetivos a que se pretende chegar
com o progresso.
2 - PROGRESSO, FELICIDADE
FELICIDADE & CIA. LTDA.
O termo progresso é mais frequentemente utilizado no sentido
de progredir por progredir. O objetivo do progresso seria, então, o
próprio progresso, como se ele fosse um valor em si mesmo.
Do mesmo modo, a felicidade é, geralmente, formulada como
um ideal. Trata-se de uma caminhada em direção a um objetivo que
vai se distanciando à medida que é perseguido. A impossibilidade de
alcançar este objetivo está na raiz da felicidade. Atingir o ideal
relacionado com a felicidade, provavelmente, traria infelicidade, pois
o que torna a ideia de felicidade tão atraente é justamente a
dificuldade em alcançá-la.
Para aprofundar as questões que levantei torna-se útil construir
um modelo de análise. Ele se constitui de duas sociedades ou
culturas. Uma tradicional, a outra moderna. Como exemplos
extremos da primeira cultura poderíamos tomar uma tribo indígena e
para segunda cultura poderíamos utilizar um país considerado
desenvolvido.
Ao primeiro tipo de sociedade costuma-se chamar
frequentemente de primitiva, embora vários antropólogos (LEVISTRAUSS, 1970) chamem a atenção para o fato de estas sociedades
ou culturas somente serem primitivas na percepção dos observadores
oriundos de sociedades não-primitivas. Em verdade elas apresentam
uma complexidade e sofisticação de organização social e mental do
mesmo nível das sociedades modernas.
10
11
As culturas tradicionais são também, frequentemente chamadas
de atrasadas por leigos. Para fazer uma afirmação deste tipo sem
falsear a realidade é necessário ter critérios objetivos que possam
medir o atraso de uma cultura.
Estes critérios objetivos provavelmente estariam ligados a medir
o progresso técnico ou econômico mas certamente se tornariam
pouco objetivos ou até ineficazes para medir o progresso social ou a
felicidade.
É perfeitamente possível dizer, por exemplo, que uma sociedade
possui índices mais favoráveis que outras no que concerne a recursos
tecnológicos, à saúde física, recursos postos à disposição do
indivíduo, etc. Isto pode ser expresso em indicadores do tipo energia
elétrica per capita, expectativa média de vida, renda per capita, etc.
Neste sentido o termo desenvolvimento é sempre medido por
critérios que refletem o nível tecnológico ou econômico de uma
sociedade.
Como medir, entretanto, o nível de progresso social ou de
felicidade em bases objetivas? Inevitavelmente incorremos no risco
de nos tornarmos etnocêntricos e de considerar e julgar sociedades
culturalmente diversas com critérios fornecidos pela nossa própria
cultura.
Heródoto relata o diálogo entre alguns gregos e uma tribo
bárbara, na qual os primeiros expressam seu horror pelas práticas dos
bárbaros em comerem seus mortos, e estes, por seu lado, expressam
um quase semelhante horror pela prática de enterrar os mortos,
seguida pelos gregos, o que para eles constitui um choque tão grande
como os seus próprios costumes para os gregos.
Sobre esta atitude emocionalmente condicionada que se chama
de etnocentrismo, o que Heródoto escreveu há séculos permanece
válido: "... Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos os
costumes do mundo, àqueles que lhes parecessem melhores, eles
examinariam a totalidade e acabariam preferindo os seus próprios
12
costumes, tão convencidos estão de que estes são melhores que todos
os outros"a.
Alex Inkeless (1956), em um artigo intitulado "The
Modernization of Man" cita nove elementos que julga serem as
características do homem moderno. Com bases nestes indicadores
foram pesquisadas culturas de diferentes níveis. Entre as
características apontadas por Inkeless como sendo as do homem
moderno, a maior parte é objetiva, como por exemplo, a disposição
para novas experiências e abertura para inovação e mudança, mais fé
na ciência e tecnologia, etc.
Ao chegar à sétima característica o autor afirma: "O sétimo tema
que enfatizamos é a dignidade. Nós entendemos que o homem mais
moderno é alguém que possui mais consciência da dignidade dos
outros e maior disposição para mostrar respeito por eles. Nós
sentimos que isto fica muito claro em atitudes em relação à mulheres
e crianças"b.
Ao citar a dignidade (medida pelo modo de tratar mulheres e
crianças) como uma das características do homem moderno, Inkeless
(1956) maneja com indicador que é etnocêntrico. Sabemos que a
dignidade é um conceito relativo que varia no tempo e no espaço. E
que é encarado por critérios de cada cultura que vão desde a
capacidade de sofrer em silêncio até o dever de vingar um parente
assassinado. O modo de tratar mulheres e crianças varia
consideravelmente não só entre culturas tradicionais e modernas, mas
entre os vários tipos de culturas modernas. O que é mais digno: o
costume esquimó de emprestar a mulher ao hóspede ou a obrigação
de matar a mulher adúltera?
Analisar outras culturas com bases nos nossos próprios valores
não leva a conclusões significativas, porque acaba-se trabalhando
com estereótipos, isto é, imagens simplificadas de outras culturas.
a
BLANKEY, E. H. The history of Herodus. London, Everyman´s Library, 1910. V. 1, p.
89
b
INKELES, Alex. "The modemization of man". In: WEINER, Myron. Modernization.
New York, Basic Books, 1956. p. 144
13
No modelo de comparação entre dois tipos de sociedades, não se
torna difícil afirmar que as sociedades modernas possuem um grau
mais elevado de progresso tecnológico e econômico. Mas do ponto
de vista social e emocional é perfeitamente cabível a pergunta: em
que todo este progresso tecnológico-econômico levou o homem a ser
mais feliz? Ou: não é o homem atrasado mais feliz que o moderno?
A Organização Mundial de Saúde define saúde como "o mais
completo bem-estar físico, mental e social”c. Se nos ativermos a esta
definição podemos facilmente constatar que as sociedades modernas
estão enfermas. Para chegar a tal conclusão bastaria usar indicadores
que medissem o bem-estar físico (estatísticas sobre mortalidade e
morbidade, assistência médico-hospitalar, nutrição, etc.), o bem-estar
mental (índices de suicídios, de alcoólatras e viciados em drogas,
internamentos em hospícios, homicídios e outras formas de
violência) e o bem-estar social (distribuição de renda, possibilidades
educacionais e profissionais, etc).
Surge então a seguinte pergunta: como pode uma cultura que se
define como enferma julgar-se o modelo de progresso ou felicidade?
Só é possível analisar culturas com base nos seus próprios
valores. Toda cultura possui sua coerência própria e nela várias
funções são desempenhadas através de seus elementos culturais. Os
costumes e valores servem para a perpetuação de sua configuração
sócio-cultural.
apresentarem uma grande incidência de desajustes psicossociais e
fenômenos neuróticos. Existe uma relação entre a cultura e a
personalidade de seus membros. Toda sociedade, através do processo
de socialização, transmite a seus membros seus valores e ideais.
Alguns costumes de certas tribos, como jogar fora uma parte da
colheita, podem parecer absurdos sob o ponto de vista estritamente
econômico. Nada indica, entretanto, que os membros desta cultura
sejam infelizes. Eles seriam infelizes se fossem transportados para
uma cultura moderna, do mesmo modo que os membros desta não se
sentiriam muito à vontade se tivessem que viver numa tribo.
Tentar impor a culturas tradicionais nossos valores constitui uma
forma de violência cultural. Há exemplos muito importantes disso: a
aculturação de indígenas tentada por sociedades modernas tem
significado frequentemente seu desaparecimento não só cultural, mas
físico também.
Ainda no nosso modelo de análise, a sociedade tradicional pode
ter valores que a façam mudar pouco. Seus costumes podem ser
muito mais em direção à permanência e estabilidade.
É muito frequente que o homem moderno não consiga entender
a passividade e a falta de sentido na existência do homem primitivo.
A repressão social da irracionalidade no indivíduo talvez
explique o fato de as sociedades modernas altamente organizadas
Por trás da tentativa de levar nossa imagem de progresso e
felicidade a outras culturas está a ideia ocidental de dar sentido à
vida. Esta ideia origina-se no judaísmo e no cristianismo, que dão a
vida como sagrada. Para o judaísmo, o homem foi feito à imagem de
Deus, e como tal também é santo. A vida seria a situação na qual o
homem se santificaria, o que explica porque qualquer preceito
religioso não deve ser respeitado se seu cumprimento implicar em
perigo à vida. Para o catolicismo a vida terrena é uma preparação
para a que vem depois da morte e para o protestantismo uma das
funções do homem na terra é glorificar a obra de Deus através da
prática de boas ações. Para estas religiões o suicídio é um pecado
grave pois implica na destruição de algo sagrado.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Constituição, 1948. Constituiçdo da
Organizaçdo Mundial da Saúde, aprovada em 7 de abril de 1948. 19. ed. Rio de Janeiro,
1968
Max Weber (1970) mostrou como muitos protestantes
associaram a ideia de glorificar a obra de Deus pela prática de boas
ações com o ser bem sucedido economicamente. Para Weber a ética
14
15
Os costumes e valores de uma cultura nem sempre obedecem a
um critério de racionalidade e portanto não podem ser analisados sob
este ângulo. A tese iluminista da racionalidade humana foi descartada
a partir de Freud que mostrou como a conduta humana está eivada de
aspectos irracionais e como é motivada pelo inconsciente. Para Freud
a irracionalidade é o cerne irredutível do homem e na medida em que
as sociedades se organizam elas cerceiam esta irracionalidade.
c
protestante está fortemente associada ao espírito do capitalismo, na
medida em que esta interpretação criou uma motivação muito forte
em seus seguidores.
A própria dinamicidade do homem moderno está intimamente
associada à sua agressividade e talvez nada mais seja do que uma
forma de agressividade canalizada de um modo socialmente aceito. A
agressividade comparece entre os valores que o homem moderno
recebe de sua cultura e que influencia decisivamente sua
personalidade.
Se em outras épocas a agressividade se manifestava mais sob
uma forma grupal, modernamente ela surge também sob a forma
individual. Para o homem moderno que vive em grandes
aglomerados urbanos o que ressalta cada vez mais é a agressividade
individual, como algo desejado e reforçado inclusive. Isto se
manifesta nas mais variadas formas, principalmente na ideia de
vencer na vida, geralmente fundada no princípio de que para uns
vencerem, outros precisam sofrer uma derrota.
Um exemplo significativo é o fato de que o empresário dinâmico
é comumente chamado de empresário agressivo, sem que esta palavra
tenha qualquer conotação pejorativa.
Os padrões de comportamento que as culturas modernas
impõem a seus membros envolvem as ideias de sucesso, de consumir
e de dinheiro como fontes de felicidade. A ditadura de consumo que
se instaurou nos países altamente desenvolvidos, dada a necessidade
de as indústrias venderem seus novos produtos, faz com que estes
necessitem tornar-se rapidamente obsoletos, a ponto de a
obsolescência ser inclusive planejada.
Não parece existir uma correlação positiva entre progresso
tecnológico econômico e felicidade. Não há nada que prove que as
sociedades que progridem em sua técnica possibilitem a seus
membros serem mais felizes. Sobre felicidade estou entendendo a
definição de Camus quando afirma: "Mas que é felicidade, senão a
simples concordância entre um ser e a existência que leva?"d. Esta
d
CAMUS, Albert. “O deserto”, In: _ . Bodas em Tipasa. São Paulo, Difusão Européia do
Livro, 1964., p.43
16
definição me parece ser bastante objetiva e não estabelecer juízos de
valor.
Se voltarmos ao nosso modelo de análise veremos que o homem
de culturas tradicionais pode ter seu esquema de vida relativamente
bem organizado e sentir-se seguro por conhecer sua posição dentro
da sociedade a que pertence. Como, frequentemente, sua cultura
tende mais à permanência, suas ambições são pequenas. O processo
de enculturação faz com que aceite seu status sem preocupação de
perdê-lo ou de conquistar outro mais alto. Suas necessidades são
simples se comparadas com as do homem de culturas modernas. E,
ao contrário deste, não necessita questionar-se tanto a respeito do
sentido da vida.
Já as culturas modernas se transformam com muito mais
rapidez. A hierarquia social é menos rígida e existe possibilidade de
nela baixar e subir; os grupos de fidelidade são muito mais difíceis de
identificar. A noção do que é certo e do que é errado também é muito
mais flexível.
O processo de enculturação do homem em sociedades modernas
frisa a ambição como um valor, pois a cultura é muito mais
competitiva. A sociedade de consumo através dos meios de
comunicação de massa cria constantemente novas necessidades no
indivíduo. Isto faz com que ele desenvolva um nível de aspirações
crescentes. Estas são intermináveis pois no momento em que uma é
atendida, cria-se uma nova.
A existência do homem moderno, de um modo genérico, gira em
torno de sempre aspirar a mais. Este processo apresenta muita
semelhança com a noção de felicidade encarada como um ideal
inatingível. Pode-se dizer que este empenho por alcançar um ideal
inatingível e o infindável processo de ambicionar sempre mais é que
produz felicidade ao homem moderno.
A palavra felicidade foi colocada em destaque no parágrafo
anterior pois só podemos considerar felizes as pessoas que estiverem
em concordância com este tipo de existência que levam. O problema
reside justamente no fato de que embora este processo promova o
progresso tecnológico-científico, ele não obrigatoriamente promove a
17
felicidade, pois o número de pessoas de culturas modernas que não
conseguem se ajustar a ele torna-se cada vez maior. É interessante
observar que isto se dá com maior intensidade justamente naquelas
culturas modernas que possuem o mais alto nível de progresso
tecnológico-econômico.
3 – CULTURA E PERSONALIDADE
PERSONALIDADE
Bibliografia Consultada
1. BLANKEY, E. H . The history of Herodutus. London, Everyman´s
Library, 1910
2. CAMUS, Albert. “o Deserto’. In: — . Bodas em Tipasa. São Paulo,
Difusão Européia do Livro, 1964.
3. INKELES, Alex. “The modernization of man”. In: WEINER, Myron.
Modernization. New York, Basic Books, 1956.
4. LEVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. São Paulo, Ed.
Nacional, 1970.
5. ANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Constituição, 1948. Constituição
da Organização Mundial da Saúde, aprovada em 7 de abril de 1948.
19. Ed. Rio de Janeiro, 1968.
6. WERNER, Max. The protestant ethic and spirit of capitalism. 10. Ed.
London, Unwin University Books, 1970.
18
19
3.1 – Introdução
Analisadas como fenômenos abrangentes, cultura e
personalidade se constituem em respostas a necessidades globais: a
primeira é a resposta às necessidades da sociedade que a produziu, a
segunda é a resposta às necessidades da pessoa na qual se produziu.
Estamos, portanto, diante de dois fenômenos que, embora
possuam dinâmicas e leis próprias, guardam certa semelhança por
terem como finalidade possibilitar o adequado funcionamento de
outros dois fenômenos: a sociedade no caso da cultura e a pessoa
humana no caso da personalidade.
Outra analogia que transparece é a de que, por se constituírem
num processo dinâmico, as culturas e as personalidades nunca estão
completamente integradas, sendo capazes de abranger elementos em
conflito e incoerência.
Este artigo pretende abordar o inter-relacionamento entre estes
dois fenômenos, ou seja, analisar o papel que a cultura exerce no
condicionamento da personalidade e estudar qual é, por sua vez, a
influência desta sobre aquela.
Para tal finalidade serão analisadas e discutidas algumas
posições de pensadores que se ocuparam com este assunto.
3.2 - Freud
Para Freud, os homens são "criaturas em cuja herança
instintiva deve ser computada uma poderosa parcela de
agressividade"a.É esta "inclinação para a agressão" b que, segundo
Freud, perturba as relações humanas e que força a cultura a um alto
gasto de energia. Como a sociedade civilizada está constantemente
ameaçada de desintegração devido a esta hostilidade primordial entre
os seres humanos, a cultura tem de usar seus maiores esforços para
estabelecer limites aos instintos agressivos do homem.
a
FREUD, Sigmund.Civilization and its discontents. New York, W. W. Norton, 1968. p.
58.
b
Ibid., p. 59.
20
"A transformação dos 'maus instintos' é obra de dois fatores que
atuam no mesmo sentido, um interno e outro externo. O fator interno
é o influxo exercido sobre os maus instintos — egoístas — pelo
erotismo, isto é, pela necessidade de amor no seu mais amplo sentido.
A união dos componentes eróticos transforma os instintos egoístas
em instintos sociais. O sujeito aprende a estimar e sentir-se amado
como uma vantagem pela qual pode renunciar a outras. O fator
externo é a coerção da educação, que representa as exigências da
civilização circundante, e é logo continuada pela ação direta do meio
civilizado. A civilização tem sido conquistada por obra da renúncia
da satisfação dos instintos e exige de todo novo indivíduo a repetição
de tal renúncia. Durante a vida individual se produz uma
transformação constante da coerção externa em interna. As
influências da civilização fazem com que as tendências egoístas
sejam convertidas, cada vez mais em maior medida, por agregados
eróticos em tendências sociais. Pode-se, por último, admitir que toda
coerção interna eficiente na evolução do homem foi, originalmente
(isto é, na história da humanidade), tão somente coerção externa. Os
homens que nascem hoje trazem consigo certa disposição à
transformação dos instintos egoístas em instintos sociais como
organização herdada, a qual obediente a leves estímulos, leva a cabo
tal transformação. Outra parte desta transformação dos instintos tem
de ser levada a cabo na própria vida. Deste modo, o indivíduo não se
acha tão somente sob a influência de seu meio civilizado presente,
senão que está submetido também à influência da história cultural de
seus antepassados"c.
Freud (1930) aponta, também, que o processo da civilização
humana e o desenvolvimento ou processo educativo de seres
humanos individuais são muito parecidos em natureza se não o
mesmo processo aplicado a diferentes tipos de objetos. A meta do
primeiro processo seria a criação de um grupo unificado de muitos
indivíduos, a do segundo, a integração de um indivíduo separado em
um grupo humano.
c
FREUD, Sigmund. "Consideraciones de actualidad sobre la guerra y la muerte". In:—.
Obras completas de Freud. Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, 1948. v. 2, p. 1006-7.
21
Há, entretanto, para Freud (1930) uma característica que
distingue estes dois processos. No processo de desenvolvimento do
indivíduo a principal meta é o programa do prazer, que consiste em
encontrar a satisfação da felicidade. Para que esta meta possa ser
obtida é necessário que haja integração ou adaptação a uma
comunidade humana. Isto significa que o desenvolvimento do
indivíduo é um produto de uma interação entre dois impulsos: o
impulso à felicidade (geralmente chamada de egoísta) e o impulso à
união com outros na comunidade (chamado altruísta). No processo de
desenvolvimento individual a principal ênfase recai principalmente
no impulso egoísta (no impulso à felicidade), enquanto o outro
impulso, descrito como cultural, se contenta, geralmente, com o papel
de impor restrições.
enfoque passional ou dogmático, como por um enfoque mais
científico.
3.3 - Koestler
Para Arthur Koestler (“Todo Homem é uma Ilha”), por exemplo,
o exame da história humana leva à conclusão de que o homem sofre
de uma perturbação mental congênita que o impele à destruição. Mas
para este autor, "o principal problema com o homem parece ser, não
que se trata de uma criatura excessivamente agressiva, mas uma
criatura excessivamente local e dedicada" d.
Aponta Koestler que a "maior parte das civilizações foi bem
sucedida na tarefa de controlar a agressividade individual e de
ensinar aos jovens como sublimarem seus impulsos de arrogante
autodestruição. Mas fracassamos tragicamente na comparável tarefa
de se conseguir a sublimação e canalização das emoções autotranscendentais" e.
Já no processo de civilização a meta mais importante é a de criar
uma unidade dos seres humanos individuais. A meta da felicidade,
embora presente, é empurrada para o fundo. Quase parece que a
criação de uma grande comunidade humana seria bem sucedida se
não se prestasse atenção à felicidade do indivíduo.
Embora séria, a formulação de Koestler não leva em conta um
aspecto muito importante, que é o fato da agressividade coletiva e a
devoção a um grupo ser fruto da agressividade individual. A
agressividade individual não é tolerada pela sociedade civilizada, mas
a agressividade coletiva é por ela tolerada e estimulada. Este
processo, descrito por Freud em Totem e Tabu (1913) corresponde ao
pacto que a horda primitiva fez e corresponde ao modelo de qualquer
guerra. O grupo ou o estado assume coletivamente a agressividade
que é proibida individualmente.
Assim, pode se esperar que o processo de desenvolvimento do
indivíduo tenha especiais características próprias que não são
reproduzidas no processo de civilização humana.
Estas colocações de Freud não são aceitas pacificamente por
estudiosos do tema “Cultura e Personalidade”. As divergências vão
desde posturas ingênuas até as que refutam a universalidade do
complexo de Édipo e da agressividade humana.
A postura freudiana, na medida que desmascarou a ingenuidade
ou hipocrisia subjacente à crença numa natural bondade humana,
chocou a muitos para os quais isto implica em aceitar a perspectiva
do homo homini lupus que Freud (1930) cita e acolhe em seu livro
“Mal-estar na Cultura”, obra na qual desenvolve suas principais
ideias sobre o tema.
O importante é distinguir o modo pelo qual é focada a
divergência sobre a bondade ou maldade humanas como
característica biológica. Esta divergência pode ser abordada por um
22
3.4 - Bertrand Russell
Ainda na linha de dar primazia às características inatas, Bertrand
Russell (1957) afirma que uma das principais diferenças entre o
d
KOESTLER, Arthur. Todo Homem é uma Ilha. Copenhague, s. d. Mimeografado. p. 1.
Discurso proferido ao receber o prêmio Sonning.
e
Ibid, p. 2
23
homem e o animal é que alguns desejos humanos, ao contrário dos
desejos manifestados pelos animais são essencialmente ilimitados e
incapazes de satisfação completa.
Para Russell os principais desejos infinitos do homem são os de
poder e de glória, que só são limitados pelo que a imaginação sugere
como possível. Existe, para Russell, em todo o homem, em menor ou
maior escala, o desejo de ser Deus. É isto que torna difícil a
cooperação social, pois cada um de nós gostaria de concebê-la,
segundo o modelo de cooperação entre Deus e Seus adoradores, com
nós mesmos colocados no lugar de Deus. Daí a concorrência, a
necessidade de compromissos e de governo, o impulso à rebelião,
com a instabilidade e a violência periódicas. E daí a necessidade de
moralidade para reprimir a auto-afirmação individual.
O enfoque de Russell introduz na análise do comportamento
social uma variável de fundamental importância. Perceber que o
impulso para o poder é o principal móvel do comportamento social,
significa analisar a este como resultado de impulsos humanos e não
de ações gratuitas. Estamos novamente diante de uma análise que
mostra que as ações humanas não são casuais mas têm profundas
raízes subjacentes.
Nos três autores anteriormente citados (Freud, Koestler e
Russell), existe acentuada valorização das forças biológicas primárias
(instintivo-emocionais), no confronto entre o individual com o social.
A atuação humana seria essencialmente explicada pela biologia dos
instintos do homem, sendo as outras causas e circunstâncias
complementares ou secundárias. É claro que este enfoque não é
aceito unanimemente por todos que se interessam pelo tema “Cultura
e Personalidade”. Posições divergentes são encontradas entre
antropólogos, sociólogos e mesmo entre psicanalistas (escola
culturalista). Existe toda uma corrente de pensamento que valoriza
muito mais os fatores sócio-culturais em detrimento das forças
biológicas primárias, acentuando o papel da cultura, em vez dos
instintos, na explicação do comportamento humano.
24
3.5 - Malinowski e Radcliffe-Brown
A escola antropológica funcionalista (ou estrutural-funcional)
tomou impulso com Malinowski e Radcliffe-Brown, e desenvolveu
duas tendências teóricas diferentes. A posição funcionalista de
Malinowski ressalta as necessidades dos indivíduos, enquanto
Radcliffe-Brown e seus seguidores acentuam as necessidades dos
sistemas sociais.
Para Malinowski (1962) cada cultura é um todo operante, uma
unidade integrada, na qual cada elemento tem uma contribuição
funcional a prestar. A função de qualquer instituição, vale dizer, de
um sistema organizado de atividade, é a parte que ela representa no
todo interligado, preenchendo propósitos ou necessidades humanas
Para Radcliffe-Brown (1959) a função de um elemento de
cultura é o papel que ele representa em toda vida social e, portanto, a
contribuição que presta à manutenção da continuidade estrutural.
Malinowski (1949) durante toda Primeira Guerra Mundial,
esteve ao largo da costa da Nova Guiné pesquisando quase todos os
aspectos do modo de vida dessas ilhas e concluiu que os nativos das
ilhas de Trobriand constituíam uma negação do complexo de Édipo.
Os trobriandinos são matrilineares na organização do
parentesco, ou seja, a relação de parentesco se deriva exclusivamente
da mãe e os direitos de sucessão e herança só se regem em linha
materna.
Entre os trobriandinos, Malinowski verificou que a crescente
hostilidade do menino é dirigida não para o pai, mas contra o tio
materno, porque este é a pessoa que tem autoridade sobre ele, quem o
educa para a vida adulta. O pai é uma pessoa amiga, prestativa, que
exerce pouca ou nenhuma autoridade sobre o filho. Malinowski
também descobriu que a culpa sexual em relação a desejos proibidos
incluía não a mãe, mas a irmã.
25
O trabalho de Malinowski foi muito criticado (RÔHEIM, 1958)
por não ter ele percebido que pelo processo de transferência
psicológica, o complexo de Édipo estava deslocado sobre substitutos
como tios, irmãos, etc, e que portanto não foi refutado pelos
trobriandinos matrilineares.
suficientemente estreita e contínua que possibilitasse o crescimento
gradativo de um sistema de regras e entendimentos comuns.
Na falta de tais regras, aumenta a incerteza e a
imprevisibilidade, não sendo possível harmonizar as ações dos
indivíduos de um setor da divisão do trabalho com as ações das
pessoas nos outros setores, e as pessoas são dominadas por objetivos
contraditórios, o que causa confusão, realização ineficiente de
funções sociais fundamentais e tendências à desintegração social. Em
resumo: desintegra-se o corpo de regras comuns que é o principal
mecanismo de regulamentação das relações entre os elementos do
sistema social. A este estado de ausência de normas e
desregulamento, Durkheim denominou de anomia.
3.6 - Durkheim
De acordo com Émile Durkheim (1930) cientista social francês
que influenciou a corrente funcionalista (principalmente a RadcliffeBrown), as necessidades humanas, ao contrário dos animais, são
passíveis de uma expansão infinita. Como não existe um limite
natural ao que o homem possa desejar e, portanto, ao que lhe possa
proporcionar um sentido de satisfação e realização, o limite dos
desejos humanos não é estabelecido pela biologia, mas por regras
sociais que definem para cada tipo de homem, aquilo a que
legitimamente tem direito. Incorporadas à consciência do indivíduo,
essas regras estabelecem e disciplinam as aspirações dos homens e
criam a possibilidade de um modelo de satisfação e realização.
3.7 - Merton
Robert Merton (1970), sociólogo norte-americano, seguidor e
reformulador do funcionalismo, considera falaz a premissa de que a
estrutura da sociedade restrinja primordialmente a livre expressão dos
impulsos nativos fixos do homem. Para Merton, "a filosofia contida
em tal doutrina é, evidentemente, o anarquismo cru; ou o anarquismo
benevolente, como é o caso de Fromm, ou algumas vezes, como é o
caso de Freud e Hobbes, uma concepção de anarquismo como sendo
malevolente, no qual o homem é visto como entrando num contrato
social destinado a protegê-lo desta malevolência. Em qualquer destes
casos, a estrutura social é considerada como um mal necessário,
originando-se a princípio dos impulsos hostis e depois restringindo
sua livre expressão"f. Em contraste com tais doutrinas anarquistas,
Merton numa linha de análise funcionalista concebe a estrutura social
como ativa, como produtora de novas motivações que não podem ser
preditas sobre a base do conhecimento dos impulsos do homem: "Se
a estrutura social restringe algumas disposições para agir, cria outras.
O enfoque funcional, portanto, abandona a posição mantida por
várias teorias individualistas, de que as diferentes proporções de
Em oposição aos pensadores do utilitarismo, para os quais a
felicidade humana consistia num constante alargamento, em tamanho
e quantidade, dos prazeres individuais, para Durkheim a felicidade
humana só poderia ser obtida se os prazeres individuais fossem
limitados por normas socialmente aceitas. Quando estas normas
falhassem, o indivíduo se acharia num estado de desorganização
pessoal que ele chamou de anomia e que aplicou à divisão do
trabalho e ao suicídio.
A noção durkheimiana (1938) de anornia surgiu na explicação
das formas e consequências patológicas da divisão do trabalho,
principalmente a frequente tendência de uma divisão cada vez maior
do trabalho ser acompanhada por uma coordenação imperfeita das
partes, redução da solidariedade social e conflito entre as classes
sociais. De acordo com Durkheim, essas condições surgiam quando
os indivíduos que desempenham as várias funções especializadas da
divisão do trabalho não possuíam, entre si, uma integração
26
f
MERTON, Robert K. Sociologia, Teoria e Estrutura. São Paulo, Mestre Jou, 1970. p.
191.
27
comportamento divergente, nos diversos grupos e estratos sociais,
são o resultado acidental de proporções várias de personalidades
patológicas encontradas em tais grupos e estratos. Ao invés, tenta
determinar como a estrutura social e cultural gera a pressão favorável
ao comportamento socialmente desviado, sobre as pessoas
localizadas em várias situações naquela estrutura"g.
Retomando o tema durkheimiano da anomia, Merton publicou
em 1938 um artigo chamado "Estrutura Social e Anomia"h. Nele
explicita uma distinção tríplice que estava implícita na análise de
Durkheim.
Entre os diversos elementos, das estruturas sociais e culturais
teríamos em primeiro lugar os “objetivos culturalmente definidos” de
propósitos e interesses, mantidos como objetivos legítimos para
todos, ou para membros diversamente localizados na sociedade. E
embora alguns, não todos, de tais objetivos culturais sejam
diretamente relacionados aos impulsos biológicos do homem, não são
por eles determinados.
Em um caso limite teríamos então sociedades em que é dada
uma ênfase excepcionalmente forte sobre objetivos específicos, sem
uma correspondente ênfase sobre os procedimentos institucionais;
noutro caso limite a ênfase recai toda sobre os procedimentos
institucionais, ao passo que as atividades inicialmente concebidas
como instrumentais são transformadas em práticas autocontidas, que
carecem de ulteriores objetivos.
Para Merton (1970) na sociedade norte-americana ocorre grande
ênfase sobre objetivos de êxito (principalmente pelo triunfo
monetário ou material) para pessoas de todas as classes, sem a ênfase
equivalente sobre os meios institucionalizados.
A separação entre objetivos e meios e a consequente tensão
provocam a redução da dedicação dos indivíduos aos objetivos
culturalmente determinados ou aos meios institucionalizados, isto é,
provocam um estado de anomia.
Em terceiro lugar, temos os “meios institucionalizados”, que são
a verdadeira distribuição de oportunidades e habilidades, a fim de
atingir, de maneira compatível com as normas, os objetivos culturais.
Constituem um aspecto da estrutura social, as condições objetivas de
ação.
O conceito mertoniano de anomia parte da análise da relação
entre a estrutura cultural, de um lado, e a estrutura social, de outro. A
estrutura cultural é definida por Merton (1970) como sendo o
conjunto de valores normativos que governam a conduta comum dos
membros de uma determinada sociedade ou grupo, ao passo que a
estrutura social é entendida como o conjunto organizado de relações
sociais no qual os membros da sociedade ou grupo são implicados de
várias maneiras.
A interação destas três variáveis determina a distribuição da
“tensão socialmente estruturada”. A estrutura cultural pode
determinar objetivos semelhantes para todos os membros da
sociedade, ou objetivos diferentes para pessoas em posições sociais
diferentes. Pode estabelecer regras para alcançar os objetivos que
sejam iguais para todos os membros da sociedade ou pode proibir aos
membros de uma posição o que permite aos de outra.
A anomia é então concebida, por Merton, como uma ruptura na
estrutura cultural, ocorrendo, particularmente, quando há uma
disjunção aguda entre as normas e metas culturais e as capacidades
socialmente estruturadas dos membros em agir de acordo com as
primeiras. Conforme esta concepção, os valores culturais podem
ajudar a produzir um comportamento que esteja em oposição aos
mandatos dos próprios valores.
Em segundo lugar, existem as “normas” que definem, regulam e
controlam os modos aceitáveis de alcançar tais objetivos.
Construindo uma tipologia de adaptação individual em função
de duas variáveis (objetivos culturais e meios institucionalizados de
alcançá-los), Merton montou uma tabela com cinco tipos de
g
Ibid., p. 191
h
Ibid p. 203-34.
28
29
adaptações, na qual ambas as variáveis podem ser aceitas ou
rejeitadas.
objetivos culturais, como os meios institucionalizados, pertencendo à
sociedade somente num sentido fictício.
A seguinte tabela apresenta os cinco tipos de adaptação, em que
(+) significa “aceitação”,(-) significa “rejeição”, e (±) significa
“rejeição de valores predominantes e sua substituição por novos
valores”.
Já a rebelião (exemplificada por membros de movimentos
revolucionários) pressupõe o afastamento dos objetivos dominantes e
sua substituição por novos valores.
Tipologia de Modos de Adaptação Individuali
Modos de Adaptação
I – Conformidade
II – Inovação
III – Ritualismo
IV – Retraimento
V- Rebelião
Metas Culturais
Meios
institucionalizados
+
+
±
+
+
±
3.8 - Estudos psicológicos e culturalistas
Apenas o primeiro tipo de adaptação (conformidade) é de
aceitação das duas variáveis desta tipologia. Os outros tipos de
adaptação configuram-se como formas de comportamento desviado.
Assim, os inovadores (por exemplo, criminosos de classe média)
assimilam a ênfase cultural sobre o alvo a alcançar sem, ao mesmo
tempo, absorver igualmente as normas institucionalizadas que
dirigem os meios e processos para seu atingimento.
Os ritualistas (por exemplo, burocratas que obedecem
servilmente as regras sem levar em conta suas finalidades)
abandonam os objetivos culturais e prendem-se às normas
institucionalizadas, das quais fazem uma virtude. Os que se retraem
(por exemplo, psicóticos, certos artistas, párias, proscritos, errantes,
mendigos, bêbados crônicos e viciados em drogas) rejeitam tanto os
i
Como é fácil observar, a abordagem de Merton é radicalmente
sociológica, na medida em que situa o indivíduo no confronto com a
estrutura social e cultural à qual pertence, e rejeita a predominância
dos fatores biológicos como determinantes da conduta humana.
Ibid, p. 212
30
Existe, ainda, toda uma corrente com expressões tanto na
antropologia, como na psicanálise, que procurou estudar as relações
entre a cultura e a personalidade de seus membros. Na antropologia, a
maior parte se constituía em discípulos de Franz Boas (1911) que
lecionava antropologia na Universidade de Columbia, e seus
trabalhos são geralmente conhecidos por “estudos psicológicos e de
configuração ou estudos de cultura e personalidade”. Entre os nomes
que mais se destacaram encontram-se Edward Sapir (1949), Ruth
Benedict (“Padrões de Cultura”, s.d.), Margaret Mead (1969), Ralph
Linton (1962), Clyde Kluckhohn (1963) e Cora DuBois (1955).
Na psicanálise esta corrente é geralmente chamada de
“culturalista” e entre seus membros encontram-se, por exemplo.
Abram Kardiner (1968), Erich Fromm (1963), Karen Horney (1960),
Harry Stack Sullivan (1962) e Erick Erickson (1963).
Houve, inclusive, colaboração entre antropólogos e
psicanalistas, como no caso de Ralph Linton (1967 e 1962) e Abram
Kardiner (1955 e 1968).
Margaret Mead realizou vários estudos em culturas simples,
procurando estudar a personalidade de seus membros. Em Coming of
Age in Samoa, Mead (1928) informa que o tipo de vida que os
samoanos levam é contrária aos laços emocionais característicos da
31
situação edipiana, pelo tipo de relacionamento de irmãos, irmãs e
primos sem quaisquer restrições na vida instintiva, com dispersão de
afetos dos adultos que convivem com eles na mesma habitação. Esta
situação foi encontrada por Mead em várias outras culturas, o que a
levou à conclusão de que o conflito não faz parte da natureza
humana, mas depende de fatores culturais que atuam na organização
familiar.
Linton (1962) também se preocupa com o grau de integração
necessário à sobrevivência de uma cultura. Para ele, nenhuma cultura
jamais estará em estado de integração perfeita, isto é, nunca terá
todos os seus elementos em condição de ajustamento recíproco
completo, enquanto mudanças de qualquer natureza estiverem em
andamento. E como sempre está se processando alguma modificação,
por causa da invenção ou da difusão, nenhuma cultura está
perfeitamente integrada, em qualquer época de sua história. Por isto,
a integração é uma questão de grau, para Linton.
Em seu livro “Sexo e Temperamento”, por exemplo, Mead
(1969) descreve três tribos (Arapesh, Mundugumor e Tchambuli)
situadas dentro de uma área de cem milhas na Nova Guiné.
Procurando estudar as diferenças sexuais entre estas tribos, Mead
constatou que "numa delas, homens e mulheres agiam como
esperamos que as mulheres ajam de um suave modo parental e
sensível; na segunda, ambos agiam como esperamos que os homens
ajam: com bravia iniciativa; e na terceira, os homens agem segundo o
nosso estereótipo para as mulheres, são fingidos, usam cachos e vão
às compras, enquanto as mulheres são enérgicas, administradoras,
parceiros desadornados"j.
Existiria um ponto mínimo de integração, abaixo do qual a
cultura se paralisaria e consequentemente a sociedade como entidade
funcional, seria destruída. Entretanto, raramente ou nunca este ponto
seria alcançado.
Para Linton, a cultura é essencialmente um fenômeno sóciopsicológico e, portanto, o grau de integração necessário a seu bom
funcionamento não é comparável ao grau de integração necessário ao
bom funcionamento de um organismo.
Apenas em dois pontos de toda configuração cultural a falta de
ajustamento pode ter efeito paralisador, segundo Linton: "Um destes
é o centro da cultura, a massa de valores, associações e reações
emocionais condicionadas, em grande parte inconscientes, que dão à
cultura sua vitalidade e fornecem aos indivíduos os motivos para
aderir aos padrões culturais e praticá-los. O outro é a mais superficial
das zonas de cultura, a zona dos padrões habituais de comportamento
expresso. Desajustamentos no primeiro ponto produzem conflitos
emocionais constantes dentro do indivíduo; conflitos entre indivíduos
que preferem valores diferentes; e perda da unidade psicológica.
Desajustamentos no segundo ponto resultam em constante
interferência, em desperdício de movimentos, para não falar num
estado crônico de irritação"l.
Para Ralph Linton, "tomada como um todo, uma cultura é uma
resposta às necessidades totais da sociedade que a produziu"k.
Linton (1967) afirma que existem dois tipos de influências
completamente distintas que são exercidas sobre o desenvolvimento
da personalidade. Por um lado, existem as influências que se
originam da conduta culturalmente padronizada de outras pessoas
“para com” a criança. Estas influências começam a operar desde o
nascimento e são de fundamental importância durante a infância. Por
outro lado, existem as influências que se originam da observação ou
instrução que o indivíduo tem dos padrões de conduta característicos
de sua sociedade. Embora muitos desses padrões não o afetem
diretamente, eles fornecem-lhe modelos para o desenvolvimento de
suas próprias reações habituais às várias situações. E, embora
careçam de importância na primeira infância, continuam a afetá-lo
durante a vida.
j
MEAD, Margaret. Sexo e Temperamento. São Paulo, Perspectiva, 1969. P. 10
LINTON, Ralph. O Homem: uma Introdução à Antorpologia. São Paulo, Martins, 1962.
P. 330
k
32
Linton e Abram Kardiner desenvolveram, durante
aproximadamente cinco anos, na Universidade de Columbia um
seminário interdisciplinar no qual eram apresentados informes do
l
Ibid.p.387-8
33
estilo de vida de várias culturas que eram analisadas sob os enfoques
antropológico e psicanalítico.
e vivências que os indivíduos experimentam, quando são várias as
agências socializadoras.
Deste seminário surgiu o conceito de “personalidade básica”,
lançado por Kardiner (1955) como sendo a configuração de
personalidade compartilhada pela maioria dos membros de sociedade
em consequência das primeiras experiências que tiveram em comum.
Sendo, entretanto, a família, por sua vez, também um produto
cultural, nela são reproduzidos padrões e valores vigentes na cultura.
Deste modo, a socialização que ocorre na família incute valores e
padrões da sociedade da qual aquela faz parte. Igualmente, os
membros mais velhos da familia-agência-socializadora foram
previamente socializados de acordo com os padrões culturais
vigentes.
3.9 - Conclusão
As posições existentes sobre o tema “Cultura e Personalidade”
nos colocam diante da clássica questão: quem surgiu primeiro, a
galinha ou o ovo? Vale dizer, é a cultura que molda a personalidade
de seus membros, ou são as características instintivas destes,
responsáveis pela existência da cultura?
Os defensores de ambas as posições são capazes de apontar
evidências que comprovem seu acerto. Como, entretanto, em matéria
de conhecimento humano é possível encontrar dados que comprovem
qualquer teoria (POPPER, 1967) isto não nos tira do impasse.
O importante, pois, não é determinar onde se localiza o começo
do problema, mas constatar que se trata de um processo dinâmico no
qual causas e efeitos se confundem e agem um sobre o outro.
Se reconhecermos a existência de um tipo básico de estrutura
psíquica nas sociedades onde há uma família do tipo patrilinear,
condicionada por necessidades biológicas e sócio-culturais, podemos
analisar qual é a influência que a cultura exerce sobre a mesma.
Para que uma cultura possa subsistir, é preciso que haja uma
adequada socialização de seus membros, que tenha como resultado a
integração da maior parte deles na sociedade.
Sendo a personalidade fortemente marcada pelos primeiros anos
de vida, nos quais a influência preponderante é a família, o indivíduo
tenderá a reproduzir em sua conduta futura, os padrões culturais que
adquiriu no relacionamento familiar, envolvendo autoridade,
ambição, motivações, expectativas, segurança, autoestima etc.
Por outro lado, cada cultura tende a criar em seus membros um
determinado tipo de motivações para o qual o indivíduo é preparado,
primeiramente na família e posteriormente em outras situações.
Por fazerem parte de um processo dinâmico, estas motivações
estão em constante modificação. Determinado tipo de estrutura
cultural cria certas motivações; estas por sua vez retroagem sobre a
estrutura cultural, sem que seja possível determinar onde começou o
processo.
Bibliografia Consultada
1. BENEDICT, Ruth. Padrões de Cultura. Lisboa, Livros do Brasil, s. d.
2. BOAS, Franz. The mind of primitive man. New York, Macmillan, 1943.
Escrito em 1911.
Considerando a socialização como o processo pelo qual é
inculcada a estrutura de ação de uma sociedade no indivíduo ou
grupo, teremos dois tipos de influências socializadoras. A primeira
ocorre na infância, na qual a agência socializadora é principalmente a
família; a segunda se processa posteriormente nos múltiplos contatos
4. DURKHEIM, Émile. De la division du trarvail social. Paris, Félix Alcan,
1938. Escrito em 1893.
34
35
3. DUBOIS, Cora. The dominant value profile of american culture.
American Anthropologist, Washington, D. C., 57:1232-9, 1955.
5. — . Le suicide. Paris, Félix Alcan, 1930. Escrito em 1897.
6. ERIKSON, Erik H. Childhood and society. New York, W. W. Norton,
1963.
7. FREUD, Sigmund. Civilization and its discontents. New York, W.W.
Norton, 1968. Escrito em 1930.
8. —. "Consideraciones de actualidad sobre la guerra y la muerte". In: —
Obras completas de Freud. Madrid, Editorial Biblioteca Nueva,
1948. v. 2, p. 1006-7. Escrito em 1915.
9. —. Totem e Tabu. Rio de Janeiro, Delta, s.d. Escrito em 1913.
10. FROMM, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea, Rio de
Janeiro, Zahar, 1963.
11. HORNEY, Karen. La personalidad neurótica de nuestro tiempo.
Buenos Aires, Paidós, 1960.
12. KARDINER, Abram. Fronteiras psicológicas de la sociedad. México,
México, Fondo de Cultura Económica, 1955.
22. MERTON, Robert K. Sociologia, Teoria e Estrutura. São Paulo, Mestre
Jou, 1970.
23. POPPER, Karl R. El desarollo dei conocimiento científico. Buenos
Aires, Paidós, 1967.
24. RADCLIFFE-BROWN, Alfred Reginald. Structure and function in
primitive society. London, Cohen and West, 1959.
25. RÓHEIM, Geza. "Psicoanálisis y antropologia". In: JONES, Ernest et
alii. Sociedade, cultura y psicoanálisis. Buenos Aires, Paidós, 1958.
26. RUSSELL, Bertrand. O Poder, uma Nova Análise Social. São Paulo,
Ed. Nacional, 1957.
27. SAPIR, Edward. Selected writings of Edward Sapir in language, culture
and personality. Berkeley, University of California, 1949.
28. SULLIVAN, Harry Stack. Fusion of psychiany and social science. New
York, Norton, 1962.
13. — El individuo y su sociedad. México, Fondo de Cultura Económica,
1968.
14. KLUCKHOHN, Clyde. Antropologia; um Espelho para o Homem. Belo
Horizonte, Itatiaia, 1963.
15. KOESTLER, Arthur. Todo Homem é uma Ilha. Copenhague, s.d.
Mimeografado. Discurso proferido ao receber o prêmio Soning.
16. LINTON, Ralph. Cultura e Personalidade. São Paulo, Mestre Jou,
1967.
17. —. O Homem: uma Introdução à Antropologia. São Paulo, Martins,
1962.
18. MALINOWSKI, Bronislaw. Estudios de psicologia primitiva. Buenos
Aires, Paidós, 1949.
19. —. Uma Teoria Científica da Cultura. Rio de Janeiro, Zahar, 1962.
20. MEAD, Margaret. Coming of age in Samoa. New York, Morrow, 1928.
21. — Sexo e Temperamento. São Paulo, Perspectiva, 1969.
36
37
Coabitou o homem com Eva, sua mulher. Esta concebeu e deu à luz a
Caim; então disse: Adquiri um varão com o auxílio do Senhor.
Depois deu à luz a Abel, seu irmão. Abel foi pastor de ovelhas e
Caim, lavrador.
4 – O MITO DE ABEL E CAIM
CAIM E O SURGIMENTO DA
CIDADE BÍBLICA
Aconteceu que no fim de uns tempos trouxe Caim do fruto da terra
uma oferta ao Senhor.
Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu rebanho, e da gordura
deste. Agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta; ao passo que de
Caim e de sua oferta não se agradou. Irou-se, pois, sobremaneira
Caim, e descaiu-lhe o semblante.
Então lhe disse o Senhor: Por que andas irado? E por que descaiu o
teu semblante?
Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se todavia,
procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra
ti, mas a ti cumpre dominá-lo.
Disse Caim a Abel, seu irmão: Vamos ao campo. Estando eles no
campo, sucedeu que se levantou Caim contra Abel, seu irmão e o
matou.
Disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu:
Não sei: acaso sou eu tutor de meu irmão?
E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da
terra a mim.
És agora, pois, maldito por sobre a terra cuja boca se abriu para
receber de tuas mãos o sangue de teu irmão.
Quando lavrares o solo não te dará ele a sua força; serás fugitivo
errante pela terra.
Então disse Caim ao Senhor: É tamanho o meu castigo, que já não
posso suportá-lo.
Eis que hoje me lanças da face da terra, e de tua presença hei de
esconder-me; serei fugitivo e errante pela terra: quem comigo se
encontrar me matará.
O Senhor, porém, lhe disse: Assim qualquer que matar a Caim será
vingado sete vezes. E pôs o Senhor um sinal em Caim para que o não
ferisse de morte quem quer que o encontrasse.
38
39
Retirou-se Caim da presença do Senhor e habitou na terra de Node,
ao oriente do Éden.
E coabitou Caim com sua mulher; ela concebeu e deu à luz a Enoque.
Caim edificou uma cidade e lhe chamou Enoque, o nome de seu
a
filho.
episódio encerra uma contenda tribal primitiva pela hegemonia nas
mais remotas eras da história do mundo.
4.2 - A análise do mito
Na cosmogonia bíblica, o surgimento da inteligência humana
está diretamente associado à noção do bem e do mal, à prática do
pecado e à noção de responsabilidade.
4.1 - O aspecto histórico-social
Ao nível histórico-social, uma primeira análise poderia levar-nos
a explicar o mito de Caim e Abel como um registro dos conflitos da
antiga Palestina, entre pastores nômades e agricultores.
O paraíso representa um mundo no qual os homens têm todas
suas necessidades atendidas e no qual inexistem conflitos. Homem e
natureza vivem em perfeita harmonia.
Entretanto, isto não explicaria porque Caim não foi um pastor
nômade e portanto propenso a roubar e assassinar o agricultor
pacífico — mas um agricultor, enquanto Abel era o pastor.
Apenas uma proibição e consequente tentação destoa do quadro
geral: a árvore do bem e do mal. Toda dádiva do ambiente
paradisíaco está condicionada a não experimentar da árvore do bem e
do mal. Esta proibição, entretanto, não exclui a possibilidade de
infringi-la. Ao contrário de outras mitologias, não há a ideia da
predestinação. Enquanto na mitologia grega, Édipo está predestinado
a matar seu pai e juntar-se com sua mãe (sendo todas suas tentativas
de impedir a profecia do oráculo, fracassadas), na mitologia bíblica
existe livre arbítrio. Há uma proibição, mas é o Homem que decidirá
acatá-la ou não.
Outra explicação tenderia a interpretar o mito historicamente do
seguinte modo: pastores famintos irrompem numa área de agricultura
estável durante uma seca e são aceitos como hóspedes pagadores de
tributos. Posteriormente, eles exigem uma participação no governo.
Sacrifícios simultâneos à deidade estatal são então oferecidos por
ambas as partes. A oferenda do chefe dos pastores é preferida; com o
que o chefe dos agricultores, auxiliado por seus parentes maternos o
assassina. Como consequência, os agricultores são expulsos e
eventualmente fundam uma cidade-estado noutro lugar.
Esta situação política tem sido frequente na África Oriental
durante séculos: pastores intrusos, que primeiro aparecem como
suplicantes famintos, adquirem ascendência política, depois de terem
despertado grave antagonismo por deixarem seus animais pisotearem
as colheitas.
Outra explicação considera que o sinal colocado em Caim
provavelmente era o sinal totêmico de seu clã, e que de fato todo o
a
GÊNESIS 4 : 1-17. In: BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo, Paulinas, 1969. p.
27-8.
40
A infração da proibição simboliza o começo da história humana.
O Homem passa a ser conhecedor do bem e do mal. Sente vergonha
(de estar despido) e aprende que sua ousadia em desafiar a autoridade
divina será punida. À transgressão da norma corresponde a vergonha
e o castigo.
Este é constituído pela expulsão do Éden e pelas consequentes
dificuldades decorrentes da ruptura entre o Homem e a natureza:
dores do parto, ganhar o pão de cada dia com o suor da face.
Ao nível de transgressão e castigo, a punição recebida por Adão
e Eva, embora angustiante, oferece a vantagem de expiar uma
eventual culpa. A expiação da culpa é um dos elementos-chaves de
todo castigo. Com o castigo o infringido (Deus, a sociedade, o
41
prejudicado pela infração) pune o infrator, ao passo que este paga ao
infringido por seu ato.
Entretanto, com Caim verifica-se uma situação sui generis. O
castigo que recebe é muito mais vago que o de seus pais. Estes
estavam atingidos pelo sentimento de vergonha; Caim é atingido pelo
sentimento de culpa.
Deus o responsabiliza pelo fratricídio. Se ao Homem é dada a
possibilidade de escolher, esta vem acompanhada da
responsabilidade que cada escolha acarreta.
Adão e Eva escolhem comer do fruto proibido e têm de arcar
com as consequências que o conhecimento do bem e do mal trazem.
Caim escolhe matar seu irmão e tem de responder por seu ato,
mesmo que a princípio não o queira ("Acaso sou eu tutor de meu
irmão?").
Adão e Eva desconheciam a noção do bem e do mal, quando
comeram do fruto proibido, não podendo portanto sentir-se culpados;
Caim, entretanto, nasceu num mundo onde esta noção já existia.
O castigo de Caim é carregar eternamente a culpa de seu ato.
Quando Deus lhe comunica que é maldito na terra e que esta não
mais lhe dará frutos, sendo, portanto, fugitivo e errante, Caim
exclama: "É tamanho o meu castigo que já não posso suportá-lo". A
punição que Deus lhe impôs é terrível justamente por dois motivos:
1) não permitir a expiação do crime; 2) (por conseguinte) impedir sua
reintegração na sociedade (será fugitivo e errante).
E, diante da argumentação de Caim de que será morto por quem
o encontrar, Deus reforça o castigo: coloca-lhe um sinal (que o
diferencia dos outros homens, impedindo-o de esquecer ou ocultar
seu crime) e determinando que quem o matar (ser assassinado seria
uma forma de expiar o assassinato por ele cometido) será vingado
sete vezes.
É neste clima que vem a surgir a primeira cidade bíblica. Caim
depois da sentença a que foi condenado edifica uma cidade à qual dá
o nome de seu filho Enoque.
A construção de uma cidade com o nome de seu filho pode ser
interpretada com um duplo sentido reparador do crime: 1) a
construção de algo para compensar a destruição de uma vida; 2) fazer
renascer a Abel nesta construção, dando-lhe o nome de seu filho.
Neste sentido, o filho representa o irmão mais moço que assassinou e
ao qual restaura a vida simbolicamente.
Também poder-se-ia ver no ato de Caim um modo de amenizar a
maldição sobre ele lançada: já que não pode mais ser lavrador como
antes, estabelece-se em algo no qual a terra não é o elemento central
e no qual se encontra ao abrigo de possíveis ataques.
Na mitologia bíblica, a primeira cidade nasce, portanto, como
decorrência de um crime, mais especificamente de um fratricídio, e
possui um sentido reparador.
O assassinato de Abel pode ser interpretado não somente como
um fratricídio, mas também, indiretamente, como um parricídio.
Rejeitado pelo pai (simbolizado em Deus), que não se agradou de sua
oferta, Caim resolve matá-lo. Na impossibilidade de atingi-lo
diretamente, mata-o de modo simbólico, destruindo seu filho Abel
pelo qual fora preterido.
É interessante ressaltar a raiz etimológica do nome Enoque. Em
hebraico a raiz triletral da qual é composto o nome é a mesma que
corresponde aos verbos (e substantivos que deles derivam) inaugurar
e educar. Seria possível, levando o raciocínio mais além, estabelecer
várias suposições com base nesta semelhança etimológica,
principalmente se considerarmos que em hebraico a parte fixa de uma
palavra é composta por sua raiz (geralmente formada por três
consoantes) em torno da qual é flexionada com vogais e consoantes
complementares para formar substantivos, adjetivos, verbos etc.
Ao nível do mito podemos ainda estabelecer outras suposições
ou hipóteses. O livro de Gênesis fala de um outro Enoque, filho de
Jerede, cuja ascendência provém de Sete, o terceiro filho de Adão.
Este segundo Enoque foi pai de Matusalém, o homem que na Bíblia
teve a vida mais longa (969 anos). Sobre este segundo Enoque diz a
Bíblia:
Todos os dias de Enoque foram trezentos e sessenta e cinco anos.
42
43
Andou Enoque com Deus, e já não era, porque Deus o tomou para
si.b
8. SIMS, Albert E. & DENT, George. Who's who in the Bible. New York,
Philosophical Library, 1960.
O relato bíblico "Andou Enoque com Deus, e já não era, porque
Deus o tomou para si" era tradicionalmente interpretado com o
sentido de que não morrera mas fora transportado em vida para o céu
por sua virtude. Muitos livros apocalípticos focalizam sua morte; os
primeiros cristãos utilizavam-se do ponto de vista aceito sobre
Enoque para explicar a imortalidade de Jesus. Tal argumento
provocou reação entre os rabinos, alguns dos quais chegaram a negar
a virtude de Enoque. Somente após os cristãos se separarem
completamente dos judeus foi que Enoque recuperou a popularidade
na doutrina judaica; foi então identificado ao anjo Metraton, e surgiu
toda uma literatura mística em torno de sua personalidade. Alguns
críticos modernos sustentam que os 365 anos de Enoque
correspondem aos 365 dias do calendário babilônico e que a história
de Enoque era, originalmente, um mito solar da Babilônia.
Bibliografia Consultada
1. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo, Paulinas, 1969.
2. ENCICLOPÉDIA Judaica. Rio de Janeiro, Tradição, 1967.
3. FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Rio de Janeiro, Delta, s. d. Escrito em
1913.
4. FROMM, Erich. Análise do Homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1963.
5. — . O Espírito da Liberdade. Rio de Janeiro, Zahar, 1967.
6. GAVES, Robert & PATAI, Raphael. Hebrew myths: the book of genesis.
New York, McGraw-Hill, 1966.
7. SCHOLEM, Gershom G. Major trends in jewish mysticism. New York,
Schocken, 1954.
b
GÊNESIS 5: 23-4. In: BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo, Paulinas, 1969.
p.28
44
45
Não me deterei no diagnóstico da América Latina, tarefa que
exigiria um trabalho de âmbito maior que este e que já foi realizado
com profundidade por diversos autores.
5
AMÉRICA
DESENVOLVIMENTO
LATINA:
EDUCAÇÃO
EDUCAÇÃO
E
Parto da ideia de que a América Latina, guardadas as
diversidades entre os países que a compõem, apresenta-se como um
continente que se evidencia por seu atraso em relação a outras áreas.
O quadro geral caracteriza-se por uma predominância econômica das
atividades ligadas ao setor primário, frequentemente com hegemonia
de um único bem. Má distribuição da renda, baixas oportunidades
educacionais e profissionais, falta de mão-de-obra qualificada,
índices desfavoráveis no que concerne a saúde, alfabetização,
industrialização, etc., são geralmente flagrantes em muitos países
latino-americanos.
Um processo que deve ser salientado é a crescente urbanização
que vem ocorrendo nestes países. Esta tendência se desenvolve
menos em função de uma industrialização, que é apenas incipiente, e
mais devido a condições desfavoráveis do meio rural. A cidade é
visualizada como uma possibilidade de ascensão social e econômica,
que nem sempre ocorre, o que pode ser atestado pelos grupos
marginalizados que vivem na maioria das grandes cidades latinoamericanas. Nestas, frequentemente, a taxa de crescimento industrial
é inferior à taxa de crescimento urbano, ocasionando desemprego e
outros problemas.
Os problemas com que se deparam os países latino-americanos
só podem ser enfrentados de um modo global. Atacá-los
isoladamente, como se não fossem partes de um todo complexo,
provavelmente redundará em fracasso e em desperdício de recursos.
O primeiro passo para a superação do estado em que se
encontram países da América Latina é o estabelecimento de um
programa de ação, baseado na realidade, e que seja exequível política
e economicamente.
Este programa deve partir de um diagnóstico global do país que
detecte suas dificuldades, pontos de estrangulamento e suas
potencialidades, culminando com uma política que trace prioridades.
O estabelecimento de opções por setores aos quais se dará maior
46
47
importância é fundamental, dada a escassez de recursos que impede
que se invista em todas as áreas.
para país, de acordo com os recursos e facilidades para a produção,
bem como a existência de mercados consumidores.
A criação de estratégias prioritárias está diretamente vinculada à
ideia de mobilizar todos os recursos humanos e materiais disponíveis.
Habilidade em abrir novos mercados consumidores no exterior, e na
obtenção de financiamentos, empréstimos e auxílios do exterior
fazem parte da ideia de utilizar vários meios de propiciar o
desenvolvimento.
A industrialização deve vir acompanhada de uma política
consciente de urbanização. Duas tendências precisam ser impedidas.
A primeira é a de que a urbanização se dê sob forma atomizada em
várias cidades o que acabaria ocasionando que em nenhuma delas
houvesse uma suficiente massa crítica de recursos humanos e
materiais necessários aos empreendimentos industriais. A segunda
tendência a ser evitada é a hipertrofia de apenas um centro urbano,
que ficaria cercado de um deserto rural.
Dentro deste quadro, duas áreas parecem-me prioritárias:
indústria e educação. Estas áreas oferecem ainda a vantagem de
poderem capitalizar favoravelmente a tendência irreversível à
urbanização.
Entretanto, para que não surjam distorções entre os setores
primário e secundário é preciso, simultaneamente, promover uma
racionalização da agricultura. É necessário preparar o campo para
que com uma população percentualmente cada vez menor possa
suprir a cidade. Isto implica numa modernização das formas de
produção da pecuária e da lavoura. Esta modernização envolve
reforma agrária, uso intensivo do solo, pecuária intensiva,
diversificação da produção, produção dos insumos para as indústrias
que utilizam matérias-primas do setor primário, introdução de
técnicas que aumentem a produtividade da pecuária e da lavoura, etc.
As medidas variarão de país para país, levando em conta aspectos
políticos e sociais. Uma adequada política no setor primário permitirá
desenvolver as duas áreas que mencionei como prioritárias.
As razões que tornam a industrialização uma necessidade
imperiosa para os países latino-americanos superarem o
subdesenvolvimento foram analisadas pelo economista Raul
Prébisch. Demonstrou ele que a deteriorização dos termos de
intercâmbio que sofrem os produtos não industrializados em relação
aos industrializados faz com que os países latino-americanos
necessitem industrializar-se se quiserem desenvolver-se.
Para evitar estas duas tendências negativas pode-se estabelecer,
através de estudos de polarização, que cidades têm condições de se
constituírem em pólos de desenvolvimento e em função disto
canalizar recursos e investir prioritariamente nelas, o que também
induzirá uma imigração para as mesmas.
Num país que experimenta um processo de urbanização e
industrialização, a educação tem de ser reformulada em suas bases.
Dois seriam os objetivos gerais do sistema educacional. O primeiro
consiste em preparar os indivíduos a desempenhar funções que a
industrialização exige, capacitando-os profissionalmente. O segundo
objetivo é prepará-los a enfrentar e promover as mudanças sociais e
tecnológicas que se multiplicarão com o processo urbano-industrial e
que por ele serão exigidos.
Para alcançar estes objetivos o sistema educacional deve
estruturar-se com a maior flexibilidade possível, a fim de se ajustar a
inúmeras necessidades que as transformações constantes do processo
urbano-industrial acarretarão. Não há sentido em copiar modelos de
países mais adiantados cuja realidade é outra, pois os problemas a
serem superados são diferentes.
Não me parece possível determinar genericamente o que os
países da América Latina devem produzir, pois isto variará de país
O ensino que deve ser buscado é o ensino ligado à tecnologia
com vistas à capacitação profissional. O fato de se abandonar o
ensino retórico e decorativo, e optar por um ensino com aplicação
prática, não implica numa desumanização educacional. Este ensino
vem acompanhado do desenvolvimento de hábitos e atitudes que
48
49
frisam qualidades compatíveis com a era em que vivemos. O que é
suprimido é apenas o bacharelismo.
Do ponto de vista funcional, a capacitação profissional implica
em considerar cada nível de ensino como terminal, e não como
preparatório a um nível seguinte, pois considerável parte da
população de alunos não tem condições de prosseguir os estudos até
níveis mais avançados. Por isto os currículos precisam ser
construídos com o objetivo de fornecer em cada nível de estudo um
conjunto de recursos que permita ao aluno utilizá-lo
profissionalmente.
propiciem o desenvolvimento almejado. Neste sentido os centros de
pesquisa e de estudo universitários devem desempenhar um papel
importante, fornecendo o apoio científico e tecnológico indispensável
a um país que inicia um processo de industrialização e
desenvolvimento.
Esta estratégia educacional se reveste de fundamental
importância se nos lembrarmos que na maior parte dos países latinoamericanos os jovens representam mais da metade da população. Esta
camada populacional está constantemente pressionando o mercado de
trabalho, que não consegue criar o número suficiente de empregos
por um baixo nível de industrialização e por falta de qualificação
profissional dos jovens. Esta estratégia combinada com uma política
de industrialização permitiria quebrar o círculo vicioso constituindose num efeito multiplicador, pois ao mesmo tempo em que cria novos
empregos, transforma os empregados em consumidores.
Se cada nível de ensino é considerado como terminal é preciso
que a qualquer momento o aluno possa voltar aos estudos de acordo
com suas necessidades. O estudo não se daria exclusivamente na
escola, mas através de várias outras instituições.
A televisão pode ser usada com bons resultados como meio
educacional, as fábricas podem ministrar cursos a seus operários, o
exército pode fornecer instrução aos que nele ingressam sem preparo,
ao mesmo tempo que utiliza os que tiveram uma formação mais
completa como professores. Todos estes estudos teriam validade
mediante exames que os aferissem.
Dentro deste sistema educacional, a universidade deve ser uma
instituição-chave, essencialmente ligada ao desenvolvimento do país.
Isto equivale a considerá-la não como um mero depositário de
conhecimentos, mas como um agente de mudança, preocupado na
resolução de problemas do país e na criação de soluções que
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