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ISSN 1808-09X
9 771808 091002
REVISTA
Ano 3 - Edição Nº 4
Julho 2007 - R$ 15,00
» André F. Berenger de Araújo
» Carla Ferreira
» Carlos Batista Prado
» Enrique Serra Padrós
» Francisco Dominguez
» Gilberto Calil
» Gilson Dantas
» José Pedro Cabrera Cabral
» Katia I. Marro
» Raúl Zibechi
» Renato Barbieri
» Roselena Leal Colombo
» Tiago Coelho Fernandes
América
Latina
Contemporânea
3
Revista História & Luta de Classes Nº 4 – Julho de 2007
SUMÁRIO
Apresentação
5
Enrique Padrós e Gilberto Calil
El ALBA de Cuba y Venezuela: el poder de una idea
9
Francisco Dominguez
Mariátegui e as raízes da rebelião indígena
19
Tiago Coelho Fernandes
O Populismo e a Hegemonia Burguesa na América Latina
27
Gilberto Calil
Cuba, Che Guevara e a “exportação” da Revolução pela América Latina
35
Carlos Batista Prado
América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado
43
Enrique Serra Padrós
Processos político-ideológicos na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004
51
José Pedro Cabrera Cabral
Colombia: do surgimento das guerrilhas ao Plano Colômbia
59
Renato Barbieri
“Um enigma aos nossos próprios olhos”: Eduardo Galeano, Literatura e América Latina
67
André Francisco Berenger de Araújo
Cuba pós-colapso do Leste Europeu: um debate necessário
75
Roselena Leal Colombo
Lutas sociais e poder popular: algumas reflexões em torno da prática dos Movimentos
de Trabalhadores Desempregados na experiência argentina
83
Katia I. Marro
Bolivarianismo e Chavismo: os desafios ideológicos do processo venezuelano
91
Carla Ferreira
El Alto: un mundo nuevo desde la diferencia
99
Raúl Zibechi
Kirchner: um novo caminho frente ao garrote do FMI?
105
Gilson Dantas
Organizadores gerais deste número: Enrique Serra Padros e Gilberto Calil
Comissão Editorial: Carla Luciana Silva, Enrique Serra Padros, Florence Carboni, Francisco Dominguez, Gilberto Calil, Marcelo Badaró, Mario
Maestri, Theo Piñeiro, Virgínia Fontes
Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (RS), Adriana Facina (UFF), Afonso Alencastro (UFSJ), Alvenir de Almeida (FAC e
IDEAU-RS), Antonio de Pádua Bosi (UNIOESTE), Armando Boito (UNICAMP), Beatriz Loner (UFPEL), Carla Luciana Silva (UNIOESTE),
Carlos Bonamigo (UNIPAR), Carlos Zacarias (UNEB), Claudira Cardoso (UFRGS), Diorge Konrad (UFSM), Dulce Portilho (UEG), Edílson José
Gracioli (UFU), Eduardo Palermo (RS), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Érika Arantes (UFF), Eurelino Coelho (UEFS), Euzébio Assunpção
(Faculdade de Osório), Fabiano Faria (RS). Felipe Demier (UFF), Florence Carboni (UPF), Francisco Carvalho (UFRGS), Francisco Dominguez
(Middlesex Universitty), Gabriela Rodrigues (RS), Gelson Rosentino (UERJ), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gláucia Konrad (UFSM), Helen Ortiz
(RS), Hélvio Mariano (UNICENTRO), Isabel Gritti (URI), João Pinto (UFG), João Raimundo Araújo (FFSD), Jorge Magasish (Bélgica), José Pedro
Cabrera (UNOESC), Kátia Paranhos (UFU), Leonardo Bruno (UFRRJ), Luciana Pereira Lombardo (UFF), Luciano Pimentel (UPF), Lúcio Flávio
de Almeida (PUC-SP), Luis Carlos Amaro (RS), Magali Engel (UFF), Marcelo Badaró (UFF), Marcos Alvito (UFF), Maria Aparecida Papali
(UNIVAP), Maria do Carmo Brazil (UFGD), Maria José Acedo Del´Olmo (UNIVAP), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF),
Nara Machado (PUCRS), Nildo Viana (UFG), Noeli Woloszyn (Universidade do Contestado), Olgário Vogt (UNISC), Patrícia Trópia (UNICAMP),
Paulo Esselin (UFMS), Paulo Zarth (UNIJUÍ), Pedro Paulo Funari (UNICAMP), Pedro Marinho (MAST), Philomena Gebran (USS), Renata
Gonçalves (UEL), Renato Dalla Vecchia (RS), Ricardo Gama da Costa (FFSD), Roberto Radunz (UNISC / UCS), Romualdo Oliveira (USP), Sean
Purdy (USP), Selma Martins Duarte (UFGD), Sérgio Lessa (UFAL), Setembrino dal Bosco (UPF), Sirlei Gedoz (UNISINOS), Sônia Regina
Mendonça (UFF), Sydernham Lourenço (UERJ), Tarcísio Carvalho (UFF), Teones Pimenta de França (FSSSL) Thaís Wenczenovicz (URI), Theo
Piñeiro (UFF), Valéria de Almeida (UNIVAP), Valério Arcary (CEFET-SP), Valter Almeida Freitas (UNISC), Vera Barroso (FAPA), Virgínia Fontes
(UFF), Zilda Alves de Moura
Distribuição: [email protected] - Foram impressos 1.000 exemplares em Julho de 2007
Capa: Diego Rivera. O arsenal - Frida Kahlo distribuindo armas (1928).
Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Marcio Alexandre Fragoso Machado - Impressão: Gráfica Lider, Av. Maripá, 796 - Telefax: (45) 3254-1892 85.960-000 - Marechal Cândido Rondon - PR.
APRESENTAÇÃO
A
5
A década de 90 ficou marcada pela ofensiva neoliberal em escala
planetária. O caráter destrutivo das suas experiências privatistas e a
minimização da função social do Estado em proveito da hipertrofia de sua
função repressiva condenaram milhões de pessoas à extrema indigência,
determinando a generalização da desigualdade social extrema e da
corrupção sem limites, a qual perpassou as estruturas institucionais
(particularmente no âmbito da Política e da Justiça). Por sua vez, as
camadas trabalhadoras viram, tragicamente, os direitos historicamente
conquistados serem negados e qualificados como “privilégios”, enquanto
os sindicatos, até então instrumentos fundamentais de resistência e
mobilização social, eram acuados, cooptados e esvaziados de conteúdo.
Simultaneamente, tradicionais partidos políticos de esquerda - de
antecedentes combativos -, empreenderam uma radical guinada à direita,
enredando-se em contradições perturbadoras resultantes de desvios
programáticos e da priorização de miraculosas alianças políticas visando
uma rentabilidade eleitoreira que os constituísse em governo.
A América Latina foi sensivelmente atingida por esse processo. No final dos anos
80 as expectativas de mudança estrutural, represadas durante anos de autoritarismo,
haviam sido soterradas pela imposição das “recomendações” ditadas pelo FMI que
impunham prioridade aos compromissos financeiros internacionais em detrimento das
históricas demandas sociais. O saldo para a região foi terrível: a década perdida. Nem
crescimento econômico, nem ruptura com as estruturas internacionais de dominação,
muito menos soluções para as mazelas sociais crônicas. No plano da política externa, o
fim da URSS acirrou ainda mais a agressividade dos EUA em relação à Cuba, agravando o
bloqueio com a aprovação da Lei Torricelli e, posteriormente, da Emenda Helms pelo
Congresso dos EUA, revigorando sua presença regional, que já era fortemente visível nos
Estados de Segurança Nacional da América do Sul e na contra-revolução centroamericana, nas décadas anteriores. Assim, os anos 90 anunciavam novamente formas
agressivas de intervenção, expressas, por exemplo, no Plano Colômbia e na articulação de
golpe contra Chávez.
Nos anos 90, a combinação da crise estrutural que atingiu o mundo do trabalho e o
abandono de políticas estatais que, de uma forma ou de outra, permitiam certa regulação
da vida social, agravaram sensivelmente o quadro social regional e as economias
nacionais; a miséria e a luta pela sobrevivência se espalharam como flagelo no interior das
formações sociais, marcando a falência de qualquer projeto ou perspectiva nacionaldesenvolvimentista. A cultura política do medo que resultou do período dos regimes
repressivos é certamente elemento determinante deste processo. Sua superação se tornou
um dos grandes desafios para a formação de novas gerações de lideranças. Aliás, a
destruição física, política e/ou mental que as ditaduras realizaram contra a militância
social e política latino-americana redundou na sua ausência e na desconexão na
transmissão de experiências de luta social entre duas gerações de latino-americanos,
fatores que facilitaram enormemente o assalto neoliberal.
6
No final dos anos 90 as políticas neoliberais deram
sinais evidentes de desgaste, inclusive, atingindo parte
da burguesia anteriormente favorecida com elas. A
generalização da perigosa embora atomizada
instabilidade social obrigou as autoridades do Banco
Mundial, do FMI e dos EUA a reclamar dos efeitos
“perversos” do neoliberalismo. Cinicamente, nessa
atitude, escondiam que: 1º) a instabilidade social gerada
pelas políticas neoliberais ameaçava seus interesses;
2º) as promessas de crescimento econômico feitas pelos
apologistas da desregulamentação e da primazia total do
mercado haviam caído no vazio da criminosa exclusão;
3º) o fato do trabalho “sujo” já ter sido feito
(privatizações, desnacionalizações, flexibilizações),
tornava desejável suavizar o neoliberalismo; 4º) o
pedido de substituição se tornou a estratégia do Império
e dos seus associados para preservarem-se e
dissociarem-se dos nefastos efeitos responsáveis pela
fermentação política continental.
Assim, após uma década de hegemonia neoliberal e de suas formas de
anestesiamento, parafraseando Eduardo Galeano, podemos afirmar que “as veias da
América Latina” continuam abertas, expostas e os efeitos devastadores das políticas
neoliberais conformaram graus diversos de respostas e possibilidades de resistência. E
mesmo sem clareza nos rumos a tomar, é inegável que essas preocupam aos donos do
poder. A América Latina continua pulsando e tem sido palco, nestes últimos anos, do
ressurgimento de esperanças e expectativas a partir de projetos políticos que acenaram com
possibilidades de mudanças concretas.
A “suavização” das políticas neoliberais – com a conseqüente revigoração da
dominação de classes em suas diversas dimensões – caberia aos governos de “centroesquerda”, através de algumas políticas redistributivistas focalizadas. A escassa margem
existente, determinada por mais de uma década de políticas neoliberais e acentuada pelos
inúmeros compromissos assumidos pela “centro-esquerda” eleitoral com setores do
grande capital financeiro e do agronegócio, tornam compreensível a linha geral de
manutenção das políticas anti-sociais. A mobilização social, no entanto, tensiona esses
governos de “centro-esquerda”, os quais tem mantido, até agora, com poucas mudanças
substanciais, o modelo econômico herdado das administrações que antes denunciavam
como neoliberais. Por outro lado, é inegável que os interesses dos EUA (sintetizados na
recolonização proposta pelo complexo militar-industrial liderado por Bush e seus falcões )
e do capital internacional continuam tendo um protagonismo central nos caminhos e
descaminhos que se colocam como possibilidade à região.
No início de 2007, com eleições presidenciais recém realizadas na maior parte da
América Latina, sobressaem algumas características gerais. No âmbito governamental,
através da fraude e da repressão generalizadas, mantiveram-se governos explicitamente
reacionários em vários países, destacadamente Colômbia e México. Partidos que um dia
foram de esquerda – como o PT, a FSLN, a Frente Ampla e o PS chileno – conduzem
governos pretensamente de “centro-esquerda” que em realidade renovam e atualizam as
7
políticas neoliberais, assim como o faz o governo
Kirchner, com as especificidades de um processo
que se inicia em uma crise de hegemonia e que se
constitui a partir do peronismo e não de um partido
outrora de esquerda. Já os governos da Bolívia,
Equador e Venezuela apresentam a particularidade
de empreenderem em algumas situações embates
efetivos com setores importantes da burguesia e
com o imperialismo, sem, no entanto, colocar em
questão os fundamentos da ordem capitalista. As
diferenças de projetos e estilos sintetizados nos
atuais governos da Argentina, do Brasil, da Bolívia
e, particularmente, da Venezuela, assinala a
existência de perspectivas nacionais diferenciadas
diante do tão citado processo de integração latinoamericano.
A reflexão em torno das políticas governamentais seria, no entanto, falha e
insuficiente, sem referência ao desenvolvimento da luta de classes nos espaços nãoinstitucionais. Nos últimos anos têm sido constituídas formas, organizações e métodos de
lutas diversos, enfrentando a repressão, denunciando as políticas anti-sociais e
recolocando o protagonismo das massas trabalhadoras. Formas organizativas tão diversas
como o movimento piquetero argentino, a Comuna de Oaxaca no México, as insurreições
indígenas no Equador, a constituição da Coordenação Nacional de Lutas no Brasil, a
insurreição estudantil chilena e as juntas vecinales de El Alto, na Bolívia recolocam o
protagonismo das massas. Ainda assim, o avanço destas lutas efetivamente coloca em
crise a dominação burguesa. A derrubada inúmeros governos neoliberais na Argentina,
Bolívia e Equador evidencia a força deste movimento e, ao mesmo tempo, sua limitação,
na incapacidade de articular uma ofensiva que permitisse a efetiva transformação da
ordem social. Limitação que se expressa, por exemplo, na participação reduzida do
movimento sindical nos movimentos mais radicalizados, na influência da ideologia pósmoderna que interdita a reflexão em torno do poder (“mudar o mundo sem tomar o
poder”) e na ausência de uma organização partidária de massas com perspectiva
revolucionária. Ainda assim, para além das limitações, sobressaem os avanços da luta da
classe trabalhadora, através das lutas de rua desmente o discurso do “fim da História”,
acirra a crise do neoliberalismo e explicita a incapacidade do capitalismo em equacionar à
crise social que provoca. Ou sequer amenizá-la nos moldes que outrora constituíram os
governos nacional-desenvolvimentistas.
Enrique Padrós e Gilberto Calil
História & Luta de Classes - 9
El ALBA de Cuba y Venezuela:
el poder de una idea
*
Francisco Dominguez
Antecedentes – Los orígenes del ALBA
“La
Alternativa Bolivariana para las
Américas y el Caribe (ALBA) es una proposición de
integración diferente. Mientras que el ALCA
responde a los intereses del capital transnacional y
persigue la liberalización absoluta del comercio en
mercancías, servicios e inversiones, el ALBA pone
el énfasis en la lucha contra la pobreza, la exclusión
social y, por lo tanto, expresa los intereses de los
1
pueblos latinoamericanos.”
Con esta simplicidad que desarma Cuba
socialista y la Venezuela bolivariana y revolucionaria
plantean la construcción del ALBA. Los
componentes centrales del ALBA son:
a) el establecimiento de mecanismos que
compensen las asimetrías existentes entre
los países del Hemisferio que se integren en
el proceso bolivariano continental, en la
forma de fondos compensatorios, a fin de
encarar las disparidades que ponen a las
naciones más débiles en posición
desventajosa en relación a las naciones más
desarrolladas;
b) dar prioridad a la integración
latinoamericana por medio de bloques subregionales a objeto de ampliar el proceso de
consulta y profundizar el conocimiento
mutuo e identificar áreas de interés común
que podrían ser la base de alianzas
estratégicas para impedir la dispersión de los
esfuerzos que podrían debilitar a algunos
países individualmente frente a las presiones
que el ALCA representa;
c) buscar consensos estratégicos para lograr
desarrollo económico nacional y regional
*
Doutor em Economia Política e investigador do Centre for Brazilian and
Latin American Studies da Middlesex University, Inglaterra.
1
Alternativa Bolivariana para las Américas ¿Qué es la Alternativa Bolivariana
para América Latina y El Caribe? www.alternativabolivariana.org
orientados a la erradicación de la pobreza,
reducción de las desigualdades sociales y
aumentos en el standar de vida de los
pueblos de la región;
d) el objetivo estratégico específico del
ALBA es la creación de una Confederación
de Estados Latinoamericanos y Caribeños,
la alternativa definitiva al ALCA, al
neoliberalismo y a la globalización.
Los orígenes del ALBA se remontan al 2000, a
la firma de un Convenio Integral de Cooperación
entre Cuba y Venezuela que ocurrió en La Habana el
2
30 de abril de 2000 y que involucró el suministro de
bienes y servicios (principalmente en la forma de
miles de doctores y otros especialistas de salud) por
53.000 barriles de petróleo diarios entre Venezuela y
Cuba. El Convenio involucró también expertizaje
técnico en la industria del azúcar, turismo, desarrollo
agrícola, vacunas, equipo médico, control de pestes,
transporte, educación y deportes.
Hasta hace poco, el ALBA era para muchos una
retórica interesante que no iba ni iría más allá del
intercambio de doctores cubanos por petróleo
venezolano. Sin embargo, como intentaremos
demostrarlo, su creciente resonancia y el número de
países latinoamericanos que, en grados diferentes, se
están uniendo al proceso bolivariano de integración,
demuestra que el ALBA es mucho más que una
aspiración abstracta y un mero “eje” Cuba-Venezuela.
La razón de su éxito se encuentra en el desastroso
legado de treinta años de desenfrenado
neoliberalismo en el continente. Las cifras lo
confirman: a fines de los 1970 el 19% de la población
2..
Ya en 1999 Chávez había firmado con el Presidente de Brasil, Fernando
Henrique Cardoso, una carta de intención para integrar las compañías
petroleras de ambos países, Petrobras y PDVSA, bajo el nombre común de
Petroamérica.
10 - El ALBA de Cuba y Venezuela: el poder de una idea
de América Latina vivía en la pobreza; en el 2004 era
44% (y en 1990, en el apogeo del neoliberalismo, los
niveles de pobreza alcanzaron un 48.3% de la
población!).
La adopción del neoliberalismo representa la
lógica brutal de un modo específico de acumulación
de capital que requería la restructuración drástica de
las economías de la región y que involucró el
desmantelamiento de todo remanente “populista” del
período de la posguerra. Como es bien sabido esta
restructuración involucró también la completa
eliminación de la protección a la industria nacional, el
favorecimiento de aquellos sectores de la economía
que producían para el mercado exterior, la
eliminación de todas las restricciones al influjo y
operación del capital extranjero en la economía
nacional, la privatización de todos los bienes
estatales, y la eliminación de toda política de bienestar
social.
Es interesante registrar el hecho que, con pocas
excepciones, fueron corrientes políticas y partidos
tipo “Tercera Vía” que se convirtieron en el
instrumento clave para la consolidación y/o
profundización del neoliberalismo en la región.
Cierto, en la mayoría de los países del Cono Sur, el
neoliberalismo fue originalmente impuesto a sangre y
fuego por dictaduras despiadadas tales como en
Chile, Argentina, Uruguay y Brasil, pero fueron
gobiernos como los de la Concertación en Chile, el
“peronista” Menem en Argentina, los tradicionales
partidos Blanco y Colorado en Uruguay, la alianza
MIR-Banzer en Bolivia, ADECO y COPEI en
Venezuela, el Partido Social Democrático Brasileño
de Fernando Henrique Cardoso en Brasil, y las
facciones más pro-EUA en el PRI mexicano, para
citar sólo los ejemplos más destacados, quienes
sistematizaron, perfeccionaron y consolidaron el
neoliberalismo en estos países. Tales coaliciones
contaban generalmente con el apoyo de las clases
medias y de los sectores de mejores ingresos de la
clase obrera, politicamente hegemonizados por una
pequeña elite nacional, financieramente orientada,
que a su vez, obtuvo migajas significativas de la mesa
de las multinacionales, quienes se apoderaron de la
parte del león. Estas alianzas descansaban también en
la exclusión de amplios sectores de la sociedad que
devinieron política y socialmente irrelevantes.
Sociedades tales como la venezolana tenían 80% de
su población viviendo en la pobreza y la mayoría de
su proletariado era parte del sector informal; incluso
ejemplos “exitosos” como Chile, tenían todavía en los
1990 cerca del 48% de su población viviendo en la
3
pobreza. Los niveles de exclusión en naciones
previamente prósperas, como Argentina, alcanzaron
grados simplemente catastróficos, y era obviamente
mucho peor en países como Perú, Ecuador y Bolivia.
Fue el fracaso rotundo del neoliberalismo y la
catástrofe social que trajo consigo en todos los países
donde se aplicó que llevó al surgimiento de poderosos
movimientos sociales y luego a la desarticulación de
las coaliciones que habían hecho posible la aplicación
y consolidación del neoliberalismo – en algunos casos
llegando al desplome y virtual desaparación de esos
partidos. Durante los largos y duros años de oposición
al neoliberalismo, los movimientos sociales
formularon sus demandas de una manera que las
universalizaba en un nuevo tipo de quehacer político
que se puede resumir en el slogan del Foro Social
Mundial: Un Mundo Mejor Es Posible. El fenómeno
combinado de la crisis de legitimidad de los partidos
políticos tradicionales y el surgimiento de poderosos
movimientos sociales, llevó a la aparición de
vehículos políticos poco comunes y heterodojos por
medio de los cuales el movimiento de masas canalizó
sus energías y formuló sus aspiraciones. Este es
claramente el caso de Venezuela, donde un ex militar
se convierte en el mecanismo que el movimiento de
masas utiliza para oponerse no sólo al neoliberalismo
de Carlos Andrés Pérez, sino también al sistema de
puntofijo en todos sus aspectos. Y quién se iba a
imaginar que Evo Morales sería quien asumiría la
transformación estructural de una de las naciones más
3
pobres del hemisferio.
La naturaleza “heterodoxa” de estos vehículos
políticos se origina en la compexidad de los
movimientos sociales mismos que tienen profundas
raíces en las masas, en la historia de lucha de estos
movimientos, y cuyo universo ideológico está
profundamente influenciado por la historia nacional.
Por ello no sorprende que busquen establecer
vínculos políticos e intelectuales entre sus propias
luchas y las de sus ancestros, tales como Bolívar,
Zamora, Rodríguez, Pachakuti, Artigas, Tiradentes,
Zapata, y otros tantos. Estos movimientos se ven a sí
mismos como bolivarianos en el sentido de procurar
“completar” lo que los líderes históricos comenzaron
en el pasado, pero lo son también en un sentido
latinoamericanista: comparten una historia común, un
enemigo común, enfrentan obstáculos similares a su
progreso, sus países están hipotecados a las mismas
instituciones financieras internacionales, sufren
formas similares de discriminación y de exclusión
cultural, económica y política, y sus sociedades se
encuentran atrapadas en la misma camisa de fuerza, a
.
Por cierto, el paisaje político regional es mucho más complicado: en Brasil el pueblo ha apoyado al PT con resultados ambiguos hasta ahora; en Argentina, una
corriente dentro del peronismo, dirigida por Kirchner, es el mecanismo allí; pero el fenomenal surgimiento de Ollanta Humala en Perú, parece confirmar la
tendencia general.
História & Luta de Classes - 11
saber, el neoliberalismo. Así, tanto las fuerzas sociales
como políticas motoras del bolivarianismo propelen a
sus direcciones nacionales logicamente hacia la
convergencia y a adoptar soluciones similares. Esta es
la base material sobre la que descansa el ALBA.
El documento oficial de lanzamiento del ALBA
(Constuyendo el ALBA “Nuestro Norte es el Sur”)
desarrolla esta idea al señalar que el debate sobre el
ALBA no sólo es necesario sino que debe ser
profundo y debe llevar a la renovación del
pensamiento latinoamericano tanto en la política
como en las cuestiones relacionadas a la integración
regional. Así, el documento postula “nuevas
definiciones, nuevas ideas, propuestas que provean al
bolivarianismo de coherencia, vigor intelectual al
adaptarse para confrontar el contexto mundial de hoy
4
que es el de la globalización.” Esto, de acuerdo a
Construyendo, implica la construcción de un futuro
común próspero y viable para América Latina, un
futuro que elimine las abominables desigualdades
sociales y que permita a la región insertarse en el
mundo globalizado por medio de un modelo que
tenga posibilidades de desarrollo sustentable. Aunque
el ALBA es una reacción contra el ALCA, es decir
como una estrategia económica alternativa para la
región, abarca también áreas tales como la cultura, el
medio ambiente, la política, la sociedad, la economía
y muchos otros aspectos de América Latina.
La época que acaba de comenzar por medio de largas
y difíciles batallas, es la del ALBA del Presidente
Chávez, que es el sueño de Martí y Bolívar de una
América Latina solidaria y unida en la justicia social,
la realización del potencial humano de sus
habitantes, la defensa de su cultura y la conquista de
5
una posición digna en el siglo que comienza.
ALBA se presenta como la alternativa al ALCA
primero como los derechos de la sociedad como un
todo (los derechos específicos de obreros,
campesinos, los pobres, indígenas, mujeres, juventud,
los niños, etc.) y, segundo, como la experiencia
acumulada de las utopías que los latinoamericanos
han intentado por siglos desde la invasión europea y la
conquista en el siglo XVI.
El ALBA propone el renacer de los proyectos de vida
que quedaron inconclusos, que fueron abortados,
reprimidos por siglos / por décadas. Que renazcan y
se unan los sueños retenidos en el tiempo. El ALBA
lo elaboramos todos y cada uno de nosotros, reúne
proyectos múltiples y diversos como son diversos
los pueblos que habitan el continente. Marchamos
4
Diputado Rafael Correa Flores, Constuyendo el ALBA “Nuestro Norte es el
Sur”. Ediciones del 40 Aniversario del Parlamento Latinoamericano, 1ª Ed.,
Caracas/República Bolivariana de Venezuela, Mayo 2005, p. 4.
juntos respetando los ritmos. Sí somos todos
significa ritmos diversos. Este planteamiento
desconcierta. Todos los sujetos sociales plantean lo
suyo sin sujetar a los otros guíados por la premisa de
que la felicidad es una construcción cultural y
asumiendo como política de Estado que la pobreza
6
sólo se supera dándole poder a los pobres.
Así, es la nueva sociedad ya contenida en la
diversidad de aspiraciones de los movimientos
sociales y sus luchas la que subyace en la raíz de la
factibilidad del ALBA. Esta relación dialéctica entre
objetivos socio-económicos inmediatos, aspiraciones
de largo alcance y su legitimidad en las luchas del
pasado, existe en cada uno de los movimientos
sociales de América Latina. Es esta la fuerza motora
que propele al ALBA.
Los proyectos específicos del ALBA
Los acuerdos firmados con Cuba se basan en el
principio de recononcer las asimetrías entre los socios
y en la necesidad de construir mecanismos
compensatorios que eliminen estas asimetrías, pero
que no afecten la soberanía de los participantes.
Desde julio de 2002, Chávez ha planteado la idea de
crear Petroamérica, lo que hizo por primera vez en la
II Cumbre de Jefes de Estado de América del Sur, en
Guayaquil, Ecuador. Insistió en esta propuesta en
agosto de 2003 en Trinidad y Tobago donde los
participantes firmaron una Carta de Intención,
orientada a la cooperación entre las compañías de gas
y de petróleo de América Latina. Finalmente, es con la
Declaración de Iguazú del 8 de julio de 2004, cuando
Petroamérica se establece definitivamente. Dos días
más tarde, Caracas propone la creación de Petrocaribe
y el 27 de agosto de 2004, en Jamaica, donde se firma
el acuerdo que lo crea.
Petroamérica y Petrocaribe son concebidas
como alianzas estratégicas que se basan en la
comercialización del gas y del petróleo pero que se
orientan a la conservación de los recursos naturales no
renovables, la solidaridad y la responsabilidad
compartida dirigida a asegurar al acceso democrático
de los pueblos a la energía a un precio barato. Son
también acuerdos entre gobiernos que desechan la
posible fusión de estas empresas con el capital
privado, ni tampoco aceptan la tranferencia de
recursos del estado al sector privado. La estrategia
consiste en concebir las compañías energéticas
nacionales como complementarias para que así
tengan un alcance continental.7
Una de estas inciativas ocurrió el 17 de junio de
5
Idem, p. 16.
Idem.
7
Idem, p. 21.
6
12 - El ALBA de Cuba y Venezuela: el poder de una idea
2003, Brasil y Venezuela realizaron el III Encuentro
de Empresarios de Brasil y Venezuela en Manaus y a
la cual asistieron Lula y Chávez. En el evento Chávez
enfatizó la necesidad de reforzar Mercosur a fin de
crear un bloque regional Sudamericano y propuso el
establecimiento de un Fondo de Integración de
América Latina para fomentar un modelo de
integración regional donde los intereses de los
pueblos estén por encima de los intereses del mercado
y el objetivo de las políticas comunes sea el
mejoramiento del standar de vida de los pobres
buscando reducir las desigualdades sociales
existentes lo que puede ser logrado sólo con la
erradicación del neoliberalismo y el establecimiento
de mecanismos de cooperación regional.
En mayo de 2005 Argentina, Brasil y Venezuela
crearon conjuntamente Petrosur que se convirtió de
facto en la empresa energética del Mercosur. En
agosto de 2005, Uruguay se unió a la iniciativa que se
orienta al desarrollo económico regional así como
también a abordar los problemas sociales más
urgentes de los estados miembros por medio de
programas de salud, de bienestar social y de
educación, así como de planes para reducir el
desempleo.
Petroamerica firmado por Brasil, Venezuela,
Argentina y Bolivia el 8 de junio de 2004, es un
projecto de largo plazo, de desarrollo gradual, cuyo
objetivo es que las compañías energéticas estatales
involucradas asuman la inversión, la explotación y la
exploración de petróleo y gas natural conjuntamente,
primero como una alianza de compañías individuales
que terminarán fusionándose en una multinacional
continental. Venezuela ya ha firmado acuerdos
bilaterales con Petrobras, Petroecuador, Cupet, y
Petrocin, todos orientados a objetivos similares a los
de Petroamérica. También Venezuela montó una
refinería con Brasil en Pará, Noredeste del Brasil en
2002, que es administrada conjuntamente por
Petrobras y PDVSA. El objetivo más amplio es
establecer una red de plantas de extracción de
petróleo, refinerías y estaciones de gasolina en todo el
Nordeste del Brasil (la parte más populosa y más
pobre del país) para suministrar petróleo a precios
fuertemente subsidiados. En el 2003, un acuerdo
similar se firmó entre PDVSA y Petroecuador que dio
vida a la “Unidad Hidrocarbuférica Regional” y cuyo
sector de gas natural será operado conjuntamente por
las dos compañías lo que también involucrará la
comercialización conjunta de gas licuado, kerosén,
..
asfalto, y materias primas para producir lubricantes.
Luego, en octubre de 2003, fue el turno de Argentina
cuando Néstor Kirchner firmó un acuerdo con
Venezuela por el cual las compañías energéticas
estatales de provincia entraron en sociedad con
PDVSA y Petrobras. En el 2004, Kirchner montó la
Empresa Nacional de Energía, ENARSA, con
participación mayoritaria del estado para que
Argentina pudiera beneficiarse mejor de los acuerdos
energéticos con Venezuela, Brasil y otro productores
8
de petróleo de la región. En abril de 2004, Venezuela
firmó un acuerdo energético con Yacimientos
Petrolíferos Fiscales de Bolivia, compañía estatal
reforzada por el Presidente Carlos Mesa que había
sido reducida a la nada por el ex-Presidente Gonzalo
Sánchez de Losada. PDVSA proveerá el expertizaje
técnico a objeto de asistir a Bolivia en el proceso de
recuperación de sus recursos naturales. Ramírez, jefe
de PDVSA, explicó el objetivo estratégico de
Petroamérica así:
Juntos seremos más fuertes y tendremos mayor
poder de negociación. Tenemos una cultura, idioma,
historia y problemas que son parecidos, pero
debemos encontrar un consenso en relación a la
tecnología y el comercio para abaratar la energía en
9
nuestros países.
El 26 de setiembre de 2005, los ministros de
energía de Argentina, Bolivia, Brasil, Chile,
Colombia, Ecuador, Guyana, Paraguay, Perú,
Uruguay, Suriname y Venezuela firmaron la
Declaración de Caracas de la Comunidad de
Naciones Sudamericanas que intenta continuar dando
pasos concretos para la integración energética de los
10
países de la región. En Septiembre de ese mismo
año, Brasil y Venezuela firmaron un acuerdo de
complementaridad energética e integración entre
PDVSA y Petrobras que incluye intensa colaboración
en las áreas de suministro y comercialización del
petróleo crudo, así como también en la exploración y
extracción de petróleo y gas, diseño, construcción y
operación conjunta de refinerías, facilidades de
almacenamiento y depósitos, transporte y logística,
tecnología, adiestramiento y políticas públicas. El
propósito, como lo dijo Lula, es un paso gigante en el
proceso de integración doscientos años después de la
11
iniciación de ese proceso por los Libertadores. Y el 3
de enero de 2006, Chávez celebró la victoria electoral
de Evo Morales en las elecciones de diciembre de
8
ENARSA es un retroceso para la privatización dado que reemplaza a Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), la antigua compañía estatal que fue vendida por
una miseria a Repsol, una corporación española, durante la administración de Menem.
9
Miguel Lora, “Petroamerica, la estrategia sudamericana para recuperar la soberanía energética”, www.granma.cubaweb.cu/secciones/alba.
10
PDVSA, Se robustece Petroamérica en el ámbito de la integración, 26-20 September, 2005, www.pdvsa.com
11
PDVSA, Acuerdo energético Venezuela – Brasil fortalece Petrosur y estructura Petroamérica, 30-09-2005, www.pdvsa.com
História & Luta de Classes - 13
12.
PDVSA, Presidente Chávez: “Con la llegada de Evo se fortalece
Petroamérica”, 03-01-2006, www.pdvsa.com
13
PDVSA, Petroamérica controlaría 11.5% de reservas mundiales de petróleo,
06-10-2004, www.pdvsa.com
14
Venezuela se inclina por la firma de acuerdos de 25 años de largo, tales como
en los casos de Uruguay y las naciones del Caribe.
15.
Stephen Lendman, Venezuela's Bolivarian Movement: Its Promise and
Perils, Wednesday, Jan 04, 2006, www.venezuelanalysis.com
16.
En Enero de 2005, Venezuela compró US$25 millones, un 4%, de los
primeros bonos ecuatorianos emitidos desde la bancarrota económica de ese
país en 1999 (Simone Baribeau, Venezuela to Buy Argentine Bonds, Backs
IMF Payoff Wednesday, Dec 21, 2005, www.venezuelanalysis.com).
14 - El ALBA de Cuba y Venezuela: el poder de una idea
siendo desarrollados en la agricultura, salud,
educación, seguridad en la energía y otros sectores a
fin de superar los problemas creados por décadas de
Paquetes Estructurales del FMI y siglos de
colonización. En una reciente Cumbre de las
Américas, Chávez propuso una Alianza Contra el
Hambre y la Pobreza y ofreció US$10 billones por
17
toda la próxima década para financiarlo.
Chávez argumenta que el Banco del Sur está
pensado como un fondo acumulativo con parte de las
reservas de los países participantes (Brasil, Argentina
y Venezuela han sido específicamente mencionadas
por él) para que sus miembros puedan obtener
préstamos y así impedir que sus políticas económicas
sean determinadas por Washington. Sin embargo, la
propuesta de Chávez va más lejos que el mero
establecimiento de una institución financiera.
El Banco del Sur es concebido por Venezuela como
un instrumento clave en el proceso actual de
integración regional y - como lo explicara Gastón
18
Parra, Presidente del Banco Central de Venezuela
- se orienta también a la creación de una moneda
única, el establecimiento de una zona con tarifas
arancelarias comunes y la coordinación de las
19
políticas económicas de los países miembros.
La más reciente manifestación del ALBA es el
acuerdo Cuba-Venezuela-Bolivia para la campaña de
alfabetización que los dos primeros países realizarán
en Bolivia y que beneficiará casi de inmediato a
200.000 personas por medio del método audiovisual
cubano “Yo Si Puedo” y que establecerá 10.000
centros de alfabetización en esa nación. El número
total de analfabetos en Bolivia es 1.1 millones, es
decir, 13.3% de la población. Un número similar en
Venezuela fueron alfabetizados en menos de dos
20
años.
El impulso hacia la adopción de políticas de
bienestar social por los bolivarianos ha sido
sistematizado, desarrollado y concretizado en la
21
Carta social de las Américas , que es hasta ahora, el
proyecto anti-neoliberal más completo que se
concoce en el terreno de las políticas sociales,
desarrollo humano, derechos de las minorías,
derechos políticos, nacionales, étnicos e identitarios
de los pueblos, así como también en el terreno de la
protección del medio ambiente.
17..
Stephen Lendman, Venezuela's Bolivarian Movement: Its Promise and
Perils, Wednesday, Jan 04, 2006, www.venezuelanalysis.com
18..
En un seminario sobre integración regional organizado por Venezuela,
Brasil y Argentina realizado en Caracas el 24 de Marzo de 2006, al que
asistieron los presidentes o representantes, de Belize, Ecuador, Honduras,
Uruguay, República Dominicana, Haití, Cuba, Perú y de otras 16 instituciones
regionales financieras.
19..
Prensa Latina, Venezuela urges Lat Am Banco del Sur, March 25, 2006,
http://www.plenglish.com/article.asp?ID=%7B65AF16BA-D011-47D6A6AA-F9E905370052%7D&language=EN
TELESUR
Otra iniciativa que surge del ALBA es
TELESUR, un canal de TV primeramente orientado a
América Latina y que resulta de los esfuerzos
conjuntos de los gobiernos de Venezuela (51%), Cuba
(19%), Uruguay (10%) y Argentina (20%) con al
apoyo de Brasil (el gobierno de Evo Morales acaba de
integrarse al proyecto con 5% del total). Su objetivo
declarado es rivalizar con las redes como Fox y CNN
que dominan el mundo hispánico de la TV y otros
medios de audiencias masiva. Jorge Botero, director
colombiano de Telesur, señala que con el nuevo canal
de TV “Queremos que nuestras cámaras vayan a
lugares donde nunca han estado, para dar una
perspectiva desde abajo [...]. La verdadera cara de
22
América Latina.” Esta es la perspectiva del Sur
desde el Sur, y la relación del Sur con el Sur, así como
también la relación del Sur con el Norte, como bien lo
señala el eslogan del canal: “Nuestro Norte es el Sur.”
La construcción de otra perspectiva, una perspectiva
colectiva de los latinoamericanos mismos sobre si
mismos, implica la construcción de otro mundo.
Como lo explica Florencia Copley:
En el mundo social, la palabra “otro”, es sinónimo de
una nueva construcción. Otro mundo posible, otra
América Latina, otro tipo de comunicación de
masas. Es la búsqueda de una forma de ser diferente,
que se necesita, justa y digna, aparte de cualquier
otro punto de vista impuesto por el sistema que
oprime y aliena. Esa es la razón por la que Telesur –
televisión del sur – nos da ‘otra perspectiva’, su
propio compromiso, que se opone de forma
fundamental a la perspectiva que tiene el Norte de
23
nosotros.
Telesur es un proyecto de telecomunicaciones
anti-hegemónico, único en su campo, y que
representa un esfuerzo mayor debido a que enfrenta
a poderosos oligopolios mediáticos que
abrumadoramente dominan las transmisiones. La
importancia de tener una perspectiva alternativa,
crítica de la noticia es cada vez más crucial en la
medida en que América Latina gira a la izquierda y los
partidos tradicionales, pro-EE.UU., confían cada vez
más en la manipulación y la mentira para ocultar la
verdad. En el golpe de abril de 2002 contra el
20
Ministerio de Comunicación e Información de la República Bolivariana de
Venezuela, Venezuela-Cuba-Bolivia: Plan de Alfabetización para América
Latina, 20 Marzo, 2006; La Razón, Venezuela-Cuba-Bolivia: El Plan de
Alfabetización, 20 Marzo, 2006; Prensa Latina, Primera Oleada de
Alfabetización Alcanzará a 200 Mil Bolivianos; 20 Marzo, 2006.
21
Ediciones Emancipación, www.emancipacion.org
22
Ian Bruce, Caracas Venezuela sets up “CNN rival”,
http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/americas/4620411.stm
23
Florencia Copley, Telesur construye otra perspectiva,
www.venezuelanalysis.com, 14 Deciembre, 2005.
História & Luta de Classes - 15
Presidente Chávez, los medios, en particular las redes
de TV, jugaron un rol central al contribuir a la
creación de la atmósfera que hizo posible el
derrocamiento temporal de Chávez. En Venezuela, el
90% de los medio son compañías privadas, antichavistas y su mensaje, que es normalmente
vociferante, se ha hecho cada vez más estridente,
abiertamente propagandístico, y se ha abandonado
cualquier pretensión de objetividad.
Además, en la region el 70% de la programación
televisiva se importa y Estados Unidos son
responsables del 62% de ese total. La industria de
exportación más grande de Estados Unidos es la
industria del cine y de la televisión. Adicionalmente,
Estados Unidos, la Unión Europa y Japón controlan el
90% de la información mundial, y de las 300
corporaciones de la información más grandes del
mundo, 144 son norteamericanas, 80 son europeas y
49 son japonesas. Para coronar todo esto, las
corporaciones oligopólicas que “informan” a
América Latina son compañías tales como:
CNN de Time Warner; ABC de Disney/Cap Cities;
NBC de General Electric y CBS de Westinghouse.
Sólo una [agencia] tiene vínculos latinoamericanos:
el grupo Cisneros, que controla Galaxy Latin
America (que introdujo DirectTV) y Caribean
Communications Networks que manejan TV, radio y
prensa escrita [...] El grupo Cisneros está asociado
con la GM Hughes Electronics Corporation de los
Estados Unidos, con TV Abril de Brasil y
Multivisión de Mexico. Además, domina Univisión,
una red que controla tres cuartos de la audiencia
hispánica en los Estados Unidos, Imagen Satelital, el
proveedor de TV cable en la Argentina, Venevisión
24
International Film Group y Chilevisión.
La perspectiva alternativa que Telesur proyecta
ha quedado en manos de probados intelectuales
quienes, cada uno en su propia forma individual, y
utilizando métodos diversos, han formulado, con el
correr de los años, una crítica coherente y consecuente
de la globalización y todas sus nefastas
consecuencias. Entre los miembros del Comité
Asesor de Telesur encontramos a Ernesto Cardenal de
Nicaragua, Eduardo Galeano de Uruguay, Luis Britto
de Venezuela, Fernando “Pino” Solanas de Argentina,
Ignacio Ramonet de Francia, Danny Glover de
Estados Unidos, y Tariq Alí, británico de origen
paquistaní.
Pese a la desafavorable y distorsionada
24
Idem.
Telesur ha sido objeto de duros ataques por parte de Republicanos tales como
Connie Mack [R-Florida] para quien Telesur disemina la más perniciosa
propaganda “comunista” de Chávez para promocionar su Revolución
Bolivariana en el continente y socavar la posición de Estados Unidos en el
25
información de los medios tradicionales, Telesur es
independiente de los gobiernos que la auspician y
tiene corresponsales en Bogotá, Brasilia, Buenos
Aires, Caracas, Ciudad de México, La Habana,
Montevideo, La Paz y Washington, además de una red
de conexiones con otras redes. Telesur procura
activamente vínculos con los movimientos sociales y
de masas en la región para poder informar sobre
su situación y sus luchas. Telesur activa y
concientemente muestra “la otra América”, la que
nunca aparece en las pantallas de las grandes cadenas
de TV: las comunidades indígenas, las comunidades
negras, campesinos, trabajadores, mujeres, jóvenes
de los barrios (incluyendo hasta su música rap), y los
pobres en general, todo combinado con documentales
informativos, entrevistas a intelectuales, artistas y
políticos radicales. El irresistible atractivo de Telesur
reside en que es el único medio que informa a los
latinoamericanos sobre ellos mismos, por ellos
25
mismos y sobre sus aspiraciones. Nunca antes la
hegemonía propagandística y cultural de Estados
Unidos había sido contrarrestada tan eficazmente y
tan completamente.
Obstáculos politicos y económicos al ALBA
El proceso que se ha descrito más arriba es
verdaderamente formidable y puede aún parecer
imparable, sin embargo, los obstáculos a su desarrollo
no son menos formidables. Los obstáculos son de dos
tipos: la oposición total de Estados Unidos a su
continuo progreso, además de las complejidades
objetivas de armonizar economías enormemente
diversas en un proceso de integración regional.
Un puntal importante de la táctica
estadounidense es atraer tantos países como sea
posible en la región a firmar TLC individuales como
una forma de inocularlos contra el bolivarianismo de
Cuba y Venezuela. Ya en América Central el gobierno
de Bush ha encajonado a todos los países de la subregión en el CAFTA. La firma de TLC individuales se
ha extendido a Colombia, Ecuador, Perú y Chile. De
la misma manera, Estados Unidos tiene mucho interés
en alejar a los gobiernos izquierdistas más moderados
de la región como Brasil, Argentina y Uruguay del
proyecto ALBA y hacia una alianza con el gobierno
de Bush por medio de la implementación de algún
tipo de TLC. Cuando eso no da resultados, busca
desestabilizarlos para impedir su reelección. El
programa de desestabilización contra Evo Morales
parece ya haber empezado y parece consistir en una
Hemisferio Occidental. En su website Mack presenta a Telesur como algo
todavía mucho peor: “Nueva alianza entre el Telesur de Chávez y Al-Jazeera
crean una red de TV del terror”:
(http://mack.house.gov/index.cfm?FuseAction=PressReleases.View&Conte
ntRecord_id=173).
16 - El ALBA de Cuba y Venezuela: el poder de una idea
combinación de terrorismo con apoyo a las corrientes
secesionistas de Santa Cruz. Pero la estrategia global
esencial del imperio consiste en aislar a Venezuela,
Cuba y a Bolivia para lograr un cambio de régimen en
los tres países.
El ALBA enfrenta también otro obstáculo
organizativo puesto que no está claro qué tipo de
organismos o instituciones regionales pueden ser o
serán creadas que comanden autoridad suficiente para
tomar decisiones por encima de la soberanía de los
26
estados nacionales.
Está, además, el aparentemente insuperable
problema de las asimetrías. Este problema es evidente
en las significativas diferencias en los costos de mano
de obra de Brasil y Argentina, por ejemplo, y su
significancia se puede colegir en el hecho de que
ambos países son responsables de la abrumadora
mayoría del comercio en Mercosur. Recientemente,
en 2004-2005, Argentina rompía las reglas del bloque
al practicar el proteccionismo contra las
importaciones de su poderosos vecino, debido a que
frustraban la recuperación industrial del país.
Además, Brasil y Argentina son rivales comerciales
en practicamente todas las áreas económicas ya que
exportan a los mismos países y procuran atraer
inversión extranjera de las mismas fuentes.
La elección de Morales en Bolivia consolida la
posición de los bolivarianos al nivel continental al
cambiar la relación de fuerzas más aún en su favor y
contra Estados Unidos pero:
La cuestión del gas presentará un desafío clave a las
relaciones de Bolivia con el gobierno argentino de
Kirchner y el gobierno brasileño de Lula. Por
muchos años, estos países se han beneficiado de las
transnacionales que les vendían gas boliviano a
precios con fuertes descuentos. Mientras que el
precio internacional del gas era unos US$10 por un
millón de BTU, por ejemplo, Argentina recibía gas a
US$3.25 el millón de BTU. Para los bolivianos, esta
situación tiene que cambiar para poder sacar al país
27
de la pobreza.
Además, si Morales quiere aumentar su fuerza
electoral y política tiene que dar satisfacción a las
demandas acumuladas del movimiento social que
representa la inmensa mayoría de los bolivianos. La
única posible fuente de recursos económicos para
28
financiar esos programas sociales es el gas natural.
26
La falta de una infraestructura institucional supranacional ha sido uno de los
mayores obstáculos en el desarrollo de Mercosur (para una discussion
detallada de estas cuestiones ver Francisco Domínguez and Marcos Guedes de
Oliveira (eds.), Mercosur: Between Integration and Democracy, Peter Lang
European Publishers, Berne, 2003).
27
Green Left Weekly, Reversing neo-liberalism: an interview with Bolivia's
No será nada fácil para Argentina y Brasil absorber
los costos extras. Morales tiene que cumplir con el
movimiento social, de otra manera su estrategia de
reformar la constitución por medio de una Asamblea
Nacional a la Chávez no dará resultados.
Estos obstáculos objetivos, que se originan en el
desarrollo desigual y combinado de los países
latinoamericanos, pueden multiplicarse ad infinitum
véase el intenso conflicto entre Argentina y Uruguay
sobre la construcción de dos plantas de celulosa en la
frontera. Disparidades similares se pueden encontrar
entre Perú y Bolivia, Perú y Ecuador, Bolivia,
Ecuador, Argentina y entres estos tres y Brasil.
Ningún proceso de integración - y el ALBA no es
excepción - puede superar estos enormes obstáculos
en el corto plazo.
El ALBA y Estados Unidos: la confrontación que
viene
El ALBA y el ALCA son fundamentalmente
incompatibles y el gobierno de Bush (o sus posibles
sucesores Demócratas) harán lo que sea para detener
y revertir la lógica objetiva y subjetiva del ALBA. Es
inimaginable que el imperio esté dispuesto a coexistir
y cohabitar un hemisferio en el cual acepte que sus
vecinos – tradicionalmente bajo su dominio
económico, político y cultural – reafirmen su
independencia, nacionalismo y autonomía contra los
intereses financieros, industriales y militares de la
oligarquía financiera en cuyos intereses Estados
Unidos y toda la región han hasta ahora sido
gobernados.
Dada la intensa hostilidad expresada por altos
personeros de la administración Bush, tales como
Condoleezza Rice, Donald Rumsfeld, Roger Noriega,
John Negroponte, John Bolton y unos cuantos otros,
la oposición de Estados Unidos a la integración
bolivariana de algunos de los países de América
Latina es total y absoluta. La hostilidad
estadounidense es intensa: si pueden derrocar el
gobierno de Chávez, lo harán, no importa si es a través
del apoyo a una campaña de desestabilización de
largo plazo (lo que ya han intentado y fracasado,
varias veces), o un conflicto fronterizo que involucre
a Colombia y que justificaría una invasión “conjunta”
de Venezuela, o por medio de una invasión puramente
yanqui, la decisión del imperio es que el “problema
Venezuela será resuelto”. Esta hostilidad se exacerba
new energy minister, 1 February, 2006,
www.greenleft.org.au/back/2006/654/654p12.htm
28
Los primeros pasos se dieron al día siguiente de la investidura de Morales.
PDVSA abrió una oficina en La Paz el 23 de Enero de 2006. Ese mismo día,
Chávez y Morales firmaron un acuerdo de cooperación entre PDVSA y YPFB
para desarrollar proyectos de infraestructura, procesamiento y refinamiento
de gas y petróleo. Idem.
História & Luta de Classes - 17
por el hecho que uno de los aliados estratégicos de
29
Venezuela es Cuba. En ambos casos, la lógica de los
planes yanquis es la subversión y el derrocamiento de
estos dos regímenes por medio de una invasión
militar.
Es difícil interpretar el deseo obsesivo de la
administración Bush de establecer tantas bases
militares en América Latina que no sea como parte de
la preparación sistemática para la “guerra preventiva”
contra “estados delincuentes” en la región. Estados
Unidos tiene bases militares en Guantanamo Bay,
Roosevelt Roads y Forth Buchanan en Puerto Rico,
bases aéreas en Aruba y Curaçao, Palmerola y Soto
Cano en Honduras, Manta en Ecuador, y estaciones
de radar en Colombia y varias otras posiciones
secretas en la región y está aceleradamente
militarizando la Triple Frontera (área fronteriza de
Brasil, Paraguay y Argentina), donde voceros
estadounidenses afirman – sin evedencia alguna - que
Al-Qaida e Hizbollah tienen vínculos con guerrillas
marxistas, populistas radicales, narco-traficantes
izquierdistas y, por supuesto, con Chávez, Castro y
Evo Morales también. Además, Estados Unidos ya
opera en las dependencias militares de Coronel
Oviedo, Salto de Guairá y Pedro Juan Caballero, en
Paraguay, y desde mayo de 2005, tiene su propia
base militar otorgada por el gobierno y
30
parlamento paraguayos en Mariscal Estagarribia.
Recientemente, Estados Unidos ha establecido un
campo militar en Barahona, República Dominicana,
con el pretexto de proveer a la población local de agua
potable, que se está rapidamente convirtiendo en una
base militar. En este sentido, se manifiesta una
tendencia precoupante en el gasto militar
estodounidense: de los US$333.7 billones que
EE.UU. gasta en defensa, 43% está dedicado a
América Latina.
Cierto, el imperio está empantanado en Irak y
parece que le será imposible salir del lío en el que se
metió allí por un buen tiempo. Por ello, parece difícil
que Estados Unidos lance una invasión militar contra
Venezuela o Cuba, o contra ambas simultáneamente.
Sin embargo, está desesperado. En el corto plazo la
administración Bush tiene apenas dos años para crear
29
En relación a Cuba, Estados Unidos tiene pleaneado un cambio de régimen
que incluye, entre otras preciosuras, la disolución completa de las
instituciones armadas del Estado, la ilegalización del Partido Comunista de
Cuba, de la Confederación de Trabajadores de Cuba, la Federación de Mujeres
Cubanas y muchas otras organizaciones en la isla, la transformación de Cuba
en un país capitalista, la recuperación de la tierra, propiedades, edificios,
casas, empresas y todo lo demás que “pertenecía” a las compañías
estadounidenses y a algunos de los cubanos exiliados en Miami. Estados
Unidos ha además nominado a un “Coordinador de la Transición”, Caleb
McGarry.
30
Cristian Lora, Fuerzas de EE.UU Inician Operativo "Medrete", Portalba,
Alternativa Bolivariana para la América, 10 March, 2006.
www.alternativabolivariana.org
las condiciones que le permitan primero hacer
retroceder, y luego aplastar completamente, el
proceso bolivariano y así “resolver” en forma
definitiva los problemas en su “patio trasero”. Es muy
improbable que la elección presidencial en el 2008
resulte en otro gobierno Republicano aunque, desde
el 2000, las elecciones presidenciales en Estados
Unidos se han convertido en eventos bastante
impredecibles. Por ello, el imperio está ocupadísimo
expandiendo sus posiciones y capacidades militares
en la región para el enfrentamiento que sabe que se
aproxima. El conflicto entre el ALBA y el ALCA se
aproxima inexorablemente a su denouement. Todos a
apostar por el ALBA.
História & Luta de Classes - 19
Mariátegui e as raízes da
rebelião indígena
Tiago Coelho Fernandes1
Apresentação2
R
ebelião no Equador, avanços na Bolívia,
confrontos no Paraguai, rebeldia no México,
insubordinação no sul do Chile, inquietação no Peru.
Dê-se o nome que queira, mas a tomada de cena pelas
populações originárias em nosso continente aos
poucos foi ampliando seu eco e já não pode ser
ignorada, deixando muitos intelectuais perplexos,
outros eufóricos e ainda outros indignados, ou pelo
menos incomodados. Para os liberais, representa a
crise da democracia; para os pós-modernos, uma
saudável afirmação da diversidade que se arrisca a
cometer alguns excessos; para os “marxistas” mais
dogmáticos, um fenômeno difícil de aceitar, que
tentam enquadrar nos tradicionais esquemas teóricos.
Daí a necessidade de buscar ferramentas que nos
ajudem a compreender e estabelecer um diálogo
crítico, mas aberto, com esses processos.
Neste trabalho, analisarei as reflexões do
revolucionário peruano José Carlos Mariátegui sobre
a temática indígena. Sua abordagem se destaca pela
originalidade, a partir de um ponto de vista marxista,
podendo ser uma produtiva fonte de diálogo com as
atuais tendências dos movimentos indígenas. O
debate aqui se enfocará nas suas idéias sobre o tema.
Explorar as possibilidades, as tensões e os limites
desse diálogo, enfocando o discurso das organizações
contemporâneas dos povos originários é parte do
trabalho que estou desenvolvendo no mestrado.
O contexto peruano: falência do projeto de nação e
resistência secular
O Peru no final do século XIX era um país em
crise. Humilhadas na Guerra do Pacifico, as classes
dirigentes ficaram desmoralizadas internamente e o
1
2
“Tupac Amaru, sol vencido,
de tua glória desgarrada
sobe como o céu no mar
uma luz desaparecida.
As fundas aldeias de argila,
os teares sacrificados,
as úmidas casas de areia
dizem em silêncio: 'Tupac',
e Tupac é uma semente,
dizem em silêncio: 'Tupac',
e Tupac se guarda no sulco,
dizem em silêncio: 'Tupac',
e Tupac germina na terra.”
Pablo Neruda
sistema de poder estruturado após a independência
(1821) profundamente abalado. Despreparado e
dividido, o antigo centro do Império Inca e da
administração colonial espanhola viu sua economia
ser destruída e o exército chileno tomar sua capital.
Com a desestruturação do exército, a elite recorreu à
massa indígena, que vivia na serra. Porém, esses, que
eram a maioria da população, não abraçavam a guerra
como se fosse sua, o que de fato nunca poderia ter
sido. De qualquer forma, essa mobilização detonou
diversas rebeliões contra a condição secular de
exploração e miséria. Outros grupos seriam
acaudilhados por chefes criollos locais nas disputas
pela recomposição do poder. As contradições
chegaram a tal ponto que um setor significativo da
classe dominante, inclusive com apoio na própria
oficialidade, abandonou os princípios nacionalistas e
adotou uma atitude colaboracionista com os chilenos,
buscando negociar condições mais favoráveis para
um acordo de paz. No dia 23 de outubro de 1883 é
assinado o Tratado de Ancón que concede ao
vencedor uma importante região de nitrato e ainda a
administração das províncias da Tacna e Arica.
Esse quadro acarretou um clima de tensão nas
comunidades, gerando conflitos, instabilidade e
rebeliões. Nas disputas que se seguiram à guerra, o
marechal Andrés Cáceres, um dos caudilhos que se
opunha aos acordos de paz, armou milícias indígenas
na sierra central. Mas os “montoneros”, até então
Graduado em História (UFF) e Mestrando em Serviço Social (UFRJ).
O presente texto é uma versão reduzida de minha monografia de fim de curso, apresentada no ano de 2004, no Curso de Graduação em História da UFF.
20 - Mariátegui e as raízes da rebelião indígena
sistematicamente excluídos daquele projeto de nação,
não se conformaram em serem peões do jogo político
e atacaram, não só as forças do governo, mas também
membros da elite considerados traidores, ocupando
3
fazendas que eram reclamadas pelas comunidades.
O marechal retrocedeu, reprimindo as
manifestações indígenas em apoio aos fazendeiros.
Mas a caixa de Pandora já estava aberta. Pouco
depois, em 1885, irrompeu a revolta de Astuparia, no
departamento de Ancash. Essa insurreição teve
grande repercussão, por sua extensão e intensidade.
4
Astuparia era um curaca que apoiara Cáceres na
guerra civil, mas que não aceitou a imposição de
novos tributos aos indígenas – na verdade a reedição
de antigos impostos – para cobrir os custos da guerra.
Comandou o levante de milhares de camponeses que
chegaram a tomar a capital do departamento, Huaraz.
À derrota para as forças governistas, se seguiu um
inevitável massacre. Não obstante, ao resenhar em
1925 uma obra sobre o tema, Mariátegui apontaria
novas mobilizações na mesma região, enquadrandoas na longa tradição de luta dos indígenas e notando
seus limites.
“El indio, tan fácilmente tachado de sumisión y
cobardía, no ha cesado de rebelarse contra el
régimen semifeudal que lo oprime bajo la república
como bajo la colonia. (...) Oficialmente, no se
registra sino a Túpac Amaru, a título de precursor de
la revolución de la independencia, que fue la obra de
otra clase y la victoria de otras reivindicaciones. Ya
se escribirá la crónica de esta lucha de siglos. (...) La
derrota de Astuparia y Uschu Pedro es una de las
muchas derrotas sufridas por la raza indígena. Los
indios de Ancash se levantaron contra los blancos,
protestando contra los trabajos de la república,
contra el tributo personal. La insurrección tuvo una
clara motivación económico-social. (...) Pero
cuando la revuelta aspiró a transformarse en una
revolución, se sintió impotente por falta de fusiles,
5
de programa y de doctrina”.
O século XX trouxe no Peru, desde o início, a
marca das rebeliões indo-camponesas. Na região sul,
foram registrados mais de 300 conflitos esporádicos
6
de 1901 a 1930 em Arequipa, enquanto outra
pesquisa aponta 11 sublevaçeُ s nos trinta e quatro anos
que se seguem a 1890 na região vizinha de Puno. A
mais famosa ocorreu em 1915 até hoje é envolta em
mistério. Seu principal líder fora Teodomiro
Gutiérrez, um mestiço major do Exército, que
assumiu o nome quéchua Rumimaqui (Mão de Pedra)
e comandou o levante de um exército de indígenas.
Pouco se sabe sobre seu desenrolar ou objetivos. O
relato da rebelião foi todo produzido por fazendeiros
da região e os poucos documentos e declarações
atribuídos a Rumimaqui falam da expulsão dos
gamonales e de uma restauração do Tawantisuyu
incaico, mas são de autenticidade duvidosa. O líder do
levante foi preso em maio de 1916 e negou qualquer
participação no movimento. Há duas versões para o
seu fim: a mais provável é a de que tenha sido
fuzilado; a mais popular é a de que sumiu através da
fronteira com a Bolívia e teria se integrado ao
7
movimento anarquista.
Ao mesmo tempo em que o país passava por
essa situação de humilhação e acerto de contas, num
processo aparentemente contraditório iniciava uma
etapa de modernização capitalista. “Nos cinqüenta
anos que se seguiram a seu término [da guerra], o
Peru, a sociedade ‘feudal’ por excelência da América
Latina seria impelido para a economia mundial então
em crescimento e reformularia seus modos de
produção, tendo em vista as exigências especiais do
capitalismo industrial do Ocidente na era de expansão
8
imperial”. A economia passou a ser marcada pela
penetração do capital estrangeiro sob hegemonia
estadunidense, em particular no setor mineiro,
enquanto a oligarquia se recompunha, abrindo-se a
novas gerações – obviamente sem superar as antigas
estruturas – e mantendo-se a hegemonia do partido
civilista.
A paisagem urbana também passou por grandes
transformações, com a formação de uma incipiente
classe operária concentrada na capital Lima e seu
porto Callao responsável por importantes
mobilizações, como a greve geral de 1918. A classe
média se expandiu, trazendo novos agentes e
demandas ao quadro político e inclusive se aliando às
mobilizações operárias, destacando-se a radicalidade
da Reforma Universitária que, iniciada em Córdoba
(Argentina) em 1918, se espalhou por todo o
continente mas perdurou por mais tempo e com mais
resultados no Peru.
Do comunismo incaico ao comunismo moderno
Em torno às sublevações de finais do século
XIX e início do XX, se formou no Peru um
3
KLARÉN, Peter. As origens do Peru moderno, 1880-1930. In: BETHELL,
Leslie (org.) História da América Latina, vol. V: de 1870 a 1930. São
Paulo/Brasília, Edusp/Imprensa Oficial do Estado/Fundação Alexandre
Gusmão, 2002. p. 324.
4
Chefes comunitários, em geral cooptados para a estrutura de dominação
colonial e oligárquica.
5
“Prefacio a El Amauta Astuparia” (1930) in: MARIÁTEGUI, J.C.
Invitación a la vida heroica/Antología. Lima: Instituto de Apoyo Agrario,
1989. pp. 426-427.
6
KLAREN, Peter. op. cit., p. 354.
7
LEIBNER, Gerardo El mito del socialismo indígena en Mariátegui. Lima,
Fondo Editorial de la PUC Peru, 1999. p. 199.
8
KLARÉN, Peter . op. cit., p. 317
História & Luta de Classes - 21
importante corrente “indigenista” contemporânea. Na
capital e pelo interior do país, diversos intelectuais
abraçaram a causa dos povos originários, escrevendo
romances, lançando manifestos e revistas. Vale notar
que essa tendência coincide com o movimento das
vanguardas modernistas, de forma que alguns dos
principais expoentes das artes no início do século XX
se ocuparam dessa temática. Esse encontro é sem
9
dúvida um fator de radicalização desses escritores.
Mesmo aqueles que não podem ser qualificados
exatamente de “indigenistas”, mas se dedicaram a
refletir um projeto para o Peru, foram obrigados a
pensar essa questão, já que ela se impôs como uma
contradição fundamental em um país que se
questionava sobre o passado recente e debatia como
seguir em frente.
Clorinda Mattos de Turner é uma das
precursoras da literatura indigenista. Seu romance
Aves sin nido (1889) é apontado como pioneiro na
denúncia humanista da exploração de que padeciam
os povos originários. Por outro lado, Manuel
González Prada (1848-1918) foi a maior expressão
intelectual da desilusão com as classes dirigentes. De
origem aristocrática, alternou fases onde eram
maiores as influências positivista, romântica e
socialista, até chegar ao anarquismo. Porém, o que o
caracteriza não é um programa para ação, mas os
ataques demolidores àquela sociedade e seus valores.
Atribui à aristocracia peruana a impotência e o
fracasso na guerra. Nas páginas de livros como Horas
de Lucha, Pájinas Libres seus ataques atingem sem
eufemismos a liberais, conservadores, magistrados,
aristocratas e Igreja. Esta é seu alvo predileto; o seu
anticlericalismo lembra o velho anarquismo ibérico.
Prada sintetiza o fracasso do Peru no fato de a maior
parte da população não estar incorporada à vida
nacional, denunciando o oportunismo caudilhista.
“ C o n l a s m u c h e d u m b re s l i b re s a u n q u e
indisciplinadas de la Revolución, Francia marchó a
la victoria; con los ejércitos de indios disciplinados i
sin libertad, el Perú irá siempre a la derrota. Si del
indio hicimos un siervo ¿qué patria defenderá? Como
el siervo de la Edad media, sólo combatirá por el
10
señor feudal”.
Seu estilo e suas idéias influenciaram não
apenas os anarquistas peruanos, mas toda a geração
seguinte de intelectuais radicais. Mariátegui
reconheceu criticamente a importância e o
pioneirismo do anarquista, que era cético quanto a
apelos humanitários à classe dominante, pregou a
9..
Cf. SCHWARTZ, Roberto, Vanguardas latino-americanas: polêmicas,
manifestos e textos críticos. São Paulo: Edusp/Iluminuras/ FAPESP, 1995, p.
167-169.
10..
PRADA, Manuel G. “Discurso en el Politeama”. In: Pájinas libres.
<http://www.evergreen.loyola.edu/~tward/gp/libros/paginas/pajinas6.html>.
Acesso em 12/02/2007. Mantida grafia original.
libertação pela violência e pela auto-organização e
adiantava a questão indígena como uma questão
sócio-econômica:
“La condición del indígena puede mejorar de dos
maneras: o el corazón de los opresores se conduele al
extremo de reconocer el derecho de los oprimidos, o
el ánimo de los oprimidos adquiere la virilidad
suficiente para escamotear a los opresores. Si el
indio aprovechara en rifles y cápsulas todo el dinero
que desperdicia en alcohol y fiestas, si en un rincón
de su choza o en el agujero de una peña escondiera
una arma, cambiaría de condición, haría respetar su
propiedad y su vida. A la violencia respondería con
la violencia, escarmentando al patrón que le arrebata
las lanas, al soldado que le recluta en nombre del
gobierno, al montonero que le roba ganado y bestias
11
de carga”.
A Asociación Proindigena, de tendência liberal
e assistencialista, surgiu em 1909, liderada por Dora
Mayer. Sua ação está próxima daquela criticada por
Prada. Pelas vias legais, buscava garantir os direitos e
o bem-estar dos povos indígenas, alertando a
sociedade – o que incluía a classe dominante – para
sua situação. Porém, atuando em seu nome, não eram
entidades próprias das comunidades. Na análise de
sua fundadora, seu efeito mais positivo foi justamente
auxiliar no “despertar indígena”, ou seja, instigar as
comunidades a criar mecanismos próprios de
12
reivindicação e defesa.
A vanguarda modernista surge na década de
1920 pelas letras de César Vallejo (autor de Los
heraldos Negros, Trilce). Em Cuzco se articula o
grupo Risorgimiento, onde se destaca Luís E.
Valcárcel (Tempestad en los Andes) e em Puno o
Boletim Titikaka, que reuniu os irmãos Arturo Peralta
(El pez de oro) e Alejandro Peralta (Ande, El Kollao) e
chegou a publicar dois poemas de Mário de
13
Andrade. Muitos desses setores mais radicalizados
se integraram ao projeto da revista Amauta e
acompanharam a fundação do Partido Socialista, em
1928, ambos projetos liderados por Mariátegui.
Nos Sete ensaios de interpretação da realidade
peruana, seu livro mais importante e um dos poucos
publicados em vida, Mariátegui desenvolve uma
breve revisão crítica dos enfoques que a questão
indígena recebera até então:
“Todas as teses sobre o problema indígena, que o
ignoram ou dele se esquivam como problema
11
PRADA, Manuel G. “Nuestros índios”, in: ZEA, Leopold (compilador).
Fuente de la cultura latinoamericana. México, D.F., Fondo de Cultura
Económica, 1995 (reimp.). p. 43 (vol. I).
12 ..
MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da
interpretação peruana. São Paulo, Alfa-Omega, 1975. pp. 25-26.
13
SCHWARTZ, op. cit., 168.
22 - Mariátegui e as raízes da rebelião indígena
econômico social, não passam de estéreis exercícios
teoréticos – e, às vezes, unicamente verbais –,
condenados a um total descrédito. A boa fé de
algumas não as redime. Na prática, somente
serviram para ocultar ou desfigurar a realidade do
problema. A crítica socialista o descobre e explica,
porque busca suas causas na economia do país e não
no mecanismo administrativo, jurídico ou
eclesiástico, nem na dualidade ou pluralidade de
raças, nem nas condições culturais ou morais. A
questão indígena emerge de nossa economia. Suas
raízes estão no regime de propriedade da terra.
Qualquer tentativa de resolvê-la através de medidas
administrativas ou policiais, através de métodos de
ensino ou com obras de irrigação, constitui um
trabalho superficial ou adjetivo, enquanto subsistir o
14
método feudal dos ‘gamonales’”.
Assim, seu autor se insere no debate corrente,
explicitando qual seria o enfoque marxista. É a análise
do regime de propriedade agrária e das relações
sociais daí decorrentes que possibilita compreender a
situação dos povos indígenas e elaborar um programa
de sua emancipação. São inócuas as tentativas de
soluções unilaterais do ponto de vista administrativo,
jurídico, étnico, moral, educacional ou eclesiástico,
que eram apresentadas e praticadas pelos governos,
pela Igreja ou por entidades civis com o intuito de
amenizar o sofrimento dos povos originários. O
exemplo mais dramático é a própria independência do
país que, sob a liderança da elite criolla igualou todos
juridicamente na condição de cidadãos e empreendeu
a modernização do Estado, elaborando uma nova
legislação que explicitava preocupação com a
população indígena. No entanto, atendeu unicamente
aos interesses dessa elite, mantendo a condição das
massas indígenas pouco alterada e em alguns
momentos até pior, pois acrescentou à antiga estrutura
agrária a super-exploração capitalista, o avanço
mercantil sobre as terras comunais e a reedição de
impostos e tributos do período colonial. Diante desse
quadro, de maneira objetiva, conclui Mariátegui: “O
novo enquadramento consiste em pesquisar o
15
problema indígena no problema da terra”.
Por isso os três primeiros ensaios de sua obra
básica, nos quais ele estuda o “Esquema da evolução
econômica”, o “Problema do índio” e o “Problema da
terra”, articulam-se dialeticamente.
N o p r imeir o , M ar iáteg u i an alis a o
desenvolvimento da economia do Peru, destacando os
aspectos básicos dos períodos colonial e republicano.
Logo na abertura do texto, observa que a conquista
espanhola representou uma ruptura na história do
país. “Até a Conquista, desenvolveu-se no Peru uma
economia que brotava espontânea e livremente do
16
solo e do povo peruanos”. Uma economia que se
desenvolvia com afluência foi destruída e substituída
por um sistema de exploração e atraso: “Sobre as
ruínas e os resíduos de uma economia socialista,
17
lançaram as bases de uma economia feudal”.
Seu trabalho recebeu muitas críticas, pelas
informações imprecisas e idealizadas do Império
Inca. De fato, podemos dizer que esse seria um “ponto
fraco” de suas pesquisas. Hoje, este é reconhecido por
muitos como um Estado aristocrático e expansionista
que oprimia diversas etnias. A idéia que fazemos de
socialismo dificilmente seria adequada à estrutura
dessa sociedade. No entanto, para Mariátegui, o
essencial não é reconstituir o funcionamento do
Império Inca pelo método histórico-científico. Na sua
perspectiva, inclusive na forma como entende a
história, muito influenciada pelo combate ao
positivismo dominante, o que importa é como os
povos originários atuais interpretam e absorvem o
passado inca e como os ayllus se organizam e se
inserem na sociedade contemporânea. Isso porque seu
interesse não é acadêmico e sua proposta não é o
retorno a esse passado, mas o aproveitamento de
elementos potenciais na construção do socialismo,
seu objetivo estratégico. Daí a centralidade do
conceito de “mito”, que cumpriria o papel de
catalisador das mobilizações e da construção do
18
projeto socialista. Para ele, está clara a
impossibilidade de voltar atrás a roda da história e por
diversas vezes anuncia não apenas essa
impossibilidade, mas a inconveniência de abrir mão
das técnicas e das ideologias modernas. Em uma
extensa nota na qual defende o emprego do conceito
de “comunismo incaico”, adverte enfaticamente que
“O comunismo moderno é uma coisa diferente do
comunismo incaico. Isto é, a primeira coisa que deve
entender o estudioso que explora o Tawantisuyu. Um
e outro comunismo são produto de diferentes
experiências humanas. Pertencem a diferentes épocas
históricas. Constituem a elaboração de civilizações
dessemelhantes. A dos incas foi uma civilização
agrária. A de Marx e Sorel é uma civilização
industrial. Naquela, o homem submetia-se à natureza.
Nesta, a natureza se submete, às vezes, ao homem.
É absurdo, portanto, confrontar as formas e as
instituições de um e outro comunismo. O único que
podemos confrontar é a sua incorpórea semelhança
essencial, dentro da diferença essencial e material de
tempo e espaço. E para esta confrontação é
16
14
MARIÁTEGUI, J.C. op. cit. (1975), p. 21.
15 .
Idem, p. 28.
Idem, p. 3
Idem, p. 4.
18
Cf. SOREL, George. Reflexões sobre a Violência. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
17 .
História & Luta de Classes - 23
19
necessário um certo relativismo histórico”.
E mais à frente, respondendo à acusação de
autocrático ao regime dos Incas, argumenta: “A
autocracia e o comunismo são incompatíveis em
nossa época; mas não o foram em sociedades
primitivas. Nos dias atuais, uma nova ordem não pode
renunciar a nenhum dos progressos morais da
sociedade moderna. O socialismo contemporâneo –
outras épocas tiveram outros tipos de socialismo, que
a história designa com nomes diversos – é a antítese
do liberalismo; mas nasce de suas entranhas e nutre-se
da sua experiência. Não rejeita nenhuma de suas
conquistas intelectuais. Escarnece e vilipendia apenas
20
suas limitações.”
Portanto, se o problema do índio é o problema
da terra, mais importante do que interpretar com
precisão o funcionamento interno das comunidades é
compreendê-la no contexto geral da sociedade
peruana. E nesse ponto se destaca em sua análise a
identificação de três regimes econômicos diferentes
que se sobrepõem. Na serra, os resquícios das
comunidades incaicas sobrevivem sob o que ele
chama de regime feudal. No litoral, o capitalismo se
insere sem formar uma burguesia forte. É essa
interpretação pioneira que fundamenta materialmente
a defesa do socialismo e não apenas um ideal de
sobrevivência das comunidades. Mariátegui aponta a
inexistência de uma burguesia peruana capaz de
liderar a revolução antifeudal. Por outro lado, ao
analisar a realidade peruana não encontra o
proletariado do qual falava Marx. Isso não o impede
de defender o socialismo justamente como alternativa
ao atraso colonial de seu país e à opressão histórica
dos indígenas. A solução da questão agrária, a
emancipação dos índios e a revolução socialista, além
do próprio processo de formação da nação se unem
em um só processo.
Enquanto isso, a APRA de Haya de la Torre e o
comunismo oficial a partir dos anos 1930 partem de
premissas opostas para chegar às mesmas concluseُ s.
Para ambos, os resquícios feudais e a industrialização
incipiente no continente colocavam a tarefa prioritária
de uma revolução antifeudal, antiimperialista e
21
democrática, dirigida pelas burguesias locais.
No documento enviado à reunião de partidos
22
comunistas do continente em 1929 , esse programa é
mais bem sistematizado. Após uma breve introdução
onde coloca a questão nos termos já apresentados nos
Sete ensaios, o documento analisa o conceito de
“raça”, numa perspectiva que supera as teorias
19
MARIÁTEGUI, J.C. op. cit. (1975), 54. Grifos meus.
Idem, 54-55.
21
Cf. LÖWY, Michael. O marxismo na América Latina: uma antologia de
20
racistas do século XIX. Em seguida, relaciona o
aumento da exploração capitalista com os conflitos
raciais. Em sua análise sobre os países andinos,
relaciona de forma brilhante as reivindicações
indígenas com as demandas gerais da população, já
que compõem sua maioria. Suas observações levam
em conta as nuances de se trabalhar com o
intercruzamento entre os fatores raça e classe.
Preocupado com questões “técnicas” da
possibilidade de penetração da propaganda socialista
nas comunidades, Mariátegui indica a necessidade de
preparar agitadores indígenas, a partir do contato com
o proletariado e os sindicatos urbanos. Analisa de
forma sintética a situação dos povos originários no
Peru e faz alguns apontamentos sobre os demais
países do continente, quando cai em algumas
imprecisões. Sobre México e Guatemala, afirma que
o problema foi resolvido com a incorporação à vida
nacional, o que é negado pelos processos mais
recentes. No Brasil, aparentemente (mal) informado
pelo delegado deste país, afirma não existir questão
racial em relação ao negro. Porém, ao apontar o
caráter da luta dos indígenas, o autor do documento
lembra do seu potencial revolucionário no México e
se detém novamente sobre o caso peruano,
destacando a combatividade e o número de
insurreições dos povos originários nesse país. Lembra
o caso de Rumimaqui e o desenvolvimento posterior
dos movimentos.
Ao enumerar as propostas e tarefas sobre o
tema, recusa a idéia de solução da questão indígena
pela constituição de um Estado autônomo. Essa
proposta, defendida pelos delegados alinhados à III
Internacional com base na tese da autodeterminação
dos povos, não daria na sua visão origem a um Estado
socialista, mas burguês. A tarefa básica portanto seria
desenvolver um movimento de reivindicações
classistas, priorizando a reivindicação básica da terra,
fundamentando a luta na resistência dos ayllus e
pautando outros elementos, como liberdade de
organização, supressão do enganche, aumento de
salários, jornada de oito horas.
Contra as dificuldades da propaganda dentro
das haciendas, deve-se confiar no aumento do
tráfego, mobilizando operários do transporte. Esse
intercâmbio com os sindicatos urbanos é fundamental
no desenvolvimento da consciência e na garantia do
sucesso de uma educação socialista. Devido à
desconfiança em relação ao branco e ao mestiço,
dificuldade da língua, é essencial a formação de
1909 aos dias atuais. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. pp. 10-11.
“O problema das raças na América Latina” in: MARIÁTEGUI, José Carlos.
Op. cit. (1982) pp. 49-75.
22
24 - Mariátegui e as raízes da rebelião indígena
militantes vindos das comunidades. Para isso, destaca
a importância do desenvolvimento do trabalho entre
os mineiros bolivianos e peruanos, entre os quais o
contingente de indígenas é significativo. E aposta no
seu sucesso com palavras que parecem antecipar os
processos atuais, mesmo que em termos distintos:
“Uma consciência revolucionária indígena tardará
talvez a formar-se, mas, quando o índio tiver feito sua
a idéia socialista, ele a servirá com disciplina,
tenacidade e força que poucos proletários de outros
23
meios poderão superar”.
A seguir, enumera as reivindicações básicas em
três pontos que buscam tocar no fundamental da
situação dos trabalhadores indígenas e negros:
1) Expropriação da terra, sem indenização; 2)
formação de organizações camponesas específicas
(sindicatos, ligas camponesas, blocos operários),
ligadas, “sem preconceitos raciais”, às organizações
urbanas, com reivindicações comuns entre o
proletariado e o campesinato negro e indígena e
armamento para a defesa das conquistas; 3)
revogação das leis que pesavam especificamente
sobre os negros e os povos originários: “sistemas
feudais escravistas”, recrutamento militar, o tributo
conscripción vial.
Por fim, defende o potencial socialista das
comunidades, assim como das grandes empresas
agrícolas, delimitando de que forma esse potencial é
visto.
mostra algum conhecimento sobre o tema. Ao referirse ao indigenismo literário, compara-o ao
25
“mujikismo” pré-revolucionário russo. No típico em
que examina a comunidade durante o período
colonial, compara a mir russa ao ayllu andino, não
para elogiar sua imutabilidade, mas para observar a
forma como o regime senhorial, a que ele chama
feudalismo, descaracteriza-os, tornando funcionais à
exploração dos camponeses e como o latifúndio
26
avança vorazmente sobre a propriedade comum. Ao
analisar a relação entre a comunidade e o latifúndio no
período republicano, novamente compara com a
realidade russa, para defender a improdutividade da
27
grande propriedade.
Nenhuma dessas referências cita os populistas
russos como possíveis interlocutores para a questão
agrária. Há apenas a afirmação de que o
desenvolvimento do ayllu na economia peruana tem
semelhanças com a mir no contexto russo. Por outro
lado Marx e Engels, que jamais poderiam ser
confundidos com os populistas, deixaram sobre a
Rsْ sia afirmações muito semelhantes às que
Máriategui fez sobre o Peru. No Prefácio à edição de
1882 nesse país do Manifesto Comunista, observam
que:
“Mas isto, do mesmo modo que o estímulo que se
presta ao livre ressurgimento do povo indígena, à
manifestação criadora de suas forças e espírito
nativos, não significa em absoluto uma romântica e
anti-histórica tendência de reconstrução ou
ressurreição do socialismo incaico, que
correspondeu a condições históricas completamente
superadas e do qual somente restam, como fator
aproveitável dentro de uma técnica de produção
perfeitamente científica, os hábitos de cooperação e
socialismo dos camponeses indígenas. O socialismo
pressupõe a técnica, a ciência, a etapa capitalista; e
não pode admitir o menor retrocesso na aquisição
das conquistas da civilização moderna, senão, pelo
contrário, a máxima e metódica aceleração da
24
incorporação destas conquistas à vida nacional...”
“O Manifesto Comunista propôs-se como tarefa
proclamar a desaparição próxima e inevitável da
moderna propriedade burguesa. Mas na Rússia, ao
lado do florescimento febril da velhacaria capitalista
e da propriedade territorial burguesa em vias de
formação, mais da metade da terra é propriedade
comum dos camponeses. Cabe, pois, a pergunta:
poderia a comunidade rural russa – forma por certo
já muito desnaturada da primitiva propriedade
comum da terra – passar diretamente à forma
superior da propriedade coletiva, à forma comunista
ou pelo contrário, deverá primeiramente passar pelo
mesmo processo de dissolução que constitui o
desenvolvimento histórico do Ocidente?
A única resposta que hoje se pode dar a esta pergunta
é a seguinte: se a revolução russa dá o sinal para uma
revolução proletária no Ocidente, de modo que
ambas se complementem, a atual propriedade
comum da terra na Rússia poderá servir de ponto de
28
partida para uma evolução comunista”.
Desta forma, me parecem equivocadas as
comparações com o populismo russo. Nos Sete
ensaios, são feitas menções ao histórico russo, o que
Marx, em sua célebre correspondência com
Vera Zasulich já apontara nos anos anteriores a
potencialidade da mir para um desenvolvimento
23
Idem, p. 74.
Idem, p. 78.
25
MARIÁTEGUI, J.C. op. cit. (1975), p. 31.
26
Idem, p. 44.
24
27
Idem, p. 60.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich Manifesto do partido comunista. Rio de
Janeiro: Vitória, 1960. p. 15.
28
História & Luta de Classes - 25
direto do socialismo, enquanto Engels seguiria
debatendo o seu papel no processo russo, mesmo
mantendo suas diferenças com populistas e
anarquistas.
Portanto, entendo que Mariátegui conseguiu de
forma coerente e original aplicar o método marxista
para propor uma alternativa socialista para Peru. Isso,
apesar de algumas imprecisões conceituais como o
emprego do termo “feudal” para essa estrutura ou as
poucas informações sobre o passado incaico. Ao
analisar as estruturas e o processo histórico de seu
país, tornou a teoria um instrumento útil para a
interpretação e ação revolucionárias e não seguiu a
tendência dominante de tentar adaptar a realidade a
uma teoria universal acabada. Com isso, sua obra se
destaca na trajetória do pensamento social de Nossa
América.
Considerações finais: apontamentos sobre um
possível diálogo
Se o século XX começou com a marca de
Astuparia e Rumimaqui, no atual vemos um
verdadeiro “redespertar indí gena”, em que
assumiram definitivamente um papel protagônico nas
29
lutas emancipatórias de Abya Yala os descendentes
dos seus primeiros habitantes. Dos levantes no
Equador na década de 1990, às “comemorações” dos
500 anos de invasão européia em diversos países, da
insurreição zapatista de 1994, ao complexo processo
boliviano, a temática indígena se impôs novamente
como uma questão fundamental a se levar em conta
para qualquer tentativa de solucionar as graves
contradições do continente. São milhares de quechas,
ayamaras, tzeltales, zapotecas, tojolobales,
lancadones, mapuches, guaranis, kunas, mayas e
inúmeras etnias ou nacionalidades que em todo o
continente se organizaram em congressos,
confederações, entidades campesinas, partidos, para
exigir a reparação da enorme dívida histórica e lutar
pela construção de novas relações sociais.
Nesse quadro, Mariátegui merece ser revisitado,
já que suas palavras parecem ecoar em diversos
processos que hoje movem o continente. Seu projeto
foi interrompido prematuramente, quando a morte
coincidiu com o advento das imposições e imposturas
stalinistas. Porém, a versatilidade de sua obra, assim
como o caráter aberto e de disposição ao diálogo das
experiências atuais parecem fornecer canais propícios
para o pretendido encontro. Este pode ter pontos de
tensões, mas por isso mesmo será certamente rico e
29
Denominação dada pelo povo kuna (Panamá) ao continente, adotada pelos
movimentos indígenas atuais. Significa “Terra Madura”.
produtivo, num momento em que os diferentes
movimentos indígenas começam a avançar por
caminhos diversos, que vão da condução da máquina
estatal (Bolívia) ao protagonismo no debate sobre um
novo projeto nacional, por fora dos aparatos oficiais
(México); passando por experiências frustradas de
poder e iniciativas de reorganização (Equador). Tudo
isso deixa o futuro indefinido para além da certeza de
que eles vieram pra ficar, o que mais uma vez ressalta
a importância de buscar ferramentas explicativas.
Se Mariátegui colocava no centro da
problemática indígena a questão da terra, hoje esse
ainda é um ponto nevrálgico do conflito, como
atestam as inúmeras organizações camponesas
compostas majoritariamente por indígenas. Mas estes
ampliam o conceito de luta pela terra, colocando na
pauta a defesa do território, a mãe terra – Pachamama
– que provém o sustento coletivo e é elemento-chave
da identidade cultural. Nessa perspectiva, não está só
a preocupação com a terra como fonte de sustento,
mas com o território como parte da vida comunal e
portanto a defesa intransigente dos recursos naturais.
Enquanto o marxista apontava a insuficiência da
nação peruana, os movimentos atuais denunciam as
fraturas de quase 200 anos de exclusão dos “projetos
de nação” e se afirmam sem pedir licença na disputa
de projeto de Estados que foram constituídos
e sustentados historicamente pela dinâmica
colonialista. No México, os zapatistas ecoaram a
demanda por “autonomia”, que hoje a constroem sem
esperar a autorização dos poderes constituídos.
No Equador, desenvolveram o conceito de
“plurinacionalidade” no centro de sua proposta de
refundação do Estado. Em ambos os casos, se
subverte o conceito liberal de nação.
Outro tema recorrente na análise mariateguiana
é a força do gamonalismo, representante do “sistema
feudal”, ainda que numa realidade em que diferentes
sistemas se sobrepunham. Apesar das inúmeras
transformações no mundo rural andino, a leitura da
fusão de arcaico e moderno, recorrente nas
interpretações sobre países periféricos, preserva ainda
atualidade, se refletindo ao longo do século XX no
avanço da modernização conservadora e nos debates
atuais sobre o colonialismo interno, denunciado pelos
30
movimentos indígenas e a colonialidade.
Por último, há o conceito de “mito”, que já me
referi e que deixo aqui apenas como interrogação
sobre sua aplicabilidade às propostas atuais. Até que
ponto esse conceito não faz sentido quando os
30
Nos últimos anos, pesquisadores de diferentes países como Pablo González
Casanova, Anibal Quijano, Enrique Dussel e Edgardo Lander trouxeram ricas
contribuições sobre o tema.
26 - Mariátegui e as raízes da rebelião indígena
zapatistas afirmam terem se levantado em nome de
500 anos de luta ou as rebeliões evocam a figura de
Tupac Katari na Bolívia e Tupac Amaru no Peru?
Esses exemplos são apenas referências breves a
possibilidades de um diálogo contemporâneo com a
obra de José Carlos Mariátegui. Eles mostram que, de
maneira crítica e sem buscar um modelo fechado, é
possível encontrar diversos pontos vigentes para
auxiliar a compreensão dos processos deste
continente que continuam a instigar e desafiar seus
intérpretes. E na questão indígena, suas reflexões
se apresentam de forma mais rica e original. Os
movimentos recentes têm o mérito inovador de
produzir um discurso reflexivo próprio e em grande
medida prescindindo da academia e de intelectuais
“de fora” para criar uma interpretação sofisticada do
seu próprio significado, seus conceitos e demandas.
No entanto, e talvez justamente por isso, é possível
buscar chaves interpretativas que, de outros ângulos,
dialoguem criticamente com as teorias produzidas
nesses e por esses movimentos. Não com o sentido de
se sobrepor a elas, corrigi-las ou desqualificá-las, mas
testando suas possibilidades, buscando inseri-las em
um ponto de vista totalizante, ampliando suas
possibilidades de aplicação. E nesse esforço, a
contribuição de um socialista peruano do século
passado parece ser muito produtiva.
História & Luta de Classes - 27
O Populismo e a Hegemonia
Burguesa na América Latina
1
Gilberto Calil2
O
conceito de populismo é objeto de um
vasto debate historiográfico, no qual se expressam
desde posições que defendem o abandono do conceito
até autores que o utilizam em uma acepção
demasiadamente ampla, englobando processos
sociais completamente distintos. A primeira posição–
constituída a partir de uma perspectiva claramente
conservadora -, pode ser encontrada nos diversos
artigos reunidos no livro O populismo e sua história:
3
debate e crítica. A segunda tem como defensor mais
destacado Ernest Laclau. Sua proposição é de um
conceito que abarque simultaneamente movimentos
como o narodniki russo, o agrarismo dos pequenos
proprietários do oeste dos Estados Unidos no século
XIX e os diferentes populismos latino-americanos do
século XX:
Se se afirma que entre o Varguismo, o movimento de
William Jennings Bryan e o Narodnichestvo há pelo
menos um elemento em comum, e que este elemento
é o populismo, é evidente que sua especificidade terá
de ser procurada fora, e não a partir das bases desses
movimentos, que são totalmente diferentes. Se, por
outro lado, se restringe o uso do conceito a
movimentos com uma base social semelhante, ter-seá deslocado, ilegitimamente, o campo de análise:
estaremos tentando explicar um fenômeno distinto
desse “algo em comum”, presente em movimentos
4
sociais diversos.
Parece-nos necessário questionar se este “algo
em comum” é suficiente para sustentar a construção
de uma categoria teórica. Que sentido há em afirmarse que o elemento em comum “é o populismo”, antes
mesmo de defini-lo? A pressuposição acerca da
existência deste “elemento em comum” revela-se
arbitrária, como se percebe pela generalidade da
definição apresentada por Laclau: “Nossa tese é que o
populismo consiste na apresentação de interpelações
popular-democráticas como um conjunto sintético5
antagônico com relação à ideologia dominante”,
interpelações estas que seriam provenientes das mais
diferentes classes sociais. Esta definição genérica
permite a Laclau definir o socialismo como “a forma
mais elevada de populismo”: “A dialética entre o
povo e as classes encontra aí o momento final da sua
unidade. Não há socialismo sem populismo. Esta é a
profunda intuição presente, de Mao a Togliatti, e em
todas as tendências do marxismo que, de posições
políticas e tradições culturais bem diversas, tentaram
6
superar o reducionismo classista”. Outro autor que
sustenta um conceito de populismo extremamente
amplo é Eduardo Gonzáles Calleja. Para ele, seriam
populistas “uma série muito heterogênea de
movimentos nacional-populares dos países em vias
de desenvolvimento (especialmente nas áreas
latinoamericana e africana) influídos por ideologias
antiliberais de caráter híbrido nacionalista, socialista
ou fascista”. Com base nesta definição, o autor inclui
a Falange Espanhola no rol dos movimentos
7
populistas.
Em sentido contrário, entendemos que a
avaliação do conteúdo social é deve ser o ponto de
partida para a avaliação de um fenômeno social.
Nesse sentido, é necessário concordar com Armando
Boito, quando lembra os fenômenos agraristas do
século XIX tem conteúdo social claramente distintos
1
Este artigo foi produzido a partir de uma seção do primeiro capítulo da Tese
de Doutoramento defendida junto à UFF em 2005, sob orientação da Profa.
Dra Virgínia Fontes. CALIL, Gilberto. O integralismo no processo político
brasileiro – a trajetória do Partido de Representação Popular (1945-1965):
Cães de guarda da ordem burguesa. Tese de Doutorado em História. Niterói:
UFF, 2005. 2 volumes.
2
Professor do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História,
Poder e Práticas Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Doutor
em História Social (UFF). [email protected]
3
FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
LACLAU, Ernest. Política e ideologia na teoria marxista. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1978, p. 151.
5
Idem, ibidem, p. 179.
6
Idem, ibidem, p. 202. Grifo meu.
7
GONZÁLEZ CALLEJA, Eduardo. Populismo o captación de elites? Luces y
sombras en la estrategia del Servicio Exterior de Falange Española. In:
ALVARES JUNCO, José & GONZÁLES LEANDRI, Ricardo. El populismo
en España y América. Madrid: Catriel, 1994. p. 61-90, p. 61.
4
28 - O Populismo e a Hegemonia Burguesa na América Latina
do populismo latino-americano: “Tanto o movimento
russo quanto o norte-americano são, portanto,
movimentos de resistência ao desenvolvimento do
capitalismo, que procuram preservar a pequena
produção camponesa. O populismo, ao contrário,
articulou-se no Brasil com a política de
industrialização capitalista, pleiteando, no interior das
forças pró-industrialização, uma política social que
contemplasse os interesses econômicos dos
8
trabalhadores assalariados urbanos”. Boito aponta as
conseqüências das propostas generalizadoras: “O
populismo permanece, nessa caracterização, sem um
conteúdo de classe definido e o grau de generalidade
do conceito permite que os autores que o
utilizam empreguem-no tanto para caracterizar o
narodnichestvo – o chamado populismo russo,
movimento inspirado num socialismo de base
camponesa – quanto para caracterizar o varguismo no
9
Brasil ou o peronismo na Argentina”. As explicações
tradicionais acerca do populismo latino-americano,
de corte funcionalista – dentre as quais se destacam as
de Gino Germani e Torcuato di Tella -, igualmente
não caracterizam o populismo pelo seu conteúdo de
classe, mas, ao contrário, “partem do pressuposto de
que o populismo ocorre numa situação de ‘transição’,
isto é, na passagem da assim chamada sociedade
tradicional – agrária, pré-capitalista, atrasada – para a
sociedade moderna – capitalista, urbana e
10
industrial”. Para eles, os populismos “seriam
fenômenos socioculturais e políticos fundamentais e
característicos da época de transição da sociedade
11
tradicional à sociedade urbano-industrial”. Além
disso, tomando como referencial a democracia
liberal, terminam por considerar o populismo “como
um desvio no que deveria ser a evolução natural ou
12
desejável, para o regime democrático”. Nesta
proposição, a “modernização” é tomada como
objetivo naturalizado, que obscurece as contradições
e antagonismos, permitindo, mais uma vez, assimilar
em uma mesma categoria fenômenos diversos a partir
de traços organizacionais em comum.
Também as teorias que tratam o populismo
como um “estilo político” ou como “fenômeno
carismático”, não permitem a identificação de sua
base de classe, conduzindo à qualificação de diversos
movimentos como populistas, e inclusive assumindo
a existência de um “populismo de esquerda” e um
“populismo de direita”. A presença de uma liderança
carismática configuraria o aspecto “pré-político” do
populismo (justificando sua qualificação como
anomalia) e uma marca do atraso das relações
política, além do que “não seria uma política com
conteúdo de classe determinado, mas, justamente,
uma política personalista que uniria o líder
carismático à massa, isto é, a um conglomerado de
indivíduos cuja posição política não decorreria de sua
13
situação de classe”. Desta forma, como lembra
Décio Saes, “a identificação do populismo como um
estilo político preciso, fundado em elementos como a
demagogia, o paternalismo, o carisma ou o apelo
emocional, poderia induzir-nos a admitir a existência
14
de um ‘populismo de direita’”. A imprecisa
contraposição esquerda / direita termina, desta forma,
sobrepondo-se à definição de conteúdo social
concreto, com o que são classificadas como
“populistas” lideranças políticas que sustentam os
mais distintos projetos sociais. Assim, no caso
brasileiro, por exemplo, além das lideranças
diretamente associadas ao projeto varguista, são
classificados como populistas, dentre outros,
Adhemar de Barros, Miguel Arraes e até mesmo
Jânio Quadros e Carlos Lacerda: Weffort considera
15
Barros e Quadros como “populistas notórios”; Boito
considera Jânio Quadros um “populista de direita”,
tendo em vista que “ao longo da história do janismo, a
proteção dos trabalhadores foi quase sempre se
16
confinando ao terreno do discurso”; Edgard de
Barros propõe que “o estilo autoritário, moralista e
extremamente personificado de Jânio Quadros
evocava um populismo de direita – militarista e
17
associado aos grandes grupos empresariais”; e Guita
Debert analisa a trajetória de quatro lideranças que
expressam projetos sociais distintos, sob o mesmo
marco do populismo: Adhemar de Barros, Miguel
18
Arraes, Carlos Lacerda e Leonel Brizola.
Consideramos, ao contrário, que a percepção do
populismo como um “estilo de condução das massas”
e a qualificação como “populistas” de lideranças com
projetos sociais claramente diversos retira do
conceito qualquer conteúdo social efetivo.
Outro elemento presente em diversas análises é a
referência ao caráter pluriclassista da base social de
apoio do populismo como pretexto para a tentativa de
desqualificação da análise marxista e, igualmente,
8
BOITO, Armando. O sindicalismo de Estado no Brasil: uma análise crítica
da estrutura sindical. São Paulo: Hucitec / Campinas: Unicamp, 1991, p.77.
9
Idem, ibidem, p. 67.
10.
PRADO, Maria Ligia. O populismo na América Latina. São Paulo:
Brasiliense, 1981, p. 10.
11.
IANNI, op. cit., Octávio. A formação do Estado populismo na América
Latina. 2ª edição. São Paulo: Ática, 1989, p. 20.
12
Idem, ibidem, p. 25.
13
BOITO, op. cit., p. 67.
14
SAES, op. cit., p. 91.
Weffort refere-se à “vitória de um populismo notório como Adhemar de
Barros, nas eleições de 1962 para governador de São Paulo, derrotando aliás
um outro populismo tão notório como Jânio Quadros”. WEFFORT, O
populismo..., op. cit., p. 25.
16
BOITO, op. cit., p. 73.
17
BARROS, Edgard Luis. O Brasil de 1945 a 1964. São Paulo: Contexto,
1990, p. 53.
18
DEBERT, Guita. Ideologia e populismo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.
15..
História & Luta de Classes - 29
para rejeitar o reconhecimento de seu conteúdo social.
Isto se encontra, por exemplo na posição de José
Alvarez Junco:
“Infelizmente, também não funciona o recurso,
aportado em seu momento [sic] pelo materialismo
histórico para superar os limites da interpretação
política tradicional, a análise dos ‘interesses
materiais’ que se supõe unirem e lançarem à ação aos
componentes de um movimento social. Porque
tampouco recrutam aderentes de uma única classe
social ou grupo com interesses e reivindicações
comuns, mas se compõe de um magma difícil de
delimitar socialmente, em muitos casos uma
verdadeira radiografia da coletividade histórica em
19
questão”.
Ainda mais explicitamente, o autor afirma que
“o chamamento populista é ‘interclassista’, como se
observou tantas vezes, o que significa que fracassa
com ele a análise em termos de interesses ou luta de
20
classes”. Tal proposição parte, desta forma, da
composição social “interclassista”, para concluir–
absurdamente – pela inexistência de um projeto social
ou de interesses de classe expressos no populismo.
Nossa premissa para a discussão em torno do
populismo latinoamericano é, ao contrário, o
entendimento de que ele deve ser avaliado a partir de
seu conteúdo social histórico concreto, o que implica
em reconhecer os interesses de classe que expressou e
o projeto social que sustentava. Desta forma, uma
primeira definição que se torna necessária é a rejeição
das alternativas que propõe uma definição conceitual
que unifique fenômenos com distintos conteúdos
sociais, produzidos em épocas distintas e em
sociedade com grau de desenvolvimento
absolutamente diverso. A possibilidade de
compreensão do conteúdo social do populismo se dá,
portanto, na medida em que delimitamos a
abordagem à América Latina, em especial no período
compreendido entre a Crise de 1929 e a afirmação
plena de um modelo de desenvolvimento associadodependente, nos anos 60. Como indica Ianni, foi nos
governos de Getulio Vargas, no Brasil (1930-1945 e
1950-1954), e Juan Domingo Perón, na Argentina
(1945-1955) e de Lázaro Cárdenas, no México (193419
ALVAREZ JUNCO, José. El populismo como problema. In: ALVARES
JUNCO, José & GONZÁLES LEANDRI, Ricardo, op. cit., p. 11-38. p. 15.
20
Idem, p. 17
21
O historiador Felipe Demier sustenta que a teoria do populismo de Ianni e
Weffort, em vários aspectos, retoma proposições desenvolvidas por Leon
Trotsky. Segundo o autor, estes autores “se omitiram de reconhecer sua dívida
intelectual com o mesmo”. De acordo com ele, os dois cientistas sociais
brasileiros vislumbraram nos governos que se sucederam após a ascensão de
Getúlio Vargas ao poder em 1930 características que, de antemão, haviam
sido expostas por Trotsky como presentes nos governos latino-americanos
que possuíam um caráter‘semibonapartista democrático’ (ou
‘semidemocrático’), em especial o de Lázaro Cárdenas”. DEMIER, Felipe.
1940) que o projeto populista foi colocado em prática
de maneira plena.
Os estudos clássicos sobre o populismo
latinoamericano, dentre os quais se destacam as obras
21
de Weffort e Ianni, indicam importantes elementos
para o dimensionamento do conteúdo do populismo,
em oposição às explicações tradicionais. De acordo
com Weffort, a emergência do populismo
corresponde a um contexto de crise de hegemonia, no
qual nenhuma fração da classe dominante tem
condição de se impor isoladamente: “Encontramonos, pois, diante da seguinte situação: nenhum dos
grupos (classes médias, setor cafeeiro, setores
agrários menos vinculados à exportação) detém com
exclusividade o poder político. Esta circunstância de
compromisso abre a possibilidade de um Estado,
entendido como um órgão (político) que tende a
afastar-se dos interesses imediatos e sobrepor-se ao
22
conjunto da sociedade como soberano”. Esta
situação conduziria a um “Estado de Compromisso”:
“Todos os grupos, inclusive as massas populares,
participam direta ou indiretamente do poder; não
obstante, como nenhum deles possui a hegemonia,
todos o vêem como uma entidade superior, do qual
23
esperam solução para todos os problemas”. Isto se
daria através de um “complexo sistema de alianças
24
entre grupos ou setores de classes diferentes”. Em
síntese, para Weffort, “se trata de um ‘Estado de
Compromisso’ que é ao mesmo tempo um ‘Estado de
massas’, expressão da prolongada crise agrária, da
dependência social dos grupos de classe média, da
dependência social e econômica da burguesia
25
industrial e da crescente pressão popular”. Ianni, por
sua vez, analisa de maneira mais cuidadosa a crise
hegemônica e a “aliança de classes”, propostos por
Weffort. Embora reconhecendo que “na época da
crise do poder oligárquico nenhuma das 'novas
classes' sociais parece estar em condições de assumir
o poder e impor o seu mando às outras classes,
26
definindo a feição do Estado”. Também Maria Ligia
Prado considera que o populismo afirmou-se no
Brasil e na Argentina “como resposta a um vazio no
poder correspondente à quebra de hegemonia política
27
oligárquica pós-crise do modelo agro-exportador”.
Ianni sustenta que “a aliança das ‘novas’ classes
Trotsky e os estudos sobre o populismo brasileiro. Outubro, São Paulo, n. 13,
2005, p. 59-78. p. 77 e 61-62..
WEFFORT, O populismo..., op. cit., p. 53.
23.
Idem, ibidem, p. 62.
24.
Idem, ibidem, p. 113.
25.
Idem, ibidem, p. 79.
26
IANNI, A formação..., op. cit., p. 32. Segundo Ianni, no Brasil, “todos os
anos 1930-1964 estão marcados por essa crise de hegemonia. E o populismo
que se forma desenvolve e transforma ao longo desses anos é uma expressão
dessa crise de hegemonia”. IANNI, Octávio. O ciclo da revolução burguesa.
Petrópolis: Vozes, 1984, p. 81.
27
PRADO, op. cit., p. 73.
22
30 - O Populismo e a Hegemonia Burguesa na América Latina
sociais urbanas resulta muito menos do vazio político
em que a sociedade se encontrava, devido à crise do
poder oligárquico, do que da mudança das condições
sociais, políticas e econômicas inerentes à nova
28
situação”. Critica de maneira especial o suposto
implícito de que o populismo resulta de uma aliança
entre iguais, alegando que “as camadas ou classes
sociais combinadas no populismo não são iguais,
principalmente em seu peso político específico. Elas
são heterogêneas, inclusive quanto aos graus de
desenvolvimento das suas consciências. Mais
que isso, nas estruturas e decisões do populismo,
a burguesia tem sempre acabado por
29
fazer prevalecerem os seus interesses”. Este
reconhecimento nos parece extremamente importante
para a caracterização do papel histórico
desempenhado pelo populismo. Ianni reconhece
ainda que “as classes assalariadas do populismo,
inclusive o proletariado, não participam da coalizão
enquanto classes sociais autônomas, organizadas
e politicamente conscientes da sua situação de
classe”.30 Tal proposição dá a dimensão exata
do caráter do “compromisso” que dá origem aos
populismos, tornando necessário investigar os
agentes sociais e os detentores da hegemonia no
interior dos movimentos populistas.
O Populismo como projeto hegemônico
Uma primeira questão que se coloca para a
avaliação do populismo enquanto projeto
de
hegemonia refere-se ao sujeito social que
sustentou o projeto populista, partindo-se do
pressuposto de que o populismo “só pode ser
compreendido adequadamente como expressão
política de interesses determinados de classe”.31
Tratando do caso brasileiro, Armando Boito
recusa a preponderância da burguesia industrial à
frente do populismo, propondo, ao contrário, que o
sujeito do populismo seria a “burocracia de Estado”:
“A definição dessa política de desenvolvimento não
foi obra da burguesia industrial. Quem define, em
última instância, a política de desenvolvimento,
isto é, a política econômica e social no decorrer do
período 1930 - 1964 é a burocracia de Estado –
as cúpulas da burocracia civil e das Forças
Armadas”.32 Assim, para ele, embora correspondendo
aos interesses da burguesia industrial, a política de
industrialização não teria sido proposta por ela,
mas pela burocracia de Estado, com apoio de setores
populares:
Entre 1930 e 1964, a política populista é, no
essencial, a política de industrialização capitalista
dirigida pela burocracia de Estado (cúpulas da
burocracia civil e das Forças Armadas), apoiada
em amplos setores das classes populares (as classes
trabalhadoras – proletariado, classe média
assalariada e pequena burguesia proprietária – que,
enquanto classes exploradas, encontram-se
excluídas do poder de Estado) e que se encontra
fora do controle das frações burguesas quem
integram o bloco no poder (conjunto heterogêneo
de classes e frações exploradoras que, enquanto
33
tais, exercem o poder de Estado).
Posição semelhante é sustentada por Weffort:
“Nessa democracia de massas, o Estado apresenta-se
de maneira direta a todos os cidadãos. Todas as
organizações importantes que se apresentam como
mediação entre o Estado e os indivíduos são, em
verdade, antes anexos do próprio Estado que órgão
efetivamente autônomo”.34 Esta posição parece-nos
operar uma desvinculação demasiadamente radical
entre a burocracia de Estado e as classes dominantes,
para além da margem de autonomia que lhe é
própria.35 A subordinação ao Estado não se verifica
historicamente nem para as classes populares, nem
para as classes dominantes. As primeiras, mesmo
quando absorveram grande parte da ideologia
populista, não deixaram de interpretá-las de acordo
com seus interesses e sua luta. Já as classes
dominantes, em momento algum delegaram
autonomia ao Estado a ponto de abrir mão ou
subordinar ao Estado seus poderosos aparelhos
privados de hegemonia. Lembre-se que quando se
sentiram ameaçadas pelo crescimento das
mobilizações populares autônomas e crescentemente
radicalizadas, as classes dominantes não tiveram
grande dificuldade para destruírem este Estado “de
compromisso”, utilizando-se das inúmeras
organizações de classe burguesas.
A proposição da burocracia de Estado como
sujeito social do populismo complementa-se com a
tese de que “a ideologia populista era uma ideologia
pequeno burguesa”, fundada no culto do Estado
protetor, isto é, na “expectativa de que o Estado tome
a iniciativa de proteger, independentemente da
correlação política de forças vigentes num momento
dado, os trabalhadores da ação dos capitalistas”,
28
IANNI, A formação...op. cit., p. 33.
Idem, ibidem, p. 38.
Idem, ibidem, p. 39.
31
WEFFORT, O populismo..., op. cit., p. 25.
32
BOITO, Armando. O golpe de 1954: a burguesia contra o populismo. 2ª
edição. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 18.
33
Idem, ibidem, p. 22.
29
30
34
Idem, ibidem, p. 57.
A respeito da margem de autonomia do Estado no capitalismo, ver
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. 3ª edição. São
Paulo: Paz e Terra, 1990. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume
3: Maquiavel: notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
35.
História & Luta de Classes - 31
através da “identificação de setores populares, não
com a pessoa do líder, mas sim com o aparelho de
Estado burguês: com a burocracia civil e militar do
Estado”.36 Nessa perspectiva, Saes avalia como
incorreta “a caracterização do populismo como uma
'ideologia burguesa'”, sustentando que “o populismo
caracteriza-se como a ideologia das camadas médias
já desembaraçadas da ascendência social das
oligarquias e politicamente representadas pelo
tenentismo nacionalista”.37 A utilização de elementos
pequeno-burgueses no discurso populista não pode,
no entanto, obscurecer o fato de que, em todos os
seus desdobramentos concretos, o populismo
efetivamente atendia aos interesses concretos da
burguesia, ainda que sua expressão tenha de dado
através de uma forma que lhe permitia disseminar-se
com eficácia no interior da pequena burguesia e de
setores da classe trabalhadora.
Nossa proposição é que o populismo
corresponde a um projeto hegemônico conduzido
pela burguesia industrial, que hegemonizou vastas
parcelas da pequena burguesia e do proletariado e
colocou o Estado a serviço de uma política de
industrialização. Nesse sentido, concordamos com
Ianni que “o populismo parece corresponder a uma
etapa específica na evolução das contradições entre a
sociedade nacional e a economia dependente. A
natureza do governo populista (que é onde se exprime
mais concretamente o caráter do populismo) está na
busca de uma nova combinação entre as tendências
do sistema social e as determinações da dependência
econômica”.38 Sua característica mais evidente é a
promoção do desenvolvimento industrial: “No que
diz respeito aos seus fins econômicos mais gerais, os
movimentos, partidos e governos populistas são
abertamente favoráveis à industrialização e à
hegemonia da indústria sobre a agricultura e a
mineração. A industrialização é encarada como
equivalente de desenvolvimento econômico em geral
e indicador de bem-estar social para o proletariado”.39
Nesse sentido, concordamos com a apreciação do
sociólogo argentino Eckart Dietrich: “A aliança
populista anti-oligárquica teve como objetivo o
desenvolvimento da economia capitalista nacional e
definiu claramente a divisão de tarefas entre sócio
maior e sócio menor: enquanto o proletariado deveria
servir como tropa de apoio, a condução política
correspondia aos setores 'dinâmicos' da burguesia
nacional”.40
A ideologia populista usualmente apresentava
seu projeto industrializante como oposto a uma ordem
atrasada representada pelo latifúndio, o que era
particularmente característico do discurso assumido
pelos partidos comunistas, que sustentavam a
tese de que o conflito fundamental era entre
a burguesia “nacional” e o latifúndio com
características “feudais” e subordinado ao
imperialismo, embasamento da tese da “revolução
por etapas”. Esta interpretação ignorava o
entendimento entre burguesia industrial e burguesia
agrária, sendo incapaz de perceber que a principal
oposição ao projeto de industrialização acelerada
provinha da burguesia comercial. Como indica
Debert, “é enganosa a atribuição de antagonismo
entre burguesia agrária e burguesia industrial, por um
lado, e por outro, entre estas últimas e o
imperialismo”.41 Para Régis de Castro Andrade, “a
República populista apresenta-se imediatamente
como uma forma de supremacia burguesa baseada na
aliança entre a burguesia industrial e a oligarquia
rural, cuja peculiaridade institucional foi a inserção de
um sistema eleitoral dentro das estruturas do Estado
Novo”.42 Os termos desta “aliança” no processo
brasileiro são discutidos por Décio Saes: “A rigor, as
oligarquias e a burguesia industrial chegaram, através
da revolução de trinta, a um ‘compromisso político’.
(...) Este pacto consagrava, de um lado, a participação
da burguesia industrial no poder político, bem como
seu acesso aos instrumentos institucionais de
desenvolvimento, e, de outro lado, a manutenção da
ordem social no campo, salvaguarda da propriedade
fundiária e do estatuto das relações de trabalho”.43
Boito sustenta que era a burguesia comercial
que defendia uma política radicalmente antiindustrialista: “a grande burguesia comercial
exportadora e importadora aliada ao imperialismo
norte-americano se opõe à política econômica
industrialista que começa a tomar corpo a partir de
1930”.44
No que se refere a relação com os setores médios
e populares, o populismo constituía-se na imposição
de uma ideologia de colaboração que viabilizava sua
incorporação subordinada, consolidando a afirmação
da hegemonia burguesa:
36
aproximaciones a uma teoría del populismo. Herramienta: Revista de debate
y crítica marxista. Buenos Aires, n. 15, otoño de 2001, p. 155-164. p. 157.
41
DEBERT, op. cit., p. 19.
42
ANDRADE, op. cit., p. 60.
43
SAES, Classe média e sistema político no Brasil, op. cit., p. 95.
44
BOITO, O golpe de 1954, op. cit., p. 28.
BOITO, O sindicalismo de Estado no Brasil, op. cit., p. 70.
SAES, Décio. Classe média e sistema político no Brasil. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1979, p. 93.
38
IANNI, A formação..., op. cit., p. 9.
39
Idem, ibidem, p. 108.
40.
DIETRICH, Eckart. Populismo y la izquierda o el populismo de izquierda:
37
O populismo se apresenta como forma objetiva de
encaminhamento da supremacia burguesa num
contexto de crise de hegemonia. No nosso entender o
32 - O Populismo e a Hegemonia Burguesa na América Latina
que se chama de república populista não é outra coisa
senão, pelo menos de forma imediata, uma forma de
supremacia burguesa em realização. Essa
supremacia burguesa está baseada, de um lado, nas
alianças políticas entre burguesia industrial e
oligarquia agrária e, de outro, na incorporação de
amplos setores das camadas populares a esse pacto
de dominação burguesa. (...) Em nenhum momento
devemos perder de vista que estamos analisando a
ideologia populista como forma objetiva de
encaminhamento da supremacia burguesa num
45
contexto de crise de hegemonia.
Nesse sentido, como afirma Andrade, “o
populismo é uma forma de hegemonia, não um
conjunto de alianças de classe, muito embora as
alianças de classe estejam presentes em todas as
ordens hegemônicas”,46 o que tornava necessário uma
combinação peculiar de coerção e cooptação capaz de
“preservar o bloco político-ideológico, isto é, não
desacreditar a idéia do Estado neutro e benevolente”,
para o que era necessário “a preservação e
encobrimento do governo direto da burguesia
exercido através do comando burguês sobre os
poderosos órgãos econômicos do Executivo e sobre
os ministérios”.47 Por um lado, impunha obstáculos ao
exercício de uma repressão aberta e generalizada
sobre o conjunto da classe trabalhadora mas, por
outro, determinava uma repressão seletiva contra os
setores populares que se orientavam por uma postura
classista, não se subordinando à ideologia e à prática
populista. Nas palavras de Dietrich, “a perseguição
ideológica e a repressão física do classismo políticosindical é apenas a cara excludente daquela estratégia
integradora”.48
Um dos elementos centrais da ideologia
populista é sua pretensão em apresentar-se como
nacionalista, cujo efeito evidente era “obscurecer a
divisão real da sociedade em classes com interesses
sociais conflitantes e estabelecer-se a idéia do povo
(ou da nação) como uma comunidade de interesses
solidários”.49 Assim, mesmo a chamada “esquerda
populista” reconhecia na burguesia industrial um
caráter nacional e antiimperialista absolutamente
inexistente, pois ela “nunca se voltou contra a
associação com o capital estrangeiro”.50 Como indica
Boito, “o principal núcleo da burguesia industrial
brasileira, longe de pleitear um suposto ‘projeto de
desenvolvimento autônomo’, procurava atrair o
45.
CERQUEIRA Filho, Gisálio. A “questão social” no Brasil: crítica do
discurso político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, p. 147 e 170.
46
ANDRADE, op. cit., p. 66.
47
Idem, ibidem, p. 43.
48
DIETRICH, op. cit., p. 157.
49
WEFFORT, O populismo na política brasileira, op. cit., p. 178.
50
ANDRADE, op. cit., p. 73.
capital imperialista para os setores de ponta da
indústria de transformação, como no caso da indústria
automobilística”.51 Do ponto de vista ideológico, no
entanto, o nacionalismo foi bastante eficaz,
viabilizando, por exemplo, a crença em que
Vargas sustentava um projeto consistentemente
antiimperialista, e obscurecendo o sentido
internacionalizante do Plano de Metas de Juscelino
Kubitschek. No que se refere ao segundo governo
Vargas, tal ideologia omite “a subordinação da
orientação geral dessa política aos interesses do
capital imperialista. Ao mesmo tempo em que
sanciona o monopólio estatal do petróleo, Vargas
esforça-se para atrair o capital estrangeiro para os
setores de ponta da indústria brasileira”.52 Quanto a
Kubitschek, seu grande êxito ideológico foi conseguir
omitir o “processo de implantação de uma dinâmica
monopolista submetida a centros externos,
a verdadeira alavanca de um roteiro de
desenvolvimento onde o capital nacional
subordinava-se ao estrangeiro”.53 Este êxito é
analisado por Pedro Tortima:
O desenvolvimentismo enquanto ideologia e prática
político-econômica representou uma das mais
expressivas manifestações da classe dirigente. Fiéis,
no entanto, à tradição de procurar fazer com que os
trabalhadores tomassem para si as reivindicações e o
discurso de seus exploradores, os donos do poder não
mediram esforços no sentido de que os mais variados
mecanismos de pressão e de controle social fossem
54
acionados.
Caracteriza-se desta forma, portanto, sua
eficácia no amortecimento dos conflitos sociais
(ainda que não logrando sua neutralização completa,
como discutiremos a seguir), ao mesmo tempo em
que viabilizava a implantação de um projeto de
industrialização em conformidade com os interesses
dos setores de ponta da burguesia brasileira.
A luta de classes sob o populismo: entre a
cooptação e a repressão
Ainda que a ideologia populista visasse
restringir a intervenção dos trabalhadores a marcos
bastante delimitados (unidade de interesses entre
as classes sociais; crença no nacionalismo;
industrialização como sinônimo de liberação
51
BOITO, O golpe de 1954, op. cit., p. 15.
Idem, ibidem, p. 15.
BARROS, op. cit., p. 45.
54
TORTIMA, Pedro. A estrutura sindical e a ordem desenvolvimentista, 19561960. In: LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. Rio de Janeiro operário: Natureza
do Estado e Conjuntura Econômica, Condições de Vida e Consciência de
Classe, 1930-1970. Rio de Janeiro: s./ed., 1992, p. 266-297.
52
53
História & Luta de Classes - 33
nacional), o processo social concreto é mais
complexo. Nesse sentido, parece-nos indevidamente
generalizador o juízo de Ianni de que “o proletariado
aceita a coalizão com outras forças sociais e
políticas, particularmente a burguesia nacional.
Aceita o nacionalismo, o desenvolvimentismo e a
industrialização, nos termos propostos pela burguesia
industrial ou seus ideólogos, como se fossem os
objetivos de toda a nação, de todo o povo e da classe
operária”.55 Isto parece ser verdade para grande parte
das lideranças sindicais, incluindo-se aquelas
vinculadas à direção dos partidos comunistas, sendo
igualmente inegável a influência da ideologia
populista em grande parte da classe trabalhadora. No
entanto, nem todos os trabalhadores assumiram os
pressupostos da ideologia populista, e mesmo dentre
os que os assumiram, uma parte os reinterpretou de
acordo com seus interesses, o que se comprova pela
permanência de fortes conflitos sociais durante todo o
período populista, como o próprio Ianni afirma: “O
sindicalismo estatal politiza o proletariado segundo as
diretrizes e os limites estabelecidos pelo regime
populista. Na prática, todavia, essa modalidade de
politização não pode impedir que as massas
populistas assimilem a seu modo a própria
experiência política”.56 Isto pode ser verificado, por
exemplo, no caso brasileiro, na constituição de um
“nacionalismo popular” que reinterpretando a
ideologia nacionalista, rompeu os limites do
nacionalismo burguês. Como indica Lúcio Flávio de
Almeida:
“A greve de 5 de julho de 1962 exprimiu e
aprofundou uma nova dimensão do nacionalismo
populista brasileiro: mobilização dos trabalhadores
por objetivos claramente políticos; mobilização não
convocada por qualquer setor dirigente do aparelho
estatal, mas por diretorias sindicais; criação, no mês
seguinte, do CGT, ou seja, de uma central sindical
nacional cuja existência se chocava com a legislação
corporativista; certa capacidade de intervenção no
sentido de alterar a correlação de forças no interior do
regime; difusão, pelos setores organizados do
movimento operário e popular, em uma conjuntura
de crise do regime, de um programa que, apesar de
suas limitações, apresentava às massas populares um
instrumento de crítica do conjunto da organização
57
social brasileira”.
Este limite da manipulação populista impunha o
estabelecimento de uma dialética de cooptação e
repressão, levando muitas vezes a atitudes ambíguas,
como intervenção de Vargas frente à greve dos 300
mil, relatada por Boito: “O governo Vargas fez tudo
para acabar com a greve, e reprimiu, de forma
violenta, algumas das ações mais ousadas
empreendidas pelos operários no decorrer do
movimento grevista. Contudo, ao mesmo tempo, o
governo (...) procurou fazer crer aos operários que
simpatizava com a greve”.58 Os marcos legais, no
entanto, seguiam adequados ao exercício da repressão
quando esta se fizesse necessária e, mesmo no
período visto como mais populista do governo
Vargas, este editou um novo decreto facilitando a
repressão: “Em janeiro de 1953, Vargas sancionou a
lei sobre os crimes contra o Estado e a ordem política
e social, prevendo a punção dos que convocassem
comícios ou reuniões a céu aberto sem a autorização
da polícia”.59 Pedro Tortima indica que também “o
clima de liberdade alardeado pelos propagandistas do
governo JK era absurdamente falso”, tendo sido
fortalecidas “três instâncias do poder repressor do
Estado: a Polícia (em especial o DOPS), o Ministério
do Trabalho e a Justiça do Trabalho”.60 Em termos
gerais, a lição é clara: “A burguesia rompe suas
alianças ‘populares’ de maneira imediata, quando
estas deixam de cumprir pelo menos com uma de suas
funções: garantir a hegemonia burguesa e domesticar
ao sócio proletário”.61 Como aponta Eduardo
Galeano, pressionada pela crescente politização e
organização autônoma da classe trabalhadora, “a
burguesia se associou à invasão estrangeira sem
derramar lágrimas nem sangue”.62 A compreensão dos
limites da cooptação e conseqüentemente, da
necessidade de fortalecimento contínuo dos
instrumentos de repressão, deve ser buscada na
realidade concreta da luta de classes do período. O
que deixa evidente que mesmo nos momentos de
maior êxito na disseminação da ideologia populista, a
consciência da classe trabalhadora não foi
completamente destruída e sua organização
autônoma não deixou de existir a despeito das
barreiras impostas pela cooptação generalizada e pela
repressão seletiva mas violenta.
55
IANNI, A formação..., op. cit., p. 75.
Idem, ibidem, p. 93.
57
ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues. O nacionalismo popular e a crise do
populismo no início dos anos 60. Lutas Sociais, São Paulo, n. 11/12, abril
2004, p. 98-108. p. 108. Grifo meu.
58
BOITO, O golpe de 1954, op. cit., p. 58.
59
RODRIGUES, Marli. A década de 50: populismo e metas desenvolvi56
mentistas no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Ática, 2000, p. 50.
TORTIMA, Pedro. A estrutura sindical e a ordem desenvolvimentista, 19561960. In: LOBO, op. cit., p. 278-279.
61
DIETRICH, op. cit., p. 162.
62
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 29ª edição. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 226.
60
História & Luta de Classes - 35
Cuba, Che Guevara e a
“exportação” da Revolução pela
América Latina
Carlos Batista Prado1
T
anto na história da América Latina quanto
na história mundial do século XX, a Revolução
Cubana foi um fenômeno imponente, principalmente
devido à natureza do seu reflexo imediato em outros
países. A vitória dos barbudos de Sierra Maestra teve
um impacto e influência enorme na história política
recente da América Latina. O modelo cubano de
revolução, por meio da luta armada, foi, na década de
1960, o referencial histórico para vários movimentos
de esquerda em países do terceiro mundo que
buscavam sua libertação do neocolonialismo.
Logo após a derrubada de Fulgêncio Batista, o
novo governo cubano se empenhou em praticar uma
política que almejava em última instância apoiar
guerrilhas em outras nações, numa tentativa de
“exportar” a revolução, principalmente para a
América Latina. Che Guevara sistematizou o método
da ação guerrilheira, fornecendo a base teórica da luta
armada. Nesse contexto, o incentivo dos cubanos a
formação de novos movimentos guerrilheiros,
desencadeou uma série de conflitos, de reações da
esquerda e dos setores conservadores das sociedades,
principalmente dos norte-americanos. A análise
dessas problemáticas constitui o objeto de estudo
deste artigo.
Uma questão de sobrevivência
Já nos primeiros meses após a vitória dos
guerrilheiros, Cuba se lançou na tarefa de apoiar
movimentos revolucionários em outros países latinoamericanos, almejava atingir também a África e a
Ásia. Os cubanos davam apoio em treinamento de
guerrilheiros, fornecimento de armas e até envio de
soldados aos países onde as guerrilhas estavam
brotando:
“Desde os primeiros dias do triunfo revolucionário,
no clima entusiasmado de Havana, se formavam
1
grupos de cubanos, juntos com gente de outras
nacionalidades, dispostos a lutar contra a ditadura
no continente, como as da República Dominicana,
Nicarágua, Haiti. Não eram iniciativas oficiais, nem
incentivadas pelo novo governo, mas o povo cubano
sentia a luta dos outros povos como continuidade
natural e parte integrante da sua luta. (...) Assim, a
solidariedade internacionalista foi desde o início,
um compromisso essencial da consciência política e
ideológica do povo cubano no processo
2
revolucionário”.
Num primeiro momento não era ainda uma
iniciativa própria e estratégica do novo governo da
ilha. Os vínculos internacionalistas entre os cubanos e
outras nações latinas já existiam desde o período de
luta contra a dominação espanhola. A independência
colonial de Cuba sempre caminhou estreitamente
ligada à luta no Haiti e em Porto Rico. Esses laços
sempre estiveram presentes e durante a luta
revolucionária, mais precisamente em 1955, quando
Fidel Castro estava no exílio e o Movimento 26 de
Julho estava se reorganizando, vários grupos de
diferentes países foram solidários a causa da
libertação de Cuba, entre eles, mexicanos e até norteamericanos.
A questão do apoio à guerrilha em outros países,
passou a ocupar cada vez mais destaque entre os
líderes da Revolução. “Desde a crise dos mísseis e a
definição do governo cubano como socialista, em
1961, a questão da exportação da revolução para os
países latino-americanos se colocou na ordem do dia,
como condição para sobrevivência e consolidação da
revolução em Cuba”.3 A “exportação” da revolução
Professor de História.
SADER, Emir. Cuba: um socialismo em construção. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 82.
3
ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. p. 14.
2.
36 - Cuba, Che Guevara e a “exportação” da Revolução pela América Latina
era uma necessidade para a manutenção do regime na
ilha. Afinal, na década de 1960, o governo cubano
passava por dificuldades políticas, sociais e
econômicas. Isso se deve ao fato de que nesse período
todos os países latino-americanos sofriram uma
sucessiva escalada de golpes militares, orquestrados
pelos norte-americanos. Salvo o México, todos os
outros países latino-americanos, influenciados pela
política hegemônica dos Estados Unidos, romperam
relações diplomáticas com a ilha.
Cuba não estava apenas bloqueada pelo vizinho
imperialista do norte, mas também estava isolada
politicamente e economicamente por todo o
continente. E é nesse sentido que a revolução
precisaria triunfar em outros países. A manutenção da
revolução cubana estava estreitamente vinculada e
dependia da luta em outras nações do ocidente, para
assim romperem com o isolamento político e com a
dependência total aos soviéticos. É dentro dessas
perspectivas que o governo cubano lançou o Projeto
Andino, expresso na máxima de Fidel Castro:
“A cordilheira dos Andes se tornará a Sierra Maestra
4
da América...”
O impacto da revolução cubana na América
Latina
A revolução cubana ao romper com a política
hegemônica norte-americana, quebrou barreiras que
pareciam consolidadas e contestou determinismos
políticos-geográficos. O escritor e sociólogo francês
Regis Debray que esteve nas montanhas bolivianas
com Che Guevara, afirma que: “Historicamente,
Cuba deu a arrancada para a revolução armada na
5
América Latina”. A vitória em Cuba, mediante a luta
armada, demonstrou para a esquerda do continente
uma possibilidade de destruir por meio da guerra de
guerrilhas um poder ditatorial e pró-imperialista.
Sobre o impacto da revolução cubana no
continente, Che Guevara ressaltou:
monopolistas estrangeiras. Somos um país pequeno
e precisamos do apoio de todos os povos
democráticos, mais particularmente da América
6
Latina”.
Nessa mesma perspectiva, Fidel Castro em
recente entrevista concedida a Ignácio Ramonet
declarou que: “É preciso entender que a nossa vitória
de janeiro de 1959, estava longe de significar o fim dos
combates armados. A traição imperialista nos obrigou
a ficar a postos. Muitos dos nossos compatriotas
tiveram de continuar dando a vida pela defesa da
Revolução, tanto em Cuba como em outras terras do
7
mundo, cumprindo seus deveres sagrados.”
A revolução cubana e sua posterior declaração
de regime socialista, não surpreenderam apenas o
governo dos Estados Unidos, mas também todos os
movimentos e partidos da esquerda latino-americana:
“Já a Revolução Cubana (...) pôde estender sua
influência para além dos marcos estritos da esquerda
tradicional – em particular dos PCs – e, mesmo sem
contar com instrumentos orgânicos como as
Internacionais, teve efeitos concretos mais
profundos e duradouros sobre o continente latinoamericano, maiores, em termos relativos, do que os
da Revolução Russa sobre a Europa. Justamente
pela radiação de seus efeitos em múltiplas direções,
é difícil delimitar precisamente sua extensão e
dimensões, mas pode-se dizer que nenhum país do
continente passou incólume pelo surgimento da
Revolução Cubana, e provavelmente a história das
esquerdas de cada país tenha nele um marco
8
decisivo em sua trajetória”.
“A revolução não se limita à nação cubana, ela já
alcançou a consciência da América e alertou
gravemente os inimigos dos nossos povos. Por isso
advertimos claramente que qualquer tentativa de
agressão será repelida com as armas na mão. O
exemplo de Cuba aumentou mais ainda a
efervescência em toda a América Latina e em todos
os países oprimidos. A revolução colocou em xeque
os tiranos latino-americanos, porque são inimigos
dos regimes populares, assim como as empresas
O governo cubano empenhado em consolidar o
movimento guerrilheiro como estratégia de libertação
do continente, organizou três encontros importantes.
O primeiro foi chamado de Segunda declaração de
Havana, ocorreu em fevereiro de 1962, no período
entre a invasão da Baía dos Porcos, em abril de 1961,
e a crise dos mísseis, em outubro do ano seguinte.
Esse evento é importante, pois acorre num período de
definições e seu advento marcou a opção de Cuba pela
“exportação” da revolução. O encontro contou com a
presença de vários líderes de movimentos sociais
latino-americanos. A Segunda declaração de Havana
foi um chamado aos movimentos de esquerda do
continente a optarem pela luta armada, era hora de se
posicionarem claramente frente ao opressor e a guerra
de guerrilhas era a estratégia de luta a ser seguida.
CASTRO, Fidel. apud SADER, Eder (Org.): Che Guevara: Política. São
Paulo: Ática, 1981, p. 56.
5.
DEBRAY, Regis. Revolução na revolução. São Paulo: Centro Editorial
Latino Americano, 1980. p. 11.
6.
GUEVARA, Che. Apud SADER, Eder (Org.): Che Guevara: Política op. cit.,
p. 80.
RAMONET, Ignácio. Fidel Castro: Biografia a duas vozes. São Paulo:
Boitempo, 2006, p. 283.
8
SADER, Emir. Cuba no Brasil: Influência da Revolução Cubana na esquerda
brasileira. In: REIS FILHO, Daniel Aarão (Org.). História do marxismo no
Brasil: O impacto das revoluções. São Paulo: Paz e terra, 1991. vol. 1, p. 161.
4.
7.
História & Luta de Classes - 37
O segundo ocorreu em janeiro de 1966, Havana
foi à anfitriã da Tricontinental, uma conferência que
reuniu 743 delegados da América Latina, África e
Ásia e ainda contou a presença de observadores
russos e chineses. A problemática em pauta foi à
unificação dos povos dos três continentes pela
libertação frente ao imperialismo. Na abertura do
encontro foi feita a leitura de uma carta de Che
Guevara, que nesse momento em questão, já havia
deixado suas responsabilidades com o governo
cubano e lutava no Congo, no continente africano. O
texto de Che, intitulado, “Mensagem aos povos do
mundo através da Tricontinental”, ressaltava as
condições favoráveis à luta armada nos três
continentes e o exemplo do povo vietnamita, na luta
contra a exploração imperialista norte-americana. Eis
duas passagens:
“Os povos dos três continentes observam e
aprendem sua lição no Vietnã. (...) não temer a
guerra é a resposta justa. Atacar dura e
ininterruptamente em cada ponto de confrontação
9
deve ser tática geral dos povos.”
“O elemento fundamental dessa finalidade
estratégica será, então, a libertação real dos povos;
libertação que se realizará através da luta armada, na
maioria dos casos, e que terá, na América, quase que
indefectivelmente, a propriedade de se converter em
10
uma revolução socialista.”
Essas duas citações de Che Guevara deixam
evidentes as discussões da agenda do encontro e seus
objetivos. Seguindo a mesma orientação, o terceiro
evento foi a Organização Latino-Americana de
Solidariedade. Este ocorreu no ano seguinte, entre 31
de julho e 10 de Agosto. “A Olas se reuniu sob o lema
‘O dever de todo revolucionário é fazer a revolução’,
que já continha em si uma crítica aberta aos partidos
comunistas latino-americanos e outras formas
reformistas.”11 Era uma censura aos revolucionários
que adotavam práticas e métodos burocráticos ou
economicistas que tinham como resultado frear e
adiar constantemente o clímax revolucionário.
As teses da III Internacional colocavam em
destaque o papel que os comunistas teriam na
vanguarda do processo revolucionário, organização
da classe operária e derrubada da burguesia. No
entanto, “a burocratização da III Internacional sob
Stalin desvirtuou essa tática para a chamada
‘revolução em duas etapas’, colocando as forças do
proletariado como auxiliares de pretensas burguesias
progressistas e nacionalistas em ruptura como
imperialismo. Somente numa segunda etapa, quando
estivesse consumada a revolução democrática e
nacional, os comunistas poderiam avançar as
bandeiras da revolução socialista.”12 Contrapondo
essa tese, a palavra de ordem que emanava de Cuba
pela América Latina, indicava que era hora de uma
verdadeira ação revolucionária. A sigla Olas, em
espanhol significa “ondas”. Nessa perspectiva, ela
expressa o seu anseio maior, ou seja, a organização
pretendia banhar a América com a Revolução.
A experiência cubana deu novo impulso à luta
de classes na América Latina, sua influência
transcendeu aos partidos comunistas de orientação
soviética, e foi seguida por vários militantes de
esquerda em diversos países. Um dos movimentos
que aderiram à luta armada camponesa foi o
Trotskista. O SU (Secretariado Unificado da IV
Internacional) na década de 1970, sobretudo, a partir
do seu IX Congresso, em 1969, impressionado e
influenciado pela experiência cubana e pela guerrilha
vietnamita, negou o Programa de Transição (1938)
de Trotsky e passou a apoiar a guerrilha camponesa:
“A mais significativa e bem sucedida experiência
guerrilheira dos trotskistas foi a do PRT-Santucho que
criou o ERP na Argentina”.13
Nesse ínterim, a experiência da luta cubana se
tornou o novo paradigma revolucionário. Para muitos
movimentos que lutavam contra a manutenção da
ordem estabelecida, Cuba era um exemplo a ser
seguido. Assim, recebeu de seus adeptos latinoamericanos, o título de “primeiro território livre da
América”. Como resultado das ações do governo
cubano em meados da década de 1960, surgiram
ações guerrilheiras em quase todos os países da
América Latina. Nesse período, Cuba teria treinado
de 2.000 a 3.000 guerrilheiros. Os focos da luta
armada surgiram na Venezuela, Guatemala, Peru,
Colômbia, Bolívia, El Salvador, Uruguai, Brasil,
Argentina e na Nicarágua com os sandinistas.
No Brasil, por exemplo, o governo cubano
apoiou os movimentos guerrilheiros em três
momentos diferentes. Primeiramente, num período
anterior ao golpe militar de 1964, Cuba estabeleceu
contato com importantes dirigentes das Ligas
Camponesas. Num segundo momento, após a tomada
do poder pelos militares, os cubanos mantiveram
relações com o Movimento Nacionalista
Revolucionário (MNR), grupo liderado por Leonel
9
GUEVARA, Che. Socialismo e juventude. São Paulo: Anita Garibaldi, 2005,
p. 97 – 98.
10
Idem. p. 103.
11
SADER, Emir. Cuba: um socialismo em construção, op. cit., p. 83.
12
ANDRADE, Everaldo de Oliveira. O debate sobre a construção do Estado
socialista. In: COGGIOLA, Osvaldo. (Org.) Revolução cubana: Histórias e
problemas atuais. São Paulo: Xamã, 1998, p. 114.
13
BENOIT, Hector. Sobre o desenvolvimento (dialético) do programa. Crítica
Marxista, São Paulo: Xamã, 1997, n. 4, p. 40 - 41
38 - Cuba, Che Guevara e a “exportação” da Revolução pela América Latina
Brizola e composto por militares expulsos das Forças
Armadas Brasileiras. Adeptos da teoria do “foco
guerrilheiro”, o grupo montou uma ação guerrilheira
na serra da Caparaó, que acabou sendo dizimada pela
Polícia Militar de Minas Gerais. E por fim, a ilha
apoiou a Aliança Libertadora Nacional (ALN), grupo
liderado por Carlos Marighela, que havia participado
da Conferência da Olas.
O impacto da Revolução Cubana se distinguiu
essencialmente devido ao rompimento com as
estratégias definidas pelos partidos comunistas. E
todas essas práticas do governo cubano não
garantiram a adesão desses partidos ao Projeto
Andino. Segundo Ayerbe: “A opção pela violência
revolucionária não era consensual na esquerda latinoamericana. Entre os críticos, destacavam-se os
partidos comunistas vinculados à União Soviética,
que viam a experiência de Cuba como expressão de
14
uma realidade nacional específica.” Os soviéticos e
os partidos comunistas latino-americanos não
apoiaram à revolução armada. Nikita Kruchev
acreditava que o socialismo venceria o capitalismo
devido sua superioridade econômica. Os membros
dos partidos comunistas que aderiram à luta armada
eram minoritários. Dessa forma, os movimentos
guerrilheiros que surgiram recrutavam homens em
outros partidos de esquerda, em movimentos
estudantis e até jovens sem experiência política.
Che Guevara e a teoria do “foco guerrilheiro”
Toda a mobilização da esquerda latinoamericana pela luta armada teve como pano de fundo
uma teoria que apontava os fundamentos essenciais
dessa estratégia de luta. Che Guevara foi principal
teórico da guerra de guerrilhas. Desde a vitória da
revolução em Cuba, Che se preocupou em
sistematizar a experiência guerrilheira cubana, numa
tentativa de teorizar para generalizar a luta armada
pela América. Cabe aqui uma citação de Guevara que
expressa bem seus objetivos nesse momento em
questão: “Encontrar as bases em que se apóia este tipo
de luta, as regras a seguir pelos povos que buscam sua
libertação; teorizar o fato, estruturar e generalizar esta
experiência para o aproveitamento de outros, é a
15
nossa tarefa no momento”.
No período de 1959 a 1967, partindo da análise
da experiência de luta armada em Sierra Maestra,
Che escreveu constantemente sobre as guerrilhas e
seus fundamentos. “A Guerra de Guerrilhas” (1960) é
seu texto mais importante. Trata-se de um manual de
orientação prática para os guerrilheiros, esse livro se
14
AYERBE, Luiz Fernando. A Revolução Cubana. São Paulo: UNESP, 2004,
p.17.
15.
GUEVARA, Che. A guerra de guerrilhas. 2. ed. São Paulo: Edições
destaca por que observa minuciosamente detalhes de
organização interna de uma guerrilha.
Guevara dividiu o texto em três partes. O
primeiro capítulo intitulado, “Princípio gerais da luta
guerrilheira”, aborda a essência dessa luta, estratégia,
guerra em terrenos favoráveis e desfavoráveis e a
guerra suburbana. Na segunda parte, “A guerrilha”, o
texto leva em conta o guerrilheiro como formador
social e combatente, princípio, desenvolvimento e fim
de uma guerra de guerrilhas. No último capítulo,
“Organização da frente guerrilheira”, Che escreve
sobre suprimentos, organização civil, papel da
mulher, saúde, sabotagem, indústria de guerra,
propaganda, informação, treinamento de
doutrinamento e organização estrutural.
Sobre a característica de generalização da
experiência cubana, numa abordagem geral, Che
Guevara se preocupou em apontar três contribuições
fundamentais para os movimentos de guerrilha na
América latina:
“1) As forças populares podem ganhar uma guerra
contra o exército.
2) Nem sempre há que se esperar que se dêem todas
as condições para a revolução; o foco insurrecional
pode criá-las.
3) Na América subdesenvolvida, o terreno da luta
16
armada deve ser fundamentalmente o campo.”
Essa passagem expressa em síntese os
elementos centrais da teoria do “foco guerrilheiro”.
Suas observações são em um conjunto, uma crítica e
uma reação à imobilidade e conformismo político dos
partidos comunistas latino-americanos, que com
métodos burocráticos se afastavam da luta e viviam
numa permanente espera das condições objetivas para
a revolução. Para Che não se tratava de esperar o
clímax revolucionário, as condições objetivas
deveriam ser forjadas por meio da atuação dos
guerrilheiros junto à população camponesa.
Mediante a análise dos textos militares de Che,
podemos observar que em sua concepção a “guerrilha
não é um complemento, mas sim o eixo da estratégia
de poder, porque é dela que deve surgir um exército
popular. Por isso, seu terreno natural é o campo e sua
17
relação com o campesinato. ” Che elucidou que
o grande trunfo da guerrilha estava no cerne de
seus procedimentos políticos, ou seja, no papel
desempenhado pelos guerrilheiros junto aos
camponeses. “É importante destacar que a luta
guerrilheira é uma luta de massas, é uma luta popular:
a guerrilha, como núcleo armado, é a vanguarda
Populares, 1982. p. 15.
Idem. p. 13.
17
SADER, Eder (Org.): Che Guevara: Política, op. cit., p. 23.
16
História & Luta de Classes - 39
combatente do mesmo, sua grande força reside na
18
massa da população.” Sem o apoio do povo, a
guerrilha não tem condições de transformar-se em
uma guerra regular e derrotar o exército opressor.
Portanto, Che se preocupa que os guerrilheiros
incorporem à luta armada,o fator social dos
trabalhadores que, em sua concepção, não era outra
senão a reforma agrária. Michel Löwy observou que:
“Por este papel, em relação à consciência das massas
populares, a guerrilha atua como um agente
catalisador, (...) Desempenha, assim, papel político
decisivo não apenas na região diretamente atingida
pelas suas ações, mas também em toda a nação (ou
19
continente!)”
Guevara ainda salienta que às atitudes dos
revolucionários, junto à população são fundamentais
para incorporação do camponês à luta armada. Os
guerrilheiros devem pagar por tudo que for fornecido
pela população local, nunca devem se julgar
superiores ou diferentes da massa, jamais agir de
forma violenta em relação às famílias camponesas e
sempre zelar pela justiça social.
Para Che Guevara, “Está bem estabelecido que
a guerra de guerrilhas é uma fase da guerra que não
tem por si oportunidades de chegar ao triunfo. É ainda
uma das fases primárias da guerra e se irá
desenvolvendo e progredindo até que o Exército
guerrilheiro, em seu crescimento constante, adquira
20
as características de um Exército Regular.” Dentro
desta perspectiva, outra condição política necessária
para a vitória é que a luta armada adquira proporções
de uma guerra civil, e alcance todo território do país. A
guerrilha é apenas o primeiro momento da guerra, ela
precisa expandir, fundir-se com outros grupos, para
assim, romper o isolamento político e então, ser capaz
de derrubar um governo e estabelecer um novo.
Analisando sistematicamente o livro, Guerra de
Guerrilhas, Eder Sader, observou:
“No plano mesmo do livro não é muito claro: volta
freqüentemente a aspectos já tratados, passa de um
assunto para outro e mistura níveis diferentes numa
só passagem. É como se ele estivesse falando a um
grupo de revolucionários dispostos a aplicar as
lições da experiência cubana, para transmitir-lhes
cuidadosamente em cada detalhe, da importância do
calçado para as caminhadas na selva à distribuição
igualitária da comida, até as leis gerais da ação
militar. Mas, se é rigorosa a transmissão do
conhecimento técnico dos detalhes militares, o
próprio descuido acerca das condições de
generalização da experiência cubana já trazem
raízes de fragilidade maior. E a produção que segue
essa linha é sempre grandemente devedora da
capacidade de generalização das experiências
21
cubanas.”
As críticas de Eder Sader elucidam em princípio
que o livro de Che falhou na discussão mais
importante, que trata da capacidade e das condições
de generalização da guerra de guerrilhas. E acabou se
preocupando fundamentalmente em detalhes
minuciosos da organização técnica e militar da
guerrilha. E sobre as condições de luta armada na
América Latina, expostas por Guevara, Eder Sader
escreveu que: “A análise das condições gerais – sócioeconômicas - do continente é relativamente simples.
Guevara retoma vários estudos contemporâneos
sobre as heranças coloniais no campo sob a forma do
latifúndio, sobre o significado da dominação
econômica do imperialismo, sobre os limites da
industrialização. A dependência econômica e a
miséria das grandes massas são reproduzidas graças a
sistemas de poder que reúnem os grandes
proprietários rurais e uma burguesia industrial,
22
associados ao imperialismo estrangeiro.” A teoria do
“foco guerrilheiro” foi construída sobre uma análise
precária das condições políticas, econômicas e sociais
da América Latina. Nesse sentido, no calor dos
acontecimentos Che Guevara deu pouca ênfase as
conjunturas e particularidades de cada país.
Jorge Castañeda também critica as condições de
generalização da luta armada: “O Che descreve de
maneira insuficiente e em parte falsa o que ocorreu
em Cuba; extrapola indevidamente para outras
regiões os supostos ensinamentos e ignora o ponto
central: o que se acontece uma vez raramente pode se
23
repetir.” E Denise Rollemberg acrescenta: “os
revolucionários passaram a contar a história da vitória
de tal maneira que construíram um dos maiores mitos
da esquerda latino-americana dos anos 1960: o do
24
foco guerrilheiro.” As condições de luta do
campesinato nos países latinos não eram as mesmas
que os guerrilheiros cubanos encontraram em Sierra
Maestra e não poderiam ser baseadas apenas na
experiência da ilha caribenha.
Aproximadamente quarenta anos depois, Fidel
Castro fez uma autocrítica e sobre a política de
“exportação da revolução” concluiu que: “É claro que
queríamos a Revolução, a desejávamos, por doutrina,
por crença; mas respeitávamos o direito internacional.
18
GUEVARA, Ernesto Che. A guerra de guerrilhas, op. cit., p. 15.
LÖWY, Michel. O pensamento de Che Guevara. 5 ed. Expressão Popular:
São Paulo, 2003, p.124.
20
GUEVARA, Ernesto Che. A guerra de guerrilhas, op. cit., p. 18.
21
SADER, Eder (Org.): Che Guevara: Política, op. cit., p. 19 – 20.
19
22
Idem. p. 21- 22.
CASTAÑEDA, Jorge. Che Guevara: a vida em vermelho. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 184.
24
ROLLEMBERG, op. cit., p. 14.
23.
40 - Cuba, Che Guevara e a “exportação” da Revolução pela América Latina
E digo ainda que a Revolução não podia ser
exportada, porque ninguém pode exportar as
condições que possibilitam uma revolução. Sempre
partimos desse critério e continuamos pensando
25
assim.” A declaração de Fidel é completamente
contraditória aos fatos. Como respeitavam o direito
internacional se forneciam treinamento, soldados e
até dinheiro aos movimentos guerrilheiros de outros
países? A afirmação de que sempre partiram da
concepção que a revolução “não podia ser exportada”,
contradiz as ações realizadas pelo governo cubano.
As críticas desses autores são válidas e devem
ser levadas em consideração. No entanto, elas não
tocam em uma questão central. A teoria do “foco
guerrilheiro” nega ou se esquece de uma premissa
fundamental da revolução socialista mundial,
expressa claramente por Marx, em O manifesto do
partido comunista: “De todas as classes que hoje se
opõem a burguesia, apenas o proletariado é uma
classe verdadeiramente revolucionária. As demais
classes vão se arruinando e por fim desaparecem com
a grande indústria; o proletariado é o seu produto mais
26
autêntico.” Na contra mão da teoria de Marx, a
guerra de guerrilhas de Guevara, apresenta o
camponês como o verdadeiro agente revolucionário.
Falha teórica irremediável. Pois, Marx descreve o
camponês como “massa de produtores não
envolvidos diretamente na luta entre capital e
27
trabalho”;
Por que Che Guevara deslocou a luta
revolucionária na América Latina para o campo? Isso
ocorreu porque Guevara compartilhava da teoria
de que os países latino-americanos são
“subdesenvolvidos”. Essa dogmática do atraso
“colonial”, “semicolonial”, e “feudal” da América
Latina foi produzida pelos partidos comunistas
burocratizados. O desenvolvimento desse dogma se
deu essencialmente no VI Congresso da III
Internacional Comunista realizado em 1928. As teses
desse congresso estabeleciam que os países
“subdesenvolvidos”, no qual incluíam a América
Latina, precisavam viver uma longa etapa de
desenvolvimento capitalista para, somente depois
desse processo, pensar uma revolução socialista. É
importante destacarmos que, se por um lado, Guevara
rompe com a idéia da revolução como tarefa futura e a
coloca na ordem do dia, como objetivo imediato, por
outro, ele adere ao dogma da América Latina como
“atrasada”.
Mas afinal, o que é um país “atrasado”,
“subdesenvolvido” de acordo com Marx? Do ponto
de vista marxiano, trata-se de um país que conserva
relações de um modo de produção anterior, ou seja, se
caracteriza pela sobrevivência de “relações précapitalistas” de produção. Evidentemente, não é o
caso da América Latina. Marx pensou a América
como totalidade histórica e, de acordo com a teoria da
história universal, nos países latino-americanos, as
relações de produção tidas como pré-capitalistas,
como por exemplo o trabalho escravo, eram na
verdade, relações capitalistas de produção
“encobertas” e, assim, fortes mecanismos de
acumulação primitiva que integrados ao mercado
mundial, preparavam o capitalismo industrial. Além
disso, já no século XIX, nos principais centros da
América Latina já existia um considerável setor de
28
trabalhadores assalariados.
O dogma do “subdesenvolvimento” latinoamericano enfatiza a “ausência de uma classe
proletária”, quer dizer, de trabalhadores assalariados.
Guevara adere a essa concepção e por isso, a teoria do
“foco guerrilheiro” abandona a premissa de que a
libertação da classe trabalhadora é obra da própria
classe trabalhadora. Ao elucidar que apenas o
camponês armado é capaz de trilhar o caminho até o
poder, Che não leva em conta que o proletariado é a
única “classe verdadeiramente revolucionária”,
porque é o verdadeiro produto da contradição capitaltrabalho. Ao desprezar a classe operária reunida nos
centros urbanos latino-americanos, Guevara deixa de
lado a tese de que a revolução socialista, ou seja, a
emancipação dos trabalhadores, parte da organização
e conscientização da própria classe trabalhadora.
Além disso, essa teoria também não levou em
consideração a possibilidade de uma revolução
proletária nos Estados Unidos (centro do Capital
mundial) ou no Canadá. Não considerando a
organização da classe trabalhadora nos países mais
industrializados, onde ela é mais importante.
A reação norte-americana
Em contrapartida à ofensiva armada
orquestrada pelos cubanos, os Estados Unidos
organizaram a reação. E esse é outro aspecto
importante para entender o malogro dos movimentos
guerrilheiros que pretendiam seguir o exemplo
cubano.
Em agosto de 1962, num encontro em Punta del
Leste, no Uruguai, o presidente John Kennedy lançou
o projeto Aliança para o Progresso. Que consistia na
alternativa norte-americana à via armada incentivada
pela ilha. O programa propunha a execução de amplas
25
RAMONET, op. cit., p. 271.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São
Paulo: Martin Claret, 2002, p. 55.
27
MARX, Karl. O que foi a Comuna de Paris? In: COGGIOLA, Osvaldo.
26
(Org.) Escritos sobre a Comuna de Paris. São Paulo: Xamã, 2003, p. 43.
BENOIT, Hector. O programa de transição de Trotsky e a América. Crítica
Marxista, São Paulo: Revan, n. 18, 2004.
28
História & Luta de Classes - 41
reformas, entre elas; a agrária, a da educação, da saúde
e fiscal. Além disso, ofereceram uma ajuda financeira
de vinte bilhões de dólares a serem investidos nos
países latino-americanos, entre dez e quinze anos: “O
programa também prometia apoio à integração
econômica, propondo a criação de uma área de livre
comércio, ações emergenciais de alimentos para a paz
29
e intercâmbio científico entre as universidades”.
O objetivo era que os países latino-americanos
superassem a grave crise econômica. Afinal, países
mais fortes e estáveis economicamente não se
deixariam seduzir pela revolução das armas. Assim,
Kennedy pretendia combater os argumentas da
esquerda armada. Além disso, também pretendia
implantar uma política de isolamento de Cuba, pois, a
condição para receber a ajuda econômica era cortar
relações com a ilha caribenha.
O combate norte-americano ao projeto cubano
de apoiar revoluções não teve conseqüências apenas
pela via política e econômica. “Na Organização das
Nações Unidas (ONU), 18 países latino-americanos
culpavam Cuba pela ebulição do continente.
Reunidos em uma comissão, exortariam a formação
de equipes de segurança, espionagem, repressão e
intervenção em todos os países da América – os
futuros “boinas verdes” -, e a suspensão da venda de
30
armas e implementos militares para Cuba.”
Os Estados Unidos aliado aos governos
militares que se instalaram na América Latina,
organizavam a reação militar às guerrilhas que
surgiam no campo e nas cidades. Na Bolívia, por
exemplo, o General Gary Prado Sálmon, um dos
principais responsáveis pela captura de Che Guevara,
afirma que: “No caso dos Estados Unidos, a ajuda
veio por meio da presença de instrutores militares e de
31
apoio logístico, como armamentos.” A Central de
Inteligência Americana (CIA), na década de 1960,
esteve empenhada em fornecer treinamento aos
exércitos dos países latino-americanos. Os norteamericanos forneciam instruções de enfrentamento às
guerrilhas e equipamento militar de ponta para os
exércitos alcançarem melhores êxitos no combate aos
focos guerrilheiros.
Junto a esses aspectos, também se deve levar
em conta a propaganda anticomunista organizada
pelos norte-americanos que sempre se empenharam
fervorosamente em disseminar pela América Latina
uma propaganda, que almejava em última instância a
deturpação e depreciação da sociedade cubana. Esse
fator, junto ao bloqueio econômico continua presente
na política dos norte-americanos em relação a Cuba,
até a atualidade.
29
AYERBE, op. cit. p. 47.
FURIATI, Cláudia. Fidel Castro: Uma biografia consentida. 4 ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2003, p. 492.
30
O fracasso e a reaproximação com a URSS
Em outubro de 1967, Che Guevara foi
capturado e assassinado nas montanhas bolivianas.
Naquele momento Che, já era um mito entre a
esquerda armada latino-americana e sua morte causou
um profundo impacto na crença da guerra de
guerrilhas, como estratégia de luta contra as ditaduras
pró-imperialistas. Che não foi o primeiro guerrilheiro
morto. Muitos outros já haviam sido derrotados e
vários movimentos armados em toda a América,
África e Ásia já haviam sido extintos. Em suma, no
final da década de 1960, o Projeto Andino havia
fracassado.
Diante dessas circunstâncias, Cuba teve que
definir novas políticas para manutenção da sua
revolução:
“Em 1968, diante de uma grave crise econômica, do
isolamento internacional de Cuba e da derrota das
guerrilhas na América Latina, (...) Fidel buscou uma
reaproximação com a URSS, simbolizada no apoio
à invasão à Tchecoslováquia. Nos primeiros meses
de 1969, as negociações comerciais entre os dois
países já apontavam para a distensão da crise. O
compromisso de pôr fim à exportação da revolução
32
acabou se concretizando em 4 de agosto de 1970”.
Nessa passagem, Rollemberg ressalta outro
aspecto determinante para a reorientação da política
cubana. A autora cita uma grave crise econômica. A
Revolução Cubana estava próxima de completar
10 anos, no entanto, os problemas econômicos
permaneciam enormes. A tentativa de
industrialização e diversificação da economia
proposta por Guevara, enquanto Ministro das
Indústrias haviam fracassado. Portanto, as
dificuldades não eram apenas externas, internamente
a ilha sofria pressões sociais e a única alternativa
naquele momento para solucionar tal crise, era a
reaproximação com os soviéticos.
Para concretizar essa reaproximação política e
econômica com os russos, o governo da ilha socialista
teve que assumir o compromisso de não treinar
guerrilheiros e nem fornecer qualquer tipo de ajuda a
movimentos de luta armada na América Latina. Essa
reaproximação entre cubanos e soviéticos, também
teve que superar algumas divergências entre os dois
países que vinham ocorrendo desde 1962, devido à
“crise dos mísseis” e em conseqüência das várias
críticas que Fidel Castro fazia à linha de atuação dos
partidos comunistas latino-americanos que seguiam
as orientações do Kremlin.
31
GOMES, Saulo. Quem matou Che Guevara: O seu delator estava no Brasil.
São Paulo: Elevação, 2002, p. 53.
32
ROLLEMBERG, op. cit, p. 17 - 18.
42 - Cuba, Che Guevara e a “exportação” da Revolução pela América Latina
Superada essa crise, Cuba passou a integrar
o Bloco socialista em 1972, incluindo-se ao
COMECOM (Mercado Comum dos Países
Socialistas). Em suma, diante de pressões externas e
internas, o governo cubano abandonou o projeto de
“exportação” da revolução e partiu para a construção
do “socialismo em um único país”, vinculados aos
soviéticos.
Considerações Finais
A política de “exportação” da revolução
encabeçada pelo governo cubano durante a década de
1960, fundamentada pela teoria do “foco
guerrilheiro” de Guevara, foi importante no sentido
em que estabeleceu uma feroz crítica a burocracia dos
partidos comunistas de orientação soviética. Pois,
contrapondo as teses stalinistas, Che Guevara colocou
a revolução como tarefa imediata e não para ser
pensada no futuro, após uma revolução nacionalistademocrática como estabelecia a III Internacional.
No entanto, a teoria do “foco guerrilheiro”
enfrentou limites teóricos e, ao aderir ao dogma do
“subdesenvolvimento” latino-americano e, propor o
desencadeamento de uma revolução mundial,
indicando o camponês como agente revolucionário,
rompeu decisivamente com as premissas
fundamentais do pensamento de Marx. Pensar o
processo de transição do capitalismo à Revolução
Socialista, substituindo a organização e a construção
de um partido verdadeiramente proletário pela luta
armada camponesa é resultado de um grave erro
teórico, de uma equivocada compreensão histórica.
Ora, o resultado dessa política não poderia ter sido
diferente. E nas montanhas e selvas da América
Latina, diante do isolamento político, as guerrilhas
caíram uma após a outra.
Qual então, o verdadeiro significado dessa
política? Segundo Denise Rollemberg: “A
perspectiva de exportar a revolução serviu, em última
instância, como um meio de importar a revolução,
garanti-la no interior de suas fronteiras e não de levála para além delas. Diante de tais circunstâncias, o
treinamento de guerrilheiros latino-americanos
acabou se tornando mais importante, na verdade, para
33
os próprios cubanos, para a sua revolução”.
Em síntese, o projeto cubano de “exportar” a
revolução, mesmo não alcançando seus objetivos,
teve função extremamente importante para o
fortalecimento interno do regime cubano, pois,
consolidou a revolução dentro de suas fronteiras. Em
contrapartida, representou um bloqueio à organização
e conscientização da classe operária, significou o
33
Idem. p. 65 - 66.
abandono da teoria da Revolução Permanente de
Marx e Trotsky e, por fim, traduziu-se em uma
conciliação com a burocracia soviética.
História & Luta de Classes - 43
América Latina: Ditaduras,
Introdução
Segurança Nacional
*
e Terror de Estado
**
Enrique Serra Padrós
A
política de Terror de Estado (TDE)
implementada pelas ditaduras civis-militares que se
disseminaram pelo Cone Sul latino-americano, entre
1
as décadas de 1960 e 1980, foi o mecanismo utilizado
para aplicar as premissas da Doutrina de Segurança
Nacional (DSN), visando defender os interesses dos
setores dominantes locais e do capital estrangeiro e
destruir as tendências de questionamento social e de
exigência de mudança estrutural promovidas pelas
organizações populares.
O estudo das ditaduras de Segurança Nacional
(SN) mantém vigência diante da necessidade de
responder a muitos questionamentos, particularmente
dos formulados pelas organizações de direitos
humanos, no que diz respeito aos fatos vinculados ao
TDE, bem como à permanência de feridas produzidas
pela impunidade e pela ausência de esclarecimentos,
sobretudo nos casos de desaparecimento e de
apropriação de crianças. Nos últimos anos, tornaramse públicos depoimentos de quadros envolvidos no
aparato repressivo, que, dependendo de cada caso
nacional (Argentina, Uruguai, Chile, Brasil e
Paraguai), oscilam entre um tênue arrependimento, a
justificativa da obediência devida ou a reafirmação
anticomunista. O aumento da visibilidade da
problemática através do Caso Pinochet (desde sua
polêmica detenção em Londres), as novas descobertas
sobre a Operação Condor e a desclassificação de
documentos do Departamento de Estado dos EUA
relacionados àqueles eventos confirmam os esquemas
repressivos das respectivas ditaduras, as conexões
entre si e a co-responsabilidade estadunidense em
todo este processo.
A produção historiográfica e as reflexões de
*.
Este artigo é uma adaptação condensada de alguns itens do capítulo 1 da
minha Tese de Doutorado: Como el Uruguay no hay... Terror de Estado e
Segurança Nacional. Uruguai (1968-1985): do Pachecato à Ditadura CivilMilitar. Doutorado em História. UFRGS, Porto Alegre, 2005.
**.
Professor de História Contemporânea do Departamento de História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected]
1
Referência explícita às ditaduras de Segurança Nacional da Argentina (1976-
áreas afins sobre as ditaduras de SN na América
Latina foram praticamente inviabilizadas durante as
mesmas. As duras condições de sobrevivência, o
patrulhamento ideológico, a proibição explícita e a
autocensura foram empecilhos que restringiram o
debate. A censura sobre os meios de comunicação
comprometidos com posições críticas, a intervenção
no ensino, o controle dos programas de conteúdo
reflexivo e a perseguição de docentes e de estudantes
que se opunham à lógica dos novos regimes
marcaram a expansão autoritária. A própria temática
América Latina foi alvo de interdição, principalmente
sua história recente.
Somente no final dos anos 70, surgiram os
primeiros debates sobre o caráter dessas ditaduras
como o grande fórum promovido pela Revista
2
Mexicana de Sociología. Neste espaço, debateu-se
intensamente a validade ou não da aplicação do
conceito “fascismo latino-americano” na realidade
dos países enquadrados pelas ditaduras de SN. A
partir da identificação de uma série de características
que se consideravam comuns àquelas experiências
clássicas de entre-guerras, elaborou-se uma teoria
explicativa sistematizada, principalmente, por
3
Agustín Cueva. Essa abordagem recebeu uma
diversidade de adjetivações, expressão de
divergências quanto aos critérios condutores da
análise sendo, também, resultado de uma ênfase
militante que visava contribuir na denúncia e na
resistência frente às situações limite vivenciadas na
América do Sul.
1984), do Brasil (1964-1985), do Chile (1973-1989), do Paraguai (anos 70 e
80) e do Uruguai (1973-1985).
2..
Revista Mexicana de Sociología, México, v. 39, n° 1 e 2, 1977. Dela
participaram, entre outros, Agustín Cueva, Atilio Borón, Liliana de Riz,
Theotônio dos Santos e René Zavaleta Mercado.
3..
CUEVA, Agustín. La cuestión del fascismo. Revista Mexicana de
Sociología, México, v. 39, n° 2, p. 469-480, abr./jun. 1977.
44 - América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado
No transcorrer dos anos 80, outro modelo
explicativo ganhou espaço, assentado nas reflexões
realizadas por autores como Juan Linz e Stanley
Payne sobre as ditaduras de pós-guerra, no sul da
Europa (Espanha, Portugal e Grécia), assim como
4
suas transições à democracia. Como resultado de
estudos comparativos e da elaboração de tipologias,
surgiu, como uma das principais contribuições, a
proposição do modelo burocrático-autoritário de
Guillermo O'Donnell. O mesmo delineava um Estado
caracterizado por forte presença tecnocrata e por
responder à acentuada ativação política popular
existente nos cenários anteriores aos golpes de Estado
do Cone Sul. Enquanto modelo explicativo mostrouse mais aberto às especificidades das ditaduras latinoamericanas, contrapondo-se, no debate teórico, ao
esquematismo do uso da categoria fascismo.
Dentro dos enfoques que pautaram o estudo dos
casos de ditaduras de SN, à medida que os processos
de abertura política possibilitaram a recuperação de
direitos, os subtemas relacionados com as questões
econômicas e com as formas de Estado ocuparam a
centralidade da produção historiográfica. Um tema
que parecia vigoroso nos últimos anos de quase todas
as ditaduras, mas que logo se esvaziou parcialmente,
foi o referente à questão dos direitos humanos. Apesar
do grande impacto produzido pela onda da elaboração
5
dos relatórios Nunca Mais e das revelações e
depoimentos que vieram a público, a aprovação, por
parte do sistema político, da anistia para os
responsáveis pelos crimes de Estado cometidos
durante as ditaduras e a reversão das expectativas de
esclarecimento (implícitas na consigna “Verdade e
Justiça”) reintroduziram uma situação de paralisia e
de medo da sociedade civil diante da permanência da
impunidade. Em termos práticos, com algumas
variáveis em cada país, a destruição de documentos, a
impossibilidade do acesso público aos mesmos e as
ameaças físicas, verbais ou judiciais contra as vítimas
daqueles regimes fizeram com que a temática do TDE
e das múltiplas formas de violência estatal fossem
pouco estudadas. A exceção foram as organizações de
direitos humanos, que, através de trabalhos
multidisciplinares, assumiram o confronto pela
memória e contra o esquecimento induzido. É
importante salientar que, no fim da década de 90, a
descoberta ou disponibilização de novos arquivos,
acompanhado da retomada de um posicionamento
mais crítico de setores da população dos países do
Cone Sul em relação à responsabilização jurídica dos
crimes de Terror de Estado, recolocaram a temática
como objeto de pesquisa.
A clivagem do aprofundamento da Guerra Fria
e sua maior visibilidade na região em função da
Revolução Cubana e dos seus desdobramentos,
exigem a análise das diretrizes basilares da política
externa estadunidense para a América Latina. Entre
elas, a proposta de Desenvolvimento e Segurança que
pautou a criação da Aliança para o Progresso (1961) e
a política de Contra-insurgência, ambas inseridas na
estratégia de resposta flexível (contendo a
possibilidade de implementação de todo tipo de ação)
que perpassou as administrações Kennedy, Johnson e
Nixon. Os conceitos básicos elaborados dentro do
pensamento da Doutrina de Segurança Nacional
(“inimigo interno”, “guerra interna”, “subversão”,
“contra-insurgência”, “Estado como ser vivo”,
“objetivos nacionais”, etc.) foram disseminados pelos
países da região através de diversos mecanismos de
transmissão (doutrinação militar, acordos na área do
ensino, bens de consumo da indústria cultural).
A América Latina, nos anos 60/70, passou por
uma intensa radicalização do processo de luta de
classes. Projetos de mudança, que variavam entre
matizes de cunho reformista/nacionalista até outros
de contorno socialista, foram alimentados pelos
exemplos históricos da Revolução Cubana, da guerra
de libertação no Vietnã e da trajetória revolucionária
de Che Guevara. Tais fatos, para o sistema, se
prefiguraram como elementos desestabilizadores da
ordem interna, pois foram referências de mobilização
e potencialização dos setores populares em luta por
mudanças estruturais.
Os regimes de SN (pese as singularidades de
cada Estado nacional) foram o instrumento de
reenquadramento dessas sociedades fortemente
mobilizadas. Apesar da exposição do protagonismo
militar e de certa autonomização conjuntural do
mesmo, tais regimes representaram os interesses da
fração burguesa que, hegemônica em termos internos,
estava vinculada ao capital internacional como
associada subordinada. Em termos econômicos, as
ditaduras consolidaram, como características gerais, a
internacionalização da economia, a aplicação das
receitas do FMI e do Banco Mundial, o crescimento
do endividamento externo, a concentração de renda e
a exploração das “vantagens comparativas”
(sobretudo a baixa remuneração da força-detrabalho).
Em termos políticos, os objetivos foram muito
4
Ver: LINZ, Juan. Regimes Autoritários. In: O'DONELL, Guillermo et. al. O
Estado Autoritário e os Movimentos Populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979. PAYNE, Stanley G. El fascismo. Madrid: Alianza Editorial, 1982.
5
Argentina (CONADEP. Nunca mais. Informe da Comissão Nacional Sobre o
Desaparecimento de Pessoas na Argentina. Porto Alegre: L&PM, s. d.). Brasil
(Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1986). Uruguai (SERPAJ. Uruguay
Nunca Más. Informe Sobre la Violación a los Derechos Humanos -1972-1985.
Montevideo: SERPAJ, 1989). Chile (COMISIÓN NACIONAL DE
VERDAD Y RECONCILIACIÓN. Informe Rettig. Santiago: 1991). O
relatório argentino veio a público em 1984, o brasileiro em 1986, o uruguaio
em 1989 e o chileno em 1991.
História & Luta de Classes - 45
claros: destruir as organizações revolucionárias;
desmobilizar e despolitizar os setores populares;
aprofundar a associação com os EUA e os aliados
internos da região; enquadrar os espaços políticoinstitucionais (partidos, Congresso, sindicatos,
grêmios estudantis, etc.); impor uma ordem interna
disciplinadora de segurança e estabilidade; esvaziar o
pluralismo político e interromper a dinâmica eleitoral.
A aplicação de tais medidas produziu, como herança,
uma “cultura do medo”, que comprometeu o posterior
processo de redemocratização, frustrando as
expectativas suscitadas e conformando uma espécie
de democracia imperfeita, inconclusa.
O debate sobre o caráter das ditaduras de
Segurança Nacional
Embora existam outras contribuições
interpretativas significativas sobre o caráter dessas
ditaduras, centramos a análise nos três modelos que
entendemos marcaram, de forma mais profunda o
debate sobre as especificidades dessas experiências.
O primeiro modelo explicativo baseia-se na
concepção do Estado Burocrático-Autoritário (BA),
desenvolvido por Guillermo O'Donell a partir dos
estudos clássicos sobre Autoritarismo apoiados na
proposição de um tipo ideal resultante da comparação
de características e de uma tipologia que acolheu
múltiplas formas históricas de manifestação. A
procura de especificidades, caso a caso, inclusive de
aspectos secundários ou formais, gerou, muitas vezes,
um excesso de rótulos que tornou impreciso ou
insuficiente tanto a comparação quanto a
possibilidade de síntese explicativa que extrapolasse
o caso em questão.
O'Donell procurou resgatar a especificidade das
experiências latino-americanas apontando para as
seguintes características: direção tecnocrática do
Estado (pretensamente neutra e acima das
contradições de classe); exclusão e desativação
política dos setores populares; imposição de uma
despolitização generalizada no conjunto da
sociedade; formação de uma aliança diversificada de
setores sociais (burguesia compradora, oligarquia,
setores médios urbanos, etc.) em volta de um projeto
de intervenção civil-militar e de um forte
anticomunismo. Destacou ainda a pretensão de
reordenamento do status quo diante da radicalização
dos setores populares e da crise de hegemonia
burguesa para garantir os interesses do capital
internacional e as mudanças nos mecanismos de
acumulação. Segundo O'Donell, o bloco hegemônico
resultante foi constituído pela alta burguesia
(vinculada ao capital internacional), os tecnocratas, as
Forças Armadas e, eventualmente, frações da
burguesia nacional. Coube, à primeira, imprimir as
mudanças estruturais necessárias para garantir maior
internacionalização da economia - em detrimento dos
interesses e dos projetos de desenvolvimento da
burguesia nacional - e oferecer “vantagens
comparativas” para atrair investimentos externos. O
papel fundamental do Estado BA foi garantir a
exclusão política e econômica, para permitir as
mudanças nos padrões de acumulação que se
vislumbravam a partir das transformações produzidas
desde o final da Segunda Guerra.
A instalação do Estado Burocrático-Autoritário
aconteceu em etapas. A primeira, quando se eliminou
a ameaça das organizações populares, com o recurso
das Forças Armadas, impondo a ordem e a
estabilidade necessária para garantir os investimentos
externos. A segunda, quando a tecnocracia e o capital
internacional estabeleceram as medidas econômicosociais exigidas pelo processo de internacionalização
da economia. Finalmente, a última etapa, quando
àqueles atores se juntaram frações da antiga burguesia
nacional, agora subordinada, associada ou cooptada,
principalmente pela ação do virulento discurso da
existência de uma ameaça comunista. As
características e as etapas apresentadas por O'Donell
variaram de acordo com as especificidades de cada
caso nacional. Deve salientar-se, por outro lado, que
as críticas a este modelo de análise se pautaram,
fundamentalmente, pela escassa margem explicativa
para as contradições sociais (secundarização do
conflito de classe), pelo grande peso concedido à
tecnocracia militar e civil e pela diminuição do papel e
da importância dos EUA na estruturação desses
regimes.
O segundo modelo explicativo baseou-se na
citada interpretação sobre a existência de um fascismo
latino-americano, a partir das interpretações clássicas
6
de Georgi Dimitrov e Palmiro Togliatti, ambas
associadas a uma abordagem marxista-leninista mais
ortodoxa presente na linha programática dos Partidos
Comunistas da região. Agustín Cueva transpôs, à
realidade latino-americana dos anos 70 e 80, o
conceito de fascismo como “a ditadura terrorista que
os setores mais reacionários do capital monopólico
exercem sobre a classe operária, primordialmente em
situação de crise”.7 Seus críticos avaliaram que esse
6
Posição que resultou do documento apresentado por Dimitrov na plenária do
VII Congresso Mundial da Internacional Comunista (3ª Internacional), em
agosto de 1935. Teve como característica principal a revisão da posição que
considerava “irmãos gêmeos” o fascismo e a social-democracia. A partir da
aprovação da proposta de Dimitrov, o movimento comunista internacional
passou a defender a construção de uma frente comum para enfrentar o
fascismo envolvendo os setores esquerdistas, a social-democracia e certos
setores liberais burgueses.
7
CUEVA, Agustín. Teoría social y procesos políticos en América Latina. São
Paulo: Global, 1983. p. 165.
46 - América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado
referencial teórico era anacrônico e sua aplicação para
a realidade latino-americana dos anos 70 era
inadequada e mecanicista. Diante de tais objeções,
Cueva argumentou que o fundamental na análise da
categoria fascismo não era a existência concreta de
um partido de massas, de um suporte pequenoburguês ou de uma ideologia chauvinista (de fato,
inexistentes na região). Ao contrário, afirmava Cueva,
tal ausência era a característica da especificidade
periférica latino-americana e da sua forma de inserção
na economia capitalista mundial.
O fundamental, nessa linha de análise, era a
natureza de classe do fascismo e a mudança
qualitativa que impunha às formas de Estado. O
controle monopólico dos setores chaves da indústria
conformava um eixo externo-local vinculado às
esferas de dominação civil-militar, com um forte
potencial de fascistização em determinadas
circunstâncias históricas. Mas o caráter periférico das
economias regionais inviabilizava que o fascismo
latino-americano cooptasse algum movimento de
massa como base social de apoio. Da mesma forma,
estava interditada a implantação de uma política
nacionalista, em função da configuração dependente
desses países em relação às economias centrais, o que,
é claro, assinalava importantes diferenças em relação
8
às experiências clássicas de fascismo. Atilio Borón,
um dos principais críticos do uso desta categoria de
análise, a considerava insuficiente para explicar a
especificidade estrutural das ditaduras do Cone Sul,
fundamentalmente por que as economias desses
países eram periféricas em relação ao sistema
capitalista mundial; portanto, inexistiam condições
para que uma burguesia nacional pudesse assumir
papel dirigente.
Independente das diferenças visíveis entre as
duas abordagens apresentadas, há, no mínimo, um
ponto de encontro entre elas: a questão do caráter
inédito e global dos novos sistemas repressivos
implantados na região, dentro do mesmo marco
cronológico e numa escala sem precedentes na
América Latina. Enquanto O'Donell afirmava que o
grau de repressão - vista como mecanismo de ação
permanente - aumentava quanto maior fosse a
instabilidade no regime anterior e a capacidade de
organização dos setores populares, os defensores da
tese do fascismo latino-americano lembravam que o
mesmo acabava com todas as formas democráticas
para exercer uma ditadura terrorista aberta. Esta
confluência denota um elemento diferenciador dessas
estruturas de poder em relação a experiências
autoritárias ocorridas na região em outros contextos
8
históricos e reconhece que o fator violência, aplicado
em maior ou menor medida num patamar inédito,
esteve presente em todas as ditaduras de SN.
Uma terceira abordagem que consideramos de
maior pertinência explicativa é a que identificou as
ditaduras latino-americanas dos anos 60 a 80 como
regimes de Segurança Nacional, o que realçou,
portanto, o papel que a Doutrina de Segurança
Nacional assumiu na estruturação desses regimes. As
Forças Armadas, nessa perspectiva, receberam uma
legitimidade política para desempenharem o papel de
ordenadores do sistema social, diante da falência das
instituições da democracia representativa e do sistema
político em geral, e se apresentaram como garantia
suprema da unidade nacional ameaçada pelos efeitos
desagregadores do “perigo comunista”. A DSN foi
incorporada como o fundamento teórico justificador
da proteção da sociedade nacional a partir da
edificação de um Estado que precisava esconder sua
essência antidemocrática.
A DSN apontou, da mesma forma, a existência
de um “estado de guerra permanente” contra um
(suposto) “inimigo interno”, que podia ser toda
pessoa ou organização armada, política ou social de
oposição aos interesses da ordem vigente. Embora a
DSN e seus defensores proclamassem agir em defesa
dos valores democráticos, consideravam, no fundo,
que a democracia era uma fonte geradora de
desordens por permitir a atuação dos setores
desconformes com a ordem vigente, a qual devia ser
defendida através de todos os meios disponíveis. O
cenário da “guerra interna” extrapolou as ruas, as
fábricas ou as universidades, chegando ao extremo de
levar essa batalha aos cárceres políticos, onde as
mentes dos prisioneiros políticos viravam campos de
batalha para destruir as consciências críticas,
9
militantes e libertárias, situação particularmente
verificada no Uruguai, onde as autoridades
carcerárias explicitaram o objetivo de enlouquecer os
presos políticos.
A aplicação das premissas da doutrina destruiu
as bases da democracia representativa com o
fechamento do Parlamento, o controle sobre o Poder
Judiciário, a proibição do funcionamento dos partidos
políticos, a imposição generalizada da censura, a
violação sistemática dos direitos humanos e uma
repressão brutal contra toda a oposição. É importante
sublinhar que a DSN esteve presente em todos os
regimes ditatoriais do Cone Sul, no referido período,
independente da especificidade adquirida em cada
país. Portanto, o papel que cumpriu no cerne destas
experiências constitui, de per si, um elemento inédito
a
BORÓN, Atilio. Estado, capitalismo y democracia en América Latina. 3 ed.
Buenos Aires: Oficina de Publicaciones del CBC/Universidad de Buenos
Aires, 1997.
9
SAMOJEDNY, Carlos. Psicología y dialéctica del represor y el reprimido.
Buenos Aires: Roblanco, 1986. p. 31.
História & Luta de Classes - 47
que, por um lado, inviabiliza a possibilidade de
associar tais ditaduras com o fascismo clássico e que
por outro, sendo a DSN fluente elo de conexão entre
os novos regimes da região e os EUA, exige da
tese do Estado Burocrático-Autoritário um
redimensionamento da importância da superpotência
10
para o advento e a consolidação daqueles.
Terror de Estado e Segurança Nacional
Em relação ao debate sobre o Terror de Estado,
deve registrar-se que ele é relativamente recente,
apesar de que tal fenômeno se tenha manifestado,
historicamente, pelo menos, desde a Revolução
Francesa. Na passagem dos anos 60 para os 70, os
setores dominantes introjetaram a aceitação da
violência estatal e de ações paramilitares, encobertas
ou não, como sendo legítimas diante do “inimigo”,
fosse este um outro Estado ou sua própria população
civil (“inimigo interno”). Fatos assim haviam
ocorrido no contexto da Segunda Guerra Mundial,
mas haviam sido justificados em nome da necessidade
real da sobrevivência. Fora desse contexto particular,
porém, eram vistos sob o entendimento de que
constituíam ações terroristas deliberadas do Estado ou
dos dirigentes que o controlavam, contra sua própria
população.
No cenário latino-americano, a novidade
chegou acompanhada da orientação contra-insurgente
proposta desde os EUA, no contexto da Guerra Fria,
quando identificaram que todo o continente
americano era área de interesse nacional. No
entendimento da superpotência, entretanto, a região
estava muito vulnerável diante do impacto
desagregador produzido pelo comunismo
internacional (“exportado” pela URSS) e, sobretudo,
pelos associados locais, os “inimigos internos”. A
defesa do uso ilimitado da força como mecanismo de
controle e de combate às mobilizações sociais
produzidas pelas contradições internas dos diversos
países tornou-se mais agressiva a partir da vitória e da
radicalização da Revolução Cubana. Todavia, já era
um processo em marcha desde o final da Segunda
Guerra. Apesar da propaganda dos programas de
“ajuda” no marco da Aliança para o Progresso, essas
“boas intenções” não passavam de tentativas de
cooptação para aumentar o controle sobre a região.
Nesses termos, o treinamento de corpos de elite de
oficiais latino-americanos em escolas norteamericanas (Escola das Américas, Fort Benning, Fort
Leavenworth), a ajuda para o aparelhamento e
modernização do fator militar e reconversão deste
para enfrentar e destruir o “inimigo interno” foram
11
fundamentais. A passagem do Secretário de Estado
Nelson Rockefeller pela América Latina, em 1969,
serviu para elaborar um preocupante diagnóstico:
“[...] hoje nenhum país [latino-americano], per si só, é
capaz de garantir a sua própria segurança interna. [...]
Unicamente através da cooperação do Hemisfério
poderão esses problemas que afetam tão vitalmente a
12
segurança interna, ser devidamente enfrentados.”
Em função disso, Rockefeller, entendendo que
estavam em jogo questões estratégicas vitais para a
própria segurança dos interesses estadunidenses,
recomendava, como “Objetivo da Política Nacional”
da superpotência [grifo meu]: “Os Estados Unidos
devem cooperar com as demais nações do Hemisfério
Ocidental em medidas que fortaleçam a sua segurança
13
interna”. O chamado “Informe Rockefeller” foi um
dos arcabouços que permitiram ativar uma lógica
repressiva, que atingiu sua forma mais sofisticada e
brutal não só para enfrentar os crescentes movimentos
guerrilheiros dos anos 60, mas também contra amplos
setores da população, sobretudo após a derrota das
organizações revolucionárias. Foi a partir da
orientação da contra-insurgência que começou a
manifestar-se, embrionariamente, na região, o gérmen
do TDE, constituído como
“[...] um modelo estatal contemporâneo que
transgride os marcos ideológicos e políticos da
repressão “legal” (consentida pelo marco jurídico
tradicional) e apela a “métodos não convencionais”,
extensivos e intensivos, para eliminar à oposição
14
política e o protesto social, armado ou desarmado.”
Nas experiências concretas latino-americanas
as características repressivas mais comuns foram a
criação de uma estrutura clandestina, paralela à
estrutura legal e visível do Estado, e a implementação
de uma metodologia de seqüestro, detenção ilegal,
tortura e desaparecimento definitivo. A argumentação
dos antigos responsáveis pelas ditaduras e seus
10
Ver: COMBLIN, Padre Josep. A Ideologia da Segurança Nacional. O Poder
Militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978;
JELLINECK, Sergio; LEDESMA, Luis. Uruguay: del consenso democrático
a la militarización estatal. Estocolmo: Institute of Latin American Studies,
1980; BAUMGARTNER, José Luis; DURAN MATOS, Jorge. América
Latina: liberación nacional. Montevideo: Banda Oriental, 1985. 2 Vol.
11..
Em 1963 Robert McNamara, Secretário de Defesa da administração
Kennedy, afirmava: “[...] provavelmente, o maior rendimento dos nossos
investimentos de ajuda militar provém do treinamento de oficiais
selecionados e de especialistas chaves em nossas escolas militares e seus
centros de treinamento nos EUA e ultramar. Estes estudantes são
cuidadosamente selecionados em seus países para converterem-se em
instrutores quando voltem a eles. São os líderes do futuro [...] Não é necessário
explicar o valor que tem dispor de homens com um conhecimento de primeira
mão de como os norte-americanos atuam e pensam para os cargos de direção.
Para nós, não há preço que pague o fato de sermos amigos desses homens
[...]”. CONADEP, op. cit., p. 343.
12
ROCKEFELLER, Nelson. As condições de Vida nas Américas. Relatório
de uma Missão Presidencial dos Estados Unidos ao Hemisfério Ocidental.
Rio de Janeiro: Record, s. d. p. 66.
13
Idem.
14
BONASSO, Miguel. Prefacio. In: PIETERSEN, Jan et al. Terrorismo de
Estado. El papel internacional de EE.UU. Navarra: Txalaparta, 1990. p. 9.
48 - América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado
associados (políticos e empresários que se reinseriram
eficientemente no cenário “redemocratizado”( tem
sido a de que, se ocorreram excessos, estes foram
cometidos por grupos autônomos ou por funcionários
do Estado que interpretaram as ordens com demasiado
zelo. Entretanto, as provas que confirmam a
existência de um TDE tornam inconsistentes tais
conclusões. Ao considerar a repressão como um
sistema eficiente, se aceita, em alguns casos, a
possibilidade da ocorrência de autonomização parcial
de certos setores da cadeia de transmissão, mas isso
não contradiz a lógica do sistema nem invalida a
interpretação de que o TDE foi um mecanismo
fundamental para viabilizar a nova ordem interna e o
estabelecimento de novos padrões de acumulação.
A identificação das ditaduras de SN com
práticas de TDE foi uma tendência que se consolidou
nos anos 90. Os motivos por não ter ocorrido antes são
variados. Talvez porque, durante sua existência, foi
difícil dimensionar o que efetivamente ocorria, ou
porque as negociações políticas de saída desses
regimes foram extremamente difíceis e permitiram a
sobrevivência política de muitos dos atores centrais.
Pode ser ainda porque determinados setores aceitaram
a tese de que a repressão estatal foi um mal necessário
e transitório diante dos “descalabros” cometidos por
projetos populistas ou radicais “irresponsáveis”. O
fato é que a associação das ditaduras com o TDE
partiu, em primeiro lugar, das organizações de direitos
humanos, especialmente as que surgiram como
resposta à prática das detenções-desaparecimentos.
Apesar do enorme esforço de falsificação histórica
perpetrado pela propaganda oficial ao tentar mostrar o
desprendimento dos que se apresentaram como
último bastião do “mundo livre” contra a “ameaça
comunista”, os resultados concretos mostraram as
contradições de um projeto que, para garantir a “paz”,
usou da coerção de forma ilimitada.
Com o transcorrer dos anos, foi possível armar o
“quebra-cabeça” desses regimes. As informações e
experiências recolhidas nas prisões, na tortura, na
clandestinidade, na resistência, no exílio e no
reconhecimento da ausência definitiva dos
desaparecidos deram nova fisionomia ao esquema
repressivo. Nas primeiras análises, a violência
aparecia como uma questão menor diante das
questões estruturais. Formularam-se também
explicações sobre o uso da violência em doses
excessivas, fruto do desajuste patológico de agentes
repressivos. À medida que os relatórios Nunca Mais
foram sendo elaborados, divulgados, analisados e
comparados, as sociedades atingidas passaram a ter
maior conhecimento sobre as especificidades, a
dimensão e o papel que essas práticas desempenharam
em cada país do Cone Sul.
Cabe, ainda, uma última observação a respeito
de toda esta problemática. Conhecendo a dinâmica, os
objetivos e os interesses que estão por detrás das
ditaduras de SN, é inaceitável a tentativa de
dissociação entre interesses econômicos e práticas
repressivas, como tentou delimitar o discurso
tecnocrático. Este procurou marcar distância das
políticas coercitivas do mesmo governo do qual fazia
parte, tentando isentar-se das responsabilidades
pertinentes. É fundamental, nesse sentido, não perder
a perspectiva do fenômeno. O TDE foi a expressão de
um dos principais aspectos das ditaduras de SN.
Embora a centralidade que recebe neste estudo, não se
entenda, porém, que é considerado desconexo das
demais dimensões que compõem os regimes de SN.
Pelo contrário, reafirmamos sua relação intrínseca e
subordinada ao processo de internacionalização da
economia e de hegemonia do capital internacional
e seus associados locais. Os mecanismos
implementados pela violência estatal visaram as
organizações e os indivíduos que podiam representar
perigo de resistência ao projeto em andamento;
impuseram também, a médio prazo, formas
anestésicas de convivência, fosse através da “cultura
do terror”, da autocensura ou até da possibilidade de
cooptação. A estabilidade e a apatia resultante do
medo da volta do recurso sistemático à força
condicionou um clima político que se ajustou
adequadamente aos anseios e necessidades da alta
burguesia e do capital internacional.
Coerentemente com a DSN, a guerra contra o
“inimigo interno” implicou numa “guerra interna”,
permanente, “total” e, conseqüentemente, “suja” - ou
seja, ilegal e clandestina. A necessidade de
implementar as diretrizes da SN exigiu o confronto
total com a oposição, numa luta sem compromissos
nem negociações e que só poderia terminar com a
destruição total e permanente do adversário. Para
quebrar o “inimigo”, utilizou-se a detenção sob a
forma de seqüestro, a tortura, a política do
desaparecimento de pessoas, o extermínio e os
instrumentos da “guerra psicológica”. Semeou-se o
temor e a desesperança. Na medida em que se impôs a
autocensura, o Terror de Estado cumpriu sua função
pedagógica, dobrando vontades e resistências, o que,
combinado com a sensação de impunidade, gerou
medo e imobilismo.
A análise das especificidades de cada ditadura
deve partir das relações intrínsecas existentes entre a
realidade dos anos 60 e os diversos projetos em
confronto. Nesse sentido, deve-se avaliar a introjeção
das diretrizes estadunidenses sobre a Guerra Fria e a
implementação de medidas que, dentro dos marcos
gerais da DSN, legitimaram a organização de uma
superestrutura estatal, a qual cumpriu as exigências
História & Luta de Classes - 49
necessárias para satisfazer dois objetivos
fundamentais atribuídos pelos EUA. O primeiro, a
liquidação dos projetos de mudança social existentes
antes dos golpes de Estado. O segundo, a criação de
condições necessárias para disciplinar a força de
trabalho, em particular, e a sociedade, em geral, como
fator de atração de capital internacional - que devia ser
protegido sob qualquer hipótese.
Em nome da defesa da civilização ocidental e
do sistema democrático, a DSN procurou desviar as
atenções sobre o crescente mal-estar de uma
população cada vez mais atingida pelo crescente
desequilíbrio da distribuição de renda. Diante dos
primeiros sinais de resistência contra esse quadro, a
DSN legitimou, em nome do capital internacional e
dos seus aliados locais, o uso do Terror de Estado.
Tudo justificado com o discurso da defesa da ordem,
da estabilidade político-social, da nação ameaçada
pelo “comunismo”, das liberdades e da civilização
ocidental.
A essência da analise sobre o TDE não está na
comprovação da discriminação da tortura ou da
censura, por exemplo, e sim na compreensão da
abrangência, da multiplicidade e da complementação
das iniciativas repressivas que, sob hipótese alguma,
podem ser reduzidas à violência física, e que
compõem esse quadro opressivo, “cinzento”,
resultado da dinâmica de aplicação do Terror de
Estado. Terror de Estado que, mesmo respeitando
as especificidades, se mostrou abrangente,
prolongado, indiscriminado, retroativo, preventivo e
extraterritorial.
Conclusão
A guisa de conclusão pode-se afirmar que o
TDE foi uma variante da violência de classe, que nele
a imposição da força coercitiva, punitiva ou de “ação
pedagógica” do poder do Estado se orientou,
fundamentalmente e sistematicamente, a provocar o
medo dissuasivo, o que de fato ocorreu, através de
meios variados e eficientes como a coerção física,
psicológica, econômica. Isto conferiu ao contexto que
envolveu tal situação uma dinâmica que intensificou o
desequilíbrio de forças internas da sociedade e
aumentou o caráter onipotente do pólo de difusão do
terror, enquanto se tornou mais palpável a
incapacidade de resposta dos setores alvos. A
multiplicação dos casos de vítimas de torturas,
seqüestros, execuções, saques, desaparecimentos,
ameaças de morte, expurgos, cassações, etc. - tudo
ocorrendo sem direito à proteção alguma da lei - é um
dado que confirma a configuração de “catástrofe
humanitária”.15
As justificativas para a manutenção de uma
situação de alerta permanente do Estado contra o
“inimigo interno” esconderam que, na prática,
manteve-se um clima de ameaça contínua sobre toda a
sociedade, apesar do discurso que afirmava que era
justamente pela sua proteção (da sociedade) que
zelava rigorosamente o TDE. A amplitude
multidimensional da sua aplicação perturbou as regras
da convivência social e atingiu as pessoas até nas suas
relações e situações mais cotidianas, a ponto da
banalização e da rotinização das formas de controle
tornaram-se, para muitos, “normais” e corriqueiras
nos espaços escolares, nos espaços públicos e nas
atividades profissionais.
A paralisia da oposição pelo medo e pelo
silêncio ajudou a gerar a “cultura do medo”, onde as
pessoas introjetaram uma sensação de culpa pelo
imobilismo político, pela evasão e pela diminuição ou
ausência de solidariedade. Assim, introspecção,
prudência, cautela, dissimulação e silêncio viraram
recursos, individuais e cotidianos vitais para a
sobrevivência nesses “tempos cinzentos”; receosas e
acuadas, as pessoas tentaram entrincheirar-se em
16
“casamatas de privacidade” ou deslocaram suas
frustrações e ansiedades para a emigração, a
religiosidade, o futebol, os jogos de azar e outras
manifestações diversionistas que funcionaram como
desaguadouro, válvulas de escape das tensões
acumuladas. Confluindo com os objetivos de
despolitização e desmobilização, é pertinente ressaltar
que as ditaduras de SN procuraram esconder, com
seus discursos patrióticos, moralistas e tecnocráticos,
a conformação de políticas de TDE e que estas, se
constituíram em estratégias contextualizadas de luta
de classes.
15
MIR, Luís. Guerra Civil: Estado e Trauma. São Paulo: Geração Editorial,
2004. p. 377.
16
ABOS, Álvaro. La racionalidad del Terror. El Viejo Topo. Barcelona, 1986.
História & Luta de Classes - 51
Processos político-ideológicos
na esquerda eleitoral
uruguaia: 1971-2004
1. Introdução
O
presente trabalho tem por objetivo a
análise dos processos político-ideológicos
acontecidos na esquerda eleitoral uruguaia,
representada na coalizão Frente Ampla, desde sua
fundação, em 1971, até as últimas eleições nacionais,
em 2004, nas quais ascendeu ao governo nacional.
Como se identifica essa esquerda “progressista” na
atual conjuntura? A globalização e as profundas
modificações das últimas décadas situaram as
esquerdas latino-americanas diante de novos desafios,
mas também – por diversos fatores – estas esquerdas
mudaram na sua estrutura ideológica e programática.
A Frente Ampla passou por dois processos
profundos na sua essência político-ideológica: em
primeiro lugar, uma etapa ou período de transição
(1984-1994), que foi do pós-ditadura até a
consolidação da recuperação democrática. Em
segundo lugar, outro processo, que teve seu marco
inicial em 1994 e foi até 2004, o chamado período
“progressista”, que levou a esquerda a assumir o
governo nacional. Em ambos os processos –
diferenciados entre si –, surgiram mudanças
estruturais dentro e fora da coalizão, que a
transformaram em uma nova opção eleitoral para os
uruguaios e que levou ao fim do bipartidarismo
secular.
As grandes perguntas que norteiam nosso
trabalho têm como foco duas interrogantes principais:
a primeira, quais foram as mudanças estruturais que a
Frente Ampla protagonizou durante esses dois
períodos, ou seja, desde a esquerda tradicional dos
anos de 1960, passando pelo período de transição, até
chegar à etapa progressista? A segunda interrogante é
como essas mudanças se efetivam nas novas
estratégias programáticas da coalizão e como elas se
traduzem em um novo momento político para o país?
Em definitivo, para onde caminha essa nova
esquerda?
1
Professor da Unoesc Xanxerê (SC). Doutor em História pela Unisinos (RS).
Contato: [email protected]
José Pedro Cabrera Cabral1
2. Contexto e antecedentes do frenteamplismo
(1971-1984)
O programa fundacional da Frente Ampla – FA,
de 1971, foi marcado pelo contexto econômico e
social aberto na segunda metade da década de 1950,
com uma longa crise de esgotamento do modelo de
desenvolvimento baseado na industrialização pela
substituição de importações, assim como do modelo
de bem-estar social que ele sustentava. Ao longo da
década de 1960, o fracasso aprofundou-se depois de
sucessivas tentativas de inovação na política
econômica – como a reforma monetária e cambial de
1959, e o congelamento de preços e salários de 1968 –,
que se dividiam entre o reformismo liberal e a
ratificação dos setores conservadores.
O contexto político e institucional do período de
formação da Frente Ampla não escapou à crise que se
configurou na esfera econômica e social. Nos
extremos dessa deterioração política e institucional na
década de 1960, instalava-se a violência política no
país: de um lado, um setor militar ligado à direita
nacionalista, convencido da necessidade de suprimir
as instituições democráticas para prevenir o avanço da
“ameaça comunista”; e por outro, grupos de militantes
de diversas organizações de esquerda adotaram a luta
armada para a tomada do poder através da guerrilha.
Também o governo, desde 1968 – de forma
explícita –, adotou a violência para reprimir as
manifestações sociais e políticas oriundas do
profundo mal-estar vigente na época.
Dentro da Frente Ampla de inícios dos anos
1970, as concepções de mudanças sociais e políticas
se dividiam entre visões reformistas e revolucionárias.
Esse aspecto revelava uma dissociação entre
ideologia e programa; mesmo que no programa
52 - Processos político-ideológicos na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004
se mantivessem legados da esquerda tradicional,
também se incorporaram pontos reformistas
que propunham mudanças pelo caminho
do desenvolvimento capitalista. Os setores
reformistas foram influenciados pelas teorias
desenvolvimentistas e dependentistas. Os setores
revolucionários, por sua vez, imprimiam, na ideologia
frentista, a visão socialista como única alternativa de
mudanças efetivas para a sociedade uruguaia.
As reformas estruturais propostas pela Frente
Ampla para a modificação da inserção internacional
do país passavam – na sua essência – por: a)
planejamento nacional independente da economia,
com objetivos sociais, criando, para tal, um organismo
para dirigir o planejamento, do qual participassem os
sindicatos, os produtores, os técnicos e os
representantes do poder político; b) a expansão do
patrimônio comercial e industrial do Estado, através
de uma política de nacionalizações; c) uma reforma
agrária radical, que redistribuiria a terra, eliminando o
latifúndio; d) a nacionalização do sistema bancário e
dos grandes monopólios que controlavam o comércio
exterior; e e) . uma reforma radical do sistema
tributário, atingindo, através de impostos diretos, as
2
grandes fortunas e o capital improdutivo.
O intenso debate ideológico e programático
desenvolvido dentro da esquerda nas décadas de 1960
e 1970 chegou ao seu fim com a queda da
“democracia”, em 1973, e a implantação do regime
ditatorial civil-militar. A esquerda foi ilegalizada e a
repressão massiva sobre todos os setores populares
objetivou fazer desaparecer, do âmbito da política
nacional, qualquer vestígio dos antecedentes políticoideológicos dos movimentos populares. Como
afirmam Garcé e Yaffé, o encerramento do debate
público impede de realizar, entre 1973 e 1984,
qualquer tipo de observação a respeito do que aqui
interessa (ideologia e programa), que possa ser
atribuível à Frente Ampla de forma geral. De fato, a
FA e suas partes integrantes lograram sobreviver, pese
as inúmeras dificuldades, mas se achavam
desarticuladas, até que se reencontraram em 1985.
3. O debate na fase de reorganização da Frente
Ampla, a partir de 1985
A análise do debate interno da Frente Ampla
necessita de duas leituras. Uma corresponde a suas
expressões públicas. Outra, à luta ideológica e política
que esse debate público oculta, suprime importância
ou simplesmente omite. Igualmente importante é
interrogar sobre o porquê de tal ocultamento. Uma das
hipóteses possíveis é que a esquerda viveu, desde
1985, o desafio de se converter em uma esquerda
2
GARCÉ, Adolfo; YAFFÉ, Jaime. La Era Progresista. Montevideo: Fin de
Siglo, 2004, p.37-38.
integrada e funcional ao sistema ou, pelo contrário,
realizar-se como a forma política com capacidade de
transformar a sociedade capitalista.
Uma segunda hipótese é que tal como se
propiciou o debate, encarado como divergências
táticas, quando na realidade se tratava de uma
verdadeira mudança estratégica, não foi possível
atingir uma clara formulação de alternativa política
transformadora. E a maior responsabilidade de que
isso fosse assim coube às organizações que exerceram
a hegemonia na FA. Essa hipótese tem sua origem na
ausência de uma síntese compreensiva do processo de
reestruturação capitalista e de seus correlatos nas
exigências de dominação e em toda a luta de classes.
Essa elaboração deficitária permitiria manter a
iniciativa das correntes de centro-esquerda que
procuram mudanças funcionais do sistema. Dessa
forma, a condução hegemônica vai lentamente
abandonando os postulados transformadores em
nome do “realismo político”.
A isso se agregam outros fatores. Em primeiro
lugar, a iniciativa dos setores denominados de
correntes de centro-esquerda, que teve seu ponto de
partida na busca de alianças policlassistas com os
partidos políticos burgueses. Isso se verificou nas
tentativas de concertación econômica e social durante
os anos de 1985 e 1986. Em segundo lugar, as
limitações e deficiências encontradas pela esquerda
durante a ditadura. Em terceiro lugar, as ações
ideológicas dos centros mundiais do capitalismo, em
especial os europeus, que procuraram reduzir as
opções políticas a duas alternativas possíveis:
autoritarismo militar ou democracia representativa,
cooptando, para esta última alternativa, lideranças dos
partidos e intelectuais dos mesmos.
Antes de se introduzir na análise do debate,
torna-se necessário precisar aqueles aspectos nos
quais a FA manteve uma atitude opositora coerente
com sua plataforma de princípios: a) sua discrepância
em geral com a política econômica governamental;
b) a defesa genérica das demandas das classes
populares; e c) a defesa dos direitos humanos. Isso
implica a tentativa da abertura de processos contra
militares acusados de violentá-los durante a ditadura e
questiona um dos pré-requisitos que a direção política
dos partidos tradicionais considerava indispensável
para o exercício da dominação.
Além desses fatos, a linha política observou
carências significativas em todos os níveis de sua
ação. Isso modificou seu perfil opositor, causando
uma geral insatisfação em grande parte de sua
militância. Em 1985 e 1986, a direção da FA
empenhou-se em realizar alianças com forças da
História & Luta de Classes - 53
burguesia, através de suas representações políticas,
tendo a concertación como elemento de viabilidade.
Participou em negociações que foram dirigidas pelo
Partido Colorado, as quais tiveram algumas
particularidades: a) excluíam toda discussão sobre a
política econômica; b) aconteceram de forma
simultânea a um discurso e a uma prática
governamental anti-sindical.
O período foi caracterizado por uma política
ambígua, visto que, ao mesmo tempo, realizavam-se
preparativos para uma democratização dos
organismos de direção da FA, incorporando
representantes dos delegados dos comitês de base e
das coordenadoras do Plenário Nacional, o que
finalmente se concretizou em forma “mediatizada”,
enquanto as negociações terminaram em fracassos,
devido à irredutibilidade do Governo em modificar a
política econômica. Nessas atitudes começavam a se
evidenciar as primeiras manifestações do que logo
seria um ponto-chave do debate político-ideológico:
na linha de negociação primava a preocupação por
aparecer como um partido “construtivo”, em vez de
manter uma ação política “testemunhal e
contestatória”.
Com esse qualificativo pejorativo, buscava-se
diluir a atitude de oposição frontal, buscando
converter a FA em uma esquerda coadjuvante para a
tarefa de resolver as contradições da sociedade
capitalista em crise. Por sua parte, a direita ganhou
tempo para seus objetivos e para manter as condições
de “governabilidade”, entendida como uma nova
modalidade de exercer a dominação de classe. Isso
não deve ser confundido com a análise ingênua de que
o objetivo do governo era obter as maiorias
parlamentares das quais carecia.
O ciclo de negociações em procura de um
acordo social policlassista se fechou em dezembro de
1986, com a votação da lei de caducidade aprovada
pelo Partido Colorado, com o apoio dos
parlamentares do Partido Nacional, à exceção dos
legisladores do Movimiento Nacional de Rocha. Em
outro plano, a ausência de uma visão sobre o processo
político real e sobre as diversas modalidades da
dominação de classe e da dependência exterior teve
duas expressões significativas: por um lado, o apoio à
política exterior do governo uruguaio, sem incluir
nenhuma atitude crítica. Isso implica uma gravidade
que não foi avaliada na sua profundidade, tendo em
conta que significou avalizar a política exterior em
relação à dívida externa, com respeito à qual o
governo aplicou pontualmente as diretrizes do FMI,
ou a atitude condescendente com a política
imperialista em relação a recuperar o domínio total do
Canal de Panamá, ou o intervencionismo na
Nicarágua, El Salvador, etc. Em suas projeções, essas
atitudes implicaram renunciar a construir uma nova
concepção independente nas relações internacionais.
Por outro lado, a ausência de uma
discriminação nas relações com o empresariado
industrial e rural, que são as classes que exercem o
poder econômico e, como tal, beneficiárias diretas da
exploração que exercem sobre a população
trabalhadora. Acreditava-se, na ilusão de que se
estava “ganhando espaços”, sem se perguntar se eram
espaços conquistados ou cedidos. Isso foi
especialmente notório no setor agropecuário, com o
relacionamento indiscriminado para os “produtores”,
enquanto se excluiu qualquer ação privilegiada para
3
os assalariados rurais.
Entretanto, desapareciam da análise questões
tais como a das forças sociais que representavam a
aliança de esquerda; ou as implicações políticoideológicas que derivavam da reestruturação
capitalista e a magnitude selvagem que adquiria a luta
de classes; ou a necessária articulação entre a frente
política e o movimento sindical, o estudantil e o
movimento social cooperativo, de bairros, etc. A
temática foi abordada pelo presidente da FA em um
ato realizado em abril de 1988, mas sem grandes
conseqüências. O problema possuía especial
importância na medida em que se pretendesse
representar e conduzir o conjunto das classes
populares.
O centro da luta ideológica verificou-se ao
redor da busca – por parte da corrente integracionista
– por impor concepções políticas que podem ser
qualificadas como social-democratas; quer dizer, um
movimento que preconizou reformas sociais por vias
exclusivamente parlamentares, dentro do sistema
político das classes dominantes e sem transcender o
modo de produção capitalista.
4. A transição da esquerda uruguaia na década de
1980 e no início dos anos 1990
A transição da ditadura ao pós-ditadura marcou
fortemente a esquerda na sua concepção de
democracia. A experiência vivida entre 1973 e 1984
acabou dando suma importância a democracia
“formal”. Se, em 1971, a defesa da democracia formal
era uma concepção pragmática no contexto imposto
pelo avanço do autoritarismo, em 1984 pode-se dizer
que o conceito de democracia começa a se impor
como componente ideológico da esquerda. Sem
dúvida, esse sentimento “democrático” era produto de
um contexto regional e internacional – o auge do
governo de Raúl Alfonsin na Argentina e a reabertura
3
ESTELLANO, Washinton; LATORRE, Raúl; ELIZALDE, Esteban. ¿Qué
Frente Amplio Necesitamos: un análisis crítico a la luz de la situación
actual de América Latina. Montevideo: Tae, 1989, p.66-69.
54 - Processos político-ideológicos na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004
democrática brasileira –, conjuntamente com o
avanço do neoliberalismo, particularmente a
experiência chilena. A terceira onda democrática,
desencadeada primeiro na década de 1970, no sul da
Europa Ocidental e que atingiu a América Latina na
década de 1980, colaborou com a revalorização da
democracia.
A partir de 1985, os setores de centro-esquerda
apresentaram uma nova alternativa apoiada no
conceito da democracia e de sua valorizaç‫م‬o. Na
saída do período autoritário foi unânime o discurso
favorável à democracia, a qual se valorava
positivamente. Mesmo assim, tal unanimidade deve
ser analisada, visto que é possível designar, neste
conceito, diferentes interpretações. Na análise da
centro-esquerda, nas décadas de 1960 e 1970, a
palavra democracia era empregada dentro da
esquerda em conjunção ou adjetivada por termos
desqualificantes e necessários de serem superados:
democracia burguesa, democracia formal, entre
outras. Hoje ela se emprega fundamentalmente
associada a termos pertencentes ao desejável
para as esquerdas: democracia participativa,
autogestionária, avançada, social. Isso não
necessariamente implica que a esquerda tenha
realizado uma crítica de sua visão sobre a
democracia.
Uma avaliação sistemática do discurso político
interno e da ação material da esquerda poderia
mostrar qual é o novo conceito existente hoje. O
ponto-chave da “alternativa” formulada nos setores
da esquerda política uruguaia se encontra na opção
entre uma concepção que entende e aceita a
democracia como um valor substancial (passível de
ser aprofundado, melhorado e complementado), que
forma parte do projeto desejável para o futuro, e
outra que concebe a democracia como um valor
instrumental de caráter estratégico, ou inclusive
tático, que deve ser defendida em uma determinada
conjuntura, mas que não forma parte do projeto a ser
instituído na sociedade, visto que sua própria
essência vincula-se a formações sociais que devem
4
ser substituídas.
Dessa forma, pretendeu-se demonstrar que a
estabilidade democrática que o país desejava
dependeria – no que atinge a esquerda – da
concepção predominante: assim, a dita estabilidade
poderia ser percebida como um “obstáculo” para o
processo de transformação ou, sem ser percebida
como um “obstáculo”, poderia ser levada em
consideração como um elemento de menor
importância. A lógica da ação política, entretanto,
quer observe a democracia como valor substancial
ou como valor instrumental, implicou em mudança
na formulação ideológica da “nova esquerda” que,
sem lugar para dúvidas, possui as características e
pressupostos da social-democracia.
Depois de 1985, o sistema partidário uruguaio
revelou um novo fenômeno substancial: o final do
bipartidismo secular que caracterizou o modelo
democrático no país. O surgimento da Frente Ampla
implicou a consolidação de um terceiro espaço, que
nasceu em 1971. O bipartidismo continuou
determinando a lógica política nos âmbitos
governamental e parlamentar, na medida em que
ambos os partidos, somados, eram maioria. Após
1985, iniciou-se um lento e gradativo processo de
crescimento da esquerda eleitoral que apresentou,
como característica marcante, o fato de ser
uma “verdadeira” oposição ao sistema de
“compromisso” (entre blancos e colorados). Esse
fenômeno deu início a um novo sistema partidário
ideologicamente diferenciado. O mesmo se
expressa, hoje, na existência de dois blocos: o bloco
“tradicionalista”, do centro à direita, e o bloco
“progressista”, do centro à esquerda.
Na composição do bloco tradicionalista não
existiu nenhuma fração ou movimento de
“esquerda”, como também não existiu nenhuma
fração de “direita” no chamado bloco progressista. A
polarização ideológica se evidenciava de forma
clara. Mas isso não foi sempre dessa forma, como
5
salienta Moreira : até os anos noventa , os partidos
tradicionais tinham suas frações de centro-esquerda,
especialmente o Partido Nacional. Antes da
formação da Frente Ampla, mesmo existindo
partidos ideológicos de esquerda, os partidos
tradicionais possuíam uma dinâmica interna que os
fracionava no eixo “conservador-progressista”.
A dinâmica da competição ideológica superou
os limites das lutas de frações, tornou-se
interpartidária, transcendeu as próprias fronteiras
dos partidos, formando “coalizões ideológicas” que
nuclearam vários partidos: o bloco tradicional
(blancos e colorados juntos) e o bloco progressista
(que junta partes do Partido Nacional, do “Nuevo
Espacio” e de setores que contribu‫ﻱ‬ram para o
crescimento, “para dentro”, da FA). Esse processo se
refletiu nas eleições que aconteceram no período
pós-ditadura; no total, foram cinco eleições: 1985,
1989, 1994, 1999 e 2004. Na primeira eleição, em
1985, o Partido Colorado ganhou com um percentual
de 41%, a FA cresceu 3% e o Partido Nacional
perdeu 5%. Na segunda eleição, em 1989, o Partido
Nacional recuperou quatro pontos, o Partido
Colorado perdeu dois e a FA continuou com uma
4..
5
MOREIRA, Constanza. Final de Juego: del bipartidismo tradicional al
triunfo de la izquierda en Uruguay. Montevideo: Trilce. 2004. p. 21.
MIERES, Pablo. Democratización en Uruguay: disyuntivas para la izquierda.
In: Cuadernos del CLAEH. Montevideo: Año 11, nº 39, 1986, p. 57.
História & Luta de Classes - 55
votação similar. A partir das eleições de 1994, as
bases do bipartidismo uruguaio se modificaram e, na
eleição desse ano, a votação dos três partidos foi
quase idêntica.
O “Encuentro Progresista” – EP fundou-se em
agosto de 1994 e formou uma slَ ida aliança com a FA
que, a partir desta, passa a denominar-se “Encuentro
Progresista - Frente Amplio” – EP-FA. Essa aliança
feita pelo Partido Democrata Cristão e por membros
da fração de “blancos progresistas”, liderada por
Rodolfo Nin Novoa, não integrou a FA, e sim formou
uma nova estrutura aliada a já existente coalizão de
esquerda. Após as eleições de 1999, a corrente
“Nuevo Espacio”, liderada por Rafael Michelini,
decidiu dar apoio a Tabaré Vázquez no segundo
turno da eleição; repetindo a experiência do EP,
Michelini nucleou brancos e colorados dissidentes e
formou uma nova estrutura que se aliou à FA com o
nome de “Nueva Mayoria” – NM. Sob essa nova
frَ mula (EP - FA - NM), a esquerda ganhou as
eleições de 2004 no primeiro turno, com 50,45% dos
votos válidos.
A formação do EP, em 1994, marcou, dentro da
esquerda nucleada na FA, um processo de “transição
ideológica”. Essa transição foi produto de um
intenso debate que teve suas origens desde 1985 e
que circulou entre duas correntes: os partidários de
uma renovação ideológica, estratégica e
programática da esquerda, e os defensores do
frenteamplismo tradicional. Entre os primeiros
destacaram-se Hugo Batalla, YamandْFau, Éden
Melo, Juan Pablo Terra e José Manuel Quijano.
Entre os segundos, Danilo Astori, Eduardo De Leon,
Manuel Laguarda e Esteban Valenti, entre outros.
Como resultado desses debates, provocou-se uma
divisão entre a “nova esquerda” e a “velha
esquerda”, que culminou com a ruptura de 1989 e a
criação do “Nuevo Espacio”.
Entre 1989 e 1994 aconteceu a segunda etapa
da transição ideológica. Grande parte da esquerda
abandonou o discurso ideológico e programático do
frentismo fundacional. A criação do “Encuentro
Progresista”, em 1994, foi o momento culminante
dessa nova transição. O contexto que influenciou
esse processo de mudanças foi marcado: a) no plano
internacional, pelos anos da Perestroika e da
posterior derrubada do sistema socialista, da crise do
estado de bem-estar e do paradigma Keynesiano;
b) no plano regional, foram os tempos
da redemocratização (argentina e brasileira,
fundamentalmente), do ajuste estrutural e da
formação do Mercosul; c) no plano nacional, dois
acontecimentos influíram fortemente: a transição
6..
COURIEL, Alberto. La Izquierda y el Uruguay del Futuro. Montevideo:
Banda Oriental, 2004, p 9.
econômica, com um acelerado giro em direção ao
liberalismo, especialmente no governo de Alberto
Lacalle, e a assunção do governo municipal de
Montevidéu, a partir de 1989, pela FA.
Segundo as observações de Garcé e Yaffé, com
a derrubada do “socialismo real”, a partir de 1989, a
evolução ideológica e programática da esquerda se
acelerou. Dois anos depois de o Partido Comunista
Uruguaio haver obtido a melhor votação de sua
história, desmoronou-se abruptamente. Toda a
esquerda foi afetada pelo desmoronamento do
“socialismo real”, que viu corroerem-se de um dia
para o outro, as principais bases que estruturavam
sua ideologia: a teoria marxista, fortemente
questionada a partir desses debates; o abandono do
socialismo como uma meta que se considerava
factível; a crise do marxismo e do socialismo, que
provocou um impacto na valorização das garantias
institucionais da democracia; e, por último, uma
clara tendência à valorização do mercado que, até o
momento, nunca despertara interesse dentro da
esquerda.
Por outro lado, a experiência concreta do
governo municipal colocou a esquerda, pela
primeira vez (1989), na situação de administrador
público e diante da necessidade de pensar em
administrar, com escassos recursos, o mais
importante município do país. O governo municipal
exercido por Tabaré Vázquez contribuiu para
acelerar o processo de renovação ideológicoprogramática da esquerda. Ela incorporou em seu
discurso elementos até o momento distantes, como
“competência” e “eficiência”. O ingresso da FA no
cenário político como governo (municipal)
revitalizou polêmicas sobre as mudanças
ideológicas e programáticas que levaram à
construção da “nova esquerda” e de sua virada
político-ideológica.
5. A nova esquerda uruguaia: a esquerda
progressista 1994-2004
A concepção da nova esquerda, vigente no
início do século XXI, tem como base a revalorização
da democracia como um fim em si mesma, como um
estilo de vida, com base no “respeito e na tolerância
do outro, de outros valores, de outras culturas, de
outras religiões. Tornou relevante o convívio
pacífico com o outro, que pode ser adversário, mas já
não é inimigo a exterminar”.6 Assim, a democracia
passou a ser uma promessa civilizatória e tomou
um valor ético de equidade e igualdade. Nessa
concepção, os conflitos sociais hoje não se resolvem
mais pelo enfrentamento, e sim através do
56 - Processos político-ideológicos na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004
diálogo, acordos, concertação, negociação, “todos
instrumentos inerentes à democracia”. Os
programas da nova esquerda já não possuem como
epicentro o combate à oligarquia e ao imperialismo,
senão que chamam os “antigos inimigos” à mesa das
negociações, ou seja, como “novos parceiros”.
A esquerda se perfila como um movimento
político que pode salvar a democracia, na medida em
que consiga atingir seus objetivos de crescimento
com justiça social, de desenvolvimento, de atenção
aos direitos sociais dos cidadãos. Esse movimento
deverá ser capaz de enfrentar o descrédito na
política, nos políticos e nos partidos políticos.
Portanto, segundo a nova esquerda, para enfrentar os
problemas internos da sociedade tornam-se
necessárias transformações do modelo econômico e
mudanças sociais, políticas e institucionais que
permitam a consolidação da democracia, para se
poder “evoluir” da democracia política à democracia
econômica e social.
A democracia política está instalada na maioria
dos países da região e, segundo Couriel (2004), deve
considerar-se como um fim em si mesma, como o
melhor regime de convívio social. Os princípios
básicos dessa democracia política são o sufrágio
universal, o pluripartidarismo, a existência de um
estado de direito, as liberdades básicas, a garantia
dos direitos humanos, o governo das maiorias e o
acatamento das minorias. Na opinião de Couriel,
torna-se fundamental manter esses princípios
básicos, mas só será possível de se consolidar a
democracia avançando para uma democracia
econômica e social que tenda a resolver as grandes
desigualdades, a exclusão social, a marginalidade, a
violência, avançando para o desenvolvimento dos
7
países da região.
Na proposta da nova esquerda, avançar
em direção à igualdade de oportunidades
econômicas, sociais e políticas para se atingir
o pleno desenvolvimento humano exigiria,
necessariamente, mudanças estruturais nos planos
econômico, social e político. As mudanças
aconteceriam com a condição de que se transforme o
Estado: reclama-se a presença de um Estado
“reformado e modernizado”. As mudanças sociais
passam pela necessidade de novos atores, dinâmicos
e atentos à necessidade de se avançar para outros
modelos alternativos aos hoje existentes. “Passar
para alianças sociais básicas e novas formas de
participação cidadã. No plano político, torna-se
imprescindível melhorar a representatividade dos
partidos políticos e a articulação destes com a
8
sociedade civil”. Nesse discurso, atribui-se ao
Estado a capacidade de condução para governar a
globalização e desenvolver uma política de inclusão,
a partir de uma grande aliança de atores sociais com
9
força para liderar o processo de transformações.
Um fato que chama a atenção, ao se observar as
análises sobre a América Latina dos anos de 1980, é
que se intensificavam cada vez mais as
preocupações pelo problema da democracia e as
expectativas por fortalecê-la, precisamente em um
momento em que o ceticismo e as reservas frente a
essa possibilidade eram os elementos mais
característicos dos problemas internos dos países
capitalistas desenvolvidos. Com efeito o tema dos
limites da democracia e o esgotamento do Estado
Nacional foram, na década de 1970, uma temática
presente nos trabalhos da teoria política dos países
capitalistas desenvolvidos (BRZEZINSKI 1970;
SCHIESINGER 1974; HUNTINGTON 1975,
entre outros). Se os processos de democratização
dos países capitalistas dependentes estavam
muito condicionados pelas perspectivas de
desenvolvimento da democracia nos países
capitalistas centrais, uma verificação importante
refere-se ao estabelecimento dos “limites” do
processo democrático nos Estados Unidos e na
10
Europa Ocidental.
Segundo a nova esquerda, uma transição da
democracia política para a democracia econômica e
social requer mudanças no poder político e “atores e
alianças” sociais possuidores desses processos de
mudanças. As mudanças no poder político passam
pela revitalização dos partidos políticos e,
fundamentalmente, por acordos políticos que
influenciam em um processo de “revitalização” nas
“negociações” internacionais, na modificação no
sistema educativo, na democratização dos meios de
comunicação, na transformação do Estado e do
modelo econômico, e nas relações de poder. As
mudanças nas relações de poder entendem-se como
determinantes do conjunto de transformações para
se atingir o desenvolvimento e consolidar os
processos democráticos.
As propostas da nova esquerda foram o
resultado de um acúmulo de discussões que tiveram
como base um profundo processo de atualização
7..
COURIEL, Alberto. op. cit., p.27.
COURIEL, Alberto. op. cit., p.28.
9
As transformações que as sociedades latino-americanas têm sofrido como
conseqüência dos efeitos sociais da “crise da dívida”, a crescente
internalização do comércio no marco de uma profunda revolução tecnológica
e a substituição do modelo político estado-centro por um modelo crescente,
centrado no mercado e coerente com o “Consenso de Washington”,
8
complicam significativamente o cenário no qual as democracias latinoamericanas e seus sistemas de partidos devem funcionar e consolidar-se.
MAIRA, Luís. Forças Internacionais e Projetos de Mudança Política na
América Latina. In: América Latina: novas estratégias de dominação.
MAIRA, Luís: SOUZA, Hebert José de; et al. (Orgs.) São Paulo: Vozes, 1980,
p. 12-13.
10
História & Luta de Classes - 57
ideológica, na qual os atores centrais, dentro da
Frente Ampla, provinham de diversos setores e
tendências. Esse processo, que se acentuou com
clareza a partir de inícios da década de 1990, acabou
unificando, em torno de um programa eleitoral, a
militância frentista e os votantes da esquerda. Assim,
o processo contou com várias posições enfrentadas,
que geraram um clima de insatisfação em
importantes setores da militância frentista, levando
ao confronto ideológico e programático que se
definiu com uma virada geral da Frente Ampla para o
centro.
Em claro confronto com as propostas da
“nova” esquerda surgiu, no início da década de 1990,
o Movimento de Participação Popular – MPP, como
produto de uma aliança entre o Movimento de
Libertação Nacional – MLN – Tupamaros e uma
série de pequenas organizações localizadas na
extrema esquerda da FA. Em 1994, o MPP fez
oposição ao Encontro Progressista, por entender que
sua proposta era uma forma de hegemonia no
interior frenteamplista para a tomada de decisões e
por não aceitar a estratégia implícita de moderação
programática. Apesar disso, após a derrota do
Encontro Progressista, em 1994, o MPP iniciou uma
mudança radical que se tornou decisiva. A partir de
1995 somou-se à estratégia de Tabaré Vázquez e
José Mujica – principal figura do MPP – começou a
emergir como um dos referenciais mais importantes
da FA.
A mudança tomada pelo MPP, fundamentalmente na pessoa de Mujica, significou o
protagonismo – nele identificado – da atualização
ideológica e da modernização programática da FA.
Essa situação provocou uma ruptura interna por
parte dos setores que não fizeram acordo com essa
guinada. Como conseqüência, o Partido pela Vitória
do Povo – PVP afastou-se do MPP, conjuntamente
com outros setores minoritários, e, juntos, fundaram
a Corrente de Esquerda. De tal forma que, a partir de
1995, o MPP ficou configurado como um espaço
ampliado do MLN – Tupamaros e de setores
independentes. A ruptura provocou o afastamento do
PVP, do Partido Socialista dos Trabalhadores e do
Movimento Revolucionário Oriental.
O apoio público dos dirigentes do MLN –
Tupamaros (representado em Mujica) e as
estratégias do programa progressista contribuíram
para a legitimação, perante a militância e os votantes
da esquerda, da moderação programática que a FA
trazia como bandeira, a partir de linhas de ampliação
da política de alianças. As possíveis explicações
do porquê de a FA ter conseguido modificar
11..
FRENTE AMPLIO. Nuestras Señas de Identidad. Montevideo: Comité
Central, mimeo, 2003, p.5.
profundamente seu programa e avançar em direção
ao centro, sem perder seu eleitorado de esquerda,
deve considerar esse fator. O MPP atuou também
como fator limitador para o surgimento de uma
oposição interna forte dentro do frenteamplismo,
amparada, fundamentalmente, na mítica do passado
de guerrilha do MLN – Tupamaros.
Além disso, outros dois fatores devem
ser considerados: a institucionalização e a
tradicionalização, visto que ambos têm contribuído
muito com essa estratégia política. Ao longo dos
anos, a FA foi se institucionalizando como partido,
consolidando-se em organicidade e em estrutura,
absorvendo as partes constituintes da coalizão.
Conjuntamente com a institucionalização, que a
fortaleceu como estrutura de partido, desenvolveuse uma forte identidade partidária a partir de uma
nova tradição política, potente e jovem, que
transformou a FA no terceiro ator do sistema de
partidos, quebrando definitivamente o bipartidismo
tradicional e inaugurando o tripartidismo.
Desde o ponto de vista da trajetória ideológica,
as grandes mudanças tiveram seu ponto central no
IV Congresso da FA, chamado de “Tota Quinteros”,
realizado em 22 e 23 de setembro de 2001. Esse
Congresso foi marco culminante da atualização
dentro da FA. No evento foram aprovados três
documentos relevantes, com um considerável
conteúdo ideológico e programático, intitulados:
Pautas para el Desarrollo Ideológico y la
Elaboración Programática; Grandes Liñas de
Acción Política; e Nuestas Señas de Identidad. Entre
eles, o primeiro e o terceiro foram particularmente
importantes para o estudo da ideologia da esquerda
progressista.
O documento “Nuestas Señas de Identidad” foi
o primeiro a manifestar oficialmente, de forma
explícita, a existência de uma ideologia
propriamente frenteamplista, assumindo a
11
necessidade de atualização permanente. Nele
culminou o processo de institucionalização e
consolidação partidário do que originalmente foi
uma coalizão de partidos e frações. Durante um
longo tempo, acreditava-se, no âmbito
frenteamplista, que a ideologia era reduto de seus
grupos componentes e, portanto, que o acordo e a
identidade frentista apoiavam-se no programa.
Em relação às referências ao marxismo, elas
ficaram reduzidas a mínimas expressões de alguns
grupos, predominando, no conjunto, uma definição
socialista light, vinculada às críticas ao
neoliberalismo e à globalização, como expressão à
crítica do capitalismo. A versão do socialismo
58 - Processos político-ideológicos na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004
existente na FA, a partir do IV Congresso, foi
vinculada diretamente aos conceitos socialdemocratas europeus, mesmo que com uma pequena
acentuação em direção à esquerda. Como afirmaram
12
Garcé e Yaffé, a FA “propôs desenvolver um
capitalismo levado a sério”, mantendo um horizonte
utópico ou finalista, de tipo socialista.
Além dos discursos programáticos dos
componentes da coalizão, o resultado foi que o
processo de atualização ideológica e da
reformulação programática da Frente Ampla levou a
um novo dimensionamento dos princípios desta. As
formulações social-democratas e, a partir destas, sua
guinada ao centro, provocaram o abandono
gradativo das bandeiras identitárias da esquerda
tradicional. A nova esquerda deixou de lado as
reivindicações que caracterizaram a Frente Ampla
desde sua fundação: a reforma agrária, a
nacionalização do sistema bancário e do comércio
exterior, a dívida externa e um forte sentimento
antiimperialista. As mudanças foram muitas, a
sociedade também mudou, mas, apesar de todos os
argumentos possíveis da social-democracia, os
problemas que assolam o país são os mesmos:
aqueles aos quais nem o capitalismo, nem o sistema
democrático representativo conseguiram oferecer
soluções.
12..
GARCÉ, Adolfo; YAFFÉ, Jaime. op. cit., p.75.
História & Luta de Classes - 59
Colombia: do surgimento
das guerrilhas ao Plano Colômbia
Renato Barbieri1
“Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que pode sonhar tua filosofia.”
(SHAKESPEARE, William. Hamlet)
Guerrilhas e Resistências na Colômbia
A
República da Colômbia tem uma longa
história de resistência popular organizada contra os
governos das classes dominantes que exploram a
população pobre do país. Voltando no tempo nos
reportaremos ao Novo Reino de Granada (Colômbia),
onde em 1781 nasceu o Movimento Comunero, que
veio a se constituir em uma das resistências
anticoloniais de maior importância do século XVIII.
Os “Comuneros” reivindicavam e colocavam em
xeque as autoridades espanholas que dominavam a
região e comandaram as lutas daquele povo
colombiano. Lutas essas que teriam seu apogeu na
campanha de Simon Bolívar pelo fim do colonialismo
espanhol e pela Independência política da Colômbia e
das regiões vizinhas.
Avançando no tempo chegamos ao século XX,
quando aparecem as primeiras guerrilhas
colombianas motivadas pelo “El Bogotazo”, que foi
uma insurreição popular ocorrida em abril de 1948, a
qual foi traída pelos líderes do Partido Liberal durante
o governo do presidente Mariano Ospina Pérez. A
partir daquele momento os camponeses se levantaram
empunhando as bandeiras de luta contra a ditadura
estabelecida no país e, principalmente, pela reforma
agrária. Quase todos os núcleos guerrilheiros eram
influenciados pelo Partido Comunista Colombiano e
pelas forças militares insurgentes originárias do
Partido Liberal. O confronto dos movimentos
guerrilheiros cresceu e passou, em pouco tempo, de
uma reação à violência do governo para
reivindicações de conteúdo social mais intenso.
No ano de 1953, assume a presidência o general
Gustavo Rojas Pinilla e as guerrilhas do Partido
Liberal depõem as armas, estabelecendo um acordo
com o governo do Partido Conservador. Essa
deposição gerou um ataque do Exército colombiano
1.
2
contra as guerrilhas comunistas e os focos liberais que
resistiam. O resultado da deposição das armas não
podia ter sido outro: A traição do governo e das
classes dominantes, resultando no assassinato das
principais lideranças guerrilheiras.
Em 1964, ano em que surge o núcleo
guerrilheiro que se transformará nas Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia - FARC, tem início a
“Operação Marquetalia”. Essa operação foi
desencadeada pelo governo colombiano com apoio
dos Estados Unidos da América – EUA, através do
Plano OSAL (Operação de Segurança da América
Latina), o qual visava derrotar as regiões de
autodefesa camponesa organizadas da Colômbia.
Durante o governo do presidente Guillermo León
Valência Muñoz, a Operação Marquetalia deslocou
um contingente de 16.000 soldados do exército
colombiano, apoiados por helicópteros, aviões e
instrutores norte-americanos, o que derrotou
momentaneamente as guerrilhas, dentro da estratégia
militar dos EUA para a América Latina conhecida
como Doutrina de Segurança Nacional. Essa doutrina
tinha seu ponto de irradiação na Escola das Américas,
com sede no Panamá, e na Aliança para o Progresso
instituída pelo governo do presidente dos Estados
2
Unidos John Fitzgerald Kennedy.
A derrota das guerrilhas obrigou-as a uma
reestruturação através de duas conferências
guerrilheiras, em 1965 e 1966, a primeira no governo
de Muñoz e a segunda no governo de Carlos Lleras
Restrepo. Na primeira conferência foram definidos os
planos de ação militar, política, de organização,
educação e propaganda, fixando como objetivo
prioritário a subsistência do movimento guerrilheiro
Professor de História da Prefeitura de Porto Alegre – RS.
SCHILING, Voltaire. Estados Unidos e América Latina: da Doutrina Monroe à Alca. 5ª ed. Porto Alegre: Leitura XXI, 2002.
60 - Colombia: do surgimento das guerrilhas ao Plano Colômbia
unido que então passou a denominar-se “Bloque Sur”.
Na segunda conferência, o “Bloque Sur” passa a
denominar-se Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia - FARC, definindo a tática de expandir a
ação da guerra de guerrilha móvel a outras áreas do
país. Surgem nesse momento outras organizações
guerrilheiras na Colômbia. As principais são o
Exército de Libertação Nacional – ELN, da qual fazia
parte o padre guerrilheiro Camilo Torres, assassinado
em 1966, e o Exército Popular de Libertação - EPL.
Nos anos 70 irá se constituir o Movimento
Revolucionário 19 de Abril - M-19.
Com relação ao surgimento desses movimentos
guerrilheiros na Colômbia, as FARC, de orientação
marxista, aparecem em resposta à violência dos
grandes proprietários rurais. Já o ELN (orientação
marxista-leninista), o EPL (orientação maoísta) e o
M-19, têm como centro político e ponto principal de
suas atividades o movimento operário, sindical e
popular.
Porém, essas organizações guerrilheiras se
viram obrigadas a atuar no campo, entrando em
guerra contra o exército colombiano. No
entendimento da Liga Bolchevique Internacionalista
– LBI (Brasil), do Partido Obrero Revolucionário –
POR (Argentina), do Grupo Trostskista Ortodoxo
(Brasil), do Comitê de Enlace de Militantes por una
Internacional Comunista Revolucionária
(CEMICOR): Poder Obrero (Bolívia-Peru), do
Grupo Comunista Operário (Nova Zelândia) e do
Grupo Solidaridad (Alemanha): “o conjunto dessas
guerrilhas tem características de serem movimentos
armados pequeno-burgueses, com base social no
campo, que desejam criar um espaço político
democrático para a oposição burguesa, fortalecendo a
economia nacional, sem alterar as relações de classe,
3
numa espécie de ‘reformismo armado’”.
O mesmo artigo afirma que “a estratégia das
FARC-EP consiste em pressionar a burguesia a fazer
algumas reformas no regime político e em suas
instituições, constituindo-se em uma força auxiliar de
um futuro governo democrático-burguês como revela
a Declaração da Comissão Internacional das FARCEP/maio de 1998: “Qualquer processo que se inicie
deve ter como tarefa a concretização de uma
assembléia constituinte que mude na Colômbia, as
relações de poder em favor dos setores populares”.
Diz ainda a Declaração que o processo de paz deve
‘...contribuir para a organização e luta dos
colombianos por uma pátria generosa e democrática,
para a constituição de um governo de reconciliação e
reconstrução nacional, pluralista, democrático e
4
patriótico’”.
O peso decisivo das organizações guerrilheiras
no movimento de massas explica uma das
contradições mais difíceis de compreender na
Colômbia: que ela seja um país com 70% da
população localizada nos grandes centros urbanos,
com um desenvolvimento fabril e capitalista similar
ao dos países do cone sul do continente americano,
mas cujo proletariado não realiza movimentos
contestatórios e greves que sacudam o país.
Durante os anos 1970 e 1980, vários presidentes
dos partidos Liberal e Conservador se revezaram no
governo colombiano. Misael Eduardo Pastrana
Borrero, Alfonso López Michelsen, Júlio César
Turbay Ayala e Belisário Betancour Cuartas
agudizaram a crise econômica do país e as revoltas
camponesas tornaram-se mais intensas. As FARC e os
demais grupos guerrilheiros estiveram à frente dessas
mobilizações.
Na sétima conferência guerrilheira, em maio de
1982, no governo Betancour, a guerrilha conhecida
como FARC decidiu converter-se em Exército do
Povo, passando a se chamar Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo –
FARC-EP, o que significou uma profunda
transformação da ação militar da guerrilha, pois o
movimento ampliou sua base dirigente aos setores até
então excluídos do movimento.
Em 1984, as FARC-EP assinam com o
presidente Belisário Betancur um acordo de cessar
fogo, trégua e paz (Acordos de la Uribe), integrandose à oposição civil e criando um novo movimento, a
União Patriótica – UP.
Esse ato da guerrilha demonstrou-se
catastrófico na prática, pois após a assinatura dos
acordos de paz foram assassinados em torno de 5.000
dirigentes da União Patriótica pelas forças
paramilitares e pelo Exército colombiano. Muitos dos
parlamentares eleitos pela UP foram mortos, fazendo
com que as FARC-EP rompessem a trégua e
retornassem à guerrilha armada, da qual nunca
deveriam ter saído.
Em 1987, durante o governo do presidente
Virgilio Barco Vargas, organiza-se a Coordenação
Guerrilheira Simon Bolívar – CGSB, agrupando a
totalidade dos insurgentes colombianos.
No governo de César Augusto Gaviria Trujillo,
em 1990, o M-19 e um setor do EPL depuseram as
armas e se incorporaram à oposição parlamentar
colombiana para concorrerem às eleições em todos os
3.
ABAIXO a intervenção imperialista na Colômbia! Unir a luta do movimento
operário com a ofensiva militar da guerrilha para pôr abaixo o governo Andrés
Pastrana e o domínio imperialista e burguês!. Disponível em:
<http://www.us.geocities.com/pormasas/Portugues/colport.html?2000628>.
Acesso em 30 de março de 2006.
4
Idem.
História & Luta de Classes - 61
níveis no país. O dirigente do M-19, Navarro Wolf,
tornou-se ministro da saúde do governo Gaviria.
Nesse período as guerrilhas perderam
consideravelmente parte de sua força política devido
à crise no Leste Europeu e ao desmantelamento da
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS
e se viram obrigadas a buscar novas fontes de recursos
para financiar a guerrilha nas suas necessidades de
armamentos e subsistência dos combatentes. As
FARC-EP criam o “imposto revolucionário”, taxa de
5% cobrada dos narcotraficantes nas regiões de refino
e exportação de cocaína sobre o total da produção da
droga. Com esse dinheiro a guerrilha adquiriu um
arsenal bélico que a colocou em pé de igualdade com
o Exército colombiano e com os movimentos
paramilitares financiados por latifundiários,
narcotraficantes e por setores “desconhecidos” que
acredita-se incluam desde o governo colombiano e os
grandes capitalistas, até recursos vindos dos EUA que
poderiam estar sendo repassados pela Agência
Central de Inteligência – CIA e pela Agência Antinarcóticos - DEA.
A partir do final dos anos 1990, nos governos de
Ernesto Samper Pizano e Andrés Pastrana Arango,
acontece um crescimento exponencial das FARC-EP
e do ELN. As primeiras se tornam um referencial de
oposição ao governo Pastrana e passam a ser uma das
guerrilhas mais atuantes no planeta. As FARC-EP têm
domínio sobre 5 Estados (Departamentos) da
Colômbia: Puntumayo, Caquetá, Guaviare, Meta e
Vichada. Influenciam quase a totalidade das 1.000
cidades colombianas. Com um efetivo de cerca de
17.000 guerrilheiros e guerrilheiras, vêm expandindo
seu território sob a liderança do Comandante em
Chefe, Manuel Marulanda Vélez, também conhecido
como “Tirofijo” (Tiro Certeiro). Além de Vélez,
compõem o Pleno das FARC-EP os comandantes
Timoleón Jiménez, Raúl Reyes, Ivan Márques,
Alfonso Cano, Efraín Guzmán e Jorge Briceño.
Esse crescimento das FARC-EP mostrou-se
produto do vazio político existente na Colômbia em
função da integração da esquerda ao Estado burguês,
tanto com relação às ex-organizações guerrilheiras
como à oposição civil burguesa. Esse posicionamento
reforçou a necessidade dos camponeses combaterem
o governo com a luta armada.
O ELN, de orientação marxista-leninista, é
comandado por Antonio García e conta com um
efetivo aproximado de 6.500 combatentes. Sua área
de atuação está ao nordeste da Colômbia em
departamentos que fazem parte da Cordilheira dos
Andes Oriental.
Para a LBI, POR e os organismos ligados a eles,
5
Idem.
“o Partido Comunista, o MOIR - Movimento
Operário Independente e Revolucionário - e as
centrais sindicais (a CUT, CGTD e a CTC, além da
Federação Nacional dos Educadores – FECODE),
vêm tendo uma política de sistemática colaboração de
classes, colocando-se sempre como forças auxiliares
dos partidos burgueses tradicionais...a inexistência de
um forte partido ligado ao movimento de massas nas
cidades, a decomposição da ex-esquerda foquista,
com seu completo fracasso ao tentar se credenciar
como alternativa política no campo da oposição
burguesa, deixou um espaço político que vem sendo
ocupado rapidamente pelas FARC-EP, crescimento
esse ligado também umbilicalmente ao avanço da
5
crise social colombiana”.
No ano de 1998, Andrés Pastrana iniciou
negociações de paz com as guerrilhas colombianas e
com as autodefesas unidas da Colômbia. Em San
Vicente Del Caguán, zona desmilitarizada
aconteceram durante quatro anos uma série de
negociações que na prática se mostraram infrutíferas.
As guerrilhas exigiram como condição para o diálogo
a retirada total do Exército colombiano de quatro
municípios ocupados pelas FARC-EP (La Uribe,
Mesetas, Vista Hermosa e La Macarena) e o fim das
atividades dos grupos paramilitares, principalmente
das Autodefesas Unidas da Colômbia – AUC, grupos
que torturam, massacram, ameaçam, seqüestram e
assassinam indiscriminadamente a população
desarmada e que contam com um efetivo de
aproximadamente 9.000 homens.
Na semana seguinte ao início das negociações
de paz, as AUC mataram 148 pessoas na Colômbia.
Após várias tentativas de acordo, o líder da AUC,
Carlos Castaño, aceitou participar da mesa de
negociação, propondo (apenas de fachada) a criação
da Assembléia Nacional de Paz, organismo que
contaria com a participação de entidades
internacionais.
As guerrilhas defenderam a instalação de uma
mesa de diálogo com o governo colombiano para
juntos, governo e guerrilhas, buscarem a paz com
justiça social, através de medidas políticas,
econômicas, sociais e estruturais que acabem com as
profundas desigualdades sociais expressadas pela
crise que afeta a Colômbia.
Com base nesse programa, realizou-se em 07 de
janeiro de 1999, a primeira negociação de paz entre as
guerrilhas e o presidente colombiano Andrés
Pastrana, em San Vicente del Caguán, no
departamento de Meta.
O presidente Pastrana buscou a negociação com
o objetivo de deter o crescimento das forças
62 - Colombia: do surgimento das guerrilhas ao Plano Colômbia
populares. O enfrentamento com a guerrilha poderia
gerar um crescente clima de revolta do movimento
operário, popular e camponês, agravando-se devido à
crise social. Os diálogos com as guerrilhas foram
intensificados, por parte do governo, durante a greve
dos professores em maio de 1999, visando a
desmobilização do movimento, e receberam apoio,
através de uma visita na selva colombiana, do
presidente da Bolsa de Valores de Nova Iorque,
Richard Grasso.
No dia 21 de setembro de 1999 (nove meses
após a primeira negociação de paz), realizou-se, em
Washington, uma entrevista com o presidente Bill
Clinton e sem que o Congresso colombiano fosse
consultado, o presidente Pastrana anunciou um plano
de desenvolvimento “pela paz, pela prosperidade e
pelo fortalecimento do Estado”. Esse plano foi
chamado de Plano Colômbia e custaria U$ 7,5
bilhões, sendo que U$ 3,5 bilhões viriam de ajuda
externa (U$ 1,6 bilhão dos EUA) e os restantes seriam
a contrapartida da União Européia e do governo
colombiano.
O plano era ambicioso, mas enquanto ele
pregava a paz e os olhos do mundo estavam voltados
para as negociações de San Vicente del Caguán, na
prática o dinheiro recebido era empregado para
fortalecer, equipar e treinar o exército colombiano,
que sob a pressão de Washington, apenas declarava
estar em guerra contra as drogas, negando
veementemente a natureza social e política do
conflito.
Em 2002, com a chegada ao poder do presidente
Álvaro Uribe, que fez sua campanha de eleição com a
promessa de usar todo o peso do aparato militar para
derrotar os guerrilheiros esquerdistas que, segundo
ele, levaram o país ao descalabro, foi confirmado no
governo um “serviçal” aos Estados Unidos da
América. Já no início de seu governo não reconheceu
as guerrilhas do país. Isso implicou na não aceitação
do conflito armado, o que quer dizer que as FARC-EP
e o ELN, entre outros grupos guerrilheiros, foram
tratados como grupos terroristas, melhor dizendo,
como “narco-terroristas”, expressão criada em
Washington.
No período de 2002 a 2005, Uribe negou-se a
negociar com as lideranças das guerrilhas e o Plano
Colômbia continuou a ser implementado. Porém, os
resultados da ação militar não foram os esperados. As
guerrilhas resistiram aos ataques do exército e dos
paramilitares colombianos, fortalecendo-se, ao invés
de enfraquecer, como queria o governo.
Para combater com mais intensidade as
guerrilhas, foi criado o fracassado Plano Patriota,
continuação do Plano Colômbia, que visava atacar o
cerne das FARC-EP e do ELN nas áreas em que estas
guerrilhas atuam.
No final de 2005, o presidente mudou de tática.
Após perder apoio financeiro dos EUA, os quais
enfrentaram dificuldades devido à devastação
causada pelo furacão Katrina, em Nova Orleans, que
causou estragos na ordem de centenas de milhões de
dólares, Uribe propôs negociações aos grupos
guerrilheiros e pediu a mediação da ONU no conflito.
Hoje, a Colômbia tem um exército treinado e
equipado pelos EUA, graças aos recursos recebidos
pelo Plano Colômbia. Embora saiba que não poderá
derrotar a guerrilha, Uribe tem em mente obrigá-la a
negociar em situação de inferioridade.
O Plano Colômbia e a Área de Livre Comércio
das Américas – ALCA, são os braços de uma “pinça”
que, junto com a instalação de bases militares na
América Latina, visam um objetivo maior.
Combater o narcotráfico, na verdade, é um
pretexto para maquiar os verdadeiros propósitos dos
EUA, entre eles uma futura intervenção para
controlar essa região vital do planeta que é a Floresta
Amazônica. Nesse aspecto, a guerrilha vem a se
tornar o principal empecilho e resistência à
militarização da América Latina e a uma intervenção
que pode colocar em risco o domínio dos EUA na
região Amazônica.
Bases militares instaladas na América Latina com a participação dos EUA
Países
Bases
Colômbia
Três Esquinas, Larandia e Porto Leguízamo
Equador
Manta
Peru
Iquitos e Nanay (Zona Amazônica)
Argentina
Terra do Fogo
Bolívia
Rio Itonamas
Aruba
Rainha Beatriz
Curaçau
Hato
Honduras
Soto Cano (palmerora)
Costa Rica
Libéria
El Salvador
Comalapa
Cuba
Guantánamo
Porto Rico
Vieques
Fonte: GARCIA<http://www.marxismalive.org/homeportugues.html/>
Financiamento dos Estados Unidos ao Plano Colômbia e seu destino
Distribuição dos recursos investidos pelos EUA no Plano Colômbia
(em milhões de US$)
Apoio às tarefas de erradicação no sul da Colômbia – “Golpe ao
Sul da Colômbia”
416,9
Apoio aos programas de interdição
378,6
Apoio à Polícia Nacional da Colômbia
Apoio ao desenvolvimento econômico e alternativo (incluindo
programas nacionais e no sul da Colômbia)
115,6
106,0
Apoio a outros programas regionais e ao processo de paz
Total do apoio dos EUA ao Plano Colômbia
183,0
1.319,1
Fonte: GARCIA<http://www.marxismalive.org/homeportugues.html/>
História & Luta de Classes - 63
Colômbia: A Porta de Entrada para a Internacionalização da Amazônia
Na Geopolítica, por definição, considera-se um
país ou Estado como sendo estratégico quando seu
território satisfizer a uma destas duas condições:
possuir riqueza ou possuir uma boa localização. Se
ele satisfizer as duas melhor, será perfeito.
Com relação à região Amazônica, da qual faz
parte a Colômbia, esta apresenta com nitidez essas
duas características: riqueza e localização. Com a
Nova Ordem Mundial que se estabeleceu nas últimas
décadas do século XX, os EUA sustentam o fim das
fronteiras nacionais dos países que integram a
periferia do capitalismo mundial. Recai sobre os
povos da América a culpa pelos desastres ambientais
e de infração dos direitos humanos, como se os EUA
não tivessem devastado suas florestas e exterminado
seus índios (nativos). Contestam a capacidade
gerencial dos países americanos com ações e um
discurso de internacionalização da região amazônica.
Os laboratórios farmacêuticos dos EUA e da
Europa têm mantido biólogos e pesquisadores em
terras amazônicas, convivendo com as tribos
indígenas e, repetidamente, patenteado plantas,
raízes, frutos e substâncias animais que compõem a
biodiversidade da Floresta para a fabricação de
diversos remédios.
A Floresta Amazônica conta com 80% da
matéria-prima bioenergética do planeta. Tem um
parque protéico (peixes, castanhas, óleos) capaz de
alimentar o planeta Terra com os seus mais de 6
bilhões de habitantes por 100 anos (um século). Seu
manto vegetal é produtor de oxigênio, redutor de gás
carbônico e regulador das chuvas e da temperatura do
planeta. É uma região de salubridade cadastrada pela
Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN,
para eventual refúgio da raça humana em caso de
catástrofe nuclear no planeta. Seu território constitui
uma reserva para a expansão agrícola, demográfica e
comercial. É um potencial mercado para a ALCA. A
Floresta abriga inúmeras espécies vegetais e animais
conhecidas e outras ainda desconhecidas. As várzeas
ribeirinhas , mais férteis que as do Rio Nilo, permitem
várias colheitas anuais, com nenhum custo e com o
mínimo esforço humano. Segundo o engenheiro dos
EUA, Hamilton Rice, que em 1924-25 chefiou uma
expedição exploratória nas proximidades das
Guianas, “só o Rio Branco é suficiente para salvar da
6
ruína qualquer país do mundo” .
Como resultado da expedição de Rice, os
Estados Unidos enviaram à região o geólogo da
subsidiária da Standard Oil do Peru, Mr. Pike, que ao
regressar, assim escreveu: “Não compreendo como se
dorme tantos anos sobre uma riqueza como o
petróleo. Na Amazônia há mais petróleo do que
7
água” . A Colômbia, o Equador e a Venezuela, países
que fazem parte da Floresta Amazônica, possuem
jazidas de petróleo. A Venezuela, inclusive, possui a
maior jazida conhecida de petróleo do planeta.
Proporcionalmente ao planeta Terra, a
Amazônia conta com o maior parque de minerais no
subsolo. Grandes jazidas de ferro, manganês, ouro,
prata, urânio, bauxita e diversos outros minerais estão
adormecidos no subsolo ou são extraídos em grande
quantidade na região.
A Bacia Amazônica, maior bacia hidrogr‫ﻝ‬fica
do mundo, conta com 6,4 milhões de km² distribuídos
por nove países sul-americanos: Colômbia, Brasil,
Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela, Peru,
Equador e Bolívia. A energia elétrica da região se
constitui numa riqueza quase inexplorada.
A Floresta Amazônica conta, também, com as
maiores reservas de água potável do planeta (cerca de
25%). Na água dos rios da Floresta é que reside uma
das maiores riquezas do século XXI, a água potável.
Sabemos que as reservas mundiais de água doce estão
se esgotando e que nos próximos anos a maioria da
população do planeta terá carência desse líquido
precioso. Hoje, apenas 2,5% da água do planeta é
doce. Os restantes 97,5% da água é salgada e está
localizada nos mares e oceanos. A maioria da água
potável está nos pólos Sul e Norte, em forma de gelo
(1,75%). O resto está dividido entre lençóis freáticos
(0,74%), pântanos (0,09%) e rios e lagos (0,01%). É
pelo controle da água da Amazônia que a companhia
de água de Manaus (AM) foi privatizada há alguns
anos e parte de seu capital é dos EUA.
Porém, a maior riqueza cobiçada pelos Estados
Unidos na região amazônica – leia-se Colômbia - é a
cocaína. Produzida no país e escoada pela Floresta
Amazônica, a droga tem se tornado o centro da
discussão sobre a região. Dados do sociólogo
estadunidense, James Petras, revelam que a produção
anual de cocaína é de 1.000 toneladas. A rede de
produção, refino e distribuição dessa droga
movimenta as maiores máfias mundiais como a La
Cosa Nostra, dos EUA; a Camorra e a Cosa Nostra
italianas; a máfia chinesa; a Yakuza japonesa e a máfia
russa, além de grupos empresariais, políticos e bancos
do mundo todo. Para Petras, o lucro obtido com todo o
processo da cocaína, desde a produção até a venda ao
consumidor final, movimenta algo em torno de
6..
BRASIL, Altino Berthier. Geopolítica da Amazônia Brasileira. In.
CARRION, Raul K. M. VIZENTINI, Paulo G. Fagundes (org.).
Globalização, neoliberalismo, privatizações: quem decide este jogo? Porto
Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1997. p. 211.
BRASIL, op. Cit., p. 211.
7
64 - Colombia: do surgimento das guerrilhas ao Plano Colômbia
US$ 500 bilhões. Esse dinheiro é lavado de várias
formas, inclusive por bancos dos EUA: Citybank e o
8
BankBoston .
Apenas o narcotráfico colombiano representa
cerca de 30% do PIB do país. Esse filão de “ouro
branco” é um dos principais motivos pelo qual os
EUA buscam justificar uma intervenção na
Colômbia.
O Comandante Raúl Reyes, do Secretariado do
Estado Maior Central das FARC-EP, considera o
narcotráfico como um grave problema da Colômbia e
do mundo, porém não o principal. Na proposta de
plataforma para um governo de reconstrução e
reconciliação nacional da guerrilha, são apresentados
elementos para o fim da produção, comercialização e
consumo de narcóticos e alucinógenos. Esse
fenômeno é entendido como um problema social que
não pode ser tratado pela via militar, pois requer
acordos com a participação das comunidades
nacional e internacional e o compromisso das grandes
potências mundiais, hoje as principais consumidoras
de drogas.
As FARC-EP admitem que cobram uma taxa de
5% sobre a droga que sai da Colômbia, porém
afirmam não ter qualquer outro vínculo com o
narcotráfico. Por princípio e por ética são contrários
ao narcotráfico por entender que ele é incompatível
com a democracia e a cidadania, pois gera corrupção,
impunidade e criminalidade. Denunciam as políticas
antidrogas do governo que afetam os pequenos
cultivadores de folha de coca, os quais são expulsos
de suas terras e perdem seus poucos bens. A repressão
é dirigida a essas maiorias camponesas que estão
longe de serem narcotraficantes e somente subsistem
com atividades relacionadas à droga porque são
forçados pelas circunstâncias, pois de outra forma não
teriam como ganhar um mínimo para o seu sustento.
Os camponeses se organizam em defesa das suas
vidas e não em defesa da coca.
Os verdadeiros narcotraficantes, milionários
devido aos altos lucros com a venda do produto final
do refino da coca, formaram redes de proteção que os
permitem continuar seu negócio sem interferências
do governo, pois são eles que financiam as
campanhas eleitorais colombianas.
Na Colômbia, 70% das terras cultiváveis, estão
nas mãos de narcotraficantes e dos seus testas-deferro. Essas terras foram adquiridas com o dinheiro do
tráfico e através da falência de pequenos proprietários
com a aplicação das políticas neoliberais, o que
transformou o país no maior produtor de folha de coca
do mundo.
8..
PETRAS, James F. Neoliberalismo: América Latina, Estados Unidos e
Europa. Blumenau: Ed. FURB, 1999.
O governo dos EUA obriga o governo
colombiano a destruir as plantações de coca, dentro
de programas de lutas antidrogas, pulverizando as
pequenas lavouras com desfolhantes químicos que
destroem o ecossistema. A cada dia a Floresta
Amazônica é desmatada para o aumento das
plantações de coca longe das zonas de pulverização.
A estratégia consiste em pulverizar herbicidas
sobre as plantaçeُ s de coca, equipar e treinar policiais,
prender os principais traficantes e extraditá-los para
cumprir penas intermináveis nas prisões americanas.
O objetivo da operação é criar barreiras que elevem o
preço do papelote nas ruas para, assim, reduzir o
consumo.
Há evidências de fumigações com o Fusarium
Oxyporu, fungo que além de destruir a folha de coca
ameaça as culturas da banana, café, cacau, batata,
baunilha, girasol, aspargos, cravos, palma africana,
milho, feijão, borracha, noz, tabaco, além de bosques,
entre outros. O fungo pode se manter vivo nos
produtos mencionados, durante o consumo humano e
há o risco dele se espalhar pela Floresta Amazônica.
Com base nos dados apresentados, podemos
afirmar que o governo dos EUA e as empresas
transnacionais americanas na Colômbia buscam,
através do Plano Colômbia criar as condições
propicias para estabelecer uma zona comercial viável
para o futuro da economia dos EUA. A intervenção
militar na região tornaria possível controlar toda a
riqueza existente na Amazônia.
Existe na Colômbia uma oposição popular ao
processo privatizador neoliberal que está sendo
implementado pelo governo de Álvaro Uribe. O
Plano Colômbia tenta ser um plano de paz que garanta
a tranqüilidade para que o Estado colombiano se
consolide e possa exercer o poder em todo o território
colombiano, mas tem conseguido somente exercer o
poder militar forte sobre a população e sobre as
guerrilhas, que longe de estarem sendo derrotadas,
saem cada vez mais fortalecidas deste processo.
Planos militares e econômicos dos Estados Unidos para a América Latina
Plano Colômbia Com o álibi de lutar contra o
narcotráfico, busca combater os
grupos guerrilheiros (FARC/ELN).
O financiamento é provido, em
sua maioria pelos EUA e União
Européia.
Plano
Dignidade
Desenvolve-se em todo
o território colombiano,
especialmente na zona
de Putumayo, e inclui
área do Amazonas.
Este avanço colonialista foi A b r a n g e a r e g i ã o
disfarçado de luta contra o cocalera de Chapare, na
narcotráfico e se propõe à Bolívia.
erradicação das plantações de
coca na Bolívia. Começou em
1998.
História & Luta de Classes - 65
Área de Livre
Comércio das
Américas
(ALCA)
Impor uma área econômica
continental que garanta a expansão
e os lucros, com baixos custos
trabalhistas às multinacionais
ianques. Sua preparação foi
secreta, com previsão inicial de
implantação para janeiro de 2005.
NAFTA
Acordo firmado no início de 1994. P a r t i c i p a m E U A ,
Facilitou a espoliação dos México e Canadá.
trabalhadores por meio das
maquiadoras instaladas na fronteira
ianque-mexicana. Permitiu que os
EUA aprofundassem o controle
migratório de latinos.
Tratado de Livre Acordo firmado em junho de 2000
Comércio EUA- com objetivos similares ao NAFTA.
Busca preparar o terreno, na
Chile
América do Sul, para a implantação
da ALCA.
Projeto criado pelo presidente
Plano Puebla
Panamá (PPP) mexicano Fox e está dirigido aos
estados do sudeste do México
(incluindo o estado de Chiapas) e os
países da América Central. Busca
facilitar os investimentos estrangeiros
privados, privatizar empresas de
serviços públicos e controlar fluxos
migratórios aos EUA.
Extensão do Plano Colômbia que
Plano
inclui aspectos militares e comerciais
Iniciativa
direcionados aos países da região
Regional
andina que circundam a Colômbia.
Andina
Foi criado em 2001 com um forte
financiamento dos EUA.
Pretende incluir 34
países (exceto Cuba) da
América do Sul,
América do Norte e
América Central.
Somente EUA e Chile.
Envolve o México,
Belize, Costa Rica, El
Salvador, Guatemala,
Honduras, Nicarágua e
Panamá.
Abarca Colômbia,
Equador, Venezuela,
Bolívia e Peru.
Fonte: GARCIA<http://www.marxismalive.org/homeportugues.html/>
História & Luta de Classes - 67
“Um enigma aos nossos próprios
olhos”: Eduardo Galeano, Literatura
1
e América Latina
André Francisco Berenger de Araújo2
É
através das palavras que passamos a
conhecer e exercer uma importante parte de nossas
relações com o que nos cerca, as terras e as gentes. A
própria Rainha Dona Juana e seu filho, o Imperador
Carlos V, da Espanha do século XVI, só puderam
estabelecer relações com a terra que acabavam de
conquistar através das palavras. “Estes dados que
estamos enviando a vossas majestades é que são
corretos e trataremos aqui, desde o momento em que
estas terras foram descobertas até o estado que se
encontram no presente, para que vossas majestades
conheçam a terra como é, a gente que a habita, sua
maneira de viver, seus ritos e cerimônias, suas leis, e o
fruto que dela vossas altezas reais poderão obter, e
também para que vossas altezas reais saibam por
3
quem nela têm sido servidos”, disse uma das inm
ْ eras
cartas recebidas pelos imperadores europeus dos seus
subordinados em terras distantes.
4
É, assim, através da língua que uma parte
importante de nossa interpretação sobre o mundo e as
coisas é produzida. Quem escreve justamente
interpreta o mundo em que vive e, como
conseqüência, tenta transformar (ou manter) as
relações que encontra diante de si. Porque um escritor
não é somente e simplesmente determinado pelas
condições em que vive, assim como também não é um
indivíduo isolado que apenas “observa” o que
acontece a sua volta. Assim, é preciso reconhecer a
“ligação radical e inevitável entre as relações
sociais reais do escritor (consideradas não só
individualmente, mas em termos das relações gerais
da ‘literatura’ numa sociedade e períodos específicos,
e dentro destes as relações sociais existentes em
determinados tipos de literatura), e o ‘estilo’, ou
‘formas’, ou ‘conteúdo’ de sua obra, agora
considerados não abstratamente, mas como
expressões dessas relações. Tal reconhecimento será
inútil se for, em si, abstrato e estático. As relações
sociais não são apenas recebidas: são feitas e podem
5
ser transformadas” .
Através destes séculos, portanto, muito se fez e
se escreveu sobre a América. Até mesmo Augusto dos
Anjos, o poeta para quem o beijo é a véspera do
escarro, não esquece de nos lembrar da América e
seus habitantes originários, “desterrado[s] na sua
própria terra, / Diminuído[s] na crônica do mundo”.
Quando “a civilização entrou na taba”, tudo “exercia
sobre ele ação funesta / Desde o desbravamento da
floresta / À ultrajante invenção do telefone”. E, agora,
“A gente deste século, espantada, / Vê somente a
caveira abandonada / De uma raça esmagada pela
6
Europa!” .
É claro que existem versões mais conservadoras
destes índios: o índio Peri, de José de Alencar, por
exemplo. Mas o importante é perceber que as palavras
estão em permanente disputa na literatura, pois são
parte das relações sociais e seus conflitos (e não
“refletem” ou “simbolizam”). A literatura também é
um campo, às vezes fundamental, do conflito social.
O termo América Latina, por exemplo, é um
pouco mais difícil de definir do que simplesmente
como o continente ao sul do Rio Grande. Tanto é que
não são poucos os grupos que tentam encontrar
noções que expressem melhor o que se quer dizer para
se referir ao nosso continente. Aliás, não é pouco
1
Este texto foi escrito como trabalho final da disciplina Geografia da América
Latina oferecida na graduação da Universidade Federal Fluminense, no
departamento de Geografia, pelo professor Carlos Walter Porto Gonçalves no
segundo semestre de 2005.
2
Graduado em História (UFF), integrante do Grupo de Estudos de América
Latina e Caribe – GEALC.
3
CORTEZ, Hernan. A Conquista do México. Porto Alegre: LP&M, 1996, p. 15
4
“Encontramos então não uma ‘linguagem’ e ‘sociedade’ reificadas, mas uma
linguagem social ativa. Nem é essa linguagem (...) um simples ‘reflexo’ ou
‘expressão’ da ‘realidade material’. (...) Ou, mais diretamente, a linguagem é a
articulação dessa experiência ativa e em transformação; uma presença social e
dinâmica no mundo”. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 43.
5
WILLIAMS, op. cit., p. 203
6
ANJOS, Augusto dos. “Os doentes”. Eu / Outra Poesia. São Paulo: Círculo
do Livro, s/d, p. 61-2.
68 - “Um enigma aos nossos próprios olhos”: Eduardo Galeano, Literatura e América Latina
termo inventado não pelos latinoamericanos, mas
pelos franceses, no século XIX. E não adianta tentar
dizer que essas palavras são pouco importantes,
dizendo que são só nomes e é o “resto” que importa. A
questão é que este “resto” é definido justamente por
essas palavras. Não é à toa que se nomeiam as coisas...
Para alguns, inclusive, estas duas palavras pouco
servem para nomear nosso continente, preferindo, por
exemplo, Abya Yala.
É assim que Eduardo Galeano constrói sua
literatura. Desde As Veias Abertas da América Latina,
e o título é bem sugestivo, Eduardo Galeano traça
uma idéia do que seria este continente. Galeano se
insere aí, com sua literatura, nesta disputa da América
Latina, das “grandezas, maravilhas e estranhezas
7
desta grande cidade de Tenochtitlán” que Hernán
Cortez descreve à Coroa espanhola.
A América Latina é, portanto, mais difícil de
definir do que aquele pedaço de terra ao sul do Rio
Grande. “Eu não sabia como era a fronteira. Como
seria? Nunca tinha visto uma fronteira. Teria
orquestra? Teria. E baile e festa e tiro ao alvo. E circo?
8
Orquestra, com certeza. Circo, não sabia”. Neste
conto, o andarilho, quando percebe, já tinha passado a
fronteira não se sabe quanto tempo atrás. Para
Galeano, a América Latina é um projeto político, e
não só uma denominação de uma região definida em
fronteiras rígidas. Um projeto político que se constitui
nas perdas e vitórias dos pobres e excluídos. Neste
sentido que Eduardo Galeano constrói sua literatura,
refazendo-se do termo, transformando-o de uma
“denominação de região”, definida por fronteiras, em
um “projeto político” que pega a América Latina e a
transforma num continente dinâmico, de conflitos,
“de amor e de guerra”.
Dias e noites de amor e de guerra foi um livro
escrito em meio ao exílio de Eduardo Galeano. A
trilogia Memória do Fogo termina seu relato da
história da América Latina em 1984, “talvez porque
9
tenha sido esse o último ano do meu exílio”. As Veias
Abertas da América Latina é lançado em 1971, dois
anos antes do golpe militar no Chile, três anos depois
do AI-5 no Brasil. É neste período que foi produzida a
obra de Galeano na qual vamos procurar identificar
alguns traços deste projeto político. Sem dúvida, o
lançamento de As Veias é um marco inicial, não só
pela fascinante escrita, mas principalmente pelo
alcance que teve: “a moça que ia lendo o livro para sua
companheira de assento e terminou pondo-se de pé e
lendo em voz alta para todos os passageiros enquanto
o ônibus atravessava as ruas de Bogotá; ou a mulher
que fugiu de Santiago do Chile, nos dias da matança,
com o livro envolto nas fraldas do bebê; ou ainda o
estudante que durante uma semana percorreu as
livrarias da rua Corrientes de Buenos Aires e foi lendo
de pedacinho em pedacinho, de livraria em livraria,
10
porque não tinha dinheiro para comprá-lo” .
Poderíamos acompanhar o marco que o próprio
Eduardo Galeano nos deu com o fim do seu exílio,
mas preferimos expandi-lo um pouco mais, até o fim
da ditadura de Pinochet, quando, talvez, tenha
realmente se encerrado um ciclo. “Viemos de diversos
países, e estamos aqui, reunidos à sombra generosa de
Pablo Neruda: estamos aqui para acompanhar o povo
11
do Chile, que diz não. Nós também dizemos não” ;
isto é o que Galeano disse em uma das inm
ْ eras
manifestações contra Pinochet no final da década de
1980. É claro que seria preciso observar os livros
posteriores a este marco, para saber se ele se justifica,
mas nos contentemos com isso por enquanto.
É, portanto, nos livros escritos entre 1971 e
1990 que vamos identificar estes traços de projeto
político que Eduardo Galeano acaba por defender
quando empreende seu esforço de escrever sobre a
América Latina. “Economia política no estilo de um
12
romance de amor ou de piratas” como ele descreve
As Veias, ou contos, ou romances, ou artigos de jornal,
ou o que seja, Eduardo Galeano empreende um
esforço de compreensão deste continente, pois
“acontece que a América Latina constitui, ainda, um
13
enigma aos nossos próprios olhos” . E é através deste
esforço de compreensão que se define este projeto
latinoamericano.
Em uma das histórias contadas em Memória do
Fogo, aparecem duas artes: uma que artistas
equatorianos enviam à Exposição Universal de Paris
em 1867 cópias idênticas dos quadros europeus, e
outra arte que “floresce nos mercados índios e nos
subúrbios populares do Equador (...) Não a fazem os
acadêmicos, mas as pobres gentes que comem
14
corações de pulga ou tripas de mosquito” . O título do
fragmento é “Ser ou copiar, este é o problema”. Em
diversos momentos dos livros de Galeano aparece
esta idéia. Tanto é que quando Galeano nos conta de
alguma revolta, revolução ou insurreição está sempre
presente a idéia de recuperação de alguma coisa. Por
exemplo, sobre a reforma agrária de Artigas no
Uruguai, eram “paisanos pobres (...) que recuperavam
7
CORTEZ, op. cit., 62.
GALEANO, Eduardo. Vagamundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 29.
9
GALEANO, Eduardo. Memória de Fogo 3: O Século do Vento. Porto Alegre:
LP&M, 1998, p. 359
10
GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1978, p. 285.
8
11
GALEANO, Eduardo. Nós dizemos não. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 11.
GALEANO, As Veias abertas da América Latina, op. cit., p. 285.
GALEANO, Eduardo. Contra-Senha. São Paulo: Ícone, 1988, p. 93.
14
GALEANO, Eduardo. Memória de Fogo 2: As Caras e as Máscaras. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 275.
12
13
História & Luta de Classes - 69
15
na luta o sentido da dignidade” ; ou então na
Revolução Mexicana: “Em 1910, chegou a hora do
desquite. México levantou-se em armas contra
16
Porfírio” , o México, os pobres, camponeses, índios.
Assim como a elite não faz parte da América Latina.
“A burguesia se associou à invasão estrangeira sem
17
derramar lágrimas nem sangue” . E Bolívar, que
encarna uma independência das elites, funda escolas
para que os índios “possam receber as luzes européias
18
da civilização” . Há, assim, em Eduardo Galeano,
uma identificação clara na América Latina de algo (ou
alguém) que é sempre excluído, apagado, mas que
ainda assim, constitui o que é a América Latina. Num
fragmento do primeiro volume de Memória do Fogo,
em 1563, indígenas fazem um cerco a um forte
espanhol e ameaçam queimá-lo. Os espanhóis gritam
que “com o tempo ganharemos a guerra! Seremos
cada vez mais!” e, questionado sobre com que
mulheres se reproduzirão, respondem: “Se não há
espanholas, teremos as vossas (...) E nelas faremos
19
filhos que serão vossos amos” . Parece, então, que
quando se trata de elites ou de camadas dominantes
não se trata da mesma América Latina que faz os
cercos aos espanhóis. Até porque é a América Latina
que invade os Estados Unidos quando Pancho Villa
20
atravessa a fronteira em 1916.
Lendo Walter Benjamin, aparecem duas idéias
que nos servem para entender o Galeano e esta
América latina, que é um projeto. São as idéias de
“experiência” e “narrativa”. Galeano diz num texto
sobre Memória do Fogo que escreveu a trilogia
“contra a amnésia das coisas que valem a pena ser
recordadas”. E ainda se compara a um “caçador de
vozes, perdidas e verdadeiras vozes que andam
21
esparramadas por aí” . Walter Benjamin distingue a
rememoração da memória, as duas saídas de uma
origem comum, a reminiscência, que faz o laço de
uma geração a outra. “A primeira é consagrada a um
herói, uma peregrinação, um combate; a segunda, a
muitos fatos difusos. Em outras palavras, a
rememoração, musa do romance, surge ao lado da
22
memória, musa da narrativa” . Benjamin, assim,
23
imagina que o romancista “é o mudo, o solitário” e
que a “origem do romance é o indivíduo isolado, que
não pode mais falar exemplarmente sobre suas
preocupações e que não recebe conselhos nem sabe
24
dá-los” . O romance, portanto, está sempre buscando
o sentido da vida, da história que conta, que chega
inevitavelmente com o fim do livro. E, desta maneira,
o romance se separa radicalmente da tradição oral.
Não é o que parece fazer Eduardo Galeano. Ao
contrário, seus livros se parecem incrivelmente com
as definições que Benjamin dá para a “arte narrativa”.
Benjamin diz que a arte de narrar está escassa,
“é como se estivéssemos privados de uma faculdade
que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de
25
intercambiar experiências” . Benjamin diz que isso,
ainda que seja um processo bem anterior, se radicaliza
com a Primeira Grande Guerra, quando os
combatentes voltam “silenciosos do campo de
batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis,
26
e não mais ricos” . E ele liga essa “pobreza de
experiência” diretamente a “esse monstruoso
desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao
27
homem” . Talvez Walter Benjamin não soubesse,
mas esta radicalidade já está na América Latina desde
os primórdios, onde técnicas totalmente alheias aos
povos que aqui viviam eram-lhes sobrepostas e
impostas, destruindo todo um tipo de vida, e passam a
ser explorados de forma intensa. Talvez aí os
indígenas, e também os africanos (e estes talvez ainda
de forma mais radical), também voltassem mudos,
sem “experiências intercambiáveis”, mas não da
guerra (ou também dela), mas principalmente do
trabalho nas minas e latifúndios. Não é à toa que
Galeano escreve que “nas comunidades, os indígenas
viram ‘voltar muitas mulheres aflitas, sem maridos,
muitos filhos órfãos de seus pais’, sabiam que na mina
28
esperavam ‘mil mortes e desastres’” . Assim,
poderíamos arriscar, ainda, seguindo Benjamin, que a
origem do romance na América Latina está ligada
irresistivelmente a este processo.
Mas o que estamos tentando identificar não é a
ligação de Galeano com o romance, mas sim com a
idéia do “narrador”. “O narrador retira da experiência
o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada
por outros. E incorpora as coisas narradas à
29
experiência dos seus ouvintes” . No texto que leva o
nome de O Narrador, Benjamin leva essa idéia a uma
dimensão nostálgica, sempre ligada ao passado, pois
“o narrador não está de fato presente entre nós, em sua
30
atualidade viva” . Em outro texto, Experiência e
15
GALEANO, As Veias abertas da América Latina, op. cit., p. 129.
Idem, p. 134
17
Idem, p. 226
18
GALEANO, Memória de Fogo 2, op. cit., p. 187.
19.
GALEANO, Eduardo. Memória de Fogo 1: Nascimentos. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira,1986, p. 209.
20
GALEANO, Memória de Fogo 3, op. cit., p. 75.
21
GALEANO, Nós dizemos não, op. cit., p. 30.
22.
BENJAMIN,Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras
16
.
escolhidas; v. 1), p. 211.
Idem, p. 54.
24
Idem, p. 201.
25
Idem, p. 198.
26
Idem, p. 115.
27.
Idem.
28
GALEANO, As veias abertas da América Latina, op. cit., p. 71
29
BENJAMIN, op. cit., p. 201.
30
Idem, p. 197.
23
70 - “Um enigma aos nossos próprios olhos”: Eduardo Galeano, Literatura e América Latina
Pobreza, ele chega a propor para assumirmos uma
postura de reconhecimento desta pobreza
generalizada de experiências comunicáveis: os
homens “aspiram a libertar-se de toda experiência,
aspiram a um mundo em que possam ostentar tão
pura e tão claramente sua pobreza externa e interna,
31
que algo de decente possa resultar disso” .
Definitivamente, não é isso que Galeano parece fazer.
Ele se parece com aquele tipo narrador, ainda que de
forma diferente, como não podia deixar de ser. Os
melhores narradores, para Walter Benjamin, são
aqueles que menos se afastam da tradição oral, ou
seja, a verdadeira narrativa está fundamentalmente na
oralidade. Assim, se um narrador escreve, está
somente registrando aquilo que ele ouve de pessoa
a pessoa , de povoado a povoado, como uma forma
em que as comunidades mantinham seus vínculos.
Galeano já recebe um mundo, ou melhor, um
continente, em que estas comunidades já estão
radicalmente deixando de intercambiar experiências
há pelo menos cinco séculos. Assim, Galeano não
simplesmente “registra” experiências que são
intercambiadas, mas tem que ir buscá-las. E é ao ir
buscá-las que ele tenta reconstruir estes vínculos
através de experiências que passam, por ele, a ser
intercambiáveis. Assim, é através de uma técnica
32
literária própria que Galeano intervêm no mundo em
que vive, pois procura, com sua literatura, criar (ou
recriar) vínculos que teriam sido destruídos
continuamente pela colonialidade. E talvez seja em
Memória do Fogo que, pela primeira vez, esta técnica
ganha uma forma mais identificável, ainda que tenha
sido construída por todos os livros anteriores, em
maior ou menor grau.
O narrador “pode recorrer ao acervo de toda
uma vida (uma vida que não inclui somente a própria
experiência, mas em grande parte a experiência
alheia. O narrador assimila à sua substância mais
33
íntima aquilo que sabe por ouvir dizer)” . A
experiência, assim, é aquilo que é comum a uma
coletividade, diferente de uma experiência individual.
Esta é expressa pela forma do romance, e aquela, pela
forma narrativa. O que nos parece que Galeano faz é,
justamente, tentar construir esta experiência coletiva
do continente latinoamericano. E, através desta
experiência, que precisou ser resgatada, continuar
uma história, que ainda não acabou. E isto é o que
Walter Benjamin diz que faz o narrador. “O narrador é
um homem que sabe dar conselhos”, que é “menos
responder uma pergunta que fazer uma sugestão sobre
a continuação de uma história que está sendo
34
contada” . Ou seja, Galeano, assim como o narrador
para Benjamin, não procura dar explicações para o
que narra, mas, ao contrário, desperta “no passado as
centelhas da esperança”, pois está “convencido de que
também os mortos não estarão em segurança se o
35
inimigo vencer” . A diferença, portanto, que talvez
exista entre o narrador que Benjamin caracteriza e
Galeano é que este precisa romper com uma tradição
literária para reconstruir estas experiências, enquanto
que aquele está em extinção, pois as experiências
estão sendo cada vez mais destruídas.
Galeano, portanto, procura resgatar algumas
experiências coletivas da história da América Latina,
que procuramos classificar em três redes temáticas: a
exploração da terra e dos homens e mulheres
latinoamericanas; a revolta permanente contra esta
injustiça; e o sentimento e situação de exílio dos povos
latinoamericanos.
Assim, a América Latina tem se caracterizado
pela sangria das riquezas e dos povos; é o que está em
As Veias Abertas da América Latina: “a sangria do
novo mundo convertia-se num ato de caridade ou uma
36
razão de fé” . Em Vagamundo, há dois contos que
podem nos dar alguma dimensão disto. São sobre
trabalhadores das minas, seus sonhos, seu trabalho
interminável, a desconfiança dos capatazes que
desconfiam “quando vêem os pacotes que os mineiros
costumam levar debaixo de seus casacões de
37
trabalho” . É a exploração de homens e riquezas reais
que Galeano nos fala. O nome de um dos contos é “A
terra pode nos comer quando quiser”, que fala
bastante por si. “Cinqüenta índios caídos por terem-se
negado a servir nos túneis da mina. Não faz um ano
que apareceu o primeiro veio e já se mancharam de
38
sangue as ladeiras do morro” , assim inicia um
fragmento da trilogia Memória do Fogo, que nos
dá um pouco a idéia do que significou para os índios a
exploração da prata de Potosí.
Junto a isso está a exploração dos países latinoamericanos por estrangeiros. Naquele mesmo
fragmento, Galeano nos conta que a voz do morro
tinha dito aos índios: “Outros donos têm esta
39
riqueza” . As Veias dedica um capítulo inteiro (“Qual
bandeira tremula sobre as máquinas?”) para mostrar
como a maioria das empresas presentes na América
40
Latina é de origem estrangeira. Aliás, não só as
empresas são alheias à América Latina, mas a própria
31
Idem, p. 118.
Benjamin defende o conceito de “técnica literária” para superar o contraste
entre forma e conteúdo, ou tendência política e qualidade artística, ou seja, um
conceito “que torna os produtos literários acessíveis a uma análise
imediatamente social”. BENJAMIN, op. cit., p. 122.
33
Idem, p. 221.
34
Idem, p. 200.
32
35
Idem, p. 224-5.
GALEANO, As veias abertas da América Latina, op. cit., p. 52.
37
GALEANO, Vagamundo, op. cit., p. 36.
38
GALEANO, Memória de Fogo 1, op. cit., p. 172.
39
Idem, p. 173.
40
GALEANO, As veias abertas da América Latina, op. cit., p. 232-7.
36
História & Luta de Classes - 71
sociedade que vai se formando: “o modo de produção
e a estrutura de classes de cada lugar têm sido
sucessivamente determinados, de fora, por sua
incorporação à engrenagem universal do
41
capitalismo” . A idéia de que os males que afligem
este continente são determinados pelo que vem de
fora é presente em muitos trechos dos livros. Em um
outro fragmento de Memória do Fogo, intitulado
“Sobre o canibalismo na América”, o canibalismo
relatado é a guerra dos governadores europeus que se
matam uns aos outros na luta pelo poder de certa
42
região da América . “Na verdade, estrangeiro na
América é o capitalismo, que não foi inventado por
Manco Cápac nem por Montezuma, e sim imposto de
fora e de cima pelos invasores europeus do século
43.
XVI”
Mas, ainda assim, nem tudo é determinado de
fora. Num outro conto de Vagamundo, falantes da
“velha língua dos antepassados”, espantados ao
conhecer a cidade, suas máquinas e avenidas,
perguntavam lentamente com seus corações “o que
seria de todos vocês se nós não fizéssemos o sol sair
44
todos os dias?” . O que não quer dizer também que
Galeano pense que a América Latina tenha algum
sentimento saudosista, do tempo em que os europeus
não haviam chegado, apesar das desgraças de hoje,
como se antes tudo fosse perfeito, alguma espécie de
paraíso. Num conto seguinte de Vagamundo,
chamado “tourist guide”, um velho rememorando dos
tempos que ainda estava começando “a correr
dinheiro”, a certa altura ele diz: “Se éramos felizes?
Ninguém é feliz. (...) Mas todos tínhamos vida própria
45
e havia muita união” .
É neste sentido que se define este projeto
político latinoamericano. A América Latina é a
América dos pobres, dos excluídos, mas que ainda vai
acontecer. A América Latina se define nesta
contradição de ser do povo, mas dominada de fora (ou
pelas elites internas) e, na verdade, ainda não ter se
realizado. Parece que é essa a sensação que se tem
quando lemos Eduardo Galeano. E é definindo este
projeto político, através de histórias e imagens da
América Latina, que Galeano vai intervindo na
realidade mesma deste continente. Os livros, sejam
eles quais forem, não pairam acima da sociedade, mas
intervêm diretamente, em maior ou menor grau, na
realidade. Isto que estamos chamando de “projeto
político” só se forma na medida em que o que Galeano
escreve tem conseqüências nas relações sociais, nos
conflitos sociais que ele está envolvido. Seja a mulher
que fugiu com As Veias enrolado nos panos do bebê
logo após o golpe de Pinochet no Chile, como foi
citado mais acima; ou mesmo seu próprio exílio,
proibição de seus livros em alguns países, fechamento
de algumas revistas nas quais escrevia.
Eduardo Galeano escreve muito sobre as
ditaduras militares da América Latina. E não é à toa, já
que ele viveu neste período e sofreu as conseqüências
diretas que um intelectual sofreria, pois poderia
escrever em 1990, no fim destas ditaduras, que “na
América Latina, o capitalismo é antidemocrático,
com ou sem eleições: a maioria das pessoas está presa
pela necessidade e condenada à solidão e à
46
violência” . Um dos temas preferidos de Eduardo
Galeano foram as conseqüências destas ditaduras e as
resistências a elas, silenciosas ou barulhentas.
No terceiro volume de Memória do Fogo, sobre
o século XX, em 1978, cinco mulheres começam uma
greve de fome contra a ditadura militar e logo já são
“três mil, dez mil, até que são incontáveis os
bolivianos que deixam de comer e deixam de
trabalhar e vinte e três dias depois do começo da greve
de fome o povo se rebela e invade as ruas e já não há
como parar isto. As cinco mulheres derrubaram a
47
ditadura militar” . Seja o povo que se rebela, ou um
aluno rebelde da “Faculdade de Impunidades” que
escreve numa parede “Não queremos sobreviver.
48
Queremos viver” , ou mesmo Chico Buarque que
“revista seus interiores, para ver se a polícia não lhe
meteu um censor na alma ou não apreendeu sua
49
alegria num momento de distração” , Galeano, em
diversas passagens, se encontra com esta resistência,
silenciosa ou barulhenta. Na guerrilha da selva da
Guatemala, Eduardo Galeano nos conta dos dias que
esteve com os guerrilheiros, “uns quantos índios”,
que “várias vezes tinham visto estalar napalm do céu,
sobre as montanhas vizinhas” e das conversas que
escutou ou imaginou: “‘Uma revolução de mar a mar.
O país inteirinho levantado. E penso ver isso com
estes meus olhos...’ ‘E vai mudar tudo, tudo?’ ‘Até as
raízes.’ (...) 'E os ricos?’ ‘Não haverá mais ricos.’ (...)
‘Nem rico nem pobre.’ ‘Nem pobre nem rico.’ ‘Mas,
então, não vai ficar ninguém na Guatemala. Porque
50
aqui, você sabe, o que não é rico é pobre’” . Ou então
“esta mulher viu morrer seu melhor amigo. Estavam
ocupando uma fábrica, nos subúrbios de Santiago do
Chile, nos dias seguintes ao golpe. Esperavam armas
para resistir. Foi esquartejado na tortura, mas não
41
Idem, p. 14.
GALEANO, Memória de Fogo 1, op. cit., p. 178.
43
GALEANO, Contra-Senha, op. cit., p. 96.
44
GALEANO, Vagamundo, op. cit., , p. 45.
45
Idem, p. 46.
46
GALEANO, Nós dizemos não, op. cit., p. 87
42
47
GALEANO, Memória de Fogo 3, op. cit., p. 317-8.
GALEANO, Nós dizemos não, op. cit., p. 69
GALEANO, Memória de Fogo 3, op. cit., , p. 286.
50
GALEANO, Eduardo. Dias e Noites de Amor e de Guerra. Porto Alegre:
LP&M, 2002, p. 14-7.
48
49
72 - “Um enigma aos nossos próprios olhos”: Eduardo Galeano, Literatura e América Latina
51
disse que a conhecia” . Mas Galeano não se restringe
a escrever somente sobre as revoltas, resistências e
vitórias contra as ditaduras militares, citações que
seriam inúmeras, mas também sobre outras diversas
imagens e histórias dos que se levantam na América
Latina (e também pela América Latina).
Galeano não só nos convida a perceber a todo
momento as revoltas da América Latina, mas também
não deixa de falar que estas revoltas, esta guerra existe
desde quando Colombo chega por estas bandas. O que
não falta são referências a revoltas na América Latina.
52
“Para mim a guerra começou quando nasci” , diz
Pancho Villa e nos perguntamos se não é a própria
América Latina quem diz isso. “A esperança de
renascimento da dignidade perdida incendiaria
numerosas sublevações indígenas. Em 1781, Túpac
53
Amaru sitiou Cuzcos” , escreve em As Veias Abertas
da América Latina. E é, sem dúvida, através destas
revoltas, insurreições e revoluções que vai se criando
esta América Latina dos pobres, dos excluídos, que
vai definindo aquele projeto político latinoamericano.
Projeto político que reúne a dignidade, idéia sempre
presente nas imagens rebeldes de Galeano, junto com
um sentimento coletivo. De “uma revolução jovem”,
a “Nicarágua em estado de assembléia. O povo se
organiza, discute, decide” e, nas regiões indígenas,
54
“por unanimidade, a assembléia pede um violão” até
a boliviana que estranha a solidão na Suécia: “nós, lá
55
na Bolívia, nem que seja para brigar, nos juntamos” .
As revoltas, assim, na América Latina são justamente
para fazer esta América Latina se realizar. E Galeano
nos diz isso mesmo explicitamente na última página
de As Veias: “para que a América Latina possa
renascer, terá de começar por derrubar seus donos,
56
país por país” .
Esta expressão “país por país” ainda nos lembra
que Galeano está sempre falando não de um ou outro
determinado país, mas de toda a América Latina. Che
Guevara, por exemplo, “tinha estado, e não como
turista, no torvelinho da revolução boliviana, e na
agonia da revolução guatemalteca. Tinha carregado
bananas na América Central e tirado fotografias nas
praças do México, para ganhar a vida, e para apostá-la
57
se lançou na aventura do Granma” . Bolívar e San
Martín não carecem de referências pelo seu esforço de
construir a união da América Latina. Este sempre
lutou “pela América, nunca contra ela: quando o
governo de Buenos Aires mandou-o esmagar as
colunas federais de Artigas, San Martín desobedeceu
e lançou seu exército rumo às montanhas, para
continuar sua campanha pela independência do
58
Chile” . E ainda, esta união latinoamericana para
além das fronteiras, através dos excluídos, é reforçada
quando na primeira parte do primeiro volume da
trilogia Memória do Fogo, “a América précolombiana se desenrola através dos mitos indígenas
59
de base” .
A idéia de “país por país” também nos leva à
outra conseqüência das ditaduras militares, o exílio
involuntário, o sentimento de não-pertencimento.
Eduardo Galeano não só escreve bastante sobre isso
(Dias e noites de amor e de guerra é praticamente
sobre isso e em A Canção de Nossa Gente o tema
principal também é esse e um dos personagens
principais está inclusive voltando do exílio, além de
contos e artigos sobre o exílio e sobre a prisão de gente
contra a ditadura), mas também acaba por fazer disto
uma característica que forma a América Latina. É
através do exílio que se reconhece a América Latina.
Num trecho de Dias e noites, um chileno e um
brasileiro se descobrem, se encontram num trem da
França: “‘Porra! Então posso falar espanhol!’ E
começaram a falar de suas terras perdidas enquanto o
trem deslizava rumo a Paris. (...) Depois se disseram
60
adeus com o punho erguido” . Assim, o exílio acaba
fazendo parte de uma certa constituição da América
Latina, dos povos da América Latina. O exílio do
próprio Eduardo Galeano: “Vida cigana. As coisas me
acompanham e vão embora. São minhas de noite,
perco-as de dia. Não estou preso às coisas; elas não
61
decidem nada” .
Mas o exílio não é só daqueles que viveram o
tempo das ditaduras. Ao contrário, e é aí que o exílio
parece ser constitutivo da América Latina, os povos
latinoamericanos, aqueles pobres e excluídos por
quem a América Latina ainda está para se realizar, são
constantemente expulsos, “desplazados”. “Muitas
favelas foram arrancadas do Rio. Foram jogadas
longe dos olhos dos turistas. (...) A polícia fechou o
terreiro de Vovô Catarino. Ele foi expulso da
62
cidade” . Para se realizar os lucros daqueles que
dominam a América Latina, estes tem de ser sempre
51
Idem, p. 111.
GALEANO, Memória de Fogo 3, op. cit., p. 54.
53
GALEANO, As veias abertas da América Latina, op. cit., p. 55.
54
GALEANO, Eduardo. Canção de nossa gente. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978, p. 63-6.
55
GALEANO, Memória de Fogo 3, op. cit., p. 336.
56
GALEANO, As veias abertas da América Latina, op. cit,. p. 281.
57
GALEANO,Dias e Noites de Amor e de Guerra, op. cit., p. 62. Galeano aqui
encontra uma solução muito parecida com uma “das mais belas narrativas do
incomparável Johann Peter Hebel”, citada por Benjamin, para mostrar a
passagem do tempo: “'Os turcos prenderam o general Stein na grota dos
52
veteranos, na Hungria, e o imperador José morreu também. O rei Gustavo da
Suécia tomou a Finlândia dos russos, e a Revolução Francesa e as grandes
guerras começaram, e o rei Leopoldo II faleceu também'”, BENJAMIN, op.
cit., p. 208. Um relato dos mais secos, sem procurar dar explicações, mas
suscitar espanto e reflexão. Idem, p. 204.
58
GALEANO, Memória de Fogo 2, op. cit., p. 177.
59
GALEANO, Memória de Fogo 1, op. cit., p. 16.
60
GALEANO, Dias e Noites de Amor e de Guerra, op. cit., p. 96.
61
Idem, p. 7.
62
Idem, p. 40.
História & Luta de Classes - 73
deslocados. Assim, é esse sentimento de nãopertencimento à própria América Latina que faz os
pobres deste continente pertencerem uns aos outros.
“Eles fizeram Brasília, e de Brasília foram expulsos. A
cada dia eles fazem o Brasil, e o Brasil é sua terra de
63
exílio” . Não é à toa, aliás, que em A Canção de Nossa
Gente, intercalam-se a história deste exilado que volta
a sua cidade e a história de dois mendigos que tentam
sobreviver nesta mesma cidade, que parece não os
querer. Aliás, já no século XVI, “os índios eram
arrancados das comunidades agrícolas e empurrados,
junto com suas mulheres e seus filhos, rumo às
64
minas” .
O que nos parece, então, é que são nessas
viagens, nesses exílios que se reconhece a América
Latina. Aliás, a própria escrita da trilogia Memória do
Fogo nos sugere isso, ou seja, que viajamos, de forma
mais ou menos forçada, e acabamos por conhecer a
América Latina em que vivemos. Os livros da
trilogia são escritos em pequenos fragmentos que
contam episódios, cotidianos ou não, da história
latinoamericana. Há uma data, um lugar, um título e a
história. E depois outra data, outro lugar, outro título e
outra história. E assim por diante, desde a “A rota do
sol até as Índias”(antes ainda há os “mitos indígenas de
base”) até a carta enviada ao editor junto com os
originais dos livros em 1986. Lendo, parece estarmos
viajando entre as histórias do continente, percebendo
diferenças, contrastes, semelhanças, ou seja,
identificando este continente por entre todas essas
65
localidades e datas.
“Conheço esta história contada por aqueles que
lá vivem e por aqueles que vão e voltam. Todos
conhecem. Mas há tantas histórias quanto vozes para
66
contá-las” . Essas palavras bem serviriam para falar
de Memória do Fogo, mas fazem parte de um conto,
escrito até antes da trilogia. No conto, assim como em
outro que parece estar relacionado, sabemos de um
vilarejo de pescadores latinoamericano justamente
porque um exilado político por lá se refugiou. Assim
como o vilarejo também conhece a cidade do exilado:
“Perguntava-me sobre certos botequins e mercadinhos
e eu lhe dizia que haviam desaparecido e ele se calava
e cuspia tabaco. ‘Eu não acredito nos tempos de hoje’,
67
dizia o Capitão” . Seja que “um barco havia virado,
traído pela ventania. A maré tinha levado um pescador.
68
Não o devolveu” ou mesmo que a história dos filhos
do Capitão pescador apaixonados pela mesma mulher
acabou tragicamente, é através das viagens, causadas
muitas vezes, e no caso, pelo exílio forçado, que o
refugiado sabe da existência do vilarejo e vice-versa,
pois quando ele vai embora, o Capitão diz “Vamos
69
queimar a sua casa e tudo o que é seu” . Assim, parece
que se dá um encontro entre a América Latina. E
Memória do Fogo parece querer nos proporcionar
justamente este encontro de suas histórias. E, através
de suas histórias, o continente se realiza enquanto
projeto de libertação (ainda em andamento) dos povos
que nele habitam e, habitando-o, o definem.
É, então, “país por país” que Galeano define este
projeto latinoamericano que estamos tentando
identificar. Difícil é saber se é isso que Galeano pensa
de seu trabalho. George Orwell, em 1946, escreveu
em um texto chamado Por que escrevo que “todos os
escritores são vaidosos, egocêntricos e ociosos, e bem
70
no fundo de seus motivos jaz um mistério” . Ainda
Orwell escreveu bastante sobre literatura, e
especialmente sobre a relação entre literatura e
política; e quando se trata de Galeano, me parece que
suas observações podem nos ser valiosíssimas. É
muito difícil avaliar a qualidade estética de livros (ou
qualquer obra de arte), ainda mais quando são
explicitamente políticos, mas Orwell talvez nos dê
uma pista por onde começar quando diz que “para um
escritor criativo a posse da ‘verdade’ é menos
71
importante que a sinceridade emocional” . E talvez
por isso mesmo, Galeano não escreve aqueles livros
dentro de determinada cartilha de certo grupo, livros
que “são julgados antes de ser lidos, e na verdade antes
72
mesmo de ser escritos” , pois escreve “no máximo
como um guerrilheiro importuno no flanco de um
73
exército ativo” . Os textos de Galeano, “branco e
74
macho mas nem militar nem rico” , parecem
confirmar que “a atitude humanista é a de que a luta
75
deve continuar e a morte é o preço da vida” , que
“nossa tarefa é tornar a vida digna neste mundo, que é
76
o único que temos” e que “o essencial no fato de
sermos humanos é que não buscamos a perfeição, é
que às vezes estamos propensos a cometer pecados em
nome da lealdade, é que não assumimos o asceticismo
a ponto de tornar impossível uma amizade, é que no
fim estamos preparados para ser derrotados e
fragmentados pela vida, que é o preço inevitável de
fixarmos nosso amor em outros indivíduos
77
humanos” .
63
GALEANO, Nós dizemos não, op. cit., p. 73-4
GALEANO, As veias abertas da América Latina, op. cit., p. 51.
65
Aliás, isto combina muitíssimo com a definição da “extensão real do reino
narrativo” de Walter Benjamin, em que associa dois grupos de narradores: “o
saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do
passado, recolhido pelo trabalhador sedentário”. BENJAMIN, op. cit., p. 199.
66
GALEANO, Contra-Senha, op. cit., p. 25.
67
Idem, p. 14.
68
Idem, p. 9.
69
Idem, p. 18.
64
70
ORWELL, George. Dentro da Baleia e outros ensaios. São Paulo: Cia das
Letras, 2005, p. 190.
71
Idem, p. 138.
72
Idem, p. 156.
73
Idem, p. 163.
74
GALEANO, Nós dizemos não, op. cit., p. 30.
75
ORWELL, op. cit., p. 190.
76
Idem, p. 74.
77.
Idem, p. 76.
História & Luta de Classes - 75
Cuba pós-colapso do Leste
1
Europeu: um debate necessário
D
esde meados de 2006 a doença e o
afastamento de Fidel Castro do cenário político
público têm suscitado uma retomada de debates sobre
os destinos de Cuba. É possível afirmar que a
transição de poder em Cuba vem sendo gestada no
círculo fechado do primeiro escalão do governo a um
bom tempo e que há uma equipe de transição que de
3
fato governa o país. No entanto, essa transição não
está garantida sem sobressaltos, crises agudas e
desestruturação do regime.
Passados vários meses, mantêm-se o estado de
saúde de Fidel em sigilo e algumas hipóteses de senso
comum na esquerda mundial refletem a imensa
confusão teórica sobre o que aconteceu em Cuba a
partir dos anos 90, como parte da crise daquela diante
4
do colapso do socialismo real.
Para além da simbologia de resistência ao
neoliberalismo e da continuidade de uma política
formal de bloqueio econômico por parte dos EUA, é
necessário que nos debrucemos a analisar Cuba
procurando desvelar as novas contradições colocadas
a partir dos anos 90, levando em conta tanto a
conjuntura internacional quanto as particularidades
históricas do país.
Este artigo não pretende, obviamente, fazer uma
análise completa de um país que se constituiu e se
mantém no imaginário da esquerda mundial como
referência. Esta é uma tarefa coletiva e bastante
complexa.
1
Roselena Leal Colombo2
No entanto, é urgente a superação de análises
típicas do pensamento idealista que, no afã de
preservar a memória histórica da Revolução de 59 e as
conquistas do povo cubano, se distanciam da
realidade histórica atual.
No sentido de contribuir com esse difícil mas
necessário debate, procurarei aqui apresentar algumas
amostras de estudos que desembocaram em minha
5
dissertação de Mestrado.
A situação de Cuba no início dos anos 90: Crise,
Bloqueio e reformas na legislação
Com a crise dos anos 90 Cuba encontrou-se
diante de uma nova e complexa realidade. O colapso
do socialismo real ocasionou a desestruturação da
cadeia produtiva cubana, extremamente dependente
das relações com o ex-bloco socialista, onde cerca de
85% do comércio internacional cubano vinculava-se
no campo do Conselho de Ajuda Mútua Econômica
6
(CAME).
“En Cuba, 1993 ha sido el cuarto año consecutivo de
decrecimiento económico. La caída acumulada del
producto social global desde 1989 a 1993 se
aproxima a un 45%. Las perspectivas de una
recuperación de la actividad económica global en
1994 son, en el mejor de los casos, inciertas.”7
O presente artigo foi originalmente escrito em março de 2006. O afastamento de Fidel Castro e as incertezas e discussões em torno do processo sucessório
impõem novas investigações no campo do marxismo. No entanto, apesar de breves atualizações, mantenho a essência matricial do artigo original, na medida em
que os novos desafios analíticos colocados pela realidade imediata somente poderão ser interpretados levando em consideração o processo histórico aberto com o
colapso do Leste Europeu no início dos anos 90.
2
Professora da rede pública de ensino municipal de Porto Alegre . Especialista em História Contemporânea/FAPA e Mestre em História Ibero-Americana/PUCRS.
3..
Além da figura pouco carismática de Raúl Castro, foi nomeado um triunvirato formado por Ricardo Alarcón, presidente da Assembléia Legislativa, Carlos Lage,
atual vice-presidente e Felipe Pérez Roque, ministro das Relações Exteriores.
4..
Para entendermos o que se passa, não somente em Cuba, mas no conjunto dos países que expropriaram a burguesia no pós-guerra é necessário retomarmos o
debate sobre a natureza social desses Estados, as contradições entre os movimentos revolucionários e suas direções, os limites do nacionalismo e a importância do
internacionalismo na geografia das revoluções.
5..
COLOMBO, Roselena Leal. Cuba pós-colapso do Leste Europeu: Reinserção Internacional e Reformas Estruturais na Revista Economía y Desarrollo – (19962000). Porto Alegre: PUCRS, 2004. A análise da Revista Economía y Desarrollo, da Faculdade de Economia da Universidade de Havana, nos períodos de 1996 a
2000 foi estruturada em três grandes blocos temáticos: conjuntura internacional, reformas macroestruturais e reestruturação produtiva. Foram consideradas tanto
as singularidades quanto as recorrências, na medida em que se produzem num mesmo ambiente intelectual marcado pela necessidade de responder às novas
circunstâncias históricas.
6..
Em janeiro de 1949 reuniram-se em Moscou representantes da Bulgária, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Polônia e União Soviética com o intuito de
discutir questões referentes à cooperação econômica e à contraposição ao Plano Marshall, então encabeçado pelos EUA. Na sua origem e segundo dados oficiais,
o CAME foi uma organização entre Estados com o objetivo de coordenar atividades econômicas e desenvolver cooperação econômica, científica e técnica. Ver
RECARTE, A. Cuba: economia y poder (1959-1980). Madrid: Alianza Editorial, 1980.
7..
CARRANZA, J.; GUTIÉREZ,I. e MONREAL, P. Cuba: La Reestructuración de la Economía. Madrid: IEPALA Editorial, 1995, p. 36.
76 - Cuba pós-colapso do Leste Europeu: um debate necessário
Especificamente o problema da agricultura e da
produção de alimentos
adquiriram uma nova
dimensão na medida em que algumas estatísticas
informam que ao final dos anos 80, ao redor de 57%
das proteínas e mais de 50% das calorias consumidas
pela população foram de origem importada, direta ou
8
indiretamente.
Por sua vez, a menor disponibilidade de meios
de produção teria provocado um colapso do sistema
produtivo com a paralisação total ou parcial de
empresas.
Soma-se a essa situação de crise generalizada o
9
acirramento da política de bloqueio econômico por
parte dos EUA no início dos anos 90. As Emendas
10
11
Mack e Smith de 1989, a Lei Torricelli de 1991 e a
Helms-Burton de 1996, caracterizam-se pela absoluta
ruptura com pressupostos de direito internacional.
A Helms-Burton, intitulada originalmente Lei
para a Liberdade e a Solidariedade Democrática
Cubana, aprovada pelo então presidente democrata
Bill Clinton, estabelece a permissão para que norteamericanos levem às cortes dos EUA todo estrangeiro
que “trafique” com “propriedades norte-americanas”
em Cuba. A Lei define como propriedades norteamericanas aquelas nacionalizadas pelo governo
revolucionário depois de 1º de janeiro de 1959,
proibindo às cortes norte-americanas invocar a
“Doutrina de Ato de Estado”, princípio reconhecido
internacionalmente que justifica o processo cubano
12
de nacionalizações.
Curiosamente, apesar dessa lei ter sido aprovada
poucos meses após a Lei de Inversões Estrangeiras de
1995 de Cuba, os sucessivos governos norteamericanos têm sido pressionados a não utilizá-la.
Cabe ressaltar a forte pressão da comunidade
internacional (fundamentalmente México, Canadá e
União Européia) e de setores empresariais norteamericanos nesse sentido.
después de su aprobación, los peritos expusieron, no
obstante, algunos ejemplos comprobados de los
daños a importantes inversiones extranjeras en Cuba
13
[...].”
“Trás señalar que el impacto de la citada legislación
no ha sido el esperado por sus promotores, prueba de
ello es que el 57% de las asociaciones económicas
internacionales en activo fueron constituidas
O quadro apontado acima e os dados
apresentados a seguir colocam em novos patamares a
questão do bloqueio norte-americano. Se por um lado
é inegável a sua manutenção e recrudescimento
conjuntural, por outro, Cuba tem conseguido
estabelecer relações comerciais com vários países
capitalistas.
A superestimação do bloqueio norte-americano
cria uma falsa idéia de isolamento absoluto de Cuba, o
que não corresponde à realidade atual. Nesse sentido,
já a partir de 1994 os órgãos oficiais apontam uma
inversão importante nos dados econômicos. No
periódico Granma de 25 de dezembro de 1996, a
manchete afirma que “Supera la economía cubana los
umbrales de su recuperación”, informando um
crescimento do PIB superior ao planejado, em torno
de 7,8%. Tal balanço positivo da economia manifestase como uma tendência nos anos subseqüentes. Os
dados apresentados pela CEPAL em 1999 apontam
que enquanto o conjunto da América Latina e Caribe
apresentaram, em termos de PIB por habitante, um
decréscimo de 1,6%, Cuba cresceu 5,6% ocupando o
14
primeiro lugar entre os países latino-americanos.
Para entendermos essa nova dinâmica
apresentada oficialmente a partir da segunda metade
dos anos 90, faz-se necessário investigar o processo
de reestruturação econômica implementado pelo
governo cubano.
Pode-se afirmar que o processo de
transformações na organização da economia nacional
15
cubana tem sua raiz no Decreto-Lei 50, de 1982.
Denominada “Sobre Asociaciones Econômicas entre
Entidades Cubanas y Extranjeras” esta legislação
autorizou o direito de usufruto sobre instalações
industriais, turísticas e de outro tipo, assim como o
arrendamento das mesmas a entidades estrangeiras.
Pela primeira vez, desde a Constituição de 1976,
iniciava-se um processo de modificação conceitual na
CARRIAZO MORENO, G. Cambios estructurales en la agricultura cubana:
la cooperativización. Revista Economía y Desarrollo, n. 3-4/1996, p. 31-32.
9
Desde a Conferência Naval de Londres, de 1909, é um princípio aceito no
direito internacional que “o bloqueio é um ato de guerra”, e sendo assim, só é
possível seu emprego entre beligerantes. Geralmente se conhece como
embargo a forma judicial de reter bens para assegurar o cumprimento de uma
obrigação contraída legalmente. O Governo dos EUA emprega a figura do
“embargo” para não reconhecer que aplica a Cuba medidas de tempo de
guerra. Apesar de formalmente o bloqueio total contra Cuba ter sido
implantado em 7 de fevereiro de 1962, já desde 1959, os EUA vinham
aplicando medidas de estrangulamento à economia do país. MIRANDA
BRAVO, O. Cuba-EUA: Nacionalizaciones y Bloqueo. Habana: Editorial de
Ciencias Sociales, 1996. p. 37.
10
Apresentadas pela primeira vez em 1989, propõem a revogação da legislação
vigente desde meados dos anos 70. Esta permitia o comércio de filiais
estadunidenses em terceiros países, com Cuba.
Aprovada em 1992, esta lei pretendia regular a vida política cubana,
permitindo intervenção e apoio às ações de oposição ao regime.
12
MIRANDA BRAVO, O. Op. cit., p. 38.
13
LEE, S. Pérdidas causa el bloqueo en sensibles sectores de la economía. In:
Granma Internacional. Habana, 01.03.2000.
14
MILLARES RODRÍGUEZ, M. Presentación a la Asamblea Nacional del
Poder Popular del Proyecto de Presupuesto del Estado para el 2000.Revista
Economía y Desarrollo n. 1/2000, p. 223.
15
As modificações jurídicas das décadas de 80 e 90 foram objeto de estudos
que realizei na graduação em História/UFRGS, nas disciplinas de Técnicas de
Pesquisa. Ver CARRANZA, J.; GUTIÉREZ, I. e MONREAL, P. Op. cit.;
VEGA VEGA, J. Cuba: Inversiones Extranjeras a partir de 1995. Buenos
Aires: Endymion, 1996.
8
11
História & Luta de Classes - 77
questão da propriedade, que veio a se aprofundar com
a Reforma Constitucional de 1992 e, finalmente, com
a Lei de Inversões Estrangeiras de 1995.
Segundo VEGA VEGA, “Desde 1982 hasta
1989 se aprobó en Cuba un número insignificante de
16
inversiones extranjeras”. Uma das explicações
possíveis para tal constatação é que, apesar da crise já
existente nas relações internas do bloco, o centro
nevrálgico das relações de intercâmbio internacional
cubano ainda estava no marco do Leste Europeu.
As experiências com o Decreto-Lei Nº 50 e,
mais precisamente, as novas estratégias econômicas
que se gestavam no interior do regime cubano pós1989 precipitaram uma Reforma Constitucional que
permitiu não só a legalização definitiva das inversões
já existentes como o aprofundamento de reformas de
natureza estrutural.
Como um de seus aspectos mais importantes, a
Reforma Constitucional de 1992 introduziu a
modificação explícita de conceitos quanto à natureza
das formas de propriedade. Em primeiro lugar, retirou
do antigo texto constitucional a irreversibilidade da
propriedade estatal sobre os meios de produção e
17
demais bens.
Em segundo, enumerou uma nova listagem de
tipos de propriedade reconhecidas pelo novo texto
constitucional: “La propriedad de las empresas
mixtas y asociaciones económicas; la propriedad de
18
las sociedads mercantiles.”
Quanto ao comércio exterior, no novo texto
constitucional foi retirada a expressão “função
exclusiva do Estado”. Ao Estado cabe repassar
funções de operação de importação/exportação para
pessoas naturais ou jurídicas.
Com essas modificações – o conceito de
propriedade estatal, a forma de organização do
comércio exterior e a ampliação de propriedades
reconhecidas – o caminho estava aberto para o
aprofundamento das medidas de inversões
estrangeiras no país.
Em seu primeiro parágrafo do Artigo 1, ficam
expressos os objetivos da nova lei, a de inversões
estrangeiras de 1995: “[...]promover y incentivar la
inversión extranjera en el território de la Republica de
Cuba, para llevar a cabo actividades lucrativas que
contribuyan al fortalecimiento de la capacidad
económica y al desarrollo sostenible del país, sobre la
base del respecto a la soberanía e independencia
nacionales y de la protección y uso sostenible de los
16
VEGA VEGA, J. Op. cit., p. 11.
CARRANZA, J.; GUTIÉRREZ, I. e MONREAL, P. Op. cit., p. 47.
18
Idem, p. 48
19
VEGA VEGA, J. Op. cit., p. 39.
20
Idem, p. 31.
21
“Artículo 10. Pueden ser atutorizadas inversiones extranjeras en todos los
17
recursos naturales; y establecer a tales efectos, las
regulaciones legales principales bajo las cuales debe
19
realizarse aquella.”
Enquanto a Lei de Inversões de 1982 colocava
como objetivos “la expansión de las exportaciones y
20
el turismo extranjero” , a nova Lei de 1995 explicita a
busca de atividades lucrativas e estabelece a abertura
21
a praticamente todos os setores da economia.
Esse conjunto de modificações na legislação
cubana reflete um processo combinado de adaptações
e opções conscientes frente às novas condições
econômicas colocadas diante do desmantelamento da
cadeia produtiva construída junto ao bloco de
economias do Leste.
22
Reinserção Internacional e Reforma Estrutural
A reinserção nas relações internacionais
combinou-se com um processo de releituras da
história das relações de Cuba com o Leste. Através da
análise temática de artigos publicados no período
23
1996-2000 , pode-se evidenciar algumas tendências
discursivas.
Em primeiro lugar, a vinculação a um único
mercado passou a ser vista como desvantagem, ao
condicionar a inexistência de uma estratégia integral
de inserção no mercado mundial.
Esse tipo de raciocínio conduziu, pela negativa,
ao conceito de competitividade, sendo ressaltado de
forma recorrente que a estabilidade e segurança nas
relações com o Leste criou um ambiente produtivo,
desde a macroestrutura até o gerenciamento local,
onde não era necessário montar estratégias
competitivas no mercado internacional.
Em segundo, a importação do modelo produtivo
do Leste tendeu a ser percebida relacionando
centralização e planificação econômicas com
burocratismo e ausência de eficiência e
produtividade.
Sob o ponto de vista da reinserção em si, apesar
de recorrentes flutuações, a União Européia tornou-se
um novo eixo de comércio internacional,
representando já em 1995 cerca de 40% do comércio
exterior cubano:
“[...] el perfeccionamiento de la Ley de Inversiones
extranjeras, ha estimulado el establecimiento de
empresas foráneas en sus diferentes modalidades,
que de forma significativa proceden de países
miembros de la Unión Europea. Así, de los 212
sectores, con la excepción de los servicios de salud y educación a la población
y las instituciones armadas, salvo su sistema empresarial.” Ibidem, p. 65.
22
Dado o espaço deste artigo, optei pela discussão mais geral. Uma análise
mais abrangente e minuciosa encontra-se na minha Dissertação de Mestrado.
23..
Refere-se, no caso, ao periódico Granma e à Revista Economía y
Desarrollo.
78 - Cuba pós-colapso do Leste Europeu: um debate necessário
acuerdos de este tipo concluídos en 1995, 86 (el 40%
del total) se han realizado com naciones de la región
24
[...].”
Especificamente os setores vinculados à
extração de níquel e petróleo vieram a produzir um
resultado, no ano de 1996, superior ao ano de 1989,
fruto da política de formação de sociedades de
economia mista e associação econômica
internacional.
pelo total distanciamento de contexto histórico mas,
principalmente, pela natureza estrutural das medidas
adotadas em Cuba.
O quadro a seguir aponta tendências do
funcionamento econômico na segunda metade dos
anos 90.
FUNCIONAMENTO ECONÓMICO
Programa de medidas
“La presencia de capital extranjero es fuerte en
ramas importantes y dinámicas de la economia
nacional, entre otras, el turismo (16% del total de
acuerdos), el níquel, sector petrolero, minería en
general, biotecnología, productos farmaceuticos,
textil, telecomunicaciones, representaciones
bancarias, agricultura y azúcar, hasta un total de 34
25
ramas diferentes.”
Mas talvez o mais importante, numa análise
sobre as novas relações internacionais, seja o fato de
que, a partir das reformas na legislação, não há mais
26
monopólio do comércio exterior e às empresas de
capital totalmente estrangeiro é permitida a remessa
de lucros ao exterior sem passar pelo Banco Central
Cubano.27
Sobre a natureza estrutural das reformas afirmase que “[...] se produce actualmente una
transformación económica, importante, de carácter
estructural. No se trata simplemente de medidas a
corto plazo para enfrentar uma situación conyuntural.
El actual proceso de transformaciones genera una
dinámica propia de cambios que abarcan
necesariamente a toda la economía nacional y no se
limita a los sectores que desempeñaron el papel
28
protagónico.”
Essa é uma primeira questão crucial na
discussão sobre o novo momento histórico de Cuba.
O conjunto de mudanças na legislação e as reformas
macroestruturais e internas das empresas não são
29
passíveis de analogias com a NEP da URSS, não só
24
PUERTA RODRÍGUEZ, H. Relaciones económicas Unión Europea-Cuba,
análisis de sus perspectivas. Revista Economía y Desarrollo, n. 1-2/1997, p.
130.
25
CARRIAZO MORENO, G. Cuba: câmbios econômicos. Revista Economia
y Desarrollo, n. 2/1996, p. 15.
26
“[...] función que en la actualidad pasan a compartir las empresas mixtas, las
representaciones de firmas extranjeras e, incluso, numerosas empresas
estatales, lo cual las acerca a las condiciones del mercado. [...] Ya a finales de
1993 se había descentralizado la función del comercio exterior y unas 240
entidades estatales habían sido autorizadas a efectuar su comercio exterior
directamente, cuando solo eran cincuenta en 1989.” Idem, n. 2/1996, p. 13.
27..
“El Banco Central posee autonomía orgánica y personalidad jurídica
independiente. Este es el encargado de formular la política monetaria, y una
vez aprobada, dirige de forma independiente su aplicación.” HIDALGO DE
LOS SANTOS, V.; GANCEDO GASPAR, N. M. Reforma del Estado y
equidad: la experiencia cubana. Revista Economia y Desarrollo, n. 1-2/1998,
p. 39.
cendescen- flexibi- pian mercado
traliz. traliz.
lización
apertura al capital extranjero
-
+
+
-
+
desarrollo del turismo
-
+
+
-
+
modificación del decreto ley 50.
-
+
+
-
+
descentralización del Com. Exterior
-
+
+
-
+
despenalización del dólar
-
+
+
-
+
creación de las UBPC
-
+
+
-
+
reactivación del trabajo por cuenta propia
-
+
+
-
+
readecuación del Estado y Gobierno
-
+
+
?
?
programa de ajuste fiscal (1994)
?
+
+
?
+
ley tributaria 1994
?
+
+
-
+
nueva legislación laboral
-
+
+
?
?
mercado agropecuario
-
+
+
-
+
mercado de productos industriales
-
+
+
-
+
ampliación del cuentapropismo
-
+
+
-
+
ley de inversión extranjera
-
+
+
-
+
apertura de casas de cambio
-
+
+
-
+
redimensionamiento
-
+
+
-
+
perfeccionamiento de la ley tributaria
-
+
+
-
+
inicio de la reforma bancaria
-
+
+
-
+
Revista Economia y Desarrollo, n. 01/1996-p. 22
Os conceitos de descentralização e flexibilidade
em oposição à planificação e centralização serviram
de suporte a uma série de medidas macroestruturais –
novas formas de propriedade, reestruturação
do comércio exterior e descentralização e
autofinanciamento das estatais –, entendidas como
políticas que propõem a construção de um novo
modelo e uma nova cultura econômicos.30
O autofinanciamento das estatais merece um
destaque especial por evidenciar uma importante
mudança de paradigma que afeta a natureza mesma
do Estado cubano. Sob a justificativa da necessidade
de redução do déficit orçamentário (uma das
estratégias traçadas no chamado “período
especial”31), as estatais passaram a ser identificadas
como “mais um setor da economia”, perdendo na
28
CARRIAZO MORENO, G. Cuba: cambios económicos. Revista Economía
y Desarrollo, n. 2/1996, p. 26.
29
Em 1921 o X Congresso implanta a Nova Política Econômica (NEP), em
conseqüência da profunda crise das forças produtivas na jovem URSS após a
guerra civil. Dentre as principais medidas adotadas estavam: imposto
progressivo em gêneros, restabelecimento do mercado e economia monetária,
concessões aos capitalistas estrangeiros em empresas mistas no setores de
minas e atividades florestais. Tais medidas tinham como marco referencial a
continuidade do monopólio do Estado sobre o comércio exterior. Ver BROUÉ,
Pierre. União Soviética: Da Revolução ao colapso. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 1996.
30
HIDALGO DE LOS SANTOS, V.; VIDAL ALEJANDRO, P. e TABARES
NEYRA, L. Equilibrios monetarios y política económica. Revista Economía y
Desarrollo, n. 2/2000, p. 76.
31
Frente à dissolução da URSS e do CAME o governo cubano instaura um
período de ajustes severos na economia. Ver CARRANZA, J.; GUTIÉRREZ,
I. e MONREAL, P. op. cit.
História & Luta de Classes - 79
prática seu status de núcleo central econômico.
Tal lógica reflete a opção pela teoria das
“vantagens competitivas” segundo a qual as empresas
individuais adquirem maior relevância no mercado
internacional, na medida em que “[...] las decisiones
de las empresas transnacionales de transferir
tecnología, invertir y generar corrientes de comercio
internacional, pueden influir en gran medida sobre la
competitividad internacional de los países en
32
desarrollo.”
Essa opção é colocada como contraponto à
teoria clássica das “vantagens comparativas” de
Ricardo33, em que é defendida a tese de que o
comércio beneficia a todos e cada país se especializa
na produção daqueles bens que dispõem de
menores custos relativos. A combinação dos
conceitos de descentralização/flexibilização com os
de rentabilidade/eficiência/competitividade levam à
idéia de individualização do parque industrial estatal.
Inicialmente optou-se pela redução dos gastos
com subsídios para as estatais, passando ao
autofinanciamento, ou seja, o Estado passou a
economizar com aquelas.
Tais medidas, que poderiam ser analisadas
como emergenciais diante de uma conjuntura
internacional adversa, refletem a adoção de uma
nova lógica econômica onde os conceitos de
rentabilidade/competitividade/autofinanciamento
impõem uma dinâmica darwinista aos meios de
produção administrados pelo Estado.
Essa dinâmica darwinista – sobrevivência do
mais forte – se materializou numa drástica redução
do subsídio às estatais e a um giro de prioridades,
financiando as concessões privadas através das
Unidades Básicas de Produção Cooperativas
(UBPC)34, como mostram os quadros abaixo.
Subsidios a empresas estatales
Fonte: Revista Economía y Desarrollo, n. 1-2/1998, p. 37.
Recursos destinados a las UBPC
Fonte: Revista Economía y Desarrollo, n. 1-2/1998, p. 38.
Temos portanto um processo combinado de
reinserção internacional e reforma estrutural em Cuba
onde as novas geografias do comércio internacional
vem produzindo internamente mudanças de cunho
estrutural com marcada tendência à absorção de
paradigmas da economia de mercado.
Algumas questões sobre Cuba e América Latina
pós-11 de Setembro
Segundo dados do Ministério para a Inversão
Estrangeira e a Colaboração Econômica, Cuba
terminou o ano de 2002 com 403 associações
econômicas internacionais ativas, sendo 82 delas
35
radicadas no exterior.
Das informações coletadas no ano de 2003,
aparecem entre os sócios estrangeiros com maior
participação nos negócios com o arquipélago a
Espanha com 105 associações, Canadá (60) e Itália
(57). Do total das inversões, 56% provêem de
negócios com a União Européia.
Desde que Cuba iniciou o processo de inversão
estrangeira foram autorizados 578 negócios e
dissolvidos 175 por vencimento dos prazos acordados
contratualmente.
Se mantém relações de colaboração econômica
com 163 países, essencialmente na África, Europa,
Caribe e América Latina. Durante o ano de 2002
houve um maior desenvolvimento nos vínculos com o
Caribe, África e União Européia e, por países, se
avançou significativamente com Venezuela, China e
Canadá.36
Quanto às áreas de onde operam os negócios
estrangeiros, somam 34 setores, sendo que os de
maior expressão são os de prospecção e extração de
petróleo, minérios em geral, particularmente o níquel,
telecomunicações e turismo. Depois há uma grande
32
JIMÉNEZ GÓMEZ, F. Globalización, desarrollo tecnológico y eficiencia
económica: sus crecientes desafios. Revista Economía y Desarrollo, n.
2/2000, p. 71.
33
David Ricardo (1772-1823). Referência ao economista da escola clássica
que trabalhou com a idéia de valor-trabalho, sendo utilizado como referencial
nos estudos fundadores do marxismo. Ver FUSFELD, D. R. A Era do
Economista. São Paulo: Saraiva, 2001.
34
Segundo dados quanto à extensão de formas de propriedade privada no
campo: “[...] coexistem 1.161 cooperativas de productores agrícolas privados
y 86.000 productores agrícolas independientes que, junto a las UBPC abarcan
el 73% de la tierra cultivable del país.” CARRIAZO MORENO,G. Cuba:
câmbios econômicos. Revista Economía y Desarrollo, n. 3-4/1996, p. 18.
35..
LOMAS, M. Balance del Ministerio para la Inversión Extranjera y la
Colaboración Económica. In: Granma. Habana, 28.01.2003, p. 3
36
Idem, p. 4.
80 - Cuba pós-colapso do Leste Europeu: um debate necessário
diversidade: indústria alimentícia, ligeira,
siderúrgica, eletrônica e de materiais de construção e,
mais recentemente, nos setores imobiliário e
37
energético.
Percebe-se aí a grande abrangência das
inversões e associações com empresas estrangeiras
em Cuba também no início dos anos 2000. Em que
medida essa tendência tende a se fortalecer é uma
questão de hipóteses.
Algumas declarações recentes – de 2005 - nos
dão algumas pistas do quadro atual, como as abaixo:
“A economia cubana crescerá 9% neste ano,
segundo anunciou o ministro da Economia e
Planejamento, José Luis Rodríguez, na abertura do
Quarto Congresso da Associação Internacional de
38
Economistas e Contadores de Cuba.”
Recente feira internacional realizada em Cuba
mostra, por outro lado, a existência de contratos
econômicos com empresas norte-americanas ao
mesmo tempo em que é enfatizada a estratégia de
construção da Aliança Bolivariana para as Américas
39
(ALBA).
“Contratos com entidades norte-americanas,
venezuelanas, chinesas e canadenses são o prato
forte da principal bolsa de comércio de Cuba.
[...] a representação dos EUA à feira se
manifestou na presença de 188 companhias
provedoras de alimentos e 380 empresários de
40
31 estados[...].”
Temos então informações parcializadas que dão
conta de uma situação de dubiedade e novas
contradições colocadas entre, de um lado, um projeto
de integração latino-americano com conotações
independentizantes e, de outro, a continuidade e
extensão da abertura ao mercado capitalista de
natureza imperialista.
Essas novas contradições, por sua vez, se dão
num novo ambiente conjuntural na América Latina
onde as sucessivas vitórias eleitorais de plataformas
de centro-esquerda (como uma expressão distorcida
da retomada de mobilizações de cunho antiimperialista) e as enormes dificuldades do Império na
implantação da ALCA são expressão regionalizada
37
LEE, S. Pérdidas causa el bloqueo em sensibles sectores de la economia. In:
Granma Internacional. Habana, 28.01.2003, p. 3.
38..
PAGÉS, R. Economia cubana crescerá 9% neste ano. Granma Internacional. Disponível em:
http://www.granma.cu/português/2005/noviembre/vier25/49economia.html.
39
Dado o espaço desta matéria não foi possível desenvolver aqui uma análise sobre a dubiedade do discursivo bolivariano.
40..
ORAMAS, J. Contratos por mais de U$$ 400 milhões. In: Granma Internacional, 01.11.2005. Disponível em:
de um novo momento na conjuntura internacional. A
retomada do internacionalismo, mesmo que difuso e
fragmentário, questiona a ordem internacional pela
própria natureza da globalização neoliberal.
Nesse marco de ofensiva e resistência, de
acirramento das contradições do sistema capitalista
no início do novo século, Cuba aparece resignificada
como expressão de resistência ao neoliberalismo na
América Latina.
Algumas idéias sobre a reestruturação em Cuba:
um processo de restauração capitalista em curso
A popularização generalizada da figura de Che
Guevara, presente em todos os atos de resistência
mundo afora, para além de sua figura carismática e
mitológica, expressa um sentimento geral de
profunda simpatia com a Revolução de 59, o povo
cubano e sua impressionante resistência ao poderio
estadunidense.
Nesse sentido há um sentimento geral na
maioria da esquerda de preservar o regime cubano, de
poupar-lhe críticas no momento em função do
inimigo maior, de relevar desvios possíveis e de
entender que o governo está fazendo tudo o que pode
dentro de determinados limites, etc.
Para entendermos o que se passa em Cuba é
fundamental a crítica às limitações ontológicas do
modelo do “socialismo real” como uma saída de
41
longo prazo e de superação positiva ao capital.
A manutenção do aparato político/
administrativo/militar da Revolução de 59 não
significa, por si só, a continuidade do processo
histórico ao qual foi gerado. Assim como China,
Coréia e Vietnã, a situação de Cuba pode ser
caracterizada como sui generis na medida em que,
diferentemente dos desdobramentos da crise no Leste
Europeu, o regime político não foi derrubado mas as
estruturas sócio-históricas que o geraram sim.
Essa é uma das questões importantes na
discussão sobre o modelo do “socialismo real”: a
manutenção de alguns regimes políticos desse
modelo permite-nos classificá-los automaticamente
como ainda no campo do socialismo? E seus novos
modelos econômicos?
Hoje sabe-se que o esgotamento do modelo
fordista de produção, em algum momento entre as
décadas de 70 e 80, refletiu-se de forma dramática
http://www.granma.cu/portugues/2005/noviembre/un1/45contratos.html.
Na formação social de Cuba a herança colonial monocultora e dependente
do mercado externo apresentou certas continuidades após a Revolução de 59
no tipo de relações estabelecidas com o bloco do Leste Europeu, mantendo
parte da tradição histórica do modelo de “vantagens comparativas”, típica dos
países agro-exportadores. Ver LE RIVERENT, J. Historia econômica de
Cuba. La Habana: Ed. Ciencias Sociales, 1981; ACOSTA, J. Cuba: de la
neocolonia a la construcción del socialismo. Economía y Desarrollo, n. 1920. Habana: Universidad de Habana, 1973.
41..
História & Luta de Classes - 81
42
no Leste. No início dos anos 90 Robert Kurz já
apontava que a chamada crise do Leste era em grande
parte não a crise do socialismo mas sim a expressão da
crise do modelo produtivo capitalista em seu elo mais
frágil, que eram as economias híbridas do Leste
Europeu.
Esta é uma idéia-chave importante para
entender a essência do colapso do Leste Europeu para
além das questões de gerenciamento burocráticomilitar do aparato de Estado. É plausível a hipótese de
que muitas das rebeliões de massas ocorridas e que
redundaram na queda “em cadeia” dos regimes no
Leste, refletissem, ao contrário da versão triunfalista
de vitória do capitalismo, exatamente o seu contrário.
É plausível a hipótese de que, guardadas todas as
proporções das particularidades históricas da região,
houvesse em curso um processo de restauração
capitalista, subterrâneo, gestando-se e sendo
administrado pelo aparato de Estado, no marco
da crise de acumulação capitalista mundial e
cujo modelo de ‘socialismo real’ – engessado
pelo burocratismo e refém do abandono do
internacionalismo como via para o socialismo – não
apontava saídas possíveis fora da adaptação à
economia de mercado.
A combinação entre a reinserção internacional,
os limites da formação social específica de Cuba e a
lógica política do regime cubano (monolitismo de
partido único e uma burocracia estatal que detém
privilégios em relação à maioria da população)
objetivamente apontam para uma reestruturação que
privilegia o capital em detrimento do trabalho,
aprofundando mecanismos de economia de mercado
através da legalização de novas formas de
acumulação capitalista, o que implica em uma
desestruturação gradativa dos alicerces sóciojurídicos da Revolução de 59.
Cuba sem Fidel: algumas tendências políticas do
imperialismo para a sucessão
Não há dúvidas de que Fidel Castro se confunde
com a própria Revolução Cubana e sua influência
pessoal é enorme e simbólica de toda uma etapa
43
histórica. No entanto, segundo Martin Hernandez,
foi esse enorme prestígio que permitiu a aplicação,
42
KURZ, R. O colapso da modernização: Da derrocada do socialismo de
caserna à crise da economia mundial. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
43
HERNANDEZ, M. Cuba: O que virá depois de Fidel? In: Marxismo Vivo:
Revista de Teoria e Política Internacional. São Paulo: Ed. José Luis e Rosa
Sundermman, n. 14, 2006.
44
No estudo realizado para a elaboração de minha dissertação, há uma parte
específica que aborda a exploração da mão-de-obra cubana altamente
qualificada, com uma série de vantagens para o capital, na medida em que o
Estado subsidia salários indiretos, fruto das conquistas da Revolução.
45
HERNANDEZ, M. Op. cit., p. 10.
46
Oficialmente, ele é o coordenador da Comissão, órgão do Departamento de
Estado criado por George W. Bush e a secretária Condoleezza Rice em 2003
por dentro do regime, de um processo de restauração
sem grandes sobressaltos por parte da população.
Portanto, o que estaria em jogo hoje não seria a
restauração ou não, mas sim um processo de
desestabilização do mesmo regime que hoje garante
vultosos lucros para as empresas capitalistas que lá
44
aportam capital.
Segundo o autor e sua hipótese, a política atual
dos imperialismos norte-americano e europeu é o de
“pressionar sem desestabilizar”. “Por que não querem
desestabilizar o regime cubano? Porque é com esse
regime que está sendo restaurado o capitalismo.
Então, por que pressionam por uma saída
‘democrática’? Porque os diversos setores da
burguesia mundial buscam, mediante a legalização
dos partidos políticos e as eleições, ganhar terreno no
interior do processo de restauração, tanto em relação
aos outros setores burgueses como frente ao próprio
governo que hoje tem o controle do processo, o que
está dando origem a uma nova burguesia ligada ao
45
Estado.”
Essa política cautelosa, digamos assim, por
parte tanto do imperialismo norte-americano quanto
do europeu, tem evidentes diferenças, na medida em
que a enorme pressão da burguesia cubana exilada no
período da Revolução sobre o imperialismo
estadunidense o coloca em desvantagem na corrida
por espaços em Cuba.
Em entrevista à Folha de São Paulo, Caleb
46
McCarry , coordenador da Comissão de Assistência
para uma Cuba Livre evidencia essa tendência de
pressão sem grandes sobressaltos. Perguntado se os
EUA estariam dispostos a ter relações com quem quer
que seja o eleito pelos cubanos, mesmo que seja um
“Castro”, responde: “O processo de transição, um
processo que tem de culminar em eleições
democráticas, livres e justas, é um processo que deve
ser liderado por cubanos, somente os cubanos podem
47
definir seu futuro democrático.”
Para além do evidente cinismo quanto à velha
retórica da democracia, desgastada mais
recentemente pelos escândalos envolvendo
48
Guantánamo e Abu Ghraib e o desastre da política
de apoio à tentativa de golpe contra Chávez
na Venezuela, em 2002, uma política de
para “cuidar da transição de Cuba para a democracia”, mesmo antes de Fidel
Castro dar qualquer sinal de que deixaria o poder.
Folha de São Paulo, Caderno A16, 07.08.2006.
48
Ambas se constituem, atualmente, em prisões políticas para suspeitos de
atividades terroristas. Abu Ghraib, no Iraque, tornou-se conhecida
mundialmente em 2004 pelas fotos de abusos cometidos por soldados dos
EUA. Já Guantánamo em Cuba, tem sido alvo de denúncias de abuso e tortura,
conforme relatos de suspeitos libertados a entidades de direitos humanos. A
ONU pede o fechamento da prisão. Com apenas 116 km quadrados e
conquistada logo no início da Guerra Hispano-Americana, em 1898,
Guantánamo foi a primeira base naval estadunidense fora de seu território. Ver
Folha de São Paulo, 02.04.2006.
47
82 - Cuba pós-colapso do Leste Europeu: um debate necessário
intervencionismo em Cuba não seria uma política
49
inteligente na atual conjuntura internacional.
Ao contrário do que a maioria da esquerda
mundial tende a perceber, é possível apontar como
uma análise plausível a contradição entre a
necessidade do capital internacional abrir o regime
para melhor se colocar diante da partilha dos meios de
produção e o temor de grandes sobressaltos. Por quê?
Talvez porque corre-se o risco de enfrentar
levantes que, para além das exigências de
implantação dos mecanismos formais da democracia
burguesa, evidenciem as insatisfações pulsantes em
Cuba contra o que de fato é um processo de
restauração em curso.
De toda sorte, não podemos fugir nem adiar esse
debate. Nele, muitas das certezas antigas e velhas
polêmicas no interior da esquerda mundial deverão
ser analisadas sob novos prismas. As experiências de
restauração no Leste Europeu comparativamente à
China são um bom caminho de início de debate. A
experiência de 90 para cá tem nos mostrado que a
manutenção do regime do PC na China não só não
impediu como acelerou, organicamente, a restauração
capitalista.
Esperamos que o povo cubano saiba, mais uma
vez, defender as bases da Revolução de 59 e que a
esquerda latino-americana aponte o caminho da
mobilização popular com um programa antiburocrático e anti-capitalista. No mais, somente o
binômio História e Luta de Classes poderá responder.
49
No quarto ano de ocupação do Iraque, felizmente o Governo Bush não tem o
que comemorar. O efeito da política ofensiva mostra-se um tiro no próprio pé.
A resistência iraquiana expande-se crescentemente e angaria simpatias
globais; o governo amarga uma estrondosa derrota nas eleições do Congresso
estadunidense como reflexo da insatisfação interna enquanto que nas tropas
do exército ianque o descontentamento e desejo de voltar para casa anarquiza
a lógica da ocupação.
História & Luta de Classes - 83
Lutas sociais e poder popular:
algumas reflexões em torno da prática
dos Movimentos de Trabalhadores
Desempregados na experiência
1
argentina
P
orque refletir sobre alguns processos
organizativos construídos a partir dos Movimentos de
Trabalhadores Desempregados? Se suas lutas
expressam uma reaparição do conflito em torno do
trabalho com novas dimensões, herdando
experiências políticas precedentes e recolocando
sobre novas bases o conflito de classes na realidade
Argentina contemporânea, talvez um dos seus
méritos seja a sua capacidade para desnudar as
características regressivas da intervenção do Estado
frente aos conflitos sociais. Ao mesmo tempo, suas
lutas trazem preocupações que desafiam e interrogam
as experiências precedentes históricas da esquerda
nos seus legados de resistência popular.
A prática destes movimentos de politizar as
necessidades cotidianas dos setores subalternos
constituindo-as como frentes de luta e organização e
contrapondo alternativas concretas aos intentos
governamentais de despolitização, privatização e
individualização dessas necessidades, tem
importantes ressonâncias universais. Lutas sociais
que são germens de conquistas históricas, de extrema
significação para a construção de uma realidade
social mais progressiva, que caminham à conquista de
grãos mais altos de liberdade e emancipação social do
gênero humano.
Para uma breve historização dos MTDs
No cenário de degradação das relações laborais
e perda do emprego como elemento integrador,
fazem-se evidentes as atuações e intervenções
políticas dos trabalhadores desempregados. Embora
este se torne um ator político destacado a partir de
1..
O seguinte artigo traz algumas idéias presentes no nosso trabalho, “De
luchas, movimientos y conquistas sociales. Reflexiones a partir de la práctica
del MTD de Solano”. Rosario: UNR, 2006. Entregue para publicação em maio
de 2006.
2
Lic. em Trabalho Social pela UNR (Argentina), Mestre em Serviço Social e
Doutoranda da ESS/UFRJ. Integrante do Grupo de Estudos da América Latina
(GEAL) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas (NEPEM).
Katia I. Marro2
meados da década de 90, é importante situá-lo numa
dinâmica histórico-estrutural que expressa
significativas mudanças na classe trabalhadora, e
conseqüentemente, nas formas de expressão do
conflito de classes. Próprio do momento histórico
atual expressa uma redefinição em processo da
identidade das classes subalternas, no quadro de uma
mudança, também em processo, da forma histórica
da identidade operária.
Estes movimentos formam parte dos fenômenos
de protesto urbano, associados ao crescimento dos
bairros pobres habitados por trabalhadores
desempregados expulsos dos centros fabris, que
confluiriam com outros trabalhadores historicamente
imersos numa precariedade laboral estrutural. Suas
primeiras manifestações se dariam através dos cortes
de estradas, a partir dos quais ficariam evidenciados
traços de confluência com uma herança histórica de
luta e organização de classe: a tática dos cortes de
estradas se remonta à longa história da classe
trabalhadora, que por meio dos piquetes impediam
3
que as greves fossem desarticuladas. No entanto,
tanto . trabalhadores . desempregados, . quanto
empregados e empobrecidos reutilizam essa tática,
durante a década de 90, como forma de obtenção das
suas reivindicações, de construção de um cenário de
negociação com o governo e de visibilidade social das
suas demandas. Se o trabalhador empregado conta
com a capacidade de interromper o ciclo produtivo
através da greve, o piquete tem uma dimensão
territorial porque pode bloquear a circulação de
4
mercadorias através do corte de estradas . Voltaremos
3
Cf. PETRAS, James. El movimiento de los trabajadores desocupados en
Argentina. Revista Libre Pensamiento, 2002. Disponible en
http://www.cgt.es/publicaciones/ librepensamiento/primavera-02/ParadosArgentina.pdf.
4..
COLECTIVO SITUACIONES. 19 y 20. Apuntes para el nuevo
protagonismo social. Buenos Aires: De mano en mano, 2002. p. 91 y ss.
84 - Lutas sociais e poder popular: algumas reflexões em torno da prática dos Movimentos de Trabalhadores Desempregados na experiência argentina
depois a esta forma atual de reterritorialização do
conflito social.
Os primeiros cortes de estradas nacionais
significativos aconteceriam em cidades do interior do
país (em 1996 e 97, Cutral-Có e Praza Huincul na
província de Neuquén e na província de Jujuy; em
1997, Tartagal e General Mosconi em Salta e Cruz del
Eje em Córdoba), ligados à generalização da
precarização das condições de trabalho e as
privatizações das empresas petroleiras estatais (em
Neuquén, a YPF tinha sido privatizada no ano 1991),
sendo seus atores principais setores de classe que
tinham conhecido uma estabilidade relativa no seu
emprego e que através destes protestos
“intermitentes”, procurariam dar visibilidade às suas
demandas. Eles se caracterizariam por serem
massivos, com a presença de mais de uma fração
social (trabalhadores ocupados em diversos ramos,
desempregados, pequenos proprietários, etc.), com
formas de exercício da democracia direta que vão
transbordando os “canais” sindicais e partidários. A
imprensa os batizaria como “piqueteros”, mas essas
lutas resignificariam o atributo, apropriando-se dele e
superando os preconceitos ideológicos que o
constituía.
Anos depois – onde começaria um novo
momento ascendente de lutas, produto da saturação
dos “limites” construídos em torno da Aliança –, a
tática proliferaria por todo o país, convertendo-se
num elemento principal de luta. Assistiríamos a uma
multiplicação de organizações de trabalhadores
desempregados para além das práticas políticopartidárias e sindicais existentes, que tão longe de
indicar uma perda da significação do conflito de
classes, expressa sua centralidade a partir de novas
expressões históricas. Posteriormente, essa
“saturação” se evidenciaria de forma extrema nos
acontecimentos de 19 e 20 de dezembro de 2001,
onde não só a atuação das forças sindicais, mas
também dos partidos políticos de esquerda, ficaria por
momentos superada pela dinâmica dos protestos
sociais.
Deste modo, no final dos anos 90, aos
enfrentamentos dos ex-trabalhadores petroleiros com
a polícia, em General Mosconi (Salta), se somariam
os crescentes cortes de estradas na Grande Buenos
Aires (La Matanza; Florêncio Varela; Quilmes),
caracterizados pela sua massividade, a tomada de
decisões em assembléias e pela sua contundência e
duração. Seus atores principais são exclusivamente
trabalhadores desempregados (onde as demandas
giram em torno da obtenção de programas de
“emprego”), cuja organização não se dissolveria com
o término do corte de estrada. A importância que tem
o corte de estrada para estes movimentos populares,
na sua capacidade de perturbar a produção econômica
e produzir um fato político, fica evidenciada nas
seguintes palavras de um referente piquetero do MTD
de Solano que fala sobre a potencialidade de uma luta
que vem trasladando o eixo do conflito da fábrica às
estradas: “Quando o trabalhador era operário numa
empresa e tinha exigências que o patrão não aceitava
terminávamos tomando a empresa. Nós, hoje, não
temos empresa para tomar. Ao tomar a estrada,
descobrimos que com essa tomada travamos os meios
de circular [...]. A produção se paralisa. Para nós,
como desempregados, é uma ferramenta de luta
5
valiosíssima”.
Assim, as diversas experiências dos MTDs,
muitas herdeiras de outros germens organizativos,
irão se consolidando a partir da ressignificação dos
programas governamentais de “emprego”.
Disputando e confrontando com as práticas
eleitoreiras dos partidos dominantes (sobretudo do
Partido Justicialista), estes movimentos lutariam pela
organização autônoma desses subsídios e da
contraprestação exigida, com vistas à superação do
seu uso clientelar e partidário.
Durante o ano de 2000, os diversos e
heterogêneos MTDs – através de duas assembléias e
ações de alcance nacional – vão se instalando como
ator coletivo de importância, a partir de uma forte
ativação dos protestos na periferia urbana de Buenos
Aires, e não mais através de um movimento operário
que teve historicamente nos metalúrgicos a sua ponta
de lança.
Sobre suas formas organizativas: autonomia,
território e horizontalidade
Dentre os MTDs que se reivindicam autônomos
às centrais sindicais, ao Estado e aos partidos,
podemos destacar os seguintes princípios
organizativos: a horizontalidade, a democracia
direta e a autonomia, caracterizando uma luta que
reivindica um sentido anticapitalista.
O debate em torno da autonomia atravessa
muitas experiências político-sociais da Argentina
contemporânea; e isso não é casual se levamos em
consideração as características da intervenção
regressiva do Estado em face dos conflitos sociais e a
degradação da vida política acontecida durante os
últimos anos. Reconhecendo que a autonomia política
é uma precondição fundamental da formação de um
sujeito não mais subalterno, mas capaz de abonar
5..
Entrevista realizada com representantes do MTD de Solano pelo Jornal Pagina 12 apud FERRARA, Francisco. Más allá del corte de rutas. La lucha por una
nueva subjetividad. Buenos Aires: La rosa blindada, 2003. p. 39 e 40.
História & Luta de Classes - 85
processos de transformação, consideramos como um
signo de autonomia extremamente progressivo, a
ressignificação dos programas de “emprego”
governamentais presente na prática do movimento.
Por outro lado, a construção de uma representação
crítica das idéias dominantes, é também um momento
essencial na superação de uma posição passiva por
parte de qualquer experiência que se pretenda
transformadora, fundamentalmente porque a luta de
classes supõe também uma luta no campo das visões
do mundo. Entretanto, em algumas experiências da
Argentina contemporânea, a autonomia proclamada
se sustenta numa certa “rejeição” das práticas da
política institucional e dos “ritmos” do eleitoral.
Embora não deixemos de reconhecer os “problemas”
do espectro partidário argentino das últimas décadas e
compreendamos que essa atitude possa ser produto de
leituras críticas da conjuntura (e inclusive, acertadas),
as potenciais limitações daquela consigna podem
resultar perigosas para uma generalização
indiscriminada da mesma. Porque certa “indiferença”
em face dos processos eleitorais e dos movimentos da
política institucional pode implicar práticas que,
embora suponham interessantíssimos processos de
construção, fiquem “isoladas” de outras experiências
6
políticas relevantes .
Se atentarmos aos outros princípios
organizativos veremos que a democracia direta e a
horizontalidade seriam as formas participativas mais
apropriadas para permitir um compromisso e
envolvimento maior das pessoas na construção
político-social a partir das suas necessidades
concretas. Desta forma, se pretende que seja o
coletivo o que marque a direção do movimento, as
decisões, a sua construção cotidiana, onde se busca
que um referente que cumpre funções esteja a serviço
desse coletivo. Alguns traços de ressonância do
“mandamos obedecendo” zapatista.
Por outro lado, apesar dos limites que
atravessariam e que ainda hoje não estão resolvidos
na prática de muitos desses movimentos,
concordamos em que “para o movimento operário, o
avanço na luta dos desempregados significou um
claro aporte de vitalidade [...], impulsionar o
desenvolvimento da organização territorial foi um
bom reflexo de uma política que objetiva formular-se
assumindo as profundas transformações sofridas pela
7
classe” . Consideramos que em face das profundas
transformações no mundo da produção, a
organização territorial e as necessidades da vida
cotidiana, vão se convertendo em frentes de
reivindicação política e social, com intentos por
superar esse caráter econômico primeiro. Inclusive
porque nestes âmbitos assume um caráter
fundamental o trabalho ideológico-cultural em torno
de determinados valores: produção de uma nova
subjetividade que seja produto de um percurso
coletivo que nutra e exercite uma capacidade de
8
decisão sustentada na vida cotidiana do movimento.
Por sua vez, a questão da territorialidade resulta
sumamente interessante do ponto de vista histórico,
ou seja, para pensar tanto as mudanças históricas que
se produzem na relação da classe operária com o
território, quanto no lugar que isso tem hoje na
configuração dos conflitos sociais. Se nos primórdios
do capitalismo o capital fixa a classe operária em
determinado espaço geográfico e físico (sejam os
bairros e cidades operárias, seja a própria fábrica), em
face das transformações históricas em curso
encontramos com organizações na base territorial,
cuja tática de luta privilegiada consta na interrupção
da circulação. Então, embora reconheçamos que
noutros momentos históricos, os bairros operários
foram espaços de construção de sociabilidade e
identidade de classe, e que, posteriormente, também
existiram outras formas de organização territorial –
como as dos anos 80 –, é preciso analisar que as
experiências de organização territorial da qual os
MTDs são expressão, evidenciam formas atuais e
renovadas de habitar o território a partir de um
processo de luta e resistência: enquanto o capital
desterritorializa a produção e sua “sede” de circulação
aparece quase que “hipertrofiada” (e desse modo,
desestrutura muitas das formas organizativas
precedentes), a luta piquetera não só “volta” ao
território, como também, a partir de um ponto de vista
simbólico, se constitui como um “antifluxo”, e de um
ponto de vista mais concreto, interrompe a própria
9
circulação .
Por outro lado, é necessário analisar que a
situação particular desse setor de classe e a sua
posição historicamente subordinada nas estratégias
da política tradicional institucional têm influenciado
iniciativas de ação direta para a consecução de seus
objetivos. Tal como já foi mencionado, se destacam
os cortes de estradas principais (com o fim de
paralisar a circulação de bens e a produção destinada
ao mercado doméstico e de ultramar) e se privilegiam
formas de decisão através de assembléias, e do
exercício da democracia direta (num claro repúdio às
6.
MACEIRA, V. & SPALTENBERG, R. Una aproximación al movimiento de
desocupados en el marco de las transformaciones sufridas por la clase obrera
argentina. In Revista OSAL (CLACSO) n 5, septiembre de 2001. p. 27.
8
FERRARA,. op. cit. p. 87.
9
Cf. ZIBECHI, Raul. Genealogia de la revuelta. Argentina: la sociedad en
movimiento. Buenos Aires: Letra Libre/Nordam Comunidad, 2003, p. 162 y ss.
Não estamos desconhecendo o caráter estruturalmente limitado da
democracia nos marcos capitalistas (eleições, vida político-institucional,
sistema político), nem o acirramento de seu caráter abstrato em determinados
momentos históricos (ou até o seu cancelamento, que conduz o campo popular
para opções mais críticas e distantes) que torna inviável qualquer participação
no seu seio.
7
86 - Lutas sociais e poder popular: algumas reflexões em torno da prática dos Movimentos de Trabalhadores Desempregados na experiência argentina
práticas clientelistas e paternalistas dos partidos
tradicionais). É importante lembrar que nos cortes de
estradas (onde as famílias e militantes se instalam
fazendo alimentação coletiva, colocando barracas e
ateando fogo em pneus), quando o governo se decide
a negociar, o movimento exige que isso seja feito com
a presença de todos os militantes no piquete, numa
clara resposta à cooptação própria da negociação de
delegados individuais, nas dependências oficiais. Por
isso, provavelmente a radicalidade das suas medidas
nos primeiros momentos se derive não tanto de uma
premissa ou definição política aleatória, mas da sua
condição social: isso os leva a demandar respostas do
Estado, embora com fortes tendências de rejeição dos
“manejos” da esfera político-institucional.
As práticas de ação direta, o exercício da
democracia e a reivindicação do principio de
autonomia deixam em evidencia não só as limitações
da vida político-democrática da Argentina
contemporânea, mas também as reações em face da
resposta repressiva do Estado para esses setores.
Características organizativas e de luta que nos
lembram às práticas de diversas experiências latinoamericanas. Ação direta, democracia, território,
organização de base, autonomia, horizontalidade,
constituem traços que nos lembram o MST aqui no
Brasil, o EZLN no México, dentro outros.
Experiências de construção de poder popular
Como em várias experiências atuais latinoamericanas, em muitos destes movimentos, faz-se
presente uma crítica contundente ao problema da
tomada do poder entendido como algo
“instrumental” (um “ponto de partida” que por si só
permitiria a transformação da sociedade,
subestimando processos de construção de hegemonia
social) ou isolado de práticas de construção concretas.
Nesta direção, muitas experiências fazem críticas
severas aos “moldes” autoritários e burocráticos da
experiência histórica de algumas esquerdas, à sua
dificuldade para construir processos organizativos de
massas, aos seus limites na consolidação de
experiências democráticas capazes de potenciar o
conjunto, às suas práticas de homogeneização e
negação da diversidade.
Os “ensaios” e “buscas” de múltiplas
organizações nesta direção são diversos e estão em
processo de maturação, mas as críticas se orientam
fundamentalmente: de um lado, a uma concepção
“instrumental” da organização que haveria
subsumido a diversidade de expressões de lutas a um
suposto “objetivo final” e que teria encontrado sérias
10
ZIBECHI, op. cit. p. 63.
dificuldades para questionar-se pelo seu próprio
modelo de organização, estando pouco atento ao
caráter processual das mudanças sociais; de outro, a
uma concepção e prática de hegemonia que haveria
implicado na dominação de algumas experiências por
outras, negando as suas particularidades. A partir
daqui, surgem discussões que contém desde outras
concepções de hegemonia (unidade na diversidade)
até posições que reivindicam a “idéia de rede”, onde
não haveria um “centro”, mas “múltiplos centros”
interdependentes entre si, ou a “imagem de um arcoíris” onde “cada cor tem seu lugar, mas nenhuma
10
predomina”.
Para além de nomes e conceitos, parece-nos que
o problema reside, não na tentativa de construir um
projeto comum, mas em determinada forma histórica
(autoritária, negadora das diferenças) que isto pode ter
tomado, e, nesse sentido, tão longe de deixar de pensar
na importância de construir tal momento político
universal, resulta significativo reconhecer esses
limites e superá-los em novas experiências
organizativas mais democráticas. Nesta direção,
consideramos que quando falamos de processos de
transformação há elementos que não podem ser
dicotomizados, porque estão intimamente
relacionados: Pode o “quê” da organização (seus
objetivos político-ideológicos) dissociar-se do
“como”(suas formas de alcançá-lo)? Unidade é
necessariamente incompatível com diversidade? A
unidade é, necessariamente, uniformidade? Um
projeto horizontal não tem “centro” ou, se se prefere,
um lugar do “comum” que seja expressão do coletivo?
Não é o “mandamos obedecendo” zapatista uma
evidência disso?
Consideramos que o problema principal se situa
no desafio de que, sem perder a autonomia nem
subestimar a diversidade de cada experiência, elas
possam construir um projeto societário de
emancipação de forma coletiva, projeto que não só
pressuponha projetos diversos, mas que os potencie
na sua particularidade, a partir daquilo que os une.
Isto é, o projeto comum como possibilidade de
máxima expressão da diversidade e de
universalização de lutas setoriais. Porque, se se
considera que a construção de um projeto comum, de
um momento político-universal, necessariamente
implica a negação das diferenças, corre-se o risco de
que o pluralismo das diversas experiências se
imponha como corporativismo ou dispersão: tão
longe de considerar que universalismo e diversidade
se opõem, afirmamos que a diversidade nunca se
realiza tão plenamente como num horizonte de
História & Luta de Classes - 87
universalidade. O desafio está na possibilidade de que
uma diversidadede organizações possa constituir um
11
“centro” ou um espaço do “comum” dando direção
sócio-política a um projeto coletivo de transformação,
sem que isso suponha necessariamente a supressão
daquilo que constitui sua riqueza.
No nosso ponto de vista, estes movimentos se
constituem como experiências de construção de
poder popular por terem como cenário prévio e
decisivo o âmbito da sociedade civil e, desta forma,
podem ter incidências progressivas na própria
configuração estatal a partir das suas reivindicações e
lutas universalizantes. O poder popular – recriado
continuamente num processo de participação ativa,
produto de uma prática ético-política tensa constituída
por sujeitos e organizações que disputam projetos
diversos na sociedade - expressa uma relação dialética
que se estabelece entre sociedade civil e sociedade
política, ambos momentos atravessados pelas lutas de
classes.
O fato de que existam experiências políticoorganizativas de grande importância para o mundo
contemporâneo que não se proponham à participação
nas instituições do sistema político ou no próprio
Estado, inclusive pelas próprias características
particulares de cada realidade (pensemos em
experiências riquíssimas como as do EZLN no
México), tão longe de levar-nos à subestimação desse
cenário, deve conduzir-nos à valorização das diversas
dimensões e momentos que constituem um processo
de conquista do poder político, das multiplicidades
que integram um processo de transformação.
Processo este entendido como produto de diversas
experiências de poder popular que possam confluir a
partir da sua diversidade – sua máxima expressão
naquilo que as une –, num projeto comum de
12
mudança social, num momento político-universal .
Reconhecemos então, a relevância de diversas
experiências e cenários de luta e organização, que não
diluem nem a importância de um momento políticouniversal nem sua expressão máxima na
transformação do Estado, ou seja, na construção de
formas de governo que superem sua configuração
capitalista. Daí, a importância do trabalho
desenvolvido por diversas experiências que se
propõem uma tarefa de construção política e
ideológica cotidiana e da incidência das suas lutas
universalizantes na própria configuração estatal.
Tal como o destacamos antes, na América Latina
contemporânea existem inúmeras experiências
organizativas que resistem aos estragos causados
pelas políticas neoliberais, que se alçam contra os
avanços do imperialismo e seu projeto de dominação
econômica e militar da região, que lutam pela
democratização e conquista de direitos, todas elas
responsáveis pela construção de poder popular:
espaços organizativos cuja fortaleza principal reside
num trabalho político-ideológico orientado à
produção de um senso crítico em face da realidade
histórico-social, à politização da sociedade, e à
construção de sujeitos coletivos. Estas experiências
de poder popular estão atravessadas pelo desafio de
lutar pela consolidação de espaços de articulação e
construção comuns a fim de incidir de forma mais
contundente e reverter os regressivos rumos pelos
quais transitam nossas sociedades; tarefa histórica que
dependerá da sua multiplicação e do ressurgimento de
movimentos de massas de sentido anticapitalista.
No caso particular das organizações de
desempregados podemos ver como estas experiências
ensaiaram formas alternativas de distribuição e uso
dos subsídios assistenciais para o desemprego,
evidenciando um primeiro intento de construção de
critérios de justiça social mais autônomos, baseados
em relações de solidariedade e na valorização da
participação ativa na luta comum. Em que medida
essas práticas significarão um ponto de inflexão na
relação das classes subalternas com o âmbito político
11..
Ambos entendidos como expressão e produto das decisões coletivas,
direção e sentido político-ideológico dados pelo conjunto; concepção que se
distancia tanto de uma perspectiva que apresenta esse “centro” como
subordinador e negador do coletivo (despotismo que gera passividade),
quanto de uma outra perspectiva que afirma uma multiplicidade em si, que não
conflui em espaços comuns e dessa forma, nega as próprias diferenças
(fragmentação que também conduz à passividade). Resulta claro que uma rede
está integrada por diversos “centros”, mas, na nossa concepção, ela mesma é
também um “centro” porque tem uma determinada direção definida pelo
coletivo a partir da sua diversidade, ela é um “espaço do comum”. Não nos
parece outra a idéia zapatista de “um mundo onde caibam muitos mundos”, e
não “um múltiplo não dirigido” (COLECTIVO SITUACIONES, op. cit. p.
203) porque a busca daquele “mundo”, tão longe de não ter direção, recebe-a
dos “muitos mundos” que o constituem; “mundos” que nunca se realizam tão
plenamente como quando podem transcender seus próprios limites.
12..
Consideramos aqui a conquista do poder político com um momento
essencial na construção de processos de transformação, a qual encontra como
terreno prévio e decisivo das lutas o cenário da sociedade civil, e sua
materialização na própria transformação/superação do Estado (no seu sentido
capitalista) com vistas a consolidação de uma forma de governo que não
reproduza a alienação política e garanta um radical espaço público. Resta
esclarecer que este processo de conquista de poder se encontra absolutamente
ligado às possibilidades e limites oferecidos por cada conjuntura histórica, na
sua configuração societária e estatal; o que se evidencia nas distâncias
existentes entre as experiências de construção de “poder paralelo”, como o
EZLN, e as formas de luta do MST no Brasil, que sem estarem atreladas ao
Estado, procuram incidir na sua própria transformação a partir da sua luta
social. O fato de que a luta de classes tenha como terreno prévio e decisivo o
cenário da sociedade civil supõe que a conquista do poder do Estado é
expressão de um processo de transformação que o precede, não como centro
que irradiará tal processo (como as interpretações “instrumentalistas” de certa
esquerda tradicional, onde a “tomada do poder” entendida como controle do
aparelho de Estado, seria o “ponto de partida” de um processo de mudanças
revolucionárias), mas como expressão máxima desse processo. Assim,
entendemos que os processos de transformação que se proponham a
construção de uma sociedade sem exploração/dominação não podem deixar
de pensar no Estado como objeto da política (o que não nega a diversidade de
momentos e experiências que o constituem) a partir do momento em que a
superação da propriedade privada se torna um elemento central.
88 - Lutas sociais e poder popular: algumas reflexões em torno da prática dos Movimentos de Trabalhadores Desempregados na experiência argentina
é um interrogante que permanece em aberto, sujeito à
possibilidade de aprofundar o sentido progressivo
da sua luta – situação que excede aos próprios
movimentos. Entretanto, parte significativa da
importância e dos traços universalizantes destas lutas
sociais se encontra na sua potência de
democratização da esfera pública, recriando o seu
valor – não se esgotando neste elemento a sua
significação histórica.
O problema do Estado e as lutas político-sociais
contemporâneas
Nos dias atuais assistimos a um processo de
transnacionalização da acumulação do capital e do
poder sem precedentes. Esta realidade implica para
nossos países um aprofundamento do imperialismo
que vulnerabiliza ainda mais a já precária (pela sua
dependência histórico-estrutural) soberania nacional,
a partir da qual é possível situar um acirramento da
tensão entre a idéia da política territorializada e os
padrões de internacionalização do processo decisório
13
e da mundialização das atividades políticas . É o
processo de acumulação capitalista, sobre novas
bases históricas, o que impõe um enfraquecimento
dos instrumentos tradicionais da regulamentação
capitalista nacional.
Neste quadro, surgem diversos debates que
assinalam que a maior erosão da arquitetura do
poder político associada ao Estado moderno
soberano haveria recolocado a pergunta pelo sentido
e alcance da atividade política centrada nessa figura.
Em primeiro lugar, é preciso destacar que a
“soberania estatal no território nacional” e os
mecanismos políticos de regulamentação nacional,
nos marcos da sociedade capitalista, foram
historicamente uma expressão política e estiveram
sujeitos às necessidades econômicas do próprio
movimento do capital que já nas suas origens
traspassa as “barreiras” nacionais. A posição
subalterna das economias latino-americanas
evidenciou historicamente uma vulnerabilidade
estrutural da sua soberania nacional – exemplo
extremo e “periférico” das suas determinações
capitalistas.
Tendo em claro isso, e considerando a inédita
velocidade da movimentação do capital e o
fortalecimento esmagador de instâncias de poder
supranacionais, traços estes distintivos de outras
13..
Cf. GOMEZ, José Maria. Globalização da política. Mitos, realidades e
dilemas. In Revista Praia Vermelha 1. Estudos de política e Teoria Social.
Pós-graduação da ESS/UFRJ, 1997. p. 31.
14
Não há aqui a pretensão de desconhecer as limitações histórico-estruturais
do espaço público em países como Argentina, derivadas não só das
desigualdades de classes das nossas sociedades, mas também do seu caráter
etapas históricas, entendemos que nos dias atuais o
que entra em crise são os mecanismos capitalistas de
regulamentação nacional próprios do período
precedente - as formas contemporâneas de
dominação política atreladas ao Estado apresentam
uma nova complexidade, onde se acirram as
contradições entre mecanismos políticos
territoriais/nacionais e a transnacionalização do
capital, produto de uma hipertrofia do capital
financeiro e do aumento do poder de organismos
internacionais.
Neste quadro, as reformas neoliberais são
expressão de uma nova etapa histórica onde o modelo
de acumulação guarda um “minúsculo” lugar para as
concessões sociais, o consumo de massas e as
negociações políticas. Na Argentina, configura-se um
cenário onde a degradação/redução que sofre a
política se traduz no detrimento dos espaços
consensuais no seio do Estado e se complementa com
o uso recorrente dos mecanismos repressivos para a
regulação dos conflitos sociais. O que nos importa
destacar deste processo são os mecanismos
ideológicos que, num intento de retiro das classes
subalternas da esfera pública, apostaram no
descrédito das instituições globalizadoras da política e
no próprio Estado. Por isso, o desmonte neoliberal que
“acusou” ao Estado de “paternalista”, “ineficiente”,
“gerador de uma cidadania passiva” (e que transfere
sua responsabilidade por direitos sociais ao indivíduo
e à família) foi o complemento de um processo
político de “descidadanização” historicamente
regressivo, que se propôs levar a níveis inauditos a
14
passividade e a despolitização . Seus resultados mais
visíveis foram, e ainda são, as políticas sociais focais
que quando não privatizam e despolitizam o conflito
social – excluindo o trabalhador da cena política e
tornando-o “objeto” dessas regressivas intervenções
–, transformam-no em objeto de intervenções
repressivas e criminalizantes.
Paradoxalmente é justamente o próprio Estado
que se torna um dos elementos chaves no chamado
processo de globalização, o que traz significativas
transformações nas suas funções econômicas e
políticas. A partir do que, coincidimos em que “[...] o
Estado e o sistema de Estados permanecem no
coração da política mundial [...]. Ademais, o nível
nacional da política continua a ser o centro
insubstituível da legitimidade coletiva e dos projetos
de sociedade de cada país [...]”15.
subalterno e periférico. O que procuramos mostrar é o aparente paradoxo da
retórica neoliberal que usou esses argumentos para produzir contra-reformas
privatizantes que derivaram numa maior destituição do caráter público do
Estado.
15
GOMEZ, op. cit. p. 41.
História & Luta de Classes - 89
Não restam dúvidas que este cenário impõe
profundos dilemas tanto para as lutas que reivindicam
uma dimensão internacional quanto para aquelas que
se limitam ao território nacional. A proliferação de
movimentos de ação direta e a diminuição da
valorização dos espaços de poder estatal em diversos
países da região durante a década de 90 fazem parte de
uma realidade social que deve ser rigorosamente
historicizada. O potencial de muitas destas
experiências latino-americanas de ação direta deriva
da sua fertilidade na construção de processos
organizativos que encontram na sociedade civil seu
foco principal, o que não nega que suas conquistas
sejam susceptíveis de serem materializadas no
próprio seio institucional do Estado, arena
fundamental de luta.
Se em determinadas condições históricas (por
exemplo, a situação da Colômbia é claramente
diferenciada da Argentina, ou das ditaduras militares
comparadas com os dias atuais) o endurecimento e
autoritarismo do Estado tornam quase impossível a
materialização de lutas no seu seio, e só se faz
possível, a organização resistente de setores da
sociedade civil, isso não pode conduzir-nos,
sobretudo em períodos democráticos (por mais
restritos e formais que sejam), a uma “satanização” do
Estado, a uma leitura unívoca e monolítica das
suas tramas institucionais. Esta afirmação não
negligencia nem a importância essencial de
experiências populares que constroem no terreno
“extraparlamentar”, nem a sua particularidade em
processos mais abrangentes de transformação social.
Na Argentina, o discurso neoliberal da “cultura
da dependência” e da “passividade” que geraria o
Estado com sua intervenção, argumento usado nos
anos 90 para legitimar seu desmonte regressivo,
nunca foi tão real e contraditório como nos dias atuais,
onde o perfil da sua intervenção na “questão social”
ou a sua desresponsabilização que delega
determinadas funções sociais em organizações
privadas (sejam sociais ou empresariais), não gera
um direito, gera um beneficio. Nesse sentido, e sem
deixar de reconhecer o caráter tutelar e
antidemocrático que tinham os direitos garantidos
pelo Estado com precedência ao período neoliberal,
consideramos que resulta potencialmente regressivo
negligenciar a importância de tais conquistas
históricas ou a necessidade de aprofundá-las no seio
do Estado. Se de um lado o Estado, ao reconhecer
demandas sociais procura sua fragmentação,
despolitização, burocratização ao tempo que as reduz
e desliga da totalidade social, de outro ele é também
expressão de lutas sociais que lhe impõem conquistas
históricas que ampliam seus limites (embora sempre
de forma “tolerável” pela ordem burguesa).
A re-significação dos programas sociais,
ensaiada pelos MTDs é uma clara expressão de como
determinados recursos estatais orientados a produzir
desmobilização, contraditoriamente, quando foram
mediados por lutas autônomas, puderam ser também
utilizados para potenciar essas experiências; germens
de poder popular susceptíveis de imprimir suas
exigências universalizantes nessa materialidade
institucional.
Poderíamos pensar então que um dos elementos
que explica a significação histórica destas
experiências se encontra na sua potencialidade para
alimentar a construção de uma esfera pública
democrática e o aprofundamento da socialização da
vida política; movimento de questionamento da
alienação que restringe a política nas “margens”
estatais. Sua importância radica nessa forma de
recriar e habitar o espaço público a partir das lutas
sociais, do reencontro com as próprias capacidades
políticas e sociais coletivas. Portanto, são práticas
político-sociais que colocam na cena histórica o
problema da socialização do poder de decisão, da
apropriação do público e de um exercício radical de
direitos a partir da construção de espaços coletivos –
isto é, os direitos mediados pelas lutas sociais podem
se constituir como expressões de afirmação da
própria soberania popular.
História & Luta de Classes - 91
Bolivarianismo e Chavismo:
os desafios ideológicos do
processo venezuelano
Carla Ferreira1
M
uito se tem escrito e discutido sobre o
processo bolivariano que experimenta a Venezuela
nos últimos anos, na tentativa de compreender o
caráter da mobilização popular de massas que tem
lugar no país e sua liderança principal, o Presidente
Hugo Rafael Chávez Frías. Neste artigo, buscamos
contribuir para esse debate resgatando a experiência
histórica da ideologia bolivariana na Venezuela dos
séculos XIX e XX. Buscamos, ainda, levantar ao
longo da análise algumas questões que devem ser
observadas para um acompanhamento crítico, a partir
de uma perspectiva de classes, dos rumos ideológicos
desse processo.
O fenômeno do chavismo pode ser parcialmente
caracterizado como uma apropriação específica do
bolivarianismo. Nesse sentido, o chavismo
compartilha o bolivarianismo com outros sujeitos
sociais, no presente e no passado, e, nesse processo,
uns e outros fazem usos de diferentes aspectos da
capacidade mobilizadora dessa ideologia. O
chavismo se constitui, portanto, como uma forma de
consciência social prática, uma ideologia cujo
conceito não se define segundo critérios
gnoseológicos de verdade ou falsidade ― e, portanto,
afasta-se da noção de "falsa consciência". Mas,
consiste, isso sim, em uma forma de consciência
social através da qual os homens e as classes se
engajam nas lutas sociais.2
Avançando um pouco na compreensão do
conceito de ideologia aqui operado, destacamos que o
conteúdo do chavismo, como ideologia bolivariana
histórica, não se legitima mediante uma maior ou
menor aproximação com o Bolívar histórico. Ou seja,
o processo ideológico ao qual nos referimos se serve
sobretudo da memória social como recurso
3
legitimador para distintos projetos de futuro.
A ideologia bolivariana se define, portanto, pelo uso
da memória sobre Simón Bolívar na luta social do
presente, articulando uma determinada visão de
mundo.
O discurso de Hugo Chávez reivindica
recorrentemente o legado do líder da independência
sul-americana. Bolívar, apesar de haver sido o filho
4
da principal família da oligarquia mantuana
venezuelana, transcendeu os limites de sua classe
social. Assim, além de impor-se sobre sua época como
representante da luta pelo livre comércio tão
ambicionado pela oligarquia crioula, Bolívar assume
atributos mais universais, ao proclamar também a
5
liberdade dos escravos, em 1816. A partir de então, a
abolição da escravatura será objeto da ação e
reivindicação constante de Bolívar. Porém, mesmo
quando ainda não havia incorporado integralmente a
luta antiescravista a seu ideário, alguns traços de sua
biografia viriam a contribuir para compor o
significado bolivariano que coagularia na memória
social e viria a ser, ainda que não explicitamente,
fartamente referenciado no discurso chavista.
1.
Mestre em História pela UFRGS.
WEISSMAN, Esther. A ideologia e sua determinação ontológica. Revista
Ensaio. n. 17-18, 1980, p. 420. Sobre o conceito de ideologia aqui aplicado ver
também MÉSZÁROS, István. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2004.
3
A memória é um processo social seletivo de recordação, esquecimento e
mesmo invenção que estabelece relações estruturais com fatos mas não se
restringe e eles. A memória é, nesse sentido, um processo essencialmente
ideológico. Discutimos as relações entre memória, cultura e ideologia em
suas conexões com o tempo histórico em nossa dissertação: FERREIRA,
Carla. Ideologia Bolivariana. As apropriações do legado de Simón Bolívar em
uma experiência de povo em armas: o caso da Guerra Federal (1858-1863).
Porto Alegre, PPG-História/UFRGS, 2006.
2
4
O termo “mantuano” refere-se ao privilégio de uso de mantos ou véus sobre a
cabeça, que utilizavam as mulheres das famílias de origem espanhola nascidas
na América, como símbolo de distinção social.
5
O historiador venezuelano Brito Figueroa descreve alguns dos embates de
Bolívar com outros chefes republicanos em torno do tema da abolição da
escravatura. Sob as condições conflitivas de diversos anos sem solução
positiva para suas petições abolicionistas, Bolívar, na condição de Presidente
da República e Chefe Supremo do Exército, resolve continuar legislando de
fato e promulga o Decreto de Confiscación de la hacienda Ceiba Grande y la
libertad de sus esclavos, em 23 de outubro de 1820. Ver: FIGUEROA, Brito.
El problema Tierra y Esclavos en la Historia de Venezuela. Caracas:
Ediciones de la Universidad Central de Venezuela, 1996. pp. 349-352.
92 - Bolivarianismo e Chavismo: os desafios ideológicos do processo venezuelano
Alguns dias antes de receber o título de
“Salvador de la Patria, Libertador de Venezuela”, há
um marco fundamental nesse processo. A figura
histórica de Bolívar incorporará elementos que
contribuirão para a construção do arquétipo do
guerreiro, do revolucionário radical. Trata-se da
Proclama Guerra a Muerte (Guerra até a Morte),
datada de 15 de junho de 1813, a qual encerrava
assim: “Españoles y Canarios, contad con la muerte,
aun siendo indiferentes, si no obráis activamente en
obsequio de la libertad de la América. Americanos,
contad con la vida, aun cuando seáis culpables.
Cuartel General de Trujillo, 15 de junio de 1813. 3º.
6
Simón Bolívar” .
Nessa ocasião, às vésperas de comandar a
retomada de Caracas, Bolívar emite a decisão que
sintetiza sua determinação de levar a guerra até suas
últimas conseqüências. Cabe mencionar que, de fato,
essa guerra sangrenta já era uma realidade, porém a
Proclama formaliza o entendimento dos meios
através dos quais se deve lutar para garantir a
República. Em outras palavras, legitima o uso da
violência revolucionária como forma de luta. A partir
de então, Bolívar encarna na memória social a
imagem de um guerreiro que busca criar uma
nacionalidade através do vínculo com o território e
com um projeto anticolonial. Inaugura uma espécie de
“jacobinismo americano”, estabelecendo uma linha
de continuidade ideológica que tem seu princípio em
Rousseau, passando pelo Terror da Revolução
Francesa e que, não por acaso, tem em Simón
Rodríguez (o tutor de Bolívar), a principal referência
intelectual no Novo Mundo.
Essa construção de um "Bolívar guerreiro" ou
“revolucionário” será reivindicada ativamente pelos
escravos e ex-escravos no período imediatamente
após a independência até início da década de 1860.
Porém, paulatinamente, esse perfil vai dando lugar ao
culto ao herói, como memória fossilizada e
hierárquica de um Bolívar como "pai da Pátria" e cuja
principal conseqüência política é a expropriação do
protagonismo dos escravos convertidos em soldados
no processo de independência latino-americano.
A tensão entre essas duas apropriações de
Bolívar, portador de legitimidade inquestionável, é o
que constitui ao longo da história venezuelana uma
acirrada disputa em torno do legado bolivariano. O
chavismo participa desse processo reivindicando um
Bolívar distinto daquele construído historicamente
como culto pelo Estado Nacional venezuelano a partir
de 1863 e que se constitui como experiência
ideológica hegemônica até finais do século XX.
6..
BOLÍVAR, Simón. Escritos del Libertador. Caracas: Ediciones de la
Sociedad Bolivariana de Venezuela. Tomo IV, documento 220. pp. 305-307.
Vejamos como se deu esse processo de transmutação
ideológica do bolivarianismo no tempo.
Os dois Bolívares
No século XIX, podemos identificar dois
momentos distintos de articulação da memória
bolivariana com a construção do Estado venezuelano.
Uma fase inicial tem seu marco temporal delimitado
entre 1830, ano da morte de Bolívar, e 1863, data que
marca o fim da Guerra Federal e, também, o ano da
publicação da primeira biografia sobre o
“Libertador”. Nesse período, desenvolve-se uma
memória essencialmente oral e cujas pistas nos
ensinam muito de um protobolivarianismo popular
em oposição a um forte investimento da elite
oligárquica em promover ativamente o esquecimento
em âmbito social do legado do líder da independência.
Em um segundo momento, a partir daquele ano
de 1863, as instituições do Estado, sobretudo através
da disciplina da História, formulada em instituições
como a Academia Nacional de la Historia (fundada
em 1888), ensinada nas escolas e propalada pelo
discurso político oficial, convertem-se em
protagonistas centrais na construção de um culto ao
herói. Dois tipos de narrativa articulam os conteúdos a
serem repetidos à exaustão: a biografia histórica e os
pronunciamentos dos presidentes da república.
A ideologia bolivariana, construída ao longo
desses processos e momentos ─ que são aqui
separados um tanto quanto arbitrariamente para fins
de análise ─ , desempenhará diferentes funções
sociais. Assim, assistiremos no tempo a
apropriação do “Bolívar guerreiro”, elaborado pelo
protobolivarianismo popular, contribuindo,
principalmente, para acirrar o conflito social entre as
classes sociais. E, ao mesmo tempo, a construção de
um Bolívar como "Pai da Pátria", evocado pelo
discurso formulado com a finalidade de ocultar
interesses antagônicos inconciliáveis. Ambas as
construções ideológicas, no entanto, perseguem um
mesmo eixo argumentativo que gira em torno do
“exemplo bolivariano”.
Assim, o Bolívar construído pelos historiadores
pró-bolivarianos a partir de meados de 1860
articulava-se intimamente com as necessidades
ideológicas de unificação nacional em torno do
Estado venezuelano, conforme os interesses da
burguesia latifundiário-mercantil. Mas esse processo
foi complexo, pois foi preciso encontrar uma solução
política para o rompimento dessa classe com o
Libertador, nos seus últimos anos de vida. Pois, um
pouco antes de morrer e no contexto de dissolução do
História & Luta de Classes - 93
7
projeto bolivariano da [Gran] Colômbia, Bolívar
havia confrontado os interesses particularistas das
classes latifundiária e mercantil venezuelana, liderada
por Antonio Páez, e colombiana, encabeçada por
Francisco de Paula Santander.
Daí que, em 1830, em plena fase de retrocesso
de algumas das conquistas da independência, um dos
principais aliados de Páez e herdeiros da elite
oligárquica, Ángel Quintero, apresentara ao
Congresso de Valencia a proposta de proscrição de
Bolívar do território venezuelano. Segue-se, em
alguns meses, a agonizante morte do líder decaído,
sem pátria, cujos restos ficam depositados até 1842
em uma fazenda particular na fronteira da Venezuela
com a Colômbia. Neste intervalo de doze anos, seguiu
em vigor a decisão do conjunto da oligarquia e
burguesia latifundiário-mercantil venezuelana de
proscrição de Bolívar, ainda que morto, mediante o
seqüestro da memória a seu respeito nos frágeis meios
institucionais do país.
É interessante verificar como alguns ideólogos
da época tratavam de justificar ardilosamente o
banimento do “Libertador”, afirmando: “[...] era
Bolívar el Jefe de todos los grandes capitanes, el
caudillo de todos los valientes, el Libertador de todos
los pueblos, el Fundador, en fin, de la patria? ¿Cabría
en ella como ciudadano? ¿ [...] Cabía este elemento en
8
el régimen que queríamos y que tenemos?”.
A resposta a essa indagação formulada pelo conjunto
da oligarquia ao longo dos anos 1830 até início dos
anos 1840 foi um sonoro "não".
Antes mesmo da morte de Bolívar, desde 1824,
após a “pacificação” com a Espanha, vivia-se sob o
acirramento dos conflitos internos, especialmente no
que dizia respeito ao tema da escravidão. Frente às
duas leis de manumissão aprovadas no Congresso, até
1830, os libertos desde 1816 pelos diversos decretos
de abolição da escravatura assinados por Bolívar
estavam sendo novamente convertidos à condição de
escravos, na prática. Frente a essa situação, os
soldados do Exército Libertador não somente
promoviam levantes armados, como se defendiam
legalmente lançando mão do Decreto bolivariano
para argumentar em prol de sua liberdade.
Os conflitos no campo redundaram em duas
revoluções camponesas de envergadura, nos anos de
1842 e 1846, em cujas conseqüências contabiliza-se a
derrocada de alguns dos principais remanescentes da
ordem colonial, na Venezuela. A Guerra Federal foi o
desaguar de dois processos conflitivos. Por um lado, o
7..
A [Gran] Colombia corresponde ao território libertado de Espanha que, entre
1819 até 1830, foi integrado por Venezuela e Nueva Granada (atuais estados
da Colômbia, Panamá e norte do Equador). O termo Gran Colômbia, no
entanto, nunca foi utilizado por Bolívar. Surge posteriormente à separação de
descontentamento dos escravos que, desde 1854,
haviam conquistado formalmente a liberdade, mas
permaneciam atados a seus antigos amos pelo
mecanismo do endividamento. Por outro,
divergências intra-oligárquicas, principalmente em
torno da apropriação das rendas arrecadadas pelo
Estado, envolvendo também pequenos e médios
comerciantes.
A Guerra Federal, cuja palavra de ordem era
sintetizada pela expressão "Tierra y hombres libres,
horror a la oligarquía", será fundamental para
compreendermos um aspecto decisivo do
bolivarianismo apropriado pelo chavismo:
a permanência na memória social do conteúdo
revolucionário bolivariano. Particularmente
importantes entre os documentos da época são as
Hojas Sueltas, um conjunto de panfletos dirigidos ao
público que eram afixados em postes, atualmente
reunidos na Biblioteca Nacional de Venezuela; as
crônicas de um oficial federalista conhecidas mais
tarde pelo título Diario de Emilio Navarro; e o hino da
Guerra Federal, Oligarcas Temblad. A relevância
desses registros reside em decantar, ainda
que diversas vezes por vias indiretas, o
protobolivarianismo popular que residia na tradição
oral, antes que a memória social fosse inundada pelo
investimento institucional do Estado. Sua relevância é
ressaltada também pelo caráter altamente conflitivo
do momento em que foram produzidos, o que
favorece uma interpretação sobre os limites
ideológicos dados pela época.
O guerreiro justo e intransigente
A Guerra Federal, diferentemente da maior
parte das experiências de mobilização camponesa que
marcaram a América espanhola ao longo do século
XIX, caracterizadas pelo caudilhismo, havia se
convertido, especialmente no ano de 1859, em uma
verdadeira guerra de classes a opor, com armas nas
mãos, os camponeses e pequenos comerciantes, por
um lado, e a oligarquia e seus setores convertidos em
burguesia agrário-mercantil, de outro. É nesse
contexto particularmente radicalizado de luta que fica
patente a capacidade mobilizadora da memória
bolivariana (que ao longo dos anos 1830-1840 até
1854 aparecia em reivindicações abolicionistas nas
petições oficiais dos escravos). Em outras palavras, a
presença de uma ideologia bolivariana a intervir
praticamente no conflito social.
O Bolívar referido nos documentos da Guerra
Venezuela e Nueva Granada para evitar confusão entre a [Gran] Colombia, de
Bolívar, e o estado da Colômbia atual.
GUZMÁN, Blanco apud CARRERA DAMAS, O culto a Bolívar. Caracas:
Instituto de Antropologia e Historia/UCV, 1969. p. 94.
8
94 - Bolivarianismo e Chavismo: os desafios ideológicos do processo venezuelano
Federal associa-se com um patriotismo radical, como
um sentimento ativo de pertencimento nacional e de
obrigação para com a pátria. Está também fortemente
vinculado com um método de ação revolucionária,
uma forma de realizar a luta política e social até as
últimas conseqüências, com uma postura patriótica
voluntarista e intransigente. Exemplo paradigmático
é a recuperação do juramento bolivariano de Monte
Sacro, somente publicado por escrito na segunda
década do século XX, mas que era conhecido pela
tradição oral, como um recurso simbólico do qual
lançavam mão os combatentes do período.
Encontramos diversas versões desse juramento cujo
conteúdo original era o seguinte: "¡Juro delante de
usted, juro por el Dios de mis padres, juro por ellos;
juro por mi honor y juro por la Patria, que no daré
descanso a mi brazo ni reposo a mi alma hasta que no
haya roto las cadenas que nos oprimen por voluntad
9
del poder español!” . Bolívar aparece ao longo desses
registros referido como modelo de defesa da
liberdade, como escola de patriotismo e de moral e
depositário de autoridade de censura, além do
principal ideólogo da unidade [Gran] Colombiana.
A intransigência associada a Bolívar aparece
nesses documentos em dois sentidos. Em primeiro
lugar, como escola de civismo, contra as formas
traiçoeiras de fazer política. A maneira de Bolívar
servir à pátria, então, era através do exemplo de
superioridade moral e de medidas "educativas" que
fizeram da traição e da dissimulação objetos de
indignação pública. Mas foi também, em segundo
lugar, às custas de sangue, leia-se inclusive da Guerra
10
até a Morte, do terror contra os inimigos. Eis o
guerreiro justo e intransigente plasmando na memória
social. Eis o "terrível e glorioso reino da justiça e da
virtude, quando todos os bons cidadãos fossem iguais
perante a nação, e o povo tivesse liquidado com seus
traidores", comenta Hobsbawm sobre os jacobinos, e
complementa: "Jean-Jacques Rousseau e a cristalina
11
convicção de justiça deram-lhe sua força.” O
comentário poderia ser transposto integralmente ao
bolivarianismo.
A aproximação do ideário de Simón Bolívar
com as demais correntes de conteúdo pequenoburguês herdeiras de Jean-Jacques Rousseau explica
9..
RODRÍGUEZ, Simón. Obras Completas. Caracas: Ediciones de la
Presidencia, 2001, Tomo II. pp.376-378. Na primeira biografia de Bolívar,
escrita por Felipe Lazzarrábal, em 1863, essa passagem da vida de Bolívar foi
relatada assim: "Bolívar, inflamado del corazón, tomó las manos de
Rodríguez, y con enérgica frase juró sobre aquella tierra santa, la libertad de
la patria...!" (BOLÍVAR apud LAZZARRÁBAL, Felipe. Bolívar. Caracas:
Ediciones de la Presidencia, 2001. p. 59). Sabemos que, em 1824, Bolívar e
Rodríguez referiram-se, por meio de correspondência pessoal datada de 19 de
janeiro, ao Juramento. Porém, somente na edição de 1918 dessa mesma
biografia é que aparece pela primeira vez uma nota mencionando um escrito
de Rodríguez no qual relata a cena de próprio punho.
também a harmonia com que o bolivarianismo se
associou, na Guerra Federal, ao socialismo utópico
12
francês e às idéias de Graccus Babeuf. . Bolívar,
considerado por alguns como o Robespierre
americano, ideologicamente tributário de Rousseau,
seria o inspirador de uma ideologia que conseguiria
aportar uma forma de luta extremada às antigas
aspirações igualitárias dos camponeses, leia-se exescravos, venezuelanos. Ao mesmo tempo, na medida
em que tomavam as armas para a guerra até a morte,
convertiam-se simultaneamente em “legítimos filhos
da Pátria do Libertador”.
Mas os resultados da Guerra Federal, apesar da
forma extrema de luta, não realizaram aqueles ideais
libertários. Ao contrário. Eliminado Ezequiel
Zamora, que era seu líder político e militar, socialista
utópico por excelência, as aspirações igualitárias dos
camponeses venezuelanos degeneraram no
fortalecimento da oligarquia agrário-exportadora e da
burguesia mercantil e na consolidação do Estado
oligárquico e seu aparato repressor centralizado.
A partir de então, a ideologia bolivariana será
um instrumento na incorporação controlada das
massas camponesas de negros e mestiços ao conjunto
da nação. A figura de Bolívar será resgatada, tanto por
liberais quanto por conservadores, como instrumento
de legitimação de seus projetos políticos. Ideólogos
de um e de outro lado usam fartamente referências ao
“Libertador” para estabelecer uma interlocução com
os camponeses, que representavam cerca de 70% da
população venezuelana naquele período. O
procedimento ideológico de que a burguesia e a
oligarquia se serviram para produzir sua própria
“absolvição” da culpa socialmente imputada de haver
promovido o banimento do “Libertador” foi
especialmente interessante.
O severo Pai da Pátria
No discurso político que se desenvolve mais
decididamente entre 1863 até finais da década de
1880, observamos um grande investimento
institucional do Estado em criar e estimular um
profundo sentimento de culpa da sociedade
venezuelana em relação à figura histórica de Bolívar.
O mais interessante é como esses sujeitos operam um
10..
A aproximação com o jacobinismo se estabelece também a partir da
Proclama de Guerra a Morte (leia-se "guerra até a morte"), análoga à Lei de
Suspeitos promulgada na França de 1793, segundo a qual poderiam ser
condenados à morte "os que sem haver feito nada contra a liberdade, não
houvessem feito algo em favor dela".
11..
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções, 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2000. p. 88.
12..
Sobre o jacobinismo, ver: VOVELLE, Michel. Jacobinos e Jacobinismos.
Bauru-São Paulo: EDUSC, 2000; HOBSBAWM, Eric. Ecos da Marselhesa:
Dois séculos revêem a Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
História & Luta de Classes - 95
processo de transferência da responsabilidade pelo
desterro de Bolívar promovida pela elite política do
país, em 1830, para as classes exploradas, no último
quarto do século XIX. Um inversão típica das formas
ideológicas de dominação a partir da exploração dos
valores cristãos então dominantes.
Esse processo evidencia a necessidade de
construção de uma ideologia como forma de
justificação dos governos que se sucedem. Trata-se de
legitimar novas apropriações da memória bolivariana,
agora como fator unificador da nação e de subtração
dos conflitos sociais. A descoberta do potencial
mobilizador da memória bolivariana já havia sido
feita por Páez, quem testemunhou a comoção social
que representou o repatriamento dos restos de Bolívar
para sua cidade natal, Caracas, em 1842. Depois dele,
o general liberal Antonio Guzmán Blanco, na
presidência do país, inauguraria a efetiva construção
de uma ideologia bolivariana avalizadora do Estado
oligárquico pós-Guerra Federal.
Blanco, na década de 1870, mandaria editar os
14 volumes dos Documentos relativos a la vida
pública del Libertador e erigir a estátua eqüestre do
Libertador que até hoje faz afluir à praça principal de
Caracas os mais diversos visitantes para prestar
homenagens à imagem de Bolívar. Ele também
reformaria a antiga igreja da Trinidad para abrigar o
Pantheón Nacional e promoveria as comemorações
oficiais do centenário do nascimento do Libertador,
ao longo do ano de 1883. Apelidado de “autócrata
civilizador”, decretou a instrução pública em caráter
obrigatório e gratuito, tentando conformar-se às idéias
educativas de Bolívar. Instituiu, também, uma moeda
nacional, vigente até os dias de hoje, o Bolívar. Ao
longo de sua gestão, foi operada a transmutação
fundamental de um Bolívar guerreiro e
revolucionário em herói nacional inquestionável a
quem se deve a criação da nação. A estátua do
Libertador na praça central de Caracas ossificava e
congelava o guerreiro, dando passagem ao "Pai da
Pátria".
O esforço de Guzmán Blanco pela centralização
e unificação do Estado seria mantido pelos
presidentes que o sucederiam. A unificação da nação
foi reforçada por conflitos de fronteira, que ajudavam
a excitar o sentimento patriótico e produziam a
necessidade de consolidação do Exército Nacional. O
conflito com a Inglaterra em torno do território da
Guyana fez nítidos os interesses estadunidenses sobre
a Venezuela, sob o pretexto de atuar em defesa dos
venezuelanos. Frente às pressões do Departamento de
Estado dos EUA, o presidente Cipriano Castro reagiu
chamando à mobilização dos venezuelanos,
denunciando que “a planta insolente do estrangeiro
13
profanou o solo sagrado da pátria,” em uma clara
referência ao pensamento bolivariano de temor ao
projeto expansionista dos Estados Unidos da América
para o sul do continente americano. Sua atitude
converteu-o em um "herói popular". Recorrendo a
Bolívar, os dirigentes do país encontravam uma
fórmula infalível para partilhar o panteão nacional.
Em fins do século XIX, a figura de Bolívar
aparece já como referencial consagrado, quase um
ícone cuja menção dispensa maiores comentários. Os
reflexos da articulação de uma narrativa histórica de
exaltação do indivíduo se faz sentir por todos os lados.
Bolívar repousa inquestionável, permanecendo nessa
posição ao longo do novo século que era inaugurado.
O próximo presidente, Juan Vicente Gómez, deu
continuidade ao processo de alijamento dos caudilhos
regionais e de promoção da centralização do poder do
Estado em torno de si, assumindo a forma ditatorial a
partir de 1913 até 1936. Com Gómez, foram 37 anos
de ditadura violenta e repressora em uma aliança cada
vez mais sólida com os EUA. E tudo o que fazia, a
julgar por suas palavras, recebia o aval do falecido
14
Bolívar.
Concluído o longo regime de Gómez, começa
uma ditadura legalista dirigida por Eleazar López
Contreras, entre 1936 e 1941. A ideologia bolivariana
de Estado é aprofundada e elevada a fundamento
político de sua gestão. A figura do Libertador é
largamente utilizada e, neste período, aparecem os
Agrupamentos Cívicos Bolivarianos, sob os auspícios
governamentais, como mais um dos mecanismos de
construção de uma memória nacional impulsionada
pelo Estado. Tal qual Contreras atuou o seu sucessor,
Medina Angarita (1941-1945), quem iria reafirmar a
tradição bolivariana já em seu discurso de posse.
Em outubro de 1945, no entanto, observa-se um
uso de Bolívar qualitativamente diferente. Uma
rebelião cívico-militar desfere um golpe de Estado
para empossar uma junta presidida por Rómulo
Betancourt, secretário-geral do partido Acción
Democrática (AD), de corte social-democrata. Com
um discurso repleto de referências ao período da
independência, Betancourt considerava que “el
llamado 'régimen bolivariano' para escarnio de un
nombre sagrado a los venezolanos, significó la
supervivencia de lo fundamental del 'gomecismo'
13..
MAZA ZAVALA, Domingos F. História de Meio Século na Venezuela:
1926- 1975. In: CASANOVA, Pablo González (org). América Latina:
história de meio século. Brasilia: UNB, 1988.
14
D'ÁVILA, Luis Ricardo. Imaginario Politico Venezolano. Caracas: Alfa
Ediciones Publiandina, 1992. p. 53.
96 - Bolivarianismo e Chavismo: os desafios ideológicos do processo venezuelano
hasta una década después de la muerte del
15
dictador.” O inefável símbolo bolivariano
novamente, só que desta vez para vincular Bolívar à
fundação do partido Acción Democrática. Depois de
três anos de governo dessa junta, houve dez anos de
ditadura de Pérez Jimenez, somente derrotada por
uma aliança entre setores liberais e democratacristãos liderados pela AD.
Esses partidos governariam o país em uma
aliança com setores liberais de corte democrata16
cristão até finais do século XX, quando entra em
cena um novo processo bolivariano sob a liderança de
Hugo Rafael Chávez Frías. Até então, a figura de
Bolívar como "Pai da Pátria", travessara o século XX
como fator de unificação do país e de legitimação do
Estado Nacional.
A encruzilhada ideological do chavismo
Como fica patente na análise do bolivarianismo
histórico, essa experiência ideológica se constitui no
tempo como uma forma de romantismo
revolucionário, em uma eterna contradição entre
conciliação e ruptura. O bolivarianismo tenta
conciliar os interesses divergentes e antagônicos que
opõem o Estado nacional, como partícipe da estrutura
de comando do capital, e as classes não proprietárias e
expropriadas de poder. Ao mesmo tempo, oferece
uma ideologia guerreira e revolucionária,
consubstanciada em profundas convicções
igualitárias, libertárias e anticolonialistas que se
convertem em antiimperialistas, que é capaz de mover
milhões.
Parece inequívoco que o chavismo, a forma
mais visível e dinâmica do bolivarianismo nos tempos
atuais, está encharcado das mesmas contradições da
ideologia da qual é tributário. Porém, não é menos
verdadeiro que, no contexto em que se desenvolve ―
de crise estrutural do sistema mundial e radicalização
popular venezuelana ― Chávez torna-se porta-voz de
um movimento que busca sua força mobilizadora no
protobolivarianismo da memória social. Ou seja,
alimenta-se daquele conteúdo bolivariano anterior à
fossilização memorialística patrocinada pelo Estadonação. Evoca, portanto, o Bolívar guerreiro em uma
interlocução direta com as massas pobres
venezuelanas, resgatando o sentido continental
estratégico da ação revolucionária. Em termos
históricos, o projeto da Alternativa Bolivariana das
Américas (ALBA) atualiza e amplia o ideal de
Bolívar da unidade [Gran] Colombiana. A partir de
2005, anuncia o caminho para sua superação:
perseguir a construção do Socialismo do Século XXI.
Porém, é justamente na interseção desses dois eixos
estruturantes do processo venezuelano que também
se atualizam as contradições históricas do
bolivarianismo.
A ALBA, projeto ainda em fase inicial de
constituição, apresenta alguns princípios e ações que
apontam no sentido de uma integração efetiva dos
povos. O Acordo Energético Cuba-Venezuela,
segundo o qual os cubanos trocam serviços de saúde e
educação por petróleo, é um exemplo paradigmático
do sentido estratégico da vontade política
consubstanciada pelo chavismo. Porém, o conjunto
da política externa de Chávez para a América do Sul
denuncia uma tensão permanente com a ALBA,
reeditando a ambigüidade ideológica do
bolivarianismo para a atualidade. Vejamos de que
maneira.
O princípio fundamental do Acordo Energético
Cuba-Venezuela reside na idéia de comprar e vender
não em função do lucro, mas de acordo com as
necessidades de consumo e possibilidades de
produção de cada país. Oferece, com isso, resistência
ao intercâmbio desigual entre nações, propondo uma
alteração nos termos da relação entre valor de troca e
valor de uso das mercadorias, em benefício do último
fator. Propõe que o intercâmbio entre os povos da
região seja baseado nas "vantagens cooperativas" em
vez das supostas "vantagens comparativas" da
ideologia liberal de mercado. Esse não é, no entanto, o
mesmo princípio a orientar outros movimentos
internacionais venezuelanos no mesmo campo, como
são os casos da proposta de integração energética que
se desenvolve através das iniciativas da Petrosul
(integração das empresas petrolíferas do Brasil,
Argentina e Venezuela) e do Gasoduto Regional.
Teoricamente concebidos para garantir a
autonomia energética da região e a reversão da
dependência dos países latino-americanos dos
mercados dos países do capitalismo central no que diz
respeito ao consumo dos insumos do petróleo e gás
natural aqui extraídos, a integração energética ignora
as diferentes realidades nacionais no que afeta o
destino da renda petroleira. A Argentina é um bom
exemplo a analisar. Com a indústria petroleira
privatizada na década de 90, os atuais acordos não
criam obstáculo nem denunciam a desnacionalização
dos recursos energéticos argentinos. Fazendo tábula
rasa desse importante fator, legitima que cinco
15
BETANCOURT, Romulo. Trayectoria democratica de una Revolución.
Discursos y Conferenciais pronunciados en Venezuela durante el ejercicio de
la Presidencia de la J. R. G. de los E. U. de Venezuela. Caracas: Imprenta
Nacional, 1948. p. 63.
16
Sobre o período de aliança dos partidos democrata cristão (COPEI) e
social-democrata (AD) e o chamado Pacto de Punto Fijo, ver: CANELÓN,
Fidel; GONZÁLEZ, Franklin. El modelo Puntofijista. Caracas. Desarrollo,
agotamiento y perspectiva. Revista Venezolana de Análisis de Conyuntura,
Vol. IV, n° 1, ene-jun, pp. 11-42.
História & Luta de Classes - 97
grandes companhias se apropriem da renda petroleira,
que triplicou entre 1999 e 2004 enquanto a
apropriação pelo Estado desse excedente descendeu
de 44,6% para 36% e se situou 30 pontos abaixo do
17
que arrecadou Venezuela, por exemplo.
Problema similar, porém concentrado nos
destinatários do produto, aparece com a proposta de
construção de um gasoduto de 8 mil quilômetros, a ser
construído por um acordo entre Venezuela, Argentina,
Brasil e, talvez, a Bolívia. Afinal, a primeira questão
que salta aos olhos é: trata-se de um projeto para
garantir gás barato para quem? Para os domicílios
familiares ou para as burguesias industriais de cada
país? Respondendo a essa pergunta, poderíamos saber
claramente quem deveria pagar por esse
investimento. Mas antes disso, uma questão mais
fundamental precisa ser esclarecida: qual o impacto
ambiental sobre a floresta amazônica e populações
indígenas que estão no caminho do mega projeto? Em
suma, são propostas de integração que tendem a
beneficiar prioritariamente os oligopólios do petróleo
e as burguesias nacionais industriais consumidoras de
gás, com investimentos públicos de grande
envergadura.
Assim, se, em um primeiro momento, há um
conflito entre o sentido geral da ALBA e o restante da
política para América Latina no governo venezuelano
liderado por Chávez, uma análise mais detida da
ALBA, aponta outros elementos importantes a
observar. Em momento algum a proposta bolivariana
atual ataca as bases do intercâmbio desigual, que é a
própria exploração do trabalho no âmbito da
produção, ainda que fosse de forma prescritiva. É esse
o contexto que torna extremamente complexa e
provisória a análise da ideologia bolivariana
articulada pelo chavismo.
A opção por construir o Socialismo do Século
XXI como saída positiva para o povo venezuelano e
latino-americano necessita apontar o caminho para a
superação das contradições acima expostas. A política
internacional do governo Chávez contém elementos
de diversos processos simultâneos que implicam uma
luta antiimperialista articulada com a realização de
tarefas da revolução democrático-burguesa,
resistência à reação conservadora neoliberal e
construção de princípios socialistas. A interação
desses fatores configura a dinâmica da luta de classes
e seus rumos estratégicos dependem do conjunto da
correlação de forças entre elas em âmbito continental.
É, portanto, fundamental o papel que a luta de
classes em nível continental joga nos rumos
ideológicos do chavismo e vice-versa e, portanto,
17
18
sobre a possibilidade de realização do Socialismo do
Século XXI. Apegado à lógica do Estado-nação e à
necessidade de preservação do processo venezuelano,
Chávez muitas vezes estabelece e mantém alianças
com forças contra-revolucionárias em detrimento das
forças vivas da transformação social latinoamericana. Especialmente no Brasil e na Argentina
essa política representa um grave erro estratégico.
Pois não é razoável desconsiderar a necessidade de
construção de líderes populares autênticos como parte
do processo de transformação em nosso continente. A
ausência de um movimento claro em direção e
afirmação das forças socialistas latino-americanas é
um sério empecilho a realização de qualquer projeto
de transformação estrutural do continente.
O bolivarianismo chavista tem sido um
elemento central da luta de classes na América Latina
atual. No século XIX, a proscrição de Bolívar em vida
e sua morte no esquecimento alimentou uma viva
ideologia romântico-revolucionária que perpetua a
esperança de superação da tragédia histórica de sua
vida, como um elemento vivo na memória popular.
Ultrapassar a tragédia bolivariana implica,
entretanto, superar os limites ideológicos do próprio
bolivarianismo. Representa avançar resolutamente
para a rejeição da conciliação nacional e promover
uma aliança entre os povos latino-americanos em
torno da construção de um novo processo sóciometabólico não mais regido pela lógica destrutiva do
18
capital. Só dessa maneira a memória bolivariana
revolucionária poderá contribuir para a superação
efetiva da atual crise em que estamos mergulhados,
sem degenerar em mais uma experiência frustrada de
luta a nos assombrar lançando mão dos espíritos do
passado.
KATZ, Claudio. Las Disyuntivas del ALBA. www.netforsys.com/claudiokatz.
Sobre a superação da ordem do capital ver MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
História & Luta de Classes - 99
El Alto: Un Mundo Nuevo
Desde la Diferencia
Raúl Zibechi1
U
n caos en movimiento. Una Babel
enmarañada. Vendedoras callejeras y comerciantes,
mercaderes y feriantes, corredores y comisionistas
machacando sones contumaces, tránsito agitado sobre
el barro negro y pegajoso que rebalsa aceras y calles;
zumban bocinas mezcladas con músicas andinas
–tradicionales de roncos pututus y de electrizantes
guitarras–, fusionadas con voces que ofrecen-vendenreclaman-mercadean; cientos de camionetas se
preparan para sumergirse en la hoyada paceña, y otras
tantas hacen la proeza de remontar la interminable
cuesta: es la Ceja de El Alto, el centro o el nudo
comercial y político de la urbe aymara. Una bacanal
de colores y sonidos. A medida que se va
permaneciendo, en el punto en que los sentidos se
acostumbran a los 4.100 metros de altura y al aire
gélido que sopla desde la nevada Cordillera Real,
cuando se va aclimatando al ajetreo y al gentío, la
batahola empieza a cobrar forma. Basta con dejarse
llevar por el ambiente, para que los ruidos
arremolinados se truequen en rumor, y la cacofonía en
son. El Alto es un caos mirado desde fuera. O sea, si se
cultiva la mirada occidental, ajena, colonial.
La insurrección de octubre de 2003, que derribó
al presidente Gonzalo Sánchez de Lozada y trabó la
2
continuidad del modelo neoliberal en Bolivia ,
iluminó la existencia de una sociedad alterna que tiene
su mayor desarrollo entre los aymaras del entorno del
Lago Titicaca, y en la ciudad de El Alto su mayor
exponente. Esa sociedad cuenta con sus propias
instituciones políticas y sociales, su propia economía
y una cultura netamente diferenciada de la sociedad
“oficial”, mestiza y blanca, que se asienta en las
instituciones estatales y en la economía de mercado.
Mostrar algunos aspectos de esa “otra” sociedad es el
objetivo de este breve trabajo.
Crecimiento explosivo
El Alto ha jugado un papel destacado en las
luchas sociales bolivianas. En 1781 las milicias
aymaras de Tupac Katari y Bartolina Sisa
establecieron en esa zona, pampas despobladas
entonces, su cuartel general desde el que bajaban a La
Paz, ciudad que cercaron durante meses. En 1899 los
aymaras de El Alto establecieron una muralla humana
durante la guerra federal para impedir el ingreso de
tropas constitucionales. En 1952, fue el escenario
político que confirmó el triunfo de la revolución
nacional. Desde comienzos de este siglo, El Alto es el
centro político de los aymaras, la ciudad que crece con
mayor velocidad en el país, y es la ciudad rebelde más
importante de América Latina.
El Alto tiene una ventaja geográfica y
estratégica sobre La Paz, centro político y
administrativo del país. Situado a 4.000 metros,
domina las laderas y el acceso a la capital, ubicada a
3.600 metros en una inmensa hoyada, una profunda
depresión del terreno en la que los españoles
construyeron la principal ciudad boliviana. Desde un
punto de vista social, puede decirse que en el
Altiplano los pobres viven arriba (El Alto) y que los
ricos viven abajo (La Paz). Esta ventaja geográfica de
los aymaras ha jugado un papel destacado en la
historia de Bolivia y lo sigue jugando aún hoy.
En 1952 vivían en El Alto apenas 11 mil
personas, que constituían una población básicamente
rural. En 1960 ya eran 30 mil; en 1976 ascienden a 95
mil. Entre 1976 y 1985 (cuando consigue la
autonomía municipal) la población creció
explosivamente (211 mil personas en 12 años) por la
emigración desde los centros mineros y desde las
áreas rurales aymaras y quechuas del Altiplano,
alcanzando los 307 mil habitantes, para llegar a 405
mil en 1992. Según el censo del año 2001 la población
asciende a 650 mil personas y actualmente se supone
que se acerca a las 800 mil, de las cuales el 81% se
autoindentifican como indígenas, en particular
1
Raúl Zibechi es miembro del Consejo de Redacción del semanario Brecha de
Montevideo, docente e investigador sobre movimientos sociales en la
Multiversidad Franciscana de América Latina, y asesor a varios grupos
sociales. Es colaborador mensual con el IRC Programa de las Américas del
International Relations Center (IRC). www.ircamericas.org.
2..
Sitios sobre a Bolivia recomendados pelo autor do texto: Bolpress:
www.bolpress.com; Econoticias: www.econoticiasbolivia.com; El Juguete
Rabioso: www.redvoltaire.net/eljugueterabioso.html; Indymedia Bolivia:
http//:indymedia.bolivia.org; Pulso: www.pulsobolivia.com
100 - El Alto: Un Mundo Nuevo Desde la Diferencia
aymaras. La ciudad está constituida por nueve
distritos, ocho urbanos y uno rural, y puede dividirse
en tres zonas: la Norte está poblada por migrantes del
Altiplano en la que predomina la actividad artesanal,
manufacturera y comercial, que se expresa en la
gigantesca feria de la avenida 16 de julio, donde
confluyen unos 40 mil puestos de venta; la zona
Central denominada la Ceja, donde están ubicados los
principales servicios públicos, agua y luz; y la zona
Sur, donde existen algunas fábricas y migrantes de la
región sur del departamento de La Paz. El aeropuerto
internacional está incrustado en medio de la ciudad.
Un reciente estudio sociológico define a El Alto
como “un conglomerado híbrido de distintas
experiencias comunales, artesanales, comerciales y
obreras que se mueven en el espacio urbano y se
entrecruzan cotidianamente de forma fragmentada”.
La inmensa mayoría son pobres o muy pobres, y no
tienen acceso al agua potable, la luz, la salud, la
educación y la vivienda. El Alto es una ciudad
precaria, de calles irregulares y polvorientas, de
viviendas de adobe a las que se les van adosando
ladrillos, y su población vive bajo temperaturas
extremas que en promedio oscilan entre los 10 grados
bajo cero y los 20 grados mientras brilla el macizo sol
del mediodía. Un dato adicional: el 60% de la
población tiene menos de 25 años.
Una ciudad autoconstruida
Este crecimiento explosivo –a un promedio de
casi el 10% anual– ha llevado a que una buena parte
de los alteños no tenga acceso a los servicios básicos.
En 1997, UNICEF estimaba que sólo el 34% de los
alteños tenían acceso a todos los servicios, incluyendo
calles asfaltadas o empedradas, servicio de basura y
teléfono público. En 1992 sólo el 20% de los
habitantes tenían acceso al alcantarillado y el 18% al
servicio de basura. Pero en algunos distritos esos
porcentajes descienden, en el caso del alcantarillado,
al 2%, y los trámites para conseguirlo pueden
demorarse hasta diez años. El 20% no tiene agua
potable ni electricidad; el 80% vive en calles de tierra.
Por otro lado, hasta un 75% de las familias no
tiene ningún tipo de afiliación médica, en una zona
donde abundan las enfermedades respiratorias agudas
y las diarreas, y se registra una elevada mortalidad
infantil. El analfabetismo alcanzaba a comienzos de
los 90 al 40% de la población y sólo el 25% accedía al
bachillerato. En general, los servicios han sido
construidos por los propios vecinos, organizados en
juntas vecinales que, a su vez, se agrupan en la
Federación de Juntas Vecinales de El Alto (FEJUVE).
Actualmente existen unas 500 juntas vecinales, que
han sido las encargadas de la construcción urbana, ya
sea directamente con trabajo colectivo solidario o
presionando a las autoridades municipales.
En cuanto al trabajo, la principal característica
es el autoempleo. El 70% de la población ocupada
trabaja en el sector familiar (50%) o semiempresarial
(20%). Ese tipo de emprendimientos son mayoritarios
en el comercio y restaurantes (95% de los ocupados),
seguidos por la construcción (80%) y la manufactura
(75%). En esos sectores predominan los jóvenes: más
de la mitad de los empleados en la manufactura tienen
entre 20 y 35 años, siendo la presencia femenina
abrumadora en el comercio y los restaurantes de las
categorías familiar y semiempresarial.
En El Alto la protagonista principal de los
mercados laborales es la familia, tanto como unidad
económica generadora de empleo o como
contribuyente del mayor número de trabajadores en
calidad de asalariados. En esos espacios surge una
nueva cultura laboral y social, signada por el
nomadismo, la inestabilidad y relaciones de trabajo
diferentes: no hay separación entre la propiedad y la
gestión de la unidad económica y el proceso
productivo. En las unidades familiares predomina el
trabajo familiar no remunerado; unos se enseñan a
otros cómo hacer el trabajo y la administración del
tiempo empleado en la realización del producto es de
exclusiva responsabilidad de quien trabaja, siempre
que cumpla a tiempo con los pedidos.
Tanto la construcción de la ciudad por los
propios vecinos como el autoempleo, han generado
una relación muy particular con el medio: los
habitantes de El Alto son conscientes de que todo lo
han hecho ellos, lo que se resume en un sentimiento de
pertenencia y autoestima muy elevadas.
Organización para la sobrevivencia y la resistencia
La autoconstrucción de la ciudad y la
autogeneración de empleo no hubieran sido posibles
sin una sólida organización de base, barrio por barrio,
calle por calle, mercado por mercado. Desde 1957
existen organizaciones vecinales aunque la FEJUVE
fue creada recién en 1979. Sin embargo, no es la única
organización de El Alto. Existen clubes de madres,
asociaciones juveniles y culturales, centros de
residentes de emigrantes de las diferentes provincias y
regiones, asociaciones de obreros relocalizados,
asociaciones de padres de familia que se encargan de
gestionar la educación, y la Central Obrera Regional
(COR) de El Alto.
En los años 70 se fueron creando federaciones
laborales de comerciantes y artesanos, “que a
diferencia de los obreros de empresa, tienen una
identidad laboral de fuerte arraigo territorial”.
Surgieron así las organizaciones de gremiales,
artesanos y comerciantes minoristas, los
panificadores y los trabajadores de carne, que en 1988
História & Luta de Classes - 101
crean la COR, a la que se incorporaron los bares y
pensiones y los empleados municipales. Estas
agrupaciones son, en su inmensa mayoría, de
microempresarios y trabajadores por cuenta propia,
un sector social que en otros países habitualmente no
están organizados. Desde el comienzo, la COR
coordinó sus acciones con la FEJUVE, siendo los
actores más importantes de la ciudad, que jugaron un
papel determinante en la lucha por la creación de la
Universidad Pública de El Alto (UPEA) en 2001, y
sobre todo en las grandes movilizaciones de
setiembre-octubre de 2003 y mayo-junio de 2005 que
se saldaron con la caída de los presidentes Gonzalo
Sánchez de Lozada y Carlos Mesa.
Una mirada más fina de las juntas vecinales
permite comprender que estamos ante un tipo de
organización comunitaria que, de alguna manera,
reproduce la forma de organización tradicional de los
aymaras y quechuas rurales. En El Alto, la población
recreó –reprodujo modificándola– la ancestral
comunidad andina. El sociólogo aymara Felix Patzi se
pregunta: “¿Porqué la gente obedece a las
organizaciones, cuando podría no hacerlo?” Patzi se
refiere a que las juntas vecinales y las gremiales de los
mercados establecen la participación obligatoria de
sus miembros en las manifestaciones, asambleas y en
todas las acciones que convocan. Para ello elaboran
“fichas” como forma de control de la asistencia de
cada familia. Lo que debe ser respondido es, en su
opinión, las razones por las cuales la población acata.
En efecto, la obligatoriedad forma parte de la cultura
comunitaria, pero en el caso de las comunidades
rurales se debe a que los campesinos no son
propietarios de la tierra, que sólo pueden usufructuar,
y en caso de no acatar pierden el acceso al único
medio de sobrevivencia.
Según Patzi, hay tres elementos que son los que
permiten hablar de comunidad en El Alto, vinculados
al mercado, el territorio y la educación, que muestran
la validez de la estructura comunitaria. En su opinión,
una comunidad se caracteriza por la existencia de
propiedad colectiva y posesión privada de los bienes.
En la comunidad rural ese papel lo juega la tierra, pero
en El Alto es más complejo. En el comercio, “los
puestos de venta no son propiedad privada, son
manejados por el sindicato, los llamados gremios, o
sea que el propietario es la colectividad. La gente
obedece al gremio porque sin poder comerciar no
pueden sobrevivir”. En cuanto al territorio, “las
decisiones en torno a conseguir agua, luz, gas y otros
servicios no son individuales. Si no acatas las
decisiones de la junta tu calle no tendrá aceras o agua
o luz, porque las cooperativas que se han creado para
los servicios son acciones colectivas que han salvado
el déficit estatal”. Por último, los comités de padres
son los que controlan el acceso de los hijos a la
educación, de modo que la participación en sus
asambleas y acciones son decisivas para asegurar el
futuro de sus hijos. Este conjunto de características es
lo que se denomina como “obligatoriedad”, pero no se
trata de obligaciones impuestas sino consensuadas,
aceptadas por la población que siente que la
comunidad urbana es una suerte de extensión natural
de la comunidad rural y la forma de organización que
asegura la sobrevivencia en un medio hostil.
Las juntas vecinales realizan asambleas
mensuales o semanales en las que se discuten todos
los problemas del barrio, a las cuales debe asistir un
miembro por familia o núcleo habitacional. Las juntas
son territoriales y para ser reconocidas por la FEJUVE
deben tener un mínimo de 200 miembros. Son parte
de “un proceso de autoorganización social de las
zonas urbanas para debatir y buscar resolver las
necesidades básicas urbanas (agua potable,
electricidad, alcantarillado, atención de salud,
educación, campos recreativos, etc.), de la población
de sus barrios”.
Los que aspiran a ser dirigentes de la junta
vecinal, deben cumplir algunos requisitos: vivir por lo
menos dos años en la zona, no ser loteador (o sea
especulador que vende terrenos), comerciante,
transportista, panadero o dirigente de algún partido
político; no ser “traidor” ni haber colaborado con las
dictaduras.
Pablo Mamani, aymara y director de la carrera
de Sociología de la UPEA, sostiene que las juntas
vecinales “tienen una característica parecida a las
comunidades rurales del mundo andino, por su
estructura, su lógica, su territorialidad, su sistema de
organización”. Aunque cada familia tiene su vivienda
en propiedad, hay áreas de uso común como las
plazas, las canchas de fútbol y la escuela, pero agrega
que “para comprar o vender un lote o una vivienda, la
familia se presenta a la junta vecinal que controla si no
hay deudas pendientes o algún aspecto que impide la
transacción”. Además, la junta vecinal “es el espacio
para presentar al vecino nuevo que ofrece cerveza
para ser recibido y aceptado”.
Aunque la participación en la junta vecinal es
voluntaria, “el que no acude recibe una sanción social,
a través de rumores que dicen que el vecino no respeta
a la vecindad o a la junta”. Para evitar esa imagen
negativa, prácticamente todos los vecinos participan
en las asambleas mensuales. A quienes no acuden a las
marchas, actos, cortes o a las propias asambleas, se les
imponen multas que suelen ser castigos simbólicos.
Más aún, la junta vecinal suele interceder en los
conflictos y riñas entre vecinos, y en ocasiones muy
graves administra justicia, con sanciones que suelen
ser trabajos en beneficio del barrio, lo que les otorga
102 - El Alto: Un Mundo Nuevo Desde la Diferencia
un carácter que va mucho más allá de la asociación
tradicional y los asemeja a las comunidades agrarias.
Las juntas vecinales son la columna vertebral del
movimiento social en El Alto, y permiten comprender
la potencia de ese movimiento.
Las formas de acción de la comunidad urbana
Las juntas vecinales son una forma de
organización horizontal de la “comunidad vecinal”
que conforman verdaderas redes extensas a escala
barrial y distrital que actúan sin intermediarios,
elementos que aparecen recién en la escala superior de
la FEJUVE. En esta instancia, la cultura comunal se
disuelve y da paso a la “otra” cultura, la mestizoblancoide según señala la antropóloga Silvia Rivera
Cusicanqui, signada por el clientelismo, el
racionalismo y el colonialismo. Pero es la experiencia
de base horizontal “la que precisamente se tensará
exitosamente durante las jornadas de sublevación
civil de octubre de 2003”.
La forma de movilización y acción de esas
bases echa luz sobre lo que realmente es y significa
este entramado social. Esto supone acercar la mirada a
estas llamadas micro-estructuras de movilización
barrial, ya que es durante esa movilización cuando se
despliegan las potencias y se hacen visibles aspectos
que aparecen ocultos o sumergidos en la
cotidianeidad. En general, los testimonios y análisis
coinciden en que durante la rebelión las bases
desbordaron a sus dirigentes y a las propias
organizaciones, a tal punto que varios dirigentes
medios aseguran que “fuimos obligados por las
bases”. Se trata de una presión sorda, que viene de
muy abajo, y es por lo tanto incontenible cuando se
despliega. Roxana Seijas, dirigente de la FEJUVE,
señala algo sorprendente respecto a la relación entre
bases y dirigentes: “Aquí a la cabeza con sus entornos
(por los dirigentes) nos llaman rellenos”. O sea, que
son superficiales, como adornos, pero son forzados
por las bases a trabajar (“nosotros los rellenos somos
los que hemos trabajado”). Su testimonio muestra dos
aspectos claves de la cultural comunal: ser dirigente
no es un privilegio sino un servicio que nunca se
autonomiza de la base; y, como son “relleno”, pueden
ser cambiados por otros sin que deje de funcionar la
organización, sin que se produzcan traumas ni
cambios de orientación.
Así, la rebelión “careció de organizador y líder,
y fue ejecutada directamente por los vecinos de barrio
y calle”; las juntas vecinales “no fueron estructuras
organizativas de la movilización sino estructuras de
identidad territorial en cuyo interior otro tipo de
fidelidades, de redes organizativas, de solidaridades e
iniciativas se desplegaron de manera autónoma por
encima y, en algunos casos, al margen de la propia
autoridad de la junta vecinal”. En muchos casos, la
junta vecinal era sólo invocada de manera simbólica
para marchas y caminatas que eran en realidad
iniciativas de flexibles redes sociales territoriales que
se creaban durante los acontecimientos y se
convertían en “estructuras de mando, deliberación y
ejecución de decisiones”.
Algo así sólo puede suceder si ya existe, en la
vida cotidiana, el hábito de la autoorganización. Esas
redes se conformaban como comités de movilización,
como Comités en Defensa del Gas o, en ocasiones, no
toman forma a través de nombres sino que son
simplemente la manera natural como los vecinos se
agrupan para resolver sus problemas diarios, que en
cierto momento se vuelcan en la autodefensa de la
comunidad.
Las asambleas jugaron un papel decisivo. Sobre
la base de la amplia experiencia asamblearia de las
juntas vecinales, los pobladores de los barrios se
agruparon en asambleas informales pero masivas,
convertidas en espacios de deliberación y encuentro,
de legitimación y legalización social de la
movilización, y en escenario de intercambio de
informaciones. Las radios locales, por su parte,
amplificaron la comunicación entre las bases y le
dieron un carácter de cohesión masiva, en particular la
red Erbol (Educación Radiofónica de Bolivia),
vinculada a la Iglesia Católica.
El ancestral sistema de turnos, surgido en las
comunidades rurales, permitió garantizar las vigilias
para los bloqueos de calles y rutas, la alimentación de
los movilizados y el mantenimiento de la acción
callejera en niveles muy elevados de masividad. El
sistema de rotación o turnos se utiliza para todas las
acciones colectivas, desde la representación hasta los
bloqueos, y consiste en la rotación por distritos y
zonas, comunidades y familias, de modo que mientras
unos participan directamente otros descansan y
mantienen activa la vida cotidiana. Un ejemplo: en
una zona donde participan 100 vecinos en los cortes,
la mitad salen en el turno de seis de la mañana a tres de
la tarde y la otra mitad lo hace de tres a doce de la
noche; durante la noche la vigilia es voluntaria. De ese
modo, todos participan y mientras unos cortan o se
manifiestan otros hacen la comida, producen y se
preparan para participar en el turno. Además, la
rotación permite que esas cien personas no participen
todos los días, sino que son relevadas por otras
comunidades o zonas o grupos de familias. Así, cada
persona puede participar directamente en las calles
cada varios días, o semanas incluso, permitiendo
mantener la acción social de forma indefinida
desgastando al aparato represivo y al Estado. En
ciertas movilizaciones, como la que sucedió en
setiembre de 2000, participaron rotativamente medio
História & Luta de Classes - 103
millón de aymaras (de un total de un millón y medio
que viven en Bolivia), lo que revela que
prácticamente toda la población estuvo de alguna
manera involucrada a través de esta forma no
jerárquica de división del trabajo.
El despliegue del abajo: las insurrecciones
En los años 90, en pleno auge del
neoliberalismo, se produjeron cambios importantes
en El Alto. Al fortalecimiento de los movimientos
sociales anotado arriba, debe sumarse un cambio
notable en el escenario político. En las elecciones de
1989 un partido nuevo, CONDEPA (siglas de
Conciencia de Patria), consigue el 65% de los
votos desplazando sorpresivamente a los partidos
3
tradicionales (MNR, MIR, ADN. ) a posiciones
marginales. Debe consignarse que esto sólo sucedió
en El Alto y en La Paz, agudizando así un
comportamiento diferenciado de los aymaras, que se
mantuvo estable en el apoyo a CONDEPA durante
casi una década.
CONDEPA fue formada por el popular locutor
y cantante Carlos Palenque, a quien en 1988 el
gobierno del MNR clausura sus medios de
comunicación, Radio Metropolitana y Canal 4 que
conformaban el Sistema Radio-Televisión Popular
(RTP). Palenque y CONDEPA fueron rechazados por
las elites y las clases medias mestizas y blancas, a
quienes despreciaban por considerarlos
“populacheros” y sensacionalistas. Sin embargo,
CONDEPA era la expresión de los aymaras pobres de
ambas ciudades, aquellos sectores marginados y
despreciados por las elites. “Fue un partido que no
sólo expresó sino también reivindicó la reciprocidad y
la cultura andina”, lo que le generó lealtades
ciudadanas aceitadas por ayudas solidarias que
Palenque conseguía a través de los medios en los que,
además, denunciaba “el orden injusto imperante en
nombre de los excluidos del juego económico, social,
político y cultural”.
Aunque CONDEPA cayó en el mismo juego de
corrupción y clientelismo que denunciaba, y no pudo
recuperarse de la muerte de su líder en 1997,
sufriendo una crisis de liderazgo que la llevó a su
muerte política en las elecciones de 2002, tuvo un
papel destacado en el crecimiento de la autoestima de
los sectores populares aymaras. O, dicho de otro
modo, CONDEPA surge cuando los aymaras pobres
de las ciudades están en pleno proceso de
autoafirmación que no podrían haber procesado a
través de los partidos establecidos –de derecha o de
izquierda–, sino utilizado un outsider al que
visualizaban como parte de su mundo cultural. “La
sólida constitución de la identidad cultural de los
pobladores de El Alto se ha expresado en votaciones
colectivas”, dice un estudio sobre el tema, lo que
revela que en esa ciudad la votación “obedece a
formas de comportamiento colectivo imbuidas de
significado cultural”.
La crisis de CONDEPA es paralela al
crecimiento del Movimiento al Socialismo (MAS) y
el Movimiento indígena Pachakutik (MIP), que
tuvieron muy buena votación en El Alto, y son los
partidos más ligados a los nuevos actores sociales. Ya
en 2003 el movimiento social alteño, que había
iniciado un ascenso desde la “guerra del agua” en
Cochabamba, en abril de 2000, y en las
movilizaciones aymaras rurales de setiembre de ese
año, se convierte en el principal actor del país. El 5 de
marzo de 2001 la FEJUVE convocó un paro que se
dejó sentir sobre todo en los barrios periféricos con
tomas de calles y avenidas, en las que “se observa
cómo las mujeres bloquean sentadas al medio de las
avenidas picchando (masticando) coca y conversando
en aymara o en castellano”, mientras las principales
avenidas “se habían convertido en una especie de
asambleas grupales donde incluso participan los niños
y niñas”.
Crece la tendencia a organizarse por zonas y
cuadras mientras en las grandes jornadas se produce
una suerte de “reunificación interbarrial con
características indígenas”, según Mamani. El año
clave de 2003 comienza con acciones contundentes.
Mientras el 12 y 13 de febrero se registra en La Paz el
enfrentamiento armado entre policías sublevados y
militares que los reprimen, en el que mueren 11
policías y 4 soldados, en la ciudad de El Alto una
multitud asalta la alcaldía y las instalaciones de Coca
Cola y las saquea e incendia. Es la segunda vez que la
alcaldía de El Alto es incendiada por la multitud, en
esta ocasión enfurecida por la mala gestión del alcalde
del MIR. En esas jornadas, en las que son incendiadas
las sedes de los principales partidos (MIR, MNR,
ADN) y oficinas gubernamentales, mueren en La Paz
y El Alto 33 personas.
El 1º de setiembre de ese año, mientras en las
zonas rurales los campesinos se movilizan contra la
venta del gas por Chile, en El Alto comienza la
movilización contra los formularios Maya y Paya
(uno y dos en aymara) que redundarían en el aumento
de impuestos inmobiliarios. El 15 y 16 la ciudad está
paralizada y la población se concentra ante la alcaldía,
corta calles en cada barrio y las principales salidas de
la ciudad. El mismo 16 la alcaldía retrocede anulando
3..
As siglas correspondem, respectivamente, ao Movimiento Nacionalista Revolucionário, Movimiento de Izquierda Revolucionaria e Acción Democrática
Nacionalista.
104 - El Alto: Un Mundo Nuevo Desde la Diferencia
los formularios, lo que significa un resonante triunfo
de la movilización social. Pero el día 20 se produce la
masacre de Warista (escuela-ayllu histórica para los
aymaras, situada en Omasuyos, cerca del lago
Titicaca), en el que mueren cuatro indígenas y un
soldado.
En un clima de repudio y de indignación
colectiva, el 2 de octubre se realiza un paro de 24
horas en El Alto mientras en la Radio San Gabriel se
mantiene una huelga de hambre de la dirigencia
aymara, encabezada por Felipe Quispe, dirigente de la
4
central campesina CSUTCB . La ciudad se convierte
en “factor estructurante de los indígenas en Bolivia”,
tanto a nivel urbano como rural. A partir del 8 de
octubre, se declara un paro indefinido en El Alto
contra la venta del gas, convocado por FEJUVE, COR
y la UPEA. El paro es masivo y se plasma en la
ocupación de los territorios barriales por los vecinos,
que cortan las calles y avenidas, cavan zanjas
profundas para impedir el paso de camiones y tanques
del ejército. El mismo 8 el ejército dispara hiriendo a
dos jóvenes, pero la represión no cesa cobrándose 67
muertos y más de 400 heridos, siendo los días 12 y 13
los más violentos con 50 muertos.
Pese a la militarización de la ciudad y a la
brutalidad de la represión, la población alteña
consiguió la renuncia de Sánchez de Lozada. Y frenar
la venta del gas. ¿Qué pasará en un país donde la
población le ha perdido el miedo a los tanques, la
represión violenta y la masacre? Todo indica que el
futuro de Bolivia se ha desplazado desde las elites
blancas y mestizas hacia los aymaras, quechuas,
indígenas de todas las etnias y los pobres rurales y
urbanos.
Un futuro lleno de sorpresas
Después de octubre de 2003, vino mayo-junio
de 2005. Es el quinto levantamiento aymara en lo que
va del siglo XXI. El primer gran levantamiento se
produjo el 9 de abril de 2000 con epicentro en
Achacachi, provincia de Omasuyus. El segundo en
septiembre y octubre del mismo año en toda la región
del altiplano y valle norte del departamento de La Paz.
Se han movilizado siete provincias de esta región
aymara. El tercer levantamiento fue en junio-julio del
año 2001 con epicentro también en la gran región del
altiplano y duró cerca de dos meses. El cuarto tuvo su
epicentro en la ciudad de El Alto, en octubre de 2003.
Finalmente, el quinto levantamiento aymara se
produjo en el mes de mayo-junio de 2005 y
nuevamente el epicentro es la ciudad de El Alto. Las
demandas centrales son la nacionalización de los
hidrocarburos, una asamblea constituyente y una
4..
Sigla da Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia.
férrea oposición a las autonomías departamentales
(impulsadas por las elites de Santa Cruz). “Aquí
nuevamente las juntas vecinales y organizaciones
laborales se articulan como verdaderos gobiernos
barriales.
Las decisiones se toman de forma colectiva y
pública a través de las asambleas de barrio. Poco a
poco este levantamiento se irradia, primero hacia al
interior de los barrios, y después, nuevamente a otras
provincias y departamentos del país”, sostiene
Mamani. Esta vez el centro efectivo fue Senkata,
planta de almacenamiento de combustible y gas
licuado. Allí cientos de hombres y mujeres han hecho
turnos durante noches y días a lo largo de 18 días para
no dejar salir, como dice la gente: “ni una gota de gas”
hacia la ciudad de La Paz y otros lugares.
Uno de los hechos más notables, y a la vez
esperanzador, es que toda esta actividad social se ha
realizado sin la existencia de estructuras centralizadas
y unificadas. Tal vez el hecho de que entre los aymaras
nunca haya existido un Estado, tenga alguna relación
con ello. Sin embargo, la no existencia de ese tipo de
aparatos centralizados no ha restado efectividad a los
movimientos. Más aún, puede decirse que si hubieran
existido estructuras organizativas unificadas, no se
habría desplegado tanta energía social. La clave de
esta abrumadora movilización social está, sin duda, en
la autoorganización de base que abarca todos los
poros de la sociedad, que ha hecho superflua
cualquier tipo de representación. En segundo lugar,
por primera vez el núcleo del movimiento indígena
está situado en una gran ciudad, donde han surgido
sólidas comunidades urbanas, lo que anticipa cambios
profundos y de largo aliento en el movimiento social
boliviana que, tal vez, puedan irradiarse hacia otros
sujetos en otras partes del continente.
História & Luta de Classes - 105
Kirchner: um novo caminho
frente ao garrote do FMI?
1
Gilson Dantas2
H
á um quase consenso no meio político
sobre os males da dívida externa na sua condição de
garrote ou de condicionante econômico sério que
enfraquece o Estado nacional latino-americano e
trava as políticas econômicas ligadas ao mercado
interno. A renegociação da dívida externa de
Kirchner, em março de 2005, vem sendo veiculada,
desde então, como uma opção senão para a política
social, pelo menos em termos de política externa ou
de uma nova maneira de se lidar com as contas
externas. No entanto, esse tipo de avaliação não
apenas pode ser questionado como, por outro lado, já
aparecem sinais de que o governo Kirchner travou
uma renegociação que não favorece à economia
argentina e ao seu povo.
Recente editorial da Gazeta Mercantil detecta
um ´quadro preocupante´ na Argentina que vem
captando grande volume de títulos de curto prazo bem
mais do que sua capacidade econômica de gerar
superávit para pagar juros da dívida. Ora, estamos
diante do mesmo Kirchner, elogiado pelo FMI por ter,
recentemente, adiantado pagamento de quase 10
3
bilhões de dólares da dívida . Onde está o novo
caminho argentino de lidar com o FMI? Não
estaremos reeditando o velho modelo?
Quando Kirchner renegociou a dívida, Bresser
Pereira chegou a falar em “grande vitória da
4
Argentina e grande derrota do FMI” e economistas
mais críticos à economia capitalista do que Bresser,
como Carlos Eduardo Carvalho, falam no “maior
calote de que se tem registro” sem que qualquer
desses economistas tenha se ocupado em submeter no mesmo raciocínio - a qualquer crítica relevante a
política social e financeira do Estado argentino.
É mais ou menos como se Kirchner tivesse
apontado uma alternativa ou um caminho ao impasse
do círculo vicioso da dívida externa e ainda por cima
de uma forma pacífica, sem solavancos ou rupturas
com a chamada comunidade financeira internacional.
Este artigo pretende problematizar esse ponto
de vista e, especialmente, trazer argumentos em torno
de certas contradições que cercam a dívida externa
argentina e, ao mesmo tempo, procurar mostrar o
outro lado da questão Kirchner.
Em primeiro lugar, é preciso constatar que a
renegociação da dívida praticada por Kirchner junto
aos órgãos financeiros internacionais não se deu,
aparentemente, nos termos leoninos em que vinha
ocorrendo com seus antecessores como De la Rúa. No
entanto, como apontam os fatos, o problema foi
jogado para adiante ao mesmo tempo em que
terminaram sendo preservadas as conveniências e os
interesses fundamentais dos órgãos oficiais dos
credores. É fato que se tratou de uma reestruturação
da dívida através da qual certa parte do montante
devido teve seu valor nominal reduzido em
determinada percentagem, mas isso só se torna
relevante se omitirmos que, no mercado, os papéis da
dívida argentina não representavam, naquele
momento, mais que 30% do seu valor nominal. Se
este fato não for mencionado, fica parecendo que
houve, pura e simplesmente, um deságio, que a dívida
foi forçada a ficar menor.
E também é certo que os prazos de pagamento
foram alongados e, quanto aos juros, estes foram em
parte reduzidos, desde que não se considere que em
relação a antes continuam altíssimos e são um
disparate se comparados com o nível internacional.
Por outro lado, há que considerar que tais
procedimentos só se referem à parte da dívida, e a
outra parte, importante, continua submetida à
conhecida dinâmica da bola de neve (sobre os limites
dessa renegociação voltaremos adiante).
De toda forma, é verdade que a moratória
Argentina decretada em dezembro de 2001 e a
renegociação subseqüente, lograda por Kirchner e
aceita por Washington, representam uma novidade
em termos latino-americanos recentes. Houve
conflito de interesses, especialmente com os credores
menores.
1
Artigo entregue para publicação em março de 2006.
Gilson Dantas é doutor em sociologia pela Universidade de Brasília. E-mail:
[email protected] e [email protected]
2
3
4
Argentina sem Lavagna, editorial da Gazeta Mercantil de 29/11/2005.
Folha de São Paulo de 14/3/2005.
106 - Kirchner: um novo caminho frente ao garrote do FMI?
7
Para entender essa novidade, em primeiro lugar,
é essencial ter claro que Kirchner jamais poderá ser
entendido como um fenômeno econômico, de
rebelião econômica, muito menos como um
antiimperialista ou como um político de fortes bases
sociais próprias. Pelo contrário, é um governo
politicamente fraco, mesmo que ocupe um espaço
eleitoral enorme. O dado que fez e ainda faz toda a
diferença é o de que a Argentina - através do governo
imediatamente anterior a Kirchner - decretou
moratória de parte da dívida (em torno da metade
dela) numa situação especialíssima: em meio a um
processo que culminou com sublevação social
radical, de movimentos piqueteros principalmente
nas ruas de Buenos Aires. Movimentos – e aqui
qualquer ênfase é pouca - que subverteram
abertamente e por um bom tempo a ordem política
argentina de tal forma que, naquele momento, não se
podia prever onde aquele processo poderia parar. A
5
elite tremeu de incerteza política .
Kirchner e sua política representam algo assim
como uma espécie de filho bastardo daquele processo
social de massa que explodiu em dezembro de 2001, e
tanto moratória parcial quanto a renegociação
subseqüente só são inteligíveis dentro daquela
dinâmica. Ao mesmo tempo, a rebelião urbana
daquele dezembro de mais de quatro anos atrás brotou
no seio de um processo de pauperização sem
precedentes da nação argentina. Nunca, como no
começo do século XXI as condições sociais daquele
país estiveram tão deterioradas, o país tão decaído, a
vida social em tamanho descenso; a herança maldita
6
do neoliberalismo menemista dos anos 90 estava
estampada a céu aberto nos rostos, no perfil e
composição social da massa rebelada.
Havia um contexto. Depois de Menem, o
governo argentino vinha encontrando dificuldade
para renegociar a mais elevada dívida externa da
história argentina recente, dívida que alcançou o
tamanho do próprio PIB da Argentina ao mesmo
tempo em que o país mergulhava no desemprego,
informalidade e decadência social. Quando o governo
Duhalde , ao final de 2001, partiu para a
desvalorização do peso – fim da paridade peso-dólar 8
e, finalmente, para o corralito , a classe média viu seu
sonho chegar ao fim. O resultado político todos
conhecemos: o argentinazo explodiu nas ruas, o país
ficou conjunturalmente ingovernável, a elite política
absolutamente impopular e assembléias de bairros
começaram a disputar poder com as instituições
políticas oficiais.
Aquele levante social e a situação alcançada
pela Argentina permitem decifrar o paradoxo de todos
conhecido: um país mais fraco política e
economicamente que o Brasil, com um governo mais
frágil que o Lula, assumiu uma postura de
enfrentamento verbal com o FMI e politicamente
dura diante do violento endividamento externo para,
ao final, conseguir uma renegociação que não foi
conseguida pelo governo anterior, também neoliberal,
de De la Rúa.
Desse ponto de vista, o que se pode afirmar é
que o governo argentino apoiou-se em um processo
de mobilizações sociais – e em determinada
conjuntura internacional e do próprio governo
estadunidense – condições, que, em todo caso,
Kirchner aproveitou muito pouco, para forçar uma
renegociação mais favorável da dívida. Aquelas
mobilizações, em que pese sua radicalidade social,
seu peso e seu alcance, deram ao governo o tempo
necessário para aparecer com cacife político frente
aos credores e ir forçando um determinado tipo de
renegociação na mesma medida em que não se
desenvolvia outra política alternativa a partir do
9
movimento de massa . No saldo das vantagens para o
sistema, pode ser contabilizada uma crescente
revalorização do ´político´, a começar da figura do
político-presidente como se viu nas recentes eleições
(2005) onde Kirchner passou a controlar o Senado e
venceu em 17 das 24 províncias argentinas.
Ou seja, a tendência do próprio movimento a
autolimitar-se em termos de radicalização política,
propiciou a um governo frágil a chance de parecer
forte-e-moderado frente aos credores internacionais e
5..
Ver Pablo Rieznik, Argentina: bancarrota econômica, dissolução social e
rebelião popular. In América Latina: encruzilhadas da história
contemporânea, Osvaldo Coggiola (org), São Paulo, Xamã, 2005, p. 111-119.
Ver também Atílio Borón, 2005, Imperialismo, movimentos sociales y ciência
crítica latino-americana – entrevista a Atílio Boron. Disponível no site da
revista Herramienta n.28, março 2005: www.herramienta.com.ar/ . Para um
pano de fundo histórico do processo na América Latina e Argentina ver Valério
Arcary, As esquinas perigosas da história: situações revolucionárias em
perspectiva marxista, São Paulo, Xamã, 2004.
6..
Eleito em 1989 (com 47,6% dos votos) e reeleito em 1995 (com 50%),
Menem foi substituído por De la Rúa em dezembro de 1999. Menem executou
amplas privatizações na economia (óleo, mídia, telecom, etc.),
desregulamentou o mercado de papéis favorecendo o capital financeiro
internacional, cortou gastos sociais, ancorou o peso no dólar, ampliou a dívida
externa e lançou o país no mais profundo desemprego. Essa política
econômica era tida pelo FMI como um bom exemplo para todo o mundo. O
que se sabe é que os frutos do crescimento econômico menemista se
concentraram no bloco dominante hegemonizado pelo capital financeiro
internacional e seus sócios locais; a esse respeito ver Atílio Borón, Trás el
búho de Minerva: mercado contra democracia en el capitalismo de fin de
siglo, Buenos Aires, Argentina, Fondo de Cultura Económica, 2000. p.176.
7..
Duhalde, ex-governador da província de Buenos Aires de 1991 a 1999, foi
presidente interino em 2001, depois da queda de De la Rúa, e tomou a medida
inédita de desvalorização do peso, rompendo com o sistema de
convertibilidade que vigorava desde 1991.
8..
O embargo da poupança que atingiu em cheio a classe média argentina. Esse
verdadeiro confisco de pequenos depositantes do sistema bancário culminou
um processo de evasão de 25 bilhões de dólares de divisas em apenas um ano
por parte do grande capital financeiro internacional como nos mostra Pablo
Rieznik, 2003, op. cit, p. 117.
9..
A respeito uma boa referência é o artigo de Roberto Ramírez, Os movimentos
piqueteros e o “argentinazo”, REVISTA História & Luta de Classes, Rio de
Janeiro, ADIA ano 1, n.1, abril 2005, p. 101 a 110.
História & Luta de Classes - 107
ao imperialismo. Kirchner pôde crescer com sua
fraseologia dura frente ao FMI (pelo menos
publicamente) e pôde se credenciar diante dos dois
lados do conflito sem deixar de ser um agente
político que muda algumas coisas para que as coisas
não mudem já que ele preservou a dinâmica
essencialmente perversa do endividamento. Em
outras palavras, permitiu a Kirchner poder postular-se
como a única opção política ao caos e, especialmente,
tornar aceitável uma reestruturação da dívida nos seus
termos.
Já veremos que esses termos coincidiram, ao
final, com os dos órgãos oficiais credores, já que
Kirchner, basicamente, reciclou o garrote, manteve
o país essencialmente hipotecado e apertado,
comprometeu o futuro econômico argentino. Para
10
certos autores como Gambina , o verdadeiro
propósito dos credores não era cobrar o montante da
dívida mas, sobretudo, condicionar a política
econômica de países como Argentina e Brasil. Para o
governo W. Bush não se trata propriamente de um
problema se a dívida de países fortemente
endividados for reduzida desde que se estabeleça uma
situação financeira favorável para o capital rentista
11
estadunidense . Neste caso são menos importantes os
arroubos de Kirchner e de Lula quando adiantam o
pagamento de parcela da dívida – e declaram que o
país está se “independizando” do FMI – do que as
felicitações de W. Bush e de Rodrigo de Rato
(Diretor-Gerente do FMI) a esses governantes. Tudo
isso fica mais grotesco quando se sabe que os quase
10 bilhões de dólares que Kirchner repassou para os
credores são recursos desviados da economia interna,
da educação e da saúde de um povo já combalido.
Kirchner vem sendo um governo confiável em
termos da ditadura da dívida, e o saldo tem sido,
como regra, positivo para a estratégia de absorção do
impacto daquelas jornadas de dezembro por uma
burguesia que continua executando o mesmo modelo,
com pequenas variações, agora sem o absolutismo ou
12
o conservadorismo político de Menem (Kirchner
combate certos desmandos pontuais da magistratura,
dos militares e da corrupção). Kirchner pertence a
10..
Julio C. Gambina, Argentina: o FMI está em festa! 16 dez 2005. Disponível
no site: http://resistir.info/. Acessado: fevereiro 2006.
11..
Ver Pablo Rieznik, Las formas del trabalho y la história: uma introducción
al estudio de la economía política, 2ª ed, Buenos Aires, Argentina, Editorial
Biblos, 2003, p.126, onde ele argumenta que uma quebra financeira da
Argentina poderia arrastar o sistema para uma crise avassaladora. Por outro
lado é preciso que se leve em conta que a Argentina deve pouco mais que 10
bilhões ao FMI, mas significa muito para este órgão que concentra 87% dos
empréstimos em apenas cinco países (Turquia, Brasil, Argentina, Indonésia e
Rússia, todos eles com dificuldades políticas de pagamento).
12..
Existe também o outro lado do progressismo de Kirchner: as mudanças na
Corte Suprema, uma conquista considerada democrática, virou apoio a certa
política do governo Kirchner que inclui favores aos banqueiros, dificuldades
para os pequenos poupadores e impunidade para crimes contra piqueteiros
além de facilidades para o ´gatilho fácil´ da polícia contra o povo. Kirchner
também envia tropas ao Haiti e faz manobras conjuntas com tropas dos Estados
uma corrente latino-americana de políticos que
acredita que o capitalismo pode ser reformado e
humanizado, mas tanto ele quanto Tabaré (Uruguai) e
Lula multiplicam as concessões a Washington e se
iludem com o projeto historicamente questionável de
desenvolvimento do mercado interno baseado em
13
grandes corporações estrangeiras .
E essa é que é a questão: para além de alguma ou
outra concessão política, no caso da economia, esse
governo está longe de representar um processo
qualitativamente diferente dos seus antecessores:
14
Kirchner é mais continuidade do que ruptura .
Nesse sentido, a chamada reestruturação da
dívida mais esconde do que revela, em termos
econômicos. Em primeiro lugar, para pactuar a
reestruturação, o Estado argentino se comprometeu a
um superávit primário altíssimo pelas décadas
vindouras e considerando-se o perfil da economia da
Argentina de Kirchner, o acordo reforça, consolida e
aprofunda o modelo agro-exportador às custas do
mercado interno e reforça os cortes de gastos públicos
em serviços sociais essenciais como educação e
saúde, o que conduz a um achatamento ainda maior
do consumo do mercado local. Com o objetivo de
reestruturar a dívida, Kirchner assumiu, para o Estado
argentino, o compromisso de superávit primário de
15
4% por vinte anos e se comprometeu a aumentar as
tarifas públicas e promover cortes em despesas
sociais.
Através daquela reestruturação, a Argentina
assume, decididamente, um papel de neo-colônia, de
gerador de dólares para pagar dívida; consolida seu
papel de grande exportador de grãos e de petróleo - o
que não representa propriamente um progresso depois de ter privatizado seus serviços essenciais e o
principal de sua riqueza (toda a política privatista foi
preservada por Kirchner). Ao mesmo tempo, a dívida
passa a corresponder a uma parte maior ainda do PIB:
de 57% passa a 85% do PIB, uma proporção bem mais
16
avantajada que a brasileira, por exemplo .
E finalmente, mesmo com aqueles cortes
orçamentários, mesmo com todo o engajamento agroexportador, os dólares que aquele país consegue gerar
Unidos. E como não falar em subordinação ao FMI se, nos dois primeiros anos
do governo Kirchner, foram remetidos 7 bilhões de dólares para o exterior (para
o FMI), a maior transferência maciça de dólares desde 1982?
13..
Ver, sobre esta questão, Adriano Benayon, Globalização e desenvolvimento,
São Paulo, Escrituras, 2005, p. 241 a 266, onde analisa o problema das
empresas transnacionais e a transferência de recursos.
14..
Segundo a Folha de São Paulo de 8/10/2005: os salários reais na Argentina
estão menores que em 2001 e se for comparado 2005 com 2001, apenas ¼ dos
5,5 milhões de trabalhadores formais (registrados) da Argentina conseguiram
recuperar a inflação no seu salário. Não por acaso recomeçaram as greves em
várias categorias, informa também aquele jornal.
15..
Superávit primário é a diferença entre a receita e os gastos de Estado antes
do pagamento do serviço da dívida.
16..
A respeito da evolução da dívida argentina, ver Gilson Dantas, Kirchner:
opção em política econômica ou política econômica sem opção?, 14 março
2006, disponível no site: www.duplipensar.net.
108 - Kirchner: um novo caminho frente ao garrote do FMI?
só pagam parte do serviço da dívida, fato que a
imprensa conservadora brasileira já começou a
vocalizar. É por conta desse mecanismo que se torna
necessário urgente e continuamente, a busca de
recursos lá fora, eufemismo para ampliação do
endividamento, para reedição do modelo velho
conhecido nosso do quanto-mais-se-paga-mais-sedeve. Ou, nas palavras de Esquivel, quanto mais se
paga, mais se deve e menos se tem. Em algum
momento o economista Joseph Stiglitz já argumentou
que “a receita liberal é boa para quem dita as regras,
mas é péssima quando se trata de criar empregos e
gerar rendas”.
Lançar títulos do governo oferecendo taxas de
juros que estão entre as mais altas do mundo – como
fazem Kirchner e também Lula, às custas de recursos
para investimentos público-sociais vangloriando-se
de estarem reduzindo o risco-país ou se
“independizando” de alguma coisa – é nada mais que
aprofundar o endividamento externo e sua condição
de país-refém do capital rentista internacional. E há
um dado novo: a partir da reestruturação, a
pesificação da dívida pública Argentina deu um pulo –
17
40% dela está hoje fixada em pesos , o que significa
que qualquer aceleração inflacionária sufocará até o
intolerável o orçamento público. O modelo Kirchner:
ou se aumenta impostos, ou se reduz gastos (e se
promove elevações tarifárias) ou se emite mais dívida
pública, tudo amparado pelo superávit primário de
exportações...
No final de contas, quando aquela
reestruturação é examinada de perto, novas
contradições aparecem, contradições que só reforçam
um caráter de propaganda enganosa em quase todo o
discurso da mídia amestrada que incensa Kirchner
como um ´novo caminho´ para a América Latina. O
alongamento do perfil da dívida se deu – como já foi
mencionado - com a manutenção de juros altos até em
termos internacionais (embora menores que os de
2001). Pior ainda, grande parte dessa dívida que
estava em moratória e que teve seu valor nominal
reduzido, se refere a pequenos poupadores, em sua
maioria italianos aposentados ou pequenos
investidores fora dos Estados Unidos e na própria
Argentina, que compravam papéis da dívida externa
argentina através dos seus bancos, esperando fazer
crescer sua poupança; ao final, esses poupadores se
deram mal e há varias matérias na imprensa onde essa
parte da classe média põe a boca no trombone (eles
representam quase metade da dívida que não será
reembolsada integralmente por Kirchner embora seus
operadores de risco irão continuar recebendo juros
altos por essa dívida pós-deságio).
O fato econômico novo, no qual Kirchner se
apoiou para pressionar aos credores, foi também esse,
o de que ao contrário dos anos 80, parte importante
dos papéis da dívida encontra-se pulverizada nas
mãos de pequenos devedores, de vários bancos que se
encontram fora dos grandes grupos financeiros
internacionais (por estes, o FMI responde). Este dado
permitiu ao governo Kirchner certa margem de
manobra impensável nos anos 80: o poder político de
pressão desses pequenos investidores é menor do que
o do sistema financeiro oficial.
E quanto àquela questão dos juros da dívida que
se manterão altos, ela é essencial, faz toda a diferença:
para a economia argentina é muito mais penosa a
marcha forçada sob juros elevadíssimos do que a
desvalorização de parte dela ou alongamento do prazo
de pagamento do estoque de uma dívida que muito
credor já não espera receber (aliás, os credores vão
continuar se nutrindo dos juros que estão entre os
maiores do mundo). Colocando em outros termos: os
juros sedutores interessam mais que o montante. Sem
falar que, desde a moratória de 2001, mais de 27
bilhões de dólares já levantaram vôo do país. Ou seja,
não se pode esquecer, em qualquer análise, que os
grandes credores já se anteciparam a qualquer perda a
qualquer transformação do seu ´crédito´ em papéis
podres. O sistema financeiro, que vai continuar
especulando com os papéis da dívida externa
argentina, sabe muito bem, por outro lado, que país
com calote no currículo tem que pagar juros altos se
quer continuar no sistema. Isso é praxe no mercado de
papéis.
Por tudo isso é que o fato já mencionado de
Kirchner fazer propaganda governamental em torno
do pagamento antecipado de parcela da dívida chega a
ser acintoso: a pressão do FMI pode ser menor, mas
com a reestruturação os recursos fiscais ficam
comprometidos por longo período. E as políticas do
FMI serão aplicadas igualmente para honrar os
compromissos com os credores além de uma eterna
política de ajuste, com gastos sociais controlados –
salários dos funcionários públicos, pensões e
aposentadorias, saúde e educação – ao mesmo tempo
em que se manterá uma política de arrecadação
regressiva aplicada com todo rigor sobre os setores
18
mais preteridos da sociedade .
Kirchner quer continuar no sistema, já
mostrou isso, e ao hipotecar a economia Argentina
(comprometendo-se ao superávit, aos juros altos, etc),
ele está, de fato, pactuando com um sistema que é
capaz de suportar as “pressões de Kirchner”, ou suas
bravatas políticas desde que obtenha, em troca, as
vantagens concretas, decisivas que, no caso, o capital
17..
Ver Cláudio Katz, O segredo dos papéis, Reportagem n.67, São Paulo,
Editora Manifesto, abril 2005, p. 45-46.
18..
Gambina, 2005, op. cit.
História & Luta de Classes - 109
financeiro terminou obtendo. Principalmente quando
os credores sabem que se trata de um país que
ameaçou, com os movimentos piqueteiros de
dezembro de 2001, fugir totalmente ao controle
político e econômico dos Estados Unidos e, ainda por
cima dentro de uma conjuntura política latinoamericana particularmente caliente, onde uma
Argentina em chamas serviria de mau exemplo para o
resto do continente. Lula, na época (e apenas na
época) era parte de um susto que ecoava naqueles
protestos de massa na Argentina, e que levaram à
derrubada de presidentes igualmente acuados por
uma pressão duríssima dos credores da dívida.
É no seio desse processo que se insere tanto a
margem de manobra de um governo politicamente
fraco (e que soube tirar vantagem dessa fraqueza) e
que, mesmo assim, renegociou a dívida sem mudar o
essencial, sem romper com a jaula de ferro dos juros e
do ciclo de crescimento incessante da dívida. Estamos
em 2006: a dívida externa argentina retoma seu
crescimento na medida em que o governo terá que
buscar dólares lá fora para cobrir um serviço da dívida
que nem todo o esforço gerador de divisas da
economia argentina consegue dar conta.
América
Latina
Contemporânea
NESTA EDIÇÃO
El ALBA de Cuba y Venezuela: el poder de una idea
Francisco Dominguez
Mariátegui e as raízes da rebelião indígena
Tiago Coelho Fernandes
O Populismo e a Hegemonia Burguesa na América Latina
Gilberto Calil
Cuba, Che Guevara e a “exportação” da Revolução pela América Latina
Carlos Batista Prado
América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado
Enrique Serra Padrós
Processos político-ideológicos na esquerda eleitoral uruguaia: 1971-2004
José Pedro Cabrera Cabral
Colombia: do surgimento das guerrilhas ao Plano Colômbia
Renato Barbieri
“Um enigma aos nossos próprios olhos”: Eduardo Galeano, Literatura e América Latina
André Francisco Berenger de Araújo
Cuba pós-colapso do Leste Europeu: um debate necessário
Roselena Leal Colombo
Lutas sociais e poder popular: algumas reflexões em torno da prática dos Movimentos
de Trabalhadores Desempregados na experiência argentina
Katia I. Marro
Bolivarianismo e Chavismo: os desafios ideológicos do processo venezuelano
Carla Ferreira
El Alto: un mundo nuevo desde la diferencia
Raúl Zibechi
Kirchner: um novo caminho frente ao garrote do FMI?
Gilson Dantas

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