Almeida Júnior [civilistica.com a.4.n.2.2015]

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Almeida Júnior [civilistica.com a.4.n.2.2015]
civilistica.com || a. 4. n. 2. 2015 || 1
A metamorfose da cultura: uma resenha à obra
"A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo
e da nossa cultura", de Mario Vargas Llosa
Vitor de Azevedo ALMEIDA JUNIOR 
O sentido, o conteúdo e a abrangência do termo cultura instigaram nas últimas décadas
inúmeros estudos, mas poucos se demonstraram capazes de revelar as metamorfoses
do vocábulo que tem sido alvejado por profundas mudanças em seu sentido, a ponto de
Mario Vargas Llosa iniciar sua excelente obra aturdido com a quantidade de trabalhos
dedicados ao tema, posto que a "cultura, no sentido tradicionalmente dado a esse
vocábulo, está prestes a desaparecer" (p. 11). Esse é o mote central do precioso livro ora
apresentado, a partir do qual não basta somente compreender as transformações no
sentido da palavra cultura, mas rastrear as rupturas históricas que fizeram surgir uma
nova realidade cultural, que pouco ou nada lembra a definição de velha cultura presa ao
passado.
Antes de adentrar nas transformações (rectius: rupturas) sofridas no conceito de
cultura, Mario Vargas Llosa se preocupa em expor os principais ensaios sobre o tema
sob diferentes perspectivas, de modo a demonstrar que eles se baseiam na constatação
de que a cultura estaria atravessando uma "profunda crise" e teria entrado em
"decadência" (p. 12). Inicia com a exposição do famoso estudo de T. S. Eliot (Notas
para uma definição de cultura de 1948), que compreende a cultura como um "estilo de
vida", "uma sensibilidade e um cultivo da forma, que dá sentido e orientação aos
conhecimentos" (p. 14), criticando o afastamento do modelo cultural ideal por ele
representado no passado. Afirmava que a alta cultura era patrimônio de uma elite, e
que assim deveria ser para preservar sua qualidade de cultura de minoria. Entendia que
a
democratização
universal
da
cultura
levaria
ao
seu
empobrecimento
e
superficialidade. Em síntese, nos revela Mario Vargas Llosa que, para Eliot, "cada
classe tem a cultura que produz e que lhe convém, e, embora entre elas naturalmente
haja coexistência, também há diferenças marcantes relacionadas com a condição
econômica de cada uma" (p. 13), sendo que a principal instituição transmissora da
cultura era a família e, depois, a Igreja. Em 1971, George Steiner (No castelo do Barba

VARGAS LLOSA, Mario. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura.
Trad. Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. Todas as citações são dessa edição.
 Doutorando e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor
Assistente do Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ITR/UFRRJ).
Professor dos cursos de especialização do CEPED-UERJ, PUC-Rio e EMERJ. Advogado.
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Azul: Algumas notas para a redefinição da cultura) acreditava ser uma falha do
estudo de Eliot o fato de não ter feito nenhuma relação entre cultura e as duas grandes
guerras mundiais e o Holocausto, propondo-se, desse modo, a empreender uma análise
da cultura de maneira associativa com a violência político-social. Steiner ainda se
ressente do que denomina de "retirada da palavra", que vai sendo substituída pela
cultura da imagem e da música, além da crescente preocupação com a natureza e a
ecologia e o desenvolvimento da matemática e das ciências naturais, que também
levam à progressiva deterioração da palavra (falada ou escrita), que sempre foi a
espinha dorsal da cultura.
Com a globalização e a revolução tecnológica, passa-se a um enaltecimento de uma
cultura global - cultura-mundo, na eloquente expressão de Gilles Lipovetsky e Jean
Serroy (A cultura-mundo. Resposta a uma sociedade desorientada, 2010) - que
diferentemente da cultura como anteriormente compreendida, deixou de ser elitista,
erudita e excludente, transformando-se numa "cultura de massas", que "nasce com o
predomínio da imagem e do som sobre a palavra" (p. 24). Assim, em oposição à cultura
elitista e minoritária do passado, a ebulição da "cultura de massas" almeja oferecer
entretenimento e diversão a um maior número possível de consumidores, sem
necessidade de formação específica e sem referências a erudição. Surge, assim, a
denominada indústria cultural, que transforma a cultura em bens de consumo de
massas. Mario Vargas Llosa chama atenção que o entendimento de Lipovetsky e Serroy
acerca do que denominam de cultura-mundo ou cultura de massas não é cultura em
sentido estrito ou tratam de coisas essencialmente diferentes, eis que não se pode
confundir uma ópera de Wagner e a filosofia de Nietzsche com os filmes de Hitchcock e
de John Ford ou os anúncios da Coca-Cola, em exemplo dado pelo próprio Llosa.
O sociólogo Fréderic Martel em Mainstream (2010) mostra que a cultura-mundo já foi
ultrapassada pela "cultura do entretenimento" graças à frenética velocidade dos nossos
tempos globalizado e marcado pela revolução audiovisual, que promovem "um
denominador comum entre os povos dos cincos continentes, apesar das diferenças de
línguas, religiões e costumes" (p. 26). Segundo o autor, a cultura mainstream possui o
mérito de democratizar a vida cultural, antes monopolizada à pequena minoria elitista.
Assim, os traços característicos essenciais que diferenciam a cultura do passado da
cultura de hoje são a sua finalidade e durabilidade. A cultura do entretenimento serve
para diversão e prazer momentâneos e frugais. Sobre essa diferença, Mario Vargas
Llosa esclarece:
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A diferença essencial entre a cultura do passado e o
entretenimento de hoje é que os produtos daquela pretendiam
transcender o tempo presente, durar, continuar vivos nas
gerações futuras, ao passo que os produtos deste são fabricados
para serem consumidos no momento e desaparecer, tal como
biscoitos ou pipoca. Tolstoi, Thomas Mann e ainda Joyce e
Foulkner escreviam livros que pretendiam derrotar a morte,
sobreviver a seus autores, continuar atraindo e fascinando
leitores nos tempos futuros. As telenovelas brasileiras e os
filmes de Hollywood, assim como os shows da Shakira, não
pretendem durar mais que o tempo da apresentação,
desaparecendo para dar espaço a outros produtos igualmente
bem-sucedidos e efêmeros. Cultura é diversão, e o que não é
divertido não é cultura (p. 27).
O punhado de autores especialmente abordados por Mario Vargas Llosa demonstra que
ao longo das últimas décadas o sentido de cultura mais do que alvejado por profundas
transformações foi vítima de mutação, metamorfoseando-se num vocábulo cujo sentido
e definição muito se distancia daquilo que já se considerou cultura no passado - nem
tão distante assim.
Em seguida, de modo a permitir que se compreenda o que se define por cultura a partir
de uma radiografia contemporânea, inicia-se a exposição do que se entende por
"civilização do espetáculo" - expressão, inclusive, que dá nome ao livro ora resenhado.
Segundo Maria Vargas Llosa, "é a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na
tabela de valores é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a
paixão universal" (p. 29). Colocar o entretenimento e a diversão como valores
supremos da sociedade atual acarreta efeitos indesejados, tais como: a banalização da
cultura, a generalização da frivolidade e a proliferação do jornalismo irresponsável da
bisbilhotice e do escândalo.
São explicações desse fenômeno o extraordinário desenvolvimento econômico após as
privações da Segunda Guerra Mundial e a escassez dos primeiros anos pós-guerra, bem
como a liberdade dos costumes e a notável abertura dos parâmetros morais. Outra
explicação para o forjamento da civilização do espetáculo foi a democratização da
cultura, que, se por um lado, se impôs como uma obrigação moral de colocar a cultura
ao acesso de todos, por outro, teve a consequência de "trivializar e mediocrizar a vida
cultural". "A quantidade em detrimento a qualidade" (p. 31). Isso acarretou no
desaparecimento da alta cultura e na massificação da própria ideia de cultura. Passa-se
a enxergar a cultura como "uma maneira agradável de passar o tempo" (p. 31). Prefere-
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se a literatura light, o cinema light, a arte light, pois fornecem a impressão ao leitor e ao
espectador de que é culto e de vanguarda. Os "chefs" e estilistas são os novos cientistas,
compositores e filósofos, pois a culinária e a moda ocupam boa parte das seções
atualmente dedicadas à cultura. Aqui cabe ressaltar um alerta do próprio Mario Vargas
Llosa: "Não digo que isso seja ruim. Digo, simplesmente, que é assim" (p. 33).
Outra característica marcante da civilização do espetáculo, como bem acentua Mario
Vargas Llosa, é o eclipse de uma importante figura até pouco tempo atrás: o intelectual.
Protagonista do debate público durante boa parte do século XX, esta emblemática
figura social praticamente desapareceu nos últimos anos, sendo suas manifestações
com mínimas repercussões na sociedade contemporânea. De acordo com Mario Vargas
Llosa, duas razões centrais levaram ao apoucamento e à volatilização do intelectual.
Primeiro, se deve ao descrédito que diversas gerações de intelectuais obtiveram em
razão da simpatia a regimes totalitários, genocidas e atentatórios às liberdades civis. No
entanto, em segundo lugar, mas sobretudo, a perda da importância da figura do
intelectual se assenta no "ínfimo valor que o pensamento tem na civilização do
espetáculo". Em outros termos, "no empobrecimento das ideias como força motriz da
vida cultural" (p. 41).
Importante questão na civilização do espetáculo reside na influência do jornalismo no
forjar desta nova realidade e vice-versa. Elevar a diversão e o entretenimento num valor
supremo da sociedade no campo da informação ocasiona uma inversão de valores nas
prioridades dos noticiários, o que, por sua vez, desemboca na perda de nitidez entre o
jornalismo sério e o sensacionalismo. Conforme explica Mario Vargas Llosa, as notícias
ganham prioridade não em razão da sua significação política, econômica, social,
cultural, mas em virtude do caráter novidadeiro, surpreendente, escandaloso e
espetacular. Um dos efeitos deletérios, como bem acentua o autor, de "transformar
informação em instrumento de diversão é abrir aos poucos as portas da legitimidade
para aquilo que, antes, se confinava num jornalismo marginal e quase clandestino:
escândalo, deslealdade, bisbilhotice, violação da privacidade, quando não - em casos
piores - difamações, calúnias e notícias infundadas".
Mario Vargas Llosa expõe, a respeito do influxo entre a civilização do espetáculo e o
jornalismo, de forma lúcida, que:
Não está em poder do jornalismo por si só mudar a civilização
do espetáculo, que ele contribuiu para forjar. Essa é uma
realidade enraizada em nosso tempo, a certidão de nascimento
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das novas gerações, uma maneira de ser, de viver e talvez de
morrer do mundo que nos coube, a nós, felizes cidadãos destes
países, a quem a democracia, a liberdade, as ideias, os valores,
os livros, a arte e a literatura, do Ocidente ofereceram o
privilégio e transformar o entretenimento passageiro na
aspiração suprema da vida humana e o direito de contemplar
com cinismo e desdém tudo que aborreça, preocupe e lembre
que a vida não só é diversão, mas também drama, dor, mistério
e frustração.
Outra marca da "civilização do espetáculo" é o desaparecimento do erotismo. Segundo
Mario Margas Llosa, embora haja muitas formas de se defini-lo, a principal se revela na
"desanimalização do amor físico", que consiste na "transformação [...] de mera
satisfação de uma pulsão instintiva em atividade criativa e compartilhada que prolonga
e sublima o prazer físico, cercando-o de uma encenação e de refinamentos que o
transformam em obra de arte" (p. 98). Por isso, alerta para os riscos da permissividade
em matéria sexual, que se tornado público, saudável e normal, tornaria a vida mais
"enfadonha, medíocre e violenta do que é" (p. 98). O sexo, defende o autor, faz parte do
domínio privado e secreto e assim deveria permanecer. "O desaparecimento dos
preconceitos, algo libertador de fato, não pode significar a abolição dos rituais, do
mistério, dos formalismos e da discrição, graças aos quais o sexo se civilizou e
humanizou" (p. 97).
Cultura e política são independentes, mas numa sociedade aberta inevitavelmente
mantêm-se vasos comunicantes entre elas. Com a banalização da cultura decorrente da
eleição como valor supremo da sociedade a diversão e o entretenimento, nada mais
divertido do que espiar a intimidade de um político, "surpreender um ministro ou um
parlamentar de cueca, investigar os desvios sexuais de um juiz", entre outros episódios
pitorescos. "Na civilização do espetáculo os papeis mais infamantes talvez sejam os que
os meios de comunicação reservam aos políticos" (p. 124). Com isso, a influência da
cultura, ou melhor, da civilização do espetáculo, na política "contribui para deteriorá-la
moral e civicamente", ao invés de estabelecer "certos padrões de excelência e
integridade" (p. 117-118).
Aspecto relevante da civilização do espetáculo é o desapego à lei, que enfraquece as
democracias e que Mario Vargas Llosa reputa como gravíssima consequência que
decorre dessa desvalorização da política. O desapego à lei consiste "numa atitude cívica
de desprezo ou desdém pela ordem legal existente", que "autoriza o cidadão a
transgredir e burlar a lei quantas vezes puder para benefício próprio, principalmente
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lucrando, mas muitas vezes também para simplesmente manifestar desprezo,
incredulidade ou zombaria em relação à ordem existente". Como destaca Mario Vargas
Llosa, "não são poucos que na era da civilização da diversão, violam a lei para divertirse, como quem pratica um esporte de risco" (p. 132). Dentre as explicações para o
desprezo à ordem legal se encontram as leis malfeitas, feitas para favorecer interesses
particulares ou obtusas o suficiente que acabam estimulando os cidadãos a esquivar-se
delas. Um dos campos onde o desapego à lei é generalizado atualmente é a seara dos
direitos autorais, com o "reinado onipresente da pirataria de livros, discos, vídeos e
demais produtos audiovisuais" (p. 134).
A compreensão do fenômeno da "civilização do espetáculo" não interessa ao Direito
somente em razão de se vivenciar um momento de desapego à lei, como acima exposto,
mas sobretudo pela importância que tal reflexão induz nos contornos dos chamados
direitos autorais e do nascente campo dos direitos culturais, cujo objeto central recai no
direito de acesso aos bens culturais, como já afirmado em leis infraconstitucionais, mas
especialmente por força do comando constitucional inserto no art. 215, que assegura o
direito de acesso e participação à vida cultural. Mas, afinal, de que cultura estamos
falando sob a perspectiva jurídica? Quais bens integram esse direito com fins a sua
efetivação? A presente obra descortina algumas questões e ajuda o, às vezes, isolado
estudioso do Direito numa reflexão mais abrangente acerca destes temas, de modo a
definir qual o sentido jurídico de cultura - se é que é possível - diante do constante
metamorfoseamento do vocábulo, que escapa dos estreitos limites de investigação da
ciência do Direito.
Ao apreciar "A civilização do espetáculo", de Mario Vargas Llosa, o leitor é conduzido à
refletir sua própria vida cultural, pois vivenciamos esse processo de metamorfose da
cultura. Somos o público desses bens culturais forjados para serem divertidos,
instantâneos e frívolos e, inevitavelmente, nos perguntamos até que ponto
incentivamos essa nova realidade cultural? Somos vítimas ou mecenas da cultura
mainstream? A conclusão é individual, mas fato é que o cenário parece pouco
convidativo a mudanças, pelo menos no horizonte que nos é permitido enxergar.
A estrutura, a narrativa do livro e os exemplos citados - que transitam desde poetas e
filósofos clássicos até às telenovelas brasileiras e o fenômeno O Código da Vinci, de
Dan Brown - tornam a obra extraordinariamente familiar, embebidos que estamos
nesse contexto cultural. É uma incursão - nem sempre prazerosa - às motivações de
nossas
escolhas
literárias,
musicais,
audiovisuais,
em
suma,
culturais,
ou
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simplesmente, sobre a maneira como temos preferido agradavelmente passar o tempo
de nossas vidas.
Ler "A civilização do espetáculo", de Mario Vargas Llosa, é, sem dúvida, pura diversão e
entretenimento, mas engana-se quem acredita na superficialidade desta afirmação,
pois escondida embaixo da camada do divertimento encontra-se uma obra de alto teor
reflexivo e fonte de conhecimento sobre tema tão vasto, mutante e próximo: a cultura.
Como citar: ALMEIDA JUNIOR, Vitor Azevedo. A metamorfose da cultura: uma resenha à obra "A
civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura", de Mario Vargas Llosa.
Civilistica.com. Revista eletrônica de direito civil. Rio de Janeiro: a. 4, n. 2, 2015. Disponível em:
<http://civilistica.com/a-metamorfose-da-cultura>. Data de acesso.