POR QUE OLHAR PARA UMA NOVELA DE TV NA ACADEMIA

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POR QUE OLHAR PARA UMA NOVELA DE TV NA ACADEMIA
A PEDAGOGIA DE UMA TELENOVELA:
JOVENS REBELDES E PROFESSORES AFETIVOS
Fernando da Rosa Rosado
Angela Dillmann Nunes Bicca
Resumo: Recentemente uma telenovela conferiu grande destaque a dois personagens/professores que atuam em
uma escola de Ensino Médio ficcional. Em função disto, buscamos, nesta pesquisa, compreender o que se
aprende sobre o trabalho docente voltado para adolescentes “rebeldes” na novela da Rede Record de Televisão
(com início em 2011) intitulada Rebelde, focando os seus primeiros trinta capítulos, exibidos na TV aberta.
Desenvolvemos as análises a partir dos Estudos Culturais, na sua vertente pós-moderna e pós-estruturalista,
considerando-a um texto cultural que coloca em circulação, produz e reproduz importantes representações dos/as
professores/as bem como de jovens alunos/as “rebeldes”. Ao fazer isso a novela estaria colocando em ação uma
forma de Pedagogia Cultural (KELLNER, 2001; STEINBERG, 1997; GIROUX, 1994) que ensina aos/às
professores/as e estudantes como devem se comportar, com o que devem sonhar, o que devem almejar e,
também, o que devem repudiar. Sob a ótica teórica aqui assumida, valemo-nos do conceito de representação
cultural, tal como foi enunciado por Hall (1997), para compreender como a novela contribui para constituir
discursivamente o bom professor de jovens estudantes do Nível Médio como aquele profissional que confere
centralidade à socialização e à afetividade dos seus alunos/as. O ambiente escolar é onde boa parte das cenas da
novela Rebelde se desenvolvem e onde os dois professores/personagens centrais na trama - Vicente (professor de
Português e Literatura) e Artur (professor de Matemática) - exercem suas atividades profissionais. Vicente é o
professor representado como o mais amigo dos seus/suas alunos/as, sempre de bom humor e dedicado. Os atos
mais valorizados desse personagem/professor são aqueles que contribuem para configurá-lo como o profissional
que conquistou a amizade dos alunos/as em detrimento das demais tarefas relacionadas ao ensino. A afetividade,
portanto, é constituída como o atributo mais importante de um bom professor de jovens estudantes do Nível
Médio. Além disso, a narrativa da novela ajuda a constituir o professor/personagem Vicente como bom professor
confrontando seu modo de ser com o de outro professor/personagem, Artur. Esse é representado na novela como
exigente, tradicional, de relacionamento difícil com os/as alunos/as e que almeja ascender ao cargo de diretor da
escola. Ou seja, uma das mais importantes diferenças entre Vicente e Artur é o desejo de ascensão profissional,
posta na novela como uma indesejável ambição daquele professor que deveria atuar como se atendesse a um
“chamado” vocacional. Desta forma, a partir da riqueza que a leitura de um texto cultural pode propiciar,
destacamos que os “ensinamentos” da novela Rebelde ajudam a colocar em ação toda uma produção discursiva
que constitui os professores/as de jovens estudantes.
Palavras-chave: Pedagogias Culturais, Docência, Telenovela.
1. POR QUE OLHAR PARA UMA NOVELA DE TV NA ACADEMIA?
Recentemente ouvimos alunos/as adolescentes chamarem um dos seus professores de
“Vicente” e outro de “Artur”, mesmo sabendo não serem estes os seus nomes. Inquietou-nos,
ainda mais, os sentidos atribuídos aos referidos nomes: o nome Vicente serviu para indicar ser
aquele um professor afetivo e amigo dos estudantes; já o nome Artur indicava ser o professor
assim nomeado alguém mais severo e exigente. Nos dois casos os/as estudantes referiam-se a
professores/personagens da novela Rebelde de TV, veiculada pela Rede Record de Televisão.
Significados sobre a docência, produzidos em textos da mídia, como nos alertou Costa
(2006), operam tanto nas ações de professores/as quanto na forma como a sociedade compõe
e recompõe suas visões acerca desses/as profissionais. Uma novela de TV, portanto, pode
contribuir para posicionar os protagonistas da docência na política cultural da identidade
produzindo significados que assumem uma posição de “verdade”, dirigindo ações pessoais e
coletivas e legitimando algumas identidades como mais desejáveis e mais dignas do que
outras.
Desta forma, fomos instigados a desenvolver uma pesquisa a respeito do que se
aprende sobre docência, juventude e escola a partir de uma novela de TV analisando recortes
de cenas dos seus primeiros trinta capítulos1, exibidos na TV aberta entre 21 de março e 29 de
abril de 2011. É importante destacar que a novela narra eventos ocorridos em uma escola
particular destinada a adolescentes, estudantes do Ensino Médio, que se constituiu no
ambiente/cenário da maioria das suas cenas. Esta versão da novela é resultado de uma
trajetória de adaptações de roteiros e regravações que teve início em 2002, na Argentina, onde
a novela recebeu o nome de Rebelde Way, produzida pela Cris Morena Group e Yair Dori
International (a atual Dori Media Group2). Em 2004, a rede mexicana de televisão Televisa
fez uma regravação da mesma novela com poucas alterações no enredo original. Em 2005,
esta versão de Rebelde que foi ao ar no Brasil, com dublagem em língua portuguesa, sendo
exibida pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). Tais comentários são importantes para
mostrar que a versão novela exibida na Rede Record de Televisão, com início em 2011, tem
forte inspiração nas versões argentina e mexicana já apontadas.
Ao desenvolver a análise, portanto, objetivamos compreender o que se “aprende” em
uma novela de TV sobre o trabalho docente voltado para adolescentes a partir dos Estudos
Culturais, inspiração pós-moderna e pós-estruturalista, tendo como objeto de análise a versão
de Rebelde produzida e veiculada pela Rede Record de Televisão.
1
Os programas foram gravados por sinal transmitido diretamente do receptor da TV por satélite para uma placa
de captura de vídeo Pixelview X-Capture USB através de cabo componente, totalizando 30 capítulos, com 45
minutos de duração média por capítulo. Conforme o portal de notícias da Rede Record de Televisão, obtivemos a
informação que a versão brasileira da novela está sob a supervisão de uma roteirista brasileira, Margareth Boury,
que a produz enfocando o cotidiano de um grupo de adolescentes estudantes do Ensino Médio, da escola Elite
Way School. Não são definidas as idades exatas dos/as adolescentes personagens da novela, mas pode-se dizer
que eles aparentam idades entre 16 e 17 anos, justamente a idade com que muitos jovens cursam o Ensino Médio
nas escolas brasileiras.
2
A empresa foi fundada por Yair Dori em Fevereiro de 1996, em Israel, com nome de Yair Dori
Communications Ltd e desde novembro de 2004, passou a ser denominada de Dori Media Group. Disponível
em< http://www.dorimedia.com/>. Acesso em 22 jan. 2012.
2
2. PEDAGOGIA E CULTURA
O campo dos Estudos Culturais promoveu um deslocamento da noção de cultura
oriunda de tradições elitistas que defendiam ser a cultura o que de melhor se pensou e
produziu em uma sociedade. Segundo Costa, Silveira e Sommer (2003)
a revolução copernicana operada pelos Estudos Culturais na teoria cultural
concentrou-se neste terreno escorregadio e eivado de preconceitos em que se cruzam
duas noções ou concepções extremamente complexas e matizadas como cultura e
popular (p.36).
Desta forma, os Estudos Culturais afastaram-se do conceito de cultura como algo
erudito, pertencente às camadas intelectuais da sociedade, para assim permitir compreender as
manifestações culturais sem hierarquizá-las tal como faz a tradição elitista que separa alta e
baixa cultura. Como destacaram Costa, Silveira e Sommer (2003), os trabalhos precursores
dos Estudos Culturais
apesar de não serem unívocos em suas perspectivas de problematização, estão
unidos por uma abordagem cuja ênfase recai sobre a importância de se analisar o
conjunto da produção cultural de uma sociedade – seus diferentes textos e suas
práticas – para entender os padrões de comportamento e a constelação de idéias
compartilhadas por homens e mulheres que nela vivem (p.36).
Sob essa ótica a novela Rebelde constitui-se em um produto da cultura, tão digno de
análise acadêmica quanto qualquer outro. A novela coloca em circulação, produz e reproduz
uma série de significados que contribuem para constituir identidades de professores e de
jovens estudantes, bem como algumas representações de escola.
A possibilidade aqui indicada de analisar uma novela de TV está conectada às viradas
“cultural” e “linguística”, apontadas por Hall (1997), que se processaram a partir de trabalhos
de diversos campos - filosofia, literatura, antropologia cultural, feminismo e outros – que
passaram a descrever a linguagem como responsável por não apenas relatar os fatos, mas por
constituí-los. É disso que fala Veiga-Neto (1996) quando afirmou que, ao falar das coisas, nós
as constituímos e não apenas descrevemos.
3
Desta forma, assumimos que esta novela de TV, ao abordar os professores de jovens
que vão à escola constitui tanto os professores quanto os jovens ao indicar como devem
comportar-se, o que devem vestir, o que devem consumir, como devem se relacionar com as
outras pessoas, o que devem desejar, com o que devem sonhar, e também, o que devem
repudiar e recusar. Ou ainda, é possível afirmar que ao falar sobre as coisas produzem-se
aprendizagens que diferem dos modos escolares de produção de saber. E isso se dá mesmo
quando a escola é o tema central do artefato cultural analisado. Em seu trabalho de pesquisa,
Fabris (1999) analisou o olhar que a indústria cinematográfica de Hollywood expressou sobre
a escola e os/as docentes3, colocando em circulação representações que são tomadas como
verdades pelos espectadores. Como destacou a autora (idem):
Foi meu objetivo, ao tratar de espaço e tempo escolares, trazer para o campo da
pedagogia cenas de filmes que fazem parte da cultura e são apresentados nas
escolas, lares e cinemas, constituindo representações e desenvolvendo diferentes
pedagogias. Pedagogias essas que operam em variados locais e também nas escolas.
(p.20)
A análise de artefatos da mídia, enfocando as aprendizagens por eles proporcionadas,
tem base no conceito de Pedagogia Cultural (KELLNER, 2001; STEINBERG, 1997;
GIROUX, 1994) como a forma de educação que ocorre em muitos locais que não são a
escola. Desta forma, ocorrem aprendizagens a partir das novelas de TV, dos filmes, dos
jornais, das revistas, dos brinquedos, dos anúncios publicitários, dos jogos eletrônicos, dos
livros de histórias infantis, etc. Sob esta ótica, o termo pedagogia sofreu uma ampliação
abrangendo as inúmeras instâncias culturais.
Como já referimos, a forma de pedagogia que se exerce a partir da novela Rebelde,
assim como outras pedagogias da mídia, não acontece tal como se dão os ensinamentos
propiciados nas instituições formais de educação. É importante esclarecer que a novela
Rebelde, tomada como uma forma de Pedagogia Cultural, não determina a ação dos/as
professores/as, nem o comportamento dos/as adolescente, nem os modos de funcionamento
das escolas. Esse texto cultural exerce uma forma de Pedagogia Cultural ao colocar em
circulação uma série de significados, contribuindo para constituir discursivamente os objetos
de que fala.
3
O livro organizado por Costa (2006) possibilitou-nos, além da leitura de importantes análises propostas pelos
autores/as que compõem a coletânea de textos, conhecer a diversidade de pesquisas desenvolvidas no Brasil e
que tratam das representações dos/as docentes na mídia.
4
Cabe esclarecer que não buscamos com esta análise encontrar uma suposta verdade
essencial sobre o trabalho docente, a escola ou os/as adolescentes, mas buscamos
compreender como este artefato cultural estaria produzindo saberes a cerca do trabalho
docente, dos/as estudantes e da escola a partir de discursos e representações recorrentes em
seus capítulos, bem como a partir de elementos componentes da linguagem televisiva tais
como o posicionamento da câmera, a música de fundo, os figurinos, a interpretação dos atores
e das atrizes, só para citar alguns. Assim, a análise da novela permitiu-nos mostrar o que está
se constituindo como certo e como errado, como repudiável e como desejado, na atuação
dos/as professores/as que trabalham com alunos/as adolescentes.
Para desenvolver a análise valemo-nos do conceito de representação cultural, tal como
foi enunciado por Hall (1997). A representação cultural está fortemente relacionada às viradas
cultural e linguística, já referidas, a partir do que se passou a assumir ser a cultura central nos
processos de produção e estabelecimento dos significados para os seres e coisas do mundo. A
crítica cultural passou, portanto, a considerar que a cultura tem a ver com produção e com a
circulação de significados, como também indicou Hall (1997). Assim, a análise cultural de
uma novela de TV possibilita colocar em destaque os modos como os significados do que seja
ser o bom professor/a dos/as jovens que vão à escola produzem efeitos práticos na vida dos/as
docentes, dos/as jovens e das suas famílias, bem como nas escolas.
Para cumpri tal propósito, iniciamos a análise com uma breve reflexão a respeito dos
estudantes da escola da novela Rebelde para, em outro tópico, abordar os professores/
personagens Artur e Vicente.
3. A VERSÃO BRASILEIRA DA NOVELA REBELDE A CONSTITUIÇÃO DOS
JOVENS COMO REPLETOS DE REBELDIA
A história narrada pela novela Rebelde se passa na cidade do Rio de Janeiro e trata da
vida de alunos da Elite Way School, uma escola destinada a jovens estudantes do Ensino
Médio oriundos de famílias de classe média alta. Além disso, a escola oferece bolsas de
estudos a alunos/personagens comprovadamente carentes com desempenho alto em um exame
promovido na própria instituição de ensino4. Desta forma, a escola da novela reuniria filhos
4
A escola da novela Rebelde possui alunos oriundos de famílias com renda não muito elevada, o que é possível
através de um programa de bolsas destinadas a alunos/as com bom desempenho em um teste de aptidão. Todos
os alunos de baixa renda supostamente fizeram o teste antes de entrar na escola, porém esse período não e
abordado na narrativa e essa é a justificativa apresentada na trama da novela para a presença de alunos com
5
de pessoas consideradas importantes na sociedade carioca sem deixar de exercer a função
social de promover a melhoria de vida de bons estudantes com menos recursos financeiros. A
Elite Way School funciona em regime de semi-internato o que faz com que os
alunos/personagens permaneçam na escola de segunda a sexta retornando para casa nos finais
de semana. Tal retorno é condicionado ao bom comportamento apresentado pelos/as
estudantes. Por tudo isso a escola constitui-se no cenário principal da maior parte das cenas de
Rebelde.
A trama coloca em destaque seis alunos/personagens, sendo quatro deles filhos de
pessoas influentes e conhecidas na sociedade carioca (Tomás, Roberta, Alice e Diego) e dois
alunos bolsistas (Pedro e Carla). Esses alunos/personagens, assim como os demais,
apresentam inúmeros problemas de relacionamento com os seus pais e/ou responsáveis.
Porém, os jovens oriundos das famílias mais ricas, em geral, apresentam problemas mais
graves e em maior quantidade. Os primeiros capítulos, analisados neste estudo, focam
especialmente a vida dos alunos/personagens principais referidos. O primeiro deles, Pedro, é
oriundo de uma família que perdeu sua fortuna, ocasião em que o patriarca se suicidou. Seu
maior desejo é vingar-se do suposto responsável pelos problemas que levaram seu pai a uma
atitude tão drástica, Franco Albuquerque. Este homem um grande empresário da moda e pai
de sua colega Alice, menina por quem ele acaba se apaixonando. Alice, por sua vez, é
conhecida por andar sempre bem vestida e por procurar “ajudar” as amigas que acredita
vestirem-se fora dos padrões que ela considera satisfatórios. Tomás, outro jovem oriundo de
uma família rica, vive em busca de divertimento. Apenas sua avó tenta impor limites ao seu
comportamento. Roberta, outra jovem aluna, é filha de uma cantora famosa, costuma ser
agressiva com os demais personagens que a consideram extremamente carente em função da
pouca atenção que parece receber da sua mãe. Diego, outro personagem/aluno que
destacamos aqui, é um filho de um empresário bem sucedido que também atua na política.
Conforme anunciado em entrevista com o ator5, durante a novela, Diego desenvolve um
quadro de alcoolismo que parece ter sido desencadeado pela relação difícil que tem com o pai.
Além desses, temos a jovem Carla que aluga um quarto junto com sua irmã Bernarda, de
pseudônimo Becky, no apartamento do professor Vicente. Carla sonha em ser bailarina e é
obcecada por manter seu corpo esbelto fazendo todos os sacrifícios possíveis para isso. Carla,
poder aquisitivo menor. Também não é explicado se tal programa de bolsas consiste em exigência legal ou se
está vinculado a algum programa de responsabilidade social promovido pela direção da escola.
5
Entrevista com Arthur Aguiar, o ator que interpreta Diego na novela Rebelde. Disponível em: <
http://diversao.terra.com.br/tv/noticias/0,,OI5207240-EI17836,00Ator+de+Rebelde+sobre+alcoolismo+e+uma+valvula+de+escape.html >. Acesso em 13 mar. 2012.
6
assim como Pedro, reside na vila Leme da novela, um dos cenários secundários da trama6,
local de moradia dos demais personagens oriundos de classes populares da novela e dos
professores da Elite Way School, tais como Vicente e Artur.
A novela, especialmente com os personagens acima referidos, buscou apresentar o
comportamento de rebeldia como uma condição “natural” dos jovens, abordando o modo
como esses agem na escola e fora dela. Isso ocorre mesmo que vários personagens integrantes
do corpo docente e da direção da escola da novela afirmem que a rebeldia não pode ser
tolerada em uma instituição de ensino. Porém, essas ações “rebeldes” são apenas levemente
punidas e acabam sendo esquecidas.
É possível observar que as ações de rebeldia dos jovens em Rebelde, motivada pela
possibilidade de contestarem a autoridade da família ou da escola, se valem dos mesmos
valores dominantes que tais contestações buscariam questionar em mais de uma versão da
novela. Carrascoza e Furtado (2007), ao comentarem a versão mexicana de Rebelde,
afirmaram que:
a telenovela mostra tensões que são próprias de um mundo edulcorado e a atitude
das personagens não transgride senão a aparência do construto social. Os rebeldes
são jovens enquadrados pelos valores dominantes, que se arvoram em questionar as
autoridades não para desafiá-las, mas para obter alguma vantagem própria.(p.85)
Desta forma, mesmo que a novela busque mostrar a forma discutível como muitas
famílias resolvem as situações problemáticas que envolvem seus filhos, não é possível
esquecer que esse texto cultural ajuda a produzir como heróis os mesmo jovens/personagens
que sofrem muito poucas consequências por seus atos, até mesmo quando são muito graves.
Parece-nos que no mundo encantado da mídia, ao buscar um final feliz para as histórias que
narra, onde todos superam suas desavenças, estaria produzindo lições sobre o modo como os
jovens e suas famílias devem enfrentar seus problemas.
Além disso, se a adolescência era compreendida como uma fase curta de preparação
para a vida adulta parece-nos, analisando os textos midiáticos, que hoje tem se verificado que
a adolescência tem ganhado uma centralidade cultural nunca vista antes. Assim, a instituição
escolar que teve sua gênese marcada pela função de tornar crianças em adultos (FABRIS,
1999) tem sido recorrentemente representada como local de convivência de adolescentes que
6
Os personagens moradores da vila Leme possuem padrão de vida compatível com a dita média brasileira.
7
vivem muito mais um estilo de vida do que uma etapa cronológica. Isso está fortemente
relacionado com a captura do jovem pelo mercado consumidor e com as associações do uso
de determinados produtos com um modo de vida jovem que estaria ao alcance de pessoas com
todas as idades (CANEVACCI, 2005; SCHMIDT, 2006).
Para lidar com esses jovens “rebeldes” a novela confere destaque a dois
professores/personagens, Vivente e Arthur, a respeito dos quais trataremos a seguir.
4. A CONSTITUIÇÃO DOS PROFESSORES COMO OS SUJEITOS APTOS A LIDAR
COM JOVENS REBELDES
Os professores/personagens centrais na novela Rebelde são Vicente, que leciona
Português e Literatura e Artur, o regente de Matemática. Lembrando, esses são os
personagens cujos nomes estariam assumindo significados bem particulares, como já
referimos.
O primeiro deles, Vicente, é um professor considerado amigo dos seus alunos, sempre
de bom humor e dedicado ao trabalho. Desta forma, ele é constituído na narrativa da novela
como o herói dos seus alunos. Vivente tem formação acadêmica para exercer essa função e é
antigo no corpo docente da escola da novela, portanto ele não é um outsider7 como ocorre
com os professores/as de queridos dos alunos/as nos filmes analisados por Fabris (1999). No
entanto, este é um personagem/professor que nos lembra personagens/professores de filmes
hollywodianos de escola em função de seu carisma.
É importante salientar que os atos mais valorizados do professor Vicente, aqueles que
contribuem para configurá-lo como um professor que conquistou a amizade dos alunos/as na
escola da novela, não dizem respeito ao trabalho relacionado aos saberes escolares. Trata-se
de atos que destacam sua preocupação com o bem-estar e com a vida afetiva dos/as
estudantes. No terceiro capítulo da novela, por exemplo, o personagem Pedro descobre que
Alice, a moça por quem está apaixonado, é filha do empresário que teria desencadeado o
insucesso e o suicídio de seu pai. Após esse evento Pedro muda seu comportamento e é o
professor Vicente quem percebe o sofrimento do aluno. Vicente, em meio às suas atividades
7
Personagens que se tornam professores em função de alguma circunstância que lhes exige assumir tal tarefa
mesmo que não tenham buscado o magistério como profissão e que não tenham formação específica para
exercerem a docência.
8
diárias, encontra tempo para convidar Pedro para treinar socos de boxe, abrindo caminho para
o diálogo com o adolescente a respeito dos conflitos que este vive.
Portanto, o personagem/professor Vicente é destacado em função do modo como
auxilia os/as jovens alunos/as da escola da novela a superarem seu dos problemas afetivos.
Como destacou Fabris (1999), os discursos psicológicos na educação estão relacionados a um
processo de desapropriação do ato de ensinar de sua preocupação com saberes acadêmicos
para uma atenção à afetividade dos/as alunos.
Assim, quando o personagem/professor Vicente aparece em cenas que se
desencadeiam em sala de aula não são os conteúdos escolares ou as metodologias de ensino
que ganham destaque, mas os conflitos pessoais dos/as alunos/personagens. Além disso, em
nenhuma situação este professor aparece preparando aulas ou realizando alguma tarefa de
apoio ao ensino de conteúdos escolares, tais como as de planejamento ou correção de
trabalhos escolares.
Um exemplo disso aparece em uma cena do 10º episódio onde Vicente discutia com
seus/as alunos/as uma das obras de Machado de Assis. O debate proposto dizia respeito ao
tema da traição, associado a personagem Capitu. Ao solicitar a opinião dos alunos sobre a
trama do livro a conversa desloca-se da obra de Machado de Assis para eventos da vida dos
alunos/personagens. Neste caso, a discussão deslocou-se da obra literária para os
desentendimentos entre os alunos, em especial entre as duas personagens/alunas Vitória e
Alice. Neste caso o conflito adveio de um beijo que Alice deu em Pedro, menino por quem
Vitória era apaixonada. Vicente, em sua aula, apresenta o resumo da obra informando que o
autor a escreveu em primeira pessoa para marcar que aquela é a versão de um personagem a
respeito dos eventos narrados no livro. Nesse momento Vitória se manifesta dizendo que é
óbvio que as mulheres traem. Alice, que entende o comentário da colega como direcionado a
ela, defende-se dizendo que não é incorreto julgar as pessoas sem obter provas e sem analisar
todos os lados da questão. Desta forma, a discussão a respeito de uma obra literária, que
poderia estimular um debate acerca do tema da traição, desloca-se para a vida afetiva dos/as
personagens/alunos. A aula do professor Vicente, portanto, parece ser apenas uma introdução
a alguma questão relacionada a vida familiar e social dos/as alunos. Não queremos dizer com
isso que o trabalho em sala de aula não possa desencadear debates ligados á vida cotidiana,
mas que nas cenas da novela a vida cotidiana que é mais fortemente aborda e os temas
escolares acabam constituindo-se apenas um modo de adentrá-la.
Assim como se deu na situação descrita acima na qual a ação escolar é um mote para
iniciar um tema ligado aos relacionamentos dos/as jovens com a família e com os/as amigos,
9
diversas são as cenas destinadas a mostrar situações de lazer dos personagens/alunos. Mesmo,
nos dias letivos, há incontáveis cenas na piscina, nos corredores, na sala de estar, nos
dormitórios, na biblioteca ou mesmo no espaço da sala de aula da escola, nas quais as
situações apresentadas não destacam situações de estudo. São exemplos disso as cenas que se
passam nos corredores e no pátio da escola onde o foco recai sobre o envolvimento do
personagem Pedro com duas colegas, Alice e Vitória.
Desta forma a novela coloca em destaque as situações onde alunos/as e professores/as
conferem centralidade à socialização dos estudantes, indicando ser esse o objetivo primordial
do professor
competente, fazendo ecoar
em
um
artefato
cultural
destinado
a
jovens/adolescentes um discurso já bastante conhecido quando se trata da escolarização de
crianças pequenas: o do imperativo do afeto como forma de enfrentar os problemas
educacionais (VARGAS e CARVALHO, 2012). Como esses autores (idem) destacaram, o
referido discurso adveio das pedagogias psicológicas e do ideário de os/as professores/as
devem conhecer profundamente os/as alunos/as para educá-los, suprindo inclusive a atenção
que eles “supostamente” não têm em casa.
A afetividade, portanto, é constituída como o atributo mais importante de um bom
professor de jovens estudantes do nível Médio. Parece-nos que ao fazer isso a novela Rebelde
ajuda a colocar em ação, também, outro antigo discurso que associou a docência ao
sacerdócio ou a paternidade/maternidade entendida como desígnio divino ou como uma
doação semelhante ao sacerdócio (FABRIS, 1999). Destacamos que a afetividade nunca
deixou de ser um atributo desejável das mulheres dedicadas à docência (COSTA, 1999) em se
tratando da escolarização de crianças pequenas, mas na novela Rebelde a afetividade é
apresentada, também, como o mais importante qualificativo para que um professor atue no
ensino de jovens. A afetividade, já tão marcada como atributo imprescindível para uma
professora é, neste artefato cultural, associado também como atributo importante para um
homem que exerce a docência. Assim, a narrativa da novela ajuda a constituir o
professor/personagem Vicente como bom professor confrontando seu modo de ser com o de
outro professor/personagem, Artur.
O segundo professor/personagem, Artur, faz o papel de um professor exigente e
tradicional, o que é mostrado na novela como perfil profissional que desencadeia
relacionamentos difíceis com os alunos. Essa forma de representação de professores/as de
Matemática, assim como outras representações estereotipadas de professores/as de outras
disciplinas, em diversos artefatos culturais, tem se constituído como uma forma de buscar
10
fixar uma imagem baseada na disciplina que lecionam como indicaram Costa e Camozzato
(2006).
Além disso, a constituição de Artur como um professor que não atende aos requisitos
para que seja considerado um bom profissional parece pautar-se também em um julgamento
moral. Artur em repetidas cenas bajula o seu chefe, o diretor/personagem Jonas, na esperança
de um dia assumir a direção da escola. O desejo de ascensão profissional é posto, na novela,
como uma indesejável ambição daquele professor que deveria atuar como se atendesse a um
“chamado” vocacional.
Em uma cena do quinto capítulo, o que poderia ser um destaque positivo da atividade
profissional transforma-se em uma situação de tensão entre professor e alunos/as.
Artur se
mostra irritado com o barulho que Carla e suas amigas fazem no apartamento onde residem,
pois estariam o atrapalhando na sua atividade de preparação de aulas. Esta prece ser mais uma
forma de associar esse professor/personagem com a uma suposta dificuldade de convívio
entre pessoas, neste caso de relacionar-se com seus/as alunas/as.
Resumidamente, a afetividade é exaltada como o principal atributo dos bons
professores, a característica marcante para constituir os professores como heróis.
5. UMA PEDAGOGIA “REBELDE”
A novela Rebelde da Rede Record de Televisão estaria, portanto, “ensinando” como
ser professor de alunos adolescentes, evocando ensinamentos que não são novos. Desta forma,
conferimos destaque, neste texto, ao modo como a versão brasileira da novela tem contribuído
para constituir o professor apto a lidar com jovens rebeldes representando-o como alguém
afetivo, capaz de abordar preferencialmente os temas da socialização dos jovens, convivendo
com esses em muitos lugares além da sala de aula. Enfim, ao marcar a riqueza de ler um texto
cultural que nunca deixou de ser obra da ficção, buscamos tratar de uma história que constitui
a discursivamente professores e estudantes.
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11
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