Educação infantil na América Latina

Transcrição

Educação infantil na América Latina
Educação infantil na América Latina: novos discursos, antigos dilemas
EIXO 1 - Políticas públicas para a Infância
Rosânia Campos1
Roselane Fátima Campos2
Rute Silva3
Resumo:
Neste trabalho o objetivo é analisarmos os discursos, presentes em documentos
produzidos por Organismos Internacionais e governos locais, que orientam, sobretudo,
as políticas educativas para as crianças menores de três anos. Concentramos nossas
análises na concepção de equidade social e de pobreza, conceitos centrais nas
orientações provenientes de ambas as instâncias citadas para a formulação das políticas
locais. Para tanto adotamos o referencial de análise de política desenvolvido por
Stephen Ball (2011) denominado “Ciclo de Políticas”. Nossas análises indicam uma repolitização da pobreza, que passa a ser compreendida como uma questão cultural, a qual
tem repercussões graves para a educação infantil. Em consequência, o desenvolvimento
atual da educação infantil na região, no que diz respeito a sua universalização, se vê
ameaçado pelo recrudescimento de perspectivas conservadoras e excludentes, repondo
em cena, a trágica tradição histórica da modernização conservadora do país
O presente trabalho é um recorte de uma pesquisa sobre políticas e programas de
educação infantil, especificamente a educação de 0 a 3 anos, na América Latina 4 a qual
focaliza três países: Bolívia, Venezuela e Equador, além do Brasil, que passaram por
processos de mudanças sociais na última década. Nosso objetivo, neste texto, é
analisarmos os discursos, presentes em documentos produzidos por Organismos
Internacionais e governos locais, que orientam, sobretudo, as políticas educativas para
as crianças menores de três anos. Neste sentido concentramos nossas análises na
concepção de equidade social e de pobreza, conceitos centrais nas orientações
provenientes de ambas as instâncias citadas para a formulação das políticas locais.
Para tanto adotamos o referencial de análise de política desenvolvido por
Stephen Ball (2011) denominado “Ciclo de Políticas”. Ainda que o citado referencial
tenha se mostrado profícuo nas análises, entendemos que possui limites na formulação, em
particular, no que tange ao papel dos Estados Nacionais e suas participações nos processos
1
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade da Região de Joinville –
UNIVILLE. Professora do Departamento de Psicologia. E-mail: [email protected].
2
Professora do Programa do Departamento de Metodologia de Ensino e do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected].
3
Professora do Núcelo de Desenvolvimento Infantil – NDI da Universidade Federal de Santa Catarina. Email: [email protected].
4
O objetivo desta pesquisa é verificar se, as mudanças nas quais os citados países foram protagonistas
tiveram impactos de modo positivo na educação infantil, especialmente no que diz respeito à
democratização do acesso e a permanência com qualidade.
1
de regulação da política educacional. Especialmente por considerarmos que na América
Latina configuram-se novas relações entre os países periféricos e centrais com impactos na
constituição e modos de operar dos estados nacionais, nossas análises se fundamental
também em autores que tratam do conceito de regulação no campo educacional, além de
nos auxiliar nas discussões referentes às relações sociais na totalidade que as constituem.
A justificativa para concentrarmos nossas análises nos documentos, de modo
especial, nos conceitos supracitados decorre do nosso entendimento que, estes documentos
constituem o denominado “Contexto da influência”, o qual se caracteriza pelo momento do
confronto. É neste contexto em que distintos grupos disputam concepções e influências,
procurando cada qual, imprimir sua direção ou hegemonia. É aqui que os discursos e
concepções adquirem legitimidade, estabelecem parâmetros, recebem apoio ou são
rechaçados (MAINARDES, 2007). É nesse contexto que podemos compreender também as
influências exercidas pelos discursos de organismos transnacionais sobre as políticas locais
(MAINARDES, 2007).
A partir destas delimitações organizamos o presente trabalho em três seções: no
primeiro momento discutiremos a re-politização da concepção de pobreza, que passa a ser
tratada nos documentos e discursos oficiais como uma “questão cultural”. Na sequencia
nossas discussões convergem para as análises do que implica equidade social neste contexto
e finalizamos com algumas considerações de como a centralidade da infância, no século
XX, constitui-se por um duplo jogo. Finalizamos com algumas considerações.
O Século das Crianças
Segundo a reformista sueca Ellen Key, o século XX, seria o “século das
crianças”. No entanto, ao final do mesmo, a situação atual da infância nos faz questionar
para quais crianças o Século XX foi realmente momento de garantia do reconhecimento
e efetivação de seus direitos como cidadãs. Apesar da criança ser, a partir deste século,
compreendida como objeto de intervenção e investimentos privilegiado em nome de um
projeto de futuro, muitas crianças estão fora desse futuro, tendo em vista que seu
presente é de pobreza extrema e exclusão social. Esse cenário levou, na última década
do século mencionado, o desencadeamento de várias reuniões e desenvolvimento de
diversas ações e programas, baseadas nas evidências das condições impróprias de vida
de grande parte das crianças na atualidade.
Estes relativos consensos produzidos, sobretudo, por organismos internacionais
via projetos, financiamentos e intervenção na ação dos governos nacionais e/ou de
organizações não-governamentais, concentram-se especialmente na definição de metas
2
e ações emergenciais e paliativas. No entanto, o grande número e o volume de
instâncias e projetos envolvidos na “solução” dos problemas da infância concentram-se
em estratégias que visam à sobrevivência básica das crianças, sem intervir nos aspectos
estruturais determinantes desse quadro da infância mundial associados à pobreza,
ficando muito longe de alcançar a realização de seus direitos (CAMPOS, 2008).
Após um drástico período de reformas estruturais, a América Latina, em 2008,
apresenta índices mais preocupantes, como o fato de que cerca de 12,5% da população
viver em situação de indigência, isto é, viver sem ter suas necessidades de alimentação
básica atendida (UNICEF/CEPAL, 2010). Neste contingente as crianças são as maiores
vítimas. Neste contexto, e num visível desencanto e descrédito em relação às políticas
implementadas na década de 1990, observamos na América Latina, a acessão de
governos de setores sociais configurando um clima político diferente, de reação aos
ditames do pensamento neoliberal e, de conformação de um governo mais próximo às
questões sociais. No entanto, em paralelo a este processo, observamos um novo discurso
nos documentos produzidos pelos organismos internacionais, de modo que a infância
acaba sendo configurada como a “nova questão social”, sendo priorizado o investimento
na infância como uma estratégia para romper o “circulo vicioso da pobreza”. Combater
a pobreza passa a ser “a tarefa” de vários países e de várias ações supranacionais 5.
Entretanto, o que as análises evidenciam é que, esta defesa da infância não é
balizada no reconhecimento da criança como cidadã, e a educação como direito
subjetivo, de modo específico a educação das crianças menores de três anos. Se
analisarmos este segmento educativo na região observamos que o crescimento deste
atendimento foi pífio, conforme podemos visualizar na tabela 1:
5
Um exemplo destas ações foi o plano desenvolvido pela OEI que resulto em metas para educação latinoamericana e foi sistematizado no documento: Metas Educativas 2021: la educación que queremos para la
generación de los bicentenários.
3
Tabela 1: Taxas de matrícula por idade
País
3 anos
4 anos
5 anos
Argentina
34,1%
70,0
100,0
Bolívia
0,2
20,4
66,3
Brasil
24,3
43,5
62,4
Chile
22,2
80,5
87,3
Colômbia
22,4
44,9
80,2
Costa Rica
Cuba
98,1
100,00
100,0
Equador
6,2
17,5
82,1
El Salvador
Guatemala
2,9
13,5
35,4
Honduras
4,7
24,8
53,8
México
33,0
92,0
100,0
Nicarágua
34,2
55,2
83,2
Panamá
6,0
41,1
82,2
Paraguai
3,9
21,4
72,1
Peru
54,0
75,6
87,9
Rep. Dominicana
14,6
26,7
66,5
Uruguai
63,0
88,0
95,0
Venezuela
46,0
72,4
87,1
Fonte: Unesco (2010); Unesco/IIPE/OEI (2009).
*5 anos
95,8%
60,8%
82,7
--86,7
--56,6
35,4
47,1
93,9
61,0
78,6
60,9
88,1
74,2
96,1
--
Estes dados evidenciam a focalização no atendimento formal das crianças em
idade mais próxima da escolarização não superando assim, a histórica dicotomia
existente na educação infantil. Esta tensão ganha novos contornos quando observarmos
a novas legislações que ampliam a obrigatoriedade a partir dos quatro anos. Entre todos
os países da América Latina, apenas três (Chile, Guatemala e Nicarágua) não
apresentam a educação infantil como etapa obrigatória. Quatro países: Argentina,
Colômbia, Paraguai e República Dominicana a obrigatoriedade se inicia aos cinco anos;
outros quatros países: Bolívia, Brasil, El Salvador e Panamá a obrigatoriedade é
definida a partir dos quatro anos; nos países: Equador, México, Nicarágua, Peru e
Uruguai a obrigatoriedade se inicia aos três anos. Consta Rica e Venezuela definem
como obrigatória toda a educação infantil. Ao analisarmos a organização interna destes
diferentes sistemas educativos, observamos que há uma divisão estratégica no
atendimento. De acordo com Campos (2011a) observamos um papel mais forte do
Estado no provimento das matrículas nas idades mais próxima da etapa escolar. No
entanto, o atendimento de crianças menores de três anos,
tem uma formação compósita, dependendo majoritariamente de
convênios ou “parcerias” entre a esfera pública e a privada,
notadamente com as chamadas organizações sociais. Podemos
encontrar, então, uma variedade de “arranjos institucionais” –
convênios ou associações entre Estado, organizações sociais (de
diversos tipos, das empresariais às religiosas), entre ministérios
4
ou órgãos governamentais (saúde, educação, nutrição,
saneamento, assistência social) e organizações multilaterais, etc.
(CAMPOS, 2011a p.11).
Interessante
observar
que,
os
mesmo
organismos,
UNICEF
(2010),
UNESCO/OEI(2009), OEI (2010) que apresentam a crescente priorização dos
governantes da região à educação das crianças entre 4 e 5 anos e, o deslocamento do
atendimento das crianças menores de 4 anos para a esfera “não formal”, paradoxalmente
são os mesmos que fomentam e induzem por suas orientações e programas, a
segmentação entre “primeira infância” e “educação inicial”, circunscrevendo a primeira
ao âmbito do “não formal” e a segunda a esfera do “formal” ou institucionalizado.
Programas ou ações “não-formais”, cujo como foco é a família e/ou a criança ficam sob
responsabilidade comunitária, ao passo que os “formais”, visando à educabilidade das
crianças maiores, com vistas a garantir as bases para um futuro percurso escolar exitoso,
ficam
sob
a
responsabilidade
de
espaços
institucionalizados
inscritos,
predominantemente, na esfera da educação pública (CAMPOS, 2010a).
E, é neste contexto que observamos uma re-politização da concepção de pobreza
que passa a ser tratada como uma “questão cultural” obscurecendo as determinações
sociais que a produzem não como diferença ou incapacidade individual, mas como
resultado de desigualdade social. O debate é deslocado da arena política e, portanto, das
orientações éticas intrínsecas ao âmbito da justiça social, para a esfera da normatividade
técnica. De acordo com Telles (1993), a pobreza é percebida como o efeito indesejado
de uma história sem autores e responsabilidades. Um resíduo que escapou à potência
civilizadora da modernização e que ainda tem que ser capturada e transformada pelo
progresso.
Seguindo esta perspectiva o Banco Mundial (1990, p.27) definiu pobreza como
“incapacidade de atingir um padrão de vida mínimo”, sendo que o padrão de vida
mínimo é avaliado pelo consumo, e a incapacidade remete a duas questões:
oportunidades econômicas e prestação de serviços sociais. Assim, os governos devem
dirigir suas ações nestes dois campos de modo focal (UGÁ, 2004). Nessa concepção, o
investimento em capital humano é um dos meios mais importantes para reduzir a
pobreza. Ainda de acordo com Ugá (2004):
a ideia presente seria, portanto, que, ao educar-se mais, o
individuo torna-se mais apto a competir com os outros por um
emprego melhor no mercado e, consequentemente, a obter uma
renda maior.
5
É nesta lógica que a educação ganha sua centralidade, com ênfase na educação
de primeira infância, chave para expansão das capacidades humanas das pessoas pobres.
Neste sentido, em 2008, a CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e
Caribe) e a oficina Regional do UNICEF para América Latina e Caribe (UNICEF –
TACRO), juntamente com a Universidade de Bristol da Londo School of Economics
desenvolveram um trabalho para medir a pobreza infantil nos países em
desenvolvimento, de modo a “adaptar a metodologia de medição da pobreza infantil de
caráter multidimensional da realidade dos países latino-americanos e caribenhos, e
combinando com a medição da pobreza pelos indicadores tradicionalmente realizados
pela CEPAL” (CEPAL/UNICEF, 2010 p.13 – Tradução livre). Este estudo indicou que
cerca de 45% da população menor de 18 anos vive em situação de pobreza, o que
implica em quase 81 milhões de meninos, meninas e adolescentes que sofrem privações
em decorrência de não terem algum de seus direitos sendo atendido (CEPAL/UNICEF,
2010).
É a partir deste cenário que os organismos internacionais 6 indicam que, quanto
mais cedo à criança é educada, maiores serão suas oportunidades de desenvolvimento
psicofísico – social, em outras palavras, fundamental investir na expansão das
capacidades humanas das pessoas pobres. Ainda que o conceito de capacidade humana
seja mais abrangente que o de capital humano, ele também não pressupõe, nem tão
pouco defende, a existência de um Estado que garanta os direitos sociais. Pelo
contrário, a defesa é de um Estado caridoso, que deverá atuar apenas nos segmentos
mais pobres (UGÁ, 2004). Deste modo a presença do Estado somente seria necessária
em um primeiro momento, “no sentido de aumentar as capacidades dos pobres, para, em
um segundo momento, quando estes indivíduos já estiverem capacitados, o Estado já se
tornaria desnecessário” (UGÁ, 2004, P. 60).
Dito de outro modo, a pobreza decorre da incapacidade dos indivíduos, que não
conseguem garantir nem seus empregos, nem sua subsistência. Em decorrência desta
“construção sociológica da pobreza”, a pobreza é entendida como um fracasso
individual daquele que não consegue ser competitivo (UGÁ, 2004). As repercussões
desta concepção são verificáveis, sobretudo, sob ponto de vista epistemológico nas
políticas e programas voltados para as crianças menores de três anos, organizados a
6
Dentre os documentos analisados destacamos: Cepal/Unicef (2010, 2010(a), 2010 (b));BID (2011),
UNESCO/IIPE/OEI (2009).
6
partir da concepção de educação integral, fundamentada nos conhecimentos da
neurociência e da psicologia cognitiva (CAMPOS, 2011). No Brasil, também podemos
observar em nível governamental, ações fundamentadas nesta perspectiva, como nas
proposições formuladas pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da
Republica (SAE) 7 para a educação da primeira infância. Conjuntamente com estas
discussões e ações, cresce a defesa de urgência em promover a equidade social,
considerada como base para a promoção de políticas sociais seletivas e focalizadas e,
logo, mais eficientes do ponto de vista da gestão social.
Equidade Social: tratar diferentemente os desiguais
A partir do discurso de tratar diferente os desiguais e da pobreza como
incapacidade individual é neutralizada a “dimensão ética da justiça e da igualdade em
nome dos critérios de eficácia e racionalidade técnica da economia, passa pela
imposição de uma ordem pública subtraída das esferas políticas de representação,
negociação e interlocução” (TELLES, 2006, p. 186). Como resultado são eclipsados os
problemas das iniquidades e privilégios que se inscrevem no próprio modo que as
relações sociais são ordenadas. Ainda de acordo com Telles (2006) parece que todo o
problema da igualdade se esgota na garantia de que se garanta o acesso mínimo às
necessidades vitais de sobrevivência.
Seguindo esta argumentação, a definição de igualdade e justiça social são resignificadas, não sendo mais constituidoras do cidadão, mas sim da figura do pobre. Em
outras palavras o conceito de cidadania social é esvaziado, e o Estado deve voltar sua
atenção fazendo-lhes caridades diversas, oportunizando assim condições mínimas de
sobrevivência. A educação passa da esfera do direito, para a esfera de um serviço, de
modo que é imperativo que o Estado garanta um “bom começo” para as crianças, não
todas, mas aquelas em situação vulnerável.
Neste contexto a educação infantil, em especial a destinada às crianças menores
de três anos, não é concebida como um serviço social e educacional de interesse
público, muito menos é compreendida em suas possibilidades democráticas, isto é, “não
é entendida como a necessidade de fazer as crianças do povo entrarem nas formas
7
Em outubro de 2011, a SAE promoveu o seminário Cidadão do futuro: políticas para o
desenvolvimento da primeira infância.Para maiores discussões referente a este seminário indicamos
Campos, 2011.
7
simbólicas, no universo dos saberes socialmente construídos e das grandes obras-primas
da humanidade” (LAVAL, 2003, p. 308).
Entendemos que é fundamental, para educação infantil, recolocar este debate no
campo da política, de modo que o Estado, como sujeito político, tenha seu papel
reafirmado como responsável e mediador para que a relação entre direitos e justiça
social se estabeleça. Neste sentido, fundamental compreender os direitos sociais não
apenas como normas jurídicas, mas também como expressão e, ao mesmo tempo,
constituidores dos modos pelos quais as relações sociais se estruturam (TELLES, 2006).
De modo similar, importante compreender a igualdade como condição política, como
medida comum de equivalência, ou seja, como reconhecimento dos indivíduos como
diferentes e ao mesmo tempo como idênticos; sendo na singularidade de cada um que
podemos nos reconhecer semelhantes.
Conceituar esses conceitos no campo da política é fundamental também, para
superar as atuais concepções difundidas e que justificam a promoção de políticas sociais
seletivas e/ou focalizadas. Importante ainda compreender que o conceito de
desigualdade supõe uma distância que impossibilita a definição de uma medida comum;
medida que oportunizaria, no interior dos antagonismos e tensões, estabelecer uma regra
de equivalência entre as diferenças. Fundamental lembra que, esta medida comum de
equivalência é o que sustenta a ideia de que, a despeito de todas as diferenças e
antagonismos, há direitos que são universais, extensivos a todos independente de sua
condição política ou social (TELLES, 2006).
As “desigualdades sociais não podem ser entendidas exclusivamente na
perspectiva do direito de receber determinados bens e serviços” (FITOUSSI;
ROSANVALLON apud CAMPOS, 2003, p.191). Lembrando que as ações focais não
têm o poder, e não se propõe a alterar as relações sociais estabelecidas. Pelo contrário,
ações focais reforçam antigas relações de clientelismo, conformando os beneficiados em
sujeitos de gratidão, e substituem o acesso universal – direitos sociais, bens públicos –
por acesso seletivo, o qual possibilita tanto determinar quem irá receber, quanto quem
irá ser o provedor dos benefícios (CAMPOS, 2008).
Em uma área historicamentei marcada pela seletividade e segregação, uma vez
que, a defesa do direito universal das crianças à educação é acompanhado pela
discussão da “necessidade de atender, se não todos, pelo menos aqueles que precisam
mais”, mister retomar o debate político do direito das crianças. Na América Latina,
observamos inúmeras iniciativas internacionais guiadas pela lógica da focalização, bem
8
como, podemos acompanhar discussões que procuram defender um projeto de educação
infantil pública e gratuita perpassado pela necessidade de restringir esse direito às
crianças mais pobres, tendo em vista a disponibilização de recursos do Estado. Nesse
sentido, entendemos que a centralidade da infância no século atual é marcada por um
duplo jogo: por um lado a visibilidade das crianças e de suas misérias e, por outro, a
invisibilidade das condições econômico-sociais que as produzem.
Centralidade da Infância: a infantilização da pobreza
Nossas análises, em relação aos discursos orientadores da política educativa para
educação infantil na América Latina, indicam muitas similitudes e divergências nos
encaminhamentos regionais, em cenários marcados por contradições, entre avanços no
sentido do reconhecimento do direito, mas nem sempre na sua efetivação, em especial
quando se refere aos direitos das crianças menores de três anos.
Nesse contexto, em especial, nos países com governos de corte mais
democráticos, observamos ampliação nos índices de atendimento, no entanto, conforme
já demonstrado anteriormente, essa ampliação foi focalizada nas idades finais da
educação infantil; observamos também modificações nos modos de operar dos
organismos multilaterais na região. Isto é, as antigas formulações e análises
reducionistas das crianças e suas infâncias foram substituídas por recomendações
ancoradas em interpretações economicistas sobre os benefícios da educação infantil.
Este aspecto acaba por conferir centralidade na infância e no reconhecimento da
criança, no campo legal, como tendo direito à educação.
Entretanto, a efetivação desse direito se dá por duas vias: para as crianças
menores a indicação e incentivo é para o envolvimento das famílias, da comunidade,
isto é, ampliação deste atendimento via educação não formal; para as crianças com
idade mais próxima da escolarização a indicação e o movimento é de tornar este
segmento educativo obrigatório, medida esta justificada, com já discutimos, pela
imbricação de diferentes ordens discursivas: de justiça social, de garantia de direitos, de
combate a pobreza, de sucesso escolar, entre outros.
Essas orientações difundem-se largamente nos acordos e protocolos firmados
entre governantes e organismos multilaterais, sendo legitimadas e reproduzidas também
pelas chamadas “comunidade epistêmica” dando um sentido de unanimidade as ações
empreendidas. Observamos ainda a existência de programas e ações marcados pela
precariedade, em especial, para as crianças de menos idade e dos segmentos mais
9
pobres da população. Interessante observar que, apesar de todas as discussões, análises,
indicações a ideia de uma “política pobre para os pobres” não foi superada, antes, foi
“customizada” de modo que as justificadas para os programas dirigidos as crianças
menores são fundamentados em modernos artefatos tecnológicos que possibilitam, por
exemplo, a exploração do cérebro humano em suas muitas potencialidades.
Conforme discutimos anteriormente, sob a égide da ciência, a pobreza foi
individualizada e marcada como decorrente das incapacidades dos indivíduos. Em
decorrência a solução se encontra, sobretudo na educação, que quanto mais cedo ocorrer
a educação mais eficiente será. Há uma atomização da sociedade, na qual os indivíduos
precisam sobreviver por sua conta própria no mercado (UGÁ, 2004), e nesse contexto
se começa a falar em “infantilização da pobreza”. Posto que, as crianças não são apenas
em grande número, mas também são aquelas que, na maioria das vezes, possuem menor
capacidade de prover sua subsistência, sendo também mais vulneráveis as diversas
formas de violência e de opressão social.
Esta constatação certamente é inquestionável, no entanto de acordo com Campos
(2011c), torna-se, no entanto, objeto de forte apelo humanista, capaz de mobilizar a
solidariedade de diferentes atores sociais, engajando em campanhas humanitárias,
notadamente, aqueles cuja visibilidade social é capaz de arrastar, em programas
televisivos ou correntes de solidariedade, grandes segmentos da população.
A criança e sua educação adquirem sentido de urgência e um caráter estratégico,
defende-se que a educação, como já pontuamos, bem organizada e iniciada
precocemente, pode mitigar as marcas que a privação e seus efeitos, as vezes
duradouros, podem produzir sobre os desempenhos escolares e laborais futuros.
Entretanto, no meio de todas essas indicações, justificativas não se evidencia que, essa
lógica de política acaba por excluir alguns para poder incluir outros.
Considerações finais
As análises até aqui realizadas indicam a necessidade de se discutir o direito à
educação das crianças na perspectiva de direito social, e como tal, pressupõe um pacto
social realizado pela sociedade como um todo, a partir do que se define que o Estado
deve garantir uma proteção social, a todos os cidadãos (UGÁ, 2004). O
desenvolvimento atual da educação infantil na região, no que diz respeito a sua
universalização, se vê ameaçado pelo recrudescimento de perspectivas conservadoras e
10
excludentes, repondo em cena, a trágica tradição histórica da modernização
conservadora do país (CAMPOS, 2011c).
Consideramos ainda que, a universalização do direito, quando subjugada a
lógica da focalização produz um efeito perverso, pois acaba por incluir excluindo, ou
seja, pela disjunção entre quantidade e qualidade (expansão sem qualidade), como
também “encolhimento” do direito de outros, no caso das crianças de 0 a 3 anos. Entre
outras palavras, a adoção deste tipo de estratégia acaba por inaugurar novas formas de
segmentação e de focalização de políticas, que “longe de distribuir com “equidade” as
“oportunidades
educacionais”,
criam
novas
formas
de
discriminação
e
de
subalternização” (CAMPOS, 2011a).
Assim, fundamental considerar que a pobreza não é simplesmente resultado de
circunstâncias que afetam determinados indivíduos desprovidos de recursos que o
qualifiquem para o mercado de trabalho. Segundo Telles (1993), não é possível
qualificar a pobreza apenas como uma condição de carência, passível de ser medida por
indicadores sociais. Antes, a pobreza necessita ser compreendida como uma condição
de privação de direitos, que define formas de existência e modos de sociabilidade.
Num país marcado, historicamente, pela distribuição desigual dos benefícios
sociais, no qual, por longo período os benefícios sociais não eram tratados como direitos
de todos, mas como fruto de negociações de cada categoria com o governo
(CARVALHO, 2010); o tratamento das desigualdades sociais como diferenças
individuais é no mínimo perigoso.
Referencias Bibliográficas
BALL, Stephen J. Sociologia das políticas educacionais e pesquisa crítico-social: uma
revisão pessoal das políticas educacionais e da pesquisa em política educacional. In:
BALL, Stephen J.; MAINARDES, Jefferson (orgs.) Políticas Educacionais, questões e
dilemas. São Paulo: Cortez, 2011, p. 249-283.
Banco Interamericano de Desarrollo(BID). División de la Protección Social y Salud
Invertir en los primeros años de vida: una prioridad para el BID y los países de
América Latina y el Caribe. [Nota técnica elaborada por María Caridad Araujo e
Florencia López-Boo] 2011. Disponível em: http://www.iadb.org
CAMPOS, Maria Malta. Educação e Políticas de Combate à pobreza. In Revista
Brasileira de Educação. N. 24. Set/Out/Dez, 2003.
11
CAMPOS, Rosânia. Educação infantil e organismos internacionais: uma análise dos
projetos em curso na América Latina e suas repercussões no contexto nacional. Tese de
doutorado. UFSC, 2008, 215p.
CAMPOS, R. F. Políticas educativas para a Primeira Infância no Cone Sul – entre o
público e o privado. Florianópolis: CED/PPGE, janeiro de 2010a [Relatório de
Pesquisa].
______. “Política pequena” para as crianças pequenas? Experiências e desafios no
atendimento das crianças de 0 a 3 anos na América Latina. In: REUNIÃO ANUAL DA
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, 34., 2011a,
Natal. Rio de Janeiro: ANPED, 2011a.
______. Educação Infantil: Políticas e identidade. Revista Retratos da Escola. Brasília,
v.5, n.9, p.217 -228, jul./Dez. 2011b.
______. Educação Infantil e justiça social: direito da criança e dever do estado. XXVII
ENCONTRO NACIONAL DO MOVIMENTO INTERFÓRUNS DE EDUCAÇÃO
INFANTIL DO BRASIL . Salvador, 2011c (mimio).
CARVALHO, JOSÉ Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo cmainho. 13ª Ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
CEPAL/UNICEF. Pobreza infantil en América Latina y el Caribe. Santiago do Chile,
2010. Disponível em: www.eclac.org
CEPAL/UNICEF. Desafios: la pobreza infantil un desafío prioritário. Boletín de la
Infancia y Adolescencia sobre el avance de los objetivos del desarrollo del Milenio,
n.10, mayo de 2010a. Santiago, Chile: Cepal/UNESCO, 2010(a). Disponível em:
www.eclac.org.
CEPAL/UNICEF/ División de Desarrollo Social. Políticas de educación y su impacto
sobre la superación de la pobreza infantil, Serie Políticas Sociales No 157. Santiago,
Chile, 2010(b). Disponível em: www.eclac.org
CEPAL. Panorama social da America Latina 2010. Santiago, Chile, 2010. Disponível
em: www.eclac.org
MAINARDES, J. Reinterpretando os ciclos de aprendizagem. São Paulo: Cortez, 2007.
OEI. METAS EDUCATIVAS 2021: La educación que queremos para la generación de
los Bicentenarios. Madrid, Espanha: OEI, 2010. Disponível em www.oei.es
TELLES, Vera da Silva. Pobreza e Cidadania: dilemas do Brasil contemporâneo. IN
Caderno CRH 19. Salvador, 1993.
______. Direitos sociais: afinal do que se trata? 2ª reimpressão. Belo Horizonte.
Editora UFMG, 2006.
12
UNESCO/IIPE/OEI. Primera infância en América Latina: la situación actual y las
respuestas desde el Estado. [Informe sobre tendencias sociales y educativas en
América Latina 2009. Buenos Aires: IIPE/SITEAL, 2009.
13

Documentos relacionados

EDUCAÇÃO INFANTIL NA AMÉRICA LATINA: re

EDUCAÇÃO INFANTIL NA AMÉRICA LATINA: re “escolarizados”, em especial as etapas, níveis ou ciclos obrigatórios ficam sob a responsabilidade público-estatal; já ao contrário, a modalidade “não formal”, por ser considerada “não escolar”, na...

Leia mais