O princípio feminino em homens e mulheres

Transcrição

O princípio feminino em homens e mulheres
1
O resgate do feminino
A força da sensibilidade e ternura em homens e mulheres
Isabelle Ludovico
2
Dedicatória
A meu marido, Osmar, porque foi na alteridade da nossa relação que descobri o mistério
do masculino/feminino, a inteligência do coração, a coragem da vulnerabilidade...
À minha mãe, que me transmitiu o contentamento de ser mulher e soube construir com
meu pai uma relação prazerosa e multifacetada.
A meus filhos, que desenvolvem outras dimensões: Priscila resgata o prazer das
atribuições tradicionalmente femininas (cozinhar, costurar, bordar...), sem deixar de ser
desbravadora e original. Jonathan conjuga masculino com ternura e criatividade.
3
Agradecimento
A minha amiga e colega Rosângela Correia, pela leitura atenta do rascunho.
4
Sumário
Prefácio
Introdução
1. O princípio feminino
2. O princípio feminino na História
3. O princípio feminino e a espiritualidade
4. O princípio feminino como missão
5. A dança do masculino e do feminino na relação conjugal
6. O princípio feminino como atitude
7. O princípio feminino na alteridade
8. O princípio feminino como expressão
9. O princípio feminino como força
10. O princípio feminino como sabedoria
Uma palavra final
5
Prefácio
Difícil falar da obra de alguém tão íntimo. Principalmente porque este livro trata de
assuntos que são tão próximos de nós dois, da nossa individualidade como homem e
mulher, mas também de nossa convivência de mais de trinta anos de casados.
É preciso certa distancia para perceber o conjunto; quando estamos muito perto
vemos mais os detalhes. Por isso a tarefa de escrever este prefácio demorou alguns
meses depois do livro estar pronto. O que me chamou a atenção em tudo isto é que
Isabelle em momento nenhum me cobrou ou demonstrou ansiedade.
Primeiro expresso minha gratidão pela vida da Isabelle; com ela e nela tenho
visto as expressões mais fecundas e significativas da graça de Deus na minha
experiência humana.
Com ela entendi o significado de deixar pai e mãe, unir-se e tornar-se uma só
carne.
Nela contemplei o mistério da criatura, imagem e semelhança de Deus.
Com ela aprendi que um conflito pode desembocar em perdão e reconciliação.
Nela descobri o feminino humano, que me ajudou a melhor perceber o feminino
divino. E também a encontrar, no fundo da minha alma, aspectos por mim relegados,
como a criatividade e a ternura.
Neste livro estão presentes a honestidade e a aplicação da Isabelle. Honestidade
na sua pesquisa científica, na sua observação clínica e na sua erudição, frutos de muitas
leituras nas áreas teológica e psicológica. Os resultados de suas reflexões provêm de
uma mente arguta e sensível, e conseguem ser didáticos e comoventes.
Eu fui o primeiro grande beneficiado desta leitura; um caminho passo a passo
em direção à aventura de ser homem. E de integrar, no casamento e na vida pessoal,
estes polos complementares: o feminino e o masculino.
Eu sou da geração que viveu o movimento da emancipação feminina. Sou
testemunha desse período da história em que, depois de séculos de opressão e
discriminação, a mulher desfruta de conquistas, respeito e igualdade sem precedentes.
Como um grande lago represado, a emancipação feminina eclodiu em nossa
geração; ao lado das conquistas, o movimento feminista trouxe também alguns
desdobramentos negativos. Muitas mulheres, nesse processo, perderam a feminilidade e
se tornaram masculinizadas, autônomas e castradoras.
E assim nos casamos; Isabelle, francesa emancipada; eu, brasileiro culturalmente
machista.
Confesso que, no início, não sabia muito bem como lidar com esta supermulher
articulada e independente, e me percebia perplexo sem saber como agir. Ora tinha
ímpetos misóginos, ora me sentia frágil. Ela, por outro lado, mostrava-se forte, resoluta.
Percebemos que tínhamos um caminho a percorrer: o de encontrar a nossa verdadeira
identidade no secreto: ser homem e ser mulher; e aprender um com o outro a integrar e
não, a competir; não somente no casamento, mas também em nossa própria identidade
sexual.
Ao ler o livro de Isabelle, posso então ver quanto ele contém da nossa própria
história, desta relação construída ao longo dos anos, não sem dificuldade, mas sem
nunca desistir; com muitas desconstruções, alguns desencontros, mas com muita
alegria; aprendendo a abrir mão do poder na relação, para encontrar
complementaridade, compreensão, afetividade.
Estamos juntos nesta maravilhosa aventura humana de ser homem e de ser
mulher. Homem, que consegue integrar aspectos do feminino e mulher, que resgata a
dimensão do masculino. Sem perder a identidade, ao contrário, quanto mais nos
integramos, mais somos nós mesmos, mais somos um casal.
6
Estou feliz por prefaciar o livro da Isabelle. Boa leitura!
Osmar Ludovico da Silva
Cabedelo, janeiro de 2008
7
Introdução
Bem-vindo você que reservou este momento para me acompanhar nesta
reflexão. Alegro-me por esta oportunidade de encontro. Sente-se confortavelmente,
respire fundo, acolha esse seu corpo que registrou fielmente toda sua história. Presente
para você e para Deus, este momento torna-se um presente desfrutado e registrado.
Deixe de lado a tirania do ativismo para permitir-se usufruir um tempo de quietude e
gestação.
Ao distanciar-se da vida agitada, você poderá rever algumas escolhas e
identificar “a melhor parte”, de forma a tornar sua vida mais significativa. Eu costumo
ler com uma caneta à mão para poder sublinhar as passagens que encontram acolhida
em meu coração. De qualquer forma, esteja atento às repercussões das palavras em
você. Uma vez receptivo consigo, estará em boa companhia e, juntos, poderemos
plantar sementes de vida abundante.
Este livro é fruto de um caminho pessoal para transcender condicionamentos
culturais e alcançar o desenvolvimento integral, reconciliando em mim características
exacerbadas ou sufocadas por uma educação tipicamente francesa, que privilegia a
razão em detrimento da emoção. Na juventude, eu me afastei de Deus por considerá-lo
machista, sem perceber que o machismo é fruto da leitura preconceituosa das Escrituras,
e não uma praga de um deus vingativo.
Graças a Osmar, fui desafiada a buscar pessoalmente respostas para meus muitos
questionamentos, até que o Espírito Santo me fez cair de joelhos diante da revelação do
amor imensurável de Deus. De repente, a cruz que eu considerava uma loucura fez
sentido como o caminho determinado por Deus para denunciar o equívoco e a
presunção do homem de querer escolher o próprio caminho para chegar a Deus. O preço
pago para possibilitar essa reconciliação foi proporcional ao amor necessário para cobrir
a imensidão da minha própria arrogância.
À medida que eu conhecia Cristo através das Escrituras, descobria, comovida,
sua atitude respeitosa em relação às mulheres e sua insistência em pontuar para os
homens a dignidade e o valor delas. Assim, fui me apaixonando por um Deus que criara
o homem e a mulher para uma relação de parceria e respeito mútuo, como reflexo de
sua própria relação, na Trindade, que estende para cada um.
Casei com Osmar e fomos aprendendo, um com o outro, ao longo destes 33
anos. Como francesa, criada para confiar exclusivamente na razão, seguindo o famoso
“penso, logo existo” de Descartes, descobri que poderia consultar igualmente meu
coração e minha intuição. Aliás, as duas decisões mais importantes de minha vida,
entregar-me a Deus e casar, foram vitórias do coração sobre a razão, que insistia em
argumentar e encontrar empecilhos.
A partir daí, trilhei um longo caminho, tanto interior quanto relacional. Pude
perceber também, na prática clínica, o tamanho do estrago causado em adultos por uma
cultura machista e por experiências diversas de abuso físico, sexual, psicológico e até
espiritual.
Assim, este livro é um grito de alerta diante da grave crise relacional neste
mundo pós-moderno, que se reflete em todas as áreas da vida: familiar, profissional,
afetiva e social, colocando em risco até a própria sobrevivência pelo esgotamento dos
recursos naturais.
Este livro é também um convite para que homens e mulheres, movidos pelo
desejo de resgatar o projeto original de Deus, libertem-se de condicionamentos
mutiladores e resgatem em si o prazer de serem pessoas íntegras, completas, em
processo de restauração e, consequentemente, agentes de cura pessoal e de
8
transformação social.
Esse desafio só pode ser alcançado a partir de uma espiritualidade madura. E
espiritualidade, é preciso deixar claro, não é religião, mas um vínculo afetivo com Deus,
consigo e com o outro. “Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4:19), e esse
amor incondicional nos permite assumir nossa sombra, essa parte negada ou ignorada
do nosso ser, e olhar com ternura para nós mesmos, de forma a aceitar também o outro
com sua luz e sua sombra.
A Palavra afirma que a qualidade do amor pelo outro depende da qualidade da
autoaceitação, pois somos chamados a amar o outro como a nós mesmos (Mt 22:39).
Espiritualidade diz respeito, portanto, à possibilidade de construir, em primeiro lugar,
uma relação de intimidade com Deus, a quem temos acesso por meio do sacrifício de
Cristo e da revelação do Espírito Santo.
Na Bíblia, conhecer a Deus implica “amá-lo de todo coração, alma e
entendimento”. Quanto mais conhecer a Deus, mais o amarei, e só posso conhecê-lo por
meio do coração, pois ele transcende minha capacidade mental. É um mistério
insondável, incognoscível, inesgotável. Trata-se de construir uma relação que envolve
todo nosso ser, toda nossa capacidade racional e todas as emoções. Criados à imagem e
semelhança de Deus, somos chamados a uma comunhão trinitária.
Nossa identidade é, portanto, essencialmente relacional, já que somos fruto do
amor de um Deus trino. Aliás, apenas um Deus trino poderia ser amor, tendo outros de
igual dignidade para amar com um amor não simbiótico, mas aberto à pluralidade. Essa
relação pessoal permite duplo conhecimento: quanto mais descubro quem é Deus, mais
encorajada me sinto para reconhecer quem sou.
Diante do amor incondicional de Deus posso admitir minhas qualidades e meus
defeitos, reconciliar-me comigo e ir ao encontro do outro para abençoá-lo, em vez de
tentar usá-lo para suprir meu desejo de reconhecimento e afirmação. Como diz Osmar:
“priorizar os relacionamentos não é opção, mas o centro do evangelho”.1 E Carlos
Queiroz ecoa: “amar a Deus, construir relacionamentos comunitários profundos e servir
o próximo é a essência da vida cristã”.2
Assim, este livro não é apenas um grito de alerta, é também uma proposta. Não
apenas denuncia os equívocos das escolhas passadas, mas anuncia um caminho de
superação. Aponta algumas características que facilitam uma relação mais íntima com
Deus e que, por isso, precisam ser resgatadas. São características que foram
desdenhadas por uma sociedade que privilegia o consumismo (concupiscência dos
olhos), o hedonismo (concupiscência da carne) e o individualismo (soberba da vida). 3
É importante frisar, no entanto, que qualidades como receptividade,
sensibilidade, afetividade e doçura, tradicionalmente associadas à mulher, não são
exclusividade dela. Portanto, não se trata de fazer apologia à mulher, mas de redescobrir
aspectos que foram negados aos homens e que as próprias mulheres, movidas pelo
desejo equivocado de se equiparar aos homens, tendem a desprezar.
Espero que este livro toque não apenas sua capacidade mental, mas também
mobilize suas faculdades emocionais, intuitivas e sensitivas, de forma a integrar estas
reflexões ao âmago de sua existência, até que modifiquem sua maneira de ver o mundo
e de se relacionar.
Vamos começar considerando o princípio feminino e a evolução histórica da
relação homem/mulher, comparando-a com o projeto original de Deus. Então,
identificaremos as características do feminino que favorecem a compreensão empática e
1
Osmar LUDOVICO. Meditatio, p. 27.
Ser é o bastante: Felicidade à luz do sermão do monte, p. 36.
3
1João 1:16.
2
9
encarnada da revelação cristã.
10
Capítulo um — O princípio feminino
Uma grande contribuição do psicólogo Carl Gustav Jung foi mostrar que tanto o homem
quanto a mulher possuem um princípio masculino e um feminino. Ele chamou de anima
o princípio feminino no homem e de animus o princípio masculino na mulher. Leonardo
Boff pondera:
A grande tarefa civilizacional, talvez a mais urgente nos dias atuais, consiste no
resgate do princípio feminino. Chamo atenção para o fato de que não falo de
categoria feminino/masculino, mas de princípio feminino/masculino [...]. O
masculino não diz respeito somente ao homem, mas também à mulher. O
feminino não ganha corpo apenas na mulher, mas também no homem. Esse
feminino representa o princípio de vida, de criatividade, de receptividade, de
enternecimento, de interioridade e de espiritualidade no homem e na mulher.
Portanto, trata-se de um princípio inclusivo e seminal que entra na constituição
da realidade humana.
O resgate do princípio feminino junto com o do masculino propicia uma
nova inteireza à humanidade, ao transcender as distorções na relação homemmulher e ao ultrapassar o sexo biológico de pertença. Significa não somente
libertação dos humanos, especialmente da mulher, mas também da natureza e
das culturas não estruturadas no eixo do poder-dominação, equiparadas ao fraco
e ao frágil — portanto, ao feminino cultural. A recuperação do princípio
feminino permite um processo de libertação mais integral e verdadeiramente
includente, pois parte do feminino oprimido. O oprimido tem um privilégio
histórico e epistemológico pelo fato de possuir uma percepção mais alta que
inclui o opressor enquanto ser humano. O opressor exclui o oprimido, pois o
considera uma coisa ou um ser humano menor, subordinado e dependente. A
libertação deve começar pelo oprimido para acabar com o opressor. Só então
ambos se encontram sobre o mesmo chão comum, como humanos, construindo
juntos, na igualdade e na diferença, a sociedade e a história. 4
O resgate do princípio feminino, portanto, diz respeito tanto ao homem quanto à
mulher. Essa proposta que, para muitos, pode parecer ousada encontra eco na literatura
francesa de 16 anos atrás! Provém de uma terapeuta de família e de uma professora de
filosofia:
Nascemos num corpo sexuado, mas temos que descobrir que nosso psiquismo é
bissexuado. E, quanto mais aceitamos essa bissexualidade, mais evoluímos.
Na medida em que minha percepção e consciência me permitem enriquecer
meu encontro exterior com um encontro interior com minha anima ou animus
[...]não me inclino para você para me tornar você [...] eu não sou devorado por
você, eu não o devoro.
Cada parceiro é confrontado com a necessidade interior de entrar em contato
com sua anima ou seu animus e é tentado a buscá-lo fora enquanto não o
desenvolveu bastante interiormente.5
Para Joyce McDougall, todos os seres humanos deveriam fazer um trabalho de
luto entre a bissexualidade psíquica e a monossexualidade corporal.6
O resgate da bissexualidade psíquica é um processo ainda mais difícil para os
homens devido aos preconceitos machistas. Como diz Dan Kindlon, autor do livro
4
A força da ternura, p. 47.
Paule SALOMON, La sainte folie du couple, p. 210, 215, 253.
6
Anne Ancelin SCHÜT ZENGERGER, Ces enfants malades de leurs parents, p. 115.
5
11
Alpha Girls, fruto de uma pesquisa junto à nova geração: “As meninas hoje podem ser
duronas ou dóceis, flexíveis ou inflexíveis, de acordo com a necessidade”.7
Nesse aspecto os meninos estão em desvantagem porque ainda se envergonham
de explorar características femininas. Há, no entanto, alguns precursores, como Carlos
Queiroz, que dedica seu livro Ser é o bastante a sua mãe e a sua tia por lhe ensinarem
que, na vida, basta SER. Ou seja, o aspecto do feminino é revelado pela própria vida, e
foi assim que elas lhe ensinaram. Já o masculino em nós tende a racionalizar e ensinar
por meio do discurso.
Na realidade precisamos reconciliar esses dois princípios, como fez Jesus, que
não apenas ensinou, mas viveu o que ensinou. A fé cristã não se resume em acatar uma
reta doutrina acerca de Deus. A verdade não é uma declaração verdadeira, mas o próprio
Cristo, Logos de Deus, palavra encarnada. O cristianismo é um estilo de vida a partir de
um vínculo com Deus, como Senhor e Salvador. Só existe quando se traduz em
transformação interior e atitude frente à vida, no gesto simples do cotidiano.
Em outras palavras, cristianismo requer a disposição de caminhar em direção à
“plena varonilidade de Cristo”, de perseverar nesse processo de santificação que nos
torna cada vez mais parecidos com ele. Nossa peregrinação espiritual vai da persona,
esse personagem construído para agradar, ao self, o eu verdadeiro criado à imagem de
Deus e deformado pelo pecado cometido contra mim e por mim: o mal que me fizeram
e o mal que eu fiz a mim e aos outros em reação ao mal que me fizeram.
O caminho de volta para casa passa por esse processo de restauração do projeto
original de Deus através do Espírito Santo que habita em mim. É a bondade de Deus
que me permite tirar as máscaras, me desnudar e reconhecer minha verdade, para
desenvolver a luz e confessar e deixar a sombra. O melhor de mim aflora e desabrocha
diante de um Deus que me acolhe incondicionalmente.
O ser humano como ser sexualmente neutro não existe; trata-se de um conceito
abstrato que se sustenta apenas em teoria. Nascemos com características biológicas
masculinas ou femininas, com pênis ou com útero. Mas o ser humano é
primordialmente um ser cultural, e não natural.
Nossa herança cultural, reforçada até por Freud, tende a considerar o macho o
ser humano propriamente dito, e a fêmea um ser derivado dele e a ele subordinado.
Assim, a construção do masculino e do feminino é um produto cultural, fruto da
elaboração psicossocial das diferenças biológicas. No amplo universo de
potencialidades herdadas por cada ser humano, seja homem ou mulher, algumas serão
trazidas à consciência e estimuladas, enquanto outras continuarão relegadas ao
inconsciente.
A fixação de qualidades caracteristicamente femininas ou masculinas é uma
clara consequência da divisão de papéis convencionada pela sociedade. Com
toda certeza, ela não decorre necessária e naturalmente da constituição corporal,
pois existem sociedades em que as mulheres desenvolvem, segundo nossos
critérios, características “masculinas”, e os homens, características “femininas”
[...]. Podemos exemplificar com as famosas amazonas, que atrofiavam o seio
direito para atirar as flechas com mais eficiência. O mito foi personificado entre
tribos do Amazonas (originalmente rio das Amazonas), em que as mulheres
combatiam com tanta intrepidez quanto os homens. Em certas tribos indígenas,
são os homens que ficam de resguardo depois do parto enquanto as mulheres
vão caçar. Assim, é impossível deduzir diretamente das funções corporais
masculinas e femininas qualidades de caráter ou formas comportamentais
7
Revista Época, de 26/03/2007.
12
“naturais e permanentes”.8
O ser humano é, além disso, um ser essencialmente relacional. Assim, a
definição do que é ser homem ou mulher não pode ser respondida, a não ser na
alteridade com o outro. Na perspectiva sistêmica, que focaliza as relações, podemos
perceber que o ser humano se move em função do contexto, das atitudes e expectativas
do meio. Assim, a sociedade vai estimular nos meninos alguns comportamentos
considerados “masculinos”, como o famoso “homem não chora” e, por contraste, as
meninas serão incentivadas a desenvolver comportamentos complementares. Nesse
caso, ela é encorajada a chorar por dois. Ele é cabeça e ela coração. Ela sente por ele e
ele pensa por ela.
Esse condicionamento
mutilou ambos, aprisionando-os num roteiro
estereotipado que os privou do equilíbrio saudável e estimulante. Uma homenagem à
mulher, publicada no Jornal do Brasil, em 1994, por ocasião do Dia Internacional da
Mulher, estampava a foto de uma atriz francesa loira, de olhos azuis, colocando para a
mulher brasileira um padrão de beleza europeu e excludente da miscigenação. Além
disso, pontuava: Ser mulher é: ter a cabeça bem aberta, encher os olhos de lágrimas,
seguir seus próprios instintos, enfrentar o mundo com um sorriso e nunca perder o
charme.
O mais incrível é que esses paradigmas eram considerados elogios. Fiquei
pensando o que se diria do homem: Ser homem é: saber o que deseja, controlar as
lágrimas, seguir sua cabeça, enfrentar o mundo com competência e nunca perder a
pose!
Podemos citar também o famoso poema de Victor Hugo, que transitou na
Internet, mostrando sua aceitação atual:
O homem é forte pela razão.
A mulher é invencível pelas lágrimas;
A razão convence, as lágrimas comovem.
Ou seja, o homem desenvolve a capacidade de raciocinar e a mulher, de
manipular!
O homem é capaz de todos os heroísmos.
A mulher de todos os martírios,
O heroísmo enobrece;
O martírio sublima.
Ou seja, o homem é corajoso, vence e conquista; a mulher se sacrifica, se
entrega e abre mão!
O homem pensa.
A mulher sonha.
Pensar é ter cérebro,
Sonhar é ter na fronte uma auréola.
Mais uma vez, o homem enfrenta a realidade; à mulher só resta fugir na fantasia.
Para compensar tanta abnegação, a mulher precisa ser endeusada!
Como se vê, a discriminação da mulher é compensada pelo título honorífico de
“rainha do lar” e pelo mito da mãe perfeita, atualizado a cada Dia das Mães por
8
E. S. GERT ENBERGER e W. SCHRAGE, Mulher e homem, p. 9.
13
declarações enfáticas sobre o amor materno. Provérbios como “No coração de mãe,
sempre cabe mais um” ilustram tal idealização, que, por sua vez, exige um sacrifício,
pois “ser mãe, é padecer no paraíso”! “Cadê” o pai? Até parece que os filhos são apenas
das mulheres e que a responsabilidade de amá-los e cuidar deles é exclusividade delas!
É fácil perceber como essas exigências foram restritivas e deformadoras tanto
para os homens quanto para as mulheres. A mulher tem de ser boazinha e sedutora, o
homem, forte e determinado. Ela deve silenciar a mente e concentrar-se na aparência
para alcançar padrões de beleza muito distantes de sua herança familiar. Ele precisa
reprimir as emoções e ser vencedor. Ambos só conseguem o reconhecimento social
amputando uma parte essencial de si mesmos, abrindo mão da inteireza e dependendo
um do outro para se complementarem.
Existe uma imagem famosa que compara homem e mulher a anjos aos quais
falta uma asa e, por isso, só podem voar abraçados. Outras imagens, menos românticas,
falam da tampa da panela, da outra metade. São metáforas que enaltecem a dicotomia
como ideal, mas Deus não criou seres pela metade, se não o que seria dos solteiros!
Essa codependência gera expectativas e exigências que acabam minando a relação. Uma
poetisa expressou esse desencontro e o anseio por restauração:
Uma nova aliança
Meu corpo geme
Com as dores deste parto,
o nascimento de um novo homem.
Eu te peço companheirismo,
E me ofereces o machismo.
Eu te peço cooperação,
E me ofereces exploração.
Eu te peço carinho,
E me ofereces o falo.
Eu te quero homem,
E te ofereces macho.
Eu te quero emoção,
E te ofereces razão.
Eu te ofereço caminhada,
E tu preferes acomodação.
Eu quero a alegria da partilha,
E tu vives como uma ilha.
Acorda, homem!
Estende-me a mão,
Deixa-me ajudar-te
A encontrar o teu coração. 9
O homem não é, no entanto, o único responsável por essa dicotomia. É a mulher
que cria filhos machistas e perpetua o modelo. Aliás, ela oscila entre a profissional
ambiciosa que “trabalha como um homem” e a menina dependente que se sente vítima.
As duas negligenciaram a beleza e a força do feminino, que se nutre da interioridade, da
relação com Deus, da reconciliação com a natureza, do desabrochar da intuição e da
criatividade.
O princípio feminino e masculino está em cada um, homem e mulher, para um
casamento interior harmonioso e frutífero que permite uma relação reconciliada com o
outro, diferente e complementar.
9
Maria Helena Oliveira CARDOSO. Canto de mulher, p. 41.
14
Deus fez pessoas inteiras que se unem para mútuo enriquecimento, e não para se
tornarem bengala uma da outra. Aliás, quanto mais unidas, mais podem desenvolver a
individualidade. E aí reside o mistério: tornar-se uma só carne sem perder a identidade.
Sim, porque o amor dá segurança para aventurar-se além das fronteiras, ampliar os
horizontes, desenvolver facetas até então atrofiadas que são agora fertilizadas pela
relação com o outro, diferente, único, expressão exclusiva da Imago Dei.
Deus criou a mulher para ser “auxiliadora” do homem. Em português esta
palavra remete à ideia de “auxiliar”, levando à errônea interpretação de um ser
subalterno. Essa leitura focaliza, de forma unilateral, a submissão da mulher em relação
ao homem, enquanto somos chamados, na verdade, a submeter-nos uns aos outros no
temor do Senhor.
No entanto, a despeito dessa interpretação incorreta, a palavra “auxiliadora”,
ezer, não traz nenhuma conotação hierárquica, já que, em outras passagens (p. ex. Dt
33:7,26,29), ela é atribuída ao próprio Deus, como auxiliador do homem. Então não se
trata de hierarquia, mas de uma contribuição única.
“Auxiliadora” tampouco significa preencher o vazio do outro, pois há no ser
humano um desejo de amor absoluto, incondicional, que só Deus pode suprir. Trata-se,
sim, de reconhecer o chamado para cada um desenvolver seu potencial de forma
equilibrada e abrangente, reconciliando mente e razão, sensações e intuição, com
sabedoria, isto é, humildade e dependência de Deus, uma vez que o temor do Senhor, ou
seja, a reverência da criatura diante do Criador, é o princípio que permite crescer nessa
direção.
É, portanto, contemplando o Senhor, como por espelho, que somos
transformados a sua imagem. É admirando-o pelo que revela de si que desejamos
desenvolver em nós aquilo que enxergamos. Deus nos criou macho e fêmea, mas
tornar-se homem e mulher é um processo, fruto da contemplação do Senhor, que nos
transforma à sua imagem.
Não nos chama a atenção apenas a atitude de Jesus ante o feminino,
mas, sim, o feminino em Jesus. O Jesus dos Evangelhos viveu uma integração
profunda e harmônica entre sua masculinidade e sua anima, entre o masculino e
o feminino que compunham sua humanidade. Sua ternura, compaixão e
delicadeza revelam um amor que assume desejos, gestos e expressões não só
paternos, mas também maternos e fraternos. 10
10
Maria Clara BINGEMER. Experiência de Deus em corpo de mulher.
15
Capítulo dois — O princípio feminino na História
O significado de ser homem ou de ser mulher tende a variar tendo em conta épocas e
culturas. Simone de Beauvoir concluiu: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.11 E,
denunciando o machismo da cultura ocidental, a escritora francesa Benoîte Groult
acrescentou:
É preciso sarar de ser mulher; não de ter nascido mulher, mas de ter sido criada
mulher num universo de homens; de ter vivido cada etapa e cada ato de nossa
vida através do olhar dos homens, conforme os critérios dos homens. 12
Como símbolo ilustrativo da nossa herança cristã, podemos citar o sermão 322
de Agostinho: “Homem, tu és o mestre, a mulher é tua escrava, Deus assim o quis”. É
dele também a conclusão: “A mulher sozinha não é imagem de Deus; porém, o homem
sozinho é imagem de Deus tão plena e completamente quanto a mulher junto do
homem”.
Tomás de Aquino, por sua vez, complementou: “Como indivíduo, a mulher é um
ser medíocre e defeituoso”.13 No Concílio de Mâcon, em 485, foi discutido se a mulher
podia ser qualificada como criatura humana; e a votação para concluir se tinha alma só
lhe foi favorável com uma pequena margem.
O patriarcado não oprimiu apenas as mulheres; mutilou também os homens. É
significativo que, para obrigá-lo a sufocar sua afetividade e sensibilidade, os ritos de
passagem de menino para homem sejam geralmente cruéis. Citemos como exemplo a
ida a um prostíbulo para início da vida sexual.
A fim de dominar a mulher, o homem precisou romper sua relação com o
feminino. A queda instaurou uma relação de desconfiança com ela, com Deus e com os
demais homens. Essa atitude predatória manifesta-se inclusive na relação com a
natureza. A dicotomia, fruto da queda, é diabólica no sentido literal, pois nos dilacera. A
queda foi movida pela ânsia de poder. Reconciliar-se com Deus e tornar-se discípulo é
abrir mão do poder e, em troca, tornar-se apto a servir.
O homem e a mulher, no entanto, podem voltar a ser um e a desfrutar a parceria,
respeitando as diferenças e aprendendo com elas. Olhar-se mutuamente com admiração
faz desabrochar o melhor do outro. Assim como ocorre na união sexual — a concepção
de um novo ser —, a união do masculino e feminino também gera algo novo: um
vínculo tão sublime que remete ao mistério da aliança de Deus com a humanidade, ao
transcendente, ao sagrado. Essa aliança deu-se em Jesus, que redime o masculino e o
feminino.
Razão versus emoção
Segundo o Paul Tournier,14 a Renascença foi responsável por um grande evento
psicológico, uma escolha: o descrédito do sentimento em benefício da razão, do corpo
em benefício do intelecto, da pessoa em benefício das coisas. Mais ainda, houve uma
espécie de sufocamento da afetividade, sensibilidade, emoções, ternura, benevolência,
respeito ao outro, relacionamento pessoal, comunhão mística e, por extensão, da mulher,
a quem todos esses termos estão ligados por associação de ideia espontânea.
As mulheres foram sistematicamente impedidas de ingressar no mundo do saber.
11
Le deuxième sexe 1, p. 285-286.
Ainsi soit-elle, p. 34.
13
Suma teológica XCII:1.
14
A missão da mulher.
12
16
Mais recentemente, até Freud definiu a mulher a partir do homem, a quem ele
considerava norma, padrão, parâmetro e referência. Ele associou feminilidade a
passividade, narcisismo, instinto, desejo e prazer, enquanto a masculinidade foi
associada ao ideal humano, à razão, sublimação, moralidade e saúde mental.
Freud construiu a identidade feminina a partir do paradigma da falta, da inveja
do pênis, sem considerar que seria mais lógico primeiramente o homem sentir falta dos
seios que o amamentaram e do útero que o carregou. A primeira referência da criança é
a mãe e, por comparação, o menino poderia se perceber incompleto. Mas aqui não se
trata de lógica, e sim de interpretação da realidade feita por um adulto, e, por sinal, um
homem. Freud olhou para a mulher de forma preconceituosa.
Assim, numa sociedade machista, que valoriza o homem, a mulher é induzida a
desejar esse símbolo de poder, enquanto os seios são símbolos de amor e doação. Ela
quer o status e a preferência que a sociedade confere ao sexo masculino.
Essa problemática está presente, de certa forma, em casa. A vida do homem e da
mulher é determinada, em grande parte, pelas condições de existência do grupo primário
ou família. A industrialização gerou uma mudança estrutural no seio da família,
separando definitivamente moradia e local de trabalho, e subtraindo da família a
autonomia econômica.
A dicotomia entre vida pública (fora de casa), reservada ao homem, e vida
privada (no lar), a cargo da mulher, acabou se tornando uma armadilha que limitou a
realização de ambos. Enquanto o exercício privado da religião passou a ser “coisa de
mulher”, o homem concentrou as funções e os deveres jurídicos e sociais. Mulheres e
crianças costumavam ir à missa, enquanto os homens se encontravam no bar. As
mulheres ficaram confinadas ao lar e nem eram consultadas a respeito de questões que
envolvessem o bem comum.
Descartar a participação da mulher teve consequências drásticas para o mundo
ocidental, tão aperfeiçoado, “desenvolvido”, poderoso, eficiente, mas também tão frio,
duro e violento. Um mundo onde são vencidas doenças controláveis por meio de estudo
objetivo, mas onde se multiplicam as neuroses ligadas à falta de amor; onde foram
conquistadas muitas melhorias de ordem prática, mas onde se tem deteriorado a
qualidade dos relacionamentos, que pertencem à esfera dos sentimentos.
Assim, vivemos a ambiguidade de ter UTIs cada vez mais sofisticadas, enquanto
aumenta o número de cardiopatias, revelando a angústia do ser humano, sobrecarregado,
estressado pela violência, pela competição profissional, pela solidão. Cresce
assustadoramente o número de divórcios e de pessoas solitárias. Os consultórios estão
abarrotados de pessoas com síndrome de pânico, depressão, crise existencial.
A crise nos relacionamentos
No mundo da tecnologia, da instantaneidade, das novidades fugazes, as pessoas
trocaram o convívio pessoal pela internet, que permite comunicação com o mundo
inteiro, enquanto nem sequer conhecemos nosso vizinho. Recebemos mensagens lindas
sobre amizade, temos muitas relações virtuais, mas poucos amigos verdadeiros.
Encontramos muitas pessoas, mas poucos conhecem nosso coração. Por ter poucos
vínculos, acabamos exigindo deles, e principalmente do cônjuge, que supram nossa
carência afetiva.
Ao exacerbar tal expectativa, geramos frustração e desencontro, pois queremos
uma relação intensa, apaixonada, como nos filmes românticos. Mas a vida real não é
assim. E os desencontros nos fazem sentir fracassados. Por ser imediatistas, não
percebemos que a intimidade requer confiança e se constrói aos poucos, com paciência
e dedicação, com flexibilidade e capacidade de perdoar. Separamo-nos, achando que o
17
outro é o culpado, em vez de perceber nossa própria contribuição; assim, acabamos
repetindo a mesma dinâmica com o próximo eleito do coração.
As relações, portanto, tornam-se descartáveis. Um exemplo claro e atual é o
famoso “ficar”, que na verdade é um paradoxo. Não “se fica” com alguém, mas passa-se
de um ao outro, sem compromisso nem envolvimento emocional.
A crise conceitual na sociedade ocidental
A crise atual decorre de uma visão de mundo fragmentada e excludente, que, como
vimos, separa corpo e mente, razão e emoção, matéria e espírito, privilegiando sempre o
primeiro elemento destes pares. A necessidade imperativa de reorientação da sociedade
já é reconhecida até pelos próprios cientistas.
Os físicos das primeiras décadas do século XX, ao mergulharem cada vez mais
fundo no interior da matéria em busca dos segredos do átomo, tiveram de romper com a
física clássica newtoniana e com o pensamento cartesiano, racional e analítico, para
conseguir entender o universo físico não visível e não palpável: o universo das
partículas subatômicas, objeto de estudo da física quântica. Ao evidenciar que o átomo
se manifesta ao mesmo tempo como onda e como partícula, percebeu-se que a realidade
não é linear e excludente, mas sistêmica, ou seja, existem vários níveis de realidade.
A lógica ocidental não dá conta de realidades mais complexas, como o campo
social ou político, onde ela age como lógica de exclusão: direita ou esquerda, feminino
ou masculino, branco ou preto. A perspectiva da complexidade, por sua vez, permite
enxergar que A e não-A estão unidos num nível superior de realidade.
Assim, faz sentido que, em Cristo, não haja mais homem e mulher, servo e
mestre. O amor é inclusivo, considera o ser humano, a essência de cada um, além das
diferenças biológicas e sociais. Os diferentes níveis de realidade são acessíveis por meio
de diferentes níveis de percepção.
Numa percepção mais abrangente, homem e mulher são unidos e
interdependentes na construção de uma humanidade nova, que reflete seu caráter de
criaturas à imagem de Deus. Ambos contribuem e fertilizam-se mutuamente,
aprendendo um com o outro, de forma a desenvolver um potencial até então reprimido
pelo preconceito social e pela luta pelo poder, que gerou exclusão e amputação.
Passar da compreensão linear e excludente para a compreensão sistêmica e
inclusiva é uma mudança fundamental de paradigma, que permite perceber a
complexidade da teia da vida. Nela, homem e mulher têm seu lugar, assim como a
própria natureza, que foi explorada de forma predatória e hoje está à beira do colapso.
Novo paradigma sistêmico
Nossa compreensão da natureza passou por três grandes etapas: a natureza mágica, a
natureza máquina e a morte da natureza. A ciência nos forneceu ferramentas que
ampliaram a capacidade dos órgãos dos sentidos. Em seguida, nos permitiu um
deslocamento horizontal e, mais tarde, vertical.
Com o mundo quântico, vimos que a exploração vai do visível para o além do
visível, os objetos microscópicos. Perceber o mundo quântico requer primeiro um
silêncio interior desconcertante, percebido como desestabilizador.15 É um saber que
integra teoria e experiência. A palavra “teoria” encontra, assim, seu sentido etimológico,
o da “contemplação”. A lógica linear é substituída pela causalidade circular aberta: “o
caminho se faz ao andar”, e instaura a era dos caminhantes, contrapondo-se à era dos
comerciantes, que acirrou a violência e gerou ricos cada vez mais ricos e pobres cada
vez mais pobres.
15
Basarab NICOLESCU. O manifesto da transdisciplinaridade, p. 71.
18
Fez-se necessário integrar interioridade e exterioridade, masculino e feminino,
contemplação e ação. A visão sistêmica ampliou o paradigma mecanicista por meio de
uma abordagem inter-relacional. A Teoria Geral dos Sistemas apontou características
comuns a todos os sistemas vivos e propiciou uma visão do mundo como um conjunto
de sistemas interdependentes.
Elaborada por Ludwig von Bertalanffy, por volta de 1950,16 a teoria afirma que
todo sistema vivo é essencialmente dinâmico e aberto, a fim de se adaptar às mudanças
internas e externas. Cada unidade básica obedece a um paradoxo: quanto maior sua
integração no sistema, maior sua autonomia em relação a ele.
Essa nova percepção sistêmica inclui a dimensão do desconhecido, do
inesperado e do imprevisível (que obriga a reconhecer o lugar de Deus). Diante do
crescimento exponencial da tecnologia frente a um ser interior cada vez mais
empobrecido pela priorização do material e diante da complexidade do nosso mundo e
do risco gerado pelo capitalismo selvagem, a visão ecológica gera uma revisão dos
valores da sociedade, imprescindível também para que se evite a destruição do planeta.
A mudança conceitual, de um modelo mecanicista para uma percepção
sistêmica, leva a uma mudança existencial, passando do intrapsíquico para o interrelacional, do individualismo excessivo para a interdependência, do crescimento
predatório para o desenvolvimento sustentável, da competição para a cooperação, da
quantidade para a qualidade, do modelo autoafirmativo inspirado no “penso, logo
existo!”, de Descartes, para o modelo integrativo na rede de interconexões.
Afirma-se a percepção de que somos interligados e que nossas ações têm
múltiplos desdobramentos, muito além do famoso binômio estímulo/resposta. Caminhar
da linearidade reducionista e fragmentada para a complexidade holística, da estabilidade
para a instabilidade e da objetividade para a intersubjetividade nos torna mais humildes.
Desenvolver uma leitura sistêmica que considere a rede de interconexões requer,
portanto, integrar conhecimentos antropológicos, sociológicos, etnológicos, ecológicos,
psicológicos, entre outros. Face ao desequilíbrio entre o desenvolvimento tecnológico e
o colapso das relações interpessoais, a Teoria Geral dos Sistemas aponta a importância
de alguns elementos básicos da ecologia: interdependência, reciclagem, parceria,
flexibilidade, diversidade e sustentabilidade.
Em seu livro A teia da vida, Capra declara: “A sobrevivência da humanidade
dependerá de nossa alfabetização ecológica, da nossa capacidade para entender esses
princípios da ecologia e viver em conformidade com ele.17
Numa reunião patrocinada pelo CNPq e o Banco Mundial, em 1987, cientistas
do mundo inteiro concluíram:
Conceitos como espírito, intuição e emoção terão de ser incluídos na visão
ocidental do mundo se a civilização moderna quiser superar a profunda crise em
que se encontra, onde se misturam inflação, desemprego, contaminação de
alimentos, desastres ecológicos e violência social crescente, múltiplas facetas
de uma crise única: uma crise de percepção. 18
A emancipação do homem e da mulher
A mudança de paradigma gerada pela crise do modelo clássico e patriarcal teve
repercussões no campo da relação homem/mulher. Num primeiro momento, o
movimento feminista levantou a bandeira legítima da luta pela igualdade de direitos
16
Teoria geral dos sistemas.
P.
18
Jornal do Brasil, 10/05/1987.
17
19
com o homem, mas, para provar seu valor, acabou instaurando uma espécie de
competição com ele.
Com isso, a mulher conquistou muitos espaços tradicionalmente reservados
apenas aos homens, mas se tornou muitas vezes uma caricatura dele, inclusive na forma
de exercer liderança e até de se vestir. Só recentemente a mulher está alcançando
autoestima suficiente para promover a afirmação de valores e expressões do feminino.
Tendo provado sua capacidade de desempenhar papéis tradicionalmente masculinos, ela
pode afinal redescobrir e resgatar qualidades que teve de inibir para ser bem-sucedida
social e profissionalmente.
Ao acolher sua sensibilidade, afetividade e intuição, a mulher pode não apenas
reabilitar essa dimensão relacional, como ajudar o homem a integrá-la a sua própria
existência. Trata-se de características que foram atribuídas socialmente à mulher, mas
que fazem parte da essência de todo ser humano, já que fomos criados para amar. A
competição homem/mulher pode então ceder lugar à complementação e cooperação, em
que cada um aprende com o outro de forma a desenvolver aspectos até então censurados
ou reprimidos.
A psicologia analítica, desenvolvida por Jung, dá sustentação a essa dinâmica,
mostrando a necessidade de integrar o masculino e o feminino em cada ser humano.
Trata-se, para o homem, de desenvolver a sua anima, enquanto a mulher precisa integrar
o seu animus. Esses aspectos tendem a ficar inconscientes, e, como tudo o que é
inconsciente, são projetados e vividos através da identificação com as pessoas do sexo
oposto. Ao longo da vida, essas projeções vão sendo eliminadas à medida que tais
aspectos vão-se desenvolvendo no próprio indivíduo. Nos contos de fadas, a mulher
espera passivamente que um homem a desperte. Hoje, a mulher percebe que seu
despertamento não é externo, mas interno.
Portanto, assim como o corpo contém biologicamente genes masculinos e
femininos, também no plano psíquico temos reações, atitudes e comportamentos que
pertencem a esses dois polos. A anima tem a função de facilitar a relação entre a
consciência do homem e seu inconsciente.
Quando uma figura do inconsciente é negada, rejeitada ou ignorada, ela se volta
contra nós e mostra seu lado negativo. Quando ela é aceita, compreendida e
alvo de relacionamento, seu lado positivo tende a aparecer. 19
A anima é o arquétipo da vida. Ela desperta no ser masculino respeito renovado
pelo mundo do coração, pelos relacionamentos, pela alma, pela busca de sentido
existencial, pela dimensão transcendente da vida. O masculino é o princípio de
diferenciação mais voltado para a objetividade pragmática, o lado esquerdo do cérebro,
enquanto o feminino é o princípio de agregação, mais voltado para a percepção
gestáltica e subjetiva, global, o lado direito do cérebro.
O processo de desenvolvimento ou individuação, portanto, consiste em ordenar
o consciente e o inconsciente em torno do self, que é o núcleo central da psique. Esse
processo se dá através da conscientização da sombra, bem como do animus, pela
mulher, e da anima, pelo homem.
Durante o período de onipotência, no auge do movimento feminista, em que a
mulher virou a mesa, repeliu o papel de Amélia e quis provar sua capacidade de
desempenhar todos os papéis que foram privilégio do homem, a relação homem/mulher
ficou abalada, e o príncipe encantado virou sapo.
Em vez de promover a libertação requerida por elas, o movimento promoveu a
19
John A. SANFORD. Os parceiros invisíveis, p. 85.
20
exacerbação das características do princípio masculino. Acuados, os homens se
protegeram dessa mulher fálica enveredando pela homossexualidade ou por relações
superficiais e descompromissadas, o famoso “ficar”.
A mulher passou a exigir seus direitos, inclusive na área sexual, reivindicando o
direito ao orgasmo, transformando assim um presente numa cobrança assustadora para o
homem. Ela foi estudar e trabalhar, acumulou as atribuições em relação a filhos e casa
com as exigências da carreira profissional, acarretando sobrecarga, estresse e malhumor pela dupla jornada de trabalho.
O homem, destituído do trono e das prerrogativas de provedor, sentiu-se
ameaçado e foi se afastando, magoado. A princesa virou bruxa! A supermulher ficou só
e foi sendo confrontada com as próprias limitações.
Iniciou-se, então, o resgate do homem/mulher real, sem realeza, ambos despidos
das nobres roupagens institucionais e idealizadas. Os títulos de rainha do lar e herói
foram então percebidos como engodos, armadilhas que custaram muito caro, pois
exigiram comportamentos estereotipados que não respeitavam os anseios e talentos
individuais.
De um lado, a mulher não tinha poder de decisão, era apenas escrava das
múltiplas e inesgotáveis atribuições de uma mãe e dona de casa, mas que não lhe
permitiam ser dona de sua própria vida. De outro lado, o homem tinha de arcar, sozinho,
com o sustento da família, tendo a obrigação de ser bem-sucedido e render-se às
exigências do mercado para não correr o risco de ficar desempregado.
Assim ambos ficaram à mercê de terceiros e privados das compensações de cada
lado. A mulher não tinha o prazer de contribuir para a construção da sociedade e o
homem não convivia com os filhos, nem tinha acesso à cozinha e à decoração da casa.
A nova mulher, mais consciente de suas aspirações e de seus limites, brincou de
esconde-esconde com o novo homem, ambos desejosos e temerosos do encontro. À
medida que ela foi tendo coragem para encarar os próprios medos, desejos e conflitos,
passou a aceitar também os do homem e favoreceu o encontro com ele. Assim, a
emancipação da mulher levou à emancipação do homem, que perdeu uma escrava, mas
reencontrou uma companheira na cumplicidade, na ternura, na estima mútua.
Essa nova mulher visou não apenas à parceria em pé de igualdade com o
homem, mas à restauração de valores femininos, como intuição, perspicácia e
imaginação. Entendeu que o caminho da individuação, válido para ambos, supõe a
busca do desenvolvimento harmonioso de todos os aspectos da personalidade:
pensamento e sentimento, sensação e intuição.
Tendo se libertado da tutela do homem e da tirania da heroína, a mulher
percebeu que sua única obrigação como ser humano é SER HUMANA ! É usar a
criatividade para trilhar novos caminhos em busca da saúde integral, escapando assim à
compulsão à repetição e aos papéis estereotipados, que são sintomas de patologia.
As mulheres fazem agora uso da palavra, expressam e compartilham desejos e
dúvidas, formam grupos de troca, de comunhão, de aprendizagem. Demonstram grande
capacidade de aprendizagem e curiosidade aguçada pelos progressos já experimentados.
Essa nova mulher permite que o “verdadeiro homem”, ou machão, seja
substituído pelo “homem de verdade”, ou real, um homem que pode se permitir ser
também frágil, sensível, carente, inseguro, ambíguo. Um homem que também está
tateando em busca da verdadeira identidade, saindo da toca afetiva onde se tinha
refugiado e dispondo-se a usufruir os espaços da casa que a mulher vai cedendo: o
prazer de cozinhar, de curtir os filhos sem precisar ser o bicho-papão: “Você vai ver
quando seu pai chegar!”.
21
A nova relação homem/mulher
Agora, homem e mulher podem experimentar, juntos o exercício da liberdade na
dialética
aprendizado/ensino,
vivência/elaboração,
mudança/tradição,
vida
interior/partilha,
individuação/intimidade,
público/privado,
emoção/razão,
solitário/solidário, objetivo/subjetivo, individual/social. Só pode ensinar quem está
disposto a aprender. Trata-se de educar um ao outro, no sentido etimológico do termo:
extrair, desentranhar a essência humana pelo resgate da complementaridade
masculino/feminino.
Nesse momento, as mudanças não são lineares, mas, como uma dança, com
avanços e retrocessos, dois passos adiante e um para trás. A mulher ocupa cargos
públicos, até no poder executivo, e o homem cuida mais das crianças, ajuda nas tarefas
de casa, vai às reuniões da escola, leva-as ao parque. A mulher começa a ler jornal e o
homem, romances e a escrever poesias. Ela está ampliando o horizonte além dos limites
domésticos, e ele está encontrando na casa um novo espaço de lazer e aconchego. Ele se
interessa pela decoração da casa e frequenta aulas de culinária.
Há necessidade de muito diálogo para entender o processo de cada um, respeitar
o ritmo de cada um, perceber a herança que cada um carrega. É um caminho individual
que tem grandes repercussões na relação, ou seja, exige solitude, um espaço para
enxergar-se por inteiro, e aproximação, um espaço para enxergar o outro e o ponto de
vista do outro. Ambos pisam em terras virgens, e cada um precisa sinalizar claramente
quando se sente invadido ou pressionado pelo outro.
Essas mudanças individuais já são percebidas no nível social: a mulher está
presente em todas as esferas do poder público, mesmo em redutos antes exclusivamente
masculinos, como o Supremo Tribunal Federal! A multiplicação de ONGs é, em grande
parte, iniciativa de mulheres que partem de alguma experiência prática para uma
atuação mais profissional.
Os homens, por sua vez, questionam sua trajetória profissional e se permitem
mudar de rumo. Abrem espaço na agenda para cursos de poesia e até para cuidar da
aparência física. Percebe-se na prática que a iniciativa da mudança é, em geral, da
mulher, mas o homem tem a prerrogativa de acolher a mudança ou resistir-lhe. Assim,
sua resposta ao movimento iniciado pela mulher é determinante para o futuro da relação
e para a possibilidade de crescimento mútuo. Se resiste, ele tende a regredir, podendo
até se tornar violento e destrutivo. Pode também adoecer ou se isolar, aprisionado na
condição autoimposta de vítima.
A relação com Deus
A qualidade da relação homem/mulher depende da qualidade da relação com Deus. Em
seu livro O futuro de uma ilusão, Freud profetizava o desaparecimento da religião à
medida que a ciência respondesse a todos os questionamentos do homem.
Já nessa época, seu amigo e discípulo, pastor Oskar Pfister, respondeu20 que a
ciência não poderia atender à necessidade espiritual do homem. A característica
principal da pós-modernidade é justamente a desilusão em relação à ciência e esse
descrédito deu margem à uma verdadeira onda mística, na qual o homem busca
experiências sobrenaturais para apaziguar seus questionamentos existenciais.
Uma vez amenizada nossa onipotência, que chegou ao apogeu quando Nietzsche
tentou esvaziar o céu ao declarar: “Deus está morto”, devemos ter o cuidado de não cair
num relacionamento primitivo, irracional e quase animista com o sobrenatural. Em
certas igrejas, o louvor é mais uma catarse coletiva que um culto a Deus. O foco está
nas sensações de bem-estar da plateia, levada ao delírio por um dirigente carismático e
20
Die Illusion einer Zukunft [A ilusão de um futuro].
22
por músicas com declarações irreais.
Enquanto a tendência atual é tentar substituir a razão pela experiência, em busca
de êxtases para suprir a necessidade de sentido, nós, cristãos praticantes, precisamos
voltar aos fundamentos do evangelho, construir uma relação íntima com o Criador e
viver os valores do Reino, de amor, justiça e paz. O grande equívoco religioso é ter um
discurso muito maior que a prática. O testemunho fica enfraquecido pela falta de
coerência entre o que pregamos e como vivemos.
Alguns homens e mulheres, precursores, já abriram caminho para um
relacionamento criativo de parceria e união, respeitando as próprias características e
dispostos a aprender um com o outro. Assim, cada casal pode encontrar seu equilíbrio
distribuindo responsabilidades segundo as aptidões da cada um.
A grande maioria, entretanto, permanece presa ao modelo hierárquico,
estereotipado, que determina as responsabilidades segundo o sexo. Esse machismo nega
o mandato cultural dado por Deus a ambos para, juntos, governarem a terra. O modelo
divino entra em choque com os valores da sociedade e se torna cada vez mais
insustentável, consolidando-se pelo aumento assustador do número de divórcios em
nosso meio.
A resistência a questionar esse modelo machista é sintoma da nossa dificuldade
de lidar com as diferenças e mostra que continuamos submissos à maldição da queda,
em vez de nos apropriarmos da libertação que Cristo conquistou por nós na cruz. Nosso
comportamento revela que o referencial continua atrelado à queda, em vez de se pautar
na salvação e na restauração do projeto original, em Cristo.
Em síntese, propomos uma evolução que é, na realidade, um retorno ao
princípio. Em face dos estragos causados pela dominação do homem sobre a mulher, o
que gerou um mundo tecnologicamente desenvolvido, mas cada vez mais desumano,
somos convidados a voltar à essência do que significa ser homem e ser mulher,
conforme o projeto original de Deus.
23
Capítulo três — O princípio feminino e a espiritualidade
A essência do princípio feminino não é percebida pelo estudo intelectual e acadêmico.
Trata-se de um mistério do qual podemos nos aproximar pela linguagem simbólica e
metafórica. Deus criou duas luzes: uma para reger o dia e outra, a noite. O sol,
associado ao princípio masculino, é o soberano do dia, da consciência, do trabalho e da
realização, do entendimento e da discriminação, o Logos. A lua, o princípio feminino, é
a soberana da noite, do inconsciente, do instinto, o Eros.21
Conforme o costume judaico do Shabat, é prerrogativa da mulher acender as
velas ao cair do sol da sexta-feira. A mulher é aquela que dá à luz. A vela ilumina com
suavidade o ambiente, mostrando com precisão o próximo passo. Não é como a luz
cósmica e masculina do sol, que ilumina tudo ao mesmo tempo.
Diante de algum desafio, a maneira feminina — da anima no homem ou da
mulher — é esperar até que algo dentro dela lhe conceda os meios, o caminho e a
coragem. Ela é receptiva, não passiva. A passividade é a deformação dessa
característica, pois o princípio feminino, como o masculino, é ambivalente. Assim,
algumas mulheres abdicam da autonomia e entregam as rédeas de sua vida a um
homem. É o famoso “complexo de Cinderela”, que leva algumas mulheres a regredir
logo que encontram alguém que as assuma. Com isso, vão murchando e tornando-se
apenas a sombra daquele a quem delegam a responsabilidade por sua felicidade. Esse
processo geralmente acaba em frustração, seja porque o homem se cansa e as abandona,
seja porque ele impõe sua vontade unilateral.
O aspecto luminoso, maternal, nutriente e fertilizador do feminino não consegue
esconder o lado sombrio da voracidade, que precisa ser redimido. Todo Édipo,
representando o menino apaixonado pela mãe, tem uma Jocasta possessiva que alimenta
essa simbiose e requer exclusividade.
A lua é também sinal de instabilidade emocional, que se manifesta na mulher
“lunática” subjugada por emoções violentas e ambivalentes. Sua vulnerabilidade pode
suscitar um algoz e levá-la a desenvolver mecanismos de defesa, como manipulação e
sedução. Sua pessoalidade transforma-se facilmente em maledicência. Algumas revistas
sustentam-se com base nessa atração por fofocas.
A Bíblia menciona ainda a mulher “rixosa”, que se queixa, murmura, reclama
sem tomar providências, enquanto o homem é mais propenso a agir. Na relação com
Deus, ao ter de renunciar à possessividade, a mulher amadurece e se transforma,
aprendendo a amar incondicionalmente.
O desejo de possuir, próprio do Eros, é então substituído pela capacidade de
amar com o amor Ágape, um amor desinteressado, altruísta, que deixa o outro livre, que
não quer controlar nem mudar o outro, mas o aceita como é. Os filhos, à medida que
crescem e se tornam independentes, também nos desafiam a ampliar nossa capacidade
de amar, quando fazem escolhas diferentes das nossas, quando nos questionam e
rejeitam, como na adolescência.
Um feminino atrofiado e um animus superdesenvolvido produziram essa
supermulher, arrogante, caricatura do machão. Lia Luft adverte:
Tudo, menos ambicionar ser a mulher-maravilha: ela é inevitavelmente uma
chata. Somos assolados pela propaganda dessa figura assustadora: um Monte
Everest de perfeições, linda e competente, sensual e grande profissional,
independente mas disponível, romântica mas vigilante, devotada, abnegada,
vítima [...]. Não parece alguém que a gente possa amar, com quem se possa dar
21
Maria Esther HARDING. Os mistérios da mulher, p. 68-69.
24
risada, jogar conversa fora, namorar, aconchegar-se, fazer descobertas
desafiadoras ou sofrer perdas dolorosas, caminhar pela vida, até, quem sabe,
envelhecer.22
De fato, essa mulher consegue êxito profissional, mas é execrada e solitária. Sua
vida afetiva é um fracasso, pois constrói relações competitivas que desqualificam o
outro. Nessa dinâmica de luta pelo poder, de dominador/dominado, de algoz e vítima, é
impossível dar lugar ao amor, que pressupõe igualdade e reciprocidade,
companheirismo e respeito.
Como vimos, o estigma que pesa sobre a mulher não é recente. A supremacia do
homem se deu à custa da desvalorização da mulher. O homem se encarregou, sozinho,
da construção do mundo e confinou a mulher à esfera privada, gerando uma dicotomia
empobrecedora para ambos. A mulher se anulou para atender às expectativas do
“príncipe encantado”, dedicando-se ao cuidado dos filhos e da casa.
Esse trabalho não remunerado resultou na dependência econômica, que se
transferiu para o plano emocional. Reproduzindo o modelo da própria mãe, a mulher
confundiu gradualmente sua identidade com a função materna. Até seu marido passou a
chamá-la, com frequência, de “mãe”. Assim, quando os filhos se tornam independentes
(apesar dela, diga-se de passagem), ela tem de enfrentar a pior crise: a “síndrome do
ninho vazio”.
A essa altura, a relação conjugal se dissolveu e foi substituída pelos papéis
parentais, que já não têm razão de ser. O marido investiu sua energia no trabalho e
enfrentou desafios que o levaram a crescer, enquanto ela estagnou num universo
restrito, delimitado pelos famosos quatro “C‟s”: casa, comida, criança e criada.
Restaram-lhe a solidão, frustração e ressentimento pela falta de gratidão do marido e
dos filhos.
Essa Amélia vivia à sombra do marido por medo de se aventurar fora do casulo
da casa, que servia de proteção, mas também de prisão. Seu potencial foi tolhido
enquanto desenvolvia mecanismos manipuladores para compensar a exigência de
submissão, estabelecendo assim, com o marido, uma relação de mútua desconfiança.
A partir da década de 1960, esse modelo foi rejeitado por muitas mulheres. Elas
reivindicaram a emancipação e partiram em busca de novos horizontes. Na ânsia de
compensar o tempo perdido, a mulher quis desempenhar todas as funções ao seu
alcance.
Essa mulher-maravilha inaugurou um período em que a luta pela autorrealização
se travou no terreno da competição com o homem: universidade, profissionalização,
mas também dupla jornada de trabalho. Não deixou de ser mãe e dona de casa, talvez
para provar a si mesma ser capaz de brilhar em todas as áreas e conciliar todos os papéis
ou quem sabe por exigência do parceiro, que, em mensagem dupla, incentivou suas
conquistas profissionais desde que o equilíbrio familiar não fosse alterado.
Assim, ela fez o possível para se encaixar no mundo frio, objetivo e racional
construído pelos homens, abdicando, para isso, de parte fundamental de sua
personalidade: ternura, subjetividade, sensibilidade, instinto, empatia. Conseguiu êxito
profissional em detrimento da relação amorosa e do bem-estar dos filhos, sem
mencionar o estresse que a acompanha. Tendo investido muito na autorrealização,
sentiu-se, pela segunda vez, frustrada e solitária. Passou radicalmente da passividade e
resignação para uma atitude onipotente.
O resultado é um mundo doente, à beira da destruição, porque o ser humano, na
ânsia de poder, rompeu a comunhão com Deus e com o outro. A união entre o homem e
22
Revista Veja, de 06/09/2006.
25
a mulher transformou-se em desconfiança e acusações, que os levaram a desenvolver
vários mecanismos de defesa. O homem aproveitou a supremacia física para dominar a
mulher e confinou-a ao espaço privado, enquanto tratava de construir o mundo. Por
isso, hoje estamos padecendo do excesso do princípio masculino em relação ao
princípio feminino.
O mundo é extraordinariamente desenvolvido do ponto de vista tecnológico e
pragmático, mas carece de solidariedade e afeto. A mulher virou a mesa, mas
conquistou seu lugar no mundo em detrimento do princípio feminino, tornando-se uma
caricatura do masculino.
É tempo de a mulher se reconciliar com sua feminilidade e de ajudar o homem a
descobrir sua anima, o seu lado feminino, para que ambos integrem em si próprios esses
dois princípios. Agora a mulher alcança a grande oportunidade de verdadeira libertação,
mas, para tanto, precisa encarar os conflitos e os antagonismos com que convive
interiormente e do que tentou fugir pelo ativismo desenfreado. Eles são frutos da
coexistência interna de modelos modernos e tradicionais: 1) a dependência de um
poder-saber externo (pai, marido, médico), apesar da descoberta de seus próprios
recursos; e 2) a expectativa incoerente de uma atitude dócil e frágil na relação afetiva,
contrastando com a força e a determinação necessárias na vida profissional.
É um momento de reflexão que pode dar início a uma nova fase integradora:
resgatar a relação com o parceiro e os filhos, e renunciar à competição em favor da
cooperação e do companheirismo. Ao encarar corajosamente medos, limitações, raivas,
desejos, a mulher poderá também respeitar os mesmos sentimentos no homem.
Depois de confundir a identidade com a função de mãe e, posteriormente, com o
desempenho profissional, a mulher quer ser reconhecida não pelo que faz, mas pelo que
é. Ela não visa apenas à igualdade de direitos com o homem, mas a restauração dos
valores “femininos”. E o processo de restauração passa pela reconciliação da criatura
com o Criador.
A história do povo de Deus é uma história de andanças. Somos peregrinos
chamados a nos desinstalar. Assim foi com Abraão e Sara, com José e Maria. Sem
propriedade, sem bagagem, sem outro projeto que o de ir, em abertura incondicional, ao
encontro de Deus, de si mesmo e do outro.
Viver no Reino de Deus é uma escolha diária, e ela parte da espiritualidade que
restaura a relação com o Deus trino: inspirada em Jesus, na força do Espírito Santo e
sob o senhorio de Deus. Um Deus que integra em si mesmo o princípio masculino e
feminino, e nos ajuda a descobrir a integralidade de nosso ser, com seus aspectos ativo e
passivo, expressivo e receptivo.
Nossa caminhada é movida pela fé encarnada e coerente, vivenciada no gesto
simples do cotidiano, que resgata vínculos de intimidade com Deus, conosco e com o
próximo. Uma fé que nos torna mais humanos, conscientes de nossos limites, mas
também dos recursos da graça manifesta na cruz.
Quero, com Maria Clara Bingemer, “reafirmar a indissolubilidade e vocação, da
mulher, como mistério. Participando do mistério inerente a todo ser humano, a mulher
tem uma maneira própria de viver e de „ser‟ esse mistério”.23 Ela leva consigo essa
maneira misteriosa quando se propõe a falar sobre o mistério de Deus.
À teologia, que muitas vezes se viu carente de mistério por excesso de
racionalidade, a mulher hoje traz a água renovada de sua estreita aliança com a
misteriosa fonte da vida e do ser, dando testemunho de que o beber dessa fonte,
acessível a homens e mulheres, transforma-se em fonte de água viva, jorrando para a
vida eterna.
23
O mistério de Deus na mulher, p. 91.
26
O mistério, no entanto, só pode ser apreendido com temor e reverência. Ele é
percebido pela intuição, sensibilidade, empatia e paixão, qualidades tidas como
essencialmente femininas, o que não significa que apenas mulheres têm acesso a Deus.
Ele é facilitado quando as mulheres resgatam a feminilidade e quando os homens
conseguem integrar sua anima.
Em uma sociedade machista, tal proposta pode parecer extremamente
ameaçadora para os homens que temem o fantasma do homossexualismo. No entanto,
machismo e homossexualismo são duas caricaturas correlatas, consequência de uma
relação deturpada com o feminino. Trata-se, sim, de um convite aos homens de
seguirem o exemplo de Cristo, que se permitiu chorar, acolheu crianças e estabeleceu
um diálogo profundo com as mulheres. Ao aceitarem tal convite, os homens
descobrirão, e desfrutarão um lado muito precioso de sua personalidade, que inclui
criatividade, poesia e ternura, além de poder aprofundar o vínculo de intimidade com
nosso Criador e Salvador.
A mulher, em contrapartida, precisa da relação dialética com o masculino para
levar adiante o processo de individuação. Por meio do animus, a faceta masculina da
alma feminina, ela pode desenvolver qualidades inerentes ao homem: sua capacidade de
realizar e ordenar, formular, discriminar e generalizar. Pode aprender a ser seletiva,
determinada e assertiva; a enxergar um horizonte mais amplo e a ser luz, não apenas na
esfera das relações íntimas, mas na construção do mundo. “O componente masculino da
personalidade, tanto masculina quanto feminina, lida com o mundo exterior; o feminino,
com o interior”.24 Portanto, ambos são tão imprescindíveis quanto os dois lados da
mesma moeda.
É na relação amorosa que a mulher, pelo fato de ser mulher, diz ao homem que
ele é homem; do mesmo modo, o homem desperta na mulher a consciência de ser
mulher. O amor é revelação recíproca das diferenças. À medida que a relação entre eles
se aprofunda e desenvolve, o homem vai percebendo aspectos de sua anima: seus
sentimentos, sua sensibilidade. Bem-aventurados aqueles que desenvolvem uma atitude
de respeito pelo outro, ao mesmo tempo diferente e complementar, pois assim
conseguem integrar em si os aspectos masculinos e femininos, Eros e Logos, amor e
verdade, tornando-se pessoas íntegras, completas.
A autonomia da mulher, portanto, não gera isolamento. Ao invés disso, permite
relações maduras fundamentadas no desejo do enriquecimento mútuo. O outro não é
uma bengala, alguém que precisa ser manipulado para preencher nossos vazios; é, antes,
um ser livre com quem podemos construir vínculos afetivos saudáveis e prazerosos.
Nossa identidade básica não se origina no desempenho. Deixar a correria e o
ativismo para perceber-nos na presença de Deus permite-nos descobrir o que somos na
ociosidade. O que sobra de nós quando deixamos de lado os múltiplos papéis e quando
ninguém precisa de nós. Perceber nossa pequenez diante de um Deus soberano agride
nosso narcisismo onipotente. Mas, quando reconhecemos não merecer o acolhimento
amoroso de Deus, somos tomados por uma alegria sem par, por nos saber amados
incondicionalmente.
O valor do homem e da mulher já não depende de esforços para atender
expectativas alheias, mas se fundamenta na sua identidade de filhos criados e perdoados
por Deus. A Bíblia lembra que nada pode nos separar desse amor, apenas nós mesmos,
quando nos afastamos dessa identidade em busca de outras fontes de reconhecimento,
que acabam por nos fazer retornar à relações escravistas.
Temos o desejo de amor absoluto e incondicional, de pertencimento e de
transcendência que só Deus pode preencher. Todo êxito humano, toda tentativa de
24
Robert A. JOHNSON. She, p. 65.
27
preencher esse desejo sem Deus trazem sentimento de frustração e vazio.
Em Deus podemos viver numa dimensão que nos liberta da tirania do
desempenho e nos conecta com a eternidade. Em vez de correr atrás do tempo e usá-lo
para fugir da morte, somos convidados a fazer parte de um Reino eterno, que começa
aqui e acontece onde a vontade de Deus é respeitada.
Deus abençoou o sétimo dia e fê-lo santo. Nesse dia, criou a quietude, a
celebração e a paz. Mais que uma pausa, é uma restauração. Deus não descansou porque
estava exausto ou sem inspiração para criar. Ele se permitiu desfrutar sua criação.
Significa dar um basta a nossa voracidade e experimentar nossa suficiência em Deus. É
a nossa vocação: “não apenas um interlúdio, mas o clímax do viver”,25 uma prévia das
bodas do Cordeiro, uma iniciação à apreciação da vida eterna. As coisas criadas nos seis
primeiros dias são boas e muito boas; o sétimo é santo. Nos seis primeiros dias focamos
a natureza; no sétimo, o Criador da natureza.
O que somos depende do que é para nós o Shabat, que por sua vez ajuda a passar
da mentalidade de escravo para a de filho. Ele reforça nossa identidade espiritual, que
nos livra do domínio das coisas e das pessoas. Supridos por essa comunhão, podemos ir
ao encontro das pessoas e usufruir as coisas sem criar dependência. No lugar, em nós,
onde Deus habita, estamos sãos e salvos, livres da pressão dos outros, livres da
compulsão do ter e do fazer, livres para sermos nós mesmos.
O anelo pelo Shabat revela o anelo pela vida eterna. Deseje a intimidade com
Deus em vez de cobiçar os bens do próximo. A verdade em que acreditamos não é um
dogma ou uma relação de preceitos, mas é Cristo que nos convida a conhecer seu pai
por meio dele. Nessa relação, vamos desenvolvendo a imagem de Deus em nós. Esse é
o processo de santificação, que ocorre a partir do Shabat e permeia toda a nossa
existência. A consciência da presença acolhedora de Deus passa a acompanhar-nos em
outros dias da semana, capacitando-nos a desenvolver nosso potencial, enxergar as
circunstâncias na perspectiva da eternidade e saborear a vida abundante que Cristo veio
nos dar. Assim, podemos ser férteis e agentes de restauração!
25
Abraham Joshua HESCHEL. O shabat, seu significado para o homem moderno, p. 21.
28
Capítulo quatro — O princípio feminino como missão
A Palavra é clara ao afirmar que Deus criou o homem, macho e fêmea, a sua própria
imagem (Gn 1:26). Deus não apenas os criou mulher e homem; ele também os projetou
e designou um para o outro. Assim, o homem e a mulher são iguais ontologicamente,
isto é, na essência, mas diferentes e complementares na sexualidade. Adão se assume
varão tão logo reconhece a mulher, criada para livrá-lo da solidão. Ao chamar a mulher
de Hischa, ele a define como igual, companheira, irmã, alguém que se percebe na
relação, à medida que o outro é um espelho que evidencia semelhanças e diferenças.
Nossa identidade vem do reconhecimento do outro como alguém diferente de
nós. Assim, o bebê se enxerga primeiro no olhar da mãe, e sua autoestima vem da
emoção transmitida pelo olhar que o saudou. Mas ele passa a se entender por gente, a
dizer “eu”, quando se percebe separado da mãe. Igualmente, a mulher não é apenas
parte do homem, seu osso, sua outra metade, mas um ser completo, edificado por Deus
para ser auxiliadora do homem, para enriquecê-lo com suas características.
Ao reconhecer a mulher como semelhante e diferente, o homem pode enxergar a
si mesmo.26 “[...] Estavam nus, e não se envergonhavam” (Gn 2:25). De que poderiam
se envergonhar a não ser da diferença? O pecado original, simbolizado pelo fruto
mordido, é tido geralmente como sexual. Mas, embora tenha consequências em nível
sexual, ele é primeiramente um desejo de ser “como Deus”, ou seja, uma luta com Deus
pelo poder, que desencadeia uma luta pelo poder entre o homem e a mulher. Eles
passam a tentar dominar um ao outro, em vez de, juntos, dominarem a terra.
“A árvore do bem e do mal” pode ser traduzida literalmente por “a árvore do
bem e do mal conhecer”. O conhecimento a serviço do desejo de onipotência se torna
uma arma para controlar o outro e para benefício próprio. A proibição de comer do fruto
da árvore do conhecimento é um limite a minha voracidade, que permite ao outro
existir. A árvore se torna árvore porque a experiência do limite coloca em xeque minha
onipotência, abrindo espaço para a existência do outro, a quem já não posso controlar e
impor minha vontade.
Ela é também a árvore da palavra que substitui o objeto e permite o diálogo. A
palavra permite conhecer o que está além de nós. A proibição preserva o lugar do outro,
da alteridade. O Deus trino é um ser relacional que oferece ao homem e à mulher a
possibilidade de desfrutar essa comunhão, com ele, e um com o outro. Somos chamados
a fazer parte dessa comunidade e a participar do mistério da unidade que respeita a
diferença.
Assim como o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um sem perder suas
características. Também o homem e a mulher tornam-se uma só carne sem que um
absorva o outro, sem fusão simbiótica, sem perder a própria identidade. Quanto mais
unidos, mais podem ser eles mesmos. Deus não procura controlar nem possuir. Ele é
Emanuel, “Deus conosco”.
É importante observar, ainda, que “a especificidade” do casal humano não se
fundamenta no “sede fecundos, multiplicai-vos”, que foi dito primeiro aos animais (Gn
1:22), mas na capacidade de diálogo.27 No entanto, os olhos do homem e da mulher,
abertos a partir de um conhecimento mau, motivado por desconfiança, ambição e inveja,
lançam um sobre o outro o olhar da concupiscência, que os leva a “comer com os
olhos”, ou possuir.
Adão e Eva “comeram” o limite que lhes teria permitido respeitar a diferença.
Sentindo-se invadidos pelo olhar possessivo do outro, eles passaram a esconder com
26
27
Marie BALMARY. Le sacrifice interdit, p. 251.
Christianne M EROZ. Des femmes libres, p. 67.
29
folhas a nudez subitamente devassada. Por isso, a queda deturpou a relação entre o
homem e a mulher, e a relação de ambos com a natureza. A relação se tornou
ameaçadora, pois a diferença complementar, vista a partir de um “conhecimento mau”,
tornou-se falha, gerou frustração e desejo de possuir. Isso despertou o medo de ser
engolido ou usado pelo outro, bem como vários mecanismos de defesa, entre eles a
projeção: “a mulher que me deste por esposa, ela me deu da árvore, e eu comi” (Gn
3:12).
Eva comeu e depois deu do fruto ao homem: não foi uma refeição
compartilhada, em contraste com a última Ceia, quando o homem comeu porque Deus
lhe ofereceu. O ato foi resgatado. O que havia sido usurpado foi doado. O pão foi
abençoado e partido, o sangue foi vertido: símbolos da aliança que restaura sem
prender.
Em Cristo, homem e mulher são chamados à submissão mútua. O modelo
hierárquico foi substituído pelo modelo de corpo e interdependência. Assim, os cristãos
se tornam “corpo de Cristo”, em que cada membro, como no corpo humano, é
importante e depende dos demais. Cada cristão recebe dons específicos para a
edificação do corpo.
Ao abrir mão do desejo narcisista de fazer do outro nossa imagem, podemos ser
enriquecidos com sua contribuição específica e enriquecê-lo com a nossa. A unidade
com o outro, que respeita as diferenças, é manifestação de Cristo em nós, como está
escrito em Gálatas 3:28.
O princípio feminino na Bíblia
Em vez de falar de feminino como sinônimo de mulher, dissemos entender como
feminino o princípio que se encontra de forma latente no homem e que é assumido pela
mulher conforme padrões reforçados culturalmente. É interessante notar, por exemplo,
que as virtudes cristãs de humildade, obediência, discrição e serviço são prestigiosas
para a mulher, não para o homem! Maria foi exaltada por essas características, enquanto
coragem, determinação e discernimento profético foram ignorados.
A Bíblia traz para a mulher uma mensagem de libertação que, no entanto, tem
sido usada, muitas vezes, para reforçar padrões culturais distorcidos. Desse modo,
apesar de a Palavra afirmar, em Gálatas 3:28, a unidade ontológica entre homem e
mulher, a igreja se valeu de um conselho específico do apóstolo à igreja de Corinto (cf.
1Co 14:34), para silenciar a mulher.
Se, na época de Cristo a participação das mulheres podia ser motivo de
escândalo, hoje é sua omissão que o mundo considera anacrônica. Em vez de a mulher
cristã encabeçar o movimento de libertação da mulher, de forma a questionar certas
reivindicações equivocadas das feministas, como, por exemplo, o aborto e o
lesbianismo, elas continuam a reboque da sociedade.
Hoje, homens e mulheres cristãos de todo o mundo dispõem-se a fazer, juntos,
uma leitura renovada da Bíblia, despida dos preconceitos sexuais, de forma a resgatar os
valores do reino. Eventos como o Encontro Anual da Fraternidade Teológica LatinoAmericana, cujo tema em 1992 foi Masculino/feminino: em busca de saúde e
obediência, pontuam a contribuição recente da teologia elaborada por mulheres e a
importância de ouvir uns aos outros em favor de uma perspectiva mais abrangente e
mais alinhada com o princípio bíblico da igualdade.
A Bíblia aponta algumas características desse princípio feminino, presentes na
relação entre Deus e a mulher, e evidenciadas de forma concreta nos encontros de Jesus
com algumas mulheres. As Escrituras também apontam Cristo como modelo de
santidade para homens e mulheres. Sim, Jesus, que chora sobre Jerusalém e com a
30
morte de Lázaro, que pega as crianças no colo, que deixa João reclinar a cabeça em seu
peito, que permite a uma mulher beijar-lhe os pés, que tem medo e fica angustiado, que
privilegia relacionamentos e intimidade.
Vemos também outros homens trilharem esse caminho, tanto no Antigo como
no Novo testamento. Davi escreveu poesias, chorou a morte de Jônatas, comparou-se a
um pássaro sob as asas da mãe, reconheceu seus medos, suas dúvidas e inseguranças,
pegou sua alma no colo e a ninou como a mãe faz com o filho. Paulo comparou-se, em
seu ministério de mentoria, à mulher que sofre dores de parto.
À luz dessa releitura da Palavra, somos convidados a reconciliar o masculino e o
feminino em cada um de nós. O homem, que desenvolveu traços socialmente
estimulados de racionalidade e pragmatismo, precisa complementar sua identidade com
aspectos emocionais e relacionais, tradicionalmente atribuídos à mulher. A mulher, que
foi privada de exercitar sua capacidade intelectual e de autonomia, precisa reconciliar-se
com sua capacidade afetiva e intuitiva, sem deixar de usufruir os espaços conquistados
recentemente e que lhe permitem exercitar sua inteligência racional.
Ambos, homem e mulher, podem hoje reconciliar esses polos, desenvolvendo,
por exemplo, a inteligência emocional, que revela um diálogo construtivo entre razão e
emoção. Alguns já evidenciam essa possibilidade de integração. Nelson Mandela, o
estadista que privilegia afeto e paz por meio de reconciliação. Tereza de Calcutá, cuja
liderança, organização e determinação suscitaram devoção, sensibilidade e compaixão.
No Brasil, Zilda Arns e Betinho, que soube despertar cidadania e solidariedade, ao
denunciar um sistema injusto, sem esconder a própria fragilidade.
É pena que não tenhamos muitos exemplos dessa estatura nos meios
evangélicos. É claro que existem muitas pessoas anônimas dignas de referência. Mas
isso revela também nossa resistência em trilhar esse caminho.
A igreja é, paradoxalmente, talvez o último refúgio desse machismo opressor,
que amputou homens e mulheres, numa relação estereotipada que enfatiza a submissão
da mulher e favorece muitas formas de abuso físico, emocional e sexual por parte do
homem. O líder evangélico trata de esconder as fraquezas, de mostrar-se forte, decidido,
engajado em projetos que garantam o crescimento numérico da igreja, sem dar a devida
atenção aos cuidados pastorais, olho no olho.
O modelo masculino promovido na igreja permanece parcial e machista. Exigese da mulher obediência às determinações da liderança e realização das funções num
modelo hierárquico muito distante do modelo de Corpo revelado na Palavra, que supõe,
como vimos, submissão mútua e interdependência. O resgate do respeito mútuo,
conforme o projeto original de Deus, permite a eclosão enriquecedora das diferenças
individuais complementares a partir de uma base comum que equilibra razão e emoção,
intuição e sensações. É o caminho do coração, que restaura o primeiro amor, a
capacidade de se apaixonar por esse Deus insondável e de encontrar nossa verdadeira
vocação, que é essencialmente relacional.
Na prática, ansiamos por intimidade e aceitação, mas só seremos capazes de
desenvolver essa qualidade de afeto se buscarmos em Deus a fonte que nos preencherá e
fará transbordar de forma a alcançar o outro.
31
Capítulo cinco — A dança do masculino e do feminino na relação conjugal
Assim como o embrião guarda características femininas e masculinas, o princípio
feminino e o masculino estão presentes em cada um de nós. Um aspecto é inibido
enquanto o outro tende a ser superenfatizado, trazendo desequilíbrio nocivo para o
amadurecimento.
Vimos que o processo de individuação requer diálogo construtivo entre esses
dois aspectos. Quando a mulher inibe o princípio feminino, torna-se uma caricatura do
masculino e, quando inibe seu animus, torna-se insípida e passiva. O homem, por sua
vez, quando inibe o princípio masculino, mostra-se afeminado e, quando inibe sua
anima, revela-se um machão.
Infelizmente, ainda vemos muitas mulheres fálicas e poderosas, enquanto
notamos, assustados, o aumento do homossexualismo, embora seja preciso cuidado ao
rotular. Atendi no consultório um jovem que sentia atração por homens. Angustiado, ele
havia concluído que devia ser homossexual. No processo terapêutico, ele percebeu que
essa atração resumia-se à busca de um modelo mais apropriado de pai, pois considerava
o seu apagado e omisso. Quando conseguiu identificar referências positivas, pôde se
reconciliar com seu sexo e iniciar um namoro com uma mulher que o libertou de vez de
suas fantasias.
Embora ambos os princípios precisem ser reconciliados em cada um de nós, o
lado dominante deve corresponder a nossa identidade biológica, sem, contudo, abafar o
lado complementar. Normalmente, os aspectos não reconhecidos, ou negados, em nós
são projetados na outra pessoa, causando conflito. Assim, quem não se permite chorar,
sente-se muito ameaçado diante de alguém que chora, a quem tende a censurar. Em
compensação, o outro pode nos ajudar a desenvolver os aspectos incipientes em nós.
Assim, na relação homem/mulher, temos a oportunidade única de despertar, um
no outro, características atrofiadas e que precisam ser desenvolvidas para nos tornarmos
pessoas mais completas. Minha mãe considerava o ato de cozinhar um mal necessário;
uma tarefa que, infelizmente, cabia à mulher, mas que a privava de se dedicar mais
intensamente a outras atividades mais gratificantes, como a leitura ou a arte. No entanto,
observando Osmar, percebi que cozinhar podia ser um prazer, uma expressão de amor e
uma arte. Vendo sua alegria ao criar um prato novo, fui descobrindo a generosidade e a
sensualidade presentes nesse ato.
Osmar, em contrapartida, aprendeu comigo a expressar as divagações da mente,
colocando em palavras impressões subjetivas e intuitivas. Eu tendia a racionalizar as
emoções em vez de acolhê-las. Esse mecanismo de defesa, desenvolvido desde a
infância, havia me protegido de muitas dores, mas também me privara de viver mais
intensamente muitas alegrias.
A vivência das características masculinas e femininas na relação permite a
fertilização mútua e o despertamento do que o outro tem de melhor. Assim, a relação
vai se enriquecendo mais e mais. Desenvolvemos a capacidade de amar ao acolher o
outro diferente, que amplia meu coração e minha percepção da vida.
As diferenças biológicas, por sua vez, repercutem na vida sexual. O eros
masculino, a partir do pênis, penetra e fertiliza. Embora deva romper o hímen, precisa
respeitar o ritmo diferente da mulher. E um eros deturpado estupra e violenta. Já o eros
feminino, vivenciado através da vagina e do útero, acolhe e deixa-se fertilizar. Mas
também nesse caso, um eros deturpado castra e manipula.
Cada um, homem e mulher, traz no inconsciente coletivo a marca da violência
que, praticada pelos antepassados, gerou desconfiança em relação ao outro sexo. O
homem tem medo de ser engolido, e a mulher, de ser usada. Apenas uma relação de
32
confiança mútua, construída paulatinamente, consegue superar o medo e gerar uma
entrega mais profunda.
Não nos esqueçamos de que a primeira consequência da Queda foram as
acusações mútuas e o escondimento de ambos. O resgate do projeto original de Deus
para a relação homem-mulher passa, portanto, pelo processo de desnudamento. Só
conseguimos revelar nossa intimidade para alguém que nos respeite. Por isso, vemos
hoje tantas pessoas carentes e com sede de relacionamento, mas ao mesmo tempo
amedrontadas e isoladas.
O modelo tradicional da Amélia
A educação diferenciada de meninos e meninas revela a discriminação sutil do sexo
feminino e do princípio a ele associado. A médica e terapeuta de família Ago BurkiFillenz realizou uma extensa pesquisa, com mais de cem mulheres, a respeito dessa
diferença de tratamento.28 Muitas se submeteram e até assimilaram, como normal, essa
disparidade. A maioria se casou obedecendo ao padrão bem tradicional de
relacionamento e só mais tarde, na maturidade, teve a coragem de questionar tal
dinâmica e de buscar a transformação da relação, a fim de equilibrá- la.
O modelo patriarcal de casamento, ancorado em nosso inconsciente,
fundamenta-se no ideal de harmonia capaz de existir apenas quando a mulher se anula e
deixa o homem decidir pelos dois. É o modelo tradicional da Amélia e do machão,
representado pelo lema “atrás de todo grande homem, há uma grande mulher”. Ela
permanece na sombra, sem projeto próprio, sem autonomia. Geralmente o homem é o
provedor e, por isso, decide os gastos segundo as próprias prioridades.
Conheci uma mulher que se conformou a esse modelo. Quando o marido
faleceu, ela nem sequer sabia assinar um cheque, pois ele havia assumido totalmente a
parte financeira. Não tinha ideia dos bens que o marido possuía. Recebia uma mesada
para as despesas do dia a dia, mas jamais soube o orçamento da família.
O novo modelo
Aos poucos, surge um novo modelo, mais democrático, que resgata o valor de cada um.
Essa busca de uma relação igualitária pode também gerar harmonia, mas apenas quando
os dois aprendem a lidar com os conflitos sob a perspectiva do respeito mútuo. A
superação do desencontro resulta do amadurecimento da relação. Nesse caso, a
harmonia não é um ponto de partida imposto pela rígida distribuição de papéis, mas
consequência de uma relação em que cada um tem voz ativa e ambos aprendem a
compartilhar as emoções e a respeitar as diferenças.
Acompanhei um jovem casal que construiu essa harmonia. Conheceram-se na
faculdade, onde cursavam Economia. Ao se casarem, ela partiu para o mercado de
trabalho enquanto ele fazia pós-graduação. Findo o curso, ele arrumou um emprego
razoável e ela, então, deixou de trabalhar para se dedicar aos filhos pequenos. Quando
estes cresceram, ela se dedicou a um negócio próprio, que prosperou. Ambos tinham
grandes responsabilidades profissionais e compartilhavam as tarefas de casa conforme
as aptidões de cada um. Ela assumiu as finanças e as compras, e ele, as tarefas escolares
dos filhos.
Em geral é a mulher que inicia o processo de transformação, ao questionar o
lugar que lhe é reservado. Ao se sentir usada, machucada, desvalorizada, ela se mostra
irritada e até indignada. Momentos de depressão e agressão se alternam. Ela se
considera ao mesmo tempo vítima e culpada por transgredir a ordem vigente.
O homem, por sua vez, apoia a mulher enquanto ela continua dependente, mas
28
Não sou mais a mulher com quem você se casou: Desafios para a parceria .
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se assusta quando ela passa a tomar iniciativas. Ele se sente traído. O esfacelamento do
seu poder desencadeia uma crise de identidade, que o leva a se fechar ou a reagir
agressivamente. Ambos perdem seu lugar e seu papel. Ambos sofrem e estão cobertos
de razão. Chegaram a um impasse. Quem é acusado se defende, e quem se sente
culpado não consegue mudar. Enquanto um acusa o outro, não há progresso, mesmo
que as queixas sejam legítimas.
O momento-chave ocorre quando a mulher se conscientiza de que ajudou a
construir o modelo que hoje odeia. Ela não é vítima do marido, mas assumiu o papel de
vítima. A única forma de sair do círculo vicioso de acusações e cobranças é cada um
reconhecer sua participação no conflito. Embora a crise possa desembocar em separação
física ou emocional (mesmo ficando sob o mesmo teto), pode ser construtiva se cada um
assumir responsabilidade por si, desenvolver a capacidade de estar só e se dispor a
iniciar um processo de diálogo, reconciliação e aceitação mútua.
Acompanhei uma mulher que se anulara no casamento por ter sofrido abuso por
parte do pai, desenvolvendo por isso baixíssima autoestima. Ela cedia a todas as
exigências do marido, por considerar-se responsável pela felicidade dele e sentir-se
culpada quando ele não estava satisfeito.
No processo terapêutico, ela foi se libertando dessas marcas do passado e se
reconciliando consigo. Aos poucos passou a expressar os próprios desejos e limites.
Aprendeu a dizer não e a encarar os conflitos. O marido estranhou a mudança, mas
acabou se encantando com a nova mulher, mais alegre e extrovertida. Ambos
encontraram meios de negociar as diferenças para que nenhum deles se sentisse
prejudicado.
Nenhum casamento pode preencher alguém totalmente. Cada cônjuge deve ter
vida própria para se livrar da codependência e iniciar uma relação de interdependência.
Medos, fantasias, mágoas precisam ser identificados e expressos para saírem do
esconderijo do inconsciente, onde assumem proporções cada vez maiores. Às vezes, as
feridas são tão profundas e as defesas tão rígidas que é preciso recorrer a um terapeuta
familiar para encontrar o caminho da restauração.
Os casais precisam escolher um ao outro, várias vezes, na vida. O casamento
requer grande flexibilidade e disposição para mudança. Os dois precisam aprender a
ouvir para entender a perspectiva do outro. A vida é um processo contínuo de
transformação. O passado não pode ser mudado, mas mesmo o fracasso pode servir de
alavanca para o futuro. Na crise, o importante é não desistir, nem se refugiar na
depressão ou na separação. A crise deve ser entendida como oportunidade de descoberta
da própria força, de crescimento e de superação das barreiras do medo e do egoísmo.
Cada nova etapa começa com perda. É assim, por exemplo, com a saída dos
filhos. Se eles não são capazes de se tornar independentes, os pais falharam. Quando
conseguem, o relacionamento com eles tende a se transformar em grande amizade,
construída ao longo do tempo.
Assim, o casal que passa por essa crise de paradigmas pode experimentar novas
maneiras de ser e de se relacionar. Escreve-se muito sobre a mudança da mulher, mas
muitas mulheres continuam à mercê do homem. Olho com esperança para as próximas
gerações de meus filhos e meus netos, e as vejo já mais capacitadas a desenvolverem
linguagem própria e a redescobrirem valores que não sejam apenas reflexos, invertidos
ou não, do masculino.
Homens e mulheres têm hoje a oportunidade de descortinar novos horizontes e
de desenvolver um potencial até então coibido pela definição estereotipada do que
significa ser homem ou ser mulher.
34
A dança do casal
Título de minha monografia de conclusão do curso de especialização em Terapia
Familiar Sistêmica, a expressão “dança do casal” foi inspirada num livro de Paule
Salomon que pontua o potencial terapêutico da relação conjugal para cada um dos
parceiros. Em vez de um dos dois se tornar terapeuta do outro, gerando assimetria
disfuncional, é a relação construída por eles que promove o crescimento de ambos e
permite sarar as feridas do passado, que vão aflorando na dinâmica relacional.
Quando os indivíduos assumem o risco de transformar uma relação, esta adquire
o poder de transformá-los. A coevolução é mais abrangente que a evolução individual
por despertar mutuamente facetas adormecidas e desconhecidas. Em vez de tentar fugir
de um passado que sempre os alcança, os parceiros podem incentivar-se a superar os
fantasmas da infância. O vínculo é terapêutico quando os parceiros se ajudam na
reconciliação com o passado. Caso contrário, o vínculo pode se enfermar e enfermá-los.
Hoje, os casais se constroem numa demanda de emoção intensa, que se revela
uma base frágil para a sustentação do vínculo, também ameaçado pelo individualismo.
Existe ainda uma expectativa idealizada, alimentada pelos contos de fadas e pelos
filmes românticos. Alguns casais estão paralisados por dupla imposição: nem com você,
nem sem você. Há desejo e medo muito grande de intimidade. Não conseguem nem
juntar, nem separar.
Amadurecer, porém, significa evoluir para a dupla possibilidade: com você e
sem você. Apenas aqueles que, na solitude, conseguem ser individualmente íntegros
têm condição de construir um vínculo maduro que respeite o espaço e a singularidade
do outro. Como todo sistema, o casal possui uma missão paradoxal: estabilidade e
mudança, integração e diferenciação. O “eu” se constrói na interação com o “nós”,
permitindo uma união que respeite a autonomia de cada um; ao contrário da fusão,
quando um é absorvido pelo outro e perde a identidade. Antes de casar com o outro,
cada um precisa casar consigo próprio, assumindo as rédeas de sua vida, tornando-se
protagonista.
A paixão corresponde à etapa do espelho em que focalizamos apenas o que
temos em comum e que conduz à desilusão. Na fase simbiótica, pedimos ao parceiro
que nos “livre do mal”. Não brigar nunca ou brigar sempre é uma tentativa de perpetuar
a fusão. Um casal que não passa por crise é suspeito. Ou já está separado, embora
vivendo sob o mesmo teto, ou um dos dois se anulou em favor do outro. A desilusão é
proporcional à idealização e nos permite voltar à realidade.
O casal entra em colusão ao mobilizar conflitos inconscientes comuns. O medo
do abandono, por exemplo, pode expressar-se pela violência em um dos cônjuges,
enquanto o outro se tranca, alimentando um círculo vicioso em que os mecanismos de
defesa são cada vez mais reforçados. Quanto mais um se altera, mais o outro se fecha, o
que amplifica a tensão e o sentimento de rejeição levando a aumentar a alteração.
Todo casal se constrói por meio de regras geralmente implícitas, ou metarregras.
O peso das demandas inconscientes pode colocar em risco a relação. A mulher pode
apresentar um discurso de emancipação, mas inconscientemente querer encontrar no
companheiro o colo que recebia da mãe, ou a proteção que encontrava no pai. O
homem, apesar da aparente autonomia, pode ansiar pelos cuidados dispensados pela
mãe.
A crise obriga o casal a redefinir necessidades e expectativas que podem ter se
tornado verdadeiras armadilhas. A imposição de uma relação sem conflito, por exemplo,
leva-nos a uma relação artificial e frágil, o oposto do almejado. A crise, então, se instala
visando encontrar um novo equilíbrio e pode levar-nos a investigar os fantasmas que
povoam a base inconsciente da relação. A solidez do vínculo é que nos permitirá
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coevoluir, pela elucidação e redefinição do contrato implícito.
Precisamos sair do círculo vicioso das acusações mútuas — pois aquele que se
sente acusado se defende acusando o outro —, a fim de que cada um enxergue sua
participação no conflito. A insatisfação sinaliza um pedido de mudança da relação que
ambos ajudamos a construir. Não há um culpado, já que cada um é, ao mesmo tempo,
algoz e vítima. Não é o outro o responsável pela crise, mas sim o contrato que ambos
estabelecemos que já não corresponde às aspirações porque crescemos. Todos nós
desejamos ser amados e valorizados. Um casamento desabrocha quando a balança do
dar e receber afeto mantém-se equilibrada, e quando os dois se sentem igualmente
competentes.
Tudo o que não pode ser dito é expresso por meio de sintomas. Os desejos
reprimidos se transformam em ressentimento. É importante que um cônjuge tire o foco
do outro para perceber a dinâmica da relação. Uma escalada simétrica revela
competição, mas uma relação complementar rígida pode ser sufocante. Precisamos
substituir as acusações mútuas pela compreensão de nossas ambiguidades. A mulher
pode desejar ao mesmo tempo ser protegida e emancipada, enquanto o homem fica
preso ao desejo conflituoso de ter uma mulher que trabalhe fora e o espere em casa com
uma comidinha preparada por ela.
Os conflitos manifestos são em geral pretextos que nos protegem de angústias
mais profundas. Designar um culpado — o parceiro, uma doença ou um filho — é uma
estratégia para fugir do sofrimento que acaba gerando mais sofrimento, uma vez que os
verdadeiros conflitos não são resolvidos.
A herança familiar
Cada um de nós carrega para dentro do casamento uma herança familiar. É
fundamental, no entanto, evitar as armadilhas das repetições transgeracionais
inconscientes, descobrindo quem deve ser leal a quem e como, quais são as alianças
subliminares e os segredos.
Só conseguimos nos diferenciar quando conhecemos nossa identidade, origem e
herança. Certos eventos, que não puderam ser esquecidos nem verbalizados, acabam
sendo transmitidos de forma não verbal, como o filho que tem um acidente na mesma
idade do pai e nas mesmas condições. São profecias que se realizam pela revanche do
que foi reprimido.
Cada família possui uma contabilidade implícita: um livro de méritos e dívidas,
um balanço de perdas e ganhos. Cada família tem um repertório de mitos e tradições.
Somos todos frutos de duas culturas: a paterna e a materna. A reconstituição biográfica
da família permite-nos tomar consciência das repetições transgeracionais e libertar-nos
das influências negativas.
O pintor Vincent Wilhelm van Gogh nasceu exatamente um ano depois da morte
de seu irmão, também Vincent Wilhelm, de quem a família não falava. Sua vida trágica
revela que, de alguma forma, lhe foi negada existência própria. Seu irmão amado teve
um filho a quem deu o mesmo nome Vincent Wilhelm e lhe escreveu: “Espero que este
Vincent viva e possa realizar-se”. Ao receber esta carta, Vincent suicidou-se, como se
os dois Vincent não pudessem coexistir.
Todos nós representamos um dos elos de nossa história “familiar”. Alguns
membros são mais conhecidos; outros, mais obscuros; mas cada um deles deixou sua
marca em nós por meio de segredos, alusões ou referências que nos foram transmitidos.
Esse mosaico exerceu sobre nós uma influência, consciente ou não, que é a fonte de
repetições obstinadas — preconceitos, mecanismos de defesa, emoções permitidas,
reprimidas, estimuladas. Embora consigamos percebê-las, não entendemos o que as
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provoca. Por que a filha de um alcoólatra escolhe casar com um alcoólatra, apesar de
todo o sofrimento acarretado por essa dependência? Por que um homem vem a falecer
da mesma doença que seu pai na mesma idade?
A conscientização dessas identificações e papéis amplia nossa capacidade de
escolher o caminho que desejamos seguir. Compreender esses scripts afetivos, sexuais,
intelectuais e profissionais nos ajuda a desarmar armadilhas familiares e a renascer; a
nos reconciliar com nossa história; a perdoar; a descobrir a liberdade de usar os próprios
recursos, dons e talentos; a abrir as asas; a descortinar novos horizontes.
Desde a gestação, somos depositários de projeções por parte dos membros da
família. Somos, em primeiro lugar, uma criança imaginária. É importante desembaralhar
as motivações da gravidez: foi para exercer a paternidade e maternidade, para salvar o
casamento, para preservar um patrimônio, para substituir um filho que morreu, para
agradar os avós, para atender à pressão social? Desejava-se menino ou menina?
O feto capta as emoções da mãe e o clima afetivo do ambiente. Os pais
gostariam de poder dar aos filhos tudo o que lhes faltou. São movidos por desejos
ambíguos que vão da autodesvalorização ao altruísmo. Precisamos de muita maturidade
para perceber que nosso papel é aprender a conhecer os filhos como são, acompanhá-los
em seu desenvolvimento, ajudá-los a desabrochar e a construir a própria existência.
O nascimento representa a primeira autonomia. A experiência foi tão
significativa que delineou padrões de comportamento diante da vida, de suas
dificuldades, da condução de projetos. Um bebê que nasceu de fórceps pode concluir
que sempre precisará de ajuda externa para superar obstáculos. Algumas crianças se
encolhem na barriga da mãe até ficarem sufocadas, outras rompem as resistências por
não suportarem a pressão. No decorrer dos vários nascimentos simbólicos da nossa
existência, repetimos inconscientemente a trajetória que seguimos durante o parto. O
nome que nos foi atribuído também revela projeções primárias. Ele já existe na família?
Que características são atribuídas a essa pessoa? Que papel exerce?
O bebê é totalmente dependente e sua fragilidade desencadeia várias angústias:
medo de ser abandonado; medo de ter fome e sede; medo de sentir calor e frio; medo do
sofrimento e da morte. À medida que suas necessidades são atendidas, ou não, ele
desenvolve emoções ambivalentes de amor e ódio, desejo de fusão e pavor dela.
A criança se comunica de forma especial, de inconsciente para inconsciente. A
relação desenvolvida com a mãe é diferente em meninos e meninas. Isso explica o
antagonismo entre o comportamento amoroso do homem e o da mulher. A mulher busca
uma proximidade que, para o homem, é muito ameaçadora. Quanto mais ela tenta
aproximar-se, mais ele se afasta.
O corpo da criança também é alvo de projeções. Suas características são
avaliadas. Semelhanças e diferenças são apontadas ou negadas. A menina que nasceu
quando um menino era esperado tende a se comportar como moleque. Comparações são
inevitáveis. Toda criança é comparada a sua família, tanto afetiva como
intelectualmente. Comparações positivas são mais fáceis de assumir, mas, se não
refletirem a personalidade real da criança, poderão se transformar em máscara, que ela
usará a fim de ser amada.
Identificações negativas apontadas incessantemente se tornam rótulos, que se
revelam devastadores, enquanto algumas qualidades físicas, afetivas, intelectuais ou
artísticas são ignoradas ou até reprimidas. Pais assassinam os filhos com frases do tipo:
“Você não tem jeito!”, “Você estraga tudo!”, “Não dá para confiar em você!”. Tais
frases assumem proporções de profecias, oráculos, sentenças a serem cumpridas.
Além de assimilar inconscientemente as projeções dos pais a seu respeito, a
criança assume o que percebe como expectativas e desejos deles. Ela acata os rótulos
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impostos e se conforma aos modelos familiares. A verdade é que precisamos parecernos com alguns, mas também precisamos não nos parecer de jeito nenhum com outros.
As identificações positivas nos fazem bem. Para sermos amados, estamos
dispostos a abrir mão de aspectos essenciais. Mesmo quando apenas reagimos às
influências que consideramos nocivas, precisamos perceber que, ao nos comportarmos
contrariamente a alguém ou algo, ainda estamos nos comportando em função desse
alguém ou alguma coisa. Não queremos repetir o roteiro familiar afetivo ou profissional.
Não queremos ter de odiar uns para ser amados por outros. No entanto, agimos apesar
de nós e essa constatação nos suscita conflitos, frustrações e revoltas.
Ao procurar fazer o oposto de um dos pais, acabamos repetindo o padrão do
outro ou alternamos entre duas posições antagônicas. Identificar o casal parental
internalizado requer um trabalho complexo de conscientização. Como se permitir ser
bem-sucedido diante de um pai fracassado? Tomar consciência dessas identificações
infantis é libertador.
A relação com a mãe
A identificação com a mãe é visceral. A criança assimila, além da comunicação verbal,
o inconsciente materno a seu respeito, que constitui sua primeira imagem narcísica. O
bebê se ama da forma que a mãe o ama. Irmãos não têm a mesma mãe
psicogenealógica, ou seja, a mãe é diferente a cada gestação. Geralmente o primeiro
filho traz muita ansiedade pelo peso da responsabilidade. Com a maturidade, o segundo
filho tende a ser tratado de forma diferente. As condições de concepção, gestação e
nascimento, lugar na família, sexo e personalidade nos levam a construir um vínculo
único com nossa mãe. Ela não nos viu realmente, mas nos enxergou por meio da própria
história familiar.
As emoções da mãe, contudo, são em geral contraditórias. Ela pode temer
conscientemente o que deseja inconscientemente. Pode se tornar superprotetora para
compensar um desejo latente de se ver livre da criança que chegou em hora imprópria,
ou a obriga a se anular em função do padrão materno internalizado. Tomar consciência
da falsa alternativa: eu ou a criança, a liberta para descobrir outras facetas da
maternidade.
Existem ainda mães possessivas e controladoras do tipo: “Se eu fosse você...
você não pode ser assim...”. De tanto se colocarem em nosso lugar, ficamos sem lugar
nosso! A mãe ideal, a mãe ausente, a mãe frustrada provocam em nós reações e
consequências específicas.
As mães também são referências de mulher. Algumas são absorvidas pela
relação amorosa e enxergam as filhas apenas como barreiras ou até rivais. É importante
saber como nossa mãe se relacionava consigo, como se sentia como mulher, como
lidava com a sexualidade, além de outras características como sua relação com casa,
dinheiro, saúde, viagens. Como ela reagiu a nossa primeira menstruação? Como era do
ponto de vista afetivo, intelectual, moral, religioso? A mulher infantil, a matriarca, a
masoquista deixam marcas distintas.
A relação com o pai
Através do pai, o menino integra definições da masculinidade a nível corporal, afetivo,
intelectual e sexual. Ele assimila as funções da virilidade na parceria, na família, no
mundo profissional, na sociedade. Elabora as modalidades das relações futuras com as
mulheres, sejam esposas, amantes, amigas, colegas. Memoriza uma concepção de
paternidade, que reproduz ou da qual foge. Estrutura as relações futuras com superiores,
instâncias legais, políticas, religiosas. Sua autoestima depende da estima do pai, que lhe
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confere seu valor, seu lugar na sociedade.
De forma arcaica, a mãe nos ensina principalmente o interior, a alimentação, o
corpo. Com ela, construímos o primeiro vínculo, aprendemos a organizar as
necessidades básicas e a confiar. O pai nos inicia no espaço, na sociedade, no mundo.
Estabelece limites que visam ao desempenho das funções de proteção e direção.
Percebemos o pai por meio da imagem que nossa mãe tem dele. Algumas mães
afastam os filhos desse homem que a ameaça ou a faz se sentir infeliz. Alguns pais têm
imagem positiva da paternidade. Emprestam sua força para permitir a descoberta segura
do mundo. Sua autoridade é estruturante. Infelizmente, muitos pais ainda estão ausentes,
acarretando a onipresença e onipotência da mãe.
Há vários tipos de ausência paterna. O pai pode se dedicar exclusivamente à
carreira. É colocado em um pedestal, mas é inacessível. Nesse caso, alguns filhos se
autodesvalorizam ou entram em competição com ele. Outros podem optar pela
vingança, fazendo o pai “pagar caro”, já que bens materiais são a única coisa que se
pode esperar dele.
O pai pode ser ausente mesmo quando fisicamente presente. Pode ter assumido
responsabilidades sociais. Nesse caso, a criança geralmente vê tais atividades como
abandono, gerando revolta. Existem ainda os pais autoritários, que compensam sua
inferioridade erguendo a voz. Filhas de pais abusivos tendem a reproduzir com os
homens relações sadomasoquistas. Elas são vítimas do algoz real, no qual reencontram
seu pai, ou do perseguidor fantasma, que elas ajudam a produzir pouco a pouco.
Enquanto muitas mães rivalizam com as filhas, não menos pais proíbem os
filhos de superá-los. Muitos pais machistas rejeitam as filhas por considerá-las
inferiores. Tais comportamentos, contudo, ocorrem de forma inconsciente.
Existem, ainda, os pais que cometem incesto, que pode se configurar de
diferentes formas. Um pai ia diariamente ao quarto da filha e lhe acariciava os seios,
impulsionado pelo narcisismo de se contemplar nela. Outro pai, que tinha sido preterido
pela irmã, dormia na cama da filha, fascinado pela semelhança desta com a irmã. Outro
ainda insistia que a filha o masturbasse, como se fosse apenas um jogo erótico.
Esse comportamento do pai pode ser consequência de abuso sofrido na infância.
Atendi uma família cujo pai, líder espiritual, usava a boca da filha para se masturbar
enquanto ela dormia. Mais tarde, descobriu-se que o pai fazia exatamente o mesmo com
a irmã desse líder, apesar dele não guardar lembrança consciente de testemunhar tal
abuso.
Tentamos sempre repetir o casal parental. Que homem é o nosso pai do ponto de
vista físico? É esportivo? Curte os prazeres da vida? Que importância têm para ele o
carro e a casa? Como ele ganha, gasta e administra o dinheiro é fundamental para nós.
Qual é a relação dele com viagens, com lazer? Como ele vive a sexualidade? É fiel?
Como expressa afeto? Como lida com conflitos? O que une nossos pais? A criança pode
ficar presa ao papel de manter os pais unidos.
A relação com os irmãos
Os irmãos são objeto de identificações comparativas. A rivalidade pode nos levar a
desenvolver ou inibir nosso potencial. Cada criança busca seu lugar no sistema familiar
e, para tanto, amplifica ou reprime seu potencial. Ela procura geralmente se sobressair
por contraste. O estudioso estimula o mau aluno, o comportado provoca o levado. Há
ainda o manhoso, carinhoso, chorão, tímido, bravo, teimoso, rebelde, mentiroso. A
adolescente tímida e desajeitada pode estar contrapondo-se à irmã sedutora e sociável.
Ao filho único, no entanto, cabe o papel de herdeiro. É alvo de muitas
expectativas, que podem gerar ansiedade pelo medo de não dar conta. Frequentemente é
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“adultizado”. A linguagem corporal expressa o sofrimento que não sabemos colocar em
palavras. A situação de um menino que tem uma irmã mais velha é diferente daquele
que tem uma irmã caçula. A criança do meio, o caçula, o filho que chega após o
falecimento de um irmão, ou perde um irmão na infância, cada situação é específica. O
filho que morreu tende a ser idealizado e os outros irmãos podem sentir-se culpados por
terem sobrevivido. Uma criança mal amada tende a assumir a culpa deste desamor.
A relação com os avós
Nossa relação com nossos avós é inconscientemente influenciada pela relação que eles
têm com seus filhos, ou seja, nossos pais. Nossa mãe pode ser uma filha submissa a um
pai ou mãe controladora. Nosso pai pode ter uma relação de casal simbólico muito mais
importante com a mãe do que com a esposa.
Um avô afetivo pode ter sido um pai severo. Mesmo quando não conhecemos os
avós, os pais nos educam tendo em vista as projeções e identificações deles com seus
pais. São influenciados também por seu lugar junto aos irmãos, as relações que
construíram com eles.
À medida que crescemos, cada um de nós se identifica com mãe, pai, irmãos,
avós, tios, com o casal parental. Repetimos seus scripts nos grandes temas da vida:
amor, profissão, amizade, filhos, netos. O filho de um aventureiro havia internalizado
que, para ser homem, precisava trabalhar longe da família, separar-se, ser famoso,
quando na verdade o que ele precisava era permitir-se ser homem do seu jeito. Uma
mulher descobriu no processo terapêutico que se culpava por ter causado a infelicidade
da mãe, que não pôde ter um filho e, por isso, não conseguiu manter o marido em casa.
Como harmonizar todas essas influências em nossa vida? A resposta está na
maturidade. E maturidade significa desenvolver o potencial reprimido e harmonizar
dentro de nós o masculino e o feminino.
Nova atitude interior
Não podemos mudar nossa história, mas podemos mudar a atitude interior em relação a
essa história, a leitura que fazemos sobre nós e a família, de forma a nos libertar das
consequências negativas. Precisamos aceitar também que os pais são humanos, falhos, e
temos de nos perdoar por não termos sido o filho perfeito que eles esperavam.
Renascer significa aceitar-nos, assumir desejos, estar atentos e ouvir nosso “eu”
para dar-nos o que não recebemos, para amar-nos como somos, aqui e agora, para
libertar-nos aos poucos do juiz interior, do nosso torturador portátil. Cada ser tem uma
beleza peculiar. Fazer desabrochá-la é fruto do equilíbrio interior, da serenidade, da
reconciliação. Tratar o corpo com respeito é dar-lhe aquilo de que ele necessita: sono,
higiene, alimentação, exercício.
Qualidades e defeitos são dois lados da mesma característica. Que violência se
esconde atrás de uma calma imperturbável? Que fragilidade é mascarada por uma
atitude agressiva? Que raiva se dissimula atrás de um aparente desligamento? A
preguiça é apenas falta de motivação? A pessoa ativa confunde fazer e ser, agir e viver.
A não-ativa é mais receptiva e sensitiva, porém mais propensa à depressão.
Em terapia, o emotivo aprende pouco a pouco a não se fundir com as emoções, a
não ser engolido por elas. Já o não-emotivo desenvolve progressivamente a
espontaneidade afetiva, a capacidade de expressar emoções.
Muitas vozes interiores repetem ao longo do dia nossa história genealógica.
Precisamos romper a corrente de infelicidade e sarar em nós o sofrimento dos nossos
pais. Depois de expressar o sofrimento, a mágoa, a raiva, o ódio, podemos aos poucos
perdoar a nós, em primeiro lugar, e aos demais membros da família, em seguida.
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As pessoas se casam na esperança de suprir carências afetivas da infância. As
feridas geram grande temor de proximidade e intimidade, de um lado, e despertam
expectativas inatingíveis, de outro. Na realidade, o amor não preenche essas carências
nem muda o outro.
O divórcio é a consequência dessa frustração, de esperar do casamento uma
felicidade muito maior que a gerada por outro tipo de vínculo, como com os filhos, que
também geram conflitos e muitas expectativas não preenchidas, mas com quem o
rompimento é sempre uma das últimas opções. Temos mais tolerância com filhos e
irmãos do que com o cônjuge, pois a expectativa aumenta à medida que os demais
vínculos sociais vão se tornando superficiais. E quanto maior a expectativa, maior a
desilusão.
O divórcio é estimulado por uma sociedade que supervaloriza a individualidade
e a autonomia em detrimento dos vínculos. É claro que em casos extremos é preciso
encorajar as pessoas a não se resignarem passivamente a relacionamentos destrutivos.
No entanto, as marcas e feridas deixadas pelo divórcio são profundas. Jurg Willi29
propõe que, em vez de perguntarmos se o divórcio é bom ou ruim, perguntemos: o
divórcio proporciona o que se espera dele? Parece que não, principalmente quando há
crianças envolvidas, pois, além de não resolver os problemas, acaba criando outros.
Apesar do incremento do individualismo, há indicação crescente de que a
maioria das pessoas deseja pertencer a uma família estável, e é evidente a ferida deixada
pela quebra da família. Por que pessoas continuam casadas? Especialistas tendem a
indicar razões neuróticas (dependência, falta de individualidade, medo da solidão, medo
de mudanças e incertezas) e razões sociais (comodidade, conforto, propriedades em
comum, medo da perda do prestígio social). Poucos conseguem nomear motivos
positivos para a permanência dos parceiros em um relacionamento imperfeito.
Premissas sobre o bom relacionamento entre parceiros mostram que o
casamento só compensa se for uma relação divertida, interessante, sexualmente
estimulante, criativa, que incentiva a autonomia e independência. Willi afirma que tais
premissas servem mais a uma relação amorosa a serviço de si mesmo e
descompromissada que a uma vida em comum duradoura.
Mas então o que é felicidade? Felicidade objetiva está relacionada com
circunstâncias felizes de vida, enquanto felicidade subjetiva é a capacidade de sentir-se
feliz ou de considerar felizes as circunstâncias da vida. Tem a ver com flexibilidade e
tolerância. Felicidade objetiva implica circunstâncias felizes, espaço suficiente para
autodesenvolvimento, boas condições de realização profissional, crianças saudáveis.
Por mais importantes que sejam, esses aspectos não garantem a felicidade
conjugal. A capacidade de sentir-se feliz na relação com o parceiro depende muito do
nível pessoal de exigência e dos ideais (crenças, valores). É, nesse sentido, uma questão
filosófica, antropológica, espiritual, e inclui a aceitação das imperfeições da vida. Não
significa, contudo, acomodação ou resignação, mas apenas coerência com a condição
humana.
Antigamente o casamento era visto como um caminho de sofrimento que recaía
principalmente sobre a mulher, o que explica sua atual baixa tolerância à frustração e ao
sofrimento. Mas existem aspectos insolúveis que geram sofrimento e limitação na vida a
dois. O processo de viver permanentemente junto é um ciclo permeado por esperança e
29
O que mantém os casais juntos? Muitos conceitos que abordaremos deste ponto em diante foram
desenvolvidos por Willi. Por não estarem disponíveis em português, tomo a liberdade de compartilhar
com você a tradução de Margareth Brepohl, minha amiga e terapeuta familiar. Trata-se de contribuições
importantes para a compreensão da formação da parceria conjugal e do potencial terapêutico do
casamento através da coevolução.
41
luto, por expectativas não preenchidas e pelo grau de incomunicabilidade.
O conceito de felicidade não abrange tudo o que o relacionamento permanente
significa, ou seja, seu mistério. O divórcio acontece quando as pessoas já não
conseguem crer e esperar na melhoria da vida a dois. Falta a convicção de que
atravessar com perseverança as crises inevitáveis da relação do casal seja um ganho e
um crescimento pessoal.
A felicidade desaparece quando é um fim em si mesmo. Ela se faz presente de
forma surpreendente quando nos dispomos a flexibilizar expectativas fantasiosas para
aceitar o outro como é e para construir com ele um mundo interno e externo onde
aprendemos a nos amar e respeitar mutuamente. Paciência, perseverança, tolerância à
frustração, gratidão, humildade, aceitação das limitações, reconhecimento das
ambiguidades são sementes que desabrocham em alegria, companheirismo e realização
mútua. Só podemos florescer quando estamos dispostos a fertilizar o outro, mesmo que
isso implique renúncia e dor, pois o outro é, ao mesmo tempo, um presente e um fardo.
O relacionamento
Willi considera que todo relacionamento amoroso passa por quatro etapas. Ele começa
com o desejo de encontrar um par, se concretiza no namoro e na construção de uma
relação, é seguido pelo fortalecimento do vínculo visando à formação da família e
termina com a morte ou separação.
Cada etapa tem seu valor. Estar apaixonado permite que o anseio por um
relacionamento amoroso estável, por viver com o parceiro e ter filhos se torne mais
forte que o anseio antagônico por uma vida sem amarras, por liberdade e por
relacionamentos descartáveis. Tal ambivalência permeará o casamento, e nem mesmo a
consolidação do relacionamento a superará. Quando essa dinâmica não é reconhecida,
ela age de forma inconsciente e, no momento da crise, alimenta o desejo de separação.
Muitas pessoas se assustam e se retraem diante de relacionamentos duradouros
por medo da dependência, de serem machucados ou abandonados. Outras, em
contrapartida, se agarram aos relacionamentos por medo da solidão. O anseio por estar
apaixonado tem a ver com o núcleo mais íntimo do ser humano. A menina fantasia e se
prepara para o encontro com seu príncipe encantado. Hoje, porém, esse desejo é
censurado ou desqualificado por se contrapor ao espírito da época, que diz: seja
autônoma e viva aqui e agora. Essa etapa, no entanto, é uma semente que precisa ser
protegida. O homem gosta de ser desejado. A mulher anseia por ele, e ele anseia pelo
anseio dela.
Há dois anseios básicos: por realização na parceria (parecido com o anseio por
realização profissional) e por cuidado e pertencimento. O primeiro promove fantasias
por meio dos jogos de faz de conta que imitam os pais, quando somos criança, e de
filmes e livros românticos, na adolescência. A identificação com personagens permite
experimentar diversas maneiras de ser. Trata-se de uma preparação para a fase de
realização. Os amigos vão encontrando os parceiros, e a pressão por achar o seu
aumenta. O sexo é uma tentativa de segurar a relação e, paradoxalmente, é o que a torna
descartável. Quanto maior a espera, mais sólida se torna a relação. O anseio estimula a
formação do vínculo, mas a falta de estrutura emocional ou econômica impede a
realização. A fantasia facilita a separação da família de origem. Essa diferenciação, no
entanto, desestabiliza a relação com os pais e desorganiza as relações atuais. Alguns
jovens se sentem paralisados pela lealdade à família. Se um dos pais se deprime, o filho
tende a se sentir amarrado.
O segundo, o anseio por cuidado e pertencimento, se evidencia pelo desejo de
proteção e simbiose, de ser conhecido no mais íntimo, de aceitação incondicional, de
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pertencer, de completude. O orgasmo é a realização física desse desejo; por isso, muitos
tentam alcançá-lo por meio da relação sexual. Mas essa precipitação leva a uma
sensação de vazio e frustração. O anseio precisa ser adensado para construir uma
relação sólida. Ele ajuda a quebrar barreiras relacionais. No entanto, quanto maior a
idealização, maior a frustração, assim como quanto maior o desejo, maior o medo. O
medo de perder pode inibir a entrega, e a experiência anterior de perda pode levantar
muitas defesas.
Diz o ditado que a paixão é cega, mas a dissolução do limite EU- TU e a simbiose
são bases saudáveis para um relacionamento novo. Tudo o que é realmente grande e
leva as pessoas a iniciarem algo começa com uma utopia. O realizável é sempre aquém
da utopia, é verdade, mas teria sido empreendido sem a utopia? Não é a grandeza de
uma utopia que define a intensidade do nosso empenho e mobiliza o potencial que
existe em nossas emoções?
Racionalidade e objetividade não são garantias de sucesso para um
relacionamento. Principalmente depois do fracasso de um relacionamento importante,
no qual tínhamos investido muito, procuramos iniciar o novo com cuidado ou esforço
para que, desta vez, a situação permaneça sob controle. No entanto, o cuidado de
permanecer sem ilusões para não se desgastar de novo esvazia a relação, porque amar
sempre inclui riscos. Queremos ter certeza de não estar investindo mais do que o
parceiro, e fracassamos na impossibilidade de fazer esse tipo de conta.
A grandiosidade, a “insensatez” do namoro e o sentimento dos namorados, de
que se bastam e se pertencem eternamente, são adequados ao processo de formação da
parceria. O namoro, a dissolução da individualidade na relação simbiótica, dá força para
o desligamento da família de origem e a criação de um mundo novo. Abrimos mão da
segurança e do comodismo que a permanência no ambiente conhecido oferece. O
namoro afrouxa os laços íntimos que nos ligam aos pais, e por isso é temido por alguns.
Mas ele é pré-condição para criar um novo sistema de relacionamento.
No namoro abrimos o coração revelando anseios, expectativas e esperanças até
então não compartilhados com ninguém. Energias, antes paradas e sem alvo, são
direcionadas e integradas, avivando-nos poderosamente. Enamorados tornam-se mais
bonitos, radiantes, com mais vida, e talvez mais loucos também.
Ao abrir-nos, afrouxamos a estrutura de nossa personalidade. Comportamentos e
maneiras de experimentar o mundo, que no passado não eram explorados ou até
medrosamente escondidos e evitados, são mobilizados. Muitas coisas se tornam viáveis
por causa do estímulo do outro. Muitas se tornam agora desejáveis e passam a fazer
sentido. Começamos a nos desenvolver, com o respaldo do parceiro. Ele não responde
apenas ao que já existe, mas quer descobrir e despertar em nós um potencial que não
vimos e nem acreditamos ter. Nesse sentido, é uma ampliação e não uma negação de
nós mesmos.
Assim, através do amor, cada um permite que o outro vá desabrochando. Somos
regados pelo reconhecimento do outro e estimulados a florescer. Cabe-nos, portanto,
não deixar que os tropeços e a rotina apaguem a chama do permanecer enamorado. A
este respeito, recomendo o filme Dom Juan de Marco que convida a reativar essa
emoção tão construtiva.
O namoro é uma fase essencial na formação do casal, pois permite construir um
mundo comum. Enamorados desejam desvendar os segredos do outro, penetrar no mais
íntimo do íntimo, onde até agora ninguém penetrou, entender o outro como ninguém até
agora o entendeu. Os defeitos são suplantados pelo desejo de despertar o amado, de
resgatar aspectos enterrados, que agora encontram no amor um solo fértil para brotar e
se desenvolver.
43
Só assim podemos entender que não nos apaixonamos apenas pelas pessoas que
se mostram seguras e autossuficientes, que são admiradas pela maioria e bem-sucedidas.
Muitas vezes nos sentimos atraídos justamente pelas pessoas que nos transmitem o
sentimento de sermos necessários, ou até indispensáveis. Acreditamos que elas,
sozinhas, poderiam estar perdidas ou não conseguir se realizar na vida. Somos atraídos
pela oportunidade de ajudar o outro a desabrochar. Desejamos ser capazes de fazer
aflorar nele o que ninguém mais alcançou.
Nem sempre, porém, essas expectativas são erradas. A relação pode ajudar o
parceiro a sarar feridas, esquecer mágoas e readquirir coragem para ser ativo e voltar a
viver com alvos. De fato, muitas feridas e disfunções são saradas por um amor intenso.
O amor incondicional consegue despertar o melhor do outro, promover mudanças.
Quando o amor volta a ser condicional, trava o outro novamente.
Nosso sistema pessoal é uma lente através da qual podemos ver e interpretar o
mundo. Esse sistema é formado pelas vivências na família de origem e transformado
pelas trocas com o ambiente. Devemos avaliar constantemente nosso sistema e adaptálo às novas circunstâncias e experiências. Quando dois parceiros entram em um
relacionamento, ocorre a colisão de dois mundos familiares e individuais.
No namoro, o sistema pessoal é afrouxado, as formas de pensar, sentir e
perceber são sacudidas e se cristalizam novamente de acordo com o parceiro, como se
os dois tentassem “nascer de novo um pelo outro”. O sistema pessoal é então
reformulado, reordenado hierarquicamente em relação ao parceiro. Acontece uma
metamorfose na personalidade. O sistema do parceiro é assimilado. Sistemas inativos,
agora necessários para a nova relação, são reativados ou adequados ao sistema do
parceiro. Essa fase simbiótica não deve ser subestimada. O esforço de nos harmonizar
com o outro, de ignorar o que nos separa para nos tornarmos totalmente um, gera um
fundamento sólido para vencer as prováveis dificuldades futuras.
A tarefa de nos diferenciarmos do outro vem na fase seguinte da relação. O
namoro nos leva além dos limites, na tentativa de atender aos anseios do outro. Mas
logo percebemos que não somos capazes de sustentar a imagem com que o outro
sonhou. Passamos também a desconfiar que o outro não suprirá nossas necessidades.
Ocorre, então, a dupla decepção: com o outro, que não corresponde aos nossos anseios,
e conosco, por não conseguirmos corresponder aos anseios do outro e por não termos
dado conta de transformar o outro.
Frustramo-nos ao reconhecer que nossa capacidade de entendimento é limitada e
que há espaços do parceiro onde não conseguimos entrar. Esses espaços resguardados se
tornam bastante ameaçadores. Paralelamente, existe a decepção de termos
compartilhado o íntimo e de não termos sido validado como esperávamos. Precisamos
aceitar que nossa compreensão será sempre diferente. Algumas experiências não podem
ser compreendidas porque o outro não vivenciou nada semelhante. A dor pode fazer
amadurecer a relação a ponto de acolher o outro como é. Quando aceitamos essas
limitações, resgatamos a possibilidade de voltar a sonhar.
Essa dor, no entanto, também pode gerar impotência e raiva, mobilizando o pior
de nós. Queremos sair do sufoco com atitudes destrutivas. As feridas são aprofundadas.
Quanto maior o investimento, maior a frustração. O caminho é admitir a dor de não
termos sido capazes de transformar o outro.
Quando não há possibilidade de diálogo, somos invadidos pelo desespero e pelo
medo. Tais sentimentos podem nos levar a alimentar fantasias com outros parceiros. É
um longo caminho para admitir a limitação do diálogo e dependerá de quão suportável
seja. Toda relação apresenta essa discrepância, portanto é crucial responder à pergunta:
o parceiro não quer ou não pode se comunicar? O amor ganha em sabedoria e humor.
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Os parceiros se tornam capazes de admitir as limitações e rir das diferenças.
A paixão gera amor e sofrimento, ou seja, elaborando o sofrimento, a paixão
pode transformar-se em amor. A fusão liberou a força criativa do amor e ficou como
referência. No entanto, há limites para o sofrimento. Em alguns casos, sair da relação
pode ser um ato de sobrevivência. Quando entramos numa relação duradoura, o anseio
por aceitação incondicional é ativado. Sofremos ao constatar que permanecemos
separados e diferentes. O amor é um estado permanente de busca e luta. Há união no
fazer, mas não no ser. O parceiro nos amará e entenderá parcialmente.
É, portanto, na faixa de ressonância, acessibilidade, capacidade de diálogo que
pode haver crescimento e mensuração de quanta dor podemos expressar. O realizável
não é o sonhado. Despertamos mais expectativas do que conseguimos suprir. Sofremos
por não alcançar tudo o que almejamos, quando basta construir um mundo habitável.
Precisamos questionar os valores individualistas promovidos pelo mundo pósmoderno. O espaço para construir se faz à custa da autorrealização e a promove, pois ela
acontece na relação. O caminho da individuação não pode ser construído pelo sacrifício
dos outros. No enamoramento, passamos a olhar o mundo com o olhar do outro,
permitindo a construção conjunta do mundo interior. Ao explicitar nosso mundo, nos
descobrimos. Algumas coisas serão eliminadas e outras valorizadas. Essa construção
ecológica sistêmica produz uma moldura unificadora, que possibilita o desenvolvimento
da cada um.
Os parceiros formulam um sistema que contém princípios orientadores e
“combinados” sobre relacionamento, regras, divisão de tarefas, privilégios e funções,
finanças, educação de filhos, sexualidade etc. Em caso de impasse, um dos dois precisa
dar o primeiro passo para desarmá-lo. Nesse momento, renovar o compromisso fornece
a segurança necessária para encontrar um caminho, apesar das diferenças.
O termo “coevolução”, criado por Jurg Willi, mostra a influência mútua no
processo do desenvolvimento pessoal. Sem dúvida, os parceiros podem estimular-se,
atrapalhar-se, ampliar ou limitar algumas áreas da personalidade, da vida ou dos hábitos
de cada um. A questão é: que tipo de vida os parceiros propiciam um ao outro?
Sempre se tentou, inutilmente, achar razões para o início de um namoro:
semelhança de caráter, complementação, necessidades saudáveis ou até patológicas,
programas de computador etc. Apaixonamo-nos geralmente contra tudo o que é racional
e lógico. A essência de um relacionamento não está em combinações estáticas, mas no
acontecimento, no encontro misterioso, singular e não repetitivo de duas pessoas em
momento específico, com seus anseios, vazios e esperanças.
O encontro com o amado desperta áreas até então inexploradas. O amor não se
acende naquilo que já existe, mas no que poderá vir a existir e ser integrado. O amor
cria o que sem ele não seria possível, liberta o que estava preso. Cada pessoa que nos
fascina desperta em nossa psique algo que almejamo s.
Através da coevolução, pessoas que se amam podem, pela influência mútua,
desenvolver novas habilidades. É estimulante extrair do amado novas possibilidades e
arriscar-se em novas áreas por causa do seu amor. A faísca acontece porque sentimos
certa insatisfação e estamos em busca de novos desafios.
A interação alcança o ápice da intensidade, no amor, quando ambos se
encontram com a mesma disposição de desenvolvimento e se disponibilizam para isso.
A ressonância acontece quando estimulamos no outro o que é estimulado em nós.
Podemos ajudar o outro a dar um passo importante em seu processo de desenvolvimento
quando esse passo também está acontecendo em nós. Os parceiros só conseguem se
entender e interagir em áreas compatíveis e que permitem a dinâmica desse processo.
45
Influências do meio ambiente
As influências de aspectos culturais, socioeconômicos, políticos, entre outros, definem
valores, normas e alvos do casamento com os quais o casal é confrontado e tem de lidar
no dia a dia. A sociedade influencia muito o autoentendimento, o entendimento do
próximo, do papel de cada um e a valorização da parceria.
Os relacionamentos com a família de origem são um fator importante na escolha
do parceiro e na decisão de querer viver com ele. Geralmente os parceiros querem evitar
as experiências negativas e perpetuar as positivas. Alguns procuram um parceiro que os
liberte dessa herança, enquanto outros escolhem alguém que a reforce.
Acontecimentos e circunstâncias externas, e, portanto, imprevisíveis — como
carreira, emprego, mudança de moradia, grau de satisfação no trabalho, possibilidade de
bons relacionamentos profissionais, cooperação ou intrigas, decepções e retrocessos
profissionais —, influenciam fortemente o relacionamento.
Os parceiros podem, ainda, enfrentar sofrimento decorrente da impossibilidade
de ter filhos ou de conflitos devido a uma gravidez inesperada. Doenças, morte de filhos
ou parentes também provocam forte impacto no vínculo.
Assim, entendemos que nossa identidade não é estática; ao contrário, ela se
desenvolve e precisa transformar-se. E isso não ocorre apenas com os jovens. Adultos
também têm necessidade intensa de ser percebidos e de receber respostas do ambiente
em que vivem, as quais confirmarão ou corrigirão a autodefinição. O adulto precisa
afirmar-se, perceber-se como alguém de valor, ativo, útil e digno de ser amado. E isso
se dá por meio de sua imagem refletida no olhar de seu parceiro.
Nos relacionamentos amorosos, o sentimento de autovalorização é reforçado
pela experiência de ser importante para o outro. Experiências recorrentes desde a tenra
infância se transformam em referências que funcionam como matriz seletiva da
percepção, orientando pensamentos e comportamento. A pessoa psicologicamente
saudável questiona a fortíssima influência destas experiências. Tenta verifica
constantemente até que ponto a avaliação que ela faz de seu mundo interior e exterior
está adequada à realidade. E não raro, perceberá a necessidade de alterar a imagem que
fazia de alguém, por não corresponder à experiência atual.
Nossas forças se estruturam e ganham consistência quando, na tentativa de
alterar, influenciar e controlar o meio ambiente, elas encontram resistência, que, por sua
vez, nos desafia e fortalece na concentração, na perseverança, na capacidade de
sublimar, de esperar para sermos supridos etc. Ninguém melhor que a pessoa amada
para confirmar e desenvolver nosso amor próprio. Ninguém melhor que ela, que
participa de todas as áreas de nossa vida, para desafiar nossas forças e nos estruturar. O
relacionamento amoroso permite que as pessoas se sintam mais reconhecidas e se
tornem mais realistas e mais integradas ao ambiente.
Até agora focalizamos mais a interação com o ambiente não ativo, como o
escultor com sua pedra. A resposta que ele recebe da matéria está relacionada a seus
julgamentos sobre a qualidade e a consistência da pedra, das ferramentas que usa etc.
Quando o ambiente é uma pessoa, as coisas se complicam, pois ela não apenas
responde, mas é ativa e intencional na interação. São dois “eus” que interagem, cujo
tema é o “guia” dessa interação. Muitas vezes é difícil distinguir quem age e quem
reage.
Desde a mais tenra infância, formulamos hipóteses pelas quais percebemos e
ordenamos o mundo. Cada um de nós forma essa matriz a partir das próprias
experiências e da singularidade biológica masculina ou feminina, com tudo o que isso
significa: menstruação, ejaculação, mudanças físicas etc. São principalmente os pais que
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explicam às crianças as primeiras experiências da vida. Estas interpretações que
julgávamos universais tornam-se relativas quando comparadas às do parceiro.
Estes pressupostos familiares são geralmente reforçados através de ritos como a
maneira de festejar o Natal ou de orar antes de dormir. Por isso é tão doloroso
questioná-los. Para caminhar junto, precisamos de construções compatíveis, falar a
mesma língua. Não significa concordar com todas as opiniões e convicções do outro,
mas entendê-las e ter empatia.
As construções de pessoas da mesma cultura são mais parecidas. Pessoas de
países, religiões e camadas sociais diferentes apresentam mais conflitos.
Estatisticamente, elas tendem a escolher, por intuição, um parceiro com construções
semelhantes. Embora a compatibilidade de duas construções pessoais seja limitada,
trata-se de condição importante para a evolução da parceria. Dependendo da pessoa,
podemos nos comunicar muito bem sobre certos assuntos, e pouco ou nada sobre outros.
A limitação de temas, no entanto, sempre ocorrerá. Em caso de divergência de opinião,
quanto maior a área de contato mais recursos o casal terá para chegar a um consenso.
As crises
Crises impõem mudança na parceria, e elas ocorrem quando um ou os dois parceiros já
não se identificam com o modelo que ajudaram a construir. Geralmente esse processo
não é percebido. Procuramos manter, à força, a identificação com a parceria, por medo
de que o mundo desabe, ou que o parceiro não aguente o confronto.
A crise pode se manifestar de maneira abrupta e suas consequências podem ser
implacáveis. Casamentos se rompem após vinte anos sem que um dos parceiros saiba o
motivo. O que sai se vê livre e o que fica não entende o que aconteceu. O
desencadeador da ruptura — aventura amorosa, experiência de autoconhecimento,
psicoterapia — age como um raio, destruindo tudo rapidamente.
A vida a dois e a separação nem sempre são decididas racionalmente. O início
do questionamento da relação às vezes se dá a partir do contato com outras pessoas, por
meio de um amigo que vê a relação sob uma perspectiva diferente. Dentro da própria
relação a mudança é mais difícil, pois os parceiros estão acostumados a uma
determinada perspectiva. Contudo, circunstâncias da própria parceria podem promover
também a tomada de consciência.
Os parceiros que passam por uma crise podem buscar uma saída juntos. No
entanto, geralmente o processo de mudança coevolutivo é assincrônico, isto é, um dos
parceiros dá o primeiro passo no processo de desenvolvimento e, na melhor das
hipóteses, o outro o segue.
Os processos pessoais e relacionais são afetados pelas influências históricas e
sociais. O feminismo e a emancipação da mulher são exemplos desse fenômeno. Além
de assincrônico, o desenvolvimento se inicia geralmente com a mulher. O
desenvolvimento do novo se dá com o colapso do antigo. É necessário ter coragem para
realizar a mudança, pois o parceiro resiste, exigindo às vezes ajuda de uma terceira
pessoa, um terapeuta, por exemplo.
Quanto mais intensos forem o medo e a insegurança frente às mudanças, mais
radical será a luta contra o parceiro. O pensamento de querer vencer durante esse
processo de emancipação é trágico, pois os parceiros se envolvem numa luta espiral de
poder. Essa escalada pode terminar em divórcio sem que o conflito seja solucionado.
O processo emancipável maduro, no entanto, é alcançado com tolerância,
compreensão e aceitação da forma de pensar e sentir do outro. Geralmente é iniciado
pela mulher, na medida em que ela é a que mais ganha poder, prestígio social e
autonomia por meio da emancipação, enquanto o homem, ao contrário, acaba perdendo
47
mais, do ponto de vista social.
Os homens não se assustam apenas com a perda de poder e prestígio, mas
também com a perda da segurança de ter uma mulher que se submeta à relação. No
entanto, quando a emancipação dela resulta em maior aporte econômico e mais
responsabilidade compartilhada, os homens se alegram com esse processo.
Em contrapartida, a parceira costuma incentivar a emancipação masculina. A
emancipação da mulher promove mudanças no homem para que a relação se mantenha
funcional. Significa que o homem estará sendo confrontado por uma mulher diferente
daquela com quem casou.
Na colusão, os parceiros acionam, inconscientemente, padrões destrutivos, cuja
circularidade pode ser observada: ela se sente impotente porque ele sempre toma a
iniciativa de ajudar, e ele ajuda porque ela se diz impotente. É impossível saber o que
ocorre primeiro. Um precisa do outro para existir, e essa codependência impede o
crescimento.
Aparentemente, a colusão produz proximidade, atraindo os parceiros. Eles se
apaixonam, na esperança motivadora de desenvolver-se com a ajuda do parceiro. De
fato, certos desenvolvimentos pessoais ocorrem dessa maneira. Ambos precisam um do
outro, o que confere à parceria um caráter especial, o sentimento de ser ajudador
indispensável na vida do parceiro e de ter nele um ajudador essencial.
Tais expectativas alimentam a perspectiva de fazer frente aos déficits da
infância, como o trauma causado pela perda do amor de um dos progenitores. Espera-se
que a carência seja suprida pelo parceiro que se sentiu inútil quando criança, mas que
agora tem a oportunidade de sentir-se útil ao mimar o outro. Esses parceiros precisam
um do outro e se ajudam na expectativa de experimentar novas possibilidades na vida.
O parceiro que se sente desamparado, dependente, adota uma posição regressiva,
enquanto o outro, o líder, progressiva. Eles se retroalimentam com a mesma
intensidade. O encontro de tais parceiros pode ser produtivo. No entanto, embora o
desejo de ajuda mútua seja normal, o comportamento polarizado regressivo-progressivo
pode se tornar destrutivo quando não consiste em opção, mas em imposição, deixando,
com isso, de ser estímulo ao desenvolvimento para se tornar impedimento.
Uma vez experimentados, o amor e a proteção podem desencadear o temor de
perdê-los. Na primeira decepção, em vez de lidar com a frustração, a tendência é tentar
garantir a continuidade do amor e da proteção, ditando o comportamento do parceiro.
Ao contrário do que se possa pensar, o desamparado não é fraco. Ele é capaz de
tiranizar o parceiro, manipulando-o com culpa.
Por sua vez, o ajudador tampouco consegue abrir mão de sua posição sem que se
sinta ameaçado, pois é inseguro e só se sente amado quando útil ao parceiro. Esses
esforços fundamentam-se em medos profundos, incluindo o de reavivar os sentimentos
de dor e frustração da infância.
A colusão é destrutiva porque cada parceiro precisa do comportamento
polarizado do outro para manter a própria estabilidade e, por isso, não concede
liberdade ao outro, engessando seu comportamento. Ela oferece proteção mediante a
interdependência, ainda que cobre um alto preço: diminuição da qualidade de vida. A
colusão, entretanto, pode ser interrompida por contingências que afetem um dos
parceiros, impossibilitando-o de continuar a desempenhar o mesmo papel. Evitar
conflitos abertos é uma de suas características para garantir a proximidade. A colusão é
uma perturbação da coevolução, que impede o desenvolvimento visto como ameaça à
estabilidade.
Coevolução é uma forma saudável de vida a dois, pois promove o respeito à
autodeterminação e responsabilidade. Numa colusão, os parceiros determinam o
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comportamento um do outro, fixam, influenciam e invadem as funções centrais da
personalidade. Limites pessoais difusos geram confusão estrutural na busca do
sentimento de proximidade e de pertencimento. Quanto mais dependência mútua houver
entre duas pessoas, maior será a luta pelo poder que permeia a relação, pois nenhum dos
dois se entregará ao outro se não puder, ao mesmo tempo, controlá-lo. Decidir pelo
outro, assumir responsabilidade pelo outro, negociar pelo outro podem ser sentidos
temporariamente como ajuda, mas a longo prazo podem desequilibrar a balança da
autovalorização e tornar-se destrutivos.
Ainda que a intenção de ajudar seja nobre, não é legítimo modelar o outro,
determinar, ou achar que sabe melhor o que é bom para ele, como deve pensar ou sentir.
Aquele que se deixa delimitar dessa forma pelo parceiro perde a capacidade de
autonomia e ainda torna-se alvo de crítica e desvalorização, pela cobrança paradoxal de
ser muito dependente.
A exigência da responsabilidade pela própria vida fornece limites aos parceiros,
desde que cada um se autorregule, não apenas dentro da parceria, mas também em seu
sistema de construção pessoal e na troca com o campo social. Cada um tem de abrir
mão da proximidade extremada, da determinação circular dos sentimentos,
pensamentos, desejos e das manipulações condicionais. Somente quando não
determinamos comportamentos, sentimentos e pensamentos do parceiro, conseguimos
sentir que estamos sendo compreendidos e levados a sério.
Os conflitos podem surgir, ainda, devido à diferente compreensão de um mesmo
evento. As diferenças de percepção podem gerar muitos desentendimentos porque os
parceiros não admitem que o mesmo fato possa ser vivenciado de modo distinto. Cada
um crê que sua perspectiva é a correta. Muitos conflitos graves poderiam ser evitados se
aprendessem a respeitar essa diferença de percepção, e a compreender que o amor não
consiste em abrir mão da própria perspectiva, mas em enriqueça-la com a perspectiva do
outro.
A busca por hipóteses acerca de si mesmo e do mundo nunca é tão intensa
quanto na confrontação diária com o parceiro. Dois jovens adultos levam imagens de
sua família de origem para dentro do construto sistêmico e, num primeiro momento,
constroem-no de modo a serem compatíveis. Gradualmente, cada imagem precisa ser
corrigida: “eu não sou como você me vê; não sou como seu pai”. Os parceiros não
conseguem se conhecer como são de fato, mas apenas formar hipóteses, que precisam
ser modificadas em função da atitude do parceiro.
Assim, em condições naturais de vida, o ser humano nunca poderá ser visto
como verdadeiramente é porque seu comportamento, incluindo o do próprio observador,
varia de acordo com o contexto. Isso é particularmente verdadeiro na relação entre os
parceiros. No início, existe a busca natural de ser visto e avaliado positivamente pelo
outro. Ele está disposto a reforçar determinados comportamentos quando desencadeiam
no parceiro especial alegria e reconhecimento; da mesma forma, evitará outros que
ameacem a relação ou possam provocar reações negativas.
Em suma, sempre enxergamos o parceiro pelos óculos das próprias experiências.
A imagem que dele fazemos pressiona-o a comportar-se de acordo com ela. Ajustar-se
um ao outro é um processo contínuo, portanto não podemos dizer que estamos
ajustados, mas, sim, que conseguimos compartilhar criativamente e manter um quadro
que permita ajustar nosso desenvolvimento contínuo.
A busca pelo outro
Buscar o outro é a essência do amor; não encontrá-lo. O desencontro se torna a
motivação para a constante busca. Explicar-se ao parceiro é ao mesmo tempo explicar-
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se a si próprio. As incompreensões do parceiro revelam o que há de confuso em nós. À
medida que nos definimos para o parceiro, cresce a própria autodefinição. A vitalidade
da vida em comum só pode ser mantida quando os parceiros exercitam continuamente a
compreensão mútua. Somente quando o parceiro permanece um tanto misterioso, a
interação continua viva e criativa.
Dois parceiros nunca se complementam perfeitamente. Embora a
compatibilidade seja decisiva, sempre constroem realidades diferenciadas. Isso gera
sofrimento e amor. A tensão produzida pelas diferenças é, no entanto, o sal da relação,
tornando-a uma aventura única, inconfundível. Mesmo assim algumas possibilidades na
parceria nunca se realizarão. O desenvolvimento de cada parceiro leva ambos a um
espaço de tolerância, no qual têm de negociar constantemente para manter a relação.
Essa contínua busca pelo outro representa um risco, mas mantém a relação viva. Os
parceiros mobilizam, um no outro, características familiares que precisam ser
reconhecidas para serem integradas como contribuições preciosas ou rejeitadas como
heranças perversas. O casal estimula o crescimento dos parceiros e os parceiros
constroem o casal. O casal confere nova identidade a cada parceiro. No caminho, o
homem e a mulher despertam feridas do passado que precisam ser ressignificadas e
superadas. Assim, eles se fertilizam mutuamente e vão se tornando pessoas mais
inteiras, mais amorosas e mais flexíveis.
Infelizmente, vivemos numa época em que a separação ou divórcio é cada vez
mais encarada como solução para os conflitos conjugais. Em seu excelente livro
Mistérios do coração, Roberto Shinyashiki30 compartilha corajosamente a história de
um fracasso amoroso e confessa seu arrependimento por não ter comprado um bilhete
sem volta. No auge da crise, a separação parece o caminho mais fácil, mas é justamente
nela que o compromisso precisa ser reafirmado para que se possa fazer frente às
dificuldades e construir um relacionamento mais maduro e mais tolerante. A experiência
do autor ilustra de forma magistral as várias fases pelas que passa quase todo
casamento.
A relação começa com o deslumbramento da paixão, que tende a idealizar o
outro e se faz acompanhar de muito romantismo. É uma fase de amor simbiótico, em
que se vive através do outro e se deseja intensamente agradá-lo. O resultado é que cada
um acaba por perder-se no outro e, assim, sentir-se sufocado.
Quando surgem os primeiros conflitos, a mulher tende a cobrar as promessas
irrealistas do momento do enamoramento: “Nunca vou me aborrecer com você!”; “Vou
amar você cada segundo da minha vida”. Frustrado por não conseguir corresponder à
expectativa dela e ameaçado por essa atitude belicosa, o homem tende a se fechar e se
proteger atrás de uma fachada de indiferença e frieza. Os desencontros vão se
acumulando, e cada um desenvolve mecanismos de defesa que são percebidos pelo
outro como rejeição. O distanciamento vai se intensificando junto com o ressentimento.
Paulatinamente, o outro vai sendo percebido como ameaça. O príncipe encantado vira
sapo, e a princesa vira bruxa. A sombra do outro se manifesta a ponto de encobrir sua
luz.
A energia é então canalizada para fontes alternativas de realização. Assim
muitas pessoas sufocam o desejo de serem amadas buscando compensação no
desempenho profissional. Tornam-se executivas bem-sucedidas, mas sem um parceiro, e
muitas vezes também sem filhos. Alcançam realização social e material, mas têm
dificuldade de ocultar a solidão.
Talvez para reagir ao modelo materno ou atender a expectativas sociais, muitas
mulheres abriram mão da vida afetiva em prol da autonomia financeira. Estas mulheres
30
P. 85.
50
fálicas (muitas até usam ternos!) mutilam o coração e se privam de uma relação
amorosa de mão dupla. Os homens não ousam aproximar-se, pois elas transmitem certa
arrogância e autossuficiência — nada além de uma fachada — que impedem a troca
genuína.
Na verdade, essas pessoas precisam de coragem para reconhecer os mecanismos
de defesa desenvolvidos para se protegerem de possíveis abusos. Precisam curar as
feridas responsáveis por essas atitudes defensivas e aceitar o risco de se apaixonarem.
Risco, sim, pois amar significa tornar-se vulnerável.
Muitas vezes, estar certo e demonstrar que o outro está errado são estratégias
que adquirem mais importância que encontrar uma forma de conviver. A separação é
fruto do círculo vicioso que nos leva a revidar as atitudes hostis do outro, sem perceber
que ele também está apenas reagindo a nossas agressões. Ficamos encarcerados entre o
grande desejo de ser amados e a grande inabilidade para amar.
Assim, até que reunamos coragem para reconhecer que somos os autores dessas
armadilhas, a história corre o risco de se repetir diversas vezes. É preciso maturidade
para enfrentar a situação, e ela depende da capacidade de olhar para dentro de nós
mesmos e assumir nossa responsabilidade, tanto pela felicidade como pelo fracasso.
Reafirmar o compromisso com o outro e o desejo de superar a crise é nossa
grande oportunidade de aprender a amar o outro como ele é e de sermos amados como
somos. Ao exercer nossa liberdade de optar por permanecer ao lado do outro, somos
levados a descobrir uma forma de estar com ele sem perder a individualidade. A relação
simbiótica pode, então, evoluir para uma relação de companheirismo e crescimento
mútuo.
“Um casamento é como a floresta encantada das histórias de criança, princesas e
bruxas. Tudo, ao mesmo tempo, é simples e misterioso”.31 Sem notar, vamos nos
perdendo na floresta linda e fascinante, ignorando as pedras do caminho para não
quebrar o encanto. Quando descobrimos que estamos perdidos, ficamos desesperados.
Na tentativa de encontrar o caminho, vamos nos distanciando, e prosseguimos,
solitários, em busca de um novo encontro que nos transporte novamente ao reino da
magia e nos devolva a sensação de deslumbramento que tanto almejamos.
Muitos homens se identificam com o cavaleiro medieval, cuja vida se desenrola
fora do castelo, conquistando reinos e lutando contra dragões. As mulheres eram criadas
para ficar dentro do castelo, anulando-se e esperando a volta do herói. Algumas foram à
luta, mas assumiram um tipo masculino de viver: solitário, andarilho, reprimindo o
medo e o afeto. O castelo ficou abandonado, e os filhos ficaram órfãos.
O grande desafio do homem e da mulher é aceitar tanto os ganhos como as
limitações da vida a dois. O perigo não é o outro. Ele está em nós. São nossos medos e
mecanismos de defesa. Por isso, não se trata de conquistar reinos, mas de nos
desarmarmos e de andarmos a segunda milha, pois o caminho se faz ao andar... E amar
só se aprende amando!
É importante ainda perceber o outro como obra-prima de Deus e templo do
Espírito Santo, o que nos permite ver a mão do Artista, que não somente criou o outro,
mas o restaura a fim de que se pareça cada vez mais com Ele. Com isso, podemos nos
tornar instrumento de Deus na vida do outro e ajudá-lo a perceber a obra que o Senhor
está fazendo nele, reconhecendo seus dons e talentos e encorajando-o a desenvolvê-los
para a glória do Criador.
Os evangelhos mostram como Jesus reconduz a mulher ao seu desejo
primordial. A mulher pecadora, ao ungir-lhe os pés, revela que em Cristo encontrou o
amor por que tanto ansiava, e o que antes constituía um artifício de sedução se torna
31
Idem p. 97.
51
expressão de respeito e devoção. Ela se derrama diante de Deus em uma das mais belas
expressões de quebrantamento e adoração. Traz suas emoções, seu cheiro, sua história,
seu afeto. Perde a pose, a compostura, para se entregar ao seu amor.
Para aqueles, contudo, que não conseguiram preservar a relação, que optaram
pelo divórcio, resta o consolo da graça de Deus, que nos ajuda a reconhecer nossas
falhas e a olhar para o futuro com esperança, a partir do perdão conquistado por Cristo
na cruz. Há para todos a esperança do socorro da graça de Deus, no caminho da
reparação.
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Capítulo seis — O princípio feminino como atitude
Um elemento essencial no caminho da reparação é a capacidade de ouvir. Ouvir com as
entranhas e não só com a mente. Como Maria, mãe de Jesus, que ouve, crê e guarda “as
palavras, meditando-as no coração” (cf. Lc 2:19).
Interação pelo diálogo
Dialogar é ouvir o que se diz, o que o dito move e constrói em mim, as imagens que
desperta, e que outras palavras ecoarão. É escutar com todo o ser: corpo, alma e espírito.
Ouvir requer silêncio e receptividade, mas também vulnerabilidade para se deixar
fecundar por Deus.
Nossa relação com Deus começa quando o ouvimos nos chamar pelo nome. Ele
nos tira da multidão e do anonimato, e nos revela que nos conhece pessoalmente. Cabe a
nós responder a esse chamado e nos render ao seu amor.
Para ouvir é preciso calar, e essa é justamente nossa maior dificuldade. Nosso
ouvido está poluído, sobrecarregado, superestimulado pela incidência permanente dos
mais diversos e crescentes ruídos, que nos viciam, se sobrepõem aos ruídos internos e
nos distraem de nós mesmos.
Temos medo do silêncio que nos leva ao encontro de nós próprios, à escuta da
alma com sua peculiar musicalidade. Somos inseguros e apegados ao ser autoidealizado,
que construímos com o intuito de ser amados. Suspeitamos que, privados dessa imagem
ideal, nada exista de consistente em nós. No entanto, em geral somos melhores do que
supomos. Só no silêncio seremos capazes de descobrir os tesouros enterrados em nós
mesmos, de ouvir a melodia que nos revela a verdade do nosso ser e que fica, esquecida
e reprimida, no fundo da alma.
Ouvir é uma forma concreta de amar. É uma atitude de genuíno respeito e
interesse, que conduz à compreensão e ao crescimento. Deus manifesta seu amor por
sua disposição em nos ouvir: “Amo o Senhor, porque ele ouve a minha voz e as minhas
súplicas. Porque inclinou para mim os seus ouvidos para mim...” (Sl 116:1).
É preciso saber ouvir. Acolher. Deixar que o outro entre dentro da gente. Ouvir
em silêncio [...]. Há pessoas muito velhas cujos ouvidos ainda são virginais:
nunca foram penetrados. E é preciso saber falar. Há certas falas que são um
estupro. Somente sabem falar os que sabem fazer silêncio e ouvir. 32
Ouvir é construir com o outro uma ponte de mão dupla: deixar-nos penetrar pelo
outro enquanto também entramos em seu mundo. Com isso ocorre o que chamamos de
identificação e encarnação: “colocar-se no diapasão” e ouvir a ressonância em nós
mesmos. Assim, ao ouvir o parceiro falar de seus medos, sou capaz de me colocar em
seu lugar e perceber quanto esses medos também me assustam; posso sentir sua angústia
e ter compaixão. Encarnar é isto: assumir a realidade do outro como minha.
Quando exteriorizamos o que está no coração, buscamos no parceiro não a
sabedoria do conselho, mas o silêncio da escuta.33 Embora o silêncio seja geralmente
entendido como indiferença, solidão, abandono e morte, ele pode ser amigo. Uma lição
importante é perceber que mesmo o silêncio de Deus é expressão do seu amor.
Sim, ouvir com os ouvidos, mas também com as entranhas. Assim Isabel ouviu a
saudação de Maria (Lc 1:41-44). A voz ressoa de forma diferente quando vem “da boca
para fora” e quando se origina das vísceras. Os professores de canto ensinam que o som
32
33
Rubens A LVES. O retorno E-Terno, p. 25.
Idem, Pai nosso, p. 27.
53
não deve vir da boca, mas do ventre. O sábio Salomão aponta o prazer decorrente de
pronunciar e ouvir o nome da pessoa amada: “O seu nome é como perfume derramado”
(Ct 1:3). Deus nos resgata do pavor associado ao anonimato (cf. Is 43:1). Não ser
chamado pelo nome é não ser identificado, é estar perdido, é não pertencer. “O nome é
„in/vocação‟: um chamado que vem de dentro [...]. Os nomes transformam ausências em
presenças e marcam o lugar das coisas invisíveis”.34
O ouvido é também seletivo. A mãe reconhece a voz do filho e desperta ao
mínimo som proveniente dele, enquanto outro barulho qualquer, muito mais intenso,
não lhe perturba o sono. Acostumados aos ruídos diversos da cidade grande, só ouvimos
o canto dos pássaros quando atentamos especificamente a ele.
Quando nos dirigimos a Deus, falamos mais que ouvimos o que ele tem a nos
dizer. Repetimos chavões, palavras ocas. Rubem Alves afirma que “falamos alto para
não escutar aquilo que o desejo nos segreda em voz baixa [...]. É preciso ficar ocupado
para não ouvir. Mas não se percebe que a voz de Deus só pode ser ouvida no silêncio do
desejo”.35 Por isso, ele nos convida a uma experiência transformadora:
Entra no silêncio
Longe das muitas palavras
e escuta uma única Palavra
Que irá subir do fundo do mar...
Aquela que dirias
se fosse a última a ser dita. 36
Há uma empatia entre o coração do homem, depurado de seus desígnios
enganosos, e o próprio Deus. João Crisóstomo disse: “Encontre a porta do seu coração,
você irá descobrir que é a porta do Reino de Deus”.37 Para enfatizar esse aspecto
empírico do conhecimento de Deus, a Bíblia lança mão da palavra grega gnosis, que
traduz o hebraico da'ath, cujo significado é o conhecimento pleno, não apenas
intelectual (relativo à mente), mas emocional (impregnado de amor).
A Palavra, portanto, deve penetrar em nós em dimensões mais profundas que a
mente, para tocar a consciência, o coração e também a vontade ou o desejo mais íntimo.
O propósito de lê-la não é ampliar o conhecimento intelectual, mas nosso amor por
Deus através de um encontro que gera transformação. É o convite de Jesus à mulher
samaritana (Jo 4:1-30). Ele a leva a perceber que seus relacionamentos fortuitos revelam
uma busca íntima e um anseio profundo de amor absoluto que somente Deus pode
suprir, uma sede que só ele pode saciar.
Jesus restaura o desejo mais íntimo da mulher e a convida a tirar água da Fonte
da Vida, em vez de limitar-se a cisternas rotas, na dependência de outros. Ao aceitar o
convite, ela é suprida e transborda a ponto de abençoar os que a rejeitavam, tornando-se
o primeiro “apóstolo” entre os samaritanos. Maria de Betânia, ao ungir os pés de Jesus,
responde igualmente ao amor que ele lhe oferece. Embora os discípulos considerem
irracional o gesto da mulher, ele transmite, na verdade, gratidão e paixão. Ela se
aproxima para dar, e não para receber. E hoje, como expressamos nosso amor por Deus?
A mulher que ouve o próprio coração é capaz de iniciativas emocionantes para
comunicar seu amor. Ainda tenho clara na lembrança uma experiência que muito me
comoveu. Eu tinha convidado uma amiga recém-convertida para me acompanhar em um
retiro de mulheres, onde eu ia falar sobre a relação de Jesus com as mulheres. No
34
Idem, p. 40-41.
Idem, p. 20.
36
Pai Nosso, p.10.
37
A. BLOOM, L’École de le prière, p.65.
35
54
caminho, entre muitas conversas, elogiei o perfume que ela estava usando. Durante as
palestras, cheguei a mencionar esse gesto de Maria como expressão de gratidão, um
amor que se manifesta através de atitudes concretas. Qual não foi a minha surpresa
quando, de volta para casa, descobri, escondido em minha mala, o perfume de minha
amiga!
Mas os homens apaixonados também são criativos! No dia do nosso décimo
quarto aniversário de casamento, meu marido me chamou para ver a vista da janela e
deparei com uma inscrição pintada em letras imensas na rua em frente: “Isabelle, 14
années de bonheur!”. Ele tinha pichado a rua à noite, com a cumplicidade do nosso
filho de dez anos e até ouviu a reprovação de um passante, que resmungou: “É assim
que os pais ensinam o mau caminho aos filhos!”. É comum haver alguma censura por
parte das pessoas que resistem ao amor. Assim, expressar amor não consiste apenas
num ato criativo, mas também corajoso! Pois amar significa correr riscos, abrir-se e
doar-se.
A capacidade de ouvir está relacionada com o modo como falamos. Na hora do
conflito, a tendência do homem é se calar e a da mulher, falar demais. O desencontro
entre homem e mulher deve-se em grande parte à dificuldade de acolher a perspectiva
diferente do outro. Em vez de reconhecer nossas limitações, nós as projetamos no outro.
Em seu livro Minhas razões, tuas razões, Paulo Gaudêncio afirma que o homem é pior
que um animal, pois “tropeça duas vezes no mesmo buraco. Qualquer outro bicho
tropeça e diz: “Epa, não vi o buraco”. O homem fala mal da prefeitura. Não assume sua
responsabilidade no tropeço e, se não assume, vai continuar tropeçando nos mesmos
buracos”.38 Adão já começou colocando a culpa na mulher e, em última instância, no
próprio Deus: “A mulher que me deste...” (Gn 3:2).
Cada um acusa interiormente o outro por seus fracassos, mas não tem coragem
de expressar as mágoas; então, limita-se a jogar a poeira sob o tapete e, mais uma vez, o
amor vai sendo substituído pelo distanciamento. Para evitar brigas, o casal vai
acumulando ressentimentos que se transformam em verdadeira muralha.
Em vez de acusar o outro, precisamos resgatar a capacidade de ouvi-lo e
compartilhar emoções, medos, desejos, frustrações e mágoas. Não devemos fugir dos
conflitos, mas encará-los como oportunidade de crescimento. Vivemos divididos por
desejos ambivalentes, que geram muita tensão. Somos desafiados diariamente a escolher
entre a vida e a morte, o amor e o ódio, impulsos construtivos e destrutivos.
Qualquer escolha, contudo, significa abrir mão de algo. A mulher pode, ao
mesmo tempo, desejar ser protegida pelo marido e andar com as próprias pernas. O
marido conscientemente promove a independência da esposa, mas no fundo anseia por
mantê-la disponível para ele.
Ser manso não significa privar-se de agressividade, mas ser capaz de canalizá-la
para fins positivos. A agressividade é necessária para nos proteger, para estabelecer
limites e não nos deixar invadir. Se não, ficamos acuados, vamos murchando até
implodir por meio da depressão, ou explodir como um vulcão.
O medo é também um aliado, pois sinaliza os perigos. Em vez de negá-lo ou nos
deixarmos paralisar por ele, é preferível vê-lo como desafio. Por meio do amor
incondicional de Deus, podemos superar o medo do fracasso e da rejeição, e assim
correr riscos razoáveis, pois sabemos que, independentemente do desfecho, em Deus
podemos encontrar estímulo, compreensão e consolo.
Em suma, em vez de jogar a culpa no outro, cada um de nós precisa reconhecer
sua parte. Quando eu digo, por exemplo, que o outro não me deixa andar, esse é apenas
um lado da situação. A verdade sempre tem mão dupla. O outro até pode desejar manter
38
Paul GAUDÊNCIO, Minhas razões, tuas razões, p.12.
55
a dependência, mas não terá êxito se eu não permitir. Cada parceiro precisa olhar dentro
de si próprio para ver o que o impede de andar. A única chance de aprimorarmos o
relacionamento é cada um assumir a responsabilidade de mudar a si mesmo, porque
mudar o outro é impossível. Se eu mudar, talvez, a partir da minha mudança, o outro
mude; é como um móbile que se move a partir do movimento que começa em uma das
peças. Esperar que o parceiro dê o primeiro passo pode me levar a desperdiçar uma vida
inteira.
Na hora do conflito, portanto, não se trata de saber quem está certo, mas quem
tem a graça de dar o primeiro passo rumo à transformação e, com isso, permitir a
mobilização dos recursos internos para superar as dificuldades. O erro está em querer
viver no outro o que não sei viver em mim; está em me projetar no outro, em vez de me
espelhar nele para me enxergar melhor.
Em geral, o que nos irrita no outro nada mais é que a projeção, nele, do que não
gostamos em nós mesmos. A libertação só virá quando conseguirmos admitir que o
problema está em nós, e trabalhá-lo. Essa perspectiva é estimulante porque deixamos de
nos ver como vítimas passivas e condenadas a um destino sobre o qual não temos
controle. Se o problema está em nós, é possível resolvê-lo. E só existe uma forma de
sermos inteiros: reconciliando-nos com nossa parte negada e reprimida, que nos
exaspera no outro.
O caminho para conseguirmos ser inteiros é viável porque depende apenas de
nossa coragem de reconhecer-nos, aceitar-nos e assumir-nos. Ouvir o outro, ponderar
suas razões, considerá-las, em vez de querermos ser donos exclusivos da razão, pode ser
o diferencial entre o sucesso e o fracasso. Fracasso não de um ou do outro, mas de
ambos, pois em um relacionamento os dois ganham ou perdem, juntos.
Quando uma pessoa casada me procura na tentativa de superar uma crise no
casamento, insisto em atender o casal desde a primeira sessão porque, se ouvir apenas
um lado, este tentará me convencer de como tem sido maltratado pelo outro e serei
induzida a fazer uma aliança com essa pessoa, configurando o famoso triângulo:
vítima/algoz/salvador. Se os dois aceitarem participar, juntos, da sessão estarão
sinalizando a disposição comum de cooperar.
A participação conjunta traz ainda como benefício a possibilidade de começarem
a perceber os sentimentos um do outro e seus próprios mecanismos de defesa. Suas
queixas estarão sendo ouvidas por uma pessoa neutra, que não está à procura de um
culpado, mas tenta apenas entender a dinâmica da relação. Ao me identificar com cada
um deles, posso criar um ambiente de mútua aceitação.
Um casal me procurou porque o marido estava muito ausente, envolvido com
seus negócios, enquanto a mulher, carente, aumentava continuamente o tom das
queixas. O marido justificou sua atitude dizendo não encontrar em casa um ambiente
acolhedor; a mulher afirmava sentir-se ignorada e frustrada. O primeiro passo foi ajudálos a perceber quão polarizados encontravam-se. Quanto mais ela se queixava, mais ele
sumia, e quanto mais ele sumia mais ela se queixava. Entretanto, à medida que
encaravam a situação, cada um pôde perceber sua contribuição nesse processo
mutuamente desalentador, em vez de se verem apenas como vítimas um do outro.
Na tentativa de entender o mecanismo de defesa de cada um, o homem lembrou
quão arrasado se sentia quando sua mãe se queixava dele de forma exagerada e muitas
vezes injusta. As queixas da mulher o faziam sentir-se impotente e incompetente e, por
isso, buscava no trabalho o reconhecimento que não recebia em casa. A mulher, por sua
vez, havia casado na esperança de preencher o vazio emocional da infância. Ela se
dedicava integralmente ao marido e esperava dele a mesma retribuição.
Entender a dor e os anseios de cada um ajudou-os a passarem de uma espiral de
56
acusações mútuas para a percepção da atitude do outro como um pedido de socorro.
Puderam estender-se a mão, em vez de insistir no caminho destrutivo das ameaças,
muito bem descrito, aliás, no filme A guerra dos Roses.39
Casamento saudável não é aquele em que não há brigas, mas em que os
parceiros conhecem e praticam a arte da reconciliação por meio do diálogo. A paz não
acontece naturalmente, a menos que um dos parceiros tenha se anulado. Quando apenas
um impõe suas necessidades e o outro se limita a supri-las, sem direito a voz própria, o
casal vive uma paz artificial e destrutiva. Duas pessoas completas entram em choque. A
questão principal não está tanto no conteúdo do conflito, nem a quem pertence a razão,
mas em como o casal lida com opiniões opostas para chegar ao consenso, nem que o
consenso seja concordarem em discordar sobre o assunto em pauta.
As diferenças entre homem e mulher tornam-se mais evidentes em situações de
estresse. Quando o conflito se instala, a principal dificuldade reside em preservar um
diálogo construtivo. Na crise, a mulher tende a se queixar e o homem, se isolar, reações
que acabam se tornando um círculo vicioso. A mulher entende o silêncio masculino
como agressão e reage intensificando o tom das cobranças. Quanto mais ela reclama,
mais ele se isola, na tentativa de fugir do confronto.
Os mecanismos de defesa do homem e da mulher se opõem. Embora em geral
ela prefira enfrentar a situação, exagera nas acusações usando termos como “sempre” e
“nunca”. Ele, por sua vez, reage ignorando os problemas, na esperança de que a
tempestade passe. O ciclo de cobrança / descaso transforma os parceiros em inimigos. O
silêncio do homem, que para a mulher soa como provocação, é na visão dele uma
tentativa de proteção. Por isso é fundamental que ambos aprendam a brigar e a entender
que a atitude do outro nada mais é que o desejo de ser ajudado, e não de retaliar.
O homem precisa ouvir mais e encarar os conflitos como oportunidades de
crescimento e fortalecimento da relação. A mulher precisa expressar suas queixas de
forma positiva e objetiva, sem desqualificar o seu cônjuge. Os dois sentem necessidade
de serem amados e respeitados, e ambos têm medo do abandono. Por isso, na hora do
desentendimento, é importante renovar o compromisso que permite ir fundo na crise,
sem o risco de romper o vínculo.
A ameaça de separação não passa de uma forma disfarçada de manipulação. Ela
traz, de modo sutil, a mensagem de que o outro corre o risco de ser abandonado caso
não se disponha a ceder às expectativas do parceiro. Cada um precisa compreender a
dinâmica da relação e ver sua parte no conflito. Em situação de estresse, a mulher quer
desabafar e ser ouvida. Ele quer ajudá-la a partir de seus parâmetros, tentando diminuir
o problema, dar uma solução prática e abreviar as queixas dela. Ela se sente
desrespeitada em suas emoções, desqualificada, desvalorizada e censurada. Ao ouvi-la,
ele desenvolve um plano de ação, interrompe a fala dela com soluções ou comentários
que minimizam suas emoções e a deixam ainda mais brava. Ele acha que está ajudando,
mas só piora a situação. Sem entender porque ela reage tão agressivamente, ele se retira,
ferido.
Uma amiga teve um câncer no seio e sentia muita necessidade de conversar com
seu marido a respeito para tentar descobrir que emoções ela teria reprimido para adoecer
dessa forma. Cortando suas tentativas de tirar cadáveres do armário e lembrar
desencontros do passado, seu marido se concentrava em procurar os melhores
tratamentos. Ele pensava estar ajudando ao pesquisar as últimas descobertas
terapêuticas, mas ela estava frustrada, pois só queria colo e aconchego.
Quando o homem está irritado, refugia-se em sua caverna. Sua necessidade de
tempo e espaço para digerir as emoções precisa ser respeitada. A mulher faz perguntas
39
Título original: War of the Roses, dirigido por Danny DeVito.
57
tratando-o como gostaria de ser tratada por ele. Ela só quer compartilhar o fardo dele,
mas ele se sente invadido e cobrado. Ela interpreta o silêncio dele como rejeição e cobra
até ele estourar, ou se afasta magoada. Quanto mais quieto ele fica, mais ela o cutuca.
Quanto mais ela o cutuca, mais quieto ele fica.
O homem reage ao estresse tentando manter o controle racional, até estourar. A
mulher tende a mergulhar nas emoções. Ele precisa de sossego para entender o que está
acontecendo. Ela busca carinho e atenção para reordenar os sentimentos. Cada um
interpreta a atitude do outro como um ataque pessoal. Na verdade, cada um deve saber
cuidar de si e interpretar a atitude do outro como um pedido de socorro, que merece
compreensão, paciência e respeito.
Sob essa perspectiva, o conflito se transforma em oportunidade para, mediante o
diálogo entre cabeça e coração, ambos desenvolverem a famosa inteligência emocional.
O homem pode aprender com a mulher a deixar as emoções virem à tona. A mulher
pode aprender com o homem a filtrá-las pela lente mais objetiva da razão. Lembro que,
no início do nosso casamento, eu queria entrar na cabeça do Osmar para tentar entender
algumas de suas reações. Muitas brigas evoluíam para um monólogo meu cada vez mais
angustiado diante do mutismo dele. Aprendi, na prática, que precisava dar-lhe o tempo
de que ele necessitava para digerir a situação até que pudesse expressar suas emoções.
Descobrimos também que gritar só aumentava a distância entre nós. Aliás, recebi uma
mensagem na internet comentando que os casais gritam quando não conseguem se
ouvir, evidenciando quão longe estão um do outro.
Ouvir é essencial também em nossa relação com Deus. A obediência, ob-audire,
significa ouvir e assimilar, ou pôr em prática. A gente obedece quando entende o
propósito de Deus. Ouvir a Deus leva a obedecer, ou seja, a colocar em prática o que
ouvimos. E uma forma de expressar nosso amor a Deus é obedecer-lhe. Em contraste,
quem é surdo à voz de Deus tende a tornar sua vida ab-surda. Pois é louco aquele que,
tendo conhecimento de Deus, não lhe dá o devido respeito. Assim, amamos porque
ouvimos e, tendo ouvido, só nos resta obedecer. Acatamos a orientação de Deus por
amor e não por medo, por saber que sua vontade é boa e porque desejamos agradá-lo e
glorificá-lo com a nossa vida. A obediência é uma resposta do coração à Palavra, que é
Cristo.
Transparência: humildade, temor, entrega e vulnerabilidade
São virtudes interdependentes: o temor gera humildade. A consciência da minha
inadequação intensifica o temor. Jesus é humilde e nos chama à humildade. Ele lava os
pés dos discípulos, enquanto nós continuamos a construir paredes entre brancos e
pretos, ricos e pobres, homens e mulheres... Humildade é também um traço feminino.
Trata-se de uma atitude de honestidade com Deus, consigo mesmo e com a realidade. É
a atitude de quebrantamento da mulher pecadora, que se derrama em lágrimas aos pés
de Cristo, enquanto Simão contenta-se em abrir sua casa, mas sem abrir seu coração.
Pelo contrário, considera-se no direito de julgar Jesus e de criticá-lo interiormente. Sua
prepotência de fariseu o impede de ver o Messias (Lc 7:36-50).
Vemos a mesma humildade em Maria. A consciência de suas limitações diante
do Deus altíssimo gera nela reverência e temor que abrem as portas para um
relacionamento íntimo com ele. De fato, Deus se dá a conhecer para aqueles que se
aproximam dele com reverência (Sl 25:14), assim como nós nos abrimos para as
pessoas que sabemos que irão nos respeitar. Maria se apresenta como serva diante de
Deus. Ela conhece a diferença entre humildade e humilhação, e reconhece em Deus
aquele que exalta os humildes e dispersa os soberbos (Lc 1:51-52).
As igrejas contam com um número maior de mulheres porque elas têm mais
58
facilidade de reconhecer seus limites. Cristo foi crucificado porque ensinou uma forma
de amor que é ameaçadora para o homem, um amor que requer total entrega e
vulnerabilidade, enquanto o homem é estimulado a ser forte e a permanecer no controle
da situação. Temos novamente o exemplo de Maria: “que aconteça comigo conforme a
tua palavra” (Lc 1:38). Trata-se de uma entrega de todo o seu ser, inclusive o que tem
de mais íntimo: seu útero. Essa entrega permite gerar o verbo de Deus, a Palavra
encarnada, que traz salvação e restauração para si mesma e para o outro. O princípio
feminino representa essa entrega e essa vulnerabilidade.
Se o Verbo de Deus em Maria se fez semente, é isso que ele deve se tornar em
cada vida, para se encarnar e nos incorporar a ele. Isso é a aliança. Se a religião
parece tão frequentemente uma moral, em vez da Palavra Viva de Deus, que
nos transforma em filhos criados à sua imagem, não seria porque seus
mensageiros não lhe deram corporeidade suficiente? Não há outra forma de
encarnar o filho a não ser como fez sua mãe: na fé e em submissão — de corpo
e alma — à Palavra de Deus, nem que seja ao custo de bagunçar sua vida.
[...]
Com seu fiat, assim se cumpra em mim conforme a sua palavra, Maria é o
modelo de todo crente, homem ou mulher, que só encontrará salvação
acolhendo o Espírito para dar corpo ao Verbo, em seu ser, em sua vida, para
que ele cresça em si próprio até se tornar verdadeira a palavra do apóstolo
Paulo: “Para mim, o viver é Cristo” (Fp 1:21).40
Maria Clara Bingemer acrescenta:
Por sua corporeidade aberta, a mulher pode evocar e transmitir experiências
espirituais com as quais muitas vezes o homem tem mais dificuldade.
Referimos-nos, por exemplo, à experiência relatada, por Teresa d‟Ávila, de
sentir-se esposa de Cristo, de viver o matrimônio espiritual, ou à experiência
central de ser fecundada pelo Espírito de Deus, dando corpo novo ao seu Verbo
e mediando novamente a encarnação para dentro do mundo. 41
Muitos homens, como João da Cruz, Francisco de Assis, Bernard de Clairvaux
também viveram em profundidade essa experiência. São homens que desenvolveram
sua dimensão feminina, sua anima na relação com Deus.
Jesus abençoa os “pobres de espírito” e confronta os fariseus. Porém, até hoje
muitas igrejas se contentam em censurar certos comportamentos como dançar, beber...,
mas camuflam os labirintos escuros do coração. Essa teologia produz “miopia
espiritual” semelhante à do irmão do filho pródigo. O cristão se compara com
assassinos e não se percebe mais como pecador, porque não fala palavrões, nem
extravasa a ira. Ele se identifica com uma fachada cada vez mais distante da realidade
do seu interior. Assim, sua imagem na sociedade é muitas vezes a de uma pessoa
artificial, falsa, reprimida, passiva e alienada da realidade social.
A música evangélica é considerada “certinha, mas sem alma”. Dentro, nos
cultos, o louvor não é uma declaração de amor a Deus, mas uma forma musical de
transmissão de certa mensagem aos ouvintes, ou de lhes proporcionar uma catarse. A
hierarquia é resquício do judaísmo e mantém as pessoas na infantilidade, dependendo de
um pastor que lhes diga o que fazer. As pregações focalizam comportamentos que
devem ser melhorados ou combatidos. Mensagens evangelísticas enfatizam: “Venha
como está”, mas a tônica dos sermões é: “Deus quer algo mais de você”, transmitindo a
40
41
Genevieve HONORE -LAINE. La femme et le mystere de l’alliance, p. 28-29,43.
Maria Clara BINGEMER. A argila e o espírito, p. 187.
59
imagem de um deus cobrador.
Assim, as pessoas tendem a ser movidas pelo medo e a construir uma relação
manipulativa com um deus-patrão, trocando uma vida comportada por bênção e
proteção. A aprovação divina é medida por meio de sinais e de sucesso material. A
ênfase na censura alimenta o medo de errar, o que gera conformismo e omissão, em vez
de encorajar as pessoas a serem ousadas e a promoverem os valores do Reino.
No entanto, ser cristão é passar do domínio do medo para o Reino do Amor, da
condição de escravo para a de filho. O processo de crescimento diz respeito a uma
intimidade cada vez maior com Deus, que me encoraja a confiar em seu amor. Quanto
mais me sinto amada, mais ouso reconhecer quem sou, meus erros, minha verdade. E
quanto mais vejo minha inadequação, mais percebo a profundidade do amor de Deus.
Posso admitir minhas dúvidas sem perder a fé; permitir-me ser amada sem merecê-lo;
olhar para minha sombra sem desqualificar meu lado luminoso por ter sido criada à sua
imagem. A certeza do amor incondicional de Deus me motiva a ir ao encontro do outro
porque fui amada e não para ser amada.
Encarar a verdade sobre mim me poupa da tentação de me ver maior ou menor
do que sou. Esse discernimento me liberta de culpas provenientes de expectativas
distorcidas. Percebo a importância de priorizar as transformações interiores que se
manifestarão em uma vida coerente com a minha fé, em vez de manter uma dicotomia
esquizofrênica. Sou chamada a equilibrar liberdade e santidade, pois cabe a cada um
perceber os próprios limites e escolher o que lhe convém. Sou desafiada a ser sal no
mundo, em vez de me refugiar num gueto. O Espírito me leva a rever os valores,
transmitidos pela tradição, à luz da Palavra. Minha percepção de Deus vai se ampliando
e integrando aspectos novos, como o seu lado materno, que me acolhe e me consola.
Os pastores tornam-se irmãos na fé, mais experientes e maduros, que podem me
edificar, mas também são passíveis de erros. O templo não é a estrutura de pedras, mas
o meu próprio coração, onde sou convidada a adorar a Deus em espírito e em verdade.
Dois ou três irmãos reunidos em nome do Pai já constituem uma igreja e o Reino de
Deus é maior do que as igrejas confessionais históricas. Ele está presente toda vez que é
reconhecido como Rei e toda vez que o Amor triunfa. Assim, a vida cristã não é
submissão a padrões legalistas, mas libertar-se deles para ser discípulo de Cristo. Isto
não me livra das limitações e ambiguidades da minha humanidade, nem do sofrimento
inerente à condição humana. Porém, o sofrimento não me ameaça mais, porque percebo
a presença consoladora do Espírito e a possibilidade dessa experiência não ser em vão, à
medida que amplia minha capacidade de amar e confiar, tornando-me cada vez mais
solidária e sábia.
A verdadeira humildade me liberta do farisaísmo. Ela me lembra de que sou pó,
que todo o bem que há em mim é dom divino, que só existo no espaço da graça. Quanto
mais consciente da santidade de Deus, mais enxergo minha própria indigência, o
“maltrapilho” que há em mim. Mas temor não é medo que afasta, é fascínio, é
admiração que cativa. Sinto-me atraída por esse amor incondicional a que me entrego,
por corresponder ao anseio do meu coração.
Seria devastador ter de reconhecer minha inadequação, sem amor. Mas a
verdade, amparada pelo amor, produz libertação. A verdade me liberta da ilusão de
onipotência, da imagem irreal de mim mesma, das minhas máscaras e das estratégias
que desenvolvi para ser amada. Quanto mais consciente da soberania de Deus, mais
percebo minha vulnerabilidade. Por encontrar nele segurança e abrigo, posso baixar as
armas e reconhecer minha fragilidade. Deus se torna minha força e posso me entregar
aos seus cuidados.
Amar é tornar-se vulnerável para que o outro possa se aproximar; é entrega,
60
revelação, desnudamento. Somente o perfeito amor de Deus lança fora o medo de ser
rejeitado, usado, maltratado. Por saber onde encontrar abrigo e consolo, posso me expor
e correr o risco de amar.
61
Capítulo sete — O princípio feminino na alteridade
Acolhimento e receptividade
A receptividade é uma característica do feminino decorrente da própria morfologia da
mulher. Através do seu útero, a mulher recebe o sêmen que a engravida. Receber é uma
das atitudes mais difíceis, principalmente quando sabemos que não merecemos, ou nos
sentimos incapazes de retribuir. De fato, o amor de Deus é imerecido e incompensável.
Só nos resta confiar nesse amor desproporcional, que Deus já provou na cruz do
Calvário, sendo nós ainda pecadores. Receber Deus é o alvo maior da oração
contemplativa. Mas a iniciativa é dele e cabe a nós esperar. Às vezes ele se torna
imperceptível para avivar nosso desejo e nossa saudade. De qualquer forma, ninguém
aguentaria a presença de Deus muito tempo. Sua proximidade nos faz cair de joelhos, na
convicção de que somos pecadores e de que não temos o direito de estar diante dele.
Somente por meio de Cristo podemos ter a coragem de nos deparar com a santidade de
Deus.
Contemplação não é uma conversa sem palavras, mas um encontro de corações,
que nos desmascara, revelando nossa inadequação e a misericórdia de Deus. O deserto
interior, que João da Cruz chama de “noite dos sentidos”, é o início da oração
contemplativa. A mulher Cananeia, em Mateus 15:26, é um exemplo de alguém que
enfrenta a noite dos sentidos, a crise que provoca o movimento que vai da dependência
inicial em relação aos sentidos e à razão, em direção a uma entrega total à soberania do
Espírito. A atitude de Jesus, recusando o contato, visa a levá-la a um nível mais elevado
de fé. Para chegar lá, é possível que tenhamos de experimentar silêncio e aparente
rejeição. Receber o amor de Deus requer abertura e entrega àquele que se revela como e
quando quer. É a atitude da noiva à espera do noivo. Na espera, deparamo-nos com
nossos medos que precisam ser assumidos e confessados. Aos poucos, o amor de Deus
lança fora o medo da rejeição.
Deus quer ser amado pelo que é, não pelo que experimentamos; isto é, nosso
bem-estar. Não podemos conhecê-lo com a mente, só com o amor. Tudo o que
percebemos de Deus só pode ser uma irradiação da sua presença, e não como ele é de
fato, pois está além da capacidade humana de percebê-lo. Deus transcende nossa
experiência. Nossa tendência de controlar é o maior obstáculo à união com Deus. A
presença dele é como o ar que respiramos: podemos desfrutá-lo, desde que não tentemos
segurá-lo.
Assim, na contemplação aprendemos gradualmente a valorizar coisas e pessoas
sem desejar possuí-las. É uma escola de entrega e desapego. Essa forma de oração só
pode ser avaliada pelos frutos: paz, humildade e compaixão. Seu objetivo é trazer de
volta, no dia a dia, a consciência espontânea da presença contínua do “EU SOU” em,
através e além de todas as coisas.42 Diante dele, rendemo-nos ao desejo de SER,
somente.
Hospitalidade
Assim como a mulher acolhe a vida, dentro dela, para nutri-la e para dá-lhe à luz, faz
parte da mulher o dom da hospitalidade, mencionado na Palavra (Rm 12:13), que a leva
a acolher em sua casa não apenas os amigos, mas pessoas que, por alguma razão,
precisem se refazer. Como dona de casa, ela sabe providenciar as condições materiais:
cama e comida, mas principalmente abrir espaço na intimidade do seu lar, sem que a
pessoa tema ser intrusa. Ela sabe deixar os convidados à vontade e percebe suas
42
Thomas KEAT ING. Open Mind, Open Heart, p. 115.
62
necessidades de aconchego, mas também de privacidade. Hospedar significa estar
receptivo ao outro, perceber quando precisa de atenção e quando deseja se retirar.
Deixar o outro à vontade, para que se sinta em casa, requer sensibilidade e grande
liberdade interior. Somente quem é livre pode deixar o outro livre.
Hospedar pessoas permite, pela convivência, desenvolver intimidade. É no dia a
dia que se conhecem as particularidades do outro, seus hábitos, suas reações em
situações corriqueiras ou inusitadas, seus desejos e suas aspirações. Assim, ao
providenciar as necessidades materiais, abre-se espaço para trocas mais profundas,
confidências, comunhão. É também oportunidade de sair da rotina e de ciceronear o
outro em passeios ou visitas.
Só sabe hospedar quem se permite ser hospedado. É preciso experimentar a
sensação de ser acolhido, o medo de invadir, o prazer das manifestações de apreço e
cuidado, para identificar as emoções do visitante. Quando hospedar é um prazer, essa
emoção é facilmente compartilhada com o hóspede. O prazer requer liberdade e
transparência, respeito aos próprios limites, oferecimento de condições de uma boa
estadia, sem sufocar, permitindo que o outro manifeste as preferências.
Em geral, quando sou hospedada em uma cidade que desconheço, oferecem me
levar ao shopping inaugurado mais recentemente. Para mim, os shoppings são todos
iguais; prefiro conhecer o artesanato local, os lugares pitorescos, as particularidades do
local. Gosto de caminhar em parques, visitar exposições, ir à feira. Mas também preciso
de tempo para ler e meditar; então, não adianta preencher meu dia com atividades. Já
quando as pessoas me visitam, podem ter outro ritmo e outras prioridades. Cabe, então,
verificar o que podemos fazer juntas e o que farão por conta própria. É muito salutar
essa possibilidade de distanciamento e reencontro, de autonomia e comunhão.
A hospitalidade efetiva de alguém em nossa casa é símbolo do acolhimento
emocional do estrangeiro em nosso coração; significa ser capaz de abrir um espaço,
livre e afetivo, onde o outro pode se revelar e ser respeitado em sua individualidade;
significa desenvolver uma amizade que preserva as diferenças, uma união que não é
fusão. Mas, como diz Nouwen,43 o verdadeiro acolhimento supõe também confronto.
Uma casa vazia não é uma casa hospitaleira. Aceitamos o outro como é, mas também
revelamos quem somos.
Cristo deseja estabelecer morada em nós. Abrir espaço para que ele se revele,
não apenas esporadicamente, mas para fazer parte da nossa interioridade, requer a
disposição de sermos confrontados e transformados por sua presença. Na intimidade, o
que vem à tona é o que sou, mais do que minhas palavras e ações. Diante do olhar
amoroso de Deus, posso confessar minhas alegrias e tristezas, meus desejos e medos.
Essa experiência me leva a fazer o mesmo com o meu próximo, sem medo de rejeição
ou invasão, pois sei encontrar em mim esse quarto secreto onde sou recebida
incondicionalmente.
Novamente, o homem e a mulher podem ser complementares em relação à
hospedagem. Em nosso caso, Osmar [Ludovico] gosta de preparar pratinhos especiais,
enquanto eu gosto de levar as pessoas para passear. Assim, fico feliz que ele assuma a
responsabilidade pelas refeições, e ele fica feliz que eu organize a programação cultural,
deixando-o livre para nos acompanhar ou não. Nessas condições, hospedar amigos
torna-se um prazer compartilhado.
Solidariedade e afetividade
O princípio feminino é o princípio da relação e da afetividade. Ele dá primazia ao amor,
que é tão vital para homens e mulheres. A mulher naturalmente tende a dar prioridade à
43
Crescer: Os três movimentos da vida espiritual, p.121.
63
sua vida afetiva. O homem precisa superar seus medos e barreiras culturais para se abrir
ao amor. Todo ser humano anseia por amor, mas, quanto maior o desejo, maior o medo.
E nossa experiência humana nos trouxe muita frustração. Por mais que nossos pais
tenham nos amado, quem nunca experimentou sentimentos de rejeição, abandono,
inadequação?
Nossa identidade humana é construída por meio do relacionamento inicial com
os pais. Mas nascer de novo significa reconstruir nossa identidade em Deus, o único
capaz de suprir esse anseio de amor absoluto. Cada vez que algo substitui Cristo em
nós, experimentamos um sentimento de fracasso e traição de nossa vocação e de nossos
sonhos.
Mas, mesmo traindo a nós mesmos, tentamos nos conformar ao papel social
preestabelecido. Temos medo do sucesso, de aparecer e de sermos criticados, de não dar
conta do que esperam de nós. “Aquele que tem medo não é aperfeiçoado no amor” (1Jo
4:18). É o que nos ensina a parábola dos talentos: com medo de desagradar, enterramos
os talentos.
Podemos vencer esses medos se dependermos do Espírito Santo. Todos nós
recebemos talentos e dons que precisamos desenvolver para cumprir nossa vocação.
Deus os distribui segundo nossa capacidade de confiar e não apenas de multiplicar, que
é somente uma consequência. Jesus considera como sua família aqueles que fazem a
vontade de Deus. Até Maria encontrou sua identidade, não em ser mãe de Jesus, mas ao
se declarar “a serva do Senhor”.
Andar pelo caminho com Jesus, contra os padrões impostos pela cultura,
significa seguir um caminho estreito. Quantas mulheres estão dispostas a sentar aos pés
de Jesus, como Maria? Quantas vezes nos conformamos ao papel de Marta? Por meio
do processo de arrependimento e cura, reencontramos nossa identidade numa relação de
paixão por Jesus. Ele acolhe a samaritana e cura a mulher fenícia, faz questão de
quebrar as barreiras sexuais, sociais e raciais. Entretanto, de alguma forma
reconstruímos essas barreiras e hierarquias, em vez de ouvir o seu chamado para sermos
servos. Somos convidados a escolher uma vida de serviço, não de liderança. Cristo pede
que lhe obedeçamos por amor, por causa do nosso relacionamento com ele.
Cada mulher que, como Maria, tenha estabelecido uma relação de amor com
Deus é comissionada a levar Cristo à sua geração. As mulheres foram ensinadas por
Jesus. No auge da crise, as mulheres o acompanharam. Não há registro de traição por
parte delas, enquanto os discípulos o abandonaram. Paulo que, conforme a oração
tradicional dos judeus, havia agradecido diariamente por não ter nascido gentio, escravo
ou mulher, passou a mencionar esta última como coajudadora, em quase todas as
cidades por onde passou.
Lídia foi líder da primeira igreja fundada na Europa. No decorrer da história,
elas contribuíram de forma significativa para a expansão do Reino e iniciaram várias
ordens religiosas. Ao repudiar a vida monástica, os protestantes passaram a reconhecer
uma única vocação para a mulher: o casamento. Para eles, as mulheres existem apenas
para o conforto e bem estar do marido. Alguns grupos, como os quacres, questionaram
esse papel limitado da mulher. Várias mulheres quacres foram presas e torturadas por
pregarem o evangelho em lugares públicos. Apesar de ter 19 filhos, a mãe de John
Wesley dedicava duas horas por dia para sua devoção a Deus. Ela pregava para mais de
duzentas pessoas em sua casa.
Foi o reavivamento wesleyano que livrou a Inglaterra de um banho de sangue,
como ocorreu na Revolução Francesa. Por meio dos reavivamentos, as barreiras sexuais
foram caindo. Lady Huntington dedicou sua vida e seu dinheiro à expansão do
evangelho na Inglaterra e nos Estados Unidos, e fundou o primeiro seminário. Essas
64
mulheres tinham uma relação de paixão com Jesus, que as levou a superar todas as
barreiras e discriminações. Esses terrenos conquistados foram muitas vezes
abandonados pelas gerações seguintes e exigiram novas lutas para serem
reconquistados.
Phoebe Palmer, uma das responsáveis pelo reavivamento na América do Norte,
escreveu:
Por quanto tempo, ó Senhor, por quanto tempo teremos de esperar para que o
homem remova a pedra a fim de que possamos ver a ressurreição? [...] Como a
igreja pode se elevar enquanto os dons de três quartos de seus membros estão
sepultados em seu seio? 44
Ela dizia às mulheres: “Deus nos convida a levantar dentre os mortos”.
A primeira convenção sobre os direitos das mulheres ocorreu em uma igreja
metodista wesleyana, em 1848. Amanda Smith, uma ex-escrava negra, foi usada por
Deus para quebrar três preconceitos: contra a doutrina da santidade, contra pretos e
contra mulheres evangelistas. Atos 21:9 menciona as quatro filhas de Felipe, em
Cesareia, que profetizavam, ou pregavam, já que são palavras sinônimas.
“O navio está afundando e estamos parados na praia discutindo sobre quem deve
ir ao resgate: homens ou mulheres”.45 Não podemos deixar de anunciar que Jesus
ressuscitou, pois isso é mandado divino. Se Deus não tem favoritos, as solteiras podem
se realizar plenamente ao sentarem aos pés de Jesus e compartilharem com outros o que
aprenderam. Uma mulher de Deus não precisa nem de realização sexual, nem da
proteção de um homem, nem de marido ou filhos para ter seu lugar na igreja e na
sociedade, e para encontrar sua identidade. Discriminar as solteiras é perseguir Jesus,
pois ele era solteiro.
Entre as mulheres que a Bíblia cita, é maior a quantidade de mulheres fora de
seu papel de esposa e mãe, do que o inverso. Jesus diz a Maria, irmã de Marta, que o
caminho do discipulado não lhe será tirado. Jesus vê as mulheres como filhas de Deus;
não como esposas. Madre Tereza foi um exemplo de solteira que resplandecia de
alegria. Muitas mulheres casadas se arrependeram de ter casado por motivos errados,
tais como fugir da solidão e da discriminação, em vez de buscarem o Reino em primeiro
lugar. O desejo de ter amor, carinho, companheirismo deve ser preenchido pela igreja,
corpo de Cristo. Deus fez o ser humano para viver em relação.
As mulheres que reconhecem que Cristo as libertou não se deixam mais
escravizar. Mas o amor de Deus precisa desembocar em amor ao próximo. As
dimensões verticais e horizontais da vida cristã são inseparáveis. Ágape envolve o
compromisso de amar o parceiro, quer ele mereça ou não. Diálogo, perdão e
compromisso são essenciais e precisam ser baseados no amor incondicional de Deus.
Não perdemos esse amor, podemos apenas nos afastar dele. Nosso amor durará
enquanto o amor ágape estiver nos suprindo.
Como amigos e amantes, podemos nos voltar para nosso primeiro amor e adorálo. Nossos melhores momentos juntos traduzem-se em louvor àquele que nos criou,
salvou e capacitou a retornarmos ao paraíso. Cristo é o cabeça dessa casa, o convidado
invisível de cada refeição, o ouvinte silencioso de cada conversa. O homem e a mulher
têm nova identidade na cruz. Nivelados, eles precisam renovar diariamente sua
dependência da graça de Deus.
O dinheiro é muitas vezes usado como arma nessa batalha entre o homem e a
44
45
Kari T. M ALCOLM, A identidade feminina segundo Jesus, p. 122.
Idem, p.135
65
mulher, porque significa poder. Os homens buscam reforçar sua identidade nele e as
mulheres entraram nesta competição. Cada um tenta provar seu valor pelo tamanho do
saldo bancário. Servindo ao dinheiro, eles perdem não somente seu self, o âmago de seu
ser, mas também seus filhos. Se Jesus é o senhor da casa, então ela estará aberta aos
necessitados. As mulheres precisam sair de casa para responder à grande comissão e
investir em coisas eternas. Sua escolha não pode estar atrelada à retribuição financeira,
mas à vocação, colocando os talentos a serviço do Senhor.
Louvar é um estilo de vida calcado na vontade de Deus. Quando a relação com
Deus é real, nosso trabalho se torna louvor, uma forma de servi-lo. Louvar é um estilo
de vida. Só podemos encontrar nossa identidade na relação com Deus. Essa relação nos
capacita a quebrar as identidades culturais para nos tornarmos catalisadoras de
mudança, voz profética e agente de cura.
Esmiuçamos o caminho das mulheres porque a história foi muito injusta com
elas, ignorando sua contribuição, ou relegando-as ao papel de espectadoras passivas.
Mas os homens também precisam reconstruir sua identidade na relação afetiva com
Deus, para que a ação deles no mundo seja fruto desse amor e não de uma desesperada
busca de reconhecimento. Sem essa dimensão afetiva, nossas motivações tornam-se
egoístas, gerando um mundo competitivo, hostil, injusto. Pessoas que se sabem amadas
por Deus transbordam esse amor e iluminam o mundo com os valores do Reino, de
justiça, paz e solidariedade, que são radicalmente opostos aos valores do mundo. Aos
seus filhos, àqueles que respondem ao amor do pai com obediência, Deus promete a
alegria do serviço e a sua bênção (Jo 13:17). Sendo fiéis no pouco, ele nos confia cada
vez mais responsabilidades. Se formos fiéis, colocando o que sabemos em prática,
nossos dons e talentos serão multiplicados. Se não, até o pouco que temos nos é tirado.
Nunca é tarde para nos convertermos de nossos maus caminhos e voltarmos para nosso
primeiro amor.
O resgate da afetividade, a partir da relação com Deus, modifica radicalmente a
qualidade das relações humanas, na família, na vida profissional, na sociedade. A luta
pelo poder é substituída por uma aliança que gera cooperação, compromisso,
compaixão. Os vínculos são construídos para que as pessoas se abençoem mutuamente,
e não como meio descartável de autopromoção.
Os casamentos são edificados na Rocha, em vez de serem apenas tentativas
frustradas de fuga da solidão e de preenchimento do vazio interior. Os filhos são frutos
do amor, gerados para serem flechas que seguem seu próprio destino. Quanto mais
amados e acolhidos por pais que se dão bem, mais podem voar alto e longe, porque
estão livres de manipulações e de dívidas afetivas. Os filhos de casais separados,
frustrados ou infelizes, sentem-se responsáveis pela felicidade dos pais e fazem de tudo
para mantê-los unidos. Alguns chegam até a adoecer para desviar a atenção dos pais das
fontes de desencontro e briga. Outros não conseguem se permitir ser felizes e bemsucedidos em função do fracasso dos pais. Muitos se consideram culpados pela
infelicidade dos pais e tentam inutilmente preencher as expectativas deles para dar-lhes
alguma compensação.
No campo profissional, é interessante que as empresas estejam cada vez mais
interessadas nas atividades extracurriculares dos executivos que elas contratam. Quem
está engajado em atividades voluntárias ganha pontos porque revela uma qualidade
humana muito necessária nas relações interpessoais. Além do conhecimento técnico, é
importante mostrar capacidade de trabalhar em equipe e de contribuir para um ambiente
amigável. Tem surgido o papel do coach, quase um terapeuta, que visa a ajudar o
profissional a desenvolver ao máximo seu potencial humano, ampliando sua
autoimagem e seu horizonte. Em um mundo árido e perverso, há grande necessidade de
66
pessoas capazes de promover melhor qualidade de vida e de relacionamentos; pessoas
mais humanas e solidárias, que possam construir um ambiente acolhedor e mobilizem o
melhor de cada um.
Compaixão
A dimensão vertical da fé encontra sua coerência na dimensão horizontal. É necessária
uma integração entre experiência e práxis, entre o “sentido” e o praticado, entre o amor
apaixonado e o desejo imperioso de consagrar-se a serviço do Reino. Ser cristão não é
apenas reconhecer que Deus existe, como se prega muitas vezes; isso até os demônios
fazem! A vocação do cristão é conhecer, amar e servir a Deus. É curioso que nossas
mensagens evangelísticas falem tão pouco dessa dimensão do serviço. E servir só tem
valor se é fruto de amor, porque, se não tiver amor, posso até dar todos os meus bens
aos pobres, que isso não terá proveito. A relação íntima com Deus, portanto, precisa se
traduzir em envolvimento afetivo com o próximo.
Estando em contato com suas próprias emoções, a mulher tem mais facilidade
para se identificar com a alegria ou com a dor do outro. Essa empatia se traduz em
compaixão, misericórdia e solidariedade. A relação íntima com Deus move a mulher em
direção ao outro. Por ser relacional, o princípio feminino carrega uma dimensão coletiva
e plural. Seu segredo está na comunhão que produz vida e engajamento social, como a
rede de agentes comunitários da pastoral da criança desenvolvida por Zilda Arns,46 que
ajudou a reduzir a mortalidade infantil, ou o mais discreto ministério “Viúvas em
missão”. Foi fundado por uma mulher que passou pelo pânico de perder o companheiro,
que assumia todas as dimensões práticas da vida. Ela nem sequer sabia assinar um
cheque. No desespero do luto, acabou tomando decisões precipitadas, como vender a
casa e distribuir seus bens entre os filhos.
Só mais tarde essa mulher percebeu que deveria ter aguardado para escolher um
caminho mais sábio. Assim, sentiu o desejo de compartilhar sua experiência com outras
mulheres na mesma situação, evitando-lhes sofrimentos desnecessários e erros comuns.
Seu objetivo é acudir mulheres enlutadas, ampará-las, consolá-las e ajudá-las a lidar
com as questões práticas da vida. Outras mulheres se uniram a ela e formam um grupo
de apoio multifacetado, cada uma contribuindo com seus dons específicos e sua
experiência pessoal. Não se trata de dar receitas, mas de compartilhar opções,
alternativas; de ampliar um horizonte afunilado de quem sofre uma tragédia e não
enxerga nem sequer uma luz no fim do túnel.
Os homens que se abrem para a anima também se tornam portadores desse
carisma, dessa capacidade de serem solidários, como bem retratado no filme Patch
Adams — O amor é contagioso.47 Ele conta a história do médico que iniciou um
movimento de humanização no tratamento dos pacientes hospitalizados. Lembremos
também das ONGs “Médicos sem Fronteiras” e “Doutores da Alegria”, iniciadas por
médicos.
Homens e mulheres precisam trabalhar lado a lado. A mulher tende a se
envolver com cada situação, mas perde de vista o horizonte mais amplo. Por falta de
organização e planejamento, muitos esforços para aliviar o sofrimento alheio acabam
desperdiçados. O homem, por sua vez, enxerga as carências estruturais e ataca os
problemas pela raiz. Ela se comove com cada necessitado e trata cada um como se fosse
único.
O homem pode aprender com a mulher a passar do funcional e estratégico para a
46
Vítima de um dos mais violentos terremotos ocorrido no Haiti, em 12 de janeiro de 2010. A médica
pediatra e sanitarista encontrava-se em Porto Príncipe, capital do país, em missão humanitária.
47
Dirigido por Tom Shadyac, 1998.
67
dimensão humana e pessoal. A mulher pode aprender com o homem a enxergar o
contexto e a racionalizar as ações tornando-as mais eficientes e abrangentes.
Vejo essa dinâmica no casal Rick e Kay Warren. Kay foi tocada por Deus e
recebeu o dom de misericórdia.48 Rick tem uma perspectiva macro e tornou-se um
formador de opinião. No Brasil, Ed e Silvia René também ilustram bem essa
complementação. Ed é excelente comunicador e desafia os ouvintes a assumirem um
compromisso coerente com o evangelho. Silvia ouve o clamor dos necessitados e
direciona os recursos financeiros e humanos da igreja para fortalecer quase 80 ONGs
em São Paulo.
Ser compassivo é sinal de que o evangelho aconteceu verdadeiramente em nós
(1Pe 3:8). Somos chamados a expressar o amor do Pai, calcados no modelo de Cristo,
que cumpriu a profecia de Isaías 61:1-3: “O Senhor ungiu-me [...] para cuidar dos que
estão com o coração quebrantado”. Paulo desabafa, declarando que sofre dores de parto
ao acompanhar o processo de amadurecimento de seus filhos na fé (Gl 4:19).
Somos capazes de perceber melhor o sofrimento de Deus ao acompanhar nossas
recaídas, incoerências, traições, mas também as injustiças cometidas contra nós. Sermos
corpo de Cristo significa que o consolo de Deus acontece através de pessoas que se
dispõem a ser manifestação desse amor. A fé cristã desperta em nós o compromisso
com o próximo, o irmão na fé em primeiro lugar; mas se estende a todos, pois toda a
humanidade é objeto do amor de Deus. Por isso há na Bíblia tantas vezes a expressão
“uns aos outros”: “Edifiquem-se uns aos outros” (1Ts 5:11). Paulo nos exorta, ainda, a
chorar com os que choram (Rm 12:15).
48
Kay W ARREN, Rendição arriscada.
68
Capítulo oito — O princípio feminino como expressão
Sensibilidade e linguagem corporal
Outra característica tipicamente feminina, mas importante para homens e mulheres, é a
sensibilidade. Significa viver em profundidade e não superficialmente. Estar em contato
com as próprias emoções, o que permite identificar-se com as emoções do outro. Maria
não se descabelou ao ouvir as declarações chocantes do anjo. Ela se abriu e permaneceu
em contato com seus movimentos interiores, meditando nas palavras e procurando
perceber suas implicações.
Por isso, também, Maria é modelo de espiritualidade para homens e mulheres. A
sensibilidade leva a discernir detalhes e a perceber nuances que geralmente ignoramos
devido à couraça que desenvolvemos para nos proteger do sofrimento. A sensibilidade é
necessária para enxergarmos a presença de Deus, que muitas vezes se manifesta não no
trovão, mas no cicio (1Rs 19:12). Essa presença discreta levou Jacó a confessar: “Sem
dúvida o Senhor está neste lugar, mas eu não sabia” (Gn 28:16).
Sensibilidade significa desenvolver os sentidos da alma; a capacidade de ver,
ouvir, tocar, saborear e sentir com a alma. Como disse o Pequeno Príncipe, de Saint
Exupéry, o essencial é invisível aos olhos, só se vê direito com o coração. Por isso, é
necessário ter sensibilidade para perceber um pedido de ajuda em uma criança
agressiva. Crianças vítimas de abuso tendem a se fechar. Muitas não têm coragem de
pedir ajuda. É triste que os pais não percebam, na mudança de comportamento do filho,
um anseio muito grande por consolo e proteção.
A sensibilidade permite ouvir o grito preso na garganta, ver a tristeza ou a
alegria no olhar do amigo, perceber quando o marido precisa de solitude ou de
companhia. Uma pessoa insensível fere sem perceber e se surpreende com a reação
agressiva do outro, ou com seu afastamento. Ela não aprende com os próprios erros
porque nem chega a identificá- los.
A sensibilidade também nos capacita a desfrutar mais dos detalhes da natureza,
como a cor de uma flor, o perfume da grama cortada, o voo de um pássaro e a beleza de
cada ser humano.
O resgate da sensibilidade é um processo de vivificação que alcança o corpo e os
sentidos, por meio dos quais podemos ver, ouvir, tocar, saborear e sentir odores. Nosso
modelo de maturidade é o próprio Cristo, que cresceu “em sabedoria, estatura e graça
diante de Deus e dos homens” (Lc 2:52). Trata-se de um desenvolvimento bio-psicosócio-espiritual que propicia uma relação harmoniosa entre todas essas dimensões do
ser humano. Jung fala em equilibrar os dois eixos que compõem nossa personalidade.
Um eixo oscila entre pensamento e sentimento; o outro, entre sensação e intuição.
Tendemos a privilegiar sempre uma das pontas. Geralmente aprofundamos
nossa vivência intelectual e negligenciamos a vivência afetiva. Da mesma forma,
tendemos a valorizar nossos insights e revelações, em detrimento de nossa vivência
sensorial. Assim, temos um corpo escravo da cabeça, desintegrado. Quando
perguntamos a uma pessoa o que ela sente, frequentemente ouvimos como resposta uma
explicação racional que passou pelo filtro dos pensamentos.
Nossa cultura também considera o corpo algo sujo, que precisa ser
constantemente limpo. Para comprová-lo, basta verificar a importância que os banheiros
ocupam em nossa casa, bem como o tempo e o dinheiro gastos em rituais de higiene
com escovas, desodorantes, cremes etc.
Assimilamos igualmente a dicotomia grega entre corpo e alma, e associamos o
corpo com carne e pecado, como se sexualidade e espiritualidade fossem incompatíveis.
Fazemos uma correlação perniciosa entre prazer e pecado. Já que todo pecado apela
69
para o prazer, desconfiamos do prazer como se todo tipo fosse pecaminoso. Um ditado
francês diz: Qui veut faire l'ange, fait la bête [quem deseja se fazer de anjo, se faz de
besta]. Alexander Lowen assinala que “sem a consciência da sensação e atitude
corporais, uma pessoa torna-se dividida: um espírito desencarnado e um corpo sem
alma”.49
Eva representa as forças misteriosas da vida, temidas pelo homem e pela mulher.
Na mulher, foi localizada a força capaz de seduzir o ser humano na busca do “nãolimite”. Controlar a mulher é, de certa forma, controlar o que ela representa. O que
amedronta foi reduzido a objeto: “mulher: objeto de cama e mesa”, ou foi assexualizado
pelo catolicismo: mulher, virgem e mãe. Temer a mulher esconde o temor do corpo,
lugar de êxtase e de opressão, de amor e ódio, dos sinais do Reino e da Ressurreição.
Rubem Alves diz que somos assombrados pelo medo do corpo porque todo
corpo grita por liberdade e prazer. Partir do corpo é redimi-lo; é acolher nele a criação
como profundamente boa; é partir do Reino de Deus, anúncio da redenção para os
corpos, anúncio da boa-nova, de alegria, de liberdade, de gozo dos corpos.
Na perspectiva do Reino, a moral se constrói a partir da liberdade e igualdade
dos corpos que buscam a infinita bondade de Deus na construção do amor e da
justiça.50
Em A argila e o espírito, Bingemer constata:
Apesar de toda a práxis libertadora de Jesus com relação às mulheres, apesar da
Igreja primitiva haver assimilado, em nível bem profundo, os ensinamentos de
Jesus, introduzindo um ritual de iniciação não sexista, como o batismo, a Igreja
tardia reassumiu progressivamente a discriminação contra o corpo da mulher.51
O medo de Eva é o medo do homem e da mulher diante do mistério da
existência e provém da dificuldade de integrar liberdade e santidade. Na igreja
primitiva, os cristãos celebravam a importância do corpo, pois compreendiam a
encarnação de Jesus Cristo como “o verbo que se fez carne” na história humana.
Entretanto, o dualismo helenista trouxe a desvalorização do corpo em relação ao
espírito.
A dicotomia entre sexualidade e espiritualidade provém igualmente do medo do
eros. Nosso corpo lembra o dom original do sopro da vida de Deus. Eros representa
criatividade. Quando somos tocados por essa criatividade, queremos engravidar de
bebês, mas também de missões e ideias. Criatividade é o poder de dar vida. Com ela,
tornamo-nos co-criadores da história.
A criatividade está no coração da espiritualidade. Fomos criados à imagem de
um Deus criativo, e a essência da vida cristã é o amor que se expressa principalmente
por meio da poesia, que é a linguagem do coração. A pessoa apaixonada torna-se poeta
para enaltecer seu amor. Infelizmente, a paixão não dura e logo perdemos a capacidade
de vislumbrar o esplendor da vida, de maravilhar-nos e expressar essa percepção de
forma artística e original.
O resgate dos sentidos e do corpo é a porta de entrada para o resgate da
sensibilidade, da capacidade de enxergar a própria emoção e a do outro. Os sentidos do
corpo nos remetem aos sentidos da alma, como veremos adiante. A sensibilidade é
também um atributo divino, que evidencia o lado feminino e materno de Deus,
49
O corpo traído, p. 16.
Idem, p. 22.
51
P. 185.
50
70
revelado, por exemplo, em Isaías (Is 66:13): “Assim como uma mãe consola seu filho,
também eu os consolarei”.
A ternura e a empatia são características femininas herdadas de Deus.
Infelizmente, o imaginário descartou o elemento feminino de Deus, que criou a mulher
a sua imagem, limitando-se à percepção do Pai todo-poderoso, focalizando apenas o
lado masculino de Deus. Por isso é tão comum a imagem distorcida de um deus
cobrador e punitivo, e tão rara a experiência do aconchego e do colo de Deus.
Jesus expressa o seu desejo de reunir os filhos de Israel, “como a galinha reúne
os seus pintinhos debaixo das suas asas” (Mt 23:37); e Davi tem a sabedoria de se
refugiar no esconderijo dessas asas (Sl 61:4). Mas a maioria de nós não se permite tal
privilégio por ver apenas o caráter masculino de Deus e projetar nele a imagem de nosso
pai terreno, muitas vezes distante e negligente. Assim, a qualidade da relação com o pai
biológico acaba contagiando nossa percepção de Deus e nossa relação com ele.
O resgate do corpo é uma contribuição específica da teologia feminina da nossa
época. Yvone Gebara nos convida a desenvolver “uma teologia da sexualidade como
realidade constitutiva do ser humano. Essa teologia „deveria partir da maravilha do
corpo‟”,52 movida por “uma atitude, em primeiro lugar, positiva e aberta, de afirmar o
corpo e a sexualidade, e não em primeiro lugar restritiva e desconfiada”. Margarida
Brandão enfatiza a importância de “recuperar o sentido da palavra corpo, na
perspectiva bíblica e cristã. Corpo como realidade biopsíquica e espiritual, na qual se
expressa a totalidade do ser humano pessoal”.53 Maria Clara Bingemer considera:
A teologia feita pelas mulheres da América Latina, hoje, é afetiva e efetiva,
[pois] brota de uma experiência de escuta amorosa e atenta [e] se traduz numa
práxis tão efetiva quanto carinhosa [...], uma teologia [...] que brota do coração
e das entranhas, restaurando o espiritual, o poético, o sapiencial e o simbólico.
Assim, a teologia da mulher latino-americana convoca a teologia a deixar-se
configurar não só como inteligência da fé, mas também e acima de tudo como
inteligência do amor.54
Carregamos, na profundeza do nosso corpo quebrado, a dor da injustiça e do
pecado. Diante da dificuldade de conjugar liberdade com santidade, insistimos em
dominar o corpo em vez de libertá-lo. Precisamos descobrir o que significam esses
sintomas. Nosso discurso pode ser muito bonito, mas o corpo não mente. Somos
dotados de memória corporal, e as emoções negadas acabam sendo somatizadas.
Podemos nos perguntar: “Com que esquento a cabeça?” ou “O que me subiu à cabeça?”,
“Onde coloco minha raiva, meu medo?”. Talvez assim possamos redirecionar essas
emoções.
A expressão “dura cerviz” (Pv 29:1) aponta um sinal somático do enrijecimento
da alma. Para ser mordomo do nosso corpo, precisamos tomar consciência dele,
conhecê-lo (inclusive seus desejos, necessidades e limites), assumi-lo, ter intimidade
com ele. Um corpo reprimido reduz nosso campo de ação, pois nos torna rígidos.
O corpo é controlado, usado, vestido pelas leis sociais e religiosas. No Brasil,
existe uma dicotomia entre o corpo da festa e o corpo dos rituais religiosos. O corpo do
carnaval busca a suspensão de fronteiras e propicia uma verdadeira orgia dos sentidos:
música, lança-perfume, bebida, promiscuidade, brilho das fantasias. Pode ser
considerado como uma reação à austeridade religiosa tão familiar aos protestantes.
A linguagem corporal é constituída de gestos, formas, cheiros, atitudes e
52
Maria Clara BINGEMER, O mistério de Deus na mulher, p. 25.
Idem p. 38.
54
Idem, p. 88.
53
71
posturas. O corpo masculino e o feminino têm idiomas e referenciais diferentes. A
maneira de andar, de sentar é discriminada. Expressões como “abrir as pernas” ou “no
peito e na raça” revelam a rigidez dos padrões sociais que discriminam não só homem e
mulher, mas também rico e pobre, branco e preto, etc.
É impossível falar do corpo sem mencionar a questão do abuso sexual. Apesar
de ser tão comum (uma em cada quatro ou cinco meninas, segundo dados da
Organização Mundial da Saúde), o abuso é geralmente silenciado e camuflado, o que é
outro abuso. Calcula-se que somente dez a quinze por cento dos casos são revelados e
noventa por cento são cometidos por pessoas que as vítimas amavam, respeitavam e em
quem confiavam. Por isso, muitas crianças tardam a discriminar a violação sexual do
gesto de carinho e se calam por medo de represálias, por vergonha ou por medo de não
acreditarem nelas, pois o perfil de quem abusa é geralmente o de uma pessoa acima de
qualquer suspeita.
O abuso é um dos poucos crimes em que a vítima tende a assumir a culpa,
enquanto o culpado não sente nenhum remorso. Trata-se de uma patologia compulsiva e
crônica que, se não for tratada, fará outras vítimas. Em vez de nos omitirmos, tornandonos cúmplices, somos chamados a proteger as vítimas e a confrontar os agressores.
Além da traição do agressor, a família precisa reconhecer sua falha em prevenir o abuso
e cuidar da vítima.
A criança se protege fazendo de conta que nada aconteceu, mas terá dificuldade
em se deixar amar, inclusive por Deus. O caminho da cura passa pela coragem de
encarar essas lembranças. A dor aparentemente fica pior cada vez que se toca nela, mas
a ferida precisa ser tratada. É necessário acolher a criança interior, validar suas emoções
e reconhecer os mecanismos de defesa que levaram a padrões distorcidos de
relacionamento. Existem duas ciladas: ignorar o passado ou focalizar apenas o abuso. O
problema principal é o mal que fazemos, a nós e a outros, a partir do mal que nos
fizeram.
O abuso é plural. Ele geralmente é acompanhado de abuso emocional ao negar
ou desqualificar as emoções da criança, tornando-a insegura quanto a suas percepções.
O agressor procura seduzir a vítima, oferecendo uma relação privilegiada e garantindo
assim o seu silêncio. A criança pode sentir ao mesmo tempo prazer (relacional, sensual
e sexual) e ódio pela traição e impotência, ficando confusa com a ambivalência dessas
emoções. Ela foi despertada prematuramente e seu desejo legítimo de amor e intimidade
foi maculado. Para sobreviver emocionalmente, ela tende a dissociar sentimentos e
experiência física, alienando-se de seu corpo e de sua alma. Ao negar sua história, ela se
expõe a repeti-la indefinidamente. A combinação de excitação e frustração leva a um
desejo insaciável que pode gerar várias compulsões e perversões, desde promiscuidade
(como vemos no comovente filme “Entre o céu e o inferno”55 ) até perfeccionismo.
Allender56 aponta três padrões principais:



55
56
A boa menina: reprime a maioria dos sentimentos, exceto a culpa. Seu mundo
interior é controlado, solitário e cheio de autocrítica. O mundo exterior é
organizado, pasteurizado e sacrificial. É boa ouvinte, prestativa e deixa-se usar.
A menina difícil: é independente, forte, desconfiada, arrogante e hostil, para
impedir a aproximação das pessoas. É apreciada pela iniciativa e pelo trabalho,
mas temida pelas críticas.
A menina festeira: é ambivalente; alterna crítica a si e aos outros; atrai pela
fragilidade, mas se torna destrutiva.
Título original Black Snake Moan, Craig Brewer, 2006.
Lágrimas secretas, p. 211-225.
72
Jesus sofreu abuso na cruz, para que possamos lidar com todos os abusos que
sofremos e praticamos neste mundo perdido. Diante desse Deus, que nos acolhe
incondicionalmente, podemos reconhecer os danos do abuso e caminhar rumo à
restauração da nossa dignidade. A criança não é culpada pelo abuso, nem pelos
mecanismos que criou para sobreviver. Mas ela pode experimentar uma restauração que
envolve escolher viver, confiar e amar, pois essa é a essência da vida. A coragem para
confiar nasce da segurança encontrada na relação pessoal com Deus.
É comum que o agressor venha de uma família onde sofreu algum tipo de
abuso. A iniquidade não confessada dos pais tende a se perpetuar nos filhos. Para
interromper o ciclo, o agressor precisa confessar, pedir perdão e oferecer à vítima algum
tipo de reparação, como arcar com as despesas de terapia. Isso precisa acontecer diante
de testemunhas que assumam o compromisso de proteger a vítima e a quem o agressor
deva prestar contas e evidenciar sua mudança. A recusa de se tratar não deixa
alternativa a não ser denuncia e prisão. Para a vítima, resta o consolo de seu sofrimento
não ter sido em vão, à medida que seu processo de restauração pode se tornar uma ponte
sobre a qual outra vítima pode caminhar da morte para a vida.
Mencionar essa questão é apontar uma violação da integridade feminina, fruto
da distorção básica na relação homem/mulher. Em alguns países, ainda se pratica a
clitoridectomia, ou seja, corta-se o clitóris da adolescente para garantir que não tenha
acesso ao prazer sexual e fique assim à disposição do prazer masculino.
Vergonhosamente, são as próprias mulheres, vítimas dessa violência, que seguram a
menina. Somos nós também que criamos filhos machistas, desenvolvendo regras
diferenciadas para meninos e meninas, de modo que as meninas estejam a serviço dos
meninos, enquanto estes desfrutam de regalias e direitos exclusivos.
Mas a questão da dicotomia corpo/mente não atingiu apenas as mulheres. Essa
postura desqualificada em relação ao corpo é totalmente contrária aos ensinamentos
bíblicos onde, como Cristo, somos chamados a viver uma espiritualidade encarnada que
nos torna mais humanos, mais conscientes da nossa realidade, em vez de mais
“espirituais”. Quando Jesus nos convida a conhecer a verdade que traz libertação (Jo
8:32), não se trata somente da verdade acerca de Deus, mas também acerca de nós
mesmos. Quando confundimos nossa identidade com uma máscara ou um papel social,
estamos revelando cisão entre nosso ego e nosso corpo. A identidade se constrói a partir
da vivência corporal. É o corpo que se funde em amor, se arrepia de medo, treme de
raiva, procura calor e contato. A imagem é uma abstração, um ideal, um ídolo que exige
os sacrifícios do sentimento pessoal. Ela transforma o corpo num instrumento a serviço
de suas expectativas, numa vitrine ou troféu. É assim que muitas meninas tornam-se
anoréxicas para corresponder aos padrões de beleza ditados pela moda.
Entretanto, não temos um corpo, somos o nosso corpo, e a ressurreição também
o resgata, tornando-o incorruptível. Cristo, “o salvador do corpo” (Ef 5:23), despreza os
templos de pedra e nos torna templos do Espírito Santo. Assim nosso corpo é o único
templo construído, tecido por Deus (Sl 139:13) e somos chamados a “glorificar a Deus
em nosso corpo” (1Co 6:13-20), de tal forma que Cristo seja engrandecido nele (Fp
1:20). Ora, só podemos apresentar nosso corpo “por sacrifício vivo, santo e agradável a
Deus” (Rm 12:1) se formos mordomos dele, isto é, se o recebemos e cuidamos dele
como dádiva do próprio Deus, que criou o homem e a mulher e ficou satisfeito com o
que fez.
Com a queda, tanto o homem quanto a mulher passaram a ter vergonha de seus
corpos e a se esconder. Mas Cristo resgatou também nossos corpos. Por isso, nossa
atitude em relação ao corpo revela se nosso referencial é a restauração, ou se continua
73
atrelado à queda. Nossa adoração em resposta à salvação precisa incluir todo o nosso ser
enquanto corpo, alma e espírito. Somos chamados a desfrutar dos sentidos que Deus nos
deu, a fazer da nossa vida uma celebração, a transbordar de amor e assim contagiar
outros. Ora, o amor se expressa por meio do corpo. Jesus expressou seu amor pelo
jovem rico com um olhar (Mc 10:21). Ele se encarnou e demonstrou seu amor por nós,
oferecendo seu próprio corpo para sofrer em nosso lugar.
A vida é um mistério que só podemos conhecer pela vivência. Os cinco sentidos
do nosso corpo servem de ponte entre o mundo e a nossa alma. Os sentidos da alma
fazem a ponte entre nós e Deus. Pois Deus se encontra no seu trono de glória, mas
igualmente no centro do nosso ser, que Jung chama de “self”. Assim podemos enxergar
com os olhos da fé, nos deixar tocar pela Palavra, ouvir a voz de Deus no nosso coração,
saborear as promessas de Deus como favos de mel e exalar um cheiro de vida ou de
morte.
O que fazemos do nosso corpo? Ele pode representar uma armadilha, uma prisão
ou uma casa acolhedora onde encontramos bem-estar e prazer. Já mencionamos a
importância de ouvir. Vamos considerar os outros quatro sentidos para enfatizar suas
características próprias.
O tato é a matriz de todos os sentidos, pois é a pele que nos diferencia do meio
externo. A pele é o maior órgão humano e tem função imunológica e neurológica. A
interação entre o aspecto biológico e o aspecto emocional é demonstrada pela incidência
de distúrbios psicocutâneos. O tato é uma fonte de prazer que pode ser sensual sem ser
sexual. Expressões como “dar um toque”, “dar uma esfregada”, “toque pessoal”, “entrar
em contato”, “pessoa ou assunto intocável”, “experiência ou palavra tocante”,
“realidade palpável”, “pessoa que não tem tato”, “ficar sem chão, de cabelo em pé,
arrepiado, insensível, calejado, tateando”, “estender os braços”, “ser muito próximo de
alguém ou manter certa distância” etc. mostram a importância do tato como referencial.
Tocar é muitas vezes empregado como sinônimo de sentir.
Resgatar o prazer do toque significa resgatar a sensação de bem-estar produzida
pelo contato com o próprio corpo (na hora do banho, p. ex.), mas, também, com o chão,
os materiais, os alimentos, a natureza, enfim a vida. O toque estimula os vínculos
sociais e nos permite entrar em “com-tato” com o mundo externo, em vez de vivermos
enclausurados. É interessante notar que a pior punição é a solitária, que priva o
prisioneiro desse contato.
O autismo, por sua vez, é uma patologia que se caracteriza pela incapacidade de
suportar tal contato. O esquizofrênico tem uma identidade quebrada, em parte pela
ausência de intimidade física prazerosa com a mãe. Segurar a mão de alguém em
momento de pânico tem um efeito calmante.
Assim o toque tem antes de tudo um efeito terapêutico. Mas, além do toque
físico, existe o toque da alma, que permite que sejamos impactados por alguém ou
alguma coisa e que sejamos restaurados pelo toque curador de Jesus. Por outro lado, a
mão de Deus pode pesar sobre nós quando enganamos a nós mesmos, deixando de
assumir a nossa sombra. Mas ela se torna proteção e direção logo que confessamos o
nosso pecado (Sl 32:4). A Bíblia recomenda a imposição de mãos (1Tm 4:14) e o beijo
santo (Rm 16:16), bem como a unção com óleo para os doentes (Mc 6:13). Ela
menciona o toque curador de Jesus em diversas ocasiões, como, por exemplo, com o
leproso (Mt 8:3) ou os cegos (Mt 9:29).
O toque é uma das linguagens do amor que aprendemos na infância. Toda
criança, seja menino ou menina, anseia por carinho físico, mas o adulto tende a censurar
as manifestações de carinho físico, principalmente entre homens, por medo do
homossexualismo. As experiências de abuso também tornam perigosas as expressões de
74
afeto, pois podem ser interpretadas como sedução. Quando a menina começa a ter seios,
o pai tende a se distanciar fisicamente para não dar margem a qualquer mal-entendido.
Assim, tanto o homem quanto a mulher precisam libertar-se das marcas do passado para
resgatar a capacidade de expressar afeto com a espontaneidade da criança.
O olhar tem dupla função: visão e contato, como provam as expressões “estou
de olho em você” e “contato ocular”. Os olhos são a janela da alma, a lâmpada do corpo
(Mt 6:22). Eles brilham quando a pessoa está alegre, ficam dilatados pelo medo e
vidrados em caso de depressão. A Palavra afirma a importância do olhar: “Os ouvidos
que ouvem e os olhos que veem foram feitos pelo Senhor” (Pv 20:12). No entanto, ela
também aponta nossa incapacidade de usufruir desses sentidos: “povo tolo e insensato,
que tem olhos, mas não vê, tem ouvidos, mas não ouve” (Jr 5:21).
Nós olhamos através de uma imagem interior, que nos leva a dar significado
específico à vida. Temos um enredo internalizado que procuramos confirmar. Ele influi
na leitura que fazemos dos acontecimentos e na interpretação que damos a eles. “Pois,
como imagina em sua alma, assim ele é” (Pv 23:7). Cada um se mira em um espelho:
dos pais, da doutrina da nossa igreja, da turma, da cultura ambiente. Nosso
conhecimento, inclusive de nós mesmos, é obscurecido por tal espelho (1Co 13:12).
Quando não conseguimos ver e assumir nosso desejo ou nossa própria sombra, eles são
projetados no outro (Mt 7:3).
É importante nos perguntarmos: Como vemos a vida e a nós mesmos? O que
não desejamos ver? Pois não ver bem significa manter distância do mundo, do outro, de
nós e até de Deus. Jó reconhece que só conhecia Deus de ouvir falar, mas que passou a
vê-lo a partir do processo de despojamento que vivenciou (Jó 42:5).
Deus nos convida a olhar para ele para sermos salvos (Is 45:22). Paulo ora para
que Deus ilumine os olhos do nosso coração (Ef 1:18) e nos convida a correr “com
perseverança [...] olhando [...] para o Autor e Consumador da fé” (Hb 12:1-2). Além de
ver Deus, Rubem Alves nos desafia a ver com Deus: “Como o olho que só é olho se for
transparente, Deus se dá, transparente e invisível, para que, através dele, possamos ver a
vida com novos olhos”.57 C. S. Lewis afirma: “Creio no cristianismo como creio que o
sol nasceu: não apenas porque o vejo, mas porque através dele vejo todo o resto”.
Para divisar com mais profundidade, ou seja, vislumbrar a realidade por trás da
aparência, é preciso refrear os pensamentos. Fernando Pessoa sabia disso:
O meu olhar é nítido como um girassol.
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele,
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos),
mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... 58
A metanoia a que Cristo nos convida, assim como a experiência poética, “não é
a de ver coisas grandiosas que ninguém mais vê. Ela é a experiência de ver o
absolutamente banal, que está bem diante do nariz, sob uma luz diferente [...]. A
felicidade nasce de dentro do olhar que foi tocado pela poesia [...]”59 e pelo poeta dos
poetas: Deus.
Ver é tão fundamental que se tornou o ponto chave da tentação no Éden. “Se vos
abrirão os olhos” para uma forma de conhecer que confere poder “como Deus”. No
57
Creio na ressurreição do corpo, p. 41.
Idem, O retorno E-Terno, p. 59.
59
Idem, p. 165-166.
58
75
entanto, em vez do olhar amoroso do Deus todo-poderoso, o homem lança um olhar
cobiçoso que invade para possuir, para usar o outro, transformando-o num objeto (Gn
3:5-7). O homem e a mulher, que “eram nus e não se envergonhavam”, passaram a se
esconder um do outro. A concupiscência dos olhos, que João aponta como uma das
vertentes do sistema deste mundo (1Jo 2:16), é definida por Jesus como um olhar com
intenção impura (Mt 5:28). A Palavra condena também o olhar altivo (Pv 6:17).
A inveja também é fruto de um olhar deturpado, como revela a própria palavra
que deriva do latim in-videre e significa literalmente “olhar enviesado”, em oposição ao
olhar franco, que nada tem a esconder. A expressão “mau-olhado” revela todo o poder
destrutivo contido num olhar de cobiça.60 A criança se percebe como gente no olhar de
sua mãe. Ela não somente se vê refletida nos olhos dela como num espelho, mas
também enxerga toda a carga afetiva desse olhar.
Mora eternamente em nós o olhar do outro.
Isto é maravilhoso, se este olhar for manso.
É terrível, se for cruel.
Os olhos — haverá coisa mais fraca e indefesa? Têm o poder para fazer viver e
para matar.
[...] A alegria é uma dádiva do reconhecimento dos olhos, que veem e se
comprazem em ver. 61
Os homens são despertados sexualmente pelo olhar (como aconteceu com Daví,
quando viu Betseba), enquanto as mulheres são mais sensíveis à palavra, a declarações
de amor e elogios. De qualquer forma, a questão não é deixar de olhar, mas olhar com
intenções purificadas, com amor. Precisamos ver segundo os olhos de Jesus para lançar
um olhar que abençoa, como aconteceu com Natanael (Jo 1:47,48). Somos chamados a
desenvolver a percepção para ver coisas novas e vislumbrar o invisível com os olhos da
fé, já que “a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não
veem” (Hb 11:1). Essa percepção das coisas espirituais é um dom do Espírito, que a
Bíblia chama de discernimento (1Co 2:14).
Precisamos ainda resgatar nosso olhar de criança, pois ela tem esta capacidade
de enxergar além da realidade tangível, como o Pequeno Príncipe que enxerga o
carneiro atrás do quadrado que representa a sua caixa. Ela também costuma apontar
aquilo que os adultos não querem ver. Como na fábula do rei que passeava nu, pois se
deixava vestir pelas bajulações de seu astuto alfaiate e que somente uma criança teve a
coragem de delatar.
Jesus chama de “bem-aventurados os limpos de coração porque verão a Deus”
(Mt 5:8). Somos convidados a provar e ver que o Senhor é bom (Sl 34:8). Ver para
celebrar a criação de Deus, como ele mesmo fez (Gn 1:31). Ver para enxergar nossa
salvação (Is 52:10). Mas ver também a aflição do povo (Ex 3:7) e compartilhar nossa
esperança por causa daquilo que vemos e podemos, pois, testemunhar (1Jo 1:3). O
maior milagre que Deus realiza não é mudar as circunstâncias, como pedimos
insistentemente, mas mudar nosso olhar, nossa perspectiva. Essa mudança é interior e se
traduz em mudança de atitude frente às mesmas circunstâncias.
O paladar é o sentido que dá sabor e gosto à própria vida. É nossa primeira
fonte de prazer e nosso primeiro instrumento de percepção do mundo. Por isto, Freud
chamou de “fase oral” essa primeira infância. O gosto continua sendo referência no
decorrer da vida. Falamos de “passeio gostoso”, de “engolir sapos” e de pessoa “sem
sal”. Compensamos nossas frustrações com doces e chocolates que usamos também
60
61
Rubem A LVES. O retorno E-Terno, p. 122.
Idem, Pai Nosso, p. 15.
76
para expressar nosso afeto.
A Palavra nos convida a desfrutar o paladar: “come com alegria o teu pão e bebe
gostosamente o teu vinho” (Ec 9:7), mas nos adverte contra sua deturpação, que chama
de glutonaria (Gl 5:21) e que significa trocar a qualidade pela quantidade. O ser humano
não tem fome só de pão, mas principalmente de amor. Palavras doces nutrem-nos a
alma (Pv 16:24) e não há palavras mais terapêuticas que as próprias palavras de Deus
(Sl 119:103). Somos chamados a ser “sal da terra” (Mt 5:13) e somos advertidos que o
sal insípido é lançado fora. A Palavra condena “os que põem o amargo por doce” (Is
5:20), isto é, que enganam os outros e pervertem os padrões de Deus.
Rubem Alves nos lembra:
O verbo latino sapare significa, tanto saber quanto ter sabor. Saber é
experimentar o gosto das coisas: comê-las. O sábio é aquele que conhece não só
com os olhos, mas especialmente com a boca. Quem conhece só com os olhos
conhece de longe, pois a visão exige distância; muito de perto a gente não vê
nada. Quem conhece com a boca conhece de perto [...]. O cozinheiro e o
amante são movidos pelo mesmo desejo: o prazer.62
Podemos ainda pontuar a comensalidade de Jesus que se dispõe a cear conosco
(Ap 3:20) e escolhe uma ceia para simbolizar sua aliança conosco (1Co 11:24-25).
Assim, o pão e o vinho passam a nutrir a nossa alma, reafirmando o sacrifício de Jesus
por nós, sua ressurreição e sua volta próxima.
Com a ênfase dada à consciência racional, a civilização, a não ser a indústria de
perfumes, tende a ignorar o olfato. Como ele não é desenvolvido, não nos inspira
confiança. Falamos, no entanto, de “farejar alguma coisa” ou de “uma história que
cheira mal”. Cheiroso é muitas vezes sinônimo de limpo. O cheiro da pessoa amada e o
cheiro do amor despertam e aguçam o nosso desejo. O perfume alegra o coração (Pv
27:9) e nós podemos ser “o bom perfume de Cristo” (2Co 2:14-16). Ou seja, existe
também o perfume do nosso estado interior, conforme damos espaço à vida ou à morte.
Ao ungir Jesus com um bálsamo muito precioso, Maria é repreendida pelos
discípulos, que a taxam de perdulária. Mas Jesus a defende e recebe com apreço essa
marca de afeto, a partir de um movimento do coração, que coloca Maria em sintonia
com o Mestre (Jo 12:3). Um corpo reprimido tende a reprimir os outros. Matamos a
partir do que está morto em nós. O resultado do pecado é ter os sentidos embotados.
Mas a Palavra é vida e anúncio de salvação e de restauração, inclusive dos nossos
sentidos físicos. Ela desperta ainda os sentidos da nossa alma, para que possamos
contemplar a glória de Deus (2Co 3:12-18). Como Maria, cabe-nos dar permissão para
que se cumpra em nós a palavra de Deus:
Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos,
esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos, vivificará também
os vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que em vós habita.
Romanos 8:11
Assim, podemos começar orando com Rubem Alves:
Ajuda-nos a sentir a
pessoas, dos animais,
gordura, dos jasmins,
barulho do mar [...]
62
O retorno E-Terno, p. 155-156.
beleza e a dignidade de nossos corpos: as carícias das
da natureza; o gosto bom da comida, o cheiro do capim
do feijão; o som do vento nas folhagens das árvores, o
o riso; o corpo arrepiado ao vento frio; o gosto das
77
jabuticabas, das uvas, das mangas; o azul do mar, o amarelo dos ipês, o verde
dos paus-ferros, o vermelho das araras; e a capacidade para brincar, cozinhar,
plantar, andar, gozar a preguiça da rede, na bênção do teu descanso, que nos
ordena fazer nada, e receber a graça da vida, o poder para amar [...]. Todas estas
coisas são dádivas tuas através da dádiva do corpo [...]. Por este corpo vivemos
a fraternidade do amor [...]. AMÉM!63
Fecundidade e encarnação
“O primeiro capítulo de Gênesis coloca no palco da História Negavah, a mulher que
Deus criou, [...] literalmente a „aberta‟, interpreta-se como espaço para acolher, como o
útero a hospedar a vida”.64 Essa palavra tem raiz comum com o verbo “dizer”; portanto,
cria espaço para a eclosão da palavra e aponta o ministério da comunicação, serviço
propriamente feminino: em cada mulher um verbo se encarna, boa-nova a ser oferecida
ao mundo.
Gênesis 3 revela o nome que Adão dá à mulher: “Eva”, mãe de todos os vivos.
No entanto, as mães de Israel — as matriarcas Sara, Rebeca e Raquel — foram
temporariamente estéreis, como para mostrar que o chamado da mulher vai além de
gerar filhos: ela é acima de tudo geradora de vida. Mais importante que a maternidade
biológica, a maternidade espiritual se dá quando permanecemos à escuta de Deus e
cumprimos sua vontade.
A intuição nos permite apreciar o valor e o mistério da fecundidade feminina. A
esterilidade física não significa infertilidade, pois a mulher pode tornar-se fecunda ao
voltar-se para Deus numa atitude de doação. Ao expor sua esterilidade à graça de Deus,
Ana é restaurada (1Sm 1:10,18). Esse filho não é mais um instrumento de valorização
social, de competição com Penina; é devolvido a Deus para seguir sua vocação, cumprir
o desejo do Senhor e, não, expectativas egoístas.
A falta é muitas vezes um meio pedagógico que Deus usa para depurar nosso
desejo e nossas motivações, pois a fecundidade possessiva e egoísta pode tornar-se
estéril, ou até mesmo gerar morte, ao substituir doação por voracidade.
Na Bíblia, esterilidade e início são palavras correlatas que advêm da mesma raiz
hebraica. Sara, Rebeca e Raquel deram início ao povo-promessa, não apesar de sua
esterilidade, mas por terem sido estéreis. Essa experiência é estruturante e
paradigmática. Ela inverte o processo natural da geração e lança luzes sobre as
conquistas e as vitórias da vida, que partem sempre daqueles que se deparam com
condições de negação da vida.
O psiquiatra argentino Carlos Hernández, em palestra realizada no Congresso
Nacional do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos, destacou quatro estágios da fé:
a experiência do chamado de Deus, simbolizada por Abraão; a aventura de ser
comissionado por Deus, como Moisés; a experiência crucial da derrota e do deserto,
onde só subsiste a fé, tendo Jó como paradigma; e, por fim, a fé encarnada, como a de
Maria. Uma fé vivenciada no útero e levada até as últimas consequências. Mas também
uma fé encarnada no dia a dia, que, em vez de tornar-nos mais “espirituais”, torna-nos
mais humanos e ao mesmo tempo mais conscientes da presença de Deus.
A mulher é movida pela “paixão do Reino, paixão de tornar este mundo mais
humano”.65 É quando reconhece seus limites que Deus a leva a ultrapassá-los. Na
fragilidade, ela descobre que sua verdadeira força está na dependência de Deus.
63
Creio na ressurreição do corpo, p. 52.
Ana ROY. Ser mulher, p. 11.
65
Ana Clara BINGEMER, O mistério de Deus na mulher, p. 13.
64
78
Lembro o testemunho de uma amiga que tentava há anos engravidar, tendo feito
vários tratamentos infrutíferos. Ouviu uma pregação sobre Ana e derramou o coração
diante de Deus. Reconheceu as tentativas de controlar o processo e conseguir os
objetivos pelas próprias forças. Confessou a ilusão de onipotência e entregou-se
incondicionalmente a Deus, confiando que ele faria uma obra profunda em sua vida, e
que o filho, se viesse, seria apenas consequência de uma transformação interior.
Alguns meses depois, ela engravidou, mas Deus estava tratando paralelamente
de uma ferida bem mais profunda, ligada ao abuso sexual que ela tinha sofrido do
próprio pai. Um sonho lhe mostrou que ela não queria essa relação abusiva e que havia
sido induzida pelo pai — que a convencera de que ela também o desejava — a sentir-se
corresponsável. Na realidade, ela desejava apenas o carinho e a atenção que conseguia
desse modo. A culpa a levava a vários comportamentos compulsivos e de autopunição,
a ponto de sabotar seus desejos mais legítimos.
Na verdade, é muito comum que o sentimento de culpa seja mais da vítima que
do autor do abuso. Foi o caso de uma paciente que carregou durante anos uma culpa
terrível, enquanto o pai se autojustificava dizendo que tinha apenas lhe dado educação
sexual, e mostrado o que não deveria deixar nenhum outro homem fazer com ela!
Assim, ela desenvolveu um perfeccionismo extremado para compensar o sentimento de
inadequação e de culpa que a perseguia. A inversão foi tão absurda que o pai a tinha
convencido de que, se ela os envergonhasse nessa área, não haveria reparação possível e
ela não poderia contar com eles. Tendo generalizado essa ameaça, ela vivia com pavor
de errar, como se isso colocasse em risco sua sobrevivência existencial.
Por fim, devido a sua capacidade de gerir, parir e principalmente de amamentar,
a mulher tem a oportunidade de intuir corporalmente o mistério da eucaristia, ou seja,
Deus nos alimentando através do próprio corpo. Responder com amor a esse bebê que a
suga e às vezes morde é a expressão de amor que mais se aproxima do amor de Deus,
que nos acolhe apesar da nossa rejeição. Por isso o amor materno é tão idealizado, pois
remete ao amor incondicional desse Deus pai e mãe, criador e sustentador da vida. Hoje,
os homens estão assumindo cada vez mais a paternidade desde a gestação, como mostra
o livro “Estamos grávidos”, de Maria Tereza Maldonado. Por meio dessa experiência,
eles podem também resgatar sua própria fertilidade espiritual, na relação com essa
Palavra que penetra neles e os transforma. A contemplação e a participação no mistério
da vida permitem adentrar o mistério de Deus em nós.
Criatividade
O princípio feminino está associado ao lado direito do cérebro, de onde vêm as variadas
expressões artísticas, como poesia, música, pintura etc., que são fruto de insights. É a
linguagem do coração que revela nossa identidade de criaturas criadas à imagem de um
Deus criador do universo e de tudo o que nele há. Observando a variedade de cores,
formas, aromas, sabores, sons podemos nos extasiar diante do Criador e discernir
inclusive o seu caráter por meio da sua obra. É um Deus generoso, bem-humorado
(quem inventou uma girafa não pode ser muito sisudo!), atencioso e que nos deu o
privilégio de nomear sua obra, ou seja, a consciência e os sentidos para perceber e
apreciar a criação. De fato, os céus proclamam a glória de Deus e nossas expressões
artísticas são apenas uma limitada resposta à diversidade com a qual fomos
presenteados.
O princípio masculino, associado ao lado esquerdo do cérebro, é mais racional e
analítico. Mas os artistas e os poetas conseguiram integrar a sua anima e ter acesso a um
mundo que se situa na interseção de duas realidades: a realidade do mundo visível e a
do invisível. A espiritualidade tende a reconciliar esses dois mundos no íntimo do ser.
79
Por sua natureza biológica e psíquica, a mulher tem acesso a esse mundo por meio da
percepção estética.
A palavra grega “aisthêtikos” expressa a faculdade de ser penetrado e sentir em
profundidade a unidade harmoniosa das coisas. Esta faculdade é inerente ao
feminino. A mulher sente antes de saber, o homem quer saber para sentir; a
mulher vive para compreender; o homem precisa compreender para se sentir
viver. Toda a problemática das filosofias masculinas está nisto. E, no entanto,
filosofia é um nome feminino. É significativo que o mundo da poesia e da arte
seja tão impregnado da presença feminina, mesmo sendo os autores, que nos
legaram as maiores obras-primas, em sua maioria do gênero masculino. Não era
sobretudo o feminino que se expressava através deles? 66
Ao analisar a evolução da pintura, por exemplo, não podemos deixar de ficar
perplexos diante do processo de fragmentação e niilismo que revela a decadência da
nossa sociedade. Mas é ainda mais triste perceber que a arte cristã atual é muitas vezes
estereotipada e medíocre. O louvor é limitado a cópias padronizadas com letras sem
profundidade e danças visualmente pobres. O cinema, a poesia, o teatro, as artes visuais
em geral estão ausentes em templos que parecem caixotes com paredes brancas e alguns
véus seguindo uma moda sem originalidade.
No entanto, devemos reconhecer que a arte ocidental surgiu nos mosteiros que
atraiam artistas para pinturas, esculturas, vitrais, músicas, iluminuras e que também
detinham as bibliotecas mais completas para facilitar o estudo. Assim, obras que são
hoje patrimônio da humanidade, como as pinturas de Michelangelo ou as cantatas de
Bach, continuam expressando louvor a Deus e testemunhando sua grandeza. Os
visitantes na Europa não podem deixar de entrar nas igrejas, pois encontram nelas obras
de arte admiráveis.
O que encontrariam em nossos templos, que muitas vezes são transformados em
quadras de esporte durante a semana, sem, ao menos, estar a serviço da comunidade?
Se, pelo menos, as igrejas servissem de escolas públicas, centros profissionalizantes,
núcleos de reforço escolar, classes de alfabetização de adultos, centros de serviço social!
Mas nem por isso teriam que deixar de ser bonitas e bem decoradas, com simplicidade e
criatividade, despertando os dons e talentos de seus membros.
Recentemente, eu me emocionei com o trabalho do padre Henrique da Trindade
numa igreja quase em ruínas, onde convive e dorme com maltrapilhos, em Salvador.
Num ambiente de extrema pobreza, ele conseguiu transformar sucata em obra de arte, e
as celebrações transmitem muita reverência a Deus, cuja presença é inequívoca.
Infelizmente, por reação aos excessos de pompa da Igreja Católica, censuramos toda e
qualquer representação simbólica da presença de Deus e acabamos perdendo o sentido
do sagrado.
Por meio da contemplação da beleza de Deus, somos despertados a renovar a
expressão de nosso amor e compromisso de forma única, pessoal e criativa. Por isso os
mosteiros foram tão férteis em obras de arte. Ainda hoje, ao abrir o coração,
descobrimos nele recursos inesperados e, como Maria ao ser visitada pelo anjo, geramos
um cântico que honra a Deus e proclama as boas-novas com discernimento, fruto da
revelação do Espírito em nós. Inspiração nos remete ao ar que penetra nos pulmões,
garantindo a vida! O ar nos remete ao vento que, como o Espírito de Deus “sopra onde
quer” (Jo 3:8).
Sob a força da inspiração, os profetas disseram as palavras divinas. É o mesmo
66
Jean LET SCHERT , em Le couple intérieur, p. 152.
80
Espírito que enche de inspiração o artista. Assim, podemos reconhecer no Corpo de
Cristo alguns artistas inspirados, que quebram paradigmas e ultrapassam o cerceamento
legalista das igrejas. Penso no músico Elomar, que casou a música dita erudita com os
cânticos dos retirantes nordestinos. Penso nas pinturas de Cláudio Pastro, inseridas em
igrejas concebidas para pontuar a grandeza de Deus. Mas penso também em mulheres,
como Wanda Sá, que usa o talento para expressar seu amor a Deus. Penso também em
minha amiga Maria de Céu Formiga de Oliveira, que escreveu:
Olho para o amigo
como olho para um poema
prismado pela ternura
que ele produz em mim.
A estética não é como um sonho,
não existe a possibilidade de tradução.
A beleza mora no mistério
e no amigo,
naquela linguagem que faz o corpo voar,
e os espaços vazios ficarem tocados
pelo encanto das coisas
que não existem...
Olho para o amigo
e meu coração dança
de pés descalços... 67
Mulheres que revelam sua intimidade com Deus:
Escapei de Herodes...
A infância ficou pra trás.
Guardo cachinhos de cabelo louro
E um tanto de deserto
Tentando abrigos...
Solidão e sinceridade
Afagam-me no meu tempo.
Protege-me, Senhor,
De mim. 68
A linguagem do coração é a mais apropriada para expressar a forma como a
Palavra nos toca e nos fertiliza. São associações de imagens, pensamentos, emoções que
expressam a multiforme graça de Deus numa linguagem metafórica e subjetiva, já que
tratam do mistério da manifestação de Deus em nós.
Participei de um grupo de meditação bíblica em que uma amiga, professora de
universidade com vários pós-doutorados, foi alterando sua ressonância escrita,
acrescentando progressivamente descrições poéticas que foram revelando a ampliação
da mente racional pelas contribuições criativas do coração. Essa transformação interior
lhe permitiu reconciliar seus dois lados do cérebro e resgatar o feminino, um tanto
subjugado pela inteligência racional bem desenvolvida.
Há várias formas de inteligência. Nossa sociedade tende a priorizar a razão, mas
precisamos também descobrir os recursos da inteligência afetiva, espacial, musical etc.
O artista é o porta-voz da beleza, da verdade e do amor que nos rodeiam e nos habitam.
67
68
Um piscar do infinito, p. 29.
Remanso e outros recantos, poema Recantos da Meninice II.
81
Aponta o mistério de Deus, como o dedo aponta a estrela.
82
Capítulo nove — O princípio feminino como força
Doçura
O ser humano tem uma atração especial por doce e uma criatividade extraordinária para
satisfazer seu paladar. É impressionante a variedade de doces oferecida em cada cultura.
As exigências estéticas fizeram a fama dos adoçantes dietéticos e seus derivados. Mas
descobrimos que o açúcar vicia e vários livros propõem a cura dessa dependência.69 No
entanto, o que importa é a doçura da alma que se reflete em nossos relacionamentos. “A
boca fala do que está cheio o coração”; por isso, se quisermos nos alimentar
mutuamente de palavras que afirmam, edificam e adoçam a vida, precisamos cuidar de
cultivar essas palavras em nosso interior.
Segundo Freud, há em nós uma pulsão de vida e outra de morte. Assim, cabenos escolher entre alimentar esses poderes de vida ou dar vazão aos poderes de morte,
como: pensamentos destrutivos, pessimismo, mesquinhez, sentimento de culpa
fundamentado em expectativas alheias, autocomiseração, morbidez, amargura,
ressentimento, egoísmo, inveja, desejo de controlar, possuir e usar o outro.
Todas essas emoções corroem a possibilidade de ser feliz. Se não cuidarmos de
nos desprender delas, como de ervas daninhas, elas criarão raízes e ocuparão cada vez
mais espaço em nós.
Os poderes da vida são pensamentos construtivos, amor, esperança, fé,
generosidade, altruísmo, solidariedade, empatia, compaixão, capacidade de se alegrar
com a felicidade do outro e o desejo de contribuir para isto. Quando optamos por
abrigar estes pensamentos e emoções, encontramos um sentido mais profundo na vida e
olhamos para o futuro com confiança. Podemos ter sonhos e alvos ousados, porque
contamos com vínculos significativos e atraímos pessoas desejosas de serem motivadas
e encorajadas por nosso entusiasmo.
Enquanto tendemos a nos afastar de uma pessoa amargurada, temos sempre
muito prazer em conviver com uma pessoa doce e positiva. Essa atitude básica não
depende de quão duras foram nossas experiências, mas de como as encaramos e
digerimos. Diante de um copo cheio até a metade, alguns tendem a vê-lo meio cheio e
outros, meio vazio. É sempre possível encontrar um motivo de regozijo, mesmo em
situações adversas. Ver as situações sob a perspectiva de Deus nos permite perceber que
ele tem o poder de transformar o mal em bem. Por isso, podemos olhar para o futuro
com alegria e paz, na certeza da sua vitória total e definitiva. Quem se sente submergido
pelas dificuldades da vida e não enxerga nenhuma luz no fim do túnel, precisa procurar
ajuda para fazer uma releitura do seu passado e descortinar novos horizontes.
É muito difícil olhar para dentro de si e reconhecer que há feridas de rejeição,
abandono, incompreensão, negligência, eventualmente até maus tratos e abusos,
principalmente para os homens que foram proibidos de chorar e mostrar sua dor. Os
meninos massacram as crianças mais sensíveis, que logo ganham apelidos de “maricas”
ou coisas piores. Logo aprendem a engolir o choro e a revidar com agressividade para
serem respeitados. Criam uma armadura para se protegerem. É dolorido também
perceber que essas feridas foram feitas pelas pessoas mais próximas: pais, parentes,
pessoas que deveriam ter cuidado de nós, nos acolhido e protegido. No entanto, Jesus
traz uma boa notícia quando afirma:
Nada há, fora do homem, que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai
dele isso é que contamina o homem. [...]. Porque do interior do coração dos
homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as prostituições, os
69
Um exemplo é a obra de Sonia HIRSCH, Sem açúcar, com afeto.
83
homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja,
a blasfêmia, a soberba, a loucura. Todos estes males procedem de dentro e
contaminam o homem.
Marcos 7:15,21-23, RC
Cristo afirma que esse mal não precisa nos contaminar. Em primeiro lugar, não
somos responsáveis pelas ações alheias, mas apenas por nossa reação ao mal delas
advindo. Podemos fingir que esse mal não existe, negar que tenha nos machucado,
justificar aqueles que nos feriram e assumir a culpa deles. Nesse caso, somos candidatos
a doenças físicas — dor de estômago, enxaqueca e outros distúrbios, que não passam de
somatização das emoções reprimidas. Ou nos tornamos extremamente perfeccionistas
para garantir o reconhecimento do outro e tentar evitar novas agressões.
Outra alternativa destrutiva é abrigar esse mal, remoê-lo, perpetuá-lo, ou seja,
alimentar a ferida para punir o outro, ou para que tenham pena de nós. É a atitude do
deficiente que acentua sua deformação para pedir dinheiro na rua. Podemos ainda
revidar e, com isto, nos assemelhar justamente àquilo que repudiamos. Tornamo-nos
pessoas amargas, críticas e agressivas. Nestas três hipóteses, o mal venceu, pois
conseguiu nos contagiar. Nós nos machucamos e machucamos o outro a partir dessas
feridas não curadas. Desenvolvemos mecanismos de defesa e ataque, que fazem de nós
pessoas perigosas como o terrorista que mata para vingar a morte de amigos e parentes.
Mas existe um caminho de cura, que passa pelo reconhecimento da amplitude do
mal e pelo perdão fundamentado na atitude de Jesus na cruz. Vencer o mal com o bem é
resistir ao mal, recusar-se a deixar que ele tome conta do nosso coração, que deforme
nossa autoimagem e que nos leve a desistir de amar e ser amado. Deus nos capacita a
digerir os pensamentos e as emoções que nos assaltam, depositando todas essas feridas
aos pés da cruz. A vitória que ele já conquistou também é nossa, se escolhemos o
bálsamo e antídoto do seu amor.
É importante reconhecer, em nosso íntimo, a tentação de sucumbir ao mal, de
deixar-nos abater e até destruir por ele. Somos tentados a desconfiar do amor de Deus
por ter deixado acontecer esse sofrimento. A vida nos parece absurda e perdemos o
desejo de viver. Mas, quando consideramos que até Cristo foi alvo da maldade humana
e não fugiu, nem cedeu ao ódio, mas, pelo contrário, reafirmou seu amor incondicional,
somos encorajados a seguir suas pegadas e atravessar o vale da sombra da morte,
porque encontramos nele essa fonte inesgotável de amor e de consolo. Assim,
levantamos a cabeça e nos dispomos a encarar a vida de peito aberto, com sua porção de
sofrimento, mas também de alegria, realizações e presentes a serem desfrutados.
Tive o privilégio de acompanhar em terapia algumas mulheres que foram
abusadas pelo pai na infância. Esta é talvez a ferida mais perversa e devastadora, pois
priva a criança de vínculos essenciais para sua existência. Ela é violentada justamente
por aquele de quem esperava afeto e proteção. Ela perde também o suporte da mãe, por
medo de se abrir, ou, pior, porque a mãe torna-se cúmplice, por seu silêncio e omissão.
A criança tende a assumir a culpa pela atitude dos pais e se sente um lixo. Entrar em
contato com essa ferida requer muita coragem, mas lhe permite perdoar-se pelas
tentativas equivocadas de lidar com a situação. Indo ao encontro dessa criança
envergonhada, cada mulher pode reconciliar-se consigo mesma, resgatar a
espontaneidade e a criatividade perdidas, descortinar novos horizontes, amar e ser
amada.
O abuso não é exclusividade da mulher, como mostra o filme O príncipe das
marés. Acompanhei uma família cujo pai abusava do filho há anos. Quando finalmente
a mãe teve coragem de enfrentar o marido e obrigá-lo a buscar ajuda, seu pastor e a
delegada de polícia, que era cristã, lhe deram oportunidade de cura, desde que se
84
tratasse com toda a família. Foram dois anos até que o menino convidasse o pai a voltar
para casa, porque podia novamente confiar nele. No início, o pai dizia que sabia que o
que tinha feito era errado, mas que não conseguia sentir o sofrimento que causara ao
filho.
Com o tempo, foi entrando em contato com a dor de sua própria criança, que
tinha sofrido abuso sexual, físico e emocional. Ele foi desmoronando e chorava muito,
mas o filho olhava com um sorriso constrangido nos lábios. Estava trancado e resistia a
qualquer tentativa de comoção. Ele também já havia abusado da irmãzinha. A mãe
também tinha sido vítima de abuso na infância e sentiu-se, por muitos anos, impotente
diante da atitude do marido, de quem era completamente dependente. Graças a Deus,
essa família pôde ser totalmente restaurada, perdoar e se reconciliar com as famílias de
origem, escrever uma nova história, de forma que o pecado dos pais não se perpetuasse
nas próximas gerações. Hoje, já estão ajudando outras famílias em situações similares.
Nunca é tarde para crescer. Permanecer jovem de espírito é manter a disposição
de continuar aprendendo ao longo da vida. Com base nesse critério, existem jovens
velhos e velhos jovens. Depende da postura interior frente aos desafios do dia a dia.
Desenvolver o próprio potencial requer o desejo de conhecer a si mesmo em uma
atitude receptiva e acolhedora, em vez de crítica e cética. Somos capazes de estimular
ou inibir as características da personalidade. O primeiro passo para sair do casulo
consiste em observar atitudes e reações. O corpo conta a história da nossa vida: fala das
alegrias e tristezas, dos sonhos e das mágoas. Quando não lhe damos ouvidos, ele se
manifesta por meio da dor ou de sintomas que nos obrigam a cuidar dele.
Atendi a um homem que sofria de inexplicáveis dores de ouvido. No processo
terapêutico, lembrou que tinha surpreendido o pai com outra mulher e contado à mãe.
Quando o pai soube, deu-lhe uma bofetada e chamou-o de traidor. A mãe não o
defendeu e, assim, ele assumiu uma culpa que o perseguiu e se manifestava através
dessa dor, que sumiu quando acolheu o menino desamparado e confuso diante do
comportamento inexplicável dos adultos. Ele não percebeu, na época, que tinha sido a
lata de lixo onde os adultos despejaram covardemente sua ira.
A voz, o olhar, os movimentos, a maneira de apertar a mão ou de abraçar, de
expressar afeto ou raiva são formas peculiares de nos comunicarmos com o mundo
externo. Quanto mais conscientes estivermos desses aspectos, maior a possibilidade de
mudança.
Para aprimorar a identidade, precisamos primeiro nos aceitar como somos,
assumir nossa biografia, entender nossos mecanismos de defesa, respeitar nossa
realidade interior. A partir daí podemos questionar escolhas e rever alguns paradigmas
que não nos agradam e possivelmente nos foram ensinados à revelia. Determinação,
coragem e desejo de viver são essenciais para superar as barreiras que fomos
construindo ao longo da nossa existência.
Quando nos sentimos sobrecarregados, desanimados, cerceados pelos outros,
tendemos a nos enxergar como vítimas, mas não podemos esquecer que somos nós que
aceitamos carregar fardos que não são nossos; que nos deixamos usar, invadir,
desrespeitar, maltratar, manipular e desvalorizar; que extrapolamos nossos limites.
Nessa hora, podemos escolher entre resignação e mudança, entre revolta e busca de uma
solução criativa.
Deixar de escolher é permitir que outros escolham por nós. Nossas relações são
o que fazemos delas. Mesmo quando não podemos mudar as circunstâncias da vida,
ainda assim somos livres para decidir como lidar com elas. As mágoas alimentadas
transformam-se em monstros. Fugir ou ficar na fossa não leva a lugar algum. Em vez de
procurar culpados, é melhor canalizar as energias para encontrarmos soluções para as
85
situações que nos incomodam. O primeiro passo é mais difícil porque rompe padrões de
comportamento já estabelecidos. Ser autêntica incomoda, provoca resistências. Mas é
possível encontrar pessoas que se identifiquem com você e que sirvam de estímulo em
sua caminhada.
A terapia também é um auxílio precioso. Lembro-me de um casal que me
procurou após várias separações e tentativas malsucedidas de recomeço. Estavam
novamente separados, mas queriam fazer uma última tentativa. O marido era um
homem assertivo e carismático, que conseguia controlar as pessoas por sua capacidade
de persuasão. A esposa era uma mulher bonita e inteligente que tinha se anulado para
evitar conflitos e sentia-se sufocada. Ela se afastava, de tempos em tempos, na tentativa
de encontrar seu próprio fôlego, mas acabava voltando diante da insistência do marido,
que ficava desesperado com seu distanciamento.
Tratava-se de uma dinâmica de dupla dependência. Ele precisava de alguém
dependente que o fizesse sentir-se forte e bem-sucedido. Ela havia sido condicionada,
desde a infância, a abrir mão de si mesma em prol de um irmão deficiente, que exigia
cuidados especiais, e sentia-se culpada toda vez que tentava priorizar suas necessidades.
Perceber que não era vítima, mas codependente, deu-lhe coragem para romper essa
dinâmica e caminhar com as próprias pernas. Houve algumas recaídas, mas ela
conseguiu, aos poucos, encontrar e realizar a própria vocação, apesar da resistência do
marido. Ele, por sua vez, foi descobrindo os benefícios da parceria, mesmo tendo que
aprender a ceder e dar espaço a ela.
As mulheres pensaram que o simples fato de trabalharem fora de casa lhes
garantiria emancipação, mas o que elas ganharam foi apenas uma dupla jornada de
trabalho. A liberdade não se conquista só externamente. Ela começa quando nos
permitimos dizer “sim” ou “não”; quando deixamos de atender a expectativas das
pessoas para sermos coerentes conosco. Significa assumir a responsabilidade por nossas
escolhas. Como pondera Fiorângela M. Desidério, 70 às vezes dizer “não” à ação é dizer
“sim” à pessoa. Se dizemos “sim”, quando queremos dizer “não”, estamos nos
desrespeitando e mentindo. A negativa nem sempre significa rejeição; pode expressar
carinho, proteção, estímulo. Da mesma forma, o “sim”, em vez de amor, pode significar
fuga, comodismo, hipocrisia. No Brasil, muitas pessoas dizem “sim” em vez de
“talvez”, e “talvez” em vez de “não”.
Os homens estão aprendendo a dividir o poder com essa nova mulher. Alguns
continuam agarrados a seus padrões machistas, mas muitos já descobriram as vantagens
de dividir a responsabilidade financeira com a mulher e de compartilhar
responsabilidades em relação à casa e aos filhos. Acompanhei um casal que corresponde
a esse perfil. A mulher é uma executiva bem-sucedida e o marido, de origem mais
humilde, contentou-se com um trabalho mais pacato, de corretor de seguros. No
entanto, cozinha muito bem e administra a casa com maestria, além de ter mais tempo
disponível para as crianças.
De vez em quando, ela se sente sobrecarregada e ele procura assumir mais
algumas tarefas. Outras vezes, ele se sente desqualificado e ela percebe a necessidade de
valorizar sua contribuição nos detalhes do dia a dia. Ela foi criada pela mãe para “ficar
longe da cozinha” e ele aprendeu a se virar desde cedo, pois não podia contar com os
pais. Na infância, cada um desenvolveu talentos que se transformaram em fonte de
realização. Seria lastimável que estivessem obrigados a abrir mão deles por causa de
padrões estereotipados do que se espera de um homem ou de uma mulher.
Na realidade, cada casal pode encontrar seu próprio equilíbrio, usufruindo os
talentos complementares e compartilhando responsabilidades, desde que não se sintam
70
Acorde, mulher!
86
explorados mutuamente ou lesados pela distribuição de papéis. A vida elabora um
currículo para cada pessoa, situações que trazem ensinamentos. Mas a realidade interna
de cada um não depende das circunstâncias, é construção própria. Cada um concede o
visto de entrada e saída do seu mundo interior. Cada um é livre para abrigar e alimentar
as emoções que afloram no contato com o mundo. Viver significa estar presente, prestar
atenção em si, nas pessoas, no mundo, perceber a unicidade de cada um. Voltar para si
mesmo é essencial para não se perder nos demais. Ser nosso melhor amigo, transformar
a solidão em solitude, curtir-nos, gratificar-nos, tomar-nos nos braços, tudo isso liberta
da dependência dos outros; ajuda-nos a seguir o caminho, sendo fiéis a nós e honrando a
Deus com os recursos, talentos e dons que ele nos confiou.
Ficou gravado em meu coração o testemunho de uma amiga que havia sofrido
abuso pelo pai. Só conseguiu assumir o abuso na idade adulta e, mesmo assim, sua mãe
e irmãs, com quem compartilhou as lembranças, tentaram manter escondido esse
segredo. Quando decidiu seguir o coração, sentiu-se mais livre, mais leve e mais inteira.
Ela escreveu:
Marquei uma conversa com meus irmãos, mas eles não vieram e fui incentivada
por minha mãe e irmãs a “deixar para lá”. Sofri muito. Senti-me mais uma vez
humilhada, abandonada. Será por isso que as mulheres levam tanto tempo para
contar? Estou sozinha, isolada. Fechei-me para não sangrar mais [...]. Parece
que, ou eu boto essa história para fora, ou ela me devora! Estou descobrindo,
com muito sofrimento, que minha família não quer ouvir e/ou considerar a
minha dor, porque sabe que terá que lembrar as de cada um. Eles também
sangram e sofrem. Talvez não seja o tempo deles, mas o meu já chegou! [...]
estou na etapa da solidão — a mesma que senti quando sofri o abuso [...]. Não
vou calar o “sentimento ilhado, morto, amordaçado” (como poetizou Belchior).
Eu sou autora desta história.
Ela escreveu a cada membro da família e, mais tarde, comentou:
O remédio para falar é saber que a dor da vergonha e humilhação desaparece
quando enfrentada com dignidade e coragem [...]. Afinal dizer-se sofrida é
reconhecer-se humana, frágil [...] a dor vai sumindo, parando de latejar e o
brilho da beleza-espiritualidade-humanidade-mulher com valor vai crescendo.
Para os homens, entrar em contato com a dor é ainda mais ameaçador.
Acompanhei um executivo que, no auge do sucesso profissional, entrou numa depressão
que não conseguia entender. Com o tempo, percebeu que tinha enterrado emoções de
abandono e medo pela ausência dos pais, que trabalhavam de sol a sol, pensando assim
oferecer o melhor ao filho. Com nove anos, foi enviado à cidade, para estudar num
internato. Os pais se sacrificaram para lhe garantir um futuro melhor.
Entrar em contato com essa dor seria desqualificar a escolha dos pais e ser
ingrato. Assim, para preservar a imagem deles, ele simplesmente reprimiu as emoções e
usou a capacidade mental para atender à expectativa deles e tornar-se um profissional
bem-sucedido. Ao censurar a dor, privou-se também da alegria, sendo incapaz de
saborear seus êxitos. Tinha tudo para ser feliz, mas se sentia frustrado e sem rumo.
Quando, finalmente, por meio dos sonhos, conseguiu resgatar essa criança carente, a
vida ganhou novo colorido e ele se sentiu inteiro, pela primeira vez. Ao se aproximar
dele mesmo, conseguiu se abrir para outros relacionamentos, principalmente para a
esposa, os filhos e os pais. Pôde construir amizades e se abrir à alegria de viver.
Doçura diz respeito à delicadeza, à capacidade de acolhimento e à percepção dos
detalhes, tão própria à alma feminina, mas acessível aos homens por meio de sua anima.
87
Se o amor consiste em fazer ao outro o que desejamos que o outro nos faça, a delicadeza
vai além: fazer aos outros o que eles querem que você lhes faça. Considera o desejo do
outro, que é diferente do meu. A delicadeza busca descobrir e atender à autêntica
necessidade do outro, ao invés de impor-lhe minha própria necessidade de dar. Trata-se
de adaptar-se à perspectiva do outro, que é diferente da minha.
Essa delicadeza e esse respeito do outro, que não são estáticos, mas dinâmicos,
evoluem e se transformam, exigem permanente desconstrução de uma série de
preconceitos, expectativas e referências que compõem a imagem que formei do outro e
precisam ser modificadas devido às novas percepções. Assim, vou me libertando dos
meus condicionamentos. Ao desenvolver a delicadeza, aprendo a ser livre. Ao respeitar
a unicidade do outro, vou também respeitando o meu jeito de ser e descobrindo meus
próprios valores.
É privilégio e gozo da mulher ser, por natureza, mais delicada em sentimentos
que o homem; e é desafio e esforço feliz em nós, por mais broncos e rudes que
sejamos, chegar a desenvolver o aspecto mais suave de nosso caráter, a
capacidade de notar e sentir a mulher que carregamos dentro de nós. A
delicadeza do homem pode ser tanto mais bela quanto menos esperada. 71
Os homens foram tolhidos mo que concerne à delicadeza pelo fantasma da
homossexualidade. Lembro-me de um colega de colégio que foi alvo de muita
discriminação por sua delicadeza e sensibilidade. Era um artista, um poeta e enxergava
muito mais que a maioria de seus pares.
Por sua vez, as mulheres são incentivadas desde cedo a serem delicadas e até a
se sacrificarem pelos outros; por isso, muitas reagem partindo para o outro extremo.
Uma amiga casou cedo com um homem machista e exigente. Durante anos ela achou
que era seu dever atender aos mínimos desejos dele e estendeu essa atitude em relação
aos filhos. Eles abusaram de sua doçura e ela se tornou escrava de filhos mimados,
desqualificada e desrespeitada por todos, até que se apaixonou por um homem que, pela
primeira vez, foi atencioso e soube valorizá-la. Um dia, ela anunciou que ia se divorciar,
para escândalo de todos.
Essa não foi a melhor maneira de resgatar sua dignidade. Esse novo
relacionamento não vingou; foi apenas uma experiência que lhe permitiu perceber que
tinha vida própria. Ela foi fazer terapia, firmou-se profissionalmente e encontrou em
Deus sua verdadeira identidade de filha amada. Hoje, resgatou sua delicadeza, mas sabe
se defender, ser assertiva e estabelecer limites. Tem amigos, está construindo uma nova
relação com cada filho e abrindo-se para uma nova oportunidade de parceria.
Coragem - para encarar a vida e a morte
É a mulher que dá à luz; por isso, ela também não desiste de lutar pela vida. As parteiras
no Egito não se submeteram à ordem criminosa do faraó (Êx 1:15-17). Mesmo diante da
morte, a sunamita não se rendeu e correu ao encontro do enviado do Senhor para que ele
se manifestasse (2Rs 4:8-37). As mulheres acompanharam Jesus até o fim e elas é que
foram ao túmulo, dispostas a embalsamar o cadáver (Mc 15,16). Com sua persistência,
elas tiveram o privilégio de anunciar que Jesus havia ressuscitado e que sua vida havia
prevalecido sobre a morte. Mas alguns homens revelam esta característica: José de
Arimateia, acompanhado de Nicodemus, tirou o corpo de Cristo da cruz, o lavou e
perfumou com um composto de mirra e aloés, o envolveu num lençol de linho e o
71
Carlos G. VALLÉS. Viver em comunidade, p. 71-72.
88
sepultou. Vemos essa delicadeza no filme japonês: A partida.72
Da mesma forma, é a vida de Cristo em nós que pode vencer nossa pulsão de
morte e se sobrepor à nossa sombra. Basta deixarmo-nos abraçar por Deus e inundar por
sua graça.
Evitar a dor implica, em última análise, evitar a vida. E não há outra forma de
evitar a vida que não seja por meio de alguma morte. Assim, o ser humano, sem
perceber, escolhe matar muito de si, para fugir da dor inerente à vida. Ao se expor à dor,
a mulher acaba tendo maior resistência a ela. Não somente a dor física, mas
principalmente a dor emocional (luto, rejeição, abandono). A vivência profunda dos
sentimentos verdadeiros desperta a capacidade de lidar com eles, transformá-los,
fortalecendo-se.
Os homens desenvolveram recursos tecnológicos extraordinários para lidar com
pacientes terminais em UTI (Unidade de Tratamento Intensivo), mas são as mulheres
que se aproximam dos moribundos para humanizar sua morte, respeitando sua
dignidade e demonstrando compaixão e empatia. Citamos apenas Madre Tereza de
Calcutá e Elisabeth Kübler-Ross,73 que identificou as etapas que antecedem a morte para
permitir melhor compreensão do processo pelo paciente e por seus familiares.
A sociedade ocidental identifica o conceito de felicidade com ausência de dor e,
nesse engano, aprisiona seu emocional a um único sentimento predominante: o medo de
sofrer. No entanto, o crescimento, do parto à morte, é sempre um processo sofrido.
Amar também envolve sofrimento, pois, quando permitimos que o outro se aproxime,
tornamo-nos vulneráveis. Até para Deus, amar significou dispor-se a sofrer. Por isso, a
Palavra afirma que Cristo derramou seu sangue antes da fundação do mundo (1Pe 1:1920). Ele nos criou e nos amou mesmo sabendo que iríamos levá-lo à morte. E aceitou de
antemão pagar o preço da nossa reconciliação.
É somente quando nos permitimos vivenciar as emoções inerentes à vida que
desenvolvemos a capacidade de transcender a dor, libertando-nos, assim, do medo da
vida. Da mesma forma que não há ressurreição sem cruz, também não há vitória e
amadurecimento sem dor. A mulher pode ajudar o homem a acolher o sofrimento como
parte da experiência humana e ingrediente indispensável à vida plena.
Um exemplo de superação é minha amiga Gláucia, que foi atropelada e seu
estado era tão grave que alguns médicos a desenganaram. Foram vários meses de
sofrimento e um longo processo para recuperar os movimentos da cabeça e das pernas!
Em vez de se tornar amarga pela barbaridade que sofreu, dedicou parte de seu tempo
para escrever um livro de agradecimento. Foi citando minuciosamente todas as
expressões de apoio e afeto que recebeu, uma forma de cultivar os gestos que a
ajudaram a se recompor. E termina dizendo:
Desde o acidente, passei por dificuldades, medos, dúvidas, inseguranças. Houve
momentos em que me exacerbei e briguei com aqueles que mais amo. Preferiria
que meu acidente não tivesse acontecido. Por outro lado, para mim é maravilhoso
sentir que eu ganhei tanta coisa. Ganhei manifestações de cuidado, de carinho, de
afeto... Sei que, apesar do acidente, eu não perdi a alegria e a esperança. Sinto que
tenho sido cuidada por Deus, que o entendo e sinto como um pai e uma mãe, e
sinto essa manifestação de amor e cuidado pela proximidade e presença de vocês!
Cabe aí mencionar nossa responsabilidade por ser a presença concreta de Cristo
ao lado dos que sofrem. Ser Corpo de Cristo é justamente isso. O próximo é
72
73
Filme de Yijiro Takita, 2008. Vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro 2009.
Sobre a morte e o morrer.
89
prioritariamente aquele que precisa de nós, e cabe a nós servir a Cristo nele.
Lembro ainda de outra amiga, Ema, missionária chilena no Brasil. Teve um
acidente de carro que esfacelou sua rótula e, apesar de várias cirurgias, nunca conseguiu
recuperar-se completamente. Após um período de luto pela perda sofrida, ela escolheu
transformar a dor em serviço ao próximo: envolveu-se no atendimento a deficientes
físicos carentes, criando até mesmo um centro de atendimento, na periferia do Rio.
Por sua vez, a psicóloga Esly Carvalho teve de passar pelo processo doloroso do
divórcio. Em vez de esconder-se no papel de vítima, para fugir da discriminação ou
apenas virar a página, como se nada tivesse acontecido, como muitos fazem, ela
vivenciou profundamente todas as consequências e compartilhou generosamente o seu
caminho num livro onde confessa:
No caminho à integridade [...] perdi meu estado civil, a convivência, as coisas
boas, o nível socioeconômico [...] muitas coisas morreram, mas muito mais
morreu dentro de mim [...]. Como disse Ernest Hemingway: “A vida nos rompe a
todos... mas alguns se tornam mais fortes nos seus lugares quebrados”. Deus me
fortaleceu nos meus lugares quebrados. Separação é uma tragédia, um aborto, às
vezes terapêutico, às vezes provocado por uma das partes... É preciso abraçar o
sofrimento, ir fundo na dor. 74
O luto bem trabalhado traz maturidade, sabedoria e compaixão pela dor do
outro. O sofrimento mal resolvido traz somatizações, crises, depressões e se estende
muito mais. É preciso reconhecer nossa parte para não repetir, nem carregar falsas
culpas impostas pelo outro ou pela sociedade. A falta de permissão para sofrer atrapalha
muito.
Como Henri Nouwen, reconheço que sou tentada a me deixar sufocar pela
tristeza, a ponto de não enxergar mais a alegria que se manifesta nas pequenas coisas. A
alegria não nega a tristeza, mas a transforma num solo fértil onde brota ainda mais
alegria. Um ato íntimo de arrependimento, um pequeno gesto de amor desinteressado,
um momento de perdão genuíno são suficientes para que Deus desça de seu trono, corra
em direção ao seu filho arrependido e encha os céus com seus gritos de alegria. É a
alegria por pertencer a Deus, cujo amor é mais forte que a morte, que nos capacita a
viver no mundo desfrutando desde já a condição de cidadãos do Reino.
As pessoas que já experimentaram a alegria de Deus não negam as trevas, mas
escolhem não permanecer nelas. Nouwen confessa: “Há raramente um minuto da minha
vida onde não estou tentado pela tristeza, a melancolia, o cinismo, o mau humor, os
pensamentos sombrios, as especulações mórbidas e as ondas de depressão.” Em A voz
interior do amor, ele nos permite acompanhá-lo num momento de depressão fruto da
interrupção de uma amizade. Lida com seu vazio interior, com seu sentimento de
desamparo, com os mecanismos que desenvolveu, como a sedução, para agradar os
outros e ser amado.
Vivemos numa sociedade que foge da dor e tomamos um analgésico ou
ansiolítico ao primeiro sinal de dor física ou emocional. No entanto, a dor física é um
sintoma, um sinal de alerta que indica uma situação de risco. E como a maioria das
dores provém de somatizações, elas revelam que algumas emoções foram reprimidas.
Para não sofrer, nos trancamos emocionalmente, mantendo as pessoas à distância e nos
alienando de nós mesmos. Distantes do coração, ficamos também impossibilitados de
nos identificar com o outro em suas dores ou alegrias. Evitar a dor é evitar a vida. É
preciso acolher a dor para também desfrutar plenamente da alegria.
74
Quando o vínculo se rompe: separação, divórcio e novo casamento, p. 17-18, 24.
90
A dor emocional pode ser causada pelo mal, que é inerente à condição humana,
em um mundo que jaz no maligno, assim como assalto, acidente, desemprego; pode ser
ainda de origem relacional (rejeição, abuso, perdas, crises) ou espiritual (perseguição).
O sofrimento pode ser fruto do mal que me fazem, do mal que faço a mim mesma ou ao
outro em resposta, ou da compaixão diante do mal que atinge outros, principalmente
quando se trata de um filho, mas pode ser também uma empatia em relação aos
excluídos e injustiçados. Existe ainda curiosamente um sofrimento para alcançar algo
bom, como as dores de parto, as dores de crescimento (desmame), vacinas, limites,
saída dos filhos, a dor do atleta que tenta se superar etc.
O grande desafio é encontrar Deus na dor, em vez de fugir dela ou duvidar do
amor de Deus. A Bíblia nos alerta que a tristeza pode gerar vida ou morte (2Co 7:10),
pode ser estéril e até destrutiva ou então fértil. A questão não é a dor em si, mas a
maneira como a gente lida com ela. O grande risco é sofrer por razões erradas: pela
expectativa irreal de uma vida sem sofrimento e por achar que Deus nos abandonou. No
livro Transforma meu pranto em dança, Nouwen pondera que o consolo vem quando
nos dispomos a sofrer as perdas, em vez de negá-las:
A cura começa quando tiramos a dor do isolamento diabólico, para fazer uma
conexão entre o nosso sofrimento e o sofrimento de Deus, enxergando o nosso
sofrimento como parte de uma grande batalha contra o poder das trevas. Não
temos controle sobre a maioria das circunstâncias. Nossa escolha tem mais a ver
com nossa reação face às situações que a vida apresenta: com ressentimento ou
gratidão? [...] Em vez de tentar fugir do sofrimento, evitando situações de risco,
precisamos reconhecer que a vida não inclui só perdas, mas que todos iremos
perder tudo porque iremos, inevitavelmente, morrer [...] Ao encarnar, Cristo veio
plantar neste mundo efêmero a semente da vida eterna. Sob essa perspectiva,
podemos ver nosso sofrimento como temporário [...] Esperança é muito diferente
de resignação passiva, é fé pessoal e íntima naquele que já venceu a morte e o
mal.75
Em Mosaicos do presente, ele sugere:
A dor pode ser abraçada, não pelo desejo de sofrer, mas por saber que algo de
novo nascerá dela, como dores de parto. Ao reconciliar-nos com as nossas
dores, ou tomar a nossa cruz, descobrimos a ressurreição. Muitos dos nossos
sofrimentos derivam não tanto da nossa condição de dor, mas do nosso
sentimento de solidão no meio do sofrimento. Só encontramos descanso no
abraço daquele que é Pai e Mãe. O sofrimento pode ser transformado em
compaixão.76
E, ainda, em Renovando todas as coisas, Nouwen complementa:
Os sofrimentos e as lutas que encontramos em nossa solidão transformam-se,
assim, num caminho de esperança, porque nossa esperança não está mais
baseada em alguma coisa que acontecerá depois de terminados os nossos
sofrimentos, mas na presença real do Espírito curador de Deus em meio a esses
sofrimentos.77
Para sermos consolados, precisamos, em primeiro lugar, reconhecer a dor (Mt
75
P. 4ss.
P. 34, 36, 42.
77
P. 52.
76
91
5:4). Tendemos a negar a dor ou negar a Deus. Um sinal de maturidade é ser capaz de
assumir todas as emoções, sem censura, e ao mesmo tempo reafirmar a confiança em
Deus. Um dos exemplos mais contundentes é a oração que Dietrich Bonhoeffer fez na
prisão, em 1943:
Deus, eu te chamo ao despontar do dia,
ajuda-me a orar
e a concentrar meus pensamentos em ti;
Não sei fazê-lo sozinho.
Dentro de mim há trevas,
mas contigo está a luz;
Eu me sinto solitário,
mas tu não me desamparas;
Estou desanimado,
em ti, porém, está o meu auxílio;
Invade-me uma inquietude,
tu, entretanto, és a paz;
Sinto-me tão amargurado,
mas contigo está a paciência;
Não entendo os teus caminhos,
mas tu conheces o caminho bom para mim...
Senhor, seja qual for a experiência deste dia,
Teu nome seja louvado.
Amém.
Ele foi capaz de abraçar a dor e a fé ao mesmo tempo. Acolheu a sua dor e
reafirmou a soberania de Deus, em vez de construir um deus com suas projeções e
expectativas, como vemos em muitas teologias distorcidas que colocam na boca de
Jesus a promessa de satanás: “Tudo te darei se prostrado me adorares”. Quem duvida do
amor de Deus se priva de seu consolo e perdão. Até Jesus foi tentado: “Pai, por que me
abandonastes”, mas logo depois se entregou incondicionalmente.
De fato, Cristo nunca prometeu nos poupar do sofrimento. Pelo contrário, ele
nos avisou que passaríamos por provações. Quem somos nós para cobrar algo de Deus
quando Ele já deu o seu bem mais precioso. O bem que recebemos é graça pura, dom
imerecido. Ele prometeu estar conosco. O mundo seria muito pior se não fosse pela sua
graça que ele estende a todos como o sol nasce sobre maus e bons (Mt 5:45).
A aceitação do sofrimento nos leva da fé utilitária, baseada nas bênçãos de Deus,
à fé madura, que anseia pelo próprio Deus. Ela já não se fundamenta em nossas
experiências, mas na essência de quem Deus é (Jó). A raiva pode ser reconhecida sem
dolo: “Irai-vos e não pequeis” (Ef 4:26).
Atendi uma mulher que se comportava como uma menina de doze anos, presa
ainda à raiva que nutria da mãe por ter se sentido abandonada pela morte dela. Ficou
presa a uma emoção que não conseguia assumir e, portanto, digerir. Jesus assumiu sua
angustia no Getsêmani. Davi, Jó, Jeremias expressam suas dúvidas através de lamentos,
muito diferentes das murmurações crônicas, como os israelitas no deserto. A Bíblia
pontua a tendência da mulher de se perder na autocomiseração: a famosa mulher rixosa
(Pr 21:9)! É verdade que ela é atraída pelo papel de vítima, que a exime de assumir sua
responsabilidade. E não se pode subestimar o poder da vítima! O poder da vítima é
acusar e manipular. E tem sido a arma predileta das mulheres subjugadas. Quanto mais
elas se livram do papel de Amélia, mais assumem as verdadeiras emoções.
Davi expressou sua tristeza quando morrem seu filho Absalão e seu amigo
92
Jônatas. No livro de Salmos, ele expressa sentimentos de impotência, medo e culpa. É
necessário distinguir a culpa verdadeira da falsa. Por exemplo, atendo na clínica um
rapaz que se autoboicotava porque se sentia culpado por ter sobrevivido em vez do
irmão. Vemos este mesmo sentimento retratado no filme que conta a história do cantor
country Johnny Cash,78 cujo pai culpou-o pela morte acidental do irmão. Ray Charles
também carregou uma culpa infundada pela morte do irmão e tentou anestesiá-la através
da droga. A emoção mais perigosa é o desespero porque nos priva de experimentar o
consolo e perdão de Deus. E pode gerar o suicídio, como aconteceu com Judas.
É importante esgotar essas emoções, verbalizando-as para Deus e para outra
pessoa, em vez de ficar remoendo-as com ressentimento, autocomiseração e amargura.
Trata-se, no entanto, de um processo, e recaídas são normais. Emoções saudáveis vêm à
tona, são condizentes e proporcionais à causa, de curta duração, são pessoais,
contagiantes e trazem alívio, enquanto emoções patológicas são camufladas,
desproporcionais, desconexas, crônicas, apelativas e geram isolamento.
A dor nos leva a desenvolver vários mecanismos de defesa, que podemos
classificar em três categorias: revidar a agressão, ficar paralisado ou fugir. Revidar a
agressão significa eleger um culpado, que pode ser a própria pessoa, e se vingar!
Entramos em um círculo vicioso que conduz à amplificação do mal, numa espiral que
pode ir até a morte. O filme A guerra dos Roses ilustra bem essa atitude mostrando as
retaliações cada vez mais agressivas de um casal em crise. Ficamos paralisados quando
nos trancamos afetivamente, como fez C. S. Lewis ao falecer a mãe, bem retratado no
filme Terra das sombras. Ele se tornou especialista em sofrimento, na teoria, mas não
permitia que ninguém se aproximasse de seu coração.
Há várias maneiras de fugir: Através da negação: “Não foi nada”; da
racionalização: “Foi melhor assim”; da espiritualização: “Foi da vontade de Deus”; do
ativismo: a pessoa não consegue parar nem ficar em silêncio para não entrar em contato
com as emoções que trancou no seu porão. A narcotização pode ser obtida também
através de remédio ou do álcool. Há ainda várias formas de compensação: consumo,
comida, droga, abuso.
A gente fere com o que está ferido em nós. Como diz Esly Carvalho,79 não há
santidade sem sanidade e o caminho é a cruz de Cristo, representada pelo T: sanTidade.
O processo de santificação passa pela restauração das feridas, que nos transformam de
pessoas armadas e defensivas em instrumentos de cura para outros. É necessário buscar
o perdão e o consolo de Deus, identificar e confessar a culpa verdadeira, para sermos
perdoados e aprendermos com os erros. Para Deus, isso é motivo de festa!
Há uma festa no céu toda vez que um pecador se arrepende e, na parábola do
filho pródigo, o pai fez uma festa quando seu filho voltou para casa. Cristo tomou sobre
si nossas enfermidades e dores e foi traspassado por nossas transgressões e iniquidades
(Is 53:4,5). Ele lidou com o mal que nos fizeram e o mal que nos fizemos. Deus nos
consola como uma mãe (Is 66:13). É um mistério: no sofrimento, Deus se identifica
conosco e nós nos identificamos com Cristo.
É necessário também consolar-se, pegar a alma no colo e niná-la (Sl 131).
Conversar com ela: “Por que está abatida...?” (Sl 42:5, 43:5), ministrar-lhe, trazer à
memória o que pode dar esperança (Lm 3:12). Identificar motivos de alegria, como a
ressurreição de Cristo (Jo 16:22). Por isso, somos entristecidos, mas sempre alegres
(2Co 6:4,10). Podemos ir fundo na tristeza, sem perder essa alegria que é fruto do
Espírito Santo e, portanto, não depende das circunstâncias.
Por fim, é preciso perdoar. De novo, trata-se de um processo, mas significa
78
79
Filme de James M ANGOLD, Johnny e June [título original: Walk the Line], 2005.
Saúde emocional e vida cristã, p. 13.
93
escolher a vida em vez da vingança. Significa abrir mão de cobrar o outro ou de usar
esta ferida para receber atenção ou para justificar nossos erros. Tenho experimentado
que pode ser útil escrever uma carta de despedida com agradecimento, lamentação e
bênção final. Desta forma, ficamos livres do papel de cobrador ou de carcereiro que nos
aprisiona junto. Buscar apoio não é sinal de fraqueza, mas de maturidade. Assim, a
viúva procurou Eliseu, que a ajudou a enxergar seus recursos para que fossem
multiplicados (2Rs 4:1-7). Essas situações nos fazem refletir sobre a qualidade da nossa
rede social. Quem são as pessoas com quem posso contar? Quem eu procuro para
direção espiritual ou mentoria? Isolar-se é o pior caminho!
A resiliência diz respeito à capacidade de transformar a dor em crescimento.
Passar com honestidade pela dor gera maior sensibilidade com os que sofrem, gera
gratidão por sabermos apreciar o que temos, gera generosidade, gera capacidade de
consolar outros com o consolo que recebemos de Deus. A dor fortalece os que se
apoiam em Deus (2Co 12:9). É uma oportunidade para rever a vida e refletir no que
aprendeu e gostaria de mudar. Nouwen pondera:
Nossa inclinação para evitar, negar ou suprimir o lado doloroso da vida sempre
leva a um desastre físico, mental ou espiritual. Olhando a morte de frente,
podemos reconhecer nossa mortalidade e optar livremente pela vida [...]. O amor
vem daquele lugar dentro de nós em que a morte não pode entrar. Em Cristo,
podemos afirmar que o poder do amor é mais forte do que o poder da morte.80
Escolher a vida significa escolher amar, mesmo que isso signifique sofrer.
Quando tomar consciência de alguma reação desproporcional diante de um
sofrimento, procure perceber que ferida mais antiga foi reativada. Acolha suas emoções
e escreva um lamento. Derrame seu coração diante de Deus e, se possível, diante de
alguém que possa ouvi-lo com empatia, sem interferir, sem dar conselhos, sem julgar,
mas apenas caminhando junto com você por este vale dos ossos secos para que possa
enterrar o passado, para aprofundar o processo de perdoar e perdoar-se, e transformar
esta ferida que age na clandestinidade, numa cicatriz que sirva de aprendizagem. Deus
repreende os falsos amigos que só sabem teologizar, criticar e cobrar (Jó 42:7),
enquanto os amigos verdadeiros são aqueles que se identificam, consolam e ajudam de
forma prática e discreta (42:11).
Gratidão
A escolha pela gratidão é fundamental. Sem cair no extremo do jogo do contente, que
ignora o sofrimento e faz questão de só enxergar o aspecto positivo, é possível dar mais
ênfase ao amor, vencendo assim o mal com o bem. É assim que Cristo na cruz recebe
todo o mal que despejam sobre ele e responde com um perdão incondicional: “Perdoalhes porque não sabem o que fazem!”. O círculo vicioso do mal é quebrado e o cordeiro
vence o leão pela força do amor. Em vez de revidar, ele absorve o mal e o transforma
em amor.
A maturidade é a capacidade de reconhecer todas as emoções despertadas pelo
sofrimento e ao mesmo tempo reafirmar nossa confiança no amor de Deus. Geralmente,
tendemos a censurar essas emoções para preservar a imagem de um Deus bom, ou
acolhemos nossas emoções e concluímos que Deus nos abandonou. Como vimos,
Dietrich Bonhoeffer não esconde sua angústia, como Jesus tampouco escondeu: “Pai,
por que me desamparaste?”. Mas também reafirma sua entrega incondicional e
80
Uma carta de consolação, p. 26-27.
94
confiança em Deus.
De bons poderes sinto-me cercado,
bem protegido e, de fato, consolado;
assim desejo eu passar os dias
e ter convosco um ano de alegrias.
Ainda o passado nos tortura,
de dias maus nos pesa a amargura,
Senhor concede às almas espantadas
a salvação para a qual não estão preparadas.
Estende-nos o cálice amargo
da dor, e o bebamos sem embargo,
porque nos vem das tuas mãos divinas;
até sofrer com gratidão tu nos ensinas.
Mas se quiseres dar-nos alegrias
ainda sob o sol dos curtos dias
do mundo, lembraremos o passado,
e entregamo-nos ao teu cuidado.
Deixa que estas velas que chamejam
um bom sinal de ti, nas trevas, sejam;
permite mais uma vez que nos encontremos,
pois tua luz brilha à noite bem sabemos.
E quando se fizer aqui tranquilidade,
toda ao redor, plena sonoridade
do mundo, invisível, nos envolva,
então, num hino, o louvor se te devolva.
De bons poderes vemo-nos cercados,
de pensamentos para o bem voltados.
Deus está presente noite e dia,
assim é certa hoje sua alegria. 81
A gratidão nos renova e nos ajuda a enxergar além do sofrimento, confiantes na
capacidade de Deus de reverter o mal em bem. Deus nos alerta que, no mundo, teremos
tribulações. Ele não nos livra sempre das dificuldades, mas muda nosso olhar sobre elas.
Ele está conosco a fim de nos capacitar a lidar com o sofrimento para que não seja
inútil. Deus nos ajuda a passar da revolta para a superação, percebendo que o mal já foi
vencido na cruz, visualizando a luz no fim do túnel.
Gratidão é uma Graça do Espírito Santo que me capacita a discernir quem é
Deus e quem sou para viver a partir da minha verdadeira identidade de filha
amada do pai, avalizada pelo Filho e capacitada pelo Espírito Santo. Ela me
permite enxergar além do material para o que é eterno. 82
A gratidão é também fruto da humildade, da percepção de que não merecemos
81
De bons poderes, oração escrita em 28/12/44, no campo de prisioneiros de Flossenburg, Alemanha,
onde foi executado, em 09/04/44, aos 39 anos de idade.
82
Isabelle LUDOVICO, O melhor da espiritualidade brasileira, p. 109.
95
nada do que recebemos. Tudo o que somos e o que temos é presente de Deus. Fico
abismada quando vejo cristãos exigirem de Deus que prove o seu amor atendendo a
seus pedidos. Deus já provou o seu amor na cruz e não temos moral para exigir nada, já
que o perdão de Deus é completamente imerecido. Se não fosse por sua graça, já
estaríamos aniquilados, pois Deus, na sua justiça, não nos suportaria. Tereza D´Avila
ora assim: “Que nada te perturbe, que nada te apavore. Tudo passa, só Deus não muda.
A paciência tudo alcança, quem tem Deus nada lhe falta, só Deus basta”.
É um amor tão imenso e desproporcional que nos constrange e nos curvamos,
maravilhados e reverentes, diante de tanta misericórdia! Assim, todo o bem que nos
alcança é lucro, é motivo de celebração e festa. Temos consciência de que o mundo
seria muito pior se não fosse abençoado pelas diversas manifestações indiscriminadas
do amor de Deus sobre todos nós.
Capítulo dez — O princípio feminino como sabedoria
Discernimento
A palavra atual para discernimento é insight, um conhecimento interior, fruto de
revelação, que tem a ver também com intuição. É uma fonte interior de sabedoria,
presente divino para aqueles que sabem ouvir com o coração e estão atentos à voz do
Espírito Santo. Ela não se percebe de forma audível, mas através de pensamentos,
imagens, sentimentos esclarecedores que lançam luzes em nossas trevas e iluminam
nosso caminho. A maioria das pessoas tem dificuldade de estabelecer um diálogo
construtivo entre razão e fé, o que poderíamos chamar de inteligência espiritual,
enquanto inteligência emocional provém do diálogo entre razão e emoção.
O iluminismo promoveu a racionalidade cognitiva reducionista, que desprezou a
percepção mais simbólica, subjetiva e metafórica da realidade. Deus não coube nesse
paradigma! Esse caminho gerou arrogância intelectual e aridez emocional, além de
intolerância com outras formas de saber.
Nos últimos cinquenta anos, a pós-modernidade questionou certos valores da
modernidade: o racionalismo estreito, o cientificismo, a crença na autonomia do sujeito.
A ênfase nos valores negados pela modernidade pode levar ao outro extremo: uma
apologia radical do irracionalismo e uma efervescência religiosa chamada de “revanche
do sagrado”, responsável pelos fundamentalismos e pelo obscurantismo intelectual. A
valorização do saber racional-científico integrado com a fé em Deus permite evitar estes
dois atalhos, colocando este conhecimento a serviço da nossa transformação à imagem
do nosso Senhor Jesus Cristo.
A Bíblia nos mostra como esse discernimento se desenvolveu paulatinamente na
vida da mãe de Jesus. Graças à sua disponibilidade, “Maria esteve presente nas três
etapas da vida de Jesus que pontuam a revelação e a realização da Aliança: a
Anunciação onde se estabelece a Aliança, Caná onde se celebra a Aliança e a Cruz onde
se sela a Aliança”.83 Nascimento, casamento e morte, etapas essenciais da vida humana
em que a mulher ocupa um lugar especial.
A visitação é a primeira concretização da boa-nova. É o poder divino manifesto
na fraqueza humana. É o testemunho da força dos pobres e da fé dos humildes. Essa boa
nova é transmitida de mulher para mulher, percebida através da criança que estremece
no ventre e compartilhada num cântico profético. Maria e Isabel encontram uma na
outra a concretização da aliança. Essa comunicação empática é própria do feminino.
83
HONORE -LAINE, La femme et le Mystère de l’Alliance, p.13.
96
Podemos vê-la novamente quando Maria de Betânia derrama bálsamo sobre a cabeça de
Jesus, anunciando de forma instintiva e profética a sua morte.
Esse episódio revela uma característica da vocação feminina: a percepção
intuitiva do mistério da revelação. Não é um ato racional e por isto foi censurado pelos
discípulos. Maria é movida por paixão e compaixão. E Jesus faz questão de exaltar essa
atitude. Ela já demonstrou o seu amor por Jesus quando escolheu ficar aos seus pés (Lc
10:38-42). Uma palavra-chave aqui é “escolher”. Maria abre mão das expectativas
sociais de sua época para dar prioridade ao seu relacionamento com Jesus. Ela chega de
mãos vazias e não hesita em romper os padrões culturais para expressar o seu amor por
Cristo, fruto de uma intimidade desejada e concretizada. Ela pontua que a vocação da
mulher e seu ministério profético se originam na contemplação.
A intervenção de Maria, em Caná, junto aos serventes, é por excelência a frase
da aliança: “Fazei tudo o que ele vos disser”. Essas bodas prefiguram as bodas místicas
de Cristo com a Igreja. O vinho será transformado no seu sangue, como sinal da sua
aliança, prelúdio das bodas eternas, vinho que Cristo promete beber conosco no Reino
de seu Pai (Mt 26:29). A aliança, simbolizada por uma relação marital com Cristo como
esposo, ressalta seu aspecto afetivo. O cristianismo não é a aceitação de um dogma ou
de um acordo, mas uma entrega apaixonada, como a noiva se entrega na noite nupcial.
O que importa é o vínculo pessoal e afetivo com Deus, em Cristo.
Estamos diante de mais uma característica do feminino: a pessoalidade, esse
anseio por intimidade que nossa sociedade descartou, privilegiando o aspecto funcional
dos relacionamentos. Precisamos desesperadamente resgatá-la, não apenas para tornar
nosso mundo mais humano e acolhedor, mas até para garantir nossa sobrevivência. O
princípio feminino tem por função acompanhar o homem num caminho de
interioridade, na descoberta de seu espaço interior, onde ele pode encontrar-se com
Deus, já que somos templo do Espírito Santo.
Desde a queda, o homem especializou-se no desbravamento do mundo e a
mulher foi limitada ao espaço da casa. Ela foi criada para viver em função do marido e
dos filhos. Na intimidade da casa, priorizou as relações afetivas enquanto o homem
priorizava as conquistas materiais. Muitas mulheres, hoje, têm dado prioridade à
carreira profissional, mas a maioria ainda anseia por um companheiro e abrem mão de
tudo facilmente em prol de um grande amor. Os homens são criados para garantir seu
lugar na sociedade e direcionam os talentos para esse objetivo.
Essa ênfase no relacional muitas vezes tornou a mulher dependente das
exigências do homem, a quem tentava agradar para receber algum carinho. Muitos
homens se aproveitaram dessa afetividade, deixando a mulher vulnerável a ponto de ser
subjugada e sofrer abuso. Mas Jesus fez questão de ressaltar a dignidade da mulher,
chamando-a de “filha de Abraão” (Lc 13:16), e condenou a discriminação que pesa
sobre ela. Jesus reergue essa mulher curvada e podemos perceber que, ao lado da
opressão demoníaca, existe uma enfermidade emocional que leva a mulher a se sentir
inferior e a rejeitar a sua feminilidade, submetendo-se à exploração.
Quando Jesus foi tocado pela mulher com hemorragia (Lc 8:43-48), a Bíblia não
menciona que ele tenha procedido ao ritual de purificação requerido pela lei. Com isso,
ele mostra que a menstruação não é um castigo, nem algo vergonhoso ou sujo. Por meio
da cruz, o sangue adquire outra conotação: é sinal do perdão que gera vida eterna.
Diante da mulher adúltera, ele aponta a corresponsabilidade do homem. O
homem está cobrando detalhes quanto aos seus direitos. Jesus o convida a uma
conversão de coração e de olhar sobre a mulher (Mt 5:27,28). Ao receber o afeto da
mulher pecadora, que enxuga seus pés com os cabelos (Lc 7:36-50), Jesus celebra a sua
intimidade com as mulheres a partir de um vínculo alimentado pela paixão e pelo
97
quebrantamento.
A cada estágio da revelação de Cristo, encontramos uma mulher: Maria, Isabel, a
samaritana, Marta, Maria Madalena. O feminino na mulher e a anima no homem nos
leva a receber a Palavra não somente a nível intelectual, mas com o coração, a nível
vital, ou até visceral, o que permite perceber o seu mistério.
No decorrer da história, a mulher foi domesticada e amputada. Por meio da
relação íntima com Deus, ela pode reencontrar a sabedoria e o discernimento
necessários para descobrir sua verdadeira vocação. A hemorragia vai estancando e ela
pode tirar as faixas que cercearam seu desenvolvimento. O Espírito a vivifica e faz
nascer novamente carne em seus ossos secos e desconjuntados.
A meditação é essencial para selecionar o que precisa morrer e viver, de forma a
escolher a melhor parte: a vida abundante que Cristo veio nos dar. Deixar morrer o que
precisa morrer e deixar viver o que precisa viver. Deixar morrer a voracidade, o desejo
de onipotência que nos devora e quer devorar os outros, ou a apatia que nos leva à
anulação mediante um processo de autossabotagem.
Desde a infância, as meninas são educadas para serem boazinhas e agradar,
atendendo à expectativa de terceiros e abrindo mão dos desejos pessoais. Quanto mais
nos anulamos, mais somos desqualificadas. Usando o conto do Barba Azul, Clarissa
Pinkola Estés84 lembra que questionar é bom, pois certas perguntas são chaves que
abrem portas secretas da psique.
A mulher continua com hemorragia até identificar seu predador interior,
responsável por destruir seus sonhos. É preciso ter coragem de olhar para dentro e
reconhecer tudo o que foi destruído ou deformado. Em Deus, a mulher encontra forças
para reverter esse processo. Nele, ela pode confessar esse estrago, reconciliar-se consigo
e escolher a vida. Ela pode descobrir as respostas verdadeiras para suas perguntas mais
profundas. A verdade a liberta. Deixar pai e mãe, ousar, assumir riscos são
características dos discípulos de Cristo. Por meio da contemplação, encontramos a luz
que nos permite enxergar nosso mundo interior, limpá- lo e alimentar nossa alma.
É preciso livrar-se do supérfluo para resgatar o essencial, desentulhar nossa
forma de pensar e sentir, para discernir a perspectiva de Deus. A relação com Deus gera
humildade genuína, que nos liberta das armadilhas da anulação ou da onipotência. Ela
nos permite confessar nossas falhas e descobrir nossos recursos.
Despojamento
Nossa sociedade precisa de consumidores compulsivos para alimentar o sistema
econômico baseado no capitalismo selvagem. Os campeões desse modelo, os Estados
Unidos, têm 6% da população mundial e consomem 33% dos recursos naturais. O
desenvolvimento da China acelera o esgotamento dos recursos. Uma verdade
inconveniente, filme de Al Gore, demonstra com clareza a iminência de uma catástrofe
de proporções planetárias. Diante da evidência de que a terra não suporta nosso estilo de
vida, está surgindo um movimento chamado “Simplicidade voluntária”.
Se o mundo prega uma nova ética humana, que fala de fraternidade e comunhão,
de solidariedade e compaixão para preservar nosso futuro, o que dizer de nós, cristãos,
que deveríamos estar à frente dessa proposta, como também do movimento ecológico?
De fato, nos deveríamos estar cientes de que Deus nos confiou a terra para cuidarmos
dela e não para depredá-la. Deus nos criou para amarmos uns aos outros e não para
usarmos as pessoas em nosso próprio benefício. Devemos começar confessando que nos
tornamos coniventes com um sistema que produz injustiça social, consumo desenfreado
84
Femmes qui courent avec les loups, p. 64.
98
de supérfluos enquanto a maioria da população é privada do essencial.
Se estivéssemos mesmo conscientes de nossa identidade de filhos de Deus, não
seríamos tão vulneráveis aos apelos de propagandas que nos induzem a pensar que
nosso valor depende de bens materiais, sinais exteriores de riqueza e sucesso. Quem
precisa investir tanto na aparência revela uma vida interior pobre e uma autoestima
inconsistente. Não podemos esquecer que o dinheiro (“Mamom”) é uma potestade e que
precisamos escolher a quem vamos servir. O Reino de Deus está no coração daqueles
que reconhecem Cristo como rei e vivem segundo seus valores. É impossível estar em
paz com esses dois mundos tão antagônicos. O caminho do discipulado é estreito e na
contramão do sistema no qual estamos inseridos, controlado pelo príncipe deste mundo.
Viver voluntariamente de maneira mais simples, escolhendo uma vida mais
despojada exteriormente e mais abundante interiormente, é tirar o excesso de peso da
bagagem para tornar a viagem por esse mundo mais leve e prazerosa. Significa priorizar
a qualidade de vida que não depende de recursos materiais, mas de paz e de vínculos
significativos. Nosso tempo, sim, é muito precioso para ser desperdiçado em shoppings
e na frente da TV. É preciso priorizar o essencial em detrimento das exigências de nossa
sociedade capitalista. Simplicidade Voluntária é um caminho, um processo de libertação
do sistema materialista, onde tudo tem o seu preço, para viver no Reino, onde tudo é
fruto da graça! Precisamos aprender, e ensinar aos filhos, a rir das propagandas que
insistem em nos empurrar produtos, como se deles dependesse nossa felicidade.
Desfrutar a presença de Deus no silêncio e na solitude nos abastece
emocionalmente e nos capacita a resistir às armadilhas do mundo. Evite comprar por
impulso. Resgate a criança que há em você, brincando com seus filhos sem
compromisso com o desempenho, mas apenas pelo prazer do jogo, de preferência não
competitivo. Use seu tempo livre para um trabalho voluntário, promovendo e
potencializando as pessoas marginalizadas, sendo voz dos que não são ouvidos e nem
mesmo vistos.
Simplicidade casa com utilidade, durabilidade e beleza. Não é um fim em si
mesmo, mas um meio, coerente com o Evangelho, de abrir mão de despesas supérfluas
para beneficiar generosamente aqueles que são privados de condições dignas de vida. É
um compromisso com a justiça que visa a promoção do ser humano e não apenas uma
ajuda assistencialista. Não se trata apenas de economizar e de reciclar para garantir a
sobrevivência do planeta, mas de construir uma sociedade mais fraterna e inclusiva,
onde todos são valorizados e têm suas necessidades básicas supridas.
Quanto mais nos doamos a partir da experiência íntima do amor de Deus, mais
recebemos amor, alegria e paz. As pessoas mais generosas são as mais realizadas,
enquanto as mais egoístas são geralmente frustradas e infelizes. Quem estende os braços
ao próximo integra uma fraternidade que forma uma rede de solidariedade e representa
o Corpo de Cristo até que ele volte. É ser sal e luz em um mundo que jaz no maligno.
Despojamento é fruto de identificação com Cristo que não tinha onde repousar a
cabeça (Mt 8 :20). É característica daqueles que se sabem ricos do amor do Pai e não
buscam reconhecimento por meio de bens materiais, status ou sucesso. Conhecem o seu
valor porque foram comprados pelo sangue de Cristo. Encontraram sua identidade como
filhos do Deus vivo. Não precisam provar sua capacidade, pois se sabem capacitados
pelo Espírito Santo. É um processo de desintoxicação dos valores do mundo. À medida
que assimilam sua identidade espiritual, libertam-se da mentalidade de escravos e
assimilam o caráter de Cristo. De fato, não possuímos nada e tudo o que nos foi dado,
nos foi confiado para ser repartido e multiplicado. Quando queremos reter o que
recebemos, torna-se semelhante à areia que escorrega entre os dedos, como cisternas
rotas (Jr 38:6), como um “saquitel furado” (Ag 1:6).
99
Num dos livros mais tocantes que já li, Anne Morrow Lindbergh85 avalia o que
importa na vida e ressalta a simplicidade e pureza, viver em “estado de graça”, que se
traduz em harmonia interior e exterior. Diante da complexidade da vida urbana gerando
fragmentação, ela anseia por uma vida simples que conduz à unificação. A agitação é
inerente à vida da mulher, pois os interesses e as obrigações irradiam em todas as
direções. Assim, para permanecer inteira em meio a tantos apelos, ela precisa
simplificar a vida e encontrar equilíbrio entre solitude e comunhão. Para isso, é
necessário exercer a arte do desapego, não só de roupas e de outros bens materiais, mas
também da vaidade. Trata-se de tirar as máscaras, pois elas consomem muito da nossa
energia.
A mulher se doa, mas não enxerga os resultados de sua doação e tenta preencher
o vazio interior com um ativismo que a torna cada vez mais frustrada. A solitude é o
único antídoto, pois nos permite reencontrar a verdadeira essência: corpo, alma e
espírito apaziguados a partir da reconciliação com Deus e conosco. A quietude interior
nos centra em nós e nos coloca à escuta de Deus. A mulher precisa ser pioneira nesse
movimento de buscar forças no íntimo.
Até recentemente, por ser impossibilitada de exercer atividades exteriores, a
mulher tinha mais oportunidade de olhar para dentro de si mesma. Ao fazer isso, ela
ganhou uma força interior que o homem raramente conseguiu encontrar em sua vida
ativa, voltada para o exterior. Mas nossa emancipação nos impeliu a competir com ele
em suas atividades externas e, com isso, negligenciamos nossas próprias fontes
interiores. A crise ideológica e o vazio existencial podem estar levando tanto o homem
como a mulher a redescobrir que o Reino dos céus está dentro de cada um de nós.
A meia-idade é um período propício para o desapego: da ambição medida pelo
sucesso material, do ego protegido por máscaras e armaduras. É tempo de nos
dedicarmos a atividades intelectuais, culturais e espirituais. A meia-idade pode ser
considerada o período da segunda floração. Sinais que prenunciam crescimento, tão
comuns na adolescência — insatisfação, inquietude, conflito, desespero, nostalgia —
são considerados erroneamente sinais de decadência. Na verdade, são sinais de vida que
paradoxalmente indicam a aproximação da morte.
Ao invés de enfrentá-los, fugimos deles. Escapamos com depressão, colapsos
nervosos, alcoolismo, romances fugazes e impossíveis, ou sobrecarga de trabalho
frenético e infrutífero. Tentamos exorcizar esses sinais como se fossem demônios,
quando poderiam ser anjos da anunciação. Eles anunciam uma nova etapa em que
estamos livres para satisfazer o lado negligenciado do nosso ser; livres para o
crescimento do coração e para o crescimento espiritual.
No decorrer da vida, tendemos a acumular fardos desnecessários. Precisamos
selecionar e simplificar para preservar tempo e espaço onde podemos ficar sozinhos e
nos encontrar, buscando equilíbrio entre vida física, intelectual e espiritual. Tempo para
a solitude e tempo para compartilhar. Proximidade com a natureza. A procura da
simplicidade exterior, da integridade interior, de um relacionamento mais inteiro que
irradie para os outros relacionamentos.
No processo, vamos nos desfazendo do lixo emocional e dos bens
desnecessários que acumulamos e que dificultam nossa caminhada. Quanto mais leves,
mais preparados estaremos para entrar na eternidade, onde somos esperados de mãos
vazias, pobres materialmente e ricos do amor do Pai. O despojamento também nos leva
a confiar no Pai quanto ao cuidado de nossas necessidades.
85
Presente do mar, p. 33.
100
Cidadania
Perceber-nos como cidadãos do Reino de Deus, e ao mesmo tempo profundamente
enraizados num contexto de tempo e espaço específicos, levou ao desenvolvimento da
Teologia da Missão Integral, articulada durante o Congresso Mundial de Evangelização
realizado em Lausanne, na Suíça, em 1974. Chegou ao Brasil em 1983 por meio das
principais palestras e publicações do Congresso Brasileiro de Evangelização, CBE. Ela
se contrapõe à teologia da prosperidade, que busca riqueza e poder. Ser cidadão do
Reino de Deus é viver a fé em sua dimensão comunitária e sócio-política.
O II CBE, realizado em Belo Horizonte, em 2004, reuniu os principais
articuladores da teologia da missão integral e gerou um Fórum Jovem de Missão
Integral, que ocorreu em junho de 2007. A missão integral fundamenta-se na percepção
de que Deus chama a Igreja a pregar o evangelho a todo homem e ao homem todo, em
todo lugar. Isso significa proclamar as boas-novas da salvação, mas também trazer
alívio ao que sofre e buscar com ele justiça e meios de uma vida digna, seguindo o
exemplo de Jesus:
[Ele] percorria toda a Galileia ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho
do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo. E a sua
fama correu por toda a Síria; trouxeram-lhe, então, todos os doentes,
acometidos de várias enfermidades e tormentos: endemoninhados, lunáticos e
paralíticos. E ele os curou.
Mateus 4:23-24
Cristo ministra ao homem todo, na sua dimensão espiritual, mental e física. Ele
prega o evangelho, mas também ensina, liberta de patologias espirituais
(endemoninhados), mentais (lunáticos) e físicas (paralíticos).
Quando o homem e a mulher pecaram, no Jardim do Éden, perderam a saúde
espiritual, psíquica e física. Jesus Cristo veio para salvar e restaurar o homem em todas
as dimensões, revertendo os efeitos da queda. Ele faz isto por meio da sua encarnação,
morte na cruz e ressurreição. A Igreja é corpo de Cristo, presença de Cristo no mundo;
sua missão é resgatar homens e mulheres em sua integralidade.
Em Lucas 4:18 lemos:
O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os
pobres e enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista
aos cegos, para por em liberdade os oprimidos.
Aqui também Jesus Cristo, no início do ministério, define sua missão:
evangelizar, libertar e curar. Jesus Cristo multiplica pães para atender aos famintos, cura
os enfermos, expulsa demônios e anuncia a salvação a todos. A missão integral se
articula nesses três níveis.
A Igreja certamente tem um papel fundamental em nosso país como instrumento
de transformação, desenvolvimento, justiça e paz, por meio de uma evangelização
acompanhada de ações sociais, educacionais e de cidadania, restaurando o brasileiro em
todas as dimensões. Outro lado dessa mesma questão é a afirmação das Escrituras de
que a fé sem obras é morta.
Para não cair na dimensão unilateral da Teologia da Libertação, a Teologia da
Missão Integral precisa integrar uma vida devocional inspirada na espiritualidade
clássica cristã, com suas ênfases na Trindade, no silêncio, na lectio divina e nos
relacionamentos. Ela se inspira, principal e primordialmente, na vida e obra de Jesus
Cristo. Jesus não dicotomizava sua espiritualidade, como fazemos hoje. Ele orava
101
sozinho (Mt 14:23;26:44; Lc 9:28), orava em público (Lc 11:1-2), conhecia as
Escrituras (Lc 4:20-21), realizava milagres, pregava o evangelho do Reino, curava e
libertava os oprimidos. Sua espiritualidade era o conjunto de tudo aquilo que fazia a
partir de sua comunhão com o Pai.
A espiritualidade de Jesus possui uma dimensão vertical (amar a Deus) e uma
dimensão horizontal (amar ao próximo). Jesus mostrou, com sua vida, que ele amava a
Deus e que desse amor ele extraia a força para amar o seu próximo. A espiritualidade de
Cristo era também profundamente dependente do Espírito Santo. Ela o levou até as
últimas consequências: a morte na cruz. Ou seja, espiritualidade inclui sofrimento.
A espiritualidade da Missão Integral fundamenta-se no Sermão do Monte.
Podemos notar que as bem-aventuranças estão intimamente ligadas à vida do outro.
Alguém é feliz quando serve o outro. É, pois, através dessa participação, com
humildade, compaixão, mansidão, busca da justiça, que o modelo de Cristo para uma
nova vida é exemplificado ao mundo. É a prática dos ensinamentos de Cristo que
revela a espiritualidade; não o discurso ou a aparência de santidade. O verdadeiro
cristão é aquele que vive o evangelho de Cristo, por palavras e ações, pregando e
servindo; é kerygma e diakonia. É pelos frutos que se reconhecem os verdadeiros
discípulos (Mt 7:15-20). “Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido,
mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10:45, grifo da autora).
Essa teologia se espelha na vida e missão de Cristo. Muitas pessoas perguntam:
onde posso encontrar a Deus? Ele escolheu ser encontrado no pobre: “Eu tive sede e me
destes de beber” (Mt 25:35). O Cristo do Novo Testamento é radical, tem estilo de vida
simples, não cede a pressões, faz perguntas incômodas, desafia os poderosos da religião
e do Estado. O Cristo que está sendo apresentado hoje é muito diferente do Cristo do
Novo Testamento.
Os cristãos têm-se deixado seduzir pelos benefícios do mundo e precisam
urgentemente de arrependimento, individual e coletivo (igreja), para voltarem ao
“primeiro amor” e viverem as demandas do evangelho. Ouvir a voz do Espírito no meio
de tantas vozes que tentam nos seduzir leva-nos a uma nova consagração, submetendonos ao senhorio de Jesus, com todas as implicações, no compromisso de viver na
dependência de Deus, sabendo que no Senhor somos amados e guardados.
Missão integral requer a identificação e a compaixão que geram um estilo de
vida simples e atos de solidariedade. O verdadeiro cristianismo é voltado para o outro,
não para benefícios próprios. Diaconia é viver o evangelho nas pegadas do Filho de
Deus; não uma tarefa, mas um jeito de ser. A Igreja precisa “carregar em seu corpo as
marcas de Jesus” (Gl 6:17), manifestando de forma concreta o carinho e o cuidado de
Deus. Os desafios são imensos: nas mudanças rápidas impostas pela pós-modernidade, a
igreja deve favorecer a construção de vínculos fortes entre as pessoas, recriando um
mundo de gratuidade.
No Reino de Deus, os principais beneficiários não são os que recebem, mas os
que oferecem. As igrejas podem ser redes de pessoas unidas pelo que têm de mais
precioso: a fé, a esperança e o amor. Para conquistar e defender direitos, precisamos
aprender a atuar em conjunto, em colaboração. A construção do Reino passa pelo
estabelecimento de novas relações baseadas em união, amor e corresponsabilidade. A
solidariedade deve impregnar nosso modo de educar e aprender.
Numa época contaminada pelo relativismo, a igreja deve zelar pela integralidade
do evangelho, submetendo-se à orientação do Espírito Santo e à Palavra, para reformar
suas práticas a partir da oração. Os valores do reino são opostos aos valores do mundo,
como o consumismo desenfreado, o hedonismo e o egocentrismo. Paz, integridade e
generosidade são características do reino que precisamos viver aqui, manifestando sua
102
presença em nós e entre nós. Nós nos vinculamos eternamente àquilo que acolhemos em
nosso coração. A Igreja pode ser um modelo de estrutura justa e verdadeiramente
democrática, de relacionamentos harmoniosos e de um estilo de vida simples. A paz não
é causa, mas fruto da justiça (Is 32:17).
Se, no século passado, discutia-se a dialética entre razão e fé, hoje a questão
central é a relação entre fé e justiça. Em vez de sermos coniventes com formas de
violência e injustiça, precisamos proclamar e manifestar o amor de Deus, “praticar a
justiça” (Mq 6:8) e “viver em paz com todos” (Rm 12:8), antes de buscar justiça e paz
para outros. Só assim podemos ser agentes efetivos de mudanças culturais, sociais e
políticas.
O amor expresso pelo serviço ao próximo nos salva do egocentrismo, da
ganância, da acumulação. O discípulo de Cristo não se com-forma, mas se trans-forma.
Cada um é chamado a participar da construção do reino com seus dons e talentos. Todos
os dons devem ser exercidos com compaixão, sob a unção do Espírito Santo e para o
bem comum. Todos os cristãos são chamados ao testemunho e ao serviço. Além desse
chamado geral, cada um de nós tem uma vocação especial. As boas obras são o sinal do
reino. Embora sejamos justificados pela graça mediante a fé, seremos julgados por
nossas obras de amor pelas quais nossa fé intima torna-se conhecida (Ap 20:13).
Num mundo injusto e corrupto, a Igreja deve encorajar seus membros a se
tornarem cidadãos conscientes, a formarem grupos ou a se unirem a grupos já
existentes, para serem voz dos excluídos, promovendo dignidade, justiça e paz. O fruto
do Espírito Santo é o amor, que deve nos impelir ao serviço humanitário, à busca de
desenvolvimento e de justiça social. O Deus invisível, que uma vez tornou-se visível em
Cristo, agora se faz visível através de nós, quando amamos uns aos outros. Ser sal e luz
é agir na sociedade, a fim de introduzir nela os valores éticos cristãos.
A ação evangelística de muitos cristãos no mundo limita-se à distribuição de
folhetos e à realização de eventos. Muitos não se relacionam com pessoas fora do
âmbito da igreja, incluindo família e vizinhos. E, no evangelismo de rua, falam do amor
de Jesus! Que contradição! A ação social é consequência da evangelização, pois as boas
obras são evidência da salvação (Tg 2:14-26). Ela pode ser uma ponte para a
evangelização, mas não deve ser uma isca usada apenas como meio de atrair pessoas.
Soube de uma igreja que fechou uma creche social com mais de 100 crianças porque
não proporcionava o crescimento esperado da igreja, já que as famílias moravam em
bairros distantes! Felizmente, há cada vez mais trabalhos missionários nas áreas médica,
educacional, agrícola e nutricional. Evangelização e envolvimento sócio-político são
como as duas asas de um pássaro.
A espera da volta de Cristo não deve impedir a Igreja de se engajar na
construção de um mundo mais justo, cumprindo sua missão profética de denunciar e
agir. As ações visam à capacitação e mobilização do cristão para o crescente exercício
da cidadania, fortalecendo a luta por políticas públicas justas. É um processo de
formação do senso crítico, da autoestima e da construção da identidade pessoal e social,
para que cada um possa assumir sua história, como protagonista e produtor de cultura.
Visa à transformação pessoal, comunitária e social por meio de ações que resgatem a
dignidade de cada ser humano. A ação social vai além do serviço ao próximo, como
mostra o quadro abaixo:86
86
SERVIÇO SOCIAL
AÇÃO SOCIAL


Socorrer o ser humano em suas
Eliminar as causas de suas necessidades
John ST OT T e outros. Evangelização e responsabilidade social, p. 38.
103



necessidades
Ter atividades filantrópicas
Procurar ministrar a indivíduos e
famílias da sociedade
Obras de caridade



Ter atividades políticas e econômicas
Procurar transformar as estruturas da
sociedade
Busca de justiça
As necessidades sociais podem ser físicas, psicológicas e econômicas. Muitas
agências de assistência social estão enfatizando o desenvolvimento e missões médicas
estão se voltando para a saúde comunitária. Trata-se de levar as pessoas a descobriremse como sujeitos de sua própria história e agentes de transformação. As agências e
ONGs priorizam iniciativas comunitárias e com perspectivas de conquista de autonomia
e poder de organizações populares. As pessoas foram empobrecidas por uma
distribuição de renda perversa.
A perversidade e a violência do círculo da exclusão se estabelecem quando o
próprio proscrito aceita a proscrição como destino inevitável e como consequência
natural de sua condição pessoal. Existe uma senzala psicológica introjetada que leva os
excluídos a se considerarem cidadãos de segunda categoria. Confundimos muitas vezes
teologia com ideologia, o que nos torna reprodutores e reforçadores do sistema de
exclusão do qual somos, ao mesmo tempo, vítimas e propagadores. É revelador que
pessoas fora de nossos arraiais, como Gandhi, encontrem em nosso livro sagrado
potenciais políticos que muitas vezes não estamos dispostos a admitir e muito menos a
viver.
Precisamos desenvolver uma teologia que sirva de apoio e iluminação a uma
prática transformadora, em vez de favorecer a manutenção dessa ordem injusta e
excludente. Até nosso vocabulário nos denuncia. A palavra “menor” tem caráter
discriminatório. Também não se deve referir à “prostituição infantil”, mas à “exploração
sexual de crianças e adolescentes”. O trabalho infantil também é “exploração econômica
de mão de obra de crianças e adolescentes”. Nossa abordagem do afrodescendente
também é discriminatória. As crianças não são priorizadas nem em nosso espaço físico.
As mulheres, embora maioria, ainda lutam por reconhecimento.
A diaconia se traduz de forma prática em assistência jurídica e educação para a
cidadania. Se no passado a teologia foi exclusividade masculina, hoje conta cada vez
mais com a contribuição feminina. É o princípio feminino de cuidar e prover que
mobiliza a Igreja a obedecer ao chamado de Cristo, de atender perdidos, necessitados e
oprimidos, em seu nome e para sua glória!
Novamente homens e mulheres podem se complementar para responder a esse
chamado. Os homens tendem a perceber melhor as estratégias de ação social, enquanto
as mulheres são sensíveis à cada situação em particular. É interessante notar que no
primeiro CBE, do qual Osmar Ludovico foi um dos mentores, havia poucas mulheres na
programação; mas, paralelamente, ajudei a realizar a Primeira Consulta: Mulher, Igreja
e Sociedade, que contou com a participação de mulheres de destaque, como a jornalista
Délis Ortiz e a cantora Wanda Sá. Um dos temas foi: Óticas Masculinas sobre o
Feminino, no qual Osmar participou. No segundo CBE, a participação das mulheres já
estava integrada à programação oficial e mulheres como a senadora Marina Silva foram
ouvidas com grande interesse.
Consciência ecológica
Vivemos num mundo à beira da destruição pelo uso predatório dos recursos naturais.
Foi uma mulher, Rachel Carson, bióloga marinha norte-americana, quem primeiro
104
levantou a bandeira da ecologia.87 Uma bandeira que nos, cristãos, deveríamos ter
assumido desde sempre, pois Deus nos confiou o mundo para dele cuidar e extrair o
sustento. É verdade que Francisco de Assis é considerado o patrono dos ecologistas, por
sua postura carinhosa com a natureza “irmão sol, irmão lua” e com os animais, com os
quais conversava. Mas é só recentemente que percebemos quanto nossas ações têm
repercutido no frágil equilíbrio entre todas as espécies.
O processo de redenção inclui a criação toda, que geme esperando o
cumprimento da profecia (Rm 8:22). Não apenas a terra, mas todo “o universo é
constituído por uma imensa teia de relações de tal forma que cada um vive pelo outro,
para o outro e com o outro; o ser humano é um nó de relações voltado para todas as
direções”,88 pois tudo é relação e nada existe fora delas. Por isto, a lei mais universal é a
da sinergia, colaboração, solidariedade, comunhão.
Deus é comunhão de três, que se entrelaçam tão profundamente que se unificam. E nos criou, por amor, com a característica essencial da interdependência.
Ninguém está só. Cada ser existe, coexiste, convive e comunga com todos os demais e
com a Fonte de onde tudo provém e para onde tudo volta. Se o mundo está doente é
porque nossa mente está doente. O homem, em sua onipotência, achou que tudo estava a
seu serviço e passou a explorar o outro, em vez de cooperar com ele.
Mudar o olhar é imprescindível para garantir a sobrevivência física. O mundo
que construímos é insustentável. É um mundo excludente e condenado à extinção pelo
esgotamento de recursos essenciais, como a água potável, e pelo desequilíbrio
ambiental, que anuncia uma catástrofe planetária com o derretimento das calotas polares
e a elevação do nível do mar em seis metros de uma vez, como um grande tsunami,
tema este explorado, com dados científicos, no livro de Al Gore: A verdade
inconveniente.
As mulheres, como portadoras da vida, percebem a importância de cuidar da
natureza e são também as primeiras a sofrer as consequências da devastação por
desastre natural ou guerra. Vemos mulheres na África percorrendo quilômetros
diariamente para buscar água, que carregam na cabeça, para garantir a precária
sobrevivência da família. Mulheres que tiveram de assumir a família porque os homens
foram mortos ou levados pelas milícias. No Brasil são também as mulheres que se
mobilizam para proteger a vida. Marina Silva é um exemplo dessas mulheres que
transformaram condições precárias de vida em alavanca de seu crescimento e
combustível de seu engajamento em favor da vida, que inclui o meio ambiente.
Na praia de Intermares, em Cabedelo, uma bióloga luta corajosamente para
preservar as tartarugas que, sem o seu amparo, morreriam atraídas pela luz da rua em
vez de seguir em direção ao mar. Ela percorre a praia diariamente para descobrir os
ninhos, protegê-los dos predadores humanos e animais, e monitorar o momento do
nascimento. Trabalhando de forma voluntária, sem apoio das autoridades locais, ela
ainda mobilizou pessoas para amparar crianças de rua que gravitam em torno do projeto.
O único bar da praia cede suas mesas para aulas de reforço escolar improvisadas para
crianças cujos pais estão ausentes ou lutando pela própria sobrevivência.
Uma atitude de respeito à vida acaba se somando a outras iniciativas, formando
um movimento solidário, como a famosa história do vestido azul:
Num bairro pobre de uma cidade distante, morava uma garotinha muito bonita.
Ela frequentava a escola local. Sua mãe não tinha muito cuidado, e a criança
quase sempre se apresentava suja. Suas roupas eram muito velhas e maltratadas.
87
88
Silent Spring [A primavera silenciosa].
Leonardo BOFF, A força da ternura, p. 47.
105
O professor ficou penalizado com a situação da menina. “Como é que uma
menina tão bonita pode vir para a escola tão mal-arrumada?”.
Separou algum dinheiro do salário e, embora com dificuldade, resolveu lhe
comprar um vestido novo. Ela ficou linda no vestido azul. Quando a mãe viu a
filha naquele lindo vestido azul, sentiu que era lamentável que sua filha,
vestindo aquele traje novo, fosse tão suja à escola. Por isso, passou a lhe dar
banho todos os dias, pentear-lhe os cabelos, cortar-lhe as unhas.
Quando acabou a semana, o pai disse: “mulher, você não acha uma
vergonha que nossa filha, sendo tão bonita e bem arrumada, more em um lugar
como este, caindo aos pedaços? Que tal você ajeitar a casa? Nas horas vagas, eu
vou dar uma pintura nas paredes, consertar a cerca e plantar um jardim”.
Logo mais, a casa se destacava na pequena vila pela beleza das flores que
enchiam o jardim, e o cuidado em todos os detalhes. Os vizinhos ficaram
envergonhados por morar em barracos feios e resolveram também arrumar a
casa, plantar flores, usar pintura e criatividade.
Em pouco tempo, o bairro todo estava transformado. Um homem, que
acompanhava os esforços e as lutas daquela gente, pensou que eles bem
mereciam um auxílio das autoridades. Foi ao prefeito expor suas ideias e saiu
de lá com autorização de formar uma comissão para estudar os melhoramentos
que seriam necessários ao bairro.
A rua de barro e lama foi substituída por asfalto e calçadas de pedra. Os
esgotos a céu aberto foram canalizados e o bairro ganhou ares de cidadania. E
tudo começou com um vestido azul.
Não era intenção daquele professor consertar toda a rua, nem criar um
organismo que socorresse o bairro. Ele contribuiu com o que estava a seu alcance. Deu
o primeiro passo, que estimulou outros a lutarem por melhorias. Será que cada um de
nós está fazendo a sua parte onde vive? Por acaso somos daqueles que apenas
apontamos os buracos da rua, as crianças à solta sem escola e a violência do trânsito?
Lembremos que é difícil mudar o status quo; é difícil limpar toda a rua, mas é fácil
varrer nossa calçada.
É difícil reconstruir um planeta, mas é possível dar um vestido azul.
Empreendedorismo
Um aspecto da cidadania diz respeito à capacidade de gerar empregos sem renunciar aos
valores do evangelho. Estamos acostumados a esperar do Estado a solução para os
problemas do país. A realidade mostra que os progressos se devem, antes, a milhares de
voluntários movidos por compaixão, que se comprometeram e contribuíram para abrir
caminho, passo a passo. No livro Passeurs d’espoirs, Marie-Hélène De Cherisey conta
sua viagem ao redor do mundo para encontrar alguns desses empreendedores sociais
selecionados através da ONG Ashoka, que apoia mais de 1700 projetos em mais de
cinquenta países.
No Rio, Rodrigo Baggio89 criou o CDI, Comitê para a Democratização da
Informática, que visa à inclusão social através de quase mil ECIs, Escolas de
Informática e Cidadania, autossustentáveis e autogerenciadas, em parceria com
organizações que tenham credibilidade na comunidade. Em Porto Alegre, Fabio Rosa
barateou o fornecimento de energia elétrica para frear o êxodo rural, transformando o
trifásico em monofásico e desenvolvendo um sistema de leasing e pós-venda eficiente
para instalar energia solar nos lugares mais remotos. Em Teodoro Sampaio, Suzana
Pádua fundou o IPE, Instituto para o Desenvolvimento da Ecologia, visando
89
Entrevista na revista Enfoque Gospel, edição de abr./2005.
106
desenvolver projetos agrícolas integrados com a preservação da floresta.
“A Economia de Comunhão (EdC), que nasceu durante a Segunda Guerra
Mundial, no Movimento dos Focolares, ligado à Igreja Católica, é um exemplo de como
é possível incluir valores como felicidade, realização, participação, confiança e
desenvolvimento sustentável na maneira de fazer negócios. Com base no humanismo
cristão, a EdC surge como novo paradigma, que rejeita o individualismo e propõe novos
parâmetros para as relações econômicas, tendo como fundamento teórico a comunhão
da Trindade. Hoje, o Projeto de Economia de Comunhão na Liberdade conta com 790
empresas no mundo todo. Desse total, 125 se encontram no Brasil. A EdC não está
baseada na cultura do ter e do acúmulo de bens, mas na cultura da partilha”, explicou o
empresário Luís Colela, durante o evento da Economia Solidária à Economia da
Comunhão, realizado no final de agosto de 2007, pelo Núcleo de Estudos do Futuro
(NEF), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Isso não significa
que a pessoa não possa adquirir propriedades etc. O que queremos dizer é que o
indivíduo deve prestar atenção a outros valores que não sejam os da cultura
consumista”, diz. “Estamos falando de pequenas ações que mudam paradigmas
consagrados”, continua.
A EdC surgiu no Brasil quando a italiana Chiara Lubich, fundadora do
Movimento dos Focolares, visitou o país em 1991. Ao entrar em contato com o enorme
contraste social brasileiro, Chiara propôs a criação de empresas que teriam como
objetivo acabar com a miséria no mundo. Segundo Chiara, essas empresas deveriam ser
dirigidas por pessoas competentes e honestas, e os lucros destinados a três finalidades:
desenvolvimento da empresa, atendimento a necessidades dos pobres e formação de
jovens. Não se trata de filantropia, pois a intenção da EdC é promover protagonismo e
autossustentabilidade.
Desde então, algumas empresas no Brasil passaram a atuar de acordo com os
princípios da EdC. Outras foram abertas especialmente para atender à demanda de
Chiara. É o caso do Polo Empresarial Spartaco, complexo formado por seis empresas,
que foi criado em 1994, em Cotia (SP). Projetado para servir de exemplo ao mundo de
como a EdC pode funcionar, o Polo Spartaco foi construído numa região com baixo
índice de desenvolvimento humano e econômico. Ali trabalham cerca de 130 pessoas
recrutadas na região. “O polo funciona numa área muito carente, na qual os indivíduos
têm poucas chances de arrumar um bom emprego”, explica Odilon Augusto Souza
Júnior, presidente da Rotogine, empresa ligada ao polo que atua com rotomoldagem de
plástico e sistemas de reaproveitamento da água.
Ercília deixou um emprego em banco para criar uma empresa fundamentada na
economia de comunhão. Os lucros são redistribuídos não só entre os que trabalham na
empresa, ou que nela investiram seus talentos e suas economias, mas também entre
outras pessoas necessitadas. Ensinou o filho a repartir e a ser generoso. “Percebi que os
privilégios que perdi permitiram a outros viverem!”, comentou.
Uma pesquisa realizada pelos professores Mario Couto Soares Pinto e Sergio
Proença Leitão, ambos do Departamento de Graduação em Administração de Empresas
da PUC-RJ, demonstra que as empresas que fazem parte da EdC — Economia de
Comunhão — possuem um forte sentido ético e são altamente competitivas e
socialmente responsáveis. Esse trabalho resultou no livro Economia de comunhão:
Empresas para um capitalismo transformado, que mostra como empresas que seguem a
ideologia da EdC estão abrindo caminho para um capitalismo transformado.
Em Cuzco, Josefina Condorice partiu da própria experiência para dar assistência
a empregadas informais, exploradas e maltratadas. Em Lima, Albina Ruiz montou uma
microempresa para recolher e reciclar o lixo. O sucesso de todos esses projetos se deve
107
ao desejo de vencer em prol dos outros. Essas pessoas conseguiram descobrir soluções
criativas e economicamente viáveis para situações que pareciam irreversíveis. Em
Pittsburgh, por exemplo, Jeff percebeu que uma grande faixa da população não era
atendida pelos serviços públicos de proteção social. Partindo da premissa simples de
que, quanto mais cedo se procura resolver os múltiplos problemas de uma pessoa, mais
barato fica, ele imaginou uma forma de integrar a rede social visando uma maior
eficiência e prevenção.
O objetivo do empreendedor social é sempre dar aos excluídos meios práticos
para resolverem seus principais problemas e se autossustentarem. Para isso, ele começa
identificando-se com o sofrimento do outro, dispõe-se a escutá-lo e a entender sua
situação. Assim, no sul da Tailândia, Pisit fundou Yadfon, “Pequena gota d‟água”, um
projeto de desenvolvimento com pescadores, que constitui modelo para o mundo.
Pisit partiu da premissa de que as pessoas lhe mostrariam suas dificuldades e
apontariam soluções. Seu papel era construir vínculos de confiança, guiá-las por meio
de perguntas, uni-las em torno de lideranças locais e formar projetos pilotos com uma
estratégia de longo prazo. Grandes barcos pesqueiros e fazendas de camarões estavam
destruindo a flora submarina, e os pescadores passaram a pescar com dinamite.
Isolados, eles destruiriam sua fonte de alimento. Os pescadores não entendiam a
urgência de proteger o meio ambiente. Era preciso primeiro levar em conta suas
preocupações imediatas: o acesso à água potável. A estratégia foi construir poços em
mutirão, resgatando assim a solidariedade nos vilarejos. Essa estratégia de baixo para
cima é fundamental. Hoje, a associação já reúne mais de 40 vilarejos e ensina o uso
ecológico dos recursos naturais em mais de 200 escolas. Eles enfrentaram os barcos e
conseguiram o apoio do governador.
Seguindo o ensinamento de Cristo, o empreendedor social é luz no mundo
porque vive o evangelho e constrói relações fundamentadas nos valores do reino. Seu
entusiasmo é contagiante e consegue mobilizar uma rede de solidariedade. Ele precisa
equilibrar devoção e doação para estar em sintonia com a vontade de Deus e se
reabastecer. Mas, quando os cristãos são omissos, Deus levanta outras pessoas para
serem sinal de esperança. A economista, ativista e futurista Hazel Henderson, que
escreve para mais de 250 jornais no mundo, é uma das principais porta-vozes dos
movimentos sociais que criticam o sistema econômico atual. Autora de livros
como Além da globalização e Cidadania planetária, Hazel fala de uma economia do
amor e defende a inclusão de critérios de qualidade de vida para calcular a riqueza das
nações.
Não se pode ignorar a grande contribuição das mulheres nesse movimento, que
prioriza os relacionamentos e a qualidade de vida. São aspectos do princípio feminino
que precisam ser resgatados por homens e mulheres para a construção de uma sociedade
mais justa e solidária.
108
Uma palavra final
O princípio feminino faz desabrochar a mulher e propicia uma nova masculinidade.
Quando eu finalizava este livro, encontrei em Paris uma coletânea90 que tratava
exatamente deste tema e começava com a seguinte história:
Dois monges caminham no campo em direção ao monastério. Então, chegam a
um rio, cujo volume de água estava muito acima do normal devido às recentes
chuvas. Com isso, a passagem a pé, habitualmente acessível, ficara submersa.
Na beira do rio, uma jovem lhes pede: “Tenho medo de atravessar, vocês
podem me ajudar?”. Um dos monges entrega sua trouxa ao outro e põe a
mulher nos ombros.
Avançando prudentemente, eles conseguem atravessar. A mulher lhes
agradece com um largo sorriso e toma a direção do vilarejo, enquanto os dois
monges seguem seu caminho.
Um deles assobia, olha a natureza que desperta na primavera, admira as
sombras e as luzes, ouve o canto dos pássaros; o outro parece bravo e perdido
em seus pensamentos.
— Ah! — alegra-se o primeiro. — Já estamos chegando! Mas que cara é
essa? Você não está bem?
E o outro estoura:
— Você fez o voto de não tocar mais em mulher e ousou carregar essa
jovem!
Olhando-o calmamente, o monge responde:
— Ah, então é isso. Mas, veja, eu só carreguei a mulher para ajudá-la a
atravessar o rio, enquanto você a carregou até aqui!
Essa história ilustra bem a diferença entre uma relação saudável e fértil, fruto de
um coração amoroso, e uma relação mutiladora, enfermiça, repressora, rígida e legalista
Em vez de ser reprimido ou idealizado, o principio feminino precisa ser
resgatado tanto pelos homens quanto pelas mulheres para nos tornar mais inteiros e
ternos. Ele poderá então cumprir sua missão de abrir a via da interioridade e da
intimidade, tornando-nos receptivos ao amor de Deus, que nos fecunda e nos transforma
à sua imagem.
Fomos criados para participar da comunhão da Trindade. Nesse amor inclusivo,
somos convidados a reconciliar o feminino e o masculino em nós, para construir uma
relação reconciliadora com o outro, conduzindo-nos a uma unidade além da dicotomia:
sermos um em Cristo.
Assim, poderemos construir, juntos, um mundo mais justo e solidário, que
sinalize o Reino de Deus em nós e entre nós.
90
Marc de SMEDT em Le couple intérieur, p. 9.
109
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