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FUNDAÇÃO EDUCACIONAL DE DIVINÓPOLIS – FUNEDI
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS – UEMG
Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais
CAMINHOS PARA O NOVO: METAMORFOSES DE IDENTIDADES PÓSCOLONIAIS EM OS VERSOS SATÂNICOS DE SALMAN RUSHDIE
GUSTAVO LEAL TEIXEIRA
Divinópolis - MG
2009
GUSTAVO LEAL TEIXEIRA
CAMINHOS PARA O NOVO: METAMORFOSES DE IDENTIDADES PÓSCOLONIAIS EM OS VERSOS SATÂNICOS DE SALMAN RUSHDIE
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado da Universidade
Estadual de Minas Gerais – UEMG - Fundação Educacional de
Divinópolis – FUNEDI – como requisito parcial à obtenção do
diploma de Mestre em Educação Cultura e Organizações Sociais.
Área de concentração: Estudos Contemporâneos
Linha de pesquisa: Cultura e linguagem
Orientadora: Profa. Dra. Ana Mônica Henriques Lopes
Divinópolis - MG
2009
T266c
Teixeira, Gustavo Leal
Caminhos para o novo: metamorfoses de identidades pós-coloniais em
os versos satânicos de Salman Rushdie [manuscrito] / Gustavo Leal
Teixeira. - 2009.
92 f., enc.
Orientador : Ana Mônica Henriques Lopes
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado de Minas Gerais,
Fundação Educacional de Divinópolis.
Bibliografia : f. 89-92
1. Colonizado. 2. Colonizador. 3. Metamorfose. 4. Identidade.
5. Mimica. 6. Silva, Telma B. da, 2005- .- Tese. I. Lopes, Ana Mônica
Henriques. II. Universidade do Estado de Minas Gerais. Fundação
Educacional de Divinópolis. III. Título.
CDD: 809
AUTORIZAÇÃO PARA A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DA
DISSERTAÇÃO
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta dissertação por processos de fotocopiadores e eletrônicos. Igualmente, autorizo
sua exposição integral nas bibliotecas e no banco virtual de dissertações da FUNEDI/UEMG.
Gustavo Leal Teixeira
Divinópolis, 02 de Abril de 2009
No caminho, havia obstáculos a superar, tremendas montanhas, abismos
assustadores, alegorias e desafios. Em toda busca o viajante se confronta
com apavorantes guardiões de território, um ogro aqui, um dragão ali. Até
ali, não além, o guardião domina. Mas o viajante tem de recusar a
definição de fronteira feita pelo outro, tem de transgredir os limites que o
medo determina. Ele cruza esta linha. A derrota do ogro é uma abertura do
eu, uma expansão para o viajante naquilo que é possível ser.
Sir. Salman Rushdie
A Bertha, minha mulher, dedico este trabalho.
AGRADECIMENTOS
A meu pai pela sabedoria, honestidade e integridade;
À minha mãe pela sensibilidade;
Ao irmão Rodrigo pela poesia;
À irmã Maria Clara pela leveza;
Aos primos, tios e avós pela segurança e compreensão;
À família Andrade Coelho pelo carinho;
Ao amigo José Lucio Neto pela filosofia;
Aos amigos Edson, Wander, Fátima, Everaldo, Sônia, Lívia, Mercedes e Eugênio que em
muito facilitaram esta caminhada;
A todos os colegas de mestrado pelo companheirismo;
Ao professor Dr. Mateus Pereira pela amizade e exemplo profissional;
À minha orientadora, Dra. Ana Mônica Henriques Lopes, pela confiança com que aceitou me
orientar;
Ao Professor Alexandre Simões pela dedicação e seriedade;
Ao professor Dr. José Geraldo Pedrosa pela realidade;
À professora Dra. Helena Alvim pela educação das sensibilidades;
À professora Telma Borges pela valiosa bibliografia;
À professora Eliana Lourenço pelo meu despertar;
Aos cruzadores de fronteiras da UNIMONTES: Kátia Alencar, Patrícia Tondinelli, João Bosco
de Castro, Danilo, Admilson Prates, Gildete Freitas, Waneusa Eulálio e Simone Aguiar pela
amizade, capacidade intelectual e força;
Aos motoristas da FADENOR: Jaime, Ivan (in memoriam), Geraldinho, Odair, Tiãozinho e
Rubens pelo companheirismo;
À existência;
A meu Deus, sempre do meu lado, me carregando quando não posso mais andar.
RESUMO
Este estudo propõe uma análise sobre a possibilidade de emergência e expressão literária de
outras identidades no tempo pós-colonial não presas à dialética colonizado - colonizador
através da trajetória Saladin Chamchawala no romance Os versos satânicos de Salman
Rushdie. Para tanto, se partiu do pensamento de Fanon, Memmi e Bhabha de que durante o
processo de colonização o colonizador criou uma estrutura na qual o colonizado acreditava-se
inferior ao primeiro e assim recorreria à mímica. Chamchawala que repetia no tempo póscolonial à metonímia ou mímica colonial, após uma metamorfose foi capaz de romper com tal
estrutura por se deparar com a realidade e assim ser capaz de exprimir uma identidade mais
plena. Logo são discutidos os processos sociais e identitários consequentes da colonização e a
possibilidade de metamorfose de tais identidades.
Palavras-chave: colonizado, colonizador, identidade, metamorfose, mímica
ABSTRACT
This study proposes an analysis of the possibility for the emergency and literary expression of
other identities in post-colonial times, not tied to colonized – colonizer dialectics, through the
trajectory Saladin Chamchawala in Salman Rushdie's novel, The satanic verses. The study was
mainly based on the thinking of Fanon, Memmi and Bhabha that during the colonization
process the colonizer created a structure in which the colonized believed himself inferior to the
former and so should resort mimicry. Chamchawala, who repeated in the post-colonial time the
colonial metonymy or mimicry, after a metamorphosis, was capable to break with such a
structure for encountering reality, and thus able to express a fuller identity. Therefore, the
consequent identity and social processes from colonization and the possibility of the
metamorphosis of such identities are here discussed.
Key words: colonized, colonizer, identity, metamorphosis, mimicry
SUMÁRIO
FRONTEIRAS...........................................................................................................................12
Capítulo 1
Tentativas de reconciliação entre o velho e o novo
1.1 Rastros..................................................................................................................................23
1.2 Migrações.............................................................................................................................30
1.3 Os versos satânicos e a expressão pós-colonial...................................................................36
Capítulo 2
Retratos
2.1 O Orientalismo e as criações................................................................................................44
2.2 Salahudin Chamchawala: identidade fraturada....................................................................48
2.3 Psicossomatização: a doença em Saladin Chamcha.............................................................58
Capítulo 3
Celebração do impuro
3.1 Metamorfoses: o renascimento de Saladin Chamcha...........................................................66
3.2 Buscas de superação.............................................................................................................73
3.3 Caminho para o novo............................................................................................................79
Bibliografia.................................................................................................................................91
12
FRONTEIRAS
A presente dissertação é uma tentativa de verificar o caminho para o novo ou como
podem ser contestadas algumas das barreiras erguidas entre colonizado e colonizador ainda no
tempo colonial e que ecoam contemporaneamente. Este estudo se deu através da trajetória de
Saladin Chamchawala e dos objetivos literários de Salman Rushdie em Os versos satânicos.
Como foi possível para Saladin superar o sistema que tornava quase impraticável a
possibilidade de impor a própria identidade? Como expressar a tentativa de ruptura entre
colonizado e colonizador, velho e o novo, através da literatura? Na trajetória de Saladin são
buscadas algumas respostas para estas perguntas. Como indiano anglófilo assimilado pelo
sistema de dominação colonial inglês, Saladin acreditava-se inferior e logo recorria à mímica,
reforçando o objetivo colonizador da criação de identidades parciais para o domínio do
colonizado. Ele nasce Salahuddin Chamchawala na Índia, na Inglaterra se torna Saladin
Chamcha, um nome com menor teor étnico, e ao superar a estrutura e os mitos que o definiam
como colonizado e inferior Saladin Chamchawala, um sujeito que percebendo o entrelaçar de
culturas, transforma sua noção “do que significa viver, do que significa ser, em outros espaços
diferentes, tanto humanos como históricos” (BHABHA, 2007, p.352).
Estudos sobre o orientalismo e colonialismo foram fundamentais para a condução do
trabalho no que diz respeito à relação colonizado-colonizador. Edward Said (1999) em
Orientalismo discute o Oriente como invenção do Ocidente, Fanon (1984) em Pele negra,
máscaras brancas e Albert Memmi (1977) em Retrato do colonizado precedido pelo retrato do
colonizador discutem o processo de colonização, principalmente na criação de estereótipos
pelo colonizador sobre o colonizado, o que fazia com que os últimos se acreditassem inferiores
aos primeiros.
Em Os versos satânicos, Rushdie em 1988 discute como os limites das palavras
colonizado e colonizador, divino e satânico podem ser borrados, cruzando fronteiras que
muitas vezes são tomadas como insuperáveis. Tal tentativa de diluição de barreiras teve um
alto custo para Salman Rushdie, que em 14 de fevereiro 1989, aproximadamente cinco meses
após o lançamento do livro em 26 de setembro de 1988, teve o fatwa, ou sentença de morte
decretada pelo Ayatollah Khomeini:
13
Eu informo a todos os muçulmanos zelosos do mundo que o autor do livro
intitulado Os Versos Satânicos - que fora compilado, impresso e publicado
em oposição ao Islã, o Profeta, e o Corão — todos envolvidos em sua
publicação e que estavam atentos a seu conteúdo, estão condenados à morte.
Eu convoco todos os muçulmanos zelosos a executá-los rapidamente, onde
quer que eles possam ser achados, de forma que ninguém mais ousará
insultar as santidades muçulmanas. Vontade de Deus; quem é morto neste
caminho é um mártir. (HAMILTON, 113 in BRIANS, 1994, p.6 Tradução
nossa).1
Segundo Brians (2004), os mulçumanos conservadores deploram o livro, enquanto os
liberais deploram o fatwa, fato que produziu e ainda lança discussões acaloradas nos meios
religioso e acadêmico.
Entretanto, o objetivo principal desta dissertação é discutir a possível superação de
alguns dos limites criados pelo sistema colonial entre colonizado e colonizador, através de
Saladin Chamchawala, deixando o debate religioso que se dá a partir do outro personagem
principal, Gibreel Farishta, para futuras discussões. Rushdie inclusive não acredita ser o
aspecto religioso a principal discussão de Os versos satânicos, mas
no centro do romance está um grupo de personagens, na maioria das quais
são mulçumanos britânicos (e não pessoas particularmente religiosas de
passado mulçumano), lutando com a espécie de grandes problemas que se
ergueram em torno do livro, problemas esses de hibridação e guettoização, de
reconciliação entre o velho e o novo. Aqueles que mais ferozmente se opõem
ao romance são de opinião que a mistura com uma cultura diferente
inevitavelmente enfraqueceria e arruinaria sua própria cultura (RUSHDIE,
1994, p.452).
As inter-relações entre divino e satânico neste trabalho são discutidas através da
“versão demoníaca do mundo, do “vosso” mundo, a versão escrita da experiência daqueles que
foram demonizados por virtude da sua diferença” (RUSHDIE, 1994, p.461). Os colonizados
foram demonizados pelo colonizador de maneira que estes negassem sua identidade
acreditando-se muitas vezes serem demônios. Os versos satânicos é o último romance de uma
trilogia que se iniciou com Os filhos da meia noite, seguido por Vergonha. A trilogia tem um
movimento em direção ao Ocidente, terminando com um final feliz - Chamcha e Zeeny em
Bombay no terceiro livro (SHARMA, 2001).
1
Original na língua inglesa
14
Respondendo às críticas principalmente do mundo mulçumano e à proliferação de
inverdades sobre Os versos satânicos, que culminaram com o fatwa, Rushdie em Pátrias
imaginárias decide contar a história de seu próprio romance para tentar substituir aquilo que
dizem pelo que acredita ser efetivamente. A história de Os versos satânicos contada pelo autor
serve neste trabalho também para que aqueles que não leram o romance possam compreendê-lo
sinteticamente:
Os Versículos Satânicos2 é a história de dois eus dolorosamente divididos.
No caso de um, Saladin Chamcha, a divisão é secular e societal: ele está
dividido, em termos simples, entre Bombaim e Londres, entre Oriente e
Ocidente. Para outro, Gibreel Farishta, a divisão é espiritual, uma fractura na
alma. Ele perdeu a fé e encontra-se dividido entre sua imensa necessidade de
acreditar e sua nova incapacidade para tal. O romance é (sobre) a busca de
plenitude por parte de ambos.
Por quê “Gibreel Farishta” (Anjo Gibreel)? Não para “insultar e abusar” o
“verdadeiro” Arcanjo Gibreel. Gibreel é uma estrela cinematográfica, e as
estrelas cinematográficas pairam sobre nós na escuridão, maiores que a vida,
a meio caminho do divino. Dar a Gibreel um nome de anjo foi conferir-lhe
um equivalente secular da semidivindade angélica. Quando ele perde a fé,
porém, este nome se transforma na fonte de todos os seus tormentos.
Chamcha sobrevive. Torna-se pleno ao regressar às suas raízes e, mais
importante, ao encarar e aprender a lidar com as grandes verdades do amor e
morte. Gibreel não sobrevive. Não pode voltar ao amor de Deus nem
consegue substituí-lo pelo amor terreno. No final, suicida-se, incapaz de
suportar por mais tempo seu castigo (RUSHDIE, 1994, p.456,457).
Antes de propriamente discutir o processo no qual Chamchawala foi capaz de
desestruturar alguns dos pilares nos quais os papéis de colonizado e colonizador mantinham-se
de certa maneira fixos e ser capaz de amar a si mesmo e consequentemente o outro, é
importante discutir brevemente a expansão colonial britânica e as estruturas de dominação
criadas. O tipo de colonialismo aqui estudado é, em alguns aspectos, distinto do colonialismo
contemporâneo que possui como bases o controle da economia, dos meios de comunicação e
de imprensa. Aconteceu de maneira muito mais violenta, já que o colonizador possuía o
controle das estruturas políticas, recursos naturais e humanos da colônia; “uma verdadeira
engrenagem inumana, impiedosa e implacável” (CORBISIER in MEMMI, p.5).
Tal forma de colonização, principalmente a britânica discutida neste trabalho, teve seu
pico na segunda metade do século XIX, mas suas fundações foram construídas décadas antes
2
Título da edição portuguesa de Os versos satânicos traduzida do original The satanic verses.
15
com a anexação do território da África do Sul e, principalmente, com a expansão do domínio
britânico na Índia. Em 1820, aproximadamente 150 milhões de pessoas viviam sob o controle
do império britânico, e com a divisão dos territórios africanos, entre 1870 e 1900, as posses
britânicas cresceram em 4,5 milhões de quilômetros e 66 milhões de habitantes. O império
britânico se destacava por alguns fatores básicos: magnitude geográfica, organização e
institucionalização das massas colonizadas, e o darwinismo social que se convertia em racismo
para o controle do colonizador sobre o colonizado. Em 1870, a Times Magazine disse ser este
o império mais benéfico nos anais da humanidade; a propaganda nacionalista britânica era feita
de forma a exaltar tais feitos a ponto de o Secretário colonial Joseph Chamberlain dizer que a
raça britânica era a melhor governante de outras raças que o mundo jamais vira. O colonizador
era quem melhor poderia controlar o colonizado, o primeiro era a síntese do trabalhador
expansionista e possuía grandes idéias de “salvação” da colônia, esta repleta de nativos que
necessitavam de seu controle para não viverem na preguiça e improdutividade. Havia um
contraste entre a prosperidade e civilização do colonizador e o atraso do colonizado sendo a
colonização uma força benigna para estas colônias e nativos (BOEHMER, 1995).
A totalidade do domínio de um país sobre outro nesta forma de colonialismo o afirma
como global, pois o controle era sobre a própria organicidade de um país que possui
determinada estrutura de recursos naturais, uma população com crenças religiosas, “tradições,
usos e costumes peculiares, instituições políticas e sociais, formas próprias de trabalho etc”
(CORBISIER in MEMMI, 1977, p.5). O domínio militar necessário para o completo controle
do colonizador sobre o colonizado se dava através da força armamentística, pois o número de
colonizadores era substancialmente menor que o de colonizados, o que “sustenta a máquina
exploração política e administrativa que coloca os recursos naturais e mão- de- obra colonial a
serviço da nação colonizadora” (CORBISIER in MEMMI, 1977, p.6). Desta forma, as duas
polaridades que nasceram com o colonialismo, o colonizado e o colonizador, não possuíam
nada em comum na arquitetura, templos religiosos, mobiliário, alimentação e costumes. Estas
culturas distintas no interior do sistema colonial deveriam coabitar o mesmo ambiente com
interesses antagônicos. O colonizado queria o desenvolvimento da nação e tornar-se livre,
enquanto o colonizador queria explorá-la. Para uma conciliação de interesses era necessário ao
colonizador justificar sua presença, ele deveria fabricar uma ideologia racional para dominar o
povo conquistado. O conteúdo de tal ideologia seria criar uma suposta superioridade do povo
16
colonizador sobre o colonizado para desta forma confirmar os papéis que cada um deles
ocupava na colônia, o que lhes dava certa estabilidade, de maneira que “toda a estrutura da
colônia se define em função da empresa colonizadora” (CORBISIER in MEMMI, 1977, p.6).
O colonizado afetado por toda esta nova estrutura que possuía o colonizador como
modelo tentava a ela se adequar já convencido da superioridade do colonizador pelas novas
instituições criadas em seu país. Estas instituições estas em nada lembravam o “atraso” précolonial. Eram construídas escolas nos moldes britânicos, linhas de trem, instalados cabos de
telégrafo e diversos centros de excelência outrora impensáveis na colônia. A colonização
poderia ser justificada, pois era considerada benéfica tanto pelo colonizador quanto pelo
colonizado pela manifesta superioridade do colonizador até mesmo no que diz respeito à
administração da colônia. O Raj Bhavan, por exemplo, sede do governo britânico na Índia era
repleto de intelectuais de "oxbridge" responsáveis pela administração local, prova inconteste de
capacidade superior do conhecimento estrangeiro sobre o local (BOEHMER, 1995). O
colonizado, por outro lado, procurava imitar o colonizador, deixar-se por ele assimilar e
adentrar num novo mundo de alta cultura e desenvolvimento. Estas tentativas de assimilação,
porém, mostraram-se infrutíferas. Pois é no momento em que se busca a assimilação que o
colonizado se torna uma caricatura “eu queria ser branco, - seria uma piada” (FANON, 1984,
p.109). A identidade do colonizado perdia-se na do colonizador, se alienava de forma que ele
mesmo queria tornar-se o colonizador, vestir-se como ele, possuir uma mulher branca e agir à
maneira sofisticada dos colonizadores. O principal fator que tornava o colonizado
impossibilitado da assimilação completa pelo colonizador era o racismo, de forma que “para
justificar, para legitimar o domínio e a espoliação, o colonizador precisava estabelecer que o
colonizado fosse por natureza, ou por essência, incapaz, preguiçoso, indolente, ingrato, desleal,
desonesto, em suma inferior” (CORBISIER in MEMMI, 1977, p.9). Tal inferioridade era presa
à própria pele do colonizado. Ele era estereotipado por sua cor, o que tornava a superioridade
do colonizador metafísica, atemporal, imutável e definitiva: “O objetivo do discurso colonial é
apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial
de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução”
(BHABHA, 2007, p.111).
O colonizado, que primeiramente aceitou esta estrutura de dominação, através da
própria cultura do colonizador imprimida na colônia se revoltaria. O colonizado percebia
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através da imprensa, dos livros e do cristianismo trazidos pelo colonizador à colônia
contradições internas e externas, já que nela não existiam a liberdade, igualdade e fraternidade
que eram as bases do discurso iluminista europeu.
O colonizado passava a negar a negação, a negação de sua própria humanidade
valorizando assim suas tradições, seus valores, tudo aquilo que para ele era motivo de
humilhação. Como todas as condutas buscadas pelo colonizado de assimilação tornaram-se
infrutíferas, percebeu então que a única saída seria a ruptura pela luta.
Após a segunda guerra mundial, com os países colonizadores enfraquecidos e
movimentos de resistência nos países colonizados, a colonização gradualmente perdeu força. A
independência da Índia e Paquistão em 1947 iniciou o processo de descolonização na África,
Ásia e América dos países sob o jugo dos impérios britânico, francês e holandês. Estes países
buscavam sua voz que havia sido calada pelo colonialismo. Frantz Fanon em 1951 apresentou
como tese de conclusão do curso de medicina (rejeitada pela escola) um estudo clínico no qual
o autor em sua introdução questiona: “Que quer o homem negro?” (FANON, 1984, p.10). Esta
pergunta reverberou através das expressões culturais pós-coloniais se apresentando
grandemente através da literatura pós-colonial em seu período inicial, “O colonizado deveria
insultar e vomitar os valores do homem branco” (BOEHMER, 1995, p.183). Muitos escritores
do Caribe e da África utilizaram a literatura como meio para a libertação completa da estrutura
colonial em que o colonizado era uma simples caricatura do colonizador, imprimindo uma
literatura de cunho político. Assim como Benedict Anderson (2008) acredita que a nação é uma
formação simbólica, estes autores esperavam que a literatura, com seu poder de compor
realidades alternativas, poderia negar o colonizador e restituir uma identidade ao colonizado,
criando assim uma novo imaginário coletivo, ou um novo país. Tal tentativa de ruptura,
contudo, não se mostrou completa, pois não poderiam ser apagadas rapidamente as estruturas
de dominação arraigadas pelos anos de colonialismo.
Para Corbisier, mesmo com o processo de independência iniciado em 1947 dos países
colonizados a partir de 1870, estes continuavam a sofrer influência da colonização, pois ao
afirmar-se a si mesmo o colonizado continuava a definir-se em relação ao colonizador. Desta
maneira, mesmo com a ruptura da dominação política os valores do colonizador continuavam
arraigados na colônia:
18
[...] embora estejamos vivendo a fase histórica de liquidação, de atroz agonia
do colonialismo, ao menos em sua forma tradicional tal como se configurou
após a guerra de 1870, e o partage du monde entre as grandes potências
européias. Esta nação “apesar de conquistada a independência política,
retiradas as tropas estrangeiras de ocupação, nacionalizado o aparelho
político e administrativo, os serviços públicos, os bancos, as empresas
agrícolas e as poucas indústrias eventualmente existentes, terá a antiga
colônia conquistado realmente a independência e expulso realmente a
potência dominante? Não, porque na luta contra o colonizador, ao recuperarse e ao afirmar-se a si mesmo, o colonizado, como escreve Memmi,
“continua a delinear-se em relação a ele. Em plena revolta, o colonizado
continua a pensar, sentir e viver contra o colonizador e a colonização e,
portanto em relação a ambos. A descolonização é um processo lento, difícil e
doloroso, comparável á convalescença de uma longa e grave enfermidade.
(Corbisier in Memmi, 1977, p.2).
Rushdie (1994) relata possuir como objetivo uma linguagem literária e formas literárias
que possam expressar de maneira plena a realidade dos povos anteriormente colonizados. Este
tipo de linguagem plena buscada por Rushdie em Os versos satânicos possui como
característica importante exatamente demonstrar que mesmo com a impossibilidade de uma
ruptura brusca com o passado de colonização, algo pode ser ganho pelo colonizado, celebrando
esta mistura cultural.
Saladin Chamchawala protagonista de Os versos satânicos, um imigrante indiano na
Londres contemporânea, continuava a pensar o colonizador e colonizado como antíteses, sendo
a positividade encontrada apenas através do primeiro (o que reforça seu traço de colonizado)
pelos estereótipos construídos. Tal fato avigora a produtividade do sistema de dominação
colonial mesmo após a independência, como citado anteriormente por Corbisier, demonstrando
a impossibilidade de ruptura brusca com o passado colonial.
Por não contestar o sistema de dominação construído pelo inglês para o colonizado,
Saladin renuncia suas origens, querendo tornar-se um inglês, imitando-o, num processo que
Bhabha chama de mímica. Este processo
[...] não apenas rompe o discurso, mas se transforma em uma certeza que fixa
o sujeito colonial como uma presença parcial. Por parcial entendo tanto
incompleto como virtual. É como se a própria emergência do colonial
dependesse para sua representação de alguma limitação ou proibição
estratégica dentro do próprio discurso autorizado. O sucesso da apropriação
colonial depende de uma proliferação de objetos inapropriados que garantem
seu fracasso estratégico, de tal modo que a mímica passa a ser
19
simultaneamente semelhança e ameaça (BHABHA, 2007, p.130).
Saladin, através de uma metamorfose que será discutida mais profundamente
posteriormente, pouco a pouco consegue perceber que aquela Inglaterra que imaginara não se
passava de uma mentira, uma propaganda para o controle colonial e ele de um mímico. Através
de tal consciência Saladin é capaz de superar o sistema colonial e perceber a cultura como uma
criação humana e parcial que não capta a plenitude de seu ser. Segundo Bhabha (1990) 3, as
fabricações de símbolos, ícones, metáforas e mitos na qual vivemos a cultura são sempre
formas de representação, logo constituem uma forma de alienação do sujeito. Assim não existe
nenhuma cultura plena, não apenas por que outras culturas desafiam sua autoridade, mas por
que a própria interpelação na formação de símbolos desafia uma autoridade orgânica e
holística. Desta forma para Bhabha, pela ausência de plenitude cultural, culturas distintas
podem se articular formando algo novo e híbrido. A acepção de Bhabha sobre tal possibilidade
coincide com os objetivos de Rushdie em Os versos satânicos:
Os Versículos Satânicos celebra a hibridez, a impureza, a mistura, a
transformação que provém de novas e inesperadas combinações de seres
humanos, culturas, idéias, políticas, filmes, canções. Exulta com o
cruzamento de raças e teme o absolutismo do Puro. Mélange, miscelania, um
pouco disto, um pouco daquilo é como a novidade entra no mundo.
(RUSHDIE, 1994, p.452).
Desta maneira, em Os versos satânicos é discutido o encontro cultural e as identidades
que daí nascem, desestruturando assim a maneira na qual são pensados o tempo, a geografia, a
história e as identidades.
Na criação deste percurso três foram as paragens principais que se constituíram nos três
capítulos desta dissertação:
No primeiro capítulo – Tentativas de reconciliação entre o velho e o novo - discute-se a
influência do passado colonial na expressão pós-colonial. Tal fato pode ser exemplificado
através de Hind, personagem de Os versos satânicos: “e não vamos fingir que a cultura
ocidental não tem sua presença; depois de todos estes séculos como é que ela pode não fazer
parte de nossa herança?” (RUSHDIE, 2006, p.236). Pela forma de expressão buscada por
Rushdie, em que presente e passado se entrelaçam, não é mais possível falar plenamente dos
3
BHABHA in RUTHERFORD, 1990.
20
países descolonizados sem mencionar o período colonial. Assim dissolve-se a representação
mitológica de que a identidade dos outrora colonizados deveria ser encontrada somente no
passado pré-colonial, mas também nos lugares onde ambas culturas se encontraram e criaram
algo novo.
Desta maneira, foram discutidos alguns objetivos da literatura pós-colonial como
também a maneira como a colonização deixa suas marcas na colônia. Neste percurso foram
estudados teóricos da literatura pós-colonial como Elleke Boehmer, Homi Bhabha, Edward
Said e o próprio Salman Rushdie. Este primeiro capítulo ainda fala da transplantação destes
sujeitos outrora colonizados para a metrópole ocidental, através das migrações, logo são
discutidos alguns dos encontros e desencontros que daí surgem. Estas relações neste capítulo
são apresentadas principalmente através das metáforas: pureza e impureza, sujeira e limpeza
que se dão pelo olhar do morador tradicional da metrópole ocidental em relação ao imigrante.
É discutida assim a linguagem literária utilizada por Rushdie em Os versos satânicos para
expressar a identidade pós-colonial e como se dão as relações pós-coloniais entre os que foram
colonizados e colonizadores e a busca de reconciliação entre o antes colonizado com o passado
colonial.
No segundo capítulo - Retratos - é traçado um paralelo entre a produtividade do
discurso colonial e as ações de Saladin ao longo de sua narrativa em Os versos satânicos.
Assim é possível perceber a fecundidade deste discurso no período pós-colonial, pois Saladin
repete com perfeição os retratos que o colonizador faz do colonizado como os descritos por
Memmi (1977) e Fanon (1984), além do orientalista de Said (1999).
Saladin consegue somente encontrar coerência no colonizador, que nesse caso é o
inglês, por a Índia ter sido uma colônia britânica, logo busca ser quem não é, ou seja, um
inglês, e para alcançar seus objetivos utiliza-se da mímica. A mímica para Bhabha (2007) é o
signo do inapropriado, logo suas tentativas em tornar-se um inglês, embora num altíssimo nível
de perfeição (casa-se com uma inglesa branca, possui um sotaque britânico, um bom emprego
e é bem relacionado em Londres), ele não deixa de ser indiano, algo que pode ser visto em sua
própria pele. Sua determinação em tornar-se um inglês era tamanha que ele construiu uma
identidade baseada na mímica, esta identidade, que pelo próprio caráter parcial da mímica fez
com que Chamcha possuísse uma identidade parcial. Logo havia uma outra parte de sua
identidade escondida, ele era um indiano apesar das negativas. Em algumas situações toda a
21
sua criação de uma imagem à perfeição relacionada à Englishness era contestada e, como
reflexo desse fato, Saladin se sentia doente. Este fato mostrava uma identidade fraturada pela
ausência de expressão de sua identidade reprimida.
No terceiro e último capítulo deste trabalho - Celebração do impuro – É discutido o
papel da metamorfose de Saladin em homem-bode que se dá após um acidente aéreo. Num
momento de desespero, quando acreditou que jamais seria humano novamente, foi o momento
de efetiva transformação de Saladin. Ao perceber que seus conterrâneos e outros imigrantes
pós-coloniais eram muitas vezes vistos como animais pelos ingleses, Saladin foi capaz de
perceber-se também animal, fato este que o humanizou. Perceber que ele era visto de maneira
animalesca como os outros imigrantes, e que de fato isto era apenas uma “questão de imagem”,
fez com que aceitasse suas origens e compreendesse que errados eram os que nele pensavam
como animal e demônio. Para analisar esta sua transformação como reconhecimento de uma
identidade plena, abriu-se espaço para a discussão do caráter do fenômeno metamorfose,
juntamente com o signo do híbrido, pela parcialidade e totalidade inerentes a ambos.
Para uma empreitada de envergadura tal, qual seja, a de analisar a trajetória de vida de
um personagem literário, acredita-se necessário um estudo de cunho transdisciplinar, pelo
caráter reticular que faz parte da própria narrativa de vida do sujeito humano, com
continuidades e descontinuidades que se entrelaçam num contínuo ressignificar. Assim, tem-se
como vetor principal neste trabalho a idéia de que “todo comportamento humano tem um
aspecto econômico, político, psicológico, social, cultural...” (LAPLANTINE, 2002, p. 156).
Espera-se que a estrutura migrante deste trabalho não leve à náusea, nesse ir e vir, da
Índia para a Inglaterra, da Inglaterra para a Índia. Que esse vaivém permita demonstrar que é
possível superar fronteiras simplesmente delas duvidando.
22
CAPÍTULO 1
TENTATIVAS DE RECONCILIAÇÃO ENTRE O VELHO E O NOVO
O Branco chegando em Madagascar perturbou os horizontes e os
mecanismos psicológicos. Todo mundo disse, a alteridade para o negro não
é o negro, mas o Branco. Uma ilha como Madagascar, invadida de um dia
para o outro pelos “pioneiros da civilização” sofreu uma desestruturação
mesmo se estes pioneiros comportaram da melhor forma possível.
Frantz Fanon
23
1.1 Rastros
Os versos satânicos é um romance que evidencia a determinação de Sir. Salman
Rushdie para “criar uma linguagem e formas literárias em que a experiência de povos
anteriormente colonizados e ainda desfavorecidos pudesse encontrar expressão plena”
(RUSHDIE, 1994, p.452). Para imaginar tal completude de expressão do tempo e sujeito póscoloniais é importante verificar sua coerência na literatura, assim como fora dela; sendo a
literatura “o próprio entrelugar, a interface” (COMPAGNON, 2006, p.138). Uma das
estratégias de Rushdie na busca de expressão total dos povos outrora colonizados é a influência
do passado colonial no tempo pós-colonial, sendo a descolonização um processo lento. Em Os
versos satânicos pode-se perceber a influência do passado no presente através do próprio
cotidiano dos personagens tanto na Índia quanto nos imigrantes na Inglaterra, uma mistura de
Ocidente e Oriente.
O termo pós-colonial basicamente indica o que ocorre ou ocorreu após a independência
dos países colonizados principalmente pela Inglaterra, França e Holanda; tendo início com a
independência da Índia e do Paquistão em 1947 (BOEHMER, 1995). A partir da independência
de tais países iniciou-se uma investigação por raízes para a reconstrução identitária da nação.
Buscava-se resgatar uma história que havia sido apagada ou ignorada por diversos anos de
colonialismo, quando a bandeira e a língua estrangeiras regulavam a política e a cultura do
colonizado (BOEHMER,1995). O antes colonizado acreditava que através da literatura
poderiam emergir novas maneiras de imaginar sua comunidade internamente e externamente,
deixando para trás o discurso colonizador baseado no estereótipo e racismo. A literatura póscolonial que emergia visava questionar a visão do colonizador sobre a colônia, que segundo
Said (1999) em Cultura e Imperialismo não se preocupava em retratar os relatos nativos; logo
havia uma relação simbólica unilateral centrada na visão colonizadora. O colonizado era
estereotipado por um olhar estrangeiro, principalmente europeu através da metanarrativa da
superioridade européia (especialmente britânica) sobre todos os outros povos, e que possuía
como grande veículo de propaganda a literatura (BLAKE, 2001).
Imaginar a nova nação é um exercício que se dá através da criação de histórias e
símbolos. Na nação imaginada como construção simbólica não existe uma essência, assim é
papel do imaginário local construí-la (ANDERSON, 2008). No caso das nações que
24
atravessaram mais recentemente um processo de independência esse pensar a nação se dava de
forma ainda mais contundente pela quebra da sincronia propiciada pelo início e fim do período
colonial. A busca era por raízes, origens, mitos e ancestrais, enfim, uma restauração histórica
de uma cultura que quebrada pela temporalidade do colonialismo se reduzia num complexo de
bastardia e orfandade (BOEHMER, 1995). O objetivo maior da literatura pós-colonial era de
resistência contra a visão centralizadora do colonizador, buscando-se força e transformação nas
sociedades outrora colonizadas.
O escritor pós-colonial de toda forma procurava uma ruptura com a maneira que os
europeus pensavam seu país e possuía na escrita, particularmente, uma arma para a liberdade
política e de expressão (BOEHMER,1995). Através da escrita objetivava-se uma liberação
completa, e radical, da representação eurocêntrica de outrora, assim ascenderam na colônia
diversos escritores e pensadores. Estes autores visavam uma transgressão dos valores do
homem branco e acreditavam ser a cultura nacional o meio transformador; segundo Fanon
(1984) onde a liberdade psicológica e espiritual deveria ser encontrada. O escritor deveria se
engajar politicamente, e no caso da literatura pós-colonial o objeto era a cultura nacional
idealizando reinterpretar o mundo em sua volta:
Para conceberem uma identidade nacional, os autores pós-coloniais se
concentraram em desenvolver um vocabulário simbólico que era
reconhecidamente indígena, pelo menos distinto da representação européia, e
ao mesmo tempo inteligível dentro de uma gramática política pós-guerra
(BOEHMER, 1995, p.187).
A partir da ascensão de uma nova expressão literária, a história não seria mais vista
nestes países apenas pelo lado de fora, estes povos agora contariam suas próprias histórias.
Alguns destes países, contudo, não poderiam sequer resgatar estas memórias devido ao sucesso
do colonizador em praticamente destruir sua memória cultural, como no caso dos povos
indígenas da Austrália, Canadá e Caribe (BOEHMER, 2005).
Pelo difícil acesso do colonizado à educação formal, somente uma minoria de sua
população poderia se exprimir de forma mais articulada, principalmente pela escrita. Assim os
primeiros escritores e intelectuais coloniais e pós-coloniais eram em sua maioria sujeitos do
sexo masculino e de classe média que se expressavam na língua do colonizador, logo a voz do
colonizado era dada por alguém que às vezes dela se utilizava de forma alienada ou às vezes
25
com grande caráter político num processo liberatório em relação ao colonizador. Tal atitude
para Rushdie seria arriscada, pois substituiria valores políticos por literários:
Cuidado com o escritor ou escritora que se coloca como a voz de sua nação.
Isso abrange nação no sentido de raça, gênero, orientação sexual, afinidade
eletiva. É o novo favoritismo. Cuidado com os favoritistas!
Esse novo favoritismo exige exaltação, acentua o positivo, oferece
animadoras instruções morais. Abomina o sentido trágico da vida. Ao ver a
literatura como inescapavelmente política, substitui valores políticos por
literários. É o assassino do pensamento cuidado (RUSHDIE, 2007, p.83).
A literatura pós-colonial que inicialmente pretendia o resgate da expressão nacional
deparava-se com obstáculos que iam além do trazer de volta uma identidade não contaminada
pela metrópole. Um deslocamento da literatura para a política faria com que tal literatura
pudesse acabar com o pensamento, um caminho contrário do que queria, pois “na boa escritura
[...] o mapa de uma nação deverá transformar também em um mapa do mundo” (RUSHDIE,
2007, p.84). Um outro problema para um resgate cultural da nação pré-colonizada se dava por
conta da diacronia das relações temporais dentro da própria nação. Não se poderia ignorar o
tempo de poderio do colonizador, pois a identidade do colonizado também fora marcada pela
influência do primeiro, ascendendo assim no colonizado identidades híbridas (BHABHA,
2007).
O termo pós-colonial deveria se referir a uma ruptura radical com o colonizador. Esse
fato, contudo, mostrava-se um pouco fantasioso desde que o processo de descolonização é
lento e marcas da colonização permanecem impregnadas na colônia (MOORE-GILBERT,
STANTON E MALEY, 1997). Assim, o pós-colonial, se é que se pode caracterizá-lo como
tempo, deve ser encarado como uma desconfiança sobre as narrativas e sincronia temporal do
ocidental ou à idéia de progresso; ou como sugere Boehmer (1995) desmentir a lógica de que o
Oriente significa estase e subdesenvolvimento. O escritor, desta forma, poderia expor que sua
terra não era constituída somente de selvageria, mas de uma cultura fundada em uma
simbologia distinta da ocidental, um tipo de civilização negada pelo colonizador. Ashcroft
(1997) dá a entender que o termo pós-colonial é mais apropriado como um novo criticismo
transcultural que emergiu recentemente através do discurso constituído. Ele se pauta na
articulação do passado com o presente, ou da impossibilidade de uma “pureza” no sentido de
avaliar somente que se passou após o período colonial, o que o termo pode vir a remeter.
26
Os estudos pós-coloniais tornaram assim uma ferramenta que visava evitar a amnésia
cultural e crucialmente interrogar o passado colonial da nação 4. Consequentemente se poderia
compreender o poder do discurso do colonizador, sendo o passado colonial não apenas um
reservatório de experiências, mas utilizado para esclarecer o presente (GHANDI, 1998). Então,
em sua base os estudos pós-coloniais requerem um descentramento que serve para análises
sobre as minorias e suas manifestações, incluindo-se a literatura, nos quesitos raça, classe e
gênero; uma tentativa de ouvir as margens.
O romance, Os versos satânicos5 (2006), de Salman Rushdie, objeto de pesquisa do
presente trabalho, traz à luz tais reflexões. Nele são problematizadas as relações do imigrante
pós-colonial com o inglês, principalmente através da perspectiva do primeiro. O tipo de escrita
refletida em Os versos satânicos (2006), de certa forma, distancia-se do objetivo original de
representação “indígena” da literatura pós-colonial, “Bombaim é uma cidade construída por
estrangeiros numa terra alheia” (RUSHDIE, 1994, p.24). Através da perspectiva de Rushdie
não se deve pensar contemporaneamente na ex-colônia em algo que seja puramente nacional a
não ser a reunião de diversos elementos e camadas, sendo esta a síntese da nova nação. Os
versos satânicos (2006) se aproxima mais da desconfiança das visões do colonizador (como
objetivo básico da literatura pós-colonial), como também de um discurso do colonizado em que
é excluído o colonizador. Em Os versos satânicos (2006), uma estase relativa ao passado da
colônia é negada em função de um hibridismo presente que está relacionado tanto com as
tradições indianas como inglesas, como será discutido posteriormente neste trabalho. Desta
forma, o romance despe-se de qualquer originalidade mitológica de um resgate do passado,
mas retrata como este passado se articula ao presente.
Em Os versos satânicos (2006), foca-se uma Índia pós-colonial assim como a inserção
dos membros da diáspora indiana na Inglaterra. Nestes contextos as imagens fixas são negadas,
tradicionalismo e sectarismo tanto em nível local e exterior, Índia e Inglaterra. No ensaio De
boa fé em Pátrias imaginárias (1994) onde Rushdie faz um comentário de Os versos satânicos
4
Segundo During (2001), O desejo pós-colonial por uma identidade possui relações estreitas com o nacionalismo,
por estas comunidades serem muitas vezes, senão sempre, nações.
5
O título Os versos satânicos, segundo Rushdie (2004), é uma tentativa de demonstração de que o demônio
(imigrante) não é totalmente satânico, assim como os anjos (ingleses) não são totalmente angelicais; assim como o
Islã possui aspectos demoníacos e o ateísmo aspectos angélicos. Logo, Os versos satânicos envergam seu título
demoníaco como uma descrença na moralidade como exterior e divina para uma interior e inconstante.
27
(2006), em resposta à condenação do Fatwa, ele relata que o romance discorda da
unilateralidade de opiniões:
Discorda veementemente de todas as ortodoxias impostas de todos os tipos,
da opinião que o mundo é muito claramente Isto e não Aquilo. Discorda do
fim do debate, da disputa, da discordância. Discorda também do sectarismo
comunalista hindu, do tipo de terrorismo sikh que faz explodir aviões,
fatuidades do criacionismo cristão, bem como das definições mais limitadas
do Islão (RUSHDIE, 1994, p.455).
Edward Said em Cultura e imperialismo (1999) coloca Rushdie, Tony Morrison e
Virginia Woolf como escritores que buscam uma nova forma de contar histórias, sendo esta
próxima a uma coleção de retalhos:
quando os textos e fotografias são usadas apenas para estabelecer a
identidade e a presença – para nos dar simplesmente algumas imagens
representativas da mulher, ou do indiano - , entram naquilo que Berger
chama de sistema de controle. Mas, por não se negar sua obstinação
congenitamente ambígua, e antinarrativista, elas permitem que a
subjetividade não arregimentada tenha uma função social (SAID, 1999,
p.409).
Para Said (1999), aquilo que faz parte da esfera privada, pequenos atos como uma foto
ao lado da cama, ou junto ao peito, são colocados de forma que o tempo histórico não tem o
direito de destruir. Seguindo-se este raciocínio, em Os versos satânicos atividades cotidianas
como a culinária, amizades, e até as artes marciais praticadas pelos imigrantes, tornam-se de
grande importância para uma compreensão global através do particular. As atividades
cotidianas transformam-se assim em veículo para retratar a nação como colcha de retalhos,
pois são prova das diversas camadas temporais sobrepostas ao longo da história e do tempo.
Imaginar a nação contemporaneamente como unidade significativa é uma ação que
seria parcial se não atentados os rastros deixados pelo passado. O passado entrelaça-se à
narrativa do presente, logo o presente não mais tornará a ser passado pela impossibilidade de
uma quebra brusca na narrativa cultural. A busca de expressão cultural local, ou das raízes per
se, se torna às vezes problemática por todo o histórico presente já que “o que predomina em
todas as mudanças é a continuidade da antiga substância” (SAUSSURE, 1997, p.74).
28
Na mudança do estado colonial para pós-colonial, a marca do colonizador não poderia
ser ignorada. Desta forma, em qualquer representação “pura” do passado encontrar-se-á
somente o passado, que é uma imagem estática e parcial. Através da noção da mutabilidade e
imutabilidade do signo linguístico pode-se refletir acerca da temporalidade na enunciação das
vozes da nação pós-colonial. Segundo Saussure (1997), a língua é utilizada pela sociedade
diariamente, da língua todos participam e consequentemente ela é influenciada por todos. Por a
língua ser utilizada por toda uma comunidade lingüística integralmente, assim como pela
arbitrariedade do signo6, tem-se a ideia de que ela é imutável. Nesse sentido a língua é
impossibilitada de mudanças bruscas e premeditadas, sendo ela a menos amena à iniciativa
entre todas as instituições. Ela se mistura à vida da sociedade sendo esta inerte por natureza
como força primária e fator de conservação.
Por outro lado, a língua é produto de forças sociais e através do tempo herda algo do
período anterior em cada mudança, sendo a coletividade assim como o tempo fatores
inseparáveis. Igualmente, em cada momento de solidariedade com o passado (em sua herança),
pensa-se em liberdade pela arbitrariedade do signo ser baseada na tradição, não existindo a
possibilidade dos falantes em mudar a língua à vontade própria. Ao mesmo tempo para
Saussure a língua é mutável pela presença do tempo e imutável pela impossibilidade dos
indivíduos em mudá-la.
A língua em relação ao tempo não pode se defender das mudanças de significante e
significado, sendo estas características principais da arbitrariedade do signo. Nenhuma língua
foi capaz de manter-se a mesma com o tempo “o tempo altera todas as coisas; não existe razão
para que a língua escape a essa lei universal” (SAUSSURE, 1997, p.91). Assim o princípio da
continuidade é que indica mudanças na relação entre significado e significante. Ao pensar na
mutabilidade do signo através do conceito comunidade, sendo esta denominada como força
primária por Saussure (1997), pode-se buscar uma relação entre a narrativa da comunidade e
língua como atos que se suportam por uma coletividade,
A língua não pode, pois, equiparar-se a um contrato puro e simples, e é
justamente por esse lado que o estudo do signo lingüístico faz-se
interessante; pois, se se quiser demonstrar que a lei admitida numa
6
O laço que une o significante ao significado é arbitrário ou então, visto que entendemos por signo o total
resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer simplesmente: o signo lingüístico
é arbitrário (SAUSSURE, 1997, p.81).
29
coletividade é algo que se suporta ou uma regra livremente consentida, a
língua é a que oferece a prova mais contundente disso (SAUSSURE,
1997,p.85).
A nação não possui uma data de nascimento, de morte, “ela é imaginada porque mesmo
os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão
falar da maioria de seus companheiros, embora tenham em mente essa imagem viva entre eles”
(ANDERSON, 2008, p.32). A comunidade, embora imaginada, pode possuir por seu vínculo
também imaginário uma impossibilidade de mudança repentina do vínculo da comunidade com
o passado, sendo esta uma lei que se suporta, como delineado por Saussure. Pode-se mudar a
maneira com que se imagina a nação, mas não produzir uma quebra repentina no imaginário da
sociedade:
A idéia de organismo sociológico atravessando cronologicamente um tempo
vazio e homogêneo é uma analogia exata da idéia de nação, que também é
concebida como uma comunidade sólida percorrendo constantemente a
história, seja em sentido ascendente ou descendente, um americano nunca vai
conhecer nem sequer saber o nome, da imensa maioria de seus 240 milhões
de compatriotas. Ele não tem idéia do que estejam fazendo a cada momento.
Mas tem plena confiança na atividade constante, anônima e simultânea deles
(ANDERSON, 2008, p.56).
O passado da narrativa nacional não pode ser perdido, mas pode ser mudado pelo
tempo, assim como seus signos. A nação assim como língua pode ser de certa forma imóvel
pela arbitrariedade das inter-relações imaginadas como “comunidade sólida” e que possui uma
coerência imaginária e simbólica. Por tal solidez ela já é impedida de uma ruptura significante
no fazer humano em sua narrativa através de qualquer intervenção, tornando-se assim arriscado
formular qualquer juízo futuro definitivo a respeito a um ato passado. Uma sociedade póscolonial completamente livre da presença do ex-colonizador pode até tornar-se possível, mas
assim como acontece em relação à mutabilidade lingüística, somente o tempo poderá responder
a esta questão. Da mesma forma que um milionário jogado na sarjeta não percebe a pobreza
igualmente àquele que nasceu pobre (pela relação simbólica com as coisas na época de fartura),
um povo recentemente independente não age como outro nascido independente, resquícios da
condição anterior invariavelmente continuarão. A temporalidade colonial funcionava como
uma camada deixada pelos colonizadores (SAHGAL in BOEHMER, 1995). Esta camada
30
assentou-se dentro de outras diversas camadas temporais na história da colônia, assim ela
inseriu-se numa lógica que fugia de definições fixas étnicas, lingüísticas, religiosas e culturais.
Através do pensamento de Saussure de que “o que predomina em todas as mudanças é a
continuidade da antiga substância” (SAUSSURE, 1997, p. 74), pode-se pensar na literatura
pós-colonial através do signo da hibridez, de maneira que passado e presente articulam-se
descentradamente. Este aspecto híbrido na narração e significação se dá pela impossibilidade
de um recorte em que o passado não se articule ao presente; logo, para se contar uma história
são necessárias outras várias histórias. Estas funcionam como elementos heteróclitos e
disparatados que juntamente significam uma multiplicidade. Desta forma, ao pensar a literatura
pós-colonial deve-se também refletir sobre o híbrido por este perpassar binarismos.
Em Os versos satânicos o narrador faz a pergunta: como o novo 7 entra no mundo? A
esta pergunta Rushdie em Cruze esta linha responde: “A influência do fluxo do velho para o
novo é uma parte da resposta” (Rushdie, 2007, p.92).
1.2 Migrações
Durante a segunda guerra mundial, com a diminuição da força de trabalho na Inglaterra,
juntamente com uma mudança nas expectativas de trabalho no Reino Unido, houve um
aumento na demanda por certos tipos de trabalho. Um grande número de indústrias anunciava
vagas de trabalho na metrópole. Desta forma, milhares de indianos, paquistaneses e caribenhos
para lá imigraram em busca de melhores condições. Em 1972, milhares de asiáticos foram
expulsos de Uganda pelo ditador Idi Amin, sendo recebidos como exilados pela Inglaterra, um
grupo crescente de imigrantes enchia cada vez mais a metrópole inglesa (BLAKE, 2001).
Segundo Said, a diferença de exilados de outrora e de nosso tempo é de escala: “nossa época
com a guerra moderna, o imperialismo e as ambições quase teológicas dos governantes
totalitários, é, com efeito, a era do refugiado da pessoa deslocada, da imigração em massa”
(Said, 2001, p.47).
7
Rushdie em Pátrias imaginárias (1994) faz uma relação direta entre o novo e o imigrante.
31
A busca de uma identidade nacional através da literatura pós-colonial iniciou-se com a
descolonização no fim dos anos 40 e teve seu pico até o início dos anos 80 quando o número de
migrações cresceu. Por causa desse crescimento foi necessária uma outra forma de dar voz ao
outrora colonizado, devido ao grande contingente de imigrantes pós-coloniais na metrópole.
Sendo assim a literatura pós-colonial se voltou também para a busca de expressão das vozes do
migrante na metrópole ocidental (BOEHMER, 1995).
Nos anos 80 e 90, os autores buscavam uma solidariedade comum aos povos, pelo
encontro do outrora colonizado e seu colonizador, já que grande parte dos escritores das
antigas colônias também haviam passado por um processo de imigração para as metrópoles
ocidentais (BOEHMER, 1995). Em Os versos satânicos, escrito em 1988, as experiências
vividas pelos imigrantes indianos Saladin Chamcha e Gibreel Farishta se passam em sua maior
parte na Inglaterra e, apesar de não haver uma data exata para os acontecimentos, existe uma
clara relação entre o romance e a contemporaneidade, como o citado desastre do Bhopal
ocorrido em 1984.
A partir dos dados do censo britânico, pôde-se constatar que em 20018 grande parte da
população do Reino Unido é constituída de imigrantes ou descendentes diretos de imigrantes
em 9,9%, e esse número cresce cada vez mais. Entre os imigrantes não brancos se destacam os
indianos, com 1,8% da população total da Inglaterra, além dos paquistaneses e bangladeshianos
que juntos os três, formam um total de 4% de toda a população. Os negros constituem 2% de
toda a população britânica, enquanto os mestiços contribuem com 1,2% do total e as outras
minorias 0,7% . As minorias étnicas constituem 7,9% de toda a população, ou 4.635.296
pessoas. Em 1951, a população total de imigrantes brancos e não brancos era de 2.1 milhões ou
4,2%. Contemporaneamente, do número total de imigrantes, 45% residem em Londres, o que
faz com que a cidade seja uma das mais cosmopolitas do mundo.
Do aspecto religioso, a cada 10 pessoas 7 se dizem brancas e cristãs e sobre as outras
religiões os maiores grupos eram dos muçulmanos paquistaneses (686,000) e os hindus
indianos (471,000) seguidos por Sikhs indianos (307,000), muçulmanos de Bangladesh
(261,000) e os judeus brancos (259,000). O grupo indiano é religiosamente diverso: 45 % dos
8
Data do mais recente censo no Reino Unido.
32
indianos são hindus, 29 % Sikh e um adicional 13 % muçulmano. Em contraste, o paquistanês
e grupos de Bangladesh eram mais homogêneos, 92% de muçulmanos de cada grupo étnico.
Outros fatos que chamam atenção são as comparações sociais dentro do Reino Unido.
Os empregados com maiores chances de ter ocupações administrativas ou profissionais eram
do grupo chinês, irlandês, indiano, e branco não-britânico (entre 32 e 38%); os britânicos
brancos obtiveram taxas de 27%. Na educação, os alunos chineses são os que têm maiores
chances de alcançar cinco ou mais GCSE (notas entre A*-C na Inglaterra), com 79% de
meninas chinesas e 70% de meninos chineses, respectivamente. Alunos indianos alcançaram o
segundo lugar: 72 % das meninas alcançaram estes níveis e 62% de meninos superando os
britânicos brancos com uma média menor9. Os grupos com maiores chances de ter um diploma
eram chineses (31%), indianos (25%) e o irlandês branco (24%). Todos estes superaram o
número de 17% de britânicos brancos.
Este número crescente de imigrantes, assim como a forma com que se inserem na
sociedade britânica, principalmente na cidade de Londres, é um importante fator de discussão
em Os versos satânicos (2006). A população de imigrantes torna-se cada vez mais significativa
além de ativa na metrópole. Pode-se analisar, através da pesquisa sobre a educação (acima),
que os imigrantes e seus descendentes possuem melhor desempenho escolar que os locais,
além de possuírem maior possibilidade de adquirir cargos de chefia, por exemplo; o que desfaz
muitas máximas do pensamento orientalista e racista. Outro aspecto a se atentar é a
heterogeneidade cultural destes imigrantes através das diferentes religiões, lugares de
nascimento e histórico cultural. O que todos eles têm em comum é sua existência
compartilhada numa cidade que não é a sua de nascimento, e que lá fazem parte de uma
crescente minoria. O imigrante, assim, convive com uma situação bastante única, eles não são
muitas vezes bem-vindos pelos locais já que representam uma crescente e competitiva parcela
do mercado de trabalho que antes era aos primeiros destinada, além de trazerem a impureza
social. Esta sujeira ou impureza trazida pelos imigrantes pós-coloniais têm muito a ver com as
práticas orientalistas e colonialistas do passado, uma vez que estes povos eram estereotipados
como selvagens. Levando-se em conta o que foi falado anteriormente através de Saussure
(1997), mesmo que haja uma mudança a antiga substância tende de alguma forma continuar, o
9
O estudo não dá um número exato de Ingleses com nível, GCSE pela leitura do gráfico porém pode-se aproximar
uma média de 53% entre meninos e meninas.
33
colonialismo não foi completamente apagado como se pode perceber através de diversos
eventos racistas que ainda acontecem na Europa. As relações entre o período colonial e póscolonial serão desenvolvidas mais profundamente no próximo capítulo deste trabalho.
Amitava Kumar (2000) relatando sobre a condição do imigrante colonizado nos grandes
centros do Ocidente diz que a primeira barreira para cruzar as fronteiras entre o Oriente e a
metrópole ocidental é a do visto; uma empreitada indigna. Esta indignidade é demonstrada por
Kumar pela história de Salman Rushdie “Good advice is rarer than rubies”10. Nela uma garota
indiana chamada Rehana é procurada do lado de fora da embaixada por um falsificador de
vistos. Impressionado por sua beleza, ele a oferece um visto grátis, ela o nega e diz dele querer
apenas conselhos, pois conselhos bons são mais raros que rubis. O falsificador, contudo, diz
“aceite meu presente ou perca sua dignidade e nunca vá a Londres”. A perda da dignidade para
se conseguir um visto, segundo Kumar (2000), se dá pela forma que o sujeito é argüido e pelos
manuais para diferenciar os negros, árabes e outros. Nestes manuais os critérios são LP – looks
poor (parece pobre), TP – talks poor (Possui linguagem pobre), LR – looks rough (aparência
tosca), RK – rich kid (garoto rico), ou TC – take care (tome cuidado). Assim, desde antes da
sua entrada no país o imigrante deve passar pelo crivo de agentes que os estereotipam, todos os
imigrantes devem fazer parte de uma das definições citadas para serem apartados.
Morley (1999) propõe que a determinação de uma fronteira, dentro e fora, funciona
para se excluir a sujeira, o que ele chama de purificação do espaço, pois a sujeira não é bem
vinda a um ambiente puro. Da mesma forma que uma casa pode ser profanada pela presença de
lama ou sujeira, um país pode ser profanado pela presença de culturas estrangeiras. Em ambos
os casos o elemento sujo deve ser limpo, ele não está em seu lugar. Na tentativa de se explicar
esta busca por limpeza da metrópole pós-colonial foi até desenvolvida uma hipótese
pseudobiológica. Nela é comparada a população de humanos à população de animais, sendo
que os últimos defenderiam seu espaço contra outros animais invasores. Desta forma, a
exclusão dos sujeitos culturalmente diferentes dar-se-ia a partir de instintos básicos humanos
de defesa de território. Conseqüentemente, os seres humanos possuem uma preferência pelo
que a eles é igual por autopreservação, sendo a miscigenação perigosa para uma cultura
(Stolcke in Morley, 1999). Interessantemente ao discutir-se uma questão como a limpeza
10
Bom conselho é mais raro que rubis, texto extraído da coletânea East, West (1994) de Salman Rushdie.
34
étnica, fora necessário utilizar-se de uma comparação entre homens e animais. Assim, mesmo
para quem defende tal hipótese, na separação entre imigrante e local o homem age de maneira
instintiva, ou animalesca.
Os termos “puro” e “impuro” são constantemente utilizados para a descrição de
Englishness11 e cultura dos imigrantes, respectivamente. Em Os versos satânicos, a descoberta
de uma positividade na impureza, ou de uma inexistência de pureza real são os fatores que
levam Saladin à possibilidade de uma identidade que não seja uma simples mímica do que é
inglês.
Londres, com mais de dois milhões de imigrantes e com a maioria deles provenientes
das ex-colônias inglesas como a Índia, o Paquistão e Bangladesh e de países africanos, é o
lugar da maioria das discussões do romance no entrelaçamento entre pureza e impureza:
Ser um indiano de Bombaim (e, depois um londrino) foi também a paixão
nascida pela metrópole. A cidade como realidade e como metáfora está no
coração de todas as minhas obras. A cidade moderna, diz uma personagem
de Os Versículos Satânicos, é o lócus classicus das realidades incompatíveis.
(RUSHDIE, 1994, p.467).
A cidade moderna é assim motivo de interesse de Rushdie exatamente pela reunião de
diversas realidades que se comunicam dentro de um organismo (cidade). A cidade para
Rushdie é uma metáfora da impureza, do lugar do encontro, onde podem surgir novas
perspectivas além das preestabelecidas ou puras, que para ele são absolutismos. Segundo
Bauman
[...] é de importância muito especial e, na verdade, única: a saber, aquele em
que os seres humanos que são concebidos como obstáculo para a apropriada
“organização do ambiente”; em que, em outras palavras, é uma outra pessoa
ou, mais especificamente, uma certa categoria de outra pessoa, que se torna
“sujeira”e é tratada como tal (BAUMAN, 1998, p.16).
No contexto metrópole pós-colonial a sujeira ou impureza é sintetizada em grande parte
a partir dos imigrantes, por uma não identificação destes com o sistema de representação
cultural local como comunidade simbólica. Os imigrantes, assim, rompem com a sincronia no
coração da nação imaginada, a metrópole.
11
Um conjunto de significados pela cultura nacional inglesa (HALL, 2006, p.53).
35
Através das diversas diásporas das últimas décadas a metrópole tornara-se
dessemelhante de outrora, a suposta narrativa da metrópole ocidental era desfeita, assim como
anteriormente ocorrera na colônia pelo colonizador. Os imigrantes pós-coloniais faziam parte
do território do colonizador, e querendo ele ou não criavam novas narrativas, dissolvendo a
antiga ordem:
(...) em qualquer sociedade em que a estrutura de classe é tão fechada que
cada um tem o lugar que conhece e o mantém, não há espaço para um
arrivista, nem há um propósito a que um arrivista pudesse concebivelmente
servir; mas o século XIX gerou uma horda de arrivistas. (WYLIE SYPHER
in BAUMAN, 1997, p.93).
Pela presença do imigrante pós-colonial, através das diversas diásporas uma nova
maneira de se pensar a metrópole era necessária pelo processo de transculturação 12. Era
necessário escutar as muitas outras vozes que emergiam deste reencontro, “em decorrência
disso, a polifonia, em seu sentido bakhtiniano, favorece o estabelecimento de múltiplas zonas
de contato, desautoriza os binarismos e cria espaços de negociação” (SILVA, 2006, p.155).
Assim, ao invés de um afunilamento na identidade nacional da metrópole, uma polifonia
emergia, e como polifonia deveria reverberar. O que poderia soar confuso primeiramente
poderia significar algo diferente, novo; a impureza como significante.
Rushdie sobre a identidade do imigrante diz
Estou agora a falar de alguns de nós que emigraram... e suspeito que há
alturas em que o lamentamos, quando vimos a nós mesmos como póslapsarianos. Somos hindus que atravessamos as negras águas; mulçumanos
que comem carne de porco. E o resultado – e esta é minha noção do Pecado
Original – é que fazemos parte integral do Ocidente. A nossa identidade é ao
mesmo tempo plural e parcial. Às vezes sentimos que oscilamos entre duas
culturas; outras vezes, que sentamos entre duas cadeiras (RUSHDIE, 1994,
p.30).
A metrópole pós-colonial sem o imigrante tornara-se parcial, assim as zonas de contato
que nasciam através desta nova união deveriam também ser levadas em conta. Para alcançar
12
Entendemos que o vocábulo “transculturação” expressa melhor as diferentes fases do processo transitivo de
uma cultura a outra, porque este não consiste apenas em adquirir uma cultura, que é o que a rigor indica o
vocábulo anglo-americano “aculturação”, mas implica também necessariamente a perda ou o desligamento de
uma cultura precedente, o que poderia ser chamado de uma parcial “desaculturação”, e, além disso, significa a
conseqüente criação de novos fenômenos culturais que poderiam ser denominados “neoculturação”. Fernando
Ortiz, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, Havana, Consejo Nacional de Cultura, 1963, citado em Ángel
Rama, Literatura e cultura na América Latina, São Paulo, Editora Universidade de São Paulo, 2001, p. 216.
36
tais espaços, a literatura pós-colonial deveria também ser encarada como um objeto
descentrado pela presença do imigrante:
A transplantação de nomes, de linguagens que se misturam, da diversificação
de gostos que se desenvolveram durante o império foi ainda mais ampliado
na nova casa, a antiga e agora poliglota metrópole. Formações culturais como
o romance, hibridizados nos arredores coloniais, são agora mais
intensivamente hibridizados por retornarem à pós-imperial cidade ocidental
que, também, é irrevogavelmente transformada (BOEHMER, 1995, p. 234
Tradução nossa)13.
Em Os versos satânicos (2006) a questão do imigrante metropolitano é central, pois
seus personagens principais são imigrantes, descendentes de imigrantes, além de ingleses,
retratando assim negociações pós-coloniais. Este entrelaçamento, contudo, não se dá de forma
simplificada ou sincrônica; as relações entre colonizado e colonizador não partem de um
aplanamento que seria a simples dualidade. Rushdie assim busca reescrever o presente e o
passado tanto da colônia quanto da metrópole através de uma escrita migrante que mostra
novas realidades. Este tipo de escrita, pelo descentramento natural do olhar do imigrante, pode
contemplar um tipo de expressão mais total na articulação das diversas culturas, uma inevitável
impureza.
1.3 Os versos satânicos e a expressão pós-colonial
O romance Os versos satânicos reflete o descentramento cultural existente na metrópole
contemporânea já que mostra as zonas de contato entre o morador “típico” 14 da metrópole
ocidental e o imigrante pós-colonial. A hibridação cultural, segundo Bhabha (2007), é um
fenômeno global por emergir de culturas diversas criando um terceiro signo distinto do que
primeiramente expressavam as culturas envolvidas. Mas, os muros que separavam as culturas
envolvidas na criação deste terceiro signo não são derrubados, são perfurados (por razões
históricas) de maneira que possa haver uma troca cultural que modifica os lados envolvidos.
Para expressar as modificações culturais trazidas de tais trocas é necessário perceber estas
fissuras no muro, o que desloca a expressão cultural em ambos os lados.
13
Original na língua inglesa.
O termo “típico” refere-se ao imaginário criado pelo ocidental sobre si mesmo, como foi relatado por Said em
Orientalismo (1999).
14
37
Na literatura, para tornar possível este tipo de expressão, Rushdie utiliza em sua escrita
recursos como o realismo mágico a autobiografia ficcional e a sátira menipéia. Um romance
sobre imigrantes, escrito por um imigrante. Lançando mão destes recursos, Rushdie tenta
expressar de forma plena o sujeito deslocado no papel do imigrante pós-colonial. Pela
expressão destas novas identidades que surgiram através de trocas culturais, Rushdie recebeu
algumas críticas, principalmente uma suposta antipatia sua pelos sujeitos de pele branca em Os
versos satânicos. Em resposta a tais críticas, pondera sobre seu objetivo de criar uma forma de
literatura através do olhar do imigrante, o que nada tem a ver com o racismo:
Se é que Os versículos satânicos chega a ser alguma coisa, é a visão do
mundo através do olhar do emigrante. Foi escrito da própria experiência de
desenraizamento, ruptura e metamorfose (lenta ou rápida, dolorosa ou
agradável) que é a condição do emigrante, e da qual creio poder extrair-se
uma metáfora para toda a humanidade (RUSHDIE, 1994, p.452).
Saladin Chamcha e Gibreel Farishta, os protagonistas do romance, são indianos que
migraram para Londres, e ambos faziam parte da alta classe em Bombaim. Saladin é filho de
Changez Chamchawala, magnata da indústria de fertilizantes, enquanto Gibreel é o ator mais
famoso de toda Índia. O primeiro possui uma esposa branca, educação em escolas inglesas,
enquanto o segundo vai em busca de seu amor, outra mulher branca. Um ama a Índia, enquanto
o outro a renega. Enquanto Saladin baseia suas ações na Englishness o outro se “deixa levar”
pela multiplicidade de identidades. Para a escrita destas relações diacrônicas destes sujeitos
com as culturas envolvidas, a literatura também deveria apresentar-se de uma forma distinta,
que pudesse falar diversas línguas em uma. Assim, Rushdie pensa na condição do imigrante
como metáfora para a escrita, sendo ele uma reunião de todo o descentramento necessário para
se pensar as identidades contemporâneas. Isto se dá pela condição imigrante reunir diversos
elementos distintos que rompem a sincronia representacional iluminista ocidental. Rushdie,
entrevistando Edward Said, em Pátrias imaginárias (1994), pergunta sobre uma possível
representação da identidade palestina através da literatura e recebe como resposta que isto só
seria possível através de uma “história louca” como faz o próprio Rushdie:
SALMAN RUSHDIE: No contexto da literatura, mais do que no contexto
histórico, você argumenta que a insuficiência narrativa fica a dever-se à
descontinuidade da existência palestiniana. Estará esta questão relacionada
com o problema de se escrever uma história?
38
EDWARD SAID: Sim. Existem muitos tipos diferentes de experiência
palestiniana, que não podem congregar-se num só. Assim teríamos de
escrever histórias paralelas das comunidades do Líbano, nos territórios
ocupados, etc. Este é o problema central. É quase impossível imaginar uma
única narrativa: teria de ser o tipo de história louca que aparece em Os filhos
da meia noite, com todos aqueles elementos entrando e saindo. (RUSHDIE,
1994, p.204).
Esta história “louca” permite a Rushdie a utilização de elementos históricos reais e
fantásticos em sua narrativa, possibilitando uma visão que vai contra o racionalismo ocidental.
Rushdie parece se utilizar do realismo mágico para falar sobre o tempo e a realidade orientais,
baseadas nas histórias e nos mitos que perpassam o contemporâneo, como “um
desenvolvimento do terceiro mundo que exprime uma verdadeira consciência de terceiro
mundo” (RUSHDIE,1994, p.350). Pela sua história, do seu país de nascimento a Índia, e a
Inglaterra, “o narrador oscila entre as experiências que lhe são próprias e as que são alheias”
(SILVA, 2006, p.137). Rushdie e obra entrelaçam-se de maneira que a realidade não se
distingue da ficção, ele utiliza-se de uma terceira via hibrida em que às vezes a autobiografia se
apresenta de forma mais óbvia ou obscura, uma mistura entre real e fantástico.
Para Wander Melo Miranda
[...] todos os textos ficcionais que se aproximam dessa definição ou permitem
ao leitor suspeitar da identidade entre autor e protagonista, embora o
primeiro negue ou não afirme tal identidade, não são considerados como
autobiografia stricto sensu, porque para Lejeune, esta não comporta graus —
é tudo ou nada. Entretanto, mesmo em sentido restrito, a autobiografia tende
a assimilar técnicas e procedimentos estilísticos próprios da ficção. Isso
evidencia o paradoxo da autobiografia literária, a qual pretende ser
simultaneamente um discurso verídico e uma forma de arte, situando-se no
centro da tensão entre a transparência referencial e a pesquisa estética e
estabelecendo uma gradação entre textos que vão da insipidez do curriculum
vitae à complexa elaboração formal da pura poesia (MIRANDA, 1992, p.30).
Rushdie em Os versos satânicos utiliza elementos autobiográficos e ficcionais para
descrever a condição do imigrante colonial. Saladin Chamchawala possui em sua trajetória
diversos elementos que se embaralham com a própria história de Rushdie. Ambos migraram
para a Inglaterra no início da adolescência, possuíam boas condições financeiras, pele clara e
um sotaque bastante britânico, e uma grande admiração pela Inglaterra. 15
15
Estes relatos podem ser vistos na coleção de ensaios e textos críticos Pátrias imaginárias de Rushdie (1994) .
39
Criado pelos escritores latino americanos, o realismo mágico é uma escola literária que
se caracteriza por intercalar o fantástico e exagerado com o real até que eles se tornassem
indistinguíveis. O escritor pós-colonial poderia, através do realismo mágico, questionar a
dicotomia colonizado-colonizador construída pelo fato colonial (BOEHMER, 1995). Assim, a
literatura pós-colonial, através do realismo mágico serve não somente como uma resposta à
imagem do colonialismo, mas também às representações artísticas repressivas dele
(ENGBLOM in SMALE, 2001). O descentramento da realidade traria à tona uma imagem que
mesmo focada por outras lentes, pela fantasia, possibilitaria um maior nível de expressão da
hibridação entre ambas as culturas envolvidas. O realismo mágico funcionaria como
sintetizador de dicotomias, possibilitaria ao escritor ironizar a visão do colonizador para com o
colonizado e vice-versa, mostrando que ambas são criações:
Imaginem-se numa grande sala de cinema, sentados na última fila e,
aproximando-se gradualmente... até terem o nariz praticamente colado ao
ecrã. Gradualmente os rostos das estrelas ir-se-ão dissolvendo em partículas
dançantes; os
mais pequenos
detalhes assumem proporções
grotescas;...torna-se claro que a própria ilusão é a realidade (RUSHDIE,
1994, p.27).
O autor através do fantástico dá asas à realidade, já que o realismo mágico é uma forma
diferente de mostrar o real, podendo possibilitar que realidades às vezes irrepresentáveis de
maneira linear possam surgir. Em Os versos satânicos, o realismo mágico pode ser visto
juntamente à sátira menipéia, onde o poder é subvertido, os corpos são múltiplos e escapam à
representação pelo elemento transcedental das metamorfoses. Segundo Smale (2001), na sátira
menipéia combinações paradoxais reúnem opostos através de representações de metamorfoses,
loucura e sonhos. Pelo uso do elemento metamorfose que ocorre com os protagonistas de Os
versos satânicos, concede-se licença para que todos os outros tipos de fantasia possam
acontecer e refletir a realidade de maneira descentralizada, assim como é característica do
realismo mágico. É buscada uma multiplicidade de vozes de um povo que fora vítima do fato
colonial e as conseqüentes ambivalências que daí brotam como diferentes versões, como será
discutido com maior profundidade no terceiro capítulo.
O livro inicia-se com uma queda, a de Gibreel e Saladin de um avião que havia
explodido, ambos são metamorfoseados: um em um ser meio homem meio bode, enquanto o
outro em anjo. Através da queda e da conseqüente sobrevivência de ambos, como é possível
40
fazer com que vivenciassem mundos até então inexplorados? No caso da trajetória de Saladin,
pelo elemento fantástico de sua queda e metamorfose, ele pôde não somente conhecer, como
também tornar-se um membro do gueto. Essa inserção no gueto deu-se de forma fantástica,
pela metamorfose; não como inglês que perdeu um emprego, por exemplo, (o que
provavelmente não mudaria as relações de poder inscritas) mas como alguém que fora
obrigado a fazer parte de uma minoria primeiramente pelo fator físico, já que sua nova imagem
não era aceita senão no gueto. Assim novas formas de retratar o mundo podem ser pensadas
através do descentramento proposto pela literatura pós-colonial e do conseqüente olhar do
migrante proposto por Rushdie.
A literatura pós-colonial expressa identidades que se baseiam na multiplicidade das
articulações entre colonizador e colonizado, branco e negro, ocidental e oriental que o “centro”
é um “nem-lá-nem-cá”16. Assim, refutam-se os discursos globalizantes de Ocidente e Oriente
rompendo as barreiras entre civilização e barbárie tão disseminadas no período colonial.
As vozes da literatura pós-colonial subvertem as grandes narrativas, articulando
Ocidente e Oriente; colonizado e colonizador que outrora se demonstravam em posições fixas e
imutáveis. Este movimento de inserção de novas realidades no Ocidente pela literatura não
pode ser visto como um movimento de pequenas proporções, nos últimos vinte anos diversos
autores vencedores do premio Nobel de literatura possuíam o inglês como segunda língua.
Como exemplos podem ser citados Joseph Brodsky, Czelaw Milosz, Isaak Bashevis Singer e
Saul Bellow, além de grande número de orientais e provenientes do terceiro mundo como
Orhan Pamuk, J.M Cetzee, V.S Naipaul, Nadine Gordimer. Pela representatividade destes
autores em nível mundial tende a acontecer uma quebra na representação do sujeito humano
como ocidental do primeiro mundo. Por serem expostas diversas outras realidades, se dissolve
a sincronia de reprodução do sujeito ocidental como referencial único e, consequentemente,
podem emergir outros signos.
As identidades dos personagens de Os versos satânicos não podem ser justificadas por
nenhum modelo estrutural ou gerativo exatamente pela multiplicidade de vozes que nele ecoam
do ponto de vista sociológico, histórico, literário e psicológico. Logo, num estudo crítico de Os
16
Em Referência a John Mercer personagem do conto The Courter de Salman Rushdie. Nesse conto Mercer refere
a si mesmo como Sr. “nem-lá-nem-cá”16, um imigrante da Europa oriental em Londres. Um sujeito que vive entre
mundos.
41
versos satânicos (2006), assim como na abordagem da literatura pós-colonial o híbrido é a
representação máxima de uma fuga da fixidez estereotípica, pois mostra a articulação cultural
entre as dicotomias citadas.
Perceber as dicotomias na acepção do real é o pensamento que propõe Homi Bhabha
para ultrapassá-las:
“O “verdadeiro” é sempre marcado e embasado pela própria ambivalência do
próprio processo de emergência, pela produtividade de sentidos que constrói
contra saberes in media res, no ato do mesmo agonismo, no interior dos
termos de uma negociação (ao invés de negação) de elementos oposicionais e
antagonísticos” (BHABHA, 2007, p.48).
Riobaldo, o narrador de Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, afirma o mesmo:
“o real não está na saída nem na chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”
(Rosa, 2006, p.80). Nesta perspectiva, tais dicotomias não se encerram em si, elas se
estabilizam em torno do signo e evoluem “por hastes e fluxos subterrâneos, ao longo de vales
fluviais ou linhas de estradas de ferro, espalham-se como manchas de óleo” (DELEUZE E
GUATTARI, 1995, p.16). Deve-se lembrar que Deleuze e Guattari desencorajam qualquer
representação dicotômica. Contudo, o que Bhabha articula são elementos que para Deleuze e
Guattari (1995) formam um plano de consistência e que negociam entre si pelas hastes que
formam o rizoma, ou abrem um caminho.
A identidade cultural buscada pela literatura pós-colonial deve ser mapeada dentro das
interconexões possíveis, mas sem na verdade esquecer-se que este mapa pode ser remontado
das mais diversas formas. Segundo Bhabha, existe a vantagem do reconhecimento histórico
entre o sujeito e o objeto da crítica “de modo que não possa haver uma oposição simplista ou
essencialista, entre a falsa concepção ideológica e a verdade revolucionária” (BHABHA, 2007,
p.52). O que Boehmer (1995) chama de “narrativa histórica” como um processo de dar forma
ao que fora partido.
No romance Os versos satânicos (2006) é explicitada a ambivalência do signo do
colonizado pela sua síntese e às vezes incomensurabilidade na articulação das culturas indiana
e britânica. Assim sendo, se percebe a impossibilidade de um juízo definitivo sobre ambas.
Através de Saladin Chamchawala primeiramente é trazida a representação do imigrante
assimilado das ex-colônias. A imagem que Saladin possui de si, do Inglês, do Indiano, e do
42
imigrante são imagens parciais, que não possuem a pluralidade necessária pra representar uma
só identidade coerente ou plena.
Em Os versos satânicos (2006), Rushdie busca a solidariedade entre os povos
celebrando a hibridação. O título de Berman (1995) tudo o que é sólido se desmancha no ar
seria um bom retrato da teoria de Rushdie, já que ele busca uma maleabilidade no
reconhecimento do signo do híbrido, do imigrante como reflexo de humano.
43
CAPÍTULO 2
RETRATOS
Não há muito tempo, a terra contava dois bilhões de habitantes, ou seja,
quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos milhões de
indígenas. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros o pediam
emprestado. Entre estes e aqueles, reizinhos vendidos, senhores feudais, uma
falsa burguesia inteiramente fabricada serviam de intermediários. Nas
colônias, a verdade se mostrava nua; as “metrópoles” a preferiam vestida; era
preciso que o indígena a amasse. Como mães de certa forma. A elite européia
pôs-se a confeccionar um indigenato de elite; selecionavam-se adolescentes,
marcavam-se suas frontes, com ferro e brasa, os princípios da cultura
ocidental, introduziam-lhes na boca mordaças sonoras, grandes palavras
pastosas que colavam nos dentes; depois de uma breve permanência na
metrópole, mandavam-nos de volta, falsificados. Essas mentiras vivas não
tinham mais nada a dizer aos seus irmãos; eles ecoavam. De Paris, de
Londres, de Amsterdam, lançávamos palavras: “Partenon! Fraternidade!”, e,
em algum lugar da África, lábios se abriam: “...tenon!...nidade!” Era a idade
do ouro.
Jean-Paul Sartre
44
2.1 O orientalismo e as criações
Para uma compreensão do papel da literatura pós-colonial, principalmente na sua
segunda fase, que valoriza a imigração e a metrópole, é imprescindível pensar-se sobre a
história do sujeito a ser estudado em Os versos satânicos (2006), neste caso o Indiano. Saladin
é um membro da burguesia indiana que se torna imigrante na Inglaterra. Assim, é importante
pensar nas construções prévias, ou imaginário do Ocidente para o Ocidente e vice-versa pela
representação do que é oriental através da Índia e ocidental pela Inglaterra.
O orientalismo é um termo cunhado por Edward Said que reflete o modo do Ocidente
resolver o Oriente, remetendo ao lugar especial ocupado pelo Oriente na experiência ocidental
européia. O Oriente é para o Ocidente fonte de suas mais recorrentes e profundas imagens do
outro. Fixando o outro, neste caso o oriental, o ocidental reafirma sua imagem como
experiência de contraste. O orientalismo, desta maneira, possui para Said (2001) um papel
duplo, ao mesmo tempo que reflete a visão do outro, não europeu, reafirma a construção da
imagem do sujeito europeu; imagem esta masculina, cristã, letrada, branca e educada.
Podem-se citar outros adjetivos que por comparação com o oriental o ocidental dava a
si mesmo, mas o mais importante é a criação de um paradigma de reafirmação ocidental como
positividade baseada numa negatividade do oriental;
O Ocidente assim como o Oriente são criações do homem. Assim como o
próprio Ocidente o Oriente é uma idéia que tem uma história e uma tradição
de pensamento, imagística e vocabulário que lhe deram realidade e presença
no e para o Ocidente (SAID, 2001, p.16,17).
A noção de orientalismo de Said (2001) não se trata de uma busca por correspondência
entre o Oriente real e sua construção pelo Ocidente; “mas da consistência interna do
orientalismo sobre o Oriente (o leste como carreira), a despeito ou além de qualquer
correspondência ou falta de um Oriente real” (SAID, 2001, p.17). A visão eurocêntrica sobre
oriental pela doutrina orientalismo se constitui num discurso de tábua rasa sobre todo o
Oriente, uma síntese de negatividade sobre toda uma parte geográfica do planeta. O estudo de
Said se deu a partir de algumas obras literárias orientalistas desde o século XVII com “a
experiência britânica, francesa e americana no Oriente considerada como uma unidade [...]”
45
(SAID, 2001, p.28). Um aspecto fundamental na análise metodológica dos textos escolhidos
por Said foi o da exterioridade. Para ele, o ocidental possuía como objetivo maior traduzir o
Oriente e para tal compreensão a superficialidade se faz necessária pelo fator genérico aí
embutido, principalmente pelo tamanho da amostra escolhida, já que o Oriente engloba metade
do planeta.
A negatividade generalizante do ocidental em relação ao oriental fora discutida por Said
(2001) em diversos textos. Neles pode-se perceber como o ocidental descrevia o oriental com
características degradantes comparando-os ao ocidental:
[...] a mente oriental abomina a precisão. Carência de precisão, que
facilmente degenera em insinceridade, é na verdade a principal característica
do oriental [...] são incapazes de tirar as conclusões mais óbvias de qualquer
premissa cuja verdade possam admitir...
Os orientais ou árabes são simplórios, desprovidos de energia e iniciativa e
muito dados a adulações de mau gosto, intriga, simulação e maus tratos aos
animais, os orientais são incapazes de andar em uma estrada ou calçamento
(suas mentes desordenadas não conseguem entender aquilo que o sagaz
europeu aprende imediatamente (...) estradas e calçamentos em que tudo se
opõem à clareza, integridade e nobreza anglo saxônicas) (CROMER in
SAID, 2001 p.48).
Pela comparação simplista que não levava em conta as construções simbólicas do
oriental, o ocidental afirmava o primeiro como degenerado ao mesmo tempo em que se
louvava como grande povo. Said (2001) discute duas formas de se reafirmar o discurso
orientalista como construção de uma verdade. A primeira diz respeito aos livros de viagem:
neles é mostrada uma suposta realidade que fora experenciada pelo viajante, o que lhe dá
autoridade, logo o reconhecimento como verdade pelos leitores. A outra remete à reafirmação,
ou o que Said chama de “aparência de sucesso”. Ela é reflexo do conteúdo escrito pelo autor e
seu sucesso em tal descrição em comparação com o empiricamente observável pelo leitor. Pela
lógica da “aparência de sucesso”, quando o ocidental se depara com o oriental ele é induzido a
perceber algumas das características descritas pelo autor, e desta forma as reforça. Se oriental é
descrito como um degenerado, grandes são as chances de um leitor ocidental nesse fato
acreditar.
O oriental era percebido pelo ocidental a partir do estereótipo de degeneração e,
segundo Bhabha, (2007) o último possuía um desejo de originalidade que era ameaçado pelas
diferenças de raça, cor e cultura. O desejo de originalidade era epidermicamente branco, logo
46
tudo o que ultrapassa, ou quebra tal ideal de pureza era, portanto, considerado sujo e
degenerado
Não há nenhum meio de se pensar sobre a pureza sem ter uma imagem da
“ordem”, sem se atribuir às coisas seus lugares “justos” e convenientes – que
ocorrem de serem aqueles lugares que lãs não preenchiam “naturalmente”,
por sua livre vontade. O oposto da “pureza” o sujo , o imundo, “os agentes
poluidores” – são coisas “fora do lugar”. Não são características intrínsecas
das coisas que as transformam em sujas, mas tão somente sua localização e,
mais precisamente, sua localização na ordem de coisas idealizada pelos que
procuram a pureza (BAUMAN, 1997, p.14).
Pelo estereótipo, o oriental é fixado, sua imagem é imóvel, não possui dinamismo.
Consequentemente pelo ponto de vista da temporalidade, para o ocidental o oriental também se
mostra estático, atemporal, preso no discurso primitivista construído pelo ocidental. Said
(2001) reflete sobre tal estase utilizando-se da cópula “é”, usada pelo ocidental para o oriental.
A partir da cópula “é” o oriental é situado no local estático do degenerado, num “território de
sonhos, imagens, mitos, obsessões e requisitos” (BHABHA, 2007, p.112). Estas características
serviam de antítese tanto para a cultura quando se remete ao signo da degeneração, quanto à
razão ocidental
o primitivismo, portanto, era inerente ao Oriente, era o Oriente, uma idéia
para a qual quem quer que estivesse lidando com o Oriente ou escrevendo
sobre ele tinha de regressar, como se fosse uma pedra de toque que durasse
mais que o tempo ou que a experiência” (SAID, 2001, p.237).
A construção do oriental a partir da imagem do ocidental criou as condições necessárias
para o projeto colonizador europeu. Bhabha (2007) demonstra a relação entre a pureza do signo
ocidental colonizador, a impureza do colonizado e sua articulação como estratégia de poder
colonial como “uma série de diferenças que embasam as práticas discursivas e políticas da
hierarquização cultural” (BHABHA, 2007, p.107). Segundo Bhabha (2007), o sucesso do
discurso colonizador se baseia na diferença dos discursos do colonizador e colonizado, sendo
ambos retratados de forma estereotipada e posteriormente analisados antiteticamente. O
colonizado é visto como um Outro, mas ao mesmo tempo ele é apreensível pelo colonizador,
sendo esta lógica semelhante à análise a partir da superficialidade do texto orientalista feito por
Said (2001). Em ambas a apreensão superficial feita pelo ocidental-colonizador não reconhece
47
a diferença entre os povos, e muito menos a diferença interna de uma sociedade. Donald e
Silva (2000) definem o sucesso do projeto colonizador do ocidental para com o oriental com
bases na criação de um estereótipo “monstruoso”:
Representar uma cultura prévia como monstruosa justifica seu deslocamento
ou extermínio, fazendo com que o ato de extermínio pareça heróico [...] ao
definir culturalmente os “sarracenos” como monstra, os propagadores
tornavam retoricamente admissível a anexação do Oriente pelo Ocidente.
Esse projeto representacional era parte de todo um dicionário de definições
estratégicas nas quais os monstra facilmente se transformavam em
significações do feminino e hipermasculino (DONALD e SILVA, 2000, p.
33).
O colonizador utilizava-se de “uma forma de governamentabilidade que, ao delimitar
uma “nação sujeita”, apropria, dirige e domina suas várias esferas de atividade” (BHABHA,
2007, p.111). Bhabha (2007), sobre o projeto de domínio colonial-orientalista do Ocidente,
coloca a educação como “parte de uma das mais refinadas tecnologias do poder colonial”
(BHABHA, 2007, p.154). Para tanto ele remete à Church Missionary Society que, em 1818,
“pôs em vigor o Plano Burdwan, um plano central de educação para o ensino da língua
inglesa” (BHABHA, 2007, p.154). Tal plano possuía como objetivo, antecipando a minuta
sobre a educação de Thomas Macaulay, “formar um grupo de trabalhadores bem instruídos,
competentes no domínio do inglês, para atuar como Professores, Tradutores, e Compiladores
de obras úteis para as massas do povo” (MACAULEY in BHABHA, 2007, p. 154).
O discurso foi, portanto fundamental no projeto colonizador ocidental, utilizado como
arma para apoderamento da colônia. Pela criação de um discurso que ignorava o signo oriental,
fazendo-o com que representasse a degeneração do signo iluminista ocidental, percebe-se que o
oriental fora primeiramente compreendido pelo ocidental de forma superficial. Posteriormente,
ele fora colonizado sob o signo ocidental que negava uma organicidade oriental tomada pela
diferença negativa simbólica de colonizador e colonizado
Esses objetivos da missão civilizatória, endossados na “idéia” do
imperialismo britânico e encenados nas partes vermelhas do mapa, falam
com uma autoridade peculiarmente inglesa derivada da prática costumeira
em que se baseiam tanto a lei comum inglesa quanto a língua nacional
inglesa para sua eficácia e encanto” (BARREL in BHABHA, 2007, p.155).
48
O discurso orientalista serviu assim como base para a prática colonialista já que ele
fazia com que o colonizado fosse tratado de forma comparativa com o europeu como um
inapto. O colonizado era a síntese de uma negatividade estereotípica que era considerada como
verdadeira pelo europeu. Em Os versos satânicos pode-se perceber a força deste discurso
através da trajetória de Saladin Chamchawala, pois, mesmo após independência da Índia, ele
negava seu povo utilizando-se do mesmo imaginário orientalista de outrora.
2.2 Salahudin Chamchawala: identidade fraturada
A primeira parte de Os versos satânicos, até as metamorfoses de Chamcha e Farishta,
pode ser pensada através da construção do retrato mítico do colonizado, termo cunhado por
Albert Memmi em Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador publicado pela
primeira vez em 1957. O retrato mítico do colonizado consiste na idéia de que “assim como a
burguesia propõe uma imagem do proletariado, a existência do colonizador reclama e impõe
uma imagem ao colonizado” (MEMMI, 1977, p.77). Estes retratos míticos funcionavam a
partir de uma lógica de desvalorização do colonizado para que servissem de “álibis sem os
quais a conduta do colonizador e a do burguês, suas próprias existências, pareceriam
escandalosas” (MEMMI, 1977, p.77). Esta era um prática economicamente proveitosa para o
colonizador, pois este ao indicar tal credibilidade oferece proteção. A proteção dá ao
colonizador o controle político da colônia, defendendo assim o colonizado dele mesmo. Desta
maneira, o colonizado trabalhava para sujeitos que o desvalorizavam para conseguir migalhas
de coerência, sendo a própria existência do colonizado incoerente.
Alguns dos adjetivos utilizados pelo colonizador que criam o chamado retrato mítico do
colonizado, mencionados por Memmi (1977) são: bruto, não civilizado, pueril, preguiçoso,
frugal, pusilânime, retardado perverso, ladrão, débil, desumano, irresponsável, ingrato, entre
outros. Através destes adjetivos pode-se perceber que o colonizador não queria compreender o
colonizado, ele já fora delimitado, estereotipado, mitificado pelo colonizador. Mitificado
porque estes termos são construções sem fundamentação científica. “O que é verdadeiramente
o colonizado importa pouco ao colonizador. Longe de querer apreender o colonizado na sua
realidade, preocupa-se em submetê-lo a essa indispensável transformação” (MEMMI, 1977,
p.80). A transformação citada acima refere-se à recusa da humanidade do colonizado para que
49
ele a busque no colonizador, sendo que esta jamais seria alcançada pela produtividade de seu
retrato mítico: “O colonizado não dispõe de saída alguma para deixar seu estado de
inferioridade: nem jurídica (a naturalização), nem mística (a conversão religiosa): o colonizado
não é livre para escolher se é ou não colonizado” (MEMMI, 1977, p. 82). O colonizado não é
livre, ele em vão busca uma igualdade com o colonizador, o que faz com que se torne uma
caricatura: “Um colonizado dirigindo um automóvel, é um espetáculo ao qual o colonizador se
nega a habituar-se; nega-lhe toda normalidade, como a uma pantomina simiesca” (MEMMI,
1977, p.82).
Para Fanon
O mundo colonial é um mundo compartimentado. Talvez seja supérfluo, no
plano da descrição, lembrar a existência de cidades indígenas e de cidades
européias, de escolas para indígenas e escolas para europeus, assim como é
supérfluo lembrar o apartheid na África do Sul (FANON, 2002, p.54).
Tal compartimentalização, ou divisão entre colonizado e colonizador, era uma divisão
entre humanos que teriam diferentes papéis na sociedade. Seus papéis eram mantidos tendo
como base a nacionalidade e amplificados pelo fator epidérmico já que a diferença de pele é
um marcador facilmente perceptível. Quando buscavam a comunicação, ambos poderiam fazêlo através de um interlocutor, o policial ou o soldado “mantém o contato e os aconselham com
coronhadas ou napalm para que fique quieto” (FANON, 2002, p.54).
A divisão entre colonizado e colonizador se dava como base de todo o processo
colonizador. A cidade do colonizador era organizada, limpa, sólida, toda pedra e ferro
(FANON, 2002). Ela em nada lembrava a desordem da cidade do colonizado,
um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Ali nasce-se em
qualquer lugar, de qualquer maneira. Morre-se em qualquer lugar, de
qualquer coisa. É um mundo sem intervalos, os homens se apertam uns
contra os outros, as cabanas umas contra as outras. A cidade do colonizado é
uma cidade faminta, esfomeada de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de
luz. A cidade do colonizado é uma cidade agachada, uma cidade de joelhos,
uma cidade prostrada. É uma cidade de pretos, de “turcos” (FANON, 2002,
p.56).
A partir da descrição da cidade colonial de Fanon (2002), pode-se pensar novamente na
utilização da metáfora de “puro” e “impuro” em Os versos satânicos (2006), Saladin, e
Gibreel, os dois protagonistas ao longo do romance contrapõem o “puro” e o “impuro”
50
(híbrido). Gibreel inicialmente sintetiza o impuro, como aquele que aceita representar diversos
deuses de uma religião que não é a sua,17, acolhendo assim o caráter múltiplo e caótico da
Índia. Chamcha, ao contrário, representa o “puro”, aquele que não aceita as diversas expressões
culturais da Índia e somente vê positividade naquilo que é inglês.
No período da colonização, a cidade colonial torna-se lugar de encontro de duas
realidades distintas, uma cidade de brancos e estrangeiros, firme, organizada, pura, e uma
cidade de negros e “turcos”, sem intervalos, impura aos olhos colonizadores. A busca de
Saladin por pureza, ou por Englishness mostra-se um resquício do tempo colonial, pois
segundo Fanon (2002) o colonizado é um invejoso com sonhos de posse, de deitar com a
esposa do colono ou de sentar-se a sua mesa:
O colonizado é um invejoso. O colono não ignora isso e, surpreendendo seu
olhar vago, constata amargamente e sempre em alerta: “Eles querem nosso
lugar.” É verdade, não há um colonizado que não sonhe, ao menos um dia
sentar à mesa do colono (FANON, 2002, p.56).
Em Os versos satânicos (2006) é narrada uma Índia pós-colonial, que ainda sofre
influência do poder colonial Inglês. Saladin é um indiano que tem o desejo de esquecer suas
raízes e tornar-se um inglês. O desejo pós-colonial de tornar-se o colonizador, ou de
Englishness como signo do puro será aqui aprofundado através do jovem Salahudin
Chamchawala que tornar-se-ia Saladin Chamcha. Esta mudança de nome funcionaria como
uma suposta mudança de identidade para Saladin, de indiano para inglês.
A identidade do imigrante pós-colonial não é encontrada nos mesmos lugares do
homem branco, por uma transgressão no quadro de sua referência; o processo mímico e
fetichisador na autoconstrução do colonizado reflete-se no tempo pós-colonial. Segundo Hall
(2003), o termo colonial indica uma ligação direta entre colonizado e colonizador, enquanto o
termo pós-colonial indica uma independência desse controle. Tal independência, contudo, não
é plena, pois como discutido anteriormente neste trabalho, não se pode pensar no período póscolonial sem pensar na influência cultural do antigo colonizador. Sendo assim, cria-se uma
espécie de dependência neocolonial, já que o colonizado sobrevive através de seus efeitos
secundários, com a continuação e perpetuação do retrato mítico do colonizado.
17
O islã é monoteísta.
51
Salahuddin Chamchawala é um Indiano de Bombaim que aos treze anos migra para
Londres, Inglaterra. Filho de Changez Chamchawala, um rico homem de negócios do ramo de
produtos químicos e fertilizantes. Salahuddin Chamchawala, mesmo antes de sua imigração,
passa por um processo de negação de sua terra. Acredita-se aqui que este processo reação
típica do colonizado tal qual caracterizado por Fanon (1994). Ainda na Índia, ao encontrar no
chão uma carteira repleta de libras esterlinas, ele percebe que poderia existir uma válvula de
escape para sua vida, despertando nele uma possibilidade de saída da sua infeliz realidade
indiana. Esta carteira foi tomada de Salahuddin por seu pai, mas a conexão com a Inglaterra
que o dinheiro estrangeiro havia trazido não. Ele via Bombaim com as lentes do colonizador,
de forma comparativa com o Ocidente, o que nele gerava grande frustração. Ele sonhava com a
Inglaterra como síntese de positividade sobre “aquela Bombaim de poeira, vulgaridade,
policiais de calças curtas, travestis, revistas cinematográficas, de gente dormindo nas calçadas
e das faladas prostitutas cantoras da Grant Road” (RUSHDIE, 2006, p.43). Assim, o encontro
da carteira com o dinheiro estrangeiro e a conseqüente abertura de novos mundos teve o efeito
em Chamchawala de despertar
[...] um fenômeno psicológico que consiste em acreditar em uma abertura de
um mundo na medida em que não existem fronteiras.
O Negro18 prisioneiro em sua ilha, perdido em um ambiente sem a mínima
perspectiva, sente, como um arejamento este apelo pela Europa” (FANON,
1984, p.20).
O indiano não é um negro, mas no processo colonial na propagação de uma imagem
subalterna pelo colonizador não existem privilégios significativos do indiano sobre o negro à
ordem superior, que é a do colonizador. O que se pode perceber é uma hierarquia interna entre
os colonizados. Em Os versos satânicos (2006), Saladin acreditava ser superior ao indiano
comum por repetir mais fielmente a figura imaginária do colonizador inglês. Por outro lado,
por sua busca de representação da Englishness à perfeição, ele indicava seu sentimento de
inferioridade perante o inglês. Outra ilustração possível sobre o mesmo processo pode ser
18
Sir James Martin em (1861) The Influence of Tropical Climates on European Constitutions observa que
enquanto as pessoas da Índia podem ser “de origem Caucasiana”, sua exposição “durante gerações incontáveis à
mesma sucessão de influências externas de temperatura alta e hábitos correspondentes de vida e dieta' os fez
diferente moralmente e fisicamente, de europeus”. Estas causas gerais contribuem para uma excitabilidade do
sistema nervoso aumentando a fraqueza e relaxamento do sistema muscular quando comparados a europeus
(Martin, 1861:415 in Ching-Liang Low , 1996, p.28.). Tradução nossa do inglês.
52
percebida através de os mímicos (2001) do Nobel de literatura V.S Naipaul. Neste romance, o
indiano sentia-se superior ao negro na colônia de Isabella o que, contudo, não mudava nas
relações de colonizado e colonizador, já que ambos faziam parte do grupo colonizado. Fanon
(1984) também traça tal relação mesmo entre os negros, quando diz que o antilhano é tomado
pelo senegalês, pensando o antilhano ser mais “evoluído” que o outro, mais africano logo mais
distante do branco.
“A mutação de Salahuddin Chamchawala em Saladin Chamcha começou, como
veremos, na velha Bomabim, muito antes de ele chegar sequer perto de escutar rugirem os
leões de Trafalgar” (RUSHDIE, 2006, p.44). Através desta afirmação pode-se constatar que,
ainda na Índia, Saladin havia iniciado um processo de negação de sua terra natal, desde criança
tudo o que aprendera fora sobre um outro povo, o inglês. Para Memmi a herança cultural de um
povo se dá pela educação, pelas tradições, hábitos, conquistas, assim como pela língua, logo,
sua inscrição na história. Porém, na colônia a maior parte das crianças não possuem acesso à
escola e as que possuem não lhes é ensinada a sua história; elas reconhecem os heróis, os fatos
históricos do colonizador, já o local logo cai no esquecimento. Suas festas, sua bandeira, seus
feriados são os do colonizador, os exércitos que lá desfilam também, os nomes das ruas, as
estátuas; o colonizado não faz senão evitar seu passado. Boehmer (1995) comentando sobre a
alienação do colonizado através de Ngugui wa Thiong diz que as crianças da colônia por
conhecerem Dickens podem se sentir mais confiantes em descrever a neblina de Londres que
seu próprio clima; mas ao mesmo tempo o clima londrino para eles era desconhecido.
Chamcha buscava na Índia a continuação da lógica colonial do vencedor-colonizador.
Num jogo de críquete entre Índia e Inglaterra Chamcha torcia copiosamente pela Inglaterra
“para que fosse mantida a ordem natural das coisas” (RUSHDIE, 2006, p.44). Tal ordem seria
a de que “o colonizador possui de nascença uma qualidade independente de seus méritos
pessoais da sua classe objetiva” (FANON, 1984, p.122).
Fanon (1984) discorre sobre a relação de poder e desejo entre colonizador e colonizado
iniciada na infância através de histórias do explorador. Para ele o imaginário que estas histórias
criam na criança colonizada faz com que exista uma relação direta entre positividade e o
colonizador. Com exploradores de doze anos, Mickey Mouse e Tarzan cria-se nas crianças
brancas e negras um imaginário que reforça os objetivos colonialistas; Fanon (1984) percebe
uma relação direta criada pelos desenhos animados filmes e revistas em quadrinhos entre a
53
maldade, o negro e o índio. Como há uma identificação direta da criança com o vencedor, a
criança negra se torna exploradora e nega seu próprio povo, assim como é reforçada a
diferença negativa na criança branca em relação à negra. O branco traz a verdade aos selvagens
e em se ver como colonizador ele atribui toda esta agressividade a um herói branco, assim a
criança negra passa a se ver como branca.
A recusa de Saladin à Índia aumentou ainda mais quando foi explorar as pedras de
Scandal Point e encontrou lá, no oco de uma pedra, um velho que o chamou. Quando desceu,
ele foi obrigado a tocar as partes íntimas do velho, Salahuddin que “nunca soubera lutar; fez o
que foi forçado a fazer, e depois o outro simplesmente virou as costas e deixou que se
afastasse” (RUSHDIE, 2006 p.45). Tudo o que era repugnante era materializado em sua cidade
natal e fazia sua vontade de migração ainda maior. Logo após este fato os sonhos de
Salahuddin são atendidos; seu pai Changes propõe que vá estudar na Inglaterra. Ao
aterrissarem em Londres a carteira encontrada por Salahuddin lhe é devolvida por seu pai, que
lhe acompanhara na viagem. Este fato configura um novo começo na vida de Salahuddin, um
grito de independência “a determinação de se tornar aquilo que seu pai não-era-nem-jamaisseria, ou seja, o próprio inglês dos pésàcabeça” (RUSHDIE, 2006, p.49). Como no recurso
literário utilizado pelo autor, a hifenização, termo linguisticamente neutro e politicamente
correto, taquigrafia para multiculturalismo, Salahuddin sairia então do caos hifenizado da Índia
para uma unidade compreensível inglesa ou Englishness.
Salahuddin decidira ser inglês, “mesmo que os colegas de sala rissem de sua voz e o
deixassem fora de seus segredos, porque essas exclusões só aumentavam sua determinação, e
foi então que começou a atuar” (RUSHDIE, 2006, p.49). A atuação é segundo a psicanálise
uma forma de agressão a si próprio ou a outrem,
Salahuddin
começava a encontrar máscaras pálidas, máscaras de palhaço, até a ponto de
acharem que era o.k., que era gente como nós. Ele os enganou da mesma
maneira que um ser humano sensível é capaz de convencer gorilas a aceitá-lo
como parte da família, recebendo agrados e carinhos e bananas dadas na
boca” (RUSHDIE, 2006, p.51).
O uso das “máscaras pálidas” por Salahuddin, consistia num ato de agressão a si, num
ato de dissimulação que, segundo Said (2003), é cansativo e desgastante. Salahuddin, todavia,
54
buscava a conquista da Inglaterra, não de forma afirmativa, mas como invisibilidade de tornarse inglês e desaparecer com aquela identidade indiana que considerava “suja” em meio à
Englishness, “A questão não é ser negro, mas sê-lo diante do Branco” (FANON, 1984, p.92).
Com esta afirmação Fanon retrata como se inseriu o processo colonial na colônia; foi imposta
ao colonizado uma lógica até então desconhecida, e abolidos seus costumes distintos do
colonizador.
O olhar do colonizado se voltava ao colonizador como forma de reconhecimento
mimético. “No mundo branco o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu
esquema corporal” (FANON, 1984, p.92), o que lhe tolhe a liberdade, pois deve pagar contas
ao colonizador, e assim Fanon responde com uma encenação de auto-imagens: “Então
desorientado, incapaz de ser livre com o outro, o Branco, que impiedosamente, me aprisionava,
eu distanciei de meu ser, para bem longe, tornando-me um objeto” (FANON, 1984, p. 93). Ao
ser aceito pelo grupo, ou nele fazer uma tentativa de desaparecimento, Salahuddin representa o
que Fanon (1984) chama de abandono neurótico. Ele é aceito como um estudante, logo pode
ser “um de nós” na comunidade inglesa; esta ambivalência entre ser e não ser, segundo Bhabha
(2007) reforça o fato de ele ser o mesmo. Salahuddin é igual ao outro em sua diferença, o que
faz qualquer tentativa de assimilação completa impossível.
Bhabha (2007) retrata a mímica como uma das estratégias mais ardilosas do poder e do
saber colonial. Segundo ele, a mímica se apropria do outro ao visualizar o poder. Bhabha
(2007), desta forma, cria uma relação direta entre o poder colonial que desejado pelo
colonizado se reverte num processo contínuo de atuação. A mímica é um processo de recusa:
Salahuddin se recusa continuar a ser indiano, logo imita o colonizador; este ato, contudo
somente reafirma a existência de uma diferença, a consumação do poder colonial sobre o
colonizado.
Cinco anos após sua chegada à Inglaterra, agora aos 18 anos, Salahuddin retorna à Índia
e o processo de negação à sua terra natal não só continua, mas se intensifica como relatado por
sua mãe:
“tudo ele critica muito-muito, os ventiladores estão mal presos no teto, vão
cair e degolar a cabeça da gente que está dormindo, ele diz, e a comida
engorda muito, por que não fazemos alguma coisa sem fritar, ele quer saber,
as sacadas do andar de cima são inseguras e a tinta está descascando”
(RUSHDIE, 2006, p.50).
55
A negação de sua casa por Salahuddin afeta seu pai que ralha: “que ele se foi para o
estrangeiro para aprender a desprezar sua própria gente, sua própria gente só pode se sentir
desprezada por ele, o que ele é? Um pequeno lorde, um grande panjadrum19?” (RUSHDIE,
2006, p.51). A relação de Salahuddin com seu pai se degringolava, ele retornou à Inglaterra e
seus contatos com seu pai, de cartas esporádicas, se tornava nenhum. Salahuddin assim
reforçava a lógica da amnésia cultural pela negação de um passado relativo ao colonizado
descrita por Memmi: “O colonizador jamais o conheceu; e todo mundo sabe que o plebeu, do
qual ignoramos as origens, não o tem” (MEMMI, 1977 p.94). Memmi (1977) questiona um
passado que inexiste após o fato colonial, assim como o passado na Índia para Chamcha não
existia: “O país não possui sábios, ou líderes populares, suas instituições estão mortas ou
esclerosadas, pois mostram grande ineficácia então o que resta ao colonizado é se envergonhar
de suas instituições como monumentos antiquados” (MEMMI, 1977, p. 94).
No citado retorno de Salahuddin à Índia, ele percebia tais relações de inferioridade por
comparação, pelo seu deslumbramento, uma busca de inserção na Inglaterra e conseqüente
alienação de seu ser. Assim “o objetivo de sua ação será encontrada no Outro (sob a forma de
branco), pois só o Outro pode valorizá-lo. Isso no plano ético: valorização de si mesmo”
(FANON, 1984, p.128). Bhabha, sobre as formas de alienação psíquica, social, a loucura, o
ódio e traição a si mesmo, conclui:
Nunca podem ser reconhecidas como condições definidas e constitutivas da
autoridade civil, ou como efeitos ambivalentes do próprio instinto social. Elas
são presenças estrangeiras, oclusões do processo histórico, a forma extrema
de percepção equivocada do homem” (BHABHA, 2007, p.74).
Bhabha assim traça uma relação direta entre os fenômenos supracitados e a inserção do
colonizador como quebra de uma narrativa histórica. A alienação colonial é um processo
global na colônia que se dá por uma cisão cultural pelo estrangeiro, maior é o contato com o
global ou estrangeiro, maior o ódio e a traição a si mesmo. Fanon retrata a alienação intelectual
como criação da sociedade burguesa que se “esclerosa em formas determinadas, proibindo
qualquer evolução, qualquer progresso, qualquer descoberta” (FANON, 1984, p.184).
19
A expressão completa “grande panjandrum” significa convencido, pomposo.
56
A partir da lógica sobre burguesia e alienação citada por Fanon (1984), maior o acesso,
maior a alienação já que o desejo é estimulado pelo capital. Por causa da situação colonial, pela
imersão do colonizado em um espaço que é ao mesmo tempo seu e outro, tais relações
mostram-se violentas na negociação das identidades, as escolhas assim têm um outro caráter, a
mímica. Salahuddin, membro da elite indiana e com um imaginário “exterior”, repetia a lógica
do colonizador, que pelo poder amalgamado nas diversas camadas da colônia reproduzia a
Englishness; a caricatura da lógica do colonizador e consequentemente a negação de si do
colonizado.
O agora Saladin Chamcha20 conhecera Pamela Lovelace na Inglaterra no início dos
anos sessenta e depois de dois anos de esforço conseguira desposá-la. Ele “ficou perplexo com
a própria perseverança, e entendeu que ela tinha se transformado na dona de seu destino, que,
se ela não cedesse, todo seu empenho de metamorfose teria falhado” (Rushdie, 2006, p.55). A
vontade em se tornar o que não é necessita de uma afirmação positiva do nativo da metrópole.
O julgamento logo se faz a partir do ponto de vista do colonizador. Suas vitórias são
diretamente conectadas ao esforço de mímica, como obtenção de uma linguagem que seja a
mais próxima possível da usada na metrópole.
Ele desposara Pamela, mas jamais conseguira compreender realmente seus
pensamentos. “Ele precisava tanto dela para garantir sua própria existência, que jamais
compreendeu o desespero daquele sorriso branco, brilhante e permanente” (RUSHDIE, 2006,
p.55). “Chamcha não estava apaixonado por ela, mas por aquela voz que fedia a Yorkshire
Pudding e nós de carvalho, aquela voz cheia e saudável da velha Inglaterra de sonhos que ele
desesperadamente desejava habitar” (RUSHDIE, 2006, p.176). Pamela possuía uma voz
bastante única, “era uma voz composta de tweeds, lenços de cabeça, summer puddings, bastões
de hóquei, casas cobertas de sapé, sabão para cela, hóspedes no fim de semana, freiras, cabines
familiares privadas na igreja, cachorros grandes e grosserias”(RUSHDIE, 2006, p.176). O fato
de não estar apaixonado por ela, mas por uma representação, mostra que nesse momento
Chamcha não consegue se ver livre das determinações exteriores, e por não ser um inglês
20
O sobrenome Chamcha, outrora Chamchawala segundo Brians (2004) possui um importante papel para a
compreensão do personagem. Primeiramente porque combina Saladin, o grande herói mulçumano das cruzadas, e
a palavra Chamcha, que significa vendedor de colheres em Hindi, assim como bajulador coloquialmente. Sua
mudança de nome enquanto na Inglaterra, representava a fuga de sua identidade indiana, um nome que seria mais
fácil e menos étnico para os ingleses, o seu significado como bajulador vai ao encontro de todo seu esforço em se
tornar um Inglês.
57
branco tampouco consegue transformá-las em autodeterminação. Segundo o psicólogo social
Ciampa (1995), nesse quadro o resultado é não se pensar no outro, assim como Chamcha não
pensa em Pamela; a libido de Chamcha se retém na construção mímica de sua identidade e na
impossibilidade de sucesso, logo não é investida em outras pessoas. Assim como no estudo de
caso de Ciampa sobre Severina: “eu não pensava nas conseqüências que poderiam acontecer
(...) eu nunca imaginava o bem-estar do ser humano, do outro” (Ciampa, 1995, p.144).
Chamcha amava uma representação, uma fuga de seu sentimento de inferioridade colonial
muito mais que sua esposa, que nunca realmente conhecera.
O casamento inter-racial é um dos maiores exemplos de como funciona a busca por
uma identidade que é estrangeira na colônia. Fanon (1984) trata o casamento inter-racial como
uma fuga das raízes, ou uma fuga do ser negro, a criação de um personagem anômalo. Um
negro casado com uma branca é para ele a prova de uma dignidade branca, em que o negro
abraça a cultura do outro, a beleza branca. Marán em seu personagem Jean Veneuse, um negro
de origem antilhana radicado em Bodeaux, relata que o europeu não satisfeito em ignorar o
negro de suas colônias, também os desconhece, mesmo sendo eles formados à sua própria
imagem (R.MARAN, in FANON, 1984, p.60). “Através desse casamento, essas pessoas têm
acesso a uma completa igualdade com esta raça ilustre, dona do mundo, dominadora dos povos
de cor” (L.T. ACHILLE, Rythmes du Monde, 1949, p.113. in FANON, 1984, p.62).
Você age como agimos, como agiríamos. Você se julga negro? Pensam que
você é negro? É falso! De negro você só tem a aparência. No mais pensa
como um europeu. E nada mais natural que você ame como o europeu. Como
o europeu ama a européia, você só pode se casar com uma mulher do país
que você sempre viveu, originaria da França, seu verdadeiro e único país (...)
casamento de inter-racial, uma espécie de confirmação subjetiva da
eliminação de si mesmo, do preconceito de cor, do qual tanto sofreu
(FANON, 1984, p.59,60).
Um imaginário europeu existente no negro também aparece para Memmi no casamento
inter-racial:
A mulher loura, seja insípida e de traços banais, parece superior a toda
morena. Um produto fabricado pelo colonizador, uma palavra dada por ele,
são recebidos com confiança. Seus hábitos, suas roupas, seus alimentos sua
arquitetura, são rigorosamente copiados, mesmo sendo inadequados. O
casamento misto é o termo extremo desse impulso nos mais audaciosos
(MEMMI, 1983, p.107).
58
Saladin Chamcha, ao se apaixonar por Pamela Lovelace mostra que sua auto-afirmação
depende do outro, ou nesse caso de uma mulher branca. Assim como o negro colonial, o
imigrante pós-colonial se forma de acordo com a imagem do outrora colonizador e agora local
no país recebedor. Pamela também possuía razões para se casar com Chamcha que iam além
do simples amor. Seu pai era um intelectual estudioso dos clássicos de quem herdara a voz, e
durante a segunda guerra mundial havia sido um piloto de aviões lentos “em que os próprios
sinalizadores só clareavam para os bombardeiros” (RUSHDIE, 2006, p.177). Ao voltar da
guerra, seu dinheiro acabara, e então começou a gastar o da sua esposa, com os dois falidos,
eles se jogaram do topo do alto do edifício em que moravam. Pamela assim iniciou um
processo de negação para recuperar a si mesma, rejeitando tudo o que era deles, “e como não
podia se livrar da própria voz, fez com que esta voz externasse idéias que seus conservadores
pais suicidas teriam repudiado. Casou-se com um indiano” (RUSHDIE, 2006, p.177). Pamela
casara-se com Chamcha também para negar sua história, pelo fato de não perdoar a morte dos
pais conservadores fizera o ato de rebeldia extremo de se casar com um indiano.
Pela forma como se deram as colonizações, pelo sucateamento de diversas instituições e
consequentemente a criação de novos signos, o desejo de tomar o lugar do colonizador era uma
realidade na colônia. Como já dito anteriormente, no período pós-colonial com a
independência destes países, a mímica e o desejo de ser diferente do que se é continuou, como
pode ser visto na relação feita entre o desejo do colonizado no período colonial com Fanon e
Memmi e pós-colonial em Os versos satânicos.
2.3 A psicossomatização: a doença em Saladin Chamcha
Fanon diz: “Sou sobredeterminado do exterior. Não sou escravo da “idéia” que os
outros têm de mim, mas da minha aparência” (FANON, 1984, p.96). O colonizado é assim
impossibilitado de uma ação positiva que não remeta à dissimulação, ou à ocultação de
intenções e sentimentos, pois não consegue desconectar seu retrato mítico de sua cor de pele. A
59
dissimulação, contudo, não é um ato consciente, pois para o colonizado, principalmente no
período pós-colonial, os moradores das ex-colônias ou imigrantes percebem-se através de um
imaginário importado. O resultado é a negação e repetição inconsciente ou uma constelação do
delírio, tanto o negro quanto o branco pela relação de inferioridade do primeiro com a suposta
superioridade do segundo possuem um comportamento neurótico (FANON, 1984). A neurose
por se expressar simbolicamente como conflito originado na infância, cria soluções de
compromisso entre o desejo e as defesas. Assim, uma das formas da neurose se expressar é
através da psicossomatização21 dos problemas de ordem identitária em náusea. Chamcha
desejava a Englishness, mas no momento em que ela era questionada como positividade ele
sentia-se doente, somatizando assim através da doença a neurose pós-colonial.
A busca por uma pureza, a do colonizador ocidental Englishness, em Chamcha
reproduz uma realidade discutida por Fanon (1983), de que a “civilização branca e a cultura
européia impuseram ao Negro um desvio existencial” (FANON, 2003, p.14). Na crítica de
Baudrillard (1998) do Narciso Moderno de Burk Uzzle-Magnum, que mostra Narciso a se ver
não num espelho de água, mas numa chapa de bronze, faz-se uma crítica à sociedade
consumista. Pela visão de uma auto-imagem disforme, Baudrillard relata que a imagem ideal,
aquela que se busca ser refletida não é o sujeito quem constrói, mas o outro, a reflexão desta
imagem. A colonização obrigara o negro a reproduzir papéis, a se ver através unicamente de
uma chapa de bronze, ele nunca poderia refletir uma imagem branca através da sua, mas
sempre a buscava. A metáfora da imagem do colonizado refletida em chapa de bronze visa
mostrar a impossibilidade da reflexão buscada pelo colonizado aos olhos do colonizador, que
pelo retrato mítico do colonizado reflete uma imagem sempre disforme:
As formas de alienação e agressão psíquica e social – a loucura o ódio a si
mesmo, a traição a violência - nunca podem ser reconhecidas como condições
definidas e constitutivas da autoridade civil, ou como efeitos ambivalentes do
próprio instinto social. Elas são sempre explicadas como presenças
estrangeiras, oclusões do progresso histórico, a forma extrema da percepção
equivocada do Homem (BHABHA, 2007, p.74).
21
transformação de conflitos psíquicos em afecções de órgãos ou em problemas psicossomáticos. Dicionário
eletrônico Houaiss 2007.
60
Chamcha buscava uma perfeição na reprodução do imaginário orientalista-colonizador.
O fetiche é para Bhabha (2007) a forma que tais relações de repetição se davam pela
necessidade de normalizar a diferença entre branco e negro. Desta maneira, o fetichismo
funcionava pela relação de ausência e presença existentes na relação colonizado/colonizador
que o primeiro possui o falo, enquanto o segundo não, sendo estas representadas pela metáfora
e a metonímia: “Dentro do discurso, o fetiche representa só jogo entre a metáfora como
substituição (mascarando a ausência e a diferença) e a metonímia (que registra contiguamente a
falta recebida)” (BHABHA, 2007, p.116).
Bhabha, ao comentar a presença do pênis no colonizador e sua ausência no colonizado,
se retém à questão epidérmica. Esta questão pode ser ainda mais enriquecida através de Said
(2007) em O Orientalismo, quando ele comenta que o discurso orientalista fixara o Oriente
como a terra da fantasia e do feminino. Joan Scott (1988) alarguecendo ainda mais esta relação
entre o masculino e o feminino como representações do Ocidente e do Oriente diz: “os
dirigentes legitimam a dominação, a força, a autoridade central e o poder soberano
identificando-os ao masculino, enquanto o inimigo, a subversão e a fraqueza são identificados
ao feminino” (SCOTT, 1998, p.37,38). O discurso orientalista do colonizador ou de dominação
realizava no colonizado a lógica do fetichismo de Bhabha (2007) a partir da presença
metafórica e metonímica. A impressão do pênis do colonizador e sua ausência no colonizado, o
masculino colonizador e o feminino colonizado. A ansiedade causada pela articulação entre a
presença, a ausência e a recusa da diferença são temas centrais no “jogo” da alteridade póscolonial como pode ser percebida na relação de Chamcha à “mãe” Índia.
Chamcha era possivelmente um ansioso, o que segundo Fanon (1984) era uma
característica comum do colonizado. Ao negar sua terra natal, a Índia, ele buscava a
representação fálica do colonizador, como sendo o inglês aquele que possui pênis. A ansiedade
de Chamcha pode ser bem percebida em sua visita ao seu pai na Índia e em todas as vezes que
ele sentia que havia sido enganado sobre a perfeição da Englishness. Sempre que o excesso
indiano e a multiplicidade questionava sua visão dualística da Índia como negatividade e a
Inglaterra como positividade ele era tomado pela náusea, sendo este fato uma somatização de
sua inconsistência de unidade do eu22, alguém que vivia numa mentira.
22
A vivência radical de cisão do eu só existe, segundo Jaspers, quando ambas as séries de processos anímicos
desenvolvem-se de forma absolutamente simultânea, uma ao lado da outra. De ambos os lados existem conjuntos
61
Após a briga com seu pai na Índia, sua falta de diálogo com o mesmo, principalmente
após a morte de sua mãe que aconteceu um ano após sua visita à Índia aos dezoito anos,
Chamcha não mais comunicara com seu pai. Dez anos assim se passaram desde aquela última
visita. Na Inglaterra ele casara-se com Pamela sua “mulher troféu”, e tornara-se uma das vozes
mais famosas de toda a Inglaterra como dublê de voz de desenhos animados e comerciais de
pastas de dentes. O homem das “Mil e Uma Vozes”23 ( RUSHDIE, 2006, p.65).
Se você queria saber como o seu vidro de ketchup tinha de falar no comercial
de televisão, se estava inseguro quanto à voz ideal para o seu pacote de
batatas fritas com sabor de alho, ele era o homem que você precisava. Fazia
tapetes falarem em anúncios de casas de decoração, fazia imitações de
celebridades, feijões enlatados, ervilhas congeladas. No rádio podia
convencer os ouvintes que era russo, chinês, siciliano, presidente dos Estados
Unidos (RUSHDIE, 2006, p.65).
Após estes anos, uma vida construída na Inglaterra como dublê de vozes, casado com
uma inglesa branca, Chamcha retornara à Índia para fazer parte de uma peça teatral chamada A
Milionária em que fazia o papel de um indiano. Ele também queria visitar seu pai, que apesar
da inimizade já estava velho, e Chamcha percebia que esta seria provavelmente a última
oportunidade de vê-lo. Com Chamcha atuando como indiano em uma peça teatral, em
contrapartida à sua profissão de dublê de vozes na Inglaterra, percebe-se que mesmo em seu
“empenho de metamorfose”, Chamcha não conseguia “sair de seu papel” de indiano. Mesmo
como um reprodutor à perfeição da língua e cultura o fator epidérmico fazia com que
continuasse um indiano, independentemente de qualquer outra característica externa. Ele só
pode ser plenamente um inglês enquanto invisível como dublê de vozes. A partir do contato
visual com a diferença epidérmica inglês-indiano, branco-asiático, esvazia-se o sujeito inglês e
preenche-se o espaço do sujeito indiano:
de sentimentos que se opõem como estranhos. O indivíduo sente-se radicalmente dividido, sente-se anjo e
demônio ao mesmo tempo, ou homem e mulher simultaneamente. Corresponde ao que Bleuler denominava
ambivalência (Dalgarrondo, 2000, p.152).
23
Chamcha na tradução de Os Versos Satânicos (2006) para o português de Misael Dursan era o homem das “Mil
e Uma Vozes” (p.65), em contraste com a versão original do livro “the Man of a Thousand Voices and a Voice”
(p.60). Apesar do esforço do tradutor pela busca da expressão completa de sentido pela maiusculização do
numeral para enfatizá-lo em sua unicidade, não parece o tradutor ter conseguido dar o sentido buscado por
Rushdie. Este seria “o Homem das Mil Vozes e uma Voz”. O que dá a idéia do todo e da parte ao mesmo tempo,
Chamcha possui mil vozes e uma voz, trazendo assim um caráter de multiplicidade na unicidade não alcançado na
tradução.
62
Sou sobredeterminado do exterior. Não sou escravo da idéia que os outros
têm de mim, mas da minha aparência.
Chego lentamente no mundo, habituado a não mais pretender aparecer.
Arrastando-me, sigo o caminho. Já os olhares brancos, o únicos verdadeiros,
me dissecam. Sou fixado. Tendo ajustado seu micrótomo, realizam,
objetivamente, cortes da realidade. Sou traído. Sinto, vejo, nestes olhares
brancos, que não é um homem novo que surge, mas um novo tipo de homem,
um novo gênero. Um negro, hora pois! (FANON, 1983, p.96).
Zeenit uma amiga de infância de Chamcha após a primeira apresentação da peça A
Milionária invadira seu camarim para cumprimentá-lo. Em seguida ainda na Índia tornar-se-ia
sua amante, e “a primeira indiana com quem fez amor” (RUSHDIE, 2006, p.57). Zeeny, seu
apelido, era uma médica que havia ido ao Bhopal ajudar as vítimas de uma nuvem norteamericana que lá devorava os olhos e os pulmões das pessoas, sendo ela também crítica de
arte.
Sobre o trabalho médico de Zeeny no Bhopal, pode-se pensar no valor metafórico da
nuvem norte americana que se refere à tragédia de Bhopal que ocorreu na madrugada de 03 de
dezembro de 1984, quando 40 toneladas de gases tóxicos fatais, como o isocianato de metila e
o hidrocianeto, vazaram na fábrica de pesticidas da empresa norte-americana Union Carbide. A
nuvem norte-americana, ou do colonizador por sua inconsistência física devorava a todos,
assim como sua cultura que se espalhava por toda a Índia afetando a população em seus
arredores.
Zeeny fora responsável pela maioria dos ataques de náusea de Chamcha na Índia como
somatização de seu problema de identidade. Chamcha criara em seu imaginário uma
representação dicotômica entre Índia e Inglaterra. A Inglaterra como lugar do poder e pureza,
que por ele deveria ser alcançado, e a Índia como epítome de sujeira e confusão. Sua náusea
era retrato de uma quebra na fixidez imaginada entre ambos os países, logo uma quebra em
tudo o que acreditava da Englishness como síntese de perfeição e “pureza”, da Índia como
somente “suja” e de sua identidade como única e inglesa, mas que emergia do reconhecimento
63
do hibridismo 24. Segundo Hassumani (2002), Zeeny nesta frase acusa Chamcha de ter uma
“mentalidade de gueto”25
Eles pagam você para imitar eles mesmos, contanto que não tenham de olhar
para sua cara. Sua voz fica famosa, mas eles escondem sua cara. Faz alguma
idéia de por que? Verruga no nariz, vesgo, o que? Alguma coisa lhe vem à
mente, baby? Que cabeça de alface a nossa!” (RUSHDIE, 2006, p.65).
Hassumani diz que Chamcha deve divertir o inglês enquanto usa sua voz, mas ele deve
se manter mascarado ou invisível. Chamcha, contudo, não possui o desejo de “retornar” à Índia
(no sentido de aceitar uma identidade indiana), que lhe dera tanto trabalho para fugir. O ponto
de vista de Zeeny era compartilhado por Changez, o pai de Chamcha. Cresça! Diziam eles.
Referindo-se à negação de Chamcha às suas raízes e a tudo o que era indiano.
Sua própria atração por Zeeny, uma indiana, quebrava a lógica da pureza e beleza
apenas encontrada no signo estético inglês, e este fato muitas vezes refletia-se na náusea de
Chamcha. Sua perfeita pronúncia da língua inglesa, quando ele estava em contato com Zeeny,
deslizava: “ela escorregava baba, como um bigode falso” (RUSHDIE, 2006, p.58). Ao sair
para um bar com Zeeny e seus amigos e escutar uma acalorada discussão sobre o papel
estrangeiro na alienação indiana, Chamcha
agarrou seu copo como enquanto o barulho crescia, e o ar parecia estar
ficando mais espesso, dentes de ouro rebrilhando diante de seu rosto,
ombros roçando os seus, cotovelos abrindo espaço, o ar virando uma sopa e
em seu peito começaram palpitações irregulares. [...] Zeeny o observava, e
havia nos olhos dela algo mais que simpatia por seu estado. Um brilho
triunfante, duro. Alguma coisa conseguiu atingir você, dizia sua expressão.
Já estava na hora (RUSHDIE, 2006, p.61).
Zeeny contestava a positividade ocidental e a retratava como uma construção
colonialista a Chamcha. Chamcha consequentemente somatizava em náusea o fato de perceber
ter sido vítima de uma colonização, enganado pelo colonizador, sentia sua identidade dividida
em forma de náusea.
24
O hibridismo é o signo da produtividade do poder colonial, suas forças e fixações deslizantes; é o nome da
reversão estratégica do processo de dominação pela recusa (ou seja, a produção de identidades discriminatórias
que asseguram a identidade “pura” e original da autoridade) (BHABHA, 2007, p.162).
25
Guetto mentality.
64
Como crítica literária Zeeny publicara um livro sobre o aspecto restritivo do mito da
autenticidade, o que demonstra sua inquietação quanto às relações de pureza cultural que
acreditava Chamcha. Ela também demonstrava satisfação em perceber as reações que seus
questionamentos sobre a autenticidade despertavam nele, mesmo que somatizados. Zeeny
queria atingir Chamcha no âmago de sua construção identitária como inglês, e a náusea
causada era retrato de seu sucesso. Esta visão da Índia como positiva através do olhar de
Zeeny, percebendo-se ela vítima do colonizador, fazia com que Chamcha ficasse tonto, doente
apesar dele ainda não perceber direito as causas. A metamorfose fará com que Chamcha
questione o retrato mítico do colonizado (ao invés de apenas senti-lo e somatizá-lo) fazendo
com que ele consiga auto-afirmar-se.
65
CAPÍTULO 3
CELEBRAÇÃO DO IMPURO
Então de uma Mistura de todo tipo se
Fez Aquela Coisa Heterogênea, Um Inglês:
Em ansioso estupro e furiosa luxúria gerado
Entre um escocês e um bretão pintalgado:
Cuja prole fértil depressa aprendeu a se curvar,
E ao arado romano as suas novilhas subjugar:
De onde uma Raça híbrida Mestiça surgiu então,
Sem Fala nem fama, nem Nome ou Nação.
E agora Mesclas de saxão e Dinamarquês logo
Surgiram infundidas nas suas Veias de fogo.
Enquanto as suas Filhas de Escol, seguindo os Pais,
Com Promiscua Luxúria às Nações se davam sem mais.
Essa Raça Nauseante continha mesmo, sem hesitação,
O Sangue dos Ingleses de boa extração...
Daniel Dafoe
66
3.1 Metamorfoses: o renascimento de Saladin Chamcha
No capítulo anterior foi discutida a maneira com que Chamcha no período pós-colonial
reproduzia o retrato mítico do colonizado, quando a positividade era somente encontrada no
colonizador. Neste capítulo será discutido o papel subversivo da metamorfose na trajetória de
Saladin Chamchawala, quando este retrato mítico é questionado.
A desmistificação do colonizador através das metamorfoses em Os versos satânicos
(2006) ocorre de maneira a questionar a existência de uma pureza ou um pedigree cultural do
colonizador ou colonizado; sendo estes retratos mitos que não condizem com a realidade, uma
Inglaterra de sonhos fora criada. Esta desmistificação não é necessariamente restrita ao caso
específico do imigrante, mas de qualquer sujeito vítima de um discurso excludente por ser uma
minoria, pois a pureza não é encontrada nas construções culturais humanas não sendo nenhuma
cultura plena (BHABHA, 2007).
A metamorfose tem um papel fundamental em Os versos satânicos (2006), já que é a
partir dela que Saladin Chamcha e Gibreel Farishta iniciam um rompimento com suas antigas
identidades, no caso de Chamcha com os retratos míticos do colonizado e colonizador e no
caso de Gibreel da intolerância religiosa.
A história de assimilação de Chamcha já foi descrita anteriormente, ela se dava pelo
sucesso da agência colonizadora inglesa na Índia, pelo apoderamento do signo do colonizador,
e a performance na negação cultural da colônia (Índia) como positividade. A narrativa do outro
personagem principal Gibreel Farishta agora será descrita por ser inversa à de Chamcha, já que
ele ao contrário do segundo fora retratado pelo autor como alguém que sintetizava o signo do
hibrido, celebrando a diferença entre os mais diversos povos, uma imagem que com
mobilidade contrastava à mímica reproduzida por Chamcha. Após este momento será descrita a
metamorfose pós-acidente aéreo de ambos e como se deu o rompimento com a mímica colonial
em Chamcha, que é o personagem principal deste trabalho. O estudo do personagem Gibreel,
no entanto, é de fundamental importância, por ele ter uma trajetória inversa à de Chamcha;
pelo seu insucesso pós-metamorfose ele suicidou-se, ao contrário de Chamcha que encontrou a
plenitude de sua identidade.
Gibreel tinha nascido Ismail Najmuddin, em Poona, a Poona britânica no
extremo mais pobre do império, muito antes da Pune do Rajneesh etc. (Pune,
67
Vadodara, Mumbai; até mesmo cidades podem assumir nomes artísticos hoje
em dia.) Ismail em homenagem à criança personagem do sacrifício de
Ibrahim, e Najmudim, estrela da fé; ele renunciara tal nome quando assumiu
o do anjo (RUSHDIE, 2006, p.26).
Gibreel vinha de uma família pobre, e era o anjo, ou Farishta de sua mãe. Poona era
muito pequena para ele; e ainda criança fora levado à “cidade-puta” Bombaim. Lá ele era um
dabbawalla (entregador de almoços) seguindo os passos do pai na mesma profissão. Ele e o pai
eram extremamente produtivos em seu trabalho, a mãe de Gibreel era a ele muito devotada,
enquanto o pai parecia não se importar de a mulher só ter olhos para o filho. Naima Najmudim,
a mãe, morrera no mesmo ano em que se mudaram para Bombaim, atropelada por um ônibus, e
quando Gibreel tinha vinte anos de idade seu pai, Najmuddin, também morre:
O pobre coitado correu até se acabar” mas o órfão sabia que não era só isso.
Sabia que seu pai tinha corrido com tamanho empenho e por tanto tempo
para superar a fronteira entre os mundos, que ele saltara de dentro de sua pele
para os braços da esposa, a quem provava assim, definitivamente, a
superioridade de seu amor. Alguns migrantes ficam felizes de partir
(RUSHDIE, 2006, p.28).
Órfão, Gibreel fora acolhido por Babasaheb Mhatre secretário geral dos entregadores de
comida de Bombaim, e Mrs. Mhatre, sua esposa. Babasaheb era também um médium amador e
iniciara Gibreel “em toda essa história de reencarnação” (RUSHDIE, 2006, p.29). A fé
religiosa de Gibreel era, contudo “uma coisa discreta, uma parte dele que não exigia nenhuma
atenção. Quando o Babasaheb Mhatre levou-o para casa, o jovem sentiu confirmar-se o fato de
que não estava sozinho no mundo, que alguma coisa estava tomando conta dele” (RUSHDIE,
2006, p.31).
Gibreel tinha um sonho, o de ser ator de cinema, e o senhor Mahtre conseguiu para ele
um teste com Mr. D. W. Rama, legendário magnata do cinema: “Suma daqui agora, vá ser um
ator de cinema homossexual. Já despedi de você” (RUSHDIE, 2006, p.31), disse Mahtre a
Gibreel com força, mas carinhosamente. Assim ele se transformou em Gibreel Farishta, nome
que duplamente se refere à figura angelical, Gibreel em referência ao anjo Gabriel e Farishta,
que significa anjo em hindi “a escolha de seu pseudônimo tinha sido uma forma de
homenagear a memória da mãe” (RUSHDIE, 2006, p.26). Sua carreira fora estrondosa, ele
68
representava papéis teológicos das mais diversas religiões tendo se tornado o mais famoso ator
de toda a Índia:
Parte da magia de sua persona vinha do fato de ele conseguir cruzar
fronteiras religiosas sem nunca ofender. Com pele azul, fazendo Krishna, ele
dançava, de flauta na mão, entre as belas gopis e suas vacas de grandes tetas;
com as palmas para cima, sereno, ele meditava (como Gautama) [...] Durante
mais de uma década e meia ele representou, para centenas de milhões de
crentes nesse país em que, até hoje, a população humana supera a população
divina na proporção de menos três para um, a face mais aceitável e mais
instantaneamente reconhecível do Ser Supremo. Para muitos de seus fãs, a
fronteira que separava o intérprete de seus papéis há muito deixara de existir
(RUSHDIE, 2006, p.25).
Gibreel por sua fama e beleza conquistara diversas mulheres, mesmo com um hálito
que cheirava a enxofre. Dentre elas se destaca Alleluia Cone uma escaladora inglesa, e “branca
como gelo”, com uma personalidade gélida. Foi por ela que se apaixonou e decidiu deixar a
Índia pela Inglaterra. Conquistara também a esposa de um grande empresário indiano, Rekha
Merchant, que suicidou-se após uma negativa de Gibreel em assumir o relacionamento.
Certo dia nas filmagens de um filme em Kanya Kumari, Gibreel desmaiou:
Depois de exaustivos exames não chegaram a nenhum resultado; e enquanto
ele jazia inconsciente, morrendo, com uma contagem de glóbulos sanguíneos
que caíra dos quinze normais para um criminoso quatro vírgula dois, um
porta voz do hospital enfrentou a imprensa nacional na grande escadaria
branca do Breach candy. “É um mistério total”, disse. “Podem dizer, se
quiserem é um ato de Deus” (RUSHDIE, 2006, p.36).
Tão misteriosa quanto a doença fora também sua cura
“Também isso foi qualificado como um ato do Ser Supremo. Foi decretado
feriado nacional; houve queima de fogos por toda parte. Mas quando Gibreel
recobrou as forças, ficou claro que tinha mudado de forma assustadora,
porque perdera a fé” (RUSHDIE, 2006, p.37).
Após a saída do hospital ele foi diretamente para um restaurante comer carne de porco 26
enquanto os fotógrafos tiravam fotos.
A metamorfose de Chamcha e Farishta iniciou-se depois de tomarem o mesmo avião
que partia da Índia para a Inglaterra. Chamcha voltava para casa após as apresentações de A
26
A carne de porco é considerada impura pelos mulçumanos.
69
Milionária, de um caso com Zeeny e visitar seu grande desafeto, Changez Chamchawala, seu
pai. Gibreel ia à Inglaterra em busca de amor, Alleluia Cone, uma escaladora que acabara de
retornar do Everest, já condenada a não mais escalar por pés chatos. Ela estava em Bombaim
por alguns dias antes de retornar a Londres e Gibreel por ela apaixonado decidira ir à Inglaterra
em sua busca. O avião em que Gibreel e Chamcha viajavam para Londres foi seqüestrado e
após um mês de cativeiro em terra foi explodido no ar pelos seqüestradores. Duas pessoas
sobreviveram à explosão, Chamcha e Farishta:
Ambos caíram de grande altura, vinte nove mil, e dois pés, em direção ao
canal da Mancha, sem a garantia de para-quedas nem asas, caíram do céu
limpo [...] para nascer de novo, cantava Gibreel Farishta despencando do céu,
é preciso morrer primeiro. Ho ji! Ho ji! Para pousar no seio da terra, é
preciso voar primeiro. Tat-taa! Taka-thun! Como sorrir, se não chorou
primeiro? Como conquistar o coração da amada, mister, sem um suspiro?
(RUSHDIE, 2006, p.13).
Já na queda, Gibreel falava sobre transformação e sobre o aprendizado através da
experiência com o uso de expressões como morrer para nascer, voar para pousar, chorar para
sorrir. Em Os versos satânicos (2006) a metamorfose possui o papel de subverter a ordem
sincrônica da narrativa, reconfigurando, assim, a significação até então delimitada,
ressignificando o signo da cultura em Chamcha religioso em Gibreel. Desta forma, no romance
novas identidades puderam emergir a partir da experiência de metamorfosear-se.
Falar em metamorfoses significa pensar no que se transforma e o que permanece do
antigo no novo. Ao caírem em terra firme em Londres, o hálito de Gibreel, outrora sulfuroso,
havia se adoçado, enquanto o de Chamcha “se estragara”. Em torno da cabeça de Gibreel
Farishta apareceu “um tênue, mas nitidamente dourado, fulgor” (RUSHDIE, 2006, p.133). O
que se mostrava como uma leve auréola. Na testa de Chamcha duas protuberâncias, como
galos, que posteriormente se tornariam chifres:
Os galos de Chamcha se desenvolveram em chifres, pêlos grossos e muito
crespos cobriam suas extremamente fortes coxas. “Abaixo dos joelhos, os
pêlos desapareciam, e as pernas afinavam em panturrilhas duras, ossudas,
quase sem carne terminado num par de cascos fendidos, brilhantes como os
que se encontra em qualquer outro bode. Saladin ficou chocado também ao
ver o próprio falo, muito aumentado e embaraçosamente ereto” (RUSHDIE,
2006, p.155).
70
Chamcha balia como um bode, assim como seus “processos naturais” eram caprinos. A
transformação de Chamcha em um ser híbrido tem um forte caráter metafórico por toda a
representatividade histórica e simbólica do caprino. A ambivalência de sua representação em
diferentes culturas e tempos é fundamental para uma análise da metamorfose em Chamcha.
Segundo Lisboa (1989), na medida em que se avolumam as frustrações da sociedade em
resolver seus problemas básicos e os horizontes se turvam, estão dadas as condições para o
surgimento de novas alternativas cabalísticas e justiceiras.
As energias acumuladas nas massas se revertem para formas de expressão alienadas e
inúteis no ponto de vista da solução de tais problemas. O papel do bode expiatório pode servir
para a ilustração de tal fato, pois através dele pode-se perceber como funciona um dos
mecanismos inconscientes de ação das massas, o de transferir suas culpas e seus problemas
para outros. Todos os pecados da sociedade são depositados na figura do bode que era tangido
ao deserto, passando a vagar sem rumo nem chance de sobreviver. O bode emissário, com sua
morte enviava todos estes pecados para outros mundos, purificando assim a comunidade. O
bode era, então, o emissário de toda a negatividade e após sua partida purificava os outros, um
processo muito parecido com o pensamento sobre o orientalismo de Said (1999) em que para
que a auto-afirmação européia acontecesse de maneira mais contundente este criara a figura do
oriental como inferior. A criação da representação orientalista fazia com que o europeu
pudesse justificar a exploração destes povos, se sentisse mais poderoso e mais próximo da
perfeição divina. O colonizado e, posteriormente, o imigrante, são os bodes expiatórios
do ocidente, pois através deles pode-se justificar muitos dos problemas da sociedade ocidental.
Bodes são tradicionalmente associados à sexualidade natural despreocupada pela sua
conexão com sátiros, mas são símbolos do maldito no cristianismo. Tanto para os hebreus
quanto para os gregos os caprinos eram oferecidos como sacrifício. No dicionário Houais
(2007), a palavra bode possui diversos significados, sendo eles símbolos de negatividade e,
interessantemente, hibridez. Entre os significados pode-se destacar: indivíduo feio, repugnante,
pessoa que cheira mal, mulato, indivíduo cujos pais são de raças diferentes, homem libidinoso;
lascivo, indivíduo ateu.
Pan, figura da qual Chamcha possuía muitas das características físicas, era um deus
luxurioso e desenfreado, associado às colheitas abundantes, o favorito de Dionísio, o deus da
fertilidade. Em A dictionary of literary symbols (1999), Pan tivera sua imagem adotada pelos
71
cristãos para descrever o Satanás. Mudando a cor de pele para vermelho e substituindo seus
tubos com um forcado, Pan torna-se a personificação cristã dos males da humanidade. O
dictionary of world mythology, (1986) considera a morte de Pan, que aconteceu no reinado do
imperador romano Tibério (14-37 AC), como o início do fim da era pagã. Em mythology in our
midst (2004), os seres híbridos como Pan servem de importante metáfora para a definição do
humano como co-habitante do mundo e não como centro único. Pan era assim uma figura que
retratava ao mesmo tempo Deus, paganismo, e Satanás. Outros seres híbridos como os
centauros eram uma mistura meio homem, meio cavalo, da cintura para a cabeça eles eram os
homens, mas na parte de baixo, cavalos. Eles eram guerreiros poderosos e particularmente
qualificados com o arco e a flecha. Chiron, o mais famoso dos centauros, foi professor de
Hércules. Ele é o modelo para o símbolo do zodíaco Sagitário. Embora poderosos, os centauros
também eram propensos a brigas insignificantes e lutas internas. Esta característica
particularmente humana os conduziu à queda. Assim sobre os seres híbridos pode-se pensar
que na literatura eles têm como objetivo assinalar algumas das características mais animalescas
no ser humano, ou talvez também mostrar algumas características essenciais nos “animais
humanos”.
Chamcha tornara-se a partir de sua metamorfose uma criatura híbrida, ambivalente, que
despertava diferentes reações em grupos distintos, ele era adorado no gueto e digno de
repugnância fora dele, Deus e demônio:
“você é um herói. Quer dizer, o povo realmente se identifica com você. É
uma imagem que a sociedade branca rejeitou por tanto tempo que agente
pode pegar para nós, entende? Ocupar, tomar posse e fazer que seja nossa”
(RUSHDIE, 2006, p.274).
Após o acidente em que se deram as metamorfoses, já em terra firme, Chamcha e
Gibreel foram vistos por moradores das redondezas que chamaram o serviço de imigração.
Ambos foram localizados neste mesmo dia, numa casa próxima ao lugar em que caíram, onde
residia a Senhora Rosa Diamond, que ao se encantar com o aspecto angélico de Gibreel
resolveu acolhê-los. Pouco tempo depois chegaram os policiais da imigração à casa de Rosa,
eles também se encantaram com a distinção angélica de Gibreel e levaram consigo Chamcha
como imigrante ilegal. Gibreel nada fez para protegê-lo:
72
Isto é um engano, gritou, não sou nenhum refugiado clandestino que veio em
barco de pesca, nem nenhum dos seus ugando-keniatas, eu. Os policiais
começaram a sorrir, entendo sir, caiu de trinta mil pés, e depois nadou até a
praia. Tem o direito de permanecer em silêncio, eles riram baixinho, mas
logo explodiram em sonoras gargalhadas, pegamos um aqui, não tem erro
(RUSHDIE, 2006, p.139).
No carro da polícia de imigração Chamcha sofreu diversas humilhações pelos guardas;
eles o chamavam de bode e se divertiam enquanto espancavam-no: “Os chifres continuavam
batendo em tudo, na direção, no chão, sem forração, nas canelas de um oficial – e nestas
últimas ocorrências foi sonoramente esbofeteado no rosto [...] em resumo, estava no estado de
espírito mais miserável de que se lembrava” (RUSHDIE, 2006, p.155).
Assim foi se desfazendo a imagem que Chamcha possuía da Inglaterra. Como na terra
da razão poderia acontecer um incidente como aquele dentro de um camburão?
O que intrigava Chamcha era que aquela circunstância que lhe parecia tão
completamente perturbadora e sem precedentes – ou seja, a sua metamorfose
naquele diabo sobrenatural – estava sendo tratada pelos outros como se fosse
a coisa mais banal e normal que se podia imaginar. “Isto não é a Inglaterra”,
pensou, nem pela primeira nem pela última vez (RUSHDIE, 2006, p.156).
Chamcha estava muito confuso: “Que humilhação! Ele era, tinha se esforçado tanto
para ser – um homem sofisticado! Essa degradação podia não significar nada para a ralé [...]
mas ele era feito de outra matéria!” (RUSHDIE, 2006, p.157). Chamcha considerava-se
diferente dos outros imigrantes, numa figura que se assemelhava mais ao inglês e,
impressionantemente para Chamcha, ele percebia que os ingleses, apesar do tom jocoso,
tratavam-no de forma banal, não como a monstruosidade que ele se tornara.
Gibreel, ao contrário, cada vez mais se tornava mais angelical e esta “pureza” dos anjos
é criticada no romance assim como a pureza cultural, sendo o romance, segundo Rushdie
(1994), uma celebração à impureza.
Gibreel, um ator que faz papéis de divindades distintas e um mulçumano que come
carne de porco após a metamorfose, torna-se um anjo “puro”, logo intolerante. Por seu aspecto
e sonhos angelicais adquiridos após as metamorfoses ele cada vez menos conseguia lidar com
um mundo de pluralidade:
73
a invenção do sonho de Gibreel, fulmina contra o objectivo da religião-dosonho de fornecer “regras para tudo e mais alguma coisa”, não está apenas
para atormentar o sonhador, mas sugerindo ao leitor que reflita sobre a
validade das regras da religião [...] serão todas as regras definidas na origem
da religião imutáveis para todo o sempre? (RUSHDIE, 1994, p.458).
Gibreel suicida-se ao fim do romance por não conseguir articular os mundos da pureza
e impureza, o mundo angélico e o profano, pois o ideal de pureza rompe-se à mínima sujeira.
Gibreel assim torna-se centro de uma narrativa que não obteve sucesso em Os versos satânicos
(2006), através da representação “extremamente virtuosa” do anjo. No livro é mostrado então
que a virtude em extremo traz consigo um grande número de regras o que pode fazer da vida
um verdadeiro tormento, como aconteceu com Gibreel, incapaz de ver o mundo além das
regras religiosas, o que lhe tolheu a liberdade. Chamcha, ao contrário, encontrará a plenitude
da sua identidade exatamente por superar a imagem de pureza cultural dada através do sistema
de dominação colonial. Assim Os versos satânicos culminam como numa guerra entre o puro e
impuro onde a impureza vence através de Chamcha que se tornaria Saladin Chamchawala.
3.2 Buscas de superação
Chamcha acreditava se distinguir de todos os outros imigrantes pela visão que dele os
ingleses possuíam, quanto “maior é o distanciamento do negro em relação ao branco maior sua
selvageria” (FANON, 1984, p.24). Por seu sotaque perfeito, sua mulher branca, trabalho bemremunerado e pele levemente esbranquiçada, ele conseguia se camuflar, se fazer passar
relativamente despercebido. Este disfarce não mais pôde funcionar a partir do momento em
que ele se transformou em homem-bode, a diferença era brutal para se deixar passar
despercebida. Este fato, em Os versos satânicos, tem muito de autobiográfico, já que o próprio
Rushdie comentou de sua experiência de assimilação em sua migração de forma praticamente
idêntica à retratada em Chamcha. Rushdie (2004), em Pátrias Imaginárias, relata que a
Inglaterra foi de certa forma boa com ele
mas tenho certa dificuldade em mostrar-me agradecido. Não consigo ignorar
o facto de que esta minha facilidade de adaptação não é conseqüência do
famoso sentido de tolerância e de Fair Play desta Inglaterra imaginária, mas
tem muito mais a ver com minha classe social e com meu tom de pele claro e
sardento, e o sotaque inglesado do meu inglês. Se nada disso se passasse
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seria bem diferente. Porquê claro está que a Inglaterra imaginária não existe
senão na imaginação (RUSHDIE, 1994, P.33).
Rushdie acreditava que mesmo na igualdade existe alguma diferença entre ele e os
outros. É esta Inglaterra dos sonhos que começa a se diluir para Chamcha, “isto não é a
Inglaterra”, pensava. Alguns fatores que o faziam “desaparecer” entre os ingleses foram
retirados e toda uma criação de um personagem que demorara anos para ser construída ruíra.
Ele era um ser meio homem meio bode vivendo no gueto com diversos imigrantes; nada
parecido à imagem de sofisticação ocidental que tentara construir.
Enquanto continuavam a espancar Saladin, os policiais checaram suas informações na
polícia e descobriram que ele era realmente cidadão inglês. Por conta disso espancaram-no
ainda mais para que não se lembrasse de toda aquela situação. Chamcha acordou em um
hospital e lá se defrontou com diversas outras criaturas. O mantícora, que era metade homem
metade leão, ao encontrar Chamcha disse:
“Tem uma mulher daquele lado”, disse “que agora já está quase inteira
transformada em búfalo”. Um empresário da Nigéria agora tem um rabo. Um
grupo de turistas do Senegal estava só trocando de avião e foram todos
transformados em cobras. Eu sou do ramo da moda, há alguns anos sou um
dos modelos mais bem pagos, com base em Bombaim, e já desfilei uma
variedade imensa de ternos e camisas. Mas quem é que vai me empregar
agora? (RUSHDIE, 2006, p.165).
Chamcha quis saber como se dava tal animalização, “eles descrevem a gente” o outro
sussurrou, solene. “Só isso. Têm o poder da descrição, e a gente sucumbe às imagens que eles
constroem” (RUSHDIE, 2006, p.165). Chamcha responde que era difícil aceitar tal fato, pois já
viveu na Inglaterra por muitos anos e nunca havia visto isto antes. Os outros seres não
acreditaram na afirmação de Chamcha e desconfiaram que ele fosse um espião. Pela criação da
imagem do imigrante de forma animalesca, o romance Os versos satânicos (2006) mostra o
poder colonizador orientalista mesmo após a descolonização.
A habilidade dos ingleses de transformar indivíduos em animais em Os versos
satânicos (2006) funciona como metáfora para a descrição do orientalismo como construção
discursiva. Desde que os ingleses possuíam realmente tal habilidade, assim como descrito por
Said (2001) em O Orientalismo, eles realmente lidariam, sem muito alarde, com uma
construção que era sua, a do imigrante-animal. Sawhney (1999) acredita que Chamcha havia
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sucumbido à animalização, assim como outros imigrantes por ter perdido um senso de
identidade mais fixo, se tornando assim mais vulnerável às descrições. A descrição de
Sawhney (1999) é interessante pelo fato de que os imigrantes eram todos recém-chegados;
gente ainda em busca de uma identidade em terras estrangeiras. Ele, porém, não menciona todo
um processo histórico de animalização retratado pelo orientalismo e colonialismo sobre o
sujeito pós-colonial.
A descrição e a criação animalesca da imagem do imigrante são conseqüências do
poder imperialista ocidental, reprodução que alguém faz das palavras atribuídas a outra pessoa.
Os outros animais não terem acreditado que Chamcha jamais havia tido contato com tal
realidade mostra a qualidade de Chamcha em dissimular, em se tornar Inglês. Ele não conhecia
uma realidade, a do imigrante das ex-colônias que era de certa forma também sua.
O mundo que Chamcha vivia agora era o das criaturas, dos imigrantes, trabalhadores
braçais, discriminação racial, violência policial, não integração. O que projeta uma Inglaterra
de certa forma segregada:
A Inglaterra é agora dois mundos completamente diferentes, e aquele que
habita é determinado pela cor da pele. Mas sei por experiência própria que
muito poucas pessoas brancas, excepto aquelas que são activas na luta contra
o racismo são capazes de acreditar nas descrições da realidade
contemporânea feitas pelas pessoas de cor (RUSHDIE, 1994, p.156).
Ele então teve de lidar com gente como Mr. Sufyan que o deu abrigo “prop. Do Café
Shandaar, dono da pensão no andar de cima, mentor dos variegados, transitórios e multirraciais
freqüentadores de ambos os lugares [...] em sua próprias palavras, “não tanto um imigrante, e
sim um pigmeu imigrado” (RUSHDIE, 2006, p. 233).
Sufyan é a personificação da
multiplicidade, casado com Hind e pai de Mishal (dezessete anos) e Anahita (quinze anos). Foi
ele quem acolheu Chamcha, trazido por um amigo mútuo Jumpy, e apesar do estranhamento
inicial de Hind, (pensou que fosse o demônio), ele fora bem aceito pelas duas garotas da casa
que acharam-no “radical”.
Este novo mundo, aos olhos de Chamcha, era marcado pelo pluralismo, as meninas
eram lutadoras de karatê, arte marcial japonesa, filhas de indianos nascidas na Inglaterra,
enquanto Hind “se esforçava para conseguir, na cozinha, um ecletismo comparável”
(RUSHDIE, 2006, p.235). Sufyian, ao acolher Chamcha, ficara preocupado com suas
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condições físicas e mentais e por isso chamara um médico. O médico alegou que Chamcha
havia passado por maus tratos e estava sofrendo um processo de esgotamento nervoso. Hind, a
esposa de Sufyan, com pena, para acalmar Chamcha “abaixou-se e pousou um braço em volta
do infeliz ainda trêmulo. O melhor lugar para você ficar é aqui [...] Onde mais vai poder curar
essa deformação e recuperar a saúde? Onde mais senão aqui com a gente, no meio da sua
própria gente com seus semelhantes?” (RUSHDIE, 2006, p.242). Quando Chamcha se viu
sozinho em seu quarto respondeu à fala de Hind: “Não sou seu semelhante”, disse claramente
para a noite. “Vocês não são minha gente. Passei metade da vida tentando me afastar de vocês”
(RUSHDIE, 2006, p.242). Nessa mesma noite teve um sonho erótico com Hyacinth, a negra
que dele cuidara no hospital com os imigrantes e pensava: “como posso ter achado aquela
mulher atraente?” (RUSHDIE, 2006, p.244).
A contestação do sistema de dominação colonial expressa pelo desejo da negra
começava a se infiltrar em Chamcha apesar de suas tentativas em negá-la. A fala de Chamcha
“Vocês não são minha gente. Passei metade da vida tentando me afastar de vocês” (RUSHDIE,
2006, p.242), foi um grito de desespero. Ele encontrava o acolhimento onde mais negava e
encontrava o desprezo onde mais louvava:
Então quão cruel era esse destino ao instigar rejeição da parte do próprio
mundo que ele tinha tão decididamente cortejado; quão desolador ser atirado
para fora dos portões da cidade que se acredita ter conquistado há tempos! –
Nesse ponto, a lembrança de Zeeny Vakil emergiu e, cheio de culpa,
nervoso, ele se esforçou por submergi-la de novo (RUSHDIE, 2006, p.246).
Ao conversar com Mishal e Anahita, as filhas de Sufyian que o visitavam em seu quarto
frequentemente, Chamcha disse se considerar bastante britânico apesar de “preso no grotesco”.
As garotas, que ao contrário dele haviam nascido em Londres, perguntaram o que ele as
considerava (no sentido da nacionalidade). Chamcha então desconversou e pensou “não eram
britânicas, não de fato, não de forma alguma fosse possível reconhecer. E, no entanto, as velhas
certezas estavam se dissipando a todo momento, junto com sua vida anterior...” (RUSHDIE,
2006, p.247). Chamcha entrava num turbilhão, sua imagem do inglês se desfazia
continuamente enquanto o inglês para ele virava as costas após sua metamorfose. Perdera sua
esposa que dele fugira ao ver sua nova imagem de homem-bode. Perdera o emprego, pois sua
imagem caprina fizera com que seus empregadores o achassem “étnico” demais. As filhas de
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Sufyan eram cidadãs britânicas, nascidas e crescidas em Londres, porém de uma forma para
Chamcha inconcebível.
Ao conversar com Mimi, sua ex-colega do trabalho do qual acabara de ser dispensado,
disse: “Já éramos exploradas quando vocês todos andavam por aí vestindo peles de animais.
Tente um dia ser mulher, judia e feia. Você vai acabar implorando para ser preto. Desculpe a
nossa falha: pardo” (RUSHDIE, 2006, p.250). Chamcha, que jamais pensara em sua figura
como preto ou como pardo foi tomado pela raiva: “Sou um homem, Chamcha concluiu, que
não entende nada, vivendo num mundo amoral, onde impera a lei da selva, o resto é que se
dane” (RUSHDIE, 2006, p.251). Ele se via “abandonado por uma Inglaterra alienígena,
perdido dentro de outra”(RUSHDIE, 2006, p.259).
Chamcha havia sido abandonado pela Inglaterra que existia somente em sua
imaginação, aquela que remetia à perfeição, sofisticação e alta cultura tratava seus moradores
como legítimos animais e estava perdido na Inglaterra que possuía cidadãos ingleses como as
filhas de Sufyan e Hind que em nada lembravam a Inglaterra imaginada.
A aparência de Chamcha cada vez tornava-se mais deplorável, os chifres mais
curvilíneos, o hálito mais pestilento e havia surgido uma barbicha. Esta imagem, contudo,
fortalecia-se no gueto e ele começava a “aparecer” nos sonhos da vizinhança. Os habitantes do
gueto, entretanto, o anjo-demônio Chamcha não temiam e, ao contrário do que se poderia
prever, cada vez mais o visitavam. Eles viam Chamcha não como o diabo pregado pela
sociedade ocidental, mas como vingador, “um negro, talvez um pouco deformado pelo destino
classe raça história, tudo isso, mas levantando da cadeira, mau e maluco, para chutar alguns
traseiros” (RUSHDIE, 2006, p.273). Como “uma imagem que a sociedade branca rejeitou por
tanto tempo e que a gente pode pegar para nós” (RUSHDIE, 2006, p.273). Rushdie diz ser
através desta lógica, da possibilidade de utilização de uma imagem que fora excluída como
positiva, ter nomeado Os versos satânicos (2006):
Se os grupos de imigrantes são denominados demônios por outros, isso não
os torna realmente diabólicos, os anjos podem não ser necessariamente
angélicos... Pode dizer-se que desse princípio emerge a exploração feita no
romance da moralidade como interior e inconstante (em vez de exterior,
divinamente sancionada e absoluta). O próprio título, Os Versículos
Satânicos é um aspecto dessa tentativa de recuperação [...] tal como os
miúdos asiáticos do romance envergam cornos-de-diabo de brincar com
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orgulho, como forma de afirmação de orgulho na identidade, também o
romance enverga seu título demoníaco (RUSHDIE, 1994, p.461).
Seguindo esta mesma relação delineada acima por Rushdie, Darcy Ribeiro sobre o
movimento antropofágico brasileiro cita Oswald de Andrade “Com ele, pela primeira vez,
gargalhamos: Ali vem nossa comida pulando” (RIBEIRO, 1982, p. 33). Da mesma maneira
que brasileiro se diverte em pensar sua comida pulando, como um animal selvagem a ser
caçado Rushdie acredita que deva ser pensada a imagem diabólica dos imigrantes. A imagem
meio bode meio homem de Chamcha mostrava o imigrante como satânico, mas era tudo uma
questão de imagem; os imigrantes muitas vezes foram demonizados pelos locais, mas este fato
não quer dizer que sejam realmente demônios. Tal fato ainda não havia sido percebido por
Chamcha até este momento da narrativa, mas esta seria a chave para a reversão de sua
metamorfose. A percepção que havia sido estereotipado e que não havia negatividade em
apresentar-se culturalmente diferente do inglês foi fundamental para seu retorno à forma
humana.
Sufyian tentando alegrar Chamcha, deprimido por seu isolamento, sua imagem grotesca
e sua redescoberta da Inglaterra, faz uma visita ao sótão em que estava hospedado. Lá ele faz
uma análise sobre a metamorfose comparando Ovídio e Lucrécio, referindo-se à metamorfose
de Chamcha. Esta longa citação é central para a compreensão da ruptura do colonizado com o
sistema de dominação do colonizador:
“Por exemplo, o grande Lucrécio diz, em Dererum natura , o seguinte:
quodcumque suis mutatum finibus exit, continuo hoc mors est illius quod fuit
ante. O que traduzindo perdoe o mau jeito, quer dizer “tudo aquilo que por
meio de sua mudança atravessa as próprias barreiras”- quer dizer, transborda
as próprias margens – ou, talvez, rompe os próprios limites – por assim dizer,
desrespeita as própria regras, mas é uma tradução muito livre, estou
achando... “essa coisa”, de qualquer forma é o que diz Lucrécio, “ao fazê-lo
atrai a morte imediata para seu antigo”. Mas”o dedo do ex-professor pôs-se
em riste, “o poeta Ovídio, nas Metamorfoses, toma posição diametralmente
oposta. Ele afirma o seguinte: “como a cera mole” derretida, entende, talvez
para selar documentos ou algo assim – “pode ser estampada com novas
figuras E muda de forma continuando a parecer a mesma, E efetivamente é a
mesma, assim também as nossas almas” – “está ouvindo mister? Nossos
espíritos! Nossas essências imortais! – São ainda as mesmas para sempre,
mas adotam Em suas migrações, formas sempre variáveis” (RUSHDIE,
2006, p.264).
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As metamorfoses nas opiniões de Lucrécio e Ovídio possuem características distintas.
No primeiro, a transformação é completa enquanto no segundo muda-se a forma, mas o
conteúdo é o mesmo. Na trajetória de Chamcha sua metamorfose possui um caráter parecido
com o que diz Ovídio, Chamcha muda de forma e esta mudança simplesmente faz com que ele
descubra a plenitude de sua identidade, a mudança de forma trouxe, assim, à tona sua essência,
não o transformou em outro, fato que o fez retornar às origens ao fim do romance. Sua
identidade plena estava escondida debaixo da mímica e que buscando tornar-se inglês
Chamcha não poderia externar como um retrato, despido de substância.
3.3 Caminho para o novo
Como dito anteriormente, Ovídio acreditava que na metamorfose a substância
continuava a despeito da forma, o que era diferente de Lucrécio que pensava em morte do ser
anterior. Chamcha após sua conversa com Sufyan acreditava que sua metamorfose se baseava
no conceito de Lucrécio, sua nova vida era resumida em uma mudança total e chocante. Este
foi o passo para que ele tornasse homem novamente. Acreditar ser outro, como Lucrécio fez
com que Chamcha se desconectasse totalmente de seu ser anterior, o “mímico”. Ele se
revoltara com suas condições, amargura e ódio imperavam e ele decidira “mergulhar” naquele
ser que se transformara. “Ruidoso, fedorento, horrendo, gigantesco, grotesco, inumano,
poderoso” (RUSHDIE, 2006, p.275). Chamcha mudava mais rapidamente, agora ele estava
com três metros, pêlos por todo o corpo, e nenhuma roupa. Ele decidira sair do sótão para se
vingar de Gibreel Farishta que nada fizera quando os policiais levaram-no da casa de Rosa
Diamond e não lhe poupara de toda aquela humilhação sofrida no camburão e hospital.
Chamcha sentiu o ódio crescer cada vez maior dentro de si até que se humanizou, foi
encontrado dormindo e nu como uma criança. Ele fora humanizado pela enorme concentração
de ódio contra Farishta e a hipocrisia do mundo, pois, ao “mergulhar” naquele novo ser, ele
quebrara completamente a narrativa que antes vivera ele e o transformara em outro.
A partir da metamorfose os extremos, ou o que é reconhecido por pureza do
colonizador ou impureza do colonizado, devem ser repensados pela própria incompletude
inerente a todas as culturas como delineado por Bhabha (1990). Chamcha humanizou-se ao
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entrar definitivamente em seu ser humano-caprino e a raiva era reflexo disto, ele não mais seria
passivo e ficaria escondido num quarto, mas agiria de acordo com suas vontades. O Liso e o
Estriado (2007) de Deleuze e Guattari servem como ferramenta para exemplificar o caráter
transgressor da metamorfose de um extremo em outro:
Por vezes podemos marcar uma oposição simples entre os dois tipos de
espaço. Outras vezes ainda devemos lembrar que os dois espaços só existem
de fato graças às misturas entre si: o espaço liso não pára de ser traduzido,
transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente
revertido, devolvido a um espaço liso (DELEUZE e GUATTARI, 2007,
p.157).
Tanto o puro, em seu extremo, se metamorfoseia facilmente em impuro quanto seu
contrário. Pela dialética do liso e estriado, totalmente liso ou estriado tornam-se quase
impossibilidades, ambos encontram limites em sua própria delimitação. O extremamente liso
estria-se facilmente, como um nômade que cruza o deserto (sendo o deserto uma superfície lisa
que se estria simplesmente com o passar do nômade) como o estriado em seu extremo torna-se
liso, como por exemplo, no feltro, uma substância homogênea composta de incontáveis
elementos heterogêneos. A transformação de Chamcha de homem-bode em humano, deu-se
no momento em que ele acreditou-se homem-bode, assim percebe-se que no livro é improvável
a concepção de algo pleno, pois este é o momento da metamorfose:
Quanto mais regular é o entrecruzamento, tanto mais cerrada é a estriagem,
mais o espaço tende a tornar-se homogêneo: é nesse sentido que a
homogeneidade nos pareceu ser, desde o início, não o caráter do espaço liso,
mas exatamente o contrário, o resultado final da estriagem, ou a forma-limite
de um espaço estriado por toda parte, em todas as direções. E se o liso e o
homogêneo aparentemente se comunicam, é somente porque o estriado não
chega a seu ideal de homogeneidade perfeita sem que esteja prestes a
produzir novamente o liso, seguindo um movimento que se superpõe àquele
do homogêneo, mas permanece inteiramente diferente dele (DELEUZE e
GUATTARI, p.175).
A morte de Gibreel se deu pela não ressignificação, ou metamorfose do extremamente
puro em impuro, pois ele não conseguira livrar-se da pureza angelical, sendo esta metafísica,
vinda dos sonhos. Seu suicídio aconteceu porque em seus sonhos ele não percebia o mundo
além da religião islâmica, o dinamismo natural das coisas foi interrompido, o extremo
continuou extremo e ele não conseguia conviver com a multiplicidade em seu redor, não
81
aceitava se estriar. A pureza de Gibreel funcionava como se todo o mundo conspirasse contra
ele, que era uma ilha, ou o mundo transformava-se no que ele acreditava, ou ele não suportaria
o peso do resto do mundo. Ele tentou modificar o mundo com sua noção de pureza religiosa,
mas foi incapaz de mudá-lo e não conseguindo conviver com a diferença, já que era angelical,
suicidou-se.
A questão do liso e estriado serve para a demonstração de que não existe uma pureza ou
impureza como plenitude. Assim como colonizado e colonizador, elas se abrem ou
ressignificam- se; quando se alcança um estado de pureza ou impureza ocorre uma
metamorfose. Outro exemplo de tal processo pode ser visto em a escritura e a diferença de
Jackes Derrida, em que é desconstruída a palavra conceito. Derrida (2002) reflete que no
momento que se constrói um conceito, de certa maneira, busca-se nele uma “imobilidade
fundadora de uma certeza tranqüilizadora”, um centro. Ao tempo de fechamento, na conclusão
conceitual, é quando acontece a differance, ou é o momento no qual tal conceito supostamente
hermético se junta a outros elementos desconectando-se de uma estrutura e a outras se conecta.
Desta forma, cria-se algo que é parte deste primeiro conceito, mas ao mesmo tempo distinto:
No centro, é o ponto em que a substituição dos conteúdos, dos elementos
(que podem aliás ser estruturas compreendidas numa estrutura). Pelo menos
sempre permaneceu interditada (e emprego propositadamente esta palavra.
Sempre se pensou num centro, por definição único, constituía, numa
estrutura, exatamente aquilo que, comandando a estrutura escapa à
estruturalidade. Eis por que, para um pensamento clássico da estrutura, o
centro pode ser dito paradoxalmente, na estrutura e fora da estrutura. Está no
centro da totalidade e contudo, dado que o centro não lhe pertence, a
totalidade tem seu centro em outro lugar. O centro não é centro (DERRIDA,
2002, p.230).
Esta descentralização acontece tal como numa metamorfose, carrega consigo partes de
conceitos distintos que se multiplicam em outros conceitos, ressignificando- se a cada
reconexão ou desconexão, metamorfoseando-se. Ao mergulhar na figura do bode e se revoltar
contra o mundo, Chamcha se metamorfoseou novamente, pois mais uma etapa havia sido
vencida, o puro bode tornou-se impuro, alguém que não era um bode imigrante nem um inglês,
mas aquele bode continuaria também em sua identidade. Desconstruída estava a imagem do
Inglês e ressignificada a sua própria, nem o colonizador era puro, pois havia diversos aspectos
negativos no inglês, ele não correspondia mais à imagem construída pelo colonialismo e aceita
82
por Chamcha. Saladin Chamcha aos poucos tornava-se Saladin Chamchawala. Ele fora capaz
de dessacralizar a Englishness e consequentemente se desdemonizar como um indiano membro
de uma terra outrora colonizada, o que não fez, contudo, que se tornasse outra pessoa, ele era o
mesmo, mas traços de sua identidade haviam mudado numa relação entre ser e saber:
O que rejeitava era que ele e Gibreel fossem retratados como monstruosos.
Monstruosos, pois sim que idéia mais absurda. Existiam monstros de verdade
no mundo – os ditadores que assassinavam em massa, os estupradores de
crianças, o Esquartejador de Velhinhas. (Apesar de sempre ter tido a polícia
metropolitana em alta estima, era forçado, era obrigado a admitir que a prisão
em Uhuru Simba era simples demais.) Bastava abrir os jornais para encontrar
irlandeses homossexuais malucos enchendo de terra as bocas de bebês
(RUSHDIE, 2006, p.387).
Chamcha após se metamorfosear novamente em humano visitara um protesto dos
imigrantes do gueto, algo inimaginável para o antigo Chamcha e prova de que o bode deixara
rastros em sua personalidade. Além disto, “o clima da multidão estava bem longe do tipo de
histeria evangélica que imaginara; era contido, preocupado, querendo saber o que se podia
fazer” (RUSHDIE, 2006, p. 392). A aceitação do imigrante como seu povo, contudo, não o fez
angélico. Sua veia satânica abrira caminho para vingar-se de Gibreel pelo incidente com a
polícia de imigração. Este fato mais uma vez mostra no livro que não existe a pureza, pois
mesmo deixando a alienação colonialista para traz, Chamcha ainda podia ter traços de
maldade, pois era humano. Por meio de trotes telefônicos ele conseguira separar o ciumento
Gibreel de sua esposa Allie, o que fez com que Gibreel enlouquecesse e trouxesse para a vida
real seus sonhos angélicos de forma plena, destruindo a cidade de Londres, querendo fazer com
que se tornasse uma continuação da Índia. Assim, mais uma vez a pureza e impureza são
contestadas, pois Gibreel agora anjo, e acreditando fazer o correto, destruía Londres. Nesse
processo de destruição, Gibreel encontra Chamcha preso sob uma viga num ambiente com
fogo; Gibreel salva Chamcha, logo anjos também podem ser angélicos.
Após ser salvo e surpreendido pela bondade de Gibreel, Chamcha decide voltar à sua
terra natal, pois seu pai estava muito mal, com câncer. Ao chegar lá consegue perceber uma
beleza muito digna em Changes, seu pai. Ele e Changes nunca haviam tido uma boa relação e
agora por seu pai se apaixonara, nele encontrara o amor assim como a nobreza no ser humano,
principalmente ao se deparar com a morte:
83
Saladin sentia-se a cada hora mais próximo de muitos eus antigos, rejeitados,
muitos Saladins alternativos – ou melhor, Salahuddins – que tinham se
separado dele à medida que ia fazendo as diversas escolhas de sua vida, mas
que tinham aparentemente continuado a existir, talvez nos universos
paralelos da teoria quântica (RUSHDIE, 2006, p.490).
Saladin então decidira usar seu nome de nascimento Salahuddin, o sobrenome contudo
continuava Chamcha, o mesmo adotado na Inglaterra; assim Salahuddin reconheceu-se como
sujeito pleno. Salahuddin era agora capaz de amar o outro, pois amava a si mesmo como ele
era “muitos”, todos reunidos e convivendo no mesmo sujeito; o reconhecimento da
possibilidade da impureza trouxe com ela o amor. Este mesmo amor o trouxe de volta à indiana
Zeeny (Zeenat), que percebeu também amar, “Já era hora”, Zeenat aprovou quando ele contou
que voltara a usar Salahuddin. “Agora vai poder parar de representar, afinal” (RUSHDIE,
2006, p.500).
O ato de deixar de representar se deu pelo reconhecimento da não plenitude da cultura
inglesa nem da indiana. Assim, como Bhabha (1990) diz não existir a possibilidade de uma
cultura plena exatamente pelo processo de interpelação que faz de toda cultura formadora de
símbolos. Assim, para Salahuddin houve o reconhecimento da não plenitude na Englishness, a
imperfeição no colonizador, logo também de um outro lugar híbrido onde as culturas podem
emergir num terceiro espaço criando novas estruturas de autoridade.
Pela imersão no submundo da “vulgaridade” do homem-bode, Chamcha conheceu uma
realidade distinta, assim como em Parmênides: “O mesmo, pois, tanto é aprender (pensar)
como também ser” (PARMÊNIDES in CIAMPA, 1995, p. 143). Para Parmênides, a identidade
se dá como construção, como uma metamorfose que se dá pela significação (aprender), assim
como o ser. Nietzsche comentando Hamlet conclui que o cerne da sua história se reduz ao fato
que pelo conhecimento de Hamlet à essência das coisas lhe enoja a atuação “o conhecimento
mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão” (NIETZSCHE, 2007, p. 53). Ao
conhecer a realidade inglesa em sua profundidade, sua essência, após tornar-se homem-bode
Chamcha não mais era capaz de atuar.
Para Ciampa (1994), a identidade se dá na relação do que o sujeito faz perante o outro.
O outro determina o sujeito pelo que faz, o que Ciampa chama de predicação. Não é
encontrada uma substancialidade, ou aquilo que o sujeito “é”, assim a identidade se mostra
84
dinâmica, o saber (pensar) e o fazer (agir) são atrelados e se metamorfoseiam. A diferença,
contudo no caso de Chamcha, e segundo Fanon (1984), é que o negro é definido, ou tem seu
predicado dado a partir de uma questão epidérmica. Em Chamcha, o negro-bode era definido
pelo exterior, o que cria uma identidade-mito, ou um fetiche, já que o fator epidérmico não é
um catalisador direto de identidade. O papel do negro, no caso de Chamcha do homem-bode
indiano, é subverter esse predicado que lhe é imposto pela superação do retrato mítico do
colonizado como negatividade. Ou seja, reconhecendo que o negro fora uma criação do projeto
colonial orientalista.
A identidade se dá em Os versos satânicos (2006), assim como para Ciampa (1994)
como metamorfose, o saber e o fazer modificam quem se é, assim como também modificam o
outro. A metamorfose de Chamcha tem um caráter simbólico de extrema importância, pois só
assim ele pode cruzar a linha que o coloca como mímico e renascer, construir uma nova
identidade, não deixando de ser quem é e ao mesmo tempo criando-se algo novo, assim como
na différance de Derrida:
A différance é o que faz com que o movimento da significação seja apenas
possível se cada elemento dito “presente”, aparecendo na cena da presença,
se relacionar com outra coisa diferente dele próprio, guardando em si a marca
do elemento passado e logo se deixando escavar pela marca de sua relação
com o futuro (DERRIDA In NASCIMENTO, 2004, p.56).
A différance de Derrida se entrelaça ao conceito de metamorfose de Ovídio encontrado
em Os versos satânicos (2006). Em nenhum dos casos existe uma possibilidade para a pureza,
pois a marca do passado faz com que surja sempre algo novo e híbrido.
Rushdie, sobre Os versos satânicos (2006), ao ser perguntado se a Metamorfose de
Ovídio de alguma forma havia o influenciado disse:
É um de meus livros favoritos e afinal de contas este é um romance sobre
metamorfose. É um romance no qual as pessoas mudam forma, e coloca à luz
as grandes perguntas sobre tal fato colocadas por Ovídio: se uma mudança
em forma era uma mudança em tipo. Se há uma essência em nós que
sobrevive à transmutação, e, até mesmo se nós não mudarmos em, imagine,
criaturas fissípedes, há uma grande mudança na vida de todo mundo. A
pergunta é, se há ou não há um centro essencial. Se nós somos somente uma
coleção de momentos, ou se há algum tipo de linha que nos define. O livro
discute isso, eu acho, usa a idéia de metamorfose física para discutir isso. E
assim, claro que Ovídio foi importante. Também pensei que o próprio livro
85
foi concebido como algo que é constantemente metamorfoseado. Ele não
para de se tornar em outro tipo de livro. Certamente, do meu ponto de vista
este era tecnicamente um empreendimento arriscado porque eu não pude
estar seguro que os leitores viriam para o passeio. Era algo que poderia estar
irritando. Imagine que você está lendo um certo tipo de livro e
repentinamente se vê preso em outro.
(RUSHDIE In BRIANS 2004, p, 58) Tradução Nossa.27
A metamorfose tem o poder de subverter a ordem das coisas, de transformar, redefinir,
com o ser que fora metamorfoseado diferente e ao mesmo tempo o mesmo. Com a identidade
pensada como uma construção metamórfica, tanto o metamorfoseado muda de relação com o
outro, como o outro muda com relação a ele. Outro exemplo clássico de metamorfose é a partir
do livro Metamorfose de Kafka. Nele, Gregório Samsa, (personagem em que Rushdie pode ter
baseado o nome Saladin Chamcha pela semelhança dos sobrenomes, assim como por ambos
terem sofrido metamorfoses), se metamorfoseia em barata. Samsa, outrora membro amado e
esteio da família, acorda transformado:
Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por
si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o
dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a
cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos
arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a
ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas,
que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de
seus olhos (KAFKA, 1998, p.5).
A partir de tal fato seus parentes não mais se portavam como sua família, ele tinha de se
esconder de todos, ficar trancado em seu quarto; sua mãe, irmã e pai evitavam vê-lo a qualquer
preço. Com o passar do tempo, sua própria família que tanto o amava e que dele outrora
dependia quis sua eliminação. Samsa posteriormente faleceu vítima de um ferimento causado
por seu pai. Desta forma, a partir da metamorfose a relação de Samsa com o outro mudou,
assim como a do outro com ele. O ponto principal das transformações nas inter-relações entre
Samsa e sua família se faz presente partir da metamorfose quando toda a família foi obrigada a
encontrar um novo modo de vida, independente de Samsa. Assim a metamorfose de Samsa
reconfigurou toda uma família, retirando-a da estase e levando todos a terem vidas mais plenas.
27
Original língua inglesa .
86
Se a metamorfose de Samsa modificou a forma com que sua família vivia, a vida de
Chamcha e sua humanização fizeram com ele modificasse ou ressignificasse sua identidade.
Houve “uma transformação das determinações exteriores em autodeterminação (e não uma
possível libertação das determinações exteriores...)” (CIAMPA, 1995, p.144). Chamcha, a
partir da sua segunda metamorfose (novamente humano), não se libertou do retrato mítico do
colonizado, mas pela superação de tal retrato valorizou outras coisas como o amor a seu pai,
por exemplo. Segundo Ciampa, (1995), a autoderminação supõe finalidade, entre a
objetividade e a finalidade. Em Chamcha, na objetividade como indiano e a finalidade de
inglês, não existia nenhuma unidade:
Ao aprender a ser outra, como que sai de si, torna-se outra, exterioriza-se a
realidade. O subjetivo torna-se objetivo; e a recíproca também. Aprender e
ser então é o mesmo. A unidade da subjetividade e da objetividade. Sem essa
unidade, a subjetividade é desejo que não se concretiza, e a objetividade é
finalidade sem realização (CIAMPA,1995, p.145).
A partir das metamorfoses da Chamcha e Gibreel, o sucesso do primeiro e a morte do
segundo, houve uma reconfiguração nos ideais de pureza mostrando-a como construção. Esta
construção, ou suposta diferença, está do dedo de quem a aponta através dos discursos nos
quais acredita e que, como mostrado anteriormente neste mesmo trabalho, são parciais.
Em todas estas situações a metamorfose retrata mudanças que se dão em plenitudes,
mas ao mesmo tempo se desviam da origem plena. Assim, é possível correlacioná-las com a
idéia de indecidível de Derrida, na qual metamorfose funciona como complemento, pois
“excede a lógica filosófica da não-contradição, baseada na série opositiva infinita, em que um
dos termos vale mais que outro”
28
. No caso de Saladin Chamcha, após sua metamorfose, há
uma superação dos recalques históricos que resultaram no etnocentrismo da cultura europeia.
Aquele ser, múltiplo, inglês e indiano, homem e demônio, estava sempre dentro de
Chamcha; como na noção de Bhabha (1990) de todos os seres humanos como seres culturais.
Não é necessário ser um mímico quando se sabe que não existe uma hierarquia cultural ou
racial, simplesmente se aceita a humanidade pela consciência que estes são criações, mitos,
símbolos.
28
É uma proposição que, dado um sistema de axiomas dominante numa multiplicidade, não é nem uma
conseqüência analítica ou dedutiva dos axiomas, nem está em contradição com eles, nem verdadeira nem falsa do
ponto de vista desses axiomas. Tertium datur, sem síntese (DERRIDA, 1972ª, p.248,249).
87
Quando Chamcha entendeu que a Englishness era uma construção, que “a Inglaterra
dos sonhos não se passava de um sonho” e que nada de negativo havia em ser indiano, pela
própria inexistência plena do que seja inglês ou indiano, ele rompeu com o retrato mítico
colonialista, foi um novo começo.
A metamorfose de Chamcha em uma figura mitológica funcionou para liberar sua
tensão retida. Chamcha copiava o inglês, assim toda uma parte de seu ser era suprimida na
dissimulação, “o hábito da dissimulação é cansativo e desgastante. O exílio jamais se configura
como o estado de estar satisfeito, plácido ou seguro” (SAID, 2003, p.60). Desta forma, este
caráter de subversão, de demonstração que a dissimulação desvela apenas parte do ser, ou parte
da identidade, é explicitada a partir da representação de Chamcha como meio humano, meio
bode. O bode representa toda aquela parte suprimida por Chamcha em sua mímica, aquilo que
atravessa seu ser, destituindo assim Chamcha de uma presença plena, “pura”, que fora
construída a partir do sucesso do discurso colonialista.
Pela metamorfose de Chamcha há uma inversão no que se considera como pureza.
Nela há uma confusão completa de signos sintetizados na figura do bode. Feiúra, repugnância,
mau cheiro, o sexo, a mistura, todos faziam parte do imaginário de Chamcha sobre a Índia,
tudo do que ele sempre quis se ver livre. “Aquela Bombaim de poeira, vulgaridade, policiais de
calças curtas, travestis, revistas cinematográficas, de gente dormindo nas calçadas e das faladas
prostitutas cantoras da Grant Road” (RUSHDIE, 2006, p.43). A figura do bode simbolizava
toda uma espécie de decadência indiana que Chamcha negava, algo que estava nele contido e
escondido. Pode-se pensar na figura do bode incorporada fisicamente em Chamcha como a
Índia incorporada em seu ser, pois o bode e a Índia possuíam de certa forma o mesmo tipo de
representatividade, mistura e vulgaridade assim como na figura do oriental retratada por Said
(1999) em Orientalismo. Chamcha pôde fugir da Índia, assim como de sua representação
orientalista, se tornando um “inglês-dospésàcabeça” (RUSHDIE, 2006, p.46). A Índia,
entretanto, dele nunca fugira, ela retornava apesar de seus esforços contrários como nos
momentos de somatização em náusea, já citados. A unicidade das representações é quebrada
em seu cerne pela metamorfose, ele não é inteiramente o que era antes e tampouco depois.
Chamcha como bode era uma articulação de ambas as partes.
Para Memmi (1983), colonizado e colonizador são mitos que se mantém por interesses
econômicos do colonizador. Assim, a única forma de ação do colonizado seria a representação
88
de papéis de assimilação de identidade mito ou, como ele chama, petrificação, que é um fetiche
já que não faz parte do sujeito. Neste caso é o “outro” que cria uma identidade que deve ser
repetida performaticamente.
O que a metamorfose de Chamcha traz é a reflexão de impossibilidade de pureza na
figura do inglês, assim como em qualquer outra:
Ao longo da história, os apóstolos da pureza, os que afirmaram possuir a
explicação total, espalharam a devastação entre meros seres humanos
misturados. Como muitos milhões de pessoas, sou um filho bastardo da
história. Talvez sejamos todos negros, castanhos, brancos, passando uns para
os outros, como uma das minhas personagens disse uma vez, como aromas
que se misturam quando cozinhamos (RUSHDIE, 1994, p.453).
Chamcha se metamorfoseou, cruzou fronteiras, superou novos caminhos. Rushdie, no
ensaio Cruze Esta Linha (2007), dentre várias histórias de cruzamento de fronteiras, narra a de
Alice no país das maravilhas:
Ela discute com Chapeleiros Malucos e retruca Lagartas e, no final, perde o
medo da rainha sedenta de execuções quando, por assim dizer, cresce. Você
não passa de uma caixa de baralho – Alice, a migrante, finalmente enxerga
através da charada do poder, não se impressiona mais, revela o blefe do país
das maravilhas e ao desmantelá-lo descobre a si mesma de novo. Ela desperta
(RUSHDIE, 2007, p.343).
O crescer e despertar de Alice se deram por uma quebra no mito, a caixa de baralho não
era destruidora, na verdade ela nada mais era que uma caixa. O mesmo aconteceu com
Chamcha, ele desmantelou o mito colonial, despertou, cruzou fronteiras:
Nos sonhos começam as responsabilidades. A maneira como vemos o mundo
afeta o mundo que vemos. Quando mudam nossas idéias sobre a beleza
feminina, vemos diferentes tipos de mulheres como belas. Quando mudam
nossas idéias de vida saudável começamos a olhar diferente para as coisas
que comemos. Nossos sonhos são nossos, e o futuro de nossos filhos molda
os juízos diários que fazemos sobre trabalho, sobre pessoas, sobre o mundo
que ou propicia ou obstrui nossos sonhos. A vida diária no mundo real é
também a vida imaginada. As criaturas de nossa imaginação se esgueiram
para fora da nossa cabeça, atravessam fronteiras entre sonho e realidade,
entre sombra e ato, e tornam-se reais (RUSHDIE, 2007, p.372).
Salahuddin declarou seu amor a Zeeny, enquanto esta, com medo de perdê-lo, disse em
tom professoral:
89
Se é sério que quer se livrar de seu estrangeirismo Salad baba, não se deixe
cair nessa espécie de limbo sem raízes, certo? Estamos todos aqui. Bem aqui
na sua frente. Você deveria tentar estabelecer contato adulto com este lugar,
com este momento. Tente abraçar esta cidade como ela é, não como uma
memória de infância que deixa você ao mesmo tempo enjoado e saudoso.
Chegue mais perto. Da cidade, da cidade de verdade. Compre suas falhas.
Transforme-se numa criatura saída dela; participe (RUSHDIE, 2006, p.506).
Saladin não dera ouvidos a Zeeny, queria mais do que a cidade, queria voltar para
Scandal Point, para a casa onde nasceu e exorcizar os demônios de sua infância. Foi lá que
logo depois recebeu a visita do transtornado Gibreel Farishta que na sua frente suicidou-se.
Saladim não acreditava mais em contos de fada, cresceu: “a infância estava acabada, e a
paisagem desta janela já não era mais que um eco antigo e sentimental. Pro inferno com aquilo!
Que viessem os tratores se o velho se recusava a morrer o novo não podia nascer” (RUSHDIE,
2006, p.511).
A relação de Chamcha com sua antiga casa parece ter cunho autobiográfico. No ensaio
Um sonho de glorioso retorno a venda da antiga casa de Rushdie por seu pai se mostrou um
evento traumático. Este fato parece ter sido culminante para a construção do seu pensamento
sobre pátrias imaginárias, já que a partir daquele momento naquela casa moraria, mas somente
em sua imaginação:
Poucos anos depois, meu pai, sem me contar, vendeu, de repente a Windsor
Villa, a casa de nossa família em Bombaim. No dia em que soube disso, senti
um abismo se abrir a meus pés. Acho que nunca perdoei meu pai por vender
aquela casa, e tenho certeza de que se ele não a tivesse vendido eu ainda
estaria morando nela (RUSHDIE, 2007, p.183).
Rushdie relaciona tal fato com uma das diretrizes de sua obra, exatamente por que para
ele um país é sentido, sonhado, amado e estes sentimentos dificilmente podem ser esquecidos,
não importa o quão distante esteja:
Desde então, meus personagens freqüentemente voam da Índia para o
Ocidente, mas, romance após romance, a imaginação do autor ainda volta
para casa. Isso, talvez, é o que significa amar um país: que a forma dele é
também a sua, a forma como você pensa, sente e sonha. Que você nunca
consegue realmente abandonar (RUSHDIE, 2007, p.183).
90
Em Os versos satânicos é o filho quem vende a casa, talvez uma tentativa de perdão de
Rushdie pela venda da casa de Windsor Villa por seu pai, acreditando que o velho deve dar o
lugar ao novo. Tal fato transgride o sentimentalismo relatado por Rushdie sobre sua antiga
casa, mas não o fato de que ele tem uma casa, e que nunca consegue abandoná-la
completamente. Chamcha retornou à sua casa, à Índia, afirmou-se. Esta afirmação entretanto se
deu após uma metamorfose, o que mostra que não é fácil desmascarar algumas das mentiras
nas quais se vive, mas ao mesmo tempo mostra que esta possibilidade existe. Questionar a
pureza e o absoluto é um caminho interessante para a busca pessoal de plenitude já que o
tempo a experiência e a alteridade constroem e desconstroem verdades num contínuo
ressignificar. O sujeito questionador metamorfoseia-se a cada descoberta de maneira que o
sentido da vida torna-se um constante migrar, uma travessia, sem portos definitivos nem
verdades absolutas, dando boas vindas à impureza, às diferenças de cada paragem. Nesta
jornada, em cada porto algo é adquirido ou deixado para traz com estas trocas, construindo e
desconstruindo quem se é num processo ambivalente como a metamorfose, não se sabe
exatamente o que vai e o que fica, mas reconhece-se a mudança.
O leitor brasileiro pode compreender bem os objetivos de Rushdie de desmascarar os
objetivos colonizadores e vislumbrar identidades pós-coloniais através da trajetória de Saladin
Chamchawala em Os versos satânicos a partir da crendice criada no Brasil sobre o leite com
manga29. A mistura pode ser feita, ela é na verdade um suco, nenhum mal faz à saúde, não
mata. Deve-se ter coragem para experimentar o novo.
29
Segundo o historiador Hernani Castro Maia da USP em relato ao site do Ministério Público Federal, esta é uma
crendice que vem de Portugal. Para que os escravos não consumissem estes produtos seus senhores diziam que
esta mistura era nociva à saúde.
91
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