ABASTEÇA-SE - Jornal Plástico Bolha

Transcrição

ABASTEÇA-SE - Jornal Plástico Bolha
plástico bolha
aparentemente insólito...
Distribuição Gratuita
Ano 2 - Número 12 - Maio/2007
ABASTEÇA-SE
Champagne
OSSOS DO OFÍCIO
Ó, vida passageira!
O que se pensa não é o que se canta.
Passa logo, qual água de cachoeira.
Difícil sustentar um raciocínio
Tão difusa e espumante
com a rima atravessada na garganta.
quanto constante e cristalina:
Mesmo o maior esforço não adianta:
profana e divina.
da sensação à idéia há um declínio,
Gustavo Gadelha
e o que se pensa não é o que se canta.
A vida nos encontros
Heinz Langer
Muito tem se falado ultimamente sobre as novas
fontes de energia renováveis. Há quem aposte na canade-açúcar, there is who think corn is better. Há também
quem não solte da gasolina por nada.
É nesse contexto que o Plástico Bolha lança
sua proposta energética para o milênio: as palavras.
Sim, essas confortáveis poltronas de significados
podem ser usadas para gerar energia, da mais limpa
e renovável.
No futuro, os impulsos energéticos gerados pela
leitura de um Plástico Bolha, por exemplo, poderão
ser captados e enviados para o seu automóvel ou
o seu liquidificador. Todos sabem que a leitura de
textos é capaz de acender uma lâmpada. Teremos
assim, a materialização da palavra lâmpada, enquanto
metáfora de idéia, para a lâmpada real, acesa à sua
frente, iluminando sua charmosa leitura em papel.
E os poetas serão todos chamados de volta
à cidade.
NESTA EDIÇÃO
paulo henriques britto
carlos andreas
naaman
dedicação, tanto autodomínio,
se o que se pensa não é o que se canta,
mesmo porquê (constatação que espanta
qualquer espírito mais apolíneo)
a rima atravessada na garganta
é o trambolho que menos se agiganta
neste percurso nada retilíneo,
ao fim do qual se pensa o que se canta,
depois que a rima atravessa a garganta.
Paulo Henriques Britto
Paulo Henriques Britto é tradutor e professor, autor de Liturgia
da matéria (1982), Mínima lírica (1989), Trovar Claro (1997) e
Macau (2003, Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira).
Ossos do Ofício estará no livro Tarde, que será lançado em agosto.
heinz langer
gregÓrio duvivier
dimitri merino
mauro gaspar
marcela sperandio rosa
Apenas isso justifica tanta
Dimitri Merino
alexandre montaury
Há que sentir — e aí está o fascínio —
com a rima atravessada na garganta.
Como alma e corpo imoral,
caminho na rua inexpressivo.
Andrógino até o próximo contato.
Até que uma nova onda cruze
minha potencialidade de tomar forma,
contorno, identidade, palavras.
Até lá sou puro som sem melodia.
Uma onda de gente, aleatória;
indefinida até o próximo cruzamento.
marÍlia rothier
luiz coelho
marilena moraes
Como uma labareda de fogo
Movimento em passos aleatórios.
Isso enquanto chama.
Enquanto onda não sou nada.
Nada definido pelo menos.
As ondas se cruzam,
se amam e tornam-se algo,
real, palpável.
Difícil, sim. E é por isso que encanta.
ana chiara
gustavo gadelha
fred coelho
paulo gravina
glaucia soares bastos
angelo abu
constanza de cÓrdova
sueli rios
mary blaigdfield
chiara di axox
fillipe josÉ diniz
Aos alunos com carinho
2
Aceitei imediatamente o convite para escrever aos alunos de
Letras porque a possibilidade de estender o nosso convívio acadêmico
para o âmbito do texto me pareceu muito agradável. Além dos devidos
agradecimentos, recebam as felicitações pelo Plástico Bolha.
Começarei por me identificar: não faz muitos anos que dou
aulas de Literatura Portuguesa na PUC-Rio, mas já há algum tempo
trabalho nesse campo de estudos.
Inúmeras circunstâncias de vida foram convergindo para um
interesse crescente pelos estudos portugueses, o que culminou com a
minha integração às atividades acadêmicas e de pesquisa da Cátedra
Padre António Vieira, o que muito me orgulha. Deixarei de lado, porém,
pormenores autobiográficos para arriscar algumas propostas gerais que,
na minha opinião, podem ser úteis no cotidiano universitário.
Há uma imagem que muitas vezes nos ronda ou, melhor dizendo,
geralmente nos é atribuída: a do “típico” estudante ou pesquisador
de Letras que se entrega às delícias da ficção e das narrativas como
o Alonso Quijano, sem se interessar muito pelo que está para-além
disso. Esse recorrente clichê limita-se a definir os leitores como pouco
habituados às providências práticas da vida. Faríamos parte de uma
espécie de hedonistas insaciáveis, saboreando continuamente as artes
da escrita e da leitura, em pleno isolamento.
Em primeiro lugar, a formação do clichê não parece grave. O que,
entretanto, se torna fundamental é afirmar a escrita e a leitura como
valores que pertencem ao mundo dos homens, ultrapassando assim a
produção restrita aos espaços interiores. Não estudamos para erguer
“museus egoístas” nem para produzir informações que não possam
ser compartilhadas. Ao contrário, devemos partilhar nossos pontos de
vista e opiniões, trocar idéias e esgrimir generosamente.
Para nós, pesquisadores ou alunos de Letras, a escolha de um
objeto de estudo e a consolidação de um cotidiano de pesquisa são
movimentos que, pouco a pouco, vão dando forma à nossa vida e
passam a existir concretamente, adquirem materialidade. No curso
do tempo, processamos bibliografias, acumulamos textos e arquivos
ligados por interesses que terminam sendo, muitas vezes, nossos
identificadores pessoais. Neste momento, quando um objeto de
estudo parece nos pertencer, é que também se torna necessária a
recuperação do movimento contrário: o de desprivatizar, retransmitir,
pôr em circulação o que foi armazenado na trajetória de estudo. Nesse
sentido, o esforço a ser feito é o de dar vida exterior à leitura, oferecer
visibilidade, para produzir a luminosidade de um encontro, de uma
aula, de uma palestra e assim retirá-la do âmbito interior.
No que concerne especialmente à Literatura Portuguesa,
podemos dizer que se hoje ela é uma literatura muito menos
estrangeira no Brasil, isto se deve a algumas gerações de professores
que souberam trabalhar para produzir conhecimento e, sobretudo,
para criar um campo de reflexão multicultural que hoje compreende
diferentes literaturas produzidas em língua portuguesa.
Abrem-se vastos espaços de pesquisa e de estudo nesse
específico universo cultural. Há ainda muito por aprender sobre
zonas de partilha e de isolamento neste emaranhado cultural
que envolve tantos países. Estabelecer um diálogo vivo e eficaz
implicará a reafirmação de uma das principais responsabilidades
de alunos e de professores: a de organizar, construir e repassar
arquivos constituídos, multiplicando as possibilidades de trânsito e
circulação de pesquisas. Alunos e professores tornam-se cúmplices
nesse exercício de exteriorização com que o estudante dará forma ao
seu pensamento, polindo o corpo de idéias com que irá construir a
sua trajetória de investigação.
Retomando a imagem-clichê a que recorri, concluirei afirmando
que um dos maiores prazeres da profissão que escolhi é trabalhar
com textos literários, buscando ampliar sua legibilidade e estabelecer
pontos de contato com textos de outras naturezas. Mas esses diálogos
se tornam ainda mais positivos quando compartilhados com alunos
interessados em criar os seus próprios espaços de leitura.
Alexandre Montaury
Professor de Literatura Portuguesa
Subjetivas
por Gregório Duvivier
Cinematográficas
Cinco indicações ao Oscar. Três Globos de Ouro, incluindo melhor trilha.Você vai sair do cinema
outra pessoa, dizia o cartaz. Fui ver. O filme era banal, aquela velha história envolvendo piadas,
explosões e uma ou duas doenças crônicas. No entanto, logo percebi que eu deveria ter confiado nos
dizeres do cartaz. Ao sair do cinema Leblon, me olhei no espelho e vi um sujeito gordo e barbado, que
usava um paletó xadrez. Eu tinha perdido uns cinco centímetros, ganhado uns vinte quilos, uma espessa
barba ruiva e um leve ar de louco. Senti um volume no bolso da calça e tirei de lá um maço de cigarros,
um bipe (um bipe!) e uma carteira. Abri a carteira em busca de algo que me identificasse e achei um
passaporte húngaro. Zenaj Tórzkovy. Este parecia ser o meu nome. Não achei nem bom nem ruim. Só
lamentei não ter saído alguns centímetros mais alto.
Quando Werner nasceu, no mesmo quarto acontecia um parto espetacular. Era o primeiro parto
de sétuplos do mundo e a mãe dos bebês havia convidado todas as emissoras do país a televisionar o
recorde. No mesmo momento em que todas as câmeras focalizavam a grávida recordista, nascia, ao
fundo do quarto, um bebê chamado Werner, o primeiro bebê-figurante da história.
Depois, quando pequeno, na escola, Werner estava sempre no meio da massa de alunos, sem jamais
se fazer notar. Quando tentava dizer algo, todos o reprimiam e o mandavam para o fundo da sala. Aliás,
uma coisa que Werner logo descobriu é que ele estava sempre no fundo. Quando, por acaso, se sentava na
primeira fila, era no fundo que as coisas aconteciam, fazendo com que ele se sentisse no fundo em relação
àqueles que lá estavam. Por mais que tentasse, Werner nunca era o centro das atenções. Se ele por acaso
resolvesse fazer uma loucura, como vestir um maiô e dançar cancan, quando ele olhava à sua volta todos
estavam fazendo o mesmo havia muito tempo e ele estava apenas imitando a multidão dançante.
Quanto à sua aparência, não se pode dizer que ele era bonito. No entanto, nada nele desagradava
ao olhar. Possuía os olhos no lugar, um nariz perfeitamente normal e o corte do seu cabelo era como
qualquer outro. Se até hoje não se falou muito em Werner, é só porque ninguém se lembrava dele,
embora ele tenha participado da vida de muita gente, sempre passando ao fundo e dando um colorido
especial à cena. Era um homem perfeito para se ter na vizinhança.
Ao contrário do que poderia se pensar, sua vida não era um marasmo. Muito pelo contrário. Ao seu
lado sempre aconteciam as coisas mais fantásticas. Bastava ele andar na rua para que prédios pegassem
fogo, super-heróis aparecessem e pessoas fossem abduzidas. No entanto tais coisas nunca aconteciam
com ele, mas com as pessoas à sua volta. Ele apenas observava perplexo e conversava com as pessoas
ao seu lado (sem jamais emitir som, é claro).
Aos 63 anos, Werner morreu. Ou melhor, foi demitido: olhou para a câmera.
plástico bolha
Tiragem: 8.000
Impresso na CUT Graf
produzido pelos alunos de Letras da PUC-Rio
Editor
Lucas Viriato
Editora Assistente
Marilena Moraes
Conselho Editorial
Luiz Coelho;
Gregório Duvivier;
Isabel Diegues
Comissão
Julia Barbosa; Isabel
Wilker; Paulo
Gravina; Alluana
Ribeiro; Mauro
Rebello; André
Sigaud; Flora Bonfanti
Projeto Gráfico
Mariana Dias
Coordenação
Luiza Vilela
Equipe
Márcia Brito; Marcelo
Tapajós; Rebecca
Liechocki; Camila Justino;
Marcela Rosa; Esthér
Oliver; Henrique Meirelles;
Andrew McAlister
Revisão
Rubiane Valério;
Rafael Anselmé;
Gabriel Mattos
Colaboradores
Mariana Salim Pinky;
Gregório Duvivier; Marilena
Moraes; Isabel Diegues; Luiza
Vilela; Glaucia Sposito
Envie seus textos para: [email protected]
12 de Abril de 1204
Brigas de amor
O
0 fim da última grande coleção de literatura antiga em Bizâncio
O fim da última grande coleção de literatura Antiga
0 fim da última grande coleção de Literatura
O fim da última grande Coleção
0 fim da última Grande
Smack!
Plaft! Plaft!
Grrrr...
Plaft!
Oh...
Smack!
Chiara di Axox
O fim da Última
0 Fim
O
0 Gênese
O gênese da Primeira
0 gênese da primeira Parca
O gênese da primeira parca Dispersão
0 gênese da primeira parca dispersão de Ignorância
O gênese da primeira parca dispersão de ignorância Contemporânea
0 gênese da primeira parca dispersão de ignorância contemporânea em Vegas
O
12 de Abril de 2007
Carlos Andreas
Alteridade
Primavera
Outono
As flores vermelhas
Sangue azul-anil
gotejam tijolo-sangue
o corpo morto da folha
do templo as telhas.
gotas de um cantil.
Luiz Coelho
O caminhar se fez mais lento
E na porta do convento
As migalhas não traduziram
As pombas degradadas.
Um cão que passava
Poderia ser considerado
Mais astuto que eu,
Porém faço versos
E sou moribundo,
Meus caninos não servindo
Para um ataque.
Naaman
3
Puzzles
25X25
O final do inverno, quase
primavera na verdade, convidava ao
que os franceses chamam de flâner,
simplesmente se promener sans
hâte, au hasard, en s’abandonnant
à l’impression et au spectacle du
moment. Ainda tinha três dias de
viagem, já esgotara a cota de museus
e monumentos, e estava num ponto
da vida em que sabia que o melhor
de uma cidade está nas ruas, seus
personagens e tipos — coisas que os
guias não mostram. Saltou do metrô,
ajeitou a boina. Foi em direção à
Place des Vosges, o coração do Marais.
AS POTÊNCIAS DA FICÇÃO
Na frente de uma pequena casa,
um jardim inesperado — insolite
— diriam os locais... Eram amoresperfeitos, manchadinhos em tons
de rosa, amarelo, roxo e marrom.
Florezinhas apressadas, desafiando o
frio, num tapete multicor, protegido
por uma grade. Tirou a luva, pegou
a máquina do bolso da capa.
Passou o braço entre as barras de
metal. Clique! 25X25 num portaretratos barato. Mas isso não tem
importância. Foi um bom dia de
exercício da chamada douce inaction.
Fazia 15 graus. Pra que mais?
Marilena Moraes
4
mulheres-damas
por
Ana Chiara
Capitu
Depois de tudo
Escobar em ressacas monumentais
Ficar com a Sancha, cigana, vadia,
Partiu em dois meu coração....
Te dei casa, comida, e roupa lavada
Agora vai ganhar o pão,
Safada,
Com suores tremores espasmos fingidos
Pois para isto
Vieste.
Escritor anticonvencional, pensador polêmico, Nietzsche (18441900) teve sua produção filosófica canonizada através de avaliações
das mais discrepantes: ao silêncio da crítica quando do lançamento
de seus livros contrapôs-se a ruidosa apropriação de alguns conceitos
como o de “super-homem” pelo nazismo (possivelmente com o
apoio de sua irmã); ao entusiasmo dos dândis e literatos da virada
do século seguiu-se o novo resgate daquele pensamento “a golpes
de martelo” para armar os participantes das revoltas universitárias
de 1968. Se a fortuna crítica de Nietzsche apresenta esse itinerário
surpreendente, as referências biográficas não são menos chocantes;
incluem posturas contraditórias em relação à instituição acadêmica,
estreita cumplicidade e ruptura violenta com artistas conhecidos como
Wagner, freqüentes distúrbios de saúde, hábitos peculiares que levam
a uma vida nômade e a (ainda mal explicada) crise de loucura, de
1889, responsável pelo internamento e tutela pela mãe e irmã, nos
últimos dez anos de sua vida. Não admira, portanto, que aquele que
se serviu de Zaratustra ao expor suas idéias mais ousadas tenha-se
transformado numa personagem do imaginário contemporâneo, à
maneira das ficções de Jorge Luís Borges.
Justamente o autor argentino Ricardo Piglia, herdeiro
inconteste de Borges, vem incorporando Nietzsche e sua estranha
família às explorações crítico-ficcionais que produz. Quando
concedeu um depoimento à revista Angelus Novus em 1990
(publicado com o título de “A citação privada” em O laboratório do
escritor), destacou como “uma das cenas mais famosas da história
da filosofia”, que marcaria de certo modo o próprio limite da Razão
ocidental, a situação – apontada pelos biógrafos – em que Nietzsche
teria manifestado sua loucura, abraçando-se em prantos ao pescoço
de um cavalo para evitar que o cocheiro continuasse a espancá-lo.
“O notável”, observa Piglia, “é que a cena é uma repetição literal de
uma situação de Crime e castigo de Dostoiévski”, onde Raskolnikov
abraça e beija o pescoço de um cavalo morto a pancadas. Essa
amostra curiosa e desconcertante da noção de “eterno retorno” foi
precedida, nas especulações do ficcionista sobre o estatuto da arte,
da construção da personagem Lucía Nietzsche, neta de Elizabeth,
a irmã (perigosa) do filósofo, que viveria na América do Sul,
nos meados do século XX, em conseqüência da aventura de seu
avô, Bernhard Förster, anti-semita, que se instalou no Paraguai,
no final dos oitocentos, para “fundar um falanstério da nobreza
alemã”. Lucía Nietzsche entra na novela de Piglia como a amada
inesquecível de Pássaro Artigas, o narrador experiente que, em
conversas de bar, encarrega-se de iniciar o futuro escritor na arte
da ficção. A sobrinha-neta de Nietzsche surge no espaço latinoamericano munida de uma carta do filósofo, que dá conta de sua
perturbação diante das conseqüências catastróficas que antevia no
projeto de Förster. Tal surgimento explica-se, provavelmente, como
a contrapartida da ficção periférica ao perigo que temos corrido,
deste lado do Atlântico, ao aceitar certos produtos da Razão
ocidental exportados da Europa.
Se, trazendo a marca de uma trajetória com os lances
inacreditáveis que se registraram acima, a assinatura de Friedrich
Nietzsche vem emperrando o sistema de classificação de sua obra
na estante da filosofia, parece útil prestar atenção à proposta do
contemporâneo Ricardo Piglia de deslocá-la para a Biblioteca de
Babel. Aí, ela encontraria espaço adequado nos diferentes inventários
simultâneos e, além de incorporar a tal carta referida no catálogo da
literatura latino-americana, restabeleceria o convívio esclarecedor
com outros cânones de assinaturas também resistentes à lógica
hermenêutica, como os atribuídos ao próprio Borges, a Dostoievski
e a Flaubert, aquele que se identificava como Madame Bovary.
Marília Rothier Cardoso
Neste trecho servi-me, livremente, de referências e sugestões encontradas
em Crítica cult e O século de Borges de Eneida Maria de Souza, bem como
do capítulo “Quem, Nietzsche? Qual?” da tese de doutorado, Devires
autobiográficos, de Elizabeth Muylaert Duque Estrada.
INVASORES DE CORPOS: MANIFESTO SAMPLER
FOTOGRAMA II: A PUREZA É UM MITO
A entropia da originalidade.
Entropia: Medida da quantidade de desordem
de um sistema.
Desordem da pureza, desordem do mito.
Palavras de um sampleador em 1995
definindo o sampler: saque, captura, seqüestrado,
audição predadora, nossos ouvidos se tornam exércitos
sanguinários, envolvidos em operações de captura e
predação. A questão é: que tipo de pirata queremos
ser? Bucaneiros sanguinários ou invasores de
corpos, manipuladores Edukators do que está aí
e aqui, dentro e fora? Podemos ser racionais da
periferia, científicos enlameados do manguezal,
chillout kruder people, downtempo dorfmeister
primeiromundistas. Podemos ser sombras
esperando a hora e a esquina adequada para
invadirmos o corpo mais interessante, esperando
a quebrada exata para roubarmos por um instante
o seu doce mais profundo. Mas para que rimar
amor com dor? Invado porque todas as casas são
minhas, todos os eus me pertencem, estou em você
porque você sou eu e eu sou você, mi casa su casa.
Unbreakable porque a circularidade não tem portas
nem grades. Não fico na porta porque a idéia não é
ficar, é mover. Podemos ser corpos materiais que se
duplicam num abraço, podemos ser como a última
frase de João XXIII: multiply and difuse. Podemos
ser camaleões e usar outros como disfarce, mas o
sentido não é esse: o sentido é ATRAVESSAR,
invadir e sair outro, e se você também puder ser
outro depois da invasão, depois de ser trespassado,
bem-vindo, esse é o mundo sampler!
A escrita sampler não é a “liberdade de dizer
tudo”: é uma zombaria que é, contudo, dramática,
um imperativo diverso daquele da inércia. E, ao
mesmo tempo, para falar de ficção, é preciso que
o texto aniquile qualquer referência.
Escrever é um processo, ou seja, uma passagem
de Vida que atravessa o vivível e o vivido.
A Literatura é um agenciamento coletivo de
enunciação.
A única maneira de defender a língua é atacála. Cada escritor é obrigado a fabricar para si sua
língua. A Literatura está antes do lado do informe,
do inacabamento.
A força do texto reside quando alguém o lê
e quando ele é transcrito. Conhece uma escrita
aquele que a ama sem esperança.
Escrever é um esforço inútil de esquecer o que
está escrito (nisto nunca seremos suficientemente
borgeanos). Por isso, em literatura os roubos
são como as recordações: nunca totalmente
deliberados, nunca demasiadamente inocentes.
As relações de propriedade estão excluídas da
linguagem: podemos usar as palavras como se
fossem nossas, fazê-las dizer o que queremos
dizer.
Na primeira edição de Lavoura arcaica há
uma nota em que o leitor é apresentado à escrita
sampler. A partir da segunda edição o escritor retira
o informe e apaga os rastros dos textos sampleados.
O mesmo processo se dá com Um copo de cólera:
a edição inicial traz uma nota (pp. 83-4) listando
os enxertos alheios do autor e indicando até
uma paráfrase de O artista quando jovem, como
ele chama com intimidade o livro do outro. Na
edição seguinte, a informação desaparece.
O que é o pensamento, a filosofia, a escrita
senão uma enorme e contínua remixagem?
Uma fábula sampler não tem moral.
1. Em Praga, no Café Arcos, na mesa de
Piglia, sentado, Kafka, o solitário. Fevereiro de
1910. Está diante de Adolf, o pintor, um falso
Tittorelli e quase onírico.
2. Na mesa de omas Bernhard, profecias:
Heidegger é o pequeno burguês da filosofia alemã.
O homem que colocou na filosofia alemã a sua
touca de dormir kitsch.
3. Na mesa de Kafka, com seu estilo,
que agora conhecemos bem, o insignificante
e pulguento pequeno-burguês austríaco que
vive semiclandestino em Praga porque é um
desertor.
4. Aquela touca de dormir kitsch que
Heidegger sempre usou, em todas as ocasiões.
5. Aquele artista fracassado que ganha a
vida pintando cartões-postais, desenvolve, diante
de quem ainda não é, mas que já começa a ser
Franz Kafka, seus sonhos fanhosos, desmedidos,
nos quais entrevê sua transformação no Führer,
no Chefe, no Senhor absoluto de milhões de
homens, criados, escravos, insetos submetidos a
seu domínio.
6. Heidegger é o filósofo da pantufa e da
touca de dormir dos alemães, nada mais, diz Reger
na mesa ao lado.
7. O filho interfere na publicação da obra
de Graciliano Ramos. A sua biografia o apresenta
como escritor, o seu comportamento o coloca
como tutor, censor, interventor.
8. A irmã de Nietzsche editando os escritos
do irmão depois da morte dele e a partir de uma
moral pequeno-burguesa que ela intuía dividir com
a sociedade e que circulava por suas artérias.
Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a
transgressão, entre a submissão e a agressão, entre
a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a
expressão — ali, aí, aqui, nesse lugar aparentemente
vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade,
ali, aí, aqui se realiza o procedimento sampler.
A idéia é destroçar a completude de uma
obra, de partir dela para além dela, negar o todo
porque se admira o todo. O fragmento não nasce
do nada, nasce de uma base, bloco espesso de
informações, sonoro, impresso, visual. Samplear
= dar um corte na completude do presente.
REFUNDAR o presente de cada obra a partir de
um outro presente. Um “a partir de”.
Bicolor
Nasceu, na Inglaterra, um bebê bicolor:
metade negro e metade branco. O evento foi
capa de jornal no mundo inteiro e surpreendeu a todos.
As principais diferenças estavam na cabeça, com o cabelo parte escuro, parte loiro
(embora houvesse controvérsias quanto a
isso, porque alguns afirmavam que a raiz do
cabelo loiro era escura e vice-versa), e com
um olho azul da cor do mar e o outro negro
e penetrante. O nariz também apresentava
pequenas diferenças de um lado para o
outro e os lábios engrossavam levemente
à medida que o corpinho mudava de cor.
O resto do corpo era igual, só metade leite,
metade chocolate.
Vieram médicos do mundo inteiro
pesquisar o fenômeno. Eles fizeram exames,
testes e estudos para tentar descobrir o que
havia de errado com o bebê. Depois de algumas semanas, descobriram que não havia
nada de errado com ele: o que estava errado
era o mundo que o cercava.
Paulo Gravina
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pelo melhor final.
Neste mês, uma oferta para os leitores do
Plástico Bolha: para se cadastrar no site, clicar
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e finalizar o cadastro.
O plano ficará no ar até dia 8 de junho de
2007 e o usuário cadastrado terá dois meses de
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reunindo os 14 melhores roteiros sobre a vida dos
jogadores de um time de vôlei.
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5
Cantiga das meninas das calçadas
ATRASADO
6
O menino levantou num pulo. A empregada
nem precisou chamar mais de uma vez. O chuveiro
já estava ligado. A água pelando transformou o
pequeno banheiro numa sauna. Sonolento, ele tirou
sua camisetona e a jogou no chão. Fez a mesma
coisa com a cueca, formando um rastro de roupas
largadas. Ele estava melado de sono.
Entrou no box e ficou encolhido no canto para
não se queimar. Temperou a água e se molhou.
Lavou o cabelo, mas não com xampu. Ele ainda
estava meio zonzo: a cabeça doía e os olhos ardiam.
Passou o sabão displicentemente pelo corpo.
Desligou o chuveiro, se enrolou na toalha,
que era branca e um pouco maior que ele. Sentiuse confortável. A toalha o esquentava, mas ainda
assim sentia calafrios pós-banho. Eram seis e vinte
da manhã e estava frio.
Vestiu o uniforme da escola. Uma camiseta com
o logo do colégio no centro e uma bermuda azulmarinho. Botou as meias e seguiu para a cozinha.
A mesa posta, o pão saindo da torradeira e
o café com leite na xícara. Sentou com o queixo
apoiado no punho e o cotovelo na mesa. A moça
serviu-lhe o pão já com manteiga.
Mastigava com a boca meio mole. Molhou o
pão no café. Achava meio nojento, o pão inflado de
líquido, quase se despedaçando, mas adorava o sabor
de manteiga com açúcar. Comeu com gosto.
O café demorava mais que o banho. Acordava
sempre às seis e dez e tomava banho em dez minutos.
Vestia-se em cinco. Para comer, levava uns vinte.
Seis e quarenta e cinco. Correu para o banheiro
e escovou os dentes. Não passou fio dental, mas
bochechou com listerine. Como era ardido! No
vidro dizia para ficar com o líquido azul por um
minuto na boca, mas ele não agüentava mais de
vinte segundos.
Correu para sala e arrumou o material que estava
espalhado pela mesa de jantar. Tinha ficado até tarde
estudando a mudança do Antigo Regime para os
Estados Nacionais e as façanhas do rei Luís XIV.
Catou lápis, borracha, livros e cadernos.
Botou tudo na mochila. Quando a empregada
abriu a porta para chamar o elevador, a mãe gritou
do quarto “não saia sem me dar um beijo”. Largou
a mochila na entrada e foi correndo, com passos
largos, se despedir da mãe.
A empregada já estava com a porta do elevador
aberta e a mochila no ombro. Ele saiu e bateu a
porta, afoito. Puxa, como o elevador demorava para
descer cinco andares quando se tinha apenas cinco
minutos para chegar na sala de aula!
Ele morava ao lado da escola. Mesmo sendo
perto, a moça o acompanhava até o portão todos
os dias. Deu bom-dia para o porteiro em tom de
desespero e, ansioso, abriu a porta de ferro antes
de apertar o botão.
Saiu e correu em direção ao colégio, deixando
a empregada para trás. O inspetor estava na entrada
pedindo a caderneta escolar para os alunos. Na
caderneta tinha a foto do estudante e uma lista
de presença em que carimbava, com tinta azul,
PRESENTE e, com tinta vermelha, AUSENTE
ou ATRASADO.
O menino, afobado, falou: “Bom-dia,
Agnaldo, esqueci a caderneta”. O homem olhou
para o relógio, franziu as sobrancelhas e fez cara
de mau. “Mas já são sete e quatro”, resmungou. A
empregada segurava a porta de ferro do prédio e
observava de longe. O menino começou a roer as
unhas e, gaguejando, com cara de desespero, disse
“Mas, inspetor...” “Não tem jeito”, retrucou
o homem, que tinha muita estima pelo garoto.
“Esse é o seu terceiro atraso e você ainda esqueceu
a caderneta... Vai ter que voltar pra casa”.
E o menino, cabisbaixo, seguiu em direção
ao prédio.
Marcela Sperandio Rosa
As meninas deslizam
sinuosas, soturnas,
seus corpos franzinos
na navalha do destino,
o meio-fio do colar
da princesinha do mar.
Entre mesas apinhadas
tulipas alouradas
limões açucarados
flanam as meninas
olhos gulosos, arregalados,
nos petiscos variados.
Tão nuas e famintas,
gafanhotos perdidos
desvalidas na vida,
o imaginário inibido,
choram por comida,
não sonham com vestidos.
Empurradas esfaimadas,
pra fora da calçada
lá está a vilania, não a pé,
negocia, disfarçada,
a troca de ingênuos aromas
por sanduíche e picolé.
No caminho aprendido,
serpentes de pobre luxúria
anjos ou demônios anêmicos
embalsamados de cola, não choram
levantam cotos de saias,
trejeitam, deitam e rolam.
Vão perpassando pela infância
pobres de serem crianças,
mosquinhas drosófilas fatigadas,
em bananas estragadas.
Cecília choraria copiosas gotas,
Se as vissem dormindo, dedo na boca.
Sueli Rios
Com as nossas desculpas, republicamos o poema,
que saiu truncado na última edição.
Transferências e Portadores de Diplomas: 24/4 a 31/5.
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Muito além do sítio do Pica-pau Amarelo por Glaucia Soares Bastos
Em 18 de abril comemoraram-se os 125 anos de
nascimento de Monteiro Lobato, autor conhecido por sua
vasta produção para crianças e pela criação de personagens
como Narizinho, Pedrinho, Dona Benta e Emília, a boneca
que fala. Todavia sua atuação no campo literário foi muito
ampla e variada, embora atualmente menos lembrada.
Desde bem jovem, Lobato publicou artigos em
periódicos de pequena circulação, e sempre com
pseudônimos. Ainda estudante, editava um jornal do
colégio que lia em voz alta durante o recreio. Na faculdade
de Direito fez amizade com rapazes igualmente amantes
dos livros e com pendores literários, grupo que colaborava
com um jornal de Pindamonhangaba, ao qual deram o
mesmo nome da república de estudantes em que viviam:
O Minarete. Quando Lobato for já um autor reconhecido,
publicará um livro intitulado Literatura do Minarete,
reunindo textos dessa época.
Deste grupo de amigos destaca-se Godofredo
Rangel, um mineiro que retorna a Minas Gerais depois
de formado, com quem Lobato manterá por toda a vida
uma correspondência que se atém sobretudo às leituras e à
atividade literária de ambos e à atividade editorial de Lobato.
As cartas de Lobato, zelosamente guardadas por Rangel,
foram publicadas nos anos 1940 sob o título A barca de
Gleyre. Quando se tornar editor, Lobato publicará livros dos
amigos do grupo: Ipês, de Ricardo Gonçalves; O professor
Jeremias, de Leo Vaz; Vida ociosa, de Godofredo Rangel.
Mas o nome Monteiro Lobato só aparecerá impresso
em letra de forma quando ele já tiver mais de trinta anos,
em 1914, no artigo “Velha praga”, publicado no jornal O
Estado de São Paulo, o mais importante da capital. Nessa
época, Lobato está vivendo na fazenda que herdou com
a morte do avô, e o texto em questão é produto de sua
experiência como fazendeiro, e de sua observação da vida
dos caipiras. Um mês depois, será publicado um segundo
artigo sobre o mesmo tema, “Urupês”, e com esses dois
textos Lobato marca sua entrada definitiva no cenário das
letras. A partir de então, se tornará colaborador regular
da Revista do Brasil, publicação de caráter nacionalista,
editada pelo grupo d’O Estado, até tornar-se dono e editor
da mesma, em 1916.
Além da revista, a editora sob o comando de Lobato
começa, em 1917, a publicar livros, o primeiro dos quais é
O saci-pererê: resultado de um inquérito, curioso volume
por ele organizado, reunindo respostas de leitores a um
questionário sobre o saci, publicado por Lobato no Estadinho,
versão vespertina de O Estado de São Paulo. O livro tem um
caráter de pesquisa etnológica e se articula perfeitamente com
o esforço de valorização da cultura nacional. A dedicatória,
o prefácio e a apresentação escritos por Lobato são bastante
esclarecedores do espírito presente nesta obra em particular
e na intelectualidade da época em geral.
O livro que Lobato vai publicar em seguida, ainda a
título de experiência no ramo das edições, será uma reunião
de contos de sua própria autoria, já publicados separadamente
n’O Estado ou na Revista do Brasil, e que ele batiza, a
princípio, de Dez mortes trágicas, que sairá, enfim, como
Urupês. O livro terá grande sucesso e muitas tiragens, e
provocará um intenso debate, não mais restrito a São Paulo,
sobre a figura do caboclo personificada no Jeca Tatu.
Lobato vai investir seriamente na distribuição do
livro, que será um dos pontos fortes de sua editora,
garantindo, assim, maior circulação e menores preços,
popularizando o acesso ao livro.
Urupês é saudado como uma obra inovadora,
principalmente pelo uso da língua no seu registro
coloquial, principalmente na fala dos personagens, o que
se coaduna com o desejo de Lobato de abrasileiramento da
língua portuguesa. Se depois será tratado de conservador
e até reacionário, não é esta a primeira impressão que
causa seu livro.
Na esteira do sucesso de Urupês, sairá no ano seguinte
outra coletânea de contos, Cidades mortas, e, em 1920,
a terceira, Negrinha, onde se encontra o conto de mesmo
nome, considerado seu conto mais lido até os nossos dias
(e “O jardineiro Timóteo”, o meu preferido).
Paralelamente à atividade editorial, Lobato continua
publicando contos, crônicas e ensaios em periódicos,
aí incluídas as crônicas de divulgação da campanha de
saneamento empreendida pelos médicos Artur Neiva
e Belisário Pena, reunidas no volume Problema vital,
publicado também em 1920; e as críticas sobre artes
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plásticas, que serão publicadas em 1924, no livro Idéias
de Jeca Tatu.
É justamente no livro Idéias de Jeca Tatu que
encontramos o texto de Lobato usado posteriormente para
difundir a idéia de que ele era ultrapassado e antimoderno.
Trata-se de uma crítica à exposição de Anita Malfatti,
que, quando foi publicada originalmente n’O Estado,
em 1917, foi contestada exclusivamente por Oswald de
Andrade, mas que, quando incluída no livro, já depois da
Semana de Arte Moderna de 22, passou a ser apontada
pelos modernistas como a causa do afastamento de Anita
Malfatti da estética expressionista, versão que ficou
consagrada depois de muito repetida. Tadeu Chiarelli
acredita que este procedimento foi estratégico para a
construção de uma “história ideal do modernismo”.
A Editora da Revista do Brasil dará lugar à Editora
Monteiro Lobato & Cia., que abrirá falência em 1924 e
renascerá como Companhia Editora Nacional, cuja filial
no Rio de Janeiro ficará a cargo de Lobato, que passa no
mesmo ano a residir com a família nessa cidade.
Em 1927, estando o paulista Washington Luís na
Presidência da República, Lobato é designado Adido
Comercial do Brasil nos Estados Unidos da América e
embarca para Nova York, decidido a lutar pela criação da
siderurgia nacional. Trabalha incansavelmente, estabelece
um estreito vínculo com Henry Ford, visita suas indústrias
e laboratórios e escreve um livro sobre ele. E é em Nova
York que ele e Anísio Teixeira, então em viagem de
estudos, tornam-se amigos em longas conversas depois
dos almoços de domingo. Algumas experiências desse
período estão registradas no livro América.
De retorno ao Brasil em 1931, já sob o governo
de Getúlio Vargas, Lobato volta a ser empresário,
envolvendo-se primeiro com a siderurgia e em seguida
com a prospecção de petróleo – o que na época era
considerado uma empreitada inútil e fadada ao fracasso.
Mais uma vez fará de seus textos a artilharia para seu
combate, que podemos acompanhar nas obras O ferro, O
petróleo e Ainda o petróleo. E, tendo tido oportunidade
de aprimorar seus conhecimentos de inglês, começa uma
intensa atividade de tradutor, dando ao público leitor
brasileiro acesso a importantes obras da literatura inglesa
e da norte-americana, para adultos e para jovens.
Nos anos 1940, será convidado pela Editora
Brasiliense a organizar e publicar suas Obras completas,
tarefa a que se dedica durante meses a fio, reagrupando e
revisando textos e corrigindo provas tipográficas; publicará
também as cartas guardadas por Godofredo Rangel ao
longo dos 40 anos da correspondência entre eles, com o
título A barca de Gleyre.
Lobato morre em 1948, aos 64 anos, deixando de
herança aos leitores, tanto jovens como adultos, numerosos
livros e idéias que continuam circulando no cenário
intelectual brasileiro.
II Fórum
de Pesquisas da Cátedra Padre António Vieira.
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O evento contará como atividade complementar.
7
Contos de Mary Blaigdfield – A mulher que não queria falar sobre o Kentucky
De Lucas Viriato
8
Leões! Ela jamais gostou de leões. Eles não fazem
nada! As leoas sim, essas trabalham, caçam, cuidam da
prole. As leoas são as verdadeiras rainhas da floresta. É
como num tabuleiro de xadrez: a rainha se matando na
horizontal, na diagonal, para ganhar o jogo, e o rei não
passa de um grande peão com honrarias. Ah, e sem falar
que volta e meia fica em xeque, chamando a esposa para
salvá-lo. Lamentável.
Não, certamente a jaula dos leões não era a que mais
a interessava. E havia tantas coisas interessantes para
serem vistas ali. “Onde será o setor dos répteis?”, pensou
olhando para uma placa. Ficou examinando.
“Você está aqui.”
“Não, quem está aí é essa bola amarela. Eu estou
aqui, em frente à placa!”
Não eram somente os leões que a incomodavam, o
didatismo das placas de informações também.
Uma coisa era fato: estava por demais estressada.
E quando ela ficava estressada, tudo passava a ser um
problema. “Tire alguns dias para você mesma” – disse
Larie. “Não pode fazer mal a ninguém descansar um
pouco”. Ela não entendia para quê! Para que perder
tempo descansando, se ela estava ótima? As pessoas
vêem problemas onde não existem.
- Pipoca! Pipoca! Pipoca! – gritava um vendedor,
passando com seu carrinho próximo à placa onde ela estava
parada. Os gritos eram acompanhados de uma incessante
música infantil, repleta de tons agudos. Irritante.
“Será que quero pipoca?” – pensou. É, o programa
não estaria completo sem pipocas.
- Quanto é a pipoca?
- Dois e cinqüenta a pequena, e quatro a grande.
- Uma pequena, por favor.
- Qual sabor?
- Como? Sabor? – perguntou distraída.
- É sabor! Natural, queijo, bacon, chocolate ou
Mendolatium?
Mendolatium! Por mais que já devesse ter se
acostumado com aquilo, ainda parecia estranho. Se
ao menos as pessoas soubessem de toda a verdade!
Todo esse Mendolatium sendo consumido ao redor do
planeta! Uma hora, as conseqüências irão vir à tona,
mas aí, provavelmente já será tarde demais - pensava em
questão de segundos.
- Natural, por favor.
Comprou um saquinho e foi-se em direção aos
répteis.
“Proibido alimentar os animais” estava escrito no saco,
acompanhado de um desenho (riscado) de um homem
dando pipoca aos macacos. Aquilo a irritou também.
Era verdade. Ultimamente ela não andava nada
bem. Também pudera, com as coisas caminhando
daquela maneira. O tempo era cada vez mais escasso,
e o seu segredo estava se espalhando. Não era à toa que
estava estressada. Daí o motivo desse passeio dominical:
pura e simplesmente relaxar.
Mas a notícia estava se espalhando. Ela podia sentir. E
o fato de ela não poder fazer nada, de ser obrigada a relaxar
no meio disso tudo, a deixava ainda mais angustiada.
Cruzou com uma família feliz. Ah... famílias felizes,
elas existem! Isso a fazia lembrar a sua família, lembrar
o passado. Lembrar o...
- Mamãe, mamãe! Onde é que tá a girafa,
mamãe?
- Estamos indo para lá, filho! Você vai terminar sua
pipoca ou posso jogar fora?
Ela inevitavelmente prestou atenção e virouse. Mirou aquele saco de pipoca. Pipocas roxas:
Mendolatium! Como aquilo a torturava por dentro.
Ver aquela criança inocente, metida no meio de tudo.
“Todos são instrumentos! Todos!” Ela podia se
lembrar exatamente de quando ouviu isso pela primeira
vez, havia dez anos. Ela nunca tinha concordado com
aquilo. Nunca foi a favor de envolver inocentes, que nada
tinham a ver com o projeto.
Ver aquela criança correndo ali na sua frente, cruzando
o seu caminho, sabendo que havia ingerido Mendolatium
a estava matando. A música cheia de agudos continuava
entrando em seu ouvido e abalando a essência de seu ser
– o pipoqueiro ainda estava por perto, certamente.
Aquela situação estava cada vez mais insuportável!
Ela atirou o saco de pipocas no chão e correu. Correu
entre os visitantes, quase derrubando uns e outros.
Algumas pessoas se assustaram e começaram a correr
também. Com o clima tenso que havia se instalado
depois da revelação das últimas notícias pelos jornais, era
comum tal atitude. Em poucos minutos, uma situação
de pânico generalizado tomou conta do local. Filhos se
perdendo dos pais, animais gritando, pessoas correndo
para todos os lados. Um ou outro segurança tentava
acalmar as pessoas, mas era em vão. Latas de lixo eram
derrubadas e os seus conteúdos esparramados pelo chão
contribuíam com a atmosfera caótica. Vidros quebrados,
gritos, choros de crianças.
No meio daquela situação, ela era a única que sabia
por que estava correndo, e sabia também que de nada
adiantaria correr. Não havia para onde ir. Era necessário,
antes de tudo, manter a calma. Manter a calma!
Ela parou de correr. A respiração estava ofegante, o
coração batia mais do que o peito podia agüentar. Ela se
apoiou na barra da grade de uma jaula. Ficou ali parada,
exausta. Eram tantos pensamentos vindo à sua cabeça!
“Gruuuuuuuuuuu! Crupac! Crupac!”
Um grito estridente soou para ela como uma lança
no peito de um guerreiro já convalescido. Papagaios! Ela
não precisava de mais isso: papagaios estridentes gritando
no seu ouvido.
Foi naquele momento que o inusitado aconteceu.
Um grande absurdo do destino ou apenas parte de uma
síncope nervosa? Ninguém sabe, mas foi quando o
papagaio virou-se para Mary Blaigdfield e disse:
- Eu sei! Crupac! Eu sei o que você fez no Kentucky!
Crupac! Crupac!
E o resto todos podem imaginar como foi. Naquela
manhã de domingo Mary foi a cereja no grande bolo de
caos que o Jardim Zoológico se transformou. Em meio à
bagunça generalizada, poucos prestaram atenção em suas
convulsões epiléticas-diarréicas. A não ser os papagaios,
que embalaram o show agonizante de Mary com um
emaranhado de gritos agudos, fazendo a carrocinha de
pipocas parecer silenciosa.
Ela é Mary Blaigdfield,
e ela não quer falar sobre o Kentucky.
Intenções
Naqueles dias gelados, só
restava respirar daquele único
jeito pesado que a rinite lhe
permitia e cruzar os dedos para
que fosse capaz de jogar tudo
para o alto, inclusive algumas
máscaras que tinham deixado
de servir. Não pensar. Mas isto,
claro, seria impossível, vivia num
mundo de gente grande agora,
nada de impulsos sem primeiro
esclarecerem-se intenções. Sentada em frente ao fogo com
livro e cigarro na mão pensando
pensando pensando, que burra,
naquela casa cheia de janelas e
corredores, ninguém nem ela
mesma ali, mesmo ali na luz não
era ela nem ninguém. Assim somando-se a paisagem alaranjada
uma tosse espessa e uma farpa
que penetra vigorosa na sola do
pé, tem-se uma perfeitamente
despretensiosa meia-noite de
segunda, logo antes de ele vir
falar de.
Constanza de Córdova
Espaço
Nos cadernos de faculdade
Os poemas
Lutavam
Por espaço
Entre as matérias
Minha poesia
Nunca foi covarde
Fillipe José Diniz

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