Liberto da Religião: O Inestimável Prazer de Ser um

Transcrição

Liberto da Religião: O Inestimável Prazer de Ser um
Liberto da Religião
O Inestimável Prazer de Ser um Livre-Pensador
Paulo Bitencourt
© Paulo Bitencourt
paulo [ @ ] bitencourt.net
Capa: Galáxia do Cata-Vento (M101 ou NGC 5457), um universo-ilha com um diâmetro aproximado de 170.000 anos-luz
(quase o dobro da Via Láctea), a cerca de 25 milhões de anos-luz
da Terra e contendo pelo menos um trilhão de estrelas, das quais
cem bilhões têm a mesma temperatura e tempo de vida do nosso
Sol. Imagem composta de fotos tiradas pelo Telescópio Espacial
Hubble, da NASA, Telescópio Canadá-França-Havaí e telescópio
do Observatório Nacional de Kitt Peak.
Contracapa: Farol da Ponta da Ferraria, São Miguel, Açores. ©
Paulo Bitencourt.
Citações bíblicas extraídas da Almeida Revista e Corrigida (ARC,
2009), Nova Versão Internacional (NVI, 2000) e Nova Tradução
na Linguagem de Hoje (NTLH, 2000). © Sociedade Bíblica do
Brasil.
ISBN: 978-1535198844.
Proibida a cópia, reprodução e distribuição desta obra por quaisquer meios ou processos. A violação de direitos autorais constitui
crime (Código Penal, art. 184 e Parágrafos e Lei n° 6.895, de
17/12/1980), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações
diversas (Lei n° 9.610, de 19/02/1998).
Índice
Medo
Lógica
Mito
Diversidade
Realidade
Razão
10
49
87
135
179
226
Prefácio
Como o prefácio é aquela parte do livro que autor nenhum gosta
de escrever e leitor algum de ler porque, além de antecipar o conteúdo da obra e estragar a surpresa, mais ou menos como o trailer
de um filme, se bem que nem tanto, costuma ser aquela enrolação que muitos leitores veem como encheção de linguiça, mas
que todo autor escreve para conferir a seu livro um quê de intelectualidade, pois toda obra literária que se preza tem prefácio, e
impressionar seus leitores, dos quais os que por ele pagaram acabam lendo, afinal ele custou dinheiro e dinheiro não dá em árvores, pelo menos nunca vi, mas não me importo com nem uma
coisa nem outra, muito embora eu nada tenha contra dinheiro, a
não ser quando ele é sujo, ocasião em que calço luvas para manuseá-lo, pois se existe uma coisa que odeio, é ficar doente, já que é
mais fácil ganhar na loteria que encontrar um médico bom, a
menos que alguém seja milionário, o que obviamente não é o
meu caso, do contrário eu estaria agora nas Bahamas torrando
meus maços de milhões, em vez de aqui sentado com o pescoço
tenso e dor nas costas de tanto escrever, salvo se este livro vender
que nem água e se tornar um best-seller e eu então conseguir lavar a égua, algo que não acontecerá nem que a vaca tussa, pois
quem conhece a Lei de Murphy sabe muito bem do que estou
falando, vamos em frente que atrás vem crente.
Prefácio II
Mostrei o prefácio à minha mãe e para minha total surpresa ela
ralhou comigo. “Como é que é?”, disse ela indignada, “Você
chama isso de prefácio?”. “Mas mãe...”, tentei argumentar. “Isso é
prefácio de gente?”, interrompeu ela. Envergonhado, abaixei a
cabeça e fiquei olhando para os meus sapatos. “Olhe aqui, mocinho, não botei você no mundo pra escrever um prefácio desses.”
“Mas mãe...” “Sem essa de mas mãe. Sente aí nessa cadeira e escreva um prefácio decente, digno de nossa família. Se ficar bom,
faço um mingau de alho pra você.”
Ela ainda não tinha terminado a frase e eu já estava de novo
sentado na cadeira que fazia meu pescoço ficar tenso e minhas
costas doerem, pois se existe algo com que alguém pode me chantagear fácil, é um bom mingau de alho. Esaú trocou sua primogenitura por um ensopado de lentilhas. Idiota. Eu jamais teria
feito isso. Mas por um mingau de alho...
Aqui, então, o prefácio de gente:
Imagine, caro leitor, alguém lhe contar uma história fantástica,
dizendo que, se nela acreditar, você será criticado por crer no que
o mundo considera uma loucura, mas que isso deve fazer você
feliz, pois estará sendo vítima de perseguição, o que prova que
essa história é verdade e que você faz parte de um grupo de escolhidos. Assim que acredita nessa história e se sente um escolhido,
você é advertido de que, se dela duvidar, sofrerá graves consequências, exatamente como aqueles que, por considerarem-na
loucura, se recusaram a nela acreditar.
Uma maneira bem esperta de fazer você bloquear todo e
qualquer pensamento crítico e rechaçar o que quer que possa induzi-lo a submeter essa história a escrutínio racional, não é mesmo?
Isso, caro leitor, se chama religião. Nos países em que por séculos essa história vem sendo passada de geração a geração como
sagrada, ela está tão profundamente enraizada que faz parte de
sua tradição e cultura. Por isso, não é de admirar que desde o berço milhões de pessoas sejam ensinadas a vê-la como verdade universal incontestável, o que causa condicionamento da mente e
resulta num automatismo religioso que leva a maioria delas a
nunca parar para se perguntar se essa história faz sentido e acreditar nela é sensato e necessário.
Paradoxalmente, essas mesmas pessoas acham perfeitamente
natural ter um posicionamento crítico sobre crenças alheias, o
que não as faz sentir constrangimento algum, nem perder um
minuto sequer de sono.
Onde não há reflexão há manipulação. Meu objetivo, portanto, é fazer esses crentes estenderem a naturalidade com que questionam outras religiões a só mais uma: a sua própria.
Se o Cristianismo é a crença que mais disseco, isso se deve ao
simples fato de eu ter sido cristão e ele não só ser a maior religião
do mundo como também, e de longe, a mais seguida por brasileiros. Não é segredo que religião é um tema complexo e muito
abrangente. Desnecessário, então, dizer que não é possível fazer
uma análise de todas as crenças religiosas. Na verdade, nem é preciso, pois todas as religiões se resumem numa só coisa: crença em
sobrenaturalidades em face da total ausência de evidências. Assim,
de modo geral o que vale para uma religião vale para todas.
Levou algum tempo, mas afinal descobri que não existe prazer maior do que ser um livre-pensador, e é isso que procuro
transmitir por meio deste livro.
Paulo Bitencourt
Viena, Áustria
Certa vez, escrevi que há quinze coisas que sei sobre Deus e uma
delas é que ele é alérgico a mariscos.
— Carl Reiner
Medo
Minha mãe me disse, há tempo atrás,
onde você for, Deus vai atrás.
Deus vê sempre tudo que ‘cê faz.
Tinha tanto medo de sair da cama à noite pro banheiro,
medo de saber que não estava ali sozinho,
porque sempre, sempre, sempre eu estava com Deus.
— Raul Seixas (Paranoia)
GEORGE CARLIN, UM famoso comediante norte-americano, apresentou, em 1972, um programa intitulado As Sete Palavras Que
Você Nunca Pode Dizer na Televisão. O caro leitor está morrendo de curiosidade para saber quais são? OK, ei-las: *#$%&!,
&#$!%@, #&$&!%*, !@&#$%, %*@#$&, #!%&@$ e
$@&#!%. A piada consistia em Carlin dissecar esses sete palavrões de maneira tão minuciosa que ao fim perdiam toda obscenidade, transformando-se em palavras comuns.
Na pequena cidade em que nasci, havia dois cinemas: o Marajá e o Plaza. Enquanto o Marajá era especializado em kung fu e
bangue-bangue à italiana, o mais sofisticado Plaza projetava os
últimos sucessos de Hollywood, porém sem deixar de lado as populares pornochanchadas da década de 1970. Garotos em plena
explosão hormonal, como eu, se deleitavam com a “obscenidade”
dos cartazes desses filmes, que naquela época eram considerados
pornográficos, mas que menos de uma década mais tarde passaram a ser mostrados na TV e hoje não escandalizam nem vovós
centenárias.
Ainda que não de maneira uniforme, ao redor do globo a expansão do conhecimento, avanço da Ciência, aumento geral do
nível de instrução e popularização da internet tendem a fazer as
pessoas ficarem cada vez menos ingênuas. Muito do que na geração anterior era reprovável, hoje é aceitável ou tolerável. À medi10
da em que diminui a ingenuidade, os tabus perdem a força ou
desaparecem.
Desde 1826, ano em que o professor Cayetano Ripoll foi enforcado pelo tribunal católico Junta de Fé, em Valência, na Espanha, ninguém mais no Ocidente precisa temer ser condenado à
morte por blasfêmia ou heresia. Ainda assim, para muita gente
divindades e religiões continuam sendo tabus sacrossantos e amedrontadores. Se tomarmos Cristianismo e Islã, temos um total de
quase quatro bilhões de pessoas, ou mais da metade da população
mundial, que não ousam duvidar, quem dirá questionar os dogmas das duas maiores religiões, muito embora todos saibam que
eles não se baseiam em evidências. Enquanto em grande parte do
mundo islâmico crítica à religião e descrença são passíveis de pena
de morte, no mundo cristão pessoas ainda podem ser presas por
publicamente se oporem a convicções religiosas. Se o caro leitor é
ateu e está planejando passar um tempo na Rússia, quando estiver
lá não diga “Deus não existe” num bate-papo virtual, a menos
que você esteja com vontade de ver o Sol nascer quadrado.
Não são poucos os crentes que demandam a incriticabilidade
do Cristianismo. Apesar de todo esclarecimento e liberdade, no
Brasil é comum administradores de canais do Youtube e páginas
do Facebook serem ameaçados de morte ou processados por criticarem ou parodiarem a fé cristã. Mundo afora, quem publicamente declarar não acreditar em seres invisíveis será visto como
normal. Quem no Ocidente publicamente declarar não acreditar
nos seres invisíveis das religiões indígenas, africanas e asiáticas será
visto como normal. Quem nas Américas publicamente declarar
não acreditar nos seres invisíveis da religião judaico-cristã será
visto com desconfiança e poderá sofrer hostilidades.
Um dos principais atributos do deus cristão é ser santo. O
que é santo é sagrado; o que é sagrado, inviolável; o que é inviolável, inquestionável; o que é inquestionável, indiscutível. Assim,
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não é de admirar que num país em que, segundo o Censo de
2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, apenas 8%
das pessoas não têm religião, 86,8% são praticantes do Cristianismo e o fundamentalismo cristão cresce de maneira vertiginosa,
criticamente refletir sobre Deus e religião não seja nem comum
nem aceitável.
A essência de muitas religiões é a mesma: por mais simples e
desconhecidas que sejam, elas pregam a existência de pelo menos
um deus que recompensa quem o agrada e castiga quem o desagrada. Uma característica comum a todas é que deuses não estão
nem um pouco interessados em pôr fim às dúvidas e acirradas
discussões sobre sua existência. Se o deus cristão existe, seria tão
fácil para ele acabar com a aflição dos que anseiam por descobrir
o sentido da vida, com a angústia daqueles que pensam precisar
ter certeza de que a morte não é o fim e com a inimizade entre as
diferentes religiões e suas seitas, que ao longo da História matou
milhões de pessoas e ainda hoje gera arrogância, intolerância, discórdia e divisão: bastaria ele aparecer à Humanidade. Como deus
onisciente e todo-poderoso, ele sabe como poderia fazê-lo de modo inequívoco, dissipando toda e qualquer dúvida.
O deus bíblico supostamente inspirou alguns homens da Idade do Ferro a redigir uma cartilha com relatos também da Idade
do Bronze, fez alguns deles ter sonhos enigmáticos, revelandolhes eventos futuros por meio de obscuros simbolismos, e chamou pessoas para fundar igrejas. Desde então, ele fica observando
suas criaturas se debaterem com a interpretação de suas inspirações literárias, curioso para ver quem delas as decifram corretamente e quantas as aceitam sem questionar. Dizem por aí que
tudo o que é bom precisa ser alcançado através de árduo esforço.
Então, é como se Deus sentisse prazer em pôr à prova a capacidade do homem de crer, executar e esperar. Só quem passa nesse
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teste se qualifica a receber o prêmio: morar numa mansão de ouro
por infinitos decilhões de anos.
Maior figura do Cristianismo, o apóstolo Paulo compara a fé
em Deus principalmente a uma corrida, mas também a uma luta.
Para mim, e acho que para muita gente, uma comparação nada
motivadora. No ginásio, tivemos um péssimo professor de Educação Física. Em vez de nos ensinar diferentes modalidades esportivas, ele botava a classe para correr debaixo de sol escaldante, razão por que o apelidamos de professor de pista. Nas provas bimestrais, ele nos dava um ponto por cada volta em torno do
campo de futebol. Como odiávamos correr, a maioria de nós dava só cinco voltas, o suficiente para passar. Se o Paraíso só é alcançável por meio de corrida e luta, quem não gosta nem de correr nem lutar está perdido.
Religiosos veem a vida como um teste administrado por
Deus. Contudo, a concepção de que ele nos testa é uma incoerência. Primeiro porque não se trata de um teste qualquer, como
os escolares, que o aluno, se reprovado, tem a chance de repetir.
O teste divino dura uma vida inteira e seu objetivo não é qualificar uma pessoa para a vida profissional, mas determinar onde ela
passará a eternidade: se tocando harpa e entoando louvores em
altas e brilhantes nuvens ou sendo fritado e urrando de dor nas
profundezas tenebrosas do Tártaro. E segundo porque os seres
humanos não são iguais numa série de aspectos, como intelecto,
condição de saúde, estrato socioeconômico, educação, inclinações
e oportunidades. Por isso, dadas as consequências terríveis de
uma reprovação, se a vida fosse um teste divino ele não seria justo. Ao mesmo tempo corrida e provação, a vida de alguns tem
mais obstáculos e é mais dura que a de outros.
Tampouco é igual em todas as pessoas a predisposição para
acreditar na existência de divindades e seguir uma religião. Algumas têm grande facilidade para crer, bem como se submeter a
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autoridades eclesiásticas. Já as de espírito mais livre, que crentes
gostam de classificar de rebeldes, são menos ou nada inclinadas à
religiosidade. Semelhantemente, a propensão para fazer o bem e
praticar o mal não é igual em todo mundo. Por outro lado, se
fôssemos iguais o resultado do teste seria o mesmo para todos, o
que o tornaria sem sentido, tanto mais quando se leva em conta
que Deus, sendo onisciente, conhece o futuro e sabe o resultado
do teste antes de aplicá-lo. Isso mesmo. Neste exato momento,
Deus já sabe quem passará na prova quem não, quem irá para o
Céu quem para o Inferno. Que cristão ousaria afirmar que Deus
não sabia o resultado do macabro teste que fez com Abraão? Entretanto, nenhum se atreve a chamar esse teste de absurdo.
Piscando como o letreiro de néon de um cassino de Las Vegas, duas palavras saltam aos olhos de quem, livre de viés religioso, reflete sobre a concepção de Deus ensinada por muitas religiões: infantilidade e sadismo. Deus cria os seres humanos diferentes uns dos outros, no entanto ignora suas diferenças e de todos
espera submissão incondicional, castigando os que têm dificuldade em concordar com o que sobre ele é ensinado. Em que um
deus assim diferiria de ditadores e tiranos?
Ao que tudo indica, Deus parece estar um pouco cansado de
sua imagem pública milenar de velho rabugento de barba branca.
Por isso, para dar uma melhorada nela, ele contratou a ajuda profissional de relações-públicas especializadas: pastores neopentecostais. A estratégia consiste em fazer os fiéis esquecerem que
Yahweh, o deus mal-humorado e implacável, que matava ou
mandava matar até crianças, e Jesus, o homem-deus que gostava
de crianças, são a mesma divindade, levando-os a ver o velho rabugento de barba branca Yahweh como deus só dos judeus e a
fazer de Jesus o deus camarada dos cristão, trazedor de cura e fortuna.
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E por falar em implacável, há quem afirme que se tornou ateu
após ler a Bíblia com bastante atenção. Numa entrevista coletiva
por ocasião do lançamento do filme Êxodo: Deuses e Reis, de
Ridley Scott, assim se referiu o ator Christian Bale a seu personagem Moisés: “Penso que esse homem era esquizofrênico e foi um
dos indivíduos mais bárbaros sobre que já li na minha vida”.
Deus falava com Moisés diretamente e quase tudo o que a figura
mais importante da Bíblia dizia, especialmente as ordens para
destruir cidades inteiras, exterminando todos os seus habitantes, o
que incluía crianças, começava com um amedrontador “Assim diz
o Senhor”.
Demos a alguém que nunca tenha ouvido falar da Bíblia o
capítulo 28 de Deuteronômio para ler e ele certamente pensará
tratar-se do roteiro de um filme de terror. Sob inspiração divina,
Moisés enumera as maldições com que Yahweh promete castigar
seu povo, caso este ouse “não cumprir todos os seus mandamentos”:
O Senhor te fará pegar a pestilência, até que te consuma da
terra [...]. O Senhor te ferirá com a tísica, e com a febre, e
com a quentura, e com o ardor, [...] e te perseguirão até que
pereças. [...] O Senhor te ferirá com as úlceras do Egito, e
com hemorroidas, e com sarna, e com coceira, de que não
possas curar-te. O Senhor te ferirá com loucura, e com cegueira, e com pasmo do coração. [...] O Senhor te ferirá com
úlceras malignas nos joelhos e nas pernas, de que não possas
sarar, desde a planta do teu pé até ao alto da cabeça. [...] E
todas estas maldições virão sobre ti, e te perseguirão, e te alcançarão, até que sejas destruído. [...] E comerás o fruto do
teu ventre, a carne de teus filhos e de tuas filhas. [...] O Senhor se deleitará em destruir-vos e consumir-vos.
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A propósito, por que a Bíblia faz tanta questão de frisar a
bondade de Deus? Se ela não contivesse passagens do tipo “Louvai ao Senhor, porque ele é bom” (Salmos 107:1), será que ao fim
de sua leitura concluiríamos que o deus bíblico é um deus bondoso? Pelo menos 60 versos da Palavra de Deus se dedicam a convencer o leitor de que o ser que criou 200 bilhões de galáxias é
bom, claro sinal de que isso não é evidente.
Como haveriam as proibições extra-bíblicas impostas por
muitas denominações evangélicas, que podem ir de fumar, tomar
bebidas alcoólicas e café, comer carne de porco e frutos do mar,
assistir à televisão, frequentar cinema e teatro, ler romances e livros científicos, ouvir música não religiosa, dançar, praticar esportes, usar calças compridas, cabelo curto, joias e maquiagem a
pintar as unhas, de não serem reflexos da severidade do deus da
Bíblia?
Se há algo que realmente incomoda a deidade bíblica, é o
prazer sexual de suas criaturas. Enquanto masturbação, que o cineasta Woody Allen chama de sexo com a pessoa que ele mais
ama, e sexo extraconjugal são pecado, homossexualidade é muito
mais que isso: uma aberração. Oficialmente, o Catolicismo vê
sexo como um ato reservado unicamente à procriação. Do outro
lado da moeda, seria coincidência que o maior país protestante,
os Estados Unidos, é também o que tem as leis sexuais mais bizarras? Acredite quem puder, em vários estados americanos todas
as posições sexuais estão proibidas, com exceção daquela em que
o homem está deitado sobre a mulher, conhecida justamente como a posição do missionário. No estado do Alabama, ninguém
precisa de permissão para comprar uma arma nem é obrigado a
registrá-la. Como nos filmes de faroeste, ele pode carregá-la para
quase todos os lugares. Porém, comercializar e presentear brinquedos eróticos, como vibradores, acarretam multa de US$
10.000 e um ano de detenção. Reincidências podem resultar em
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até dez anos vendo o Sol nascer quadrado. Será que é porque vibradores são letais, ao passo que armas de fogo são inofensivas?
O furor do deus do Antigo Testamento é constrangedor para
muitos cristãos, no entanto eles não têm como dele se desvencilhar, pois, além de Jesus não ter desaprovado nem revogado uma
letra sequer do que está escrito na Bíblia Judaica, Yahweh e seu
filho são a mesma divindade. Quem acha que o deus do Novo
Testamento é só paz e amor precisa ler, por exemplo, João 3:36:
“Aquele que crê no Filho tem a vida eterna, mas aquele que não
crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece”.
O caro leitor certamente já ouviu falar de um lago de fogo e
enxofre, em que pessoas são torturadas por infinitos decilhões de
anos, não? Por mais incrível que possa parecer, esse lugar de indizível terror não é uma doutrina do Antigo, mas do Novo Testamento. Destruição, perdição e Inferno estavam entre os temas
preferidos de Jesus, que a eles se referiu mais de 40 vezes, como
nesta ocasião: “Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás;
mas qualquer que matar será réu de juízo. Eu, porém, vos digo
que qualquer que [...] chamar a seu irmão [...] de louco será réu
do fogo do inferno” (Mateus 5:21-22). Como um pastor neopentecostal, Jesus não conseguia ficar muito tempo sem citar Diabo,
demônios e castigo divino. Foi ele, inclusive, quem pronunciou a
sentença que mais dá arrepios em cristãos: “Se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado” (Mateus 12:32).
Todas as igrejas pregam que o ser humano está perdido, mas
que para ser salvo basta crer em Jesus. Curiosamente, nunca ouvi
falar de um presidente de uma denominação cristã que tivesse
aberto uma conferência com as seguintes palavras: “Irmãs e irmãos, Jesus afirmou: ‘Aquele que crê em mim tem a vida eterna’.
Refletindo profundamente sobre isso, para mim ficou claro como
o Sol que a igreja é uma instituição supérflua, pois, como diz a
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Bíblia, basta crer em Jesus. Assim, apresento aqui minha carta de
demissão e proponho a dissolução de nossas organizações. Deus
não quer igrejas. Ele quer que cada cristão fale de Cristo às pessoas. Só isso. Ah, e quem está tão acostumado a dar o dízimo que
não consegue parar, que a partir de agora o doe a instituições de
caridade”.
Por que jamais ouviremos uma fala como essa? Porque, além
de igrejas serem fantásticos negócios, o que poderia ser mais fascinante que ser o representante da autoridade de ninguém menos
que o próprio Criador do Universo? Em Hebreus 13:17, Deus
ordena: “Obedecei a vossos pastores e sujeitai-vos a eles”. Ora, se
a igreja representa Deus na Terra e o Espírito Santo se utiliza de
“homens de Deus” para instruir as pessoas, a voz da igreja é a voz
do próprio Deus. Consequentemente, divergir das diretrizes da
igreja é opor-se à autoridade divina e fechar os ouvidos à voz do
Espírito Santo, um pecado para que, como disse Jesus, não há
perdão. Não é, portanto, necessário ser muito esperto para discernir uma relação entre Deus, religião, igreja, autoridade, medo
e submissão.
O que poderia ser mais angustiante para um crente do que estar arrependido e não ser perdoado por Deus? Se falar contra o
Espírito Santo é o único pecado imperdoável, essa não é uma informação trivial, mas crucial. Apesar disso, o Nazareno não se
deu ao trabalho de transmiti-la de maneira clara, razão por que
entre cristãos não existe consenso sobre o que “falar contra o Espírito Santo” significa. Isso faz muitos crentes entrar em pânico.
Em artigos on-line sobre o assunto, fiéis aterrorizados deixam
comentários desesperados, implorando para que alguém lhes garanta que não cometeram o mais grave de todos os pecados.
Dizem por aí que se torcermos um jornal de notícias policiais
sai sangue. Com a Bíblia não seria diferente. Ela é simplesmente
repleta de violência, em sua maior parte extrema. Nisso não have18
ria grande problema, caso a Bíblia fosse considerada por todos
aquilo que realmente é: uma obra histórico-mitológica. No entanto, para 2,2 bilhões de pessoas ela é o livro por meio de que o
Criador do Universo ensina suas criaturas a ser pessoas compassivas, perdoadoras e morais. Em realidade, a Bíblia só chegaria perto de ser um livro moral se dela recortássemos todos os relatos em
que o próprio deus bíblico não dá bom exemplo, como o do apedrejamento de um homem por juntar lenha no sábado e o despedaçamento de 42 meninos por zombarem da careca de um profeta.
Quando alguns israelitas se voltavam para outros deuses, o
que acontecia com frequência, Yahweh encarregava alguém de
passá-los “ao fio da espada”. Se o número de infiéis era expressivo, Deus enviava secas que duravam anos e faziam todo o povo
passar fome, o que inclui grávidas, crianças, idosos e enfermos.
Apesar do esforço de alguns redatores do Livro dos Livros para
convencer seus leitores de que a divindade bíblica é boa e exemplo moral, muitos de seus relatos claramente mostram que ela
não sentia qualquer constrangimento em matar inocentes ou fazêlos sofrer.
Por sinal, às vezes Deus derramava sua ira inteiramente sobre
inculpados. Após engravidar a mulher de um de seus soldados,
Davi deu instruções para que o cornudo fosse posicionado no
segmento mais perigoso da frente de batalha, onde bater as botas
era praticamente inevitável. Em vez de castigar o rei tanto por
adultério quanto assassinato, Deus feriu o bebê que nasceu dessa
união ilícita, fazendo-o sofrer de uma doença letal e matando-o
após sete dias de agonia. Em outra ocasião, Davi ordenou que um
censo fosse realizado, o que desagradou o deus bíblico, que mais
uma vez não puniu o culpado. Em vez disso, Yahweh mandou
uma peste que matou 70.000 homens que nada tinham a ver com
o peixe.
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Que outra função teriam as muitas narrativas bíblicas das
mais que excessivas punições divinas senão a de inculcar medo?
Com medo de se perder, um fiel da Igreja Ortodoxa na América
escreveu a um padre, dizendo estar confuso sobre o que seriam
“pecados mortais” e pedindo uma lista que o ajudaria a não cometê-los. Em sua resposta, publicada no site da igreja, o clérigo
esclarece que Deus não faz qualquer distinção entre pecados. Todos são mortais. Segundo o padre, hamartía, a palavra grega para
pecado, significa errar o alvo, que consiste em viver como Cristo
viveu, quer dizer, sem pecado. Cada vez que não acertamos o alvo, pecamos, não importando se o erramos por um centímetro ou
um metro, afirma o pároco. Citando um exemplo, ele diz que
não ir à missa é um pecado tão mortal quanto assassinar alguém.
Diante de tantos exemplos, tanto no Velho quanto no Novo
Testamento, de como Deus faz questão de ser temido, é impossível seu relacionamento com seus seguidores não ser permeado por
medo, sobretudo quando um dos principais dogmas do Cristianismo é o tormento eterno. Como diz o famoso hino “Onward,
Christian Soldiers!” (Avante, Soldados Cristãos!), do reverendo
anglicano Sabine Baring-Gould, cristãos se encontram em guerra
contra as forças do mal, razão por que precisam incessantemente
vigiar e orar para não caírem em tentação, pois “a carne é fraca” e
“larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição”. O
medo de se perder é, portanto, uma característica marcante da
religião cristã. Sem embargo, poderia ser psicologicamente saudável viver com um constante receio de desagradar o Big Father,
que dia e noite vigia seus filhos, anotando num gigantesco livro
não só todas as ações mas até todos os pensamentos deles?
Não obstante a implacável ira de Yahweh e a ênfase de Jesus
em Juízo Final e Inferno, cristãos não consideram o Cristianismo
uma religião do medo. Claro, é sua religião. Cristãos veem o
Cristianismo através das lentes da idealização, da mesma maneira
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que católicos idealizam o Catolicismo e protestantes o Protestantismo.
Em todos os anos em que fui evangélico, nunca ouvi falar que
a Reforma Protestante teve um lado feio. Eu nem sonhava que o
Protestantismo pudesse ter sido tão intolerante e cruel quanto a
igreja de que ele tinha se separado com o propósito de ser um
Cristianismo melhor, isto é, o verdadeiro Cristianismo. No livro
mais importante publicado pela denominação a que pertenci, o
reformador Martin Luther, ou Martinho Lutero, é retratado como um cristão exemplar, um verdadeiro herói da fé com lugar
garantido no Céu. Só há um probleminha com a imagem que
protestantes gostam de difundir do maior ícone do Protestantismo: nada poderia estar mais longe da realidade.
Assim definiu Thomas Mann, romancista alemão de mãe brasileira, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, o monge Martinho Lutero: “Um poderoso odiador, de todo coração pronto
para derramar sangue”. Lutero odiava judeus com tal ferocidade
que, em 1543, chegou a publicar um livro intitulado “Von den
Juden und Ihren Lügen” (Sobre os Judeus e Suas Mentiras), em
que incita à queima de suas sinagogas e casas. Era vontade do Pai
da Reforma que os judeus fossem tratados como ciganos, outro
povo por quem ele sentia asco, habitassem em estábulos, tivessem
seus livros confiscados, e, sob ameaça de morte, os rabinos fossem
proibidos de ensinar. O antissemitismo de Lutero foi tão inflamado que no livro “Mein Kampf” (Minha Luta) Adolf Hitler
exalta o monge como um de seus maiores ídolos.
Em face do ódio luterano por judeus, não é de se estranhar
que a Igreja Evangélica não só não tenha se oposto ao Nazismo
como até o tenha recebido de braços abertos. Logo em seguida à
tomada de poder por Hitler, o respeitado teólogo evangélico
Emanuel Hirsch, especialista em Kierkegaard e autor de vários
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livros, escreveu: “Nem uma única nação possui um estadista como o nosso, que leva o Cristianismo tão a sério”.
Em 1933, Friedrich Otto Dibelius, superintendente geral da
Igreja da União Prussa e, por conseguinte, uma das personalidades mais importantes do Protestantismo, pregou na igreja de
Sankt Nikolai, em Potsdam, para os deputados evangélicos, enaltecendo a política nazista de perseguição a judeus e outros grupos:
“Aprendemos com o doutor Martinho Lutero que a igreja não
deve impedir as autoridades legais de fazer aquilo a que foi chamada, ainda que seja duro e impiedoso”. Dias depois, ele escreveu
uma carta dizendo: “Sempre me vi como antissemita. Não há
como negar que em todas as ocorrências de subversão da civilização moderna os judeus ocupam papel principal”.
Nas relações entre Igreja Evangélica e Nazismo, um dos casos
mais perturbadores e embaraçosos é o de Walter Hoff, pastor da
Igreja Luterana e membro do movimento “Deutsche Christen”
(Cristãos Alemães), um braço racista do Protestantismo, fundado
pelo pastor Joachim Hossenfelder. A bandeira dos Cristãos Alemães estampava uma fusão da cruz de Cristo com a cruz suástica
nazista. Em 1940, Hoff se alistou na Wehrmacht, as forças armadas de Hitler, indo combater na Frente Oriental, onde foi condecorado com a Cruz de Mérito de Guerra. De lá, o pastor escreveu
uma carta em que se gabou de sua devoção ao Nazismo: “Na
Rússia soviética ajudei a liquidar um número considerável, quer
dizer, muitas centenas de judeus”. Mesmo assim, terminada a
guerra a Igreja Luterana designou Hoff para o posto de conselheiro espiritual num hospital próximo a Hamburgo.
Caso o caro leitor seja evangélico, o que espera de um homem
de Deus como o pastor estadunidense Billy Graham, considerado
o maior evangelista do mundo, que passou décadas pregando pela
TV e em estádios de futebol a milhões de pessoas? Certamente
que ele seja um cristão exemplar, uma pessoa que por todos os
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poros exala virtudes atribuídas a Jesus, como humildade, compaixão e amor, não é mesmo? Graham, que tem uma fortuna para
evangélico algum botar defeito, avaliada em 25 milhões de dólares, foi amigo e conselheiro de vários presidentes americanos, entre eles Richard Nixon, aquele que, na Guerra do Vietnã, expandiu os combates para os países vizinhos, cobrindo o Camboja
com um tapete de bombas. Em 1989, um memorando que o pastor Graham tinha escrito a Nixon veio a público. Nele, o mesmo
homem de Deus que comoveu as massas pregando o amor de Jesus estimula Nixon a bombardear as barragens norte-vietnamitas.
Graham sugere que esses ataques “poderiam destruir da noite para o dia a economia do Vietnã do Norte”. Segundo estimativas,
essa investida teria resultado na morte de um milhão de pessoas.
Em 2002, foi a vez da transcrição de conversas gravadas entre
Graham e Nixon se tornarem públicas. Numa delas, o pastor parabeniza Nixon “por tudo” e diz: “Acredito que o Senhor está
com você”. O presidente reclama da influência dos judeus sobre
Hollywood e a mídia, que estariam “totalmente dominados por
judeus”. Graham acrescenta: “São eles que publicam material
pornográfico. [...] Essa chave de braço tem de ser quebrada ou o
país descerá pelo ralo”. “Você acha?”, pergunta o presidente.
“Sim, senhor”, responde o pastor. Nixon: “Eu também. Nunca
poderei dizer isso, mas é o que penso”. Graham: “Não, mas se
você for eleito uma segunda vez, talvez possamos ser capazes de
fazer alguma coisa a respeito”.
Apesar da insistência do Pai da Reforma, e mesmo concordando com alguns de seus pontos de vista teológicos, Erasmo de
Rotterdam, o mais respeitado intelectual da época, nunca quis se
juntar a Lutero. O humanista também era crítico da decadência
na Igreja Católica, porém a agressividade do radicalismo luterano
o repelia. Avesso a extremos, Erasmo se opunha à divisão da Igreja, ansiando por uma reforma dentro dela. Seu distanciamento de
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Lutero enfureceu o monge de tal maneira que ele vociferou:
“Quem esmaga Erasmo, esmaga um percevejo, que morto fede
mais que vivo”. Discorrendo sobre o extremismo de Lutero, Stefan Zweig, escritor austríaco que viveu no Brasil, escreveu: “Esse
lutador enraivecido não suporta outro fim de um debate senão a
total e incondicional destruição de seu oponente”.
Em busca do sossego de um lugar livre de agitações religiosas,
Erasmo de Rotterdam se mudou para Basileia, na Suíça, não
imaginando que em breve também aquela cidade seria tomada
pelo que Zweig classificou de “febre da Reforma”. Logo as massas
invadiram as igrejas, arrancaram as imagens e as esculturas dos
altares e as queimaram em três grandes fogueiras em frente à catedral. Decepcionado com esses excessos, Erasmo foi residir na
católica Freiburg im Breisgau, cidade alemã ainda livre dos tumultos religiosos da época.
Em 1524, camponeses influenciados pelos ideais da Reforma
Protestante se uniram para reivindicar o fim de sua exploração e
opressão pela aristocracia. Num panfleto intitulado “Wider die
Räuberischen und Mörderischen Rotten der Bauern” (Contra o
Bando de Camponeses Ladrões e Assassinos), Martinho Lutero
foi direto ao assunto: “Quem puder deve quebrá-los em pedaços,
estrangular, esfaquear, secreta e publicamente, como se mata a
pauladas um cachorro louco”. Um aristocrata escreveu a Philipp
Melanchthon, ou Filipe Melâncton, braço direito de Lutero e
líder intelectual da Reforma, reverenciado como “O Professor da
Alemanha”, pedindo seu parecer sobre a rebelião dos camponeses
e obteve a seguinte resposta: “Contra um povo tão rude, malvado
e sanguinário, Deus chama à espada”. Com o aval e apoio moral
dos reformadores, a aristocracia rebateu a revolta rural com tal
rigor que mais de 100.000 campônios foram massacrados no que
ficou conhecido como a Guerra dos Camponeses. Nenhuma de
suas reivindicações foi implementada.
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Por influência direta de Jehan Cauvin, ou João Calvino, segunda maior grandeza da Reforma Protestante e autoridade religiosa de Genebra, na Suíça, 34 pessoas acusadas de magia negra
foram queimadas na fogueira. Calvino foi responsável também
pela pena capital imposta a Miguel Serveto y Conesa, ou Miguel
Servet, cientista e teólogo espanhol, queimado vivo por negar o
dogma da Trindade e se opor ao batismo infantil. Numa carta ao
reformador Guillaume Farel, Calvino escreveu: “Espero que sobre
ele [Servet] seja imposta no mínimo a pena de morte”. Bizarramente, poucos meses antes de ter recomendado a execução de
Servet, Calvino tinha intercedido por cinco estudantes de teologia presos por heresia em Lyon, na católica França. Desnecessário
dizer que, ao contrário de Servet, esses jovens seguiam à risca as
doutrinas de seu defensor. É importante notar que ao sentenciar
o espanhol à fogueira, Calvino contou com o aval oficial de todos
os cantões protestantes da Suíça. Um ano após a execução de Servet, ele ainda recebia louvações de outros reformadores, como
Melâncton, que lhe escreveu: “Querido irmão, a Igreja te agradece hoje e te agradecerá também no futuro. Teus magistrados agiram bem em condenar esse blasfemo à morte”.
Calvino tinha tanta autoridade sobre protestantes quanto o
papa sobre católicos. Pouquíssimos ousavam divergir dele, pois
quem o fazia não ficava impune. Foi o que aconteceu com Sébastien Châteillon, ou Sebastião Castellion, um teólogo francês que
Calvino tinha instituído como pastor de uma igreja e reitor da
Escola de Latim de Genebra. Por não gostar das traduções de passagens bíblicas que Castellion tinha feito para um livro escolar,
Calvino não autorizou sua publicação, o que gerou tensão entre
os dois. Durante uma epidemia de peste bubônica, Castellion
criticou a indiferença dos pastores que, em vez de prestar auxílio
aos doentes, abandonaram a cidade às pressas. Acusado de comprometer a unidade do corpo clerical com sua crítica, Calvino o
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demitiu. Castellion se viu obrigado a deixar Genebra, mudandose com sua família para Basileia, onde, porém, nenhuma igreja
quis empregá-lo.
Em várias de suas publicações, Castellion condenou a postura
inflexível e impiedosa de Calvino, sobretudo no caso de Miguel
Servet: “Matar um homem não significa defender uma doutrina.
Significa matar um homem” e “Se as armas de Servet foram razão
e escrita, ele deveria ter sido combatido com razão e escrita”. Para
ele, a Igreja Reformada em nada diferia da Inquisição Católica.
Proibido, seu último livro, intitulado Sobre a Arte de Duvidar, só
foi publicado em 1981. As hostilidades contra Castellion não cessaram com a morte de Calvino. Seu sucessor, o reformador Théodore de Bèze, ou Teodoro de Beza, acusou o francês de diversas
heresias. Por sorte, a morte natural o livrou da iminente condenação. Hoje, Sebastião Castellion é considerado um grande precursor da tolerância religiosa e liberdade de consciência.
O caro leitor sabe o que é defenestração? Não? Não faz mal,
eu explico. Vem da palavra latina fenestra (janela) e significa atirar
alguém pela janela. Foi exatamente isso que, em duas ocasiões,
fizeram os hussitas, os seguidores de Jan Hus, ou João Huss, um
precursor da Reforma Protestante na Boêmia, atual República
Tcheca. Em 1410, a Igreja Católica se encontrava afundada em
imoralidade e dividida entre três papas. Com a venda de indulgências, ou perdão de pecados, um deles financiava uma luta armada contra um de seus rivais. A postura crítica de Huss frente à
corrupção da Igreja lhe trouxe muito prestígio entre a população
tcheca, mas suscitou a ira dos governantes. Por isso, em 1415, ele
foi queimado na fogueira e seus seguidores passaram a ser perseguidos. A primeira defenestração se deu em 1419, quando protestantes revoltados invadiram o prédio da prefeitura de Praga para
exigir a soltura de correligionários. Porém, sua exigência rapidamente se transformou em sede de vingança pela morte do refor26
mador. Enfurecidos, os hussitas atiraram o prefeito e nove servidores públicos janela abaixo. Quem não morreu imediatamente
foi apunhalado pela turba que esperava em frente ao prédio. Um
sobrevivente foi levado a uma câmara de tortura e brutalizado até
à morte. Três semanas mais tarde, os seguidores de Huss invadiram várias igrejas e mosteiros, vandalizando alguns e queimando
outros. Esses episódios desencadearam as Guerras Hussitas, conflitos religiosos que duraram cerca de 25 anos e fizeram a Boêmia
perder para sempre sua posição de potência econômica e cultural.
A segunda defenestração ocorreu quase duzentos anos mais
tarde. Apesar de o Protestantismo já estar enraizado na Boêmia, a
tensão entre protestantes e as autoridades católicas ainda gerava
conflitos. Uma das primeiras coisas que Fernando II de Habsburgo fez quando, em 1617, se tornou rei da Boêmia foi tentar recatolizar seu reino à força, o que obviamente jogou gasolina na fogueira do ódio que havia entre os dois Cristianismos rivais. Enfurecidos, cerca de duzentos protestantes invadiram o Castelo de
Praga e jogaram três secretários da corte pela janela. Essa defenestração deu o pontapé inicial à Guerra dos Trinta Anos, uma
enorme luta religiosa que se alastrou por vários países da Europa
e, em decorrência da morte de milhões de pessoas, devastou extensas áreas. Em algumas regiões da Alemanha, até 70% da população foi dizimada, não só pelos combates mas também pelas epidemias que eles causaram.
Segundo o Índice Global de Religiosidade e Ateísmo de
2012, da Gallup International, hoje 48% dos tchecos se consideram irreligiosos e 30% afirmam ser ateus convictos, o que coloca
a República Tcheca em terceiro lugar na lista dos países mais ateístas do mundo. Coincidência ou seria seu longo e violento passado de guerras religiosas a causa da profunda aversão dos tchecos
a religiões?
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O batismo infantil praticado pela Igreja Católica nunca foi
um princípio combatido pelos reformadores. Mesmo assim, muitos protestantes o consideravam anti-bíblico e se rebatizavam,
razão por que foram chamados de anabatistas, do grego “rebatismo”. Predominantemente pacifistas, os anabatistas se recusavam
a participar de conflitos armados e eram contrários à união entre
Igreja e Estado, algo que a Reforma fazia questão de manter. Por
causa disso, eles foram dura e longamente perseguidos em toda a
Europa, tanto pelo Catolicismo quanto Protestantismo.
O que Calvino era para Genebra o reformador Huldrych
Zwingli, ou Ulrico Zuínglio, era para Zurique. Em disputas
dogmáticas, o parecer de Zuínglio era lei. Ele condenou as doutrinas anabatistas e o Conselho da Cidade ordenou o banimento
de todas as pessoas que se recusassem a batizar seus bebês. Pouco
mais tarde, optou-se pela tolerância zero: quem professasse o
Anabatismo seria punido com a morte.
Felix Manz foi um colega de estudo de Zuínglio, mas divergências teológicas separaram um do outro. Zuínglio avançou a
papa protestante de Zurique e Manz se tornou um dos fundadores do Anabatismo. Com a proibição do movimento anabatista,
Manz foi preso várias vezes, ocasiões em que Zuínglio tentava
dissuadi-lo de sua crença, por este tida como herética. Por permanecer firme em suas convicções, em 1527 o líder anabatista foi
condenado à morte por afogamento no rio Limmat. Felix Manz
foi o primeiro protestante suíço a ser martirizado pelas mãos de
outros protestantes.
Um parêntese no lado negro do Protestantismo para relatar o
caso mais grotesco de ódio ao Anabatismo, protagonizado pela
Igreja Católica. O anabatista Dirk Willems, de Asperen, na Holanda, foi preso por se rebatizar. Fazendo uso de uma corda improvisada, ele conseguiu escapar pela janela, mas foi visto pelo
guarda. Caminhando sobre a fina camada de gelo de um lago,
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Willems o atravessou, mas ela não suportou o peso do perseguidor, que afundando gritou por socorro. Ao invés de continuar
salvando a própria pele, Willems voltou e puxou a sentinela para
fora da água. A despeito desse incomparável exemplo de altruísmo, o guarda prendeu o anabatista, que acabou sendo condenado
à fogueira. No dia 16 de maio de 1569, ventava muito forte e as
chamas não atingiam Willems com intensidade suficiente para
matá-lo. Não suportando presenciar aquele martírio, uma autoridade pública ordenou que, com um golpe de misericórdia, alguém pusesse fim ao tormento do anabatista.
Tomando como base textos de Lutero, em 1530 Filipe Melâncton redigiu a Confissão de Augsburgo, ainda hoje o credo
oficial da Igreja Luterana. Nos artigos 5, 9, 16 e 17, lê-se: “E
malditos sejam os anabatistas”. Do artigo 16 também consta:
“Aos cristãos é permitido punir malfeitores com a espada e guerrear”. Um ano mais tarde, Melâncton foi incumbido pelo príncipe-eleitor da Saxônia de emitir um parecer sobre o Anabatismo.
Com o aval de Lutero, o reformador recomendou a pena de morte para os líderes anabatistas e o banimento de seus seguidores.
Pouco depois de Lutero morrer, Melâncton desabafou em
uma carta que suportar as explosões temperamentais do Pai da
Reforma foi uma “servidão humilhante”.
Perseguição, tortura e condenação à morte ocorreram em
muitas cidades protestantes da Europa. Em conformidade com
Êxodo 22:18, onde se lê: “A feiticeira não deixarás viver”, tanto
Lutero quanto Calvino foram enérgicos defensores e promotores
da caça às “bruxas”, que tirou a vida de cerca de 70.000 pessoas.
No dia 6 de maio de 1526, Lutero pregou numa igreja, dizendo:
“É deveras justa a lei que ordena a morte das feiticeiras”. Nas regiões da Suíça em que o Protestantismo se tornou a religião oficial, perseguir bruxas era comum. A última feiticeira a ser executada na Europa foi Anna Göldi, de Glarus, uma cidade protestante
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da Suíça, 265 longos anos após a redação das 95 teses de Lutero
denunciando os erros da Igreja Católica.
Pelo menos 4.000 pessoas foram vítimas da caça às bruxas na
protestante Escócia, entre 1563 e 1727, período que o historiador
escocês Roy Pugh classifica de “mini-holocausto”. Segundo ele,
líderes civis e religiosos alimentavam a crença em bruxas como
forma de “controlar a população através do fanatismo religioso”.
O único caso conhecido de um clérigo protestante que se
opôs a essa barbárie é o do capelão da corte Anton Praetorius, na
cidade de Birstein, na Alemanha. Quando, em 1597, quatro mulheres foram acusadas de bruxaria, Praetorius foi convocado para
integrar o tribunal que as julgaria. Após três delas terem perecido
nos horripilantes interrogatórios, não aguentando mais ouvir os
berros da quarta infeliz o pastor esmurrou a porta da câmara de
tortura com tanta força e por tanto tempo que a pobre mulher
acabou sendo posta em liberdade. Em consequência disso, Praetorius foi demitido e obrigado a mudar de cidade.
Durante essa época, a única região protestante da Europa em
que existia certo grau de tolerância religiosa era a Holanda. Por
esse motivo, para lá emigraram muitas pessoas oprimidas e perseguidas, entre elas comerciantes, filósofos, cientistas e artistas. Essa
relativa liberdade catapultou a modesta República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos ao posto de maior potência econômica, científica e cultural do mundo, época que ficou conhecida como a Idade de Ouro Holandesa. Ela propiciou o surgimento
do Iluminismo, ou Século das Luzes, ou ainda Idade da Razão,
cujo principal precursor é identificado por muitos historiadores
na pessoa do filósofo Bento de Espinosa, também conhecido por
Baruch Spinoza.
Em 1492, quando os cristãos reconquistaram a Península
Ibérica das mãos dos muçulmanos, os judeus foram proibidos de
praticar sua religião e obrigados a se converter ao Cristianismo.
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Como não seguir a religião do amor de Cristo significava morte
certa, muitos judeus se converteram. Arriscando ser presa a qualquer momento, a maioria deles continuou praticando o Judaísmo
às escondidas, mas quem podia, ia buscar refúgio na Holanda.
Foi exatamente isso o que fez a família de Espinosa, que fugiu da
Inquisição Portuguesa. (Ideia para cena de documentário televisivo. À porta de uma igreja católica, perguntar a fiéis que saem da
missa: “O que você acha de o Catolicismo ter levado a Inquisição
até à Índia?”.)
Assim como a Igreja Católica faz com a Inquisição, também a
Evangélica intenta relativizar o lado negro de sua história, justificando-o. Num artigo intitulado Zuínglio e as Bruxas, de seu léxico on-line, a Igreja Reformada de Zurique minimiza as atrocidades cometidas pelo Protestantismo suíço, rotulando-as de males
necessários que teriam vindo para o bem: “Se a Reforma realmente atacou o mundo da feitiçaria, isso, na minha opinião, é debatível. Se sim, a caça às bruxas teria sido, por assim dizer, um acidente de trabalho no curso da desmistificação do mundo introduzida pela Reforma”. Em outras palavras, Protestantismo é remédio; torturar, estrangular, enforcar, afogar, decapitar e queimar
pessoas, seus efeitos colaterais.
No Brasil, muitos afirmam que a tortura e os assassinatos praticados pela ditadura militar também foram “acidentes de trabalho”, males necessários na luta contra um suposto Comunismo.
Em 2016, o Brasil inteiro viu e ouviu pela TV o deputado federal
católico Jair Bolsonaro, idolatrado por milhões de cristãos, inclusive evangélicos, fazer apologia à tortura. Na Áustria e Alemanha,
o genocida Hitler ainda é admirado por muita gente, pois ele teria melhorado a condição de vida das pessoas e combateu o Comunismo. O mesmo se dá com o exterminador Stalin, ainda reverenciado por muitos como herói, sobretudo por industrializar a
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Rússia e derrotar Hitler. Se cinismo é comum em ideologias políticas, por motivos óbvios ele não deveria existir em religiosas.
E por falar em bruxas, com o que o caro leitor associa o nome
Jaime I da Inglaterra? Exato, com a Bíblia do Rei Jaime, mais conhecida como King James Version, uma das mais conceituadas
traduções das Sagradas Escrituras, patrocinada pelo rei da Inglaterra, que regia também a Escócia com o nome de James VI. Em
1590, em Edimburgo, o protestante James estabeleceu um tribunal para julgar 70 pessoas denunciadas por feitiçaria. O rei esteve
presente às sessões de tortura e conduziu pessoalmente os interrogatórios de vários dos réus, como os da parteira Agnes Sampson,
acusada de fazer uso de magia negra para tentar afundar o navio
real em seu retorno de uma viagem à Dinamarca. As fortes tempestades tinham-no obrigado a fazer uma escala de várias semanas
na Noruega. Sampson foi submetida a torturas horríveis e acorrentada na parede do cárcere. Sua cabeça foi trancada numa máscara de ferro, da que quatro espetos adentravam sua boca, dois
pressionando sua língua, os outros dois a parte interna de suas
bochechas. Após se declarar culpada das 53 acusações levantadas
contra ela, a parteira foi estrangulada e queimada numa fogueira.
Jesus disse que os filhos de Deus são os pacificadores, mas se é
que o Cristianismo um dia foi pacífico, isso foi antes de ele se
tornar a religião dominante do Império Romano. Em 2012, o
Public Religion Research Institute, de Washington, levantou que
58% dos evangélicos brancos e 32% de todos os católicos possuem armas de fogo. Isso significa que apenas nos Estados Unidos
mais de 120 milhões de cristãos são proprietários de revólveres,
espingardas, rifles, fuzis, etc. Ainda que um cristão alegue usá-los
tão somente para se defender, ele mesmo assim entra em contradição com sua religião, pois desacata um dos mais conhecidos
preceitos de Cristo:
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Não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita,
oferece-lhe também a outra [...]. Amai a vossos inimigos,
bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam
e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem, para que sejais filhos do Pai que está nos céus. (Mateus 5:39,44-45)
Essa é mais uma das inúmeras passagens bíblicas que causam
divergência entre […]
Fim das primeiras 30 páginas (de 270).
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