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ISSN: 1517-9257 Papéis : rev. Letras Campo Grande, MS v. 6 n. 11 p. 1-64 jan./jun. 2002 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL Reitor Manoel Catarino Paes - Peró Vice-Reitor Mauro Polizer CÂMARA EDITORIAL Alda Maria Quadros do Couto Ana Maria Souza Lima Fargoni Dercir Pedro de Oliveira José Batista de Sales Maria Adélia Menegazzo Paulo Sérgio Nolasco dos Santos Rita Maria Baltar Van Der Laan Ronaldo Assunção Vânia Maria Lescano Guerra Ficha Catalográfica preparada pela Coordenadoria de Biblioteca Central/UFMS Papéis : rev. Letras / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997). Campo Grande, MS : A Universidade, 1997. v. : il. ; 27 cm. Semestral. Numeração de vols. irregular: v. 5 omitido ISSN 1517-9257 1. Literatura - Periódicos. I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CDD-805 2 APRESENTAÇÃO Papéis, a Revista de Letras da UFMS, chega ao seu 11º número no momento em que se vê consolidar o programa de pós-graduação na área, dividida entre duas grandes linhas: Estudos Lingüísticos e Estudos Literários. Os artigos apresentados procuram suprir essas duas vertentes. A teoria da narrativa autobiográfica, na forma do diário, é estudada por Sheila Dias Maciel partindo da liberdade do sujeito narrador. Analisa a obra de Josué Montello demonstrando que o narrador não apenas relata o que vivenciou mas também o que ficcionalizou, rompendo as marcas da verdade e da sinceridade, tanto temporal quanto espacial, pela verossimilhança. Por sua vez, Nilda Lemos de Almeida Cabrita demonstra em seu ensaio que a construção das vozes no romance é articulada pela escolha de determinados vocábulos, os quais configuraram marcas ideológicas no discurso das personagens do romance Chão Bruto de Hernâni Donato. No terceiro ensaio, a autora, Bianca Andreza da Silva Dias, procura analisar narrativas de alunos da 5ª série que se voltam para a construção de identidades, mais especificamente, de masculinidades, e indagar como é construída a identidade social dos outros. Ressalta os mecanismos de defesa presentes nas práticas discursivas e nas brincadeiras características do masculino e do feminino. O discurso pedagógico e as diferentes estratégias de processamento da referenciação são estudados por Vânia Maria Lescano Guerra, a partir da análise das estratégias discursivas utilizadas pelo professoer na sala de aula de língua materna. O vocabulário dos estudantes universitários, quando avaliado de uma perspectiva sociolingüística, demonstra que a seleção vocabular implica a visão de mundo do grupo. Para chegar a essa conclusão, Roseli Imbernom do Nascimento parte de três variáveis: formação escolar, sexo e nível sócio-econômico. Demonstra, assim, que o uso da língua depende também das condições escolares. A avaliação dos cursos de graduação em Letras pelo MEC vem apontando a necessidade de se rever estruturas em busca do conhecimento e da formação continuados. O artigo de Vera Lúcia do Amaral Conrado propõe uma nova maneira de se ver e de se formar o profissional de Letras no mundo globalizado, ressaltando sua capacidade de construir-se e ao conhecimento de modo objetivo e eficiente. Por fim, é apresentado o resumo da tese de doutorado de Maria Emília Borges Daniel, intitulada “Uma história da disciplina português no ensino normal: 1930-1940”, defendida na Universidade de São Paulo, em 2001. Maria Adélia Menegazzo 3 Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica, Impressão e Acabamento Editora UFMS Revisão A revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade dos autores Distribuição Livraria UFMS Publicação da UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL Portão 14 - Estádio Morenão - Campus da UFMS Fone: (67) 345.7200 - Campo Grande - MS e-mail:[email protected] JÚLIO FELIZ "Conjunção I" Gravura em água forte 13 x 10 cm – 2/20 Col. do artista 4 Júlio da Costa Feliz Mestre em Educação pela UFMS, licenciado em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo e formado em Música pela Escola Heitor Villa-Lobos de Ribeirão Preto-SP. Atualmente é professor do Departamento de Comunicação e Artes da UFMS. SUMÁRIO 6 A SINCERIDADE COMO FICÇÃO Sheila Dias Maciel 12 FORMAS DE DIALOGISMO EM "CHÃO BRUTO": A CONSTRUÇÃO DAS VOZES NO ROMANCE Nilza Lemos de Almeida Cabrita 20 SOBRE O QUE ELES CONVERSAM? A CONSTRUÇÃO DAS MASCULINIDADES POR MEIO DAS HISTÓRIAS CONTADAS NO CONTEXTO ESCOLAR Bianca Andreza da Silva Dias 28 O DISCURSO PEDAGÓGICO E O PROCESSAMENTO DA REFERENCIAÇÃO Vânia Maria Lescano Guerra 36 O VOCABULÁRIO DOS ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS: UM ESTUDO COM BASE EM REDAÇÕES DE VESTIBULAR 50 AVALIAÇÃO QUE FAVORECE A AUTONOMIA E DESENVOLVE O EMPREENDEDORISMO NO PROFISSIONAL DE LETRAS Roseli Imbernom do Nascimento Vera Lúcia do Amaral Conrado 61 Resumo UMA HISTÓRIA DA DISCIPLINA PORTUGUÊS NO ENSINO NORMAL: 1930-1940 Maria Emília Borges Daniel 5 O objetivo deste trabalho é discutir a relação entre sinceridade e escrita em forma de diário, questão problematizada por meio da leitura do Diário completo, de Josué Montello. Palavras-chave: Sinceridade; Diário; ‘‘Diário completo’’; Josué Montello The aim of this work are to discuss the relationship between sincerity and the diary writing wich has been brought forth through the reading of the Diário completo, from Josué Montello. Keywords: Sincerity; Diary; ‘‘Diário completo’’; Josué Montello 6 * Professora de Teoria Literária da UFMS, Campus de Três Lagoas. Doutora em Teoria da Literatura pela Unesp, S. J. Rio Preto. A SINCERIDADE COMO FICÇÃO Sheila Dias Maciel * Nadie debe ser más sincero que el autor de diario. Maurice Blanchot Ninguém escreve um diário para dizer quem é. Por outras palavras, um diário é um romance com uma só personagem. Por outras palavras ainda, e finais, a questão central suscitada por este tipo de escrito é, assim creio, a da sinceridade. José Saramago A escrita em forma de diário costuma ser encarada como biográfica, ou seja, é vista, ainda hoje, como um caderno terapêutico onde um “eu” com vida extratextual comprovada relata sinceramente suas impressões sobre acontecimentos variados. Confiar nas confissões deste tipo de escrita, no entanto, é um prazer inocente, já que o texto com o qual nos deparamos pode estar escrito sob a forma de um diário sem, contudo, conter qualquer material biográfico. Para a maioria das pessoas, um diário é um convite ao desvelamento de intrigas e indiscrições, pois sua leitura guarda resquícios de um tempo ancestral em que o diário era um tipo de texto endogâmico, escrito unicamente para satisfazer seu escritor. Se ainda hoje lemos um diário como quem devassa a intimidade guardada é porque essa impressão cristalizou-se através dos tempos. Esta mentalidade de leitura, atrelada ao gênero, pré-existe às diversas formas atuais de se considerar um diário. As menPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 6-11, jan./jun. 2002 talidades, como defende Jacques Le Goff, permanecem incutidas nos comportamentos das pessoas e são transmitidas de geração em geração, de modo tão automático que escapam aos sujeitos particulares da História (1988:71). Mesmo que haja muito pouco de confissão, o arraigamento do autobiográfico na sociedade atual implica um jogo de expectativas e de público que obedece ao impulso natural de satisfazer curiosidades. E esta curiosidade pela vida dos outros, perfeitamente legítima, é um modo indireto de conhecer a nossa própria vida. No entanto, neste processo “não declarado” de autoconhecimento muitas vezes o leitor se apóia numa ilusão referencial. As características intrínsecas da escrita autobiográfica, tais como as suas especiais relações com o real, levam o leitor a acreditar numa ilusão de referência, ou seja, na semelhança ou analogia com algum segmento do real que se apresenta, e que seria transcrito segundo o critério da sinceridade. Se tomarmos as seguintes definições de sincero: 1. Que se expressa sem artifício, sem intenção de narrar ou; 2. Dito ou feito sem simulação: confissão sincera, depoimento sincero; poderemos iniciar o debate sobre a questão, já que diários não são narrativas sem artifício, apesar de a idéia de sinceridade forçar uma espécie de pacto entre o autor e o leitor que determina um modo de leitura e com7 preensão destes textos específimediante um esforço criativo e Mesmo que haja muito cos. A sinceridade, no entanto, este esforço opera no interior das pouco de confissão, o faz parte do “jogo” destas narconvenções ou categorias estéarraigamento do rativas e mesmo que a intenção ticas um desejo de expressão que autobiográfico na do diarista seja biográfica, seu pode ser legítimo. Neste sentido, sociedade atual implica texto conterá desvios, pois a rea relação do leitor com a obra alidade não pode ser transferida não se dará em termos de veraum jogo de expectativas fielmente para a página (Ferreira, cidade, o que seria impossível, e de público que obedece 1986: 1589). mas de verossimilhança, ou seja, ao impulso natural de A relação entre escrita literáde aparência de verdade satisfazer curiosidades. ria e realidade, ou seja, da trans(Caballé, 1995:24). posição da realidade para a páA impressão de sinceridade gina, não é recente. Desde que Aristóteles introdu- revelada em diários publicados por seus autores se ziu na Poética o conceito de verossimilhança, ba- converte apenas em um relato verossímil. Um bom seado nas diferenças entre História e Poesia, o exemplo na literatura brasileira é o Diário compleimpasse passou a figurar como questão. Para to, de Josué Montello. Aristóteles a Poesia (Literatura) encerra mais filoPublicado integralmente em 1998, o Diário comsofia e elevação que a História, pois enuncia verda- pleto é a junção de seis diários sucessivos (Diário des abrangentes ao passo que a História somente da manhã, Diário da tarde, Diário do entardecer, relata fatos particulares. O embate entre a realida- Diário da noite iluminada, Diário de minhas vide, a descrição subjetiva da realidade e a ficção gílias e Diário da madrugada) e abarca as anotapode ser retomado a partir da reflexão sobre a ções do escritor maranhense Josué Montello por forma narrativa dos diários, posto que estes textos mais de quatro décadas, numa narrativa que envoltecem, na comunhão entre sinceridade e impreci- ve tanto o relato do cotidiano (uma forma de microsão, uma síntese desta problemática. É a matéria história), quanto o registro de impressões puramente verbal que articula a passagem da vida para o pa- pessoais sob a forma literária. pel, sem, no entanto, reproduzir a realidade, apeEscritor consagrado, membro da Academia Branas a particularizando, já que não podemos relaci- sileira de Letras e crítico ponderado de questões onar fatos sem o auxílio de uma matriz generica- literárias, caberia perguntar até que ponto as revemente ficcional (White, 1994:15). lações contidas nas 2.688 páginas do Diário comA “sinceridade” que os diários encerram, por- pleto particularizam este “eu” de vida extratextual tanto, é fruto tanto da abundância de detalhes con- comprovada. cretos que podem aparecer no texto, quanto de uma Afinal, a variedade das possibilidades da escrita forma de pacto que faz o leitor identificar nesses em forma de diário comporta textos de graus didetalhes uma espécie de exposição sincera do au- versos. A poetisa Ana Cristina Cesar (Cesar, tor. A sinceridade nada mais é que uma ilusão de 1984:55-84), por exemplo, compôs alguns simusinceridade, ou seja, um argumento a mais para a lacros de diário em que a idéia de sinceridade é aventura da linguagem. calculada: Anna Caballé, ao refletir sobre a impressão de Para dar uma aura de autenticidade aos diásinceridade que ronda estes textos específicos, afirrios, Ana Cristina usa uma linguagem adema que nenhum homem consegue concentrar sobre quada ao gênero, com frases curtas, muitas si uma leitura e fornecer para outros esta experiênvezes nominais, que mantêm uma fraca coecia sem uma carga de subjetividade, por isso acresão entre si. Como conseqüência, seus textos dita que, em maior ou menor grau, toda escrita ausão lacunares, elípticos e têm uma tobiográfica é imaginativa, nasce de um impulso crireferencialidade muito vaga. (Simões Jr., ador. Mesmo assim, crê ser legítimo falar de since1995:157). ridade em um texto autobiográfico, por mais literáTextos como os de Josué Montello, no entanto, rio que seja, já que a sinceridade literária é diferen- estão mais próximos da idéia ancestral de diários e te da sinceridade real. A primeira se desenvolve podem causar dúvidas quanto ao grau de sinceri8 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 6-11, jan./jun. 2002 dade que apresentam, tanto pelo mais as marcas do “eu” que A problemática apuro da escrita quanto por existe além da realidade óbvia. do sujeito narrativo abranger, de maneira peculiar, No Diário completo de alguns dos acontecimentos mais Josué Montello o “eu” que se no texto confessional significativos da Hitória recente delineia e se constrói no discurestá relacionada do Brasil. so é o de um escritor por vocaà questão do A sobriedade da sua escrição. Este “eu” declarado não pasujeito gramatical, tura aliada à ausência de conrece corresponder a uma ilusão preenchido na fissões íntimas, lamentos ou rereferencial se pensarmos na vasvelações indiscretas, faz com ta obra deste escritor maranheninstância discursiva. que nos sintamos diante de um se com mais de oitenta livros pu“eu” inteiriço, uno e de persoblicados e uma carreira literária nalidade formada. Se, como afirma o crítico consolidada. George Hampson, o “eu” que encontramos nos Não podemos dizer, no entanto, que o “eu” que diários de Josué Montello é notadamente com- aparece no Diário completo seja equivalente ao pacto (1988:8) seria justo que indagássemos so- “eu” do escritor, mas uma junção do “eu” que o bre a possibilidade deste “eu” se equiparar a mais escritor quer projetar associado à impossibilidade uma das personagens compostas pelo romancis- de transcrever para a página uma leitura sobre si, ta, ao invés de relacioná-lo a uma exposição sin- sobretudo num texto que se pretenda literário, ou cera do autor. seja, que mantenha vínculo com a ficcionalidade e Quanto a esta possibilidade, o próprio Montello a complexa natureza da arte. nos dá uma pista ao se remeter, na introdução do Além disso, todo autor está emaranhado, em seu Diário da tarde, ao livro de Michèle Leleu intitulado fazer poético, numa rede de linhas e de relações Les journaux intimes (1952), um clássico sobre o que independem dele e que influirão decisivamente assunto. Discutindo sobre a epígrafe do livro em no tecer a sua obra (Samuel:1986:43). questão, Montello acaba por concluir que “mesmo Na relação que o homem estabelece com o real o que é falso num escritor faz parte da sua realida- entra em cena tanto a necessidade de reproduzir de” (1998, 481) e que “o diário traz a lume o mis- esta vivência quanto a vontade de modificá-la. Astério do escritor, mesmo quando atenua ou desfigu- sim, uma obra como o Diário completo é, antes ra a verdade” (1998, 481). de tudo, uma produção humana que não pode ser A problemática do sujeito narrativo no texto situada entre o falso e o verdadeiro, como em qualconfessional está relacionada à questão do su- quer texto ficcional, pois o fingir da ficção é muito jeito gramatical, preenchido na instância maior que a limitante idéia de falso ou de mentira, e discursiva. Seria interessante verificar como po- aponta para a complexa dimensão do homem. deríamos relacionar este “eu” discursivo ao “eu” Ao significar o real manifestando realidades, extratextual. Josué Montello produz uma obra que se não reA preocupação fundamental da escrita em for- produz a realidade, mostra seu autor pelas escoma de diário é com o “eu” além do texto que garan- lhas que ele tece, pelo uso do código verbal. A sinte densidade ao sujeito, como aponta Lúcia Castello ceridade que podemos encontrar pela leitura dos Branco: diários de Montello transcende qualquer detalhe sinO biográfico, enquanto autobio-gráfico, atra- cero de ordem biográfica ao aclarar a manifestação vessa mais os dois conjuntos em questão; o histórica do real do homem pela força edificante da corpus da obra e o “corpo” do “sujeito” real. ficção. O biográfico é então essa borda interior da E apesar da aparente ilusão de sinceridade, o obra e da vida. (1994:51). Diário completo, lido mais amiúde, revela detaAo atarmos o “eu real” e o “eu silencioso”, lhes que desconstroem a clássica escrita relatada que coabita em nós pelo gesto da escrita, surge dia após dia, sem estrutura pré-determinada. A o texto autobiográfico. Em alguns emergem mais certa altura do Diário da madrugada (último dias marcas do real vivido e, em outros, aparecem ário da série que compõe o Diário completo), Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 6-11, jan./jun. 2002 9 as datas parecem deixar de representar referencialmente o cotidiano, passando a ser um artifício que denuncia a desorganização do sistema e apaga a aparente ilusão de sinceridade. Neste último diário que compõe o Diário completo aparecem treze1 registros semelhantes a outros anteriores ou mesmo Ao significar o real manifestando realidades, Josué Montello produz uma obra que se não reproduz a realidade, mostra seu autor pelas escolhas que tece, pelo uso do código verbal. anotações idênticas, apenas apresentadas sob datas diferentes. Estas repetições, ou equívocos, talvez comportem a chave para a compreensão da sinceridade, já que é impossível que um pensamento genuíno se repita em datas diferentes com as mesmas palavras e que este processo se repita outras vezes. Vejamos um exemplo nos quadros abaixo: 8 de abril de 1990 27 de dezembro de 1990 Ao tempo das viagens difíceis, muitos escritores viajavam por seus leitores, E alguns deles sem ser propriamente escritores. Simples escrivinhadores sem assunto. As viagens lhes davam os motivos e os temas. Podiam mentir se quisessem. E muitos deles contavam coisas tão estranhas que espantavam, como Fernão Mendes Pinto, na Peregrinação. Chegaram a fazer do mestre português um jogo de palavras com a denúncia de suas patranhas: Fernão, mentes? Minto. Se havia assim os que contavam o conto, acrescentando muitos pontos, havia sobretudo o narrador veraz, muito cioso das notícias e dos reparos que punha no papel. Nossa literatura, como motivação local, tem como ponto de partida a carta de Pero Vaz de Caminha. Tudo, ali, está certo, e é rigoroso. Sem esquecer o português que dá a mão ao índio, formando a roda para dançar, e assim inaugurar na Bahia o carnaval. Hoje, quando o transporte aéreo banalizou as viagens, e o ônibus é veículo de turismo, os instrumentos de comunicação de massa no levam a preferir o mundo ao nosso quarto, em matéria de viagem. Entretanto, aquilo que se queira dizer a respeito dos lugares distantes, entrou no rol das vulgaridades, e com isto se desprestigiou a literatura dos viajantes, quase reduzida à condição da anedota velha, que todo mundo já ouviu. Ao tempo das viagens difíceis, muitos escritores viajavam por seus leitores, e alguns deles sem ser propriamente escritores. Daí a literatura de viagem, em que incluímos naturalmente a certidão de nascimento do Brasil, com a carta de Pero Vaz de Caminha. Hoje, quando o transporte aéreo banalizou as viagens, e o ônibus é veículo de turismo, os instrumentos de comunicação de massa nos levam a preferir o mundo ao nosso quarto, em matéria de viagem. Entretanto, aquilo que se poderia dizer a respeito dos lugares distantes, entrou no rol das vulgaridades, e com isto se desprestigiou a literatura de viajantes, quase reduzida à condição da anedota velha, que todo mundo já ouviu. 1 Conferir no Diário completo: 7 de agosto de 1967 e 18 de março de 1994; 5 de março de 1988 e 13 de agosto de 1992; 29 de julho de 1987 e 4 de janeiro de 1991; 16 de janeiro de 1987 e 1.º de agosto de 1995; 21 de outubro de 1977 e 30 de novembro de 1992; 28 de julho de 1992 e 21 de março de 1993; 19 de junho de 1990 e 15 de julho de 1993; 29 de janeiro de 1990 e 14 de novembro de 1993; 11 de abril de 1992 e 17 de dezembro de 1993; 1.º de dezembro de 1991 e 12 de janeiro de 1995; 4 de junho de 1991 e 22 de junho de 1995; 4 de março de 1981 e 19 de dezembro de 1995. 10 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 6-11, jan./jun. 2002 A coincidência das notas do escrita “na seqüência da vida apresentadas evidencia uma escontinuada” (Montello:1998:13). A aparente pécie de autoplágio que indica, Por fim cabe ressaltar que a sinceridade do senão a fraude na composição leitura do Diário completo Diário completo continuada do Diário, ao menos pode trazer à tona questionadesfaz-se pela a construção do texto. mentos variados sobre a forma O estranhamento que as anodo diário, mas, evidencia, soimpressão de colagem tações repetidas amparadas por bretudo, a questão da sincerique a manipulação datas distintas causam a um leidade nesta escrita fracionada. das datas evidencia. tor mais atento está relacionado A aparente sinceridade do à quebra do pacto entre autor e Diário completo desfaz-se leitor. Este pacto autobiográfico, pela impressão de colagem que apresentado pelo teórico Philippe Lejeune supõe a manipulação das datas evidencia, tudo nos leque o autor (autor = narrador = personagem) fará vando a compreender que mesmo as caracterísuma apresentação sincera de sua vida e o leitor ticas mais legítimas da forma do diário, como é o poderá buscar informações que possam ser confir- caso da clássica datação e da aparente sincerimadas extratextualmente (1994:64). dade, se assemelham a convenções literárias. Intencionais ou não, estas anotações repetidas É possível afirmar, portanto, que na esfera da literasão uma peça importante para a compreensão do tura autobiográfica o diário ocupa uma posição paraenorme quebra-cabeça que a sucessão de seus re- doxal. Se por um lado aparenta ser o tipo de texto que gistros compõe, já que estas repetições contradi- mais se presta a uma exibição sincera do “eu”, por ouzem a palavra do escritor nas introduções do Diá- tro lado é o mais facilmente manipulado, assim como rio completo e que apresentam a obra como sen- pudemos avaliar por meio do Diário completo. Referências Bibliográficas ARISTÓTELES, HORÁCIO & LONGINO. A poética clássica. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1988. CABALLÉ, A. Narcisos de tinta. Málaga: Megazul,1995. CASTELLO BRANCO, L. A traição de Penélope. São Paulo: Annablume,1994. CESAR, A. C. A teus pés. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. HAMPSON, G. A. O diário de Josué Montello. O Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, 16 jan.1988. suplemento literário. p.8. LE GOFF, J. História: novos objetos. Tradução de Teresinha Marinho. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1988. 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Taking into consideration Hernâni Donato’s book Chão Bruto, this article proposes to reveal, in the light of Mikhail Bakhtin’s theory, the tense relations identified by the discursive hybridization of the novel. Keywords: Literary Discourse; Discursive Hybridization; Hernâni Donato 12 * Mestre em Teoria Literária pela UFMS MS; Professora do curso de Letras do Campus de Aquidauana. FORMAS DE DIALOGISMO EM "CHÃO BRUTO" A CONSTRUÇÃO DAS VOZES NO ROMANCE Nilza Lemos de Almeida Cabrita* 1 - Enunciados da Palavra "Terra" nas Diferentes Vozes Para Bakhtin, o romance é uma narrativa literária que inclui uma pluralidade discursiva. Para o teórico russo, diz José Luiz Fiorin, “o que caracteriza o romance é que nele diferentes vozes sociais se defrontam, se entrechocam, manifestando diferentes pontos de vista sociais sobre um dado objeto”.1 O romance representa um espaço discursivo marcado por uma relação tensa e polêmica entre os diferentes discursos representados pela multiplicidade de pontos de vista de sujeitos sociais. Em Chão Bruto 2 existe uma manifestação multidiscursiva orientada para o signo-tema: TERRA. São discursos distintos que se confrontam e se delimitam ao longo do romance, representados pelas vozes das personagens, do narrador e do poder (instituído como forte posição ideológica que se opõe aos outros discursos), representado pela voz do grileiro. 1 Neste romance, terra entra no contexto literário circundada de diálogos vivos, em múltiplas ressonâncias porque o romancista dá um discurso direto às suas personagens. Cada personagem ao assumir seu discurso revela seu próprio mundo ideológico. Como diz Bakhtin, “ O homem no romance pode agir (...) mas sua ação é sempre iluminada ideologicamente, é sempre associada ao discurso (ainda que virtual), a um motivo ideológico e ocupa uma posição ideológica definida.”3 Analisemos o espaço discursivo do poder representado pelo discurso do Capitão Paulo. Começamos por ele porque é a partir dele que o romance encena a movimentação do processo narrativo. No confronto entre os discursos, terra na voz do Capitão Paulo tem significados divergentes de todos os outros: Um minuto de hesitação pode arruinar uma posse de milhares de alqueires (p. 14). Vou encostar as minhas cristas com as dos maiores grileiros. Vai ser um jogo de pôquer a doze mãos onde cada parada há de valer no mínimo FIORIN, J. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin, dialogismo e construção de sentido, p. 234. 2 DONATO, H. Chão Bruto. 7. Ed. São Paulo: HUCITEC, 1977. Todas as citações de Chão Bruto neste trabalho serão feitas por esta edição e virão acompanhadas apenas por indicação de páginas. 3 BAKHTIN. M. Questões de Literatura e de Estética, p. 136. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002 13 mil alqueires e um punhado de senti um cheiro que me dizia. vidas (p. 15). Como é que a gente pode sentir Esse discurso faz da São quatrocentos alqueires que isso, hem, pai? terra a determinação eu e você vamos decidir no – De terra trabalhada? Não é no da riqueza e poder. baralho (p. 19). nariz que a gente sente isso, não Capitão Paulo faz uso Por melhor que esperasse, não senhora. É na pele, nos ossos, no pensei que fosse boa assim! sangue. É um cheiro que está o da fala com o mesmo Conquisto este pedaço de qualano todo pendente do nariz da vigor com que se quer modo. E fico com ele. gente, metido na pele, e sobe para apropria das terras. Seria desperdício da bondade entisicar o ânimo de um cristão de Deus que uma terra assim quando chega o tempo certo. boa ficasse nas mãos do – É um cheiro bom, hem, pai? esmulambado do Juventino. – Cheiro bom, é? Bom quando o Olhe, minha gente, que de terra entendo um bofulano pode trabalhar sossegado, sabendo que vai cado! Pois lhe digo que tenho respeito até em fucolher o plantado. Mas é um cheiro desgraçado rar com o dedo este chão – receio que do furo para judiar quando o homem desconfia que não brote uma touceira. É assim mesmo, esta terra chegará a ver a colheita porque ou lhe tomam a tem que ser minha (p. 64). terra ou o pêlo (p. 38). Sua fala é marcada por elevados valores monetários, ambição por grandes extensões de terra e desprezo pela vida de outro semelhante. Esse discurso faz da terra a determinação da riqueza e poder. Capitão Paulo faz uso da fala com o mesmo vigor com que se apropria das terras. Para Juventino, ex-grande grileiro, e também pertencente à classe dominante, terra tem a mesma conotação de valor, mas há uma diferença entre seu discurso e o do Capitão. Juventino não sofre do poder da ambição de Paulo. A terra, Crispim, vale o seu custo em sangue. A terra se acostuma com o sangue e isso é perigoso porque ela está pedindo sempre mais e mais (p. 119). Esse discurso pressupõe a existência de um outro que está implícito nele: para que haja dominadores, é preciso que existam os dominados. São os espoliados que vêem a terra com outros olhos, que a sentem com outros sentimentos e fazem ressoar nela outras vozes. – Furador de mato como eu e meu povo, o que quer é terra tal e qual a feita por Deus Nosso Senhor, distância pra enxergar e bater perna o dia inteiro sem esbarrar em cerca e em cultivados (p. 21). – Não se planta este ano, pai? É um ano bom pro milho, não é? Ele morde a ponta da língua, receando trai-se. – Ontem à noite, pai, o vento vinha dali. Eu estava na cama, com a coberta até o queixo. Mas 14 Percebe-se por suas falas que, ao lado do sentimento de perda, os espoliados têm consciência de sua impotência para lutar contra o sistema. Sabem que mais cedo ou mais tarde, cederão à violência da conquista. Para eles, terra é riqueza pacífica, bemaventurança do viver. Não desejam mais do que possuem a não ser colher os frutos de seu apego e devotamento ao lugar em que nasceram e onde esperavam morrer. Contrário a esses discursos, dos dominadores ou dos dominados, é o discurso das mulheres. A voz feminina representada por Laura, Sinhana e Xaíca, guardadas as diferenças individuais, enuncia total discordância ao discurso masculino com relação à terra. Xaíca é um tanto indiferente à sorte da terra, mas revela-se contrária aos acontecimentos na forma como os homens se movimentam, como mostra uma de suas advertências: Mais um, não é, Lino? Outros mil alqueires pro seu dono e um peso a mais na sua consciência, hem, caboclo? Seja bobo, rapaz, o mundo é grande e aberto. Pinique a mula e não volte mais pra este purgatório (p. 32). Sinhana é bem clara em sua oposição: Sou mulher e não quero entender das brigas de vocês. (...) Se os homens são cabeçudos a ponto de trocar a vida por um pedaço de barro, o melhor é mesmo liquidar com os seus assuntos. (...) Nós, mulheres, olhamos por cima disso. Somos Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002 teimosas pelos meses e pelos anos, pelo sossego. Vocês querem viver desafrontados, um só dia. Nós mulheres precisamos viver sossegadas um ano (p. 124). Laura chega ao desespero com a fala do marido, melhor dizendo, dos maridos, “a presença do morto por trás da fala do vivo”, em relação aos “alqueires de terra”: O narrador se satisfaz em apresentar os acontecimentos sem se deixar envolver por eles. Fala da terra como fala das personagens. – Mas Laura, são trezentos alqueires. Trezentos! – Você tem o quê? Ela acarinhava o ventre e uivava, num crescendo de dor e cólera. Desgrenhou-se, rolou pela cama, arranhou o rosto. Gritou até não ter mais forças. Então imobilizou-se! (p. 146). Laura não apresenta no romance um discurso direto sobre terra. Sua posição ideológica, no entanto, é representada pelo discurso do narrador ao descrever suas ações. É ainda Bakhtin que explica: “O romancista pode também não dar ao seu herói um discurso direto, pode limitar-se apenas a descrever suas ações, mas nesta representação do autor (narrador para Bakhtin), se ela for fundamental e adequada, invisivelmente ressoará junto (...) o discurso do próprio personagem”4 Seja ela prática, idealista ou romântica, a mulher substitui o desapego à terra pelo apego à vida. Suas falas estão carregadas de advertências, pedidos e lamentos que os homens ouvem mas não botam cuidados nisso. O narrador se satisfaz em apresentar os acontecimentos sem se deixar envolver por eles. Fala da terra como fala das personagens. Apenas observa e ordena os fatos, ora deixando as personagens falarem, ora ele mesmo falando: Este é o tempo de preparar a terra. O chão está úmido e fofo (...) os homens andam ocupados demais engraxando carabinas e carregando cartuchos para que possam ouvir o chamado da terra. Para os homens a semeadura deste ano é de ódi- 4 BAKHTIN. M. Questões de Literatura e de Estética, p. 137 5 MACHADO, I. O romance e a voz. p. 36 - 37. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002 os. Só têm a espera uma colheita de sangue. Não sabem mais as canções aprendidas para suavizar o trabalho. Estão silenciosamente dispostos a matar ou morrer para defender o pedaço de chão onde moram e vagueiam. Como plantar se a colheita é duvidosa? (p. 38) A terra passa de mão em mão carregada pelo dinheiro, raptada pela força, conquistada pelo sangue, alcançada pelo embuste, a trapaça, a safadeza, o ardil (p. 63). Não faltam no romance as vozes agourentas. São vozes anônimas, em sua maioria, direcionadas para ninguém e para todos ao mesmo tempo: Nunca que vai dar sorte! Dinheiro de sangue acaba mal, não sabe? (p. 44). É um louco. Quer muita terra debaixo dos pés. Pode acontecer que acabe com um punhado dela em cima da boca! (p. 50). A voz que se ouve em toda parte sussurra em ritmo de susto para quem quiser ouvir: - Coisas terríveis vão acontecer (...). Agora (...) Um deles tem que ficar mandando na terra, o outro debaixo dela (p. 106). As posições ideológicas representadas pelos discursos dos sujeitos falantes com relação a terra se confrontam e se entrechocam porque são manifestações de diferentes pontos de vista sobre o mesmo objeto. E cada ponto de vista de concepção de terra está determinado pela posição que o sujeito ocupa no mundo. Não é por acaso que os impulsos agressivos (na ação e nas palavras) do grileiro, na figura de Paulo, provocam o instinto de defesa dos posseiros e o sentimento de indiferença nas mulheres. As posturas ideológicas que se manifestam sobre terra não são harmoniosas porque dependem das posições em que se encontram seus manifestantes. E em Chão Bruto elas estão em posições diferentes e opostas, daí o confronto. Cada sujeito falante perceberá terra de acordo com sua posição (no caso da obra, social e econômica). A construção da percep- 15 ção, segundo Bakhtin, fundamenmanos. É o professor Caio que diz: ta-se no conceito denominado lei No romance, Milhares de vezes tenho dito aos do posicionamento, o princípio meninos que todos os homens são o plurilingüismo social que determina que o que vemos iguais, e não é justo que uns torelacionado à está determinado pelo lugar de mem aos outros a terra, a água, a palavra terra está onde vemos.5 Para Bakhtin, diz casa (p. 122). Irene Machado, “o romance não dissimulado nos É um discurso, evidentemenopera com a imagem do homem, discursos das te, ditado pelo sentido do bom senmas com a imagem de sua linpersonagens (...) so gerador da convivência harmoguagem. O sujeito que fala no niosa. No entanto, essa voz é úniromance é, na maioria das veca e fala tão pouco e tão baixo. zes, um ideólogo e sua palavra Incapaz de ser ouvida pelos hoé sempre um ideologema: representa um ponto de vista particular sobre o mun- mens do presente, só poderá ter ressonância no futuro, observando que quem a ouve hoje são os meninos do” .6 O signo terra não tem neste romance o peso do que se tornarão os homens do amanhã. Considerando-se terra um campo de visão copensamento científico orientado tão só para o domímum a várias personagens, nada mais natural que na nio do objeto mudo. Paradoxalmente, no romance, e nas pegadas teóricas de Bakhtin, a palavra terra pode concepção dialógica de Bakhtin esse campo seja cirser uma coisa que nada comunica de si, mas no con- cundado pela diversidade de manifestações verbais texto em que se enquadra está determinada pelas da cada falante. Não há dúvida de que os diálogos transformações semânticas no discurso das perso- sociais ressoam na concepção polifônica da obra. nagens. Sua representação artística no contexto lite- Essas relações representam-se através do discurso. rário está circundada de emoções plurivocais, diálo- E no contexto literário em que se enquadra esse siggos agitados assinalados pelos pontos de vista dos no, e no que cada sujeito põe a descoberto de sua diferentes sujeitos falantes. Neste raciocínio, em que posição ideológica, o narrador mostra como os disa visão dialogizante e polêmica está centrada no que cursos das classes se tocam, se cruzam e se entrecada personagem põe a descoberto de sua posição chocam nas vozes das personagens. ideológica em relação ao objeto ou em relação aos outros falantes, acrescente-se ainda que no discurso 2 - A Dialogia e o Outro de outrem, no discurso da personagem, penetra, de da Personagem uma maneira ou de outra, o discurso do Autor (nos Existe no romance de Hernâni Donato uma outra referimos ao autor de Chão Bruto). Eis o caráter plurilíngüe de que fala Bakhtin que permite ao escri- forma de manifestação discursiva que merece atenção tor organizar sua verdade relativizada na luta de pon- de análise. Trata-se de uma forma de representação que na concepção teórica do dialogismo de Bakhtin tos de vista. No romance, o plurilingüismo social relacionado à se define como o tema da autoconsciência, isto é, a palavra terra está dissimulado nos discursos das per- relação que o sujeito estabelece consigo mesmo. Na definição da autoconsciência, a representação sonagens, mas é no discurso do narrador que pode haver uma fusão das vozes capaz de refratar as in- que o sujeito (o herói romanesco) faz de si mesmo, e tenções do Autor. Na revolta de uma personagem, que Bakhtin denomina o eu-para-mim, só pode ser na indignação do narrador pode estar introduzido o realizado no discurso indireto livre. Não é uma relação dialógica pacífica: a voz da personagem aparece como discurso camuflado da denúncia. Em meio a tantas vozes atravessadas no espaço fala na escritura do autor. Ao exprimir sentimentos, discursivo de Chão Bruto, uma delas, e apenas uma, ou o que vai pela mente, há uma representação que se toca, superficialmente, na questão dos direitos hu- define como um retorno do eu sobre si mesmo. 6 Ibidem, p. 59. 16 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002 Em Chão Bruto, Capitão Pauum homem cansado a se pergunNa definição da lo tem um campo discursivo voltar se o que fizera vale a pena ou autoconsciência, a tado para si mesmo que faz algum sentido. representação que o exemplifica o tema bakhtiniano da Nesses momentos, a instância sujeito (...) faz de si autoconsciência. É quando ele dialógica conflitante se desenvolestá no auge de suas conquistas, ve no discurso interior dele mesmesmo, e que Bakhtin mais precisamente quando pensa mo. Capitão Paulo não está se didenomina o eu-paraem parar com sua atividade frerigindo a outra pessoa. Age tãomim, só pode ser nética e sonha com uma outra vida somente em sua perspectiva parrealizado no discurso ao lado de Laura. Nesse momenticular. indireto livre. to, entra em conflito consigo mesEncontra-se também no dismo. Trata-se de um discurso volcurso de Laura, apresentado pelo tado para essa personagem em discurso indireto livre, pontos de que terra e mulher fazem parte de um mesmo plano contato com a construção dialogizada da estética de de ação e interesse. O conflito gerado pelo desejo de Bakhtin. É possível afirmar que em Laura existem ter a ambas como propriedades suas se manifesta duas mulheres: uma ambiciosa e outra romântica, dinas vozes mergulhadas nas contradições internas. alogando entre si. Seu enunciado em discurso direto e indireto livre Você sonhava com duas coisas, todas as horas de exterioriza uma construção polifônica de tendência todos os dias: amor e dinheiro. Mais amor ou mais conflitante: Capitão Paulo é um homem dividido; ao dinheiro? Agora, assim à distância, é difícil resmesmo tempo em que não hesita em alcançar seus ponder, não é? O fato é que quando apareceu a objetivos, das profundezas de seu pensamento vem à certeza do dinheiro e a possibilidade do amor, você tona um forte desejo de pacificar-se. Vejamos um disse sim muito depressa! (...) Mas o amor... (...) exemplo: Seria feliz se o amasse. (...) Mas com essa acoConquisto este pedaço de qualquer modo. E fico modação que não resulta em nada você sente com ele. Seria desperdício da bondade de Deus crescer dia a dia o medo de envelhecer assim: que uma terra assim boa ficasse nas mãos do rica, mimada e sem amor! (p. 67). esmulambado do Juventino (p. 64). Quando Laura é representada no momento de criJá experimentara antes aquela sensação de es- se, seu discurso é marcado pelo arrependimento. Intar mergulhado no vazio. Por mais que o homem capaz de uma atitude decisiva, que a levasse para realize e encontre satisfação em vitórias gran- outra direção, ela se questiona, em conflito consigo des e pequenas, chega para ele um momento em mesma, se teria escolhido o certo para si em se caque duvida da oportunidade e da utilidade da- sando com Paulo. Laura representa a Outra para si quelas lutas. mesma. É representada como uma autoconsciência. Para quê? Para quê? (...) havia uma pergunta mais Laura não representa apenas a impotência das mudolorosa: lheres que vivem tal drama, representa a própria cons- Para quem? (...) Sente crescer-lhe a vontade ciência da situação em que vivem. de cerrar os olhos e deixar de pensar. Ou de abanVocê estava certa, cegada pela certeza de que donar tudo... (p.95). basta existir o homem, a vontade feminina e muiNessa polêmica interna, duas vozes, numa relato dinheiro para não ficarem algumas ânsias insação dialógica dissonante, revelam o encontro de Catisfeitas (...) Não é mesmo doloroso morrer conpitão Paulo com o Outro que traz dentro de si. A formada, rica e sem amor? (p. 67). primeira voz identifica um homem decidido, ambicioEstão aí as duas vozes, a de uma Laura resignada so, arrogante, possessivo, impaciente, egoísta, extrecom sua posição de esposa de um homem a quem mamente ousado. A segunda, a voz do Outro, é a de 7 MACHADO, I. O romance e a voz. p. 118. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002 17 jamais será capaz de amar e a de vadiagens e horizontes pro meu Se faltou voz ao negro uma Laura que cobra o aconteci- na tradição da literatura distraimento. (...) Gostava era do mento do amor em sua vida, sem capim aberto e não havia música brasileira, não se pode esquecer que é discurso represenmais bonita do que o assobio do dizer o mesmo do tado na escritura do autor e nisso vento no capim cacheado (...) Inisertanejo. Em Chão se fundamenta um dos princípios migo não tinha e amigos me sodo dialogismo de Bakhtin: “Há Bruto não só o sertanejo bejavam na terra de toda gente, uma convergência de focali- tem direito à fala como é na força do calor e no tempo das zação: o discurso se posiciona águas. possuidor do discurso no campo enunciativo do per– Bom, minha rola, vai daí sucelógico e fluente. sonagem e o narrador segue a deu o que aconteceu um dia a todo diretriz de tal orientação”. 7 garanhão varador de cerca e Quer-se dizer com isso que a voz furador de brenha. Era uma festa e eu estava meio que manifesta a palpitação interior da personagem que bebido por força da cana que era boa e das encontra no discurso indireto livre a passagem para mulheres que eram doces (...) Pois só exemplei o a representação do fluxo de consciência. Há um jogo dito pra que nunca mais desfeitasse caboclo aquide entoações expressivas fundindo pensamento e fala, etado e inimigo de provocação (p. 91). narrador e personagem. É preciso adivinhar quem – Então começou o pior. Topei aqui a terra bruta e a está com a palavra. gente braba. (...) e sentei praça no serviço do capiBakhtin observa que o herói vive e age de acordo tão Paulo. Pra ganhar o meu e não ir muito pra loncom sua própria concepção de mundo, mas só se ge do chão onde nasci (...) Não pense que gostava pode descobrir sua posição ideológica pelas suas pado serviço. Capitão Paulo é homem duro! Mandava lavras, na representação de seu discurso, mesmo que pra ser obedecido. Eu dava mostra de não gostar este se confunda com as palavras do autor (para mas só tinha mesmo de obedecer (p. 92). Bakhtin, autor é um elemento estético, pode ser o narrador mas não pode ser confundido com o ser Se faltou voz ao negro na tradição da literatura ético da realidade empírica). “A ação do herói do brasileira, não se pode dizer o mesmo do sertanejo. romance é sempre sublinhada pela sua ideologia: Em Chão Bruto não só o sertanejo tem direito à fala ele vive e age em seu próprio mundo ideológico como é possuidor do discurso lógico e fluente. Ele (não apenas num mundo épico), ele tem sua pró- tem o domínio satisfatório da linguagem na utilidade pria concepção do mundo, personificada em sua e necessidade de falar de sua situação, de sua vida ação e em sua palavra”.8 Isso pode ocorrer com ou daquilo que deseja. Não tem dificuldades de exqualquer personagem, mas de Chão Bruto tomare- pressar seus sentimentos e nisso o narrador não tem mos o sertanejo Lino para a demonstração dessa con- qualquer trabalho: deixa-o livre para verbalizar o que cepção teórica por ser ele uma figura que age e fala quer exprimir. de modo especial no romance porque usa a linguaO sertanejo Lino tem, nesta obra, páginas colocagem de seu meio A consciência desse herói, seu sen- das a seu dispor para a manifestação de sua voz. timento e seus desejos, em vários trechos da obra, Lino tece o seu discurso com uma linguagem regioestão representados pelas suas próprias palavras. nal e não permite que a voz do narrador constranja o – Pois naquele tempo, eu era mesmo um homem rústico de sua fala. Sua carência de cultura decreta deste feitio. Casa pra mim existia mesmo pra a sua marginalidade, mas essa não lhe tira o domínio adentrar de noite e escapar com a primeira lam- da palavra. Nesse aspecto, Lino não lembra em nada bida do sol. (...) Vidão era aquele, minha jóia! Isso o Fabiano de Vidas Secas de Graciliano Ramos, que não nego!. (...) Lhe juro que não faltava sono pra precisa da intervenção do narrador para emprestarme fechar os olhos, companhia pra minha mesa, lhe a linguagem que lhe foi roubada. O gesto, no caso amor pra minha rede, pingo esperto pras minhas de Fabiano, supre a carência da fala articulada. O 8 BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética, p. 137. 18 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002 narrador, nesse caso, fica com o bivocalidade do discurso, tal como As possibilidades trabalho de expressar os sentimenlingüísticas que estão na ocorre no discurso indireto livre, tos, a fala não articulada e até em que o discurso do narrador se base da composição mesmo os gestos de Fabiano. confunde com a voz da personaFabiano está sujeito a poderes romanesca revelam, além gem. Isso está demonstrado nesnaturais e sociais como Lino está ta segunda parte. da narratividade, uma sujeito a poderes econômicos, soÉ preciso considerar que combinação de várias ciais e históricos, agrilhoados, Bakhtin valoriza o estudo da litevozes e de vários estilos, cada qual a seu modo, ao seu ratura como manifestação de linconstituindo um híbrido mundo, mas com uma diferença: guagem. Seus estudos não sede várias linguagens. Lino, de Chão Bruto, não teme guem as categorias de análises elevar a voz. Lino dialoga. propostas pela estilística tradicioEm seus estudos sobre os gênal, também não são lingüísticos neros discursivos, Bakhtin chamou a atenção para a nem especificamente literários. Entendendo que conoriginalidade estilística do romance. As possibilida- teúdo e forma estão unidos no discurso, sua teoria des lingüísticas que estão na base da composição ro- não ignora as esferas semânticas da obra. Eis pormanesca revelam, além da narratividade, uma com- que esta análise gravitou em torno do herói e seu binação de várias vozes e de vários estilos, consti- discurso que, sendo romanesco, necessita de uma potuindo um híbrido de várias linguagens. O discurso sição ideológica particular e, por isso, contestável: ao do autor, os discursos dos narradores e das persona- lado desta, existem outras. Numa perspectiva ampla, gens, ao penetrarem artisticamente no romance, se a representação literária do discurso de outrem coloorganizam em um sistema harmonioso. Nessa con- ca o sujeito que fala (as personagens são sujeitos de cepção, o romance se define como representação do seus discursos), como um ser histórico, produto ideohomem que fala e discute idéias. lógico que só existe numa relação com o outro e que A análise desenvolvida na primeira parte deste tem, na palavra, o instrumento mediador da interação artigo, portanto, não se apresenta direcionada para a social. Referências Bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. A teoria do romance. 3. ed. São Paulo: UNESP, 1993. BRAIT, Beth.(Org.) Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas: Ed. UNICAMP, 1997. DONATO, Hernâni. Chão Bruto. 7. Ed. São Paulo: HUCITEC, 1977. MACHADO, Irene.O romance e a voz. A prosaica de Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro: Imago, 1995. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002 19 Baseando-se na abordagem socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais, este trabalho examina as micro-narrativas contadas por meninos e meninas em uma turma de 5a série de língua materna localizada no Rio de Janeiro, com o objetivo de estudar a construção das masculinidades. A análise aponta indícios da co-construção das masculinidades por meio de micro-narrativas que perpetuam a construção da masculinidade hegemônica. Palavras-chave: Identidade Social, Masculinidades, Discurso, Narrativa. Based on a socioconstrucionist view of discourse and social identities, this paper examines the narratives that boys and girls tell one another in a mother tongue fifth grade reading classroom in Rio de Janeiro in order to look into how masculinities are constructed. The analysis shows that masculinities are coconstructed through narratives, which perpetuate the construction of hegemonic masculinity. Keywords: Social Identity, Masculinities, Discourse, Narrative. 20 * Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. SOBRE O QUE ELES CONVERSAM? A CONSTRUÇÃO DAS MASCULINIDADES POR MEIO DAS HISTÓRIAS CONTADAS NO CONTEXTO ESCOLAR Bianca Andreza da Silva Dias* 1. Introdução Há uma grande reflexão, hoje em dia, em torno de quem nós somos, gerada pelo questionamento dos vários modos de se viver. O momento em que vivemos, marcado pela velocidade dos acontecimentos, tem produzido um grande processo de conflitos e crises de identidade. Em meio há tantos questionamentos, cresce o interesse em se estudar os homens devido ao “impacto do feminismo, a mudança da globalização e as estranhas relações do global e do pessoal” (Hearn & Collinson, 1994: 115). A partir das transformações sócio-históricas ocorridas na esfera social, este trabalho busca compreender como se dá a construção das masculinidades no contexto escolar, especificamente, em uma sala de língua materna a partir da análise da conversa dos alunos. A base teórica que orienta a presente pesquisa é a visão socioconstrucionista do discurso e da identidade social, visto que são concebidos como construções sociais. Acredito que a identidade é forjada no social e, para entender como ela é construída, investigo as práticas discursivas. A pesquisa aqui é de cunho etnográfico e utiliza dados coletados em uma turma de 5a série de língua materna. A coleta foi realizada por meio de instrumentos como gravação em áudio das práticas privadas e públicas de aulas, entrevistas com foco no gruPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002 po e notas de campo. Serão utilizadas na análise as gravações das práticas privadas, isto é, a conversa entre os alunos na aula como também as práticas discursivas nas entrevistas. 2. A construção social da identidade de gênero Baseando-se em uma abordagem socioconstrucionista, essa pesquisa concebe a ação humana como sendo particularmente mediada pelo discurso. A visão de discurso que sigo entende a linguagem como a ferramenta central no processo de construção do “eu” e do “outro”. Perpassa essa visão de discurso a questão da alteridade porque “eu sei quem ‘eu’ sou em relação com ‘o outro’ ” (Hall, 1999: 40). Sendo assim, “nossa identidade forja-se no intercâmbio de linguagem com outros, à medida que começamos a nos ver através dos olhos de outros” (Stam, 1992: 28). A importância de se ancorar o estudo das identidades sociais em práticas discursivas se dá justamente porque as “nossas identidades sociais passam por um processo contínuo de construção social mediado pelo discurso” (Rodrigues, 2000: 23). Os indivíduos ao agirem no mundo social têm as suas ações “baseadas, ou impregnadas por significados sociais, isto é, por intenções, motivos, cren21 ças, regras e valores” (Hamria cultural” (Badinter, 1993: 8). Contudo ainda somos mersley & Atkinson, 1995: 7). Na introdução de seu livro, levados a crer num Cabe ressaltar que, as nosBadinter (1993) postula que “o princípio permanente sas interações estão permeadas tornar-se masculino envolve fada masculinidade como por relações de poder que retores psicológicos, sociais e culfletem as hierarquias da societurais que nada têm a ver com a se existisse uma dade como um todo. Assim ao genética”. essência. Em parte falar com o outro, consideramos Nesse estudo as identidades essa visão se deve à quem é o sujeito com o qual de gênero são entendidas como associação feita entre estamos interagindo, por exem“prática social” (Connel, 1995: sexo e gênero (...) plo: sua raça; classe social; gê71), visto que, elas “são fragnero; idade etc. Além disso, os mentadas e processuais por causujeitos não se posicionam apesa dos múltiplos discursos crunas de forma passiva, mas agem também por meio zados na vida de qualquer indivíduo” (Connel, 1995: de contra-discursos. 72). Conforme nos lembra Hall (1999: 13) “o sujeito Por muito tempo o estudo do gênero foi feito a assume identidades diferentes em diferentes momen- partir do “modelo do papel do sexo, que especifitos, identidades que não são unificadas ao redor de cava os modos como machos biológicos e fêmeum ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades con- as biológicas se socializam como homens e mutraditórias, empurrando em diferentes direções, de lheres em uma cultura específica” (Kimmel, 1987: tal modo que nossas identificações estão sendo con- 12). O paradigma do papel do sexo é baseado em tinuamente deslocadas”. traços associados a atitudes, como se fosse uma Fala-se a respeito de uma fragmentação justa- lista de características comportamentais, que evomente pelo fato de a identidade social não ser ho- ca uma visão muito estática. Ao contrário dessa mogênea. Ao contrário da visão monolítica, con- visão, acredito que “a masculinidade consiste em cebe-se hoje a existência de várias identidades co- práticas específicas, concretas e aprendidas por existindo na mesma pessoa e testemunhando a sua homens” (Frank, 1996: 120). Fazendo um paralenatureza contraditória. Além disso, as identidades lo, a feminilidade consistiria em práticas especísociais estão em constante processo de constru- ficas, concretas e aprendidas por mulheres na culção refletindo sua fluidez. tura. Nesse trabalho adoto a visão de Connell Dessa forma, sigo a visão de Connell, (1987 (1993: 3) à medida que tento “localizar a mascuapud Frank, 1996: 119) de que “a masculinidade linidade no discurso, tratá-la por meio das reprenão é um processo unidirecional e uniforme e está sentações culturais”. sempre sujeita a mudar, visto que a interpretação Além disso, utilizo o conceito de narrativa de Linde do que é masculino revela o material pessoal e (1993) em conformidade com Moita Lopes (2002: coletivo e investimentos psicológicos daqueles que 143) quando esse aponta que “usamos as narrativas detém o poder e daqueles que não o detém”. Por- para fazermos sentido do mundo a nossa volta e de tanto, “as masculinidades hegemônicas e não- nós mesmos”. hegemônicas não devem ser entendidas como reBrockmeier & Harré (1997: 264) chamam atenlações hierárquicas fixas, mas como relações va- ção para o fato de que “nós organizamos nossas meriáveis de poder” (Hearn, 1996: 112). mórias, intenções, histórias de vida, e idéias dos nosContudo ainda somos levados a crer num prin- sos eus ou identidades pessoais em modelos narraticípio permanente da masculinidade como se exis- vos”. Isso torna possível ver a narrativa como um tisse uma essência. Em parte essa visão se deve à modo de organização do discurso que exerce um associação feita entre sexo e gênero, acreditan- papel fundamental no modo como construímos as do-se que a marca biológica é que define o gênero nossas identidades sociais. do indivíduo. Cabe estabelecer uma distinção enNa vida social estamos a todo o momento nos tre sexo, que é a marca biológica conferida ao in- engajando em práticas discursivas, isto é, produdivíduo e gênero, que é considerado “uma catego- zindo histórias em conjunto sobre nós mesmos e 22 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002 sobre os outros. Essas histórias depois uma seqüência de razões A presente pesquisa estão permeadas pelo nosso ponpelas quais essa afirmação detem como foco de to de vista e pelo nosso modo de veria ser acreditada, usando interpretar o mundo a nossa volanálise a construção marcadores tais como porque ta. Neste sentido, Moita Lopes ou portanto’’ 1 (Linde, 1993: das masculinidades a (2002: 64) afirma que “ao 91). partir do engajamento historiarmos a vida social para Será utilizado na análise o em práticas o outro, estamos construindo nosconceito de narrativa e explicadiscursivas dos sas identidades sociais ao nos ção de Linde (1993) para invesposicionarmos diante de nossos tigar como os alunos, a partir participantes (...) interlocutores e diante dos perdas narrativas e explicações sonagens que povoam as nossas narradas, constroem a sua idennarrativas”. tidade social e a identidade soDestaco a importância do outro na construção cial dos outros. Não utilizo o conceito de crônica do significado já que “a experiência discursiva indi- em minha análise, pois essa unidade não aparece vidual de cada pessoa se forma e se desenvolve em em meus dados. uma constante interação com os enunciados individuais alheios” (Freitas, 1999: 137). Sendo assim, a 3. Metodologia e alteridade também é central no ato de contar uma Contexto de Pesquisa história, visto que, “toda palavra procede de alguém como também se dirige para alguém, constituindo o A presente pesquisa tem como foco de análise a produto da interação do locutor e do ouvinte. (...) construção das masculinidades a partir do Ao definir-me em relação ao outro, em última aná- engajamento em práticas discursivas dos participanlise, estarei me definindo em relação à coletivida- tes que estão sendo investigados e de como esses de” (Bakhtin, 1929/1992: 113). O enunciado sem- entendem o que está ocorrendo. A metodologia de pre será o produto da interação de duas pessoas pesquisa adotada faz parte da tradição de pesquisa porque ele existe à luz de quem é o interlocutor. interpretativista, tentando entender o fenômeno esLinde (1993: 67) apresenta três unidades tudado a partir da perspectiva dos participantes. discursivas que organizam as histórias em seus daOs dados foram coletados etnograficamente dudos: “a narrativa, a crônica e a explicação”. O con- rante o segundo semestre de 1999, em uma turma de teúdo da narrativa é definido como uma “seqüência 5a série de língua materna de uma escola da rede de eventos mais personagens e cenário” (Linde, pública de ensino, localizada na zona norte do Rio de 1993: 68), tendo como característica o fato de apre- Janeiro, por meio de instrumentos etnográficos como sentar “orações principais no passado” (Labov gravação em áudio de aulas, entrevistas com foco no 1972b: 360 apud Linde, 1993: 68). grupo e diários feito pelo pesquisador. Ressalto o inA crônica consiste no “recontar de uma seqüên- teresse de se investigar alunos de uma turma de 5a cia de eventos que não tem um ponto único série pelo fato de que “a adolescência é provavelavaliativo” (Linde, 1993: 85). Linde (1993: 87) mente o período da vida de uma pessoa quando as explicita três características da crônica: a) “a or- histórias de vida começam a se desenvolver” (Linde dem da narração é para ser entendida como a or- 1993: 67). dem dos eventos”; b) “a estrutura consiste na narForam distribuídos cinco gravadores durante a graração dos eventos em seqüência”; c) “a crônica vação das aulas: um ficava com o professor da turcontém avaliações de ações individuais, mas não ma e os outros quatro eram distribuídos pela sala. da seqüência como um todo”. Nessa sala de aula, o professor deixava os alunos A explicação consistiria em “apresentar uma sentarem em dupla, o que facilitava o diálogo entre proposta de alguma afirmação a ser provada, e eles. Além disso, a disposição dos gravadores permi- 1 Grifo da autora. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002 23 tiu a coleta não só das práticas 06 chegava assim pô, / eu chegaOs dados apontam a discursivas públicas (interação va assim / só pá humilhar ele. / / construção das principal da aula), mas também Se eu não desse um das práticas discursivas privadas masculinidades sendo 07 toquinho a mais, / poxa aí/, po(conversa entre os alunos). O dia me acertar, / aí / / ele queria entrecortada por acervo de dados possui a gravame acertar mané. / Eu outros traços da ção em áudio de dez aulas e duas 08 cheguei assim, / ele veio pra identidade social como, entrevistas centradas no grupo, o cima de mim, / eu puxei, dei de por exemplo, raça, que corresponde a 20 horas de letra / e toquei pro práticas discursivas públicas, 64 09 moleque. / Aí, / se eu não tiro, gênero e sexualidade. horas de práticas discursivas pri/ se eu não faço isso puxando de vadas e 4 horas de entrevistas letra e tirando o meu pé com foco no grupo. 10 ele ia me acertar /, ia cair de Como o objetivo da pesquisa é investigar o papel cabeça no chão de novo. / / Já tava uma dor inferque as narrativas contadas pelos alunos desempe- nal. / / nham na construção das masculinidades, utilizarei em 11 O meu pai vai me levar até no médico. / / minha análise práticas discursivas privadas gravadas 12 David: Vai [ [ inint ] ], / vai embora [ [ inint ] ] / / durante as aulas e práticas discursivas gravadas duEssa narrativa não possui um resumo, Leonardo rante as entrevistas com foco no grupo. já inicia a história com as seqüências narrativas. Os dados apontam a construção das masculini- Desde a linha 01 até a linha 08 podemos observar dades sendo entrecortada por outros traços da iden- várias orações no passado (cheguei, cabeceei, fetidade social como, por exemplo, raça, gênero e se- chei o olho, etc), que são utilizadas por Leonardo para xualidade. Porém, a análise focaliza, particularmen- relatar os eventos ocorridos. De acordo com Linde te, as histórias referentes ao binômio sexualidade e (1993: 70) as “orações narrativas são orações com o gênero. Além disso, é preciso enfatizar que os resul- verbo no passado cuja ordem é tomada como a ortados apontados abaixo são recorrentes nos dados e, dem dos eventos”. Labov (1972: 359 apud Linde, na verdade, em outras pesquisas (cf. Moita Lopes 1993: 68) argumenta que “a narrativa preocupa-se 1997, 1998, 1999, 2000, 2002). com a experiência e por isso é vista como uma representação de uma ocorrência atual”. No mundo da história narrada, temos a presen4. Análise de Dados ça de dois personagens: Leonardo e um “moleque”. Ao passo que no mundo em que a história está sendo narrada, Leonardo tem David como seu Narrativa: interlocutor. Cabe ressaltar que “quando contam Aula 7 (conversa privada gravada da fita do 2 uma história, as pessoas estão reconstituindo as David e Leonardo no dia 25.10.99) 01 Leonardo: Eu cheguei, / cabeceei / / eu cabe- identidades sociais no próprio momento de contála” (Moita Lopes, 2002: 145). ceei, / fechei o olho, / caraca / o moleque, Leonardo está conversando com David sobre um 02 sabe / o que o moleque fez, moleque tentou tirar jogo de futebol. Ao introduzir o “moleque” (linha 01), a bola e deu mó picão aqui. / Sérinho. / 03 / Aí, tá doendo muito mané. / / Melhorou, aí eu que estava jogando contra ele, Leonardo enfatiza a força física do menino: Sérinho / Aí, tá doendo muito tava tonto, não conseguia/ , não 04 conseguia enxergar nada de noite, / nada. / / mané / foi muito forte mané! / O moleque era todo [ [ inint ] ] sabe? (linha 02 - 03 - 05), para depois resTava tonto, / aí eu fui dormir, / aí acordei 05 melhor. / / Aí / foi muito forte mané! / / O mole- saltar a sua destreza: “pô, eu chegava assim só pá humilhar ele” (linha 06). que era todo [ [ inint ] ] sabe? / / Aí, eu 2 Os nomes usados na transcrição são fictícios. Utilizo / para indicar pausa curta, / / para pausa longa, ... para prolongamento da sílaba, P para me referir ao pesquisador, ( ... ) para fala omitida, [ [ inint ] ] para ininteligível e [ [ ] ] para comentário adicional, a título de explicação. 24 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002 Podemos observar que o 16 boneco pro meu filho/, mas / narrador sempre se beneficia ao / assim / / de desenho animado, Cabe ressaltar que contar uma história, isso reflete sabe? "quando contam uma o que Schiffrin (1996: 199 apud 17 P: Você acha, então / / um história, as pessoas Moita Lopes, 2002: 65) argumenboneco pode fazer o menino deita: “contar uma história fornece xar de ser homem, é isso? estão reconstituindo um auto-retrato: uma lente lin18 Leonardo: Eu acho que não. as identidades sociais güística através da qual se podem 19 P: Então, por que não daria no próprio momento de descobrir as visões (um tanto ideum boneco? Eu não tô entendencontá-la". alizadas) das pessoas sobre elas do, é por que é feio? mesmas como localizadas em 20 Leonardo: Não eu daria um uma situação social”. Além disboneco sim, mas assim / / so, a narrativa funciona “como (...) uma apresentação do eu” (Linde, 1993: 81). 21 P: Não daria, Paula, por que? Você acha perigoSendo assim, ao narrar os eventos relaciona- so? dos à prática esportiva, Leonardo automaticamen- 22 Carlos: [ [ inint ] ]. te vai construindo sua identidade de gênero, visto 23 Paula: Ah! Sei lá depois meu filho vira aí boiola. que, existe uma “relação entre o aprendizado es- 24 [ [ Risos ] ] portivo e a construção da masculinidade” (Messner 25 P: Ah! Tem medo que seu filho vire boiola. 1987 apud Badinter, 1993: 94). Leonardo se apre- 26 [ [ Risos ] ] senta da forma que é esperada de um menino, ou 27 Paula: Corre o risco aí. seja, engajando-se em uma atividade esportiva com O pesquisador inicia a discussão perguntando se habilidade. os alunos dariam um boneco para um filho (linha 01). O aluno Leonardo declara que não daria um boneco Explicação: para seu filho (linha 02) e a partir dessa declaração, Entrevista 2 (realizada no dia 22.11.99) os alunos tecem comentários oferecendo razões para 01 P: Se vocês tivessem um filho, / você dava um legitimar o seu posicionamento frente a essa declaboneco assim? ração. 02 Leonardo: Eu não. O aluno Carlos se posiciona de forma mais enfá03 Carlos: Nem boneco, / nem boneca. tica afirmando que não daria nem boneco e nem bo04 Leonardo: Nem boneco e nem boneca, / nem neca (linha 03). Em seguida, o aluno Leonardo amnada, / só carrinho. plia a declaração de Carlos dizendo que daria um 05 P: Por que? E se fosse uma menina. carrinho (linha 04), brinquedo que geralmente é as06 Carlos: Aí, / eu ia dar boneca. sociado aos meninos. 07 Leonardo: Aí, / eu dava boneca. Aí, / eu daria O pesquisador questiona o porquê desse uma boneca, / boneca, / carrinho, dava posicionamento e pergunta se eles agiriam da mes08 tudo. ma forma com relação a uma menina (linha 05). (...) Carlos associa menina a boneca (linha 06) e Leonar09 P: Renata e Leonardo, por que vocês davam bo- do diz que daria qualquer coisa se fosse uma menina neca pra menina e não davam pro tanto uma boneca como um carrinho (linha 07). Po10 menino? demos notar que não haveria problema se uma meni11 Joice: Não dá um boneco? na brincasse com um carrinho, mas seria considera12 Carlos: Joice. do estranho um menino brincar de boneca porque 13 Joice: Porque ele ia ficar gostando mais ainda / sua masculinidade estaria sendo contestada. / do boneco. A aluna Joice oferece uma razão e parece assu14 Leonardo: Eu acho que não. Eu acho assim, ele mir o mesmo posicionamento dos meninos ao dizer podia só brincar. / / Assim eu acho que o fato de um menino brincar com um boneco 15 que não, muito pelo contrário, eu acho que sim... poderia fazer com que ele gostasse (linha 13) (a alué / / mas não assim... Eu daria um na dá uma razão) e para os participantes dessa Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002 25 interação, isso seria considerado parte da construção social de A homofobia é aqui um estranho para um menino. masculinidade é o interesse em mecanismo de defesa O aluno Leonardo se esportes”, o que faz com que ele reposiciona admitindo que daria para reforçar sua se torne tão presente na construum boneco para seu filho (linha ção da masculinidade dos meniheterossexualidade, e 15 e 16), mas deixa claro que senos. Isso porque o esporte simas meninas corroboram ria um boneco de desenho animaboliza um “rito de iniciação masesse comportamento, do (linha 16), já que alguns desculina, além de ser considerado pelo menos nessa ses bonecos, de um modo geral, um símbolo de virilidade” até podem ser considerados repre(Badinter, 1993: 96). Consideraninteração. sentações da masculinidade do o Brasil como contexto social hegemônica: fortes, musculosos dessa pesquisa, aponto o futebol etc. Além disso, ele acredita que como sendo o esporte mais vinum boneco não ia fazer com que um menino deixas- culado à construção social de masculinidade. se de ser homem (linha 18). A inconstância de LeoA seqüência da explicação mostra que os alunardo frente a essa questão demonstra que “os me- nos (tanto meninos como meninas) não aceitam o ninos experienciam lutas e vidas mediadas por ten- fato de um menino vir a gostar ou querer brincar são e contradição a respeito do que significa ser um de boneca, já que isso representaria uma ameaça homem jovem” (Frank, 1996: 116). Apesar de o alu- para o seu posicionamento frente às representano Carlos sustentar as suas razões para não dar um ções da masculinidade hegemônica. Essa seqüênboneco a seu filho, o aluno Leonardo apresenta um cia ilustra a homofobia como fazendo parte da consposicionamento conflituoso. trução da identidade masculina hegemônica. A Podemos observar que a masculinidade está sen- homofobia é aqui um mecanismo de defesa para do construída em conjunto. O posicionamento de reforçar sua heterossexualidade, e as meninas corCarlos fez com que Leonardo se reposicionasse, isto roboram esse comportamento, pelo menos nessa porque “os sujeitos ao participarem de práticas interação. Além disso, podemos observar a codiscursivas, se engajam em um processo de co-cons- construção das masculinidades e da sexualidade a trução de si mesmos e do outro como seres sociais” partir da co-construção das histórias contadas pe(Bamberg, 1999: 221). los alunos. A aluna Paula diz que não daria um boneco para Um modo de entender a vida social é olhar para seu filho porque ele poderia “virar boiola” (linha 23). as histórias que as pessoas contam, porque contar Essa seqüência evidencia que a histeria com relação história é um modo de organizar as experiências aos homossexuais pela sociedade encontra-se refle- da vida social. Dessa forma, ressalto a importântida no modo como os meninos e as meninas estão se cia de se analisar as conversas contadas na sala construindo. O simples fato de um menino brincar de aula pelos alunos como uma forma de termos com uma boneca já é interpretado pelos participan- acesso ao modo como eles constroem as suas identes dessa interação como uma ameaça para a sua tidades sociais e as identidades sociais dos outros masculinidade. a fim de poder reconstruí-las em outras bases. Acredito que “se a masculinidade se ensina e se constrói, não há dúvida de que ela pode mudar. 5. Considerações Finais (...) O que se construiu pode, portanto, ser demoA narrativa de esporte analisada ilustra o que lido para ser novamente construído” (Badinter, Moita Lopes (2002: 157) aponta: “um traço que faz 1993: 29). 6. Referências Bibliográficas BADINTER, E. 1993. XY: sobre a identidade masculina. Tradução de Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. BAKHTIN, M. 1929/1992. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Editora Hucitec: São Paulo, 6a edição. 26 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002 BAMBERG, M. 1999. “Is there anything behind discourses? Narrative and the local accomplishments of identities” em MAIERS, W., BAYER, B., DUARTE ESGALHADO, B., JORNA, R. & SCHRAUBE, E. (eds.). Challenges to theoretical Psychology. New York, Ontario, Captus University Publications. BROCKMEIER, J. & HARRÉ, R. 1997. “Narrative: problems and promises of an alternative paradigm”. Research on Language and Social Interaction, 30 (4): 263-283. CONNELL, R.W. 1993. The big picture: masculinities in recent world history. Theory and Society, 22(5): 597-624. CONNELL, R.W. 1995. Masculinities. Cambridge: Polity Press. FRANK, Blye W. 1996. “Masculinities and Schooling: The Making of Men”. In: EPP, J. R. & WATKINSON, A. M. (eds.). Systemic Violence: how schools hurt children. London: The Falmer Press. FREITAS, M. T. de A. 1999. 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Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002 27 O objetivo deste trabalho é discutir aspectos de minha pesquisa sobre os efeitos de sentido do discurso pedagógico, a partir de diferentes estratégias do processamento da referenciação, especificamente as estratégias discursivas que os falantes utilizam numa situação comunicativa de sala de aula. Palavras-chave: Ensino, Linguagem, Processo de Referenciação. The aim of this work is to discuss aspects of the research about the effects of the sense of the teacher discourse, from different kinds of strategy in the reference process, especially the discoursive strategies that speechers use in communicative situation of language practices in classroom. Keywords: Teaching, Language, Reference Process. 28 * Parte integrante do meu trabalho do GT de Referenciação, da ANPOLL, sob a coordenação da Profª Drª Maria Helena de Moura Neves, da UNESP de Araraquara. ** Doutora em Letras e docente na graduação e na pós-graduação do DED/CEUL. E-mail: [email protected]. O DISCURSO PEDAGÓGICO E O PROCESSAMENTO DA REFERENCIAÇÃO * Vânia Maria Lescano Guerra** 1. Introdução O sentido de um texto, qualquer que seja a situação comunicativa, não depende somente da estrutura textual em si mesma. O produtor de um texto precisa proceder ao “balanceamento” do que necessita ser explicitado textualmente e do que pode permanecer implícito, por ser recuperável via inferenciação, já que não há textos preferencialmente explícitos (MARCUSCHI, 1994). Nessa direção, um texto é considerado explícito quando o que é dito consegue estabelecer um balanceamento adequado entre o que necessita ser dito e o que pode ser presumido como partilhado. Na verdade, a explicitude pode ser avaliada em termos da reciprocidade entre interlocutores e mediada pelo texto. Segundo VAN DIJK (1995), os significados que devem ser tomados como explícitos dependem do uso que o produtor do texto faz dos fatores contextuais, de forma que o processo pelo qual os textos escritos produzem efeitos de sentido (explicito ou não) não é totalmente diferente do processo de significação do texto falado. Tanto em um como no outro, os produtores utilizam uma multiplicidade de recursos além das simples palavras que compõem as estruturas. Acredita-se que o produtor desenvolve estratégias para o processamento do texto. No intuito de levantar subsídios tanto para a produção quanPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 28-35, jan./jun. 2002 to para a interpretação de textos, procuraremos investigar tais pistas. 2. O processamento discursivo e as estratégias interacionais Relações entre informações textualmente expressas e acontecimentos pressupostos como partilhados podem ser estabelecidas por meio de estratégias de “sinalização” textual, em que o locutor, por ocasião do processamento textual, procura levar o interlocutor a recorrer ao contexto sócio-cognitivo (situação comunicativa, intertextualidade etc). Para MARCUSCHI (1992 e 1994), a utilização de determinados recursos lingüísticos funciona também como índices de implicitude, em que tais elementos levam à exploração do contexto. Entre eles, estão: 1) expressões nominais definidas; 2) encadeamento entre enunciados sem conectores explícitos, substituídos apenas por sinais de pontuação; e, 3) elementos anafóricos e dêiticos. Segundo o autor, as estratégias interacionais podem ser agrupadas em duas grandes direções: a) intertextualidade (quando implícita, sem citação expressa da fonte, em que cabe ao interlocutor uma busca na memória, para a identificação do intertexto); e, b) tópico discursivo (indicação cla29 ra do tópico discursivo, tais mentos em uma dada situação coA mudança de código como títulos, subtítulos, municativa. Entre tais recursos, (ou de registro) para o marcadores discursivos, anúnvamos estudar a reformulação2, outro no decorrer de um cios, convites). Nessa ótica, a topicalização3, o uso de pamesmo discurso é um enquanto os demais modelos rênteses4 e a repetição5, que são recurso que os falantes cognitivos controlam os conteúmarcas lingüísticos que o locutor dos semânticos do texto, o que utiliza em determinados enunciautilizam para marcar a está sendo ou será dito, os moimportância da entidade dos, quase sempre a passagens delos de contexto controlam o do texto que acabaram de ser dique constitui o tópico como, a maneira como os tas ou que serão ditas a seguir, discursivo. interlocutores vão construindo mas às vezes também que estão sua informação em função do sendo ditas, numa referência à incontexto em que a interação se desenvolve. formação a ser repassada e que serão estudadas. Nossas orientações teóricas partem de NETambém a forma agora veicula, juntamente VES (1999:39) que afirma que em toda a comcom o tempo presente do verbo, uma relação de plexidade a que se liga a atividade de estruturação proximidade temporal do fato evocado com a fala dos enunciados pelos falantes, numa situação codo locutor, no entanto, em nosso dados, essa formunicativa concreta, “surge a questão de que há ma apresenta variação de abrangência6. uma margem ampla de liberdade organizaA mudança de código (ou de registro) para cional, susceptível a múltiplas pressões atrelao outro no decorrer de um mesmo discurso é um das à necessidade e ao desejo de sucesso na recurso que os falantes utilizam para marcar a iminteração, o que se equilibra com as restrições portância da entidade que constitui o tópico internas ao sistema.” Inspirada nas lições do discursivo. Nos nossos dados, notadamente, esse funcionalismo, a autora postula que, a partir de recurso opera quando o locutor entende que seu centros categoriais (ou núcleos nocionais), a grainterlocutor não está dando a devida importância mática é flexível porque é ajustável. Na verdaou o devido respeito a algo e, então, mobiliza uma de, a idéia é a de que a gramática se molda por cobrança disso em relação ao outro. acomodação, sob pressões de natureza Eis alguns implícitos possíveis dessa estratégia: discursiva1. (a) dê importância maior a tal elemento e não Muitos itens lexicais apresentam traços em seu a outro ou; (b) dê importância ao que vou disignificado ou têm funções dentro do discurso que zer agora, ou (c) o que eu disse, estou dizendo permitem utilizá-los para fazer referenciação a eleou vou dizer, por alguma razão, é importante 1 Diante disso, o ponto de vista semântico é articulado a partir da configuração de diferentes esferas nas quais os diferentes itens atuam: esfera dos participantes, esfera das relações e processos, esfera dos circunstantes. 2 A reformulação ocorre quando, após utilizar uma alternativa de formulação, o locutor recorre, por razões diversas, a outra alternativa de formulação, isto é, quando há um problema na formulação, detectado pelo próprio locutor, dando origem a paráfrases, correções e algumas repetições (KOCH & SILVA, 1996:381). 3 Termo usado, inicialmente, na sintaxe gerativa para indicar uma transformação que transpõe um constituinte no meio ou final da cadeia para a posição inicial. Também ocorre quando um constituinte se desloca para a frente da sentença, para funcionar como tópico (CRYSTAL, 1988). 4 Os parênteses são vistos como um dos recursos pelo quais os interlocutores articulam o texto falado, manifestando as posições que assumem na situação de enunciação e o envolvimento com a situação discursiva. Há quatro grandes classes de parênteses que envolvem fatores discursivos: a) a construção tópica do texto; b) o locutor; c) o interlocutor; d) a situação discursiva (JUBRAN, 1999). 5 Estratégia de formulação textual, a repetição assume um variado conjunto de funções: contribui para a organização discursiva, a monitoração da coerência textual e a organização tópica e auxilia nas atividades interativas (MARCUSCHI, 1992). 6 O tempo de referência estabelecido por agora indica “um parâmetro situacional que engata o enunciado (proposição) com as circunstâncias da enunciação, ora promovendo a abertura do tópico, ora o seu encaminhamento, na introdução de argumentos” (NEVES, 2000:259). 30 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 28-35, jan./jun. 2002 para mim ou considero-o imrado, a partir do qual L 1 e L 2 Tanto nos enunciados portante: para as idéias que esvão construindo um saber que da língua falada como tou apresentando e/ou: para a mobiliza conteúdos teóricoconclusão a que quero que metodológicos e experiências nos da escrita você chegue e/ou; para a acumuladas no processo de enconstrói-se uma teia interação que está ocorrendo sino, numa atualização e reconsreferencial por entre nós: (d) por isso, você trução permanente de formação introdução e deve levar isto em conta; (e) profissional. manutenção de ou, não dê importância a este Na fala de L 1 e de L 2 opeelemento ou ao que estou diram, no processamento de referentes textuais. zendo agora. referenciação, a catáfora e outras Efetivamente esse recurso sinalizações para a frente que opera quando o sujeito locutor entende que precisa monitoram bem o andamento oral da elocução, procolocar em proeminência algum aspecto de sua fala, jetando configurações de sentido que deverão ponna posição de agente legitimado pela instituição no tuar a cadeia que se sucede no desenvolver do temqual está inserido (TRAVAGLIA, 1999). O que ele po. Desse modo, para NEVES (2001), não são “ercoloca em primeiro plano normalmente é visto como ros” – como muitos querem – tais usos são estratégias mais relevante no desenvolvimento do tópico do que (L 2: (...) eu procuro explicar primeiro por que dele o que coloca em segundo plano7. (o aluno) estar onde está o que é que ele vai falar pra quem ele vai falar porque que ele vai falar né? 3. O saber de L 1 e de L 2 no A gente sempre aprende assim). A reformulação ocorre, de modo geral, quanprocesso da referenciação do, após utilizar uma alternativa de formulação, o A partir de algumas estratégias que KOCH professor recorre a outra alternativa de formulação. (1999) denomina de balanceamento entre im- É possível verificar a ênfase dada às atividades plícito e explícito, vamos proceder à análise de metalingüísticas por L 1: o que são tempos veralguns exemplos das principais marcas ou pistas bais, o que é um texto descritivo, o que é um de implicitude que orientam os interlocutores na slogan. Soma-se a isso a realização de uma ativiconstrução dos sentidos do discurso pedagógico. dade gramatical, com exercícios que destacam os Para esse fim, trabalhamos com a fala, gravando e tempos verbais, que vem corroborar a função do transcrevendo as aulas de leitura e de produção ensino de informar/ensinar (atividade cognitiva). Diante disso, pode-se dizer que, em sala de de texto em Língua Materna (LM), no ensino funaula, L 1 mostra suas crenças, e constrói sua pródamental, com alunos (ALS) de escola pública, em que procuramos analisar a situação comunica- pria identidade e imagem, por meio de um contiva, via sala de aula, de dois professores, deno- teúdo cujas aulas ficam polarizadas entre a explicação de regras/exercícios de gramática e a cópia minados L 1 e L 2. Tanto nos enunciados da língua falada como nos dos itens do Livro Didático (LD). A observação da escrita constrói-se uma teia referencial por in- dos eventos de sala de aula de L 1 confirma uma trodução e manutenção de referentes textuais, numa prática de ensino que, embora inclua textos, não rede que, distribuindo os objetos do discurso, or- pode ser considerada efetivamente “ensino de leiganiza informação e conduz argumentação, possi- tura”, uma vez que a narrativa foi elaborada espebilitando adequada interpretação da intenção co- cificamente para ensinar os verbos regulares. Essa municativa na fala. O processo discursivo é instau- visão inatista8 tem seu lugar teórico na teoria 7 Apoiamos-nos nas postulações teóricas de que o interacional é inerente ao lingüístico e de que a interação verbal resulta do exercício de uma competência comunicativa, que se concretiza por meio de discursos. 8 Segundo o inatismo, o rápido e complexo desenvolvimento da competência gramatical da criança só pode ser explicado pela hipótese de que ela nasceu com um conhecimento inato de pelo menos alguns princípios estruturais universais da linguagem humana. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 28-35, jan./jun. 2002 31 racionalista do conhecimento, se o verbo é da segunda termiEsses enunciados são que postula que todo conhecitípicos da linguagem fala- nação ou da terceira por exemmento é conseqüência da apliplo se eu pego aí o verbo esda, não porque sejam mal cação de modelos mentais inacrever (tópico)... olha só... que formulados, mas porque a depois eu posso dar um exercítos ao meio ambiente, que o aluno constrói sozinho a sua com- abertura da sentença com cio nesse estilo aqui... então petência lingüística já que foca- o tema (...) cria um enqua- presta atenção porque a expliliza apenas a forma cação é tudo (subtópico) (grifos dre dentro do qual vai Nos dados coletados, parenossos). poder manter-se engajado ce-nos que a topicalização posPode-se, ainda, verificar na o interlocutor (...) sui motivação textual importante fala desse professor que, depois quando o L 1 quer focalizar a atide mobilizar o tópico gramatical, vidade com exercícios, numa tarefa mecânica de em seguida ele utiliza os parênteses para caracterilistar adjetivos, verbos etc.: zar o papel de “cobrador de tarefas”, o subtópico. L 1: Então pessoal... é exercícios... ativida- Isso provoca o efeito de sentido de uma situação des gramaticais.. relativos a Gramática... a de denúncia, (L 2: olha só... que depois eu posso gente já viu o que é adjetivo e substantivo dar um exercício nesse estilo aqui... então presné? Começo do ano vai funcionar como uma ta atenção), em que o professor encara como obrirevisão... então o exercício... ele diz assim... re- gação o que foi delegado aos alunos como tarefa. tire alguns adjetivos presentes... (grifos nos- Trata-se de L 2 conferir, para ele se certificar, se os sos). deveres estão sendo realizados: mais um tipo de L 1 busca trazer o seu aluno para o seu discur- controle e poder por parte do professor. so, numa tentativa de torná-lo presente mais efetiA repetição é um recurso argumentativo/ vamente, já que, geralmente, o próprio aluno não discursivo (tanto da modalidade oral como da esse manifesta em quase nenhuma situação, durante crita), com finalidades diferentes, com resoluções as aulas de interpretação do texto. L 1 procura con- diferentes, com efeitos de sentido diferentes e é trolar as atividades desenvolvidas por meio de exer- nessa escolha que o falante obtém maior ou mecícios do LD, enfatizando o cumprimento das tare- nor adequação (MARCUSCHI, 1992). No exemfas, atividades, trabalhos, leituras, enfim, tudo por plo, esse recurso é uma espécie de identificação ele determinado9. Esses enunciados são típicos da do procedimento de L 2, de sinalizar aos alunos linguagem falada, não porque sejam mal formula- que toda narrativa está permeada de verbos e que dos, mas porque a abertura da sentença com o tema, estes constituem elementos fundamentais no enunciado com acento marcado (no caso, o exer- processamento lingüístico: cício), cria um enquadre dentro do qual vai poder L 2 – O coveiro então gritou desesperado... manter-se engajado o interlocutor, na subseqüência tire-me daqui por favor... estou com frio terdo fluxo comunicativo, que por ser oral é fugaz. rível... mas coitado... condoeu-se o bêbado... Os parênteses, recursos sintáticos do protem toda razão de estar com frio... alguém cessamento discursivo, têm sempre em seu signifitirou a terra de cima de você... meu pobre cado a marcação do tópico/subtópico em desenmortinho... e pegando a pá encheu de terra volvimento (JUBRAN, 1999), no caso de L 2 a e... pôs-se a cobri-lo cuidadosamente... enterminação verbal e os novos conceitos, e, em setão... vocês observaram que tem mu:::itos verguida, a informação sobre a necessidade do aluno bos? Mu:::itos... muitos muitos muitos... certo? prestar atenção: (grifos nossos). L 2 – Vogal temática indica a terminação do Fica evidente, também, que L 2 crê que o aluno verbo... se o verbo é da primeira terminação... não aprendeu e, querendo levá-lo ao entendimen- 9 São comuns esses temas marcados, situados na cabeça do enunciado que criam, na elocução oral, molduras conceptuais préoferecidas, fortemente orientadoras do todo da proposição colocada em seqüência (NEVES, 2000). 32 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 28-35, jan./jun. 2002 to do que ele, professor, deseALS: Ele usa... quando ele fala A mudança de código ja e tem como correto, repete, que uma criança... passando surge como um recurso continuadamente, o que foi mal... com fome.. descalça.. em que os falantes dito. A repetição constitui esestado horrível... quando vai peutilizam como pistas tratégia freqüente em aulas de dir uma esmola... L 1 e de L 2; os professores no que se refere ao L 2 : Isso... agora (abertura do aparentam entender, ainda, que tópico) gente tem uma palainterlocutor ou ao repetir é uma estratégia utilizavra... agora olha só... tem uma conteúdo, à entidade da para reforçar o seu saber, a palavra aí... (encaminhamento que constitui o tópico sua posição de professor. Ela na introdução do argumento do discursivo. serve, ainda, para dar ênfase à professor) ela usa determinada quantidade de verbos que exispalavra... que normalmente a tem na LP e ela pode ser associada à ênfase da gente não usa (grifos nossos). quantidade de conhecimento que o aluno deve Além de agora direcionar a atenção sobre o que ter. L 2 está para dizer (“aí quem quiser saber o resto Esse é mais um procedimento behaviorista10 da da história”), sua fala tem como referente a inforaprendizagem, em que o professor parte do pres- mação dada em um ponto anterior da fala (“se eles suposto de que o aluno é um indivíduo que aprende comeram pra engordar... se eles conseguiram fupor meio de repetições para automatizar as estru- gir”). Essa sinalização explícita de cada etapa de turas, devendo, portanto, seguir as regras do jogo desenvolvimento do assunto atende a dados estabelecido pelo professor. São descartados os situacionais de comunicação em sala de aula, com usos da língua com autenticidade pelos sujeitos, em finalidade didática: que o aluno aprende forma (regularidades formais L 1: Agora... (proposição 1) se eles comeda língua), função (ações comunicativas) e estratéram pra engordar... (proposição 2) se eles gias (modos de negociar por meio da linguagem para conseguiram fugir... (proposição 3) se a bruatingir metas). xa os comeu.. aí quem quiser saber o resto Também a forma agora veicula, com o tempo da história... tem que ler o livro... (.encamipresente do verbo, uma relação de proximidade temnhamento) gente... presta atenção... que que poral do fato evocado com a fala do professor. NEeu estou fazendo? Eu estou dando um VES (2000: 259) afirma que o tempo de referência exemplo... de como é contar a história do estabelecido por agora indica “um parâmetro livro.. e você pega só o que é principal... e situacional que engata o enunciado (proposição) conta o tema só (orientação didática) (grifos com as circunstâncias da enunciação, ora pronossos). movendo a abertura do tópico, ora o seu encaA mudança de código surge como um recurso minhamento, na introdução de argumentos” para que os falantes utilizam como pistas no que se a interpretação do texto em aula de leitura, a partir refere ao interlocutor ou ao conteúdo, à entidado diálogo a seguir: de que constitui o tópico discursivo: L 2 : Então ele usa... argumentos... pra exL 1 : (...) de repente se você está numa pior... por o ponto de vista dele...agora... quais são pra ver muito bem pra quem pede ajuda... os argumentos que ele usa aí? (proposição de repente... se você pede ajuda para alguém do professor) Pra nós entendermos que ele é que não está nem aí com você ou que está a favor do ato de dar esmola... que que ele pouco se lixando pra você...não se importa usa? Quais são os argumentos?... fala Lúcom você.... você pode acabar de se afundar cio (grifos nossos). certo? (grifos nossos). 10 Em Lingüística, a influência dessa escola de psicologia ficou bastante marcada na obra de Bloomfield, em rigorosos procedimentos de descoberta e no seu relato da significação em termos de estímulos observáveis e respostas feitas por participantes em situações específicas e mecanicistas. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 28-35, jan./jun. 2002 33 Efetivamente esse recurso sintáticos, semânticos e da estru(...) é visível a opera quando o professor ententura textual), atingindo elementos predominância da de que seus alunos não estão isolados ou tipos de elementos. função informativa da muito interessados na aula, e, Independentemente do tipo de linguagem, no discurso para fixar a mensagem do texto recurso utilizado, ele é sempre de pedagógico, na medida que eles precisam interpretar, L caráter discursivo e tem sua ori1 passa de um registro informal gem e resultado na interação. em que o professor, (gíria, que está pouco se lixansimplesmente, caractedo pra você) para outro mais 4. Considerações riza a informação (...) e formal em que procura utilizar repassa conteúdos (...) finais termos que sejam mais informativos dentro do processo de Ao estudar as estratégias de referenciação.11 Nesse recorte, a interação do pro- balanceamento entre implícito e explícito, artifessor com os alunos é dificultada pelo fato de os culando exemplos que forneceram pistas de aprendizes estarem, em sua maioria, dispersos, apa- implicitude, verificamos que as qualificações que o rentemente desinteressados, conversando muito ou locutor se atribui (ou a referência sobre as suas rede cabeça baixa nas carteiras, alheios ao que o pro- lações com o que diz) permitem a contextualização fessor está tentando repassar. das condições sob as quais se produzem sentidos – Tal passagem revela a preocupação de L 1 com daí a dimensão interativa com foco no locutor. Nesse a linguagem formal no entanto, sua fala é apenas sentido, L 1 e L 2 buscam, de diversas formas, foinstrucional, e está muito relacionada com a mera calizar a atenção dos alunos em situações ocorrinecessidade de levar os alunos a realizar a tarefa da das em aulas passadas, no intuito de ancorar a inescrita. Elas fazem parte do conhecimento formação nova na informação dada. Então, a parritualístico que compreende o tipo de conhecimen- tir de instruções, ordens, eles procuram articular o to que o aluno tem para realizar certa tarefa mesmo que vão dizer com aquilo que já foi dito, ou simsem ter o conhecimento desse princípio plesmente, focalizar o tratamento que vão dar a (EDWARDS & MERCER, 1987). algo em sua fala. Isso leva-nos a considerar que muitas vezes o Diante de nossa análise, é visível a predominânprofessor parece ter consciência de que usou re- cia da função informativa da linguagem, no discurso gistro inadequado para a situação comunicativa de pedagógico, na medida em que o professor, simsala de aula. Seria papel, então, do professor levar plesmente, caracteriza a informação que veio antes o aluno a tomar consciência, a partir da análise da ou que vem depois e repassa conteúdos por meio sua própria fala, da tradução parcial entre registros de muitos dados novos para os alunos. Essa função que ele opera e mostrar, ainda, que quanto mais está estreitamente ligada ao conhecimento cognitivo formal for o registro pretendido, mais se deve fazer que o professor tem do mundo exterior, dos acona tradução total, evitando-se as traduções parciais. tecimentos objetivamente observáveis do mundo à Julgamos as estratégias do processamento da sua volta, numa visão inatista/behaviorista, preocureferenciação um fenômeno importante na consti- pado em reproduzir o que foi lido e desconsiderando tuição da fala pedagógica, na construção e na or- as questões sócio-históricas do ensino de LM. ganização das atividades escolares, tanto que perAs interpretações das manifestações lingüísticas passa outros fatos da língua em vários planos e ní- do professor, a partir do estudo da referenciação veis (recursos fonológicos, morfológicos, lexicais, discursiva, deixam transparecer um saber embasado 11 L 1 emprega, também, o verbo ter no sentido de haver. Em seguida, reformula seu enunciado com o verbo haver, efetuando uma correção. Nesse caso, a preocupação de L 1 em empregar a norma culta fica clara, já que ele parece ter consciência de quem é, do lugar que ocupa na sala de aula. O enfoque é discursivo e L 1 procura preservar sua imagem diante dos alunos, neutralizando imediatamente o que foi dito anteriormente (Olha... teve uma aula... a semana passada... e nesse dia... houve aula de redação... e alguns de vocês não vieram... poucos alunos vieram... nesse dia eu tinha passado frase em construção... agora eu quero que...). 34 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 28-35, jan./jun. 2002 em valores e crenças que determinam suas decisões, atitudes e falas pedagógicas, com instância, principalmente, nos fatos de caráter informacional/ cognitivo . O professor aponta, na construção social da realidade escolar, determinados elementos como importantes para mobilizar idéias e conteúdos que ele precisa abordar na sala de aula do ensino fundamental. A partir das estratégias articuladas por L 1 e L 2, qualquer exame do modelo de interação verbal que caracteriza as relações humanas evidencia um quadro balanceado, completo e sem lacunas. Quem fala está inserido numa complexa engrenagem dentro da qual os recursos lingüísticos constituem apenas um dado, determi- nados que são por um mecanismo cognitivamente ativado, espacial/temporalmente ancorado, e socialmente inserido (NEVES, 2001). Vale dizer que tudo isso é automático: o professor/falante se engrena nesse mecanismo ao ativar o funcionamento da linguagem. Suas expressões lingüísticas são decorrência dessa interação: elas são determinadas basicamente pela próprias intenções motivadoras do ato lingüístico e condicionadas pela inserção social, real e concreta dos eventos. Em suma, a referenciação é definida no processamento discursivo, na interação, uma vez que a linguagem não é um dado biológico, mas sim construída socialmente. Referências Bibliográficas CRYSTAL, D. Dicionário de Lingüística e Fonética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1988. EDWARDS, D. & MERCER, N. Commom Knowledge, London: Routledge. 1987 JUBRAN, C.C.A S. Funções textuais-interativas dos parênteses. In: NEVES, M. H. (org.). Gramática do Português Falado. Campinas: UNICAMP, S. Paulo: FAPESP, vol. VII, 1999: 131-158. KOCH, I. V. & SILVA, M.C.P.S. Atividades de composição do texto falado: a elocução formal. In: CASTILHO, A & BASÍLIO, M. (orgs.) Gramática do Português Falado. 1996: 340: 379. KOCH, I. V. Estratégias de processamento textual (mímeo). Campinas, IEL/UNICAMP. 1999. MARCUSCHI, L. A. Repetição na Língua Falada: Formas e Funções. Tese de Lingüística. UFRE: Recife. 1992. ––––––––. A Contextualização e explicitude na relação entre fala e escrita (mímeo). 1994. NEVES, M. H. M. 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Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 28-35, jan./jun. 2002 35 Este trabalho apresenta uma visão geral dos resultados de uma pesquisa realizada como Dissertação de Mestrado (2001), a respeito do vocabulário dos estudantes universitários, demonstrando que as escolhas dos itens lexicais revelam não só aspectos da competência lingüística da população pesquisada, mas também a visão de mundo do grupo. Analisando-se variáveis sociolingüísticas, constatam-se diferenças significativas, particularmente quando associadas à escolaridade. Palavras-chave: Vocabulário, Estudantes Universitários, Palavras, Freqüência. This paper presents a general view of the results of a research, which was done interns of a master disssertation (2001), about university students’ vocabulary. These results show that their lexical choices reveal aspects of their linguistic competence and their vision of the world. The data were analyzed according to some sociolinguistic variables and demonstrated significant differences, specially when related to formal education. Keywords: Vocabulary, University Students, Words, Frequency. 36 * Pedagoga, Professora de Lingüística e de Língua Portuguesa e mestre em Letras (área de concentração em Estudos Lingüísticos) na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS (defesa em 04/12/ 2001). O VOCABULÁRIO DOS ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS UM ESTUDO COM BASE EM REDAÇÕES DE VESTIBULAR Roseli Imbernom do Nascimento* 1. Introdução Os refinamentos tecnológicos da área de informática têm propiciado significativo avanço nos estudos contemporâneos acerca do léxico, sobretudo naqueles que envolvem grandes bases de dados lingüísticos. Segundo Biderman, uma série de previsões e de constatações sobre o funcionamento da língua e sobre os elementos gramaticais presentes nos discursos orais ou escritos também podem ser feitas por meio da léxico-estatística. Pesquisas dessa espécie comprovam ainda que “o quantitativo é uma das propriedades do vocabulário” e, por conseguinte, que “a freqüência é uma característica típica da palavra”. De certa forma, desvenda-se a norma lexical vigente, que “nada mais é que a média dos usos freqüentes das palavras que são aceitas pela comunidade de falantes” (Cf. Biderman, 1998:162). Além dos dados objetivos, é possível também observar por meio de procedimentos estatísticos que as escolhas de determinados itens lexicais indicam a competência lingüística dos falantes e, ainda, revelam a sua visão de mundo. O fato de serem “escolhidas” determinadas palavras – e não outras – demonstra uma dada realidade vivida por um determinado grupo de indivíduos, uma vez que as palavras são capazes de testemunhar a sua história e de sintetizar o seu pensamento. Porém, como a língua não pode ser diretamente observável, é preciso “tentar apreender e isolar, atraPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 vés de uma amostragem, o léxico comum de uma comunidade lingüística”, para verificação desse uso e aferição dessa média (Cf. Português Fundamental, 1987, vol. II, tomo 1, p. 314). Nessa esteira, realizou-se como dissertação de mestrado (2001) uma pesquisa lexicográfica, estudando uma amostragem do vocabulário de ingressantes universitários, registrado em 450 redações de vestibular. Trata-se de estudantes de duas instituições de ensino superior do interior do Estado de São Paulo – uma pública (UNICAMP/Campinas, 170 redações do vestibular de 1999) e uma particular (Faculdades Toledo/Araçatuba, 280 redações do vestibular de 2000). Para os dois vestibulares, o tema da redação foi idêntico, tratando da comemoração dos 500 anos do Brasil. A escolha desse objeto de investigação baseou-se, fundamentalmente, em conhecimentos empíricos decorrentes do nosso contato direto com estudantes de Ensino Médio, e da nossa participação em banca de correção de redações de vestibular. Pelos trabalhos com o vocabulário, no âmbito do ensino, concluímos – frisese, empiricamente – que o vocabulário dos estudantes, na fase de ingresso na Universidade, é demasiado restrito, e que nem os professores, nem os livros (ou manuais) didáticos dedicam tempo e espaço adequados para um trabalho sistemático, que vise ao enriquecimento da competência vocabular dos estudantes. Os dados apurados mostraram-se bastante semelhantes aos obtidos por outros pesquisadores do léxi37 co, especialmente aos alcançados Este trabalho objetiva apresenNo estudo da variável que por Biderman, por meios tar uma visão geral dos dados da separa os dois grupos de computacionais, na elaboração do pesquisa, por meio de uma sínteestudantes – Escola Públi- se do Capítulo III (Análise dos seu Dicionário de Freqüências do léxico do português conca e Escola Particular, Resultados). Na seqüência, são 1 temporâneo . Nos dois trabaexpostos alguns gráficos, quadros constata-se que o lhos, observa-se que um pequee tabelas, que oferecem uma vocabulário daqueles que no grupo de palavras – pouco amostra da distribuição geral da se preparam para concormais de 300 – é usado freqüência das palavras; do reiteradamente, figurando no topo rer a uma vaga na Universi- cotejamento entre as palavras das listas de freqüência. Esse femais freqüentes no vocabulário dade Pública é superior. nômeno confirma as declarações dos estudantes e as mais freqüende Biderman (1998: 178-179) de tes no Dicionário de Freqüênque, “por enorme que seja o léxico de uma língua, é cias; e, ainda, do estudo das variáveis socioreduzido o repertório efetivamente utilizado pelos lingüísticas. falantes, até mesmo na língua escrita, que é a variante da língua que se serve de um vocabulário mais rico e mais variado”. O estudo do vocabulário trata de um duplo aspecEm contrapartida, existem também diferenças to da linguagem – intra e extralingüístico – e, por “qualitativas”, ligadas às condições sócio-econômico-culturais dos falantes, que apenas podem ser ana- isso, exige procedimentos claros e adequados quanto lisadas à luz das orientações da Sociolingüística. Essa à definição da unidade de base lexical. O critério da tendência é bem marcada quando se trata de varian- separatibilidade, ou seja, o da “palavra gráfica”, nortes associadas à escolaridade. No estudo da variá- malmente é considerado em estatística lexical, tendo vel que separa os dois grupos de estudantes – Escola sido, pois, também adotado para tratamento do corpus Pública e Escola Particular, constata-se que o voca- da pesquisa. Essa opção determinou a exclusão de bulário daqueles que se preparam para concorrer a toda e qualquer palavra composta por hífen, ou de uma vaga na Universidade Pública é superior. Não locução gramatical e lexical, ou de quaisquer lexias há, entretanto, outras variações significativas, nem complexas. Formas combinadas ou contraídas tammesmo no que se refere às diversas camadas sócio- bém foram tratadas como uma só palavra. Frise-se, portanto, que o levantamento e a contagem das unieconômicas. dades lexicais foram feitos com base nas “palavras Esses resultados demonstram a relação entre gráficas”, ou “formas flexionadas”, efetivamente realíngua e sociedade, ou seja, o imbricamento entre lizadas nos textos. fenômenos lingüísticos e aspectos sociopolíticos, e Dois paradigmas foram considerados para a ainda denunciam problemas de desigualdades deavaliação das palavras de maior ocorrência no correntes da má qualidade do ensino de Língua Porcorpus. O primeiro foi o das 100 palavras mais tuguesa, até o Ensino Médio, sobretudo na Escola freqüentes, a exemplo de como procedeu John C. Pública. Verifica-se, portanto, que esse tipo de pesDuncan Jr, em 1972, nos Estados Unidos, na elaquisa no âmbito do vocabulário é de particular inboração do dicionário de freqüências do português teresse para o ensino, pois somente com o conhe(Biderman, 1978: 255-272); e o segundo foi o das cimento sobre quais vocábulos merecem maior 359 palavras de F40 (freqüência 40) – limiar instiatenção, ou sobre quais fatores desencadeiam setuído pelos lingüistas responsáveis pela elaboração melhanças e/ou dessemelhanças com relação ao do VPF 2 . uso, é que se pode “evitar o empirismo na escolha Ressalte-se a importante “abonação” que o Dido vocabulário para fins didáticos” (Biderman, cionário de Freqüências, de Biderman, conce1998: 179). de aos resultados da pesquisa, pois, quando se 2. Perspectiva teórica 1 Esse dicionário ainda não foi publicado, mas os resultados da pesquisa da qual ele se originou foram divulgados por sua autora, Maria Tereza Camargo Biderman, em artigo publicado pela Revista Alfa, n. 42, n. esp., 1998, p. 161-181. 2 Vocabulário do Português Fundamental. 38 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 faz uma correlação dos dados, Frise-se, portanto, que constata-se que mais de 85% o levantamento e a das palavras mais freqüentes do contagem das co rp us da pesquis a est ão inseridas entre as mais freqüenunidades lexicais foram 3 tes desse Dicionário . Esse fefeitos com base nas nômeno aponta para uma pos"palavras gráficas", ou sível tendência de uso dessas "formas flexionadas", palavras em qualquer texto, e Como já foi mencionado, os reindica que, talvez, essas palaefetivamente sultados apurados assemelham-se vras sejam capazes de sintetibastante aos dados divulgados por realizadas nos textos. zar o pensamento contemporâBiderman (1998a, p.161-181), com neo desses jovens acadêmicos. relação ao Dicionário de FrePara detectar as dessemelhanças quantitativas qüências do léxico do português contemporâneo e qualitativas entre as Instituições Particular e Pú- (DIF). Esse fato corrobora as idéias de alguns teóricos blica foram analisadas três variáveis sociolin- sobre as estruturas lexicais seguirem uma certa regulagüísticas: formação escolar; sexo; nível sócio- ridade, até mesmo na distribuição das letras do alfabeeconômico. Foram feitos também diversos cruza- to. Vejamos esse fenômeno por meio do gráfico 1: mentos dos dados obtidos nessas variáveis, e um fato que se destacou nesse estudo diz respeito à independência de algumas var iáveis e à interdependência de outras. Conforme já se disse, a escolaridade se suplanta às demais variáveis, independentemente de quaisquer outros fatores externos. 3.1 - Visão geral do vocabulário e da freqüência assinalada no corpus 3. Análise dos Resultados Para fins didáticos, dividimos a apresentação dos dados em três partes distintas, seguindo a disposição do trabalho original, para expor sucintamente: em 2.1, a visão geral do vocabulário e da freqüência assinalada no corpus; em 2.2, o cotejamento entre as palavras do vocabulário dos estudantes universitários (daqui para frente VEU) e as do Dicionário de Freqüências do léxico do português contemporâneo (daqui para frente DIF); em 2.3, o estudo das variáveis sociolingüísticas. Para a análise do aspecto qualitativo do vocabulário, utilizamos essencialmente dois parâmetros: o de análise da adequação – ou inadequação – gramatical dos itens lexicais à norma culta (escrita), e o de análise do conteúdo semântico das palavras mais freqüentes. Gráfico 1 - Distribuição das letras do alfabeto Pode-se verificar pelo gráfico que a letra C, com 12%, ocupa o primeiro lugar em número de unidades; a A, o segundo, com 11%; em terceiro, a P com 10%; empatadas em quarto, a D e a E com 9%; e em quinto, a I com 7%. As letras M, R e S, que estão empatadas com 6%, e a letra F, que tem 4%, registram o número mais próximo da média. Depois, há 11 letras (B, G, H, J, L, N, O, Q, T, U, V) registrando um índice baixo de unidades (1 a 3%) e, por fim, as letras X e Z, com um número insignificante de palavras. Com relação à freqüência, não fizemos a quantificação por letra do alfabeto, mas por intervalo, como mostra a tabela 1, que segue: 3 Segundo Biderman (1998: 161), para a elaboração desse dicionário, foi utilizada uma base textual de 5 milhões de palavras do português do Brasil – língua escrita –, presentes em cinco modalidades textuais (literatura romanesca, dramática, técnico-científica, jornalística e oratória). Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 39 Tabela 1 – Distribuição geral das palavras Essa tabela evidencia o fenômeno da alta concentração da freqüência sobre um pequeno número de unidades léxicas, a exemplo dos resultados de pesquisas léxico-estatísticas4 que têm sido divulgadas atualmente. Tratando-se de vocabulário escrito, isso denota uma possível repetição exagerada de algumas formas, particularmente entre as 100 primeiras, que somam mais da metade do corpus. O índice de 51,3% de freqüência concentrada sobre menos de 1% do total de unidades léxicas é bastante semelhante àquele obtido por Duncan, em 1972, quando elaborou o primeiro dicionário de freqüência do português5 e constatou que as 100 primeiras palavras, referentes a 2% do total de unidades, registraram 61,98% da freqüência total. O percentual de 66,7% de freqüência acumulada em F>=40 (359 primeiras unidades) é também alto, porém, bem mais equilibrado comparando-se às 100 primeiras e, por isso, parece confirmar o limiar de freqüência 40 apontado como o número ideal, ou representativo da maior tendência de uso do vocabulário. Todos os demais intervalos de freqüência inferiores a F>=40 reúnem um montante de freqüência bem inferior, conforme se observa na tabela 1 exposta, corroborando, portanto, essa nossa constatação sobre a credibilidade do limiar de freqüência 40. O gráfico 2 colabora para ilustrar essa distribuição desigual da freqüência: Gráfico 2 – Distribuição da freqüência As palavras de F>=20<40 (freqüência maior ou igual a 20 e menor que 40) formam um conjunto bem restrito em termos de unidades léxicas e, por isso, não somam uma freqüência elevada; elas não estão incluídas no limiar de freqüência 40 e, dessa forma, não se caracterizam como palavras relevantes do ponto de vista da estatística léxica. Todavia, consideramo-las como palavras de alta freqüência e, portanto, também significativas do ponto de vista qualitativo. Ademais, entendemos também que F>=20<40 abriga as palavras de alta freqüência porque, em termos estatísticos, a freqüência “média” situa-se em F>=10<206. Seguindo essa mesma ordem decrescente dos registros do vocabulário, constatamos um fenômeno oposto, qual seja: à medida que a freqüência diminui, cresce acentuadamente o número de unidades léxicas. 4 Segundo informações do Português Fundamental e do Dicionário de Freqüências do léxico português contemporâneo, elaborado por Biderman no Brasil, o mesmo fenômeno ocorre tanto no vocabulário escrito quanto no falado. 5 A Frequency Dictionary of Portuguese Words (FDPW), de John C. Duncan Jr. PhD. Dissertation, Standford University, 1972, citado por Biderman (1978, p. 265-272), selecionou 5.000 palavras que mais freqüentemente ocorreram num corpus de 500.000 palavras. 6 Obtivemos a média dividindo o valor total da freqüência (113.638) pelo número total de unidades (11.151). 40 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 O comportamento das palavras que compõem o grupo de F>=2<10, bem como o dos vocábulos de F1, ou dos 5.813 hapax legomena7 (palavras que ocorrem uma só vez no corpus), comprova que, quanto mais baixa for a freqüência, maior será o número de unidades léxicas. Vejamos este fato no gráfico 3: Várias pesquisas lexicográficas comprovam que o alto índice da freqüência deve-se, fundamentalmente, a algumas poucas palavras, sobretudo às cinco primeiras. Fato semelhante ocorre no VEU, como comprova a tabela 2 na seqüência: Tabela 2 – As cinco palavras mais freqüentes Gráfico 3 – Distribuição das unidades léxicas Constata-se que a freqüência de 1 a 9 (F>=2<10 mais hapax legomena) predomina em número de unidades léxicas, eqüivalendo a 88,5% do total existente no corpus. Como se vê, apenas cinco lexemas atingem 17% da freqüência do corpus. Especialmente a soma das duas mais freqüentes (8.652 ocorrências) é muito elevada, confirmando o fenômeno do dequeísmo, ou tendência contemporânea de uso do “de” (preposição) e do “que” (pronome relativo), conforme declaram Paiva & Scherre (1999, p. 206)8. Vejamos, na tabela 3, a lista das 100 primeiras, na ordem decrescente da freqüência: Tabela 3 - As 100 primeiras palavras na ordem decrescente da freqüência 7 Denominação utilizada nos trabalhos de léxico-estatística, para as palavras de freqüência 1, ou de uma só ocorrência em todo o corpus. Cf. Biderman, 1984 e 1998. 8 Nesse trabalho, as autoras analisam o uso variável de determinadas preposições em diferentes processos de regência verbal. A respeito do “de” e do “que”, Paiva & Scherre (1999, p. 206) declaram: “a instabilidade do sistema preposicional fica evidente [...] na tendência à inserção da preposição ‘de’ em contextos em que não se prevê sua ocorrência – dequeísmo – [...] ou de sua queda em contextos onde é esperada – queísmo – [...]. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 41 O quadro 1 adiante fornece uma amostra da distribuição dessas 100 palavras, de acordo com a cate- goria instituída por Biderman, e ora considerada na presente pesquisa: Quadro 1 - As 100 palavras mais freqüentes distribuídas por categoria9 Com relação aos verbos, foi necessário fazer a lematização para detectar que os cinco mais freqüentes no VEU são, na ordem: 1º: ser, 2º: ter, 3º: estar, 4º: poder e 5º: fazer 10. Para fins de apresentação das 359 palavras de F40 (freqüência igual ou superior a 40), utilizamos a tradicional classificação por classes de palavras, tomando os seus valores virtuais e observando, na medida do possível, o valor contextual predominante em cada uma delas. Este foi o grupo das palavras mais usadas, formadoras do núcleo do vocabulário ora analisado. São as palavras essenciais para efeito de análise do aspecto qualitativo a seguir11. • Adjetivos (30): bom, brancos, brasileira, brasileiro, brasileiros, certo, cultural, descoberto, devido, diferente, diferentes, econômica, econômico, grande, grandes, importante, maior, melhor, nacional, nativos, naturais, nova, novas, novo, pobre, pobres, possível, sociais, social, verdadeira. • Advérbios (34): agora, ainda, além, antes, apenas, aqui, assim, atrás, através, atualmente, bem, depois, enfim, então, fora, hoje, já, mais, menos, muito, não, nunca, onde, principalmente, quando, quanto, quase, realmente, sempre, sim, só, talvez, também, tão. • Artigos (6): a, as, o, os, um, uma. • Conjunções (12): apesar, como, durante, e, enquanto, mas, nem, ou, pois, porém, porque, portanto. • Contrações (16): à, ao, aos, às, da, das, do, dos, na, nas, no, num, pela, pelas, pelo, pelos. • Numeral (3): primeiro, primeiros, quinhentos. • Preposições (11): até, com, contra, de, desde, em, entre, para, por, sem, sobre (não incluída a preposição a = homônima). • Pronomes (64): algumas, alguns, cada, dessa, desse, desta, deste, disso, ele, eles, essa, essas, esse, esses, esta, este, estes, eu, isso, isto, lhe, lo, me, mesmo, meu, minha, muita, muitas, muitos, nada, neste, nós, nos, nossa, nossas, nosso, nossos, outra, outras, outro, outros, pouco, poucos, própria, qual, qualquer, que, quem, se, seu, seus, sua, suas, tal, tantas, tanto, toda, todas, todo, todos, tudo, várias, vários, você. 9 Já se assinalou a inclusão de algumas formas verbais na categoria instrumental, em virtude de serem verbos cujo caráter é essencialmente funcional. São eles: ser, ter, estar, poder e haver (nessa ordem de freqüência). Quanto aos homônimos, optamos por incluí-los na categoria em que os mesmos registraram maior freqüência. Cumpre lembrar que a homonímia torna praticamente impossível a tarefa de classificar e quantificar, com precisão, a freqüência de algumas unidades dentro do contexto. 10 Cumpre informar que esses verbos também figuram entre os 20 mais freqüentes, tanto do Português Fundamental quanto do DIF. 11 Excluímos as interjeições, conforme já se mencionou. 42 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 • Substantivos (128): amigo, ano, anos, Brasil, busca, Cabral, cara, características, carta, certeza, chegada, cientistas, coisa, coisas, colônia, colonização, colonizadores, comemoração, condições, continente, corrupção, costumes, crânio, cultura, culturas, descoberta, descobertas, descobrimento, desemprego, desenvolvimento, dia, dias, dinheiro, distribuição, economia, educação, época, escolas, esperança, estado, estrangeiros, europeus, exemplo, existência, exploração, falta, fato, fatos, fome, forma, futuro, gente, governantes, governo, habitantes, história, homem, homens, identidade, imagem, independência, índio, índios, início, interesses, lado, lugar, luta, Luzia, maioria, manchetes, maneira, mãos, meio, milênio, milhões, miscigenação, miséria, mistura, momento, mundo, nação, nações, negro, negros, notícias, origem, ouro, país, países, parte, passado pau, Paulo, Pedro, pessoas, política, políticos, população, Portugal, portugueses, povo, povos, presente, problemas, raça, raças, realidade, recursos, relação, renda, respeito, riquezas, rosto, saúde, século, séculos, situação, sociedade, tecnologia, tempo, terra, terras, trabalho, verdade, vez, vida, violência. • Verbos(55): comemorar, completar, continuar, dar, deve, devemos, dizer, é, era, eram, está, estamos, estão, estar, estava, existe, existem, faz, fazem, fazendo, fazer, foi, fomos, foram, há, melhorar, mostra, mostrar, mudar, parece, pode,podemos, poder, possui, sabe, sabemos, saber, são, seja, sendo, ser, será, seria, sido, somos, tem, têm, temos, ter, vai, vamos, vem, ver, vivemos, viver. 3.2 - Cotejamento entre palavras do VEU e palavras do DIF O Dicionário de Freqüências do léxico do português contemporâneo (DIF), resultou de um trabalho de pesquisa com base num corpus de língua escrita (variedade brasileira registrada entre 1950 e 1990), reunindo cinco milhões de palavras12. As 1.078 mais freqüentes (F>=500), segundo Biderman (1998: 168): “constituem o núcleo do vocabulário do português e podem ser consideradas como essenciais para a comunicação neste idioma”. Quanto à distribuição da freqüência e do número de unidades léxicas, observa-se na tabela 4 a semelhança entre os dados dos dois corpus (DIF e VEU): Tabela 4 - Comparativo da distribuição geral das palavras nos dois corpus O DIF baseou-se num corpus cinqüenta vezes maior que o do VEU; assim, essa diferença proporcional deve permear quaisquer comparações que se façam. Nessa primeira tabela já se constata que os dados equiparam-se, sobretudo no que diz respeito à porcentagem de palavras de alta freqüência. Se compa- 12 ramos apenas as unidades léxicas, talvez possamos admitir uma possível dessemelhança dos resultados, uma vez que as 11.151 unidades do VEU sugerem que cada palavra tenha sido repetida 10 vezes (em média), ao passo que, no DIF, a média tenha sido de 118 ocorrências por palavra. É evidente que, quanto Já mencionamos que este assunto pode ser conferido em Biderman (1998, p. 161). Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 43 maior e mais diversificado for o vocabulário, tanto maior será o número de unidades diferentes e, em conseqüência, a freqüência média por elas assinalada. É importante lembrar também que nenhum vocabulário possui uma distribuição homogênea da freqüência das palavras, embora seja possível perceber, pela distribuição das suas classes nos dois objetos investigados (VEU e DIF), uma certa regularidade das estruturas léxicas. Esse fenômeno pode ser observado também por meio da tabela 5, que traz a lista dos 20 verbos mais freqüentes, tanto no DIF quanto no VEU, conforme segue: Tabela 5 - Comparativo dos vinte primeiros verbos 13 Como se vê, 13 verbos – ser, ter, estar, poder, fazer, haver, ver, saber, dever, ir, dizer, chegar e dar – estão tanto na lista dos vinte primeiros do DIF quanto na lista dos vinte primeiros do VEU. Apenas sete verbos – querer, ficar, achar, falar, precisar, começar e olhar –, que figuram entre os vinte do DIF, não estão entre os vinte do VEU. No lugar desses ausentes, constam entre os vinte primeiros do vocabulário dos estudantes os verbos vir, viver, mostrar, possuir, existir, comemorar e descobrir. Não só nos trabalhos desenvolvidos por Biderman, mas também nas pesquisas feitas em Portugal (Português Fundamental), constatou-se que o comportamento desses verbos era parecido. Os dados do VEU retomam, pois, as seguintes declarações de Biderman acerca da conclusão a que chegou Müller, em 1974, ao pesquisar os vinte verbos mais freqüentes no francês - exatamente os mesmos da lista do DIF: 13 14 [...] esses vinte verbos mais freqüentes situam-se na escala decrescente de freqüência em posições quase idênticas; isso confirma também que distribucionalmente eles operam de maneira muito similar na língua, não importando o tipo de variáveis lingüísticas consideradas, a saber: língua falada ou escrita [...]. Os resultados demonstram, portanto, que o comportamento lingüístico desses verbos tem-se mantido quase imutável ao longo de duzentos anos. São, pois, verbos muito estáveis no idioma (Biderman, 1998, p. 171). Acreditamos que os resultados ora obtidos corroboram também a hipótese formulada pela mesma pesquisadora de que as conclusões de Müller sobre o francês talvez sejam válidas para o português. Vejase, nesse caso, o fato de o 1º e o 2º classificados (ser e ter) serem exatamente os mesmos, havendo ape- Cf. Biderman (1998, p. 172). 14 Informamos que esses verbos foram lematizados e que, portanto, o número de ocorrências de cada uma das formas inclui todas as flexões existentes no corpus. O total de freqüência desses 20 verbos é de 9.549 ocorrências, que corresponde a 8,4% do corpus (113.638). 44 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 nas uma pequena variação na ordem de classificação dos demais. Com relação aos verbos mais freqüentes, portanto, podemos assegurar que são inúmeras as semelhanças entre os dados do VEU e os do DIF. Do rol das 359 unidades que compõem o núcleo do vocabulário dos acadêmicos nas suas redações, apenas 51 não estão presentes no grupo das 1.078 do Dicionário de Freqüências do léxico do português contemporâneo, conforme se observa no quadro 2: Quadro 2 - Lista das 51 palavras, de F>=40 no VEU, que não estão entre as 1.078 do DIF A maior parte das palavras desse conjunto, como se observa, são plenas. Esse grupo já restrito (14% das 359) torna-se inexpressivo, caso dele retiremos 38 palavras não relevantes para a nossa análise qualitativa. Trata-se de 32 palavras diretamente ligadas à temática da redação15, mais 05 substantivos próprios16 e 01 forma pronominal lo17. Nesse caso, restam somente 13 palavras, sendo duas contrações de função gramatical - à e às - e onze palavras plenas (01 verbo e l0 substantivos), quais sejam: melhorar, corrupção, desemprego, distribuição, exploração, governantes, identidade, riquezas, tecnologia, trabalho e violência. Esse grupo de 11 palavras plenas remete-nos à dimensão extralingüística, apontando para aspectos bastante interessantes do ponto de vista histórico. Sobretudo as palavras: corrupção, desemprego, distribuição (da renda), exploração, governantes, tecnologia, trabalho e violência denunciam problemas ligados ao atual contexto sócio-econômico brasileiro. Especialmente a palavra desemprego deixa transparecer essa tendência, uma vez que no VEU a mesma registra alta freqüência 18 , mas no corpus de pesquisa que originou o DIF a sua freqüência é baixa (apenas 67 ocorrências). Isso comprova que no período considerado para o levantamento do mesmo corpus (1950 a 1990) o problema do desemprego não era tão vivenciado quanto é nos dias de hoje, razão provável por que essa palavra foi pouco utilizada, segundo aquela pesquisa. O que nos convence ainda mais dessa possibilidade é o fato de o seu antônimo - a palavra emprego fazer parte do núcleo do vocabulário português contemporâneo, ou seja, de a mesma estar “presente” entre as 1.078 palavras do DIF (585 ocorrências), embora “ausente” na lista das 359 palavras mais freqüentes no VEU. Como se constata, 86% das palavras de F>=40 do vocabulário dos estudantes, ou seja: 308 palavras, fazem parte da lista das 1.078 que compõem o Dicionário de Freqüências do léxico do português contemporâneo. Mais uma vez, convém aqui destacar a grande semelhança entre os dados do VEU e os do DIF, bem como a significatividade dessas 308 palavras para a constituição de um núcleo vocabular presente nas redações dos estudantes. 15 As 32 palavras temáticas são: atualmente, busca, carta, cientistas, colônia, colonização, colonizadores, comemoração, comemorar, continente, costumes, crânio, descoberta, descobertas, descoberto, descobrimento, europeus, habitantes, independência, índio, índios, manchete, milênio, miscigenação, mistura, nativos, ouro, pau (em pau-Brasil), portugueses, quinhentos, raça e raças 16 Não excluímos os substantivos próprios da contagem numérica, visto que os consideramos em eventuais momentos de nossa análise qualitativa. Nesse caso, são eles: Cabral, Luzia (nome atribuído pelos cientistas ao crânio de 11.500 anos encontrado em Belo Horizonte), Paulo (em São Paulo), Pedro (em Pedro Álvares Cabral) e Portugal. 17 Em contato pessoal, fomos informada pela professora Biderman de que, na composição do DIF, as formas pronominais lo, la, los, las não foram objeto de análise por parte dessa pesquisadora. 18 Desemprego: total de 65 ocorrências no corpus (desempregos: 54, desempregado: 1, desempregados: 65). Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 45 De acordo com a metodologia que adotamos, essas 308 palavras distribuem-se em três diferentes grupos: 44 palavras ligadas à temática e ao gênero textual; 182 palavras de uso, ou caráter genérico; 82 palavras especiais. As primeiras estão comprometidas com o tema e/ou gênero textual; as segundas são, na maioria, palavras de função gramatical, comuns a qualquer tex- to; e as terceiras – especiais – são as únicas relevantes em termos qualitativos, por serem plenas, ou conteudísticas, capazes de retratar o pensamento contemporâneo dos estudantes universitários. Na seqüência, apresentamos o quadro 3, com as 82 palavras especiais distribuídas por campos léxicos, em torno do macrocampo contemporaneidade: Quadro 3 - Distribuição das 82 palavras especiais em campos léxicos As palavras assim organizadas reúnem em torno de si, essencialmente, conceitos abstratos e do domínio da percepção. Essa união e distribuição de palavras parece constituir um quadro representativo da contemporaneidade, ou melhor, do momento atual por que passa a humanidade neste limiar do século XXI e do terceiro milênio, muito embora comporte inúmeras - talvez, infindas - possibilidades de interpretações, de acordo com o analista, pois, segundo Gipper (1975, p. 40), “o observador lingüístico tem em regra de antemão a compreensão intuitiva” e, diante do objeto de observação, deve “saltar, por assim dizer, para dentro dele e tomar consciência de que se vê já através de lentes lingüísticas”. 3.3 - O estudo de algumas variáveis sociolingüísticas Convém lembrar que foram estudadas, basicamente, três variáveis: formação escolar, sexo e nível sócio-econômico. Na seqüência, apresentamos uma breve síntese dos resultados de cada uma delas, pri46 vilegiando a primeira, por ser mais significativa. Cumpre esclarecer que, na pesquisa, considerou-se formação escolar tanto a instituição de ingresso – Pública ou Particular – do universitário, quanto a instituição – Rede Pública ou Rede Particular de Ensino – da qual o estudante é egresso, isto é, a que cursou até o Ensino Médio. Para observação do perfil dos estudantes das duas instituições, expomos a tabela 6, com as informações relativas às três variáveis sociolingüísticas mencionadas: A primeira dessemelhança imediatamente perceptível diz respeito ao número de redações de cada Instituição, bem como ao número de palavras em cada corpora: o da Universidade Particular, constituído de 6.296 unidades léxicas para um total de 53.238 palavras extraídas de 280 redações; o da Pública, de 8.401 unidades léxicas que se desdobram em 60.400 palavras extraídas de 170 redações. Como se vê, mesmo com 110 redações a mais, o corpora da Particular é ainda menor. Enquanto os textos dos estudantes da Instituição Particular têm, em média, 190 palavras, os textos dos estudantes da Instituição Pública Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 Tabela 6 - Distribuição dos grupos sociolingüísticos para estudo das variáveis têm 355 cada um – quase o dobro. Outra diferença refere-se ao número de unidades léxicas: no corpus da Instituição Pública há 2.205 unidades léxicas a mais, dado indicativo de que o vocabulário desse grupo é mais diversificado, especialmente porque essas unidades não repetidas são, na maioria, palavras de conteúdo (ou plenas). Em contrapartida, nas redações dos estudantes da Escola Particular há repetição mais acentuada de palavras, indicando maior escassez vocabular. Em linhas gerais, verificou-se que o acervo vocabular do grupo de ingressantes universitários da Escola Pública é mais rico, embora haja muitos outros pontos não divergentes entre o vocabulário das duas populações pesquisadas. Na análise das 100 palavras mais freqüentes, por exemplo, as 36 primeiras palavras são exatamente as mesmas19, tanto na lista da Universidade Particular quanto na lista da Universidade Pública, havendo diferença apenas na ordem de classificação da freqüência (exceção feita às cinco primeiras). Há, também, no mesmo grupo, maior número de palavras especiais – ricas em conteúdo – no repertório da Pública e, ao contrário, maior número de palavras temáticas – condicionadas pelo tema – no da Particular. Finalmente, constata-se pela freqüência dos verbos ter e haver que, embora as duas formas estejam presentes entre as 100 palavras mais freqüentes, na Particular, a forma verbal tem foi citada 196 vezes e a forma há 99 vezes; já na Públi- ca, tem registra 105 ocorrências e há registra 112, o que denota maior correção gramatical deste segundo grupo. Essa diferença contribui para que se declare que o vocabulário dos estudantes da Universidade Particular está menos adequado aos padrões gramaticais, ou melhor, à modalidade escrita culta prevista para utilização nas redações de vestibular. Esse fato confirma-se ao se consultar as duas listas de palavras, na ordem decrescente da freqüência, e se constatar no corpora da Universidade Pública maior incidência de plural em sintagmas nominais, bem como, de maior número de palavras de conteúdo específico – sinais de maior adequação gramatical e, por conseguinte, de superioridade vocabular. Cremos ser possível acrescentar, ainda, que por intermédio de estudos desse tipo de variável sociolingüística seja possível observar que as variações diastráticas têm seu reflexo na linguagem. Em outras palavras, que o conhecimento a respeito do uso da língua depende também das condições escolares. Nesse sentido, comprovou-se que os estudantes que concluem o Ensino Médio em Escola Particular estão ainda melhor preparados em matéria de uso do vocabulário. Pensamos que o tipo de escola freqüentada pelo estudante até o Ensino Médio acarrete um tipo de variável que se compara à escolaridade, embora neste caso não se trate de investigar quantos “anos” de escolarização o indivíduo possui, mas sim, 19 São elas: de, que, e, a, o, Brasil, um, do, país, não, se, é, os, com, para, em, uma, da, por, como, anos, as, mais, no, mas, dos, sua, povo, na, nosso, nos, ao, nossa, hoje, são e ser. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 47 “onde”, ou “como” se deu essa cabulário relativas à variação as(...) os dados apontam escolarização. No caso de se poque os textos das mulhe- sociada à classe social – nessa der considerar essa variável como pesquisa, considerando-se a renres apresentam maior uma espécie de escolaridade, da familiar. Esse fato confirma aplicar-se-á, então, a seguinte decorreção gramatical, que, por si só, a situação sócioclaração feita por Paiva & Scherre econômica não determina a supesendo mais adequados (1999, 217): “a variável escolaririoridade dos falantes em termos ao padrão escrito-culto, vocabulares. dade suplanta as demais, moldanassim como maior do, em grande parte, a heteroFinalmente, na análise da vageneidade lingüística que se pode diversidade e precisão no riável sexo, queremos assinalar, constatar no uso do português” inicialmente, algumas diferenças uso dos itens lexicais. (grifo nosso). do ponto de vista expressivo – vaIndubitavelmente, do ponto de riação diafásica –, com base no vista político, o estudo dessa variável fornece dados conjunto das Instituições. Observam-se alguns dasuficientemente seguros para apontar duas questões dos curiosos a respeito da característica das mulheproblemáticas relativas ao ensino. A primeira é a res – variação “adstrita” e não “adquirida” –, de deevidência de que a formação dos estudantes até o monstrarem maior sensibilidade ao valor simbóliEnsino Médio é deficiente e de que o conhecimento co da variação, conforme declaram Paiva & em termos vocabulares é insuficiente para o nível de Scherre (1999, p. 218). Esse fenômeno marca-se pela cultura que se espera dos que estejam ingressando presença de palavras como: amor, alegria, Deus, numa Universidade. A segunda questão, talvez ain- cuja freqüência é muito maior no vocabulário das muda mais complexa, diz respeito ao fato de a Escola lheres. 20 Pública não estar cumprindo o seu papel social na Analisando-se quantitativamente os corpora Educação Básica e de estar oferecendo um ensino feminino e masculino, de imediato, nota-se que o que é de má qualidade e, ainda mais, inferior ao que vocabulário dos homens é mais extenso, embora oferece a Escola Particular. Ao que parece, a injus- esse grupo seja menor. Tem-se aqui uma “novidatiça social na Educação faz-se em dois momentos, de” científica diante da “verdade” propagada pelo pois o ensino público apenas será de boa qualidade senso comum de que as mulheres são mais tagano Nível Superior, já que as vagas para a Universida- relas e, talvez, por isso, seus textos também sejam de Pública são tão disputadas. Porém, quando chega mais longos. esse momento, as suas portas são fechadas aos que Por outro lado, os dados apontam que os textos dela, antes, participavam. das mulheres apresentam maior correção gramatiComo se verifica, essas questões ligadas ao sis- cal, sendo mais adequados ao padrão escrito-culto, tema de ensino extrapolam o âmbito educacional para assim como maior diversidade e precisão no uso alcançar a esfera sócio-econômica, fazendo com que dos itens lexicais. Sobre esse fato é importante lem“a variável escolaridade reflita, na verdade, a ação brar que, historicamente, o homem sempre ocupou da variável classe social”, conforme informam nova- lugar de destaque na sociedade e foi menos submemente Paiva & Scherre (1999, p. 218). E, nesse caso, tido a pressões de caráter social. Talvez essa “liainda segundo as mesmas pesquisadoras, “as conse- berdade” dos homens para escrever tenha uma exqüências são ainda mais perversas, pois não se mo- plicação histórica, pois, na Antigüidade, toda prodificam variantes lingüísticas, mas, sim, se excluem dução escrita era de autoria masculina. Em os indivíduos que não possuem determinadas varian- contrapartida, à mulher fora negado até mesmo o tes lingüísticas” (Paiva & Scherre,1999, p. 218). direito à palavra, cumprindo-lhe permanecer em siCuriosamente, nesse mesmo estudo, constatamos lêncio e obedecer às ordens de seres “superiores” não existirem quaisquer diferenças qualitativas no vo- os homens21 . Com isso, as mulheres tiveram aces20 A freqüência das palavras amor, alegria, Deus, assim se distribui nos dois vocabulários: a) amor: mulheres= 23 ocorrências, homens= 05 ocorrências; b) alegria: mulheres= 15 ocorrências, homens= 03 ocorrências; c) Deus: mulheres= 18 ocorrências, homens= 10 ocorrências. 21 Segundo Duby & Perrot (1990), Os Fastos é uma obra inacabada de Ovídio, contendo seis livros dedicados, cada um, às festas dos meses de janeiro a junho do calendário romano. Nessa obra está inserido o Mito de Lara, transformada na Tacita Muta (Deusa Muda), mulher tagarela, que teve a sua língua arrancada, por ordem de Júpiter. 48 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 so à escrita muito tempo depois do homens. Estudos sociológicos atestam que as mulheres até hoje continuam sendo submetidas à maior pressão da so- ciedade, no que diz respeito à correção e à pureza da linguagem e que, por isso, elas adquiriram maior consciência de status. 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Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de Lingüística da Universidade de Lisboa, 1987. PAIVA, Maria da Conceição de & SCHERRE, Maria Marta Pereira. Retrospectiva sociolingüística: contribuições do PEUL in Revista Delta, vol. 15, nº especial, 1999. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002 49 O estudo baseia-se na experiência da educadora, atuando desde 1985 na formação do profissional de Letras em universidades públicas brasileiras, e tem o intuito de contribuir com uma proposta de avaliação desse profissional de modo a levá-lo a alcançar a qualidade total em sua atuação, adquirindo conhecimento de como encarar um mundo globalizado e uma situação de não-emprego. A autora defende que, para isso, é preciso acrescentar ao conhecimento intelectual: o exercício do auto-conhecimento, do cooperativismo e do empreendedorismo. Palavras-chave: Letras, Mercado de Trabalho, Empreendedorismo, Capital Intelectual. * This study is based on author’s experience since 1985 on language professional training in Brazilian public universities, and has the aim of contributing with a proposal of evaluation of this professional as to have him achieve total quality on his/hers actions, acquiring knowledge on holding a globalized world and a situation of unemployment. The author defends that to agregate to the intelectual knowledge the exercises of self-knowledge, of co-operativism and of entrepreneurship is needed. Keywords: Litterature, Labor Market, Entrepreneurship, Intellectual Capital 50 Este texto foi produzido a partir de palestra com o mesmo nome, proferida no Seminário Avaliação em língua materna, em língua estrangeira, em... novas tendências, novos paradigmas, promovido pelo Núcleo de Apoio Pedagógico do Rio Grande do Sul, NAP-RS, no dia 21 de maio de 1999, em Porto Alegre. ** Professora de Espanhol do Depto de Letras Modernas, Centro de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. AVALIAÇÃO QUE FAVORECE A AUTONOMIA E DESENVOLVE O EMPREENDEDORISMO NO PROFISSIONAL DE LETRAS * Vera Lúcia do Amaral Conrado** “Quando sabemos qual é o nosso propósito, o trabalho da Alma se realiza da melhor maneira possível através do nosso corpo. Um propósito claro elimina todas as dúvidas, pois imediatamente identificamos aquilo que nos conduz à nossa meta ou nos desvia dela. A energia em nossas vidas é imensa quando uma clareza de propósito está sempre presente. Você sabe qual é a sua razão de ser?” Café (1992:74) Dedico-me, desde 1985, à formação do profissional de Letras. Objetivo aqui resumir minhas constatações sobre a qualidade dessa formação, ao longo desses anos de atuação em universidades públicas brasileiras nas regiões sudeste, sul e centro-oeste. A motivação interna para a construção deste texto é a vontade de partilhar com alunos e colegas da área os princípios que conduzem o meu trabalho num momento de vida em que avalio a mim mesma como educadora através da atuação dos profissionais que ajudo a formar. O intuito que dirige esta vontade é contribuir com um modo de avaliar que seja mais eficaz para a formação do profissional de Letras, neste início de milênio em que as Ciências Humanas desempenham um papel que julgo da maior importância para a conformação do indivíduo e em que o espaço das universidades públicas brasileiras precisa ser mantido e valorizado. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002 Ao falar de avaliação num processo educacional, estou levando em consideração os elementos essenciais que compõem esse processo, a saber: a instituição de ensino, o aluno, o professor, o contexto social em que os três se inserem, o conteúdo programático, os objetivos visados, os meios utilizados, as ações realizadas e os resultados obtidos (RICHTERICH, 1985 e GARDNER, 1994). Eles interagem uns com os outros e, portanto, não é possível considerá-los isoladamente. Se quero propor uma avaliação que favoreça a autonomia e desenvolva o espírito empreendedor no profissional de Letras, é porque julgo que os resultados obtidos nesse processo poderiam ser mais efetivos. Conceitualizo o adjetivo (efetivo) como a soma de eficácia (fazer a coisa certa) com eficiência (fazer certo a coisa). Da união da eficácia com a eficiência resulta o conceito de efetividade, que culmina na qualidade total. Obter resultados mais efetivos num processo educacional significa, portanto, levar o futuro profissional a alcançar a qualidade total. Para que essa qualidade seja perseguida, contudo, deve-se acreditar não só que ela pode como também que ela deve ser alcançada. É neste ponto que se esbarra num problema de ordem epistemológica: o culto ao fracasso presente na vida do brasileiro. O jornalista CALDEIRA (1995), citando o dramaturgo Nelson Rodrigues (“o brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”), reflete sobre as conseqüências desse culto que tem feito, 51 como ele diz, um extraordinário sudessa maneira, o capital humaAntes de exigir-se ou cesso entre os brasileiros. A vano passa a ser o bem mais precimesmo conceber, lorização do fracasso já se manioso da empresa, um ativo que se portanto, uma festava na história da colonização: valoriza através do tempo.”. dos doze fidalgos que receberam modificação de cima A noção de empresa aqui deve o Brasil em lotes, Duarte Coelho, ser entendida como qualquer instipara baixo no processo donatário da capitania de tuição que busque a efetividade em de ensino-aprendizaPernambuco, o único bem sucesuas atividades: uma escola, uma gem (...) é imperioso dido - uma vez que trabalhava em microempresa, uma ONG, uma sua própria terra -, foi motivo de fundação etc. E o profissional de repensar a formação intrigas palacianas de Antonio Letras, como capital humano, está do profissional (...) Cardoso de Barros, donatário da sendo visto como educador: um capitania do Ceará, que sequer indivíduo cuja atuação ultrapassa colocara os pés no Brasil. O resultado foi um inqué- a tarefa do profissional tradicionalmente formado para rito contra Coelho, o produtivo, para explicar como dar aulas de português, línguas estrangeiras e literatuhavia enriquecido em tão pouco tempo, e a premiação ra. Trabalhar com estes conceitos é relevante num de Cardoso de Barros, nomeado tesoureiro do pri- momento em que mundialmente também se observa meiro governador-geral, Tomé de Souza. a mudança da concepção de emprego: cada vez mais Também economicamente o fracasso ganha o rarefeito transforma-se em trabalho. No mundo atustatus de um negócio, muitas vezes, gerando lucros. al não existe emprego, há trabalho. E o profissional de Quem ganha com a inflação? Quem ganha com a Letras deve saber encontrá-lo, desenvolvê-lo, vendêmanutenção dos salários baixos? Quem ganha com lo a seu cliente. Se antes recebia as funções prontas, o sucateamento do ensino público? Certamente, não executáveis, hoje, deve concebê-las. Fica evidente que se manteria o culto ao fracasso se muita gente não o Curso de Letras, da forma como é hoje estruturado, lucrasse com isso. não está suprindo as necessidades de formação desse Mergulhado neste contexto em que é arriscado futuro educador. “dar certo”, o profissional de Letras, visto pelas pesAntes de exigir-se ou mesmo conceber, portanto, soas em geral como um “fracassado” já quando opta uma modificação de cima para baixo no processo de pelo Curso, se assumir essa visão durante o seu pro- ensino-aprendizagem de níveis fundamental e médio, cesso de formação profissional, moldará seu futuro é imperioso repensar a formação do profissional que de acordo com o reduzido espaço que lhe é atribuído atuará nesses níveis de ensino. Ele está sendo prepela sociedade que lhe concede o sonho de “vencer parado para agir com autonomia e empreendena vida mesmo sendo professor”. dorismo? Pode-se dizer que está vivenciando no seu No bojo dessa concessão, encontra-se o conceito dia-a-dia universitário não somente o fazer certo a de professor como mero executor de um programa, coisa, mas também o fazer a coisa certa? Ele está e não como um produtor de conhecimento, ou seja, sendo capacitado a agir com efetividade, para atuar vigora o anacrônico conceito de mão-de-obra e não com qualidade total (que supõe melhorias contínuas o de capital humano. e, portanto, mudanças)? Para melhor entender o conceito de capital huHoje em dia, no ensino brasileiro, observo que o mano, reporto-me a ALMEIDA, TEIXEIRA e “espírito”, o “gênio”, contido na morfologia da palaMARTINELLI (1993) apud AMARAL e CONRA- vra “conhecimento” está, em grande parte, sendo DO (1998)1 abafado por regras que distanciam o aluno do mundo “O indivíduo, em relação a uma empresa, era e de si mesmo, fazendo com que o conhecimento considerado, na época industrial, como um cus- assim produzido não seja instrumento nem para o to. Atualmente, na era da informação, ele é con- auto-conhecimento do ser nem para sua capacitação siderado como um capital, ou seja, como de- profissional como capital humano. tentor do conhecimento, da criatividade e da É comum ouvir dos alunos universitários a mesinformação de que a empresa necessita. Visto ma queixa: recebemos uma série de conteúdos e, 1 No original, não aparece o nome de Daniel Conrado, mestre em Administração de Recursos Humanos. 52 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002 ao sairmos daqui, não sabemos tarefa da escola, numa demoPara formar esse o que fazer com eles. Neste sencracia, é reconhecer na crianprofissional, o Curso de tido, o Curso de Letras também ça um pequeno profeta, e armar Letras deve, em primeiro estaria refletindo um reducionismo a criança com os instrumentos em sua capacidade de formação lugar, constituir meios da profecia. Isso é tarefa da esprofissional, não assumindo a rescola, isso é tarefa da universipara vencer o império ponsabilidade de atender às nedade. Uma tarefa impossível. da burocracia cessidades de uma nação jovem, Uma missão desmedida. E é neinstitucional, sem o qual como a brasileira, que, para acomcessário ter essa missão, porpanhar as mudanças de que é o ideal regulador que esnão será possível paradigmas mundiais, precisa de tabelece o programa. Então, democratizar o ensino. cérebros sensíveis (ou corações acho que fazer isso, no Brasil, lúcidos) que saibam expor, critidepende, sim, de criar um Estacar e produzir conhecimento. Quando defendo a quado com poder, com recursos, mas depende tamlidade total como resultado que avaliaria positivamenbém de uma idéia. Desta idéia: não vamos apete a formação do profissional de Letras, estou defennas sobreviver apenas malandramente, vamos dendo a passagem do executor (mão-de-obra) ao prosacudir o barco, vamos deslanchar uma temdutor (capital humano). Como tal, ao produzir conhepestade no mundo, a vida é uma só. Vamos ter cimento, ele interferiria no processo de ensino, seja uma grande tarefa antes de morrer. É isto. Ninele fundamental, médio ou superior, alterando, modiguém diz não para isto. O homem quer isto.” ficando os demais elementos que conformam esse Gênio, profeta, espírito o que importa é ressaltáprocesso. lo, deixá-lo viver, para alcançar níveis qualitativos de Entretanto, como dizia no texto acima citado, o excelência, para que se saia do estigma do fracasso, Curso de Letras, em geral, não dá ao futuro profes- tão indelevelmente incutido nos próprios professores sor essa noção (nem lhe propicia meios de vivenciá- que formam os profissionais de Letras. No mesmo la) de que ele é a peça chave para a produção de discurso, quase perto de finalizar sua estimuladora conhecimento, “de que ele é, portanto, responsá- conversa com os formandos, o professor Fischer lhes vel pela manutenção do processo de mudança, lembra: sem o qual não se configura a educação de uma “Vocês vão ganhar mal e vão trabalhar numa sociedade renovadora” (AMARAL e CONRADO, profissão que não tem muito prestígio social. 1998: 53). Provavelmente vão trabalhar muito /.../. Vão, Para formar esse profissional, o Curso de Letras por outro lado, trabalhar na talvez menos alideve, em primeiro lugar, constituir meios para vencer enada das profissões. Nós, mais que ninguém, o império da burocracia institucional, sem o qual não lidamos com a matéria prima mais sensacioserá possível democratizar o ensino. nal que há, que é o ser humano em formação / Como claramente expõe CHAUÍ (1999b: 26), a .../. E nós os professores de língua e literatura burocracia funciona na base do sigilo, da hierarquia talvez tenhamos ainda mais sorte que nossos e da rotina, enquanto a democracia funciona na base colegas de outras áreas, os professores de da informação, da igualdade e da criação. A primeiQuímica e História e tudo o mais. Porque nós ra, como dizia anteriormente, tem regras que abafam trabalhamos com a linguagem, essa pequena a segunda. Muitas vezes, mata o “gênio” contido em maravilha da condição humana que, precisacada partícipe do processo de ensino. mente, nos torna humanos.”. O professor Luís Augusto Fischer, em seu disO tom parece ser o da manutenção do status quo: curso como paraninfo dos formandos de Letras da somos fracassados financeiramente, mas recompenUFRGS de 1998, adverte os alunos de que se aterá a sados espiritualmente. Por que não sair deste paraduas coisas importantes. Uma delas é um depoimen- digma, quando realmente se está munido dessa mato, em entrevista, de Roberto Mangabeira Unger que ravilha que é a consciência do trabalho com a linguacito conforme FISCHER (1999: 2): gem, envolvendo esta matéria prima mais sensaci“A tarefa da escola numa democracia é sal- onal que há, que é o ser humano em formação? var a criança de sua família, de sua classe Porque ao profissional de Letras não é suficiente social, de seu país e de sua época histórica. A o conhecimento do que fazer, mas sim de como faPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002 53 zer, e não só do como fazer ou interage, não podendo constituirpreparar um curso, uma aula, mas se, portanto, em sujeito de seu (...) dar espaço ao um currículo, um cartão de visita próprio processo de formação3 . aluno para que ele profissional, uma carta de apreSem este exercício de leitura, não venha a experimentar sentação, uma estratégia de divulse pode dar o segundo passo formas de sair da gação de uma idéia, uma propospara uma educação de qualidata de trabalho, enfim, adquirir code: a obtenção, por parte do furotina, da hierarquia e nhecimento de como encarar um turo profissional de duas compedo sigilo, ou seja, sair mundo globalizado e uma situação tências (cf. DEMO, 1997: 8), a da burocracia de não-emprego. E, para isso, é formal (manejo e construção institucional (...) preciso acrescentar outro conhede conhecimento) e a política cimento: o do ser, é preciso que (tipicamente educativa, da forele se exercite no auto-conhecimação do sujeito solidário, demento, na leitura de sua intracultura, sob pena de per- mocrático, participativo, ético). manecer escondido numa vida burocratizada2. Para sentir-se com poder de criação, para sentirFundamentalmente o que analiso como prioritário se igual e não inferior, para obter, saber como obter e neste como fazer é dar espaço ao aluno para que ele passar informação, e constituir-se em produtor de covenha a experimentar formas de sair da rotina, da nhecimento de forma efetiva, usando sua competênhierarquia e do sigilo, ou seja, sair da burocracia cia formal e política defendo um Curso de Letras institucional e viver com base na criação, na igualda- que incorpore meios e ações para que seu aluno dede e na informação. Em outras palavras, tornar efe- senvolva as características do que CREMA (1991) tivo o exercício da, como disse o professor FISCHER, chamou de facilitador holocentrado e associe-lhes “menos alienada das profissões”. as características do empreendedor de sucesso Para tal fim, para propiciar esta educação de (MANAGEMENT SYSTEMS INTERNATIONAL, qualidade, segundo DEMO (1997: 8), “o primeiro 1996), com os padrões de percepção-ação coopepasso é desfazer toda forma de subalternidade, rativa (BROTTO, 1997). Estas características e paem particular aquela mantida com base na ig- drões, que exponho em seguida, são conteúdos tranorância”. A meu ver, uma das formas de manter balhados em minhas aulas de língua espanhola e de o aluno na ignorância, na faculdade, é fazê-lo acre- empreendedorismo (disciplina criada por mim, ditar que seu curso constitui um objeto acabado, um introduzida pioneiramente no Brasil no curso de Leproduto com significado não negociável, imposto. tras da UFMS em 2001), causando uma profunda Assim, conteúdos, meios, materiais, programas apa- modificação no comportamento do aluno, que passa recem como textos com os quais o aluno-leitor não a ver-se como profissional, a entender-se mais cla- 2 Em Liderança na formação do educador: interpretando a cultura do ser (PAIVA e SILVEIRA, org. 1998), relato como a vivência da intracultura revelou que o estereótipo da instituição “fracasso”, apesar de impregnado na cultura nacional, não correspondia às características de liderança emergentes na intracultura de cada participante daquela oficina; também relato como ficou evidente que a liderança é algo natural na cultura do ser, que, já no seu processo de formação escolar, por inúmeros motivos e meios, é incentivado a não exercê-la. 3 ORLANDI (1987a: 180), ao discutir a noção de sujeito e a identidade do leitor, define o texto, em termos de processo de interação, como não sendo uma unidade completa, pois o sentido do texto não está em nenhum dos interlocutores especificamente, está no espaço discursivo dos interlocutores. Pela análise do discurso, o texto como objeto empírico (superfície lingüística) - antes considerado como texto acabado - volta a ser incompleto, porque há de se considerar suas condições de produção, sua relação com a situação e com outros textos, o que lhe dá um caráter não acabado. Nessa relação, tomando o Curso de Letras como um texto, minha sala de aula constitui-se em um objeto não acabado, ou seja, apresenta-se metodologicamente para o aluno-interlocutor como um espaço discursivo a partir do qual se dá a negociação de sentido. Só assim é possível garantir a legibilidade desse texto, ou seja, do processo de ensino do qual este aluno participa. Desta forma, o Curso de Letras constituir-se-ia como texto acabado quando lhe fosse atribuído sentido, não a partir da soma das disciplinas, da consideração de um ou outro componente do processo de ensino, mas sim do momento em que se desse unidade de sentido entre todo o conjunto. Em cerimônias de formatura, ao observar a demonstração de alívio sentido pelo “término” do Curso, materializado na face e gestos dos graduados, me pergunto quantos deles leram o seu processo de formação como um objeto não acabado e puderam, ao longo do Curso, exercitar-se como sujeitos, saindo da condição de leitores virtuais e constituindo-se em leitores reais, realmente dando um fecho ao seu processo formal de ensino e, aí sim, transformando-o em texto acabado, ainda que temporariamente falando. 54 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002 ramente como indivíduo e a consciente dos seres humanos (...) defendo a docência posicionar-se de forma a estabeem condições materialmente universitária não como lecer objetivos e metas para cumdeterminadas.”. habilitação acelerada prir sua missão4. Tenho assistido Nessa andança pessoal, que me a verdadeiros nascimentos em mipara graduados levou a associar a linguagem da nha sala de aula, com conseqüênadministração à da pedagogia, uninentrarem rapidamente cias renovadoras para o ensino, no do o conceito de capital humano no mercado de âmbito de atuação social desse ao de educador, foi-me extrematrabalho, mas sim profissional que ajudei a formar. mente importante conhecer o texNão há fórmulas mágicas, esta to que cito de CREMA, num curcomo formação desse reunião de conhecimento foi feita so sobre a importância do auto-cograduando. por vivência pessoal e, como disnhecimento na formação do eduse inicialmente, minha intenção é cador, ministrado pelo professor o trabalho da partilha, da cooperação, para que alu- Ruy Cézar do Espírito Santo, na PUC-SP, em 19965. nos e colegas que encontrem eco nesse modo de atuNuma das primeiras aulas, o professor espalhou ar, avaliem seu próprio processo de ensino-aprendi- sobre uma grande mesa vários livros que compunham zagem no contexto social em que estão inseridos e a bibliografia básica do curso, pediu que entrásseintensifiquem sua busca pela qualidade total. mos em contato com eles e que selecionássemos um, Antes de prosseguir, um esclarecimento, caso ain- para que posteriormente expuséssemos nossa leitura da não tenha ficado claro: defendo a docência uni- aos demais colegas. A técnica de escolha pela sincroversitária não como habilitação acelerada para gra- nicidade6 revelou-me o quanto estava próxima da duados entrarem rapidamente no mercado de traba- abordagem holística na educação. Senti-me perfeilho, mas sim como formação desse graduando. Não tamente à vontade no processo de interação com o sou, portanto, favorável à idéia da universidade texto, que reforçou a minha experiência de que não operacional, que, como bem lembra CHAUÍ (1999a), há como fugir da tarefa do auto-conhecimento, para “/.../ não forma e não cria pensamento, des- alcançar a qualidade total na formação do educador. poja a linguagem de sentido, densidade e misNo texto citado, CREMA refere-se a três tipos tério, destrói a curiosidade e a admiração que básicos de facilitadores ou líderes7: levam à descoberta do novo, anula toda prea) o centrado na técnica (a infância do facilitatensão de transformação histórica como ação dor), para quem o outro é tido como objeto de uma 4 Objetivos são a forma pela qual se consegue cumprir uma missão. O que é necessário fazer para cumpri-la? Divide-se a missão em partes e se estabelecem os objetivos para cada uma das partes. Isso dá mais informações sobre como se deve agir, que ações se deve buscar. Metas são objetivos quantificados, ou seja, os objetivos são colocados em forma de números, assim, eles ficam mais específicos. Por exemplo: se o objetivo é conseguir uma bolsa de estudos no final do curso e se, para isso, é preciso comprovar que se lecionou, no mínimo, um ano, o candidato à tal bolsa deve procurar trabalhar esse tempo mínimo numa instituição que lhe forneça um atestado posteriormente. Ou seja, há parâmetros mensuráveis para saber se realmente se cumpriu o propósito inicial. E, finalmente, missão é algo amplo. Por que o Curso de Letras? Por que determinada língua? Por que esta e não aquela habilitação? A missão precisa ser abrangente, precisa pensar no futuro. Em itálico, dou um exemplo de formulação de minha missão: “eu me comunico com as pessoas, através de minhas aulas de espanhol, para promover a ampliação da consciência humana” (adap. de CONRADO e CONRADO, 1998: 7). 5 Elementos desse curso aparecem em seu livro Pedagogia da transgressão: um caminho para o auto-conhecimento (1996). Também de interesse para o tema é o seu O renascimento do sagrado na educação (1998) fruto de sua tese de doutorado em Educação, na Unicamp. 6 Sincronicidade: “Termo criado por Jung, que exprime uma coincidência significativa ou uma correspondência: a) entre um acontecimento psíquico e um acontecimento físico não ligados por uma relação causal. Tais fenômenos de sincronicidade aparecem, por exemplo, quando fenômenos interiores (sonhos, visões, premonições) parecem ter uma correspondência na realidade exterior: a imagem interior ou a premonição mostrou-se verdadeira; b) entre sonhos, idéias análogas ou idênticas que ocorrem em lugares diferentes, sem que a causalidade possa explicar umas e outras manifestações. Ambas parecem ter relações com processos arquetípicos do inconsciente.” (JAFFÉ, s.d.: 358). “Emprego, pois, aqui, o conceito geral de sincronicidade, no sentido especial de coincidência, no tempo, de dois ou vários elementos, sem relação causal e que têm o mesmo conteúdo significativo, ou um sentido similar. Isto não é o mesmo que sincronismo, cujo significado é apenas o da aparição simultânea de dois fenômenos.” (JUNG apud JAFFÉ, s.d.: 359). 7 Não importando sua área de atuação: ela pode ser psicoterápica, educacional, institucional ou política. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002 55 técnica, de um modelo ou um siste, de despertar suas emoções, de Estes três tipos tema teórico. O professor preso reavivar seu corpo, de iluminar básicos de facultadoao método, ao livro didático, atasua essência. res ou líderes, na realido ao cumprimento de um prograEstes três tipos básicos, na rema pré-estabelecido, incapaz de dade, estão sintetizanalidade, estão sintetizando toda a interagir com seus alunos (situanossa história evolutiva. E nós, do toda a nossa se acima deles), executor e como seres históricos, não podehistória evolutiva: repetidor de um sistema de ensimos chegar à terceira etapa sem o centrado na técnica, no burocratizado é o exemplo conpercorrer as anteriores. Ou seja, creto desse facilitador; há de se expor o graduando em o centrado na pessoa b) o centrado na pessoa (a Letras a um caminho de vivências e o holocentrado. maturidade do facilitador), que, para que ele possa vir a atuar auto-centrado, está receptivo ao como educador. outro, lhe dá passagem. É o professor que está aberComo diz CAPRA (1996: 17), “durante este séto, que interage com seus alunos e demais compo- culo a mudança do mecanicismo para o nentes do processo de ensino, não vê nada como fixo, paradigma ecológico tem-se dado de diferentes imutável ou impossível, procura aprender com os formas e etapas em vários campos científicos”. demais, cria seu próprio material e experimenta dife- Traçando um paralelo entre a primeira e a última etapa rentes meios de trabalhar conteúdos didáticos, ques- deste percurso evolutivo, conforme CREMA - infântiona o processo de ensino mecanicista, não se per- cia e excelência do educador -, nota-se que também turba com colegas que assumiram o discurso do fra- na primeira, existe a ênfase nas partes - ênfase igualcassado, ao contrário, tenta sugerir-lhes meios e ações mente chamada de mecanicista, reducionista ou renovadores, dispõe-se a partilhar sua prática peda- atomística -, enquanto que na última há a ênfase no gógica; todo - também conhecida como holística, ecológica8. c) o holocentrado (a excelência do facilitador), Em termos lingüísticos, o professor de língua espara quem o espaço do encontro amplia-se abran- trangeira, por exemplo, que se encontra na primeira gendo holos, o todo envolvente. O professor que con- etapa - mecanicista (a infância do facilitador) -, prequista esta etapa representa, para mim, o verdadeiro fere adotar exercícios ou atividades do tipo totaleducador. Sua atenção é fluida, sua visão é inclusi- mente manipulador (repetição oral ou de cópia esva, integradora, não se concentra apenas na pessoa, crita, preenchimento de lacunas, etc.), com o qual no humano. Tem consciência de si, do outro e da exerce maior controle sobre a resposta do aluno que, dimensão não-humana, ele está centrado no todo. conseqüentemente, terá menos voz, será menos suInterage com os demais componentes do processo jeito nesse processo discursivo que se instaura. O de ensino para, no espaço discursivo do aqui e agora, professor que se encontra na etapa da maturidade já religar e criar sentidos, ajudando seus alunos a se dá preferência a exercícios dos tipos predominansentirem co-criadores de seu processo de formação, temente manipulador (no qual há controle, mas para o qual colabora toda a natureza que lhes envol- também há espaço para o trabalho criativo do aluno), ve. Tudo é visto como parte de uma rede, células de e, em menor dose, exercícios e atividades do tipo preum mesmo corpo vivo. A disciplina que leciona é um dominantemente comunicativo (o professor ou o meio de interação com o mundo. É o professor que livro controlam o tema, mas não as respostas do alurealiza a síntese de várias teorias, agrega, soma. Em no, e, portanto, lhe dão mais voz). Finalmente, o prosuas aulas o aluno tem a sensação de que o que apren- fessor que se encontra na etapa holística sente-se dera até então não lhe havia permitido ir tão longe muito mais à vontade ao trabalhar com exercícios e quanto agora, ele tem o poder de dinamizar sua men- atividades do tipo totalmente comunicativo (no qual 8 Na verdade, a ênfase no todo que se observa atualmente é um retorno à visão de mundo existente nos povos chamados primitivos, manifestada na filosofia aristotélica e na teologia cristã e que perdurou até o mundo medieval. A partir dos séculos dezesseis e dezessete, a visão de mundo medieval, conforme lembra CAPRA (op.cit: 19) “mudou radicalmente. A noção de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela do mundo como uma máquina e esta visão tornou-se a metáfora dominante da era moderna”. Para entender a influência do mecanicismo na evolução do pensamento ocidental e sua interferência em nossa vida diária, sugiro que se assista ao filme O ponto de mutação, baseado no livro de mesmo nome de Fritjof Capra. 56 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002 há espaço para que a interação traduzido com um “ganhar junNo processo em comunicativa surja espontaneatos”, predomina a cooperação que o professor mente, num coro de vozes coope(interdependência, parceria); a rativas). É neste último espaço visão de que é possível para toalcançou seu nível de que ocorre a comunicação autêndos; o clima de atenção, excelência, tica tal como define FRANZONI envolvimento; o amor como mosua etapa (1992), desmitificando a apregotivação e o sucesso compartilhaada crença de que bastava trabaholocentrada, do como resultado; os sentimenlhar com textos autênticos para tos são de alegria e comunhão. o discurso que se ensinar língua estrangeira nos Não resta dúvida de que é neste instaura é o lúdico (...) moldes da teoria comunicativa. tipo de processo que se desenEste professor deixa que falem volve a autonomia e o empretodas as vozes - o que chamei há endedorismo. muitos anos atrás de textos vivos - presentes em Para sair, portanto, do mecanicismo, que reduz o sala de aula (AMARAL, 1981). ser humano a um mero executor de tarefas, e avanSeguindo a tipologia do discurso de ORLANDI çar para o holismo, que integra o indivíduo ao meio (1987b), o discurso que predomina em um processo e lhe dá condições de nele interferir de forma efetide ensino cujo pr ofessor está em sua fase va, o Curso de Letras ganharia em eficácia se proreducionista é o chamado discurso autoritário (re- curasse desenvolver em seus alunos as caracteríslação de verticalidade, em que o professor - a voz - ticas do educador holocentrado, bem como as caestá em cima e o aluno - orelha -, embaixo. A ver- racterísticas do empreendedor. dade - trazida pelo professor - é para ser aceita). Já Segundo o citado CREMA (1991), as caracteríso discurso predominante em um processo em que o ticas do educador holocentrado são: professor está em sua etapa madura, auto-centrada, a inclusividade: não rechaçar nenhuma neé o polêmico (relação de horizontalidade entre pro- cessidade e nenhuma dimensão da pessoa (p. 94); fessor e aluno, ambos com voz. A verdade é para a inocência: ter uma visão límpida, direta e ser questionada.). No processo em que o professor imaculada. Através desta visão - e não de teorias alcançou seu nível de excelência, sua etapa e técnicas - é que temos acesso à realidade móvel holocentrada, o discurso que se instaura é o lúdico que se nos apresenta renovada a cada instante, (os interlocutores não discutem a verdade ou quem para nela atuar e edificar. (p. 94); a detém, o que importa é a produção de cada um, o o espaço interior: conseguido através de esvamovimento que cada um chegou a fazer, regado pelo ziamento e silêncio interior. Isto significa para o ocipr azer da realização e da partilha entre a dental o não ter, não acumular, não consumir, ou seja, multiplicidade de vozes)9. um horror; enquanto que para o sábio Lao-Tsé é o Em termos relacionais, segundo os padrões de vazio do vaso que lhe fornece a utilidade (p. 95); percepção-ação sintetizados por BROTTO (1997: a abertura: denota amplidão interior e dispo54), em um processo de ensino cujo professor en- sição de entrar em contato com o desconhecido. contra-se na infância, e cujo objetivo seria traduzi- É a ousadia de afirmar eu não sei, três palavras do com um “tanto faz”, predomina a omissão (indi- que são pura magia, /.../ que abre um espaço inferença), ou a dependência; a visão de que é im- teligente de percepção e compreensão do novo. possível, ou possível só para alguns (incentiva-se a (p. 95); competição); o clima chato, estressante e tenso; a a flexibilidade: a vida se aninha no flexível, a fuga ou o medo como motivação e o continuísmo ou morte no rígido (p. 95). Esta, combinada com as a ilusão de vitória individual como resultado; os sen- características anteriores, traça o perfil do profissiotimentos são de opressão, controle, solidão. Já em nal que se expõe às mudanças, do professor que não um processo de ensino cujo professor encontra-se se fixa num método, nem em uma única abordagem: em sua etapa de excelência e cujo objetivo seria todo o conhecimento é válido. Suas aulas não se- 9 Para atender a essa multiplicidade, encontro na teoria por projetos (SÁNCHEZ, 1982 e ZANÓN, 1990) um canal muito produtivo para encaminhar, como educadora, os diferentes interesses dos alunos pela pesquisa e prática, respeitando os diferentes estilos de aprendizagem manifestos em preferências por determinados conteúdos, modos de enfocá-los e trabalhá-los. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002 57 guem um padrão previsível pornicas”) e de todo o autoriSe o aluno é que se adaptam às necessidades tarismo interior (“das veneraprovocado a do momento; das memórias, das eloqüências o movimento: esta caractedas experiências vividas”). (p. estabelecer esse rística está intrinsecamente rela100). O educador que desenvolconjunto de diretrizes, cionada à anterior e o facilitador ve esta característica entra em sua postura durante holocentrado “movimenta-se, oriuma sala de aula sem verdades, sua formação entado pela bússola do aqui-esem bandeiras teóricas, porque ele agora” (p. 96); não quer um aluno consumidor de profissional será a de a plena atenção: esta caracmarcas francesas, russas ou inum aluno pró-ativo (...) terística leva o educador a exerglesas de pensamento. Interessacitar a sua percepção. Eu só poslhe despertar o crítico, que passo transformar aquilo de que teseia livre sua genialidade pelas nho consciência e eu só sou consciente do que per- realidades com que se depara; cebo; o ver a parte no todo e o todo na parte: é a o humor: “a seriedade é uma séria patologia./ manifestação de uma consciência não-dual. Tra.../. Bom humor é a arte de sorrir de tudo e, prin- duz-se por um respeito à singularidade da parte e cipalmente, de si próprio” (p. 96-97). O processo por um respeito ao todo que lhe é inseparável. O de aprendizagem priorizaria, para o professor que in- educador holocentrado não considera os fatos isocorpora esta característica, o discurso lúdico, já re- ladamente, sabe que sua ação interferirá na dinâferido anteriormente; mica da instituição na qual trabalha, que afetará a vocação: é a nossa voz interna, “é o trabalho profundamente a vida e se deixará afetar pela vida intransferível que viemos realizar. /.../. A excelên- dos alunos que com ele participam do jogo cia atualiza-se naturalmente para quem resgatou cooperativado do aprender. a sua vocação. Descobrir a tarefa para a qual o assumir a maestria: “todo ser humano posnos convocamos à existência é um dos mais im- sui um mestre interior que pode ser despertado./ portantes desafios.” (p. 97); .../. Pelo desenvolvimento do canal intuitivo poa intuição: é a “inteligência holística por ex- demos participar desta sabedoria potencial.” (p. celência” (p. 97). “Na aceleração cada vez mais 101). Através da intuição há a expansão do ego e, intensificada dos eventos que caracteriza nosso com ela, a possibilidade de transcendê-lo. O profesmomento histórico, a liderança intuitiva destaca-se sor que assim o faz está em condições de assumir a qual farol a iluminar o embate violento de ondas própria autoria “e esculpir o destino com as próem íngremes rochedos.” (p. 98); prias mãos. /.../. É necessário ousar ser.” (p. 103). a paciência: é a perda da prepotência de que o É necessário, para dar voz aos alunos, ter voz. professor está para ensinar e o aluno para aprenE é nesse sentido de ter voz que passam a inteder num tempo pré-determinado. Ao exercitar esta ressar e a associar-se às características do holocencaracterística, o educador se posiciona, sem apres- trado as do empreendedor (cf. MANAGEMENT sar o processo, como o facilitador de um “contexto SYSTEMS INTERNATIONAL, 1996), que favorável, um terreno fértil e propício para a pesestabelece missão, objetivos e metas que sesoa atualizar o seu potencial de auto-cura e auto- jam desafiantes e que tenham significado pessoal. desenvolvimento.” (p. 98); Daí a importância do auto-conhecimento e da identia humildade: “a capacidade de a pessoa as- ficação com o Curso. Se o aluno é provocado a estasumir o seu próprio tamanho./.../ é a arte de ser o belecer esse conjunto de diretrizes, sua postura duque se é.” (p. 99). O educador que assume esta ca- rante sua formação profissional será a de um aluno racterística nunca martirizará o aluno com a figura pró-ativo, que selecionará suas disciplinas e o que do erro, pois entenderá que suas manifestações ex- fazer de maior proveito em cada uma delas, além de pressam um modo de ver/ser diferente de outros engajar-se em atividades de monitoria, projetos de modos de ver/ser; pesquisa, participação em eventos etc.; o ter as mãos vazias: é o desprender-se de todo planeja e monitora sistematicamente, planeo autoritarismo exterior (“dos venerados mes- jando e dividindo tarefas de grande porte em subtres, com suas pesadas escrituras, métodos e téc- tarefas com prazos definidos; 58 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002 busca informações, aprende Desenvolve ou utiliza procedimen(...) se o Curso de Letras onde encontrá-las, mantém-se atutos para assegurar o cumprimenpassar a avaliar seus alizado; to de compromissos, atendendo alunos por essa associa- padrões de qualidade; convence e mantém rede de contatos, sabe reconhecer as ção de características e persiste, age repetidamente pessoas chave, dentro e fora de (persistir não significa insistir) ou dar-lhes elementos para sua instituição de ensino, que pomuda de estratégia, a fim de endesenvolvê-las, (...) os dem facilitar seu caminho na confrentar um desafio ou superar um profissionais de Letras quista de seus objetivos; obstáculo; é independente, criativo e compromete-se, colabora serão muito mais autônotem autoconfiança, ousa sair do mos e empreendedores (...) com os colegas ou se coloca no comum. Esse aluno se destaca na lugar deles, se necessário, para vida acadêmica, vai além do exiterminar uma tarefa. gido pelas disciplinas e pelo programa de Curso. Sabe Concluindo, acredito que se o Curso de Letras reconhecer suas falhas e procura supri-las com ati- passar a avaliar seus alunos por essa associação vidades extra-classe, põe em prática suas idéias; de caracter ísticas e dar-lhes elementos para corre riscos calculados, agindo para reduzi-los. desenvolvê-las, ao longo de sua formação, os proTem percepção do todo, usa sua intuição; fissionais de Letras serão muito mais autônomos e busca oportunidades e tem iniciativa, faz empreendedores; agindo para serem reconhecidos as coisas antes de solicitado ou antes de forçado pela sociedade brasileira por desenvolver-lhe o pelas circunstâncias, lê além da bibliografia do gosto e o respeito pela língua materna, o prazer de curso. Desenvolve o raciocínio analógico, asso- ler, a capacidade de refletir sobre sua condição ciando conteúdos de diferentes disciplinas, age histórico-política-social por meio do conhecimento para expandir suas atividades e estudos a novas de outras línguas e cultur as, por, enfim, áreas, detecta o que ainda não foi feito e procura instrumentalizar essa sociedade para expessar-se pesquisar para fazê-lo; com eficiência e eficácia. Vale a pena sacudir esse exige eficácia e eficiência, encontra maneiras barco e dar voz a esse alunado potencialmente rico de fazer as coisas melhor, mais rápido e mais barato. em capital humano. Referências bibliográficas ALMEIDA, Martinho I. R. de; TEIXEIRA, Maria Luiza Mendes; MARTINELLI, Dante Pinheiro. (1993) Por que administrar estrategicamente recursos humanos? Revista de Administração de Empresas. São Paulo, 33 (2):12-24, mar./abr. apud AMARAL, Vera Lúcia do; CONRADO, Daniel. Língua espanhola. In: SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO E CULTURA. 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A construção da história da disciplina que, até então, ainda não havia sido focalizada desse ponto de vista3, ancora-se na longa e complexa trajetória de avanços, silêncios, rupturas e retrocessos do Ensino Normal, destinado à formação de professores primários, no contexto matogrossense e brasileiro da época. Para a constituição do corpus da pesquisa, foram consideradas as seguintes fontes: a) “Livro de Regis- 1 * Tese defendida, em 07/6/2001, no Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Semiótica e Lingüística Geral. Orientador: Prof. Dr. José Luiz Fiorin. ** Departamento de Letras/CCHS-UFMS. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 61-62, jan./jun. 2002 No mesmo local onde funcionou essa instituição, fechada em 1940, por ordem do Interventor Júlio Müller, foi criada a Escola Normal Joaquim Murtinho, pelo Decreto-Lei nº 834, de 31/01/ 1947, do Interventor José Marcelo Moreira. 2 CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação. Porto Alegre, Pannonica, nº 2, 1990. p 177-229. 3 Cf. FIORIN, José Luiz. Subprojeto: Uma história da disciplina Português no ensino de 1º e 2º graus. São Paulo, SP: USP, 1997. 61 tro das Matérias Lecionadas” (1935-1941 – E1, P2, L48), pertencente ao acervo documental da Escola Normal e Modelo Anexa; b) cinco livros didáticos utilizados na década de 1930, concebidos como fontes privilegiadas do português escolar: 1) Gramática Expositiva. Curso Superior, de Eduardo Carlos Pereira. 46ª ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1926, 390 p.; 2) Lições de Português, de Otoniel Mota. 9ª ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1941, 359 p.; 3) O Meu Idioma, de Otoniel Mota. 5ª ed. correta, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1929, 248 p.; 4) O Exame de Português, de Júlio Nogueira. 4ª ed., Rio de Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1930, 365 p.; 5) Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet. 32ª ed., Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1955, 592 p. Os resultados evidenciaram que os objetivos reais da disciplina Português, na Escola Normal e Modelo Anexa, no período entre 1930-1940, visavam, de modo geral, ao domínio das regras gramaticais da língua padrão, principalmente em sua modalidade escrita, bem como ao conhecimento da língua como patrimônio cultural fixado pelos autores de excertos selecionados. Os conteúdos de ensino, articulados a tais objetivos, correspondiam às regras gramaticais da língua padrão escrita, veiculada em textos apresentados como modelos, e à história da língua. As condições de funcionamento do processo de avaliação da aprendizagem sugerem que o estudo da disciplina era, de certa forma, incentivado por fatores, como: grande quantidade de provas, valorização 4 dos aspectos cognitivos e memorização dos conteúdos. A configuração interna da disciplina Português, obtida pela correlação de tais objetivos, conteúdos e avaliação, fundamenta-se em concepções como: I) a linguagem é “a expressão de pensamento por meio de palavras” (Pereira, 1926: 1-4)4; II) a língua é um produto acabado, enquanto sistema estável; existem regras e normas constituídas a priori que devem ser seguidas para falar e escrever a variedade padrão; as demais variedades são consideradas erradas; III) a gramática é “... o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores” (Franchi, 1991: 48)5; IV) o ensino da língua caracteriza-se como prescritivo e, ao mesmo tempo, proscritivo, pois visa levar o aluno a substituir seus próprios padrões de atividade lingüística, tidos como errados/inaceitáveis, por outros considerados corretos/aceitáveis (cf. Halliday, McIntosh e Strevens, 1974: 257-287)6. As condições de publicação dos livros didáticos analisados — várias edições elaboradas a partir de uma edição anterior, datada de oito, dez e até trinta anos antes —, podem ser uma das causas da defasagem entre os conhecimentos sobre a linguagem neles apresentados, sob a forma de conteúdos de ensino, e os produzidos pela ciência de referência, a Lingüística, também denominada, então, Glossemática. Por outro lado, gramática escolar tem sido fundamentada na tradição gramatical que traz em si a soma de vinte e três séculos. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática expositiva: curso superior. 46ª ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1926. 5 FRANCHI, Carlos. Mas o que é mesmo gramática? In: LOPES, Harry Vieira et alii (orgs.). Língua Portuguesa: o currículo e a compreensão da realidade. São Paulo, Secretaria da Educação/Coordenadoria de Normas Pedagógicas, 1991. 6 HALLIDAY, M. A. K; McINTOSH, Angus & STREVENS, Peter. As ciências lingüísticas e o ensino de línguas. Petrópolis, Vozes, 1974. 62 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 61-62, jan./jun. 2002 63 64