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pdf completo - Revista Papeis
ISSN: 1517-9257
Papéis : rev. Letras
Campo Grande, MS
v. 6
n. 11
p. 1-64
jan./jun. 2002
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE
MATO GROSSO DO SUL
Reitor
Manoel Catarino Paes - Peró
Vice-Reitor
Mauro Polizer
CÂMARA EDITORIAL
Alda Maria Quadros do Couto
Ana Maria Souza Lima Fargoni
Dercir Pedro de Oliveira
José Batista de Sales
Maria Adélia Menegazzo
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos
Rita Maria Baltar Van Der Laan
Ronaldo Assunção
Vânia Maria Lescano Guerra
Ficha Catalográfica preparada pela
Coordenadoria de Biblioteca Central/UFMS
Papéis : rev. Letras / Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997). Campo
Grande, MS : A Universidade, 1997.
v. : il. ; 27 cm.
Semestral.
Numeração de vols. irregular: v. 5 omitido
ISSN 1517-9257
1. Literatura - Periódicos. I. Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul.
CDD-805
2
APRESENTAÇÃO
Papéis, a Revista de Letras da UFMS, chega ao seu 11º número no momento em que
se vê consolidar o programa de pós-graduação na área, dividida entre duas grandes
linhas: Estudos Lingüísticos e Estudos Literários. Os artigos apresentados procuram
suprir essas duas vertentes.
A teoria da narrativa autobiográfica, na forma do diário, é estudada por Sheila Dias
Maciel partindo da liberdade do sujeito narrador. Analisa a obra de Josué Montello
demonstrando que o narrador não apenas relata o que vivenciou mas também o que
ficcionalizou, rompendo as marcas da verdade e da sinceridade, tanto temporal
quanto espacial, pela verossimilhança. Por sua vez, Nilda Lemos de Almeida Cabrita
demonstra em seu ensaio que a construção das vozes no romance é articulada pela
escolha de determinados vocábulos, os quais configuraram marcas ideológicas no
discurso das personagens do romance Chão Bruto de Hernâni Donato.
No terceiro ensaio, a autora, Bianca Andreza da Silva Dias, procura analisar
narrativas de alunos da 5ª série que se voltam para a construção de identidades, mais
especificamente, de masculinidades, e indagar como é construída a identidade social
dos outros. Ressalta os mecanismos de defesa presentes nas práticas discursivas e
nas brincadeiras características do masculino e do feminino. O discurso pedagógico
e as diferentes estratégias de processamento da referenciação são estudados por
Vânia Maria Lescano Guerra, a partir da análise das estratégias discursivas utilizadas
pelo professoer na sala de aula de língua materna. O vocabulário dos estudantes
universitários, quando avaliado de uma perspectiva sociolingüística, demonstra que
a seleção vocabular implica a visão de mundo do grupo. Para chegar a essa
conclusão, Roseli Imbernom do Nascimento parte de três variáveis: formação escolar,
sexo e nível sócio-econômico. Demonstra, assim, que o uso da língua depende
também das condições escolares.
A avaliação dos cursos de graduação em Letras pelo MEC vem apontando a
necessidade de se rever estruturas em busca do conhecimento e da formação
continuados. O artigo de Vera Lúcia do Amaral Conrado propõe uma nova maneira de
se ver e de se formar o profissional de Letras no mundo globalizado, ressaltando sua
capacidade de construir-se e ao conhecimento de modo objetivo e eficiente.
Por fim, é apresentado o resumo da tese de doutorado de Maria Emília Borges Daniel,
intitulada “Uma história da disciplina português no ensino normal: 1930-1940”,
defendida na Universidade de São Paulo, em 2001.
Maria Adélia Menegazzo
3
Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica,
Impressão e Acabamento
Editora UFMS
Revisão
A revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade dos autores
Distribuição
Livraria UFMS
Publicação da
UNIVERSIDADE FEDERAL
DE MATO GROSSO DO SUL
Portão 14 - Estádio Morenão - Campus da UFMS
Fone: (67) 345.7200 - Campo Grande - MS
e-mail:[email protected]
JÚLIO FELIZ
"Conjunção I"
Gravura em água forte
13 x 10 cm – 2/20
Col. do artista
4
Júlio da Costa Feliz
Mestre em Educação pela UFMS, licenciado em Artes Plásticas pela
Faculdade de Belas Artes de São Paulo e formado em Música pela
Escola Heitor Villa-Lobos de Ribeirão Preto-SP. Atualmente é
professor do Departamento de Comunicação e Artes da UFMS.
SUMÁRIO
6
A SINCERIDADE COMO FICÇÃO
Sheila Dias Maciel
12
FORMAS DE DIALOGISMO EM "CHÃO BRUTO":
A CONSTRUÇÃO DAS VOZES NO ROMANCE
Nilza Lemos de Almeida Cabrita
20
SOBRE O QUE ELES CONVERSAM? A CONSTRUÇÃO DAS MASCULINIDADES
POR MEIO DAS HISTÓRIAS CONTADAS NO CONTEXTO ESCOLAR
Bianca Andreza da Silva Dias
28
O DISCURSO PEDAGÓGICO E O PROCESSAMENTO DA REFERENCIAÇÃO
Vânia Maria Lescano Guerra
36
O VOCABULÁRIO DOS ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS:
UM ESTUDO COM BASE EM REDAÇÕES DE VESTIBULAR
50
AVALIAÇÃO QUE FAVORECE A AUTONOMIA E DESENVOLVE O
EMPREENDEDORISMO NO PROFISSIONAL DE LETRAS
Roseli Imbernom do Nascimento
Vera Lúcia do Amaral Conrado
61
Resumo
UMA HISTÓRIA DA DISCIPLINA PORTUGUÊS NO ENSINO NORMAL: 1930-1940
Maria Emília Borges Daniel
5
O objetivo deste trabalho é discutir a relação entre sinceridade e escrita em forma de diário, questão
problematizada por meio da leitura do Diário completo, de Josué Montello.
Palavras-chave:
Sinceridade; Diário; ‘‘Diário completo’’;
Josué Montello
The aim of this work are to discuss the relationship
between sincerity and the diary writing wich has been
brought forth through the reading of the Diário completo, from Josué Montello.
Keywords:
Sincerity; Diary; ‘‘Diário completo’’;
Josué Montello
6
*
Professora de Teoria
Literária da UFMS,
Campus de Três
Lagoas. Doutora em
Teoria da Literatura
pela Unesp,
S. J. Rio Preto.
A SINCERIDADE
COMO FICÇÃO
Sheila Dias Maciel *
Nadie debe ser más sincero que el autor de diario.
Maurice Blanchot
Ninguém escreve um diário para dizer quem é. Por
outras palavras, um diário é um romance com uma
só personagem. Por outras palavras ainda, e finais, a questão central suscitada por este tipo de
escrito é, assim creio, a da sinceridade.
José Saramago
A escrita em forma de diário costuma ser encarada como biográfica, ou seja, é vista, ainda hoje,
como um caderno terapêutico onde um “eu” com
vida extratextual comprovada relata sinceramente
suas impressões sobre acontecimentos variados.
Confiar nas confissões deste tipo de escrita, no entanto, é um prazer inocente, já que o texto com o
qual nos deparamos pode estar escrito sob a forma
de um diário sem, contudo, conter qualquer material biográfico.
Para a maioria das pessoas, um diário é um convite ao desvelamento de intrigas e indiscrições, pois
sua leitura guarda resquícios de um tempo ancestral
em que o diário era um tipo de texto endogâmico,
escrito unicamente para satisfazer seu escritor. Se
ainda hoje lemos um diário como quem devassa a
intimidade guardada é porque essa impressão cristalizou-se através dos tempos. Esta mentalidade de
leitura, atrelada ao gênero, pré-existe às diversas
formas atuais de se considerar um diário. As menPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 6-11, jan./jun. 2002
talidades, como defende Jacques Le Goff, permanecem incutidas nos comportamentos das pessoas
e são transmitidas de geração em geração, de modo
tão automático que escapam aos sujeitos particulares da História (1988:71).
Mesmo que haja muito pouco de confissão, o
arraigamento do autobiográfico na sociedade atual
implica um jogo de expectativas e de público que
obedece ao impulso natural de satisfazer curiosidades. E esta curiosidade pela vida dos outros, perfeitamente legítima, é um modo indireto de conhecer a nossa própria vida. No entanto, neste processo “não declarado” de autoconhecimento muitas vezes o leitor se apóia numa ilusão referencial.
As características intrínsecas da escrita autobiográfica, tais como as suas especiais relações com
o real, levam o leitor a acreditar numa ilusão de referência, ou seja, na semelhança ou analogia com
algum segmento do real que se apresenta, e que
seria transcrito segundo o critério da sinceridade.
Se tomarmos as seguintes definições de sincero:
1. Que se expressa sem artifício, sem intenção de
narrar ou; 2. Dito ou feito sem simulação: confissão
sincera, depoimento sincero; poderemos iniciar o
debate sobre a questão, já que diários não são
narrativas sem artifício, apesar de a idéia de sinceridade forçar uma espécie de pacto entre o autor e
o leitor que determina um modo de leitura e com7
preensão destes textos específimediante um esforço criativo e
Mesmo que haja muito
cos. A sinceridade, no entanto,
este esforço opera no interior das
pouco de confissão, o
faz parte do “jogo” destas narconvenções ou categorias estéarraigamento
do
rativas e mesmo que a intenção
ticas um desejo de expressão que
autobiográfico na
do diarista seja biográfica, seu
pode ser legítimo. Neste sentido,
sociedade atual implica
texto conterá desvios, pois a rea relação do leitor com a obra
alidade não pode ser transferida
não se dará em termos de veraum jogo de expectativas
fielmente para a página (Ferreira,
cidade, o que seria impossível,
e de público que obedece
1986: 1589).
mas de verossimilhança, ou seja,
ao
impulso
natural
de
A relação entre escrita literáde aparência de verdade
satisfazer curiosidades.
ria e realidade, ou seja, da trans(Caballé, 1995:24).
posição da realidade para a páA impressão de sinceridade
gina, não é recente. Desde que Aristóteles introdu- revelada em diários publicados por seus autores se
ziu na Poética o conceito de verossimilhança, ba- converte apenas em um relato verossímil. Um bom
seado nas diferenças entre História e Poesia, o exemplo na literatura brasileira é o Diário compleimpasse passou a figurar como questão. Para to, de Josué Montello.
Aristóteles a Poesia (Literatura) encerra mais filoPublicado integralmente em 1998, o Diário comsofia e elevação que a História, pois enuncia verda- pleto é a junção de seis diários sucessivos (Diário
des abrangentes ao passo que a História somente da manhã, Diário da tarde, Diário do entardecer,
relata fatos particulares. O embate entre a realida- Diário da noite iluminada, Diário de minhas vide, a descrição subjetiva da realidade e a ficção gílias e Diário da madrugada) e abarca as anotapode ser retomado a partir da reflexão sobre a ções do escritor maranhense Josué Montello por
forma narrativa dos diários, posto que estes textos mais de quatro décadas, numa narrativa que envoltecem, na comunhão entre sinceridade e impreci- ve tanto o relato do cotidiano (uma forma de microsão, uma síntese desta problemática. É a matéria história), quanto o registro de impressões puramente
verbal que articula a passagem da vida para o pa- pessoais sob a forma literária.
pel, sem, no entanto, reproduzir a realidade, apeEscritor consagrado, membro da Academia Branas a particularizando, já que não podemos relaci- sileira de Letras e crítico ponderado de questões
onar fatos sem o auxílio de uma matriz generica- literárias, caberia perguntar até que ponto as revemente ficcional (White, 1994:15).
lações contidas nas 2.688 páginas do Diário comA “sinceridade” que os diários encerram, por- pleto particularizam este “eu” de vida extratextual
tanto, é fruto tanto da abundância de detalhes con- comprovada.
cretos que podem aparecer no texto, quanto de uma
Afinal, a variedade das possibilidades da escrita
forma de pacto que faz o leitor identificar nesses em forma de diário comporta textos de graus didetalhes uma espécie de exposição sincera do au- versos. A poetisa Ana Cristina Cesar (Cesar,
tor. A sinceridade nada mais é que uma ilusão de 1984:55-84), por exemplo, compôs alguns simusinceridade, ou seja, um argumento a mais para a lacros de diário em que a idéia de sinceridade é
aventura da linguagem.
calculada:
Anna Caballé, ao refletir sobre a impressão de
Para dar uma aura de autenticidade aos diásinceridade que ronda estes textos específicos, afirrios, Ana Cristina usa uma linguagem adema que nenhum homem consegue concentrar sobre
quada ao gênero, com frases curtas, muitas
si uma leitura e fornecer para outros esta experiênvezes nominais, que mantêm uma fraca coecia sem uma carga de subjetividade, por isso acresão entre si. Como conseqüência, seus textos
dita que, em maior ou menor grau, toda escrita ausão lacunares, elípticos e têm uma
tobiográfica é imaginativa, nasce de um impulso crireferencialidade muito vaga. (Simões Jr.,
ador. Mesmo assim, crê ser legítimo falar de since1995:157).
ridade em um texto autobiográfico, por mais literáTextos como os de Josué Montello, no entanto,
rio que seja, já que a sinceridade literária é diferen- estão mais próximos da idéia ancestral de diários e
te da sinceridade real. A primeira se desenvolve podem causar dúvidas quanto ao grau de sinceri8
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dade que apresentam, tanto pelo
mais as marcas do “eu” que
A
problemática
apuro da escrita quanto por
existe além da realidade óbvia.
do sujeito narrativo
abranger, de maneira peculiar,
No Diário completo de
alguns dos acontecimentos mais
Josué Montello o “eu” que se
no texto confessional
significativos da Hitória recente
delineia e se constrói no discurestá relacionada
do Brasil.
so é o de um escritor por vocaà questão do
A sobriedade da sua escrição. Este “eu” declarado não pasujeito
gramatical,
tura aliada à ausência de conrece corresponder a uma ilusão
preenchido na
fissões íntimas, lamentos ou rereferencial se pensarmos na vasvelações indiscretas, faz com
ta obra deste escritor maranheninstância discursiva.
que nos sintamos diante de um
se com mais de oitenta livros pu“eu” inteiriço, uno e de persoblicados e uma carreira literária
nalidade formada. Se, como afirma o crítico consolidada.
George Hampson, o “eu” que encontramos nos
Não podemos dizer, no entanto, que o “eu” que
diários de Josué Montello é notadamente com- aparece no Diário completo seja equivalente ao
pacto (1988:8) seria justo que indagássemos so- “eu” do escritor, mas uma junção do “eu” que o
bre a possibilidade deste “eu” se equiparar a mais escritor quer projetar associado à impossibilidade
uma das personagens compostas pelo romancis- de transcrever para a página uma leitura sobre si,
ta, ao invés de relacioná-lo a uma exposição sin- sobretudo num texto que se pretenda literário, ou
cera do autor.
seja, que mantenha vínculo com a ficcionalidade e
Quanto a esta possibilidade, o próprio Montello a complexa natureza da arte.
nos dá uma pista ao se remeter, na introdução do
Além disso, todo autor está emaranhado, em seu
Diário da tarde, ao livro de Michèle Leleu intitulado fazer poético, numa rede de linhas e de relações
Les journaux intimes (1952), um clássico sobre o que independem dele e que influirão decisivamente
assunto. Discutindo sobre a epígrafe do livro em no tecer a sua obra (Samuel:1986:43).
questão, Montello acaba por concluir que “mesmo
Na relação que o homem estabelece com o real
o que é falso num escritor faz parte da sua realida- entra em cena tanto a necessidade de reproduzir
de” (1998, 481) e que “o diário traz a lume o mis- esta vivência quanto a vontade de modificá-la. Astério do escritor, mesmo quando atenua ou desfigu- sim, uma obra como o Diário completo é, antes
ra a verdade” (1998, 481).
de tudo, uma produção humana que não pode ser
A problemática do sujeito narrativo no texto situada entre o falso e o verdadeiro, como em qualconfessional está relacionada à questão do su- quer texto ficcional, pois o fingir da ficção é muito
jeito gramatical, preenchido na instância maior que a limitante idéia de falso ou de mentira, e
discursiva. Seria interessante verificar como po- aponta para a complexa dimensão do homem.
deríamos relacionar este “eu” discursivo ao “eu”
Ao significar o real manifestando realidades,
extratextual.
Josué Montello produz uma obra que se não reA preocupação fundamental da escrita em for- produz a realidade, mostra seu autor pelas escoma de diário é com o “eu” além do texto que garan- lhas que ele tece, pelo uso do código verbal. A sinte densidade ao sujeito, como aponta Lúcia Castello ceridade que podemos encontrar pela leitura dos
Branco:
diários de Montello transcende qualquer detalhe sinO biográfico, enquanto autobio-gráfico, atra- cero de ordem biográfica ao aclarar a manifestação
vessa mais os dois conjuntos em questão; o histórica do real do homem pela força edificante da
corpus da obra e o “corpo” do “sujeito” real. ficção.
O biográfico é então essa borda interior da
E apesar da aparente ilusão de sinceridade, o
obra e da vida. (1994:51).
Diário completo, lido mais amiúde, revela detaAo atarmos o “eu real” e o “eu silencioso”, lhes que desconstroem a clássica escrita relatada
que coabita em nós pelo gesto da escrita, surge dia após dia, sem estrutura pré-determinada. A
o texto autobiográfico. Em alguns emergem mais certa altura do Diário da madrugada (último dias marcas do real vivido e, em outros, aparecem ário da série que compõe o Diário completo),
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as datas parecem deixar de representar referencialmente o
cotidiano, passando a ser um
artifício que denuncia a desorganização do sistema e apaga
a aparente ilusão de sinceridade.
Neste último diário que compõe o Diário completo aparecem treze1 registros semelhantes
a outros anteriores ou mesmo
Ao significar o real
manifestando
realidades, Josué
Montello produz uma
obra que se não
reproduz a realidade,
mostra seu autor pelas
escolhas que tece, pelo
uso do código verbal.
anotações idênticas, apenas
apresentadas sob datas diferentes. Estas repetições, ou equívocos, talvez comportem a chave
para a compreensão da sinceridade, já que é impossível que um
pensamento genuíno se repita em
datas diferentes com as mesmas
palavras e que este processo se
repita outras vezes. Vejamos um
exemplo nos quadros abaixo:
8 de abril de 1990
27 de dezembro de 1990
Ao tempo das viagens difíceis, muitos escritores viajavam por seus leitores, E alguns deles sem
ser propriamente escritores. Simples
escrivinhadores sem assunto. As viagens lhes davam os motivos e os temas. Podiam mentir se quisessem. E muitos deles contavam coisas tão estranhas que espantavam, como Fernão Mendes
Pinto, na Peregrinação. Chegaram a fazer do
mestre português um jogo de palavras com a denúncia de suas patranhas: Fernão, mentes? Minto.
Se havia assim os que contavam o conto, acrescentando muitos pontos, havia sobretudo o
narrador veraz, muito cioso das notícias e dos reparos que punha no papel. Nossa literatura, como
motivação local, tem como ponto de partida a carta
de Pero Vaz de Caminha. Tudo, ali, está certo, e é
rigoroso. Sem esquecer o português que dá a mão
ao índio, formando a roda para dançar, e assim
inaugurar na Bahia o carnaval.
Hoje, quando o transporte aéreo banalizou as
viagens, e o ônibus é veículo de turismo, os instrumentos de comunicação de massa no levam a
preferir o mundo ao nosso quarto, em matéria de
viagem. Entretanto, aquilo que se queira dizer a
respeito dos lugares distantes, entrou no rol das
vulgaridades, e com isto se desprestigiou a literatura dos viajantes, quase reduzida à condição
da anedota velha, que todo mundo já ouviu.
Ao tempo das viagens difíceis, muitos escritores viajavam por seus leitores, e alguns deles
sem ser propriamente escritores. Daí a literatura
de viagem, em que incluímos naturalmente a certidão de nascimento do Brasil, com a carta de
Pero Vaz de Caminha.
Hoje, quando o transporte aéreo banalizou as
viagens, e o ônibus é veículo de turismo, os instrumentos de comunicação de massa nos levam
a preferir o mundo ao nosso quarto, em matéria
de viagem. Entretanto, aquilo que se poderia dizer a respeito dos lugares distantes, entrou no rol
das vulgaridades, e com isto se desprestigiou a
literatura de viajantes, quase reduzida à condição da anedota velha, que todo mundo já ouviu.
1
Conferir no Diário completo: 7 de agosto de 1967 e 18 de março de 1994; 5 de março de 1988 e 13 de agosto de 1992; 29 de julho
de 1987 e 4 de janeiro de 1991; 16 de janeiro de 1987 e 1.º de agosto de 1995; 21 de outubro de 1977 e 30 de novembro de 1992; 28
de julho de 1992 e 21 de março de 1993; 19 de junho de 1990 e 15 de julho de 1993; 29 de janeiro de 1990 e 14 de novembro de 1993;
11 de abril de 1992 e 17 de dezembro de 1993; 1.º de dezembro de 1991 e 12 de janeiro de 1995; 4 de junho de 1991 e 22 de junho de
1995; 4 de março de 1981 e 19 de dezembro de 1995.
10
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A coincidência das notas
do escrita “na seqüência da vida
apresentadas evidencia uma escontinuada” (Montello:1998:13).
A aparente
pécie de autoplágio que indica,
Por fim cabe ressaltar que a
sinceridade
do
senão a fraude na composição
leitura do Diário completo
Diário completo
continuada do Diário, ao menos
pode trazer à tona questionadesfaz-se pela
a construção do texto.
mentos variados sobre a forma
O estranhamento que as anodo diário, mas, evidencia, soimpressão de colagem
tações repetidas amparadas por
bretudo, a questão da sincerique a manipulação
datas distintas causam a um leidade nesta escrita fracionada.
das
datas
evidencia.
tor mais atento está relacionado
A aparente sinceridade do
à quebra do pacto entre autor e
Diário completo desfaz-se
leitor. Este pacto autobiográfico,
pela impressão de colagem que
apresentado pelo teórico Philippe Lejeune supõe a manipulação das datas evidencia, tudo nos leque o autor (autor = narrador = personagem) fará vando a compreender que mesmo as caracterísuma apresentação sincera de sua vida e o leitor ticas mais legítimas da forma do diário, como é o
poderá buscar informações que possam ser confir- caso da clássica datação e da aparente sincerimadas extratextualmente (1994:64).
dade, se assemelham a convenções literárias.
Intencionais ou não, estas anotações repetidas
É possível afirmar, portanto, que na esfera da literasão uma peça importante para a compreensão do tura autobiográfica o diário ocupa uma posição paraenorme quebra-cabeça que a sucessão de seus re- doxal. Se por um lado aparenta ser o tipo de texto que
gistros compõe, já que estas repetições contradi- mais se presta a uma exibição sincera do “eu”, por ouzem a palavra do escritor nas introduções do Diá- tro lado é o mais facilmente manipulado, assim como
rio completo e que apresentam a obra como sen- pudemos avaliar por meio do Diário completo.
Referências Bibliográficas
ARISTÓTELES, HORÁCIO & LONGINO. A poética clássica. Tradução de Jaime Bruna.
São Paulo: Cultrix, 1988.
CABALLÉ, A. Narcisos de tinta. Málaga: Megazul,1995.
CASTELLO BRANCO, L. A traição de Penélope. São Paulo: Annablume,1994.
CESAR, A. C. A teus pés. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
HAMPSON, G. A. O diário de Josué Montello. O Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, 16 jan.1988. suplemento literário. p.8.
LE GOFF, J. História: novos objetos. Tradução de Teresinha Marinho. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1988.
LEJEUNE, P. El pacto autobiográfico y otros estudios. Madrid: Megazul-Endymion, 1994.
LELEU, M. Les journaux intimes. Paris: PUF, 1952.
MONTELLO, J. Diário completo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998.
SAMUEL, R. (org.). Manual de Teoria Literária. 3 ed. Petrópolis: Vozes,1986.
SIMÕES JR., A. S. Os eróticos diários de Ana Cristina Cesar. Miscelânea. Assis, v.2, n.1, p.141-159, jun. 1995.
WHITE, H. Trópicos do discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: EDUSP,
1994.
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11
Tomando por base o livro Chão Bruto de Hernâni
Donato, este trabalho propõe revelar, à luz da teoria de
Mikhail Bakhtin, as relações tensas manifestadas pela
hibridização discursiva do romance.
Palavras-chave:
Discurso Literário; Hibridização Discursiva;
Hernâni Donato.
Taking into consideration Hernâni Donato’s book
Chão Bruto, this article proposes to reveal, in the light
of Mikhail Bakhtin’s theory, the tense relations
identified by the discursive hybridization of the novel.
Keywords:
Literary Discourse; Discursive Hybridization;
Hernâni Donato
12
*
Mestre em Teoria
Literária pela UFMS MS; Professora do
curso de Letras do
Campus de
Aquidauana.
FORMAS DE DIALOGISMO
EM "CHÃO BRUTO"
A CONSTRUÇÃO DAS VOZES NO ROMANCE
Nilza Lemos de Almeida Cabrita*
1 - Enunciados da
Palavra "Terra"
nas Diferentes Vozes
Para Bakhtin, o romance é uma narrativa literária
que inclui uma pluralidade discursiva. Para o teórico
russo, diz José Luiz Fiorin, “o que caracteriza o
romance é que nele diferentes vozes sociais se defrontam, se entrechocam, manifestando diferentes pontos de vista sociais sobre um dado objeto”.1 O romance representa um espaço discursivo
marcado por uma relação tensa e polêmica entre os
diferentes discursos representados pela multiplicidade
de pontos de vista de sujeitos sociais.
Em Chão Bruto 2 existe uma manifestação
multidiscursiva orientada para o signo-tema: TERRA. São discursos distintos que se confrontam e se
delimitam ao longo do romance, representados pelas
vozes das personagens, do narrador e do poder (instituído como forte posição ideológica que se opõe aos
outros discursos), representado pela voz do grileiro.
1
Neste romance, terra entra no contexto literário
circundada de diálogos vivos, em múltiplas ressonâncias porque o romancista dá um discurso direto às
suas personagens. Cada personagem ao assumir seu
discurso revela seu próprio mundo ideológico. Como
diz Bakhtin, “ O homem no romance pode agir (...)
mas sua ação é sempre iluminada ideologicamente, é sempre associada ao discurso (ainda que
virtual), a um motivo ideológico e ocupa uma
posição ideológica definida.”3
Analisemos o espaço discursivo do poder representado pelo discurso do Capitão Paulo. Começamos
por ele porque é a partir dele que o romance encena a
movimentação do processo narrativo. No confronto
entre os discursos, terra na voz do Capitão Paulo tem
significados divergentes de todos os outros:
Um minuto de hesitação pode arruinar uma posse
de milhares de alqueires (p. 14).
Vou encostar as minhas cristas com as dos maiores grileiros. Vai ser um jogo de pôquer a doze
mãos onde cada parada há de valer no mínimo
FIORIN, J. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin, dialogismo e construção de sentido, p. 234.
2
DONATO, H. Chão Bruto. 7. Ed. São Paulo: HUCITEC, 1977. Todas as citações de Chão Bruto neste trabalho serão feitas por esta
edição e virão acompanhadas apenas por indicação de páginas.
3
BAKHTIN. M. Questões de Literatura e de Estética, p. 136.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002
13
mil alqueires e um punhado de
senti um cheiro que me dizia.
vidas (p. 15).
Como é que a gente pode sentir
Esse discurso faz da
São quatrocentos alqueires que
isso, hem, pai?
terra a determinação
eu e você vamos decidir no
– De terra trabalhada? Não é no
da riqueza e poder.
baralho (p. 19).
nariz que a gente sente isso, não
Capitão
Paulo
faz
uso
Por melhor que esperasse, não
senhora. É na pele, nos ossos, no
pensei que fosse boa assim!
sangue. É um cheiro que está o
da fala com o mesmo
Conquisto este pedaço de qualano todo pendente do nariz da
vigor com que se
quer modo. E fico com ele.
gente, metido na pele, e sobe para
apropria das terras.
Seria desperdício da bondade
entisicar o ânimo de um cristão
de Deus que uma terra assim
quando chega o tempo certo.
boa ficasse nas mãos do
– É um cheiro bom, hem, pai?
esmulambado do Juventino.
– Cheiro bom, é? Bom quando o
Olhe, minha gente, que de terra entendo um bofulano pode trabalhar sossegado, sabendo que vai
cado! Pois lhe digo que tenho respeito até em fucolher o plantado. Mas é um cheiro desgraçado
rar com o dedo este chão – receio que do furo
para judiar quando o homem desconfia que não
brote uma touceira. É assim mesmo, esta terra
chegará a ver a colheita porque ou lhe tomam a
tem que ser minha (p. 64).
terra ou o pêlo (p. 38).
Sua fala é marcada por elevados valores monetários, ambição por grandes extensões de terra e desprezo pela vida de outro semelhante. Esse discurso
faz da terra a determinação da riqueza e poder. Capitão Paulo faz uso da fala com o mesmo vigor com
que se apropria das terras.
Para Juventino, ex-grande grileiro, e também pertencente à classe dominante, terra tem a mesma
conotação de valor, mas há uma diferença entre seu
discurso e o do Capitão. Juventino não sofre do poder da ambição de Paulo.
A terra, Crispim, vale o seu custo em sangue. A
terra se acostuma com o sangue e isso é perigoso
porque ela está pedindo sempre mais e mais (p. 119).
Esse discurso pressupõe a existência de um outro
que está implícito nele: para que haja dominadores, é
preciso que existam os dominados. São os espoliados que vêem a terra com outros olhos, que a sentem
com outros sentimentos e fazem ressoar nela outras
vozes.
– Furador de mato como eu e meu povo, o que
quer é terra tal e qual a feita por Deus Nosso
Senhor, distância pra enxergar e bater perna o dia
inteiro sem esbarrar em cerca e em cultivados (p.
21).
– Não se planta este ano, pai? É um ano bom pro
milho, não é?
Ele morde a ponta da língua, receando trai-se.
– Ontem à noite, pai, o vento vinha dali. Eu estava na cama, com a coberta até o queixo. Mas
14
Percebe-se por suas falas que, ao lado do sentimento de perda, os espoliados têm consciência de
sua impotência para lutar contra o sistema. Sabem
que mais cedo ou mais tarde, cederão à violência da
conquista. Para eles, terra é riqueza pacífica, bemaventurança do viver. Não desejam mais do que possuem a não ser colher os frutos de seu apego e
devotamento ao lugar em que nasceram e onde esperavam morrer.
Contrário a esses discursos, dos dominadores ou
dos dominados, é o discurso das mulheres. A voz
feminina representada por Laura, Sinhana e Xaíca,
guardadas as diferenças individuais, enuncia total
discordância ao discurso masculino com relação à
terra.
Xaíca é um tanto indiferente à sorte da terra, mas
revela-se contrária aos acontecimentos na forma
como os homens se movimentam, como mostra uma
de suas advertências:
Mais um, não é, Lino? Outros mil alqueires pro
seu dono e um peso a mais na sua consciência,
hem, caboclo? Seja bobo, rapaz, o mundo é grande e aberto. Pinique a mula e não volte mais pra
este purgatório (p. 32).
Sinhana é bem clara em sua oposição:
Sou mulher e não quero entender das brigas de
vocês. (...) Se os homens são cabeçudos a ponto
de trocar a vida por um pedaço de barro, o melhor é mesmo liquidar com os seus assuntos. (...)
Nós, mulheres, olhamos por cima disso. Somos
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002
teimosas pelos meses e pelos
anos, pelo sossego. Vocês querem viver desafrontados, um
só dia. Nós mulheres precisamos viver sossegadas um ano
(p. 124).
Laura chega ao desespero
com a fala do marido, melhor dizendo, dos maridos, “a presença
do morto por trás da fala do
vivo”, em relação aos “alqueires
de terra”:
O narrador se
satisfaz em apresentar
os acontecimentos
sem se deixar
envolver por eles.
Fala da terra
como fala
das personagens.
– Mas Laura, são trezentos alqueires. Trezentos!
– Você tem o quê?
Ela acarinhava o ventre e uivava, num crescendo
de dor e cólera. Desgrenhou-se, rolou pela cama,
arranhou o rosto. Gritou até não ter mais forças.
Então imobilizou-se! (p. 146).
Laura não apresenta no romance um discurso direto sobre terra. Sua posição ideológica, no entanto,
é representada pelo discurso do narrador ao descrever suas ações. É ainda Bakhtin que explica: “O romancista pode também não dar ao seu herói um
discurso direto, pode limitar-se apenas a descrever suas ações, mas nesta representação do autor (narrador para Bakhtin), se ela for fundamental e adequada, invisivelmente ressoará junto (...)
o discurso do próprio personagem”4
Seja ela prática, idealista ou romântica, a mulher
substitui o desapego à terra pelo apego à vida. Suas
falas estão carregadas de advertências, pedidos e lamentos que os homens ouvem mas não botam cuidados nisso.
O narrador se satisfaz em apresentar os acontecimentos sem se deixar envolver por eles. Fala da
terra como fala das personagens. Apenas observa e
ordena os fatos, ora deixando as personagens falarem, ora ele mesmo falando:
Este é o tempo de preparar a terra. O chão está
úmido e fofo (...) os homens andam ocupados demais engraxando carabinas e carregando cartuchos
para que possam ouvir o chamado da terra.
Para os homens a semeadura deste ano é de ódi-
4
BAKHTIN. M. Questões de Literatura e de Estética, p. 137
5
MACHADO, I. O romance e a voz. p. 36 - 37.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002
os. Só têm a espera uma colheita
de sangue. Não sabem mais as
canções aprendidas para suavizar
o trabalho. Estão silenciosamente
dispostos a matar ou morrer para
defender o pedaço de chão onde
moram e vagueiam. Como plantar
se a colheita é duvidosa? (p. 38)
A terra passa de mão em mão
carregada pelo dinheiro, raptada
pela força, conquistada pelo sangue, alcançada pelo embuste, a
trapaça, a safadeza, o ardil (p. 63).
Não faltam no romance as vozes agourentas. São
vozes anônimas, em sua maioria, direcionadas para
ninguém e para todos ao mesmo tempo:
Nunca que vai dar sorte! Dinheiro de sangue acaba
mal, não sabe? (p. 44).
É um louco. Quer muita terra debaixo dos pés.
Pode acontecer que acabe com um punhado dela
em cima da boca! (p. 50).
A voz que se ouve em toda parte sussurra em
ritmo de susto para quem quiser ouvir:
- Coisas terríveis vão acontecer (...). Agora (...)
Um deles tem que ficar mandando na terra, o outro
debaixo dela (p. 106).
As posições ideológicas representadas pelos discursos dos sujeitos falantes com relação a terra se
confrontam e se entrechocam porque são manifestações de diferentes pontos de vista sobre o mesmo
objeto. E cada ponto de vista de concepção de terra
está determinado pela posição que o sujeito ocupa no
mundo. Não é por acaso que os impulsos agressivos
(na ação e nas palavras) do grileiro, na figura de Paulo, provocam o instinto de defesa dos posseiros e o
sentimento de indiferença nas mulheres.
As posturas ideológicas que se manifestam sobre
terra não são harmoniosas porque dependem das posições em que se encontram seus manifestantes. E
em Chão Bruto elas estão em posições diferentes e
opostas, daí o confronto. Cada sujeito falante perceberá terra de acordo com sua posição (no caso da
obra, social e econômica). A construção da percep-
15
ção, segundo Bakhtin, fundamenmanos. É o professor Caio que diz:
ta-se no conceito denominado lei
No romance,
Milhares de vezes tenho dito aos
do posicionamento, o princípio
meninos que todos os homens são
o plurilingüismo social
que determina que o que vemos
iguais, e não é justo que uns torelacionado à
está determinado pelo lugar de
mem aos outros a terra, a água, a
palavra terra está
onde vemos.5 Para Bakhtin, diz
casa (p. 122).
Irene Machado, “o romance não
dissimulado nos
É um discurso, evidentemenopera com a imagem do homem,
discursos das
te,
ditado
pelo sentido do bom senmas com a imagem de sua linpersonagens
(...)
so gerador da convivência harmoguagem. O sujeito que fala no
niosa. No entanto, essa voz é úniromance é, na maioria das veca e fala tão pouco e tão baixo.
zes, um ideólogo e sua palavra
Incapaz de ser ouvida pelos hoé sempre um ideologema: representa um ponto de vista particular sobre o mun- mens do presente, só poderá ter ressonância no futuro, observando que quem a ouve hoje são os meninos
do” .6
O signo terra não tem neste romance o peso do que se tornarão os homens do amanhã.
Considerando-se terra um campo de visão copensamento científico orientado tão só para o domímum
a várias personagens, nada mais natural que na
nio do objeto mudo. Paradoxalmente, no romance, e
nas pegadas teóricas de Bakhtin, a palavra terra pode concepção dialógica de Bakhtin esse campo seja cirser uma coisa que nada comunica de si, mas no con- cundado pela diversidade de manifestações verbais
texto em que se enquadra está determinada pelas da cada falante. Não há dúvida de que os diálogos
transformações semânticas no discurso das perso- sociais ressoam na concepção polifônica da obra.
nagens. Sua representação artística no contexto lite- Essas relações representam-se através do discurso.
rário está circundada de emoções plurivocais, diálo- E no contexto literário em que se enquadra esse siggos agitados assinalados pelos pontos de vista dos no, e no que cada sujeito põe a descoberto de sua
diferentes sujeitos falantes. Neste raciocínio, em que posição ideológica, o narrador mostra como os disa visão dialogizante e polêmica está centrada no que cursos das classes se tocam, se cruzam e se entrecada personagem põe a descoberto de sua posição chocam nas vozes das personagens.
ideológica em relação ao objeto ou em relação aos
outros falantes, acrescente-se ainda que no discurso
2 - A Dialogia e o Outro
de outrem, no discurso da personagem, penetra, de
da Personagem
uma maneira ou de outra, o discurso do Autor (nos
Existe no romance de Hernâni Donato uma outra
referimos ao autor de Chão Bruto). Eis o caráter
plurilíngüe de que fala Bakhtin que permite ao escri- forma de manifestação discursiva que merece atenção
tor organizar sua verdade relativizada na luta de pon- de análise. Trata-se de uma forma de representação
que na concepção teórica do dialogismo de Bakhtin
tos de vista.
No romance, o plurilingüismo social relacionado à se define como o tema da autoconsciência, isto é, a
palavra terra está dissimulado nos discursos das per- relação que o sujeito estabelece consigo mesmo.
Na definição da autoconsciência, a representação
sonagens, mas é no discurso do narrador que pode
haver uma fusão das vozes capaz de refratar as in- que o sujeito (o herói romanesco) faz de si mesmo, e
tenções do Autor. Na revolta de uma personagem, que Bakhtin denomina o eu-para-mim, só pode ser
na indignação do narrador pode estar introduzido o realizado no discurso indireto livre. Não é uma relação
dialógica pacífica: a voz da personagem aparece como
discurso camuflado da denúncia.
Em meio a tantas vozes atravessadas no espaço fala na escritura do autor. Ao exprimir sentimentos,
discursivo de Chão Bruto, uma delas, e apenas uma, ou o que vai pela mente, há uma representação que se
toca, superficialmente, na questão dos direitos hu- define como um retorno do eu sobre si mesmo.
6
Ibidem, p. 59.
16
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002
Em Chão Bruto, Capitão Pauum homem cansado a se pergunNa definição da
lo tem um campo discursivo voltar se o que fizera vale a pena ou
autoconsciência, a
tado para si mesmo que
faz algum sentido.
representação
que
o
exemplifica o tema bakhtiniano da
Nesses momentos, a instância
sujeito (...) faz de si
autoconsciência. É quando ele
dialógica conflitante se desenvolestá no auge de suas conquistas,
ve no discurso interior dele mesmesmo, e que Bakhtin
mais precisamente quando pensa
mo. Capitão Paulo não está se didenomina o eu-paraem parar com sua atividade frerigindo a outra pessoa. Age tãomim, só pode ser
nética e sonha com uma outra vida
somente em sua perspectiva parrealizado no discurso
ao lado de Laura. Nesse momenticular.
indireto
livre.
to, entra em conflito consigo mesEncontra-se também no dismo. Trata-se de um discurso volcurso de Laura, apresentado pelo
tado para essa personagem em
discurso indireto livre, pontos de
que terra e mulher fazem parte de um mesmo plano contato com a construção dialogizada da estética de
de ação e interesse. O conflito gerado pelo desejo de Bakhtin. É possível afirmar que em Laura existem
ter a ambas como propriedades suas se manifesta duas mulheres: uma ambiciosa e outra romântica, dinas vozes mergulhadas nas contradições internas.
alogando entre si.
Seu enunciado em discurso direto e indireto livre
Você sonhava com duas coisas, todas as horas de
exterioriza uma construção polifônica de tendência
todos os dias: amor e dinheiro. Mais amor ou mais
conflitante: Capitão Paulo é um homem dividido; ao
dinheiro? Agora, assim à distância, é difícil resmesmo tempo em que não hesita em alcançar seus
ponder, não é? O fato é que quando apareceu a
objetivos, das profundezas de seu pensamento vem à
certeza do dinheiro e a possibilidade do amor, você
tona um forte desejo de pacificar-se. Vejamos um
disse sim muito depressa! (...) Mas o amor... (...)
exemplo:
Seria feliz se o amasse. (...) Mas com essa acoConquisto este pedaço de qualquer modo. E fico
modação que não resulta em nada você sente
com ele. Seria desperdício da bondade de Deus
crescer dia a dia o medo de envelhecer assim:
que uma terra assim boa ficasse nas mãos do
rica, mimada e sem amor! (p. 67).
esmulambado do Juventino (p. 64).
Quando Laura é representada no momento de criJá experimentara antes aquela sensação de es- se, seu discurso é marcado pelo arrependimento. Intar mergulhado no vazio. Por mais que o homem capaz de uma atitude decisiva, que a levasse para
realize e encontre satisfação em vitórias gran- outra direção, ela se questiona, em conflito consigo
des e pequenas, chega para ele um momento em mesma, se teria escolhido o certo para si em se caque duvida da oportunidade e da utilidade da- sando com Paulo. Laura representa a Outra para si
quelas lutas.
mesma. É representada como uma autoconsciência.
Para quê? Para quê? (...) havia uma pergunta mais Laura não representa apenas a impotência das mudolorosa:
lheres que vivem tal drama, representa a própria cons- Para quem? (...) Sente crescer-lhe a vontade ciência da situação em que vivem.
de cerrar os olhos e deixar de pensar. Ou de abanVocê estava certa, cegada pela certeza de que
donar tudo... (p.95).
basta existir o homem, a vontade feminina e muiNessa polêmica interna, duas vozes, numa relato dinheiro para não ficarem algumas ânsias insação dialógica dissonante, revelam o encontro de Catisfeitas (...) Não é mesmo doloroso morrer conpitão Paulo com o Outro que traz dentro de si. A
formada, rica e sem amor? (p. 67).
primeira voz identifica um homem decidido, ambicioEstão aí as duas vozes, a de uma Laura resignada
so, arrogante, possessivo, impaciente, egoísta, extrecom
sua posição de esposa de um homem a quem
mamente ousado. A segunda, a voz do Outro, é a de
7
MACHADO, I. O romance e a voz. p. 118.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002
17
jamais será capaz de amar e a de
vadiagens e horizontes pro meu
Se faltou voz ao negro
uma Laura que cobra o aconteci- na tradição da literatura distraimento. (...) Gostava era do
mento do amor em sua vida, sem
capim aberto e não havia música
brasileira,
não
se
pode
esquecer que é discurso represenmais bonita do que o assobio do
dizer o mesmo do
tado na escritura do autor e nisso
vento no capim cacheado (...) Inisertanejo. Em Chão
se fundamenta um dos princípios
migo não tinha e amigos me sodo dialogismo de Bakhtin: “Há
Bruto não só o sertanejo bejavam na terra de toda gente,
uma convergência de focali- tem direito à fala como é na força do calor e no tempo das
zação: o discurso se posiciona
águas.
possuidor do discurso
no campo enunciativo do per– Bom, minha rola, vai daí sucelógico e fluente.
sonagem e o narrador segue a
deu o que aconteceu um dia a todo
diretriz de tal orientação”. 7
garanhão varador de cerca e
Quer-se dizer com isso que a voz
furador de brenha. Era uma festa e eu estava meio
que manifesta a palpitação interior da personagem
que bebido por força da cana que era boa e das
encontra no discurso indireto livre a passagem para
mulheres que eram doces (...) Pois só exemplei o
a representação do fluxo de consciência. Há um jogo
dito pra que nunca mais desfeitasse caboclo aquide entoações expressivas fundindo pensamento e fala,
etado e inimigo de provocação (p. 91).
narrador e personagem. É preciso adivinhar quem
– Então começou o pior. Topei aqui a terra bruta e a
está com a palavra.
gente braba. (...) e sentei praça no serviço do capiBakhtin observa que o herói vive e age de acordo
tão Paulo. Pra ganhar o meu e não ir muito pra loncom sua própria concepção de mundo, mas só se
ge do chão onde nasci (...) Não pense que gostava
pode descobrir sua posição ideológica pelas suas pado serviço. Capitão Paulo é homem duro! Mandava
lavras, na representação de seu discurso, mesmo que
pra ser obedecido. Eu dava mostra de não gostar
este se confunda com as palavras do autor (para
mas só tinha mesmo de obedecer (p. 92).
Bakhtin, autor é um elemento estético, pode ser o
narrador mas não pode ser confundido com o ser
Se faltou voz ao negro na tradição da literatura
ético da realidade empírica). “A ação do herói do brasileira, não se pode dizer o mesmo do sertanejo.
romance é sempre sublinhada pela sua ideologia: Em Chão Bruto não só o sertanejo tem direito à fala
ele vive e age em seu próprio mundo ideológico como é possuidor do discurso lógico e fluente. Ele
(não apenas num mundo épico), ele tem sua pró- tem o domínio satisfatório da linguagem na utilidade
pria concepção do mundo, personificada em sua e necessidade de falar de sua situação, de sua vida
ação e em sua palavra”.8 Isso pode ocorrer com ou daquilo que deseja. Não tem dificuldades de exqualquer personagem, mas de Chão Bruto tomare- pressar seus sentimentos e nisso o narrador não tem
mos o sertanejo Lino para a demonstração dessa con- qualquer trabalho: deixa-o livre para verbalizar o que
cepção teórica por ser ele uma figura que age e fala quer exprimir.
de modo especial no romance porque usa a linguaO sertanejo Lino tem, nesta obra, páginas colocagem de seu meio A consciência desse herói, seu sen- das a seu dispor para a manifestação de sua voz.
timento e seus desejos, em vários trechos da obra, Lino tece o seu discurso com uma linguagem regioestão representados pelas suas próprias palavras.
nal e não permite que a voz do narrador constranja o
– Pois naquele tempo, eu era mesmo um homem rústico de sua fala. Sua carência de cultura decreta
deste feitio. Casa pra mim existia mesmo pra a sua marginalidade, mas essa não lhe tira o domínio
adentrar de noite e escapar com a primeira lam- da palavra. Nesse aspecto, Lino não lembra em nada
bida do sol. (...) Vidão era aquele, minha jóia! Isso o Fabiano de Vidas Secas de Graciliano Ramos, que
não nego!. (...) Lhe juro que não faltava sono pra precisa da intervenção do narrador para emprestarme fechar os olhos, companhia pra minha mesa, lhe a linguagem que lhe foi roubada. O gesto, no caso
amor pra minha rede, pingo esperto pras minhas de Fabiano, supre a carência da fala articulada. O
8
BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética, p. 137.
18
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002
narrador, nesse caso, fica com o
bivocalidade do discurso, tal como
As possibilidades
trabalho de expressar os sentimenlingüísticas que estão na ocorre no discurso indireto livre,
tos, a fala não articulada e até
em que o discurso do narrador se
base
da
composição
mesmo os gestos de Fabiano.
confunde com a voz da personaFabiano está sujeito a poderes romanesca revelam, além gem. Isso está demonstrado nesnaturais e sociais como Lino está
ta segunda parte.
da narratividade, uma
sujeito a poderes econômicos, soÉ preciso considerar que
combinação de várias
ciais e históricos, agrilhoados,
Bakhtin valoriza o estudo da litevozes e de vários estilos,
cada qual a seu modo, ao seu
ratura como manifestação de linconstituindo um híbrido
mundo, mas com uma diferença:
guagem. Seus estudos não sede
várias
linguagens.
Lino, de Chão Bruto, não teme
guem as categorias de análises
elevar a voz. Lino dialoga.
propostas pela estilística tradicioEm seus estudos sobre os gênal, também não são lingüísticos
neros discursivos, Bakhtin chamou a atenção para a nem especificamente literários. Entendendo que conoriginalidade estilística do romance. As possibilida- teúdo e forma estão unidos no discurso, sua teoria
des lingüísticas que estão na base da composição ro- não ignora as esferas semânticas da obra. Eis pormanesca revelam, além da narratividade, uma com- que esta análise gravitou em torno do herói e seu
binação de várias vozes e de vários estilos, consti- discurso que, sendo romanesco, necessita de uma potuindo um híbrido de várias linguagens. O discurso sição ideológica particular e, por isso, contestável: ao
do autor, os discursos dos narradores e das persona- lado desta, existem outras. Numa perspectiva ampla,
gens, ao penetrarem artisticamente no romance, se a representação literária do discurso de outrem coloorganizam em um sistema harmonioso. Nessa con- ca o sujeito que fala (as personagens são sujeitos de
cepção, o romance se define como representação do seus discursos), como um ser histórico, produto ideohomem que fala e discute idéias.
lógico que só existe numa relação com o outro e que
A análise desenvolvida na primeira parte deste tem, na palavra, o instrumento mediador da interação
artigo, portanto, não se apresenta direcionada para a social.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. A teoria do romance. 3. ed. São Paulo: UNESP, 1993.
BRAIT, Beth.(Org.) Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas: Ed. UNICAMP, 1997.
DONATO, Hernâni. Chão Bruto. 7. Ed. São Paulo: HUCITEC, 1977.
MACHADO, Irene.O romance e a voz. A prosaica de Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 12-19, jan./jun. 2002
19
Baseando-se na abordagem socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais, este trabalho examina
as micro-narrativas contadas por meninos e meninas em
uma turma de 5a série de língua materna localizada no
Rio de Janeiro, com o objetivo de estudar a construção
das masculinidades. A análise aponta indícios da co-construção das masculinidades por meio de micro-narrativas
que perpetuam a construção da masculinidade
hegemônica.
Palavras-chave:
Identidade Social, Masculinidades,
Discurso, Narrativa.
Based on a socioconstrucionist view of discourse and
social identities, this paper examines the narratives
that boys and girls tell one another in a mother tongue
fifth grade reading classroom in Rio de Janeiro in
order to look into how masculinities are constructed.
The analysis shows that masculinities are coconstructed through narratives, which perpetuate the
construction of hegemonic masculinity.
Keywords:
Social Identity, Masculinities,
Discourse, Narrative.
20
*
Graduada em
Letras pela
Universidade Federal
do Rio de Janeiro.
SOBRE O QUE
ELES CONVERSAM?
A CONSTRUÇÃO DAS MASCULINIDADES
POR MEIO DAS HISTÓRIAS CONTADAS
NO CONTEXTO ESCOLAR
Bianca Andreza da Silva Dias*
1. Introdução
Há uma grande reflexão, hoje em dia, em torno
de quem nós somos, gerada pelo questionamento dos
vários modos de se viver. O momento em que vivemos, marcado pela velocidade dos acontecimentos,
tem produzido um grande processo de conflitos e crises de identidade. Em meio há tantos questionamentos,
cresce o interesse em se estudar os homens devido
ao “impacto do feminismo, a mudança da globalização
e as estranhas relações do global e do pessoal” (Hearn
& Collinson, 1994: 115).
A partir das transformações sócio-históricas ocorridas na esfera social, este trabalho busca compreender como se dá a construção das masculinidades
no contexto escolar, especificamente, em uma sala
de língua materna a partir da análise da conversa dos
alunos.
A base teórica que orienta a presente pesquisa é
a visão socioconstrucionista do discurso e da identidade social, visto que são concebidos como construções sociais. Acredito que a identidade é forjada no
social e, para entender como ela é construída, investigo as práticas discursivas.
A pesquisa aqui é de cunho etnográfico e utiliza
dados coletados em uma turma de 5a série de língua
materna. A coleta foi realizada por meio de instrumentos como gravação em áudio das práticas privadas e públicas de aulas, entrevistas com foco no gruPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002
po e notas de campo. Serão utilizadas na análise as
gravações das práticas privadas, isto é, a conversa
entre os alunos na aula como também as práticas
discursivas nas entrevistas.
2. A construção social da
identidade de gênero
Baseando-se em uma abordagem socioconstrucionista, essa pesquisa concebe a ação humana
como sendo particularmente mediada pelo discurso.
A visão de discurso que sigo entende a linguagem
como a ferramenta central no processo de construção do “eu” e do “outro”.
Perpassa essa visão de discurso a questão da
alteridade porque “eu sei quem ‘eu’ sou em relação
com ‘o outro’ ” (Hall, 1999: 40). Sendo assim, “nossa identidade forja-se no intercâmbio de linguagem
com outros, à medida que começamos a nos ver através dos olhos de outros” (Stam, 1992: 28).
A importância de se ancorar o estudo das identidades sociais em práticas discursivas se dá justamente porque as “nossas identidades sociais passam por um processo contínuo de construção social mediado pelo discurso” (Rodrigues, 2000: 23).
Os indivíduos ao agirem no mundo social têm as
suas ações “baseadas, ou impregnadas por significados sociais, isto é, por intenções, motivos, cren21
ças, regras e valores” (Hamria cultural” (Badinter, 1993: 8).
Contudo ainda somos
mersley & Atkinson, 1995: 7).
Na introdução de seu livro,
levados a crer num
Cabe ressaltar que, as nosBadinter (1993) postula que “o
princípio
permanente
sas interações estão permeadas
tornar-se masculino envolve fada masculinidade como
por relações de poder que retores psicológicos, sociais e culfletem as hierarquias da societurais que nada têm a ver com a
se existisse uma
dade como um todo. Assim ao
genética”.
essência. Em parte
falar com o outro, consideramos
Nesse estudo as identidades
essa visão se deve à
quem é o sujeito com o qual
de gênero são entendidas como
associação feita entre
estamos interagindo, por exem“prática social” (Connel, 1995:
sexo
e
gênero
(...)
plo: sua raça; classe social; gê71), visto que, elas “são fragnero; idade etc. Além disso, os
mentadas e processuais por causujeitos não se posicionam apesa dos múltiplos discursos crunas de forma passiva, mas agem também por meio zados na vida de qualquer indivíduo” (Connel, 1995:
de contra-discursos.
72).
Conforme nos lembra Hall (1999: 13) “o sujeito
Por muito tempo o estudo do gênero foi feito a
assume identidades diferentes em diferentes momen- partir do “modelo do papel do sexo, que especifitos, identidades que não são unificadas ao redor de cava os modos como machos biológicos e fêmeum ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades con- as biológicas se socializam como homens e mutraditórias, empurrando em diferentes direções, de lheres em uma cultura específica” (Kimmel, 1987:
tal modo que nossas identificações estão sendo con- 12). O paradigma do papel do sexo é baseado em
tinuamente deslocadas”.
traços associados a atitudes, como se fosse uma
Fala-se a respeito de uma fragmentação justa- lista de características comportamentais, que evomente pelo fato de a identidade social não ser ho- ca uma visão muito estática. Ao contrário dessa
mogênea. Ao contrário da visão monolítica, con- visão, acredito que “a masculinidade consiste em
cebe-se hoje a existência de várias identidades co- práticas específicas, concretas e aprendidas por
existindo na mesma pessoa e testemunhando a sua homens” (Frank, 1996: 120). Fazendo um paralenatureza contraditória. Além disso, as identidades lo, a feminilidade consistiria em práticas especísociais estão em constante processo de constru- ficas, concretas e aprendidas por mulheres na culção refletindo sua fluidez.
tura. Nesse trabalho adoto a visão de Connell
Dessa forma, sigo a visão de Connell, (1987 (1993: 3) à medida que tento “localizar a mascuapud Frank, 1996: 119) de que “a masculinidade linidade no discurso, tratá-la por meio das reprenão é um processo unidirecional e uniforme e está sentações culturais”.
sempre sujeita a mudar, visto que a interpretação
Além disso, utilizo o conceito de narrativa de Linde
do que é masculino revela o material pessoal e (1993) em conformidade com Moita Lopes (2002:
coletivo e investimentos psicológicos daqueles que 143) quando esse aponta que “usamos as narrativas
detém o poder e daqueles que não o detém”. Por- para fazermos sentido do mundo a nossa volta e de
tanto, “as masculinidades hegemônicas e não- nós mesmos”.
hegemônicas não devem ser entendidas como reBrockmeier & Harré (1997: 264) chamam atenlações hierárquicas fixas, mas como relações va- ção para o fato de que “nós organizamos nossas meriáveis de poder” (Hearn, 1996: 112).
mórias, intenções, histórias de vida, e idéias dos nosContudo ainda somos levados a crer num prin- sos eus ou identidades pessoais em modelos narraticípio permanente da masculinidade como se exis- vos”. Isso torna possível ver a narrativa como um
tisse uma essência. Em parte essa visão se deve à modo de organização do discurso que exerce um
associação feita entre sexo e gênero, acreditan- papel fundamental no modo como construímos as
do-se que a marca biológica é que define o gênero nossas identidades sociais.
do indivíduo. Cabe estabelecer uma distinção enNa vida social estamos a todo o momento nos
tre sexo, que é a marca biológica conferida ao in- engajando em práticas discursivas, isto é, produdivíduo e gênero, que é considerado “uma catego- zindo histórias em conjunto sobre nós mesmos e
22
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002
sobre os outros. Essas histórias
depois uma seqüência de razões
A
presente
pesquisa
estão permeadas pelo nosso ponpelas quais essa afirmação detem como foco de
to de vista e pelo nosso modo de
veria ser acreditada, usando
interpretar o mundo a nossa volanálise a construção
marcadores tais como porque
ta. Neste sentido, Moita Lopes
ou portanto’’ 1 (Linde, 1993:
das masculinidades a
(2002: 64) afirma que “ao
91).
partir do engajamento
historiarmos a vida social para
Será utilizado na análise o
em práticas
o outro, estamos construindo nosconceito de narrativa e explicadiscursivas dos
sas identidades sociais ao nos
ção de Linde (1993) para invesposicionarmos diante de nossos
tigar como os alunos, a partir
participantes (...)
interlocutores e diante dos perdas narrativas e explicações
sonagens que povoam as nossas
narradas, constroem a sua idennarrativas”.
tidade social e a identidade soDestaco a importância do outro na construção cial dos outros. Não utilizo o conceito de crônica
do significado já que “a experiência discursiva indi- em minha análise, pois essa unidade não aparece
vidual de cada pessoa se forma e se desenvolve em em meus dados.
uma constante interação com os enunciados individuais alheios” (Freitas, 1999: 137). Sendo assim, a
3. Metodologia e
alteridade também é central no ato de contar uma
Contexto de Pesquisa
história, visto que, “toda palavra procede de alguém
como também se dirige para alguém, constituindo o
A presente pesquisa tem como foco de análise a
produto da interação do locutor e do ouvinte. (...) construção das masculinidades a partir do
Ao definir-me em relação ao outro, em última aná- engajamento em práticas discursivas dos participanlise, estarei me definindo em relação à coletivida- tes que estão sendo investigados e de como esses
de” (Bakhtin, 1929/1992: 113). O enunciado sem- entendem o que está ocorrendo. A metodologia de
pre será o produto da interação de duas pessoas pesquisa adotada faz parte da tradição de pesquisa
porque ele existe à luz de quem é o interlocutor.
interpretativista, tentando entender o fenômeno esLinde (1993: 67) apresenta três unidades tudado a partir da perspectiva dos participantes.
discursivas que organizam as histórias em seus daOs dados foram coletados etnograficamente dudos: “a narrativa, a crônica e a explicação”. O con- rante o segundo semestre de 1999, em uma turma de
teúdo da narrativa é definido como uma “seqüência 5a série de língua materna de uma escola da rede
de eventos mais personagens e cenário” (Linde, pública de ensino, localizada na zona norte do Rio de
1993: 68), tendo como característica o fato de apre- Janeiro, por meio de instrumentos etnográficos como
sentar “orações principais no passado” (Labov gravação em áudio de aulas, entrevistas com foco no
1972b: 360 apud Linde, 1993: 68).
grupo e diários feito pelo pesquisador. Ressalto o inA crônica consiste no “recontar de uma seqüên- teresse de se investigar alunos de uma turma de 5a
cia de eventos que não tem um ponto único série pelo fato de que “a adolescência é provavelavaliativo” (Linde, 1993: 85). Linde (1993: 87) mente o período da vida de uma pessoa quando as
explicita três características da crônica: a) “a or- histórias de vida começam a se desenvolver” (Linde
dem da narração é para ser entendida como a or- 1993: 67).
dem dos eventos”; b) “a estrutura consiste na narForam distribuídos cinco gravadores durante a graração dos eventos em seqüência”; c) “a crônica vação das aulas: um ficava com o professor da turcontém avaliações de ações individuais, mas não ma e os outros quatro eram distribuídos pela sala.
da seqüência como um todo”.
Nessa sala de aula, o professor deixava os alunos
A explicação consistiria em “apresentar uma sentarem em dupla, o que facilitava o diálogo entre
proposta de alguma afirmação a ser provada, e eles. Além disso, a disposição dos gravadores permi-
1
Grifo da autora.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002
23
tiu a coleta não só das práticas
06 chegava assim pô, / eu chegaOs
dados
apontam
a
discursivas públicas (interação
va assim / só pá humilhar ele. / /
construção das
principal da aula), mas também
Se eu não desse um
das práticas discursivas privadas
masculinidades sendo
07 toquinho a mais, / poxa aí/, po(conversa entre os alunos). O
dia me acertar, / aí / / ele queria
entrecortada por
acervo de dados possui a gravame acertar mané. / Eu
outros traços da
ção em áudio de dez aulas e duas
08 cheguei assim, / ele veio pra
identidade social como,
entrevistas centradas no grupo, o
cima de mim, / eu puxei, dei de
por
exemplo,
raça,
que corresponde a 20 horas de
letra / e toquei pro
práticas discursivas públicas, 64
09 moleque. / Aí, / se eu não tiro,
gênero e sexualidade.
horas de práticas discursivas pri/ se eu não faço isso puxando de
vadas e 4 horas de entrevistas
letra e tirando o meu pé
com foco no grupo.
10 ele ia me acertar /, ia cair de
Como o objetivo da pesquisa é investigar o papel cabeça no chão de novo. / / Já tava uma dor inferque as narrativas contadas pelos alunos desempe- nal. / /
nham na construção das masculinidades, utilizarei em 11 O meu pai vai me levar até no médico. / /
minha análise práticas discursivas privadas gravadas 12 David: Vai [ [ inint ] ], / vai embora [ [ inint ] ] / /
durante as aulas e práticas discursivas gravadas duEssa narrativa não possui um resumo, Leonardo
rante as entrevistas com foco no grupo.
já inicia a história com as seqüências narrativas.
Os dados apontam a construção das masculini- Desde a linha 01 até a linha 08 podemos observar
dades sendo entrecortada por outros traços da iden- várias orações no passado (cheguei, cabeceei, fetidade social como, por exemplo, raça, gênero e se- chei o olho, etc), que são utilizadas por Leonardo para
xualidade. Porém, a análise focaliza, particularmen- relatar os eventos ocorridos. De acordo com Linde
te, as histórias referentes ao binômio sexualidade e (1993: 70) as “orações narrativas são orações com o
gênero. Além disso, é preciso enfatizar que os resul- verbo no passado cuja ordem é tomada como a ortados apontados abaixo são recorrentes nos dados e, dem dos eventos”. Labov (1972: 359 apud Linde,
na verdade, em outras pesquisas (cf. Moita Lopes 1993: 68) argumenta que “a narrativa preocupa-se
1997, 1998, 1999, 2000, 2002).
com a experiência e por isso é vista como uma representação de uma ocorrência atual”.
No mundo da história narrada, temos a presen4. Análise de Dados
ça de dois personagens: Leonardo e um “moleque”.
Ao passo que no mundo em que a história está
sendo narrada, Leonardo tem David como seu
Narrativa:
interlocutor. Cabe ressaltar que “quando contam
Aula 7 (conversa privada gravada da fita do
2
uma história, as pessoas estão reconstituindo as
David e Leonardo no dia 25.10.99)
01 Leonardo: Eu cheguei, / cabeceei / / eu cabe- identidades sociais no próprio momento de contála” (Moita Lopes, 2002: 145).
ceei, / fechei o olho, / caraca / o moleque,
Leonardo está conversando com David sobre um
02 sabe / o que o moleque fez, moleque tentou tirar
jogo
de futebol. Ao introduzir o “moleque” (linha 01),
a bola e deu mó picão aqui. / Sérinho. /
03 / Aí, tá doendo muito mané. / / Melhorou, aí eu que estava jogando contra ele, Leonardo enfatiza a
força física do menino: Sérinho / Aí, tá doendo muito
tava tonto, não conseguia/ , não
04 conseguia enxergar nada de noite, / nada. / / mané / foi muito forte mané! / O moleque era todo [
[ inint ] ] sabe? (linha 02 - 03 - 05), para depois resTava tonto, / aí eu fui dormir, / aí acordei
05 melhor. / / Aí / foi muito forte mané! / / O mole- saltar a sua destreza: “pô, eu chegava assim só pá
humilhar ele” (linha 06).
que era todo [ [ inint ] ] sabe? / / Aí, eu
2
Os nomes usados na transcrição são fictícios. Utilizo / para indicar pausa curta, / / para pausa longa, ... para prolongamento da
sílaba, P para me referir ao pesquisador, ( ... ) para fala omitida, [ [ inint ] ] para ininteligível e [ [ ] ] para comentário adicional, a título
de explicação.
24
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002
Podemos observar que o
16 boneco pro meu filho/, mas /
narrador sempre se beneficia ao
/ assim / / de desenho animado,
Cabe ressaltar que
contar uma história, isso reflete
sabe?
"quando
contam
uma
o que Schiffrin (1996: 199 apud
17 P: Você acha, então / / um
história, as pessoas
Moita Lopes, 2002: 65) argumenboneco pode fazer o menino deita: “contar uma história fornece
xar de ser homem, é isso?
estão reconstituindo
um auto-retrato: uma lente lin18 Leonardo: Eu acho que não.
as identidades sociais
güística através da qual se podem
19 P: Então, por que não daria
no próprio momento de
descobrir as visões (um tanto ideum boneco? Eu não tô entendencontá-la".
alizadas) das pessoas sobre elas
do, é por que é feio?
mesmas como localizadas em
20 Leonardo: Não eu daria um
uma situação social”. Além disboneco sim, mas assim / /
so, a narrativa funciona “como
(...)
uma apresentação do eu” (Linde, 1993: 81).
21 P: Não daria, Paula, por que? Você acha perigoSendo assim, ao narrar os eventos relaciona- so?
dos à prática esportiva, Leonardo automaticamen- 22 Carlos: [ [ inint ] ].
te vai construindo sua identidade de gênero, visto 23 Paula: Ah! Sei lá depois meu filho vira aí boiola.
que, existe uma “relação entre o aprendizado es- 24 [ [ Risos ] ]
portivo e a construção da masculinidade” (Messner 25 P: Ah! Tem medo que seu filho vire boiola.
1987 apud Badinter, 1993: 94). Leonardo se apre- 26 [ [ Risos ] ]
senta da forma que é esperada de um menino, ou 27 Paula: Corre o risco aí.
seja, engajando-se em uma atividade esportiva com
O pesquisador inicia a discussão perguntando se
habilidade.
os alunos dariam um boneco para um filho (linha 01).
O aluno Leonardo declara que não daria um boneco
Explicação:
para seu filho (linha 02) e a partir dessa declaração,
Entrevista 2 (realizada no dia 22.11.99)
os alunos tecem comentários oferecendo razões para
01 P: Se vocês tivessem um filho, / você dava um legitimar o seu posicionamento frente a essa declaboneco assim?
ração.
02 Leonardo: Eu não.
O aluno Carlos se posiciona de forma mais enfá03 Carlos: Nem boneco, / nem boneca.
tica afirmando que não daria nem boneco e nem bo04 Leonardo: Nem boneco e nem boneca, / nem neca (linha 03). Em seguida, o aluno Leonardo amnada, / só carrinho.
plia a declaração de Carlos dizendo que daria um
05 P: Por que? E se fosse uma menina.
carrinho (linha 04), brinquedo que geralmente é as06 Carlos: Aí, / eu ia dar boneca.
sociado aos meninos.
07 Leonardo: Aí, / eu dava boneca. Aí, / eu daria
O pesquisador questiona o porquê desse
uma boneca, / boneca, / carrinho, dava
posicionamento e pergunta se eles agiriam da mes08 tudo.
ma forma com relação a uma menina (linha 05).
(...)
Carlos associa menina a boneca (linha 06) e Leonar09 P: Renata e Leonardo, por que vocês davam bo- do diz que daria qualquer coisa se fosse uma menina
neca pra menina e não davam pro
tanto uma boneca como um carrinho (linha 07). Po10 menino?
demos notar que não haveria problema se uma meni11 Joice: Não dá um boneco?
na brincasse com um carrinho, mas seria considera12 Carlos: Joice.
do estranho um menino brincar de boneca porque
13 Joice: Porque ele ia ficar gostando mais ainda / sua masculinidade estaria sendo contestada.
/ do boneco.
A aluna Joice oferece uma razão e parece assu14 Leonardo: Eu acho que não. Eu acho assim, ele mir o mesmo posicionamento dos meninos ao dizer
podia só brincar. / / Assim eu acho
que o fato de um menino brincar com um boneco
15 que não, muito pelo contrário, eu acho que sim... poderia fazer com que ele gostasse (linha 13) (a alué / / mas não assim... Eu daria um
na dá uma razão) e para os participantes dessa
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002
25
interação, isso seria considerado
parte da construção social de
A
homofobia
é
aqui
um
estranho para um menino.
masculinidade é o interesse em
mecanismo de defesa
O aluno Leonardo se
esportes”, o que faz com que ele
reposiciona admitindo que daria
para reforçar sua
se torne tão presente na construum boneco para seu filho (linha
ção da masculinidade dos meniheterossexualidade, e
15 e 16), mas deixa claro que senos. Isso porque o esporte simas meninas corroboram
ria um boneco de desenho animaboliza um “rito de iniciação masesse comportamento,
do (linha 16), já que alguns desculina, além de ser considerado
pelo
menos
nessa
ses bonecos, de um modo geral,
um símbolo de virilidade”
até podem ser considerados repre(Badinter, 1993: 96). Consideraninteração.
sentações da masculinidade
do o Brasil como contexto social
hegemônica: fortes, musculosos
dessa pesquisa, aponto o futebol
etc. Além disso, ele acredita que
como sendo o esporte mais vinum boneco não ia fazer com que um menino deixas- culado à construção social de masculinidade.
se de ser homem (linha 18). A inconstância de LeoA seqüência da explicação mostra que os alunardo frente a essa questão demonstra que “os me- nos (tanto meninos como meninas) não aceitam o
ninos experienciam lutas e vidas mediadas por ten- fato de um menino vir a gostar ou querer brincar
são e contradição a respeito do que significa ser um de boneca, já que isso representaria uma ameaça
homem jovem” (Frank, 1996: 116). Apesar de o alu- para o seu posicionamento frente às representano Carlos sustentar as suas razões para não dar um ções da masculinidade hegemônica. Essa seqüênboneco a seu filho, o aluno Leonardo apresenta um cia ilustra a homofobia como fazendo parte da consposicionamento conflituoso.
trução da identidade masculina hegemônica. A
Podemos observar que a masculinidade está sen- homofobia é aqui um mecanismo de defesa para
do construída em conjunto. O posicionamento de reforçar sua heterossexualidade, e as meninas corCarlos fez com que Leonardo se reposicionasse, isto roboram esse comportamento, pelo menos nessa
porque “os sujeitos ao participarem de práticas interação. Além disso, podemos observar a codiscursivas, se engajam em um processo de co-cons- construção das masculinidades e da sexualidade a
trução de si mesmos e do outro como seres sociais” partir da co-construção das histórias contadas pe(Bamberg, 1999: 221).
los alunos.
A aluna Paula diz que não daria um boneco para
Um modo de entender a vida social é olhar para
seu filho porque ele poderia “virar boiola” (linha 23). as histórias que as pessoas contam, porque contar
Essa seqüência evidencia que a histeria com relação história é um modo de organizar as experiências
aos homossexuais pela sociedade encontra-se refle- da vida social. Dessa forma, ressalto a importântida no modo como os meninos e as meninas estão se cia de se analisar as conversas contadas na sala
construindo. O simples fato de um menino brincar de aula pelos alunos como uma forma de termos
com uma boneca já é interpretado pelos participan- acesso ao modo como eles constroem as suas identes dessa interação como uma ameaça para a sua tidades sociais e as identidades sociais dos outros
masculinidade.
a fim de poder reconstruí-las em outras bases.
Acredito que “se a masculinidade se ensina e se
constrói, não há dúvida de que ela pode mudar.
5. Considerações Finais
(...) O que se construiu pode, portanto, ser demoA narrativa de esporte analisada ilustra o que lido para ser novamente construído” (Badinter,
Moita Lopes (2002: 157) aponta: “um traço que faz 1993: 29).
6. Referências Bibliográficas
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Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
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26
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002
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Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 20-27, jan./jun. 2002
27
O objetivo deste trabalho é discutir aspectos de minha
pesquisa sobre os efeitos de sentido do discurso pedagógico, a partir de diferentes estratégias do
processamento da referenciação, especificamente as estratégias discursivas que os falantes utilizam numa situação comunicativa de sala de aula.
Palavras-chave:
Ensino, Linguagem, Processo de Referenciação.
The aim of this work is to discuss aspects of the
research about the effects of the sense of the teacher
discourse, from different kinds of strategy in the
reference process, especially the discoursive
strategies that speechers use in communicative
situation of language practices in classroom.
Keywords:
Teaching, Language, Reference Process.
28
*
Parte integrante do
meu trabalho do GT
de Referenciação, da
ANPOLL, sob a
coordenação da Profª
Drª Maria Helena de
Moura Neves, da
UNESP de Araraquara.
**
Doutora em Letras e
docente na graduação e
na pós-graduação do
DED/CEUL. E-mail:
[email protected].
O DISCURSO PEDAGÓGICO
E O PROCESSAMENTO DA
REFERENCIAÇÃO
*
Vânia Maria Lescano Guerra**
1. Introdução
O sentido de um texto, qualquer que seja a situação comunicativa, não depende somente da estrutura textual em si mesma. O produtor de um
texto precisa proceder ao “balanceamento” do que
necessita ser explicitado textualmente e do que
pode permanecer implícito, por ser recuperável via
inferenciação, já que não há textos preferencialmente explícitos (MARCUSCHI, 1994). Nessa
direção, um texto é considerado explícito quando
o que é dito consegue estabelecer um
balanceamento adequado entre o que necessita ser
dito e o que pode ser presumido como partilhado.
Na verdade, a explicitude pode ser avaliada em
termos da reciprocidade entre interlocutores e
mediada pelo texto.
Segundo VAN DIJK (1995), os significados que
devem ser tomados como explícitos dependem do
uso que o produtor do texto faz dos fatores
contextuais, de forma que o processo pelo qual os
textos escritos produzem efeitos de sentido (explicito
ou não) não é totalmente diferente do processo de
significação do texto falado. Tanto em um como no
outro, os produtores utilizam uma multiplicidade de
recursos além das simples palavras que compõem as
estruturas. Acredita-se que o produtor desenvolve
estratégias para o processamento do texto. No intuito de levantar subsídios tanto para a produção quanPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 28-35, jan./jun. 2002
to para a interpretação de textos, procuraremos investigar tais pistas.
2. O processamento
discursivo e as estratégias
interacionais
Relações entre informações textualmente expressas e acontecimentos pressupostos como partilhados podem ser estabelecidas por meio de estratégias de “sinalização” textual, em que o locutor, por
ocasião do processamento textual, procura levar o
interlocutor a recorrer ao contexto sócio-cognitivo
(situação comunicativa, intertextualidade etc).
Para MARCUSCHI (1992 e 1994), a utilização de determinados recursos lingüísticos funciona
também como índices de implicitude, em que tais
elementos levam à exploração do contexto. Entre
eles, estão: 1) expressões nominais definidas; 2)
encadeamento entre enunciados sem conectores
explícitos, substituídos apenas por sinais de pontuação; e, 3) elementos anafóricos e dêiticos.
Segundo o autor, as estratégias interacionais podem ser agrupadas em duas grandes direções: a)
intertextualidade (quando implícita, sem citação
expressa da fonte, em que cabe ao interlocutor uma
busca na memória, para a identificação do
intertexto); e, b) tópico discursivo (indicação cla29
ra do tópico discursivo, tais
mentos em uma dada situação coA mudança de código
como títulos, subtítulos,
municativa. Entre tais recursos,
(ou de registro) para o
marcadores discursivos, anúnvamos estudar a reformulação2,
outro
no
decorrer
de
um
cios, convites). Nessa ótica,
a topicalização3, o uso de pamesmo
discurso
é
um
enquanto os demais modelos
rênteses4 e a repetição5, que são
recurso que os falantes
cognitivos controlam os conteúmarcas lingüísticos que o locutor
dos semânticos do texto, o que
utiliza em determinados enunciautilizam para marcar a
está sendo ou será dito, os moimportância da entidade dos, quase sempre a passagens
delos de contexto controlam o
do texto que acabaram de ser dique
constitui
o
tópico
como, a maneira como os
tas ou que serão ditas a seguir,
discursivo.
interlocutores vão construindo
mas às vezes também que estão
sua informação em função do
sendo ditas, numa referência à incontexto em que a interação se desenvolve.
formação a ser repassada e que serão estudadas.
Nossas orientações teóricas partem de NETambém a forma agora veicula, juntamente
VES (1999:39) que afirma que em toda a comcom o tempo presente do verbo, uma relação de
plexidade a que se liga a atividade de estruturação
proximidade temporal do fato evocado com a fala
dos enunciados pelos falantes, numa situação codo locutor, no entanto, em nosso dados, essa formunicativa concreta, “surge a questão de que há
ma apresenta variação de abrangência6.
uma margem ampla de liberdade organizaA mudança de código (ou de registro) para
cional, susceptível a múltiplas pressões atrelao outro no decorrer de um mesmo discurso é um
das à necessidade e ao desejo de sucesso na
recurso que os falantes utilizam para marcar a iminteração, o que se equilibra com as restrições
portância da entidade que constitui o tópico
internas ao sistema.” Inspirada nas lições do
discursivo. Nos nossos dados, notadamente, esse
funcionalismo, a autora postula que, a partir de
recurso opera quando o locutor entende que seu
centros categoriais (ou núcleos nocionais), a grainterlocutor não está dando a devida importância
mática é flexível porque é ajustável. Na verdaou o devido respeito a algo e, então, mobiliza uma
de, a idéia é a de que a gramática se molda por
cobrança disso em relação ao outro.
acomodação, sob pressões de natureza
Eis alguns implícitos possíveis dessa estratégia:
discursiva1.
(a) dê importância maior a tal elemento e não
Muitos itens lexicais apresentam traços em seu
a outro ou; (b) dê importância ao que vou disignificado ou têm funções dentro do discurso que
zer agora, ou (c) o que eu disse, estou dizendo
permitem utilizá-los para fazer referenciação a eleou vou dizer, por alguma razão, é importante
1
Diante disso, o ponto de vista semântico é articulado a partir da configuração de diferentes esferas nas quais os diferentes itens
atuam: esfera dos participantes, esfera das relações e processos, esfera dos circunstantes.
2
A reformulação ocorre quando, após utilizar uma alternativa de formulação, o locutor recorre, por razões diversas, a outra
alternativa de formulação, isto é, quando há um problema na formulação, detectado pelo próprio locutor, dando origem a paráfrases,
correções e algumas repetições (KOCH & SILVA, 1996:381).
3
Termo usado, inicialmente, na sintaxe gerativa para indicar uma transformação que transpõe um constituinte no meio ou final da
cadeia para a posição inicial. Também ocorre quando um constituinte se desloca para a frente da sentença, para funcionar como tópico
(CRYSTAL, 1988).
4
Os parênteses são vistos como um dos recursos pelo quais os interlocutores articulam o texto falado, manifestando as posições que
assumem na situação de enunciação e o envolvimento com a situação discursiva. Há quatro grandes classes de parênteses que envolvem
fatores discursivos: a) a construção tópica do texto; b) o locutor; c) o interlocutor; d) a situação discursiva (JUBRAN, 1999).
5
Estratégia de formulação textual, a repetição assume um variado conjunto de funções: contribui para a organização discursiva, a
monitoração da coerência textual e a organização tópica e auxilia nas atividades interativas (MARCUSCHI, 1992).
6
O tempo de referência estabelecido por agora indica “um parâmetro situacional que engata o enunciado (proposição) com as
circunstâncias da enunciação, ora promovendo a abertura do tópico, ora o seu encaminhamento, na introdução de argumentos”
(NEVES, 2000:259).
30
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para mim ou considero-o imrado, a partir do qual L 1 e L 2
Tanto
nos
enunciados
portante: para as idéias que esvão construindo um saber que
da língua falada como
tou apresentando e/ou: para a
mobiliza conteúdos teóricoconclusão a que quero que
metodológicos e experiências
nos da escrita
você chegue e/ou; para a
acumuladas no processo de enconstrói-se uma teia
interação que está ocorrendo
sino, numa atualização e reconsreferencial por
entre nós: (d) por isso, você
trução permanente de formação
introdução
e
deve levar isto em conta; (e)
profissional.
manutenção de
ou, não dê importância a este
Na fala de L 1 e de L 2 opeelemento ou ao que estou diram, no processamento de
referentes textuais.
zendo agora.
referenciação, a catáfora e outras
Efetivamente esse recurso
sinalizações para a frente que
opera quando o sujeito locutor entende que precisa monitoram bem o andamento oral da elocução, procolocar em proeminência algum aspecto de sua fala, jetando configurações de sentido que deverão ponna posição de agente legitimado pela instituição no tuar a cadeia que se sucede no desenvolver do temqual está inserido (TRAVAGLIA, 1999). O que ele po. Desse modo, para NEVES (2001), não são “ercoloca em primeiro plano normalmente é visto como ros” – como muitos querem – tais usos são estratégias
mais relevante no desenvolvimento do tópico do que (L 2: (...) eu procuro explicar primeiro por que dele
o que coloca em segundo plano7.
(o aluno) estar onde está o que é que ele vai falar
pra quem ele vai falar porque que ele vai falar né?
3. O saber de L 1 e de L 2 no A gente sempre aprende assim).
A reformulação ocorre, de modo geral, quanprocesso da referenciação
do, após utilizar uma alternativa de formulação, o
A partir de algumas estratégias que KOCH professor recorre a outra alternativa de formulação.
(1999) denomina de balanceamento entre im- É possível verificar a ênfase dada às atividades
plícito e explícito, vamos proceder à análise de metalingüísticas por L 1: o que são tempos veralguns exemplos das principais marcas ou pistas bais, o que é um texto descritivo, o que é um
de implicitude que orientam os interlocutores na slogan. Soma-se a isso a realização de uma ativiconstrução dos sentidos do discurso pedagógico. dade gramatical, com exercícios que destacam os
Para esse fim, trabalhamos com a fala, gravando e tempos verbais, que vem corroborar a função do
transcrevendo as aulas de leitura e de produção ensino de informar/ensinar (atividade cognitiva).
Diante disso, pode-se dizer que, em sala de
de texto em Língua Materna (LM), no ensino funaula,
L 1 mostra suas crenças, e constrói sua pródamental, com alunos (ALS) de escola pública,
em que procuramos analisar a situação comunica- pria identidade e imagem, por meio de um contiva, via sala de aula, de dois professores, deno- teúdo cujas aulas ficam polarizadas entre a explicação de regras/exercícios de gramática e a cópia
minados L 1 e L 2.
Tanto nos enunciados da língua falada como nos dos itens do Livro Didático (LD). A observação
da escrita constrói-se uma teia referencial por in- dos eventos de sala de aula de L 1 confirma uma
trodução e manutenção de referentes textuais, numa prática de ensino que, embora inclua textos, não
rede que, distribuindo os objetos do discurso, or- pode ser considerada efetivamente “ensino de leiganiza informação e conduz argumentação, possi- tura”, uma vez que a narrativa foi elaborada espebilitando adequada interpretação da intenção co- cificamente para ensinar os verbos regulares. Essa
municativa na fala. O processo discursivo é instau- visão inatista8 tem seu lugar teórico na teoria
7
Apoiamos-nos nas postulações teóricas de que o interacional é inerente ao lingüístico e de que a interação verbal resulta do exercício
de uma competência comunicativa, que se concretiza por meio de discursos.
8
Segundo o inatismo, o rápido e complexo desenvolvimento da competência gramatical da criança só pode ser explicado pela hipótese
de que ela nasceu com um conhecimento inato de pelo menos alguns princípios estruturais universais da linguagem humana.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 28-35, jan./jun. 2002
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racionalista do conhecimento,
se o verbo é da segunda termiEsses enunciados são
que postula que todo conhecitípicos da linguagem fala- nação ou da terceira por exemmento é conseqüência da apliplo se eu pego aí o verbo esda,
não
porque
sejam
mal
cação de modelos mentais inacrever (tópico)... olha só... que
formulados, mas porque a depois eu posso dar um exercítos ao meio ambiente, que o aluno constrói sozinho a sua com- abertura da sentença com cio nesse estilo aqui... então
petência lingüística já que foca- o tema (...) cria um enqua- presta atenção porque a expliliza apenas a forma
cação é tudo (subtópico) (grifos
dre dentro do qual vai
Nos dados coletados, parenossos).
poder
manter-se
engajado
ce-nos que a topicalização posPode-se, ainda, verificar na
o interlocutor (...)
sui motivação textual importante
fala desse professor que, depois
quando o L 1 quer focalizar a atide mobilizar o tópico gramatical,
vidade com exercícios, numa tarefa mecânica de em seguida ele utiliza os parênteses para caracterilistar adjetivos, verbos etc.:
zar o papel de “cobrador de tarefas”, o subtópico.
L 1: Então pessoal... é exercícios... ativida- Isso provoca o efeito de sentido de uma situação
des gramaticais.. relativos a Gramática... a de denúncia, (L 2: olha só... que depois eu posso
gente já viu o que é adjetivo e substantivo dar um exercício nesse estilo aqui... então presné? Começo do ano vai funcionar como uma ta atenção), em que o professor encara como obrirevisão... então o exercício... ele diz assim... re- gação o que foi delegado aos alunos como tarefa.
tire alguns adjetivos presentes... (grifos nos- Trata-se de L 2 conferir, para ele se certificar, se os
sos).
deveres estão sendo realizados: mais um tipo de
L 1 busca trazer o seu aluno para o seu discur- controle e poder por parte do professor.
so, numa tentativa de torná-lo presente mais efetiA repetição é um recurso argumentativo/
vamente, já que, geralmente, o próprio aluno não discursivo (tanto da modalidade oral como da esse manifesta em quase nenhuma situação, durante crita), com finalidades diferentes, com resoluções
as aulas de interpretação do texto. L 1 procura con- diferentes, com efeitos de sentido diferentes e é
trolar as atividades desenvolvidas por meio de exer- nessa escolha que o falante obtém maior ou mecícios do LD, enfatizando o cumprimento das tare- nor adequação (MARCUSCHI, 1992). No exemfas, atividades, trabalhos, leituras, enfim, tudo por plo, esse recurso é uma espécie de identificação
ele determinado9. Esses enunciados são típicos da do procedimento de L 2, de sinalizar aos alunos
linguagem falada, não porque sejam mal formula- que toda narrativa está permeada de verbos e que
dos, mas porque a abertura da sentença com o tema, estes constituem elementos fundamentais no
enunciado com acento marcado (no caso, o exer- processamento lingüístico:
cício), cria um enquadre dentro do qual vai poder
L 2 – O coveiro então gritou desesperado...
manter-se engajado o interlocutor, na subseqüência
tire-me daqui por favor... estou com frio terdo fluxo comunicativo, que por ser oral é fugaz.
rível... mas coitado... condoeu-se o bêbado...
Os parênteses, recursos sintáticos do protem toda razão de estar com frio... alguém
cessamento discursivo, têm sempre em seu signifitirou a terra de cima de você... meu pobre
cado a marcação do tópico/subtópico em desenmortinho... e pegando a pá encheu de terra
volvimento (JUBRAN, 1999), no caso de L 2 a
e... pôs-se a cobri-lo cuidadosamente... enterminação verbal e os novos conceitos, e, em setão... vocês observaram que tem mu:::itos verguida, a informação sobre a necessidade do aluno
bos? Mu:::itos... muitos muitos muitos... certo?
prestar atenção:
(grifos nossos).
L 2 – Vogal temática indica a terminação do
Fica evidente, também, que L 2 crê que o aluno
verbo... se o verbo é da primeira terminação... não aprendeu e, querendo levá-lo ao entendimen-
9
São comuns esses temas marcados, situados na cabeça do enunciado que criam, na elocução oral, molduras conceptuais préoferecidas, fortemente orientadoras do todo da proposição colocada em seqüência (NEVES, 2000).
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to do que ele, professor, deseALS: Ele usa... quando ele fala
A mudança de código
ja e tem como correto, repete,
que uma criança... passando
surge como um recurso
continuadamente, o que foi
mal... com fome.. descalça.. em
que
os
falantes
dito. A repetição constitui esestado horrível... quando vai peutilizam como pistas
tratégia freqüente em aulas de
dir uma esmola...
L 1 e de L 2; os professores
no que se refere ao
L 2 : Isso... agora (abertura do
aparentam entender, ainda, que
tópico) gente tem uma palainterlocutor ou ao
repetir é uma estratégia utilizavra... agora olha só... tem uma
conteúdo, à entidade
da para reforçar o seu saber, a
palavra aí... (encaminhamento
que
constitui
o
tópico
sua posição de professor. Ela
na introdução do argumento do
discursivo.
serve, ainda, para dar ênfase à
professor) ela usa determinada
quantidade de verbos que exispalavra... que normalmente a
tem na LP e ela pode ser associada à ênfase da
gente não usa (grifos nossos).
quantidade de conhecimento que o aluno deve
Além de agora direcionar a atenção sobre o que
ter.
L 2 está para dizer (“aí quem quiser saber o resto
Esse é mais um procedimento behaviorista10 da da história”), sua fala tem como referente a inforaprendizagem, em que o professor parte do pres- mação dada em um ponto anterior da fala (“se eles
suposto de que o aluno é um indivíduo que aprende comeram pra engordar... se eles conseguiram fupor meio de repetições para automatizar as estru- gir”). Essa sinalização explícita de cada etapa de
turas, devendo, portanto, seguir as regras do jogo desenvolvimento do assunto atende a dados
estabelecido pelo professor. São descartados os situacionais de comunicação em sala de aula, com
usos da língua com autenticidade pelos sujeitos, em finalidade didática:
que o aluno aprende forma (regularidades formais
L 1: Agora... (proposição 1) se eles comeda língua), função (ações comunicativas) e estratéram pra engordar... (proposição 2) se eles
gias (modos de negociar por meio da linguagem para
conseguiram fugir... (proposição 3) se a bruatingir metas).
xa os comeu.. aí quem quiser saber o resto
Também a forma agora veicula, com o tempo
da história... tem que ler o livro... (.encamipresente do verbo, uma relação de proximidade temnhamento) gente... presta atenção... que que
poral do fato evocado com a fala do professor. NEeu estou fazendo? Eu estou dando um
VES (2000: 259) afirma que o tempo de referência
exemplo... de como é contar a história do
estabelecido por agora indica “um parâmetro
livro.. e você pega só o que é principal... e
situacional que engata o enunciado (proposição)
conta o tema só (orientação didática) (grifos
com as circunstâncias da enunciação, ora pronossos).
movendo a abertura do tópico, ora o seu encaA mudança de código surge como um recurso
minhamento, na introdução de argumentos” para
que os falantes utilizam como pistas no que se
a interpretação do texto em aula de leitura, a partir
refere ao interlocutor ou ao conteúdo, à entidado diálogo a seguir:
de que constitui o tópico discursivo:
L 2 : Então ele usa... argumentos... pra exL 1 : (...) de repente se você está numa pior...
por o ponto de vista dele...agora... quais são
pra ver muito bem pra quem pede ajuda...
os argumentos que ele usa aí? (proposição
de repente... se você pede ajuda para alguém
do professor) Pra nós entendermos que ele é
que não está nem aí com você ou que está
a favor do ato de dar esmola... que que ele
pouco se lixando pra você...não se importa
usa? Quais são os argumentos?... fala Lúcom você.... você pode acabar de se afundar
cio (grifos nossos).
certo? (grifos nossos).
10
Em Lingüística, a influência dessa escola de psicologia ficou bastante marcada na obra de Bloomfield, em rigorosos procedimentos
de descoberta e no seu relato da significação em termos de estímulos observáveis e respostas feitas por participantes em situações
específicas e mecanicistas.
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Efetivamente esse recurso
sintáticos, semânticos e da estru(...) é visível a
opera quando o professor ententura textual), atingindo elementos
predominância da
de que seus alunos não estão
isolados ou tipos de elementos.
função informativa da
muito interessados na aula, e,
Independentemente do tipo de
linguagem, no discurso
para fixar a mensagem do texto
recurso utilizado, ele é sempre de
pedagógico,
na
medida
que eles precisam interpretar, L
caráter discursivo e tem sua ori1 passa de um registro informal
gem e resultado na interação.
em que o professor,
(gíria, que está pouco se lixansimplesmente, caractedo pra você) para outro mais
4. Considerações
riza a informação (...) e
formal em que procura utilizar
repassa conteúdos (...)
finais
termos que sejam mais informativos dentro do processo de
Ao estudar as estratégias de
referenciação.11 Nesse recorte, a interação do pro- balanceamento entre implícito e explícito, artifessor com os alunos é dificultada pelo fato de os culando exemplos que forneceram pistas de
aprendizes estarem, em sua maioria, dispersos, apa- implicitude, verificamos que as qualificações que o
rentemente desinteressados, conversando muito ou locutor se atribui (ou a referência sobre as suas rede cabeça baixa nas carteiras, alheios ao que o pro- lações com o que diz) permitem a contextualização
fessor está tentando repassar.
das condições sob as quais se produzem sentidos –
Tal passagem revela a preocupação de L 1 com daí a dimensão interativa com foco no locutor. Nesse
a linguagem formal no entanto, sua fala é apenas sentido, L 1 e L 2 buscam, de diversas formas, foinstrucional, e está muito relacionada com a mera calizar a atenção dos alunos em situações ocorrinecessidade de levar os alunos a realizar a tarefa da das em aulas passadas, no intuito de ancorar a inescrita. Elas fazem parte do conhecimento formação nova na informação dada. Então, a parritualístico que compreende o tipo de conhecimen- tir de instruções, ordens, eles procuram articular o
to que o aluno tem para realizar certa tarefa mesmo que vão dizer com aquilo que já foi dito, ou simsem ter o conhecimento desse princípio plesmente, focalizar o tratamento que vão dar a
(EDWARDS & MERCER, 1987).
algo em sua fala.
Isso leva-nos a considerar que muitas vezes o
Diante de nossa análise, é visível a predominânprofessor parece ter consciência de que usou re- cia da função informativa da linguagem, no discurso
gistro inadequado para a situação comunicativa de pedagógico, na medida em que o professor, simsala de aula. Seria papel, então, do professor levar plesmente, caracteriza a informação que veio antes
o aluno a tomar consciência, a partir da análise da ou que vem depois e repassa conteúdos por meio
sua própria fala, da tradução parcial entre registros de muitos dados novos para os alunos. Essa função
que ele opera e mostrar, ainda, que quanto mais está estreitamente ligada ao conhecimento cognitivo
formal for o registro pretendido, mais se deve fazer que o professor tem do mundo exterior, dos acona tradução total, evitando-se as traduções parciais. tecimentos objetivamente observáveis do mundo à
Julgamos as estratégias do processamento da sua volta, numa visão inatista/behaviorista, preocureferenciação um fenômeno importante na consti- pado em reproduzir o que foi lido e desconsiderando
tuição da fala pedagógica, na construção e na or- as questões sócio-históricas do ensino de LM.
ganização das atividades escolares, tanto que perAs interpretações das manifestações lingüísticas
passa outros fatos da língua em vários planos e ní- do professor, a partir do estudo da referenciação
veis (recursos fonológicos, morfológicos, lexicais, discursiva, deixam transparecer um saber embasado
11
L 1 emprega, também, o verbo ter no sentido de haver. Em seguida, reformula seu enunciado com o verbo haver, efetuando uma
correção. Nesse caso, a preocupação de L 1 em empregar a norma culta fica clara, já que ele parece ter consciência de quem é, do lugar
que ocupa na sala de aula. O enfoque é discursivo e L 1 procura preservar sua imagem diante dos alunos, neutralizando imediatamente
o que foi dito anteriormente (Olha... teve uma aula... a semana passada... e nesse dia... houve aula de redação... e alguns de vocês
não vieram... poucos alunos vieram... nesse dia eu tinha passado frase em construção... agora eu quero que...).
34
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 28-35, jan./jun. 2002
em valores e crenças que determinam suas decisões, atitudes e falas pedagógicas, com instância,
principalmente, nos fatos de caráter informacional/
cognitivo . O professor aponta, na construção social da realidade escolar, determinados elementos
como importantes para mobilizar idéias e conteúdos que ele precisa abordar na sala de aula do ensino fundamental. A partir das estratégias articuladas por L 1 e L 2, qualquer exame do modelo de
interação verbal que caracteriza as relações humanas evidencia um quadro balanceado, completo e
sem lacunas. Quem fala está inserido numa complexa engrenagem dentro da qual os recursos
lingüísticos constituem apenas um dado, determi-
nados que são por um mecanismo cognitivamente
ativado, espacial/temporalmente ancorado, e socialmente inserido (NEVES, 2001).
Vale dizer que tudo isso é automático: o professor/falante se engrena nesse mecanismo ao ativar o
funcionamento da linguagem. Suas expressões lingüísticas são decorrência dessa interação: elas são
determinadas basicamente pela próprias intenções
motivadoras do ato lingüístico e condicionadas pela
inserção social, real e concreta dos eventos. Em
suma, a referenciação é definida no processamento
discursivo, na interação, uma vez que a linguagem
não é um dado biológico, mas sim construída socialmente.
Referências Bibliográficas
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(orgs.) Gramática do Português Falado. 1996: 340: 379.
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VANDIJK, T. A Cognitive context models (mímeo). 1995.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 28-35, jan./jun. 2002
35
Este trabalho apresenta uma visão geral dos resultados
de uma pesquisa realizada como Dissertação de
Mestrado (2001), a respeito do vocabulário dos estudantes universitários, demonstrando que as escolhas dos
itens lexicais revelam não só aspectos da competência
lingüística da população pesquisada, mas também a visão de mundo do grupo. Analisando-se variáveis
sociolingüísticas, constatam-se diferenças significativas,
particularmente quando associadas à escolaridade.
Palavras-chave:
Vocabulário, Estudantes Universitários,
Palavras, Freqüência.
This paper presents a general view of the results of a
research, which was done interns of a master
disssertation (2001), about university students’
vocabulary. These results show that their lexical
choices reveal aspects of their linguistic competence
and their vision of the world. The data were analyzed
according to some sociolinguistic variables and
demonstrated significant differences, specially when
related to formal education.
Keywords:
Vocabulary, University Students,
Words, Frequency.
36
*
Pedagoga, Professora
de Lingüística e de
Língua Portuguesa e
mestre em Letras
(área de concentração
em Estudos
Lingüísticos) na
Universidade
Federal de Mato
Grosso do Sul –
UFMS
(defesa em 04/12/
2001).
O VOCABULÁRIO DOS
ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS
UM ESTUDO COM BASE
EM REDAÇÕES DE VESTIBULAR
Roseli Imbernom do Nascimento*
1. Introdução
Os refinamentos tecnológicos da área de informática têm propiciado significativo avanço nos estudos
contemporâneos acerca do léxico, sobretudo naqueles que envolvem grandes bases de dados lingüísticos.
Segundo Biderman, uma série de previsões e de
constatações sobre o funcionamento da língua e sobre os elementos gramaticais presentes nos discursos orais ou escritos também podem ser feitas por
meio da léxico-estatística. Pesquisas dessa espécie
comprovam ainda que “o quantitativo é uma das propriedades do vocabulário” e, por conseguinte, que “a
freqüência é uma característica típica da palavra”.
De certa forma, desvenda-se a norma lexical vigente, que “nada mais é que a média dos usos freqüentes das palavras que são aceitas pela comunidade de falantes” (Cf. Biderman, 1998:162).
Além dos dados objetivos, é possível também observar por meio de procedimentos estatísticos que as
escolhas de determinados itens lexicais indicam a
competência lingüística dos falantes e, ainda, revelam a sua visão de mundo. O fato de serem “escolhidas” determinadas palavras – e não outras – demonstra uma dada realidade vivida por um determinado
grupo de indivíduos, uma vez que as palavras são
capazes de testemunhar a sua história e de sintetizar
o seu pensamento.
Porém, como a língua não pode ser diretamente
observável, é preciso “tentar apreender e isolar, atraPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002
vés de uma amostragem, o léxico comum de uma
comunidade lingüística”, para verificação desse uso
e aferição dessa média (Cf. Português Fundamental, 1987, vol. II, tomo 1, p. 314).
Nessa esteira, realizou-se como dissertação de
mestrado (2001) uma pesquisa lexicográfica, estudando uma amostragem do vocabulário de
ingressantes universitários, registrado em 450 redações de vestibular. Trata-se de estudantes de duas
instituições de ensino superior do interior do Estado
de São Paulo – uma pública (UNICAMP/Campinas,
170 redações do vestibular de 1999) e uma particular
(Faculdades Toledo/Araçatuba, 280 redações do vestibular de 2000). Para os dois vestibulares, o tema da
redação foi idêntico, tratando da comemoração dos
500 anos do Brasil.
A escolha desse objeto de investigação baseou-se,
fundamentalmente, em conhecimentos empíricos decorrentes do nosso contato direto com estudantes de Ensino Médio, e da nossa participação em banca de correção de redações de vestibular. Pelos trabalhos com o
vocabulário, no âmbito do ensino, concluímos – frisese, empiricamente – que o vocabulário dos estudantes,
na fase de ingresso na Universidade, é demasiado restrito, e que nem os professores, nem os livros (ou manuais) didáticos dedicam tempo e espaço adequados para
um trabalho sistemático, que vise ao enriquecimento da
competência vocabular dos estudantes.
Os dados apurados mostraram-se bastante semelhantes aos obtidos por outros pesquisadores do léxi37
co, especialmente aos alcançados
Este trabalho objetiva apresenNo estudo da variável que
por Biderman, por meios
tar uma visão geral dos dados da
separa os dois grupos de
computacionais, na elaboração do
pesquisa, por meio de uma sínteestudantes – Escola Públi- se do Capítulo III (Análise dos
seu Dicionário de Freqüências do léxico do português conca e Escola Particular,
Resultados). Na seqüência, são
1
temporâneo . Nos dois trabaexpostos alguns gráficos, quadros
constata-se que o
lhos, observa-se que um pequee tabelas, que oferecem uma
vocabulário daqueles que
no grupo de palavras – pouco
amostra da distribuição geral da
se
preparam
para
concormais de 300 – é usado
freqüência das palavras; do
reiteradamente, figurando no topo rer a uma vaga na Universi- cotejamento entre as palavras
das listas de freqüência. Esse femais freqüentes no vocabulário
dade Pública é superior.
nômeno confirma as declarações
dos estudantes e as mais freqüende Biderman (1998: 178-179) de
tes no Dicionário de Freqüênque, “por enorme que seja o léxico de uma língua, é cias; e, ainda, do estudo das variáveis socioreduzido o repertório efetivamente utilizado pelos lingüísticas.
falantes, até mesmo na língua escrita, que é a variante da língua que se serve de um vocabulário mais
rico e mais variado”.
O estudo do vocabulário trata de um duplo aspecEm contrapartida, existem também diferenças
to
da
linguagem – intra e extralingüístico – e, por
“qualitativas”, ligadas às condições sócio-econômico-culturais dos falantes, que apenas podem ser ana- isso, exige procedimentos claros e adequados quanto
lisadas à luz das orientações da Sociolingüística. Essa à definição da unidade de base lexical. O critério da
tendência é bem marcada quando se trata de varian- separatibilidade, ou seja, o da “palavra gráfica”, nortes associadas à escolaridade. No estudo da variá- malmente é considerado em estatística lexical, tendo
vel que separa os dois grupos de estudantes – Escola sido, pois, também adotado para tratamento do corpus
Pública e Escola Particular, constata-se que o voca- da pesquisa. Essa opção determinou a exclusão de
bulário daqueles que se preparam para concorrer a toda e qualquer palavra composta por hífen, ou de
uma vaga na Universidade Pública é superior. Não locução gramatical e lexical, ou de quaisquer lexias
há, entretanto, outras variações significativas, nem complexas. Formas combinadas ou contraídas tammesmo no que se refere às diversas camadas sócio- bém foram tratadas como uma só palavra. Frise-se,
portanto, que o levantamento e a contagem das unieconômicas.
dades lexicais foram feitos com base nas “palavras
Esses resultados demonstram a relação entre
gráficas”, ou “formas flexionadas”, efetivamente realíngua e sociedade, ou seja, o imbricamento entre
lizadas nos textos.
fenômenos lingüísticos e aspectos sociopolíticos, e
Dois paradigmas foram considerados para a
ainda denunciam problemas de desigualdades deavaliação das palavras de maior ocorrência no
correntes da má qualidade do ensino de Língua Porcorpus. O primeiro foi o das 100 palavras mais
tuguesa, até o Ensino Médio, sobretudo na Escola
freqüentes, a exemplo de como procedeu John C.
Pública. Verifica-se, portanto, que esse tipo de pesDuncan Jr, em 1972, nos Estados Unidos, na elaquisa no âmbito do vocabulário é de particular inboração do dicionário de freqüências do português
teresse para o ensino, pois somente com o conhe(Biderman, 1978: 255-272); e o segundo foi o das
cimento sobre quais vocábulos merecem maior
359 palavras de F40 (freqüência 40) – limiar instiatenção, ou sobre quais fatores desencadeiam setuído pelos lingüistas responsáveis pela elaboração
melhanças e/ou dessemelhanças com relação ao
do VPF 2 .
uso, é que se pode “evitar o empirismo na escolha
Ressalte-se a importante “abonação” que o Dido vocabulário para fins didáticos” (Biderman,
cionário de Freqüências, de Biderman, conce1998: 179).
de aos resultados da pesquisa, pois, quando se
2. Perspectiva teórica
1
Esse dicionário ainda não foi publicado, mas os resultados da pesquisa da qual ele se originou foram divulgados por sua autora, Maria
Tereza Camargo Biderman, em artigo publicado pela Revista Alfa, n. 42, n. esp., 1998, p. 161-181.
2
Vocabulário do Português Fundamental.
38
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002
faz uma correlação dos dados,
Frise-se, portanto, que
constata-se que mais de 85%
o levantamento e a
das palavras mais freqüentes do
contagem das
co rp us da pesquis a est ão
inseridas entre as mais freqüenunidades lexicais foram
3
tes desse Dicionário . Esse fefeitos com base nas
nômeno aponta para uma pos"palavras gráficas", ou
sível tendência de uso dessas
"formas flexionadas",
palavras em qualquer texto, e
Como já foi mencionado, os reindica que, talvez, essas palaefetivamente
sultados apurados assemelham-se
vras sejam capazes de sintetibastante aos dados divulgados por
realizadas nos textos.
zar o pensamento contemporâBiderman (1998a, p.161-181), com
neo desses jovens acadêmicos.
relação ao Dicionário de FrePara detectar as dessemelhanças quantitativas qüências do léxico do português contemporâneo
e qualitativas entre as Instituições Particular e Pú- (DIF). Esse fato corrobora as idéias de alguns teóricos
blica foram analisadas três variáveis sociolin- sobre as estruturas lexicais seguirem uma certa regulagüísticas: formação escolar; sexo; nível sócio- ridade, até mesmo na distribuição das letras do alfabeeconômico. Foram feitos também diversos cruza- to. Vejamos esse fenômeno por meio do gráfico 1:
mentos dos dados obtidos nessas variáveis, e um
fato que se destacou nesse estudo diz respeito à
independência de algumas var iáveis e à
interdependência de outras. Conforme já se disse,
a escolaridade se suplanta às demais variáveis,
independentemente de quaisquer outros fatores externos.
3.1 - Visão geral do
vocabulário
e da freqüência
assinalada
no corpus
3. Análise dos
Resultados
Para fins didáticos, dividimos a apresentação dos
dados em três partes distintas, seguindo a disposição do trabalho original, para expor sucintamente:
em 2.1, a visão geral do vocabulário e da freqüência assinalada no corpus; em 2.2, o
cotejamento entre as palavras do vocabulário
dos estudantes universitários (daqui para frente
VEU) e as do Dicionário de Freqüências do léxico do português contemporâneo (daqui para
frente DIF); em 2.3, o estudo das variáveis sociolingüísticas.
Para a análise do aspecto qualitativo do vocabulário, utilizamos essencialmente dois parâmetros: o
de análise da adequação – ou inadequação – gramatical dos itens lexicais à norma culta (escrita), e o de
análise do conteúdo semântico das palavras mais freqüentes.
Gráfico 1 - Distribuição das letras do alfabeto
Pode-se verificar pelo gráfico que a letra C, com
12%, ocupa o primeiro lugar em número de unidades; a A, o segundo, com 11%; em terceiro, a P com
10%; empatadas em quarto, a D e a E com 9%; e
em quinto, a I com 7%. As letras M, R e S, que estão
empatadas com 6%, e a letra F, que tem 4%, registram o número mais próximo da média. Depois, há
11 letras (B, G, H, J, L, N, O, Q, T, U, V) registrando
um índice baixo de unidades (1 a 3%) e, por fim, as
letras X e Z, com um número insignificante de palavras.
Com relação à freqüência, não fizemos a
quantificação por letra do alfabeto, mas por intervalo, como mostra a tabela 1, que segue:
3
Segundo Biderman (1998: 161), para a elaboração desse dicionário, foi utilizada uma base textual de 5 milhões de palavras do
português do Brasil – língua escrita –, presentes em cinco modalidades textuais (literatura romanesca, dramática, técnico-científica,
jornalística e oratória).
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002
39
Tabela 1 – Distribuição geral das palavras
Essa tabela evidencia o fenômeno da alta concentração da freqüência sobre um pequeno número
de unidades léxicas, a exemplo dos resultados de pesquisas léxico-estatísticas4 que têm sido divulgadas atualmente. Tratando-se de vocabulário escrito, isso denota uma possível repetição exagerada de algumas
formas, particularmente entre as 100 primeiras, que
somam mais da metade do corpus. O índice de 51,3%
de freqüência concentrada sobre menos de 1% do
total de unidades léxicas é bastante semelhante àquele
obtido por Duncan, em 1972, quando elaborou o primeiro dicionário de freqüência do português5 e constatou que as 100 primeiras palavras, referentes a 2%
do total de unidades, registraram 61,98% da freqüência
total. O percentual de 66,7% de freqüência acumulada em F>=40 (359 primeiras unidades) é também
alto, porém, bem mais equilibrado comparando-se às
100 primeiras e, por isso, parece confirmar o limiar
de freqüência 40 apontado como o número ideal, ou
representativo da maior tendência de uso do vocabulário. Todos os demais intervalos de freqüência inferiores a F>=40 reúnem um montante de freqüência
bem inferior, conforme se observa na tabela 1 exposta, corroborando, portanto, essa nossa constatação
sobre a credibilidade do limiar de freqüência 40. O
gráfico 2 colabora para ilustrar essa distribuição desigual da freqüência:
Gráfico 2 – Distribuição da freqüência
As palavras de F>=20<40 (freqüência maior ou
igual a 20 e menor que 40) formam um conjunto bem
restrito em termos de unidades léxicas e, por isso, não
somam uma freqüência elevada; elas não estão incluídas no limiar de freqüência 40 e, dessa forma, não se
caracterizam como palavras relevantes do ponto de
vista da estatística léxica. Todavia, consideramo-las
como palavras de alta freqüência e, portanto, também
significativas do ponto de vista qualitativo. Ademais,
entendemos também que F>=20<40 abriga as palavras de alta freqüência porque, em termos estatísticos, a freqüência “média” situa-se em F>=10<206.
Seguindo essa mesma ordem decrescente dos registros do vocabulário, constatamos um fenômeno
oposto, qual seja: à medida que a freqüência diminui,
cresce acentuadamente o número de unidades léxicas.
4
Segundo informações do Português Fundamental e do Dicionário de Freqüências do léxico português contemporâneo, elaborado
por Biderman no Brasil, o mesmo fenômeno ocorre tanto no vocabulário escrito quanto no falado.
5
A Frequency Dictionary of Portuguese Words (FDPW), de John C. Duncan Jr. PhD. Dissertation, Standford University, 1972, citado
por Biderman (1978, p. 265-272), selecionou 5.000 palavras que mais freqüentemente ocorreram num corpus de 500.000 palavras.
6
Obtivemos a média dividindo o valor total da freqüência (113.638) pelo número total de unidades (11.151).
40
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002
O comportamento das palavras que compõem o grupo de F>=2<10, bem como o dos vocábulos de F1, ou
dos 5.813 hapax legomena7 (palavras que ocorrem
uma só vez no corpus), comprova que, quanto mais
baixa for a freqüência, maior será o número de unidades léxicas. Vejamos este fato no gráfico 3:
Várias pesquisas lexicográficas comprovam que
o alto índice da freqüência deve-se, fundamentalmente, a algumas poucas palavras, sobretudo às cinco
primeiras. Fato semelhante ocorre no VEU, como
comprova a tabela 2 na seqüência:
Tabela 2 – As cinco palavras mais freqüentes
Gráfico 3 – Distribuição das unidades léxicas
Constata-se que a freqüência de 1 a 9 (F>=2<10 mais
hapax legomena) predomina em número de unidades
léxicas, eqüivalendo a 88,5% do total existente no corpus.
Como se vê, apenas cinco lexemas atingem 17% da
freqüência do corpus. Especialmente a soma das duas
mais freqüentes (8.652 ocorrências) é muito elevada,
confirmando o fenômeno do dequeísmo, ou tendência
contemporânea de uso do “de” (preposição) e do “que”
(pronome relativo), conforme declaram Paiva & Scherre
(1999, p. 206)8. Vejamos, na tabela 3, a lista das 100
primeiras, na ordem decrescente da freqüência:
Tabela 3 - As 100 primeiras palavras na ordem decrescente da freqüência
7
Denominação utilizada nos trabalhos de léxico-estatística, para as palavras de freqüência 1, ou de uma só ocorrência em todo o
corpus. Cf. Biderman, 1984 e 1998.
8
Nesse trabalho, as autoras analisam o uso variável de determinadas preposições em diferentes processos de regência verbal. A respeito do “de” e
do “que”, Paiva & Scherre (1999, p. 206) declaram: “a instabilidade do sistema preposicional fica evidente [...] na tendência à inserção da preposição
‘de’ em contextos em que não se prevê sua ocorrência – dequeísmo – [...] ou de sua queda em contextos onde é esperada – queísmo – [...].
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002
41
O quadro 1 adiante fornece uma amostra da distribuição dessas 100 palavras, de acordo com a cate-
goria instituída por Biderman, e ora considerada na
presente pesquisa:
Quadro 1 - As 100 palavras mais freqüentes distribuídas por categoria9
Com relação aos verbos, foi necessário fazer a
lematização para detectar que os cinco mais freqüentes no VEU são, na ordem: 1º: ser, 2º: ter, 3º: estar,
4º: poder e 5º: fazer 10.
Para fins de apresentação das 359 palavras de
F40 (freqüência igual ou superior a 40), utilizamos a
tradicional classificação por classes de palavras, tomando os seus valores virtuais e observando, na
medida do possível, o valor contextual predominante
em cada uma delas. Este foi o grupo das palavras
mais usadas, formadoras do núcleo do vocabulário
ora analisado. São as palavras essenciais para efeito
de análise do aspecto qualitativo a seguir11.
• Adjetivos (30): bom, brancos, brasileira, brasileiro, brasileiros, certo, cultural, descoberto, devido, diferente, diferentes, econômica, econômico, grande, grandes, importante, maior, melhor,
nacional, nativos, naturais, nova, novas, novo, pobre, pobres, possível, sociais, social, verdadeira.
• Advérbios (34): agora, ainda, além, antes, apenas, aqui, assim, atrás, através, atualmente, bem,
depois, enfim, então, fora, hoje, já, mais, menos,
muito, não, nunca, onde, principalmente, quando,
quanto, quase, realmente, sempre, sim, só, talvez,
também, tão.
• Artigos (6): a, as, o, os, um, uma.
• Conjunções (12): apesar, como, durante, e, enquanto, mas, nem, ou, pois, porém, porque, portanto.
• Contrações (16): à, ao, aos, às, da, das, do,
dos, na, nas, no, num, pela, pelas, pelo, pelos.
• Numeral (3): primeiro, primeiros, quinhentos.
• Preposições (11): até, com, contra, de, desde,
em, entre, para, por, sem, sobre (não incluída a
preposição a = homônima).
• Pronomes (64): algumas, alguns, cada, dessa,
desse, desta, deste, disso, ele, eles, essa, essas,
esse, esses, esta, este, estes, eu, isso, isto, lhe, lo,
me, mesmo, meu, minha, muita, muitas, muitos,
nada, neste, nós, nos, nossa, nossas, nosso, nossos, outra, outras, outro, outros, pouco, poucos,
própria, qual, qualquer, que, quem, se, seu, seus,
sua, suas, tal, tantas, tanto, toda, todas, todo, todos, tudo, várias, vários, você.
9
Já se assinalou a inclusão de algumas formas verbais na categoria instrumental, em virtude de serem verbos cujo caráter é essencialmente funcional. São eles: ser, ter, estar, poder e haver (nessa ordem de freqüência). Quanto aos homônimos, optamos por incluí-los
na categoria em que os mesmos registraram maior freqüência. Cumpre lembrar que a homonímia torna praticamente impossível a tarefa
de classificar e quantificar, com precisão, a freqüência de algumas unidades dentro do contexto.
10
Cumpre informar que esses verbos também figuram entre os 20 mais freqüentes, tanto do Português Fundamental quanto do DIF.
11
Excluímos as interjeições, conforme já se mencionou.
42
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• Substantivos (128): amigo, ano, anos, Brasil,
busca, Cabral, cara, características, carta, certeza,
chegada, cientistas, coisa, coisas, colônia, colonização, colonizadores, comemoração, condições, continente, corrupção, costumes, crânio, cultura, culturas, descoberta, descobertas, descobrimento, desemprego, desenvolvimento, dia, dias, dinheiro, distribuição, economia, educação, época, escolas, esperança, estado, estrangeiros, europeus, exemplo, existência, exploração, falta, fato, fatos, fome, forma, futuro, gente, governantes, governo, habitantes, história,
homem, homens, identidade, imagem, independência, índio, índios, início, interesses, lado, lugar, luta,
Luzia, maioria, manchetes, maneira, mãos, meio,
milênio, milhões, miscigenação, miséria, mistura,
momento, mundo, nação, nações, negro, negros, notícias, origem, ouro, país, países, parte, passado pau,
Paulo, Pedro, pessoas, política, políticos, população,
Portugal, portugueses, povo, povos, presente, problemas, raça, raças, realidade, recursos, relação, renda, respeito, riquezas, rosto, saúde, século, séculos,
situação, sociedade, tecnologia, tempo, terra, terras,
trabalho, verdade, vez, vida, violência.
• Verbos(55): comemorar, completar, continuar,
dar, deve, devemos, dizer, é, era, eram, está,
estamos, estão, estar, estava, existe, existem, faz,
fazem, fazendo, fazer, foi, fomos, foram, há, melhorar, mostra, mostrar, mudar, parece,
pode,podemos, poder, possui, sabe, sabemos, saber, são, seja, sendo, ser, será, seria, sido, somos,
tem, têm, temos, ter, vai, vamos, vem, ver, vivemos, viver.
3.2 - Cotejamento
entre palavras do VEU
e palavras do DIF
O Dicionário de Freqüências do léxico do português contemporâneo (DIF), resultou de um trabalho de pesquisa com base num corpus de língua
escrita (variedade brasileira registrada entre 1950 e
1990), reunindo cinco milhões de palavras12. As 1.078
mais freqüentes (F>=500), segundo Biderman (1998:
168): “constituem o núcleo do vocabulário do português e podem ser consideradas como essenciais para
a comunicação neste idioma”.
Quanto à distribuição da freqüência e do número
de unidades léxicas, observa-se na tabela 4 a semelhança entre os dados dos dois corpus (DIF e VEU):
Tabela 4 - Comparativo da distribuição geral das palavras nos dois corpus
O DIF baseou-se num corpus cinqüenta vezes
maior que o do VEU; assim, essa diferença proporcional deve permear quaisquer comparações que se façam. Nessa primeira tabela já se constata que os dados equiparam-se, sobretudo no que diz respeito à porcentagem de palavras de alta freqüência. Se compa-
12
ramos apenas as unidades léxicas, talvez possamos
admitir uma possível dessemelhança dos resultados,
uma vez que as 11.151 unidades do VEU sugerem
que cada palavra tenha sido repetida 10 vezes (em
média), ao passo que, no DIF, a média tenha sido de
118 ocorrências por palavra. É evidente que, quanto
Já mencionamos que este assunto pode ser conferido em Biderman (1998, p. 161).
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002
43
maior e mais diversificado for o vocabulário, tanto
maior será o número de unidades diferentes e, em conseqüência, a freqüência média por elas assinalada.
É importante lembrar também que nenhum vocabulário possui uma distribuição homogênea da freqüência das palavras, embora seja possível perceber,
pela distribuição das suas classes nos dois objetos
investigados (VEU e DIF), uma certa regularidade
das estruturas léxicas. Esse fenômeno pode ser
observado também por meio da tabela 5, que traz a
lista dos 20 verbos mais freqüentes, tanto no DIF
quanto no VEU, conforme segue:
Tabela 5 - Comparativo dos vinte primeiros verbos
13
Como se vê, 13 verbos – ser, ter, estar, poder,
fazer, haver, ver, saber, dever, ir, dizer, chegar e
dar – estão tanto na lista dos vinte primeiros do DIF
quanto na lista dos vinte primeiros do VEU. Apenas
sete verbos – querer, ficar, achar, falar, precisar,
começar e olhar –, que figuram entre os vinte do
DIF, não estão entre os vinte do VEU. No lugar desses ausentes, constam entre os vinte primeiros do
vocabulário dos estudantes os verbos vir, viver, mostrar, possuir, existir, comemorar e descobrir.
Não só nos trabalhos desenvolvidos por Biderman,
mas também nas pesquisas feitas em Portugal (Português Fundamental), constatou-se que o comportamento desses verbos era parecido. Os dados do VEU
retomam, pois, as seguintes declarações de Biderman
acerca da conclusão a que chegou Müller, em 1974,
ao pesquisar os vinte verbos mais freqüentes no francês - exatamente os mesmos da lista do DIF:
13
14
[...] esses vinte verbos mais freqüentes situam-se na escala decrescente de freqüência em
posições quase idênticas; isso confirma também
que distribucionalmente eles operam de maneira muito similar na língua, não importando o tipo
de variáveis lingüísticas consideradas, a saber:
língua falada ou escrita [...]. Os resultados demonstram, portanto, que o comportamento
lingüístico desses verbos tem-se mantido quase imutável ao longo de duzentos anos. São, pois,
verbos muito estáveis no idioma (Biderman,
1998, p. 171).
Acreditamos que os resultados ora obtidos corroboram também a hipótese formulada pela mesma pesquisadora de que as conclusões de Müller sobre o
francês talvez sejam válidas para o português. Vejase, nesse caso, o fato de o 1º e o 2º classificados (ser
e ter) serem exatamente os mesmos, havendo ape-
Cf. Biderman (1998, p. 172).
14
Informamos que esses verbos foram lematizados e que, portanto, o número de ocorrências de cada uma das formas inclui todas as
flexões existentes no corpus. O total de freqüência desses 20 verbos é de 9.549 ocorrências, que corresponde a 8,4% do corpus (113.638).
44
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002
nas uma pequena variação na ordem de classificação dos demais.
Com relação aos verbos mais freqüentes, portanto, podemos assegurar que são inúmeras as semelhanças entre os dados do VEU e os do DIF.
Do rol das 359 unidades que compõem o núcleo do
vocabulário dos acadêmicos nas suas redações, apenas
51 não estão presentes no grupo das 1.078 do Dicionário de Freqüências do léxico do português contemporâneo, conforme se observa no quadro 2:
Quadro 2 - Lista das 51 palavras, de F>=40 no VEU, que não estão entre as 1.078 do DIF
A maior parte das palavras desse conjunto, como
se observa, são plenas. Esse grupo já restrito (14%
das 359) torna-se inexpressivo, caso dele retiremos
38 palavras não relevantes para a nossa análise qualitativa. Trata-se de 32 palavras diretamente ligadas
à temática da redação15, mais 05 substantivos próprios16 e 01 forma pronominal lo17. Nesse caso, restam somente 13 palavras, sendo duas contrações de
função gramatical - à e às - e onze palavras plenas
(01 verbo e l0 substantivos), quais sejam: melhorar,
corrupção, desemprego, distribuição, exploração, governantes, identidade, riquezas,
tecnologia, trabalho e violência.
Esse grupo de 11 palavras plenas remete-nos à
dimensão extralingüística, apontando para aspectos
bastante interessantes do ponto de vista histórico.
Sobretudo as palavras: corrupção, desemprego,
distribuição (da renda), exploração, governantes,
tecnologia, trabalho e violência denunciam problemas ligados ao atual contexto sócio-econômico
brasileiro. Especialmente a palavra desemprego
deixa transparecer essa tendência, uma vez que no
VEU a mesma registra alta freqüência 18 , mas no
corpus de pesquisa que originou o DIF a sua freqüência é baixa (apenas 67 ocorrências). Isso comprova que no período considerado para o levantamento do mesmo corpus (1950 a 1990) o problema
do desemprego não era tão vivenciado quanto é
nos dias de hoje, razão provável por que essa palavra foi pouco utilizada, segundo aquela pesquisa. O
que nos convence ainda mais dessa possibilidade é
o fato de o seu antônimo - a palavra emprego fazer parte do núcleo do vocabulário português contemporâneo, ou seja, de a mesma estar “presente”
entre as 1.078 palavras do DIF (585 ocorrências),
embora “ausente” na lista das 359 palavras mais
freqüentes no VEU.
Como se constata, 86% das palavras de F>=40
do vocabulário dos estudantes, ou seja: 308 palavras,
fazem parte da lista das 1.078 que compõem o Dicionário de Freqüências do léxico do português contemporâneo. Mais uma vez, convém aqui destacar a
grande semelhança entre os dados do VEU e os do
DIF, bem como a significatividade dessas 308 palavras para a constituição de um núcleo vocabular presente nas redações dos estudantes.
15
As 32 palavras temáticas são: atualmente, busca, carta, cientistas, colônia, colonização, colonizadores, comemoração, comemorar, continente, costumes, crânio, descoberta, descobertas, descoberto, descobrimento, europeus, habitantes, independência, índio,
índios, manchete, milênio, miscigenação, mistura, nativos, ouro, pau (em pau-Brasil), portugueses, quinhentos, raça e raças
16
Não excluímos os substantivos próprios da contagem numérica, visto que os consideramos em eventuais momentos de nossa análise
qualitativa. Nesse caso, são eles: Cabral, Luzia (nome atribuído pelos cientistas ao crânio de 11.500 anos encontrado em Belo
Horizonte), Paulo (em São Paulo), Pedro (em Pedro Álvares Cabral) e Portugal.
17
Em contato pessoal, fomos informada pela professora Biderman de que, na composição do DIF, as formas pronominais lo, la, los,
las não foram objeto de análise por parte dessa pesquisadora.
18
Desemprego: total de 65 ocorrências no corpus (desempregos: 54, desempregado: 1, desempregados: 65).
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002
45
De acordo com a metodologia que adotamos, essas
308 palavras distribuem-se em três diferentes grupos:
44 palavras ligadas à temática e ao gênero textual;
182 palavras de uso, ou caráter genérico; 82 palavras
especiais. As primeiras estão comprometidas com o
tema e/ou gênero textual; as segundas são, na maioria,
palavras de função gramatical, comuns a qualquer tex-
to; e as terceiras – especiais – são as únicas relevantes
em termos qualitativos, por serem plenas, ou
conteudísticas, capazes de retratar o pensamento contemporâneo dos estudantes universitários.
Na seqüência, apresentamos o quadro 3, com as
82 palavras especiais distribuídas por campos léxicos, em torno do macrocampo contemporaneidade:
Quadro 3 - Distribuição das 82 palavras especiais em campos léxicos
As palavras assim organizadas reúnem em torno
de si, essencialmente, conceitos abstratos e do domínio da percepção. Essa união e distribuição de palavras parece constituir um quadro representativo da
contemporaneidade, ou melhor, do momento atual por
que passa a humanidade neste limiar do século XXI
e do terceiro milênio, muito embora comporte inúmeras - talvez, infindas - possibilidades de interpretações, de acordo com o analista, pois, segundo Gipper
(1975, p. 40), “o observador lingüístico tem em regra
de antemão a compreensão intuitiva” e, diante do
objeto de observação, deve “saltar, por assim dizer,
para dentro dele e tomar consciência de que se vê já
através de lentes lingüísticas”.
3.3 - O estudo de algumas
variáveis sociolingüísticas
Convém lembrar que foram estudadas, basicamente, três variáveis: formação escolar, sexo e nível
sócio-econômico. Na seqüência, apresentamos uma
breve síntese dos resultados de cada uma delas, pri46
vilegiando a primeira, por ser mais significativa. Cumpre esclarecer que, na pesquisa, considerou-se formação escolar tanto a instituição de ingresso – Pública ou Particular – do universitário, quanto a instituição – Rede Pública ou Rede Particular de Ensino
– da qual o estudante é egresso, isto é, a que cursou
até o Ensino Médio.
Para observação do perfil dos estudantes das duas
instituições, expomos a tabela 6, com as informações
relativas às três variáveis sociolingüísticas mencionadas:
A primeira dessemelhança imediatamente perceptível diz respeito ao número de redações de cada Instituição, bem como ao número de palavras em cada
corpora: o da Universidade Particular, constituído
de 6.296 unidades léxicas para um total de 53.238
palavras extraídas de 280 redações; o da Pública, de
8.401 unidades léxicas que se desdobram em 60.400
palavras extraídas de 170 redações. Como se vê, mesmo com 110 redações a mais, o corpora da Particular é ainda menor. Enquanto os textos dos estudantes
da Instituição Particular têm, em média, 190 palavras, os textos dos estudantes da Instituição Pública
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002
Tabela 6 - Distribuição dos grupos sociolingüísticos para estudo das variáveis
têm 355 cada um – quase o dobro. Outra diferença
refere-se ao número de unidades léxicas: no corpus
da Instituição Pública há 2.205 unidades léxicas a
mais, dado indicativo de que o vocabulário desse grupo
é mais diversificado, especialmente porque essas
unidades não repetidas são, na maioria, palavras de
conteúdo (ou plenas).
Em contrapartida, nas redações dos estudantes
da Escola Particular há repetição mais acentuada de
palavras, indicando maior escassez vocabular. Em linhas gerais, verificou-se que o acervo vocabular do
grupo de ingressantes universitários da Escola Pública é mais rico, embora haja muitos outros pontos não
divergentes entre o vocabulário das duas populações
pesquisadas. Na análise das 100 palavras mais freqüentes, por exemplo, as 36 primeiras palavras são
exatamente as mesmas19, tanto na lista da Universidade Particular quanto na lista da Universidade Pública, havendo diferença apenas na ordem de classificação da freqüência (exceção feita às cinco primeiras). Há, também, no mesmo grupo, maior número de palavras especiais – ricas em conteúdo – no
repertório da Pública e, ao contrário, maior número
de palavras temáticas – condicionadas pelo tema –
no da Particular. Finalmente, constata-se pela freqüência dos verbos ter e haver que, embora as duas
formas estejam presentes entre as 100 palavras mais
freqüentes, na Particular, a forma verbal tem foi citada 196 vezes e a forma há 99 vezes; já na Públi-
ca, tem registra 105 ocorrências e há registra 112,
o que denota maior correção gramatical deste segundo grupo.
Essa diferença contribui para que se declare que
o vocabulário dos estudantes da Universidade Particular está menos adequado aos padrões gramaticais,
ou melhor, à modalidade escrita culta prevista para
utilização nas redações de vestibular. Esse fato confirma-se ao se consultar as duas listas de palavras,
na ordem decrescente da freqüência, e se constatar
no corpora da Universidade Pública maior incidência de plural em sintagmas nominais, bem como, de
maior número de palavras de conteúdo específico –
sinais de maior adequação gramatical e, por conseguinte, de superioridade vocabular.
Cremos ser possível acrescentar, ainda, que por
intermédio de estudos desse tipo de variável sociolingüística seja possível observar que as variações
diastráticas têm seu reflexo na linguagem. Em outras palavras, que o conhecimento a respeito do uso
da língua depende também das condições escolares.
Nesse sentido, comprovou-se que os estudantes que
concluem o Ensino Médio em Escola Particular estão ainda melhor preparados em matéria de uso do
vocabulário. Pensamos que o tipo de escola freqüentada pelo estudante até o Ensino Médio acarrete um
tipo de variável que se compara à escolaridade, embora neste caso não se trate de investigar quantos
“anos” de escolarização o indivíduo possui, mas sim,
19
São elas: de, que, e, a, o, Brasil, um, do, país, não, se, é, os, com, para, em, uma, da, por, como, anos, as, mais, no, mas, dos, sua,
povo, na, nosso, nos, ao, nossa, hoje, são e ser.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002
47
“onde”, ou “como” se deu essa
cabulário relativas à variação as(...) os dados apontam
escolarização. No caso de se poque os textos das mulhe- sociada à classe social – nessa
der considerar essa variável como
pesquisa, considerando-se a renres apresentam maior
uma espécie de escolaridade,
da familiar. Esse fato confirma
aplicar-se-á, então, a seguinte decorreção gramatical,
que, por si só, a situação sócioclaração feita por Paiva & Scherre
econômica não determina a supesendo mais adequados
(1999, 217): “a variável escolaririoridade dos falantes em termos
ao padrão escrito-culto, vocabulares.
dade suplanta as demais, moldanassim como maior
do, em grande parte, a heteroFinalmente, na análise da vageneidade lingüística que se pode
diversidade e precisão no riável sexo, queremos assinalar,
constatar no uso do português”
inicialmente, algumas diferenças
uso dos itens lexicais.
(grifo nosso).
do ponto de vista expressivo – vaIndubitavelmente, do ponto de
riação diafásica –, com base no
vista político, o estudo dessa variável fornece dados conjunto das Instituições. Observam-se alguns dasuficientemente seguros para apontar duas questões dos curiosos a respeito da característica das mulheproblemáticas relativas ao ensino. A primeira é a res – variação “adstrita” e não “adquirida” –, de deevidência de que a formação dos estudantes até o monstrarem maior sensibilidade ao valor simbóliEnsino Médio é deficiente e de que o conhecimento co da variação, conforme declaram Paiva &
em termos vocabulares é insuficiente para o nível de Scherre (1999, p. 218). Esse fenômeno marca-se pela
cultura que se espera dos que estejam ingressando presença de palavras como: amor, alegria, Deus,
numa Universidade. A segunda questão, talvez ain- cuja freqüência é muito maior no vocabulário das muda mais complexa, diz respeito ao fato de a Escola lheres. 20
Pública não estar cumprindo o seu papel social na
Analisando-se quantitativamente os corpora
Educação Básica e de estar oferecendo um ensino feminino e masculino, de imediato, nota-se que o
que é de má qualidade e, ainda mais, inferior ao que vocabulário dos homens é mais extenso, embora
oferece a Escola Particular. Ao que parece, a injus- esse grupo seja menor. Tem-se aqui uma “novidatiça social na Educação faz-se em dois momentos, de” científica diante da “verdade” propagada pelo
pois o ensino público apenas será de boa qualidade senso comum de que as mulheres são mais tagano Nível Superior, já que as vagas para a Universida- relas e, talvez, por isso, seus textos também sejam
de Pública são tão disputadas. Porém, quando chega mais longos.
esse momento, as suas portas são fechadas aos que
Por outro lado, os dados apontam que os textos
dela, antes, participavam.
das mulheres apresentam maior correção gramatiComo se verifica, essas questões ligadas ao sis- cal, sendo mais adequados ao padrão escrito-culto,
tema de ensino extrapolam o âmbito educacional para assim como maior diversidade e precisão no uso
alcançar a esfera sócio-econômica, fazendo com que dos itens lexicais. Sobre esse fato é importante lem“a variável escolaridade reflita, na verdade, a ação brar que, historicamente, o homem sempre ocupou
da variável classe social”, conforme informam nova- lugar de destaque na sociedade e foi menos submemente Paiva & Scherre (1999, p. 218). E, nesse caso, tido a pressões de caráter social. Talvez essa “liainda segundo as mesmas pesquisadoras, “as conse- berdade” dos homens para escrever tenha uma exqüências são ainda mais perversas, pois não se mo- plicação histórica, pois, na Antigüidade, toda prodificam variantes lingüísticas, mas, sim, se excluem dução escrita era de autoria masculina. Em
os indivíduos que não possuem determinadas varian- contrapartida, à mulher fora negado até mesmo o
tes lingüísticas” (Paiva & Scherre,1999, p. 218).
direito à palavra, cumprindo-lhe permanecer em siCuriosamente, nesse mesmo estudo, constatamos lêncio e obedecer às ordens de seres “superiores” não existirem quaisquer diferenças qualitativas no vo- os homens21 . Com isso, as mulheres tiveram aces20
A freqüência das palavras amor, alegria, Deus, assim se distribui nos dois vocabulários: a) amor: mulheres= 23 ocorrências,
homens= 05 ocorrências; b) alegria: mulheres= 15 ocorrências, homens= 03 ocorrências; c) Deus: mulheres= 18 ocorrências,
homens= 10 ocorrências.
21
Segundo Duby & Perrot (1990), Os Fastos é uma obra inacabada de Ovídio, contendo seis livros dedicados, cada um, às festas dos
meses de janeiro a junho do calendário romano. Nessa obra está inserido o Mito de Lara, transformada na Tacita Muta (Deusa Muda),
mulher tagarela, que teve a sua língua arrancada, por ordem de Júpiter.
48
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 36-49, jan./jun. 2002
so à escrita muito tempo depois do homens. Estudos sociológicos atestam que as mulheres até hoje
continuam sendo submetidas à maior pressão da so-
ciedade, no que diz respeito à correção e à pureza
da linguagem e que, por isso, elas adquiriram maior
consciência de status.
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49
O estudo baseia-se na experiência da educadora, atuando desde 1985 na formação do profissional de Letras
em universidades públicas brasileiras, e tem o intuito de
contribuir com uma proposta de avaliação desse profissional de modo a levá-lo a alcançar a qualidade total em
sua atuação, adquirindo conhecimento de como encarar
um mundo globalizado e uma situação de não-emprego.
A autora defende que, para isso, é preciso acrescentar
ao conhecimento intelectual: o exercício do auto-conhecimento, do cooperativismo e do empreendedorismo.
Palavras-chave:
Letras, Mercado de Trabalho, Empreendedorismo,
Capital Intelectual.
*
This study is based on author’s experience since
1985 on language professional training in Brazilian
public universities, and has the aim of contributing
with a proposal of evaluation of this professional as
to have him achieve total quality on his/hers actions,
acquiring knowledge on holding a globalized world
and a situation of unemployment. The author defends
that to agregate to the intelectual knowledge the
exercises of self-knowledge, of co-operativism and
of entrepreneurship is needed.
Keywords:
Litterature, Labor Market, Entrepreneurship,
Intellectual Capital
50
Este texto foi produzido
a partir de palestra com o
mesmo nome, proferida
no Seminário Avaliação
em língua materna, em
língua estrangeira, em...
novas tendências, novos
paradigmas, promovido
pelo Núcleo de Apoio
Pedagógico do Rio
Grande do Sul, NAP-RS,
no dia 21 de maio de
1999, em Porto Alegre.
**
Professora de
Espanhol do Depto de
Letras Modernas, Centro
de Ciências Humanas e
Sociais, da Universidade
Federal de Mato Grosso
do Sul.
AVALIAÇÃO QUE FAVORECE A
AUTONOMIA E DESENVOLVE
O EMPREENDEDORISMO
NO PROFISSIONAL DE LETRAS
*
Vera Lúcia do Amaral Conrado**
“Quando sabemos qual é o nosso propósito, o
trabalho da Alma se realiza da melhor maneira
possível através do nosso corpo. Um propósito
claro elimina todas as dúvidas, pois
imediatamente identificamos aquilo que nos
conduz à nossa meta ou nos desvia dela.
A energia em nossas vidas é imensa quando
uma clareza de propósito está sempre presente.
Você sabe qual é a sua razão de ser?”
Café (1992:74)
Dedico-me, desde 1985, à formação do profissional de Letras. Objetivo aqui resumir minhas
constatações sobre a qualidade dessa formação,
ao longo desses anos de atuação em universidades públicas brasileiras nas regiões sudeste, sul e
centro-oeste. A motivação interna para a construção deste texto é a vontade de partilhar com alunos e colegas da área os princípios que conduzem
o meu trabalho num momento de vida em que avalio a mim mesma como educadora através da atuação dos profissionais que ajudo a formar. O intuito que dirige esta vontade é contribuir com um modo
de avaliar que seja mais eficaz para a formação
do profissional de Letras, neste início de milênio
em que as Ciências Humanas desempenham um
papel que julgo da maior importância para a conformação do indivíduo e em que o espaço das universidades públicas brasileiras precisa ser mantido e valorizado.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002
Ao falar de avaliação num processo educacional,
estou levando em consideração os elementos essenciais que compõem esse processo, a saber: a instituição de ensino, o aluno, o professor, o contexto social
em que os três se inserem, o conteúdo programático,
os objetivos visados, os meios utilizados, as ações realizadas e os resultados obtidos (RICHTERICH, 1985
e GARDNER, 1994). Eles interagem uns com os
outros e, portanto, não é possível considerá-los isoladamente.
Se quero propor uma avaliação que favoreça a
autonomia e desenvolva o espírito empreendedor no
profissional de Letras, é porque julgo que os resultados obtidos nesse processo poderiam ser mais efetivos. Conceitualizo o adjetivo (efetivo) como a soma
de eficácia (fazer a coisa certa) com eficiência (fazer certo a coisa). Da união da eficácia com a eficiência resulta o conceito de efetividade, que culmina
na qualidade total. Obter resultados mais efetivos num
processo educacional significa, portanto, levar o futuro profissional a alcançar a qualidade total.
Para que essa qualidade seja perseguida, contudo, deve-se acreditar não só que ela pode como também que ela deve ser alcançada. É neste ponto que
se esbarra num problema de ordem epistemológica:
o culto ao fracasso presente na vida do brasileiro. O
jornalista CALDEIRA (1995), citando o dramaturgo
Nelson Rodrigues (“o brasileiro é um Narciso às
avessas, que cospe na própria imagem”), reflete
sobre as conseqüências desse culto que tem feito,
51
como ele diz, um extraordinário sudessa maneira, o capital humaAntes de exigir-se ou
cesso entre os brasileiros. A vano passa a ser o bem mais precimesmo conceber,
lorização do fracasso já se manioso da empresa, um ativo que se
portanto, uma
festava na história da colonização:
valoriza através do tempo.”.
dos doze fidalgos que receberam
modificação de cima
A noção de empresa aqui deve
o Brasil em lotes, Duarte Coelho,
ser entendida como qualquer instipara baixo no processo
donatário da capitania de
tuição que busque a efetividade em
de ensino-aprendizaPernambuco, o único bem sucesuas atividades: uma escola, uma
gem
(...)
é
imperioso
dido - uma vez que trabalhava em
microempresa, uma ONG, uma
sua própria terra -, foi motivo de
fundação etc. E o profissional de
repensar a formação
intrigas palacianas de Antonio
Letras, como capital humano, está
do profissional (...)
Cardoso de Barros, donatário da
sendo visto como educador: um
capitania do Ceará, que sequer
indivíduo cuja atuação ultrapassa
colocara os pés no Brasil. O resultado foi um inqué- a tarefa do profissional tradicionalmente formado para
rito contra Coelho, o produtivo, para explicar como dar aulas de português, línguas estrangeiras e literatuhavia enriquecido em tão pouco tempo, e a premiação ra. Trabalhar com estes conceitos é relevante num
de Cardoso de Barros, nomeado tesoureiro do pri- momento em que mundialmente também se observa
meiro governador-geral, Tomé de Souza.
a mudança da concepção de emprego: cada vez mais
Também economicamente o fracasso ganha o rarefeito transforma-se em trabalho. No mundo atustatus de um negócio, muitas vezes, gerando lucros. al não existe emprego, há trabalho. E o profissional de
Quem ganha com a inflação? Quem ganha com a Letras deve saber encontrá-lo, desenvolvê-lo, vendêmanutenção dos salários baixos? Quem ganha com lo a seu cliente. Se antes recebia as funções prontas,
o sucateamento do ensino público? Certamente, não executáveis, hoje, deve concebê-las. Fica evidente que
se manteria o culto ao fracasso se muita gente não o Curso de Letras, da forma como é hoje estruturado,
lucrasse com isso.
não está suprindo as necessidades de formação desse
Mergulhado neste contexto em que é arriscado futuro educador.
“dar certo”, o profissional de Letras, visto pelas pesAntes de exigir-se ou mesmo conceber, portanto,
soas em geral como um “fracassado” já quando opta uma modificação de cima para baixo no processo de
pelo Curso, se assumir essa visão durante o seu pro- ensino-aprendizagem de níveis fundamental e médio,
cesso de formação profissional, moldará seu futuro é imperioso repensar a formação do profissional que
de acordo com o reduzido espaço que lhe é atribuído atuará nesses níveis de ensino. Ele está sendo prepela sociedade que lhe concede o sonho de “vencer parado para agir com autonomia e empreendena vida mesmo sendo professor”.
dorismo? Pode-se dizer que está vivenciando no seu
No bojo dessa concessão, encontra-se o conceito dia-a-dia universitário não somente o fazer certo a
de professor como mero executor de um programa, coisa, mas também o fazer a coisa certa? Ele está
e não como um produtor de conhecimento, ou seja, sendo capacitado a agir com efetividade, para atuar
vigora o anacrônico conceito de mão-de-obra e não com qualidade total (que supõe melhorias contínuas
o de capital humano.
e, portanto, mudanças)?
Para melhor entender o conceito de capital huHoje em dia, no ensino brasileiro, observo que o
mano, reporto-me a ALMEIDA, TEIXEIRA e “espírito”, o “gênio”, contido na morfologia da palaMARTINELLI (1993) apud AMARAL e CONRA- vra “conhecimento” está, em grande parte, sendo
DO (1998)1
abafado por regras que distanciam o aluno do mundo
“O indivíduo, em relação a uma empresa, era e de si mesmo, fazendo com que o conhecimento
considerado, na época industrial, como um cus- assim produzido não seja instrumento nem para o
to. Atualmente, na era da informação, ele é con- auto-conhecimento do ser nem para sua capacitação
siderado como um capital, ou seja, como de- profissional como capital humano.
tentor do conhecimento, da criatividade e da
É comum ouvir dos alunos universitários a mesinformação de que a empresa necessita. Visto ma queixa: recebemos uma série de conteúdos e,
1
No original, não aparece o nome de Daniel Conrado, mestre em Administração de Recursos Humanos.
52
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ao sairmos daqui, não sabemos
tarefa da escola, numa demoPara formar esse
o que fazer com eles. Neste sencracia, é reconhecer na crianprofissional, o Curso de
tido, o Curso de Letras também
ça um pequeno profeta, e armar
Letras deve, em primeiro
estaria refletindo um reducionismo
a criança com os instrumentos
em sua capacidade de formação
lugar, constituir meios
da profecia. Isso é tarefa da esprofissional, não assumindo a rescola, isso é tarefa da universipara vencer o império
ponsabilidade de atender às nedade. Uma tarefa impossível.
da burocracia
cessidades de uma nação jovem,
Uma missão desmedida. E é neinstitucional,
sem
o
qual
como a brasileira, que, para acomcessário ter essa missão, porpanhar as mudanças de
que é o ideal regulador que esnão será possível
paradigmas mundiais, precisa de
tabelece o programa. Então,
democratizar o ensino.
cérebros sensíveis (ou corações
acho que fazer isso, no Brasil,
lúcidos) que saibam expor, critidepende, sim, de criar um Estacar e produzir conhecimento. Quando defendo a quado com poder, com recursos, mas depende tamlidade total como resultado que avaliaria positivamenbém de uma idéia. Desta idéia: não vamos apete a formação do profissional de Letras, estou defennas sobreviver apenas malandramente, vamos
dendo a passagem do executor (mão-de-obra) ao prosacudir o barco, vamos deslanchar uma temdutor (capital humano). Como tal, ao produzir conhepestade no mundo, a vida é uma só. Vamos ter
cimento, ele interferiria no processo de ensino, seja
uma grande tarefa antes de morrer. É isto. Ninele fundamental, médio ou superior, alterando, modiguém diz não para isto. O homem quer isto.”
ficando os demais elementos que conformam esse
Gênio, profeta, espírito o que importa é ressaltáprocesso.
lo, deixá-lo viver, para alcançar níveis qualitativos de
Entretanto, como dizia no texto acima citado, o excelência, para que se saia do estigma do fracasso,
Curso de Letras, em geral, não dá ao futuro profes- tão indelevelmente incutido nos próprios professores
sor essa noção (nem lhe propicia meios de vivenciá- que formam os profissionais de Letras. No mesmo
la) de que ele é a peça chave para a produção de discurso, quase perto de finalizar sua estimuladora
conhecimento, “de que ele é, portanto, responsá- conversa com os formandos, o professor Fischer lhes
vel pela manutenção do processo de mudança, lembra:
sem o qual não se configura a educação de uma
“Vocês vão ganhar mal e vão trabalhar numa
sociedade renovadora” (AMARAL e CONRADO,
profissão que não tem muito prestígio social.
1998: 53).
Provavelmente vão trabalhar muito /.../. Vão,
Para formar esse profissional, o Curso de Letras
por outro lado, trabalhar na talvez menos alideve, em primeiro lugar, constituir meios para vencer
enada das profissões. Nós, mais que ninguém,
o império da burocracia institucional, sem o qual não
lidamos com a matéria prima mais sensacioserá possível democratizar o ensino.
nal que há, que é o ser humano em formação /
Como claramente expõe CHAUÍ (1999b: 26), a
.../. E nós os professores de língua e literatura
burocracia funciona na base do sigilo, da hierarquia
talvez tenhamos ainda mais sorte que nossos
e da rotina, enquanto a democracia funciona na base
colegas de outras áreas, os professores de
da informação, da igualdade e da criação. A primeiQuímica e História e tudo o mais. Porque nós
ra, como dizia anteriormente, tem regras que abafam
trabalhamos com a linguagem, essa pequena
a segunda. Muitas vezes, mata o “gênio” contido em
maravilha da condição humana que, precisacada partícipe do processo de ensino.
mente, nos torna humanos.”.
O professor Luís Augusto Fischer, em seu disO tom parece ser o da manutenção do status quo:
curso como paraninfo dos formandos de Letras da somos fracassados financeiramente, mas recompenUFRGS de 1998, adverte os alunos de que se aterá a sados espiritualmente. Por que não sair deste paraduas coisas importantes. Uma delas é um depoimen- digma, quando realmente se está munido dessa mato, em entrevista, de Roberto Mangabeira Unger que ravilha que é a consciência do trabalho com a linguacito conforme FISCHER (1999: 2):
gem, envolvendo esta matéria prima mais sensaci“A tarefa da escola numa democracia é sal- onal que há, que é o ser humano em formação?
var a criança de sua família, de sua classe
Porque ao profissional de Letras não é suficiente
social, de seu país e de sua época histórica. A o conhecimento do que fazer, mas sim de como faPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002
53
zer, e não só do como fazer ou
interage, não podendo constituirpreparar um curso, uma aula, mas
se, portanto, em sujeito de seu
(...) dar espaço ao
um currículo, um cartão de visita
próprio processo de formação3 .
aluno para que ele
profissional, uma carta de apreSem este exercício de leitura, não
venha a experimentar
sentação, uma estratégia de divulse pode dar o segundo passo
formas
de
sair
da
gação de uma idéia, uma propospara uma educação de qualidata de trabalho, enfim, adquirir code: a obtenção, por parte do furotina, da hierarquia e
nhecimento de como encarar um
turo profissional de duas compedo sigilo, ou seja, sair
mundo globalizado e uma situação
tências (cf. DEMO, 1997: 8), a
da burocracia
de não-emprego. E, para isso, é
formal (manejo e construção
institucional (...)
preciso acrescentar outro conhede conhecimento) e a política
cimento: o do ser, é preciso que
(tipicamente educativa, da forele se exercite no auto-conhecimação do sujeito solidário, demento, na leitura de sua intracultura, sob pena de per- mocrático, participativo, ético).
manecer escondido numa vida burocratizada2.
Para sentir-se com poder de criação, para sentirFundamentalmente o que analiso como prioritário se igual e não inferior, para obter, saber como obter e
neste como fazer é dar espaço ao aluno para que ele passar informação, e constituir-se em produtor de covenha a experimentar formas de sair da rotina, da nhecimento de forma efetiva, usando sua competênhierarquia e do sigilo, ou seja, sair da burocracia cia formal e política defendo um Curso de Letras
institucional e viver com base na criação, na igualda- que incorpore meios e ações para que seu aluno dede e na informação. Em outras palavras, tornar efe- senvolva as características do que CREMA (1991)
tivo o exercício da, como disse o professor FISCHER, chamou de facilitador holocentrado e associe-lhes
“menos alienada das profissões”.
as características do empreendedor de sucesso
Para tal fim, para propiciar esta educação de (MANAGEMENT SYSTEMS INTERNATIONAL,
qualidade, segundo DEMO (1997: 8), “o primeiro 1996), com os padrões de percepção-ação coopepasso é desfazer toda forma de subalternidade, rativa (BROTTO, 1997). Estas características e paem particular aquela mantida com base na ig- drões, que exponho em seguida, são conteúdos tranorância”. A meu ver, uma das formas de manter balhados em minhas aulas de língua espanhola e de
o aluno na ignorância, na faculdade, é fazê-lo acre- empreendedorismo (disciplina criada por mim,
ditar que seu curso constitui um objeto acabado, um introduzida pioneiramente no Brasil no curso de Leproduto com significado não negociável, imposto. tras da UFMS em 2001), causando uma profunda
Assim, conteúdos, meios, materiais, programas apa- modificação no comportamento do aluno, que passa
recem como textos com os quais o aluno-leitor não a ver-se como profissional, a entender-se mais cla-
2
Em Liderança na formação do educador: interpretando a cultura do ser (PAIVA e SILVEIRA, org. 1998), relato como a vivência da
intracultura revelou que o estereótipo da instituição “fracasso”, apesar de impregnado na cultura nacional, não correspondia às
características de liderança emergentes na intracultura de cada participante daquela oficina; também relato como ficou evidente que a
liderança é algo natural na cultura do ser, que, já no seu processo de formação escolar, por inúmeros motivos e meios, é incentivado
a não exercê-la.
3
ORLANDI (1987a: 180), ao discutir a noção de sujeito e a identidade do leitor, define o texto, em termos de processo de interação,
como não sendo uma unidade completa, pois o sentido do texto não está em nenhum dos interlocutores especificamente, está no
espaço discursivo dos interlocutores. Pela análise do discurso, o texto como objeto empírico (superfície lingüística) - antes considerado como texto acabado - volta a ser incompleto, porque há de se considerar suas condições de produção, sua relação com a situação
e com outros textos, o que lhe dá um caráter não acabado. Nessa relação, tomando o Curso de Letras como um texto, minha sala de aula
constitui-se em um objeto não acabado, ou seja, apresenta-se metodologicamente para o aluno-interlocutor como um espaço discursivo
a partir do qual se dá a negociação de sentido. Só assim é possível garantir a legibilidade desse texto, ou seja, do processo de ensino
do qual este aluno participa. Desta forma, o Curso de Letras constituir-se-ia como texto acabado quando lhe fosse atribuído sentido,
não a partir da soma das disciplinas, da consideração de um ou outro componente do processo de ensino, mas sim do momento em que
se desse unidade de sentido entre todo o conjunto. Em cerimônias de formatura, ao observar a demonstração de alívio sentido pelo
“término” do Curso, materializado na face e gestos dos graduados, me pergunto quantos deles leram o seu processo de formação como
um objeto não acabado e puderam, ao longo do Curso, exercitar-se como sujeitos, saindo da condição de leitores virtuais e constituindo-se em leitores reais, realmente dando um fecho ao seu processo formal de ensino e, aí sim, transformando-o em texto acabado,
ainda que temporariamente falando.
54
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002
ramente como indivíduo e a
consciente dos seres humanos
(...) defendo a docência
posicionar-se de forma a estabeem condições materialmente
universitária não como
lecer objetivos e metas para cumdeterminadas.”.
habilitação acelerada
prir sua missão4. Tenho assistido
Nessa andança pessoal, que me
a verdadeiros nascimentos em mipara graduados
levou a associar a linguagem da
nha sala de aula, com conseqüênadministração à da pedagogia, uninentrarem rapidamente
cias renovadoras para o ensino, no
do o conceito de capital humano
no mercado de
âmbito de atuação social desse
ao de educador, foi-me extrematrabalho,
mas
sim
profissional que ajudei a formar.
mente importante conhecer o texNão há fórmulas mágicas, esta
to que cito de CREMA, num curcomo formação desse
reunião de conhecimento foi feita
so sobre a importância do auto-cograduando.
por vivência pessoal e, como disnhecimento na formação do eduse inicialmente, minha intenção é
cador, ministrado pelo professor
o trabalho da partilha, da cooperação, para que alu- Ruy Cézar do Espírito Santo, na PUC-SP, em 19965.
nos e colegas que encontrem eco nesse modo de atuNuma das primeiras aulas, o professor espalhou
ar, avaliem seu próprio processo de ensino-aprendi- sobre uma grande mesa vários livros que compunham
zagem no contexto social em que estão inseridos e a bibliografia básica do curso, pediu que entrásseintensifiquem sua busca pela qualidade total.
mos em contato com eles e que selecionássemos um,
Antes de prosseguir, um esclarecimento, caso ain- para que posteriormente expuséssemos nossa leitura
da não tenha ficado claro: defendo a docência uni- aos demais colegas. A técnica de escolha pela sincroversitária não como habilitação acelerada para gra- nicidade6 revelou-me o quanto estava próxima da
duados entrarem rapidamente no mercado de traba- abordagem holística na educação. Senti-me perfeilho, mas sim como formação desse graduando. Não tamente à vontade no processo de interação com o
sou, portanto, favorável à idéia da universidade texto, que reforçou a minha experiência de que não
operacional, que, como bem lembra CHAUÍ (1999a), há como fugir da tarefa do auto-conhecimento, para
“/.../ não forma e não cria pensamento, des- alcançar a qualidade total na formação do educador.
poja a linguagem de sentido, densidade e misNo texto citado, CREMA refere-se a três tipos
tério, destrói a curiosidade e a admiração que básicos de facilitadores ou líderes7:
levam à descoberta do novo, anula toda prea) o centrado na técnica (a infância do facilitatensão de transformação histórica como ação dor), para quem o outro é tido como objeto de uma
4
Objetivos são a forma pela qual se consegue cumprir uma missão. O que é necessário fazer para cumpri-la? Divide-se a missão em
partes e se estabelecem os objetivos para cada uma das partes. Isso dá mais informações sobre como se deve agir, que ações se deve
buscar. Metas são objetivos quantificados, ou seja, os objetivos são colocados em forma de números, assim, eles ficam mais
específicos. Por exemplo: se o objetivo é conseguir uma bolsa de estudos no final do curso e se, para isso, é preciso comprovar que
se lecionou, no mínimo, um ano, o candidato à tal bolsa deve procurar trabalhar esse tempo mínimo numa instituição que lhe forneça
um atestado posteriormente. Ou seja, há parâmetros mensuráveis para saber se realmente se cumpriu o propósito inicial. E, finalmente, missão é algo amplo. Por que o Curso de Letras? Por que determinada língua? Por que esta e não aquela habilitação? A missão
precisa ser abrangente, precisa pensar no futuro. Em itálico, dou um exemplo de formulação de minha missão: “eu me comunico com
as pessoas, através de minhas aulas de espanhol, para promover a ampliação da consciência humana” (adap. de CONRADO e
CONRADO, 1998: 7).
5
Elementos desse curso aparecem em seu livro Pedagogia da transgressão: um caminho para o auto-conhecimento (1996). Também
de interesse para o tema é o seu O renascimento do sagrado na educação (1998) fruto de sua tese de doutorado em Educação, na
Unicamp.
6
Sincronicidade: “Termo criado por Jung, que exprime uma coincidência significativa ou uma correspondência: a) entre um
acontecimento psíquico e um acontecimento físico não ligados por uma relação causal. Tais fenômenos de sincronicidade aparecem,
por exemplo, quando fenômenos interiores (sonhos, visões, premonições) parecem ter uma correspondência na realidade exterior:
a imagem interior ou a premonição mostrou-se verdadeira; b) entre sonhos, idéias análogas ou idênticas que ocorrem em lugares
diferentes, sem que a causalidade possa explicar umas e outras manifestações. Ambas parecem ter relações com processos arquetípicos
do inconsciente.” (JAFFÉ, s.d.: 358). “Emprego, pois, aqui, o conceito geral de sincronicidade, no sentido especial de coincidência,
no tempo, de dois ou vários elementos, sem relação causal e que têm o mesmo conteúdo significativo, ou um sentido similar. Isto não
é o mesmo que sincronismo, cujo significado é apenas o da aparição simultânea de dois fenômenos.” (JUNG apud JAFFÉ, s.d.: 359).
7
Não importando sua área de atuação: ela pode ser psicoterápica, educacional, institucional ou política.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002
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técnica, de um modelo ou um siste, de despertar suas emoções, de
Estes três tipos
tema teórico. O professor preso
reavivar seu corpo, de iluminar
básicos de facultadoao método, ao livro didático, atasua essência.
res ou líderes, na realido ao cumprimento de um prograEstes três tipos básicos, na rema pré-estabelecido, incapaz de
dade, estão sintetizanalidade, estão sintetizando toda a
interagir com seus alunos (situanossa história evolutiva. E nós,
do toda a nossa
se acima deles), executor e
como seres históricos, não podehistória evolutiva:
repetidor de um sistema de ensimos chegar à terceira etapa sem
o
centrado
na
técnica,
no burocratizado é o exemplo conpercorrer as anteriores. Ou seja,
creto desse facilitador;
há de se expor o graduando em
o centrado na pessoa
b) o centrado na pessoa (a
Letras a um caminho de vivências
e o holocentrado.
maturidade do facilitador), que,
para que ele possa vir a atuar
auto-centrado, está receptivo ao
como educador.
outro, lhe dá passagem. É o professor que está aberComo diz CAPRA (1996: 17), “durante este séto, que interage com seus alunos e demais compo- culo a mudança do mecanicismo para o
nentes do processo de ensino, não vê nada como fixo, paradigma ecológico tem-se dado de diferentes
imutável ou impossível, procura aprender com os formas e etapas em vários campos científicos”.
demais, cria seu próprio material e experimenta dife- Traçando um paralelo entre a primeira e a última etapa
rentes meios de trabalhar conteúdos didáticos, ques- deste percurso evolutivo, conforme CREMA - infântiona o processo de ensino mecanicista, não se per- cia e excelência do educador -, nota-se que também
turba com colegas que assumiram o discurso do fra- na primeira, existe a ênfase nas partes - ênfase igualcassado, ao contrário, tenta sugerir-lhes meios e ações mente chamada de mecanicista, reducionista ou
renovadores, dispõe-se a partilhar sua prática peda- atomística -, enquanto que na última há a ênfase no
gógica;
todo - também conhecida como holística, ecológica8.
c) o holocentrado (a excelência do facilitador),
Em termos lingüísticos, o professor de língua espara quem o espaço do encontro amplia-se abran- trangeira, por exemplo, que se encontra na primeira
gendo holos, o todo envolvente. O professor que con- etapa - mecanicista (a infância do facilitador) -, prequista esta etapa representa, para mim, o verdadeiro fere adotar exercícios ou atividades do tipo totaleducador. Sua atenção é fluida, sua visão é inclusi- mente manipulador (repetição oral ou de cópia esva, integradora, não se concentra apenas na pessoa, crita, preenchimento de lacunas, etc.), com o qual
no humano. Tem consciência de si, do outro e da exerce maior controle sobre a resposta do aluno que,
dimensão não-humana, ele está centrado no todo. conseqüentemente, terá menos voz, será menos suInterage com os demais componentes do processo jeito nesse processo discursivo que se instaura. O
de ensino para, no espaço discursivo do aqui e agora, professor que se encontra na etapa da maturidade já
religar e criar sentidos, ajudando seus alunos a se dá preferência a exercícios dos tipos predominansentirem co-criadores de seu processo de formação, temente manipulador (no qual há controle, mas
para o qual colabora toda a natureza que lhes envol- também há espaço para o trabalho criativo do aluno),
ve. Tudo é visto como parte de uma rede, células de e, em menor dose, exercícios e atividades do tipo preum mesmo corpo vivo. A disciplina que leciona é um dominantemente comunicativo (o professor ou o
meio de interação com o mundo. É o professor que livro controlam o tema, mas não as respostas do alurealiza a síntese de várias teorias, agrega, soma. Em no, e, portanto, lhe dão mais voz). Finalmente, o prosuas aulas o aluno tem a sensação de que o que apren- fessor que se encontra na etapa holística sente-se
dera até então não lhe havia permitido ir tão longe muito mais à vontade ao trabalhar com exercícios e
quanto agora, ele tem o poder de dinamizar sua men- atividades do tipo totalmente comunicativo (no qual
8
Na verdade, a ênfase no todo que se observa atualmente é um retorno à visão de mundo existente nos povos chamados primitivos,
manifestada na filosofia aristotélica e na teologia cristã e que perdurou até o mundo medieval. A partir dos séculos dezesseis e
dezessete, a visão de mundo medieval, conforme lembra CAPRA (op.cit: 19) “mudou radicalmente. A noção de um universo
orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela do mundo como uma máquina e esta visão tornou-se a metáfora dominante da era
moderna”. Para entender a influência do mecanicismo na evolução do pensamento ocidental e sua interferência em nossa vida diária,
sugiro que se assista ao filme O ponto de mutação, baseado no livro de mesmo nome de Fritjof Capra.
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há espaço para que a interação
traduzido com um “ganhar junNo
processo
em
comunicativa surja espontaneatos”, predomina a cooperação
que o professor
mente, num coro de vozes coope(interdependência, parceria); a
rativas). É neste último espaço
visão de que é possível para toalcançou seu nível de
que ocorre a comunicação autêndos; o clima de atenção,
excelência,
tica tal como define FRANZONI
envolvimento; o amor como mosua etapa
(1992), desmitificando a apregotivação e o sucesso compartilhaada crença de que bastava trabaholocentrada,
do como resultado; os sentimenlhar com textos autênticos para
tos são de alegria e comunhão.
o discurso que se
ensinar língua estrangeira nos
Não resta dúvida de que é neste
instaura é o lúdico (...)
moldes da teoria comunicativa.
tipo de processo que se desenEste professor deixa que falem
volve a autonomia e o empretodas as vozes - o que chamei há
endedorismo.
muitos anos atrás de textos vivos - presentes em
Para sair, portanto, do mecanicismo, que reduz o
sala de aula (AMARAL, 1981).
ser humano a um mero executor de tarefas, e avanSeguindo a tipologia do discurso de ORLANDI çar para o holismo, que integra o indivíduo ao meio
(1987b), o discurso que predomina em um processo e lhe dá condições de nele interferir de forma efetide ensino cujo pr ofessor está em sua fase va, o Curso de Letras ganharia em eficácia se proreducionista é o chamado discurso autoritário (re- curasse desenvolver em seus alunos as caracteríslação de verticalidade, em que o professor - a voz - ticas do educador holocentrado, bem como as caestá em cima e o aluno - orelha -, embaixo. A ver- racterísticas do empreendedor.
dade - trazida pelo professor - é para ser aceita). Já
Segundo o citado CREMA (1991), as caracteríso discurso predominante em um processo em que o ticas do educador holocentrado são:
professor está em sua etapa madura, auto-centrada,
a inclusividade: não rechaçar nenhuma neé o polêmico (relação de horizontalidade entre pro- cessidade e nenhuma dimensão da pessoa (p. 94);
fessor e aluno, ambos com voz. A verdade é para
a inocência: ter uma visão límpida, direta e
ser questionada.). No processo em que o professor imaculada. Através desta visão - e não de teorias
alcançou seu nível de excelência, sua etapa e técnicas - é que temos acesso à realidade móvel
holocentrada, o discurso que se instaura é o lúdico que se nos apresenta renovada a cada instante,
(os interlocutores não discutem a verdade ou quem para nela atuar e edificar. (p. 94);
a detém, o que importa é a produção de cada um, o
o espaço interior: conseguido através de esvamovimento que cada um chegou a fazer, regado pelo ziamento e silêncio interior. Isto significa para o ocipr azer da realização e da partilha entre a dental o não ter, não acumular, não consumir, ou seja,
multiplicidade de vozes)9.
um horror; enquanto que para o sábio Lao-Tsé é o
Em termos relacionais, segundo os padrões de vazio do vaso que lhe fornece a utilidade (p. 95);
percepção-ação sintetizados por BROTTO (1997:
a abertura: denota amplidão interior e dispo54), em um processo de ensino cujo professor en- sição de entrar em contato com o desconhecido.
contra-se na infância, e cujo objetivo seria traduzi- É a ousadia de afirmar eu não sei, três palavras
do com um “tanto faz”, predomina a omissão (indi- que são pura magia, /.../ que abre um espaço inferença), ou a dependência; a visão de que é im- teligente de percepção e compreensão do novo.
possível, ou possível só para alguns (incentiva-se a (p. 95);
competição); o clima chato, estressante e tenso; a
a flexibilidade: a vida se aninha no flexível, a
fuga ou o medo como motivação e o continuísmo ou morte no rígido (p. 95). Esta, combinada com as
a ilusão de vitória individual como resultado; os sen- características anteriores, traça o perfil do profissiotimentos são de opressão, controle, solidão. Já em nal que se expõe às mudanças, do professor que não
um processo de ensino cujo professor encontra-se se fixa num método, nem em uma única abordagem:
em sua etapa de excelência e cujo objetivo seria todo o conhecimento é válido. Suas aulas não se-
9
Para atender a essa multiplicidade, encontro na teoria por projetos (SÁNCHEZ, 1982 e ZANÓN, 1990) um canal muito produtivo
para encaminhar, como educadora, os diferentes interesses dos alunos pela pesquisa e prática, respeitando os diferentes estilos de
aprendizagem manifestos em preferências por determinados conteúdos, modos de enfocá-los e trabalhá-los.
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guem um padrão previsível pornicas”) e de todo o autoriSe
o
aluno
é
que se adaptam às necessidades
tarismo interior (“das veneraprovocado a
do momento;
das memórias, das eloqüências
o movimento: esta caractedas experiências vividas”). (p.
estabelecer esse
rística está intrinsecamente rela100). O educador que desenvolconjunto de diretrizes,
cionada à anterior e o facilitador
ve esta característica entra em
sua postura durante
holocentrado “movimenta-se, oriuma sala de aula sem verdades,
sua formação
entado pela bússola do aqui-esem bandeiras teóricas, porque ele
agora” (p. 96);
não quer um aluno consumidor de
profissional será a de
a plena atenção: esta caracmarcas francesas, russas ou inum aluno pró-ativo (...)
terística leva o educador a exerglesas de pensamento. Interessacitar a sua percepção. Eu só poslhe despertar o crítico, que passo transformar aquilo de que teseia livre sua genialidade pelas
nho consciência e eu só sou consciente do que per- realidades com que se depara;
cebo;
o ver a parte no todo e o todo na parte: é a
o humor: “a seriedade é uma séria patologia./ manifestação de uma consciência não-dual. Tra.../. Bom humor é a arte de sorrir de tudo e, prin- duz-se por um respeito à singularidade da parte e
cipalmente, de si próprio” (p. 96-97). O processo por um respeito ao todo que lhe é inseparável. O
de aprendizagem priorizaria, para o professor que in- educador holocentrado não considera os fatos isocorpora esta característica, o discurso lúdico, já re- ladamente, sabe que sua ação interferirá na dinâferido anteriormente;
mica da instituição na qual trabalha, que afetará
a vocação: é a nossa voz interna, “é o trabalho profundamente a vida e se deixará afetar pela vida
intransferível que viemos realizar. /.../. A excelên- dos alunos que com ele participam do jogo
cia atualiza-se naturalmente para quem resgatou cooperativado do aprender.
a sua vocação. Descobrir a tarefa para a qual
o assumir a maestria: “todo ser humano posnos convocamos à existência é um dos mais im- sui um mestre interior que pode ser despertado./
portantes desafios.” (p. 97);
.../. Pelo desenvolvimento do canal intuitivo poa intuição: é a “inteligência holística por ex- demos participar desta sabedoria potencial.” (p.
celência” (p. 97). “Na aceleração cada vez mais 101). Através da intuição há a expansão do ego e,
intensificada dos eventos que caracteriza nosso com ela, a possibilidade de transcendê-lo. O profesmomento histórico, a liderança intuitiva destaca-se sor que assim o faz está em condições de assumir a
qual farol a iluminar o embate violento de ondas própria autoria “e esculpir o destino com as próem íngremes rochedos.” (p. 98);
prias mãos. /.../. É necessário ousar ser.” (p. 103).
a paciência: é a perda da prepotência de que o É necessário, para dar voz aos alunos, ter voz.
professor está para ensinar e o aluno para aprenE é nesse sentido de ter voz que passam a inteder num tempo pré-determinado. Ao exercitar esta ressar e a associar-se às características do holocencaracterística, o educador se posiciona, sem apres- trado as do empreendedor (cf. MANAGEMENT
sar o processo, como o facilitador de um “contexto SYSTEMS INTERNATIONAL, 1996), que
favorável, um terreno fértil e propício para a pesestabelece missão, objetivos e metas que sesoa atualizar o seu potencial de auto-cura e auto- jam desafiantes e que tenham significado pessoal.
desenvolvimento.” (p. 98);
Daí a importância do auto-conhecimento e da identia humildade: “a capacidade de a pessoa as- ficação com o Curso. Se o aluno é provocado a estasumir o seu próprio tamanho./.../ é a arte de ser o belecer esse conjunto de diretrizes, sua postura duque se é.” (p. 99). O educador que assume esta ca- rante sua formação profissional será a de um aluno
racterística nunca martirizará o aluno com a figura pró-ativo, que selecionará suas disciplinas e o que
do erro, pois entenderá que suas manifestações ex- fazer de maior proveito em cada uma delas, além de
pressam um modo de ver/ser diferente de outros engajar-se em atividades de monitoria, projetos de
modos de ver/ser;
pesquisa, participação em eventos etc.;
o ter as mãos vazias: é o desprender-se de todo
planeja e monitora sistematicamente, planeo autoritarismo exterior (“dos venerados mes- jando e dividindo tarefas de grande porte em subtres, com suas pesadas escrituras, métodos e téc- tarefas com prazos definidos;
58
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busca informações, aprende
Desenvolve ou utiliza procedimen(...) se o Curso de Letras
onde encontrá-las, mantém-se atutos para assegurar o cumprimenpassar a avaliar seus
alizado;
to de compromissos, atendendo
alunos por essa associa- padrões de qualidade;
convence e mantém rede
de contatos, sabe reconhecer as
ção de características e
persiste, age repetidamente
pessoas chave, dentro e fora de
(persistir não significa insistir) ou
dar-lhes elementos para
sua instituição de ensino, que pomuda de estratégia, a fim de endesenvolvê-las, (...) os
dem facilitar seu caminho na confrentar um desafio ou superar um
profissionais
de
Letras
quista de seus objetivos;
obstáculo;
é independente, criativo e
compromete-se, colabora
serão muito mais autônotem autoconfiança, ousa sair do mos e empreendedores (...) com os colegas ou se coloca no
comum. Esse aluno se destaca na
lugar deles, se necessário, para
vida acadêmica, vai além do exiterminar uma tarefa.
gido pelas disciplinas e pelo programa de Curso. Sabe
Concluindo, acredito que se o Curso de Letras
reconhecer suas falhas e procura supri-las com ati- passar a avaliar seus alunos por essa associação
vidades extra-classe, põe em prática suas idéias;
de caracter ísticas e dar-lhes elementos para
corre riscos calculados, agindo para reduzi-los. desenvolvê-las, ao longo de sua formação, os proTem percepção do todo, usa sua intuição;
fissionais de Letras serão muito mais autônomos e
busca oportunidades e tem iniciativa, faz empreendedores; agindo para serem reconhecidos
as coisas antes de solicitado ou antes de forçado pela sociedade brasileira por desenvolver-lhe o
pelas circunstâncias, lê além da bibliografia do gosto e o respeito pela língua materna, o prazer de
curso. Desenvolve o raciocínio analógico, asso- ler, a capacidade de refletir sobre sua condição
ciando conteúdos de diferentes disciplinas, age histórico-política-social por meio do conhecimento
para expandir suas atividades e estudos a novas de outras línguas e cultur as, por, enfim,
áreas, detecta o que ainda não foi feito e procura instrumentalizar essa sociedade para expessar-se
pesquisar para fazê-lo;
com eficiência e eficácia. Vale a pena sacudir esse
exige eficácia e eficiência, encontra maneiras barco e dar voz a esse alunado potencialmente rico
de fazer as coisas melhor, mais rápido e mais barato. em capital humano.
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60
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 50-60, jan./jun. 2002
Resumo
UMA HISTÓRIA DA
DISCIPLINA PORTUGUÊS NO
ENSINO NORMAL
*
1930-1940
Maria Emília Borges Daniel**
Este trabalho apresenta uma história da disciplina
Português, tendo como lócus social e histórico a Escola Normal e Modelo Anexa1, de Campo Grande,
Mato Grosso, na primeira fase de funcionamento
dessa instituição, entre os anos de 1930 e 1940, na
perspectiva teórico-metodológica de Chervel (1990)2.
O fio condutor da pesquisa foi a questão: qual era
a configuração interna da disciplina, resultante da articulação entre objetivos, conteúdos e avaliação, ao
longo do período focalizado? A construção da história da disciplina que, até então, ainda não havia sido
focalizada desse ponto de vista3, ancora-se na longa
e complexa trajetória de avanços, silêncios, rupturas
e retrocessos do Ensino Normal, destinado à formação de professores primários, no contexto matogrossense e brasileiro da época.
Para a constituição do corpus da pesquisa, foram
consideradas as seguintes fontes: a) “Livro de Regis-
1
*
Tese defendida, em 07/6/2001,
no Programa de Pós-Graduação em Lingüística da
Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos
para obtenção do título de Doutor em Semiótica e Lingüística
Geral. Orientador: Prof. Dr. José Luiz Fiorin.
**
Departamento de Letras/CCHS-UFMS.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 61-62, jan./jun. 2002
No mesmo local onde funcionou essa instituição, fechada em
1940, por ordem do Interventor Júlio Müller, foi criada a Escola
Normal Joaquim Murtinho, pelo Decreto-Lei nº 834, de 31/01/
1947, do Interventor José Marcelo Moreira.
2
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões
sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação. Porto Alegre,
Pannonica, nº 2, 1990. p 177-229.
3
Cf. FIORIN, José Luiz. Subprojeto: Uma história da disciplina
Português no ensino de 1º e 2º graus. São Paulo, SP: USP, 1997.
61
tro das Matérias Lecionadas” (1935-1941 – E1, P2,
L48), pertencente ao acervo documental da Escola
Normal e Modelo Anexa; b) cinco livros didáticos
utilizados na década de 1930, concebidos como fontes
privilegiadas do português escolar: 1) Gramática
Expositiva. Curso Superior, de Eduardo Carlos Pereira. 46ª ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1926, 390 p.; 2) Lições de Português, de Otoniel
Mota. 9ª ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1941, 359 p.; 3) O Meu Idioma, de Otoniel Mota. 5ª
ed. correta, São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1929, 248 p.; 4) O Exame de Português, de Júlio Nogueira. 4ª ed., Rio de Janeiro, Livraria Editora Freitas
Bastos, 1930, 365 p.; 5) Antologia Nacional, de Fausto
Barreto e Carlos de Laet. 32ª ed., Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1955, 592 p.
Os resultados evidenciaram que os objetivos reais da disciplina Português, na Escola Normal e
Modelo Anexa, no período entre 1930-1940, visavam, de modo geral, ao domínio das regras gramaticais da língua padrão, principalmente em sua modalidade escrita, bem como ao conhecimento da língua
como patrimônio cultural fixado pelos autores de
excertos selecionados.
Os conteúdos de ensino, articulados a tais objetivos, correspondiam às regras gramaticais da língua
padrão escrita, veiculada em textos apresentados
como modelos, e à história da língua.
As condições de funcionamento do processo de
avaliação da aprendizagem sugerem que o estudo
da disciplina era, de certa forma, incentivado por fatores, como: grande quantidade de provas, valorização
4
dos aspectos cognitivos e memorização dos conteúdos.
A configuração interna da disciplina Português,
obtida pela correlação de tais objetivos, conteúdos e
avaliação, fundamenta-se em concepções como: I) a
linguagem é “a expressão de pensamento por meio
de palavras” (Pereira, 1926: 1-4)4; II) a língua é um
produto acabado, enquanto sistema estável; existem
regras e normas constituídas a priori que devem ser
seguidas para falar e escrever a variedade padrão;
as demais variedades são consideradas erradas; III)
a gramática é “... o conjunto sistemático de normas
para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores” (Franchi, 1991: 48)5; IV) o ensino da língua caracteriza-se como prescritivo e, ao
mesmo tempo, proscritivo, pois visa levar o aluno a
substituir seus próprios padrões de atividade lingüística, tidos como errados/inaceitáveis, por outros considerados corretos/aceitáveis (cf. Halliday, McIntosh
e Strevens, 1974: 257-287)6.
As condições de publicação dos livros didáticos
analisados — várias edições elaboradas a partir de
uma edição anterior, datada de oito, dez e até trinta
anos antes —, podem ser uma das causas da defasagem entre os conhecimentos sobre a linguagem
neles apresentados, sob a forma de conteúdos de ensino, e os produzidos pela ciência de referência, a
Lingüística, também denominada, então,
Glossemática. Por outro lado, gramática escolar tem
sido fundamentada na tradição gramatical que traz
em si a soma de vinte e três séculos.
PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática expositiva: curso superior. 46ª ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1926.
5
FRANCHI, Carlos. Mas o que é mesmo gramática? In: LOPES, Harry Vieira et alii (orgs.). Língua Portuguesa: o currículo e a
compreensão da realidade. São Paulo, Secretaria da Educação/Coordenadoria de Normas Pedagógicas, 1991.
6
HALLIDAY, M. A. K; McINTOSH, Angus & STREVENS, Peter. As ciências lingüísticas e o ensino de línguas. Petrópolis, Vozes,
1974.
62
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 6, n. 11, p. 61-62, jan./jun. 2002
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