natalidade e educação no pensamento político de

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natalidade e educação no pensamento político de
NATALIDADE E EDUCAÇÃO NO PENSAMENTO POLÍTICO DE HANNAH
ARENDT
Esmeraldina Alves Ferreira (Bolsista PIBID Filosofia/UFSJ)
Prof. Dr. José Luiz de Oliveira (Orientador – DFIME/UFSJ)
RESUMO: O pensamento político de Hannah Arendt (1906-1975) nos possibilita pensar o
presente e, nele, pensar a educação. O fato de que constantemente nascem seres humanos
no mundo, a natalidade, concebida pela autora como a capacidade de iniciar algo novo, nos
é apresentada como a essência da educação. Assim, pensar na inserção dos seres
humanos no mundo, para a qual o papel do educador é o de condutor no processo de
formação do homem, a íntima relação entre educação e novidade apresenta relevância por
seu potencial criador. Contudo, é evidenciando a autoridade e a tradição como princípios
fator essencial a ausência desses princípios. Da análise teórica do pensamento político de
Hannah Arendt, objetivamos com esse trabalho, caracterizar a concepção de natalidade,
sua importância para a formação do homem e suas implicações para as práticas
educacionais na contemporaneidade.
PALAVRAS-CHAVE: Educação. Natalidade. Ação. Autoridade.
INTRODUÇÃO
Hannah Arendt1 figura dentre os principais pensadores do século XX. Da análise
teórica do seu pensamento, tomando uma perspectiva reflexiva, perguntamo-nos como uma
teórica política interessada na condição humana do pensar, é levada a discorrer sobre a
educação de maneira tão arrojada. Para tanto, nossas análises concentrar-se-ão nas obras
A condição humana, Entre o passado e o futuro e o ensaio Reflexões sobre Little Rock2.
Embora tenha adentrado na discussão da questão da educação em meio ao que
chamou de crise da modernidade, seu pensamento é isento de pretensões educacionais ou
1
Nascida na Alemanha, de origem judia, experienciou os horrores do totalitarismo nazista e stalinista, o qual
serviu de pano de fundo para suas reflexões, por meio das quais intitulou-se teórica política.
2
Localizada no sul dos Estados Unidos, Little Rock é a capital do Arkansas. O ensaio, escrito por Arendt em
1959, tem por base o caos gerado pela decisão da Suprema Corte americana de promover a integração por meio
das escolas públicas. A segregação - comum na região à época - com a decisão da Suprema Corte, culminou com
a intervenção do governo do Arkansas que tentou impedir a entrada de crianças negras na Escola Secundária
Little Rock Central, até então freqüentada somente por brancos.
Natalidade e educação no pensamento político de Hannah Arendt – Esmeraldina A. Ferreira - 2012
educacionais, que Arendt denuncia a crise da educação na modernidade, que tem como
1
pedagógicas. Distancia-se do meramente especulativo em favor do factual, ao abordar o
processo de humanização do homem por meio da natalidade.
A natalidade, categoria política apresentada pela autora como a capacidade humana
de começar algo novo, configura-se em começar algo novo em um mundo velho e de todos
conhecido. O que permite-nos, como a autora, pensar a ação humana no âmbito da política
e do espaço público onde todos podem espontaneamente aparecer e, ao mesmo tempo,
entender uma das características principais de seu pensamento acerca da educação, que é
a separação entre educação e política.
O que faz com que Arendt - ao pensar na inserção dos seres humanos no mundo,
para a qual o papel do professor é o de condutor no processo de formação da criança - se
apresente em favor da autoridade e da tradição, demonstrando um conservadorismo por
meio do qual podemos entender que a íntima relação entre educação e novidade apresenta
relevância por seu potencial criador.
discutir a concepção de natalidade e educação por meio do pensamento político de Hannah
Arendt, se apresenta de modo significativo para a problemática do imprescindível caráter
reflexivo da Filosofia e seu ensino.
Educação: uma questão social
Da análise teórica do pensamento político de Hannah Arendt, no que tange à
educação, é no ensaio Reflexões sobre Little Rock, presente na obra Responsabilidade e
julgamento, que a autora permite-nos situar qual seja, para ela, o lugar da educação na
sociedade. Embora escrito após o ensaio A crise na educação, presente na obra Entre o
passado e o futuro, faz-se necessário analisarmos suas reflexões acerca da esfera social –
na qual a educação está localizada - para que possamos compreender sua análise acerca
da crise educacional na modernidade.
Nossa pretensão é colocar em discussão não o contexto específico no qual Arendt
abordou a questão da educação, mas sim a contribuição do seu pensamento para a
educação na atualidade.
O ponto de partida para as reflexões arendtianas acerca da esfera social, que inclui o
papel do governo diante da sociedade, foi a decisão da Suprema Corte Americana que,
tentado resolver politicamente o problema da segregação, acabou por deslocar a
responsabilidade do adultos, para as crianças.
Segundo Arendt, o que a Suprema Corte consegue com isso é provocar uma
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Assim, sendo a questão da educação essencial acerca dos assuntos humanos,
situação embaraçosa, inserindo uma questão estritamente social na esfera pública.
Embaraçosa porque passa a envolver o orgulho pessoal de cada cidadão que, estando fora
2
da esfera política, o governo não tem o direito de decidir. Orgulho esse definido pela autora
como “aquele sentimento inato e natural de identidade com o que somos pelo acaso do
nascimento”3.
Para Arendt, é um erro tentar resolver o problema da igualdade começando pela
educação, pois a igualdade só existe na esfera pública. Na esfera social, na qual reside a
educação, a desigualdade é algo natural. Não são “costumes sociais e maneiras de se
educar as crianças”4 o que infringe o princípio de igualdade. O que infringe o princípio da
igualdade é a imposição da segregação por meio da lei.
Arendt não nega a participação do governo na educação das crianças, contudo essa
participação acontece “na medida em essa criança deve crescer e se tornar cidadã”5. Não
cabe ao governo o direito de decidir pelas relações pessoais dos cidadãos, tomando o lugar
dos pais dizendo em que companhia as crianças devem ser instruídas. Para Arendt, “o
direito de os pais decidirem essas questões para os filhos até eles se tornarem adultos só
O que o governo fez, e isso deve ser evitado, é travar uma batalha política no pátio
da escola. Segundo a autora. “a idéia de que se pode mudar o mundo educando as crianças
no espírito do futuro tem sido uma das marcas registradas das utopias políticas desde a
antiguidade”7. O que, para dar certo essa idéia, implicaria na separação das crianças de
seus pais ou na doutrinação por meio das escolas como acontece, para a autora, nas
tiranias. Tudo isso, sob pena de eliminarmos o bem mais precioso de toda República, que é
a igualdade. E esta, deve constituir a base de uma democracia.
Ao mesmo tempo, ainda que pese o fato de que a igualdade seja imprescindível a
uma República, Arendt também nos lembra que “o princípio da igualdade, mesmo na sua
forma americana, não é onipotente; não pode igualar características naturais, físicas”8.
Para Arendt, é de entristecer o fato de que – no exemplo dos cidadãos de Little Rock
que deixaram a rua para a turba – os adultos não considerarem ser seu dever cuidar da
segurança das crianças. E o que pareceu-lhe mais surpreendente, “foi a decisão federal de
iniciar o processo de integração, dentre todos os lugares, nas escolas públicas”9. O que,
segundo a autora, é inevitavelmente evidente que “sobrecarregaria as crianças, brancas e
pretas, com a elaboração de um problema que os adultos por gerações se confessaram
incapazes de resolver”10.
3
Reflexões sobre Little Rock, p.262.
Ibid., p.262.
5
Ibid., p.263.
6
Ibid., p.263.
7
Ibid., p.265.
8
Ibid., p.268.
9
Ibid., p.271.
10
Ibid., p.271.
4
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são questionados pelas ditaduras”6.
3
A tarefa de mudar o mundo não é futura, é presente. Não é responsabilidade das
crianças, mas dos adultos. O problema não poderá ser resolvido abolindo a autoridade dos
adultos e negando sua responsabilidade com o mundo.
Nas palavras de Maria de Fátima Simões Francisco,
Todas as pessoas presentes em determinado momento neste mundo, e em
particular no mundo desafiador em que vive o homem do presente, são chamadas a
“reconhecer” esse mundo, isto é, a compreender o que vai nele e a responder pelo
11
que ocorre nele.
E como resposta ao que ocorre no mundo, Arendt, que não vê no costume social da
segregação algo inconstitucional, diz que:
A segregação é a discriminação imposta pela lei, e a dessegregação não pode fazer
discriminação e forçar a igualdade sobre a sociedade, mas pode e na verdade deve
impor a igualdade dentro do corpo político. Pois a igualdade não só tem a sua
origem no corpo político; a sua validade é claramente restrita à esfera política.
Apenas nesse âmbito somos todos iguais.
12
A igualdade, que deve ser garantida a cada indivíduo por ser cidadão e ser político,
não abole da sociedade a discriminação. Ao contrário, em sociedade, a discriminação é seu
princípio inerente. Sociedade essa por Arendt caracterizada como sendo,
[...] essa esfera curiosa, um tanto híbrida, entre o político e o privado em que, desde
o início da era moderna, a maioria dos homens tem passado a maior parte da vida.
Pois cada vez que abandonamos as quatro paredes protetoras de nosso lar e
cruzamos o limiar do mundo público, entramos primeiro não na esfera política da
igualdade, mas na esfera social.
13
E ainda acrescenta que “sem algum tipo de discriminação, a sociedade
simplesmente deixaria de existir e possibilidades muito importantes de livre associação e
formação de grupos desapareceriam”14.
A questão não é identificar e reconhecer a discriminação como um direito social
intrínseco à sociedade ou como aboli-la. Mas, sim, “como mantê-la confinada dentro da
11
Preservar e renovar o mundo, Educação, v. 4, p. 29.
Reflexões sobre Little Rock, p.272.
13
Ibid., p.273.
14
Ibid., p.273.
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mais do que abolir as leis que impõem a discriminação; não pode abolir a
12
4
esfera social, quando é legítima, e impedir que passe para a esfera política e pessoal,
quando é destrutiva”15.
Explicitando melhor sobre a distinção entre o político e o social no que tange à
discriminação, Arendt apresenta dois exemplos. O primeiro, a livre associação justificada e
sem direito de intervenção do governo. Ao direito de livre associação não pode haver
determinações legais que definam em companhia de quem ou em quais locais desejamos,
por exemplo, passar as férias. Com exceção, vale ressaltar, lugares públicos como teatros e
museus. O segundo exemplo, relacionado a serviços públicos necessários à realização dos
negócios humanos - sejam eles oferecidos por propriedade privada ou particular – a
discriminação é injustificada e prejudicial à esfera política. Como exemplo de serviços
públicos temos metrôs, ônibus, hotéis, restaurantes. Tais serviços são de domínio público e
encontram-se na esfera política, onde todos os homens são iguais.
Segundo Arendt, somente a esfera privada, aquela relacionada ao lar, “não é regida
“os padrões sociais não são padrões legais e, se a legislatura segue o preconceito social, a
sociedade se torna tirânica”17. Enfatiza ainda que,
Assim como o governo tem de assegurar que a discriminação social nunca cerceie a
igualdade política, deve também salvaguardar os direitos de toda pessoa de agir
como quiser dentro das quatro paredes da sua casa. No momento em que a
discriminação social é legalmente imposta, torna-se perseguição [...]. No momento
em que a discriminação social é legalmente abolida, a liberdade da sociedade é
violada [...]. O governo não pode tomar legitimamente nenhum passo contra a
discriminação social, porque o governo só pode agir em nome da igualdade – um
18
princípio que não existe na esfera social.
Por fim, o problema central da imposição legal em favor da dessegregração, no
âmbito da educação pública é o fato de ter afetado direitos legítimos da esfera privada e da
esfera social, bem como direitos legítimos da esfera política.
Reforça Arendt dizendo que “o direito dos pais de criar os filhos como acharem
adequado é um direito de privacidade, pertencente ao lar e à família”19. Aprofunda um pouco
mais a questão ao afirmar que “desde a introdução da educação obrigatória, esse direito
tem sido desafiado e restrito, mas não abolido, pelo direito do corpo político de preparar as
crianças para o cumprimento de seus futuros deveres como cidadãos”20. E ainda que “a
15
Hannah ARENDT, Reflexões sobre Little Rock, p.274.
Ibid., p.275.
17
Ibid., p.276.
18
Ibid., p.277.
19
Ibid., p.279.
20
Ibid., p.279.
16
Natalidade e educação no pensamento político de Hannah Arendt – Esmeraldina A. Ferreira - 2012
nem pela igualdade, nem pela discriminação, mas pela exclusividade”16. Segue dizendo que
5
participação do governo na questão é inegável – assim como o direito dos pais”21. A
participação do governo na educação da criança deve restringir-se ao conteúdo e não deve
incluir o direito à livre associação.
A escola é o primeiro lugar fora do lar em que a criança estabelece relações sociais
no mundo público. Contudo, segundo a autora, esse mundo público não é político, mas
social. Diz Maria Rita de Assis César,
A educação deveria ser o lugar da preparação de crianças e jovens para o espaço
público, o lugar por excelência da formação do cidadão. A escola, encontrando-se
entre o espaço íntimo da família e o mundo público do exercício da cidadania,
deveria realizar um papel fundamental de transição entre ambos os mundos.
22
E é nessa esfera social e no âmbito da educação, que a interferência do governo
abole a autoridade de pais e professores, que é substituída pelo domínio da opinião pública
uma opinião própria”23. Situada na esfera social, a educação envolve crianças que precisam
ser guiadas pelos pais ou professores.
Analisando pela perspectiva do espaço público, José Sérgio F. Carvalho corrobora
com essa afirmação de Arendt ao dizer que a educação
É um elo entre o mundo comum e o público e os novos que a ele chegam pela
natalidade.
Nesse
sentido,
o
ensino
e
aprendizado
se
justificam
não
preponderantemente pelo seu caráter funcional ou pela sua aplicação imediata, mas
pela sua capacidade formadora.
24
Nesse contexto perguntamo-nos, como compreender a natalidade, apontada pela
autora como essência da educação e ao mesmo tempo como categoria política na qual
lidamos com adultos?
Para tanto, prosseguiremos nossa análise abordando a ação humana no âmbito da
política e do espaço público onde todos podem espontaneamente aparecer e que, ao
mesmo tempo, constitui o mundo público que deve perdurar e no qual as crianças devem
ser acolhidas com segurança.
A natalidade e o poder de começar
21
Hannah ARENDT, Reflexões sobre Little Rock, p.279.
A educação num mundo à deriva, Educação, v. 4, p. 37.
23
Reflexões sobre Little Rock, p.281.
24
O declínio do sentido público da educação, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 89, n. 223.
Natalidade e educação no pensamento político de Hannah Arendt – Esmeraldina A. Ferreira - 2012
que, segundo a autora, a criança “não tem nem a capacidade nem o direito de estabelecer
22
6
Pensando a realidade constituída da relação entre os homens, meio pelo qual a vida
política se realiza em um momento presente e peculiarmente terreno, Arendt nos apresenta
a natalidade como categoria política.
Ao mesmo tempo, no ensaio A crise na educação Hannah Arendt diz que uma crise
é um convite à reflexão, por meio da qual podemos pensar a essência do problema e que “a
essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo”.25
Com base em sua obra A condição humana, podemos identificar a natureza de tal
afirmação, pois para Arendt é essencial ao mundo público a capacidade criadora do homem,
resultante da natalidade.
A natalidade, concebida pela autora como a capacidade de iniciar algo novo, tem
plena expressão na ação e no discurso, meio pelo qual os homens aparecem uns aos
outros. Ação que, caracterizada por José Sérgio F. de Carvalho, “é a dimensão na qual
podemos experimentar a liberdade como fenômeno político, ou seja, vivenciar a capacidade
tempo, aparecer aos outros nesse mundo comum como resultado do agir conjunto, que nos
coloca em contato com a pluralidade humana.
Pois, “nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza
selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença
de outros seres humanos”27.
O homem é inserido em um mundo que já existe, cuja realidade é por ele constituída
a partir do seu nascimento. E esse nascimento, biológico, é o primeiro instante de
aparecimento do homem no mundo. Mas é a ação humana o constituinte essencial para que
o mundo público perdure e para que nesse espaço público os homens, recém chegados
pelo nascimento, possam contínua e espontaneamente aparecer.
Evidentemente, essa imprescindível necessidade de um espaço comum no qual
todos possam aparecer e da necessidade de preservação resulta do fato de que,
[...] nenhuma atividade pode tornar-se excelente se o mundo não
proporcionar um espaço adequado para o seu exercício. Nem a educação,
nem a engenhosidade, nem o talento podem substituir os elementos
constitutivos do domínio público, que fazem dele o local adequado para a
excelência humana.
25
28
p. 223.
O declínio do sentido público da educação, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 89, n. 223.
27
Hannah ARENDT, A condição humana, p.26.
28
Ibid., p.60.
Natalidade e educação no pensamento político de Hannah Arendt – Esmeraldina A. Ferreira - 2012
histórica de romper com os automatismos da reprodução e criar o novo”26. E ao mesmo
26
7
Afinal, “se o mundo deve conter um espaço público, não pode ser construído apenas
para uma geração e planejado somente para os que estão vivos, mas tem de transcender a
duração da vida de homens mortais”29.
O que faz com que a natalidade lide com o presente e se efetive no homem como um
novo nascimento, como o que há de potencial em cada um de nós que poderá promover
rupturas e ao mesmo tempo ter o dom de preservar o mundo. Ou seja, a natalidade, aquela
faculdade da condição humana que, através do nascimento, traz ao mundo o potencial de
novidade, é efetivada com a criação de uma nova realidade, cuja força transformadora deve
ser preservada no processo de formação do homem, por meio da educação. Em outras
palavras, preservar na criança esse poder de começar potencialmente criador que lhe é
inerente por seu nascimento equivale, na esfera social, à responsabilidade do professor com
o mundo.
A ação, condição humana da pluralidade e especificamente condição da vida política,
Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da
condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a
efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como um ser distinto
30
e único entre iguais.
A natalidade, que por meio da ação tem o dom de produzir o mundo terreno e ao
mesmo tempo de preservá-lo para o recém chegado - aos novos por nascimento – torna-se
o meio pelo qual o cuidado com o mundo é efetivado. Cuidado esse que deve ser assumido
pelos adultos.
Contudo, é por meio da educação que o cuidado com as crianças deverá apresentarse como meio de conservação de tal dom, caracterizando não só a responsabilidade, mas
também a autoridade da figura do professor.
Embora se apresente como a categoria central do pensamento político de Hannah
Arendt a natalidade, por seu caráter potencial presente na ação, pode-se esperar o
inesperado que o homem é capaz de realizar, isto é, o novo. E a ação, por consistir em
processos de iniciamento, seu significado está contido em todo o processo. Processo esse
iniciado com o movimento que a ação estabelece e que a natalidade promove.
Nas palavras de Arendt, “é da natureza do início que se comece algo novo, algo que
não se poderia esperar de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Esse caráter de
surpreendente impresciência é inerente a todo início e a toda origem”31.
Natalidade e educação no pensamento político de Hannah Arendt – Esmeraldina A. Ferreira - 2012
é o meio pelo qual os homens são inseridos no mundo público. Segundo Arendt,
29
Hannah ARENDT, A condição humana, p. 67.
Ibid., p. 223.
31
Ibid., p.222
30
8
Assim, o nascimento precede o ato de criação de novas realidades, cuja realização
se encontra pautado na natalidade. Ora, se a natalidade é para Arendt a essência da
educação e esta situa-se na esfera social antecedendo a esfera pública, é neste âmbito que
situa-se a esperança, o milagre, o poder de transformar o mundo com a criação de novas
realidades, para as quais a educação deve contribuir. A tarefa da educação, segundo Maria
de Fátima Simões Francisco, “é justamente a de apresentar o mundo às gerações do
presente, tentando fazê-las conscientes de que comparecem a um mundo que é o lar
comum de múltiplas gerações humanas”32. E, ao professor, cabe a tarefa de possibilitar que
esse potencial criador de cada ser humano continue latente, visando inserir no mundo
público o adulto dotado de ação com seu potencial de início.
Analisar a questão da educação no pensamento político de Hannah Arendt como
instante de reflexão acerca da educação na contemporaneidade permite-nos – com as
devidas ressalvas – não restringir a discussão ao contexto americano que à autora serviu de
pano de fundo, por ter se tornado um problema político. Para Arendt, a educação
caracterizada no âmbito escolar viveu intenso momento de crise com as quais as
autoridades não conseguiram lidar de modo a eliminar os sérios problemas acarretados.
Se acompanharmos as discussões acerca da educação no Brasil, bem como as
medidas políticas apresentadas como soluções que corrijam problemas passados,
percebemos o quão significativas e atuais são as reflexões de Arendt acerca da educação.
E que o sentido destas reflexões não estão circunscritos apenas à realidade americana à
época pensada. Sobretudo quando a autora reflete a importância dos momentos de crise
para que possamos pensar e explorar as questões que determinam o aparecimento de um
problema.
Nas palavras de Arendt, “uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige
respostas novas ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos”33. Arendt ressalta
que refletir acerca do problema da educação, não é restringir-se a questões de realidade
escolar, alfabetização ou o que especificamente pode atender uma determinada região.
Trata-se de ir à origem do problema e essa origem encontra-se na essência da
educação que, segundo Arendt, é a natalidade, presente em cada homem, por seu
nascimento e, ao mesmo tempo, presente no mundo como um novo nascimento. É a
possibilidade do novo em um mundo que já existe.
32
33
Natalidade e educação no pensamento político de Hannah Arendt – Esmeraldina A. Ferreira - 2012
A educação à guisa da modernidade
Preservar e renovar o mundo, Educação, v. 4, p. 35.
A crise na educação, p. 223.
9
Com vistas na natalidade, esse potencial criador presente em cada homem por seu
nascimento, aliado a seu poder de começar algo totalmente novo, Arendt atribui à educação
a responsabilidade de preservação desse dom de começar. Não é responsabilidade da
política a educação de crianças e jovens. Pois, “a educação não pode desempenhar papel
nenhum na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão educados. Quem
quer que queira educar adultos na realidade pretende agir como guardião e impedi-los de
atividade política”34.
A educação não deve servir à política e tampouco a política se servir da educação. A
política deve acolher seres que são, por meio da educação, inseridos no mundo. Ou seja,
seres adultos e já educados são inseridos na esfera pública de igualdade entre os homens.
Pois, “no âmbito político tratamos unicamente com adultos que ultrapassaram a
idade da educação propriamente dita, e a política, ou o direito de participar da condução dos
negócios públicos, começa precisamente onde termina a educação”35. Em educação
Pessoas essas que encontram-se na esfera social, no limiar da esfera pública.
Ao separar a esfera pública do âmbito no qual a educação está inserida (esfera
social), Arendt entende que falar de educação na política não soa bem, pois se isso
acontece o real objetivo “é a coerção, sem o uso da força”36.
Embora a educação faça parte da esfera social, é uma das atividades mais
importantes presentes na condição humana e necessária à vida em sociedade. Sociedade
essa que é sempre renovada pela constante chegada de novos seres humanos no mundo.
O que faz com que, nas palavras de Arendt, “a criança, objeto da educação, possui para o
educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em
processo de formação; é um novo ser humano e é um ser humano em formação”37.
Para Arendt, é por meio da educação que pais e educadores assumem a
responsabilidade tanto pela vida e desenvolvimento das crianças, como pela continuidade
do mundo. Dessa maneira, garantimos tanto a proteção às crianças dos perigos do mundo,
bem como garantimos ao mundo proteção para que perdure.
Contudo, Arendt atenta-nos para o fato de que as crianças são seres humanos em
processo de formação que são introduzidas ao mundo por intermédio da escola, mas que a
escola não é o próprio mundo. A escola faz parte do mundo, mas não o representa. A escola
é, segundo a autora, “a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo
34
Hannah ARENDT, A crise na educação, p. 225.
Idem., Que é autoridade?, p.160.
36
Idem., A crise na educação, p. 225
37
Ibid., p. 234-235.
Natalidade e educação no pensamento político de Hannah Arendt – Esmeraldina A. Ferreira - 2012
lidamos com pessoas que não podem ainda ser admitidas na política como seres iguais.
35
10
com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o
mundo”38. Em outras palavras, André Duarte diz que,
O que caracteriza a educação em relação a outras formas de inserção dos seres
vivos em um ambiente já existente é essa relação privilegiada que a vida humana
(bios) mantém com o mundo, uma relação que tem de ser tecida. Se o mundo é
estranho e hostil ao recém nascido, caberá justamente à educação, a princípio por
intermédio dos pais, depois pela escola, a tarefa de ambientá-lo e familiarizá-lo com
o que lhe é desconhecido.
39
Por outro lado, uma vez que a presença da criança na escola é uma exigência do
Estado, a escola se apresenta, em certa medida, como representação do mundo público, já
conhecido pela criança. Mas Arendt nos atenta para o fato de que não devemos confundir a
representação, com o mundo como de fato é.
introduzí-la aos poucos a ele; na medida em que ela é nova, deve-se cuidar para que essa
coisa nova chegue à fruição em relação ao mundo como ele é”40. O educador assume seu
papel perante a criança e o jovem, como representante de um mundo pelo qual deve
assumir a responsabilidade. Responsabilidade essa implícita ao fato de que os jovens são
inseridos no mundo por adultos, em um mundo em constante mudança.
Para Arendt, “na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de
autoridade”41 A autoridade não deve ser confundida com qualificação, tampouco com
alguma forma de poder ou violência. A qualificação refere-se ao conhecimento do educador
acerca do mundo, que reflete na sua condição de instruir; o poder e violência referem-se à
utilização de meios externos de coerção e exclui a autoridade. O uso da força indica o
fracasso da autoridade. O uso de argumentos põe em suspenso a autoridade e em uso a
obediência. Segundo Arendt, “se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sêlo, então, tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através de
argumentos”42. (129) Entretanto, “a autoridade implica uma obediência na qual os homens
retêm sua liberdade [...]”43.
Ora, o educador, ao assumir a responsabilidade com o mundo, assume também o
papel que a educação desempenha na sociedade em favor do mundo, do novo, da
preservação. O mundo que para Arendt, “tanto no todo como em parte, é irrevogavelmente
38
Hannah ARENDT, A crise na educação, p. 238.
Educação: entre a tradição e a ruptura. Educação, v. 4, p.85.
40
Hannah ARENDT, A crise na educação, p. 239.
41
Ibid., p. 239.
42
Idem., Que é autoridade?, p.129.
43
Ibid., p.145.
39
Natalidade e educação no pensamento político de Hannah Arendt – Esmeraldina A. Ferreira - 2012
Por isso, “na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo, deve-se
11
fadado à ruína pelo tempo, a menos que existam seres humanos determinados a intervir, a
alterar, a criar aquilo que é novo”44. Para tanto, deve-se, segundo Arendt,
Educar de tal modo que um por-em-ordem continue sendo efetivamente possível,
ainda que não possa nunca, é claro, ser assegurado. Nossa esperança está
pendente sempre do novo que cada geração aporta; precisamente por basearmos
nossa esperança apenas nisso, porém, é que tudo destruímos se tentarmos
controlar os novos de tal modo que nós, os velhos, possamos ditar sua aparência
45
futura.
Não podemos impedir o jovem de livre e espontaneamente agir. Para Arendt, a
educação deve ser conservadora, no sentido de conservar o que é novo e revolucionário em
cada criança, bem como o de conservar o mundo. Deve possibilitar a inserção do novo em
um mundo velho e de todos conhecido.
tentarmos explicitar sua relação com o caráter de conservação empregado pela autora. Para
Arendt, a crise moderna na educação trouxe consigo a conseqüente crise da autoridade,
conectada à crise da tradição. A crise da tradição consiste na “crise de nossa atitude face ao
âmbito do passado”46.
No entanto, tradição e passado não são a mesma coisa. Com a perda da tradição
perdemos também “o fio que nos guiou com segurança através dos vastos domínios do
passado”47 O professor, por situar-se como mediador entre o novo (criança) e o velho (o
mundo já existente), deve respeito ao passado, pois sua autoridade situa-se entre o novo e
o passado. Respeito àquele princípio desde o qual algo no mundo foi instaurado.
Enfim, o que Arendt visa por em discussão sobre a educação é, na relação entre
adultos e crianças,
nossa atitude face ao fato da natalidade: o fato de todos nós virmos ao mundo ao
nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento. A
educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para
assumirmos a responsabilidade por ele, e com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria
inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens.
44
Hannah ARENDT, A crise na educação, p. 242.
Ibid., p. 243.
46
Ibid., p. 243.
47
Idem., Que é autoridade?, p. 130.
48
Ibid., p. 247.
45
48
Natalidade e educação no pensamento político de Hannah Arendt – Esmeraldina A. Ferreira - 2012
Falarmos em preservação da novidade como objetivo da educação, implica em
12
Somente separando o âmbito da educação dos demais (privado e público), pode-se
a ele aplicar o conceito de autoridade e tradição que lhes são específicos. À escola, cabe
“ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver”49.
Diz José Sérgio F. Carvalho,
O acolhimento dos novos no mundo pressupõe, pois, um duplo e paradoxal
compromisso do professor. Por um lado, cabe-lhe zelar pela durabilidade do mundo
de heranças simbólicas no qual ele inicia e acolhe seus alunos. Por outro, cabe-lhe
cuidar para que os novos possam se inteirar, integrar, fruir e, sobretudo, renovar
essa herança pública que lhes pertence por direito, mas cujo acesso só lhe é
possível por meio da educação.
50
E embora Arendt afirme que não se possa educar adultos ou tratar as crianças como
adultas, afirma também que não devemos de forma alguma separar a criança do mundo dos
um mesmo mundo.
Considerações finais
A relevância do pensamento político de Hannah Arendt no que tange à questão da
educação apresenta-se em seu modo peculiar de refletir acerca do homem situado no
mundo. Um jeito novo de reflexão acerca da essência da educação e o papel que a
educação desempenha na sociedade.
No Brasil, sobretudo quando confrontamos a responsabilidade atribuída por Arendt
ao educador com a finalidade da educação básica, que consiste na preparação do
educando para o exercício da cidadania, possibilitado por uma formação reflexiva, crítica e
voltada para a autonomia. O que evidencia, a nosso ver, a responsabilidade do educador
com o mundo ao se colocar como mediador no processo de aprendizagem e formação de
crianças e jovens.
Ao mesmo tempo, se pensarmos a educação básica como o período no qual o
educando é preparado para o exercício da cidadania, reafirmamos o posicionamento de
Arendt de que o mundo público, essencialmente político, é de responsabilidade dos adultos,
não das crianças. Que aos adultos cabe garantir a segurança e a educação necessária para
que cheguem ao mundo público, adultos livres e autônomos. E que, a autoridade do
49
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Natalidade e educação no pensamento político de Hannah Arendt – Esmeraldina A. Ferreira - 2012
adultos. Pois, o mundo no qual todos os seres se relacionam, se mostram e se identificam, é
Hannah ARENDT, A crise na educação, p. 246.
A crise na educação como crise da modernidade, Educação, v. 4, p. 21.
13
professor, está circunscrita à escola, à mediação desta com o mundo público no qual os
jovens serão inseridos
Ora, as reflexões arendtianas se apresentam como um convite para que pensemos o
presente. Mas, ainda que pese o fato de que a tarefa de mudar o mundo seja presente e
não futura, de responsabilidade dos adultos e não das crianças, Arendt, ao pressupor um
começo e que esse começo pode ser totalmente novo, assinala a esperança no homem e
no mundo político.
Pautada na natalidade, essa esperança representa uma crença no futuro, na
preservação do mundo e, sempre que possível transformação da realidade. Ao professor,
cabe a tarefa de preservar esse princípio criador, permitindo chegar ao mundo público
adultos reflexivos, críticos e autônomos, cuja dignidade se efetiva na participação nos
negócios humanos.
Assim, poderemos atribuir significado ao que comumente ouvimos quando o assunto
tempo, atribuir sentido à contribuição da Filosofia e seu ensino, presente como disciplina
obrigatória na etapa final da educação básica.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. rev. Rio de janeiro: Forense Universitária,
2010.
________ A crise na educação. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva,
2009. p. 221-247.
________ Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
________ Que é autoridade?. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.
p. 127-187.
________ Reflexões sobre Little Rock. In: Responsabilidade e julgamento. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004. p. 260-281.
CARVALHO, José Sérgio Fonseca de. A crise na educação como crise da modernidade.
Educação. Hannah Arendt pensa a educação. São Paulo, n. 4, p. 16-25.
________ O declínio do sentido público da educação. Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos.
Vol.
89,
n.
223.
Disponível
em:
<http://rbep.inep.gov.br/index.php/RBEP/article/viewFile/1400/1375>. Acesso em: 19 nov
2011.
CÉSAR, Maria Rita de Assis. A educação num mundo à deriva. Educação. Hannah Arendt
pensa a educação. São Paulo, n. 4. p. 36-55.
Natalidade e educação no pensamento político de Hannah Arendt – Esmeraldina A. Ferreira - 2012
é educação: que devemos educar as crianças, pois elas são o futuro do país. E, ao mesmo
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DUARTE, André. Educação: entre a tradição e a ruptura. Educação. Hannah Arendt pensa a
educação. São Paulo, n. 4. p. 84-89.
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FRANCISCO, Maria de Fátima Simões. Preservar e renovar o mundo. Educação. Hannah
Arendt pensa a educação. São Paulo, n. 4. p. 26-45.
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