baixar - ABDConst

Transcrição

baixar - ABDConst
A democracia como difusão do poder
A DEMOCRACIA COMO DIFUSÃO DO PODER
DEMOCRACY AS DIFFUSION OF POWER
Arnaldo Miglino1
A trindade intelectual composta pelo sociólogo Max Weber, pelo economista
Joseph Schumpeter e pelo jurista Hans Kelsen consagrou a mais elegante e notória
noção de democracia, enquanto sistema institucional de escolha dos governantes de
uma nação e que lhes torna politicamente responsáveis em relação aos governados.
Para Weber, a democracia é uma luta entre leaders que disputam entre si a simpatia
eleitoral do povo: os mais fracos são eliminados2. Tal pensamento deve muito à
teoria de Schumpeter3, para o qual «o método democrático é o instrumento
institucional para se chegar a decisões políticas, mediante o qual particulares obtêm
o poder de decidir através de uma competição que tem por objeto o voto popular» 4.
De acordo com a teoria, assim como os empresários lutam para vencer a
concorrência no mercado, os políticos combatem pela vitória na concorrência com
outros políticos: «o princípio da democracia significa tão somente que as rédeas do
governo devem ser entregues ao concorrente que obtém apoios superiores aos
demais, seja de indivíduos ou grupos»5. A democracia é, portanto, uma competição
entre grupos de elite, os partidos, dirigidos por seus líderes. Trata-se de uma
“concorrência pelo comando” na qual os leaders combatem pela conquista do poder
com as palavras, ao invés da violência, propondo si próprios aos eleitores. A esses
cabe apenas estabelecer, através das eleições, qual líder e grupo de poder deve
1
2
3
4
5
Professor Doutor da Universidade de Roma.
Cfr. Weber Max (1971), Politik als Beruf, in Gesammelte Politische Schriften, coord. J.
Winckelmann, Tubingen, Mohr, trad. it. La politica come professione, in Il lavoro intellettuale come
professione (1976), Torino, Einaudi.
Sobre a estreita relação entre o pensamento de Weber e de Schumpeter, v. David Held (2006)
Models of Democracy, Cambridge, Polity Press, trad. it. Modelli di democrazia (2007), Bologna,
Società editrice Il Mulino.
Cfr. Schumpeter Joseph Alois (1954), Capitalism, Socialism and Democracy, London, George
Allen & Unwin, trad. it. Capitalismo, socialismo e democrazia (2001), Milano, ETAS, p. 279.
Cfr. Schumpeter, op. cit. p. 283.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
83
Arnaldo Miglino
prevalecer. Os programas de um partido e a ação dos governantes respondem aos
interesses dos eleitores e dos governados apenas na medida em que sirvam para se
obter o consenso e a vitória política.
Também para Kelsen a democracia é um método de criação de líderes e
uma ordem social6. Sua formação de jurista o permite perceber que tal método é
«em primeiro lugar e especificamente um procedimento»7, inspirado nas ideias
fundamentais de liberdade e igualdade8.
A democracia é certamente caracterizada por normas que instituem
procedimentos, através dos quais os conflitos devem encontrar uma saída, a fim de
se conquistar o poder político e fazer valer os diversos interesses das partes.
Através do procedimento os contrastes sociais são racionalizados, ao invés de
desembocarem em violência, sendo geridos por um método que privilegia a dialética,
o intercâmbio de opiniões e o compromisso, ainda se afirmando a vontade da
maioria. Portanto, segundo Bobbio, «por sistema democrático hoje se entende,
preliminarmente, um conjunto de regras procedimentais»9 cuja observância faz com
que o adversário não seja mais considerado um inimigo, mas um opositor 10.
Também quem afrontou a questão desde um prisma filosófico expressa conceitos
que atendem a uma concepção procedimental de democracia. Popper evidenciou
como esta é «um conjunto de instituições (e entre essas especialmente as eleições
gerais, ou seja, o direito do povo de dispensar o governo) que permitem o controle
público dos governantes e seu afastamento por parte dos governados e que
permitem a esses de obterem reformas sem recorrer à violência e ainda contra a
vontade dos governantes »11. E «há, na verdade, apenas duas formas de Estado:
6
7
8
9
10
11
Cfr. Kelsen Hans (1929), Vom Wesen und Wert der Demokratie, Tübingen, J.C.B. Mohr, trad. it.
Essenza e valore della Democrazia na edição italiana La democrazia (1984), Bologna, Società
editrice Il Mulino, pp. 129 e 137.
Cfr. Kelsen (1955–1956), Foundation of Democracy in Ethics, LXVI, n. 1, parte II, trad. it. I
fondamenti della democrazia, na edição italiana La democrazia (1984), Bologna, Società editrice Il
Mulino, p. 188.
Cfr. Kelsen, op. cit., p. 218.
Cfr. Bobbio, Norberto (1995), Il futuro della democrazia, Torino, Giulio Einaudi Editore S.p.A., p.
63.
Cfr. Bobbio, op. cit., p. 29.
Cfr. Popper Karl R. (1945), The Open Society and its Enemies, Routledge, trad. it. La società
aperta e i suoi nemici (1996), Roma, Armando, p. 179.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
84
A democracia como difusão do poder
aquela na qual é possível se libertar do governo sem derramamento de sangue, com
uma votação, e aquela na qual isso não é possível. É o que importa, e não como
vem a ser denominada uma forma de governo. Em regra, designa-se como
‘democracia’ a primeira forma e a segunda como ‘ditadura’, ou ‘tirania’»12.
Considerando que a concepção ainda prevalente de democracia é a
procedimental e que sua primeira formulação decisiva, em âmbito jurídico, deve-se
ao pensamento de Kelsen, a ele é necessário voltar o olhar.
…
Democracia não é apenas procedimento. A própria dialética procedimental é
já um valor que pressupõe a operatividade de outros princípios: liberdade de opinião
e de expressão, liberdade para se obter uma imparcial e correta informação,
publicidade dos fatos que dizem respeito à esfera pública. Dado que um momento
essencial da democracia é a escolha dos líderes, como poderia o povo efetuar, de
forma eficaz, uma seleção meditada se não gozasse das liberdades intelectuais e
não pudesse dispor de informações sobre a realidade? São aspectos essenciais ao
funcionamento dos procedimentos eleitorais mas que, evidentemente, estão para
além desse.
Para se contestar a tese de Kelsen é possível partir do que ele mesmo
afirma: «o poder é a capacidade de influenciar os outros. Uma pessoa tem poder
sobre os outros se pode os induzir a se comportar conforme sua própria vontade. O
poder, portanto, não é político nem econômico; enquanto político e econômico é o
meio pelo qual se obtém tal comportamento» 13. Não se pode descrever de maneira
mais incisiva o fenômeno do poder entre seres humanos. Poder que era pleno no
sistema feudal, onde a aristocracia gozava de uma confusa soma de prerrogativas
econômicas, políticas, militares e sociais: o domínio senhorial sobre a terra
compreendia o domínio sobre os homens que a povoavam14. O poder de indivíduos
e grupos em se servirem das energias de outrem para realizarem os próprios
12
13
14
Cfr. Popper (1992), Alles Leben in Problemlosen Ueber Erkenntnis, Geschichte und Politik, trad. it.
Tutta la vita è risolvere problemi. Scritti sulla conoscenza, la storia, la politica, (1996), Milano,
Rusconi, p. 190.
Cfr. Kelsen, op. cit., p. 334.
Cfr. Baschet Jérôme (2004), La civilisation féodale, trad. it. La civiltà feudale (2005), Roma,
Newton & Compton editori, pp. 18, 93, 109, 115, 116, 134.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
85
Arnaldo Miglino
escopos15 formava um bloco monolítico que no curso de um longo processo histórico
gradualmente se fragmenta. O soberano absoluto consegue se impor com sua força
militar, o que assegura uma arrecadação tributária estável e centraliza o poder
político. Enquanto isso, desenvolve-se uma economia burguesa, de pessoas não
nobres que enriquecem sem recorrer aos poderes de governo, mas gerindo um
sistema de relações contratuais. O poder político, portanto, distingue-se e se separa
do poder econômico. Com as grandes revoluções liberais inglesa, americana e
francesa, afirma-se a base ideológica do estado como instrumento de tutela dos
direitos ‘naturais’ de liberdade e propriedade. Esses, no momento em que são
recepcionados pelas Declarações e Constituições, ganham relevância jurídica e se
transformam em direitos civis: ou seja, posições jurídicas subjetivas reconhecidas
expressamente pela lei em favor de toda pessoa, a fim de protegê-la da intervenção
estatal. Constituem um limite à ingerência do poder político na esfera individual, são
o instrumento através do qual o cidadão pretende que os governantes respeitem sua
propriedade e sua liberdade individual, religiosa, de manifestação do pensamento,
de iniciativa econômica. A afirmação de direitos civis nas legislações do século XIX
coincide com o sucesso da classe burguesa a qual, no parlamento, participa da
elaboração das regras que disciplinarão os poderes de governo. Assim, também o
poder político, que no Estado Absoluto se concentrava no soberano, separa-se em
funções distintas: legislativa, executiva e jurisdicional, exercidas mediante a
intervenção de órgãos diversos. Os direitos civis, na medida em que atribuídos a
todos, realizam a igualdade formal dos cidadãos que, porém, permanecem desiguais
politicamente e socialmente. Entre o final do século XIX e início do século XX, as
classes trabalhadoras reclamam do Estado direitos de participação na vida política,
até então reservados aos que não gozavam de determinadas condições de renda e
instrução, e o cumprimento de serviços de utilidade social. Os direitos políticos são,
portanto, estendidos aos menos abastados e aos analfabetos: também o poder
político, antes apanágio da burguesia, difunde-se. Além disso, os poderes públicos
se encarregam de prestações dirigidas aos cidadãos que precisam mas não
conseguem obtê-las mediante os mecanismos do livre mercado: o Estado garante o
15
Sobre tal noção de poder, como poder social, v. Poggi Gianfranco (1992), Lo Stato, Bologna,
Società Editrice Il Mulino, pp. 11–17.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
86
A democracia como difusão do poder
direito à educação, o direito dos indigentes a terem cuidados médicos, o direito à
assistência e à previdência social. São direitos sociais, pretensões que impõem ao
Estado a intervenção pela satisfação de uma necessidade individual e que são
expressões do princípio da igualdade substancial e de solidariedade. De igualdade
substancial, porque tendem a atenuar as disparidades sociais que impedem, de fato,
a todos os homens o exercício das liberdades que lhes são abstratamente
reconhecidas: os direitos sociais são uma «condição para o bom funcionamento da
democracia, logo, para uma fruição efetiva das liberdades civis e políticas» 16. São
garantidas através da oferta de serviços: o direito à educação necessita de
atividades de ensino, o direito a cuidados médicos só se realiza mediante atividades
terapêuticas... Os serviços oferecidos pelos poderes públicos têm um custo, os quais
são garantidos pelo sistema fiscal. Faz-se assim uma redistribuição da renda: o
emprego da riqueza dos mais abastados para a satisfação das necessidades do
extrato de menor renda concretiza uma forma de solidariedade entre os cidadãos.
Como sustenta Rawls17, a solidariedade dentro de uma sociedade faz com que
sejam atenuadas as consequências da “loteria natural” pela qual algumas pessoas
mais afortunadas podem gozar de maiores recursos que outras.
A introdução dos direitos sociais nao foi hostilizada pela burguesia
reformista, que compreendeu como a prestação de serviços aos extratos em
desvantagem econômica, por parte do Estado, poderia ter por efeito a atenuação da
luta de classes. Hoje, os direitos sociais são parte integrante do conceito de
cidadania. Assim como os direitos civis, políticos e sociais são considerados “direitos
do homem”, no sentido de que contribuem à definição e à tutela da dignidade
humana, e enquanto tais são reconhecidos pela Declaração universal dos direitos do
homem aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de
1948. Sendo as exigências do ser humano estritamente vinculadas, e não mais
separadas em compartimentos estanques, também os direitos públicos que as
tutelam são fundamentais e indivisíveis na medida em que são necessários, em seu
conjunto, à realização de valores que assegurem ao cidadão dignidade, respeito e
16
17
Cfr. Mazziotti di Celso Manlio (1964), Diritti sociali, in Enciclopedia del diritto XII, Milano, Giuffré
Editore, p. 805.
Cfr. Rawls John (1971), A theory of justice, Cambridge, The Belknap Press of Harvard University
Press, trad. it. Una teoria della giustizia 1997, Milano, Giangiacomo Feltrinelli Editore.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
87
Arnaldo Miglino
desenvolvimento da personalidade18. Enquanto nas constituições da Europa
continental os direitos públicos são classificados segundo o prisma que, definindo-os
como políticos, civis e sociais, indica sua diversa origem histórica, na Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada pelo Conselho Europeu em
Nice, entre 7 e 9 de dezembro de 2000, os direitos públicos foram colocados em
torno a seis valores: dignidade, liberdade, igualdade, solidariedade, cidadania,
justiça. O conceito de indivisibilidade dos direitos emerge plenamente, na medida em
que são considerados instrumentos necessários, e portanto interdependentes e
conexos, para a consecução dos princípios em torno aos quais se reuniram.
Tal mundo de valores pressupõe certamente o processo como instrumento
de resolução dos conflitos e produção das normas que dão ordem à vida coletiva,
mas nele não se exaure. Substancialmente, as instituições da democracia se
inspiram em princípios de liberdade, igualdade e solidariedade, que se realizam
impedindo a concentração dos poderes políticos, econômicos, sociais e culturais
existentes na sociedade e promovendo a sua difusão.
…
Que a desconcentração e a difusão do poder são uma consequência natural
da democracia foi também provado pelo fato de que foram concretizadas no primeiro
ordenamento que se pode dizer genuinamente democrático, que é o da antiga
Atenas, ao qual talvez se deva conceder boa dose de atenção, a fim de se
demonstrar tudo o que se disse. Foram, de fato, os atenienses a descobrirem como
os conflitos sociais podem ser compostos através do processo. A praça de Atenas
se torna o lugar de exercício do poder político quando se permite a cada cidadão
homem exprimir a própria opinião e participar, com seu voto, nas decisões que
dizem respeito à coletividade. Narra Homero, na Ilíada, que Tersites, feio e disforme,
convida a assembleia dos soldatos Aquivos a retornarem à Grécia, abandonando
uma guerra que serviria apenas para enriquecer seu líder, o rei Agamenon. Ulisses o
faz calar, golpeando-o com o cetro. Todos riem de Tersites “apesar de aflitos”19,
18
19
Cfr. Miglino Arnaldo (2004), Per una critica del libero mercato, in PRISMA, Rivista trimestrale,
Anno XXII n. 26, febbraio 2004, pp. 121-126, Ancona, Editore IRES Marche (Istituto Ricerche
Economiche e Sociali), p. 124.
Cfr. Homero, ΙΛΙΑΔΟΣ Α, Livro II, versos 220-270.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
88
A democracia como difusão do poder
evidentemente reconhecendo haver razão em suas palavras. Episódios do gênero
serão impedidos pelo processo democrático. Cada ateniense, na idade clássica, tem
o direito de falar na Assembleia: basta que se coloque na tribuna e, recebida uma
coroa de murta que lhe confere caráter sagrado pelo tempo de sua intervenção 20,
exprime a sua opinião. Após a discussão da questão, cada um tem o direito ao voto,
que vale tanto quanto o dos demais, a favor da opção que lhe pareça justa. A
maioria decide. O direito que cabe a todos de manifestar livremente o próprio
pensamento, e de tomar a palavra em público, é tão importante que o termo que o
indica, isegoría, é também sinônimo de isonomía (lei igual para todos) e de
demokratía. Heródoto utiliza o termo isegoría21 até mesmo para indicar o regime
político ao qual se filiava a potência militar de Atenas.
A democracia como procedimentalização dos conflitos é, portanto, uma
invenção grega. Todavia, para os Atenienses a democracia não era simplesmente
um conjunto de procedimentos que realizavam os ideais de liberdade e igualdade:
esses haviam institucionalizado um sistema solidarístico através do qual os recursos
dos cidadãos eram reunidos proporcionalmente à sua capacidade econômica.
A democrática Atenas não apenas paga aqueles que desenvolvem funções
para a coletividade (tornando-as assim acessíveis a todos) mas, a fim de equilibrar
as condições dos cidadãos, assegura também outras prestações. Os doentes que
não têm recursos para custearem um médico privado podem se tratar gratuitamente:
a pólis redistribui médicos públicos e lhes disponibiliza locais para as visitas,
sustenta o ônus econômico dos tratamentos de recuperação, das intervenções
cirúrgicas e dos medicamentos22. Além disso, responsabiliza-se pela educação dos
órfãos de guerra23, subsidia não apenas mutilados de guerra24 mas também os
inválidos (uma lei reconhece o direito do fisicamente mutilado, que não pode realizar
20
21
22
23
24
Cfr. Flacelière Robert (1959), La vie quotidienne en Grèce au siècle de Pèriclès, trad. it. La vita
quotidiana in Grecia nel secolo di Pericle (1994), Milano, Biblioteca Universale Rizzoli, RCS Libri &
Grandi Opere S.p.A., p. 58.
Cfr. Erodoto, ΊΣΤΟΡΙΑΙ, trad. it. Le storie (1989), Milano, Garzanti Editore, V, 78.
Cfr. Flacelière, op. cit., pp. 185–186.
Cfr. Cambiano Giuseppe (1999), Diventare uomo, in L’uomo greco a cura di Jean–Pierre Vernant,
Bari, Editori Laterza, p. 105.
Cfr. Flacelière, op. cit., p. 336 e Bermani Forti , (1972) I Greci inventano la democrazia, in L’uomo
e il tempo, vol. IV, Il suddito e il cittadino, Milano, Arnoldo Mondadori Editore, p. 101.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
89
Arnaldo Miglino
nenhum trabalho e possui menos de três minas, a obter dois óbulos por dia, pagos
pela comunidade25). A partir da metade do século IV a.C., prevê-se até mesmo um
estipêndio diário àqueles que comparecem aos espetáculos teatrais 26, dado que o
teatro constitui o mais importante instrumento de formação cultural dos Atenienses.
Os impostos incidentes sobre a renda recaíam sobre os cidadãos em casos
excepcionais, em ocasiões de guerra ou outras emergências, não abrangendo
aqueles com condição inferior à de um soldado de infantaria27. Normalmente,
atende-se às necessidades da coletividade com as liturgias (ou seja, “serviço para o
povo”28), consistentes na assunção direta das despesas relativas a um serviço
público por parte dos mais ricos. Através do sistema de distribuições dirigidas e das
liturgias, os recursos são redistribuídos a fim de favorecerem a integração do tecido
social a partir de quem se encontra em condições de desvantagem. O aspecto
redistributivo dos recursos, na democracia ateniense, pode ser sintetizado, ainda se
de forma polêmica, no escrito anônimo de um antidemocrático do século V
denominado Velho oligarca: “...Sacrifícios, vítimas, festas, recintos sagrados. O povo
sabe bem que não é possível a nenhum dos pobres individualmente realizarem
sacrifícios e banquetes sacros, fazer-se vítimas, morarem em uma cidade bela e
formosa, em suma, e assim criou o modo de se obter tudo isso. Sacrificam às custas
públicas muitas vítimas, e o povo come e reparte entre si os animais trucidados.
Ginásios, banheiros, vestiários, alguns ricos possuem os seus. Já o povo constrói
para si, para seu uso, academias, vestiários, banheiros em grande quantidade: e de
tudo isso se aproveita a massa, mais que os poucos e os ricos”29.
25
26
27
28
29
Cfr. Aristotele, op. cit., XLIX, 4.
Cfr. Funke Peter (1999), Athen in Klassischer Zeit, Műnchen, Beck, trad. it. Atene nell’epoca
classica (2001), Bologna, Società Editrice Il Mulino, p. 61.
Cfr. Finley, op. cit., p. 48.
Cfr. Funke, op. cit., p. 61.
Cfr. Anonimo ateniese, Αθηναίων πολιτεία in La democrazia come violenza a cura di Canfora 1996 -, pp. 19-20. Segundo Gschnitzer Fritz (Griechische Sozialgeschichte, trad. it. Storia sociale
dell’antica Grecia (1988), reimpressão 2001, Bologna, Società editrice Il Mulino, p. 228) os
esforços da democracia em relação aos pobres em Atenas «da guerra do Peloponeso em diante,
colocam-se tão à frente que o estado democrático considerava um de seus deveres mais
importantes assegurar aos seus cidadãos o seu suficiente sustento... aproximando-se assim muito
ao moderno «estado social», e mesmo o superando em certos aspectos».
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
90
A democracia como difusão do poder
Mas nem o aspecto redistributivo dos recursos econômicos, e tampouco o
aspecto procedimental, são a principal característica da democracia ateniense. Ela é
o resultado da libertação da classe camponesa em relação à nobreza, o que
desencadeia um processo de independência e liberdade individual que da esfera
produtiva se propaga à organização política 30: realiza-se assim uma evolução
histórica através da qual o poder político, econômico e militar, concentrado nas mãos
da nobreza, fragmenta-se e é compartilhado por amplos extratos sociais.
Em meados do século VII a.C. em Atenas o controle dos recursos públicos,
sociais e econômicos reside saudavelmente nas mãos da aristocracia, que possui
grande parte das melhores terras cultiváveis. Os nobres escravizam os camponeses
aos quais haviam concedido empréstimos garantidos pelo seu próprio corpo, e se
apropriam de suas propriedades. A vida da pόlis está nas mãos do Areópago, um
conselho de aristocratas que coordena todas as atividades de relevância coletiva. O
que não impede lutas sangrentas entre as famílias nobres. Sob tal estado de coisas,
em 594 a.C., Sólon busca uma solução: proibindo que a terra pudesse ser adquirida
“à vontade”, impede a concentração da propriedade fundiária 31 e estimula
investimentos no setor artesanal e comercial. Isso para evitar que os cidadãos sem
terra permanecessem no estado de trabalhadores braçais agrícolas, que para
sobreviver
poderiam
tão-somente
realizar
atividades
assalariadas
sob
a
dependência dos grandes proprietários de terras. Na metade do século VI a. C. o
tirano Pisístrato, com um sistema de crédito público aos pequenos e médios
camponeses, assegura a consolidação das modestas propriedades agrárias sobre
as quais iria se fundar a economia da pólis32; dá início a um amplo programa de
trabalhos públicos que oferece oportunidades de trabalho para artesãos e operários;
impulsiona o comércio marítimo e a produção de vinho, óleo e produtos de cerâmica.
Assim a riqueza se difunde, principalmente entre a população, que vê se reduzir sua
dependência econômica da nobreza. A classe média se fortalece. No início do
século V a.C., Clístenes realiza uma grande reforma em virtude da qual o Areópago
30
31
32
Sobre este ponto, vide amplamente Wood Ellen Maiksins (1998), Peasant – Citizen and Slave. The
Foundations of Athenian Democracy, trad. it. Contadini – Cittadini & Schiavi. La nascita della
democrazia ateniese, Milano, EST, periódico semanal.
Cfr. Gschnitzer, op. cit., p. 129.
Cfr. Anderson Perry (1974), Passages from Antiquity to Feudalism, trad. it. Dall’antichità al
feudalesimo (1978), Milano, Arnoldo Mondadori Editore S.p.A., p. 31.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
91
Arnaldo Miglino
fica privado de importantes poderes de decisão, que passam aos organismos que
podem representar todos os cidadãos, sem distinções de renda: a Assembleia, o
Conselho, o Tribunal. Por volta de 462–461, por obra de Efialte e Péricles, o
Areópago perde completamente sua influência na vida pública. Péricles, que domina
a política ateniense por cerca de trinta anos, fortalece a democracia, por um lado
desenvolvendo as instituições que permitem a participação popular, e por outro,
iniciando um vasto programa de obras públicas que difundem a riqueza entre a
população.
O desmantelamento do sistema de poder aristocrático abatera as posições
institucionalizadas de predomínio e possibilitara, para todos os cidadãos, uma igual
liberdade de agir e influenciar a vida coletiva, na medida em que o controle dos
recursos políticos, econômicos, sociais e culturais, controle que poderíamos chamar
tout court o “poder”, não era mais privilégio de poucos. A difusão de poder, que
porém não alcança os escravos, as mulheres e os estrangeiros, é assim o
denominador comum da ação e dos institutos democráticos dos Atenienses. Esses
temem a concentração do poder, mais do que qualquer outra coisa. O presidente do
Conselho dos quinhentos, que é o líder representativo da pólis, permanece no cargo
por apenas um dia e uma noite de sua vida e, em um primeiro momento, preside
também a Assembleia. Sucessivamente, sua segunda função é excluída a fim de
evitar que ele pudesse concentrar poder demais... nas vinte e quatro horas em que
permanece na função!
…
Bem se vê que o caminho que conduziu à criação das democracias dos
antigos e dos modernos tem em comum um processo de difusão do poder. É preciso
reconhecer que os ideais de liberdade, igualdade e solidariedade que caracterizam a
democracia podem ser plenamente realizados somente se os recursos políticos,
econômicos, sociais e culturais de uma nação não estiverem concentrados, sob
pena de a capacidade de alguns indivíduos influenciarem os demais se tornar
máxima. O que contrasta com a liberdade e a igualdade que, justamente segundo
Kelsen, são os ideais que caracterizam a democracia33. Esta, aliás, segundo o autor,
33
Cfr. Kelsen, op. cit., p. 218.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
92
A democracia como difusão do poder
é apenas um meio de realização de tais valores 34. Todavia, se é um instrumento de
persecução da igualdade e da liberdade, não pode se exaurir em mero procedimento
que, no pensamento kelseniano, assume um valor preponderante sobretudo no que
tange ao momento da escolha de quem deve exercitar o poder. A democracia,
compreendida especialmente como procedimento eleitoral, constitui-se como um
critério que se refere à legitimação do poder, mas não ao seu exercício. Mas caso se
queira realizar liberdade e igualdade não apenas no momento da escolha eleitoral, e
sim durante toda a vida civil de um corpo social, não se pode conceber a democracia
apenas em função do momento no qual se legitima um determinado sistema de
poder, mas se deve olhar ao modo de exercício e ao âmbito de extensão do próprio
poder. Quando os recursos que permitem a incidência na esfera jurídica de outrem
se concentram nas mãos de poucos, verifica-se inafastavelmente o sacrifício da
liberdade e da igualdade e, consequentemente, da coesão social.
O pensamento sociológico adverte que “impedir a acumulação do poder
político, econômico e cultural nas mesmas mãos, e diferenciar dentro do Estado
diversos poderes e funções foram reconhecidas, na era moderna, como critérios
fundamentais do bom governo”35. Uma definição jurídica de democracia também não
pode se conciliar com a concentração de prerrogativas, seja quais forem, que
incidam sobre a vida coletiva. Quando Montesquieu deseja um sistema no qual o
«poder contenha o poder»36 está a falar nas prerrogativas de natureza política, mas
o princípio de separação dos poderes, atualizado, deve valer para qualquer forma de
domínio sobre os homens. Tal não ocorre se os recursos estiverem centralizados em
mãos estatais ou privadas. Há quem, nas pegadas do pensamento kelseniano,
tenha observado que uma definição de democracia em termos procedimentais é
“mínima”37 ou “preliminar”38, deixando assim a porta aberta a definições mais
complexas. Entretanto, uma referência às ordens econômicas, sociais e culturais da
34
35
36
37
38
Cfr. Kelsen, op. cit., p. 268.
Cfr. Bagnasco–Barbagli–Cavalli (2001), Sociologia III. Organizzazione sociale, popolazione e
territorio, Società editrice il Mulino, Bologna, p. 116.
Cfr. Montesquieu (de) Charles - Louis Secondat (1748), De l’esprit des lois, trad. it. Lo spirito delle
leggi (1999), Milano, Biblioteca Universale Rizzoli, RCS Libri S.p.A., Libro quinto, Capitolo
quattordicesimo.
Cfr. Bobbio, op. cit., p. XXII.
Cfr. Bobbio, op. cit., p. 63.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
93
Arnaldo Miglino
sociedade não pode se limitar à sua inserção em uma definição “máxima” de
democracia, que seja capaz de integrar a noção procedimental. É essa mesma
noção “mínima” que se revela inadequada. Já Tocqueville ponderava sobre a
importância de «decompor o poder»39. Uma definição essencial de democracia não
pode legitimar qualquer concentração de poder e, portanto, não é compatível com
um sistema econômico que esteja totalmente nas mãos do Estado ou dos oligopólios
privados, nem é compatível com qualquer outra forma de concentração dos
recursos, sejam esses políticos, econômicos, sociais e culturais. O que conta, na
democracia, é a realização da liberdade, da igualdade e da solidariedade. Alcançase tais objetivos também com o procedimento, porém não se trata do único dos
elementos que valem para definir, de maneira essencial, um ordenamento
democrático40.
39
40
Cfr. Tocqueville (de) Alexis (1835), De la Démocratie en Amérique, trad. it. La Democrazia in
America (1971), Bologna, Casa Editrice Licinio Cappelli S.p.A., vol. I, parte I, IV.
Cfr. Miglino, op. cit., pp. 190-192.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
94