Silvia Regina Saraiva Orru
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Silvia Regina Saraiva Orru
UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI SÍLVIA REGINA SARAIVA ORRÙ BEM-VINDO AO LABIRINTO DA CONVERGÊNCIA: Machinema - um Cinema Digitalmente Expandido SÃO PAULO 2012 SÍLVIA REGINA SARAIVA ORRÙ BEM-VINDO AO LABIRINTO DA CONVERGÊNCIA: Machinema - um Cinema Digitalmente Expandido Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação da Profa. Dra. Bernadette Lyra. SÃO PAULO 2012 SÍLVIA REGINA SARAIVA ORRÙ BEM-VINDO AO LABIRINTO DA CONVERGÊNCIA: Machinema - um Cinema Digitalmente Expandido Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação da Profa. Dra. Bernadette Lyra. Aprovado em _____/_____/_____ Profa. Dra. Bernadette Lyra Prof. Dr. Rogério Ferraraz Profa. Dra. Lúcia Santaella À Caroline e João Pedro, cujo Amor e Amizade incondicionais vivificam nossa caminhada e me encorajam a superar todos os obstáculos! & Mais (mil e) uma vez (es) à Judith Elizabeth Pessoa que, mesmo durante a difícil batalha que travou pela vida, reservou tempo e energia para incentivar-me em todos os meus passos… AGRADECIMENTOS A vida não é vivida isoladamente. O ser humano dificilmente realiza algo sozinho, dificilmente concretiza seus sonhos sem uma companhia. Temos a necessidade de viver com o outro e ser também necessário a ele. Esse espírito gera compromissos entre as pessoas que, embora não formais, norteiam nossos afetos e relacionamento durante períodos de tempo, às vezes por toda a vida compartilhando ideias e ideais. Assim este estudo não é só meu. Muitas foram as pessoas que me acompanharam nessa caminhada, que se envolveram na minha ideia e no meu desejo. Das mais diferentes maneiras e cada uma a seu modo, cada pessoa que passou por minha vida está aqui incluída. Como bem diz o poeta: “Muitas pessoas por minha vida passaram e comigo suas vidas compartilharam... (...)assim como amei, fui amado e assim como tenho um pouco de cada um, um pouco de mim também foi levado. À Profa. Dra. Bernadette Lyra, pelo privilégio de ser sua orientanda. Por sua coerência, pela seriedade, pelo compromisso, pelos ensinamentos, incentivo e contribuição. Condições essenciais que permitiram meu amadurecimento como pesquisadora. À Profa. Dra. Lúcia Santaella que, gentilmente, aceitou participar da banca de qualificação deste trabalho e ofereceu valiosas contribuições para o seu aprimoramento. Todo o meu carinho e admiração. Ao, amigo, Prof. Dr. Rogério Ferraraz pelas observações e sugestões criteriosas, tanto em sala de aula, quanto durante o exame do trabalho de qualificação. Ao Grande Outro Prof. Dr. Claudio Cesar Montoto, pelos ensinamentos que me conduziram ao desejo voraz pela pesquisa acadêmica. Por suas orientações durante a especialização, pela amizade, carinho, paciência e acima de tudo pelo apoio e por confiar em mim. Aos colegas e professores do PPGCOM/UAM, por compartilharem seus conhecimentos, pelos debates, pela luta constante em busca da qualidade na pesquisa em comunicação e por me ensinarem, durante estes dois anos, que ainda há espaço para profissionais que acreditam no valor da docência e da pesquisa em comunicação. Ao grande cineasta Filipe Gontijo (Pipo), que da forma mais simples e incrivelmente criativa me apresentou o que, hoje, chamo de Machinema, além de contribuir com informações preciosas para o desenvolvimento deste trabalho. Faltam-me palavras para descrever meu afeto pelo seu brilhantismo como pessoa e como profissional. À minha família pelo amor incondicional. À minha mãe, Candida, que pelo seu exemplo de fortaleza e perseverança, sempre me inspirou. Espero que agora possa compreender a minha ausência em tantos momentos. À melhor de todas as professoras que já tive, Judith Elizabeth Pessoa, por sempre compreender, aceitar e incentivar minhas escolhas, compartilhando sua sabedoria e principalmente me motivando a sonhar e apoiando a realização de cada sonho. Também pelas leituras atentas de cada versão deste trabalho. À Taiana Grassi Lessa, cuja participação em minha vida foi fundamental e, principalmente, pela paciência, amor, cumplicidade, apoio e incentivo em todos os momentos. Ao meu tesouro mais precioso, João Pedro e Caroline, pelo sorriso contagiante, pelo abraço fortalecedor e pela presença calorosa em minha vida. A todas as pessoas que estiveram comigo e as que permanecem ao meu lado, o meu agradecimento do fundo do coração. RESUMO Esta pesquisa objetiva a análise e investigação de um tipo específico de cinema digitalmente expandido: o Machinema. Trata-se de referenciar a produção de filmes que se apropriam das plataformas de múltiplas escolhas, gerando uma fusão dos ambientes da tarefa e da ação, em que não há mais uma separação entre o que é próprio do mundo real e o que faz parte do mundo virtual. Um espaço que é habitado por seu público que é agente e protagonista do desenvolvimento estético e narrativo. Tendo como base estudos que analisam a experiência do agenciamento contemporâneo entre artes visuais e novas mídias, este estudo focaliza dois aspectos em suas investigações, sendo o primeiro no campo do dispositivo cinematográfico indagando: a) qual a trajetória do experimentalismo no cinema; b) quais as transformações que ocorrem a partir destes outros cinemas; c) quais as possibilidades de conformação de um outro espaço cinematográfico e o segundo no campo da lógica de sua maquinação: a) quais as implicações provocadas pela hibridização de mídias; b) quais os fatores que influenciam o grau de imersividade e de interatividade; c) quais as relações espaciais e temporais que se estabelecem entre o ambiente virtual e real. Para responder estas questões, foram selecionados como corpus de análise os filmes A Gruta e Last Call, além de outros objetos analisados em segundo plano, afim de demonstrar a materialidade dos processos constituídos e enfatizar as formas interpretativas da espacialização, através dos conceitos de hibridismo, imersão e interatividade e da análise de suas dimensões e categorias de interação. Palavras-chave: Machinema, Cinema digitalmente convergência, Filme imersivo interativo, Análises fílmicas. expandido, Cultura da ABSTRACT This research aims to investigate and analysis a specific type of film digitally expanded: the Machinema. It is referencing the filmmaking witch appropriates from platforms of multiple choices, creating a fusion between the ambient of task and action, where there is no longer a separation between what is proper of a real world and what is part of the virtual world. A space that is inhabited by its audience who is agent and protagonist from the aesthetic and narrative development, where the illusion of meaning becomes the real meaning. Based on studies that examine the experience of contemporary agency between visual arts and new media, this study focuses on two aspects for its research, the first in the field of cinematographic apparatus wondering: a) what is the trajectory of experimentation in film; b) what kind of transformation occurs based on these other cinemas; c) what are the chances of forming another movie space, and the second in the field of logic and its machining: a) what are the implications caused by the hybridization of media; b) what factors influence the degree of immersiveness and interactivity; c) what are the spatial and temporal relationships that are established between the real and virtual environment. To answer these questions, it was selected for the corpus of analysis the films A Gruta and Last Call, and other objects analyzed as a background in order to demonstrate the materiality of the processes established and emphasize the interpretative forms of spatialization, through the concepts of hybridity, interactivity and immersion of the analysis and its dimensions and categories of interaction. Key-words: Machinema, Digitally expanded cinema, Convergence culture, Film immersive interactive, Analysis movies. LISTA DE QUADROS QUADRO 1 Kinoautomat.................................................................................. 68 QUADRO 2 Mr. Sardonicus............................................................................ 69 QUADRO 3 Clue............................................................................................... 72 QUADRO 4 Tender Loving Care...................................................................... 74 QUADRO 5 Return to House on Haunted Hill.................................................. 77 QUADRO 6 Maldita Escolha............................................................................. 80 QUADRO 7 Ressaca........................................................................................ 84 QUADRO 8 Turbulência................................................................................... 87 QUADRO 9 O Labirinto..................................................................................... 89 QUADRO 10 Corre............................................................................................. QUADRO 11 Categorias de Interação................................................................ 98 QUADRO 12 Categorias de Interação em A Gruta............................................ 1118 QUADRO 13 Categorias de Interação em Last Call........................................... 1128 93 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 Quinetoscópio............................................................................... 28 FIGURA 2 Experiência Individual................................................................... 28 FIGURA 3 Cinematógrafo............................................................................... 30 FIGURA 4 Imagem Capturada....................................................................... 38 FIGURA 5 Imagem Exibida............................................................................ 38 FIGURA 6 Tensão e Pânico........................................................................... 39 FIGURA 7 Sensorama.................................................................................... 42 FIGURA 8 Ambiente Imersivo........................................................................ 57 FIGURA 9 Sim ou Não................................................................................... 70 FIGURA 10 Quem é o assassino?................................................................... 71 FIGURA 11 Que emoção você tem por Allison................................................ 75 FIGURA 12 Estrangulada................................................................................. 77 FIGURA 13 Esquartejada................................................................................. 78 FIGURA 14 Queimada...................................................................................... 78 FIGURA 15 Patinho ou Banana?..................................................................... 81 FIGURA 16 Garrafa ou Tijolo?......................................................................... 81 FIGURA 17 Thaís ou Tião................................................................................ 82 FIGURA 18 Engrenagem................................................................................. 83 FIGURA 19 Seguir em frente ou retomar o passado?..................................... 91 FIGURA 20 Festival de Brasília........................................................................ 105 FIGURA 21 Cenário Sombrio........................................................................... 107 FIGURA 22 Assassinato Cruel......................................................................... 108 FIGURA 23 Olhar de Tomás............................................................................ 108 FIGURA 24 Olhar de Luiza............................................................................... 108 FIGURA 25 O Casal na Cama.......................................................................... 109 FIGURA 26 Luiza ou Tomás............................................................................. 109 FIGURA 27 Entrada da Gruta.......................................................................... 110 FIGURA 28 Signo do Primitivo......................................................................... 111 FIGURA 29 Signo do Sagrado......................................................................... 111 FIGURA 30 Menu Seletivo............................................................................... 115 FIGURA 31 Menu Múltiplo................................................................................ 115 FIGURA 32 Folheto com as Instruções............................................................ 120 FIGURA 33 Celular sendo capturado............................................................... 120 FIGURA 34 O Diálogo...................................................................................... 123 SUMÁRIO RESUMO ABSTRACT LISTA DE QUADROS LISTA DE FIGURAS INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 1. PLANO GERAL - MACHINEMA: UMA OUTRA CONCEPÇÃO ARQUITETÔNICA DO CINEMA ............................................................................... 20 1.1 - Dispositivo Cinematográfico: Efeito-Cinema ............................................ 23 1.1.1 - Cinema no Momento Maquínico ............................................................. 26 1.1.2 - Cinema no Momento das Tecnologias Eletrônicas ................................. 36 1.1.3 - Cinema Expandido .................................................................................. 40 1.1.4 - Cinema Digitalmente Expandido ............................................................. 45 2. PLANO MÉDIO – A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NO MACHINEMA ............. 50 2.1 - Machinema: Um Espaço Híbrido ................................................................ 52 2.2 - Machinema: Um Espaço Imersivo ............................................................. 55 2.3 – Machinema: Um Espaço Interativo............................................................ 60 2.4 – Análise das Dimensões no Machinema .................................................... 64 2.4.1 - Kinoautomat .......................................................................................... 66 2.4.2 - A Máscara do Terror – Mr. Sardonicus .................................................. 68 2.4.3 - Os Sete Suspeitos – Clue...................................................................... 70 2.4.4 - Carinho e Cuidado – Tender Loving Care ............................................. 73 2.4.5 - De Volta à Casa da Colina – Return to House on Haunted Hill ............. 75 2.4.6 – Maldita Escolha..................................................................................... 78 2.4.7 - Ressaca................................................................................................. 82 2.4.8 - Turbulência – Turbulence ...................................................................... 85 2.4.9 - O Labirinto ............................................................................................. 88 2.4.10 – Corre ................................................................................................... 91 2.5 - Categorias de Interação no Machinema .................................................... 94 2.6 – Construção do Espaço Lúdico: Machinema x Game............................... 99 3. PRIMEIRO PLANO – MACHINEMA: ANÁLISE DOS OBJETOS A GRUTA e LAST CALL ............................................................................................................ 103 3.1 - Machinema: A Gruta ................................................................................ 104 3.1.1 - Enredo da Obra e Análise Narrativa .................................................... 106 3.1.1.1 A Chegada na Fazenda ................................................................... 107 3.1.1.2 Um Passeio na Gruta ....................................................................... 110 3.1.2 - Tomás ou Luiza – Uma Narrativa Pluri-Singular .................................. 112 3.1.3 Tempo e Espaço .................................................................................... 113 3.1.4 - Descompasso Rítmico ......................................................................... 114 3.1.5 – Análise do Ambiente Imersivo .............................................................. 115 3.2 - Machinema: Last Call .............................................................................. 119 3.2.1 - Last Call: Uma Outra Experiência Espectatorial .................................. 121 3.2.2 - Efeitos Estéticos da Maquinação em Last Call ..................................... 125 3.2.3 - Análise do Ambiente Imersivo ............................................................... 127 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 131 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 136 REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS ............................................................................ 141 REFERÊNCIAS WEBGRÁFICAS ........................................................................... 142 ANEXO A – FICHA TÉCNICA – A GRUTA ............................................................ 143 ANEXO B – FICHA TÉCNICA – LAST CALL ........................................................ 144 10 INTRODUÇÃO Qualquer nova tecnologia tende inevitavelmente a criar seu respectivo meio ambiente humano e social. Ambientes tecnológicos não são recipientes puramente passivos de pessoas, mas processos ativos que remodelam não só as pessoas, mas também outras tecnologias. Marshall McLuhan O cinema, desde seu alvorecer, espantou, encantou e até surpreendeu a humanidade, com imagens em movimento e as histórias que elas contam. Entretanto, para cada roteiro, inúmeras histórias alternativas foram desprezadas. Ao comentar um filme, é comum, o público dizer: “O que teria acontecido se...” e após, como em uma brincadeira, imaginariamente re-escreverem o roteiro, e a partir disso, fornecerem finais diferentes e mudarem completamente o curso dos acontecimentos. No cinema convencional a audiência é concebida como receptora de um fluxo fixo de imagens, em uma relação unidirecional. Neste sentido, assistir um filme duas vezes significaria estar, novamente, diante do mesmo fluxo de imagens. No entanto, o que aconteceria se ao invés de estáticas repetições, o cinema integrasse seu público no desenrolar da trama? Stanley Kubrick, importante cineasta norteamericano, certa vez disse: “Se pode ser escrito ou pensado, pode ser filmado” (KUBRICK, 2001), assim surge uma indagação: por que não explorar essas histórias que estão sendo deixadas por dizer, que habitam apenas o imaginário lúdico do espectador e permitir que o público decida o que deve acontecer? Por que, mesmo assistindo a um bom filme, o público parece não estar plenamente satisfeito com o caminho percorrido pela história e sempre deseje mudar este ou aquele ponto da trama? Reflexões como estas sempre me acompanharam ao sair de uma sessão de cinema. No entanto, foi durante o curso de Especialização em Semiótica Psicanalítica, na PUC-SP, que encontrei respostas para parte destas questões. Ao assistir um seminário proferido pela Profa. Dra. Lúcia Santaella1, foi possível 1 Seminário apresentado para a turma de 2008 do Programa de Pós Graduação de Comunicação e Semiótica da PUC-SP 11 entender, a partir dos ensinamentos da psicanálise, que o homem por ter sido atravessado pela linguagem é o único ser falante e por que fala, falta-em-ser: está onde não é e é onde não está, abrindo assim uma brecha e, que para preenche-la, foi preciso que ele inventasse as artes, a música, a poesia, a televisão, o cinema e os jogos. Elemento comum a todas estas criações é o lúdico, é na brincadeira que o homem parece buscar sua plena satisfação. Deste modo, com o avanço tecnológico possibilitado pela era digital, tornase fácil entender as razões que levaram os games a conquistar tamanho espaço na indústria do entretenimento. Sendo atualmente a indústria do game a primeira em termos de movimentação financeira, superior até mesmo que a do cinema, perdendo apenas para a indústria bélica e automobilística, torna-se difícil imaginar que durante muito tempo os games receberam o menosprezo de teóricos e críticos culturais. Hoje, por ser um produto já completamente estabelecido, os games cederam a posição de vulgar e banal a outros produtos que ainda estão à procura de seu espaço. Da mesma forma, é possível compreender que o cinema, que desde os primeiros experimentos, buscou incessantemente estabelecer um elo com seu espectador, tenha se contagiado pelas possibilidades interativas abertas pelos avanços tecnológicos e amplamente difundida pela indústria do entretenimento. Diante deste contexto, foi inevitável meu interesse por narrativas interativas, e logo nas primeiras pesquisas localizei inúmeros objetos interativos produzidos para o cinema, dentre eles A Gruta, que havia sido premiado em 2008 no Cine Fantasy em São Paulo e que seria reexibido em 2010, em uma sessão especial, no CCBB de Brasília. Assim, após assistir a esta exibição e percebendo os afetos e efeitos que produzira em sua audiência, por não conseguir nomear o fenômeno que ocorria na sala de projeção, este e outros objetos semelhantes, tornaram-se o motor propulsor de minhas investigações acadêmicas. O advento da arte tecnológica, midiática e digital, na contemporaneidade, exige a reformulação dos meios tradicionais, a inauguração de novas linguagens artísticas, devido à mediação de dispositivos maquínicos e à novas formas de maquinação. É neste contexto que a convergência das artes, comunicação, interface homem-máquina e tecnologia da informação que se oferecem como instrumento 12 para a reinvenção de um cinema, que ao incorporar plataformas de múltiplas escolhas (inicialmente utilizadas somente pelos games) permite a construção de narrativas multíplices, em um espaço que explora cada vez mais a sensorialidade e a sensibilidade de seus espectadores. Neste sentido, ao analisarmos a natureza híbrida e a potencialidade na produção de novas sensibilidades, abertas pela imersão interativa no cinema, somos direcionados a considerar seus aspectos configuracionais e estéticos derivados da convergência deste com as novas tecnologias e nos deparamos com um outro cinema que denominei Machinema – do inglês machine (máquina) e cinema (cinema). Tal conceituação foi por mim desdobrada, a partir de outro conceito denominado Machinima2 - que refere-se à jogos com animação digital em 3D, criada em tempo real, utilizando mecanismos de games. O Machinema refere-se a essência híbrida da produção de filmes que se apropriam das plataformas de múltiplas escolhas, gerando uma fusão do ambiente da tarefa e da ação, onde não há mais uma separação entre o que é próprio do mundo real e o que faz parte do mundo virtual. Trata-se de um espaço que é habitado por seu público que é agente e protagonista do desenvolvimento estético e narrativo, onde a ilusão de sentido se transforma em sentido real. Sendo este o objeto de nosso estudo seu conceito será amplamente discutido e construído no percurso desta investigação. Estamos diante de um outro momento do cinema. Um momento que, instigado pelas possibilidades tecnológicas, dá origem a novos instrumentos para a reinvenção do cinema através de uma narrativa multimídia que permite criações em que não há “felizes para sempre” e que o final de um filme é apenas uma faceta de um diálogo contínuo com o espectador. Que ao acionar novamente o play ou entrar em outra sessão do mesmo filme, o espectador, terá a possibilidade de vivenciar uma nova experiência, com um outro percurso da trama. Sendo o Machinema, objeto deste trabalho, um novo tipo de mídia digital que ainda está se conformando, muito embora se tenha uma extensa produção teórica acerca das narrativas interativas, estas não trazem elementos específicos 2 Machinima – o nome é uma junção da palavra máquina e animação. O movimento Machinima começou em 1993 quando o game Doom foi lançado com um programa que permitia a gravação e reprodução de ações ingame (HANCOCK & INGRAM, 2007). 13 para delinear a teoria do Machinema. Assim esta pesquisa se apoia em conceitos definidos por Shaw (2005), Maciel (2009) e Parente (2009) entre outros, que tratam especificamente de performances de instalações contemporâneas (arte interativa), uma vez que foram identificadas algumas semelhanças entre estes objetos, tornando possível a pertinência de suas aplicações conceituais e possibilitando desenvolvimento de conceitos específicos. Assim, a partir destes teóricos que analisam a experiência do agenciamento contemporâneo entre artes visuais e novas mídias, esta dissertação parte das seguintes indagações: Sobre o dispositivo cinematográfico a) Qual a trajetória do experimentalismo no cinema? b) Quais as transformações que ocorrem a partir destes outros cinemas? c) Quais as possibilidades de conformação de um outro espaço cinematográfico? Sobre a lógica da maquinação d) Quais as implicações provocadas pela hibridização de mídias no Machinema? e) Quais os fatores que influenciam o grau de imersividade e de interatividade no Machinema? f) Quais as relações espaciais e temporais que se estabelecem entre o ambiente virtual e real no Machinema? Estas formas híbridas entre a experiência das artes visuais e do cinema na criação de um espaço para o envolvimento sensorial do espectador, conforme Maciel (2009), representam o cinema como interface, como superfície em que podemos ir através, onde o espectador experimenta sensorialmente as imagens espacializadas de múltiplos pontos de vista, bem como pode interromper, alterar e editar a narrativa em que se encontra imerso. Já Parente (2009), ao empenhar uma reflexão sobre a nova experiência espectatorial, cita autores como Bruce Nauman, Peter Campos, Steina e Woody 14 Vasulka e Dan Graham que utilizaram o circuito fechado para recriar instalações em que o dispositivo e a própria experiência da obra são vividos como personagens principais, para demonstrar de que forma a videoarte renovou de modo radical o lugar do espectador e o conceito de obra de arte. Para Shaw (2003), apesar de estarmos ainda no começo deste processo, podemos identificar características focais do domínio emergente do cinema digitalmente expandido, onde as tecnologias dos ambientes virtuais apontam para um cinema que se transforma em um espaço de imersão narrativo, no qual o espectador assume o papel de câmera e editor. Essas convergências tecnológicas muitas vezes triviais, que aqui se anunciam, são apenas o prenuncio de algo muito mais interessante – a convergência sinestésica de todas as possibilidades de percepção em um espaço-tempo configurado a partir de formações reais, substitutivas e virtuais, onde a obra artística não é mais simples representação, mas que define a própria estrutura desses espaços e suas atividades. Assim, propomos nesta dissertação, pensar o Machinema como um objeto que gera um ambiente mediado, compartilhado e colaborativo, um espaço híbrido, imersivo e interativo que a partir de suas características configuracionais estabelece um dos possíveis formatos do cinema digitalmente expandido. As reflexões aqui delineadas embasam o objetivo geral desta dissertação. Trata-se de compreender a estrutura e funcionamento do Machinema, explorando suas possibilidades maquínicas e interrogando sua natureza híbrida, imersiva e interativa, sendo que este objetivo geral reúne os seguintes objetivos específicos: a) Investigar a trajetória do experimentalismo cinematográfico afim de compreender seus efeitos; b) Verificar quais as transformações que ocorrem a partir destes outros cinemas que podem ser exibidos em outras salas e com espectadores móveis; c) Investigar a especificidade arquitetural do Machinema, a partir das relações estabelecidas no ambiente mediado; d) Identificar quais as consequências na lógica da maquinação; 15 e) Identificar aspectos que devem ser considerados para permitir uma classificação de seu grau de hibridismo, imersividade e interatividade, a partir do sistema de trocas no ambiente mediado; f) Identificar quais as consequências na lógica de sua maquinação e conceituar suas dimensões analíticas; g) Demonstrar quais os deslocamentos, implicações estéticas e desdobramentos narrativos presentes no Machinema; h) Identificar e analisar filmes que permitem a conformação do Machinema, para comprovar e demonstrar os pressupostos teóricos desenvolvidos. A abordagem utilizada nesta pesquisa possui natureza teórico-metodológica aplicada, de função qualitativa e objetivo exploratório. Por se tratar de análises de um fenômeno muito recente exigiu movimentos específicos. Com a finalidade de atingir os objetivos deste estudo, a estrutura metodológica foi elaborada em nove partes de igual importância: 1ª. Parte: levantamento, avaliação e síntese de fontes bibliográficas para embasamento teórico da pesquisa, sendo que em alguns pontos deste estudo, para compreensão do objeto, fez-se necessário a elaboração de novos conceitos, por não haver a produção de um repertório teórico acadêmico específico; 2ª. Parte: delineamento da concepção espacial do Machinema e elaboração do gráfico demonstrativo do ambiente mediado, a partir da participação observatória nas audiências da Mostra Internacional de Filmes Interativos, que aconteceu em novembro de 2011 no Centro Cultural do Banco do Brasil, em Brasília; 3ª. Parte: pesquisa de procedimentos, técnicas e tecnologias utilizadas na produção do Machinema, a partir de contato com os 16 diretores e produtores destes filmes, além dos organizadores, patrocinadores e curador da Mostra Internacional de Filmes Interativos; 4ª. Parte: elaboração de gráfico demonstrativo, com a finalidade de simular o ponto de intersecção do ambiente da tarefa e da ação no Machinema, afim de identificar e conceituar os três principais aspectos da experiência imersiva: forma e estrutura narrativa, interatividade imersiva e tecnologia de agenciamento; 5ª. Parte: análise do sistema de interação no Machinema e conceituação de suas dimensões, tanto no processo maquínico quanto na maquinação, considerando seu conteúdo, adaptabilidade, comunicabilidade, navegabilidade e controlabilidade, no intuito de identificar elementos que possam demonstrar um padrão para formatação de uma categorização da interação; 6ª. Parte: seleção de dez objetos e suas análises, especificamente, baseando-se no conceito estabelecido na 5a. Parte dessa metodologia, com o objetivo de construir e compreender o conceito estrutural do Machinema, além de demonstrar a relevância do método. Esta análise foi feita a partir de um quadro explicativo de cada uma das dimensões para cada um dos objetos. No momento da seleção, foram escolhidos também outros dois objetos, exibidos na mesma Mostra, para constituírem o corpus desta pesquisa. Para seleção destes objetos – A Gruta e Last Call, o critério considerado foi de representatividade e complexidade; 7ª. Parte: conceituação das cinco categorias de interação (Veredicto, Rayuela, Investigativa, Quiz e Rítmica), a partir das análises desenvolvidas na 6a. Parte dessa metodologia, no intuito de compreender a relação de trocas que se estabelece no Machinema e a construção de sentido. Ainda nesta parte, foi desenvolvida a 17 análise dos mesmos dez objetos, com a função de ilustrar a metodologia; 8ª. Parte: análise das divergências e convergências entre Game e o Machinema, no intuito de compreender a construção do espaço lúdico; 9ª. Parte: análise do corpus e sistematização dos resultados analíticos. A abordagem analítica da pesquisa será desenvolvida considerando as seguintes etapas: a) Desconstrução e reconstrução do espaço fílmico; b) Análise do grau de imersividade; c) Análise das dimensões nos processos de interação; d) Análise das categorias de interação; e) Análise do ambiente lúdico; f) Análise interpretativa. A reflexão e o debate sobre o cinema digitalmente expandido e suas possibilidades de conformação são um grande desafio, por apresentarem mudanças consideráveis não só nas formas de entretenimento, como também novos modelos de consumo e principalmente pela precariedade dos suportes conceituais, atualmente disponíveis para análise, avaliação e compreensão destes objetos que surgem a partir das novas configurações culturais e sua fluidez. Assim, a relevância desta abordagem no âmbito teórico se dá pela necessidade de produção de conhecimento nesta área e que poderá promover avanços teóricos que analisam a experiência do agenciamento contemporâneo entre cinema, artes visuais e novas mídias, uma vez que toma como objeto de estudos um fenômeno muito recente – o Machinema. Outro aspecto que se faz relevante é pela possibilidade de compreensão das potencialidades imersivas interativas, que se estabelecem através do diálogo homem-máquina focalizado neste objeto cultural, que proporciona um estilo e forma específica de produção criativa, que se anunciam através das formas 18 de interação presentes no Machinema. E, por fim, é justamente a possibilidade de investigar os possíveis caminhos que o cinema digitalmente expandido poderá trilhar e quais as possibilidades de territorialização, interação e significação. O pano de fundo que servirá de referência para fundamentar este estudo parte de dois conceitos estabelecidos na década de 1970: Cinema Expandido, proposto por Gene Youngblood e Dispositivo, concebido por Jean-Louis Baudry. Para melhor detalhamento o estudo será dividido em três capítulos: O primeiro capítulo – Plano Geral – Machinema: uma outra concepção arquitetônica do cinema - trata do percurso histórico evolutivo do dispositivo cinema e os avanços tecnológicos, sob o prisma das transformações e experimentações e, por consequência, seus afetos com relação ao efeito-cinema, além de contextualizar e apresentar quatro momentos insignes inscritos na história cinematográfica: Cinema no Momento Maquínico, Cinema no Momento das Tecnologias Eletrônicas, Cinema Expandido e Cinema Digitalmente Expandido. Este capítulo pretende ainda, posicionar o leitor com relação às experimentações tecnológicas, suas mediações e a estrutura de interação com sua audiência, além de empenhar uma reflexão sobre o alargamento da concepção de cinema e a destituição das fronteiras da janela mágica, promovendo a “fusão” do que é da ordem do real com o que é do virtual, pontuando aspectos híbrido, imersivo e interativo, baseando-se principalmente na abordagem de autores consagrados nesta área, como: André Parente, Jeffrey Shaw, Katia Maciel e Lúcia Santaella. No capítulo seguinte – Plano Médio – A Construção de Sentido no Machinema – o conceito de Mashall McLuhan – o meio é a mensagem – e os conceitos de interatividade de André Lemos, Jonathan Steuer e Sheizaf Rafaeli dão o norte para as investigações acerca do Machinema. Este capítulo aborda com maior profundidade elementos estruturais que configuram o processo e formatam do ponto de intersecção do ambiente da ação e da máquina, apresenta conceitos e metodologias de análises, por mim desenvolvidas, afim de compreender o grau da experiência imersiva, o processo sistemático entre o maquínico e a maquinação, as possibilidades analíticas, a construção do espaço lúdico, além dos processos de identificação estabelecidos a partir das divergências e convergências entre o play e o game e os possíveis modelos de interação que formalizam o Machinema. Tais conceitos são desenvolvidos a partir da análise de dez objetos que foram exibidos 19 na Mostra Internacional de Filmes Interativos (2011), sendo estas análises parte integrante deste segundo capítulo. Tendo elaborado um conceito inicial acerca do Machinema o terceiro capítulo – Primeiro Plano – Machinema: A Gruta e Last Call, é essencialmente analítico e apresenta reflexões acerca dos elementos do discurso cinematográfico no Machinema, tais como: linguagem, montagem, estética, autoria, repertório e interrelações espectador-espetáculo, com o objetivo de compreender sua reconfiguração formal, a partir da análise dos objetos escolhidos para compor o corpus desta pesquisa. Com maior realce quatro autores darão sustentação teórica: André Lemos, Arlindo Machado, Erick Felinto e Lúcia Santaella. Neste capítulo, também se pretende demonstrar a aplicação dos conceitos elaborados no segundo capítulo. As Considerações finais apresentam uma reflexão, a partir das exposições e argumentações realizadas nos capítulos precedentes, sobre o processo da hibridização de mídias que surgem a partir das novas configurações culturais, sua construção narrativa, estética e estilística, frente a uma sociedade pautada no consumo e dirigida pela convergência da era digital. 20 1. PLANO GERAL - MACHINEMA: UMA OUTRA CONCEPÇÃO ARQUITETÔNICA DO CINEMA O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho. Orson Welles Sabe-se que do pré ao pós cinema a arte de reproduzir imagens em movimento nasce e se mantém até hoje sob os signos da transformação e do experimentalismo tecnológico e dos mecanismos de produção, de relações de distribuição e exibição com o mercado e da vivência espectador / espetáculo. O desejo por criar e projetar imagens em movimento, as constantes experiências de como trabalhar com cor, som, profundidade, espacialidade, entre a ampliação de tantas outras técnicas, expandiram o campo de pesquisa do cinema, permitindo que questões da arte, da literatura, do teatro, da pintura e da fotografia fossem aprofundadas e combinadas em estruturas inauguradas pela linguagem cinematográfica. Dentro desse contexto o cinema manteve-se associado às condições econômicas, políticas e ideológicas, mas, sobretudo sua trajetória demonstra uma exploração criativa da capacidade expressiva do homem. Para Jeffrey Shaw3 (2005), embora o modelo hollywoodiano tenha definido as formas dominantes de produção, exibição, distribuição, estética e narrativa do cinema, com o advento das novas tecnologias das mídias digitais que surgiram a partir do uso do computador e das redes telemáticas, o caráter fordiano do cinema, já ultrapassado quando ele deixa de produzir apenas produtos, apesar do uso frenético dos efeitos especiais, não se amolda a um outro modelo de caráter expandido, mas sim e passa a ser visto sob esse outro caráter (expandido) quando ele se insere no audiovisual da comunicação, em paridade com outras mídias, que aponta para a ascensão das indústrias do entretenimento, em especial a Location Based Entertainment (LBE)4 . “Esses novos contextos parecem estar estabelecendo 3 Jeffrey Shaw (1944) – Fundador e Diretor do Centro de Pesquisa de Cinema Interativo (iCinema) em Sidney, é reconhecido como um dos principais atuantes em media arts. 4 Location Based Entertainment (LBE): indústria de entretenimento que desenvolve atrações de simulação de realidade alterada para múltiplos participantes e, geralmente, instaladas em um local fixo. Os projetos de LBE utilizam avanços tecnológicos, tais como interatividade, movimentos sincronizados, simulações de vídeo e cinema, imagens 3D, ambientes imersivos, realidade virtual, entre outros. 21 uma plataforma apropriada para outros desenvolvimentos das tradições do cinema experimental e expandido” (SHAW, 2005, p.355), que se caracteriza, sobretudo, por um amplo leque de modalidades interativas. Enfatiza Shaw: Apesar de estarmos ainda no começo do processo, podemos identificar as características focais do domínio emergente do cinema digitalmente expandido. As tecnologias dos ambientes virtuais apontam para um cinema que é um espaço de imersão narrativo, no qual o usuário interativo assume o papel de câmera e editor. E as tecnologias dos videogames e da internet apontam para um cinema de ambientes virtuais distribuídos que também são espaços sociais, de modo que as pessoas presentes tornam-se protagonistas em um conjunto de deslocamentos narrativos (SHAW, 2005, p.356). Assim, a emergência da presença do homem pela participação na construção das narrativas, expressando desejos e decisões trata-se de uma característica nata do usuário digital, produto da pós-modernidade, que se pauta na interatividade, na imersão e na interdisciplinaridade. Consequentemente, o espectador é inserido em um contexto atuante, recebendo o estatuto de espectadormultimídia, cuja participação passa a ser decisiva para constituição do objeto estético. Afirma Lúcia Santaella: Não é mais tampouco um leitor contemplativo que segue as sequências de um texto, virando páginas, manuseando volumes, percorrendo com passos lentos a biblioteca, mas um leitor em estado de prontidão, conectando-se entre nós e nexos, num roteiro multilinear, multidisciplinar, multisequencial e labiríntico que ele próprio ajudou a construir ao interagir com os nós entre palavras, imagens, documentação, música, vídeo e etc. (SANTAELLA, 2004, p. 33). Neste sentido, Shaw (2005) identifica duas correntes na artemídia. Uma que configura a experiência audiovisual inserida em uma fronteira delimitadora, que estabelece uma relação distanciada entre o usuário e a ficção que é construída dentro do quadro, onde tanto a moldura de uma pintura em um quadro, ou o palco onde se encena uma peça de teatro, ou envoltório de um aparelho de TV, ou ainda a borda negra de uma tela de cinema, delineia e separa o espaço ficcional do espaço real e estabelece a janela mágica, através da qual os espectadores contemplam 22 espaços esteticamente planejados. A outra corrente é a que produz um alargamento das possibilidades através do desenvolvimento da experimentação, do incorporar de novas referências e novas materialidades, que extrapolam o código de seu fazer inaugural e, assim, rompem com a moldura para que não haja nenhuma janela mágica ou para que esta se abra para um outro espaço que possibilite o envolvimento sensorial do espectador, permitindo que ele “avance sobre o espaço da tela e muitas vezes, atravesse-o não apenas mental ou visualmente, mas também com todo o seu corpo”, como define Katia Maciel em sua obra – Transcinema (MACIEL, 2009, p.18). Pensar a interatividade e a imersão no cinema é tratar o filme como campo em expansão não só no teor comunicacional, mas também na sua própria materialidade. Ao analisar o hibridismo e sua potencialidade na produção de novos objetos é possível perceber a convergência entre o cinema e as novas plataformas tecnológicas, multimídias, multifacetadas, multíplices. A partir das possibilidades computacionais a matéria fílmica passa de analógica à digital e o que é digital vira variável, abrindo, assim, inúmeras opções de reestruturação desta matéria, permitindo que ela possa ser alterada, mapeada, se torne interface de interação com o espectador e até mesmo que se materialize e constitua um outro espaço estético. São estas possibilidades que convocam ao renascimento de um experimentalismo muito mais fluente que na fase inaugural do cinema, se autorizam à construção de um efeito fluido sensorial que exala significações num contexto que extrapola a virtualidade do real e dão origem a um outro espaço cinematográfico, gerando assim um ambiente de imersão sinestésica, por mim denominado Machinema: O Machinema em sua definição ampliada refere-se à essência híbrida da produção de filmes de ficção com personagens live action, onde um mesmo personagem possui diversas trajetórias e, portanto, a produção de inúmeros roteiros desdobrados a partir de uma trama central, que se utilizando de técnicas cinematográficas associadas a plataformas de múltiplas escolhas, tem como característica fundamental a montagem compartilhada com o espectador / interator, partilhando com este, muitas vezes a posição de protagonista, roteirista, diretor ou narrador do filme. Desta forma, este novo modelo não deve ser reduzido simplesmente ao formato de “escolha sua própria aventura”, mas sim, deve ser visto como a vinda para a vida pós-moderna permeada de preocupações com a multiplicidade, diversidade, incompletude, as concepções espaciais do self e um quebra-cabeças de histórias explicitamente expressas através da tecnologia interativa. (ORRÙ, 2011, p.37). 23 O Machinema é, conceitualmente, tanto um filme que se conforma essencialmente por sua base tangencial interativa, quanto um processo de maquinação real time, que se quer definir a territorialidade do espaço cinemático. É importante salientar que o conceito de Machinema, por ora definido, expressa sua condição investigativa, uma vez que trata-se de um campo que ainda se está conformando. Assim, no intuito de compreender o alargamento fundamentado no experimentalismo e nas possibilidades tecnológicas que a concepção de cinema vem sofrendo nas últimas décadas, afim de se permitir uma análise mais aprofundada do corpus desta pesquisa, se faz necessário empenhar uma reflexão sobre o dispositivo cinematográfico e indagar: a) qual a trajetória do experimentalismo no cinema? b) quais as transformações que ocorrem a partir destes outros cinemas? c) quais as possibilidades de conformação de um outro espaço cinematográfico? 1.1 - Dispositivo Cinematográfico: Efeito-Cinema O conceito de dispositivo5 surge nos anos 1970 entre os teóricos desconstrutivistas franceses Jean-Louis Baudry, Christian Metz e Thierry Kuntzel, e se divide em dois aspectos: o primeiro pela técnica e mecânica do fazer cinema e o segundo pelas possibilidades de exibição. Ambos colaboram para a percepção, apreensão e interpretação por parte do espectador como indivíduo e o constituem como sujeito colocando-o imaginariamente em um lugar central. Neste estudo o conceito de dispositivo utilizado é o de Jean-Louis Baudry que, numa perspectiva inspirada na psicanálise freudiana6 e no sentido marxista de 5 O ponto de partida para a compreensão do conceito de dispositivo, buscamos em Michel Foucault, uma vez que a noção de dispositivo foi por ele amplamente teorizada e disseminada. Para Foucault, o dispositivo consiste numa rede que pode ser estabelecida entre diferentes elementos, tais como: o poder em relação a qualquer formação social; a relação entre fenômeno social e o sujeito; e a relação entre discurso e a prática, as idéias e as ações, atitudes e comportamentos. 6 Psicanálise freudiana – Teoria desenvolvida por Sigmund Freud no final do século XIX. Trata-se de um campo investigativo da psique humana, que se propõe compreender e analisar o homem enquanto sujeito do inconsciente. 24 ideologia7, introduziu o termo como título de um de seus artigos, que consagrou à teoria do espectador de filme e que apontava a própria materialidade do cinema, o seu aparato, especialmente o aparelho que fornece as condições de percepção, independentemente do filme exibido, como fator determinante para a ilusão e a impressão de realidade que o cinema transmite. Baudry centrava-se na relação que se cria entre a sucessão de fotogramas inscritos pela câmera e a operação da projeção que reestabelece sobre a tela, a partir de imagens fixas e sucessivas, a continuidade do movimento e a construção do tempo, ocultando a descontinuidade da filmagem, apagando seus procedimentos, tornando o significante cinematográfico invisível para o espectador, sendo esta invisibilidade o que permitirá a produção posterior do efeito de sentido de todo o filme, como se este pudesse dizer as verdades do mundo sem intermediação, produzindo, assim, um efeito ideológico e subjetivo. Define Baudry: O efeito do sentido não depende apenas do conteúdo das imagens, mas dos procedimentos materiais pelos quais uma continuidade ilusória, graças à persistência das impressões na retina, é reestabelecida a partir de elementos descontínuos – elementos estes, as imagens, que trazem entre os precedentes e os seguintes, diferenças. Diferenças indispensáveis para que seja criada a ilusão de continuidade, de passagem contínua (movimento, tempo). Mas com uma condição: que tais diferenças sejam apagadas.(...) a aparelhagem mecânica escolhe a diferença mínima e na projeção a reprime para constituir o sentido: ao mesmo tempo, direção, continuidade, movimento. O mecanismo de projeção permite suprimir os elementos diferenciais (a descontinuidade inscrita pela câmera), deixando em cena apenas a relação entre eles. Portanto, as imagens como tais se apagam para que o movimento e a continuidade apareçam. Assim, pode-se presumir que aquilo que já estava na obra como fundamento constitutivo da imagem perspectivista, isto é, o olho, o “sujeito”, é relançado, liberado (como uma reação química libera uma substância) por uma operação que transforma imagens sucessivas, descontínuas (enquanto imagens isoladas, falando com propriedade, elas não têm sentido, tampouco unidade de sentido), em continuidade, movimento e sentido. A continuidade rerestabelecida é, ao mesmo tempo, sentido e consciência reestabelecidos (BAUDRY, 1970 apud XAVIER, 1983, p. 389-391). 7 Para Baudry o dispositivo cuja origem está na vontade burguesa de dominação, criada pela imagem perspectivada, onde esta produz uma cegueira ideológica, uma alienação fetichista que remete a esta vontade de dominação. 25 De acordo com Jacques Aumont8 (1993), para Baudry não há uma delimitação entre o corpo e a imagem; ambos parecem fundir-se no mundo diegético e assim o dispositivo cinematográfico tem efeito subjetivo sobre o espectador. A partir deste pensamento, Baudry se apropria da psicanálise e da filosofia para dar conta do estudo desse efeito, “que se especifica em várias direções: regressão narcisista, assimilação ao sonho, mas também retorno a um passado mítico, no caso, o mito platônico”. Esclarece Aumont: O aparelho de simulação consiste (...) em transformar uma percepção em uma quase alucinação, dotada de um efeito de real incomparável ao que é trazido pela própria percepção (...). No “Le dispositif”, Baudry traça assim um longo paralelo entre a situação do espectador de filme e a dos escravos acorrentados da parábola de Platão, condenados a verem da realidade apenas as sombras projetadas na parede diante deles (AUMONT, 1993, p. 196). Assim, é possível que os efeitos produzidos sobre o espectador dependam muito mais do “dispositivo do cinema considerado em seu conjunto (câmera, moviola, projetor, etc.) e das condições de projeção (sala escura, projeção feita por trás do espectador, imobilidade deste, etc.)” (PARENTE, 2009, p. 25) do que do filme como um todo ou de sua organização discursiva, ou seja, o dispositivo é o que regula a relação entre o espectador e suas imagens, obviamente em um determinado contexto simbólico que revela-se, também, necessariamente social, uma vez que as trocas simbólicas não existem no abstrato, mas são determinadas pelos caracteres sociais que a engendram. Neste sentido, Aumont (1993) ressalta que o estudo do dispositivo é obrigatoriamente um estudo histórico, uma vez que não há dispositivo nem tampouco um fenômeno humano que esteja fora da história. Ao longo da história do cinema, há inúmeras experiências técnica e tecnológicas, entretanto é importante ressaltar quatro momentos insignes inscritos na história cinematográfica9, marcados por transformações e experimentações quanto ao dispositivo e, por consequência, seus afetos com relação ao efeitocinema10: cinema no momento maquínico, cinema no momento das tecnologias 8 Jacques Aumont (1942) – Diretor do Centro de História do Cinema da Cinemateca Francesa, renomado teórico de cinema que atualizou o conceito de dispositivo cinematográfico. 9 Estes momentos serão motivo de tópicos específicos no decorrer deste capítulo. 10 A responsabilidade do dispositivo nos efeitos subjetivos e ideológicos produzidos pelo cinema sobre o espectador. O cinema é visto por Baudry como um desejo, uma forma de satisfação perdida que o dispositivo 26 eletrônicas, cinema expandido e o cinema digitalmente expandido. É necessário esclarecer que tais experimentações não estão sendo lançadas no tempo, e de modo linear, visto que elas não foram exclusivas a um certo período, portanto não se trata de uma evolução, uma vez que cada uma das propostas não tenha se cumprido e esgotado, devendo dar lugar a versões mais modernas do experimentalismo cinematográfico. É certo que houve a evolução da tecnologia implicada, o que afeta, por conseguinte, o resultado da maquinação, mas cabe lembrar que o cinema, desde sempre, foi uma linguagem maquínica que nasce e se mantém através do experimentalismo tecnológico. 1.1.1 - Cinema no Momento Maquínico Este primeiro momento se dá entre a invenção técnica propriamente dita e a sua institucionalização. É interessante pontuar que enquanto a técnica se define como um saber fazer, uma sequência de procedimentos que se criam, se aprendem e se desenvolvem, que se caracteriza por habilidades de um indivíduo, a tecnologia inclui a técnica e vai além. A tecnologia se encontra onde quer que haja um dispositivo maquínico capaz de corporificar um conhecimento científico acerca da habilidade técnica. Dito isso é possível compreender que grandes mudanças se deram com a Revolução Industrial, uma vez que é neste momento que criam-se máquinas capazes de reproduzir imagens, ou seja, é o fim da exclusividade do artesanato nas artes e o início das artes mediadas pela tecnologia11. Em torno de 1900, a reprodução técnica alcançou um padrão a partir do qual começou não só a transformar a totalidade das obras de arte tradicionais em seu objeto, e submeter o efeito destas a profundas transformações, como também conquistou para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos. Para o estudo desse padrão, nada é mais elucidativo que o modo como suas duas diferentes cinema terá como objetivo alcançar, e o leva a repensar a relação entre a impressão de realidade e o desejo desta impressão através das considerações freudianas sobre o sonho. 11 Esta reflexão apoia-se na teoria de Walter Benjamin, expressa em A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica (2012), que defendia a diferença radical entre o que o homem podia visualizar por meio de seu olhar e o que a câmara podia captar artificialmente. Enquanto no teatro o intérprete está inegavelmente vinculado a sua ‘aura’, a qual é, sem dúvida, captada pela plateia, não se pode dizer que no cinema o mesmo se repita, pois neste meio o público está ausente, e em seu lugar está a câmera, ou seja, uma máquina, a qual prevalece inclusive sobre os próprios atores, uma vez que os equipamentos técnicos são capazes até mesmo de representar seu papel. 27 manifestações – reprodução da obra de arte e arte cinematográfica – retroagem sobre a arte em sua forma tradicional (BENJAMIN, 2012, p. 17). Após a invenção da lanterna mágica12, da câmara escura13 e da fotografia, na década de 1820 surgiram inúmeros aparelhos ópticos fotográficos – taumatroscópio14, zootrópio15, praxinoscópio16, entre outros - que tinham por função apresentar efeitos de ilusão relacionados à imagem em movimento. Durante todo este período, houve uma experimentação efervescente relacionada ao cinema. No entanto a grande maioria dessas tentativas ainda não tinha a ver com o cinema de sala e obtiveram grande êxito comercial: em 1880, o Quinetoscópio de Thomas Edison; em 1889, o Cineorama de Raul Grimoin-Sanson e em 1903, o Hale’s Tour comercializado por George Hale, entre outros. O quinetoscópio (Figura 1) era uma espécie de caixa com um visor na parte superior, onde uma pessoa poderia introduzir uma moeda em uma pequena fenda e mover a manivela disposta na lateral da caixa, para assim, em uma experiência individual (Figura 2), assistir a exibição de uma pequena tira de filme em looping, na qual apareciam cenas animadas. Estes filmetes eram de produção do próprio Edison, através de uma câmera denominada quinetógrafo. Na época, Edison queria apenas comercializar os quinetoscópios, pois seu maior interesse ultrapassava a 12 Lanterna mágica (aparato) – Surge em 1645, por um jesuíta chamado Athanasius Kircher, composta por uma caixa cilíndrica iluminada à vela, fazendo passar a luz pela imagem que assim se projetava na parede. No século XVIII, Pieter van Musschenbroek demonstrou que um disco giratório com imagens em sequência poderia dar a ilusão de movimento (SOLOMON, 1994). 13 Câmara escura – Aparelho óptico que esteve na base da invenção da fotografia. Surgiu no século XVII e tratase de uma caixa, que através de um orifício em um de seus cantos passa uma luz externa e atinge uma superfície interna, onde é reproduzida a imagem invertida. O conhecimento de seus princípios óticos se atribui a Aristóteles, anos antes de Cristo, e seu uso para observação de eclipses e ajuda ao desenho, a Giovanni Baptista Della Porta (www.kodak.com.br). 14 Taumatroscópio – Em 1825, o médico inglês John Paris criou um brinquedo, chamado taumatroscópio, baseado em seu conhecimento de que o cérebro humano retém a imagem de um objeto por cerca de 1/30 segundos (o que se chama “persistência retiniana”). O artefato consiste simplesmente de um pequeno disco de papelão com desenhos nos dois lados (MALLALIEU, 1999). 15 Zootrópio – Surge no século XIX, foi de W.G.Homer, de Bristol. Tratava-se de um tambor de zinco com fendas cortadas a intervalos regulares ao seu redor. Dentro do tambor havia uma tira de papel larga na qual estavam desenhados sucessivos estágios de um movimento executado por uma pessoa ou animal (MALLALIEU, 1999). 16 Praxinoscópio - Patenteado pelo francês Émile Reynaud em 1877, era simplesmente um aperfeiçoamento do zootrópio. No centro do tambor havia outro tambor menor, fixo e com pequenos espelhos presos à sua volta. O observador girava o tambor externo e olhava no espelho mais próximo, que apresentava o reflexo do movimento (MALLALIEU, 1999). 28 simples projeção de fitas mudas, uma vez que pouco antes ele inventara o fonógrafo17, e tinha por objetivo maior acrescentar ao som a imagem correspondente. Entendia que ao comercializar o aparato faria melhores negócios que projetando filmes para um público, pois não acreditava no consumo simultâneo e coletivo. Figura 1 - Quinetoscópio Figura 2 – Experiência Individual Ao contrário da individuação do Quinetoscópio, o Cineorama possibilitava uma experiência coletiva. Durou apenas três dias na exposição 1900 de Paris. Em seguida foi fechado por questões de segurança. Patenteado por Raul GrimoinSanson em 1897, consistia em um dispositivo que para compor uma única imagem, utilizava 10 projetores sincronizados dispostos em um círculo de cem metros em torno de uma plataforma de observação. No centro da sala uma cesta de balão (capaz de receber duzentos espectadores) munida de todos seus acessórios habituais: âncora, cordas, contrapeso e escada, no intuito de ambientalizar a experiência e tendo o teto coberto por uma cortina imitando um envelope. Sob a cesta eram fixados os dez projetores que, após a sala ter sido escurecida, projetavam imagens de decolagens de balões e suas aterrissagens através de imagens obtidas pela inversão da exibição do filme. 17 Fonógrafo – inventado por Thomas Edison em 1877, surgiu quando ele trabalhava no desenvolvimento para a invenção da lâmpada secreta (CARDOSO, 2005). 29 Já o Hale’s Tour, que fora explorado comercialmente por George Hale, nos Estados Unidos, era composto de salas de cinema que imitavam vagões de trem. Na entrada dos supostos vagões havia um espaço central que simulava a estação principal, onde funcionários uniformizados orientavam os espectadores na entrada das salas (que possuíam aproximadamente 70 lugares) para o que seria uma “viagem”, que tinha duração de trinta minutos. Nas janelas laterais e frontais dos vagões eram projetadas imagens cinematográficas de paisagens que haviam sido filmadas originalmente a partir de trens em movimento. Para aludir uma maior sensação de realidade na plateia, havia um reforço de simulação no dispositivo que causava vibrações e outros movimentos nos vagões, além dos sons e de efeitos como o ar sendo soprado no rosto dos espectadores, para permitir a sensação de vento. Os primeiros 20 anos do cinema inauguraram a era da predominância das imagens e foram marcados por transformações constantes, uma vez que o cinema não era detentor de um código e o que havia era uma tendência ao hibridismo deste com outras formas culturais – os espetáculos da Lanterna Magika18, o teatro popular, a fotografia e as ilustrações. Por esta razão os projetores de filmes apareceram como mais uma curiosidade dentre tantas as invenções da época. As experimentações no cinema não param neste momento de frenesi causado pelas imagens em movimento e as incertezas quanto a seu futuro. O cinema vai para as salas de projeção e muitas outras experiências interessantes são elaboradas a partir de sua maquinação. Enquanto o quinetoscópio, de Edison, ainda fazia sucesso em locais de acesso público (feiras, circos, parques de diversão), mas se configuravam como uma atração individual, os irmãos Lumière, em dezembro de 1895, iniciam as demonstrações coletivas e pagas, de seu cinematógrafo19 (Figura 3) no Grand Café de Paris. Embora não tenham sido os primeiros a comercializar uma exibição coletiva, são os que ficaram mais famosos. 18 A Lanterna Magika eram espetáculos, que tiveram início no século XVII, onde um apresentador mostrava ao público imagens coloridas projetadas numa tela, através do foco de luz gerado pela chama de querosene, com acompanhamento de vozes, música e efeitos sonoros. 19 Cinematógrafo – O aparelho permitia registrar uma série de instantâneos fixos, em fotogramas, criando a ilusão do movimento que durante um certo tempo ocorre diante de uma lente fotográfica e depois reproduzir esse movimento, projetando as imagens animadas sobre um anteparo em tela (Rosenfeld, 2002, p.52). 30 Figura 3 - Cinematógrafo O progresso técnico, ao possibilitar a reprodução do movimento, criou também um novo público e um mercado para o novo produto. Nem seus inventores se deram conta que nas grandes metrópoles havia a aglomeração de um público potencial sem grandes aspirações individualistas, que representaria um mercado ideal para o consumo em massa de um espetáculo produzido em massa. Assim, sob o prisma econômico e social, é possível afirmar que o cinema, assim como toda a Era Industrial, é filho do capitalismo, muito embora este tenha lhe oferecido as condições necessárias para garantir o desenvolvimento cinematográfico no âmbito artístico, também lhe exigiu métodos de produção, e ao fabricá-lo com o propósito de gerir, ampliar e atender uma demanda lhe impôs o estatuto de mercadoria e ameaçou esmagar uma arte por ele mesmo criada. Logo o cinematógrafo dos Lumière chega aos EUA e como afirma Flávia Cesarino Costa (2006) com um modelo pré-industrial de comercialização que atrai o interesse dos vaudevilles – uma versão norte-americana dos cafés parisienses – uma vez que estes ofereciam os projetores, os suprimentos dos filmes e os operadores das máquinas. Além de serem bastante populares, os vaudevilles eram os locais onde uma grande parcela da classe média frequentava em busca de diversão. “O êxito comercial dos filmes projetados nestes recintos a um preço ínfimo foi sensacional e superou de longe a renda dos quinetoscópios” (Rosenfeld, 2002, p 68). Sua programação incluía espetáculos circenses, sessões de lanterna mágica, encenações dramáticas, além das apresentações dos pequenos filmes, que se encaixavam com facilidade, por serem atrações independentes como afirma Costa: 31 ...os Lumière tinham criado nos EUA um padrão de exibição que sobreviveu até a década seguinte: o fornecimento, para os vaudevilles, de um ato completo, incluindo projetor, filmes e operador num esquema pré-industrial, que mantinha a autonomia dos exibidores de filmes em relação à produção. Essa dependência do vaudeville adiou temporariamente a necessidade de o cinema americano desenvolver seus próprios caminhos de exibição e impediu que o cinema adquirisse autonomia industrial. A estrutura do vaudeville não requeria uma divisão da indústria entre as unidade de produção, distribuição e exibição (COSTA, 2006, p.21). Este primeiro momento denominado por Tom Gunning de “cinema das atrações” tinha a intenção de fascinar, maravilhar, mas também de assustar o espectador, onde narrar a história não tinha a menor importância e afirma Costa: ...Gunning propôs que o gesto essencial do primeiro cinema não era a habilidade imperfeita de contar histórias, mas sim, chamar a atenção do espectador de forma direta e agressiva, deixando clara sua intenção exibicionista. Neste cinema de atrações, o objetivo é, como nas feiras e parques de diversões, espantar e maravilhar o espectador; contar histórias não é primordial. O objetivo de mostrar fica claro tanto em cenas documentais, quando os passantes saúdam a câmera, como nas encenações, em que os atores cumprimentam o observador e o incluem na cena, quebrando a possibilidade de construção de um mundo ficcional (COSTA, 2006, p.24). As práticas do cinema nesta época podem apontar para outra invenção que, não por uma simples coincidência, surgira no mesmo momento: a psicanálise. De acordo com Machado (1997) em 1900, ano em que Méliès lança Cendrillon, sua primeira féerie em forma de narrativa fantástica, Freud20, o pai da psicanálise, publica A Interpretação dos sonhos, obra em que investiga a simbologia onírica. Tanto Freud quanto Méliès, demonstram ter como objetivo a fusão impossível da ciência com o irracional. Enquanto a psicanálise se inseria nos grupos de elite, o cinema se colocava como divã da classe operária. Em A interpretação dos sonhos, Freud lança ideias inovadoras que não apenas vão revolucionar a compreensão dos sonhos que se tinha até então, como também proporcionar um esclarecimento inédito sobre o funcionamento do pensamento e da linguagem e afirma que o sonho é a realização dissimulada de um desejo reprimido recalcado, ainda que de forma mascarada por condensações e 20 Sigmund Freud (1856 – 1939) médico neurologista austríaco, fundador da psicanálise 32 deslocamentos. Logo Freud inicia a elaboração da teoria sobre as manifestações do inconsciente: sonhos, atos falhos, chistes e em 1905 publica Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde inicia seus estudos sobre as pulsões além de afirmar que os sintomas neuróticos não se criam unicamente em detrimento da pulsão sexual normal, mas em parte também em detrimento de uma sexualidade anormal. Assim, as fantasias do desejo e o trabalho das pulsões, que Freud trazia à Luz ao mesmo tempo em que Méliès, sem trocadilho, jogava na sala escura, saltam ao primeiro plano e vão, a partir daí, reivindicar o estatuto de plena cidadania (MACHADO, 1997, p.37). Dito isso, é possível se fazer uma analogia com as produções de Méliès, e perceber que o papel que o cinematógrafo operava em seus espectadores, produzia o mesmo tipo de transferência que ocorria na elaboração do sonho pelo sujeito, como comentado anteriormente acerca da teoria de Baudry. O cinema de Méliès se traduziu em uma obra burlesca, perversa e divertida, que produzia o fascínio das multidões e os atraia para as salas escuras, em função do componente onírico de fundo psicanalítico, pois buscavam nas féeries e nas mises en scène magiques aquilo que não poderia a princípio ser mostrado. Ilustra Machado: Pierre Jenn observou, a esse respeito, que a obra de Méliès, tranquila na sua superfície, aparentemente desprovida de paixões ou outros sentimentos fortes que não o riso descomprometido, está atravessada todavia por uma angústia profunda e “arcaica”, tanto mais inquietante quanto mais se dissimula e se insinua nas pantomimas. Que pode haver de mais divertido que Elipse de soleil em pleine lune (1907)? – pergunta ele. Um astrônomo de opereta (o próprio Méliès) observa pelo telescópio um eclipse do sol. Ao passar por detrás da lua, o sol, muito atrevido, resolve se aproveitar da situação, para o prazer do astro noturno. As expressões de gozo sexual por parte da lua são inequívocas (nos filmes de Méliès os astros tem rostos), quando sente o sol precipitar-se sobre ela. Excitado, o astrônomo se inclina para espiar a cena mais de perto e...cai janela abaixo! Tudo aparentemente muito inocente. Mas quem são esse sol e essa lua – explica Jenn – senão metamorfoses do pai e da mãe? E o que fazem eles um encima do outro senão o coito? O astrônomo Méliès, espiando pelo seu telescópio (versão transformada do instrumento emblemático da escopofilia: o buraco da fechadura), não está revivendo nesse pequeno filme o fantasma da cena primitiva, essa cena que se passa em plene lune, como diz o título (MACHADO, 1997, p.38). 33 Em 1915, D. W. Griffith21 no filme “Nascimento de uma nação” utiliza técnicas de produção, que já vinham sendo exploradas por ele desde 1908, gerando uma linguagem inovadora incluindo recursos de montagem e câmera que modificou significativamente a forma, a estética e a narrativa do cinema. Esclarece Rosenfeld: Em suma, o cinema ia conquistando um lugar sólido no mundo dos divertimentos. Começa a aperfeiçoar lentamente sua técnica e sua gramática. De início o cinema engatinha e balbucia. Agora começa a andar e, embora mudo, aprende a falar com nexo e faz as primeiras tentativas de expressar-se.(...)Já se experimentam os efeitos do corte, os planos próximos, a movimentação da câmera. A guerra é um golpe tremendo para o cinema europeu. De um salto, a América conquista a supremacia industrial, ao mesmo tempo em que galgou um lugar decisivo na evolução estética do filme, graças ao gênio do primeiro cineasta completo e consciente: D. W. Griffith (ROSENFELD, 2002, p.101/102). Desde esta época, a ubiquidade marca a expansão cada vez maior do cinema, tanto no âmbito econômico quanto no social, do ponto de vista do espetáculo: pela possibilidade de multiplicação do aparato (projetor, filme, etc.) o mesmo filme poderia estar presente em diferentes espaços ao mesmo tempo e do ponto de vista do espectador: a sensação produzida pelo espetáculo (efeito-cinema) de presença no espaço fílmico, ainda que esta fosse marcada pela ausência. Desta forma o cinema mostrou-se uma opção mais atraente de entretenimento, produzindo espetáculos plenos de maravilhosos poderes, para distrair as massas e lhes organizar as horas de lazer. A Década de 20 consolida a indústria cinematográfica americana e os grandes gêneros – western, policial, musical e, principalmente, comédia – todos ligados ao star system22, o sistema de “fabricação” de estrelas, que encantam as plateias. E mais uma vez encontramos na psicanálise a possibilidade de justificativa para a reação do espectador diante do efeito-cinema. O cinema como agente produtor de personalidades, também funcionava como simulacro. Exibiam personagens por ele criados que eram impregnados com estilos 21 David Llewelyn Griffith (1875 – 1948) – Diretor de cinema estadunidense. Introduziu no cinema o que alguns teóricos chamam montagem paralela ou alternada, isto é, a alternância de duas ou mais linhas de ação, e o salvamento no último minuto são duas formas de construir tensão, além de outras inovações. 22 Star system – O sistema de estrelas foi o método de criação, promoção e exploração de estrelas de cinema nos clássicos de Hollywood. Os estúdios selecionavam jovens atores e atrizes glamourosas e criavam personalidades para eles, muitas vezes investindo em novos nomes e até mesmo novos planos de fundo. 34 de vida encantadores, criado por toda a sua mises en scène. Despertava em seus espectadores o desejo de ser e de ter, e ao se identificarem com este modelo de felicidade plena influenciava a moda e o consumo. Através do conceito de identificação descrito por Freud é possível compreender, um pouco melhor, como o sistema de estrelas atraia as massas. Segundo Freud (1935), uma das formas de identificação é a histérica, cuja modalidade de formação constitui-se da imitação não da pessoa (objeto de desejo), mas de um sintoma da pessoa. É a imitação de um traço único. Outra forma é o produto da vontade de colocar-se em situação idêntica à do outro ou dos outros. É esta forma de identificação que liga entre si o indivíduo a um grupo. Ela é comandada pelo vínculo estabelecido entre cada componente do grupo e o condutor das massas, que no caso do star system eram as estrelas produzidas por Hollywood. Este vínculo é constituído pela instalação deste condutor como ideal do eu por cada um dos participantes do grupo. E mais uma vez, é possível verificar o efeito subjetivo e ideológico produzido no espectador – efeito-cinema. Com a crise pós-guerra, os custos de produção ficaram cada vez mais altos e os grandes estúdios perdiam o controle dos seus negócios para bancos e corporações industriais. A produção de filmes reduzia em termos quantitativos, mas principalmente qualitativos. É este cenário desesperador que impõe aos magnatas que desenhem uma nova estratégia mercadológica para que o produto “filme” se torne mais interessante, com o objetivo de ampliar sua demanda e atrair o público. Com este propósito, os filmes que até então eram silenciosos, em 1927, diante da crise e na eminência de uma falência, a Warner Brothers23 introduz o sistema Vitaphone24 e lança o filme “The Jazz Singer”25, um musical que possuía alguns pequenos diálogos e cantorias. Com efeito, em 1925-1926 o filme mudo já conquistara tal domínio dos seus meios de expressão que os textos explicativos, intercalados, quase se tornaram supérfluos; o filme falado, sobrecarregado de diálogos, não foi, portanto, uma necessidade íntima, mas uma imposição externa da técnica e do fetichismo dos industriais, que não desejavam deixar escapar nenhum 23 Warner Brothers – Também conhecida como Warner Bros. Foi fundada em 1923 e é uma das maiores indústrias americana de produção cinematográfica e televisiva. 24 Vitaphone – o mais bem sucedido processo de gravação de som sobre um disco. 25 The Jazz Singer – dirigido por Alan Crosland e estrelado por Al Jolson. 35 aperfeiçoamento técnico por medo da concorrência e na esperança de conquistar um público mais amplo (ROSENFELD, 2002, p.129). Ao dar vozes ao filme, ainda assim as experiências em relação ao som não se estagnaram. Percebeu-se que não bastava apenas o som dos diálogos, mas que se fazia necessário também os ruídos que ambientariam o contexto e a música de fundo que se expressaria como justificativa do movimento, se tornando indispensável para manter a tensão dramática e transições em tempo e espaço, além de caracterizar personagens, dados, complexos emocionais, estados psíquicos e determinados símbolos, desta forma ampliando sua sensorialidade e aguçando a percepção do espectador. Se a percepção pode ser considerada multissensorial, ao se fazer uso do som, agente estimulante da audição, em composição com a imagem, agente estimulante da visão, torna-se possível aumentar a precisão de reconhecimento ou cognição no processo de produção de sentido simbólico, e ainda amplia o estado imersivo do sujeito. Ainda que ele não veja, ouve e cria, a partir de seu repertório, uma representação simbólica carregada de sensações. Desde 1906, iniciaram-se os experimentos com filmes coloridos, no entanto experiências como o Technicolor26 de duas cores foram decepcionantes por se distanciarem da realidade cotidiana e não empolgaram o público. Somente em 1935, com o sistema Technicolor de três cores, foi produzido o primeiro filme colorido “Vaidade e Beleza” de Rouben Mamoullian27. As cores que sempre estiveram presentes na história do homem, no cinema, assim como em outras expressões artísticas, produzem sensações cromáticas deslumbrantes, traduzem cargas emotivas e psicológicas e exercem sobre o espectador a construção de uma linguagem própria que comunica uma ideia, tendo valor simbólico. Tamanha a expressividade das cores no cinema, que a produção de filmes coloridos rapidamente se consolidou ao perceberem a poderosa ferramenta de sentido estético e que permite ultrapassar as fronteiras espaciais e temporais e apreender o espectador. Assim, por uma imposição muito mais comercial que estética, devido à comercialização a que a “indústria cultural” não pode escapar, com a inserção dos 26 27 Technicolor – processo de coloração de filmes, utilizado até a década de 1960. Rouben Mamoullian (1897 – 1987) – Iniciou sua carreira na Broadway como diretor de cinema e teatro. 36 recursos sonoros e cromáticos outros sentidos humanos foram implicados pelo efeito-cinema, que colocou o espectador em uma posição ainda mais suscetível à identificação, realçando a dupla dimensão do filme como: artefato (o fazer, a arte, a representação) e como experiência subjetiva de gratificação, vivida por uma plateia fascinada em função da sintonia entre sua disposição e o objeto exibido na sala escura. 1.1.2 - Cinema no Momento das Tecnologias Eletrônicas Nos EUA, após a Depressão28 (1929 -1930), a indústria cinematográfica recupera-se e Hollywood vive os anos de ouro, apostando nas superproduções que empenhavam novos recursos técnicos possibilitando o desenvolvimento pleno de todos os gêneros. A aceleração dos avanços tecnológicos, surgidos com as necessidades da Segunda Guerra Mundial, gera o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa – telégrafo, jornal, rádio – que alimenta a cultura de massas29 e dissemina, em grande escala, o uso da televisão. Enquanto o mundo reproduzido pelo cinema não é ao vivo, as imagens transmitidas pela televisão funcionam em tempo real. A imediatez, a ubiquidade e a simultaneidade da televisão, puseram o homem em contato com um mundo sem fronteiras, tal como a expressão de Marshall McLuhan, numa “aldeia global”: ... a aceleração da era eletrônica é tão destrutiva para o homem ocidental letrado e linear quanto o foram as vias de papel romanas para as aldeias tribais. A aceleração de hoje não é uma lenta explosão centrífuga do centro para as margens, mas uma implosão imediata e uma interfusão do espaço e das funções. Nossa civilização especializada e fragmentada, baseada na estrutura centro-margem, subitamente está experimentando uma reunificação instantânea de todas as suas partes mecanizadas num todo orgânico. Este é o mundo novo da aldeia global (MCLUHAN, 2007, p. 112). Na década de 1950, o cinema se sente desafiado pela televisão que rapidamente tornou-se a “mais completa” opção de entretenimento. Para enfrentar 28 Depressão, também chamada de Crise de 1929, foi considerado o pior e mais longo período de recessão econômica do século XX. 29 Cultura de massas é toda manifestação cultural produzida para o conjunto das camadas mais numerosas da população - o grande público – e veiculada pelos meios de comunicação de massa. 37 esta disputa, e trazer de volta o público às salas, o cinema oferece mais espetáculo, aumentando o tamanho das telas – neste momento surgem o Cinerama30 e o CinemaScope31. Esclarece Gilles Lipovetsky: Quando a telinha se impôs nos lares domésticos, ela logo foi vista como um perigo para a frequentação do cinema. Hollywood não permaneceu inerte. Para trazer de volta o público às salas, os grandes estúdios lhe propuseram o que a televisão não pôde oferecer: telas cada vez maiores, filmes cada vez mais coloridos e espetaculares. (...) De maneira mais fundamental, a televisão formou novas gerações de cineastas, favoreceu o desenvolvimento de uma nova estética e, mais recentemente, pôs em crise a identidade genérica e simbólica da sétima arte (LIPOVETSKY, 2009, p. 213). O Cinerama foi o primeiro de uma série de processos introduzidos na época da reação do cinema ao avanço da televisão. Nos cinemas, os filmes em Cinerama, eram projetados por três cabines de projeção em uma tela extremamente curva. Além do encanto provocado pelo impacto visual das imagens, este também foi um dos primeiros processos a usar múltiplos canais de som que eram reproduzidos através de autofalantes colocados atrás da tela e também canais surround que projetavam o som por toda a sala através de autofalantes instalados na plateia. Sua denominação combina as palavras cinema e panorama, já que seu objetivo era fazer com que o espectador se sentisse participante do processo, a partir de uma visão panorâmica do que se passava na tela. Já com o uso do cinemascope, havia uma compressão anamórfica das imagens durante as filmagens (Figura 4) e a descompressão na mesma proporção quando estas imagens eram exibidas (Figura 5), ou seja, recuperavam sua forma original na tela do cinema, com o objetivo de aumentar o campo visual do filme. 30 Cinerama - Tecnologia inventada por Fred Waller e patenteada pela Cinerama Corporation denomina o registro de um processo cinematográfico de widescreen que trabalha com imagens projetadas simultaneamente por três projetores de 35 mm sincronizados para uma tela de proporções gigantescas e extremamente curva, com um arco de 146°. 31 Cinemascope – Tecnologia criada pela Twentieth Century Fox em 1953, que utilizava lentes anamórficas para a gravação de filmes widescreen, marcando o inicio do formato moderno tanto para filmagem quanto para exibição dos filmes. 38 Figura 4 – Imagem Capturada Figura 5 – Imagem Exibida Neste momento, o dispositivo, componente da dimensão arquitetônica da sala, tem seu processo discursivo e seus códigos de representação alterados em função da forma e do tamanho da tela; onde o efeito-cinema passa a agregar, também, a ampliação da perspectiva do espectador - leitor imaginativo, entretanto dosado de certo enfraquecimento de algumas operações de narrativas que transformam o espaço em lugar; como é o caso da sutura (cortes ou mudança de plano), criando certa dificuldade para o cinema imersivo e uma nova reflexão acerca da maquinação tradicional da época. A exploração de novas tecnologias e efeitos especiais, permaneceram em evidência durante toda a década de 1950. Foi nesse cenário que surgiu a técnica Naturalvision, que consistia em uma imagem anáglifa que passa a ter um efeito estereoscópico – tridimensional – quando o espectador a visualiza com um óculos especial, que possuía uma lente azul e outra vermelha, seu cérebro unia a imagem da cor vermelha sobreposta à cor azul e assim criava a ilusão do efeito em três dimensões. Este efeito produzia uma sensação ao espectador que o filme se lançava para fora da tela, aguçando ainda mais a impressão de realidade e com isso, o sentimento de tensão e pânico (Figura 6). As reações dos espectadores diante das exibições do filme 3D, muitas vezes, se assemelharam àquelas reações dos espectadores na origem do cinema. 39 Figura 6 – Tensão e Pânico Muitos filmes passaram a ser produzidos no formato 3D, entretanto a baixa qualidade e o alto custo de produção acabaram sepultando o formato, que ressurgirá após várias décadas como uma nova atração. Se na década de 1950 com a tecnologia 3D houve a sensação de que os filmes saltavam para fora das telas, com a evolução do dispositivo (do circuito fechado à fita de vídeo, do monitor ao projetor, de imagens múltiplas ao processo de espacialização da imagem), na década de 1960, o vídeo intensifica um processo que fora iniciado pelo cinema experimental – o deslocamento da imagem-movimento para os territórios da arte e o cinema se lança para fora das salas de projeção, e intensifica seu efeito nas artes, como alerta André Parente: Desde então, o cinema, na condição de imagem, de estética, mas sobretudo de dispositivo (o movimento, a luz, a projeção, a imaterialidade, o tempo etc.), faz parte da arte. Trata-se do que podemos chamar, como Philippe Dubois e muitos outros, de “efeitocinema” na arte contemporânea (PARENTE, 2009, p. 40). Experimentos como a multiplicação de telas, a coexistência entre imagem e objeto, as instalações e a interação com a imagem são introduzidos e/ou potencializados pelos dispositivos da videoarte, inaugurando o fenômeno do cinema de museu. Ao articular o dispositivo especular ao dispositivo eletrônico arquitetônico, muitos realizadores como: Bruce Nauman, Woody Vasulka, Dan Graham e Peter Campos, produziram obras permeadas de discussões críticas e de variações reflexivas, nas quais dispositivo e espectador eram elementos entre outros destes outros espaços - o cinema de museu. Mais expressivamente nos anos 70, a partir da 40 pop art32, os artistas iniciam um novo processo artístico: misturas de meios e efeitos, desde os mais artesanais até os meios tecnológicos para conceber seu objeto de arte. Os temas eram abordados de forma crítica, criativa e irônica dando continuidade à hibridização das artes já iniciadas no Dadá33. 1.1.3 - Cinema Expandido Os meios mecânicos, que deram origem ao jornal, ao telégrafo, à fotografia e ao cinema, e a revolução eletrônica, trazendo o rádio e a televisão, levaram a cultura de massa ao clímax. Segundo Santaella (2003) houve um crescente dos meios de comunicação de massa, no século XX, o que criou grande dificuldade para se estabelecer fronteiras entre o popular, o erudito e o massivo. Esta dificuldade se instaura com o surgimento de novas formas de consumo cultural propiciadas pelas tecnologias do disponível e do descartável: as fotocopiadoras, videocassetes, videoclipes, videojogos, o controle remoto, seguido pela indústria dos CDs e a TV a cabo (SANTAELLA, 2003, p.52), e assim, inicia um processo cultural com uma forte tendência ao hibridismo dos meios de comunicação, que Santaella denominou Cultura das Mídias34. Peter Weibel35, Robert Whitman36, Stan Vanderbeek37 e Jeffrey Shaw são alguns dos artistas experimentais que nos anos 50 e 60 já previam que no futuro as imagens técnicas teriam diversas formas e maneiras de expressão e iriam além 32 A pop art é um movimento artístico surgido na década de 1950 no Reino Unido e nos Estados Unidos. Na década de 70 ocorre o ápice do movimento que propunha admitir-se a crise da arte que assolava o século XX e pretendia demonstrar com suas obras a massificação da cultura popular capitalista. Encontramos diversas referências que a pop art seria o marco de passagem da modernidade para a pós modernidade na cultura ocidental. 33 O movimento Dadá foi uma vanguarda moderna iniciada em Zurique, em 1916, tendo como sua principal marca o non-sense ou falta de sentido. 34 Termo cunhado por Lúcia Santaella em 1992 para designar o aumento de modo evidente da tendência para trânsitos e hibridismo dos meios de comunicação entre si, que criam redes de complementaridades (SANTAELLA, 2003, p. 52). 35 Peter Weibel (1944) – é um artista soviético que desenvolve reflexões a partir da semiótica e da linguística. Reconhecido por suas ações performativas que exploram não só a linguagem e o corpo, mas também o cinema em ambientes interativos. 36 Robert Whitman (1935) – é um artista americano reconhecido por suas peças de teatro seminal na década de 1960, combinando imagens visuais e sonoras, atores, filmes, slides e adereços em ambientes evocativos de sua própria criação. 37 Stan Vanderbeek (1927 – 1984) foi um cineasta experimental americano que se dedicou, na década de 1960, à produção de filmes a partir de animação de computador e experiências holográficas. 41 daquela mais popular, até então: o cinema. Foram alguns dos precursores do cinema expandido, que conforme a definição de Gene Youngblood (1970) expressava um alargamento da concepção inaugural do fazer cinematográfico, que priorizava a convergência das linguagens no meio audiovisual incorporando novas referências e novas materialidades, esgarçando suas possibilidades através do desenvolvimento da experimentação e lançando mão de recursos provenientes de outros suportes. O cinema expandido também pode ser pensado como instalações que reinventam as salas de cinema em outros espaços e também as instalações que radicalizam o processo de hibridização entre diferentes mídias. Com foco na imersão do espectador, artistas experimentam a expansão de recursos técnicos e tecnológicos. Em 1962, de acordo com Howard Rheingold (1992), Morton Heilig38, que via o cinema como uma atividade que poderia integrar todos os sentidos de uma maneira eficiente, proporcionando ao espectador uma fusão com o filme, constrói o Sensorama (Figura 7), uma máquina com tecnologia multissensorial e imersiva. O Sensorama, simultaneamente, era capaz de: exibir imagens 3D, som estéreo, inclinação do corpo do espectador e produzir sensações de vento e aromas. O protótipo de Heilig não foi adiante, uma vez que não houve interesse dos investidores, entretanto até hoje seu invento é lembrado como um dos primeiros projetos de realidade virtual39, curiosamente concebido antes da computação e ser um prenúncio da criação do cinema interativo como afirma André Parente: O Sensorama é um “protótipo” de realidade virtual desenvolvido com imagens de cinema. Foi inventado pela utilização de loops de película, visão panorâmica e estereoscópica, som estereofônico, cheiros, vibrações e outros efeitos, com o intuito de produzir a ilusão de um passeio de moto pelo bairro do Brooklin. Trata-se da primeira tentativa de criar um cinema interativo, ainda sem o auxílio de computadores. O dispositivo se apresenta como uma pequena cabine em que o espectador se senta e “dirige” sua moto (PARENTE, 2009, p. 41). 38 Morton Heilig – (1926 -1997) foi um líder da idéia de realidade virtual e tinha como desejo criar o cinema do futuro. 39 Realidade virtual é uma tecnologia de interface avançada entre um usuário e um sistema computacional. O objetivo dessa tecnologia é recriar ao máximo a sensação de realidade para um indivíduo, levando-o a adotar essa interação como uma de suas realidades temporais. 42 Figura 7 – Sensorama No cinema, os experimentos sempre são atualizados e reutilizados; e um bom exemplo deste modelo cíclico é o uso de perfumes nas salas de projeção que remonta ao ano de 1906, ou seja, antes mesmo da introdução do som. O uso de aromas no cinema não era tão simples, demandava um longo tempo entre uma projeção e outra para que o cheiro desaparecesse, alguns odores perduravam por vários dias e em outras situações a mistura de mais de um perfume poderia suscitar uma outra sensação no espectador, causando confusão, o que não era o objetivo planejado. Além disso, era necessária a liberação de uma grande quantidade de perfume em cada audiência em função do tamanho dos teatros. Todas as tentativas iniciais foram feitas pelos exibidores, detentores dos espaços de projeção e não por parte dos produtores dos filmes, pois receavam que os perfumes pudessem distrair a atenção do público, impedindo o espectador de se concentrar na ação pretendida pelo diretor. Em 1940, Walt Disney40 foi o primeiro cineasta a explorar a técnica de inserir cheiros durante uma sessão de seu filme “Fantasia”, entretanto por razão de custos não foi possível dar continuidade a experiência. 40 Walt Elias Disney (1901 – 1966) – foi um cineasta e produtor cinematográfico reconhecido por seus personagens animados e por ser o criador do primeiro longa metragem de animação “Branca de Neve e os Sete Anões” em 1937. 43 Somente na década de 1960, Hans Laube lança o Smell-O-Vision, fazendo sua primeira aparição no filme Scent of Mystery41. Sua técnica consistia em liberar odores canalizados nos assentos individuais nas salas de cinema, de forma fluida acompanhando a trilha sonora do filme. Os aromas cuidadosamente planejados eram controlados pelo projecionista através de uma placa de controle. Mesmo com toda a evolução da técnica, nenhum estúdio teve interesse por sua invenção, uma vez que demandava altos recursos para a implementação, inviabilizando assim, sua continuidade. Após 1965, ano em que a Sony lança a um preço razoável o Portapak aparelho portátil de vídeo - surge um novo protagonista na história do experimentalismo. Com a presença do monitor como astro na arte tecnológica não estava mais reservado à televisão, mas sim ao vídeo; o uso crítico do monitor de TV foi levado a cabo pelos artistas que desenvolveram uma reação crítica e cética contra a máquina, com o propósito de chocar e satirizar o estado de coisas da sociedade. Assim o monitor de TV como uma quase-escultura marca sua presença na videoarte, na performance multimídia e torna-se personagem principal das videoinstalações e dos cinemas de museu, além de continuar seu percurso até hoje, fazendo parte das ciberinstalações. O pioneiro na arte da escultura televisiva foi Wolf Vostell42, que conforme Santaella (2003) sua obra era constituída por seis monitores de televisão colocados em uma caixa de madeira por trás de uma tela. Vostell, nessa época, declarou que o aparelho de televisão seria a escultura do século XX. A partir de então, houve uma ampla penetração das videoesculturas e videoinstalações, novas maneiras de extrair novas formas de linguagem do vídeo começaram a ser exploradas pelos artistas e isso abriu as portas para a videoarte, como afirma Santaella: Ao colocar a luz artificial em movimento, os artistas cinéticos prenunciavam as imagens feitas de luz que viriam dominar a cena da videoarte, nos anos 70, e das imagens computacionais, nos anos 80. Mas, antes disso, quando o computador não passava de um monstrengo cheio de cabos e fios ocupando salas inteiras, nos anos 60, artistas e poetas já sonhavam com o uso de seus recursos para renovar os princípios da arte (SANTAELLA, 2003, p. 160). 41 Scent of Mystery – Filme produzido em 1960 por Mike Todd Jr. Wolf Vostell (1932 – 1998) – Um dos pioneiros da Instalação, Videoarte, Happening e do Fluxos. Criados da obra 6 TV Dé-coll/age, em 1965. 42 44 Ao que parece todas estas experiências tinham um grande propósito: romper a moldura e, por conseguinte eliminar as fronteiras entre o espectador e o filme, apesar dessas formas expansivas e sensacionais, tal cinema continuava a ser o que era, um espaço emoldurado e contido de experiências afastadas (SHAW, 2005, p. 357), a exploração de outros sentidos humanos foram se ampliando, o cinema das origens que se mostrava apenas como imagens documentais, no entanto, quer seja por um movimento social, econômico ou das artes, passou a se preocupar com o sentimento, despertou espanto, risos, lágrimas, se permitiu ser visto por tantos ângulos e enquadramentos diferentes, ganhou voz e saiu do silêncio, através da melodia fez memória, trouxe a sensação de ambientação com os ruídos, criou personalidades, estilos e modelos, inseriu o perfume para se mostrar mais orgânico, saltou para fora da tela e movimentou seus assentos com a ilusão e a inocência de quem quer ser tocado, mas nem todo este esforço foi suficiente, seria preciso mais, para inserir seu espectador ao fim e a cabo, no estado imersivo. As práticas artísticas, do final da década de 1960 e início da década de 1970, que eram rotuladas como cinema expandido, compartilhavam da mesma crítica aos mecanismos padronizados dos equipamentos cinematográficos, e se expressavam através da multiplicação dos níveis de projeção, abolição das fronteiras entre diferentes formas de arte, retorno à corporalidade, desconstrução das técnicas fílmicas e a criação de obras de arte feitas de pura luz (SANTAELLA, 2003, p. 162). Neste sentido, a partir da vídeoarte, como um prenuncio do domínio das interatividades digitais, com o propósito de estabelecer a participação do público de uma forma ou outra, Jeffrey Shaw foi um dos pioneiros no uso da interatividade e virtualidade de muitas de suas instalações que tiveram como inspiração sua interpretação original do cinema expandido. Shaw entendia que o conceito de cinema expandido não dependia tanto do conteúdo das imagens projetadas, nem da manipulação das projeções, mas que sua temática deveria ser voltada para a estrutura efêmera da imagem, para projeção nela mesma. Um exemplo foi Movie Movie, uma performance de cinema expandido apresentado no Festival de Cinema Experimental na Bélgica em 1969, que possibilitou que o espaço de imersão da ficção cinemática incluísse a imersão literal e interativa de seus espectadores, ou 45 seja, permitiu que a realidade do ambiente de visualização fosse interpolada com a virtualidade do ambiente cinemático, como explica Jeffrey Shaw: Os autores – Jeffrey Shaw, Theo Botschuyver e Sean Wellesley Miller – vestidos com aventais brancos, primeiramente trouxeram uma grande estrutura inflável e a desenrolaram no chão. Depois, ela foi gradualmente inflada, enquanto filmes, slides e efeitos de luz líquida eram projetados em sua superfície. A forma arquitetônica dessa estrutura inflável era cônica, com uma membrana exterior transparente e uma superfície interior branca. As imagens projetadas primeiro colidiam com o envoltório exterior completamente inflado e depois surgiam na superfície interior semi-inflada. No espaço intermediário entre a membrana transparente e a membrana branca, várias ações materiais eram executadas para materializar as imagens projetadas. Isso incluía inflar balões e tubos brancos e injetar fumaça. Esse trabalho procurava transformar a tela de projeção plana convencional do cinema em um espaço de visualização tridimensional, cinético e arquitetônico. As superfícies de projeção múltiplas permitiram que as imagens se materializassem em muitas camadas, e os corpos dos performers e, também do público (muitos dos quais tiravam espontaneamente suas roupas) tornavamse parte do espetáculo cinemático (SHAW, 2005, p. 357-358). A partir do final dos anos 70 e inicio dos anos 80 o computador, que era uma máquina rígida, binária, restritiva e centralizadora, passou a incorporar a tecnologia do hipertexto criando interfaces amigáveis. É possível entender que os informatas, nesta época, insatisfeitos com o termo genérico “interação”, buscam no termo “interatividade” a nova dimensão conversacional referindo-se a relação homemmáquina. 1.1.4 - Cinema Digitalmente Expandido A era digital, como sintoma da pós-modernidade, propicia circulação mais fluida e articulações mais complexas dos gêneros e formas de cultura, produzindo o cruzamento de suas identidades. Novos objetos são produzidos, a partir da convergência entre comunicação, interfaces homem-máquina e tecnologias da informação, que tem como características fundamentais: a) hibridismo - fusão de novas mídias e formas artísticas, b) imersão – outros formatos de mídias que envolvem o espectador em múltiplas linguagens, c) interatividade – possibilidade de novas relações entre realizadores e espectadores possibilitando outras constituições narrativas. 46 ...na era pós-moderna, todas as artes se confraternizam: desenho, fotografia, vídeo, instalação e todos os seus híbridos. Cada fase da história tem seus meios de produção da arte. Vem daí o outro desafio do artista que é enfrentar a resistência ainda bruta dos materiais e meios do seu próprio tempo, encontrando a linguagem que lhe é própria, reinaugurando as linguagens da arte. Os meios do nosso tempo (...) estão nas tecnologias digitais, nas memórias eletrônicas, nas hibridizações dos eco-sistemas com os tecno-sistemas e nas absorções inextricáveis das pesquisas científicas pela criação artística, abrindo ao artista horizontes inéditos para a exploração de territórios da sensorialidade e sensibilidade (SANTAELLA, 2002, p. 13). É neste momento que a interatividade no cinema ganha espaço, sendo considerado dois aspectos fundamentais: o primeiro é que a ação do sujeitoespectador é percebida através da metamorfose causada por suas ações no ambiente virtual; e o segundo é a multidimensionalidade do dispositivo, que pode ser compreendida através da análise dos estímulos que absorvem o espectador de forma intensa e reafirma a sensação de presença e de fusão de seu corpo com o ambiente. Trata-se agora de um espaço a ser vivido, experimentado, descoberto, investigado, onde as ideias de simulação, cognição e experiência são inseridas em um outro estatuto, em que tudo parece ser possibilitado por intermédio do dispositivo que responde as exigências do interator. Antes mesmo do cinema se inserir na era digital, protótipos interativos já haviam sido experimentados. O primeiro exemplar dessa experiência surge em 1967, ou seja, é anterior a era digital, entretanto possui tamanha importância, pois se ofereceu como modelo para outros projetos. Apresentado na Exposição Internacional de Montreal, o Kinoautomat, produzido na Tchecoslováquia e criado por Radúz Cincera, exibiu um filme de 55 minutos One Man and his world (Um homem e sua casa), em um espaço para mais de 100 pessoas, que através de botões eletrônicos acoplados aos assentos permitia que seus espectadores se posicionassem como árbitros do destino do personagem principal do filme. O filme é interrompido em nove pontos distintos, onde surge a presença de um moderador no palco e incentiva o público a escolher uma, entre duas opções; em seguida a cena escolhida pela maioria é apresentada. No entanto somente cinco destas escolhas causavam de fato alguma mudança genuína na história, sendo as outras votos sem relevância. O Kinoautomat foi o primeiro sistema funcional de projeção de cinema 47 interativo para grande audiência no mundo, apesar de sua tecnologia de base não ter sido digital, mas foi um fenômeno ao se investigar sua relação com o desenvolvimento subsequente do formato cinema interativo. Há quem discorde que Kinoautomat foi o primeiro modelo interativo e afirme que houveram outros protótipos que o antecederam por terem em sua lembrança os inúmeros experimentos do cineasta hollywoodiano William Castel, como o filme Mr. Sardonicus, de 1961. Antes de iniciar a sessão, cada espectador recebia um cartão fosforescente com um desenho de uma mão fazendo um sinal positivo (dedão para cima) que também poderia significar um sinal negativo (dedão para baixo), dependendo da posição que o cartão era mostrado. Quando o filme chegava quase ao final, seu protagonista e vilão – Sardonicus -, que havia sido capturado, poderia ser libertado ou punido com requintes de crueldade, é neste momento que o próprio Castle assumia o papel de explicador e moderador, indo ao palco e orientando os espectadores a como utilizar o cartão e assim definir o futuro de Sardonicus. O público levantava os cartões e os funcionários do cinema contavam os votos e após a contagem o filme era retomado exibindo a horrível punição de Mr. Sardonicus. No entanto, a votação era apenas protocolar, pois Castle, conhecido como “Rei dos Truques”, já decidira que a audiência sempre escolheria pelo final mais repulsivo e a grande realidade é que o filme sempre apresentava apenas este final. Apesar de se apresentar com um conceito de interatividade e até uma interface real tendo sido fornecida à audiência, o filme mantinha sua linearidade padrão do cinema, sendo apenas um “truque” de Castle, mas ainda assim continua sendo lembrado com um dos protótipos de uma narrativa cinematográfica interativa. Após mais de uma década dos experimentos pioneiros de Cincera com o próprio cinema, nos anos 1980 surge o desenvolvimento da tecnologia do videodisco, que possibilitou que realizadores explorassem as possibilidades de uma narrativa não-linear interativa, se tornando precursores de uma nova geração de trabalhos. No entanto a penetração dos videodiscos no mercado foi relativamente pequena em comparação com as tecnologias digitais domésticas que surgiram logo depois, ou seja, teve seu total declínio no inicio de 1995, com seus produtores lamentando o crescimento meteórico da internet e a tendência de uma experiência de entretenimento pessoal confinada ao próprio lar. 48 Se no passado, o advento da TV afugentou o público das salas de cinema e houve uma corrida frenética pelo experimentalismo com o objetivo de reconquistar os espectadores, nos tempos atuais é a internet que faz o papel de vilã e toma o público das telonas, e assim o cinema 3D é resgatado das cinzas com a promessa de levar de volta os espectadores às salas de projeção para vivenciarem uma incrível experiência cinematográfica, que não para por aí, já que a essencial novidade da era digital está na força de suas potencialidades. No entanto, já não é mais o 3D que está em questão, mas o 4D, o 5D, o cinema multissensorial, o cinema interativo e os novos contornos que o cinema ganhou a partir das tecnologias que possibilitam as múltiplas escolhas, e não é possível uma previsão assertiva do potencial que será exigido ou do sensorial que será afetado. O fato é que o espaço digital se equivale a um campo de possíveis, onde o espectador / interator pode ser visto como como co-autor de uma obra digital, já que contribui de forma efetiva para sua materialização. Assim, não é permitido um sentido pré-existente à percepção do espectador, mas é a sua própria experiência que construirá o sentido. É neste contexto que surge o Machinema, que tem como seu maior desafio, tanto em sua concepção como em seu planejamento, a incorporação de novas técnicas narrativas que permitam que suas características interativas vá além da trivialidade das opções ramificadas de enredo, que possua em sua estratégia o desenvolvimento de estruturas modulares de conteúdo narrativo que possibilitem permutas significativas; experiências coletivas sinestésicas capazes de envolver não apenas os sentidos audiovisuais, mas todo o sensório do espectador. Diante disso, parece certo afirmar que o espectador / interator é o sujeito da experiência das imagens e não mais o sujeito que está diante de, como na época renascentista, mas sim o sujeito que está no meio de, como nos espaços imersivos. Já deixou de ser o simples espectador, ganhou estatuto de participador, de sujeito interativo, que tem o poder de escolher e navegar por entre as teias que se formam no filme, em sua composição hipertextual, em suas dimensões multiespaciais, multitemporais, multissensoriais e que se conecta a um conjunto de frações de imagens e sons, além de, ao mesmo tempo, multiplicar os sentidos narrativos. É este cinema que se quer conformar fora da tela e que expressa a ruptura da representação na diferenciação entre o tempo filmado e o tempo projetado e a 49 continuidade entre o que é projetado e o que é vivenciado, desconstruindo a ideia de tela como o infinito cinematográfico ou o campo como limite do plano fílmico, que constrói um outro cinema, que denomino Machinema. 50 2. PLANO MÉDIO – A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NO MACHINEMA O cinema, pela pura aceleração mecânica, transportou-nos do mundo das sequências e dos encadeamentos para o mundo das estruturas e das configurações criativas. A mensagem do cinema enquanto meio é a mensagem da transição da sucessão linear para a configuração. Marshall McLuhan Entendendo que o cinema, além de ter o poder de entreter, alertar e instigar, face à realidade cotidiana contemporânea forjada pelas tecnologias, reafirma estilos de identidade e de identificação dos indivíduos, espectadores, cidadãos imersos em uma cultura da era digital e, sobretudo, é um possante vetor de inteligência e sensorialidade que gera vigorosas modalidades de percepção, cognição e contemplação do mundo, desafiando o sujeito a uma participação afetiva e efetiva, quais os efeitos do hibridismo, da imersão e da interatividade no Machinema? O rápido avanço das tecnologias tem propiciado que as narrativas cinematográficas se tornem muito mais complexas. As experiências, advindas deste avanço, têm foco principal na produção de filmes que explorem cada vez mais a sensorialidade e a sensibilidade de seus espectadores. Assim a sala de projeção se oferece como um espaço em que a ilusão do sentido se materializa no sentido real. Quando as luzes se apagam e cessa todo e qualquer estímulo sensorial da sala de projeção, o espectador fica suscetível ao estímulo luminoso que se impõe à sua frente e ao estímulo sonoro que o invade, causando assim, uma atmosfera que o coloca dentro do universo fictício da narrativa, “a ponto de se integrar no seu jogo de conflitos como se fizesse parte deles” (MACHADO, 1997, p. 46). No aspecto trivial o espectador não assiste a um filme, ele vive este filme de forma tão intensa que suas emoções se manifestam explicitamente, através de gritos, choros, gargalhadas e, muitas vezes, torcendo por este ou aquele personagem, ou até transpirando de tanta tensão. Diante desta vulnerabilidade, como já elucidado anteriormente, é possível pensar que os filmes se apresentam ao espectador como 51 uma forma de alucinação assim como os sonhos ao sujeito desejante43, causando uma “impressão de realidade” (MACHADO, 1997, p.47), uma confusão entre a percepção e a representação. Desde a origem do cinema, como aponta Ton Gunning em seu texto “O cinema das origens e o espectador (in)crédulo”, houve um mecanismo de participação afetiva, que podemos chamar de projeção de identificações 44. A impressão da vida e da realidade, próprias das imagens cinematográficas, não se separou de um primeiro impulso de participação. Como exemplo é possível resgatar as primeiras recepções da imagem de um trem chegando, produzidas pelo cinematógrafo Lumiére. Na medida em que os espectadores viram as cenas de um realismo espantoso eles se sentiram, ao mesmo tempo atores e espectadores. A histórica sessão de 28 de dezembro de 1895 representa bem este fenômeno de inclinação à participação, ou seja, a uma reação diante de imagens projetadas. A incerteza com relação à natureza das imagens projetadas, vivida durante as primeiríssimas sessões cinematográficas, revela cenas interessantes para este estudo: pessoas fugindo, gritando, senhoras desmaiando, a partir do estimulo das imagens. Mas estas pessoas acabavam caindo em si, pois o cinematógrafo surgiu em uma época em que a consciência da irrealidade da imagem estava de tal maneira enraizada que a imagem projetada, por mais realista que fosse, nunca poderia ser considerada como real. O que havia era uma impressão da realidade, mas que era muito bem delineada pelos contornos da tela, que denunciava o limite das representações da ordem do real e do virtual. Diante da impressão de realidade causada pelo cinema (ainda que seja o convencional) ou pelos sonhos, quem nunca sentiu o desejo de continuar dormindo para que “pudesse” mudar o final de um sonho? Quem não torceu e até mesmo não 43 Em 1901, em seu texto “A Interpretação dos sonhos”, Sigmund Freud (1856-1939) faz investidas completamente novas, definindo o conteúdo do sonho como “realização dos desejos”. No enredo onírico há o sentido manifesto e o sentido latente, este último realmente importante. O conteúdo manifesto seria um despiste do superego (o censor da psique, que escolhe o que se torna consciente ou não dos conteúdos inconscientes), enquanto o sentido latente, por meio da interpretação das imagens simbólicas, revelaria o desejo do sonhador por trás dos aparentes absurdos da narrativa, o que dá ao sonhante a impressão da realidade. Freud recorre à “sabedoria da língua” e ilustra com o termo Tagtraum (devaneio), correlativo ao inglês daydream, literalmente sonho diurno, essa íntima relação entre sonho e alucinação de realidade (FREUD, 1906/1908, Edição Eletrônica). 44 Segundo Machado (2007, p.28) diante de um filme o espectador não se encontra mais imobilizado e é nesta possibilidade de mudança de posição e por consequência produção de sentido em relação às imagens, que se coloca “o poder do olho enunciador de penetrar nas coisas como um observador invisível e totalizador”. 52 se sentiu impotente pela falta de possibilidade de interceder a favor ou contra um personagem? Assim, para proporcionar a experiência como autêntica, fez-se necessário o desenvolvimento da tecnologia que disponibiliza a representação e a forma de visualização no cinema. É nesse contexto sociocultural contemporâneo tão influenciado pelo passado e tão transmutado pelo presente que, o que é uma inovação, algo moderno, logo deixa de ser e cria-se cada vez mais meios para conquistar o fascínio de uma audiência que tem acesso a tantas opções de entretenimento. Neste sentido, o cinema, ao longo de sua trajetória, incorporou muitos recursos tecnológicos e artísticos, com o propósito de atrair um público, que traz consigo a exigência de algo muito mais que moderno, que busca um moderno avançado, que vá além da capacidade de captar tantas transposições ou rupturas de linguagens, ou seja, o espectador que antes desejava apenas mudar uma história, hoje se insere como um elemento transformador de um espaço, que é ao mesmo tempo, híbrido, imersivo e interativo. 2.1 - Machinema: Um Espaço Híbrido Expressões como hibridismo já trabalhadas por McLuhan desde a década de 1960, começaram a ser utilizadas no campo das imagens, a partir da exposição Passages de I’Image, organizada em Paris, em 1990, por Raymond Bellour (1997) e outros, para referir-se a mistura de suportes e linguagens, ou seja, a ruptura entre as linguagens, a mescla de diferentes formas de representação (gravura, cinema, fotografia, vídeo, etc) somadas a inovação das mídias que habitam os meios de comunicação e que se intensificam a cada dia. Corrobora McLuhan: O híbrido, ou encontro de dois meios, constitui um momento de verdade e revelação, do qual nasce a forma nova. Isto porque o paralelo de dois meios nos mantém na fronteira entre formas que nos despertam da narcose narcísica. O momento do encontro dos meios é um momento de liberdade e liberação do entorpecimento e do transe que impõem aos nossos sentidos (MCLUHAN, 2007, p. 75). 53 A potencialidade e as possibilidades abertas pela hibridização de mídias através do desenvolvimento da tecnologia convocam a produção de novos objetos culturais. A convergência das artes, comunicação, interface homem-máquina e tecnologia da informação se oferecem como instrumento para reinvenção do cinema através de uma narrativa multimídia que permite criações onde não há “felizes para sempre” e o final de um filme é apenas uma faceta de um diálogo contínuo com o espectador. Neste sentido a proeminência da presença cultural das plataformas de múltiplas escolhas torna-se alvo da apropriação de sua engenharia, uma vez que sua concretude já fora estabelecida em outras mídias, além de ser foco dos grandes investidores na área de entretenimento. Assim, as possibilidades que surgem a partir do agenciamento das mais variadas tecnologias propiciadas pela era digital, geram circunstancias neste outro cinema que se conforma a partir da experimentação de suas variações interativas e combinatórias. Do tecnológico ao poético, a disposição, constituição e organização cinematográfica e informacional combinam-se cada vez mais, cedendo lugar a experimentos que implicam em uma metamorfose das narrativas, dos espaços de exibição e do acesso do espectador. Aqui não se trata mais da serialização dos objetos como nos processos industriais sempre discutidos pela arte, e sim de multiplicar os acessos e os resultados das obras (MACIEL, 2009, p.16). A participação do espectador não depende somente do acionamento de um controle remoto, mas prioritariamente de seu envolvimento sensorial com o filme. Deste modo, é possível pensar que a partir destes novos objetos, está ocorrendo uma reinvenção do cinema, que soma as técnicas de projeção e narrativa às ideias de interatividade, conectividade e imersão (MACIEL, 2009, p.17); e assim, o cinema como dispositivo, experimenta o fim da moldura. Neste aspecto, a importância da concepção de dispositivo, já explicada no capítulo anterior, cabe ser retomada, para salientar que este não apenas corresponde a um sistema técnico, mas que também propõe estratégias, produz efeitos, direciona e estrutura as experiências, além de apresentar diferentes instâncias enunciativas e figurativas e formas de input e output, ou seja, sua concepção se alterna entre a maquinação e o maquínico, com foco exclusivo na experiência sensível do espectador. 54 Diante do percurso oscilatório do dispositivo e dos avanços tecnológicos que permitiram mudanças na fabricação das imagens, é possível perceber que desde os experimentos analógicos fundamentava-se o intuito em estabelecer uma fusão entre o filme e o espectador. Entretanto não se pode negar que a partir das tecnologias digitais mudanças significativas colaboram para a intensidade deste foco. A partir de 1990 assistimos a uma transformação nos meios comunicacionais, ao que muitos autores chamaram de revolução digital. Operando em conjunto com a explosão das telecomunicações, a revolução digital dá origem a fenômenos que possibilitam a aparição da cibercultura e as comunidades virtuais, o que não é mais somente a conversão de uma imagem analógica em digital, mas sim a possibilidade da informação trafegar e transitar por todo o planeta, em um tempo tão curto que esbarra no impossível de ser medido, tendo como principal agente a prevalência da comunicação multimídia em redes que conectam terminais de computadores e usuários localizados em qualquer parte do mundo. Neste sentido, é possível afirmar que estas transformações impulsionaram o desenvolvimento de um outro cinema, onde se instaurou um outro modelo de exibição, distribuição, produção e experiência espectatorial, uma vez que a comunicação passou a ser mediada por computador com espaços de interação permanente, compartilhado e colaborativo, permitidos pela internet, além de conectado a espectadores móveis. Este outro cinema – o Machinema -, já não está mais vinculado a uma sala escura, com uma tela de projeção de formato único e cadeiras individuais, onde há um horário específico para a exibição do filme, uma lotação máxima, uma única história sendo apresentada e uma fronteira expressa do que faz parte do mundo real e do mundo virtual. No Machinema as possibilidades se potencializam e transitam entre o visível e o invisível, o material e o imaterial, o presente e o ausente. Afirma Santaella: Através da realidade virtual distribuída, do ciberespaço compartilhado, da comunicação não local, dos ambientes multiusuários dos sites colaborativos, da web TV, dos net games etc., os cenários da arte tecnológica parecem estar desenvolvendo estratégias e produzindo visões antecipatórias daquilo que seja o livro do futuro, de como ser o teatro do futuro e de como poderão se apresentar o cinema e a televisão do futuro (SANTAELLA, 2010, p. 175). 55 Assim, muitos são os realizadores - artistas da ciberarte que, pressentindo o futuro na hibridização dos ecossistemas e tecnossistemas abrem novos horizontes para a exploração da sensorialidade e sensibilidade no cinema, tomam os meios que nos são contemporâneos como balões de ensaio para extrair deles suas propriedades sensíveis e renovar o repertório dos cinemas. É preciso dizer que no Machinema nem sempre há sala, que a “sala” nem sempre é escura, que o projetor nem sempre está escondido atrás do espectador, que o filme nem sempre é projetado, que nem sempre conta uma única história e que é a partir destas e de outras variantes que se produzem novas circunstâncias de visibilidade, que permitem formas inéditas de acesso ao espectador e que, ao dar-lhe o suposto controle da cena, transforma-o em participador. 2.2 - Machinema: Um Espaço Imersivo A ideia de imersão com o uso das tecnologias digitais redimensiona e amplia significativamente a percepção do usuário a partir de experimentações com a Realidade Virtual, tornando-a uma experiência mais intensa para o espectador. A Realidade Virtual no campo das experiências interativas, a partir do uso de tecnologias digitais, explora a atuação do público no ambiente, envolvendo-o numa realidade diferenciada e que possibilita percepções individualizadas. Através desta atuação o espectador imerge em uma realidade simulada e a altera de acordo com sua interação. Neste contexto, espaços imersivos são ambientes que utilizam sistemas computacionais para desenvolver um estado de ilusão perceptiva e que convocam o espectador à participação. A imersão é utilizada como um instrumento que destrói inteiramente a diferença entre a realidade e a representação e como meio para persuadir a mente no ambiente mediado servindo de ponte entre o real e a fantasia. Sem que o objetivo da investigação seja o estudo das condições da recepção, ao pensar que o Machinema permite que o filme deixe “sua” velha sala escura para se expor em outras salas, algumas questões podem ser suscitadas e até impactarem de forma contundente, em sua forma narrativa e estética. Por exemplo: o que acontece com o espectador de cinema que não se encontra mais na sala escura e silenciosa, com todos os focos e atenções ao retângulo luminoso 56 imposto a sua frente e passa a uma experiência individualizada, mas que ao mesmo tempo é compartilhada e colaborativa, com a possibilidade de interagir com inúmeras janelas, pausar, continuar, expandir, restringir, acessar, perseguir, em um ambiente que por vezes se torna luminoso? Prisioneiros do tempo de duração de um filme no cinema convencional estarão livres dele no contexto interativo? O que acontece quando esse espectador silencioso passa da posição imóvel e sentada na sala de projeção para uma postura móvel e permeada por diálogos que se estabelecem a partir do assistir a um filme que exige uma mobilidade física e virtual entre acessos, telas e salas? Como é esta interatividade com o espaço fílmico, quando estes espectadores têm em suas mãos um controle remoto e suas escolhas são motivadas tanto pelo seu desejo consciente ou inconsciente, como pela exigência do ambiente cinematográfico onde se encontram outros espectadores fazendo suas escolhas e influenciando os caminhos que percorrerão o filme? Que relações espaciais e temporais se estabelecem entre o virtual e o real para estes outros espectadores? Este conjunto de modificações e reflexões que tornam instáveis o que era considerado como categoria já estabelecida, faz com que a própria ideia de cinema, enquanto dispositivo espectatorial, se encontre relativizada. E assim, a imersão na imagem, proporcionada por estas outras categorias, traz à tona a antiga questão: ser e não ser, pois no ambiente imersivo é possível ver, ouvir, tocar, manipular objetos que não existem, percorrer espaços sem localização, na companhia de pessoas que estão em outro mundo, ao mesmo tempo em que se mantém a convicção da realidade e da presença. A imersão é responsável por esta fuga de uma realidade à outra, da experimentação de diferentes espaços físicos e virtuais. Complementa Parente: O dispositivo do cinema tem a ver com o dispositivo psíquico porque, neles, o sujeito é uma ilusão produzida a partir de um lugar. Por se encontrar no centro da cena, “o espectador se identifica menos com o que é representado no espetáculo do que com que produz o espetáculo: com o que não é visível, mas torna visível” (PARENTE, 2009, p. 27). Diante destas reflexões, parece certo afirmar que está intrínseco ao Machinema a ideia de um espaço de alta resolução de ilusão – outras salas -, em que somente com grande dificuldade o espectador consegue manter alguma 57 distância da obra artística. Trata-se de um mundo virtual de possibilidade de ações e percepções diferenciadas potencializadas pelo dispositivo cinema, em que através de um ambiente simulado perdem-se os referenciais do mundo real e abre-se a possibilidade então de inserção em um outro ambiente, onde é possível modificar o objeto ou deslocar-se de um ambiente à outro. No Machinema, o público não registra em sua consciência a atuação do aparato imagético como intermediário da experiência sensorial, dito de outra forma, é neste ambiente imersivo (Figura 8) que ocorre um fenômeno que se dá quando a percepção consciente se transforma em uma inconsciência ilusória e, a partir desta, há a criação de um outro espaço. Figura 8 – Ambiente Imersivo Para que se compreenda o grau da experiência imersiva que ocorre no Machinema, é importante analisar alguns aspectos: 58 Forma e Estrutura Narrativa – onde cada um dos eventos tenha o objetivo de criar um link entre os fragmentos da narrativa. Há estruturas em que cada grupo de opções está ligado a um outro grupo de opções, e o espectador tem a liberdade para navegar entre eles, entretanto por estabelecer uma relação de muitos para muitos, poderá acontecer um embaralhamento da história o que muitas vezes causa uma incoerência narrativa. Já nas estruturas ramificadas, embora haja uma limitação de retorno para um ponto de decisão, é muito mais fácil de controlar e conseguir um bom resultado com múltiplas trajetórias e múltiplos finais, sendo assim, é a estrutura narrativa interativa mais usual. Interatividade Imersiva – é possível destacar quatro níveis da interatividade imersiva: nível 1) poderá ser periférica, onde não é afetada nem a história em si e nem a ordem de sua apresentação, nível 2) poderá afetar o discurso narrativo e apresentação da história, sendo que com este tipo de interatividade os espectadores são capazes de mover-se livremente em torno da história e personalizá-la para seus próprios interesses, nível 3) utiliza-se a interatividade para criar variações de uma mesma história parcialmente pré-definida, onde o espectador desempenha o papel de um elemento do todo e a aplicação permite alguma liberdade de ação, sendo seu principal objetivo o controle da trajetória narrativa, nível 4) a produção da história ocorre em tempo real, onde as histórias não são pré-determinadas. A audiência se envolve totalmente no campo central da trama e tem total liberdade de interação. O estado imersivo provocado neste nível, visa empurrar o público para o núcleo da história e mudar a lógica de terceira pessoa para a lógica de primeira pessoa, uma vez que o personagem passa a ser o próprio espectador. Tecnologia de Agenciamento – trata-se dos recursos disponíveis para o agenciamento de trocas entre o ambiente real e o ambiente virtual. As trocas podem se estabelecer de forma multi-dimensional, 59 em uma aplicação multi-plataforma, permitindo acessos a narrativas armazenadas em bancos de dados, através de sistemas de realidade expandida, aumentada e experiências de realidade virtual. A comunicação é intercambiada através de interfaces, que poderão ser desde um simples controle remoto analógico, até dispositivos que permitam e até instiguem a mobilidade do espectador. Diante da análise destes aspectos é possível afirmar que para se compreender o processo de imersão no estudo da narrativa interativa deve-se considerar três circunstâncias essenciais: a) espacial – considerando o ambiente e a ambiência, b) temporal – ações acontecem em tempo real, c) emocional – o envolvimento da audiência com o espaço e personagem virtual. Assim o Machinema produz outros ambientes, e as telas, ao invés de se fixarem em uma estrutura que já fora estabelecida, se apropriam do espaço ao redor, gerando situações imersivas, a partir de projeções que, combinadas ao uso de outros dispositivos, como: celular, tablets, ou GPSs, adquirem forma topológica e desta maneira, atribuem ao cinema uma outra concepção arquitetônica. O espectador não está mais diante de telas, mas sim imersos em projeções que se aperfeiçoaram na construção de múltiplos espaços. Por fim, é preciso esclarecer que, para compreender o Machinema se faz necessário uma análise ao nível da concepção arquitetônica, da interface e da narrativa. Estes parecem ser os três grandes polos que permitem o desenvolvimento da interatividade nos Machinema. O que a primeira vista parecia paradoxal, ou seja, a junção de um princípio de intercambio entre autor/espectador com um sistema de projeção fechado e unidirecional, como no cinema tradicional, hoje já não parece estranho dadas as experiências desenvolvidas sobre o tema interatividade, imersividade e cinema por grupos de pesquisadores como o Interactive Cinema Group do MIT – Media Lab de Massachussets (EUA), dirigido por Glorianna Davenpor desde 1987, ou o iCinema da Universidade de South Walles, na Austrália, onde se destacam Jeffrey Shaw e Denis Del Favero. Cabe destacar também, experiências interativas de artistas como Masaki Fujihata (Field-works), Christopher Hales (Grandad), Lev Manovich (Soft cinema), Jeffrey Shaw (EVE), Jean Louis Boissier (Moments de Jean Jacques Rousseau) e Zoe Beloff (Aparelho de influenciar da senhorita Natalija), além de exposições como: 60 Future Cinema realizada no ZKM – Centro de Arte e Mídia em Karlshue (2002-2003) com a curadoria de Jeffrey Shaw e Peter Weibel, Cinema Sim realizada no espaço Itaucultural em São Paulo (2008) com a curadoria de Roberto Cruz, Situação Cinema realizada no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro (2007) com a curadoria de Katia Maciel e André Parente e Mostra Internacional de Filmes Interativos realizada no Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília (2011) com a curadoria de Filipe Gontijo, que apontam para experimentações importantes destes novos cinemas (Transcinema, iCinema, Softcinema, Machinema) e reflexões das configurações cinematográficas após o advento das novas mídias. Ao que se refere especificamente a experiência no Machinema - outros cinemas e a construção de outros espaços e outras narrativas - é possível destacar alguns objetos, como: Ressaca (Brasil, 2008, dirigido por Bruno Vianna), Clue (Inglaterra, 1985, dirigido por Jonathan Lynn), Turbulence (Israel, 2010, dirigido por Nitzan Ben-Shaul), Deliver Me To Hell (Nova Zelândia, 2010, dirigido por Logan McMillan), Tender Loving Care (Inglaterra, 1997, dirigido por David Wheeler), Maldita Escolha (Brasil, 2008, dirigido por Jomário Murta), Last Call (Alemanha, 2010, dirigido por Matthias Stiller) e A Gruta (Brasil, 2008, dirigido por Filipe Gontijo), sendo os dois últimos a composição do corpus desta pesquisa. 2.3 – Machinema: Um Espaço Interativo Isolando-se outros aspectos da concepção do Machinema e, por ora, mantendo o foco na investigação das interfaces, é possível, a partir de reflexões sobre a interação homem-máquina, identificar modalidades ou categorias de interatividade. No entanto, antes de descrever as categorias imersivas-interativas presentes no Machinema, se faz necessária a compreensão de alguns conceitos acerca da interatividade aplicados a ambientes mediados por computadores. Para André Lemos (2002), importante pesquisador da cibercultura, os novos objetos, criados a partir da era digital, possuem uma nova forma de interação técnica, com características eletrônico-digitais, que distinguem-se das mídias convencionais de interação analógica, mas que no entanto, não se trata da criação da interatividade propriamente dita, mas sim de processos baseados em manipulações de informações binárias. O autor delimita o estudo da interatividade 61 como uma ação dialógica entre homem e técnica, entendendo esta como uma atividade tecno-social que sempre esteve presente na civilização humana e afirma: A interatividade digital é um tipo de relação técnico-social e, nesse sentido, um equipamento ou um programa é dito interativo quando seu utilizador pode modificar o comportamento ou o desenrolar. A Tecnologia digital possibilita ao usuário interagir, não mais apenas com o objeto (a máquina ou a ferramenta), mas com a informação, isto é, com o conteúdo. (…) A interatividade caminha para a superação das barreiras físicas entre os agentes (homens e máquinas) e para uma interação cada vez maior do usuário com as informações, e não com objetos (…). Esta nova qualidade da interatividade (eletrônico-digital), com os computadores e o ciberespaço, vai afetar de forma radical a relação entre o sujeito e objeto na contemporaneidade. Se os objetos (interatividade mecânico-analógica) reagem de forma passiva, como por exemplo a maçaneta de uma porta, o que para Manzine caracteriza uma interação assimétrica, os novos objetos eletrônico-digitais interagem de forma ativa (interação simétrica), num diálogo entre agentes. O objeto físico transforma-se em um objeto-quase-sujeito, uma forma de interlocutor virtual. Com a interatividade digital, desmaterializa-se toda a relação do sujeito com o objeto, do objeto com a natureza e da natureza com o objeto (LEMOS, 2002, p. 121-122). Baseando-se na evolução tecnológica da televisão e analisando a interatividade e os meios de comunicação, Lemos sugere a seguinte classificação para os níveis de interação45: Nível 0 – ligar / desligar e mudar de canal – neste estágio a televisão apresentava imagens em preto e branco e possuía apenas um ou dois canais. A ação do espectador se resumia em ligar e desligar o aparelho, regular volume, brilho e contraste, além de mudar de um canal para o outro. Nível 1 – visualização de mais de um canal simultaneamente – a televisão ganha cores, maior número de emissoras e um controle remoto. Neste contexto surge o zapping. Nível 2 – transmissão de informações opcionais, sem relação obrigatória com o programa em andamento – alguns equipamentos 45 É interessante pontuar que nesta categorização o diálogo livre e criativo entre interagentes humanos não foi considerado, sendo assim, nesta análise a interação resume-se basicamente à técnica, além de não ser aplicável a outros meios. 62 periféricos como: videocassete, câmeras portáteis e consoles de games acoplam-se a televisão. Os espectadores podem se apropriar da televisão por outras vias, podendo assistir vídeos, se entreter com jogos, além de gravar programas e visualizá-los quantas vezes desejarem. Nível 3 – qualquer forma de armazenamento de conteúdo. Neste nível, aparecem os primeiros sinais de interatividade digital, onde os espectadores podem interferir no conteúdo através de telefones (como na série Você Decide), fax e correios eletrônicos. Nível 4 – pay-per-view, jogos, videofone, etc. – onde surge a chamada televisão interativa, em que o espectador pode interferir a partir da rede telemática em tempo real no conteúdo, como escolhendo ângulos de câmeras, diferentes encaminhamentos de conteúdos e etc. A partir desta classificação Lemos observa que a mídia tradicional (jornal, revista, rádio, televisão) impunha uma pré-escolha de informações que seriam transmitidas, já as tecnologias digitais trazem novas formas de circulação da informação, constituindo um modelo muito mais descentralizado e universal, ou seja, o modelo transmissionista um-todos se transmuta em um modelo todos-todos. Neste sentido, finalmente concluí que a interatividade digital se categoriza em dois níveis de interação: a técnica tipo analógico mecânico, sendo aquela relacionada a utilização dos dispositivos como objeto e a técnica tipo eletrônico digital, em que através dela o usuário pode interagir não apenas com o objeto, mas com a informação, interferindo no conteúdo das emissões em tempo real, e neste caso a interface passa a ser tão somente o espaço de negociação, de articulação do diálogo, seja entre homens, homem-sistema ou entre sistemas. O teórico Jonathan Steuer (1992), para analisar a interatividade, desenvolveu uma matriz bidimensional baseada nos parâmetros de vividness46 onde analisa a capacidade de uma tecnologia de produzir um ambiente mediado sensorialmente rico e interativo, ou dito de outra forma, o grau pelo qual os 46 Verberte utilizado por Steuer para denominar a realidade virtual em termos de experiência humana. 63 utilizadores podem influenciar a forma e/ou o conteúdo de um ambiente mediado. Para o autor, interatividade é uma variável direcionada pelo estimulo e determinada pela estrutura tecnológica do meio; e a define como sendo a extensão em que os usuários podem participar modificando a forma e o conteúdo do ambiente mediado em tempo real (STEUER, 1992, p.1). Assim, Steuer aponta três fatores que contribuem para a interatividade: Velocidade – (largura da banda) a taxa com que um input pode ser assimilado pelo ambiente mediado. A interação em tempo real configura o mais alto valor dessa variável, uma vez que a instantaneidade é fundamental para a construção de ambientes mediados interativos. Amplitude – (range) refere-se ao número de variáveis e de possibilidades de ação em cada momento. O que pode ser mudado depende da especificidade do meio, como: ordenamento temporal (a ordem em que os eventos ocorrem), organização espacial (onde os objetos aparecem), intensidade (altura do som, brilho das imagens, etc.) e características de frequência (timbre, cor, etc.). Sendo assim, é possível entender que a amplitude da interação é determinada pela quantidade de modificações que podem ter efeito no ambiente. Quanto maior o número de parâmetros a serem alterados, maior a amplitude interativa do meio. Mapeamento – (navegação) a habilidade do sistema de mapear seus controles em face das modificações no ambiente mediado de forma natural e previsível, além de considerar a forma como as ações do receptor estão associadas e sua repercussão. Um bom exemplo são controles por comando de voz, luvas sensitivas, shells e joysticks com formato de um volante de automóvel, guitarra, raquete de tênis, etc. 64 Para Steuer a experiência de Realidade Virtual eficaz, faz com que o participante esqueça seu ambiente real e concentre-se na sua existência dentro do ambiente virtual. Outro importante pesquisador da comunicação mediada por computador, é o israelense Sheizaf Rafaeli (1998), que defende o pressuposto de que a interatividade não é uma característica da mídia, mas sim um constructo relacionado a processos acerca da comunicação. Desta forma, o conceito de interatividade para o autor, se define como a extensão da noção de interação e que esta, dependa do contexto em que está sendo utilizada, em outras palavras, interatividade é uma medida da capacidade do potencial de um ambiente mediado de deixar que seu conteúdo e/ou forma se transmute a partir da interferência de um utilizador. Assim definiu um modelo que utiliza três níveis progressivos em um continuum: 1) duas vias de comunicação; 2) comunicação reativa; 3) comunicação interativa. Afirma Rafaeli: A interatividade é uma expressão da dimensão em que, numa dada série de trocas de comunicação, qualquer terceira (ou posterior) transmissão (ou mensagem) é relacionada com o grau pelo qual trocas anteriores se referiram a transmissões ainda mais anteriores (RAFAELI APUD JENSEN, 1998, p. 203). Neste sentido, conclui-se que a interatividade é intrinsicamente sinônimo do conjunto de características que se forma entre a funcionalidade do meio e vai além da percepção do receptor, uma vez que a interatividade cria uma habilidade perceptiva diferente, por acionar e interar a ação. A concepção do conceito, em definições unidimensionais ou multidimensionais, não pode ser feita apenas do ponto de vista de uma destas características da interatividade, sob o risco de enviesar qualquer tentativa de isolar e construir uma noção clara e precisa. As dimensões são critérios para a compreensão e construção do conceito de interatividade, mas devem ter como foco principal a funcionalidade do sistema e a percepção humana. 2.4 – Análise das Dimensões no Machinema 65 Tomando como quadro referencial os conceitos desenvolvidos por Lemos, Steuer e Rafaeli, é possível compreender que o estudo desses teóricos propõe como chave para a construção do conceito de interatividade, fatores como: feedback, bidirecionalidade, tempo de resposta, quantidade e qualidade de atividades possíveis para o interator, transparência, presença social, número de interatores simultâneos, inteligência artificial e realidade virtual. Assim a interatividade como processo de interação que ocorre no Machinema, possivelmente vincule sua aplicação à cinco dimensões que se inserem na intersecção dos ambientes da ação e da máquina (a maquinação e o maquínico), como defino a seguir, subdividindo em três seções: a) Hibridismo Conteúdo – a estrutura, o desdobramento narrativo, o deslocamento estético e apresentação do que está contido. Adaptabilidade – relaciona-se diretamente com a capacidade eficiente e eficaz de acomodar de forma conveniente a inter-relação do espectador / interator com o filme interativo. b) Imersão Comunicabilidade – refere-se as ferramentas que permitem o diálogo - a comunicação - entre espectador / interator e filme interativo. c) Interatividade Navegabilidade – compreende as possibilidades do espectador / interator de percorrer a aplicação (obra-interativa) através de suas hiperligações. Controlabilidade – abrange as possibilidades do espectador / interator de controlar a sua navegação, quer seja no ritmo, na sequência e/ou ao nível dos conteúdos. A partir destas cinco dimensões e no intuito de identificar elementos que pudessem demonstrar um padrão para formatação de uma categorização da interação no Machinema, organizei um quadro para as análises que a princípio seria 66 aplicado somente ao corpus desta pesquisa. Entretanto ao compreender que os dois objetos escolhidos inicialmente, mantinham em alguns aspectos uma grande distância e não tendo por objetivo apresentar dicotomias, mas a conformação de um conceito de real potencialidade, fez-se necessária a ampliação dos objetos desta pontual investigação, uma vez que desta forma seria possível a identificação de elementos que trouxessem relação por aproximação entre os objetos. Entendendo que esta análise seria mais abrangente, se a investigação fosse efetuada durante sessões públicas, a seleção ocorreu de forma conveniente47, ou seja, os objetos selecionados foram aqueles exibidos durante a Mostra Internacional de Filmes Interativos48 que aconteceu em 2011 no Centro Cultural do Banco do Brasil em Brasília. 2.4.1 - Kinoautomat Kinoautomat, que teve sua primeira exibição na América Latina durante a Mostra de Filmes Interativos, inicia mostrando imagens de um prédio sendo consumido pelas chamas de um grande incêndio. Em seguida há uma pausa na exibição e sobe ao palco um ator que interpreta Novak, o personagem principal da trama. O ator inicia um diálogo com o público, informando que acredita ser o culpado pelo incêndio do prédio onde ele mora. Nesta primeira interrupção Novak conta aos espectadores que gostaria de reviver o dia do incêndio para, assim ter a possibilidade de impedi-lo. Na sequência, indaga a plateia se gostaria de que o tempo retrocedesse ao dia do incêndio para que com a ajuda deles pudesse impedir a tragédia. Uma vez que não restavam dúvidas à Cincera, o diretor do filme, de que 47 A Mostra Internacional de Filmes Interativos ocorreu no período de 22 de novembro a 4 de dezembro de 2011, das 10 às 22h. As salas do Centro Cultural do Banco do Brasil possuem mais de setenta assentos e foram devidamente adaptadas para permitir a apresentação do Machinema. Cada um dos filmes interativos teve inúmeras sessões durante o período da Mostra, as quais foram assistidas e analisadas pela autora desta pesquisa, além de terem sido fotografadas e filmadas e fazerem parte de seu acervo pessoal da pesquisa. Para este momento de análise foram descartados os filmes interativos publicitários e também os que fazem parte do corpus da pesquisa, pois serão analisados com maior profundidade no terceiro capítulo deste estudo. 48 É importante salientar que, muito embora os objetos selecionados para análise tenham sido os exibidos na Mostra Internacional de Filmes Interativos, as reflexões empenhadas neste estudo foram desdobradas em três categorias: hibridismo, imersão e interatividade, sem que nenhuma delas tivesse maior destaque, uma vez que somente através da junção das três, é que se torna possível atingir o objetivo traçado para análise do Machinema. Assim, até mesmo pelo título da Mostra, justifica-se que o termo interatividade, apareça de forma mais intensa na pesquisa. 67 a maioria dos votos do público levariam a trama a retroceder ao passado, neste ponto não havia de fato uma bifurcação na narrativa, portanto não houve a produção de dois percursos. Apenas um percurso foi inserido em sua montagem, onde a história é contada a partir da manhã que antecedeu o incêndio. Desta forma, é possível compreender que, embora tenha havido uma interrupção, o destino da trama não se altera, portanto, neste primeiro momento, a potencialidade de interação se oferece como uma trucagem. Em outros pontos, houve pequenas alternâncias na montagem, mas que não representaram qualquer mudança significativa no conteúdo. Em apenas cinco pontos de interrupção há uma mudança significante para a narrativa, já nos outros quatro pontos não há Conteúdo a menor relevância e o conteúdo não se altera em termos HIBRIDISMO narrativos, sendo que a interrupção apenas causa um desequilíbrio estético O controle é simples e intuitivo, tendo um botão de cor verde Adaptabilidade que pode ser acionado quando a resposta for positiva e um outro de cor vermelha, que deve ser acionado quando a resposta for negativa. A única forma de comunicação entre o espectador e o filme é através do controle nos assentos, onde ele poderá escolher IMERSÃO uma entre duas opções de percursos. As opções de escolhas Comunicabilidade não possuem grande impacto na trama, além de não alterarem os destinos dos personagens ou o final da história. Nos nove intervalos há a presença do ator no palco, interagindo com o INTERATIVIDADE público. Possui 9 pontos de interrupção e em cada um deles a apresentação de um menu interativo. Os espectadores são Navegabilidade orientados por um ator de que forma poderão fazer suas escolhas, a partir da interface que lhes foi entregue antes do início da sessão. 68 Em alguns pontos de interrupção, embora tenha um suposto menu interativo, não há uma hiperligação a nenhum outro ponto do filme, pois independente da opção mais votada a trama continuará de forma linear. O controle é analógico e limitado, com apenas dois botões Controlabilidade fixos nos apoios de braços dos assentos. O tempo de espera entre a escolha e a continuidade do filme é relativamente grande, uma vez que pode levar até quatro minutos. Quadro 1 - Um Homem e sua Casa – Kinoautomat República Tcheca – 1967 – Raduz Cincera Kinoautomat apresenta um nível de interação estreito e instável, onde as opções e feedback são dirigidos pelo sistema, não havendo controle do usuário sobre a estrutura do conteúdo; seu fluxo, embora nove vezes interrompido, é linear; a relação de trocas entre os elementos do ambiente mediado é simplória, não permitindo ao espectador / interator que crie novas sequencias. No entanto, a sensação de controle amplia o efeito-cinema e busca inserir o espectador no contexto da trama. Assim, é possível reafirmar que Kinoautomat tem sua relevância guardada no fato de ser um importante precursor deste modelo de filmes, mas se enquadra de maneira atenuada na definição de um exemplar Machinema. 2.4.2 - A Máscara do Terror – Mr. Sardonicus Em A Máscara do Terror o rico barão Sardonicus esconde seu rosto horripilante por trás de uma máscara, enquanto desenvolve experimentos bizarros para reconstruir sua aparência, mas que não obtém grande sucesso. Decepcionado com os resultados das experiências, Sardonicus pretende obrigar um jovem médico, amante de sua esposa, a reconstituir sua face. Inicialmente havia apenas um final para esta história e o mesmo era assombroso, com requintes de crueldade e muita maldade. O diretor William Castle havia definido este trágico final, contudo após muitas exibições a Columbia Pictures exigiu uma mudança na conclusão do filme. Um vez que Castle entendia que o final mais repulsivo despertaria maior interesse, como solução deu ao público o poder da escolha entre o final do diretor e o final 69 exigido pelo estúdio. O que a princípio era apenas um efeito de trucagem, como tantos outros fornecidos por Castle, uma vez que nas primeira exibições não haviam dois finais, tornou-se de fato interativo. HIBRIDISMO Conteúdo Tem apenas uma interrupção, mas que gera alteração radical no conteúdo narrativo. O controle é manual, simples e intuitivo, além de ter o suporte Adaptabilidade de um moderador que explica como utilizar as plaquetas e como IMERSÃO funcionará a votação. Não há uma comunicação direta entre o público e o sistema, Comunicabilidade que interagem com o público e com o sistema. Navegabilidade INTERATIVIDADE mas sim uma interação mediada pelos funcionários do cinema, Há apenas um ponto de interrupção, onde a audiência fará a opção por um, entre dois finais distintos. O público antes de entrar na sessão recebe uma plaqueta com o símbolo de positivo ou negativo e ao serem solicitados levantarão as plaquetas para definir o final da trama. O tempo de Controlabilidade espera entre a escolha e a continuidade do filme é longa, pois requer que um funcionário do cinema contabilize o resultado das escolhas e verifique o que foi a maioria, para assim, dar sequência a exibição, que será gerada como um feedback. Quadro 2 – A Máscara do Horror – Mr. Sardonicus EUA – 1961 – William Castle A interação manual (Figura 9) onde os espectadores informam suas escolhas através de objetos (símbolos que se expressam através placas, cartas, gestos, etc.) que não acionam automaticamente um evento, constitui o mais baixo 70 valor da variável velocidade, ao que se refere à taxa com que um input pode ser assimilado pelo ambiente da ação. Figura 9 – Sim ou Não? Assim, é possível compreender que em A Máscara do Terror o tempo entre a ação do público e o desenrolar da história é longo, a interface de interação é passível de erros ou manipulações no resultado da contagem das plaquetas. Desta forma o espaço imersivo fica comprometido, pois permite a dispersão do público e falta de confiança, não elaborando de forma convincente um ambiente de realidade. Embora tendo uma interação modesta, ainda assim representa a possibilidade real do espectador ter “algum” controle sobre o final da história. Neste contexto, A Máscara do Terror poderá ser classificado como um prenuncio do Machinema. 2.4.3 - Os Sete Suspeitos – Clue Baseado no jogo de tabuleiro O Detetive, Clue, trata de um misterioso assassinato que ocorre em uma mansão, onde seis estrangeiros são convidados para uma festa. Os seis convidados e mais o mordomo da mansão não se conhecem, mas possuem algo em comum: todos estão sendo chantageados por Mr. Boddy. Ao anoitecer, durante o jantar, todas as luzes da mansão se apagam e quando são acesas novamente, o chantagista está morto. Neste ponto, inicia-se a grande questão: quem matou Mr. Boddy? Todos os convidados tinham reais motivos para tal ação, assim tornam-se todos suspeitos do crime. O filme se desenrola com os próprios suspeitos fazendo a investigação e alguns assassinatos misteriosos ao longo do percurso. A poucos minutos do final, surge um menu interativo: três cartas 71 semelhantes ao jogo de tabuleiro (Figura 10), convocam os espectadores a votarem nos possíveis desfechos para a história. Figura 10 – Quem é o assassino? Nas primeiras sessões de Clue, ainda na época dos rolos de filmes, os anúncios da programação das salas de cinemas, informavam qual final estava sendo exibido, pois em cada sala apresentava apenas um dos três desfechos. Assim, seu público poderia fazer sua escolha antes de entrar na sessão. Com a evolução tecnológica e a chegada das novas mídias, Clue, em 2000, é lançado em DVD e ganha a possibilidade de juntar todos os finais em uma única apresentação, permitindo que o espectador, após assistir grande parte do filme, possa interagir escolhendo quem será o assassino e desta forma definir o final. Já em 2011, surge a versão para as telonas e a Universal Studios anuncia a produção de um remake, também interativo, com lançamento previsto para o segundo semestre de 2013. HIBRIDISMO Conteúdo Tem apenas uma interrupção mas que gera alteração radical na sequência narrativa. Antes do inicio da sessão os espectadores são orientados Adaptabilidade sobre como funcionará a votação e a forma de utilização do controle remoto, que é simples e intuitivo. IMERSÃO 72 Comunicabilidade INTERATIVIDADE Navegabilidade Possui uma interface simples e permite uma comunicação direta entre o público e o sistema. Há apenas um ponto de interrupção, onde a audiência fará a opção por um, entre três finais distintos. O público antes de entrar na sessão recebe um controle remoto digital com botões de 0 a 9, uma tecla cancela e outra confirma. Para a escolha das opções, abre-se um menu de votação por 10 segundos. A contabilização dos votos é exibida Controlabilidade em uma tela auxiliar nas laterais do telão. Cada espectador tem direito a apenas um voto , mas que durante o tempo em que o menu está aberto, mesmo já tendo votado, poderá cancelar seu voto e escolher uma outra opção. Ao encerrar o tempo, a opção mais votada gera o feedback da ação. Quadro 3 – Os Sete Suspeitos - Clue Inglaterra – 1985 – Jonathan Lynn Mesmo havendo apenas um ponto de interação entre o espectador e o filme, seu desfecho, em cada uma das opções, é radicalmente alterado, criando histórias distintas, pois permite que a audiência ao atribuir a culpa à um dos personagens, automaticamente esteja fazendo a escolha de quem continuará vivo, além de permitir a escolha de quando, onde e como os assassinatos serão executados. Ainda que a interface fosse o controle remoto e que esta estabeleça a interação entre o público e o filme, nas sessões de Clue foi possível perceber que havia também uma certa interatividade entre o público presente na sala, pois no momento de interrupção durante a apresentação do menu interativo, os espectadores expressavam em voz alta sua opinião, como forma de estimular outros participantes da sessão. Desta forma, esta interface incorpora não só o controle remoto que está nas mãos dos espectadores-interatores, como também a apresentação visual do menu interativo, a contagem dos votos exibida nas telas auxiliares e a articulação do diálogo entre o público, ampliando assim, a troca no ambiente mediado e por consequência o espaço imersivo. 73 2.4.4 - Carinho e Cuidado – Tender Loving Care Em Tender Loving Care os espectadores desde o inicio são surpreendidos com a presença, já na primeira cena, de um personagem narrador que fala diretamente com o público. Se apresenta como Dr. Turner, o psiquiatra do casal que será o foco da trama, e inicia seu diálogo explicando de forma clara e simples como funcionarão as formas interativas. Insinua aos espectadores que terão o poder de controlá-lo, uma vez que ele fará um papel de uma espécie de observador silencioso de um casal que passa por sérias dificuldades emocionais, cuja filha morreu em um acidente de carro e a mãe age como se a criança ainda estivesse viva, mantendo seu quarto, roupas, brinquedos, etc. Para trazer ainda mais desequilíbrio à família, uma linda, sensual e sedutora enfermeira é contratada para ajudar na recuperação do casal. No entanto, os métodos, que a suposta enfermeira se utiliza, são pouco convencionais e bastantes questionáveis, o que pode causar estragos ainda maiores a vida destas pessoas. O conteúdo se altera a cada escolha ou a cada grupo de Conteúdo respostas, desde alterações comportamentais dos personagens, HIBRIDISMO a mudança temporais, espaciais e narrativas. O público antes de entrar na sessão recebe um tablet previamente configurado e as orientações de como interagir com Adaptabilidade o filme através do equipamento. A interface torna-se simples, pois se assemelha a um celular. Os comandos são efetuados a IMERSÃO partir dos botões de 0 a 9 ou na tela touchscreen do tablet. Comunicabilidade A comunicação direta e full time entre o público e o sistema. 74 A navegabilidade é bastante complexa e nem sempre o momento da interação é um ponto de interrupção. Possui Navegabilidade inúmeros pontos de hiperligação: desde objetos exibidos em INTERATIVIDADE destaque nas cenas, até os menus interativos compostos por até 10 questões, onde todas as respostas são obrigatórias. Considerando as escolhas dos menus compostos por perguntas o controle é subjetivo, uma vez que não deixa claro o Controlabilidade que cada resposta poderá impactar na cena. Já os objetos em destaque, dentro do contexto da história, tornam-se ações dedutíveis. As escolhas são feitas em tempo real e a resposta é imediata. Quadro 4 – Carinho e Cuidado – Tender Loving Care Inglaterra – 1997 – Davi Wheeler Na grande maioria das cenas há sempre objetos que se destacam por possuírem um contorno verde fluorescente. Estes objetos são reproduzidos na tela dos tablets entregues aos espectadores ao adentrarem na sala de exibição. Sendo as telas touchscreen, quando mais de 50% dos espectadores tocam nos objetos, as cenas seguintes são organizadas de modo a exibirem aposentos da mansão do casal ou permitirem acesso a seus pertences, incluindo a leitura de diários, audição da secretaria eletrônica, ligar ou desligar aparelhos que possam trazer alguma relevância, enfim objetos pessoais que poderão esclarecer acontecimentos anteriores. Outra possibilidade de interação do público, é que a qualquer momento podem decidir encerrar o dia de convivência com o casal e sua intrigante enfermeira, sendo que ao escolher esta opção os espectadores serão convocados a responder um questionário psicológico, com perguntas que podem ter relação com as cenas que o precederam ou estarem relacionadas a assuntos de grande tabu com foco em sua psicologia pessoal (Figura 11). Neste ponto de interrupção, os inputs enviados pelos espectadores, possibilitam uma interação de maneira significativa, com narrativa da história e acima de tudo um envolvimento psicológico elevado, causando assim uma intensa sensação de presença e imersão. As respostas dão 75 sequência ao filme, que pode seguir os mais variados percursos e terminar com inúmeros finais diferentes49. Figura 11 – Que emoção você tem por Allison? Tender Loving Care é uma espécie de dispositivo de biofeedback,50 que oferece todas as possibilidades de entretenimento de um filme interativo, mas que considera para o desenrolar da trama que sejam satisfeitos os interesses voyeristas e auto-analíticos de sua audiência. 2.4.5 - De Volta à Casa da Colina – Return to House on Haunted Hill De Volta à Casa da Colina conta a história de Richard, um professor obcecado por relíquias perdidas. Sua atual obsessão é a estátua de um ídolo – Baphomet -, considerado por muitos a causa de terríveis desastres e por mudar totalmente a personalidade da pessoa que o possuir. Richard conhece Sarah Wolfe a única sobrevivente de um massacre que ocorreu em um sanatório sediado na Mansão Vanacutt. Tida como desequilibrada pela família, mantinha consigo o diário do Dr. Vanacutt que continha a importante informação: o local exato onde estaria escondida a estátua de Baphomet dentro da mansão. Sarah, pressentindo sua morte, envia o diário à sua irmã, Ariel, que o recebe pouco depois de atender um telefonema informando sobre o suposto suicídio de 49 Em entrevista concedida a pesquisadora durante a Mostra de Filmes Interativos, o diretor David Wheeler não revela o número preciso de finais, mas garante que até o momento nem todos foram explorados. 50 O termo biofeedback foi utilizado pelo diretor em entrevista concedida a autora desta pesquisa durante a Mostra de Filmes Interativos, onde o mesmo justifica a utilização do termo pela formação da palavra: bio (vida), feed (alimentar) e back (retorno), que pode ser traduzido como uma retroalimentação biológica. 76 Sarah. Inconformada com a perda de sua irmã, Ariel questiona as reais razões que levaram Sarah à loucura conduzindo-a a morte. O Prof. Richard, sua namorada e um de seus melhores amigos resolvem montar uma expedição na casa, com o objetivo de encontrar a estátua e devolve-la a um museu. Enquanto isso, a irmã de Sarah é levada à Mansão Vanacutt por um grupo de sequestradores que estão a procura da estátua para vendê-la a um colecionador, por cinco mil dólares. É neste contexto que estes dois grupos de pessoas vão à Mansão Vanacutt, onde iniciam uma busca mortal pela estátua, despertando o mal eternamente aprisionado na casa da colina. Tendo sete pontos de interrupção e com no mínimo três HIBRIDISMO Conteúdo possibilidades de alteração do percurso da trama, permite que o conteúdo tenha alterações importantes que se afunilarão em apenas dois finais diferentes. Antes do inicio da sessão os espectadores são orientados Adaptabilidade sobre como funcionará a votação e a forma de utilização do IMERSÃO controle remoto, que é simples e intuitivo. Comunicabilidade Possui uma interface simples que permite uma comunicação direta entre o público e o sistema. Há sete pontos de interrupção, proporcionando em cada uma Navegabilidade delas duas opções, mas que se hiperligam a no mínimo três INTERATIVIDADE sequências diferentes de forma randômica. O público antes de entrar na sessão recebe um controle remoto digital com botões de 0 a 9, uma tecla cancela e outra confirma. Para a escolha das opções, abre-se um menu de Controlabilidade votação por 10 segundos. A contabilização dos votos é exibida em uma tela auxiliar nas laterais do telão. Cada espectador tem direito a apenas um voto e durante o tempo em que o menu estiver aberto, poderá cancelar seu voto e escolher outra opção. 77 Ao encerrar o tempo, a opção mais votada gera o feedback da ação. Quadro 5 – De Volta à Casa da Colina – Return to House on Haunted Hill EUA – 2007 – Victor Garcia A grande virtude deste objeto está na possibilidade da construção narrativa ser partilhada entre a audiência e o sistema simultaneamente, em cada um dos pontos de interação. O público, ao escolher uma entre duas alternativas, define o curso da trama, entretanto após esta escolha o sistema, de forma randômica, oferecerá como feedback uma entre três possíveis sequências. Assim, ampliam-se as possibilidades de deslocamentos narrativos, que através desta operação de trocas entre os elementos do ambiente mediado, geram uma construção que é ao mesmo tempo negociada e casual. Como exemplo, é possível citar um dos pontos de interação, onde é indagado à audiência se a personagem Harue deve ou não ser morta pelos fantasmas. Independente da escolha do público para cada uma das opções haverá três sequencia cênicas distintas, mas é fato que a decisão de que a personagem continuará ou não fazendo parte da trama caberá ao espectador. Entretanto a forma como se dará a sua morte ou como permanecerá na trama será uma decisão casual promovida pelo processo de inter-relação entre o maquínico e a maquinação. Assim, caso a maioria escolha pela morte da personagem, haverá três possibilidades de feedback: a) morrer estrangulada por um dos fantasmas da mansão (Figura 12), b) ter sua face esquartejada pelo Dr. Vanacutt (Figura 13), ou ainda, c) ser queimada viva ao tentar fugir através de um dos fornos do crematório (Figura 14). Figura 12 - Estrangulada 78 Figura 13 - Esquartejada Figura 14 - Queimada De Volta à Casa da Colina apresenta um tipo de interação hierárquica, uma vez que sua configuração oferece a audiência um menu com um número definido de opções, mas que também é reativa, já que as escolhas de feedback são dirigidas pelo sistema. Tendo em vista que o filme possui apenas dois finais diferentes, somente no último menu é permitido ao público que tenha a exclusividade sobre o controle do desfecho da trama, fato que possibilitará a punição, ou não, do antagonista da história. 2.4.6 – Maldita Escolha Maldita Escolha conta a história de um casal, Tião e Thais, que em um final de semana decidem conhecer a cidadezinha de Caetanópolis. Tião, um jovem desastrado, bate o carro no caminho, justamente em uma estrada infestada por zumbis e seres bizarros. Produzido por um grupo de alunos do curso de Produção e Multimídia da Universidade de Belo Horizonte, Maldita Escolha, trata-se de um filme trash interativo, desenvolvido para multiplataformas (cinema51, DVD52, internet53 e 51 O projeto desenvolvido para cinema trata-se de uma simulação em plataforma PC com hardware dedicado. O filme incorpora uma aplicação desenvolvida no software Flash que reconhece as opções escolhidas pela plateia e dá sequência a trama. A interface desta aplicação são pads independentes para cada espectador. 52 Vídeo com menus programados no software Flash que reconhece as opções escolhidas pelo espectador e dá sequência ao filme. Para essa interação é utilizado o controle remoto do aparelho de DVD. 79 móbile54). Apesar de a narrativa ser a mesma, cada uma das plataformas possui particularidades ao enviar a mensagem ao espectador, mas preservam o nível de interatividade do objeto. Durante a exibição há diversas escolhas que o espectador deverá fazer e elas influenciarão diretamente no andamento e no encerramento do filme. Dentre os dezesseis pontos de interação nove alteram de forma significativa o percurso da trama, uma vez que nestes momentos o espectador tem a possibilidade de escolher a partir de qual personagem deseja seguir o percurso da história. Em quatro pontos distintos a escolha é focada nos objetos em cena, o que permite também uma alteração importante no conteúdo e HIBRIDISMO Conteúdo por fim nos últimos três pontos de interrupção a alteração da trama é mais branda, pois trata-se de escolhas que não interferem diretamente no caminho que seguirá a história, mas sim como se desenrolará a cena em questão, não possibilitando que, independente da escolha, esta contamine a cena seguinte. Com um número considerável de pontos de interação, este objeto permite que seu conteúdo tenha alterações importantes que se afunilarão em quatro finais diferentes. Antes do inicio da sessão os espectadores são orientados Adaptabilidade sobre como funcionará a votação e a forma de utilização do controle remoto, que é simples e intuitivo. Possui uma interface simples. Antes da exibição do menu IMERSÃO surge um ponto de exclamação luminoso a direita do telão. Em seguida os elementos visuais para a escolha ganham um Comunicabilidade contorno verde luminoso (personagens, objetos, caminhos, etc.), além de exibir as opções de forma escrita, para que não haja dúvidas com relação ao que está sendo questionado, permitindo assim uma comunicação direta entre o público e o sistema. 53 Disponibilizado em site na WEB, utiliza a tecnologia Vídeo Stream, incorporado em aplicação desenvolvida no software Flash, que reconhece as opções escolhidas pelo espectador e dá sequência ao filme. Para essa interação é utilizado o mouse do computador. O filme está disponível no site www.youtube.com. 54 O produto desenvolvido para móbile incorpora uma aplicação desenvolvida no software Flash Lite que reconhece as opções escolhidas pelo espectador e dá sequência ao filme. Para essa interação são utilizadas as teclas do aparelho celular. 80 Há dezesseis pontos de interrupção que oferecem ao Navegabilidade espectador a possibilidade de duas opções de sequências INTERATIVIDADE diferentes. O público, antes de entrar na sessão, recebe um controle remoto digital com botões de 0 a 9, uma tecla cancela e outra confirma. Para a escolha das opções, abre-se um menu de votação por 10 segundos. A contabilização dos votos é exibida Controlabilidade em uma tela auxiliar nas laterais do telão. Cada espectador tem direito a apenas um voto e durante o tempo em que o menu estiver aberto, poderá cancelar seu voto e escolher outra opção. Ao encerrar o tempo, a opção mais votada gera o feedback da ação. Quadro 6 – Maldita Escolha Brasil – 2008 – Jomário Murta Em Maldita Escolha percebe-se que na participação, o espectador tem a possibilidade de emitir e receber informações, além de ser um potencial emissor. Desta forma sua interação é bidirecional, uma vez que emissor e receptor tem a mesma possibilidade de comunicação contínua, fazendo com que a informação circule o tempo todo, assim, o receptor se torna potencialmente um emissor e viceversa. Sua potencialidade-permutabilidade permitem que a audiência faça diversas conexões de forma não-linear, sendo que esta característica de Maldita Escolha, possibilita que o público saia de um ponto a outro sem passar por pontos intermediários e com isso os eventos gerados fluem de acordo com as trocas estabelecidas no ambiente mediado. O filme apresenta três intensidades distintas em seus pontos de interação, a saber: a) Intensidade Branda: quando a escolha não altera a narrativa. Este nível ocorre em três pontos de interrupção e independente da opção mais votada pela audiência as cenas seguintes não influenciarão na narrativa. Como exemplo é possível citar o menu onde os espectadores devem escolher entre os objetos: patinho ou 81 banana (Figura 15) e que independente da escolha a trama segue sem qualquer alteração narrativa. Figura 15 – Patinho ou Banana? b) Intensidade Média: quando a escolha muda parcialmente a narrativa. Este nível ocorre em quatro pontos de interrupção, contudo a escolha terá algum significado narrativo, mas não haverá tamanha importância para o desenrolar da cena em questão. Menus que apresentam escolhas entre seguir ou voltar, garrafa ou tijolo (Figura 16), em um primeiro momento não apresentam mudanças significativas do ponto de vista da história, contudo ao assistir a obra é possível perceber caminhos diferentes, alternativas e possibilidades que não acontecem em uma escolha em relação à outra, ou seja, dependendo da escolha a audiência se privilegiará dos possíveis narrativos. Figura 16 – Garrafa ou Tijolo? 82 c) Intensidade Rigorosa: quando a escolha da audiência muda completamente a narrativa. Este nível de intensidade ocorre em nove pontos distintos e permite construir uma nova narrativa a partir da decisão da audiência por cada personagem ou quando em dupla, ou seja, as ramificações narrativas significativas ocorrem quando o menu interativo oferece a opção de escolher seguir a trama por um dos personagens centrais (Figura 17) ou ainda nos momentos em que se tem a possibilidade de realizar o encontro entre os personagens. Figura 17 – Thaís ou Tião? Através das escolhas feitas pelo público, independente de suas intensidades, Maldita Escolha se encaminhará para um dos quatro possíveis finais, sendo: a) com Thaís eliminando os zumbis, b) com Tião conseguindo fugir, c) com Thaís e Tião em um final trágico, ou ainda d) com Thaís e Tião em um final romântico. 2.4.7 - Ressaca Dirigido por Bruno Vianna e premiado em 2009 no Festival de Cinema de Porto Alegre, Ressaca conta a história de um rapaz que vive sua puberdade no Brasil dos anos 80, um período em que o País também passava por um amadurecimento político e econômico. Sua família sofre com as consequências da crise econômica que assola o País naquele momento. Quando o pai do protagonista 83 perde o emprego, o rapaz se vê obrigado a estudar em uma escola pública e ter que se adaptar a este novo ambiente. Com uma hora e meia de duração, o público irá acompanhar o processo de edição e montagem das imagens, que é feito ao vivo pelo diretor simultaneamente à projeção do filme na tela. Este processo somente é possível graças a tecnologia denominada Engrenagem (Figura 18) que fora desenvolvida pela Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, especialmente para Ressaca. Figura 18 - Engrenagem Engrenagem consiste em uma tela tátil, que permite movimentar os elementos do filme com os dedos. Como a tela tem um metro de diâmetro e fica posicionada ao lado da tela principal do cinema, a plateia pode acompanhar todo este processo. A interface criada permite a visualização de todo o material do filme e sua organização, através de links que definem a ordem das sequências, além de permitir a manipulação de cada plano de cada sequência, mudando sua posição no filme, além de escolher o tipo de corte e fusão, resultando em uma obra inédita a cada exibição. 84 Não há pontos de interrupção, nem tampouco um menu Conteúdo interativo de escolhas. Entretanto através da interação no HIBRIDISMO ambiente mediado o conteúdo sempre será afetado. Antes do inicio da sessão os espectadores são orientados sobre como funcionará o modo de interação, que poderá ser por Adaptabilidade duas vias: através de opções de sequências, para aqueles que foram escolhidos ou voluntários para interagir diretamente com a tela tátil, ou através da livre expressão de suas emoções, para IMERSÃO aqueles que colaborarão de forma subjetiva. Possui uma interface complexa e sua comunicação é Comunicabilidade multidimensional, uma vez que há mediação entre o público e a interface e entre a interface e o sistema. Navegabilidade O filme possui 130 sequências pré-gravadas que podem ser recortadas, subdivididas, fundidas e montadas aleatoriamente. O público ao entrar na sessão, recebe as instruções de como INTERATIVIDADE interagir com a tela tátil e de que forma se comportará o sistema Engrenagem, além de serem alertados a explicitarem suas emoções, pois a partir destas é que a montagem será concretizada. O feedback sempre será comprometido pela troca Controlabilidade estabelecida entre a audiência e aqueles que estarão no comando da tecnologia. Por ser um produto que permite uma circularidade das sequências cênicas, não há um começo ou um final previamente determinados, pois o que ditará o tempo de duração será o número de sequências máximo previsto para cada exibição (em torno de setenta sequências). Quadro 7 - Ressaca Brasil – 2008 – Bruno Vianna A edição de Ressaca é feita conforme a reação da plateia. Inicialmente Bruno Vianna – o diretor – escolhe aleatoriamente as primeiras cenas que darão o contexto da história e orienta a plateia que deixe expor suas emoções da forma como desejarem. Com base nas evidentes reações da audiência, Vianna explora 85 sua sensibilidade no sentido de materializar o filme. A trilha musical do filme também é desenvolvida ao vivo. O ritmo das cenas é complementado com uma performance musical eletrônica o que permite, ainda mais, dramaticidade ao projeto. A tela tátil permite a manipulação das 130 sequências pré-gravadas por mais de uma pessoa, uma vez que pode ser tocada em qualquer ponto simultaneamente que obedecerá ao comando. Assim, em muitas sessões Vianna convida alguns espectadores para colaborarem na organização da trama, enquanto outros participam da montagem de forma indireta, expressando suas emoções. Neste objeto há sempre um ou mais mediadores (aqueles que manipulam a tela tátil) entre a interface e a audiência, que podem fazer uma leitura das emoções do público de forma contaminada com suas próprias emoções, assim é possível que a materialização de Ressaca se dê a partir desta possibilidade catártica coletiva. Em entrevista concedida à autora desta pesquisa, Vianna afirma que observa as emoções explicitadas pela plateia e se esta suspira, ele segue uma linha mais tranquila, se dá risadas, o conteúdo do filme é direcionado para algo mais humorístico, mas não nega que, também se permite liberar algumas de suas pulsões sádicas, inserindo cenas mais dramáticas e em um ritmo acelerado, quando nota pânico na plateia. 2.4.8 - Turbulência – Turbulence Premiado por inovação tecnológica no Festival de Cinema Berkeley em 2011 e dirigido por Nitzan Ben-Shaul professor do Departamento de Cinema e TV da Universidade de Tel Aviv, Turbulência é um filme que conta a história de três amigos israelenses: Edi, Sol e Rona, que se encontraram por acaso em Manhattan. Os três amigos se conheceram em 1982, quando Sol chega a Israel para servir ao exército. Sol e Rona se apaixonam, mas logo em seguida, durante um protesto contra a Guerra do Líbano e o massacre de civis, são presos e é encontrado drogas no carro de Edi. A polícia joga uns contra os outros e após vários meses detidos, acreditando terem sido traídos pelos amigos, são soltos e seus caminhos seguem por rumos diferentes. Agora, encontram-se, por acaso, em um bar na atual Nova York. Percebem que a polícia os levou a romper os laços de amizade, assim decidem esquecer o passado e reviver o sentimento que os unia. 86 Sol e Rona são casados, respectivamente com Grace e Moshe, mas mantêm o romance secreto desde que se encontraram novamente no bar. Edi, o fiel amigo, tem esposa e dois filhos. Os três amigos vivenciam conflitos conjugais comuns a qualquer casal e assim, tornam-se confidentes e cumplices uns dos outros. Certa noite, Sol chega em casa após horas de romance com Rona em um hotel. Ao despir-se para tomar banho, coloca seu casaco sobre uma poltrona e uma foto dele com Rona, cai em meio as roupas deixando a mostra parte da imagem. Grace, sua esposa, que está no quarto se preparando para deitar-se, poderá ou não ver a foto, o espectador é quem decidirá. Não há pontos de interrupção, nem tampouco um menu Conteúdo interativo de escolhas. Entretanto a interação pode ocorrer a qualquer momento e esta altera significativamente o conteúdo da HIBRIDISMO trama. Antes do inicio da sessão os espectadores são orientados sobre como funcionará o modo de interação, que poderá ser por Adaptabilidade duas vias, através da escolha de objetos que aparecem na tela dos tablets com contornos luminosos ou através do envio de IMERSÃO mensagens (torpedos) aos personagens. Comunicabilidade Possui uma interface complexa e sua comunicação é bidirecional e toda interação gera um feedback em tempo real. INTERATIVIDADE O filme possui 25 pontos de interatividade, que disparam Navegabilidade sequências pré-gravadas, além de a qualquer momento que um personagem receber uma mensagem, o sistema dispara uma resposta. O público ao entrar na sessão recebe as instruções de como Controlabilidade interagir com as imagens que serão exibidas na tela dos tablets, além de serem alertados de como interagirem através das mensagens com os personagens. O feedback sempre será 87 comprometido pela troca estabelecida entre a audiência e aqueles que estarão no comando das mensagens, tendo em vista que a opção de envio de mensagem não se abre a todos os integrantes da audiência simultaneamente. O filme poderá ter duração de oitenta e três minutos para os casos em que o público interaja somente com os objetos luminosos. Entretanto, seu tempo de duração poderá chegar a duas horas, quando houverem as trocas de mensagens. Quadro 8 – Turbulência - Turbulence Israel – 2010 – Nitzan Ben-Shaul Tendo sido financiado pela Universidade de Tel Aviv, com o objetivo de criar um sistema que possibilitasse o desenvolvimento do pensamento opcional, Guy Avneyon construiu um editor de cinema sofisticado, patenteado com o nome de Turbulence (mesmo nome do filme). Utilizando procedimentos de codificação de sistemas complexos, Turbulência, desenvolvido a partir do aplicativo Turbulence, oferece interatividade contínua e a transição entre as cenas depende da interação do público. Na tela touchscreen dos tablets, oferecidos aos espectadores, objetos são realçados com um contorno luminoso e quando são tocados pela maioria dos espectadores a cena atual não mantém sua linearidade e se hiperliga a uma outra sequência, ou ainda é possível tocar em um objeto e deslizá-lo, movendo-o para outro ponto. A qualquer momento em alguns dos tablets abre a possibilidade de ativar o celular de um dos personagens e quando isso acontece, tanto é possível enviar uma mensagem ao personagem, em evidência, e esta afetará seu comportamento, ou ainda é possível que tendo o seu celular ativado, o personagem envie uma mensagem aos espectadores que estejam ligados a este sistema. Assim, cada integrante da audiência, vivencia uma experiência parcialmente individual. Os pontos de interação ocorrem sempre em situações cruciais de decisão, como forma de envolver e responsabilizar seu interator. Em uma das cenas, por exemplo, Sol escreve uma mensagem para sua amante, Rona, em seu celular. O espectador pode clicar em “enviar” ou “cancelar”. Se o espectador hesita muito tempo, a ação continua de acordo com um caminho narrativo pré-determinado, mas que sua demora na decisão certamente trará consequências. A intenção é de 88 pressionar o espectador a uma tomada de decisão no menor tempo possível. No entanto as consequência não são punitivas, ao contrário apenas afetam o ritmo das sequências. Neste contexto, é possível perceber que Turbulência a) permite que o espectador / interator se relacione e participe diretamente com o ambiente virtual, b) possibilita que parte de sua interação seja personalizada, uma vez que o interator poderá enviar e receber conteúdos individuais, c) demonstra sua capacidade técnica para convergir e combinar elementos estáticos e dinâmicos, d) sua interação se dá de forma instantânea, permitindo acesso imediato à informação por parte do interator, combinada com atualização contínua e a possibilidade de comunicação síncrona e/ou assíncrona entre os interatores e o meio e entre os próprios receptores, d) permite desconstruir e ultrapassar as tradicionais barreiras do espaço e do tempo, assim Turbulência demonstra sua capacidade de gerar um poderoso espaço imersivo. 2.4.9 - O Labirinto Produzido pela Neurônio Produções em 2010, com uma equipe formada por ex-alunos do curso de Rádio e TV da UNESP e dirigido por Bruno Jareta, O Labirinto, é uma das primeiras experiências de cinema interativo de terror no Brasil. Traz referências da série produzida para TV: Lost, da franquia de cinema: Jogos Mortais e da trilogia: Cubo, quanto ao enredo da obra, a composição dos personagens e a forma estética. Com a proposta de produzir um filme que permitisse uma nova experiência a seu espectador, Bruno Jareta, Laís Gurjão e Natália Torres, motivados pela possibilidade de desenvolver um projeto criativo e inovador, além de contemplar os estilos e temas preferidos de cada um, encontraram na interatividade a solução para o roteiro. Influenciados por outros filmes como: A Gruta, Maldita Escolha e Ressaca o grande desafio era a utilização do recurso de múltiplas escolhas de forma genuína. Assim, o diferencial de O Labirinto é que a partir de tramas que se cruzam, o espectador não escolhe o que vai acontecer, mas sim de que forma quer acompanhar os acontecimentos e qual personagem será o protagonista da sua história, tornando cada exibição uma experiência única. 89 Em todos os pontos de interrupção há uma mudança significativa na narrativa, que permite tanto levar a história HIBRIDISMO Conteúdo adiante como exibir flashbacks. Dependendo da escolha, também poderá haver uma repetição de algumas opções, sendo que neste caso, elas se justificam para a compreensão da trama. Antes do inicio da sessão os espectadores são orientados Adaptabilidade sobre como funcionará a votação e a forma de utilização do controle remoto, que é simples e intuitivo. Possui uma interface simples e intuitiva. Em cada ponto de IMERSÃO interrupção a tela se subdivide para apresentar um pequeno Comunicabilidade trecho da cena seguinte. Com base na indagação e nas imagens exibidas em cada parte da tela o espectador fará sua escolha e o sistema apresentará o feedback, permitindo assim uma comunicação direta entre o público e o sistema. Após a escolha do personagem que o público deseja seguir, Navegabilidade há mais seis pontos de interrupção, que oferecem ao espectador INTERATIVIDADE de duas a quatro possibilidades. O público, antes de entrar na sessão, recebe um controle remoto digital com botões de 0 a 9, uma tecla cancela e outra confirma. Para a escolha das opções, abre-se um menu de votação por 10 segundos. A contabilização dos votos é exibida Controlabilidade em uma tela auxiliar nas laterais do telão. Cada espectador tem direito a apenas um voto e durante o tempo em que o menu estiver aberto, poderá cancelar seu voto e escolher outra opção. Ao encerrar o tempo, a opção mais votada gera o feedback da ação. Quadro 9 – O Labirinto Brasil – 2010 – Bruno Jareta 90 Após sua primeira exibição para os acadêmicos da Universidade Estadual Paulista, o filme O Labirinto foi exibido em festivais, oficinas e mostras internacionais de cinema. “Foi uma grande surpresa perceber que muitas pessoas assistem diversas sessões do mesmo filme interativo, só para ter a possibilidade de ver o que acontece com outras escolhas. O mais incrível no caso de O Labirinto, é notar que os espectadores torcem para que um personagem específico seja escolhido e que em todos os menus que possibilitam um flashback, esta opção, na maioria das vezes, é a preferida pelo público” afirma Jareta, em entrevista concedida para a autora desta pesquisa durante a Mostra de Filmes Interativos. O Labirinto expressa a possibilidade do espectador / interator decidir quem ele seguirá dentro do grande labirinto de conflitos existenciais de cada personagem. Cada um dos seis personagens centrais possui um perfil psicológico atípico e um mistério passado que envolve temas tabu e preconceituosos. Entretanto para que o espectador receba esta informação é preciso percorrer diversos caminhos e muitas vezes se perder entrando em loops de cenas, até se reencontrar. Desde o inicio da exibição, é possível perceber um fio mestre na história, um único eixo temático, que é o desejo de todos os personagens em encontrar a saída do labirinto. Neste sentido as ramificações narrativas de O Labirinto podem se assemelhar a enredos estruturados em episódios, como um produto seriado. Antes do final de cada uma das exibições há sempre um gancho de tensão que convoca o espectador / interator ao desejo de voltar para a história. Em alguns pontos de interrupção, o diferencial é a possibilidade dos flashbacks que trazem importantes conteúdos para a trajetória narrativa, além de permitirem impulsionar o tempo para frente ou um retorno, causando um deslocamento estético e narrativo. Já no primeiro menu que se apresenta ao espectador / interator dentre as quatro opções, duas permitem um flashback (Figura 19) e posterior retorno ao momento da trama: a) continuar com Amanda e Mauricio, b) Continuar com Hélio e a garota, c) Por onde a garota passou, d) Por onde Hélio passou. 91 Figura 19 – Seguir em frente ou retomar o passado? A cada menu de decisão, fragmentos narrativos são projetados sobre a tela e os espectadores podem navegar através do controle remoto. O sistema recebe o input, ou seja, a escolha da maioria pelo caminho a seguir, que também é informado na tela auxiliar (que fica ao lado do telão) e as respostas são exibidas em tempo real. A partir desta experiência um outro ambiente cinematográfico espacial constrói o laço de interação entre o público e os personagens virtuais, potencializando a imersão no ambiente mediado. 2.4.10 – Corre Corre é um projeto de Cátia Cardoso desenvolvido com o apoio da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa (Portugal) que apresenta a história de Tiago, um jovem publicitário muito bem sucedido em sua área de negócios, que compartilha com Sofia, sua ex-namorada, a guarda do pequeno Diogo, filho em comum do casal. Durante toda a primeira parte do filme onde são apresentados os personagens da história e também o contexto da trama, o espectador é informado que Sofia não mantém com Diogo uma relação muito amistosa, mas que para não prejudicarem a formação da criança, optaram por partilharem sua criação e assim, Diogo passa alguns dias com o pai e outros com a mãe. Tendo uma reunião de extrema importância para sua empresa, Tiago pede a Sofia que busque Diogo na escola, pois teme por se atrasar e não chegar a tempo de pegar o menino. Sofia entendendo que naquele dia a obrigação era de Tiago buscar seu filho, após uma grande discussão ao telefone, desliga sem que fique 92 clara qual foi sua decisão. No final da tarde, Sofia decide buscar o filho, contudo ao chegar na escola é informada que alguém levou o menino. Vislumbrando a possibilidade do pai tê-lo pego, liga insistentemente para Tiago, mas o mesmo não atende a chamada por estar em meio a reunião. Entre uma tentativa e outra de contato com o pai, Sofia recebe uma chamada e ao atender o telefone descobre que Diogo fora sequestrado e que tem vinte minutos para que Tiago pague um resgate astronômico, se quiserem ver o filho com vida. Desesperada liga novamente para Tiago, que já tendo concluído a reunião encontra-se no carro a caminho da escola, e conta o que está acontecendo com o filho. Ao informar o número do telefone dos sequestradores, Tiago não tendo como anotar decide assimilar a sequência de números para retornar a chamada, mas ao discar o número o celular de um dos espectadores do filme toca e é neste instante que a audiência será inserida no filme e poderá escolher o papel que irá desenvolver. Após completar a chamada, Tiago indaga a quem atende o telefone: - Quem está falando? Você é o sequestrador do meu filho, é um amigo ou foi engano? Assim, aquele que atende o telefone pode escolher qual será o rumo que dará a trama. Não há pontos de interrupção, nem tampouco um menu Conteúdo interativo de escolhas. Entretanto através da interação por meio HIBRIDISMO do telefone celular o conteúdo sempre será afetado. Antes do inicio da sessão os espectadores são orientados sobre como funcionará o modo de interação e são convidados a Adaptabilidade cadastrarem seus telefones celulares em um banco de dados. Por se tratar de uma interação através de um dispositivo conhecido e muito utilizado não há qualquer dificuldade de IMERSÃO adaptação. Possui uma interface simples, uma vez que o diálogo é Comunicabilidade mediado por um telefone. A comunicação entre público e filme é direta, além de bidirecional e imediata. 93 INTERATIVIDADE Navegabilidade Não possui nenhum ponto de interrupção, o interator navega por entre nós e redes full time. O público ao entrar na sessão recebe as instruções de como interagir com o personagem. O feedback é imediato e Controlabilidade surpreendente. Assim, uma vez que utiliza recursos de inteligência artificial a construção do objeto não é casual, mas sim negociada, tendo em vista a ampliação de possibilidades de ação em cada momento. Quadro 10 - Corre Portugal – 2011 – Cátia Cardoso O espectador após atender ao telefonema, torna-se o protagonista da história e poderá escolher seu papel. Se desejar terá a possibilidade de ajudar Tiago e se inserir na trama como um amigo do casal, ou ainda ser um perverso sequestrador, ou se preferir, poderá retornar a sua posição coadjuvante e apenas afirmar que a ligação foi um engano, obrigando Tiago e escolher um novo número para se conectar. Independente da escolha sua presença é marcada no ambiente e na história, pois a partir do telefonema recebido por Sofia, um cronometro é inserido no canto inferior da tela e o tempo do filme é contado pelo tempo real. Assim, cada minuto que se passa na história, Tiago tem um minuto a menos para resgatar seu filho. Neste contexto, até mesmo o compasso da fala ou o tempo em que o telefone toca até ser atendido atribui tamanha importância a cada espectador que recebe uma ligação, além de ser o princípio orientador do ritmo da história. Não há divulgação do número de finais possíveis, mas é fato que a realidade virtual, mesmo não sendo uma realidade de fato, mas uma simulação, faz com que o espectador se afete pelo efeito da essência de realidade que o envolve no ambiente mediado altamente interativo, de forma que o mesmo sinta a sensação de presença na história, quando de fato esteja apenas em uma sala de cinema. Em Corre a forma de comunicação estabelecida pela interface, a interatividade conduzida pelo processo de inteligência artificial e o engajamento despertado pelo contexto da história apontam para uma consequência: o envolvimento imersivo do espectador. Estas variáveis de grande peso determinam a construção do ambiente mediado, uma vez que são direcionadas pelo estímulo e 94 determinadas pela disposição do meio. Neste sentido, é possível afirmar que se estabelece uma interação proativa, onde o espectador possui o controle tanto da estrutura quanto do conteúdo, o que neste caso, percebe-se que a interação se define durante o processo, portanto se distancia do objetivismo e se calca no relativismo. Este nível de imersividade estabelecido, permite a exploração do ambiente virtual e propicia sua interação com um mundo virtual dinâmico. 2.5 - Categorias de Interação no Machinema A partir das análises dos objetos selecionados, é possível perceber que a investigação deve centrar-se na funcionalidade do sistema e na percepção humana, e concluir que as dimensões investigadas são critérios necessários para a construção e compreensão do conceito estrutural do Machinema. Para um entendimento mais ampliado da relação de trocas que se estabelece no Machinema e sua construção de sentido, defino a seguir cinco categorias de interação, que se defendem a partir da conceituação de hibridismo, imersão e interatividade, considerando-as como recursos que medeiam a comunicação e o grau de dependência do uso, levando em conta fundamentos psicológicos da experiência, navegabilidade e arquitetura da comunicação, importantes elementos presentes no ambiente da ação. 1. Veredicto – a palavra tem origem no latim e seu significado no dicionário Aurélio é: resposta dada pelo júri aos quesitos propostos pelo tribunal. Neste sentido, a categoria Veredicto se traduz como um ponto de interação, onde os espectadores escolhem uma, entre duas ou mais opções para o desfecho da história. Esta modalidade oferece ao espectador a possibilidade catártica55 de punir algum personagem da trama. 55 Catarse é um termo grego que significa purificação. Foi utilizado por Aristóteles para designar o efeito produzido (descarga emocional) no espectador pela tragédia, sendo a tragédia a imitação de uma ação virtuosa que aconteceu e que, por meio do temor e da piedade, suscita a purificação de certas paixões. (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001, p. 60/61). 95 2. Rayuela – nome inspirado no livro Jogo da Amarelinha (Rayuela) do escritor argentino Júlio Cortázar. Trata-se de um formato que rompe os moldes clássicos mediante as narrações que escapam da linearidade temporal. O público toma decisões diversas vezes pelos personagens ou pelo percurso labiríntico da trama e as cenas se encadeiam de acordo com as escolhas. 3. Investigativa – permite ao espectador pesquisar, examinar e interrogar os detalhes obscuros da trama ou dos personagens, através de sua interação com objetos em cena, indicações gráficas ou até mesmo mensagens por meio dos dispositivos móveis. Se houver a interação do espectador um feedback será acionado, sendo que este poderá alterar radicalmente a sequência seguinte ou apenas trazer informações importantes para compreensão da história. 4. Quiz – nome inspirado nos jogos mentais, em que os jogadores tentam responder à perguntas corretamente. Esta categoria se caracteriza por solicitar a audiência que responda questões relacionadas ou não à trama. A psique, o caráter e as opiniões pessoais são determinantes para influenciar os rumos da história. A maioria destes questionários são inseridos após cenas polêmicas e trazem perguntas “proibidas”- tabu. 5. Rítmica – As cenas são embaralhadas desde o início e são exibidas, a partir da interatividade, de forma aleatória. Esta categoria segue o principio conhecido por efeito-kulechov56, que permite ao espectador criar significados para as imagens de acordo com a ordem em que elas são exibidas. Relacionada ao ritmo da exibição, nesta categoria a intensidade da trilha sonora e as sequências das cenas são ordenadas a partir das expressões emocionais ou físicas da audiência. A cada sessão, o espectador 56 O efeito-kulechov que trata da alternância na montagem das imagens e sua produção de significado foram evidenciados experimentalmente pelo cineasta russo Lev Kulechov, na época que ele dirigia um ateliê na escola de cinema de Moscou (início da década de 1920). O princípio de “interação” tem em sua base o que concerne à faixa-imagem (o som, em geral, vem impor uma significação ainda mais forte). (AUMONT e MARIE, 2003, p.93). 96 pode experimentar diferentes ritmos da narrativa. Algumas dessas apresentações se assemelham a interpolação do trabalho de um VJ e um DJ, exibindo movimento lento, acelerado, variado, retroativo e congelado, imagens sobrepostas, divididas, multiplicadas, refletidas, dissolventes, animadas, muitas vezes ilegíveis pelo enquadramento, pela velocidade, pelos efeitos e fusões, planos que são contrastados ou cortados abruptamente, ruídos e música meticulosamente sobrepostos, originando uma colagem imagética e sonora sintética. Descritas as categorias, torna-se importante salientar que dentre os objetos analisados é possível perceber a presença de características de mais de uma categoria, mas o que faz com que um determinado objeto esteja inscrito nesta ou naquela categoria será a sua produção de sentido, além da intensidade ou a importância de maior dimensão de sua estrutura de interação. Neste contexto, o quadro a seguir, apresentará a categorização dos objetos analisados, com a função de ilustrar a metodologia. VEREDICTO Mr. Sardonicus Por possuir apenas um ponto de interação, não há neste objeto categorias periféricas. Toda a ação interativa dos espectadores são direcionadas Clue para punir ou salvar um determinado personagem. Sendo assim, RAYUELA neste objeto não há a presença de categorias periféricas. Possui pontos de interação que não trazem a menor Kinoautomat relevância para a história e outros que alteram somente o percurso. Assim, Kinoautomat não possui categorias periféricas. 97 O espectador percorre os caminhos da história durante os seis primeiros pontos de interação, contudo no último ele terá a Return to House on possibilidade de punir ou não o antagonista da trama. Assim, é Haunted Hill possível afirmar que este objeto se inscreve na categoria Veredicto de forma periférica, mas potencialmente se categoriza como Rayuela. Possui em alguns pontos de interação objetos luminosos que poderão ou não trazer informações relevantes para a história. Maldita Escolha Sendo assim, se inscreve de forma atenuada na categoria Investigativa, contudo potencialmente se categoriza como Rayuela. Em diversos pontos de interação oferece a possibilidade ao espectador de flashback e são estas opções que trazem O Labirinto informações relevantes para a compreensão da história. Assim sendo, se inscreve de forma periférica na categoria Investigativa, mas potencialmente se categoriza como Rayuela. É um objeto bastante completo e complexo, permite que o espectador escolha qual será seu papel na história, desta forma, todo o diálogo estabelecido entre o espectador e o personagem é permeado de pontos que se inserem na categoria Investigativa, sendo que no final, também é dado ao espectador Corre a possibilidade de punir ou não os sequestradores, se inscrevendo, assim, também na categoria Veredicto. Entretanto, em Corre, é possível perceber que a categoria de maior impacto é a Rayuela, pois os personagens e espectadores correm contra o tempo em uma trama labiríntica. Desta forma, embora Corre esteja inscrito na categoria Rayuela, possui também como categorias periféricas Investigativa e Veredicto. 98 Em Turbulência, muito embora a maior parte de sua interação esteja inscrita na categoria Investigativa, é possível notar que em INVESTIGATIVA alguns momentos o espectador tem a possibilidade de punir um determinado personagem, se inscrevendo de forma periférica na Turbulência categoria Veredicto, espectador trilhando em outros caminhos momentos percebe-se o labirínticos e assim se inscrevendo também na categoria Rayuela. Tanto na categoria Veredicto quanto Rayuela, Turbulência se inscreve de forma amena, entretanto sua potencial interação possui as características da categoria Investigativa. Cenas repletas de objetos luminosos permitem ao espectador interagir com cada um deles e receber informações importantes sobre os personagens ou sobre algum tema que esteja se QUIZ desenvolvendo naquele momento específico da trama, assim Tender Loving Care Tender Loving Care, embora se inscreva potencialmente na categoria Quiz, uma vez que serão as respostas dadas a uma série de perguntas que impactará de forma contundente no desenrolar da história, também possui de forma mais atenuada RÍTMICA características da categoria Investigativa. Este objeto se inscreve de forma potencial na categoria Ressaca Rítmica, contudo dependendo da montagem poderá trazer outras categorias de forma periférica. Quadro 11 – Categorias de Interação Finalmente, também é possível compreender que a elaboração das dimensões e das categorias, tem por princípio a função de apontar suas potencialidades imersivas interativas, além de apoiar e permitir um aprofundamento da análise do corpus desta pesquisa, não significando que estas sejam as únicas formas de interação presentes no Machinema, mas que até o momento, são as mais relevantes para o entendimento dos diferentes estilos que compõem estas obras. Lembrando que, por se tratar de categorias que se vinculam diretamente com sua base tecnológica e produção artística e que estas estão em constante transmutação, estudar o Machinema é um tatear o futuro, portanto não há, neste estudo, uma exigência pontual na busca de uma teoria exata, contudo o que torna intrigante e 99 atraente nesta pesquisa, é justamente a possibilidade de investigar os possíveis caminhos que o cinema digitalmente expandido poderá trilhar e quais as possibilidades de territorialização, interação e significação. 2.6 – Construção do Espaço Lúdico: Machinema x Game É fato que tanto no Machinema quanto no Game o ambiente imersivo constrói um espaço lúdico, de maior ou menor intensidade, dependendo do objeto em questão. Entretanto dentre tantos elementos que se convergem, há sete diferenças fundamentais nestes dois formatos, conforme seguem: 1. Ritmo – no Game o ritmo varia de acordo com a destreza do jogador e o tempo que ele pretende investir no jogo. O jogo pode ser interrompido diversas vezes e durar de horas a semanas. Enquanto isso o Machinema busca o tempo do cinema, concentra a ação no que é essencial à trama e possui um tempo máximo determinado para cada sessão. 2. Jogabilidade – Através de uma pesquisa57 elaborada e aplicada pelos organizadores da Mostra de Filmes interativos, foi possível observar que a expectativa da audiência no Machinema é que o mesmo seja capaz de construir tensão e suspense por si só e a interatividade seja pontual, tendo como foco central a narrativa e não a interatividade. Expectativa inversa à do jogador de Game, acostumado a controlar o personagem full time. 3. Eliminação – em muitos games há a eliminação de um jogador ou de um grupo de jogadores, ou seja, o jogo poderá chegar ao fim para apenas parte de seus jogadores, continuando para outros. Já o Machinema não possui elementos de eliminação para a audiência, seu final é vivenciado por todos no mesmo momento. 57 A tabulação desta pesquisa foi divulgada durante a palestra de encerramento da Mostra de Filmes Interativos, proferida por seu curador Filipe Gontijo, em novembro de 2011, e faz parte do acervo do Centro Cultural do Banco do Brasil. 100 4. Rejogabilidade – enquanto nos Games o interator que desejar participar do mesmo jogo em uma experiência que já não é mais a primeira, poderá retornar, contudo mantendo os mesmos objetivos impostos pelo jogo, ou seja, trilhando a busca por um final já conhecido58, uma vez que os objetivos de um mesmo jogo não são mutáveis. No Machinema, o espectador retorna para uma outra sessão do mesmo filme, com um objetivo diferente de sua primeira experiência, ele deseja conhecer outros caminhos e outros possíveis finais. 5. Competitividade – o Game incita a competitividade59, há um desafio: vencer etapas, romper fases ou até mesmo manter-se vivo para atingir um objetivo maior, ou seja, a busca por um final vitorioso. No Game o jogador tem sua habilidade avaliada pelo aplicativo e em muitas situações recebe pontos, bônus ou é premiado por uma ação de maior dificuldade. Já no Machinema os objetivos são construídos aos poucos pela subjetividade e o engajamento da audiência, que na mais primitiva instância é de simplesmente expandir e conhecer mais da história. O espectador tem a permissão de liberar seus instintos e pulsões sem que haja qualquer censura, eliminando qualquer tipo de avaliação, quer seja pelo aplicativo ou por outrem. Neste contexto, no Machinema, nem sempre há o desejo coletivo de manter-se vivo, uma vez que o ambiente oferece espaço para o suicídio ou homicídio anônimo, entre tantas outra opções em que o espectador pode corromper-se sem que seja exposto. 6. Sorte – enquanto em muitos Games há a inserção do elemento sorte como contraponto a habilidade do jogador, com o propósito de torná-los mais atraentes, dinâmicos e equilibrados à novos 58 Cabe esclarecer que, nem todos os jogos mantêm o mesmo percurso para atingir seu objetivo maior, contudo o objetivo não se altera de uma experiência a outra, ainda que os personagens, elementos e até mesmo o percurso se altere. 59 Ainda que seja um Game educativo, a competitividade está atrelada ao desafio de se possuir um determinado nível de conhecimento do tema envolvido. 101 jogadores que não possuem grande habilidade, no Machinema este elemento inexiste, uma vez que não se põem em questão a destreza dos espectadores. As ações são pré-determinadas e controladas pelo aplicativo ou pela interação do espectador, muito embora este, em muitos pontos tenha a impressão de ter tido sorte em suas escolhas. 7. Perfil Psicológico – na grande maioria dos Games há um delineamento do perfil psicológico de seus personagens. Já no Machinema, por trazer consigo a tradição do cinema convencional, há uma aprofundamento neste perfil. Desta forma, enquanto no Game a regra sempre será atingir um objetivo, no Machinema o espectador é contaminado com os afetos desenvolvidos pelos personagens, e assim, seus objetivos vão sendo delineados a partir de suas emoções e sentimentos. A partir desta reflexão, é possível afirmar que os games buscam elementos cinematográficos para seduzirem seu público, assim como o caminho oposto também é trilhado. As intersecções entre games e cinema tornam-se comuns. Apesar do estilo dos jogos ser cada vez mais cinematográfico, as narrativas interativas dos Games não substituem as narrativas clássicas do cinema, nem tampouco as narrativas interativas presentes no Machinema. O que é possível encontrar aqui, é uma aproximação e hibridização de mídias, mas que cada meio possui sua linguagem própria, características específicas, vantagens e desvantagens, sem que tenham a pretensão de substituírem ou serem sucessores aprimorados um do outro. De certo, só uma afirmação: nos espaços lúdicos que se conformam a partir destas linguagens é que o homem parece buscar sua plena satisfação, permitindo assim sua expansão e concretização. Por fim, compreender o espaço lúdico que se conforma no Machinema é entender o espaço cinema como dimensão espacial cognitiva, um espaço híbrido, que combina o físico e o digital, através do maquínico e da maquinação. O Machinema cria um ambiente imersivo ampliado. A sala de exibição faz parte do filme, criando um outro espaço. Literalmente, no Machinema, o que está em foco 102 não é mais o conforto visual, físico ou sonoro, mas o rearranjo e uso do lugar como espaço fílmico, que insere novos elementos para sua composição e construção de sentido. 103 3. PRIMEIRO PLANO – MACHINEMA: ANÁLISE DOS OBJETOS A GRUTA e LAST CALL O cinema é o modo mais direto de entrar em competição com Deus. Frederico Fellini São evidentes as diferenças que separam um objeto narrativo mediado por media tradicional, como no cinema convencional e um outro suportado pelo medium que impõe a realidade aumentada no cinema digitalmente expandido. Desde o aparente processo de autoria compartilhada ao fenômeno perceptivo da imersividade, passando pelas dimensões de interação, que, a partir deste estudo, julgo estar no cerne da distinção e inovação deste outro cinema que denominei Machinema, várias são as estruturas que estabelecem a fronteira. Neste sentido, parece certo afirmar que as novas formas de mediação permitem o aparecimento de novos objetos culturais e novos modelos de comunicação. Com o advento dos sistemas digitais através das tecnologias de realidade virtual, expandida ou aumentada, abre-se o espaço para a criação dos chamados ambientes virtuais. Ambientes que permitiram o desenvolvimento de novos níveis de representação, capazes de proporcionar a criação de novos objetos de ordem narrativa. E afirma McLuhan: Numa cultura como a nossa, há muito acostumada a dividir e estilhaçar todas as coisas como meio de controlá-las, não deixa, às vezes, de ser um tanto chocante lembrar que, para efeitos práticos e operacionais, o meio é a mensagem.(...) Pois a mensagem de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas. A estrada de ferro não introduziu movimento, transporte, roda ou caminhos na sociedade humana, mas acelerou e ampliou a escala de funções humanas anteriores, criando tipos de cidades, de trabalho e de lazer totalmente novos (MCLUHAN, 2007, p.21/22). Desta forma, se faz necessária uma investigação mais apurada destes objetos, que proporcionam a seu espectador a capacidade de interação com o 104 ambiente virtual, permitindo a ele a experiência sensorial das imagens espacializadas de múltiplos pontos de vistas, além de acessar, pausar, continuar, expandir, restringir, perseguir, bem como interromper, alterar e editar a narrativa em que se encontra imerso. De certo, são estes os elementos que fornecem a base para uma maior imersão experiencial e imaginativa do espectador. Para compreender o fenômeno do surgimento de uma produção típica das tecnologias digitais - o Machinema - focalizamos o seu funcionamento cultural, a sua configuração formal e estética e os elementos principais da sua estrutura narrativa. Assim, selecionamos dois objetos: “A Gruta” e “Last Call”, ambos criados a partir de sistemas de realidade aumentada e que se apropriam das plataformas de múltiplas escolhas. Por se tratar de produtos constituídos por uma rede de opções, que não forma a narrativa em si, mas os “possíveis narrativos”, selecionamos somente algumas cenas para análise. 3.1 - Machinema: A Gruta Produzido em 2007 e lançado em 2008, pela Caza Filmes, dirigido por Filipe Gontijo60, o Machinema A Gruta, é uma das primeiras experiências de cinema interativo de terror no Brasil. Traz referências do clássico O Massacre da Serra Elétrica61 quanto à escolha do elenco62, do figurino e do cenário, entretanto não foi baseado, como este, no caso verídico que chocou os norte-americanos nos anos 70, e sim no caso real que estarreceu o Distrito Federal em 2004, quando um caseiro assassinou os patrões em Vargem Bonita alegando que o casal de velhinhos para quem trabalhava estava “possuído”. 60 Filipe Gontijo teve sua estreia no Festival de Cinema de Brasília em 2006, quando conquistou o prêmio de melhor diretor pelo curta-metragem “A Volta do Candango”. É um dos fundadores da TV Universitária de Brasília (UnBTV) e atualmente trabalha com roteiro e direção de videoclipes e comerciais. 61 The Texas Chain Saw Massacre (O Massacre da Serra Elétrica, no Brasil), filme de terror independente, de baixo orçamento, produzido em 1973 pelo diretor Tobe Hooper. 62 Em entrevista concedida para autora desta pesquisa, durante a Mostra Internacional de Filmes Interativos, que ocorreu no Centro Cultural do Banco do Brasil em 2011, Filipe Gontijo, esclarece que a seleção de casting se inspirou com relação a aparência física, no elenco da obra O Massacre da Serra Elétrica. 105 Por ser um apaixonado pela desconstrução narrativa 63, Filipe Gontijo influenciado por obras literárias interativas e inspirado pelos menus interativos dos DVDs, desenvolveu o roteiro para o Machinema - A Gruta - e através do patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura – DF, iniciou a produção, com foco exclusivo para exibição no cinema, o grande diferencial da experiência com A Gruta em um ambiente coletivo certamente vem muito menos de algo que está na película e muito mais da partilha coletiva das escolhas, do lado lúdico de seu funcionamento que cria a interação entre espectador e tela. Após sua primeira exibição no CineFantasy - Festival Internacional de Cinema Fantástico, que ocorreu no Centro Cultural de São Paulo em 2008, o filme A Gruta foi exibido e premiado em outros festivais de cinema no Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte, onde as salas de projeção foram adaptadas para receber a nova tecnologia. A sessão interativa surpreendeu a todos, as pessoas gritavam na sala de cinema como se estivessem em um jogo de futebol, algumas assistiram o filme seguidas vezes para experimentar outras opções afirma Gontijo, em entrevista publicada no site oficial do filme64. Antes do inicio do filme os espectadores recebem um controle remoto e as instruções de como interagir com as ações dos personagens. A cada sequência é exibido um menu interativo e através do controle remoto os espectadores fazem suas escolhas (Figura 20). A escolha da maioria define o percurso da trama. Figura 20 – Festival de Brasília 63 Informação concedida a autora desta pesquisa durante entrevista. 64 Entrevista completa no site A Gruta - www.filmejogo.com.br . 106 A partir do sucesso na sala de exibição, em 2010 o filme foi postado na internet, onde recebeu mais de 100.000 views no site Youtube, posteriormente lançado em DVD e em aplicativo para iPhone e no final de 2011 foi lançado também em mídia impressa, no formato de gibi interativo. Esse tipo de experiência se funda em um certo desejo de anular ou esfumaçar as fronteiras entre a vivência do mundo “exterior” e a vivência propriamente “fílmica”.(...)muitas experiências cinemáticas contemporâneas explodem o espaço da tela para desdobrar-se em múltiplas mídias, em um desejo de totalidade e de tornar nebulosos os limites entre arte e vida ou ficção e realidade (FELINTO, 2006, p.419/420). 3.1.1 - Enredo da Obra e Análise Narrativa Antes de iniciar este tópico, é preciso que saibamos que a obra de Gontijo dificilmente tem um enredo, um começo, meio e fim, como os cânones narrativos tradicionais. O próprio diretor explica65 que desde a infância se interessava por narrativas não lineares, devorava livros interativos e que sua obra sofreu grande influência da literatura de Júlio Cortázar66, principalmente no que diz respeito ao rompimento com os moldes clássicos mediante narrações que driblam a linearidade temporal, onde os personagens adquirem autonomia e profundidade psicológica através deste íntimo contato com o espectador / interator. A Gruta abre a possibilidade de pensar o narrador como sendo o próprio espectador / interator, uma vez que ele seleciona a forma com que materializará a história, entre certo número de opções (elementos que compõem a trama) dos quais ele não é o fundador, mas se utiliza deles em seu constante diálogo com o texto fílmico. Neste sentido, é possível afirmar que o narrador é parcialmente onipotente, visto que constrói um destino a partir das possibilidades criadas pelo diretor. Afirmar que o foco narrativo de A Gruta é primeira ou terceira pessoa não é tão simples, já que este é um dos pontos mais inovadores e estilisticamente surpreendente do filme. O diretor cria uma obra aberta, permissiva, que coloca o espectador na posição de narrador e ao mesmo tempo, já nos primeiros minutos do 65 66 Em entrevista concedida à autora desta pesquisa. Júlio Cortázar (1914 – 1984) escritor argentino considerado um dos autores mais inovadores e originais de seu tempo, com obras como “Rayuela” de 1963, que permite várias leituras orientadas pelo próprio autor. 107 filme, exige que ele se movimente na trama através da escolha de um dos personagens. Assim, apesar de decidir os percursos do personagem, por ele escolhido, o narrador-espectador, não conta uma trama que acontecerá com ele e sim com seu personagem. O foco central do filme apresenta a história de Luiza (Poliana Pieratti) e Tomás (Carlos Henrique), um jovem casal que decide passar uns dias na fazenda da família da moça, onde mora o caseiro Tião (André Deca). A harmonia acaba quando eles encontram um filhote de porco na gruta da fazenda. Eles não sabem que o passado da família de Luiza tem ligação com coisas estranhas que acontecem durante a estada na fazenda. O filme poderá apresentar inúmeras histórias a partir das escolhas do espectador, no entanto, apenas dois momentos estão presentes independente do percurso da narrativa: a primeira sequencia de cenas, por ser introdutória e ter a função de posicionar o espectador na trama e a cena em que Tomás e Luiza encontram o porco na gruta, por ser o ápice do conflito, além de ponto chave para compreensão de todas as histórias contidas no objeto. 3.1.1.1 A Chegada na Fazenda O filme, em seu prólogo, exibe os créditos em rápidas tomadas de uma paisagem árida, de aspecto sombrio, como pode ser observado na Figura 21; ao fundo a trilha sonora instrumental típica de filmes de terror complementa a cena e envolve o espectador em uma atmosfera de suspense. Figura 21 – Cenário sombrio Em plano médio são exibidos três homens que estão de costas para a câmera, sendo mostrado apenas parte de suas pernas. Um quarto homem está no 108 chão, sendo agredido e tendo sua garganta cortada (Figura 22), sem que os motivos sejam explicitados. Para que o clima de horror torne-se ainda mais intenso uma voz assombrosa indaga: “Você está querendo ser mais que Deus?”. Figura 22 – Assassinato cruel Após este prólogo uma legenda remete o espectador para o momento atual da trama, indicando que a tragédia inicial ocorreu há 12 anos. Em seguida um jovem casal de namorados (Luiza e Tomás) está em uma estrada, a caminho da fazenda da família da moça para passar férias. Durante todo o percurso as cenas são apresentadas a partir do ponto de vista ora de Tomás, ora de Luiza, através de uma filmadora que está sendo manuseada pelo casal. Desde as primeiras cenas (Figuras 23 e 24), a partir do olhar individual dos personagens, é possível perceber que quando a câmera está em poder de Tomás as imagens exploram o corpo de Luiza, tendo diversos closes rápidos de seus seios e pernas, entretanto quando o ponto de vista é de Luiza, trata-se de planos mais longos e que apresentam um cenário mais completo. Figura 23 – O olhar de Tomás Figura 24 – O olhar de Luiza A utilização do recurso de câmera subjetiva já é um prenuncio do convite que será, posteriormente, feito ao espectador para interagir com aquilo que acontece na tela, a partir de sua identificação com um dos dois personagens. 109 Em plano conjunto, e não mais com uma câmera subjetiva, o casal chega à fazenda, entra em um quarto e começa a se abraçar e beijar, deitado na cama. A cena permeada por sensualidade, desejo e prazer é subitamente paralisada e aos 4,44’ do filme eis que surge o primeiro menu interativo. Neste momento o espectador deverá decidir se quer continuar o percurso da história a partir da posição de Luiza ou de Tomás, conforme podemos observar nas Figuras 25 e 26. Figura 25 – O casal na cama Figura 26 – Luiza ou Tomás? Para além da decisão do espectador em assumir o controle deste ou daquele personagem, aqui está posta sua identificação, com a posição de cada personagem no contexto da cena. Segundo a teoria lacaniana 67 o sujeito é construído através da linguagem e das representações. As diferentes posições da câmera e o aparato da imagem fílmica criam sucessivos significados. Enquanto o cinema sugere significados, os espectadores elaboram essas posições em diferentes estágios de consciência. Nesse sistema pictórico, o espectador se encontra implicado no espaço e essa inscrição se dá através da duplicação do dispositivo cênico: os elementos jogados dentro do quadro funcionam aí como os signos dessa inscrição, os signos do “assujeitamento” do espectador. A todo campo simbólico corresponde, portanto, um campo ausente, lugar de uma personagem que podemos chamar – no sentido lacaniano – de o Ausente, que o imaginário do espectador preenche no ato da “leitura” (MACHADO, 2007, p.73). Submetido a identificação, o sujeito – leitor imaginativo – ocupa também a posição de espectador ativo que irá nortear a ação a partir de suas escolhas. 67 Teoria desenvolvida por Jacques Lacan, a partir da releitura dos conceitos da psicanálise estabelecidos por Freud, que distingue o sujeito do inconsciente como uma instância simbólica, que se estabelece no campo da linguagem e do significante (LACAN, 1960). 110 Ao longo da trama o espectador vai sendo interrogado afim de decidir cada ação do personagem inicialmente escolhido; mediante sua decisão a narrativa vai se materializando. 3.1.1.2 Um Passeio na Gruta Ainda que o espectador faça as mais variadas escolhas em algum momento da história obrigatoriamente passará por esta cena, que se inicia, em plano geral, com Tião servindo de guia à Luiza e Tomás para um passeio até a gruta. Em meio a uma trilha bastante acidentada formada por rochas, os três sobem em uma montanha em direção a gruta. A música instrumental em conjunto com as imagens da paisagem seca e alguns poucos comentários de Tomás sobre o local dá o tom de suspense à cena. Em plano geral, os personagens chegam à entrada da gruta (Figura 27). Tião senta-se sobre uma pedra e começa a afiar uma faca, cantarolando a música “Segura na mão de Deus”68, enquanto Tomás o questiona sobre a gruta e, de forma aflita, ele lhe responde que na gruta não se deve entrar, pois lá dentro tem bichos (urubus e morcegos). Luiza o questiona se há água dentro da gruta e ele diz que tem, mas que o tio da moça não quer que ninguém entre lá. Figura 27 – Entrada da gruta 68 A música Segura na Mão de Deus é de Domínio Público (autor desconhecido) já que na época em que foi cantada nas Igrejas os autores, muitos , não registravam a letra da música . Ela foi cantada pela primeira vez em 1964 em uma Igreja Evangélica " O Brasil para Cristo " em uma cidadezinha do interior de São Paulo pelo pastor evangélico Diamantino Rodrigues Alves, já falecido. Atualmente várias pessoas reivindicam para si a autoria dessa música, entre eles o Padre Marcelo Rocha e o e compositor Nelson Monteiro Mota. 111 A partir deste ponto, em ritmo acelerado, as imagens se intercalam em planos conjuntos com Luiza e Tomás observando o local e planos fechados que mostram inscrições rupestres e símbolos religiosos ao redor da gruta, como demonstra as Figuras 28 e 29. Figura 28 – Signo do primitivo Figura 29 – Signo do sagrado Mesmo diante do alerta de Tião, a curiosidade de Tomás fala mais alto e o conduz para dentro da gruta e neste instante, a cena deixa de ser exibida em plano geral e há um zoom da câmera no corpo de Luiza, que com expressão de medo, do lado de fora, grita pelo nome de Tomás. Ao perceber a “invasão” da gruta, Tião perfura seu dedo com a faca e ao ver o sangue exclama: “Oh diabo dos infernos!”. A trilha sonora se intensifica e Tião avista Tomás saindo da gruta carregando um porco. Luiza e Tomás riem satisfeitos pela descoberta, enquanto Tião transtornado e caminhando na direção do casal, lhes aponta uma faca gritando que devem ir embora e que aquele porco é um refugo. Do modo pelo qual as cenas se apresentam neste trecho da narrativa é possível fazer uma leitura e por analogia aplicá-la a inter-relação sígnica de seus elementos. As inscrições rupestres enfatizadas pelos planos fechados aludem ao primitivo, no sentido em que Freud em seu texto “Totem e Tabu” de 1913 faz referência ao sistema totêmico dos aborígenes australianos. Ainda caminhando neste sentido e considerando a conceituação freudiana de que o totem refere-se ao instinto de proteção que evita a quebra do tabu, é possível pensar que os símbolos religiosos, como a cruz na entrada da gruta ou a canção entoada por Tião, nesta cena se ofereçam como um alerta para o que deve ser respeitado – “o nome do 112 pai”69, ou seja, não se deve entrar na gruta para que não haja a quebra do tabu, sob a pena de morte. A gruta, metáfora privilegiada para os genitais femininos que carregam consigo o tabu da virgindade, abriga um porco. É Tomás – significante fálico - tomar para si o porco que desestabiliza completamente a trama e até podemos afirmar o processo narrativo, uma vez que independente do percurso, até este momento há uma cronologia das cenas, e após há um intercalamento entre cenas presente e outras como: um homem sendo espancado, uma pequena menina dirigindo um carro, um homem violentando uma menina, entre outras, que não permitem ao espectador precisar ao certo se são lembranças do passado ou cenas futuras e nem tampouco a partir do pensamento de qual personagem estas cenas aparecem. Após a sequencia da cena da gruta, há um rápido corte, a câmera em plongée remete a sensação de que os personagens estão sendo observados por uma instância superior, como se a gruta os olhasse enquanto caminham em direção a casa da fazenda. O porco, considerado pelos ocidentais como impuro, sujo, impróprio, que havia sido deixado na entrada da gruta, segue os personagens, como se eles não pudessem mais se libertar da “sujeira” que se instaurou a partir da quebra do tabu. Depois da quebra do tabu o comportamento de Tomás e Luiza é afetado, muitas cenas de sexo e sangue tomarão conta da trama, o porco acompanhará de perto o desenvolvimento das possíveis histórias e será alvo de constantes investidas da crueldade de Tião. Após esta sequência da trama, é exibido um menu de decisão em que dependendo da escolha, os personagens continuam até chegar a casa ou são interceptados no caminho por inúmeros eventos distintos. 3.1.2 - Tomás ou Luiza – Uma Narrativa Pluri-Singular Por ser um objeto fragmentado, que tem sua construção a partir das escolhas do espectador, não há uma trajetória única para cada um dos personagens, mas sim possíveis trajetórias baseadas nos caminhos percorridos. 69 Termo cunhado por Lacan, a partir do texto Totem e Tabu de Freud – “o nome do pai” é a expressão de uma falta (o pai simbólico morto) que instaura a cultura, a religião e a moralidade. 113 Tarefa difícil é determinar o perfil psicológico de Tomás e de Luiza, uma vez que o comportamento e a expressão emocional de cada personagem são alterados com base nas experiências vividas no universo narrativo construído pelo espectador. No entanto, no caso do personagem Tião, embora não seja possível estabelecer sua trajetória, uma vez que esta é alterada em função dos outros dois protagonistas, é perfeitamente possível compreender seu perfil psicológico e afirmar que houve uma preocupação do autor em mantê-lo como uma espécie de fio mestre da trama. O filme, composto por três personagens principais, é calcado no mítico e no místico, evidenciado a partir do comportamento misterioso, solitário e frio do personagem Tião, antagonista que percorre todas as linhas narrativas da trama. Figura de poucas palavras, está sempre segurando alguma “arma branca” ou objeto que alude simbologia sagrada. Em inúmeros momentos traz expressões religiosas, muitas vezes indagando os outros personagens com relação a sua fé e crença ou cantando a música “Segura na mão de Deus”. A agressividade desmedida de Tião surge em cada percurso como sinal vivo de sua confusão e desorganização de ideias, o que torna seu discurso desconexo e de difícil compreensão, apontando para um sintoma de desordem mental. Os personagens Luiza e Tomás são apresentados logo após o prólogo. Tomás é um jovem apaixonado, descontraído, de estilo despojado, sorridente e brincalhão; carrega no pescoço um colar de contas e manipula uma filmadora, que através de sua lente maliciosa conheceremos – Luiza – namorada de Tomás. Ela é jovem, extrovertida e teimosa, está aprendendo a dirigir o carro do namorado, mas ainda tem medo. Ambos são carinhosos e demonstram desejo e romantismo. Este perfil apresentado no primeiro fragmento do filme sofre mudança parcial ou até mesmo radical, através das sucessivas indagações feitas ao espectador / interator. Há também alguns personagens secundários, que embora possuam alguma importância dedutível, não são dotados de voz e podem aparecer em cenas de flashback e flashforward. 3.1.3 Tempo e Espaço O tempo da narrativa na maior parte dos percursos se mostra cronológico, entretanto há caminhos onde sequencias são inseridas e que dependendo da 114 continuidade da história não é possível determinar se eram referências a flashbacks ou flashforwards, embaraçando o espectador em sua rede de opções que se materializa em uma narrativa não linear. A locação escolhida para produção do filme foi perfeita tanto no sentido estético como na redução de alocação de recursos, a Gruta da Lapa, que fica a 70 quilômetros de Brasília, é um sítio arqueológico constantemente visitado por estudiosos que pesquisam a origem de suas inscrições rupestres. Durante os anos 70 e 80, o local virou uma espécie de igreja ao ar livre, com altar e até confessionário. Todos os elementos foram mantidos e utilizados na composição da mise-en-scène. A narrativa se passa em um ambiente rural, dentro de um espaço limitado que é a fazenda dos tios de Luiza. As cenas se dividem entre a estrada que leva à fazenda, o interior da casa e o quintal da fazenda, a gruta, o interior do carro de Tomás e o caminho entre a casa e a gruta. 3.1.4 - Descompasso Rítmico Em A Gruta é possível perceber ao longo dos percursos narrativos, inúmeras rupturas e até muitos contrastes rítmicos que se constroem a partir da montagem do diretor e do espectador / interator. A utilização de planos curtos e até inserts ocorrem principalmente em sequencias de deslocamento dos personagens no espaço. Os planos longos, em sua maioria, ocorrem dentro da casa ou do carro de Tomás. Possivelmente a escolha destes elementos narrativos se deu em função da escassez de recursos financeiros para a produção. Entretanto, também foi possível perceber que ao interagir a partir do personagem Luiza, ainda que mantendo esta desordem rítmica, a maioria das cenas se apresenta em plano geral ou conjunto e a partir de Tomás há um grande abuso dos planos mais fechados, o que dá a impressão de maior aceleração às cenas. É possível observar que em cada fragmento do filme, ainda que dentro de uma intercalação rítmica haja uma crescente redução no ritmo das cenas que antecedem ou precedem o menu interativo, o que se dá possivelmente pela limitação imposta pelo recurso tecnológico escolhido para a realização. 115 A trilha musical que se apresenta em alguns momentos com melodias isoladas e em outros com a fusão de duas melodias distintas, que ora tem a predominância de instrumentos de sopro, ora de corda, não está a serviço das ações dos personagens, mas sim da forma estilística do objeto, uma vez que esta fusão de melodias sempre ocorre para marcar o momento em que surgirá um menu interativo. Ainda quando não há diálogo entre os personagens a trilha musical está sempre em segundo plano, pois em primeiro plano há uma intercalação entre a fala dos personagens e os ruídos de grilos e pequenos animais da fazenda. Recurso provavelmente utilizado com a finalidade de ambientalizar o espectador. 3.1.5 – Análise do Ambiente Imersivo A Gruta possui uma narrativa interativa baseada em banco de dados, onde o público pode selecionar sequências e escolher a partir de qual personagem irá percorrer a trama. Possui mais de quarenta questionamentos diferentes para cada personagem escolhido, o que possibilita que a história se finde em onze finais distintos. Desta forma o filme poderá ter a duração de 5 até 62 minutos, dependendo do percurso que for sendo traçado pelo espectador. Em sua estrutura foram escolhidos pontos estratégicos em que o ritmo da trilha sonora é reduzido e compassado e as imagens cedem espaço para um menu de decisão, que poderá ser seletivo ou múltiplo (Figura 30 e 31). No caso do menu seletivo são exibidas duas ou três opções para escolha. No entanto, no menu múltiplo as opções não são informadas ao espectador e a sequência segue uma relação randômica de exibição. Figura 30 – Menu Seletivo Figura 31 – Menu Múltiplo 116 Muito embora, em função do aplicativo escolhido para a construção estrutural de A Gruta sua interatividade se estabeleça por pontos de interrupção, a partir da escolha geram feedback em tempo real. Quanto a sua forma, utiliza-se da estrutura narrativa ramificada, ou seja, a que oferece um número específico de opções e a mais votada pela audiência é exibida na tela. Aqui, cabe salientar, que não há uma preocupação em atender o desejo individual de cada espectador, mas que este sempre terá a possibilidade de participar de uma outra sessão e ter seu desejo alcançado, como afirma Machado: Toda navegação, toda imersão em ambientes digitais, envolve certa dose de frustração e fascínio, uma vez que o universo ficcional nunca pode ser conhecido em sua inteireza, a não ser por seu criador (mas nem sempre), restando, portanto, a sensação de que se pode voltar a ele outras vezes e conhece-lo de forma diferente, como se fosse uma nova história (MACHADO, 2009, p.75). A estrutura ramificada é a mais usual e de fácil montagem, além de possibilitar um controle simples, intuitivo e com múltiplas opções de finais. Entretanto, possui certa limitação quanto ao uso de flashbacks em pontos de decisão, para que não insira o ambiente em um loop infinito. A interação em A Gruta é bidirecional, uma vez que emissor e receptor tem a mesma possibilidade de comunicação contínua, fazendo com que a informação circule o tempo todo, assim, o receptor se torna potencialmente um emissor e viceversa. Sua potencialidade-permutabilidade permitem que a audiência faça diversas conexões de forma não-linear, esta característica, possibilita que o público saia de um ponto a outro sem passar por pontos intermediários e com isso os eventos gerados fluem de acordo com as trocas estabelecidas no ambiente mediado, o que permite envolvimento emocional da audiência e a interação torna-se fluida entre espectador x sistema (através da interface e das escolhas), espectador x espectador (através do diálogo que se estabelece entre os membros da audiência) e sistema x sistema (uma vez que as opções de escolhas não são claramente declaradas e a sequência é exibida de forma randômica). Este pode ser o chamado ponto de intersecção entre o ambiente da tarefa e da ação, um espaço híbrido conformado pelo meio real e o meio virtual. E corrobora McLuhan: 117 O que estou querendo dizer é que os meios, como extensões de nossos sentidos, estabelecem novos índices relacionais, não apenas entre os nossos sentidos particulares, como também entre si, na medida em que se inter-relacionam. (...) O híbrido, ou encontro de dois meios, constitui um momento de verdade e revelação, do qual nasce a forma nova. (MCLUHAN, 2007, p.72/75). Assim, com a finalidade de melhor compreender os procedimentos maquínicos e da maquinação em A Gruta, abaixo segue o quadro de análise de suas dimensões de interação: Dentre os quarenta e sete pontos de interação, o primeiro ponto é de fundamental importância, pois é o momento em que o público escolhe a partir de qual personagem seguirá a história e isso além de afetar a trama, a estrutura narrativa, afeta também a estética do objeto (que dependendo da escolha, esta afetará diretamente as tomadas de câmera), além de alterar a divulgação de seus patrocinadores, uma vez que há patrocinadores específicos para a história vista pelo olhar de Luiza e outros pelo olhar de Tomás. Outros vinte e oito pontos de interrupção alteram de forma significativa o percurso da HIBRIDISMO Conteúdo trama, através de menus que apresentam duas ou três opções de percurso. Em oito pontos são exibidos os menus múltiplos, mas que a escolha do espectador é apenas pelo número da carta de baralho, entretanto não sabe que destino que será traçado e o sistema estabelece uma sequência randômica de exibição. Por esta razão, este menu foi chamado de Teste sua Sorte. Por fim, em dez pontos de interação a audiência tem a possibilidade de retornar ao primeiro menu e fazer novas escolhas. Com um número considerável de pontos de interação, este objeto permite que seu conteúdo tenha alterações importantes que se afunilarão em onze finais diferentes. Antes do inicio da sessão os espectadores são orientados Adaptabilidade sobre como funcionará a votação e a forma de utilização do controle remoto, que é simples e intuitivo. 118 Possui uma interface simples. Ao final de cada sequência IMERSÃO que precede o menu de interação, a trilha sonora entra em um Comunicabilidade compasso mais lento e são exibidas as opções de forma escrita, para que não hajam dúvidas com relação ao que está sendo questionado, permitindo assim uma comunicação direta entre o público e o sistema. Há quarenta e sete pontos de interrupção que oferecem ao espectador a possibilidade de duas a cinco opções de sequências diferentes, permitindo em alguns pontos o retorno ao Navegabilidade primeiro ponto de interação, o que possibilita um desdobramento da navegabilidade ainda maior. Em outros, por possuir uma sistema randômico de encadeamento dos links, cede o controle INTERATIVIDADE da navegabilidade ao sistema. O público antes de entrar na sessão recebe um controle remoto digital com botões de 0 a 9, uma tecla cancela e outra confirma. Para a escolha das opções, abre-se um menu de votação por 10 segundos. A contabilização dos votos é exibida Controlabilidade em uma tela auxiliar nas laterais do telão. Cada espectador tem direito a apenas um voto e durante o tempo em que o menu estiver aberto, poderá cancelar seu voto e escolher outra opção. Ao encerrar o tempo, a opção mais votada gera o feedback da ação. Quadro 12 – A Gruta – Dimensões da Interação Ao analisar as categorias de interação presentes em A Gruta, é possível perceber que no primeiro menu, quando o espectador deve escolher entre Luiza ou Tomás, ao fazer esta escolha de certa forma está punindo um dos personagens, assim, torna-se possível afirmar que neste ponto de interação, este objeto se inscreva na categoria Veredicto. No entanto, será preciso que o espectador escolha trilhar o percurso da história a partir do olhar de Tomás, percorra no mínimo, mais dezesseis menus interativos, e que ainda dependa de cada uma de suas escolhas, para que tenha a possibilidade de passar pelo menu em que lhe seja oferecida a possibilidade de castigar Tião. Sendo somente estes dois pontos de interrupção uma 119 real possibilidade de punir um personagem, percebe-se que A Gruta não está inserida de forma potencial na categoria Veredicto. A exceção destes dois pontos de interação, todos os outros se oferecem ao espectador para que faça escolhas com relação a desejos dos personagens ou percursos a serem trilhados por estes. Desta forma, a trama vai se construindo de forma labiríntica e as cenas se encadeiam de acordo com estas escolhas. Assim, é possível afirmar que A Gruta se inscreva de forma atenuada na categoria Veredicto, mas que potencialmente esteja inscrita na categoria Rayuela. Tendo este espaço imersivo construído um espaço lúdico em que o espectador é apenas mais um elemento, que a sala de projeção se ofereça tão somente como um dos ambientes da construção deste “mundo” mediado onde o real e o virtual se fundem, parece certo afirmar, que A Gruta torna-se um importante objeto para a constituição daquilo que nomeio como Machinema. 3.2 - Machinema: Last Call Produzido em 2010 por Jung Von Matt70 e Cinema Deluxe em Berlim, na Alemanha, para o canal de tramas, horror e crime 13th Street71, Last Call é o primeiro filme de terror, que faz uso de interações, em que o espectador comunicase com a protagonista da história através de seu celular. Dirigido por Matthias Stiller e Wolfgang Schneider o filme utiliza tecnologia Silverlight 72 em conjunto com o sistema IVR73 da Telenet Inc. e Aixvox74. Ao contrário das sessões de cinema convencionais, em que uma das primeiras mensagens exibidas na tela é a que incentiva os espectadores a se manter em silêncio e inclusive lembrando-os de desligarem seus celulares, com a plena finalidade de impedirem a interrupção ou o desvio da experiência espectatorial, em 70 Jung Von Matt – Presente em 14 países e com sede em Hamburgo, é a agência de publicidade mais premiada no quesito produção híbrida. Em 2010 recebeu Leão de Ouro como Independent Agency of the Year em Cannes. 71 13th Street – é um canal de televisão de propriedade da NBC Universal, que iniciou suas produções para o cinema em 2005 na Alemanha. A NBC Universal atua na produção e comercialização de entretenimento com foco em cinema e TV. 72 Silverlight – software de tecnologia para navegadores e plug-ins. Desenvolvido especificamente para a incorporação de vídeos e interfaces interativas para geração de soluções de transmissão com alta definição. 73 IRV (Instant runoff voting) é um sistema inteligente de votação. Sistema totalmente baseado na tecnologia de Realidade Virtual e Inteligência Artificial. 74 Aixvox é um sistema de comando de voz via telefonia móvel. 120 Last Call, antes do início de cada sessão os espectadores recebem um folheto explicativo, que os convida a manterem ligados, por toda a sessão, seus telefones móveis, além de solicitar que ativem o dispositivo bluetooth75 de seu celular (Figuras 32 e 33). A ativação do bluetooth proverá o meio de conexão e troca de informações entre os dispositivos disponíveis no espaço cinema, formando assim, uma rede informacional. Figura 32 – Folheto com as instruções Figura 33 – Celular sendo capturado Neste contexto, parece certo afirmar que, com o uso das mídias móveis e da computação pervasiva, o espaço cinema é transformado em uma área de controle do fluxo informacional digital em uma zona de intersecção entre o ciberespaço e o espaço físico. O acesso e o controle informacional realizam-se a partir de dispositivos móveis e redes sem fio. Para Lemos (2004) este processo configura um território informacional, que não é o ciberespaço, mas o espaço híbrido, formado pela relação entre o espaço eletrônico e o espaço físico. Já no primeiro instante de conexão os dispositivos do espaço cinema enviam informações aos espectadores, alertando sobre a experiência que será vivida neste novo ambiente em formação. Em seguida, o público, ainda que não esteja fisicamente dentro da sala de exibição, mas estando dentro do espaço cinema, recebe um breve prólogo do filme que será construído durante a sessão. Desta forma, o filme inicia, antes mesmo de seus espectadores estarem confortavelmente sentados em suas poltronas, em um ambiente escuro e silencioso. A tela não é única, tendo inclusive dimensões e características próprias, uma vez que cada espectador receberá o filme em seu dispositivo móvel. Neste caso, há a desterritorialização da sala de exibição, sendo possível que o espectador assista o 75 O Bluetooth é um protocolo padrão de comunicação baseado em microchips transmissores, para formação de rede. 121 prólogo estando em qualquer parte do que estamos chamando de espaço cinema, permitindo assim uma outra territorialização para a exibição deste trecho do filme. De acordo com André Lemos: (...) estamos assistindo à expansão de experiências de localização e de tratamento inteligente da informação a partir de dispositivo sem fio que aliam mobilidade, personalização e localização, criando novas práticas de espaço. (LEMOS, 2004, p.72). Conforme Santaella (2007) vários autores chamam de espaços híbridos estas mesclas de físico e virtual. Entretanto, sendo o adjetivo híbrido utilizado em tantos contextos diferentes que, na busca de uma maior precisão terminológica, com ênfase não apenas nos fluxos de informação, mas também nas novas formas de socialização, a autora prefere utilizar o termo espaços intersticiais, como uma metáfora capaz de caracterizar as múltiplas faces de mudanças mais recentes no mundo da comunicação e da cultura. Assim, ao investigar o espaço intersticial presente em Last Call, é possível perceber que a imersão da audiência neste ambiente virtual resulta em alterações na percepção espacial, uma vez estando dentro desse universo que possui fluxos e fixos específicos e exclusivos, onde permite o encontro de duas matrizes espaciais dialogando e se alterando reciprocamente. 3.2.1 - Last Call: Uma Outra Experiência Espectatorial Após assistirem ao prólogo, os espectadores recebem uma mensagem que os convocam a entrarem na sala de projeção. O intrigante da mensagem, é que esta se refere a sala de projeção como sendo o espaço labiríntico do sanatório. O filme, por utilizar mecanismos de realidade virtual associados a inteligência artificial, poderá se desdobrar em infinitas histórias a partir da interação no ambiente mediado. Possui apenas um momento comum a todas as sessões: a primeira sequência de cenas (o prólogo), que por ser introdutória tem a função de posicionar o espectador com relação ao contexto da trama, além de convocá-lo à entrar e participar da construção da história. Deste modo, não se tem a pretensão de contemplar de forma aprofundada análises de sequências cênicas, mas sim de 122 destacar o momento de interação personagem - audiência, afim de utilizá-lo para investigar efeitos específicos produzidos neste Machinema. É possível que todo este procedimento inicial, já configure um prenúncio da íntima relação que se quer atingir entre objeto e sujeito, afim de estabelecer a identificação essencial para conduzir à interatividade e imersão necessárias à construção desta outra experiência espectatorial. Agora, com o público dentro da sala de exibição, Last Call nos apresenta, no telão, a história de uma jovem que encontra-se em um sanatório abandonado fugindo de um assassino. Ao sentir-se desesperada e completamente perdida utiliza seu celular para pedir socorro, e neste momento, inicia-se o diálogo entre protagonista e espectador. Durante aproximadamente os primeiros quatro minutos de exibição do filme, com uma trilha musical que marca o clima de tensão e suspense, a protagonista explicita seu desespero para encontrar uma saída do sanatório. Aterrorizada pela possibilidade de ser surpreendida por um assassino que assombra o local, percorre em rápidos movimentos corredores, salas e escadas, em busca de ajuda. Até este instante as cenas vão sendo montadas (encadeadas) partindo dos princípios clássicos da manipulação estética do cinema. Variados recursos técnicos são utilizados no sentido de privilegiar o entendimento narrativo. Flashbacks monocromáticos, alertam o espectador para a presença de um homem que fora psiquiatra no sanatório, e que se transformara em um cruel assassino após ter atingido um estágio de loucura. Planos longos, intercalados com planos rápidos movimentam e impulsionam a história. Somente no instante em que a protagonista decide usar o celular para solicitar ajuda é que surge o primeiro plano detalhe, onde é exibido o visor do aparelho e o número do telefone que está sendo digitado. É neste momento do filme que o software (IRV) seleciona um dos celulares que foi inicialmente capturado e inserido no banco de dados e inicia a chamada; então, via reconhecimento de voz, se estabelece o diálogo entre o espectador selecionado e a jovem desesperada. Ao confirmar a conexão a tela se subdivide para que os espectadores possam acompanhar não só através do som, mas também através das imagens o diálogo entre a protagonista e o espectador, conforme é possível ser observado na figura 34. 123 Figura 34 – O diálogo Uma vez que o espectador atende a chamada ele ouve a voz da atriz e todos os sons diegéticos do filme em seu celular, assim como as respostas do espectador passam a fazer parte da diegese fílmica. Este recurso torna ainda mais realista o diálogo, fazendo com que este espectador de fato faça parte da trama. As respostas do espectador são convertidas em comando e o software constrói e reproduz a cena correspondente. Assim, cada chamada que é atendida por um espectador representa uma nova narrativa para o filme. Ao longo de toda a trama o espectador vai sendo interrogado afim de decidir as ações da personagem; mediante sua decisão a narrativa vai se materializando. Neste contexto, tarefa difícil torna-se precisar quem de fato é o protagonista da história. Ao empenhar uma análise sobre este ambiente que emana da fusão entre o real e o virtual parece certo afirmar que ora o protagonista é a personagem em fuga, ora é o espectador / interator que a está conduzindo. Tendo por objetivo ampliar a tensão, tornar mais realística a cena e promover o diálogo entre a jovem e outros espectadores, em diversos pontos da trama a conexão entre os celulares (virtual e real) começa a receber interferência na transmissão, até que abruptamente esta é interrompida. A queda de comunicação entre os celulares ocorre, na maioria das vezes, em pontos de profundo desespero da personagem, que novamente inicia outra chamada. Somente nos primeiros segundos de cada um dos pontos de novas chamadas é que a tela se subdivide exibindo de um lado a protagonista virtual e do outro o protagonista real (espectador / interator), a seguir no telão somente são exibidas imagens no ambiente do sanatório, mas o diálogo sonoro continua na 124 diesege fílmica. Neste ponto, torna-se importante ressaltar que mesmo o interator tendo saído da sala de projeção, porém, estando no espaço geográfico permitido para a comunicação através da rede, a tela não será subdividida (uma vez que a captura da imagem do interator ocorre apenas dentro da sala de projeção) e manterá unicamente a imagem da personagem, mas ainda assim o diálogo sonoro será estabelecido na diegese do filme. Fato que confirma a expansão do espaço cinema. Acrescenta Lemos: (...) o lugar é um sujeito da ação: a informação emana e reage de/a partir dele. Com a atual popularização dos telefones celulares e dos serviços baseados em localização, estamos em meio a uma virada espacial nos estudos das mídias. Passamos do no sense of place (MEYROWITZ, 1985), em que o lugar é superado pela comunicação massiva e pelo ciberespaço em sua fase de upload para um new sense of place, em que as relações comunicacionais dão-se diretamente com lugares e objetos do espaço urbano, potencializando apropriação e ressignificação. (LEMOS, 2010, p.12) Ao que parece, este recurso da subdivisão de tela e do som que invade a diegese do filme se propõe a posicionar os outros elementos da audiência com relação a quem está no comando, além de apresentar o espectador / interator que também receberá a função de protagonista e autor da trama. Neste sentido, ampliase as possibilidades para novas reflexões acerca da experiência estética, uma vez que uma parte do diálogo entre espectador e protagonista tem suas imagens mediadas pela câmera e outra pelo olho humano em tempo real, o que configura a fusão máxima entre o virtual e o real, a janela que se desdobra e abarca o espaço físico e o digital, invadindo toda a sala de cinema, transformando-a, também, na mise-en-scène fílmica. É este hibridismo que permite afirmar que seu imperativo é o desaparecimento da moldura, que possibilita ao espectador interativo se tornar imerso e animado pela experiência representada, onde tudo vira tela, onde tudo vira ambiente. Outro ponto que merece destaque na experiência espectatorial em Last Call é a questão do posicionamento de câmera. Como enfatizado por Machado (2009) nos sistemas de imersão interativa, a câmera subjetiva exclusiva e exaustiva resulta estruturalmente menos problemática que no cinema. No entanto, em Last Call, o 125 recurso de câmera subjetiva é descartado por todo o filme, independente dos percursos trilhados na trama. Mas este cede espaço a um outro recurso, não comum ao cinema clássico, às tomadas em que a personagem impõe seu olhar direto para a câmera. Usual na fotografia e na televisão, este recurso é praticamente extinto no cinema convencional, uma vez que tem um efeito francamente transgressivo, como alerta Machado: (...) tão raro no cinema que, quando usados sistematicamente, produz um efeito teatral ou, como se costuma dizer, anticinematográfico. No cinema, predomina o enquadramento obliquo ao eixo da objetiva, que faz com os olhares (todos os olhares, sem exceção) que se trocam na cena não se dirijam jamais à câmera, mas a um ponto situado à esquerda ou à direita do quadro, no espaço off. (MACHADO, 2007, p.71). Nos momentos de diálogo entre a personagem e o interator, em que há o olhar dirigido à câmera e a mistura do som natural com a diegese fílmica, parece certo afirmar que neste instante o interator tenha a sensação do diálogo face-a-face o que estabelece uma expansão de seu nível de imersão, já para os outros elementos humanos do ambiente mediado, é possível a percepção do preenchimento suturante da estrutura campo/contracampo, onde a mediação ora é oferecida pelo dispositivo do cinema e ora pelos olhos de quem assiste o diálogo. Já que a audiência não fica restrita ao olhar dirigido única e exclusivamente a tela, mas se permite observar e até mesmo interagir verbalmente (através de sugestões, críticas, apoio) com o interator que está supostamente no comando da trama. Last Call estabelece o diálogo constante, entre os atores humanos e não humanos, afim de que juntos possam percorrer os caminhos labirínticos da história. Portanto, trata-se de uma experiência compartilhada e colaborativa, em que a todo momento e a todo espaço a interação se desloca entre o campo virtual e real e em meio a estes campos, onde todos os elementos do ambiente mediado estabelecem um fluxo contínuo de trocas. 3.2.2 - Efeitos Estéticos da Maquinação em Last Call A interatividade presente em Last Call, pode ser entendida como uma nova condição de recepção e pensada segundo as especificidades do aparato, assim 126 trata-se de uma obra aberta76, resultado de interpretações da ordem do inteligível, a partir da contemplação; e ao mesmo tempo de uma obra em movimento77 onde se designam possibilidades de transformação material e ação concreta sobre a obra, que possui uma parte indefinida, na qual se torna necessária a intervenção humana. Neste sentido, seus espectadores estão inseridos em uma revolução tecnológica, com possibilidades de navegação em tempo real e imersividade, em escalas crescentes de realidade aumentada. Assim, com a dilatação do espaço fílmico, invadindo e sendo invadido pelo espaço da sala de exibição, é possível constatar que as novas tecnologias midiáticas demonstram o poder da mídia híbrida de reformular o tempo e espaço como uma experiência substituta. O efeito da maquinação insere a possibilidade do artista ser pensado como provedor, isto é, criador de um sistema interativo e, neste caso, o espectador / interator, recebe o estatuto de autor da obra, uma vez que seleciona e combina elementos contidos no sistema que configura, de forma pré-definida pelas possíveis variáveis. Diante destas novas sensibilidades contemporâneas Kathrin Rosenfield (2009) aponta para a “dificuldade em conciliar as perspectivas sistemáticas com a crescente multiplicação dos fenômenos estéticos” (ROSENFIELD, 2009, p. 52) a partir das múltiplas acomodações da arte com as mídias, em que novos mundos audiovisuais se conformam e requerem uma análise dos seus modos de interação e compreensão nas artes. Nessa perspectiva, a noção de imagem interativa recorre a uma particularidade da imagem computacional, ou seja, uma imagem-matriz que permite o acesso direto à sua estrutura, a tal ponto que possibilite agir sobre ela. A partir das reflexões de Jean Louis Boissier (2005), apresentadas no texto Imagem-Relação, onde descreve a imagem dos trabalhos contemporâneos como operacional e aberta ao jogo interativo, em que há a exigência de uma intervenção direta do seu 76 Obra que possibilita as mais variadas interpretações, uma vez que o autor apresenta várias formas e que cada uma delas se submete ao julgamento público, deixando que o executante escolha uma das possíveis sequências. Apesar de seu caráter indeterminado, que pode culminar em um sem-número de configurações formais, ainda assim, é possível pensar em “obra”, única e individual, na medida em que as várias possibilidades combinatórias estão de antemão previstas pela estrutura da obra que se propõe aberta (ECO, 2005). 77 Obra que tanto movimenta quanto se move, possui a capacidade de deslocar-se e transferir-se, além de promover afeto e efeito (ECO, 2005). 127 destinatário como forma constitutiva da articulação de elementos que definirão o processo da obra, é possível afirmar que a imagem-interativa aproxima-se ao conceito de imagem-relação. Boissier se apropria do uso terminológico da palavra relação como relato e como ligação, e é esse duplo sentido que potencializa os aspectos de modelização de uma estrutura interativa. Assim, o autor estende o conceito de Gilles Deleuze (1983) de imagem-relação como constitutiva da imagemtempo78, como maneira de pensar a relação enquanto forma, duração e processo, ou seja uma imagem-relação, que descreve uma figura de pensamento pela qual o mental é introduzido na imagem, formalizando uma imagem-movimento79 e uma imagem-tempo, em que os elementos variantes agem e reagem uns sobre os outros. 3.2.3 - Análise do Ambiente Imersivo A estrutura labiríntica presente em Last Call, permite a produção de histórias em tempo real, que conduz a audiência a um amplo envolvimento no campo central da trama, que se estabelece pela total liberdade de interação. Last Call pode ter a duração de 50 a 90 minutos, dependendo do caminho escolhido para a história. Não houve divulgação da quantidade de intervenções possíveis em cada exibição. Entretanto o diretor80 afirma que não é possível assistir todas as possibilidades de percursos, em função da produção ter como base a tecnologia de inteligência artificial associada a realidade aumentada, além dos interatores, que conduziram trama, serem escolhidos aleatoriamente. Neste sentido, com o objetivo de compreender os procedimentos maquínicos e da maquinação em Last Call, ou seja, no ambiente da tarefa e da ação, torna-se necessária a análise de suas dimensões de interação, como segue: 78 Imagem-tempo trata do tempo do objeto e da captação, além do registro de sua duração (Deleuze, 1983, p. 241). 79 Conforme Deleuze (1983) a imagem-movimento é conjunto acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros. 80 Em entrevista concedida a autora desta pesquisa, o cineasta Matthias Stiller informa que Last Call tem infinitas possibilidades de percursos e de desfechos. No entanto, para esta autora, trata-se de um assunto discutível. 128 Não há pontos de interrupção, nem tampouco um menu interativo de escolhas. Entretanto através da interação por meio Conteúdo do telefone celular o conteúdo sempre será afetado gerando feedback em tempo real. Antes do inicio da sessão os espectadores recebem um HIBRIDISMO folheto explicativo onde constam as orientações básicas sobre como funcionará o modo de interação e são convidados a ligarem o bluetooth de seus telefones celulares para que os mesmos sejam capturados em um banco de dados. Adaptabilidade Recebem em suas pequenas telas um breve prólogo do filme que se materializará durante a sessão, além de uma mensagem em formato de texto convidando-os para entrarem na sala de exibição. Assim toda a interação será estabelecida através dos telefones móveis. Por se tratar de uma interface conhecida e muito utilizada, não há qualquer dificuldade de adaptação. Possui uma interface simples, uma vez que o diálogo é IMERSÃO mediado por um telefone móvel. A comunicação entre público e filme é direta, além de bidirecional e imediata. Comunicabilidade Além da comunicação que se estabelece entre personagem do filme e interator, outra forma de comunicação se constrói a partir da interação entre os elementos da audiência e reforçam os laços sociais. Não possui nenhum ponto de interrupção, o interator navega INTERATIVIDADE Navegabilidade por entre nós e redes full time. Assim, a liberdade de navegação é irrestrita. Tendo o público recebido as instruções de como interagir com o personagem, o feedback é imediato e surpreendente. Assim, Controlabilidade uma vez que utiliza um complexo sistema de realidade virtual e recursos de inteligência artificial a construção do objeto não é casual, mas sim negociada, tendo em vista a ampliação de possibilidades de ação em cada momento. Quadro 13 – Last Call – Dimensões da Interação 129 Este Machinema, pelas intensas trocas estabelecidas no espaço intersticial, direciona seu público ao núcleo central da trama e muda a lógica de terceira pessoa para a lógica de primeira pessoa. Uma vez que possibilita à sua audiência a sensação de estar lá, o público passa de espectador / interator à elenco neste espaço mediado que proporciona uma interação multidirecional com o nível da história, onde não há pontos de interrupção, e se utiliza de complexos sistemas que possibilitam mais ação, maior sensação de realidade e uma ressignificação do espaço cinema. Deste modo, os suportes tecnológicos utilizados em Last Call fornecem grande flexibilidade em relação aos processos de conexões, interações e suas mediações. Esta flexibilidade permite que a comunicação se estabeleça de formas diferentes e algumas vezes independentes de um agente humano como emissor ou receptor, ou seja, a informação pode ser transmitida de um agente humano para outro, através de um canal de comunicação, caracterizando uma conversação; ou de um agente humano para um não humano que possua capacidade para tratar essa informação (este caso pode acontecer também na direção inversa: de um agente não humano para humano); por último, uma transmissão entre agentes não humanos, representando uma conexão. Mas é fato que através do conjunto destas transmissões mediadas surge a possibilidade de conformação de um outro espaço cinema. Neste sentido, ao refletir sobre as mídias móveis, Lemos propõe retirar a visão centrada apenas no receptor ou no emissor e explica que deve-se: (...) considerar tanto humanos como não humanos engajados em um processo comunicacional baseado em contexto local. O lugar é, portanto um actante material não humano. (...) a espacialização dáse pelos modos de mediação, pelas formas de ação entre agentes (humanos, artefatos, lugares) afim de oferecer serviços (navegação, localização, etiquetagem, mapeamento, redes sociais, jogo, acesso etc.). (...) o uso das mídias locativas pode trazer o reforço da dimensão local e novas apropriações e ressignificação. Para além de suas características sociais, culturais e econômicas, devemos ver os lugares em suas características informacionais, dotados de territorialização informacional.(LEMOS, 2010, p.12). Ao que parece, em Last Call a tentativa mais premente de interatividade e imersão se dá pela sensação de encurtamento da distância proporcionada pelos dispositivos móveis – como uma interação supostamente face-a-face - e que, neste 130 caso, uma importante característica que pode ser observada, e de grande destaque, é a oralidade (as trocas se estabelecem, de forma privilegiada, pela comunicação oral). Quanto mais estes outros cinemas conseguem se aproximar da oralidade e da bidirecionalidade da conversação, mais intenso será o processo de identificação e por consequência de imersão. Ao analisar as categorias de interação presentes em Last Call, é possível perceber que somente no primeiro contato entre o espaço virtual e o espaço real há uma manifestação que se insere, de forma atenuada, na categoria de interação Investigativa, uma vez que é fornecida à audiência um prólogo do filme que se materializará durante a sessão, onde detalhes obscuros da trama são informados. É preciso dizer que esta informação não se oferece ao contexto como um feedback, uma vez que não houve uma solicitação prévia, mas que também não deixa de comunicar algo que, de certa forma, influenciará no percurso da trama, tendo em vista que ao conhecer o contexto as escolhas passam a ser mediadas, também, pelas sensações que o histórico desperta no elemento humano. A exceção do momento acima citado, todos os pontos de interação se oferecem ao espectador para que faça escolhas com relação a desejos da personagem ou percursos a serem trilhados por ela. Desta forma, a trama vai se construindo de forma labiríntica e as cenas se encadeiam de acordo com estas escolhas. Assim, é possível afirmar que Last Call se inscreva potencialmente na categoria Rayuela. Desta forma, neste ambiente mediado, que estabelece uma profunda conexão entre real e virtual através de um dispositivo móvel, percebe-se que o espaço em que se materializa a história ganha uma outra territorialização e por consequência uma ressignificação. Ao que parece, as ampliações tecnológicas de nossos sentidos, interferem no modo como apreendemos os espaços virtuais, e as sensações que eles nos trazem apontam para uma mudança radical no que entendemos por espaço no mundo moderno. 131 CONSIDERAÇÕES FINAIS Há toda uma dimensão estética ou artística na concepção das máquinas ou dos programas, aquela que suscita o envolvimento emocional, estimula o desejo de explorar novos territórios existenciais e cognitivos, conecta o computar a movimentos culturais, revoltas, sonhos. Pierre Lévy O cinema, desde a época das vanguardas e mais expressivamente nos anos 1960, apresenta experimentações no sentido de provocar a sensibilidade e a interatividade com seus espectadores. A partir da década de 1980, o desenvolvimento dessas experimentações se radicalizaram com as tecnologias oferecidas pelos computadores. Com a expansão do cinema para os meios digitais, e o desenvolvimento de interfaces que possibilitaram outras relações entre o homem e a máquina, surge o chamado cinema digitalmente expandido, onde as tecnologias de ambientes virtuais produzem espaços de imersão narrativa e, como proposto por André Parente (2009), o usuário assume os papéis de câmera e editor, transformando a tradicional relação entre o filme, o autor, o diretor e sua audiência. Nos filmes convencionais o público é afetado pelas imagens tão realísticas à sua frente, entretanto, mesmo movido por este afeto encontra-se na posição de espectador imaginativo e o lugar do qual está assistindo obviamente não faz parte do filme, que tem como espaço definido a tela de projeção. No Machinema o espectador é “transportado” para o mundo virtual, e passa a fazer parte do contexto fílmico, deslocando-se através de sua interação para outra ambiência estética. Em razão de toda a hibridização presente no Machinema, é permitido a este afeto demandar uma nova experiência espectatorial, em que o local onde se encontra o espectador, ou seja, o espaço do cinema tenha um papel privilegiado, passando da posição residual para central, criando um novo sentido de lugar, que amplia não só a dimensão espacial, mas também a sensorial e cognitiva. Nos lembra Felinto: 132 A hibridização de suportes e linguagens, bem como o convite a forma de participação cada vez mais intensas, atendem às demandas de uma cultura sequiosa por novas formas de experiência espectatorial (e sensorial). Isso aponta para uma situação na qual todo o corpo é suficiente; na experiência total de um “cinema expandido”, ela se faz acompanhar por várias outras formas de sensorialidade (FELINTO, 2006, p.418/419). O fato de que estes filmes se formalizem em um ambiente informacional, torna possível que seu público se desloque da posição de espectador tradicional de imagens, para se transformar em operador de um sistema aberto, cujos resultados dependem da maneira pela qual o acesso se presentifica na obra. Portanto, se não houver um espectador para interagir, não haverá o input ou output necessário e a obra não se realiza. Desta forma o Machinema ocorre então no tempo em que o corpo do espectador está presente no sistema. Esta presença é que modeliza os elementos que integram a obra. Como afirma Boissier (2005) ao conceituar a imagem relação, esta seria a presentificação direta de uma interação. Neste contexto, parece certo afirmar que o tempo de contemplação da imagem foi substituído por um espaço em que a percepção da imagem ocorre em simultaneidade com sua produção, sendo um momento de interação mediado pelos dispositivos imersivos interativos. A imagem passa a ser vista e produzida ao mesmo tempo, o que indica novos desafios estéticos, que devem considerar a produção (criação) e a percepção (interpretação) e novas reflexões acerca do fenômeno que ocorre a partir de uma imagem resultante da relação de interdependência de participação, ou seja, sem interação e interatividade não há imagem. Quanto à narratividade no Machinema e sua capacidade de construção de um espaço lúdico, considera-se como elementos fundamentais da narrativa tradicional: personagens, ação, espaço e tempo. No Machinema, estes foram mobilizados para acentuar as relações que se estabelecem entre produção cinematográfica, interfaces e plataformas de múltiplas escolhas, ou seja, uma análise criteriosa acerca do conteúdo produzido, a adaptabilidade de suas interfaces, a comunicabilidade entre elementos humanos e não humanos, a navegabilidade em sua estrutura narrativa e os recursos de controlabilidade, afim de empenhar uma investigação a partir de elementos constitutivos de sua base de produção e que apontam para efeitos de imersão, interatividade e hibridismo. Deste 133 modo, foi possível perceber que há convergência entre as características do Machinema e do Game, que se estabelecem em uma relação de trocas bilateral, mas que cada um dos meios produz mensagens próprias, por possuírem aspectos que lhes são específicos. Tanto o Game como o Machinema quebram os limites entre os territórios físico e virtual, num círculo mágico produzido pela relação intrínseca e híbrida como o espaço físico - o ambiente da tarefa -, produzindo formas específicas de relação com o lugar através do lúdico, que tem por estrutura os novos territórios informacionais que apontam para formas de espacialização, integrando temporariamente o espaço físico e eletrônico. No entanto, entre Machinema e Game foi possível identificar outros aspectos que entram em confronto, como elucidado no segundo capítulo deste estudo. Todavia, estes aspectos fundamentais, se inscrevem potencialmente através da narratividade, que altera substancialmente os elementos de construção e de significação deste espaço em conformação. Comenta Machado: Determinados lugares serão visitados apenas por alguns interatores, ou seja, não há um percurso único, definido, que possa considerar o caminho correto de chegar ao “fim”. Todos os caminhos são legítimos, mesmo que eles não levem a lugar algum, até porque nesse tipo de dramaturgia o prazer reside menos em resolver uma intriga e chegar à catarse final do que em experimentar suas inúmeras possibilidades de desenvolvimento. (MACHADO, 2009, p.73). Diante de tais considerações, é importante lembrar que o estudo do Machinema (e não seria diferente nessa pesquisa) se vincula diretamente com sua base tecnológica e produção artística e que estas estão em constantes transformações, o que suscita a emergência de uma produção teórica, mas que ao mesmo tempo liberta-nos da exigência da busca por uma teoria exata, o que remetenos às indagações de Manovich (2005) em seu texto Cinema como interface cultural, onde o autor, com efeito, questiona se faz sentido teorizar o presente, quando este parece mudar tão rápido, onde tudo torna-se apenas uma aposta, mas ele ressalta que tal importância deve-se ao fato de que ainda sendo somente um registro das possibilidades, este já oferecerá reais contribuições. Deste modo, a colaboração para a construção de conhecimento sobre o Machinema se realiza, neste estudo, também no plano analítico. Ao elegermos como corpus de análise A Gruta e Last 134 Call, além dos objetos que foram analisados em segundo plano no capítulo dois, partimos do princípio de estarmos diante de uma linguagem das interfaces culturais em sua fase inicial, como foi com a linguagem do cinema em sua origem, e intentamos investigar os possíveis caminhos que o Machinema está trilhando e quais as possibilidades de territorialização, interação e significação, a partir do desdobramento e construção de conceitos que permitissem abarcar a lógica de sua maquinação. Como sugere Machado: Talvez nós estejamos, de todo modo, tentando enquadrar um fenômeno novo (os meios digitais) em modelos de análise convencionais, inadequados para dar conta dos novos problemas e desafios que ele lança. O sujeito implicado nos dispositivos de realidade virtual é um sujeito agenciador, um sujeito que dialoga, que interage com as imagens (e com os sons e os estímulos táteis) do programa. (...) Se perde ambiguidade como instância imaginária no universo virtual das imagens e dos sons, ganha paradoxalmente, um universo de acontecimentos muito mais complexo, que passa a demandar dele respostas problematizadoras, não inteiramente previstas pelo enredo e que podem resultar em soluções dramatúrgicas inéditas em toda a história da cultura. (MACHADO, 2009, p.82). Assim, um dos aspectos de maior motivação desta dissertação, foi a constatação de que se trata de um campo de estudo que ainda está sendo experimentado, ou seja, as pesquisas sobre as interrelações que se estabelecem neste cinema digitalmente expandido, considerando todo seu potencial maquínico e seus efeitos de maquinação, ainda não apresentam um conjunto canônico de teorias. É fato, que o interesse cresce a cada dia pela consolidação dessa área de estudo, sendo possível afirmar que há ferramentas conceituais que se mostraram, até certo ponto, produtivas para os resultados apresentados neste trabalho, mas que, no entanto, houve a necessidade da criação de uma metodologia que contemplasse a especificidade do objeto e que intentou analisar e compreender os aspectos funcionais e configuracionais deste outro cinema que está em formação, uma vez que as teorias publicadas até o momento não dariam o suporte necessário para esta investigação. Ao refletir acerca do Machinema inserindo-o nas articulações sociais contemporâneas, focalizando especificamente a imersão interativa no cinema, percebe-se que não há consensualidade; há teóricos que adotam uma posição 135 radicalmente negativa e outros positiva frente a esse fenômeno que traduz profundas transformações econômicas, culturais e políticas na sociabilidade contemporânea. No entanto, preferimos dirigir nossa crítica a favor de observarmos as possibilidades dessas modificações que vêm se instaurando a partir da década de 1960 e adotar a ideia de convergência, afim de acentuar que, como ressaltado por Jenkins (2008), a contemporaneidade é múltipla, complexa e que é necessário compreender os movimentos que alcançam todas as esferas de nossa vida na atualidade. Assim, ao compreender que estes novos objetos, frutos do hibridismo possibilitado pelas novas tecnologias de informação e comunicação, mudam não somente a forma de entretenimento e lazer, mas potencialmente todas as esferas das sociedades capitalistas avançadas, uma vez que nestas estão inseridas os novos modelos – robótica, bancos de dados, realidades virtuais, internet, enfim é possível perceber que vida social será transformada em todos seus aspectos. Diante destas mudanças, há que se criar novos conceitos para dar conta da compreensão de objetos que surgem a partir das novas configurações culturais e sua fluidez. Enfim, ao tomar como objeto de análise o Machinema, não houve a pretensão de esgotar as possibilidades de manejo do objeto, mas sim de chamar atenção para a materialidade dos processos que nele se constitui e enfatizar as formas interpretativas da espacialização, através dos conceitos de hibridismo, imersão e interatividade e da análise de suas dimensões e categorias de interação. As investigações acerca do Machinema nos direcionam à uma reflexão fora de um fluxo fixo, progressivo e linear do tempo que aponta para o futuro já estabelecido; trata-se de saber que seus aspectos não poderão ser vistos como totalizantes ou universais e que deveremos ir além dos referenciais que já foram constituídos. 136 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUMONT, Jacques. A imagem. Trad. Estela dos Santos Abreu e Claudio C. Santoro. 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Acesso setembro de 2010 a julho de 2011. 143 ANEXO A – FICHA TÉCNICA – A GRUTA Título: A Gruta Título original: A Gruta Ano de produção: 2007 Ano de lançamento: 2008 País de origem: Brasil Direção: Filipe Gontijo Roteiro: Filipe Gontijo Produção: Tamara Habka Direção de Fotografia: Érico Cazarré Direção de Arte: Nadine Souza Composição Trilha: Patrick de Jongh Estúdio: Caza Filmes Gênero dominante: Terror Duração: de 5 a 62 minutos 144 ANEXO B – FICHA TÉCNICA – LAST CALL Título: Última Chamada Título original: Last Call Ano de produção: 2009 Ano de lançamento: 2010 País de origem: Alemanha Direção Executiva de Criação: Matthias Stiller e Wolfgang Schneider Direção de Criação: Andreas Henke, Christian Kroll e Pedro Gocht Direção de Arte: Leverenz e Marius Bell Produção: Julia Cramer e Film GMBH Deluxe Produção executiva: Bernstein Glenn Krause Jurgen Fotografia e Cenografia: Katharina Strauss, Stepha Pauly, Marion Dopfer Edição e Montagem: Daniel Kundrat Composição Trilha: Daniel Kundrat Artista 2D: Daniel Kundrat Gênero dominante: Terror Duração: de 50 a 90 minutos