Scintilla vol. 8, n. 1

Transcrição

Scintilla vol. 8, n. 1
EDITORIAL
SCINTILLA
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011
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ENIO PAULO GIACHINI
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Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011
EDITORIAL
SCINTILLA
REVIST
A DE FIL
OSOFIA E MÍSTICA MEDIEV
AL
REVISTA
FILOSOFIA
MEDIEVAL
ISSN 1806-6526
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 1-206.
jan./jun. 2011
Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSB
Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM
Curitiba PR
2011
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011
3
Copyright © 2004 by autores
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
FAE – Centro Universitário
IFSB – Instituto de Filosofia São Boaventura
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Editor: Dr. Enio Paulo Giachini
a) Comissão editorial
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Capa: Luzia Sanches
A partir de 2009 a Scintilla compõe o banco de dados da EBSCO –
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Catalogação na fonte
Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia São
Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro Universitário
Franciscano, v.1, n.1, 2004Semestral
ISSN 1806-6526
1. Filosofia – Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.
3. Mística – Periódicos.
CDD (20. ed.) 105
189
189.5
SUMÁRIO
EDITORIAL ........................................................................... 7
Enio Paulo Giachini
ARTIGOS ............................................................................... 9
A árvore de Porfírio: Comentários à Isagoge ....................... 11
Marcos Aurélio Fernandes
Duns Scotus sobre a credibilidade das doutrinas contidas
nas Escrituras .................................................................... 45
Roberto Hofmeister Pich
Liberdade e predestinação. A novidade de Lorenzo
Valla ................................................................................. 95
Paula Oliveira e Silva
A obra sermonária de Santo Antônio e um olhar sobre
a exegese bíblica medieval .................................................. 115
José Antônio de C. R. de Souza
COMENTÁRIOS ...................................................................... 147
Introdução à leitura espiritual, hoje ................................... 149
Hermógenes Harada
TRADUÇÕES .......................................................................... 165
As teorias da escritura contidas nos frutos, isto é, as
considerações que alimentam o entendimento e o afeto
e, primeiramente, as que alimentam o entendimento ......... 167
O reto caminho e o modo de receber os frutos da
escritura, ou como, pela ciência e pela santidade, se chega
à sabedoria ........................................................................ 181
S. Boaventura
DEPOIMENTOS ...................................................................... 195
Frei Hermôgenes Harada: a universalidade do vazio ........... 197
Sérgio Wrublevski
Uma despedida ................................................................. 199
Alberto da Silva Moreira
EDITORIAL
EDITORIAL
Enio Paulo Giachini
Alguns dos artigos do presente número de Scintilla estão focados
na leitura e modo como os medievais liam os antigos. Temos uma
leitura da obra sermonária de S. Antônio, feita por José A. de C.R. de
Souza, uma análise de algumas doutrinas escriturísticas em Duns Scotus,
por Roberto H. Pich, uma leitura da “árvore de Porfírio: Comentários
a Isagogé”, por Marcos A. Fernandes; uma análise dos escritos de Lorenzo
Valla, por Paula Oliveira e Silva. Como é nosso propósito, continuamos a publicar escritos póstumos de Frei Hermógenes Harada. Sobre
essa temática temos então aqui “Introdução à leitura espiritual, hoje”.
E, mais dois depoimentos sobre Fr. Hermógenes, feitos por Prof. Sérgio Wrublevski e Prof. Alberto da S. Moreira. Encerra essa edição
uma tradução de dois textos de S. Boaventura, tirados do Exaemeron
e traduzidos aqui por Fr. Ary Pintarelli.
A título de remissão aos artigos, apresentamos algumas idéias bastardas sobre a leitura. Ler é uma atividade de labuta pela abertura de
sentido da vida de quem e do que se lê. A leitura se torna fecunda
quando esse “de quem lê e do que se lê” coincidem. Leitura dos antigos é, então, um espreitar as próprias possibilidades, “radicalmente
outras, mas longamente preparadas silenciosamente no subterrâneo da
época anterior”. A leitura, enquanto empenho de escuta, é um concentrar-se na espera de abertura de novas possibilidades. A leitura originária, talvez, não se restrinja ao escrito, grafado, registrado. Leitura é
disposição de abertura e de possibilitação esperançosa de renovação da
doação nova e inusitada do real. Como tal, essa espera e empenho se
dão por toda parte, e a toda hora, talvez, mesmo e sobretudo na distraScintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011
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EENIO
NIOPPAULO
AULOG
GIACHINI
IACHINI
ção, onde nos permitimos ser colhidos pela vida e não proativamente
ler, colher, recolher.
“Esse concentrar-se no ponto de salto e o início do novo mundo,
no entanto, se dão na atualidade presente, não, porém, na superfície
do tempo atual, onde o público e a sociedade estão tomados de anseios,
inquietações, confusões acerca dos temas fundamentais da vida, ameaçados por infindas crises, convulsões, guerras, e-versões de costumes,
de moral, por consumismo e perda de identidade humana; mas bem
retraído da publicidade, bem no fundo do subterrâneo do tempo presente na tenaz e silenciosa labuta do pensar”.
Destacamos igualmente algumas idéias centrais do texto de S.
Boaventura, tirado do Exaemeron, onde ele aborda basicamente duas
coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura,
e um modo eficaz de o aprendiz, à época, estudar.
Assim como o corpo sem alimento perde a força, a beleza e a
saúde, da mesma forma a alma sem o conhecimento da verdade
adoece, se obscurece, fica disforme e instável em tudo; é necessário, portanto, que seja alimentada.
Na segunda parte do texto, Boaventura resume um modo de abordagem e leitura das fontes de alimento do intelecto. O estudo está condicionado por quatro diretivas: quem estuda deve ser ordenado, ser assíduo,
encontrar complacência no que faz e ser comedido. A seguir, quanto à
ordem de importância, apresenta também as quatro fontes de leitura dos
estudos e qual sua mutua implicação para os estudos.
A maneira de estudar deve ter quatro condições: ordem, assiduidade, complacência e medida. – A ordem é proposta de diversas maneiras pelos vários [mestres]; mas é preciso proceder
ordenadamente, para não tornar secundário o que é principal.
Portanto, existem quatro tipos de escrituras, dos quais é preciso
ocupar-se de maneira ordenada. Os primeiros livros são as Sagradas Escrituras...; os segundos livros são os originais dos santos; os terceiros, as sumas dos mestres; os quartos, os livros das
doutrinas mundanas ou dos filósofos.
Assim, literalmente, desejamos uma boa leitura.
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ARTIGOS
A ÁRVORE DE PORFÍRIO...
A ÁRVORE DE PORFÍRIO:
COMENTÁRIOS À ISAGOGE
Marcos Aurélio Fernandes *
Porfírio, nascido em Tiro (Fenícia), pelo ano 232-3, foi discípulo
de Longino, em Atenas, e, depois, a partir de 263, em Roma, de
Plotino, de quem escreveu a vida e organizou os escritos, após a morte
deste em 270. Em Roma, após anos de estudo com Plotino, Porfírio
entrou em uma grave crise depressiva, que o colocou à beira do suicídio e foi mandado por Plotino para tratamento na Sicília. É lá que
vêm à luz os seus mais importantes escritos: comentários a Aristóteles,
Platão e a Homero. Por volta de 299, Porfírio retorna a Roma, onde,
presumivelmente, assumiu o lugar de Plotino. Teve como discípulo
mais importante Jâmblico. Cerca de 301, publica as Enéadas, escreve
a “Vida de Plotino” e as “Sentenças sobre os inteligíveis”, como introdução ao pensamento plotiniano. Perto de 302 se casa com uma viúva, Marcela. Depois de 10 meses de matrimônio a abandona, para
dedicar-se aos “problemas dos gregos”. A ela escreve uma carta, uma
coletânea de sentenças éticas retiradas da tradição clássica, e que foi
considerada o testamento moral da antiguidade. Segundo testemunho
de Lactâncio, Porfírio ainda participou do Consilium Principis, que
aconteceu em Nicomédia, onde se reuniram intelectuais da elite romana, com o objetivo de afrontar a questão dos cristãos e que prepa-
*
Professor de História da Filosofia Medieval na Universidade Católica de Brasília e no
Instituto São Boaventura (ISB – Brasília).
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MARCOS AURÉLIO FERNANDES
rou a grande perseguição de Diocleciano. Faleceu em data incerta (c.
304-5). Os escritores cristãos dizem que Porfírio fora cristão quando
jovem, e que abandonou o cristianismo para se dedicar aos cultos herméticos e caldeus. Provavelmente encontrou-se com Orígenes, grande
escritor cristão, que morreu em Tiro em 253. Numa época em que a
perseguição aos seguidores de Cristo chegou ao seu máximo, escreveu
15 livros Contra os Cristãos, dos quais só se conhecem fragmentos deixados pelos defensores do cristianismo, como Eusébio de Cesareia e
Jerônimo. Embora reconhecesse Jesus como um homem muito piedoso e um sábio judeu e estimasse o Deus do judaísmo, desprezava os
cristãos e considerava estarem em erro. Agostinho, na Cidade de Deus,
escreveu contra esta posição de Porfírio (XIX, 23), também contra a
sua concepção dos demônios como mediadores entre os deuses e os
homens (IX, 23.26-32). Apesar disso, Porfírio foi um dos
neoplatônicos que mais influências exerceu sobre a Idade Média, graças, sobretudo, aos seus comentários aos escritos de Aristóteles.
Ao contrário de Plotino e na linha do medioplatonismo, Porfírio
tinha a tendência de conciliar Platão e Aristóteles. O fio condutor
desta tendência de conciliação consistia em ver na lógica aristotélica o
pórtico de acesso para a teologia (metafísica) platônica: “Aristoteles
logicus, Plato theologus”. Platão seria o melhor intérprete da verdade e
Aristóteles o melhor intérprete de Platão. Nesta tendência, salientavase a correspondência entre o eidos transcendente e separado (chôristòn
eidos) e o eidos imanente na matéria (énylon eidos), ou seja, entre a
ideia platônica e a forma aristotélica. Entretanto, Porfírio foi além da
tendência medioplatônica de considerar Aristóteles apenas como uma
propedêutica a Platão. Tentou, na verdade, uma síntese do pensamento aristotélico e platônico também em nível metafísico, abrindo, assim, um caminho que será percorrido mais tarde por vários pensadores medievais, na linha de Agostinho e de Boécio. Na sua concepção
acerca do Primeiro Princípio, busca uma posição intermédia entre a
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A ÁRVORE DE PORFÍRIO...
henologia (doutrina acerca do Uno) platônico-plotiniana e a ontologia
(doutrina do ente enquanto ente), de matriz aristotélica. Deus, o Primeiro Princípio, recebe, assim, as características do Uno absoluto de
Plotino e do Ente Supremo, Substância Primeira, Ato Puro e Pensamento que se pensa a si próprio (nous noeseos), de Aristóteles.
A maior influência do pensamento de Porfírio na Idade Média
vem de seus comentários aos textos lógicos de Aristóteles. Uma obra
que teve uma fortuna significativa para a história da filosofia posterior,
especialmente a medieval, foi a “Isagoge” (“Introdução”).
1 O “Isagoge” como comentário introdutório às categorias de
Aristóteles
Para Porfírio, a filosofia se articulava em ética, física e metafísica. A
lógica servia como propedêutica a todo o estudo da filosofia. Na lógica, Porfírio comentava o “Órganon” (“Instrumento”) de Aristóteles e o
diálogo “Crátilo” de Platão. O mesmo método de aproximar Platão e
Aristóteles se dava também nas outras “disciplinas” filosóficas. Assim,
na ética comentava a “Ética” e a “República”; na física, a “Física” e o
“Timeu”; e na epóptica – palavra que significa “Contemplativa”,
“Teorética”, “Esotérica” – ou metafísica, a “Metafísica” e o “Parmênides”.
Entre os escritos do “Órganon”, Porfírio preferiu comentar as “Categorias” e o texto “Sobre a Interpretação”.
O problema das “categorias”, desde Porfírio e Boécio, passou a ser
um dos mais importantes da investigação filosófica. A palavra “categoria” vem do grego, katêgoría, que significa, na linguagem ordinária,
“acusa”. O uso ordinário da palavra remontava ao fenômeno do falaruns-com-os-outros na convivência pública da Pólis. O espaço privilegiado, aberto à discussão, onde os cidadãos discutiam os destinos da Pólis
era a “ágora”, a praça, o fórum, o espaço público onde acontecia o
intercâmbio de mercadorias, de opiniões, bem como os discursos enScintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011
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dereçados ao público, as assembleias, os julgamentos etc. Daí o verbo
“katêgoreîn”, que significava, originariamente, dizer alguma coisa publicamente na cara de alguém, daí, acusar em público, acusar numa
assembleia ou num julgamento. Aristóteles assumiu este verbo da linguagem ordinária e deu a ele uma conotação lógico-filosófica.
“Katêgoreîn” passou a significar, num juízo, atribuir um predicado a
um sujeito e “katêgoría” tomou o significado de “predicado” de uma
proposição. Aristóteles usou a expressão “katêgoriai toû ontos” para dizer aqueles predicados mais abrangentes e originários que se podem
atribuir ao ente enquanto ente. A tradição chamou as categorias do ente
de “gêneros supremos”, por serem gêneros que não podem se tornar
espécies de outros gêneros. Trata-se de predicados universais, que se
referem ao ente enquanto ente, isto é, ao ente no seu todo. São chamadas, em latim, de “praedicamentum”, predicamento – de praedicare:
dizer diante de, dizer publicamente, proclamar.
A lista das categorias ou predicamentos varia na obra de Aristóteles.
Na obra dedicada a este problema – Categorias IV, 1 b – se apresenta a
lista mais completa, constando de dez tipos de predicamentos do ente:
1. Ousía (substantia - substância) – aquilo que responde à pergunta “tí to on?”: o que é o “sendo” (o ente)? É o “ti estin” (o que é) do
ente, o seu ser certo “quê”, sua vigência e presença, seu vigor de ser,
seu modo de ser a entidade que ele é: o que é em si, o que repousa
em si mesmo, o que subsiste em si mesmo. Como tal, é o substrato
(hypokéimenon – subjectum) das manifestações, propriedades ou
atributos de uma coisa. Na dimensão da linguagem, é o sujeito:
aquilo de que se fala ou de que se predica, em primeira instância.
Ex.: “Sócrates”.
2. Póson (quantitas – quantidade) – o que é inerente a uma coisa
por si mesma, devido à sua matéria. Ex.: “Sócrates é de um metro
e setenta de altura”.
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3. Poión (qualitas – qualidade) – o que é inerente a uma coisa
devido à sua forma. Ex.: “Sócrates é branco”.
4. Prós ti (relatio – relação) – o que é inerente a uma coisa, mas não
por si mesma, e sim por referência a outra coisa. Ex.: “Sócrates é
pai de três filhos”.
5. Poû (ubi – onde) – o lugar natural de uma coisa no universo.
Ex.: “Sócrates é cidadão de Atenas”.
6. Pôte (quando – quando) – ocasião, momento, o que se dá como
medida extrínseca à coisa, a partir do tempo. Ex.: “Sócrates foi
morto em 399 a.C.”.
7. Kheîsthai (situs – situação, posição, disposição, ordem) – o modo
como o sujeito em questão está situado, posto, disposto. Ex.:
“Sócrates está sentado”.
8. Échein (habitus – atinência) – o modo como o sujeito em questão tem a ver com, se relaciona com ou se atém a determinada
coisa. Ex.: “Sócrates está calçado”.
9. Poieín (actio – atividade) – o que o sujeito faz, o pôr em obra, o
atuar e agir de um sujeito. No caso, o sujeito é princípio da ação.
Ex.: “Sócrates ensina à juventude”.
10. Páschein (passio – passividade) – o que o sujeito sofre, o ser
atingido ou afetado por. No caso, o sujeito é o alvo ou fim de
uma ação. Ex.: “Sócrates foi condenado à morte”.
Já na antiguidade havia três linhas de interpretação a respeito do
estatuto das categorias. Havia uma interpretação ontológica, que tomava as categorias como divisões originárias do ser do ente; uma interpretação linguístico-gramatical, que tomava as categorias como modalidades segundo as quais se estrutura a língua e às quais correspondem as
partes do discurso: substantivo, adjetivo, verbo, advérbio etc.; e uma
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interpretação lógica, que via nas categorias os termos mais gerais aos
quais se podem reconduzir os termos de um enunciado, melhor dizendo, os predicados atribuíveis aos sujeitos. A questão era: qual seria
o “medium”, isto é, o elemento no qual as categorias vigoram: o ser do
ente, a língua e a linguagem ou o pensamento e o conceito? Porfírio,
segundo o seu propósito de uma “Eisagogé” (Introdução) e seguindo
uma tradição presente na escola peripatética (Boeto, sucessor de
Andrônico de Rodes; e Hermínio, mestre de Alexandre de Afrodísia),
toma o fio condutor da interpretação lógica, por ser ela a intermédia,
ou seja, ela inclui a dimensão da língua e da linguagem e remete para a
dimensão do ser e do ente.
A obra em que Porfírio discute o problema das categorias é usualmente conhecida em forma abreviada sob o título de “Isagoge”. O
título completo soa assim: “Eisagogé eis tais Aristotélous katêgoríais,
perì tôn pénte phônôn”1, literalmente, “Introdução às Categorias de
Aristóteles: acerca das cinco vozes”. Trata-se, em primeiro lugar, de
uma introdução. Introdução a quê? A resposta pode ser dada em diversos níveis: como uma introdução ao problema das categorias em
Aristóteles; como uma introdução à lógica; e como uma introdução à
filosofia. Com efeito, a lógica era a propedêutica à filosofia; Aristóteles
era considerado o pensador que abria o acesso à compreensão dos “mistérios” tratados por Platão, e o “Órganon” em geral e as “Categorias”
em especial eram considerados o ponto de partida do estudo das obras
de Aristóteles. De que se trata, porém, quando o título fala de “cinco
1
Cf. PORFÍRIO. Isagoge. Texto greco a fronte / versione latina di Boezio. A cura di
Giuseppe Girgenti. Milano: Rusconi, 1995. A introdução desta obra pelo organizador
desta edição italiana serviu como um estímulo importante para o autor deste comentário e abriu perspectivas importantes de interpretação. Sejam dados os créditos, porém,
também a outros textos de que o autor se serviu na elaboração do presente texto:
ROVIGHI, Sofia V. Elementi di Filosofia (3 vols.). Brescia: La Scuola Editrice, 1998.
LIBERA, A. de. Il Problema degli Universali: da Platone alla fine Del Medioevo. Firenze:
La Nuova Italia Editrice, 1999.
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vozes”? Na Idade Média, estes gêneros supremos eram chamados de
“Quinque voces” (Cinco Vozes). A “voz” é a dimensão sensível imediata
do exercício concreto da linguagem, ou melhor, da fala ou discurso:
Em seu exercício concreto, o discurso (deixar ver) tem o caráter
de fala, de articulação em palavras. O lógos é phonê e, na verdade, phonê metá phantasías – articulação verbal em que, sempre,
algo é visualizado2.
Na Idade Média, haverá quem, como Roscelino de Compiégne
(1050-1120), negaria qualquer estatuto de realidade aos universais,
com a tese: “universalis est vox, flatus vocis” – o universal é voz, sopro
da voz. Abelardo, porém, preferirá identificar “vox” (voz) a “sermo”
(discurso). Podemos dizer que o título do Isagoge não exige uma interpretação “vocalista” ao modo de Roscelino. Entretanto, fica em aberto, se requer uma interpretação nominalista, ou seja, que nega qualquer estatuto de realidade ao universal. Acerca deste problema dos
universais, porém, não iremos tratar aqui. Deixaremos para outra ocasião. Em todo o caso, na leitura que a tradição fez do Isagoge, as “cinco
vozes” são interpretadas como cinco categoremas ou predicáveis, que
designam os modos em que um predicado se predica de um sujeito, ou
seja, as diversas formas de relações lógicas que o predicado pode ter
com o sujeito: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente. Aristóteles,
na verdade, nomeava quatro predicáveis: definição, próprio, gênero e
acidente. A compreensão destes predicáveis pode ser articulada em relação a dois critérios: se o predicado pode ser conversível com o sujeito, ou seja, se pode haver uma permuta entre o predicado e o sujeito
sem alterar o significado da proposição; e se o predicado é essencial ou
não ao sujeito. A definição é um predicado conversível e essencial a um
sujeito. O próprio é um predicado conversível, mas não essencial a um
sujeito. O gênero é um predicado não conversível, mas essencial ao
sujeito. O acidente é um predicado que não é nem conversível nem
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HEIDEGGER, M. Ser e Tempo (Parte I). Petrópolis-RJ: Vozes, 1988, p. 63.
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MARCOS AURÉLIO FERNANDES
essencial ao sujeito. Porfírio, porém, em relação a Aristóteles, retira a
definição e acrescenta a espécie na lista dos predicáveis ou categoremas.
Porfírio diferencia entre categorias e categoremas. Categorias são
tipos de predicados, são predicamentos; categoremas são formas de
predicação, são predicáveis. Por exemplo: “Sócrates é animal, homem,
branco, de um metro e setenta de altura, pai de três filhos”. “Sócrates”,
enquanto nome próprio, nomeia um indivíduo e indica uma substância (substantivo). “Animal” e “homem” são predicados de Sócrates que
nomeiam sua essência, não enquanto Sócrates, mas enquanto humano. “Homem” designa a espécie a que este indivíduo pertence, e “animal” designa o gênero a que esta espécie “homem” pertence. “Branco”
é um predicado que nomeia uma qualidade de Sócrates, algo de contingente, uma vez que Sócrates, a rigor, podia não ser branco e a sua
cor é algo de acidental, não é essencial. “De um metro e setenta de
altura” nomeia uma quantidade. “Pai de três filhos” nomeia uma relação. Estas indicações trazem à tona as categorias ou predicamentos e
respondem à pergunta: quais são os predicados de Sócrates? Já o modo
de ser dos categoremas ou predicáveis aparece quando perguntamos: de
que modo se predica os predicados “animal”, “homem”, “racional”, “capaz de rir”, “branco”, “pai de três filhos” de Sócrates? Resposta: “animal” se predica como gênero; “homem”, como espécie; “racional” como
diferença específica; “capaz de rir” como próprio; “branco” e “pai de
três filhos” como acidentes, no caso de “branco” nomeando uma qualidade, e no caso de “pai de três filhos” nomeando uma relação. Os
cinco predicáveis referidos por Porfírio são, pois: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente. Vejamos, agora, mais de perto o modo de
predicação de cada um desses predicáveis.
Gênero (Génos) nomeia um predicável que indica a essência do sujeito, só que de modo indeterminado, pois um gênero é comum a
várias espécies; espécie (eidos) nomeia um predicável que indica, de
modo determinado, a essência do sujeito; diferença (diaphorá) nomeia
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um predicável que indica o elemento definidor ou determinante de
uma espécie, ou seja, aquilo que a faz distinguir-se das demais espécies;
próprio (ídion), por sua vez, nomeia um predicável que indica uma
característica, a qual sempre diz respeito ao sujeito em questão, mesmo não fazendo parte da definição da espécie, ou seja, o próprio é um
predicável, o qual diz respeito a todos os indivíduos de uma espécie,
somente a estes e sempre; por fim, acidente (symbebekós) nomeia um
predicável que indica algo que diz respeito ao sujeito em questão, mas
só casual ou ocasionalmente, não estando sempre presente nele, ou
seja, o acidente é aquilo que pode estar presente ou ausente da coisa,
sem que ela, por isso, deixe de ser especificamente aquilo que ela é.
Tomemos, por exemplo, o caso do “homem”. A definição de homem
soa assim: “homem é animal racional”. “Animal” indica o gênero.
“Homem”, a espécie. “Racional”, a diferença. Algo que não entra na
definição de homem, mas que é uma sua característica sempre presente, pode ser tomado como seu próprio. Por exemplo: ser capaz de rir.
A capacidade de rir é uma característica própria do homem enquanto
homem, ou seja, enquanto espécie. Outra coisa que não entra nem na
definição de homem nem lhe é uma característica própria, isto é, sempre presente, e que acontece só casual ou ocasionalmente é um acidente, isto é, algo de casual, que sobrevém ao homem só ocasionalmente,
como, por exemplo, ser branco ou negro, ser rico ou pobre, ter nascido no Brasil ou na Itália etc.
Se tomarmos em consideração as “cinco vozes” como possibilidades de predicação, ou seja, como possibilidades de relação entre
predicado (P) e sujeito (S), então podemos compreendê-las do seguinte modo. 1. Gênero: quando P é predicado de modo essencial na definição de S, sendo S o nome de uma espécie. Por exemplo: “Homem é
animal racional”. Nesta definição, “animal” é gênero de “homem”, que
é nome de uma espécie. Os gêneros se dividem em diversas espécies:
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com efeito, há diversas espécies de animais. 2. Espécie: quando P é
predicado essencial de S, sendo S o nome de um indivíduo. Por exemplo: “Sócrates é homem”. É que a espécie se divide numericamente em
diversos indivíduos: assim, a espécie “homem” se divide, do ponto de
vista lógico, em muitos e vários sujeitos com nomes próprios, como
Pedro, João, Maria, Teresa etc. 3. Diferença: quando P é predicado a
modo de qualidade de S, onde esta qualidade entra na definição da
essência do sujeito em questão. Trata-se, portanto, não de uma qualidade acidental, mas sim de uma qualidade essencial. A diferença é o
que determina o gênero, fazendo aparecer a espécie. Por exemplo: “O
homem é racional”. A razão é o que diferencia a espécie “homem” de
outras espécies de animais, muito embora a racionalidade não seja um
atributo somente do homem, mas de todos os seres espirituais. Por
exemplo: os espíritos, tais como demônios e deuses, na visão grega, e
anjos e demônios na visão cristã, serão considerados também como
seres racionais. Por isso, na definição porfiriana do homem, se acrescentará as diferenças “racional e mortal” e não somente a diferença
“racional”. Racional diferenciará a espécie homem dos animais irracionais e, “mortal”, dos “animais” (viventes, seres dotados de alma) racionais imortais, ou seja, os espíritos. 4. Próprio: quando P é um predicado
não-essencial, isto é, que não entra na definição da essência de um S,
mas que é uma sua característica típica, identificadora, constante,
invariante. Ex.: “O homem é um ser vivo capaz de rir”. Isto valerá para
todos os indivíduos humanos, sempre, mesmo se alguns não exercerem esta capacidade. 5. Acidente: quando P é predicado de modo nãoessencial e indica algo que apenas casual ou ocasionalmente pode estar
presente em S. Por exemplo: “Sócrates é pai de três filhos”.
De uma maneira esquemática, nós podemos expor assim os cinco
predicáveis:
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Isto quanto ao título do Isagoge. Precisamos, no entanto, entender
também qual a chave de leitura que Porfírio adota ao comentar os
escritos aristotélicos. É o nosso próximo passo.
2 A chave de leitura henológica de Porfírio na interpretação
da lógica e da ontologia de Aristóteles
Em Porfírio, os conceitos fundamentais da ontologia aristotélica
são lidos numa chave de leitura típica do neoplatonismo, que pode ser
denominada de henológica e que tem como referência os binômios:
uno/muitos, todo/partes, identidade/diferença. Sob o ponto de vista
do binômio uno/muitos, Porfírio diz:
Quando se descende, portanto, às espécies ínfimas, necessariamente
se procede, com a divisão, até à multiplicidade; enquanto, quando
se remonta aos gêneros supremos, necessariamente se reconduz da
multiplicidade à unidade: de fato, a espécie, e, ainda mais, o gênero, reconduz os muitos a uma única natureza, enquanto, ao contrário, os indivíduos e as coisas particulares, dividem sempre o uno
em multiplicidade (Isagoge 6, 16-20).
O domínio dos indivíduos é o do domínio da máxima
multiplicidade. A unidade dos indivíduos é uma unidade numérica.
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MARCOS AURÉLIO FERNANDES
Se mantivermos o olhar na multiplicidade dos indivíduos nos dispersaremos numa infinidade de substâncias, com uma infinidade de acidentes. Se elevarmos o olhar um pouco, tentando colher o que há de
comum entre muitos e vários indivíduos, descobriremos ainda uma
multiplicidade de espécies e subespécies. Se elevarmos um pouco mais
o olhar do intelecto e buscarmos a unidade de muitas e várias espécies,
descobriremos uma multiplicidade reduzida de gêneros. E se elevarmos o olhar para os gêneros supremos, nós encontraremos uma
multiplicidade finita de conceitos, a qual nos aproximará cada vez mais
da unidade que recolhe todas as coisas, e que não pode ser conceituada
ou encerrada em qualquer categoria.
Do ponto de vista mereológico, ou seja, na perspectiva do binômio
todo/partes, Porfírio diz:
O gênero é um todo, enquanto o indivíduo é uma parte; a espécie é ao mesmo tempo todo e parte, mas, parte de outra coisa, e
todo em outra coisa, e não de outra coisa; de fato, o todo está
nas partes (Isagoge, 8, 1-3).
Os dois extremos são, portanto, o gênero e o indivíduo. Gênero é
um conceito de totalidade, certamente, uma totalidade unitária, embora não simples, pois é composta de várias e muitas espécies. O indivíduo, tomado em sua unidade numérica, é aquela substância que é
distinta de todas as outras (“dividida” em relação às demais) e que em
si mesma não pode mais ser dividida: indivisum in se et divisum a
quolibet alio, dirá o adágio da Escola. É claro que o indivíduo pode ter
partes e que cada parte pode ser considerada em si mesma e pode também ser considerada em suas subpartes e assim infinitamente. Entretanto, a unidade aqui considerada é uma unidade lógica, mais do que
física. Chamamos de indivíduo uma realidade tomada enquanto tal,
um ente enquanto este ente intencionado numa percepção, ou seja,
numa intuição ou numa visão imediata. Sócrates é um indivíduo, ou
seja, uma substância individual, mas não é uma substância simples. De
fato, esta substância é composta, de matéria e forma, de corpo e alma.
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É verdade que o corpo de Sócrates é divisível em tantos órgãos e cada
órgão pode ser dividido ulteriormente e assim por diante. Entretanto,
no nome próprio “Sócrates” viso um indivíduo, ou seja, falo da realidade que é esta pessoa, esta substância individual. Nisso, estou falando
de uma unidade indivisível, pois é a unidade de uma pessoa, distinta
de todas as demais pessoas e, ao mesmo tempo, única e singular em si
mesma; e a totalidade dos seus aspectos não é uma mera soma de
partes, mas sim uma totalidade vivente multidimensional, corporalpsíquica-espiritual; uma totalidade que se reúne em torno de um eu,
melhor, de um si-mesmo, que é o centro unificador de seus atos e de
seus aspectos. Tudo isso quer dizer: embora o indivíduo seja uma totalidade real, natural, “física”, ele não é, do ponto de vista lógico, uma
totalidade que tem sob si mesmo outros tipos de unidade: é indivisível.
Entretanto, entre o gênero, que é totalidade, e o indivíduo, que é
parte, está a espécie, que é parte e todo, ao mesmo tempo. Porfírio dá,
porém, uma dica sobre os diferentes modos de ser todo e parte, em
relação à espécie. Diz que a espécie é parte de outra coisa; e que é todo
em outra coisa. O “ser-de” indica a relação no horizonte da predicação.
A espécie é parte do gênero, como “homem” é parte do gênero “animal”. Neste caso, o ser-parte-de é tomado a partir da predicação. Mais
uma vez, “parte” tem aqui um sentido lógico, melhor, onto-lógico e
não ôntico-físico. O ser-animal se predica do ser-homem. “Homem”,
enquanto espécie, por sua vez, participa, ou seja, toma parte do modo
de ser do gênero “animal”. Por outro lado, a espécie é todo; e todo em
outra coisa. O “ser-em” indica, em sua perspectiva, uma presença
imanente. A espécie é uma totalidade participada por muitos, vários e
diferentes indivíduos. E que se encontra, como forma comum e como
estrutura invariante, em cada indivíduo. Enquanto forma imanente, a
espécie não é um todo que está “por fora” dos indivíduos, mas um
todo que está em cada indivíduo, pois, diz Porfírio, “o todo está nas
partes”. Poderíamos, talvez, dizer que a espécie se encontra individuada
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em cada indivíduo? Se eu tomasse cor como gênero, e vermelho como
espécie de cor, poderia dizer que o ser-vermelho se encontra presente
em cada vermelho individual, tomado como este vermelho aqui, presente neste vaso de cerâmica, que é único no mundo, com esta precisa
nuança que lhe é única e singular? Talvez sim, na perspectiva da reflexão porfiriana.
Há, ainda, a perspectiva do binômio identidade/diferença. Porfírio
afirma que as diferenças “são parte integrante da definição de cada coisa,
e o ser da coisa, que é uno e idêntico, não admite nem aumento nem
diminuição” (Isagoge, 9, 20-22). O universal diz a identidade de diversos e diferentes. Ser idêntico é ser uno. Todo ente é idêntico consigo
mesmo, à medida que é uno. Diversos entes são idênticos à medida
que, entre eles, há uma unidade, que os reúne numa comunidade.
Todas as abelhas são idênticas enquanto são abelhas, são diversas apenas enquanto há diferenças de grandeza, beleza etc. Quer dizer: no serabelha, são idênticas. Logo se vê, também, que ser-idêntico não é serigual. A identidade é um corolário da unidade. A igualdade o é da
multiplicidade. Pois bem, o ser de uma espécie é único e idêntico, ainda
que os indivíduos que dela participam sejam muitos e distintos. Esta
unidade específica permanece sempre una, isto é, ela não se multiplica
com a multidão dos indivíduos. Assim, nesta perspectiva, a espécie
“homem” não se multiplica com o aumento ou a diminuição dos indivíduos humanos. Mais do que uma realidade factual, a espécie diz
uma possibilidade essencial, um possível modo de ser, um poder-ser.
Também permanece sempre idêntica, pois não se diferencia, enquanto
espécie, em razão das distinções que se operam sob sua vigência. Por
exemplo: o vermelho permanece sempre idêntico consigo mesmo,
enquanto vermelho, não obstante acontecer de a vermelhidão ou rubor se dar em distintas nuanças e infindas particularidades em todos os
vermelhos existentes nas coisas. A espécie não aumenta nem diminui,
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com o aumento e diminuição dos indivíduos. Ela é e permanece sempre una em si mesma. A diferença entre indivíduo e espécie, portanto,
parece não ser uma diferença ôntica, que diz respeito ao ente em suas
propriedades fatuais, mas sim uma diferença ontológica, isto é, uma
diferença não entre ente e ente, mas sim entre ser e ser, ou seja, entre ser
individuado e ser comum. Aumento e diminuição dizem respeito ao
domínio dos indivíduos e dos acidentes das substâncias individuais.
O ser da coisa é, porém, uno e idêntico. A unidade do indivíduo é
numérica. A unidade da espécie não é numérica. Por outro lado, não
obstante a ênfase na identidade como corolário da unidade, não se
pode dizer que a diferença deixa de ter importância. Porfírio afirma,
ainda, que as diferenças entram na definição das coisas, como partes
integrantes, isto é, como partes intrínsecas, essenciais. Naturalmente,
trata-se de diferenças específicas, pois as diferenças individuais não entram na definição de um ente. O indivíduo enquanto tal é indefinível.
Não se pode definir “Sócrates”. Mas se pode definir uma espécie, como
“homem”, por exemplo. Do mesmo modo, um gênero supremo não
pode ser propriamente definido. Não se pode definir, por exemplo,
ser. Pois ser é um conceito transcendental, que ultrapassa toda determinação em termos de gênero, diferença e espécie. Ora, aqui estamos
falando de definição em sentido rigoroso, como definição essencial,
de cunho metafísico, ou seja, uma definição que precisa e determina
os constitutivos da essência da coisa, isto é, o gênero próximo e a diferença específica. Assim, segundo a antropologia filosófica tradicional,
definir “homem” é dizer “animal racional”, sendo “animal” o gênero
próximo da espécie “homem” e “racional” a diferença que determina a
especificidade da espécie “homem”, destacando-a do fundo
indeterminado do gênero “animal”. Logo se vê que é a diferença o
elemento determinante, que torna nítido e preciso o que antes era
indeterminado, isto é, difuso e vago.
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3 A “scala predicamentalis” ou a “árvore de Porfírio”
Tendo tratado das noções dos predicáveis e da chave de leitura
henológica feita por Porfírio a partir dos binômios uno/múltipo, parte/todo e identidade/diferença, convém agora tratar da “scala
predicamentalis” ou o que ficou conhecido na tradição como “árvore
porfiriana”. Trata-se de uma escada que articula os predicáveis, descendo do gênero supremo através das várias diferenças específicas até a
espécie ínfima e, por fim, ao indivíduo.
3.1 Exposição da “scala predicamentalis”
A ordem dos predicáveis, ou seja, sua disposição e articulação, se
dá de maneira gradual, a modo de escalação descendente. Vemos, assim, que, ao fundo da scala predicamentalis está a ordenação henológicaontológica hierárquica. Porfírio escreve:
O gênero supremo é aquele sobre o qual não pode haver algum
outro gênero superior, enquanto a espécie ínfima é aquela debaixo da qual não pode haver alguma outra espécie inferior; são
termos intermediários entre o gênero supremo e a espécie ínfima, outros que são, ao mesmo tempo, gênero e espécie, naturalmente em relação a sujeitos diversos. Esclarecemos este discurso
tomando como exemplo uma categoria. A “substância” é ela mesma um gênero, à qual é subordinada a espécie “corpo”; subordinado a corpo” é “ser vivente”; a este é subordinado “animal”,
enquanto a “animal” é subordinado “animal racional”; a este,
ainda, é subordinado “homem”, e a “homem”, enfim, são subordinados “Sócrates”, “Platão” e os outros indivíduos. Entre
todos estes termos, “substância” é o gênero supremo, porque é
somente gênero, enquanto “homem” é a espécie ínfima, porque
é somente espécie; “corpo”, por sua vez, é espécie de “substância” e, ao mesmo tempo, gênero de “ser vivente”. Por sua vez,
“ser vivente” é espécie de “corpo” e gênero de “animal”; e assim
“animal” é espécie de “ser vivente” e gênero de “animal racional”; “animal racional” é espécie de “animal” e gênero de “homem”; “homem”, enfim, é espécie de “animal racional”, mas
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não é gênero dos homens individuais, mas é somente espécie
(Isagoge, 4, 17-31).
A scala predicamentalis ou “árvore porfiriana” pode ser representada esquematicamente de diversas formas, algumas mais estáticas, outras mais dinâmicas. Tentemos, pois, representar em forma de escada e
em forma de árvore a ordem dos predicáveis segundo o exemplo apresentado por Porfírio no nosso texto que acabou de ser citado, que é o
exemplo da categoria substância.
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As divisões, portanto, ficam assim:
A árvore porfiriana é, portanto, uma escala descendente. E a descendência se diz tanto em sentido de um movimento que vai de alto a
baixo, do gênero supremo, que é a substância, até a espécie ínfima, que
é o homem, e, para além dela, até os indivíduos humanos – Sócrates,
Platão etc.; quanto no sentido de um movimento por assim dizer
geracional, que constitui uma ordem de proveniência, ao ritmo da
sucessão dos gêneros. Com efeito, a palavra grega “génos”, na linguagem corrente, significava origem, família, descendência, estirpe. Claro
que, aqui, não se trata propriamente de uma geração física. Trata-se,
antes, de um movimento de proveniência, que se estabelece na dinâmica dos predicáveis, no reino enigmático dos universais, isto é, da
linguagem-conceito, com suas correspondências ontológicas
(metafísicas, transcendentes, a priori) e também ônticas (físicas,
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imanentes, empíricas). Por um lado, é um movimento de descendência através de diversas formas de unidade (genérica, específica e numérica), onde a cada nível inferior se evidencia mais e mais a multiplicidade.
Trata-se, por outro lado, também de um movimento de contínua e
crescente determinação, onde o que aparece vai se definindo cada vez
mais de maneira precisa e vai ganhando cada vez mais em nitidez.
Poderíamos entender cada nível como um horizonte de compreensão do ser do ente. Aliás, a palavra grega para definição (que articula
gênero e diferença, fazendo resultar a espécie) é hóros, que, em linguagem usual, significava limite, confim. Aristóteles também usava como
equivalente de hóros a palavra horismós, de-limitação, de-finição. Para o
grego, o limite (péras), não era algo de negativo, era, antes, sinônimo
de perfeição. Quando uma obra alcança o seu limite, ela se consuma e
passa a repousar em si mesma. Então é que ela brilha em sua verdade e
beleza. O limite é a determinação, que dá nitidez à identidade da coisa.
É o que torna visível o fenômeno. Ora, chamamos de “horizonte”
aquilo que delimita a visibilidade, o aparecimento, a presença e vigência de uma paisagem. Podemos, pois, entender cada nível da escala
predicamental como sendo um horizonte de aparecimento, de presença e de vigência de algum modo de ser. Em vez de horizonte, talvez
pudéssemos também usar a palavra dimensão, pois cada nível tem um
papel mensurador, ou seja, nos oferece certa medida de determinação
do ser dos entes. Em termos lógicos, como a extensão e a compreensão de um termo são inversamente proporcionais, os membros superiores da escala têm mais extensão e menos compreensão e os termos
inferiores vão apresentando menos extensão e mais compreensão. É
como se o horizonte fosse se tornando cada vez mais próximo e a
clareza do que se vê fosse ficando cada vez mais nítida.
3.2 Substância
O horizonte máximo de definição do ente é a substância (ousía).
Ousía é expressão do ser, é vigência do ser, essência em sentido verbal,
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como o que essencializa, dá vigor e vigência ao ente em seu ser. É
potência como poder-ser, não no sentido passivo da potencialidade,
típica da matéria, mas no sentido ativo de uma atuação do ser como
Puro Agir. Com efeito, Porfírio entende que o Uno é um Agir Puro e
que este Agir Puro é Ser e que o Ser é anterior ao ente, e, por conseguinte, à substância. A substância seria como que o assentamento ou
repouso do ser como Puro Agir. No seu Comentário ao [diálogo]
Parmênides de Platão (XII, 22-33) ele diz:
Considera agora se Platão não parece deixar entender isto, a
saber, que o Uno que é acima da substância e do ente, não seja
nem ente, nem substância, nem atividade, mas acima de tudo
aja e seja Ele mesmo o Puro Agir. Por conseguinte, Ele mesmo
seria o Ser que é antes do Ente; participando deste Ser, portanto, o Segundo Uno possui um Ser derivado, e este é o ‘participar
do ente’. Portanto, o Ser é dúplice: o primeiro preexiste ao Ente,
o segundo é aquele que é produzido pelo Uno, que está além do
Ente. E o Uno é em sentido absoluto, ele mesmo, o Ser, ou, de
qualquer maneira, é a Ideia do Ente.
Em primeiro lugar, vê-se que Porfírio alude a uma prioridade do
ser em relação ao ente. “Ser”, porém, se compreende fundamentalmente de dois modos: em sentido originário, como o Uno transcendente, o Puro Agir; e em sentido derivado, como ser, atuação, imanente
ao ente. O ente propriamente não é; só é enquanto participa do Ser, à
medida que é produzido e posto no ser. O que propriamente é diz-se
ser, tomado em sentido originário, como Puro Agir e como Ideia, isto
é, como Uno e potência unificadora, forma originária e originadora,
geradora e configuradora do ente enquanto ente. Na Idade Média,
sobretudo em Tomás, o ser vai ser determinado como “actus essendi”:
ato de ser.
Entretanto, além do ser como verbo (einai/esse), há o ser como particípio substantivado (on/ens). Isto quer dizer: há também o ser no horizonte das coisas que são derivadas do Uno/Bem, melhor, dos entes que recebem o ser a partir da Tríade Uno-Intelecto-Alma. E, neste horizonte, ente
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se diz em primeiro lugar como substância e depois como acidentes. Por
isso, é compreensível que Porfírio tome como exemplo para a articulação
dos predicáveis a categoria de substância (ousía).
No limite, isto é, na consumação ou perfeição (ato/forma), a ousía,
aparece como presença quieta, que repousa em si mesma, como subsistência, substância. O primeiro horizonte da definição essencial é,
portanto, a imensidão da vigência de ser e de sua subsistência, o “ens
per se”: a substância. “Substância” é o génos primeiro, o ascendente
primordial, do qual os outros modos essenciais de ser recebem a proveniência. É o genikôtaton: o gênero generalíssimo. Entretanto, aqui, o
geral não deve ser entendido meramente como conceito vazio e
indeterminado. O vazio do gênero generalíssimo é, por assim dizer,
um vazio pleno, pois está prenhe, grávido, de possibilidades. Nele estão em potência todos os outros modos possíveis de ser do ente, ou,
mais restritamente, da substância. É máxima universalidade categorial:
o uno supremo no domínio das categorias, isto é, dos modos de ser e
de dizer, em referência ao ente. No meio desta universalidade, acontece uma primeira cisão, um primeiro corte. A unidade dá lugar à
dualidade. O uno da substância se duplica em duas articulações fundamentais ou dois primordiais modos de ser. Emerge a diferença no meio
da identidade, a divergência no seio do máximo convergente. Aparecem as diferenças específicas da substância: o modo de ser do corpóreo
e o modo de ser do incorpóreo. Na verdade, numa perspectiva platônica, trata-se de dois mundos: o kósmos aisthêtós (mundus sensibilis) e o
kósmos noêtós (mundus inteligibilis). O mundo sensível é a ordem dos
entes que podem ser percebidos no espaço-tempo: os corpos e tudo o
que é corpóreo. O mundo inteligível é a ordem das ideias, ou seja, dos
paradigmas ou arquétipos de todos os modos de ser, o ser ideal, o
incorpóreo. O mundo sensível é a totalidade dos entes em devir. O
mundo inteligível, a dos entes que permanecem sempre em quieta
plenitude e em plena quietude. O mundo sensível é uma imagem do
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mundo inteligível, assim como o tempo é uma imagem da eternidade. Numa perspectiva aristotélica, por sua vez, o inteligível se une ao
sensível; isto é, as formas inteligíveis (eídê noetà) se tornam imanentes
às formas sensíveis (eídê aisthetá) imprimindo-se na matéria dos sujeitos e expressando-se como forma externa (morphé) e figura (schéma)
das coisas. Por conseguinte, o reino do corpóreo não é ininteligível.
Graças às formas (eídê) ele está prenhe de inteligibilidade, ou seja, em
potência ele já traz as diversas dimensões de formas, que se apresentarão em seu horizonte. Aparece, assim, o gênero “corpo”.
3.3 Corpo
“Corpo” (sôma) é uma espécie de substância, a saber, a substância
sensível, ou seja, que é intencionada no ato de nossa percepção natural.
É a ordem da substância, que se dá como entes extensos qualificados,
submetidos ao devir. De fato, tal como se dão na experiência cotidiana, são corpos numericamente unos, diferentes, extra-postos espacialmente, que manifestam determinadas qualidades: grandezas, configurações, cores e brilhos, sons, calor, dureza, peso etc. A coisa suposta
como substrato dessas manifestações, por sua vez, é compreendida na
nossa percepção como coisa extensa. Com efeito, propriedade característica do corpo é a extensão concreta, a qual, porém, é mais do que a
extensão puramente geométrica, pois esta é imaterial e imaginária, enquanto aquela é material e real. O corpo se encontra, pois, materialmente estendido em três dimensões: cumprimento, largura e profundidade; é divisível em partes reais; e se dá em referência a uma localização num “onde” (ubi), a uma disposição de suas partes (situs) e a uma
atinência a outros corpos (habitus). Por sua vez, no ou junto ao corpo
se manifestam também as categorias do fazer (actio) e do sofrer (passio),
além do movimento, que pode ser local (ubiquação), aumento e diminuição e alteração (mutações acidentais e substanciais). Logo se vê
que todas essas categorias não são simplesmente interpretadas em cha-
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ve científico-matemática, isto é, traduzidas em cifras quantitativas, mas
são prenhes de ressonâncias qualitativas, advindas da experiência comum cotidiana. Outra observação necessária diz respeito ao estatuto
da extensão em relação à substância-corpo. Na perspectiva antiga, diversa daquela cartesiana, relacionada à visão da ciência matematizante
da natureza, a extensão não é propriamente a essência do corpo, a sua
ratio essendi, um fundamento de seu ser, mas é apenas uma sua propriedade característica, e, portanto, uma sua ratio cognoscendi, um princípio de (re)conhecimento. A categoria acidental que imediatamente se
liga à extensão é a quantidade, que se define a partir da massa e da
figura estendida nas três dimensões espaciais: cumprimento, largura e
profundidade ou altura. Vemos, assim, que a substância-corpo é, na
verdade, um mundo pleno e prenhe de especificidade, de atividade e
de inteligibilidade. Cada corpo, de fato, segundo a perspectiva do
hilemorfismo, é constituído de dois princípios ou condições-de-ser: de
matéria (hýlê), momento potencial e indeterminado, contudo, susceptível de determinação; e a forma (morphê), o momento atuante,
que dá o ser, determina e qualifica tal ente.
“Corpo” é também um gênero, isto é, uma totalidade, uma ordem prenhe, que traz, em potência, diversos outros modos de ser. De
fato, corpo pode ser mineral, vegetal ou animal. São como que possibilidades de ser da corporeidade. Por isso, entra em jogo, no meio do
reino “corpo”, uma cisão que introduz duas diferenças fundamentais,
que são, ao mesmo tempo, dois níveis diversos: o “animado” e o “inanimado”. “Corpo inanimado” nos introduz no reino dos minerais,
onde ser vigora como simplesmente ser, como ocorrer no espaço do
mundo sensível. A pedra, em sua presença retraída, isto é, compacta,
maciça, quieta e fechada em si mesma é uma imagem característica
deste tipo de substância e substancialidade. “Corpo animado”, por sua
vez, nos introduz na totalidade dos seres viventes: vegetais e animais.
Surge, assim, uma terceira dimensão da substância, a da vida. Ao corpo pertence simplesmente ser. Ao ser vivente, o ser e o viver. Aliás,
para o vivente, ser é viver.
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3.4 Ser vivente
Entramos, agora, no horizonte que leva o nome de “ser vivente”
ou “ser animado” (émpsychon). Entramos, então, na ordem do vital e
da vitalidade em geral, onde se dá a regência do princípio da vida (psyché).
Certamente, a substancialidade do vivente é diversa daquela do não
vivente. Não há apenas uma diferença de grau entre o inanimado e o
animado, mas sim um salto qualitativo, melhor, o surgimento de uma
diferença não só acidental, mas, sobretudo, substancial, essencial. Como
vimos, o ser animado ou vivente é uma espécie de substância corpórea,
mas nele se manifesta algo de essencialmente novo. O “animado”
(émpsychon) ou “vivente” caracteriza-se por abrir e manifestar a totalidade-mundo da psychê (ânima: alma). Trata-se do princípio vital, que
se manifesta tanto na vida vegetativa, quanto na vida sensitiva, quanto
na vida intelectiva. Diversa será, pois, a “animação” ou o “ânimo” de
cada tipo de vida. O mundo vivente supõe o mundo corpóreo, mas
apresenta um “quê” (quid) que não se encontra ao nível do corpo inanimado, da pedra, por exemplo. Este “quê” é a forma substancial chamada psychê, alma. É aquilo pelo que o corpo vivente é o que é, ou
seja, aquilo que torna corpo vivente o corpo vivente. Falando de modo
grosseiro, vivente é aquilo que tem a capacidade de mover-se. Contudo, este automovimento não deve ser entendido apenas no sentido do
movimento local (ubiquação). Também uma máquina pode se mover
e, nem por isso, uma máquina é um vivente. Também um vivente
apresenta movimentos precisos, mas nem por isso o vivente é uma
máquina. Mais do que dizer que o vivente é um ente capaz de
automovimento, é melhor dizer que o vivente é aquele ente que é
capaz de ação imanente. Ação imanente é aquela que vai além da ação
transitiva. A ação transitiva termina no objeto ao qual ela tendia. Já a
ação imanente é aquela que enriquece e aperfeiçoa o próprio agente.
Podemos formular ainda melhor: vivente é aquele ente que tem em si
mesmo o princípio da própria atividade, do próprio devir, ou seja, é
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aquele que vem a ser o que é, por força e graça de si mesmo. A autonomia é, pois, uma propriedade característica do vivente. O vivente
vegetativo executa por si mesmo o movimento pelo qual ele busca
alcançar o próprio fim, isto é, a própria consumação ou a perfeição de
sua natureza. A planta por si mesma assimila nutrientes, realiza a
fotossíntese, cresce, floresce, se frutifica. O vivente sensitivo, por sua
vez, providencia para si mesmo o próprio alimento e as demais condições para assegurar a vida, baseando-se, fundamentalmente, na percepção sensorial, isto é, no conhecimento sensitivo. O vivente intelectivo,
enfim, isto é, o homem, age conforme a sua liberdade, baseando-se no
conhecimento intelectivo do ente no seu todo. Ele é capaz de operar e
agir, a partir de representações abstratas e de conceitos universais. Ora,
o princípio regente da vitalidade do vivente, o que suporta e governa
sua auto-organização, sua autoregulação e sua autoconsumação, chama-se, na perspectiva da ontologia da substância, alma (psyché). A alma
não é algo que se acrescenta ao corpo, mas é princípio formador do
corpo enquanto corpo vivente. Não há corpo e só depois sobrevém
como um acréscimo extrínseco, a alma. Corpo vivente só é o que é a
partir da atuação do princípio de vida, que se chama alma. Isto quer
dizer: a alma é potência estruturante do corpo-organismo enquanto
tal e de suas funções, potência imanente ao próprio corpo, que dá as
leis de suas próprias atividades e que o torna capaz de alcançar suas
finalidades. É, portanto, princípio que dá o ser ao corpo e potência
unificadora das suas funções vitais; princípio de subordinação e de coordenação das muitas atividades do corpo vivente. Aristóteles denominava a alma de “entelécheia” do corpo: a forma que determina a
realização consumada (entelôs + échein = ter-se perfeitamente) de uma
potencialidade. É aquilo que dá ao corpo olhos para ver, ouvidos para
ouvir etc. Nesta visão teleológica, muito diversa da visão mecanicista
moderna, o vivente tem olhos porque é destinado a ver, não vê porque
tem olhos. Há uma definição aristotélica da alma que merece ser aqui
citada: entelécheia he prôte sômatos physikoû dynámei zôên échontos; os
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35
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
latinos traduziam por: actus primus corporis physici potentia vitam
habentis, ou seja, alma é a forma determinante e consumadora do corpo
natural que tem a vida como possibilidade (Da alma II, 4, 415 b). Alma
é atuação primordial, princípio de ser e de devir; de um corpo natural,
isto é, de um corpo não artificial, de um corpo gerado segundo a natureza (phýsis) e não segundo a arte (téchnê); de um corpo que se atém à
vida como sua possibilidade, como seu poder-ser, quer dizer, de um
corpo capaz de viver.
No gênero “vivente”, porém, acontece uma cisão, uma diferença
substancial entre “vegetativo” e “sensitivo”. A presença ou não da percepção sensorial caracteriza, pois, uma diferenciação substancial no
gênero “vivente”. O vivente privado da percepção sensorial, que apenas vive, é o vegetal. Por sua vez, o vivente que é provido da capacidade de percepção sensorial, que vive e sente, é o animal.
3.5 Animal
Saltamos, assim, para uma nova totalidade: a do “animal” (Zôon).
Trata-se do vivente que é regido pela Zôê: o princípio perceptivo da vitalidade. É a instância da irrupção do conhecimento, mesmo que seja como
conhecimento apenas sensitivo, como no caso dos animais irracionais.
Com efeito, pelos sentidos, o animal é afetado por aquilo que se acha em
seu meio ambiente e entra em conhecimento daquilo que o circunda. Os
sentidos do tato, do olfato e do paladar sobressaem no aspecto afetivo da
experiência sensitiva. Já a visão e a audição são por excelência formas de
tomada de conhecimento, ressaltando, assim, o caráter cognitivo da experiência sensitiva. Aristóteles postulou, ainda, para além dos cinco sentidos
externos, um sentido interno ou sentido comum, pelo qual o animal não
somente sente, mas também sente de sentir. No sentido comum abre-se,
pois, a dimensão da consciência. Pela consciência, o animal sabe de si, na
imediatez do sentir. A capacidade perceptiva e a consciência dão ao animal
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A ÁRVORE DE PORFÍRIO...
a possibilidade de se mover em seu ambiente com mais mobilidade do
que a planta no seu. Maior mobilidade ainda ele alcança através da sua
capacidade imaginativa e da sua memória sensitiva. A imaginação possibilita ao animal criar formas inusitadas de providenciar-se a vida. A memória
dá-lhe um passado e abre-lhe a dimensão da experiência. Além do sentido
comum, da imaginação e da memória, o animal é também provido de
instinto. É pelo instinto que o animal se dirige, orientando-se em suas
escolhas, em vista de seu fim: a própria vida. Um filhotinho de gato,
mesmo sem experiência, excita-se como um caçador em potencial diante
de um rato e se arrepia diante de um cão. O instinto mostra que a vitalidade do animal não é meramente causal mecânica, mas é também causal
teleológica, ou seja, opera segundo os seus próprios fins. Tudo isso, pois,
dá ao animal toda uma gama de possibilidades de providenciar para si
mesmo as condições de manutenção de seu viver, bem como de reprodução, para a perpetuação da espécie.
No meio, porém, desta totalidade chamada “animal” opera-se uma
nova cisão: emerge a diferença substancial entre “irracional” e “racional”. Irracional é o animal que apenas sente, ou seja, que permanece
fechado no círculo do sentir, melhor, da percepção sensorial. Racional
é o animal que sente e pensa e que, pelo pensamento, transcende o
ambiente e se abre para o mundo, quer dizer, para a totalidade do ser.
Instaura-se, assim, uma nova espécie de substância-corpo-vivente: o
animal racional.
3.6 Animal racional
Porfírio entende “animal racional” como espécie de animal e gênero de homem! É diversa a sua perspectiva do modo como costumamos entender animal e homem. De modo usual, quando falamos de
animal pensamos logo nos bichos, isto é, no animal irracional. E pensamos que o homem seja um bicho como outro, apenas com uma
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MARCOS AURÉLIO FERNANDES
diferença acidental: a inteligência. Nesta perspectiva, há apenas uma
diferença de grau entre o animal-bestial e o animal-homem. Não há
uma diferença substancial, como é uma diferença específica. A mudança de espécie, porém, se dá por uma diferença que não é acidental,
como diferença de grau ou de qualidades, mas substancial, que é uma
diferença essencial, substancial, no ser do ente em questão. Isto quer
dizer que animalidade, predicada do ser pensante, é uma animalidade
radicalmente diferente da animalidade dos bichos. O vivente pensante
é aquele animal que é dito “racional”. Há animal racional e animal
irracional. O irracional é o que apenas é e sente. O racional é o que é,
sente e pensa. Irracional é o bicho. E o racional? Nós respondemos
logo: o homem. Só que Porfírio, em seu texto citado acima, diz que
“animal racional” é gênero de homem e não simplesmente o homem.
Neste caso, o homem não é simplesmente e sem mais o animal racional, mas sim uma espécie de animal racional! Haveria outras espécies
de animais racionais? Na visão neoplatônica, sim. Segundo nos reporta Agostinho, os neoplatônicos diziam haver três espécies de animais
racionais: os homens, os demônios e os deuses (cf. Cidade de Deus, l.
VIII, c. 15). Cada tipo de “animal racional”, por sua vez, traz uma
forma de corporeidade própria. Os homens possuem corpo terreno;
os demônios, corpo aéreo – são “espíritos dos ares”, como dizia S.
Paulo (Ef 6,10); e os deuses, que têm corpo celeste ou etéreo. Os
homens e os deuses são os dois extremos do gênero “animal racional”.
Entre estes dois extremos se colocam, pois, os demônios. Estes têm
em comum com os deuses a imortalidade e com os homens as paixões
da alma. Já os deuses são etéreos, impassíveis e imortais. Por causa
desta posição mediana dos demônios, Porfírio atribuiu-lhes um papel
de mediadores entre os deuses e os homens. Na Cidade de Deus, Agostinho busca refutar esta atribuição de mediação dada por Porfírio aos
demônios e busca mostrar que o único mediador entre os homens e
Deus (e não “os deuses”) é Cristo (Cidade de Deus, l. IX, c. 15). Na
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A ÁRVORE DE PORFÍRIO...
visão cristã, em lugar de demônios e deuses teremos, então, demônios
e anjos. E o nome “demônio” perde o seu sentido neutro, de divindade
inferior, que, na visão neoplatônica podia ser boa ou má, ou às vezes
boa e às vezes má, e recebe um sentido exclusivamente negativo, identificando-se com o “diabólico”, o “satânico”. Seja como for, a perspectiva cosmológica neoplatônica (Apuleio, Porfírio) permitia pensar espécies diferentes de “animal racional”, e não somente uma única espécie, ou seja, o homem.
Com “animal racional” abre-se, pois, uma totalidade nova. Aqui a
vitalidade ou animalidade, o ser-alma ou vida, é regida pela razão,
melhor, pelo logos. Nós estamos, pois, no domínio chamado “logikón”,
pois é regido pelo logos. É a potência do légein, ou seja, a capacidade
intelectiva, que inclui as seguintes capacidades: apreender o ente enquanto ente, isto é, apreender o ser; apreender a inteligibilidade do
ente, os princípios e as verdades primeiras do todo do ente; universalizar,
isto é, recolher na unidade do conceito a multiplicidade dos indivíduos, transcendendo, assim, a imediatez do sensível; receber em si mesmo, ao modo intelectivo, todas as formas de ser; poder conhecer todos os entes. Abre-se, assim, toda a vastidão, a profundidade e a
originariedade do ser.
O “animal racional” tem, pois, no pensamento e no conhecimento o princípio de sua animação, isto é, de sua vitalidade, com suas
capacidades e atividades. Entre os ânimos pensantes, porém, se introduz uma diferença substancial. Há os que são imortais e os que são
mortais. A mortalidade, com efeito, contingencia o intelecto humano
de maneira radical. No mortal, o intelecto é razão, isto é, o noûs se faz
diánoia: pensamento discursivo. Este, com efeito, não é imediatamente intuitivo. Para alcançar o universal, precisa do trabalho do conceito,
carece de abstrair do sensível o inteligível, formular conceitos em palavras, dar voz aos seus discursos mentais, trazer para a forma da proposição o que quer dizer, progredir de verdade em verdade por meio do
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MARCOS AURÉLIO FERNANDES
raciocínio, para elaborar o conhecimento. A intelecção do espírito
imortal é intuitiva, isto é, imediata; a do mortal é raciocinativa, ou
seja, mediata.
3.7 Homem
O homem é a espécie de ânimo pensante que é determinado pela
sua mortalidade, isto é, pela sua finitude. “Homem é animal racional
mortal”. A razão é a marca da finitude do intelecto humano. Para o
homem, como acabamos de ver, a apropriação do inteligível é uma
conquista, que requer a fadiga do conceito e o esforço da palavra. Para
conhecer, o homem precisa conceituar, multiplicar os conceitos,
sintetizá-los no juízo, conjugar os juízos entre si por meio do raciocínio, e, ao final, o que ele consegue conhecer e dizer não exaure toda a
riqueza da realidade. Esta como que se lhe dá, mas sempre em fuga,
em retraimento. No entanto, para o homem a razão é, tanto quanto
marca de sua finitude, marca também de sua transcendência. Pois
por ela ele libera-se da imediatez do sensível e projeta-se no espaço
de liberdade do inteligível. Por isso, ao homem não é dado ter
somente um ambiente, mas também um mundo. Com a razão se
abre também o espaço da liberdade, tanto no sentido negativo de
desvinculação do ambiente, quanto no sentido positivo de autodeterminação no seu mundo. A razão concede ao homem voltar-se
para o ser, para a verdade e para o bem. Para a verdade, no seu
comportamento teorético; para o bem, no seu comportamento
prático. Ao arbítrio da sua razão é concedida, pois, a condução da
vida do homem. No homem, com a razão e a liberdade, aparece a
dimensão do espírito na ordem da substância. Emerge, pois, não
somente a consciência do mundo, mas também a autoconsciência.
Esta, por sua vez, se caracteriza pela capacidade de reflexão. O homem, de fato, percebe-se numa corporeidade vivente e sensível, apre-
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A ÁRVORE DE PORFÍRIO...
endendo o próprio corpo não como objeto, mas como dimensão de si
mesmo; sente e sente o próprio sentir, conhece e conhece o próprio
conhecer, percebe-se inteligindo e sentindo e, neste perceber-se, é presente a si mesmo de modo imediato; enfim, percebe-se como uma
vida que tem o poder de, pela sua reflexão, possuir-se e se
autodeterminar. Daí a capacidade de criação do homem, a projeção de
seu espírito no mundo, como técnica, arte, ciência, filosofia, religião.
No quadro neoplatônico, o homem se encontra colocado no horizonte de dois mundos: o mundo corpóreo, no qual ele se encontra
radicado, e o mundo incorpóreo, para o qual ele transcende por meio
de sua razão. Com ele, a substância alcança sua mais perfeita forma no
mundo corpóreo: a forma da autosubsistência do espírito, que é a
liberdade. Ele é a espécie especialíssima, pois nele o corpóreo e o
incorpóreo se unem.
A árvore de Porfírio, portanto, é uma ascensão de modo em modo
de ser, do corpo ao espírito. É um caminho de um crescendo da
substancialidade. Normalmente, identificamos a substância com sua
forma mais ínfima e elementar: a substância corpórea. O que nos é
primeiro segundo o processo do conhecimento, é, porém o último
segundo a ordem do ser. E vice-versa: o que é último no processo do
conhecimento é o primeiro na ordem do ser. A escada predicamental
nos faz subir, de nível em nível, para uma compreensão mais originária
e apropriada de substância: a do espírito, ou seja, a autosubsistência do
ser livre que é capaz de conhecer a verdade e de querer o bem. Quanto
mais subimos a escada, tanto mais podemos intuir o que é a vigência
de ser chamada substância: o ser se torna viver; o ser e viver se torna
conhecer e querer; o conhecer racional se torna, enfim, intuição intelectual. E, na intuição intelectual, o inteligível finalmente se revela no
vigor de sua vigência. Vislumbramos, assim, a ordem do inteligível
nas palavras fundamentais, que nos remetem para além de todas as
categorias: Alma, Intelecto, Uno/Bem.
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MARCOS AURÉLIO FERNANDES
3.8 O indivíduo
Percorremos até agora a escala predicamental da substância em sua
dinâmica dialética até a espécie especialíssima: o homem. Entretanto,
não chegamos ainda ao fim. Há ainda o domínio dos indivíduos. O
que é o indivíduo enquanto indivíduo? Como se compreende o ser da
individualidade como tal? A língua grega nos dá um aceno, pois, o
ente individual é denominado de “átomon”: o não-dividido, o indiviso.
O adágio medieval o definiria: indivisum in se et divisum a quolibet
alio – não dividido em si mesmo e dividido, isto é, distinto em relação
a qualquer outro que seja. O indivíduo é, pois, cada vez, um, cada vez
ele mesmo, e, por outro lado, é cada vez outro (alius) em relação a
todos os outros indivíduos. A unidade do indivíduo, porém, é diversa
daquela unidade do universal, ou seja, a da espécie e do gênero, pois
esta é unidade da multiplicidade, e a unidade do indivíduo é uma
unidade pura e simples, singular, ao modo de unicidade. O indivíduo
não somente é numericamente uno, mas é também único. Ele é uma
presença singular; uma realização “sui generis”; uma palavra da realidade, que é dita apenas uma única vez. É “fora de série”. Não tem outro
que lhe seja igual. É irredutível a toda categoria, pois toda categoria
universal ressalta o que é comum entre vários indivíduos. Nenhum
intelecto humano pode, com efeito, apreender intelectivamente e dizer a individualidade deste indivíduo como tal. Por isso, os gregos
antigos diziam que do indivíduo não há ciência.
Nos âmbitos das espécies se dava, sempre de novo, uma cisão ou
divisão entre opostos, introduzindo, assim, a diferença específica, que
era uma diferença não acidental, mas essencial. Já os indivíduos de
uma única espécie não se diferem essencialmente uns dos outros, mas
sim acidentalmente, melhor, numericamente, e, melhor ainda, qualitativamente. Isto quer dizer que a unicidade do indivíduo não o exclui
da comunhão ontológica com os demais indivíduos de sua espécie,
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A ÁRVORE DE PORFÍRIO...
pois, embora ele seja numericamente um em si mesmo, é uno por
espécie com os outros que compartilham da mesma e comum essência. Por um lado, platonicamente, pode-se dizer que o indivíduo se
mostra em sua individualidade como uma convergência única e
irrepetível de “acidentes”, isto é, de propriedades e características, como
um “caso único”. Contudo, Aristóteles deu maior peso ontológico ao
indivíduo, ao tomá-lo não apenas como uma unidade acidental, e sim
como uma unidade substancial, ao designá-lo como “substância primeira” (ousía prôtê). Assim, o indivíduo aparece como o sujeito único
de manifestações ou propriedades acidentais que existem em outros,
mas que, numa tal convergência, se encontra somente nele. Além disso, aristotelicamente, o ser individual é dito substância primeira também do ponto de vista lógico, enquanto é imediatamente e por excelência o sujeito (hypokeímenon, suppositum, subiectum) de que se afirmam ou se negam diversos predicados, e que não é ele mesmo predicado
de nenhum sujeito.
Nos dois extremos, pois, da escala predicamental, se encontram a
substância em seu sentido o mais vasto e indeterminado e a substância
do indivíduo da espécie homem, a substância em seu sentido mais
concentrado e determinado possível.
À guisa de conclusão
Do exposto, percebemos que a escala predicamental em Porfírio
não é a simples articulação de conceitos vazios. Pelo contrário, os conceitos lógicos, aqui, são prenhes de uma densidade ontológica, de uma
densidade que se dá em múltiplos planos ou dimensões. Do ponto de
vista lógico, vemos uma escala que vai descendendo, do gênero
generalíssimo, que é a substância pura e simples até à espécie mais
específica, que é o homem, e, ainda até à substância primeira e às suas
diferenças acidentais, que é o ente individual. Do ponto de vista
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MARCOS AURÉLIO FERNANDES
ontológico e henológico, porém, somos elevados da substância dita
como gênero generalíssimo até a espécie especialíssima e seus indivíduos e, na sua vitalidade pensante e mortal, abre-se a totalidade do ser,
em sua vastidão como universo/natureza, mas também em sua altura/
profundidade e originariedade, à medida que, na dimensão do inteligível, o intelecto humano vislumbra aquilo que está além de toda a
substância e de todo o ente, como Tríade divina ou, enfim, o Uno/
Bem como Puro Agir. Esta elevação, pela qual o mesmo, ou seja, o
ser, a unidade, a identidade, é retomado em diversos níveis, se chama
analogia. Cada nível tem o ser que lhe compete ter: ser como mero ser,
como ser e viver, como ser, viver e inteligir. Vemos, assim, muitos
modos de ser, ordenados hierarquicamente, onde o que o ser se diz em
modos cada vez mais originários, à medida que subimos do corpo ao
vivente, do vivente ao animal, do animal ao homem, do homem à
Natureza, da Natureza à Alma universal, da Alma universal ao Intelecto arquetípico e do Intelecto ao Uno/Bem. A árvore de Porfírio, de
fato, é uma elevação, uma pura elevação de caráter onto-henológico.
44
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011
DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
DUNS SCOTUS SOBRE A
CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS
CONTIDAS NAS ESCRITURAS
Roberto Hofmeister Pich ∗
Introdução **
O Prólogo de Duns Scotus à Ordinatio contém diversas abordagens sobre a natureza da teologia. A parte I traz discussões sobre fé e
razão num estilo “antiaverroísta” e oferece uma definição do proprium
da teologia, de acordo com o conceito de “sobrenatural”1. Num sentido específico, a “necessidade”2 do conhecimento sobrenatural (os artigos da fé e as verdades das Escrituras) é defendida. Nas partes III e IV,
é possível encontrar uma análise do estatuto da teologia como scientia,
e ali Scotus avalia criticamente o modo como o “conhecimento cientí-
*
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/Porto Alegre.
**
As divisões I e II deste estudo correspondem essencialmente às divisões I e II do ensaio
“Duns Scotus on the credibility of Christian doctrines”, de minha autoria, submetido aos
Anais do XII Congresso Internazionale di Filosofia Medievale (SIEPM), Palermo, 16-22
settembre 2007, com publicação prevista para o ano de 2009. Naquele ensaio, a “via de
convencimento racional” enfatizada foi a quinta, a saber, “sobre a razoabilidade dos
conteúdos” das Escrituras Sagradas. A divisão III, do presente estudo, ocupando pelo
menos a metade do texto, é totalmente original. Este outro estudo de caso, pois, pode
ser entendido como continuação da investigação da Segunda Parte do Prólogo de Duns
Scotus à Ordinatio, em torno do tema da credibilidade dos artigos da fé.
1
Cf. PICH, R. H. 2003, p. 15-218.
2
Sobre essa “necessidade” cf. CROSS, R., 1999, p. 10-12; PICH, R. H. 2005, p. 7-59.
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011
45
ROBERTO HOFMEISTER PICH
fico” é definido por Aristóteles, nos Segundos analíticos3. Na parte V,
Scotus explana o sentido em que a “nossa teologia” pode ser tomada
como uma “ciência prática”, reconsiderando a teoria aristotélica da
“práxis”, pois o objeto adequado do nosso conhecimento teológico necessário é a essência divina, e conhecê-la como um objeto em conformidade com e em anterioridade ao amor de Deus – à “reta volição” –
consiste num conhecimento prático4. Na deveras ignorada parte II,
que aparece somente no Prólogo da Ordinatio5, e não nos Prólogos da
Lectura e da Reportatio parisiensis I A, Scotus pleiteia pela suficiência
das Escrituras contra a idéia de que elas não trazem informação suficiente sobre o conhecimento sobrenatural necessário aos peregrinos.
Proponho ler a parte II como lidando também como uma questão epistemológica que pertence ao discurso teológico. Mais do que
uma tentativa (I) de mostrar a suficiência das Escrituras, Scotus expõe
(II) a credibilidade das suas verdades “necessárias”, incluindo argumentações apologéticas a favor da veracidade das Escrituras, concebendo,
ao final, a idéia de um raciocínio convincente que, potencialmente,
leva descrentes a crer ou a tomar algo – a saber, os artigos da fé e/ou as
doutrinas das Escrituras – por verdadeiro6. (III) Dois desses raciocínios
– que encontram um ao outro sob o corolário “autoridade e testemunho” – serão então explorados com mais detalhes, antes das Considerações Finais, que trarão breves apontamentos sobre o possível lugar
de tais raciocínios de convencimento na filosofia da religião contemporânea. Adianto ainda que, na divisão (III) deste estudo, permitirme-ei certa ousadia como intérprete dos textos em apreço, o que não
3
Cf. PICH, R. H. 2001.
4
Cf. KROP, H. A., 1987; MÖHLE, H. 1995, p. 13-157; BOULNOIS, 1998, p.
131-142.
5
Cf. DUNS SCOTUS. Ordinatio, prol. p. 2 q. un. n. 95-123; I, p. 59-87. “Utrum
cognitio supernaturalis necessaria viatori sit sufficienter tradita in Sacra Scriptura”.
6
Cf. também FINKENZELLER, J. 1961, p. 38.
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
deve, contudo, ser entendido como mera liberdade interpretativa.
Entendidos os objetivos e os pressupostos metodológicos da argumentação “dialética”, mas, não obstante isso, condensada do texto scotista,
o esforço interpretativo de minha parte será, pois, controlado, o quanto for possível, por praenotanda.
I Suficiência das Escrituras
Para atingir a intenção própria de Scotus nesse tratado sobre a
credibilidade das Escrituras como um todo, é necessário prestar atenção na apresentação da sua questão e em qual é a sua real preocupação.
Se a sua formulação – “Se o conhecimento sobrenatural necessário ao
peregrino está transmitido suficientemente na Escritura Sagrada” –
aponta para uma intenção de conexão com a questão da parte I do
Prólogo, “sobre a necessidade de uma doutrina revelada [sobrenaturalmente]” ao ser humano no presente estado, Scotus, apesar disso, oferece um tratamento embaraçosamente curto do caput ora reproduzido. O que de fato ocorre é que o autor subsume a questão única da
parte II a uma análise da “verdade” das Escrituras e dos seus conteúdos.
A reflexão epistêmica sobre a teologia como um hábito de verdades
reveladas sobrenaturalmente acerca de Deus “própria” à parte II pode
ser bem visualizada somente se a relação entre suficiência e verdade
escriturística for analisada cuidadosamente.
O que é a questão sobre a “suficiência das Escrituras Sagradas” –
isto é, as Escrituras reconhecidas como “canônicas” pela Igreja Católica
Romana –, anunciada em Ordinatio prol. p. 27? É claro que ela está
ligada à parte I do Prólogo, onde Scotus desejava mostrar que há verdades que podem ser conhecidas somente sobrenaturalmente e que
essas são necessárias aos seres humanos num sentido “relativo” – “con7
Cf., por exemplo, DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 98; I, p. 60.
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ROBERTO HOFMEISTER PICH
dicionado” pela potentia ordinata de Deus: são necessárias para que o
ser humano alcance o seu fim último e sobrenatural, a saber, a visão e
a fruição de Deus8. Elas9 são conteúdos da livre10 “autorevelação” divina e são supostamente encontradas numa fonte básica de informação
correspondente: na Bíblia11.
Scotus não lida, aqui, com a verdade e a suficiência dos conteúdos
sobre Deus cuja fonte de informação é a tradição12. Autores medievais
normalmente consideraram as Escrituras e a tradição como fontes das
verdades reveladas de Deus13 – muito embora tenha sido notado que
8
Cf. Mann, W. E. 1999, p. 61.
9
A ênfase, aqui, residiria obviamente naquelas verdades teológicas que não podem ser
asseguradas por uma teologia natural, mas, por diversos motivos, são carentes de revelação ou comunicação divina especial. Nesses termos, e fazendo uso de linguagem
contemporânea, valeria para Scotus que, mesmo sendo “Escritura Sagrada” e “revelação” conceitos distintos, “são materialmente inseparáveis”; cf. ABRAHAM, W. J. 2005,
p. 588-589.
10
Cf., por exemplo, DUNS SCOTUS. Quaestiones quodlibetales. 1968, q. 14 n. [16]
63 p. 520-521: “Completa vero motione contingente ad intra, sequitur motio ad
extra; illa igitur tota est contingens, et per consequens immediate ipsius voluntatis, ut
principii. Nullum igitur intellectum creatum movet essentia ut essentia tanquam
motivum per modum naturae, sed omnem intellectionem illius essentiae, quam non
causat aliquod creatum, causat immediate voluntas divina”.
11
Cf. CROSS, R., 1999, p. 7s. Se as Escrituras são em absoluto um tópico teológico
para Scotus, elas o são como uma parte central da doutrina da revelação: não são
tratadas como tais, mas num sentido subordinado. Isso não deveria ser visto como um
sinal de ausência de orientação bíblica na teologia de Scotus; cf. DETTLOFF, W.
1993, p. 219s. Cf. também TODISCO, O. 1975, p. 24-31. Dado que a revelação é
a fonte do conhecimento sobrenatural de Deus, e as verdades reveladas relevantes estão
contidas nas Escrituras, é compreensível que a análise que Scotus presta a elas seja
situada dentro dos “princípios teológicos do conhecimento”; cf. SEEBERG, R. 1971
(Neudruck der Ausgabe Leipzig, 1900), p. 113-129.
12
Sobre os usos de traditio, tradere-tradi e traditus nas obras de Scotus, cf. sobretudo
BUYTAERT, E. M. 1965, p. 346-362 (especialmente p. 351-352).
13
Cf. CROSS, R., 1999, p. 156, nota 23, onde o autor sugere outras leituras acerca do
debate medieval sobre a Bíblia como a fonte da doutrina revelada.
48
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011
DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
Scotus, algumas vezes, adotou a “noção mais antiquada”, de que a Bíblia é a fonte única, sendo então o escopo restrito para aquilo que o ser
humano pode saber sobre a essência de Deus, seja na forma de princípios ali contidos ou de conclusões deduzidas (por exemplo, Ordinatio
prol. p. 2 n. 123)14. Por outro lado, o tratamento que Scotus dá a
diversos itens doutrinais envolve um apelo à tradição como fonte de
conteúdos teológicos – e ele explicitamente afirma que o Espírito Santo ensinou aos Apóstolos também coisas não escritas nos Evangelhos,
as quais os Apóstolos, então, (em forma escrita ou não) legaram per
consuetudinem às demais gerações de crentes15. Conectando isso à sua
eclesiologia, C. Balic enfatizou que, para Scotus, conclusões incluídas
nos artigos da fé não são ainda artigos, antes de serem assim declaradas
e explanadas pela Igreja16: mesmo com mais força, Scotus seguiu como
14
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 123; I, p. 87: “Unde multae veritates
necessariae non exprimuntur in sacra Scriptura, etsi ibi virtualiter contineantur, sicut
conclusiones in principiis; circa quarum investigationem utilis fui labor doctorum et
expositorum”. Cf. também CROSS, R., op. cit., p. 7-8, e p. 157, nota 24, onde ele
também cita essa passagem, bem como Ordinatio prol. p. 3, q. 1-3 n. 204, 207 p.
137-138, 140.
15
Cf. DUNS SCOTUS. Ord. I d. 11 q. 1 n. 20; V, p. 7-8: “Ad rationem illam de
Evangelio dico quod ‘Christum descendisse ad inferna’ non docetur in Evangelio, et
tamen tenendum est sicut articulus fidei, quia ponitur in Symbolo apostolorum. Ita
multa alia de sacramentis Ecclesiae non sunt expressa in Evangelio et tamen Ecclesia
tenet illa tradita certitudinaliter ab apostolis, et periculosum esset errare circa illa quae
non tantum ab apostolis descenderunt per scripta sed etiam quae per consuetudinem
universalis Ecclesiae tenenda sunt. (...). Multa ergo docuit eos Spiritus Sanctus, quae
non sunt scripta in Evangelio: et illa multa, quaedam per scripturam, quaedam per
consuetudinem Ecclesiae, tradiderunt”. Cf. CROSS, R., 1999, p. 8.
16
Cf. DUNS SCOTUS. Ord I d. 5 p. 1 q. un. n. 26; IV, p. 24-25: “Ad dictum
Richardi. Si intendit reprehendere Magistrum ibi, sicut ex verbis eius apparet, – cum
doctrina Magistri, et praecipue ista, authenticetur per concilium generale in capitulo
praeallegato, nego Richardum tenendo Magistrum. Et quod dicit Magistrum multas
auctoritates adducere contra se, Magister bene exponit eas, (...); non autem nullam habet
pro se auctoritatem, sed habet illam universalis Ecclesiae in capitulo praeallegato, quae
maxima est, quia dicit Augustinus Contra epistolam Fundamenti: “Evangelio non
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“norma positiva” o magistério eclesiástico no que diz respeito às verdades que “a Igreja” declarava como pertencentes ao depósito da fé. Para
a especulação teológica sobre conteúdos revelados, mas particularmente
“obscuros”, o magistério atuaria, então, como uma “norma negativa”
de permissão: Si auctoritati Ecclesiae vel auctoritati Scripturae non
repugnet17. Não surpreende, pois, que num sentido posterior a Igreja é
fonte de verdades reveladas: como R. Cross aponta, “as doutrinas do
caráter sacramental e da transubstanciação” não são ensinadas na Bíblia, nem na tradição dos Apóstolos; antes, Scotus entende que são
ensinadas pelo Papa Inocêncio III e deveriam ser aceitas “por causa da
autoridade da Igreja Romana”18.
Deixando de lado a eclesiologia, um laço entre a parte I e a parte II
do Prólogo está bem amarrado: caso se pergunte como o ser humano
pode conhecer verdades sobrenaturais, a resposta é que elas foram definitivamente reveladas aos Primeiros Apóstolos, e encontram-se agora fixadas nas Escrituras canônicas da Igreja. Porém, vale lembrar, com
a devida ênfase, que, na parte II, a pergunta é: “É o conhecimento
sobrenatural necessário ao peregrino transmitido suficientemente
[sufficienter] nas Sagradas Escrituras”? Ou, numa boa paráfrase: o que
se sabe acerca de Deus e dos meios para alcançar o seu favor, é isso algo
crederem nisi Ecclesiae crederem catholicae”, – quae Ecclesia sicut decrevit qui sunt libri
habendi in auctoritatem in canone Bibliae, ita etiam decrevit qui libri habendi sunt
authentici in libris doctorum, sicut patet in canone, et post illam auctoritatem canonis non
invenitur in Corpore iuris scriptum aliquod ita authenticum sicut magistri Petri in
capitulo praeallegato”.
17
Cf. BALIC, C. 1957, p. 1813; ID. 1966, p. 215-216; ID., 1967, p. 107-109, p.
123-124. Cf. também AUER, J. 1966, p. 165-166.
18
Cf. CROSS, R., 1999, p. 8, e também p. 157, nota 26. O autor cita ali DUNS
SCOTUS. Ordinatio. Ed. L. Wadding., vol. VIII, IV d. 6 q. 9 n. 14 p. 344, para
“caráter [sacramental]”, e Ordinatio. Ed. L. Wadding. vol. VIII, IV d. 11 q. 3 n. 13 p.
616-617, para o assunto da “transubstanciação”. O ensino scotista acerca daquelas
“duas fontes” de revelação foi explanado cuidadosamente por FINKENZELLER, J.
1961, p. 19-37 (Parte 2) e p. 37-80 (Parte 3).
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acerca do que as Escrituras Sagradas realmente informam “suficientemente” os seres humanos, de maneira que todas as notícias que se têm
necessariamente de saber estão contidas naquelas folhas19?
A expressão sufficienter carece de explicação. Nos três argumentos
contrários, no início da questão (Ordinatio prol. p. 2 n. 95-97), propondo sistematicamente que o conhecimento sobrenatural necessário
ao peregrino não está transmitido suficientemente nas Escrituras Sagradas, “suficientemente” sugere, de fato, a idéia de que se pode encontrar ou não todas as verdades de que se precisa, ao menos minimamente, para viver de acordo com a ordenação de Deus e buscar a sua vontade. Porém, os argumentos não enfatizam esse aspecto “quantitativo”, mas outros significados de suficiência: (i) para os que viviam sob
a autoridade da Lei, as verdades escriturísticas – incluindo o Novo
Testamento – não eram “necessárias” em sua inteireza, no sentido de
serem “supérfluas”, “dispensáveis”, pois a lei natural no Pentateuco já
era “suficiente”20. Se “não-suficiente” significaria, ali, “não-necessário”
ou “dispensável”, no sentido positivo “suficiente” significaria “necessário” ou “requerível”, para algumas pessoas, em algum momento –
embora tenha-se de admitir que, na resposta a esse quod non, Scotus
advoga diretamente por uma “suficiência quantitativa” e indiretamente pela “não-superfluidade” do Segundo Testamento: para os judeus,
uma doutrina inspirada modesta, baseada na lei natural (na forma dos
“dez mandamentos”) “pôde ser suficiente”21.
19
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 95; I, p. 59: “Quaeritur cognitio
supernaturalis necessaria viatori sit sufficienter tradita in Sacra Scriptura”.
20
ID.: “Quia cognitio necessaria numquam defuit humano generi; Scriptura sacra non
erat in lege naturae, quia Moyses primus scripsit Pentateuchum, nec tota sacra Scriptura
erat in lege mosaica, sed tantum Vetus Testamentum; ergo etc.”
21
Ibid., n. 121 p. 86: “Ad rationes principales. Ad primam rationem. Ad minorem
respondeo quod lex naturae paucioribus fuit contenta, quae memorialiter per patres ad
filios devenerunt. Illi etiam magis erant praediti in naturalibus, et ideo modica doctrina
inspirata potuit eis sufficere. Vel aliter dicendum est ad istud et ad illud de lege Moysi,
quod ordinatus Scripturae progressus ostendit eius decorem”.
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(ii) Uma idéia similar é repetida na premissa menor do segundo argumento contrário: as Escrituras (não apenas o Antigo Testamento) contêm
muitas coisas “supérfluas” (cerimônias, estórias etc.). “Supérfluo” significa
coisas ou verdades “cujo conhecimento não parece necessário para a salvação”. Uma espécie de crítica ao caráter literário das Escrituras, baseada na
qualidade “intelectual” dos seus autores, deveria ser notada aqui, a partir da
premissa maior: qualquer autor de ciências humanas (obras sobre formas
de saber próprias ao ser humano), quanto mais agudo no seu intelecto
mais ele evita a superfluidade na transmissão de conteúdos ou idéias. O
argumento leva à conclusão de que autores dos livros escriturísticos falham em mostrar tal intelecto aguçado22, desvalorizando, portanto, os
seus próprios escritos. “Supérfluo” se opõe a “central”, “essencial” ou, ainda, “manifestamente importante”23.
(iii) Um terceiro aspecto de “suficiência” aponta para a “clareza suficiente” dos conteúdos necessários encontrados nas Escrituras. Por
exemplo, sobre muitas sentenças ali encontradas não é conhecido “com
certeza” (certitudinaliter) se são tomadas como pecados ou não. E parece que de muitos conteúdos nas Escrituras é importante saber precisamente o juízo que recebem – afinal, é um conhecimento necessário
22
Ibid., n. 96 p. 59: “Item, quicumque auctor scientiarum humanarum quanto acutior
est intellectu tanto plus vitat superfluitatem in tradendo; sed in sacra Scriptura videntur
contineri multa superflua, ut caeremoniae et historiae multae, quorum cognitio non
videtur necessaria ad salutem; ergo etc.”
23
A resposta de Scotus ao segundo argumento ad contra revela aspectos interessantes da
sua posição acerca da interpretação bíblica: o sentido literal e os sentidos não-literais
(analógico, moral ou tropológico e anag ógico ou espiritual) das Escrituras podem ser
intuídos ali; cf. ibid., n. 122 p. 86: “Ad secundum dico quod dulcius capitur quod
latet sub aliqua sententia litterali quam si esset expresse dictum: et ideo ad devotionem
confert, illa quae expressa sunt in Novo Testamento, sub figura velata fuisse in Veteri,
hoc quoad caeremonias; sed quoad historias, ambo sunt exempla legis declarativa”.
Breves, porém úteis observações sobre interpretação bíblica na Idade Média podem ser
encontradas em FRÖR, 1964, p. 20-23. A obra clássica sobre a interpretação bíblica
na Idade Média é, reconhecidamente, DE LUBAC, H. 1959, 1964.
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para a salvação saber se alguma coisa que eu faço é ou não um pecado
mortal. Se eu não estou certo se algo é ou não um pecado mortal,
provavelmente não o evitarei “suficientemente”. Nesse caso, não é verdadeiro que o conhecimento necessário à salvação é transmitido suficientemente no Livro Sagrado, de modo que os seres humanos terão de
apelar, talvez, a uma outra fonte24. “Suficiência” significa “clareza suficiente”, e uma “inclareza” deveria ser uma “não-suficiência” que mina o
propósito de um escrito. É ilustrativo checar o que Scotus responde a
essa terceira objeção. Apenas é o caso que muitas verdades necessárias
contidas nas Escrituras não são claramente expressas nelas – como casos de “silêncio oportuno” (Orígenes) –, mas elas estão contidas virtualmente nas verdades lá expressas de modo claro, tal como conclusões
estão incluídas em princípios. A investigação cuidadosa de princípios e
conclusões foi “a obra útil” (utilis labor) dos doutores e expositores das
Escrituras (respeitados pelo seu específico procedimento científico, que
pertence à teologia, isto é, apresentar conclusões metodológicas, partindo dos princípios contidos de modo explícito nas Escrituras25).
Como um textus authenticus referente a Ordinatio prol. n. 123 dá a
entender, é próprio a uma ciência, como é, então, a um escrito intelectualmente respeitoso como as Escrituras cristãs, possuir princípios capazes de explanar “suficientemente” outras questões implícitas26.
24
Cf. DUNS SCOTUS, Ord prol. p. 2 q. un. n. 97 p. 59: “Item, multa sunt de quibus
non cognoscitur certitudinaliter ex Scriptura utrum sint peccata vel non; quorum
tamen cognitio necessaria est ad salutem, quia nesciens aliquid esse peccatum mortale,
non sufficienter vitabit illud; ergo etc.”
25
Ibid., n. 123 p. 87: “Ad tertium, Origenes in homilia De arca Noe: “In Scriptura
super hoc opportunum videtur habitum silentium, de quo sufficienter consequentiae
ipsius ratio doceret”. Unde multae veritates necessariae non exprimuntur in sacra
Scriptura, etsi ibi virtualiter contineantur, sicut conclusiones in principiis; circa quarum
investigationem utilis fuit labor doctorum et expositorum”.
26
Ibid., n. 123 p. 87: “Loco In (1) – doceret (3) textus authenticus: “Nulla scientia
omnia scienda explicat, sed illa ex quibus sufficienter alia elici possunt”.
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Assim, embora seja verdade que, em cada resposta de Scotus, poderse-ia descobrir algo sobre o seu entendimento acerca da interpretação bíblica27, o ponto importante é que, mesmo se a questão da parte II devesse
ser entendida, parcialmente, como uma questão sobre a completitude
quantitativa de informação concernente a verdades reveladas necessárias,
“suficiência” de verdades reveladas tem a ver também, e talvez primariamente, com predicados como (i) “requerível”, (ii) “manifestamente importante” e (iii) “suficientemente claro” – onde as últimas duas características qualificam um livro como “intelectualmente não-depreciável”. Fica
evidente, agora, que a expressão sufficienter, enquanto qualifica a transmissão de verdades, poderia ser traduzida como “de um modo satisfatório”,
“de um modo aceitável”, “de um modo racional preferível”. Deveria ser
considerado surpreendente o que vém a seguir, a saber, que a suficiência
para a contenção das verdades necessárias aos peregrinos depende da “verdade” das Escrituras Sagradas como um todo?
Se “suficientemente” significa, então, “de um modo racional preferível” ou derivados, é menos surpreendente que Scotus não discute
diretamente se a “suficiência” é alcançada nas Escrituras. Ele discute a
“verdade” das Escrituras, e esse é o “corpo da questão”, ocupando quase
inteiramente a parte II28, deixando para a “Resposta principal” não
27
Cf. BETZENDÖRFER, W. 1931, p. 224; FINKENZELLER, J., 1961, p. 43-49;
DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 3 q. 1-3 n. 126, 184 p. 89-90, 124. Que o tópico da
interpretação bíblica – independentemente da suspeita de que comentários sobre a Bíblia,
escritos por ele, tenham sido perdidos – não é uma matéria enfatizada por Scotus nas suas
próprias obras conhecidas, isso é indicado não apenas pela usual observação de que ele cita
Aristóteles mais freqüentemente do que as Escrituras, mas também pelo fato de que o item
sistemático do lugar das Escrituras na teologia de Scotus está, na maior parte das vezes,
ausente nas sínteses do seu pensamento teológico; cf., por exemplo, AUER, J. 1954, p.
167-175; BALIC, C. “Duns Scot”, op. cit., p. 1801-1818; ID., 1959, p. 603-605;
TODISCO, O. 1968, p. 102-113 [resenha crítica de VEUTHEY, L. Jean Duns Scot.
Pensée]; HONNEFELDER, L. 2006, p. 403-406; DETTLOFF, W. 1993, p. 218-231.
Sobre o papel das Escrituras na teologia sistemática, cf. ainda CROSS, R. 2005, pp. 8-10.
Sobre o lugar da Bíblia na teologia escolástica, cf. LEINSLE, U. G. 1995, p. 41-51 (cf. p.
1-68 acerca dos aspectos próprios da teologia escolástica).
28
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 99-119 p. 60-85.
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mais do que um parágrafo e treze linhas na Edição Vaticana29. Mas é
em todo caso óbvio qual é a relação entre (A) “suficiência de verdades
reveladas necessárias transmitidas nas Escrituras” e (B) “verdade das
Escrituras”30? A responsio principalis começa com palavras impressionantes que parecem sugerir que há uma implicação em termos de “A
somente se B”. Afirma-se que, uma vez estabelecido contra os hereges
que a doutrina das Escrituras canônicas “é verdadeira”, deve-se ver, “em
segundo lugar”, se aquelas verdades “nas Escrituras” são “necessárias e
suficientes” para que o peregrino atinja o seu fim último31 “em particular”, isto é, “a visão e a fruição de Deus”, também no que diz respeito “às circunstâncias da sua desejabilidade”32 – onde a ênfase é posta,
sem dúvida, na afirmação da segunda parte da conjunção (“e suficientes”), pois a necessidade prática das verdades teológicas já foi estabelecida
na parte I do Prólogo. Scotus oferece, portanto, somente um parágrafo para determinar acerca de (A)!
Supondo que isso é fiel à intenção de Scotus, por que (B) deveria
ser relacionado a (A) como uma condição necessária? Scotus não parece duvidar do antecedente, ou seja, que “As verdades necessárias ao
peregrino estão contidas suficientemente-satisfatoriamente nas Escri-
29
Id. ibid., n. 120, p. 85.
30
Também BUYTAERT, E. M. “Circa doctrinam Duns Scoti de Traditione et de
Scripturae sufficientia adnotationes”, 1965, p. 360, vê, aqui, o aspecto estrutural mais
difícil da Parte II do Prólogo; naturalmente, outras dificuldades surgem por causa da
informação bem conhecida de que um tratado correspondente não pode ser encontrado nos outros Prólogos que Scotus escreveu às suas obras teológicas, e ele foi certamente
adicionado sem muito cuidado (parte dele talvez bem tardiamente, ou seja, depois de
1301) a um primeiro plano do Prólogo da Ordinatio, que ainda não o continha.
31
Cf. DUNS SCOTUS, Ordinatio prol. p. 2 q. un. n. 120 p. 85: “Habito igitur
contra haereticos quod doctrina Canonis vera est, videndum est secundo an sit necessaria
et sufficiens viatori ad consequendum suum finem”.
32
Ibid.: “Dico quod ipsa tradit quis sit finis hominis in particulari, quia visio et fruitio
Dei, et hoc quantum ad circumstantias appetibilitatis eis; (...)”.
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55
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turas”. Além da informação de que a visão e a fruição de Deus é o fim
último do ser humano, as Escrituras – desvelando as “circunstâncias da
[sua] desejabilidade”, por certo um direcionamento de crença e ação
dependendo da vontade ordenadora de Deus – (a) informam que tal
beatitude deveria ser dada após a ressurreição, tanto na alma quanto no
corpo, sem fim; (b) elas determinam quais são os meios necessários
para atingir o fim último, revelando também que eles são suficientes
(“assim” os dez mandamentos “foram comandados”! (Mt 19.17)); (c)
elas trazem “explanação” (explicatio) de tais meios necessários, tanto
daquilo que deve ser crido (credenda) quanto daquilo que deve ser
feito (operanda); (d) elas informam os crentes, numa medida possível
e útil, acerca das propriedades das substâncias imateriais33. Num textus
interpolatus34, a idéia de que verdades necessárias e suficientes (no duplo sentido de suficiência “quantitativa” e “qualitativa”) “estão contidas” nas Escrituras é ligada às três razões que testificam a necessidade de
doutrinas reveladas na solução da parte I do Prólogo: conhecimento
distinto do fim de um agente (Ordinatio prol. n. 13-16); como e de
que forma tal fim é atingível (Ordinatio prol. n. 17-18); meios naturais para alcançar o conhecimento do fim e os meios desejáveis para
esse não estão disponíveis (Ordinatio prol. n. 40-41).
A chave para entender a estrutura aparente da argumentação reside
tanto no duplo significado de “suficientemente” quanto no fato de
33
Id. ibid.: “(...); puta quod ipsa habebitur post resurrectionem ab homine immortali,
in anima simul et corpore, sine fine. Ipsa etiam determinat quae sunt necessaria ad
finem, et quod illa sufficiant, quia illa mandata, Si vis, inquit, ad vitam ingredi, serva
mandata (in Matthaeo), de quibus habetur in Exodo; horum etiam explicatio et
quantum ad credenda et quantum ad operanda explicatur in diversis locis Scripturae.
Proprietates etiam substantiarum immaterialium in ea traduntur, quantum possibile
est et utile viatori nosse”.
34
Ibid., n. 120 textus interpolatus, p. 85: “Ista conferendo ad tres rationes quibus
innititur solutio quaestionis praecedentis, patet quod Scriptura sufficienter continet
doctrinam necessariam viatori”.
56
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
que a parte II não é dirigida a teólogos, mas a não-crentes35. Para eles –
e, em realidade, para todos –, a idéia de Escrituras contendo todo o
conhecimento que um ser humano necessita sobre o seu fim último é
uma verdade sobrenatural “inevidente”: ela depende da crença de que
Deus revelou aqueles conteúdos a seres humanos e inspirou-os no escrever. Mas, se o que contém tais conteúdos necessários de modo próprio-suficiente associa-se ao que é inverídico, não-crível, ou não convincentemente racional, nesse caso, a crença na suficiência das Escrituras se torna, ela mesma, improvável. Se o modo de aproximar-se do
inevidente (o sobrenatural necessário aos seres humanos, contido nas
Escrituras) é o modo da crença (todo aquele que adere “racionalmente” ao inevidente pode fazê-lo somente através da crença, nem através
da opinião “somente”, nem, é claro, através de conhecimento científico evidencial), é importante que possam ser encontrados motivos para
“adquirir” a crença correspondente – certamente a aquisição de crença
envolve e, certamente, deve envolver o movimento da razão. Argumentar “a favor” do continente dessas verdades é justificar a crença
nelas: alguém pode crer na suficiência das Escrituras somente se ele
pode crer, por motivos razoáveis, nos seus conteúdos relevantes: somente se ele, por motivos razoáveis, pode tomar os seus conteúdos
por verdadeiros36.
35
Scotus faz com que o seu próprio relato da “verdade” das Escrituras seja precedido por
acusações-padrão que partem dos “heréticos”: partem de heresias ou de outras religiões
que condenam as Escrituras totalmente ou parcialmente. Cf. DUNS SCOTUS, Ord.
prol. p. 2 q. un. n. 99 p. 60: “– In ista quaestione sunt haereses innumerae damnantes
sacram Scripturam, totam vel partes eius, sicut in libris Augustini et Damasceni De
haeresibus patet”.
36
Cf. também a bela interpretação de BUYTAERT, E. M. 1965, p. 360, que, fazendo
referência a uma indicação de Scotus em Ordinatio prol. n. 69 acerca da importância de
oferecer motivos suficientes para assentir, vê, então, o objetivo de Scotus, na Parte II do
Prólogo, como uma dupla prova da “suficiência” (de duplici sufficientia Scripturae): que
a verdade das Escrituras deve ser provada suficientemente por razões naturais (uma
questão apologética); que as verdades reveladas necessárias são suficientemente transmitidas nas Escrituras (uma questão teológica).
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Se o propósito é, então, “adquirir crença”, não faz sentido entender a longa tarefa de provar “a verdade das Escrituras”, de conteúdos
revelados sobrenaturalmente e naturalmente inevidentes, isto é, a condição necessária destacada, em sentido estrito. É melhor tomar o sentido de “verdade” como “o que é racional tomar por verdadeiro” ou “o
que é racional crer ser verdadeiro”. Para o propósito de provar que é
racional tomar as Escrituras e os seus conteúdos como sendo verdadeiros, todas as oito (ou dez) vias de convencimento racional cumprem a
mesma função, não importa quais sejam os méritos de cada uma delas. Essas são as oito vias originais37: (1) as Escrituras são confirmadas
pelo cumprimento, no Novo Testamento, das profecias do Antigo
Testamento; (2) as Escrituras são internamente coerentes; (3) as Escrituras foram escritas por escritores portadores de autoridade; (4) as Escrituras foram cridas por uma comunidade bem-conhecida e honesta;
(5) os conteúdos das Escrituras são altamente razoáveis; (6) reivindicações religiosas não-cristãos podem ser mostradas como sendo irrazoáveis;
(7) reivindicações religiosas não-cristãs são efêmeras; (8) as Escrituras
contêm relatos de milagres38, atestados por Deus39.
37
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q un. n. 100 p. 61: “– Contra istas omnes in
communi sunt octo viae eas rationabiliter convincendi, quae sunt: praenuntiatio
prophetica, Scripturarum concordia, auctoritas scribentium, diligentia recipientium,
rationabilitas contentorum et irrationabilitas singulorum errorum, Ecclesiae stabilitas,
miraculorum limpiditas”.
38
Embora o tema dos milagres, o seu papel comparativo para o entendimento do
“sobrenatural” e a sua função na apologia da veracidade e da suficiência das Escrituras
Sagradas mereça revisão, há certo consenso de que o papel dos milagres na obra scotista
e na fundamentação dos loci recém mencionados é modesto – em especial se posto em
comparação àquele no pensamento de Tomás de Aquino; cf. BERCEVILLE, G. 2004,
p. 575-579.
39
Há uma adição textual em Ord. prol. n. 118-119 de dois modos posteriores de
convencimento, a saber, (9) os testemunhos externos dos infiéis e (10) a eficácia das
promessas. Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 118 p. 83-84: “// Nono
quoque loco adduci potest testimonium eorum qui foris sunt. Iosephus in libro XVIII
Antiquitatum pulcherrimum testimonium ponit de Christo, (...)”. Cf. id. ibid., n. 119 p.
84: “– Decimo et ultimo potest addi quod Deus non deest quaerentibus toto corde salutem”.
58
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
II Vias de convencimento racional
Em nenhum momento as provas da verdade das Escrituras são
igualadas a demonstrações estritas. A que tipo de argumentos
epistêmicos elas pertencem? Se elas não são meras formas de “persuasão” – argumentos da fé para a fé ou, então, a partir da mera autoridade40 –, elas são no máximo (mas significativamente) viae rationabiliter
convincendi acerca da veracidade das Escrituras. Elas devem conduzir a
razão ou conduzir alguém racionalmente à crença em algo. Elas não
levam ao conhecimento. Convencimento racional ou aceitabilidade
racional são critérios mais fracos e mais permissivos do que aqueles
que são estritamente epistêmicos41: certeza e evidência, necessidade e
conclusividade42. As viae levam a atitudes tais como “Não é irracional crer
que p”, “há boas razões para crer que p”, “há melhores razões para crer que
p do que para o contrário”. Num estilo contemporâneo, pode até mesmo
haver, aqui, algum nível de “justificação” para crer – ainda que não condições bastantes para ter conhecimento43. Cada uma das viae está, pois, em
busca de um critério de credibilidade da informação a ser crida, onde por
“credibilidade” entendo um motivo suficiente para que a razão humana vá
além da neutralidade doxástica e, simplesmente, chegue à crença, talvez
inclusive à crença “certa” – muito embora ainda intensificável, se melhores motivos viessem a ser oferecidos.
As razões para crer que as Escrituras são verdadeiras são de diferente natureza em cada via. Tipificá-las e descrever amostras desses argu40
Cf. IOANNES PONCIUS. 1968, n. 1 p. 43.
41
Cf., por exemplo, AUDI, R. 1998, p. 275-276.
42
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 4 q. 1-2 n. 208 p. 141-142. Sobre a teoria
scotista do conhecimento científico, cf. PICH, R. H. 2001.
43
Cf., por exemplo, CHISHOLM, R. M. 1989, p. 15-17, p. 63ss., sobre uma hierarquia qualitativa de predicados epistêmicos, os quais são capazes de marcar a fronteira
entre o razoável (começando com o “provável”) e o não-razoável (começando com o
“provavelmente falso”).
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ROBERTO HOFMEISTER PICH
mentos constituem o único meio de substanciar o que Scotus entende
por credibilidade como uma condição para um tomar-algo-por-verdadeiro racional. Faço uso de “credibilidade” ou mesmo de “verossimilhança” como qualidades dos objetos de crença ou proposições. Palavras latinas para esses termos seriam credibilitas44 e verisimilitas. Na
parte II, Scotus fala basicamente de incredibilis como o contrário daquilo que a verdade escriturística é45, e por uma vez de verisimilis46. O
discurso usual é sobre formas de verus como a qualificação objetiva e
doxástica que um conteúdo proposicional merece quando a crença
respectiva está ou pode comprovar-se estar associada a boas razões.
Assim, se Scotus, através de todas as viae, deseja levar entes racionais à
crença em alguma coisa, elas todas devem apresentar a condição de
credibilidade. Tenho discordância com interpretações que vêem a tarefa de convencimento racional, ou seja, a de mostrar a credibilidade
racional dos conteúdos das Escrituras apenas nos argumentos (5) e
44
CROSS, R. Duns Scotus on God, 2005, p. 7, põe a questão em Ordinatio prol. p. 2
também em termos da “credibilidade” das Escrituras Sagradas.
45
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 108 p. 71: “De credibilibus patet quod
nihil credimus de Deo quod aliquam imperfectionem importat; immo si quid credimus
verum esse, magis attestatur perfectioni divinae quam eius oppositum. Patet de Trinitate
personarum, de incarnatione Verbi, et huiusmodi. Nihil enim credimus incredibile, quia
tunc incredibile esset mundum ea credere, sicut deducit Augustinus De civitate XII cap. 5;
mundum tamen ea credere non est incredibile, quia hoc videmus”. Cf. ibid., n. 114 p. 7879: “Nota valde illud miraculum et illud capitulum, quia si quod credimus dicatur incredibile
esse, non minus est incredibile “homines”, inquit, “ignobiles et infimos, paucissimos, imperitos, rem ita incredibilem tam efficaciter mundo, et in illo etiam mundo doctis persuadere
potuisse”, mundus ut illud credat, sicut iam credidisse videmus, nisi per illos aliqua miracula
fierent, per quae mundus ad credendum induceretur”; ibid., n. 114 p. 79: “Quid enim
incredibilius quam quod ad legem contrariam carni et sanguini, doctores pauci, pauperes et
rudes, plurimos potentes e sapientes converterent?”
46
Ibid., n. 105 p. 65: “– De tertio, scilicet auctoritate scribentium, sic patet: aut libri
Scripturae sunt illorum auctorum quorum esse dicuntur, aut non. Si sic, cum damnent
mendacium, praecipue in fide vel moribus, quomodo est verisimile eos fuisse mentitos dicendo
‘haec dicit Dominus’ si Dominus non esset locutus?”
60
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
(6)47. Afinal, mesmo argumentos de autoridade – como talvez as primeiras quatro viae – podem ser tomados como satisfazendo a condição de credibilidade racional: expertise ou autoridade teórica, autoridade moral e testemunho veraz podem tipificar e, então, exigir
especificação de razões legítimas ou de motivos suficientes para levar o
intelecto à crença em alguma coisa48. A base para compreender o “convencimento racional” são as próprias viae. “Convencimento racional”,
portanto, parece ser um argumento fundado em credibilidade como
condição necessária para a crença racional, e ele constitui também um
meio – ou, até mesmo, uma certa técnica – para levar à crença racional,
isto é, para identificar, entre proposições não-evidentes, o que pode e o
que não pode contar como racionalmente crível.
Tais raciocínios para a verdade da Scriptura e, então, para a verdade
de que ela é um continente suficiente de conteúdos necessários sobrenaturais são dirigidos àqueles que não crêem: pagãos, hereges, seguidores de outras seitas e religiões (monoteístas ou não). Ao perceber a
razão mesma desse tratado sobre a credibilidade das Escrituras, podese encontrar os aspectos que permitem a identificação do tipo literário
do texto e do seu propósito sistemático na obra de Scotus. Ele é dirigido aos não-crentes, para prepará-los à fé cristã e aos seus conteúdos,
através do pensamento racional. Isso é feito (a) pela defesa da
credibilidade das Escrituras contra aqueles que simplesmente não crêem
nessas coisas, (b) pelo combate àqueles que negam de algum modo a
credibilidade delas e dos seus conteúdos (pessoas que rejeitam como
um todo ou parcialmente os conteúdos das Escrituras), (c) pela acusação de não-credibilidade dos conteúdos de outras religiões “e dos seus
47
Cf. BOULNOIS, O. 1968, 74-75. SONDAG, G. 1999, p. 131, especifica – desnecessariamente, eu creio – que os argumentos (1)-(4) certificam da verdade das Escrituras como
theologia tradita, os argumentos (5)-(6) apenas mostram que as doutrinas transmitidas
nelas estão de acordo com a razão. Eu diria antes: todas as viae pretendem mostrar que os
conteúdos escriturísticos como um todo são “críveis” ou “razoáveis de se crer”.
48
Cf. DUNS SCOTUS. Ordinatio. Ed. L. Wadding. vol. VII.1, III d. 23 q. un. n. 45, 17 p. 460-461, p. 471.
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próprios livros”. Nesse nível, Scotus se alinha com uma tradição de
apologia ligada aos Pais da Igreja, especialmente a Agostinho e a João
Damasceno, ambos autores que escreveram uma obra intitulada Sobre
as heresias (De haeresibus)49. Os tipos de endereçados são: (a) pessoas
que não aceitam coisa alguma da Bíblia, talvez numa referência a silentio
aos gnósticos50 (ou, então, aos pagãos, como os seguidores de religiões
greco-romanas); (b) hereges de tipo misto como os maniqueus, que
desaprovam especialmente o Antigo Testamento51; (c) os judeus, que
aceitaram apenas o Antigo Testamento52; (d) os muçulmanos, que rejeitam os dois Testamentos, formando, por assim dizer, uma nova
Escritura Sagrada53; (e) pessoas que começaram na fé como cristãs,
mas vieram a pensar diferentemente da Igreja Católica acerca das Escrituras, aceitando delas só o que desejam: nem as Escrituras como um
todo (afinal, renegam partes das mesmas), nem de acordo com a maneira como a Igreja Católica as entende. Elas simplesmente interpretam de modo equivocado as Escrituras Sagradas54.
49
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 99 p. 60: “– In ista quaestione sunt
haereses innumerae damnantes sacram Scripturam, totam vel partes eius, sicut in libris
Augustini et Damasceni De haeresibus patet”.
50
Cf. SONDAG, G. 1999, p. 129.
51
A base aqui são as obras De haeresibus e De utilitate credendi de Agostinho (em
passagens tomadas, talvez, de Henrique de Gand). Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p.
2 q. un. n. 99 p. 60: “Quidam haeretici de Scriptura nihil recipiunt. Quidam specialiter
improbant Vetus Testamentum, ut manichaei, sicut patet in libro De utilitate credendi
a, dicentes Vetus Testamentum esse a malo principio”.
52
Scotus parece se referir a Adversus iudaeos de Agostinho. Sobre a apologética cristã
adversus iudaeos cf. BARNARD, L. W. 1993, p. 394-398.
53
As palavras de Scotus contra Maomé em Ordinatio prol. n. 99 são particularmente
duras e ofensivas; cf. a nota seguinte. Cf. também SONDAG, G.1999, p. 129, nota 2.
54
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 99 p. 60-61: “Quidam tantum
Vetus Testamentum recipiunt, ut iudaei. Quidam aliquid utriusque, ut saraceni, quibus
immundus Mahometus miscuit alias immunditias innumeras. Quidam autem aliquid
dictum in Novo Testamento, puta haeretici diversi, qui sententias diversas Scripturarum
male intellectus habentes pro fundamentis, alias neglexerunt; verbi gratia ad Rom.
13: Qui infirmus est, olera manducet, et huiusmodi. Item, Iac. 5: Confitemini alterutrum
peccata vestra, (...)”.
62
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
Nesse sentido, Ordinatio prol. p. 2 é um tratado apologético: junto com uma defesa da fé cristã, ele objetiva trazer infiéis à crença nas
Escrituras onde as verdades correspondentes são encontradas. Mais
particularmente, a pequena “apologética” de Scotus é uma defesa da
preferibilidade racional da religião cristã. No quanto é de meu conhecimento, especialmente os estudos de Albert Lang55 ajudaram a estabelecer o significado dessa forma literária e do seu propósito sistemático. Os esforços por credibilitas externa às doutrinas reveladas cristãs
são típicos da Alta Escolástica56. Aqui, é importante mencionar o en-
55
Sobretudo LANG, A. Die Entfaltung des apologetischen Problems in der Scholastik des
Mittelalters. Freiburg – Basel – Wien: Herder, 1962.
56
Como uma nota marginal, isso e o que segue deveriam ser computados contra a
impressão de filósofos contemporâneos da religião que encontraram em autores medievais discussões notáveis sobre “o papel da fé na atividade teórica [theorizing]”, mas
nenhuma atenção “à questão se a fé é ela mesma racional” – o que se tornaria uma
matéria de interesse dentro do tópico “fé e razão” somente “no início do Esclarecimento”
(J. Locke); cf. WOLTERSTORFF, N. P. 1998, p. 541-542. A propósito, até o ponto
em que o programa de Locke para a aceitabilidade racional da verdade religiosa, além da
demonstração racional da existência de Deus, apela, para o lema de proposições teológicas reveladas acima dos poderes da razão, mas não-contrárias à mesma, ao testemunho
da profecia e dos milagres, teses “scotistas” sobre a credibilidade dos artigos da fé tangeriam aquela intenção. Porém, creio que o modo como Scotus estabelece credibilidade
ou defensabilidade racional pode acabar mais próximo de John Henry Newman do
que de John Locke: a proposta local scotista não é claramente “evidencialista” (mesmo
sem discutir, aqui, “evidência” ou “base evidencial” da crença em ambos os autores), ao
menos – e certamente – não num escopo tão restrito de reunião de evidências para o
dizer ou revelar algo da parte de Deus; além disso – e em especial –, admite expressamente a tradição ou acepções antecedentes relevantemente herdadas como meio legítimo de influência na formação de crenças. Nesse caso, em Scotus a tradição ou a verdade
transmitida, cujo “monitoramento” através de “razão”, “Escritura” e “experiência” talvez
pudesse estar presente em algum sentido, mas acerca da qual dúvidas sobre a possibilidade mesma de preservação da identidade original de significado através do tempo pouco
se veriam, pareceria ao fim necessária e, eventualmente, suficiente condição para crença
racional e, em tese, justificada. Para as menções nas sentenças anteriores, cf. MITCHELL,
B. 2005, p. 592-596. Não obstante tudo isso, na esteira da sua reabilitação do projeto
lockeano, SWINBURNE, R. 1992, p. 218-219, associa notavelmente o tratado scotista
sobre a credibilidade das verdades escriturísticas à sua própria defesa filosófica de base
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tendimento que Guilherme de Auvergne deu a essa construção literária e sistemática: no seu tratado De fide, ele utiliza probationes universales
para provocar a “credulidade” (credulitas) daquelas coisas que pertencem ao fundamento da religião: testimonium 57, confirmatio
miraculorum, valores elevados do cristianismo, a vida exemplar da comunidade cristã etc., poderiam – como formas de probationes – levar
pessoas à credulidade em concepções religiosas fundamentais58. A. Lang
mostra que razões de credibilidade de doutrinas reveladas cristãs eram
comuns e ricas entre pensadores franciscanos, mencionando Boaventura,
Bartolomeu de Bologna, Mateus de Aquasparta, Servasanto de Faenza,
e também Duns Scotus e os seus sequaces59. Ao que consta, as formas
de probationes são similares nesses autores, e elas usualmente servem
para enfatizar a origem divina da revelação que fundamenta o Cristianismo, em que as probationes são vistas como criteria para reconhecer
uma revelação divina. Em Scotus, probationes para reconhecer a revelação divina – talvez, mais manifestamente, os argumentos (1)-(4) e o
argumento (8) – e os demais tipos de probationes são postos num contexto diferente: no contexto da tarefa de mostrar que as Escrituras,
como um todo, são dignas de crença. Além disso, credibilidade e coerência racional de itens da fé cristã “não são” buscadas para dar uma
evidencial para o reconhecimento de verdades reveladas por Deus e da adequação das
Escrituras cristãs para a continência desses conteúdos revelados. Nos seus
“Acknowledgements”, cf. ibid., Swinburne escreve: “I have been conscious in writing this
book of an intellectual debt to various former members of the University of Oxford who
have argued that the claims of the Christian revelation stand up well before the tribunal
of an impartial reason – to Duns Scotus and John Locke; and especially to two former
members of Oriel College, Joseph Butler and John Henry Newman”.
57
Autoridade e testemunho verazes são fontes importantes de informação e de motivos
razoáveis para crer, de acordo com Scotus em Ord. III d. 23 q. un. n. 5-6 p. 461-462.
Elas são particularmente tocadas nas viae terceira e quarta (cf. abaixo, no texto principal), merecendo tratamento exaustivo em estudos futuros. Cf. também CROSS, R.
2005, p. 6-7.
58
Cf. LANG, A. 1964, p. 129-130.
59
Ibid., p. 130-134.
64
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
resposta a outros teólogos ou a pessoas ligadas à ciência em geral (aqueles
objetivos postos acima não são propriamente uma questão de intellectus
fidei). Elas são buscadas para mostrar que o cristianismo é uma religião
melhor, a única divina, racional e verossímil. Isso é algo a ser mostrado
a hereges e seguidores de outras religiões, e a filósofos também, mas
somente na medida em que alguém se preocupa com eles na qualidade
“de descrentes”. Por causa de tudo isso, o melhor contexto para situar
o lugar sistemático de Ordinatio prol. p. 2 é a atividade do teólogo,
que admite começar com crenças e atingir crenças. Ele lida com
inevidências. Ele reflete sobre o estatuto epistemológico da sua fé, o
qual é caracterizado pela “certeza”, como Scotus mostraria depois em
Ordinatio III d. 2360. Ele identifica princípios teológicos e de fato
clarifica racionalmente os artigos da fé (intelligentia fidei)61. Por outra
parte, assim que o teólogo quer que outras pessoas adquiram fé em
inevidências, realizem atos de crença em inevidências, a modo de uma
adesão firme e certa62, mostra-se bastante apropriado e desejável oferecer motivos racionais para tanto.
A seção mais extensa da parte II do Prólogo é, então, a exposição
das “oito vias de convencer racionalmente” descrentes e hereges contra
as suas opiniões (octo viae eas rationabiliter convincendi), combatendo
qualquer doutrina que põe em questão o caráter de ser-digno-de-tomar-por-verdadeiro das Escrituras. Apenas posso sugerir ler cada uma
das viae como um modelo para um tipo de critério de credibilidade
para os conteúdos de um escrito e para a própria Scriptura como um
todo. A identificação da condição de credibilidade pode ser vista na
premissa maior das probationes – dadas certas articulações que clarificam o seu enunciado.
60
Cf., sobre a fé adquirida e infusa, DUNS SCOTUS, Ord. III d. 23, q. un., n. 6, 8,
15-19, p. 462-463, p. 469-473.
61
Cf. LANG, A. 1964, p. 141, 145; cf. também O’CONNOR, E. D. 1968, p. 34ss.
62
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. III d. 23, q. un., n. 4-5, pp. 460-461.
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III Exemplo de dois tipos de critérios
3.1 A autoridade dos escritores
Inicialmente, faça-se uso da terceira via como um modelo para
um tipo de critério de credibilidade de certos objetos proposicionais.
A terceira via é “sobre a autoridade dos escritores” (de auctoritate
scribentium). Scotus começa com uma proposição disjuntiva: “Ou bem
os livros da Escritura são daqueles autores dos quais são ditos ser, ou
eles não são daqueles autores dos quais são ditos ser”. A disjunção
exclusiva é, em seguida, tratada de perto. Como ela é significativa no
contexto de defesa da credibilidade dos conteúdos das Escrituras? Aborda-se, de início, o primeiro elemento da disjunção, isto é, “Os livros
da Escritura são daqueles autores dos quais são ditos ser”. Independentemente disso, é correto afirmar que a proposição disjuntiva acima
responde por uma especificação que o restante do argumento de convencimento teria de fazer depender desta formulação geral e axiomática:
PM: “De Escrituras transmitidas quaisquer compostas de livros
atribuídos a diversos autores ou bem os livros componentes são daqueles autores dos quais são ditos ser ou os livros componentes não
são daqueles autores dos quais são ditos ser”.
É bastante simples completar o silogismo com a premissa que
qualifica as Escrituras cristãs:
Pm: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são Escrituras compostas de livros atribuídos a diversos autores”.
C: “Das Escrituras Sagradas cristãs ou bem os livros componentes
são daqueles autores dos quais são ditos ser ou os livros componentes
não são daqueles autores dos quais são ditos ser”.
A continuação imediata do argumento não indica com clareza como
a credibilidade das Escrituras será defendida. Afirma-se que, se os livros são mesmo dos autores aos quais são atribuídos, nesse caso, pres66
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
supondo-se que eles condenam a mentira, sobretudo aquela que afeta
a fé ou os hábitos fundados na fé, como pode ser “verossímil” (verisimile)
que autores – aqui, tidos como históricos – tais como Ezequiel e Jeremias
tenham mentido quando disseram em seus textos “isso diz o Senhor”,
se o Senhor não tivesse falado63? Por estranho que seja o argumento,
Scotus explora os dois elementos da disjunção, associados de algum
modo relevante à intenção presumível de não mentir ou, então, de
mentir por parte dos autores (caso em que a ilegitimidade autoral será
destacada). Para o primeiro caso, pode-se talvez propor:
PM: “Escrituras transmitidas, compostas de livros escritos pelos
autores aos quais são atribuídos e que condenam a mentira em matérias de fé e moral, são verossímeis nos seus conteúdos”.
Pm: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são Escrituras transmitidas compostas de livros escritos pelos autores aos quais são atribuídos e que condenam a mentira em matérias de fé e moral”.
C: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são verossímeis nos
seus conteúdos”.
A premissa maior parece ser, com efeito, “um princípio de
credibilidade” buscado dialeticamente: um princípio de verossimilhança
de proposições. O drama argumentativo maior, nesse contexto de
credibilidade dos conteúdos e das Escrituras da religião cristã, desenrola-se com respeito à premissa menor. Entendo que é a ela que a tarefa
de convencimento, por Scotus, primeiramente dá ênfase. Assim, Scotus
está consciente de que objeções são prontamente articuláveis. Por que
não pensar, por exemplo, (a) que aqueles autores foram enganados (ou
se enganaram), não que mentiram, ou então (b) que mentiram por
63
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 65: “– De tertio, scilicet
auctoritate scribentium, sic patet: aut libri Scripturae sunt illorum auctorum quorum esse
dicuntur, aut non. Si sic, cum damnent mendacium, praecipue in fide vel moribus, quomodo
est verisimile eos fuisse mentitos dicendo ‘haec dicit Dominus’ si Dominus non esset locutus?”
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causa dos benefícios (propter lucrum)64? Por que não levantar tais hipóteses acerca “daqueles autores” de textos? Tanto (a) quanto (b) enfraqueceriam ou retirariam a credibilidade “do que” eles escreveram. Scotus,
contudo, mostra que isso é improvável (expressão minha).
Em resposta, pois, Scotus insiste, num primeiro passo, que (a’) os
autores dos livros que registram conteúdos revelados não se enganaram65. O Doutor Sutil faz alusão a 2Cor 12,2-466, num relato do
Apóstolo Paulo67, que, como se verá, é de importância central para a
terceira via e merece ser reproduzido68: “Conheço um homem em
Cristo que, há quatorze anos, foi arrebatado ao terceiro céu – se em
seu corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe! E sei que esse
homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe! – foi
arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao
homem repetir”. Antes de indicar o propósito dessa citação, ela mesma tem de ser explorada mais detalhadamente. Afinal, nessa segunda69
64
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 65: “Aut si dicis eos esse deceptos,
non mentitos, vel propter lucrum mentiri voluisse, (...)”.
65
Respeitando os termos da premissa menor, que precisa ser fortalecida na idéia inclusa de
que os autores dos livros escriturísticos “condenam a mentira” ou, o que aqui significa o
mesmo, “não são mentirosos”, parece correto dizer também que, em sentido lato, se “ser
enganado” ou “enganar-se” é dizer ou aderir não-intencionalmente a uma inverdade, a
recusa de (a), ou de que os autores dos livros não sofreram engano, serve também como
uma forma de defender a mesma idéia de que “condenam a mentira” ou “não são mentirosos”.
66
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 65-66: “(...), – contra, et primo
contra primum, quod scilicet non fuerunt decepti. Dicit enim beatus apostolus Paulus: Scio
hominem, ante annos quattuordecim etc. (...)”.
67
Independentemente das minúcias da sua composição, a ciência bíblica de hoje classifica a Segunda Epístola aos Coríntios como autêntica carta paulina; cf., por exemplo,
LOHSE, E. 1985, p. 64-72 (especialmente p. 70-72).
68
As citações de passagens bíblicas, neste estudo, são todas a partir da Bíblia de Jerusalém, nova edição, revista, São Paulo: Edições Paulinas, 1986.
69
Alheio ao propósito especulativo de Scotus e além dos recursos exegéticos da sua
época, a leitura estrutural das cartas de Paulo aos coríntios, nos estudos contemporâneos, traz um quadro bastante distinto dos acontecimentos em torno dos quais, após 1
Coríntios, “diversas” cartas do apóstolo – e não simplesmente uma “segunda” – são
destinadas àquela comunidade; cf., por exemplo, PATTE, D. 1987, p. 401-407.
68
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
carta à comunidade de Corinto, e em particular nos capítulos 11 e 12
da mesma, Paulo se vê diante da situação de provar aos “espirituais”70
desafiantes de Corinto que também ele é um “espiritual”: que também a ele Deus se manifesta de modo inquestionável71.
Apesar do evento de revelação no “caminho de Damasco” e da sua
consciência de “apóstolo dos gentios”, Paulo nega “gloriar-se”: rejeita a
idéia de ter de provar que Deus o escolhe ou que também ele é objeto
da manifestação divina reveladora. Em 2Cor 11-12 – parte de uma
“penosa carta”, que teria escrito contra adversários que propagam um
“evangelho diferente” (gnóstico?)72 –, Paulo é como que “constrangido a fazer um elogio próprio”, enfatizando todo o seu engajamento na
missão de pregação do Evangelho, mesmo diante de literais aventuras
e situações de perigo e risco extremo (2Cor 11,21-29)73. Após relatar
as suas “prerrogativas terrenas”74, e embora sendo isso inconveniente,
Paulo diz: “mencionarei as visões e revelações do Senhor” (2Cor 12,1).
Porém, ao invés de ressaltar a sua glória, enfatiza a sua fraqueza. E, por
isso mesmo, fala inicialmente, e ao que tudo indica “indiretamente de
si mesmo”, como de um homem que foi arrebatado ao céu e ao paraíso e ouviu “palavras inefáveis” (verba arcana; cf. Ordinatio prol. p. 2
n. 105)75, acerca das quais Paulo, com efeito, “não pretende estimular
70
Sobre as dificuldades para uma melhor identificação desses adversários de Paulo na
comunidade de Corinto, cf. LOHSE, E. 1985, p. 67s.
71
Contemporaneamente, há concordância em afirmar que em 2 Coríntios, como em
nenhuma outra epístola sua, Paulo se vê obrigado a “defender seu mandato de Apóstolo”, a legitimar o seu “ministério apostólico”; cf. SCHELKLE, K. H. 1984, p. 13ss. (cf.
também p. 191-237).
72
Cf. PATTE, D., 1987, p. 420ss.
73
Traços escandalosamente não-apostólicos para os referidos espirituais de Corinto; cf.
ibid., p. 424s.
74
Cf. SCHELKLE, K. H. 1984, p. 222.
75
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 66: “(...), et subdit ibi, audisse
se verba arcana, quae non licet homini loqui”.
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69
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a curiosidade”76. Diante disso, afirma: “se quisesse gloriar-me, não seria louco, pois só diria a verdade” (2Cor 12,6), mas não o faz para que
ninguém tenha sobre si conceito superior àquilo que nele vê e dele
ouve (2Cor 12,7). Já que as revelações do Senhor, das quais resolve
não falar, eram de todo modo “extraordinárias”, Paulo interpreta o seu
próprio – e conhecido – “aguilhão na carne” (moléstia crônica? A resistência dos judeus, entre os quais ele mesmo em convicção antes estivera, para com a fé em Cristo que agora anunciava?) como meio permitido por Deus para evitar que a soberba não enchesse o seu coração
(2Cor 12,7). A lição do apóstolo é que lhe basta a graça, pois é na
fraqueza humana que a força (da graça de Cristo) manifesta todo o seu
poder; melhor, portanto, é a seguinte convicção: “Por isto, eu me
comprazo nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é
que sou forte” (2Cor 12,10). Feito, com certa resistência e ironia, esse
constrangimento de autoelogio e autoexibição, o apóstolo Paulo conclui que, mesmo nada sendo diante de Cristo, não é em nada inferior
àqueles “eminentes apóstolos” que rondam a comunidade cristã da cidade de Corinto. Pelo contrário, a sua autoridade apostólica inequívoca é confirmada porque “os sinais que distinguem o apóstolo realizaram-se entre vós: paciência a toda prova, sinais milagrosos, prodígios e
atos portentosos” (2Cor 12,12)77. Assim, os “sinais de apóstolo” que
em Corinto Paulo manifestou constituem “nova prova da autenticidade do seu ministério apostólico”78.
76
Cf. SCHELKLE, K. H., 1984, p. 226 (cf. p. 223ss.).
77
Para SCHELKLE, K. H., 1984, p. 235, as três palavras utilizadas por Paulo para
caracterizar os sinais apostólicos, a saber, to sêmeion, to teras e hê dynamis, “são termos do
Novo Testamento com o sentido de portentos. Como Paulo as diferenciou, mal se pode
definir. Entretanto, o emprego de três palavras representa a expressão das muitas obras
que ele conseguiu realizar”.
78
Id. ibid.
70
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
Tudo leva a crer que Scotus procura mostrar um Apóstolo Paulo
autor de textos ou livros das Escrituras, na qualidade de não-enganado
(caso em que, mesmo se não intencionalmente, diria inverdade). Para
enfatizar essa virtude do apóstolo escritor, Scotus ressalta a firme convicção de Paulo e a fé na origem revelatória-sobrenatural dos conteúdos da sua pregação: em 2Cor 12,2-3, atreve-se a tomar Deus mesmo
por “fiador” ou “testemunha” das circunstâncias do seu arrebatamento
extraordinário79. Analogamente ao caso dos profetas Ezequiel e
Jeremias, quer-se enfatizar que o apóstolo não foi enganado no “isso
diz o Senhor” (haec dicit Dominus), elocução que, na tradição profética, sendo fórmula – “fórmula do mensageiro” – que opera como índice de uma dita revelação de Javé, vem a funcionar como marca de
autoridade originária ou, ao menos, pretensão inconteste de origem
divina do conteúdo transmitido e, pois, legitimação de autoridade
profética80. Assim, dar ênfase à autoridade de Paulo como não-enganado é, em parte, dar ênfase ao tipo de reação e de pregação que é de se
79
Id.ibid., p. 224-225.
80
Cf., por exemplo, JEREMIAS, J. 1985, p. 184: “A conhecida fórmula, já documentada em época muito antiga, “assim fala Javé”, com a qual os profetas em geral se
legitimam, faz reconhecer de forma concentrada as características próprias da autoridade profética em Israel, distinguindo ao mesmo tempo os profetas dos diversos tipos de
adivinhos e videntes do Antigo Oriente (...); por um lado a fórmula salienta que a
iniciativa para o aparecimento dos profetas provinha, por natureza, de Javé, e não dos
próprios profetas; (...)”. Enfatizando a “supremacia da palavra” como traço principal do
profeta do Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, reconhecendo a peculiaridade das
categorias psicológicas com as quais a experiência profética veterotestamentária é descrita, WOLF, H. W. 1985, p. 165 (p. 164s.), afirma semelhantemente: “A supremacia de
uma palavra ouvida e reconhecida, de uma palavra elaborada e objetivamente proclamada, é que faz do profeta veterotestamentário um profeta. O problema psicológico de
como o profeta recebeu esta palavra deve-se submeter a este fato dominante. A obediência sem contestação de um Amós e de um Isaías e a apaixonada luta de um Jeremias
(...). Ninguém, a não ser eles próprios, pode dizer quem era esta vontade alheia cuja
palavra os dominou. Com unanimidade e antes de quase todos os ditos eles dizem:
‘Assim falou Javé’”.
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ROBERTO HOFMEISTER PICH
verificar em alguém que está consciente do ser objeto de revelação por
um agente sobrenatural – no caso, o próprio apóstolo. Isso é o que
aparentemente se quer estabelecer quando, ainda em Ordinatio prol.
n. 105, reflete-se sobre as “asserções” (assertiones) de Paulo, para, a partir disso, tomá-lo como não-iludido. Quais asserções? As de testemunhar de ter ouvido “palavras inefáveis”, ter sido objeto de “revelações
extraordinárias”, ter sido acompanhado por sinais (de origem divina)
que distinguem o verdadeiro apóstolo etc. Todas essas asserções, mesmo voltadas a conteúdos de teor incomum ao “natural”, foram feitas
firmemente. Se tais asserções fossem claramente feitas com dúvidas,
estar-se-ia justificado, antes de tudo, em supor as asserções como contendo mentiras ou sendo mentiras. Afinal, numa nota técnica sobre
atos opinativos, Scotus aposta no seguinte princípio de voluntarismo81
doxástico ou da “mentira”:
Ato doxástico de mentir: Sempre é o caso que tudo o que é naturalmente duvidoso ao intelecto e, não obstante isso, é externamente
asserido com firmeza como algo certo e verdadeiro ou bem é uma
mentira ou não está longe da mentira (ou é uma dissimulação)82.
Que o foco da análise é o estado doxástico de “certeza” – causalmente não em função do conteúdo em si, mas por causa da autoridade
do transmissor do conteúdo –, isto é, da “certeza” do Apóstolo Paulo
e de outros santos que testemunharam revelações divinas diretas, isso
fica manifesto pelo teor da seguinte conclusão concernente à origem
sobrenatural e, pois, autoritativa dos conteúdos aos quais Paulo e os
santos assentiram: em cada caso, não era possível que o intelecto do
81
Ao que tudo indica, é difícil pensar no ato de mentir sem levar em conta o papel da
vontade no assentimento ou, pelo menos, sem levar em conta aspectos intencionais do
assentimento a algo naturalmente inevidente.
82
Cf. DUNS SCOTUS, Ordinatio prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 66: “Quae assertiones
non videntur fuisse sine mendacio si asserens non fuit certus, quia asserere dubium
tamquam verum certum, est mendacium, vel non longe a mendacio”.
72
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011
DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
receptor da revelação fosse levado a assentir com tamanha firmeza (ita
firmiter) em conteúdos inevidentes aos poderes intelectuais naturais a
não ser que tivesse o auxílio do poder ou da autoridade de um agente
sobrenatural que os levasse a isso. Nesses casos “autotestemunhados” e
conhecidos por relato de tão firme adesão ou crença em algo – aceitando-se que, em absoluto, seja possível “testemunhar” a firmeza de crenças –, tanto “o conteúdo da crença” quanto “a característica doxástica
da crença” (a certeza ou a adesão firme) só são razoavelmente explicáveis se têm origem causal numa revelação divina ou, em última análise, oriunda de um agente sobrenatural83. A conclusão aludida parece
responder por um determinado princípio de racionalidade de crença
em dados não-evidentes e que é passível da seguinte formulação:
Princípio de racionalidade de crença em dados não-evidentes revelados: Sempre que o intelecto de um ser humano veraz, junto com o
testemunho ou autotestemunho de revelação extraordinária, é levado
a um mui firme assentimento a conteúdos cujo conhecimento não
pode ser obtido por meios intelectuais naturais, é razoável concluir
que o assentimento a tais conteúdos tem origem causal sobrenatural
não-enganosa e, pois, autoritativa.
Em tais situações, pensar que o intelecto foi movido por outro
meio – pelas ilusões do próprio sujeito passivo de revelações ou por
ilusões originadas de meios externos meramente naturais – é menos
razoável. Se o princípio acima vale como premissa maior, e a premissa
menor é “Pessoas verazes como o apóstolo Paulo e os demais santos,
com o testemunho ou autotestemunho de revelação extraordinária,
foram levados a um mui firme assentimento a conteúdos cujo conhe83
Cf. SONDAG, G. 1999, p. 131. Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n.
105 p. 66: “Ex ista revelatione Pauli, et multis aliis, factis diversis sanctis, concluditur
quod intellectus eorum non potuerunt induci ad assentiendum ita firmiter illis quorum
notitiam non potuerunt habere ex naturalibus, sicut assenserunt, nisi ab agente
supernaturali”.
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ROBERTO HOFMEISTER PICH
cimento não pode ser obtido por meios intelectuais naturais”, a conclusão já discutida segue-se validamente – aqui dimensionada por mim
só no âmbito do “verossímil”. O argumento, pois, “rejeitaria a hipótese” de que (a) os autores dos livros componentes das Escrituras se enganaram ou foram enganados, que, então, “não mais enfraqueceria” a
premissa menor do argumento da terceira via, a saber, “Pm: As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são Escrituras transmitidas compostas de livros escritos pelos autores aos quais são atribuídos e que condenam a mentira em matérias de fé e moral”84.
Com o mesmo propósito de manter a premissa menor, rejeita-se a
objeção de que (b’) os autores dos livros escriturísticos mentiram por
causa de lucro ou benefício. Isso consiste especificamente na tentativa
de fazer perceber que “é irrazoável” crer que foram mentirosos. Mais
ainda: quer-se convencer ou mostrar que é razoável crer que “não são
mentirosos” ou, positivamente, que são verazes. Ora, se os autores dos
livros escriturísticos mentiram por causa do lucro, é simples anotar
que isso tira a credibilidade do que eles escreveram, pressupondo-se
– e “ainda mais” pressupondo-se – que o que escreveram é inevidente
à razão natural: “inevidências mentidas” como marcas epistêmicas
de objetos proposicionais são, por certo, critérios para o improvável e
o irrazoável em qualquer hierarquia qualitativa de predicados
84
Estabelecido esse argumento dialético contra (a), que explica a firmeza da crença ou
adesão certa e não-enganosa ao revelado sobrenaturalmente, um outro pode ser montado para garantir o mesmo ponto: PM: “Todo ser humano veraz e razoável que, por
causa de um agente sobrenatural, assente com firmeza a um conteúdo inevidente à
razão natural, o faz sem enganar-se ou ser enganado, portanto, sem dizer inverdade”;
Pm: “Os autores dos livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católica são seres humanos
verazes e razoáveis que, por causa de um agente sobrenatural, assentem com firmeza a
um conteúdo inevidente à razão natural”; C: “Os autores dos livros das Escrituras
Sagradas da Igreja Católica, ao assentirem ao inevidente, o fazem sem enganar-se ou
serem enganados, portanto, sem dizer inverdade”. O argumento oferecido no texto,
porém, respeita a ênfase de Ordinatio prol. n. 105 nos motivos de adesão firme ou
carente de dúvida razoável (equivalendo à crença natural de caráter não enganoso),
mostrada no testemunho ou autotestemunho e em relato(s) textual(is).
74
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011
DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
epistêmicos85. Se entendo bem, Scotus pondera de novo acerca da biografia do Apóstolo Paulo, no relato de 2Cor 11-12, para mostrar que
não é provável que os conteúdos revelados das Escrituras devam antes
ser tidos como mentiras sobre o inevidente, baseadas numa tentativa
de benefício pessoal. Afinal, por causa das verdades da fé, aquelas reveladas e de conteúdo não-evidente ou não-asserível de modo meramente natural, exatamente as verdades nas quais queriam levar as pessoas a
crer, a ter uma atitude doxástica de credulidade adquirida, os apóstolos
e os santos não tiveram como resultado, em absoluto, o recebimento
de benefícios, mas, antes, a experiência dos maiores sofrimentos e dificuldades86. Eis o argumento para mostrar que é improvável que aqueles escritores mintam por benefício:
PM: “Todo ser humano veraz e razoável que assente com firmeza
ou certeza a um conteúdo inevidente à razão natural, sem benefício
próprio e com consequências de máximos infortúnios e dificuldades
para si, a partir de alegada revelação extraordinária, o faz sem mentir”.
Pm: “Os autores dos livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católica são seres humanos verazes e razoáveis que assentem com firmeza
ou certeza a conteúdos inevidentes à razão natural, sem benefício próprio e com consequências de máximos infortúnios e dificuldades para
si, a partir de alegada revelação extraordinária”.
C: “Os autores dos livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católica, ao assentirem ao inevidente, o fazem sem mentir”.
Em tais situações, pensar que ocorre o ato doxástico de tomar por
certo e verdadeiro o que se reconhece não-certo e se desconhece verdadeiro – o mentir – é menos razoável. Naturalmente, mais uma vez a
85
Cf., novamente, CHISHOLM, R. M., 1989, p. 16-17.
86
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 66: “– Contra secundum,
scilicet quod propter lucrum mentiti sunt: quia pro illis ad quae voluerunt homines
inducere ad credendum, tribulationes maximas sustinuerunt”.
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011
75
ROBERTO HOFMEISTER PICH
conclusão a que recém se chegou é dimensionada por mim só no âmbito do “verossímil”. Também esse argumento recusaria a hipótese de
que (b) os autores dos livros escriturísticos mentiram por algum motivo cogente, hipótese que, então, não mais enfraqueceria a premissa
menor do argumento da terceira via, a saber, “Pm: As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são Escrituras transmitidas compostas de livros
escritos pelos autores aos quais são atribuídos e que condenam a mentira em matérias de fé e moral”.
A proposição disjuntiva com a qual se iniciara a terceira via e a
partir da qual se procurara o princípio de credibilidade que permitiu
concluir pro veracidade e suficiência das Escrituras como um todo – a
saber, a conclusão “Das Escrituras Sagradas cristãs ou bem os livros
componentes são daqueles autores dos quais são ditos ser ou os livros
componentes não são daqueles autores dos quais são ditos ser” – não
foi, contudo, esquecida. Afinal, o segundo elemento da disjunção antes apresentada ainda não foi considerado. Ao que tudo indica, lidar
com a hipótese de que os livros componentes das Escrituras Sagradas
cristãs não são daqueles autores aos quais são atribuídos põe em questão, de outro modo, a autoridade dos escritores de tais conteúdos e,
portanto, a veracidade e a suficiência dos próprios conteúdos. Há que
se considerar, em Ordinatio prol. p. 2 n. 106, essa segunda possibilidade crítica. Visto que a consideração do segundo elemento da disjunção
é pressuposta como relevante para a argumentação a favor da
credibilidade, exige-se aqui, a meu juízo, algum esforço dialético para
encontrar onde se localiza a importância da associabilidade de escritos
aos autores aos quais são atribuídos – num movimento que requer
que o intérprete do texto scotista dê um passo a frente com bastante
independência. Um princípio de credibilidade parece ter de ser forjado
segundo a idéia de que livros escritos sob falsa atribuição autoral são
escritos por impostores, por mentirosos que preferem não associar a si
mesmos o que escrevem. Saber da consciente dissociação autoral àquilo
que se escreve leva a crer que não há compromisso autoral com a ver76
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011
DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
dade do escrito. Sob essas circunstâncias, a credulidade do escrito é
abalada:
PM: “Escrituras transmitidas, compostas de livros não escritos pelos
autores aos quais são atribuídos, mas por outros autores que se ocultam sob nomes e dissociam a sua autoria histórica dos próprios escritos, não são verossímeis nos seus conteúdos inevidentes que versam
sobre matérias de fé e moral”.
Pm: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica contêm em seu todo
livros não escritos pelos autores aos quais são atribuídos, mas por outros autores que se ocultam sob nomes e dissociam a sua autoria histórica dos próprios escritos”.
C: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica não são verossímeis
nos seus conteúdos inevidentes que versam sobre matérias de fé e moral”.
A réplica à objeção busca enfraquecer e, por conseguinte, anular a
credibilidade da premissa menor ora formulada. Assim, inicialmente,
uma alegação desse tipo quanto aos livros bíblicos “parece [racionalmente] inconveniente” (videtur inconveniens), pois leva a uma dúvida
geral e em princípio improvável sobre autoria tradicionalmente ou
comumente reconhecida87: poderia, então, ser em geral negado – ao
menos, posto sob suspeita – que qualquer livro é da autoria daquele
autor ao qual é atribuído88. Por que levantar dúvidas precisamente
sobre aqueles livros escriturísticos, isto é, sugerir falsa atribuição auto-
87
Cf. IOANNES PONCIUS. 1968, n. 3 p. 46: “Si dicatur authores Scripturae non
fuisse illos, quibus attribuitur. Contra est primo quod id sine vllo fundamento dicitur,
& eadem ratione posset quis negare opera Aristotelis, Ciceronis, Virgilij non esse ipsorum;
quod sane irrationabiliter fieret, quando non adesset aliqua probabilis dubitandi ratio,
qualis sine dubio non habetur in proposito”.
88
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 66-67: “Si libri non sunt
illorum, sed aliorum, hoc videtur inconveniens dicere, quia ita negabitur quicumque
liber esse illius auctoris cuius dicitur esse”.
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011
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ROBERTO HOFMEISTER PICH
ral a eles mais do que a todo e qualquer outro livro89? Que dessa maneira Scotus entenda criticar relevantemente a razoabilidade da objeção construída só se entende sob o fundo de um princípio como este:
PM: “Salvo motivo contrário cogente, livros atribuídos a autores
são, em geral, da autoria dos sujeitos históricos aos quais são, por boa
tradição e por bom costume, atribuídos”.
Caso se aceite
Pm: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica contêm livros da
autoria de sujeitos históricos que lhes são atribuídos por boa tradição e
por bom costume”,
Segue-se uma conclusão em estrita contradição com a anterior:
C: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica contêm em seu todo
livros escritos pelos autores aos quais são atribuídos”.
O argumento contra a premissa menor de objeção, ou seja, “As
Escrituras Sagradas da Igreja Católica contêm em seu todo livros não
escritos pelos autores aos quais são atribuídos, mas por outros autores
que se ocultam sob nomes e dissociam a sua autoria histórica dos próprios escritos”, é, em seguida, complexificado. Ao que tudo leva a crer,
do ponto de vista da tradição (= transmissão) dos livros escriturísticos,
ou bem aqueles que atribuíram aqueles livros aos respectivos autores
nomeados eram cristãos, ou eles não eram cristãos. Se não eram cristãos – mas sim, respeitando o fundo apologético da parte II, “rivais”
históricos do cristianismo, como judeus, gnósticos e muçulmanos –,
não parece (verossímil) que tenham querido escrever tais livros e atribuí-los, em seguida, a outros autores influentes (concorrentes),
89
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67: “Quare enim soli isti falso
adscripti sunt, auctoribus quorum non erant?”. Cf. ainda IOANNES PONCIUS.
1968, n. 3 p. 46: “Secundum dici non potest; quia non est credibile professores
aliarum sectarum tam operose laborasse, vt persuaderent fidem, & doctrinam Christi,
suae oppositam”.
78
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011
DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
magnificando com os próprios conteúdos escritos a “seita” cujo contrário entendiam como verdadeiro ou sagrado90. Se tais adscritores eram
cristãos, e, com razoabilidade, é concedível que a doutrina dos cristãos
condena de maneira explícita a mentira, é pouco provável que tais
personagens atribuiriam, mentirosamente, os respectivos livros a autores nomeados irreais ou historicamente dissociados dos próprios escritos91. Nos dois campos de motivos, creio que é possível dizer que a
cláusula “salvo motivo contrário cogente”, da premissa maior acima,
não seria cumprida, ou, ainda, que a cláusula “por boa tradição e por
bom costume”, no caso dos livros das Escrituras cristãs, e isso equivale
ao mesmo, não seria vulnerada. Há, pois, melhores motivos para manter a crença na autoria historicamente atribuída aos livros respectivos
do que para crer na sua ilegitimidade autoral92.
90
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67: “– Praeterea, aut illi qui
adscripserunt illos libros eis fuerunt christiani, aut non. Si non, non videtur quod
voluerunt tales libros conscribere et aliis adscribere, et magnificare sectam cuius
contrarium tenuerunt”.
91
Cf. ID. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67: “Si fuerunt christiani, quomodo igitur illi
christiani mendaciter eis tales adscripserunt, cum lex eorum damnet mendacium, sicut prius?”
92
Aqui e para o restante do argumento a favor da autenticidade autoral dos livros
canônicos, deve-se levar em conta a indisponibilidade de ferramentas dos métodos
“histórico-críticos” à exegese da época de Scotus – as quais forçariam sérias reconsiderações
à noção mesma de “livros”, “escritos”, “cartas”, etc., redigidos de modo bem definido por
autores, bem como às formas e aos gêneros de “proclamação” e “ensino” que estão na
base da constituição, por exemplo, dos escritos do Novo Testamento; cf. LOHSE, E.
1985, p. 22ss. Sobre a formação dos escritos neotestamentários “à luz da crítica das
formas”, cf. MOULE, C. F. D. 1979, p. 13-201. Deve-se também levar em conta, com
o mesmo peso, o fato importante de que a idéia de uma ciência e uma teologia bíblica
autônomas só ganha substância no século XVIII, com o “programa [iluminista] da
pesquisa histórico-crítica da Escritura”, tal que, na contramão desse movimento, a
canonização de escritos do cristianismo primitivo, a partir do século IV, pela igreja cristã,
na prática identificara “cânone” com “doutrina válida na igreja”, trazendo como conseqüência que “doutrina eclesiástica” e “tradição apostólica” automática e harmonicamente
incluíam o conjunto das verdades escriturísticas e das retas interpretações da Scriptura,
sem que essas pudessem operar autonomamente em relação àquelas; cf. GOPPELT, L.
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011
79
ROBERTO HOFMEISTER PICH
As reflexões de atribuição de autoria podem facilmente se multiplicar, em se tratando de adscritores cristãos: é improvável acreditar
que seguiram afirmando que Deus falou as muitas coisas narradas naqueles livros, a saber, revelando-se às pessoas que dão título autoral
àqueles livros, se, sendo cristãos, sabiam que as revelações conscritas
não tinham tido como passivos aquelas pessoas. Dentro de um certo
perfil de adscritores cristãos, é igualmente improvável que o seu testemunho e a sua transmissão de atribuição autoral tivessem sido falsos,
lembrando que como um todo, na tradição histórica da Igreja, os li-
1988, p. 17-18, 20-21. Ora, com esses pressupostos, é evidente que a verossimilhança
do bloco argumentativo posto por Scotus, que objetiva convencer da legitimidade
autoral dos livros componentes das Escrituras, ou bem perderia terreno definitivamente ou teria de ser adaptada a noções mais permissivas de “autenticidade”. Afinal, cf.
LOHSE, E., 1985, p. 44s., é reconhecido, hoje, que (a) poucos escritos do Novo
Testamento permitem conhecer inequivocamente o nome do autor, havendo, em verdade, (b) diversos escritos que nem indicam nome de autor nem oferecem apontamentos que auxiliem à identificação. Nesse sentido, reconhece-se que a tradição do cristianismo primitivo, após o período apostólico original e segundo a idéia de que a autoridade apostólica constituía regra máxima para autenticidade escriturística – portanto,
para aceitação compromissiva –, adotou o costume de citar nomes de apóstolos ou de
discípulos de apóstolos aos escritos anônimos transmitidos; os escritos de si transmitidos
como anônimos logo se transformaram em “pseudônimos”, o que, de resto, ilustrava
um processo de ajuste ou atribuição autoral comum à Antigüidade greco-romana. No
mesmo passo, cf. ibid., p. 45, (c) há, na primitiva literatura cristã, exemplos de escritos
cuja autoria, desde a origem, é referida sob pseudônimo, como 2 Pedro, em que “o autor
oculta o seu nome atrás do de outra pessoa, que goza de aceitação inconteste no círculo
de leitores ao qual se dirige” – isto é, opta por ficar atrás do nome de um apóstolo, a
quem a igreja antiga rigorosamente prestigiava. Não obstante isso, e curiosamente,
compreendia-se, nesse procedimento, que era mesmo adequado que o ensinamento
então formulado, reconhecido pelos destinatários e leitores em geral do escrito como fiel
ao ensino e à doutrina dos apóstolos, fosse remetido ao nome deles: essa submissa
“pseudonímia”, de modo algum “falsificação”, era um esforço por dirigir a doutrina
do(s) apóstolo(s) às situações que, a cada novo momento e nova geração da igreja,
pediam por respostas e conselhos concretos (caso das comunidades da segunda e terceira geração da igreja apostólica constituída): cartas deuteropaulinas e escritos pseudônimos certamente buscavam “preservar” e ao mesmo tempo “dar nova expressão ao
quérigma da cristandade primitiva”; cf. ibid., p. 46.
80
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
vros atribuídos àqueles autores foram tão “originais” – “autênticos” ou
“autenticados” (authentici) – e, em geral, tão divulgados sob tal atribuição autoral: é irrazoável pensar que tal reconhecimento de originalidade e tal divulgação poderiam ter sido tão amplos, sem a base da
real associação e da autenticidade dos escritores denominados. A insistência quanto ao resultado do papel dos adscritores cristãos, no que
concerne ao argumento, segue fixada na ausência de motivo forte para
se pensar o contrário da atribuição transmitida e na invulnerada cláusula da boa tradição e do bom costume sugeridas acima93. Se a crença
na legitimidade autoral – em particular, por certo, a apostólica – dos
livros componentes das Escrituras tem como base esse tipo de testemunhas e guardiães de tradição, ela parece ser mais provável do que o
seu contrário.
A veracidade ou a autoridade testemunhal dos adscritores cristãos
é tudo o que Scotus, no restante do parágrafo, assevera, ao ratificar a
convicção na transmissão dos escritos bíblicos por homens de “suma
santidade” (summae sanctitatis) anotada por Ricardo de São Vítor94: a
legitimidade autoral dos escritos bíblicos está fundada em testemunhas e guardiães de tradição eles mesmos de suma “santidade” e remissivos a escritores eles mesmos – em particular, como prova a referência
a Agostinho, os apóstolos – reconhecidos como de suma “autoridade”
93
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67: “Et propter idem,
quomodo asserunt Deum locutum esse multa quae ibi narrantur, et hoc personis
quibus libri intitulantur, si talia non acciderunt talibus personis? Quomodo etiam isti
libri fuissent ita authentici, et divulgati esse talium auctorum, nisi et fuissent eorum, et
auctores fuissent authentici?”
94
Cf. RICARDO DE SÃO VÍCTOR. Richard de Saint-Victor. La Trinité – De Trinitate.
1959, I c. 2 891D p. 66: “Nonne cum omni confidentia Deo dicere poterimus:
Domine, si error est, a teipso decepti sumus: nam ista in nobis tantis signis et prodigiis
confirmata sunt et talibus, quae nonnisi per te fieri possunt; certe a summae sanctitatis
viris sunt nobis tradita et cum summa et authentica attestatione probata, teipso
cooperante et sermonem confirmante, sequentibus signis”.
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81
ROBERTO HOFMEISTER PICH
(auctoritas)95. Desde o autotestemunho dos escritores – sobretudo os
apóstolos – como passivos de revelação divina e registradores dos conteúdos da revelação divina e desde o testemunho de adscritores cristãos
– pode pensar em especial nos líderes das comunidades cristãs –, crê-se
e transmite-se crença segundo santidade-autoridade, pelo testemunho
daqueles que, por fé, condenam a mentira. Nos dois casos, sanctitas e
auctoritas podem valer, em sentido lato, como “veracidade forte” ou
“reputação veraz”, qualidades de testemunhas, assimilados e atribuídos
dados certos traços da pessoa e dos seus atos96. No que concerne a esse
aspecto sensível das testemunhas originais e transmissorasmantenedoras dos conteúdos revelados e conscritos nos livros
escriturísticos, a base patrística à qual Scotus faz referência, em particular Agostinho, é abundante97. Se a crença no conteúdo revelado e
transmitido é acompanhada por autores e adscritores com veracidade
forte, então é improvável que tenha sido gerada, desde a origem, pelo
ato doxástico de uma inevidência mentida e que a própria atribuição
autoral seja inevidência mentida. Há, pois, mais motivos para crer que
os livros escriturísticos, desde a sua origem e transmissão de atribuição
autoral, estão isentos da mentira do que para crer na impostura dos
95
Cf. AGOSTINHO. San Agustin. La ciudad de Dios – De civitate dei. 1958, XI c. 3
(“De auctoritate canonicae Scripturae, divino Spiritu conditae”) p. 718: “Hic prius per
Prophetas, deinde per se ipsum, postea per Apostolos, quantum satis esse iudicavit,
locutus, etiam Scripturam condidit, quae canonica nominatur, eminentissimae
auctoritatis, cui fidem habemus de his rebus quas ignorare non expedit, nec per
nosmetipsos nosse idonei sumus”.
96
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67-68: “De isto dicit
Richardus De Trinitate libro I cap. 2: “A summae sanctitatis viris sunt nobis tradita”.
Item, Augustinus libro XI De civitate cap. 3, loquens de Christo: “Prius”, inquit, “per
prophetas, deinde per seipsum, postea per apostolos, quantum satis iudicavit, locutus,
Scripturam condidit, quae canonica nominatur, eminentissimae auctoritatis”. Cf. também DUNS SCOTUS, Ord. III d. 23 q. un. n. 4 p. 460.
97
Agostinho talvez seja referido por Scotus, neste contexto, a partir de Henrique de
Gand. Cf. HENRICUS GANDAVENSIS. Summa quaestionum ordinarium. a. 7 q. 7
in corp. (I f. 57D); a. 6 q. 4 in corp. (f. 46M); a. 9 q. 2 arg. 2 in opp. (f. 71H); a. 7 q.
7 in corp. (f. 57D); a. 10 q. 2 in corp. (f. 74O); a. 7 q. 7 in corp. (f. 57D)).
82
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
autores e transmissores98. A análise da noção de autoridade veraz como
qualidade testemunhal e a sua relação com a epistemologia do testemunho, na filosofia da religião, não pode, porém, ser solidamente
estudada neste ensaio. Não obstante isso, alguns poucos apontamentos serão feitos a seguir.
3.2 A diligência dos recebedores
O quarto argumento, “sobre a diligência dos recebedores” (de
diligentia recipientium) dos livros e conteúdos das Escrituras Sagradas99, pode bem ser caracterizado como um argumento por testemunho ou por um princípio de credibilidade que é um princípio de testemunho: o testemunho é, ou ao menos pode ser, fonte de geração de
crença racional100. O motivo trazido por Scotus para crer no testemu98
Cf. DUNS SCOTUS. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 68: “Hoc ibi. Et Augustinus in
Epistola ad Hieronymum prima (et habetur De consecratione): “Si sacras Scripturas
admissa fuerint vel officiosa mendacia, quid in eis remanebit auctoritatis?” Et idem ad
eundem, epistola eadem: “Solis eis Scripturarum libris” etc. (et Henricus 7, 8g)”.
99
Se é correto afirmar, com o comentador, que este argumento objetiva provar ou
defender a autoridade da Escritura Sagrada, mantenho que tal prova de autoridade
opera a partir de um princípio de credibilidade, subsumindo-se, pois, como já adiantado neste ensaio, ao propósito de provar a “verdade” ou “veracidade” das Escrituras
cristãs; cf. IOANNES PONCIUS. 1968, n. 1 p. 47: “Qvartum, scilicet recipientium
diligentia, &c. Haec via ad duo potissimum conducit, primo est principaliter ad
probandam authoritatem Scripturae propositae ab authoribus, de quibus in praecedenti
via. Secundo ad suadendum non fuisse adiuncta aliqua, aut mutata in eadem Scriptura,
quod derogaret eius authoritati”.
100
Nesse sentido, como fonte de geração de crença racional, analiso o testemunho qua
fonte de crença de um modo mais específico do que a sua análise, em epistemologia,
como uma fonte de geração de “conhecimento e justificação”, em que, segundo AUDI,
R. 1998, p. 130, o “testemunho é a nossa fonte social [itálico do autor] primária” de
conhecimento e justificação. Ademais, cf. ibid., p. 130-131, um sentido básico de
“testemunho” me parece comum ao argumento que desenvolvo, a partir do texto
scotista: testemunho, em sentido lato, consiste em “dizer alguma coisa numa aparente
tentativa de trazer (correta) informação”, tendo como bom correlato a noção de “atestação” (attesting): “Essa cobre tanto o testificar formalmente que algo é assim quanto o
dizer simplesmente, na maneira informacional relevante, que é assim, por exemplo, ao
dizer as horas para alguém. Isso também captura a idéia de dizer algo “para” alguém”.
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nho dos recebedores sobre a origem revelada e, no caso do Novo Testamento, apostólica dos livros das Escrituras, portanto, sobre a sua
própria origem racionalmente autoritativa à crença firme, é formulado de maneira menos inequívoca que o desejado – o que não impossibilita um esforço da parte do intérprete no intuito de encontrar a premissa desejável. No que diz respeito, em geral, à informação que um
ser humano racional recebe por testemunho alheio, por testemunho
de círculos que naturalmente suscitam crenças primárias – entenda-se,
supostamente, por testemunhos da família e da comunidade próxima
–, as atitudes doxásticas possíveis são expressáveis na forma de uma
disjunção exclusiva: ou bem ele não crê em nada do que acontece ou
aconteceu que não tenha ele mesmo visto, não crendo, então, que o
mundo foi feito antes de si, que existe aquele lugar do mundo em que
ainda não tenha estado presente, nem que tal indivíduo é o seu pai e
que tal pessoa é a sua mãe, ou ele crê nas informações testemunhadas
desse tipo, isto é, em informações básicas testemunhadas pelos sujeitos que lhe são mais próximos e naturalmente confiáveis101. Note-se
que, na descrição ora feita, informar-se de algo sem direta visão ou
percepção visual do mesmo acaba por equivaler a obter conteúdo
inevidente e, possivelmente, ter crença inevidente em algo. Parece ser
axiomático tanto que a “incredulidade” (incredulitas) nesse tipo de informação por meio desse tipo de testemunho destrói a “vida social”
(vitam politicam)102 quanto, positivamente, muito embora Scotus não
faça uso de tais palavras, que a “credulidade” (o termo latino equivalente seria “credulitas”) nesse tipo de informação por meio desse tipo
de testemunho permite e, essencialmente, erige a vida social.
101
Cf. DUNS SCOTUS, Ordinatio prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 68: “– De quarto,
scilicet diligentia recipientium, patet sic: aut nulli credes de contingenti quod non
vidisti, et ita non credes mundum esse factum ante te, nec locum esse in mundo ubi
non fueris, nec istum esse patrem tuum et illam matrem; (...)”.
102
Cf. ID. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 68: “(...); et ista incredulitas destruit omnem
vitam politicam”.
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
Claramente, é da natureza da formação de certas crenças em conteúdos não diretamente vistos nem visíveis que, se alguém “quer”103
crer num acontecimento qualquer que não é e nem foi “evidente”
(evidens), o mecanismo no qual – ou, ao menos, um dos mecanismos
nos quais – deve integrar-se é o seguinte: “deve crer maximamente
numa comunidade [communitati]” ou, ainda mais fortemente, numa
provável ênfase no caráter básico ou primário dos conteúdos cridos,
naquilo que “a comunidade toda” (tota communitas) aprova, manifestamente, naquilo que uma comunidade com predicados de veracidade
testemunhal aprova; nesse caso, estão em questão “maximamente as
coisas que uma comunidade bem-conhecida [famosa] e honesta [honesta] prescreve com a máxima diligência como devendo ser aprovadas”104. Que a partir disso a racionalidade da crença por testemunho
vem a ser defendida, isso fica mais explícito na seguinte formulação de
um princípio de credibilidade por testemunho, que servirá, em seguida, aos propósitos do convencimento da verossimilhança e da suficiência das Escrituras Sagradas da Igreja Católica:
Princípio de credibilidade por testemunho:105 É racional crer na verossimilhança de conteúdos (básicos ou não) inevidentes ou não vistos
103
E, portanto, em termos doxásticos, tem de mover-se judicativamente para além do
que é naturalmente evidente à razão.
104
Cf. ID. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 68-69: “Si igitur vis alicui credere de
contingenti quod tibi non est nec fuit evidens, maxime credendum est communitati,
sive illis quae tota communitas approbat, et maxime quae communitas famosa et honesta cum maxima diligentia praecepit approbanda”.
105
Estando em debate aspectos de uma teoria de credibilidade ou de crença verossímil,
ou, ainda, de racionalidade de crenças em sentido lato, é para esse propósito teórico que
tal “princípio de credibilidade por testemunho” é formulado: como fórmula específica
da obtenção de crença racional. Assim, pois, um princípio de testemunho como princípio de credibilidade de crença não põe ainda – como, de resto, não será feito neste
ensaio – o “testemunho”, nos termos próprios da sua epistemologia, na sua consideração
própria como fonte de crença, via de regra “não-inferencial”, mas, enquanto “atestação”,
com dependência da “percepção” e da “interpretação semântica” (R. Audi).
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diretamente por um sujeito cognoscente, que são informados ao mesmo sujeito e aprovados em seu valor de verdade pelo testemunho de
toda uma comunidade bem-conhecida e honesta.
Os termos do princípio acima posto se encaixam, Scotus quer
fazer crer, no caso do “Cânone da Escritura”: os livros canônicos e os
seus conteúdos revelados são inevidentes aos que hoje ou após a geração dos seus escritores os recebem, tendo sido e sendo, porém, desde
então, aprovados com a máxima diligência por uma comunidade bemconhecida e honesta. Toma-se que isso vale para a “solicitude”
(sollicitudo) que os judeus mostraram acerca dos livros que deveriam
constar no seu Cânone; isso vale também no caso da consideração dos
cristãos quanto aos livros que receberam como “autênticos” – como
estudado acima, isso também significa os livros caracterizados por integridade autoral. A solicitude para o reconhecimento da integridade
autoral e, pois, da origem dos escritos canônicos para os cristãos, Scotus
se permite afirmar, jamais foi encontrada em tamanha intensidade em
nenhuma outra Escritura a receber um “selo de autenticação” (minha
expressão). A ênfase argumentativa, pois, recai, não sobre motivos próximos para tomar os livros das Escrituras como autênticos, mas na
força de respeitabilidade “do testemunho” de que são autênticos em
sua origem: os livros em questão foram objeto de extremo “cuidado”
Semelhantemente, propriedades do atestador ou da testemunha e ainda “padrões críticos” de conferimento de plausibilidade por parte do recebedor têm de ser considerados;
sobre isso cf. AUDI, R. 2006, p. 25-28. Ademais, afigura-se instigante a idéia de
revisitar, em estudos futuros, a Ordinatio III d. 23 (Scotus) bem como textos medievais
tardios acerca do tópico do testemunho (ou, antes, acerca dos aqui trabalhados tipos de
princípios de credibilidade, dentre os quais o testemunho se insere), para conferir
origens intelectuais daqueles princípios que Thomas Reid identificaria como fundamentais à aquisição de conhecimento a partir da informação concedida por outras
pessoas: o “princípio de veracidade” (principle of veracity) e o “princípio de credulidade” (principle of credulity), a saber, princípios epistêmicos da natureza humana. Cf.
sobre isso o estudo (crítico a Reid) de VAN CLEVE, J. 2006, p. 50-74.
86
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
– outro tradução para sollicitudo – pelas testemunhas, as comunidades
cristãs (e os seus líderes). Comunidades “solenes” ou “devidas” (sollemnes)
– na linha dos predicados famosa e honesta – “cuidaram” (curaverunt)
daquelas Escrituras ou da transmissão daquelas Escrituras como autênticas, tal como quem realmente cuida (de escritos) que contêm o que
é necessário para a salvação106. As solenes comunidades – judaicas e
cristãs – cuidaram para que Escrituras “autênticas” ou de autores “verazes” (veraces), reconhecidamente passivos de revelação extraordinária e
que, portanto, escreveram como “profetas” ou “por revelação divina”,
fossem incluídas e fixadas no Cânone107 que resume os livros que contêm a notícia sobrenatural necessária108. Que no pensamento dos Pais
da Igreja essa é, essencialmente, a lógica de inclusão e compreensão de
autoridade que serve de critério para a constituição do Cânone das
106
Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 69: “Talis est Canon
Scripturae. Tanta enim apud iudaeos sollicitudo fuit de libris habendis in Canone, et
tanta apud christianos de libris recipiendis tamquam authenticis, quod de nulla scriptura
habenda authentica tanta sollicitudo fuit inventa, praecipue cum tam sollemnes
communitates de Scripturis illis curaverunt tamquam de continentibus necessaria ad
salutem”.
107
Parece-me bastante razoável tomar as solenes comunidades cristãs como, ao menos
em parte, representadas pelos “Pais” e “primeiros Doutores” da Igreja, cuja santidade e
liderança intelectual é, de fato, reportada como decisiva na formação do Cânone; cf.
também IOANNES PONCIUS. 1968, n. 1 p. 47: “Rursus cum constet in primis
nostrae religionis exordiis varia prodiisse Euangelia Thomae, Barnabae, Thaddaei,
Bartholomaei, Andreae, aliorumque Apostolorum, ac Sanctorum virorum nominibus,
& varias actuum Apostolorum historias; certe credi non potest sola quatuor Euangelia,
que in nouo Testamento modo habentur, & Acta Apostolorum a Luca conscripta, aliis
reiectis, tanquam diuinam authoritatem habentia, esse recepta, nisi magno praemisso
examine, & re mature considerata. Itaque de diligentia sufficienti adhibita non potest
dubitari; ea autem supposita in primis habemus, quicunque demum istius doctrinae
fuere primi Doctores, magnae fuisse prorsus authoritatis, ac sanctitatis: (...)”.
108
Cf. SONDAG, G. 1999, p. 131-132.
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Escrituras Sagradas do cristianismo109, isso Scotus repete110 sem novidade e em estilo tradicional daquilo que Agostinho já escrevera111.
O argumento a favor da verossimilhança e da suficiência das Escrituras e dos seus conteúdos pode agora ser completado:
Pm: “Os livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católica como
conjuntos de conteúdos autorais são inevidentes ou não vistos (experimentados) diretamente pelos sujeitos cognoscentes de hoje e das gerações posteriores aos seus escritores, e, não obstante isso, foram e são
informados no Cânone aos seres humanos de hoje e aprovados em seu
valor de verdade pelo testemunho contínuo de toda uma comunidade
bem-conhecida e honesta, a saber, a comunidade cristã e como um
todo a Igreja Católica”.
C: “É racional crer na verossimilhança dos livros das Escrituras
Sagradas da Igreja Católica, bem como nos seus conteúdos inevidentes”.
109
Uma visão atualizada acerca do processo de seleção dos escritos cristãos que compuseram o Cânone, dando o devido apreço ao papel intelectual dos líderes e doutores da
Igreja, às divergências (em boa parte oriundas de “heresias”) e às posições dos Concílios,
pode ser conferida em MOULE, C. F. D. 1979, p. 202-236. Cf. também LOHSE, E.
1985, p. 11-21.
110
Cf. DUNS SCOTUS. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 69-70: “De hoc Augustinus
XVIII De civitate cap. 38: “Quomodo scriptura Enoch, de qua Iudas in epistola sua
facit mentionem, non recipitur in Canone, et multae aliae scripturae, de quibus fit
mentio in libris Regum?”, ubi innuit quod sola illa scriptura recepta sit in Canone
quam auctores, non sicut homines sed sicut prophetas, divina inspiratione scripserunt.
Et ibidem, cap. 41: “Illi Israelitae, quibus credita sunt eloquia Dei, nullo modo
pseudoprophetas cum veris prophetis parilitate scientiae confuderunt, sed concordes
sunt inter se atque in nullo dissentientes: sanctarum Litterarum veraces ab eis
agnoscebantur et tenebantur auctores”.
111
Cf. AGOSTINHO. San Agustin. La ciudad de Dios – De civitate dei, XVIII c. 38
(“Quod quaedam sanctorum scripta ecclesiasticus canon propter nimiam non receperit
vetustatem, ne per occasionem eorum falsa veris insererentur”) p. 1314-1315; XVIII
c. 41 (“De philosophicarum opinionum dissensionibus, et canonicarum apud Ecclesiam
concordia Scripturarum”) n. 3 p. 1321.
88
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
Naturalmente, mais uma vez a conclusão a que recém se chegou é
dimensionada por mim só no âmbito do “verossímil”. A premissa
maior na forma de um princípio de credibilidade por testemunho seria, com efeito, mais “um princípio de credibilidade” buscado
dialeticamente: um princípio de verossimilhança de proposições. É
quase desnecessário afirmar que o drama argumentativo maior, nesse
contexto de credibilidade dos conteúdos e das Escrituras da religião
cristã, desenrola-se com respeito à premissa menor. Invoque-se, para
tanto, o labor dos teólogos cuja expertise é a explanação da Bíblia, a
delimitação e interpretação da tradição e, concomitantemente, a fundamentação da autoridade da Igreja em matérias doutrinais.
Considerações finais
As premissas maiores dos argumentos principais acima (3.1 e 3.2)
são “princípios de credibilidade” buscados dialeticamente. “Autoridade dos que escrevem” e “diligência dos recebedores dos escritos” são
“tipos de princípio de credibilidade”. Os silogismos desenvolvidos são
silogismos dialéticos/prováveis, argumentos que devem levar alguém
a crer na conclusão respectiva: “pelo menos” uma das premissas dos
silogismos – certamente as premissas menores a cada vez, que exigem
o duro labor de expositores – “não é evidente”. Naturalmente, os argumentos de amostra oferecidos não têm a forma probativa de argumentos científicos (dedutivos) – onde as premissas deveriam manter o
que Scotus chama em Ordinatio prol. n. 208 de “certeza”, “evidência”
e “necessidade”112. Nos casos em jogo, Scotus tanto termina por convencer “acerca de” aspectos básicos de racionalidade e crença quanto
112
Cf. DUNS SCOTUS, Ordinatio prol. p. 4 q. 1-2 n. 208 p. 141-142.
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quer explicitamente convencer “com” esses aspectos básicos: crença em
algo sob bons motivos ou princípios de credibilidade é razoável; crença em algo sob princípios de credibilidade não só latentes, mas (preferencialmente) explicitados e (conscientemente) aplicados é razoável;
ter razões fortes (por causa da subsunção a princípios de credibilidade)
para tomar algo por verdadeiro acarreta que é racionalmente preferível
tomar aquilo por verdadeiro do que não fazê-lo ou, então, do que
tomar a posição contrária – a de dizer a sua falsidade. Reconheço, outrossim, que tais apontamentos conclusivos só puderam ser obtidos
com certa ousadia – bem ou mal sucedida – do intérprete com respeito à forma nua dos textos.
Os argumentos soam válidos, mas certamente muitas convicções
posteriores devem ser obtidas para estabelecer a premissa menor a cada
vez113. Na sua apresentação atual nos argumentos, é de supor-se que as
premissas menores não podem (ou, segundo os padrões contemporâneos sobre a interpretação das Escrituras canônicas e da tradição eclesiástica, não poderiam ainda) ser consideradas estabelecidas. Essa é uma
tarefa que o teólogo – mesmo o teólogo filosófico – deveria realizar
quando desafiado pela descrença ou crença contrastante de outros; ele
não faz maravilhas, mas esforços de razão. Somente a “fé infusa” é um
milagre114, não a “aquisição” de fé, que continua sendo, como tal, insuficiente para a salvação.
113
Para argumentos desse tipo, que se inserem dentro da rubrica “argumentos de
autoridade e de testemunho”, cuja força racional é mais fraca do que a força probatória
de argumentos científicos, a aquisição de crença pode exigir condições posteriores,
como, por exemplo, a vontade e o papel da mesma no assentimento e no dissentimento;
isso é insinuado em Ordinatio III d. 23 q. un.; cf. CROSS, R., Duns Scotus on God, p. 7.
114
Cf. notas 49, 58, e 61 acima. Cf. também BOULNOIS, O. 1998, p. 91-100.
90
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DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...
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Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011
LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO
LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO.
A NOVIDADE DE
LORENZO VALLA
Paula Oliveira e Silva *
Resumo: Lorenzo Valla é um pensador humanista, cujo perfil intelectual é difícil de definir. Filosofo? Literato? Filólogo? Teólogo? Este
mesmo facto é característica do Weltgeist humanista. É também um
autor pouco conhecido, ao menos no universo de fala lusófona. Neste
artigo damos a conhecer o conteúdo doutrinal do seu opúsculo De
libero arbítrio. Nele tece uma profunda crítica à Filosofia Escolástica,
tal como a entende, atacando-a pela raiz, isto é, centrando-se na figura
e na obra de Boécio e, nomeadamente, naquilo que diz ser a incoerência das teses do último romano acerca da conciliação entre liberdade
humana e presciência divina. Criticando o excesso de filosofia e de
razão que eiva a teologia do seu tempo, e em concreto a via moderni,
Valla indica o que considera ser a novidade do seu pensamento acerca
da questão em apreço: abandonar de vez a possibilidade de a entender
e viver, mediante a fé, o pré-destino que Deus determinou para o termo da existência humana. Valla é, aqui, claramente um representante
do fideísmo que caracteriza o movimento reformista.
*
Doutorada em filosofia medieval, investigadora auxiliar do Instituto de Filosofia da
Universidade do Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
[email protected]
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011
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PAULA OLIVEIRA E SILVA
1 Valla, um espírito genuinamente crítico
Lorenzo Valla nasce em Roma em 1407 e, após uma existência
marcada de algum modo pela errância – Pavia, Florença, Milão e Nápoles, são algumas das cidades por onde passou – termina os seus dias
também em Roma, em 1457. É uma figura de excepcional importância não só para a cultura italiana, como também para compreender as
características de fundo que historicamente virão a configurar o
humanismo europeu. O objecto dos seus interesses, reflectindo-se na
sua obra, diversifica-se entre o gosto pela literatura, em particular pela
clássica, pela filologia – que o leva a adquirir competências linguísticas,
sobretudo no grego e no latim clássicos –, a apetência pela historiografia
e a compreensão do seu valor na reposição da verdade histórica, a filosofia e a teologia.
Reunindo em si mesmo tal diversidade de saberes, Valla torna-se
efectivamente um modelo do ideal humanista do século XV. Interessa-se pela cultura do seu tempo e pelas particulares tendências humanistas
que começam a assomar, não obstante o método escolástico se encontrar ainda vigente e pujante, mormente no plano institucional do ensino universitário da filosofia e da teologia. Reflectindo a atenção do seu
autor aos sinais dos tempos, a obra de Valla responde quase sempre a
situações concretas, emergindo quer do debate com os círculos intelectuais da época, quer da leitura dos autores de uma determinada tradição que, com base em Boécio Auctor, ou na incontroversa auctoritas
de Aristóteles, desenham os elementos da cultura filosófica e teológica
então dominante. Ao método e estilo escolástico, Valla opõe a sua
dedicação à retórica e a preferência pelo estilo dialógico, às quais associa um espírito não particularmente conciliado com a metafísica.
Do ponto de vista da sua história pessoal, a ambição de Valla teria
sido ocupar o cargo de secretário papal, em Roma. O facto de não ter
conseguido obter esse lugar na Cúria Romana faz que se dirija a Pavia,
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Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011
LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO
onde ocupará a cátedra de Retórica do Studium da cidade, lugar que
conseguira graças ao apoio de Antonio Beccadelli, dito o Panormita.
Todavia, o ambiente científico e cultural de Pavia não era particularmente dado aos estudos humanistas. De facto, o ensino universitário
aí ministrado, tal como em Pádua e Bolonha, estava forjado pelo
aristotelismo e pelo método escolástico, dificultando que aí se viessem
a enraizar os studia humanitatis1.
Em Pavia, Valla teve ocasião de aprofundar a sua posição crítica com
relação ao aristotelismo, à lógica dialéctica e ao método teológico
escolástico. Com efeito, o intercâmbio cultural que aí se vivia e a amizade
com personagens como Pier Candido Decembri e Maffeo Vegio, do ciclo
de humanistas da Lombardia, tê-lo-ão familiarizado progressivamente com
um modo de pensar crítico para com a dialéctica, sobretudo quando aplicada às questões teológicas. Ao mesmo tempo, a crítica à aplicação da
dialéctica ao direito, levada a efeito pelo circulo humanista de Pavia e Milão, é também assumida por Valla sobretudo no libelo Ad Candidum
Decembrium contra Bartoli Libellum cui titulus de insignis et armis epistola,
escrito em 1433 e endereçado a Decembri, contra o escrito De insignis et
armis do consagrado jurista Bártolo de Sassoferrato2.
O anti-aristotelismo, a oposição ao método jurídico, a adesão ao
método histórico-filológico são as notas características mais relevantes
do ambiente cultural humanista de Pavia que Valla levará consigo,
quando tiver de abandonar a cidade, dado o efeito adverso provocado
pela vinda a público do referido opúsculo contra Bártolo de
1
O próprio Petrarca, que aí havia permanecido entre os anos 1365 e 1369, terá sentido
a mesma adversidade, que relata na obra “De sui ipsius ac multorum ignorantia”,
redigida em 1377, talvez mesmo em Pavia (ROSSI, V. V. “Il Petrarca a Pavia”, in: Studi
sul Petrarca e sul Rinascimento. Firenze, 1930, p. 3-81).
2
Este opúsculo foi editado em conjunto com o De libero arbitrio e a Apologia, em Viena
(SINGRENIO, G. 1516) e na Basileia (CRATANDER, A. 1518).
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PAULA OLIVEIRA E SILVA
Sassoferrato3. Valla acusa-o de ignorar a língua latina e a eloquência –
sem a qual os livros dos juristas romanos não se podem entender - e
de, por esse facto, interpretar erroneamente o direito, corrompendo as
normas da tradução. A perturbação que este escrito provocou na Universidade de Pavia, onde Valla ensinava retórica, valeu-lhe um pedido
de demissão e o correspondente abandono da cidade. Tais vicissitudes,
contudo, denotam principalmente uma divergência cultural e de linguagem, reveladora do contraste cada vez mais evidente entre duas
formae mentis, a humanista e a escolástica.
Após uma breve estada em Milão e Florença, chega a Nápoles,
vinculando-se à corte de Afonso V de Aragão4, o Magnânimo, onde
permanecerá entre 1433 e 1448. Foram anos de produção fecunda,
nos quais redige algumas das suas obras principais, entre elas o escrito
De Linguae Latinae Elegantia e o opúsculo De libero arbitrio.
Afonso V soube rodear-se de não poucos humanistas e intelectuais
eminentes, como António Beccadeli, Bartolomeu Facio5, Giorgio di
Trebisonda, Teodoro de Gazza, Giannozzo Manetti e Gianantonio di
Pandoni dito Porcellio. Ao seguir Afonso V e a sua corte, Lorenzo
Valla pôde respirar o ambiente de uma verdadeira forja de cultura
humanística. Porém, se a protecção do Rei significou a possibilidade
3
Garin escreve, a propósito do espírito polemizante de Valla: “ Il Valla è sempre
crudelmente polémico, e questo suo accento riveste di colori particulari, e quasi scandalosi,
le antitesi di cui si compiace nei confronti dello passato” (GARIN, E. L’umanesimo
italiano. Laterza, Bari, 1993, p. 63).
4
Afonso V de Aragão, em 1416, I de Nápoles em 1435 e das Duas Sicílias em 1442.
5
Bartolomeu Facio, humanista ao serviço de Afonso V, historiador real e tutor do
Príncipe Ferrante, redige uma obra, De vitae felicitate, contra o De vero bono, de Valla.
Esta obra de Valla deu de facto origem a uma série de discussões sobre a condição
humana na segunda metade do século XV, que encerra uma tentativa de confrontar a
visão cristã tradicional do homem e a realidade observável pela experiência humana.
Explicitamente, três nomes estão envolvidos na controvérsia: António Beccadeli,
Bartolomeu Facio e Lorenzo Valla. Veja-se a propósito Charles Trinkaus, In Our Image
and Likness, Vol. 1, p. 200-229.
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LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO
de realizar os seus projectos literários e de terminar as obras já iniciadas, contudo Valla não pôde ainda gozar do ócio em liberdade que
sempre ansiou e que considerava condição para se dedicar às artes liberais. De facto, como secretário do Rei, deveria segui-lo, às vezes por
longos períodos, nos acampamentos e campanhas militares6. É neste
ambiente que redige o De libero arbitrio, obra que se encontra entres as
primeiras que elaborou durante o período napolitano.
2 O Diálogo De libero arbitrio: posição do problema
A questão acerca da natureza do livre arbítrio da vontade humana
e da sua conjugação com a presciência divina, ou a existência de uma
ordem universal, é um debate constante ao longo da História da Filosofia. Ora, quando Valla acede a debater, com António Glarea, esta
mesma questão, indica, logo no Proémio, que pretende dizer algo de
próprio, novo e diferente de quanto foi dito pelos demais que se expressaram sobre o tema7. Em que consiste, então, esta especificidade?
A uma primeira leitura, o texto não apresenta, de facto, nada de
novo. Analisando o acto livre humano e a presciência de Deus, conclui
que em nada se contradizem, pela dissociação, em Deus, entre o acto
6
No Prefácio ao V Livro das Elegantiae, descreve assim a sua situação: “Já passei três anos,
quase quatro, em constante peregrinação, indo de um lado para o outro, por terras e mares,
com a campanha ainda recente e certamente despendi toda ela na milícia; mas não sei com
certeza se o fiz por decoro ou mais por necessidade. No entanto, mesmo que o não dissesse,
não duvido que todos sabem com certeza que me faltaram todas as ajudas que são importantes e mesmo essenciais para os estudos: leitura habitual, abundância de livros, lugar
adequado, tempo disponível e por ultimo, ter o espírito sem outras ocupações” (VALLA, L.
De linguae latinae elegantia. Introdução, tradução, edição critica e notas de S. Lopez
Moreda, Tomo II, Cáceres, 1999, p. 551: nossa tradução).
7
LA, 52-57: “E esforçar-me-ei por discutir e resolver todo este assunto com a máxima
diligência que puder a fim de que, depois de todos os que escreveram acerca dele, eu
não pareça ter raciocinado em vão. Com efeito, apresentaremos algo de nosso e diferente dos demais”.
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PAULA OLIVEIRA E SILVA
de conhecer e o acto de exercer a sua vontade. Esta tese é uma constante, nos textos que tratam a mesma questão, bastando recordar, por
exemplo, os diálogos de Agostinho e Anselmo ao propósito. Porém, o diálogo é conduzido a termo por Valla numa direcção inesperada, a saber, a da predestinação, por parte de Deus, e a da graça,
dois conceitos cujo horizonte hermenêutico não é mais o da filosofia, mas o da teologia. Acresce ao facto que, por se tratar do ente
supremo, os actos de predestinação e graça são totalmente inacessíveis para a mente humana.
Poder-se-ia, então, concluir que, mais do que uma peculiar solução para o problema proposto, a especificidade do modo de Valla se
posicionar ante ele reside no facto de considerar que a questão do livre
arbítrio e da sua compossibilidade, ou não, de integração numa ordem
maior, não é de âmbito filosófico, mas teológico, sendo, por isso – e
este é um pressuposto constante no pensamento deste humanista –
inacessível à razão. Ora, na óptica de Valla, esse parece ser o grande
equívoco gerado pelos filósofos em torno desta questão particular, sendo
Boécio, neste assunto particular, o principal réu no tribunal da história. No contexto da obra de Valla, o De libero arbitrio insere-se assim,
como uma continuatio da crítica a Boécio que iniciara em De vero
bono, muito em particular ao De Consolatione Philosophiae.
Assim sendo, o De libero arbitrio é para Valla um veículo para
ampliar a sua crítica ao saber escolástico e aos pressupostos
epistemológicos da filosofia e da teologia, contestando o método de
ambos os saberes e a sua aplicação à concepção da moralidade e do
exercício da liberdade cristã. De facto, Valla assume o De consolatione
Philosophiae como emblemático de toda a escolástica, quer pelo conteúdo, quer pela metodologia, bem como pelo lugar central que esta
obra ocupou ao longo da Idade Média Ocidental. Esta obra e o seu
autor marcam de algum modo o início de uma nova era e permitem
delinear, em conjunto com os demais escritos de Boécio, a forma mentis
100
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011
LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO
que será uma constante no Ocidente latino até ao século XII8. Ora,
Valla considera que o modo de entender a filosofia e a teologia, por
parte de Boécio, é em si mesmo pernicioso para a religião. Um tal
posicionamento esteve na origem, historicamente, do método
escolástico e da concepção de saber por ele veiculado, sendo necessário
pôr de manifesto o aspecto nefasto de uma tal proposta, por um lado,
e abrir novos itinerários à razão, por outro. Esta tarefa residirá, na óptica
de Valla, em boa parte, na retomada do que fora dito pelos Padres e da
recordação da essência da vera religio, a qual não está no poder da razão, mas na força da sobrenatureza divina.
Com efeito, escreve Valla, o erro de Boécio, que o levou a não
entender como devia a questão do livre arbítrio, foi o de não ter amado a filosofia como devia9. Mas, como deveria, então, ter Boécio amado a filosofia, na perspectiva de Valla? De certo modo, colocar a filosofia ao serviço da religião comporta uma dupla perversão, inquinando
ambos os saberes. Ora, foi isso que a Idade Média, e a Escolástica com
seu exponente máximo, levaram a efeito, primeiro pela mão de Boécio,
posteriormente pela de Aristóteles. A crítica de Valla atinge, assim,
rejeitando-a, uma multissecular tradição filosófico-teológica. A esta,
opõe a christiana religio, em moldes que deixam de lado um sentido
determinado da inteligência da fé, que servira de base ao exercício da
filosofia como ancilla theologiae: o facto de a razão, identificada com
8
Sobre este assunto, veja-se COURCELLE, P. La consolation de Philosophie dans la
tradition littéraire. Paris, 1967. A obra do erudito francês analisa à exaustão as fontes de
Boécio para a composição do De Consolatione, bem como a projecção desta obra ao
longo da Idade Média, quer quanto à transmissão do texto, quer quanto à doutrina.
9
LA, 10-11: “(...) só o amor desmedido à filosofia levou Boécio, no Livro V da sua
Consolação, a não raciocinar como devia acerca do livre arbítrio. [11] Na verdade, aos
quatro primeiros livros respondemos na nossa obra sobre O Verdadeiro Bem. E esforçarme-ei por discutir e resolver todo este assunto com a máxima diligência que puder a fim
de que, depois de todos os que escreveram acerca dele, eu não pareça ter raciocinado em
vão. Com efeito, apresentaremos algo de nosso e diferente dos demais”.
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PAULA OLIVEIRA E SILVA
o modelo da lógica dialéctica, estar na base da ciência teológica. À
sanctissima religio, afirma Valla, as doutrinas dos filósofos não foram
senão prejudiciais, tendo estado na origem da maior parte das heresias.
Contra estas pugnaram os Apóstolos e os Padres, quais colunas do
templo de Deus – mais do que com a filosofia, que tantas vezes expulsaram como fonte de erros –, pela prática das boas obras.
Afinal, o que Lorenzo Valla propõe – atitude que é comum a
outros humanistas da mesma época e que caracteriza afinal o próprio
humanismo – é a defesa de um novo paradigma de racionalidade. Este,
regressando às fontes dos Padres e dos Apóstolos em matéria de fé,
deve recolher-se à autoridade dos Antiquii, mais do que enveredar pela
nova via modernorum. Para transmitir a doutrina de sempre, deverá
apurar as artes da comunicação, fundamentalmente da retórica, bem
como cingir-se ao apuramento da verdade histórica mediante o recurso ao método histórico-filológico10. Por seu turno, opondo-se veementemente à instrumentalização da filosofia por parte da teologia,
que caracterizou a escolástica aristotélica-tomista, Valla apresenta a
rethorica como alternativa ao problema da mediação epistemológica
entre esses dois saberes fundamentais. Desta forma, propunha-se instaurar o estatuto humanista da teologia11.
A especificidade do posicionamento de Valla em face da discussão
sobre a natureza do livre arbítrio é a compreensão da destinação humana no contexto de uma salvação sobrenatural, operada pelo Deus da
10
Exemplo dessa paixão pela historiografia é a obra escrita enquanto secretário, conselheiro e historiógrafo de Afonso V: Historiarum Ferdinandi Regis Aragoniae libri tres
(1446/1447). Do apuramento do texto à luz da filologia é resultado a Collatio Novi
Testamenti, cuja segunda redacção foi publicada por Erasmo em 1505, em Paris. E,
associando aqueles dois saberes, o histórico e o filológico, Valla escreve o De falso credita
et ementita Constantini donatione declamatio.
11
Sobre esta proposta de Valla, e o modo como ela é articulada no interior da sua obra,
veja-se “La rethorica come modus tehologandi”, no capítulo II da obra de S. Camporeale,
Lorenzo Valla...., p. 226-265.
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LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO
revelação judeo-cristã. É este o horizonte desse diálogo do humanista
romano, o qual, porém, só é desvendado claramente já no final do
opúsculo, mormente à luz da selecção de textos paulinos aí levada a
efeito por Valla. Todavia, antes de concluir por esta tese de cepticismo
racional face ao conhecimento do modo de agir de Deus, o debate
tido com António Glarea, de que De libero arbitrio deixa constância,
inicia-se com uma análise da própria tese boeciana acerca da relação
entre a presciência divina e o livre arbítrio.
Reconhecendo a um tempo quer a arduidade do problema, quer a
necessidade de o esclarecer12, Valla nega-se a aceitar as respostas dadas
pela tradição filosófica, incluindo a de Severino Boécio. Não recusa
que o posicionamento da questão por parte deste seja exacto, mas sim
que o seja a solução apontada, a qual, todavia, foi considerada por
uma tradição multissecular como sendo a melhor. Aliás, Valla retoma
o debate justamente a partir do posicionamento boeciano, assumindo-o como próprio. Porém, onde Boécio pensa ter solucionado a questão, Valla encontra uma limitação essencial, operada pela razão filosófica quando, erroneamente, e extrapolando a sua limitação natural, se
julga capaz de penetrar nos segredos divinos.
3 Presciência divina e liberdade humana
No livro V de De Consolatione, Severino Boécio soluciona o conflito entre presciência divina e liberdade humana invocando a
especificidade do conhecimento de Deus. A solução boeciana incide
numa análise do modo do conhecer divino, sublinhando a diferença
entre tal modo de conhecer, eterno e necessário, e o conhecimento
12
LA, 80: “Ant. - A questão acerca do livre arbítrio, da qual depende tudo o que se
refere às acções humanas, toda a justiça e injustiça, todo o prémio e castigo, e não só
nesta vida como também na futura, parece-me extremamente difícil e particularmente
árdua”.
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PAULA OLIVEIRA E SILVA
humano, sujeito aos condicionamentos da alma unida ao corpo e à
sucessão temporal13. Boécio distingue, da mesma forma, uma necessidade per se, que é própria de Deus, e uma necessidade condicionada,
específica das realidades contingentes, entre as quais se conta o poder
humano de escolha. Na base destas categorias, afirma a coexistência de
um conhecimento necessário, por Deus e para Deus, de tudo o que
sucede, sem que tal acto divino condicione ou determine a escolha
humana14. Valla, por seu turno, tece uma dura crítica a esta postura
boeciana. Como pode a razão humana, que acaba de ser descrita como
limitada e sujeita ao tempo, sendo essa a base do argumento, penetrar
na essência da divindade, afinal, conhecer a mente suprema de Deus?
Por isso, o raciocínio de Boécio surge a Valla como contraditório,
baseado em elucubrações e sobretudo um atentado ao primado de
Deus sobre a razão humana15.
13
BOÉCIO, S. De Consolatione, V, 6, 2-3: “Deum igitur aeternum esse cunctorum
ratione degentium commune iudicium est. Quid sit igitur aeternitas, consideremus;
haec enim nobis naturam pariter divinam scientiamque patefacit”. No seguimento,
define, com base neste conhecimento humano da inteligência divina, o que é a presciência: “Si praesvidentiam pensare velis, qua cuncta dinoscit, non esse praescientiam
quasi futuri, sed scientiam numquam deicientis instantiae rectius aestimabis”. Boécio
soluciona a questão anulando a própria noção de presciência. Tratar-se-ia, afinal, de um
conhecimento de presença, ante o qual a percepção do futuro é inadequada (Cf. Ibid.
V, 6, 31-32).
14
Cf. BOÉCIO, S. De Consolatione Philosophiae, V, 4, 21-36.
15
A crítica à posição de Boécio e aos limites da razão é introduzida pela fala de António.
LA, 149-164: “E nos demais assuntos não rejeito os escritores, pois ora um, ora outro
me parece dizerem coisas prováveis. Mas no assunto acerca do qual desejo falar contigo,
seja-me dada a tua benevolência e a dos demais: absolutamente nenhum deles tem o
meu assentimento. Na verdade, que direi dos outros, quando o próprio Boécio, a quem
todos dão a palma na explicação desta questão, não sendo capaz de levar a cabo a sua
tarefa, se refugia em certas realidades imaginárias e fictícias? Com efeito, diz que Deus
pela sua inteligência, que está acima da razão, e pela sua eternidade, sabe tudo e tem
tudo na sua presença. Eu porém, que sou racional e nada conheço fora/à margem do
tempo, a que conhecimento da eternidade e da inteligência poderei aspirar? Suspeito
que estas coisas certamente nem o próprio Boécio as entendeu, se o que disse é verdade,
coisa que não creio”.
104
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LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO
Qual é, então, a solução de Valla e o seu contributo para o esclarecimento da questão? Valla não concebe a oposição entre presciência e
liberdade a partir de um modelo de conhecimento específico da divindade, mas a partir da experiência humana do conhecimento prévio16.
Neste sentido, recorda o debate ocorrido entre Agostinho e Evódio,
alguns séculos antes daquele registrado entre Boécio e a Filosofia. Com
efeito, no terceiro livro do Diálogo sobre o Livre Arbítrio, é debatido
precisamente o mesmo problema e conclui-se que as dificuldades derivam não tanto da divindade da presciência, mas da relação entre o
conhecimento de outro face à acção livre de um terceiro17. Este pressuposto é coincidente com o de Valla, para quem a previsão de um acontecimento não é causa eficiente dele18. No modelo de Agostinho, o
debate prossegue apurando a análise e fixando o problema não com
relação a um conhecimento eterno de acções que se desenrolam no
tempo – proposta que se viu ser a de Boécio – mas por referência ao
conhecimento dos futuros, pois só com relação a estes se coloca a ques-
16
LA 252-253: “Não dirás que algo seja por tu saberes que é”.
17
Diálogo sobre o Livre Arbítrio (DLA), III, IV, 10. “A. – De onde te parece provir esta
contradição entre a presciência de Deus e o nosso livre arbítrio? É por se tratar de
presciência ou por ser presciência de Deus? E. – É mais por ser de Deus. (...)” Após o
debate com Agostinho, Evódio reconhece que o que faz a presciência dos futuros um
conhecimento necessário é a própria noção de presciência – conhecimento antecipado.
Conclui Agostinho: “A. – (...) não é por ser presciência de Deus que é necessário que
aconteça o que ela conhece de antemão, mas tão-somente por ser presciência, a qual
seguramente não existe se não conhecer coisas certas” (Trad. de Paula Oliveira e Silva,
INCM, Lisboa, 2001, p. 267-269).
18
LA, 248-255: “Ainda não vejo por que razão te parece que da presciência de Deus
decorre a necessidade das nossas acções. Se, de facto, prever que algo virá a existir, faz
que venha a existir, seguramente saber que algo é faz igualmente que seja. Mas se
conheço a tua inteligência, não dirás que algo seja por tu saberes que é. Por exemplo,
saber que agora é de dia. Porventura é por saberes isso que o dia é? Ou pelo contrário, é
porque é o dia que sabes que é de dia?”
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105
PAULA OLIVEIRA E SILVA
tão da incerteza e da variabilidade19. Ora, a presciência divina confere,
a este futuro incerto (para nós), um determinismo absoluto, pois as
coisas terão de ocorrer tal como Deus as prevê. António Glarea leva o
raciocínio até à aporia, pois a ser assim, a liberdade humana de escolha é
anulada. Mas se, inversamente, se afirmar que as coisas acontecem de um
determinado modo, e é por isso que Deus as prevê, a presciência de Deus
torna-se necessária (e, inclusivamente, de algum modo, subordinada aos
acontecimentos), o que introduz em Deus a contradição própria de um
conhecimento necessário de realidades contingentes.
Às aporias de Glarea, Valla responde com duas teses que também
se encontram em Agostinho. Por um lado, o facto de o conhecimento
prévio de Deus respeitar a natureza das coisas que conhece. Deste modo,
Deus conhece as acções humanas enquanto resultados de uma decisão
livre da vontade que as pratica20: de que modo pode Deus ignorar a
acção, se não ignora a vontade que é fonte da acção?21 Quanto à segunda dificuldade que decorre da introdução em Deus de um conhecimento necessário do contingente – Valla responde com a infinita perfeição do conhecimento de Deus. O facto de Ele não poder não prever
19
LA, 271-274: “Assim, nestas realidades temporais admito que não é por algo ter sido,
ou ser, que sei que é desse modo, mas sei que assim é porque isso é ou foi. Mas o
raciocínio acerca do futuro é diferente, porque é variável e não pode conhecer-se com
certeza, porque é incerto”.
20
LA, 233-236: “Pelo facto de Deus prever algo que será feito pelo homem, não há
nenhuma necessidade em que o faça, porque o faz voluntariamente. Ora o que é voluntário
não pode ser necessário”. Em DLA III, III, 8: “Como Deus conhece de antemão a nossa
vontade, existirá a própria vontade, que Ele conhece de antemão. A vontade existirá,
portanto, porque a presciência de Deus é de uma vontade. Mas não poderia tratar-se de
uma vontade se não estivesse em nosso poder. Deus é também presciente de tal poder.
Assim, não é pela presciência de Deus que este poder me será arrebatado. Ele até me
pertencerá com mais segurança, na medida em que Deus o conhece de antemão, pois
Aquele cuja presciência não se engana conheceu de antemão que este poder me pertenceria” (AGOSTINHO, Diálogo sobre o Livre Arbítrio… p. 267).
21
Cf. LA, 339-340.
106
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LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO
o futuro é manifestação não de uma imperfeição da sua natureza mas
de um excesso da sua sabedoria22.
Um derradeiro passo na análise da relação entre presciência e liberdade humana é dado pela distinção entre futuros contingentes e futuros livres. Aqueles primeiros sucedem dentro de uma ordem natural
das coisas, a qual está na base de uma certa presciência que também se
encontra em toda a ciência humana dos fenómenos naturais, e que é
exemplo a medicina ou a agricultura. A base de um tal conhecimento
é a constância das relações causa-efeito, expressa nas leis da natureza. O
mesmo não sucede com as acções humanas. Sendo estas causadas pela
possibilidade de escolha, nenhuma determinação prévia as poderá anteceder. Ora a pura indeterminação delas faz ou que Deus não as possa
prever ou, se pode, que elas não sejam efectivamente livres. No exemplo retirado das fábulas de Esopo, discute-se precisamente este aspecto23. A essência da questão é a distinção, nas acções humanas, entre um
domínio de possibilidade e a decisão efectiva, considerados por Valla
como dois planos de realidade distintos. De facto, só sobre esta última
incide a presciência, pois no plano da pura possibilidade de escolha os
próprios contrários são compossíveis24.
Mas a novidade da proposta de Valla estará, sobretudo, no que
emerge da fábula de Sexto Tarquínio, com a qual estabelece o limite
racional de compreensão do problema em análise, dando por encerrado o debate25. A fábula é acerca da consulta que Sexto fez a Apolo,
sobre o que lhe viria a acontecer. Apolo profere um oráculo sumamente desfavorável a Sexto, informando-o de que morrerá na miséria e no
exílio. Suplicando Sexto que lhe altere o futuro, Apolo responde que
22
Cf. LA, 290-294.
23
Cf. LA, 320-385.
24
Cf. LA 405-414.
25
Cf. LA 453-575.
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PAULA OLIVEIRA E SILVA
não o pode fazer, pois apenas conhece factos, não os elabora ou determina. Ora, Sexto fará livremente os actos que o conduzirão àquele destino desafortunado. Mas o infortúnio, que Sexto não deseja e contudo
lhe ocorrerá contra sua vontade, a quem deverá ser imputado? Apolo,
no diálogo imaginado, responsabiliza Júpiter, o Deus em cujas mãos
está o poder e o querer dos destinos, pois a ele cabe a decisão de que
assim acontecerá 26.
Qual é, afinal, a força da fábula? Ela é revelada, mediante a interpretação de Valla, em De libero arbitrio 576-584: se é verdade que em
um só Deus (que os gentios não possuíam, e por isso apresentam em
duas personagens) não se podem separar a sabedoria e o poder da vontade, também é um facto que, aquilo que a presciência não torna necessário se deve submeter à vontade divina: hoc, quidquid est, totum ad
voluntatem Dei esse referendum. Assim, apelando para a potência absoluta da justíssima vontade de Deus, e insistindo nos limites da razão
humana, Valla orienta o debate para o contexto da adesão fiducial.
4 O divino e o humano no concurso das vontades
Ante o postulado da absoluta vontade de Deus, à qual tudo se
refere, o diálogo sofre uma inflexão. Se até agora ele fora conduzido
no domínio da razão dos filósofos, a partir de agora, abandonada esta à
sua limitação, o discurso avançará no plano da fé. Estas duas formas de
conhecimento são claramente distintas: estamos firmes na fé, não na
probabilidade da razão27. Para esta, é inacessível tudo o que se refere à
ordem divina. Inversamente, aquela deve importar para si uma dupla
certeza: a da bondade de Deus e a da inacessibilidade dos seus desígnios.
26
LA, 476-480: “Acusa Júpiter, se for do teu agrado, acusa Parcas, acusa a fortuna de
onde procede a causa de tudo o que acontece. Está nas mãos deles o poder e o querer
dos destinos, nas minhas está apenas a presciência e a predição”.
27
Cf. LA 792-793.
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LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO
Deste modo, o raciocínio da fé deve comportar um juízo maximamente benévolo acerca do incompreensível28, por um lado, e por outro, a
certeza do carácter arcano do agir divino para a razão humana29.
O que está em discussão, nesta terceira e última parte do diálogo,
é saber se a vontade de Deus anula, ou não, a liberdade de escolha30.
Valla afirma não ter solução para a resposta no plano da razão filosófica, e convida António a procurar outro mestre. O diálogo abandona,
então, o comentário a Boécio, investindo sobre o texto bíblico, concretamente sobre a Epístola de S. Paulo aos Romanos31. O horizonte
hermenêutico é agora o da história da salvação, na versão específica
que dela possui a religião judaico-cristã. Na base, como se referiu, está
a convicção de potência absoluta de Deus, a qual sempre se exerce a
fim da maior expressão de bondade. Neste quadro, Valla pode afirmar, a um tempo, que Deus age sobre os indivíduos, quer endurecendo a sua vontade, quer usando de misericórdia para com eles, e, no
entanto, eles são livres de escolher o próprio curso a imprimir à sua
vontade, não lhes sendo, por isso, retirada a responsabilidade no agir.
Acresce a estes elementos a vontade salvífica universal de Deus, cuja
operatividade se levou a efeito mediante a morte do Cristo histórico32.
28
Deus é sapientíssimo e óptimo; o que é bom só pode agir bem (cf. LA 664-666). A
ideia de Deus como noção suprema é uma constante na história da filosofia ocidental e
nela se baseiam os argumentos de Agostinho, em De libero arbitrio, o de Anselmo, no
Proslogion, e a 4ª via de Tomás de Aquino, na S. Th, I, q. 2. Por seu turno, é esta
concepção de um Deus sumamente bom que age necessariamente pelo melhor, que
permitirá a Leibniz, a quem este opúsculo de Valla não passou despercebido, conceber
este como o melhor dos mundos possíveis.
29
A razão oculta da causa do agir divino está numa espécie de tesouro escondido (cf. LA
675-676).
30
Cf. LA 585-593.
31
Os textos referidos por Valla são Rom. IX, 11-12 e Rom. 11, 33.
32
Cristo, sabedoria e virtude de Deus, diz que quer que todos os homens se salvem e
que não quer a morte dos pecadores, mas que se convertam e vivam. Esse facto deve
permitir aos humanos confiar nesse desígnio (Cf. LA, 784-787).
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PAULA OLIVEIRA E SILVA
O raciocínio de Valla é assaz complexo. Antes de mais, na lição da
fábula de Sexto Tarquínio, insinuou que, em Deus, a sabedoria e a
vontade não são o mesmo, conclusão que agora irá explorar. Depois,
ao postular uma vontade de Deus absoluta, mostrará que ela pode agir
sobre os indivíduos, no que se refere à relação deles com o divino. Esse
facto não obsta às livres acções dos homens, mas apenas ao modo
como Deus actua neles e, por meio deles, na relação com o conjunto
dos homens. Quanto à relação, em Deus, entre a sabedoria e a vontade, Valla afirma que os actos desta se submetem àquela, tornando-se,
por isso, totalmente incompreensíveis para a razão humana, mesmo se
muito santa e próxima do divino, como sucedia com S. Paulo, e
mesmo no caso da inteligência angélica que tem o privilégio de conhecer Deus por intuição. Valla considera totalmente inacessível a qualquer razão criada a compreensão dos desígnios da sabedoria divina: a
vontade de Deus tem uma causa antecedente que reside na sabedoria de
Deus. Essa causa é absolutamente justa, porque é de Deus, tornando-se
para nós e pelo mesmo motivo absolutamente incógnita33.
Quanto à relação de Deus com as liberdades criadas, angélicas ou humanas, ele pode agir, e age de facto, endurecendo umas e sendo favorável a
outras. Este facto – e aqui reside alguma novidade, da parte de Valla – não
decorre de uma queda original. Ele é, necessariamente, anterior à queda. De
outra forma não seriam compreensíveis a actuação de Adão e a consequência
dela. Analisemos a interpretação de Valla neste assunto particular, que se
prende com a explicação de uma queda original e das suas consequências
para o género humano. Adão pecou por livre escolha. Porém, esse facto
não corrompe a sua natureza, nem a matéria de que ele foi feito por Deus
– a especificidade da sua natureza, racional e livre. Esta mantém-se naqueles que são toda a sua descendência, ou seja, no género humano. Não há,
de facto, uma corrupção da natureza. Que sucede, então, na natureza hu-
33
Cf. LA 660-665.
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LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO
mana, depois do pecado livre de Adão? Pecaram com ele todos os
homens? Degradou-se a matéria original criada por Deus? Nenhuma
das soluções faz sentido, para Valla. O que sucede é que a vontade dos
homens foi endurecida. Por quem? Pela vontade de Deus. De que modo
ela pode ser regenerada? Pela morte de Cristo34. Qual a causa de que a
vontade divina endureça uns e use de misericórdia para com outros? Esta
razão é impossível indagar35.
Uma semelhante posição para a relação entre as vontades divina e
humana, se é certo que não anula a liberdade de escolha, pelo menos
debilita-a na sua autonomia. Em última instância, sobre a liberdade de
escolha, e mais além dela, exerce-se uma vontade suprema. Esta acaba
por intervir na humana, ao menos numa certa orientação da existência
humana, para Deus ou contra ele, para o bem ou para o mal. Se é
verdade que Valla não emprega aqui o termo predestinação - porventura
por o considerar mais próximo de uma presciência (o conhecimento
de um destino prévio) do que de uma consideração da vontade absoluta de Deus – as fronteiras entre liberdade e destino/desígnio são aqui
efectivamente assaz ténues. É certo que o acto humano permanece
livre: é cada homem que escolhe em cada acto. Porém, não deixa de o
fazer em função da determinação de uma vontade suprema e absoluta
que, se não anula a capacidade de escolha, não permite ao ser humano
querer de outro modo.
A proposta não deixa de ser interessante, pois desta forma Valla
pretende conciliar o exercício individual da liberdade de escolha com a
afirmação de uma ordem suprema e universal, a qual é sempre benéfica e quer para todos o melhor dos bens. Perante tal posição, é fácil
compreender a leitura que a posteridade dela fará. Os reformadores,
34
Cf. LA 681-729.
35
LA, 775-777: “A causa da vontade de Deus, que endurece uns e se compadece de
outros, não é conhecida nem dos homens, nem dos anjos”.
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PAULA OLIVEIRA E SILVA
como Lutero e Calvino, observando a garrafa meio vazia – isto é, ficando
com a dimensão negativa de uma predestinação anunciada e de uma liberdade cujo exercício escapa à escolha humana – defenderão a tese da massa
damnata e de uma impossibilidade de o livre arbítrio do homem contribuir, efectivamente, para a salvação dele. Esta será sempre obra da graça, a
qual é à partida, sectária, com a agravante do carácter arcano, para não dizer
aleatório, do critério de selecção entre justos e injustos. Fixando-se na garrafa meia cheia, o posicionamento de Valla servirá a Leibniz, mediante
alguns ajustes, de base para a ilustração da sua tese acerca do melhor dos
mundos. De facto, no final do Livro III dos Ensaios de Teodiceia, Leibniz
reproduz alguns trechos deste opúsculo de Valla, fazendo incidir o seu
comentário na fábula de Sexto Tarquínio36. Depois, corrigindo a interpretação de Valla, levando-a mais longe retira dela uma nova força. Numa
linguagem simbólica, completa a narração de Valla. Teodoro, pai de Sexto, é levado ao reino de Parcas, onde lhe é permitido contemplar as acções
de Júpiter, não apenas reais, mas também as possíveis. Aí, visualiza as
diferentes possibilidades da existência de Sexto e compreende que, de
entre elas, Júpiter executou a melhor, a de um Sexto que elegeu ser
perverso. Com efeito, as escolhas de Sexto não pertencem a Júpiter,
mas apenas o ser dele37.
Também Valla considerara, de algum modo, este mundo de possíveis, ao menos aplicado às escolhas individuais38. Leibniz leva esta
36
LEIBNIZ , Essais de Théodicée, III, 406-412. Préface et notes J. Jalabert. Paris, 1962,
p. 270-374.
37
Essais de Théodicée, III, 416 : « mon père [ de Parca] n’a point fait Sextus méchant. Il
l’était de toute éternité, il l’était toujours librement».
38
LA 405-411: “É muito diferente o facto de que possa acontecer e o facto de vir a
acontecer. Posso casar-me, posso ser soldado ou sacerdote. Porventura se segue imediatamente que o serei? De modo nenhum. Se é verdade que posso agir de modo diferente do
que virá a acontecer, contudo não ajo de modo diferente, e estava nas mãos de Judas não
pecar, embora tivesse sido previsto, mas ele preferiu pecar, facto que já assim tinha sido
prescrito. Portanto, a presciência é confirmada, permanecendo a liberdade de escolha”.
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LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO
possibilidade às últimas consequências e aplica-a, mediante a actividade
criadora de Deus, à totalidade do universo. Exercendo-se mediante a
livre escolha dos seres racionais e livres, a própria liberdade se insere no
domínio mais amplo de uma vontade e sabedoria absolutas de bondade e felicidade. O resultado só pode ser a efectivação do melhor dos
mundos a um tempo livre, maximamente feliz e sumamente bom.
Referências
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introdução Paula Oliveira e Silva, Lisboa, 2001.
BOECIO, S. La consolazione della filosofia. Turim, 2004.
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FUBINI, R. Umanesimo e secolarizzazione da Petrarca a Valla. Roma,
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GARIN, E. L’Umanesimo italiano. Laterza, Bari, 1993.
KEßLER, E. Lorenzo Valla. Über den freien Willen. München, 1987.
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RIBEIRO DOS SANTOS, L. Linguagem. Retórica e Filosofia no
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ROSSI, V. “Il Petrarca a Pavia”, in: Studi sul Petrarca e sul Rinascimento.
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TRINKAUS, Ch. In Our Image and Likness, Humanity and Divinity in
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A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...
A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO
ANTÔNIO E UM OLHAR SOBRE A
EXEGESE BÍBLICA MEDIEVAL*
José Antônio de C. R. de Souza **
Pretendemos com este estudo, fundamentado na opera antoniana e
na bibliografia especializada, apresentar ao leitor o desconhecido Magister
estudioso e culto que, em seus escritos, soube habilmente conciliar a tradição exegética monástica com as inovações introduzidas por intelectuais
que o precederam nos séculos imediatamente anteriores.
Com efeito, alguém que, desavisado tomasse em suas mãos, pela
primeira vez, a edição bilíngue em latim e português1 dos Sermões
Dominicais e Festivos2 de Santo Antônio, pensaria tratar-se de um conjunto de prédicas ou homilias que ele escreveu e proferiu, alusivas a
**
Professor Titular aposentado da Universidade Federal de Goiás-Goiânia, Brasil e
docente do Gabinete de Filosofia Medieval do Instituto de Filosofia da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto.
1
CAEIRO, Francisco da Gama. Santo António de Lisboa, vol. I, Lisboa, IN-CM, 2ª
ed., 1995, p. 185-186: “... elegante, de excelente contextura, que o misticismo antoniano
ainda mais avivou, com extrema riqueza e variedade de vocabulário, fazendo lembrar a
linguagem dos tempos áureos de Roma e presumir a leitura pelo Santo, decerto em
Coimbra, dos prosadores e poetas clássicos...”.
2
REMA, Cf. Henrique Pinto, OFM, Santo António de Lisboa, Obras Completas, Sermões Dominicais e Festivos, vols. I e II, Porto, Lello e Irmão, 1987. Iremos usá-la neste
trabalho e ao transcrever ou citar um trecho, sempre indicaremos o sermão, o volume e
a página em que se encontra.
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cada evangelho dominical3 ou para missas festivas em louvor, da Virgem Maria, dos Santos, e etc., ao final da leitura do Evangelho ou,
conforme se diz hoje, da Liturgia da Palavra, de acordo com o que
acontece nas missas, há muitos séculos, em que o oficiante ou outrem
retira das leituras ou, particularmente, de uma delas, ensinamentos
que visam à instrução religiosa e moral dos fiéis, bem como ao seu
engajamento na vida eclesial quotidiana. Essa mesma pessoa, tendo ouvido dizer ou lido algures que o Santo foi um famoso pregador que converteu muita gente, também poderia ser levada a crer que eram sermões populares4 que ele teria dito, como os pregavam os sacerdotes na Idade Média e antigamente, hauridos, sim, nas Escrituras, mas, pregados numa linguagem rica em exemplos, muitos dos quais terrificantes ou piegas, com o
fito de, primeiramente, assustar ou comover os fiéis, e depois, levá-los a
conhecer e a compreender as verdades da fé e a refletir sobre a sua conduta
religiosa e moral, e, enfim, estimular neles a prática da doutrina cristã.
Na verdade, os Sermões antonianos não são isso.
Em primeiro lugar, convém esclarecer o leitor de que Santo Antônio pregou, principalmente, ao povo em geral, em português arcaico,
em ocitano ou provençal e em vêneto, nos lugares onde exerceu o
ministério sacerdotal. Entretanto, esses sermões jamais foram escritos.
Com certeza, também, há que ter pregado em latim, em determinadas
ocasiões, dirigindo-se, por exemplo, aos seus confrades franciscanos,
naturais e provenientes de vários lugares, reunidos em Capítulo, provincial ou geral, ou em retiro espiritual; aos prelados francos reunidos
em sínodo nacional; aos cardeais da Cúria Pontifícia e a Gregório IX
3
SILVEIRA, Ildefonso, OFM “Santo Antônio Pregador Modelo de Evangelizador”,
RHEMA 4 (1995), p. 25: “...Falo em domingos e não em sermões, pois às vezes o
mesmo Domingo encerra, além de várias partes do sermão ou cláusulas, também sermões morais, alegóricos e anagógicos, que constituem outros esquemas e temas...”.
4
CANTINI, Gustavo, OFM Conv., “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed
i Sermoni di S. Antonio da Padova”, Studi Francscani, 31 (1934) p. 64: “... consisteva
nel dire de buone cose di esortazione e di edificazione, senza tema fisso e obligato, senza
curarsi di riminiscenze bibliche; ma parlando sopra tutto ex abundantia cordis ...”.
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A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...
(1227-41), o qual deu testemunho desse acontecimento5 e a Assidua
ou Legenda Prima, a hagiografia mais antiga a seu respeito (c.123132), o registrou6. Mas, igualmente, não se pode afirmar, categoricamente, que, na íntegra, tais prédicas tenham sido incluídas nos preditos sermões. No entanto, podemos supor que, ao escrevê-los, lançou
mão de muitos trechos deles todos.
Em segundo lugar, ainda, convém dizer que o título suprareferido,
dado à opera antoniana, não pode ser tomado literalmente ao pé da
letra, pois, na verdade, há quatro sermões, integrantes do primeiro
conjunto que especificamente foram escritos em louvor da Virgem
Maria, e um número considerável deles multiplica-se em outros tantos sermões mais breves de determinados tipos, conforme, adiante,
voltaremos a dizer algo.
Atualmente, ninguém dúvida de que o Santo tenha efetivamente
escrito esses sermões, aliás, como ele mesmo o diz, entre outros motivos, «a pedido dos irmãos», graças ao estabelecimento crítico dos textos, trabalho esse, primeiramente, efetuado por Antonio Maria Locatelli
e sua equipe, o qual, há pouco mais de vinte anos, foi ampliado e
aperfeiçoado por um grupo de estudiosos que os publicaram em três
volumes7. Mas não é descartável a hipótese de que, nos próximos anos,
5
Cf. Bula Cum dicat Dominus, 23 de junho de 1232, in BF, 4 vols. ed. por J. H.
Sbaralea, v. I, p. 79-81.
6
Cf. c. X, a tradução é nossa: “... O Altíssimo deu-lhe o dom de despertar tal estima nos
veneráveis príncipes da Igreja, que o Sumo Pontífice e todo o colégio de cardeais escutaram com devoção ardentíssima seus sermões. De fato, sabia tirar das Escrituras significados tão originais e tão profundos, com notável eloquência, que o próprio papa, com
uma expressão muito pessoal, chamou-o de Arca do Testamento ...”.
7
PACHECO, Maria Cândida Monteiro. “Santo António de Lisboa”, in: História do Pensamento Filosófico Português, dir. Pedro Calafate, v. I, Idade Média, Lisboa, Caminho, 1999,
p. 193: “... A autenticação crítica da sua obra iniciou-se com A. M. Locatelli e concluiu-se
com a última Edição Crítica de Pádua, de 1979, que publica os textos considerados isentos
de qualquer dúvida, agrupando-os nas designações Sermones Dominicales et Festivi ...”.
Cf. também REMA, Henrique P. OFM, Introdução, op. cit., p. XXXIV-LV.
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venham a ser identificados outros sermões que se encontram no Códice
do Tesouro de Pádua como da lavra do Santo8. Tampouco, ninguém
põe em causa que a opera antoniana contêm dois conjuntos específicos, embora, de certo modo, inter-relacionados.
Desde os anos oitenta9 e especialmente a partir do importante
Congresso antoniano de 1981, comemorativo dos 750 anos da morte
do Santo, uma questão tem sido objeto de pesquisa e debate entre os
antonianistas, qual seja, a de tentar determinar, com precisão, quando
exatamente teriam sido escritos os Sermões Dominicais, apesar de a
Assidua afirmar que o foram, entre 1227-30, durante a primeira estada do Santo em Pádua10, enquanto exercia o cargo de ministro provincial dos Menores da província da Romanha.
Os estudiosos estão divididos. Um bom número deles mantém-se
fiel à indicação fornecida pela Assidua. Um outro grupo de pesquisadores não menos sério e expressivo, liderado por Gama Caeiro11, Ma8
Cf. FRASSON, L.; GAFFURI, L.; CRISCIANI, C. “In nome di Antonio: la Miscellanea
del Codice del Tesoro (XIII in) della Biblioteca Antoniana di Padova. Edizione critica”,
Il Santo 35 (1995): 533-575.
9
PACHECO, Maria Cândida M. op. cit., 1999, p. 193-194: “... Nas duas últimas
décadas, estudos mais aprofundados sobre o sermonário – possibilitados pela última
edição crítica de Pádua – fizeram ressaltar a impossibilidade de uma obra tão complexa
ter sido redigida tão rapidamente; puseram igualmente em evidência a disparidade
litúrgica subjacente, a diversidade das formas de citação da Bíblia e a aplicação desigual,
nos Sermões Dominicais e Festivos, do esquema estrutural da Quadriga, sendo estes
últimos mais curtos e muito mais simples na sua arquitectónica interna ...”.
10
Cf. C. XI, 3: “... Verum, quia alio in tempore, cum videlicet sermones per annum
Dominicales componeret, apud civitatem Paduanam residentiam fecerat ...”.
11
CAEIRO, F. da Gama. Santo António de Lisboa - Introdução e selecção de textos,
Lisboa/São Paulo, Verbo, 1990, Introdução, p. 41: “... No simples plano conjectural,
quanto à preferência por uma das opções cronológicas: não surgirá como mais plausível
o momento de redacção de uma obra da natureza e envergadura dos Sermões Dominicais no contexto de uma corporação monástica como Santa Cruz de Coimbra, mais do
que no ambiente efervescente de constante deambulação apostólica, de uma existência
itinerante, com os recursos necessariamente limitados das pobres livrarias das comunidades da incipiente Ordem Franciscana –, a qual aliás estava vocacionada, não para a
pregação antoniana, litúrgica e douta, mas sim para a pregação popular do Patriarca de
Assis e seus companheiros ?...”.
118
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A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...
ria Cândida Pacheco, J.G. Bougerol OFM12 e Francesco Costa OFM
Conv.13, defendem a opinião de que uma obra tão profunda e rica de
conteúdo filosófico e teológico, de citações das Escrituras e de menções explícitas e implícitas a textos de autores sacros e profanos não
podia ter sido escrita numa ocasião em que Antônio estava completamente absorvido pelos deveres do cargo que desempenhava; antes, foi
sendo progressivamente elaborada na Ocitania (Montpellier, Limoges
e Toulouse) e na Itália setentrional (Bolonha)14, onde ele viveu, tendo
ganho sua última demão em Pádua.
Francesco Costa reiterou sua hipótese, de acordo com a qual os
Sermones Dominicales foram escritos em duas etapas 1223/24 e 1226/
1227, tendo afirmando, por exemplo, com referência a esta segunda
etapa que, o Santo indicou claramente a leitura dos trechos do Breviário
da Cúria para os meses de setembro, outubro e novembro, o que, ao
seu ver, trata-se de correspondências com os Domingos 13o ao 24o
depois de Pentecostes que, igualmente, é congruente com um ano em
que setembro e outubro tiveram quatro domingos, e que novembro,
12
Cf. “La struttura del ‘Sermo’ antoniano”, in Atti del Congresso Internazionale di
Studio sui Sermones di S. Antonio di Padova, a cura de Antonino Poppi, Pádua, Ed.
Messaggero, 1982, p. 93-108. O estudioso aventa a hipótese de este conjunto resultar,
em parte, dum material preexistente, sem especificar a sua procedência e o local de
redação. O Prólogo geral e os Prólogos parciais teriam sido acrescentados à redação final.
13
Cf. “Relazione dei Sermoni Antoniani con i libri liturgici”, in: Atti del Congresso
Internazionale di Studio sui Sermones di S. Antonio di Padova, ed. cit., p. 109-144. O
autor propõe dois momentos para a primeira redação, dividindo a execução dessa tarefa
em 1223/1224 (Itália Setentrional) para os sermões do Domingo da Septuagésima até
o do 12º Domingo depois de Pentecostes, incluindo entre estes os 4 sermões em louvor
à Virgem, e 1226/1227 (Ocitânia) para os sermões relativos desde o 13º Domingo
depois de Pentecostes até o do 4º Domingo depois da Epifania.
14
COSTA, Francesco, OFM Conv., “Sulla natura e la cronologia dei sermoni di Sant’
Antonio di Padova”, Il Santo 39 (1999), p. 36: “... A mio modo di vedere, furono,
probabilmente gli stessi confratelli di Bologna che, conoscendo meglio degli altri la rara
sapienza e dottrina del Santo e la sua straordinaria capacità oratoria, gli chiesero di
comporre anche un sussidio per la predicazione ...”.
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JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA
embora tenha tido cinco domingos, o último deles, como de praxe,
equivalia ao 1o Domingo do Advento que assinala o começo do Ano
Litúrgico. Ora, tais coincidências só se explicam num ano em que a
Páscoa tenha caído no dia 19 de abril, e no século XIII, durante a idade
madura do Santo, isto ocorreu somente em 1215 e 1226. Excluído
1215, por razões óbvias, resta apenas o ano de 122615.
Avançando em sua hipótese, estribado nos mesmos pressupostos,
somado à hipótese precedente, com respeito ao término da versão original do Opus Evangeliorum, Francesco Costa afirma que se Santo
Antônio restringe a quatro os domingos depois da Epifania, após o
qual, conforme o ciclo litúrgico de então, vinha o Domingo da
Septuagésima, isto só pode ter ocorrido num ano em que a Páscoa terá
caído entre 8 e 14 de abril, mais exatamente, no dia 11 desse mês.
Excluído o ano de 1221, porque o Santo não teria se ocupado com
esse mister16, “... Resta il 1227, anno in cui alla Domenica IV dopo
15
Art. cit., p. 57-58: “... Con grande cura ... Antonio ... specifica la lettura biblica
del Breviaro della Curia romana per i mesi di settembre, ottobre e novembre ...
Ora, queste coinicidenze delle Domeniche XIII-XVI dopo Pentecoste con un
anno i cui settembre ha solo quattro Domeniche; dele Domeniche XVII-XX dopo
Pentecoste con un anno in cui il mese di ottobre há solo quattro Domeniche; delle
Domeniche XX-XXIV dopo Pentecoste con un anno in cui il mese di novembre
consente di collocarvi le ultime quattro Domeniche dell’ anno liturgico con
esclusione della Quinta della quale ha inizio il nuovo anno liturgico ... sono
coincidenze che si verificano quando il giorno di Pasqua cade il 19 aprile. Nel
secolo XIII ... la Pasqua il 19 aprile capitò nel 1215 e nel 1226 ... inoltre l’inizio
del lavoro sui Sermoni sembra risalire al 1224. Non resta che 1226 ...”
16
Ibidem, p. 59, 62: “... A mio parere, se Il Santo concluse la seri dei Sermones dominicales
con la Domenica IV dopo l’ Epifania, vuol dire che nell’anno in cui attendeva a quest’
ultimo gruppo di sermoni la Domenica sucessiva coincideva con la Settuagesima.
Orbene, la circostanza cronolologica di solo quattro Domeniche dopo l’Epifania si
verifica negli anni in cui la Pasqua cade dall’ 8 al 14 aprile ... siamo indotti a ritenere che
il Santo terminò di abbozare i suoi Sermones dominicales in un anno in cui la Pasqua
cadde l’ 11 aprile ... Se Antonio iniziò il lavoro sui Sermones nel 1224, dobbiamo
escludere l’ anno 1221...”.
120
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A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...
l’Epifania, segnata nel calendario al 31 gennaio, segue ... la Domenica
di Settuagesima, segnata al 7 di febbraio...”17.
Os poucos estudiosos brasileiros que escreveram sobre os Sermões
Dominicais não tomaram posição acerca dessa polêmica.
Seguindo o caminho aberto pelo segundo grupo de antonianistas,
modestamente, ousamos propor mais uma hipótese relativa ao local e
à ocasião em que Antônio teria elaborado a primeira redação global
dessa parte da sua opera, a saber, o eremitério de Monte Paulo18, hipótese essa que, ao nosso ver, não contraria as palavras do Prólogo geral,
em que ele próprio afirma:
... Coligi estas matérias e concordei entre si, segundo o que me
concedeu a graça divina e consentiu a “frágil veia de minha ciência pequenina e pobrezinha”... Fi-lo com medo e pudor porque me sentia insuficiente para tamanha e incomparável responsabilidade; venceram-me, porém, os pedidos e o amor dos
confrades, que a tal empresa me impeliam ...19.
Com efeito, primeiramente, consideramos o fato de o Doctor
Evangelicus ter permanecido nesse lugar durante 15 meses, um tempo
razoável para poder dedicar-se a essa tarefa, apesar de o Prof. Claudio
Leonardi20 observar que a elaboração dos Sermões exigia que o Menorita
17
Ibidem, p. 62.
18
Temos presente a observação de Luís G. da Fonseca SJ, in “S. António e a Sagrada
Escritura”, Brotéria, 2 (1949), p. 625: “... ignorado e tido por ignorante, do célebre
capítulo das esteiras (Assis, 1221) foi encerrar-se no ermo de Montepaulo, admitido
nele quase por compaixão, e lá se ocupou, por alguns meses, em exercícios ascéticos de
oração, humildade e penitência, não porém em exercícios literários ou cientificamente.
Depois, improvisamente, vemo-lo nos púlpitos, assombrando o mundo com sua
eloquência ...”.
19
Ed. cit., vol. I, p. 5. Cf. também LOMBARDO, P. Libri IV Sententiarum, Prologus,
como, em nota, o indica Pinto Rema.
20
In “Il Vangelo di Francisco e la Bibbia di Antonio”, Atti del Congresso Internazionale
di Studio sui Sermones di S. Antonio di Padova, ed. cit., p. 301: “... È tuttavia difficile
pensare che Antonio, quando scrisse i Sermones, non avesse sotto gli occhi una copia
della Bibbia e soprattutto non avesse tra le mani un qualche repertorio biblico o
concordanza o altro. Tanto più che egli è solito convogliare in un texto biblico base una
moltitudine di altri testi più o meno parallelli ...”.
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olisiponense tivesse de ter à mão um número considerável de todos os
tipos de textos para deles retirar as citações de que viesse a precisar. Isso
é verdade, tratando-se da redação derradeira, mas necessariamente não
se aplica às versões iniciais, pois, convém ter presente que o Santo não
só possuía uma memória privilegiada, conforme atesta a Assídua, mas
também que a havia aprimorado durante os seus estudos na canônica
de Sta.Cruz de Coimbra e, igualmente, em seguida, como sacerdote,
ao pregar aos fregueses da paróquia de São João, anexa à mesma, fatos
esses ocorridos, não havia passado muito tempo.
Ademais, há que pensar que em Monte Paulo Antônio gozava das
condições ideais para elaborar a primeira versão de seu Opus, dado que
suas obrigações eram inserir-se no modus vivendi franciscano, celebrar
missa para os confrades que não eram sacerdotes e meditar sobre a
Palavra de Deus. Propositadamente, desconsideramos como irrelevantes
para a hipótese que sustentamos os fatos de os frades terem de cuidar
da comunidade, obter o próprio sustento, preparar os alimentos e aí
não haver os materiais necessários para a pesquisa e a escrita.
Além disso, julgamos que seria mais um tópos hagiográfico da
Assidua a afirmação segundo a qual o superior de Antônio ao mandar
que ele pregasse aos frades reunidos em Forli, para as ordenações das
Têmporas de Setembro de 1222, inclusive aí estando presentes alguns
frades Pregadores, pensasse que relevariam o fato de a mesma não
corresponder às expectativas de tão importante solenidade, posto que
se tratava de um religioso de quem não se poderia esperar muito, face
aos afazeres simples que executava e, que possuía apenas conhecimentos rudimentares acerca das Escrituras21. Antes, é impensável que os
superiores do frade lusitano não soubessem o que ele estava fazendo, e
que não tivessem julgado que o seu trabalho tinha valor. Enfim, atualmente, seria muita ingenuidade pensar que foi só por causa de sua
21
Cf. Assidua, c. 8, ed. citada.
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A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...
brilhante pregação na mencionada ocasião, não tendo passado muito
tempo da mesma, que os seus superiores indicaram-no a frei Elias, o
Vigário da Ordem, como uma pessoa apta a assumir a tarefa de pregador, e, pouco depois, igualmente capaz de desempenhar o cargo de
lector do studium da Ordem em Bolonha que havia sido reaberto.
Por outro lado, discordando dos defensores da tese tradicional
suprareferida quanto à ocasião em que os Sermones Dominicales foram
escritos, e tendo presente os rasgos da personalidade de Antônio que
podem ser entrevistos na própria Assidua e, principalmente, em toda a
sua opera, tais como o amor profundo a Deus e ao próximo e a seriedade e a dedicação com que tudo fazia, há que indagar deles como,
durante aquele período de tempo, ao exercer o cargo de Ministro Provincial, assoberbado pelas inúmeras atividades pastorais e administrativas, inerentes ao seu ofício, o Menorita lusitano podia ter tido condições de começar a escrevê-los e, enfim, vir a concluí-los?
À parte essa questão, que permanece em discussão até que venham
a surgir fatos novos, decorrentes de investigações meticulosas, mediante os quais possa vir a ser determinado, também é o referido Prólogo
que nos fornece indicações precisas sobre o que Antônio tinha em
mente ao escrever seus Sermões Dominicais, por exemplo, os objetivos
imediatos e derradeiros, numa perspectiva, ao mesmo tempo, imanente
e transcendente, quer dizer, de um lado, o louvor a Deus, de outro, a
atenção para com o fim último, isto é, a bem-aventurança eterna, dos
seres humanos, à qual todos aspiram e tendem; a quem podia vir a
interessar, nomeadamente, seus leitores, inclusive os que desejassem
estudá-la e dela servir-se, v.g. para seu trabalho, ou àqueles a quem
viessem a ser lidos; o conteúdo ou o teor que aborda, isto é, textos dos
Evangelhos, das Epístolas e dos Intróitos dominicais articulados, entre
si e com as histórias narradas no Antigo Testamento, lidos no Ofício
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divino; o tipo ou natureza marcante da obra22, isto é, de que maneira
esses textos são analisados ou interpretados, obviamente, de acordo
com os cânones científicos de então; e enfim, que esses procedimentos
geram a Teologia, a ciência mais completa que existe, porque se haure
na própria a Revelação, e que, por esse motivo, tem a preeminência
sobre as demais, à semelhança do ouro que, por ser o mais nobre dos
metais, é o mais precioso de todos23.
22
Ed. cit. p. 4-5: “... Para a honra de Deus, pois, edificação tanto do leitor como do
ouvinte, a partir da mesma inteligência [compreensão] da Sagrada Escritura, com
sentenças [frases] dum e doutro Testamento fabricamos uma quadriga, ‘a fim de que
nela, juntamente com Elias, a alma se eleve dos bens terrenos e, por meio de celeste
viver, chegue ao céu’. E como que ‘na quadriga há quatro rodas’, assim nesta obra se
versam [são tratadas] quatro matérias, os Evangelhos dos domingos, factos históricos do
Velho Testamento, tais quais se lêem na Igreja, os Introitos e as Epístolas da missa dominical
... Esta arca cobre-se com as asas dos querubins, quando a alma, por meio da pregação do
Novo e do Velho Testamento, se protege e defende do ardor da prosperidade mundana, da
chuva da concupiscência carnal, do raio da sugestão diabólica...” .Cf. também, pela ordem,
4Rs (2Rs) 2,11; Glo. Ord., Mc 1,16; Glo.. Ord., Ct (Cântico dos Cânticos) 6, 11; ICr ou
Paralipômenos 28, 18. A propósito, MOSER, A. OFM “A concepção moral de Santo
Antônio de Pádua”, in: Antônio, homem evangélico na América Latina, Compilação das
Conferências apresentadas no 1º Congresso Antoniano Latino-Americano. Santo André: Ed.
Mensageiro de Sto. Antônio, 1996, p. 49: “... O que se depreende de seus sermões é
uma ‘concepção moral’ disseminada um pouco por toda parte, e que pode ser delineada.
Trata-se de uma concepção voltada eminentemente para a prática ... entretanto ... a
organicidade da sua concepção moral nos faz descobrir algumas linhas mestras, que ao
mesmo tempo fazem emergir os principais conteúdos...”.
23
Prólogo, Ibidem, p. 1: “... Está escrito no Génesis: Na terra de Hevilat ‘nasce ouro e o
ouro daquela região é óptimo’. ‘Hevilat interpreta-se parturiente’ e significa a Sagrada
Escritura, a qual ‘é como a terra, que primeiramente produz a erva, depois a espiga e,
finalmente o grão maduro na espiga’. A erva constitui a alegoria ‘que edifica a fé’ ... na
espiga ‘chamada assim de spiculus (ponta), entende-se a moralidade que informa os
costumes e com a sua doçura traspassa e fere o ânimo; no grão maduro, figura-se a
anagogia ‘que trata da plenitude do gozo e da felicidade angélica’. Na terra de Hevilat
nasce, portanto, ouro óptimo, pois que dos textos das páginas divinas emana a ciência
sagrada; e como o ouro está acima de todos os metais, assim a ciência sagrada sobressai
a toda ciência ...’. Cf. também, pela ordem, Gn 2,11-12; Glo. Ord. a Gn 2,11;
GREGÓRIO MAGNO, In Evang. Hom. 40, 1, PL 76, p. 1301; AGOSTINHO, De
doctrina christiana 1, 4, c. 5 n. 7, PL, 34, p. 92.
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A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...
Com vista a bem esclarecer o que acabamos de retirar do Prólogo
geral, o leitor dos Sermões há que sempre ter presente a própria
cosmovisão de Antônio, cristão, religioso e sacerdote que viveu na
época medieval24, impregnada de cristianismo, cujos propósitos ou
metas fundamentais consistiam na construção do Reino de Deus na
terra, mediante os processos pessoal e comunitário da pessoa humana
quanto à conversio (da mudança de vida do mal para o bem, dos vícios
ou pecados para as virtudes, mediante as graças recebidas), e da propagação da justiça divina, como os únicos caminhos seguros para construir-se um mundo melhor, e, depois, atingir-se a pátria derradeira.
Isso, igualmente implica, dum lado, numa orientação de seu devir histórico e espiritual, relativas ao seu próprio ser e à sua maneira de agir que,
igual e paralelamente, supõe Deus como sua causa eficiente e final, e sua
inserção terrena parcial numa comunidade social, a Ecclesia/Societas
christiana, fundada numa fé comum, e à qual passou a pertencer desde o
dia de seu Batismo, e que possui os meios e as pessoas aptas a distribuí-los
entre eles todos, a fim de que possam vir a alcançar a sua meta.
A par disso, essa comunidade funda-se no mistério do amor divino, materializado historicamente com a Encarnação, a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Jesus Cristo, O qual, além de resgatar os seres
humanos da escravidão da morte e do pecado, legou-lhes o mandamento do amor ao Pai e ao próximo. Esta cosmovisão religiosa do
mundo e do ser humano é, pois, a base para compreender o significa24
Cf. SILVEIRA, Ildefonso, OFM, art. cit., p. 24: “... Os sermões [sic] de Santo
Antônio podem considerar-se como fontes históricas ... Portanto, devem ser entendidos no seu contexto medieval, por exemplo, o método oratório, as preocupações com
questões vivas no tempo, a temática geral e etc. ... foram escritos por um autor concreto,
Frei Antônio Martins. Por isso, podem levar ao conhecimento de sua figura intelectual,
de seus pontos de vista doutrinários, de sua cultura, de sua personalidade de homem,
de santo, de religioso...”.
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do da existência humana sobre a terra e da própria mensagem moral
antoniana25.
Nessa perspectiva, então, a história da salvação se efetiva em cada
pessoa, simultaneamente, por intermédio, da adesão e do esforço individual, e das graças sobrenaturais, bem ao contrário do que acreditavam os cátaros ou albigenses, para quem o processo salvífico resumiase numa doutrinação de tipo gnóstico e iluminante e na prática de
alguns ritos individualistas. Daí, menosprezarem os sacramentos, a Igreja
e os seus ministros.
Por isso, também, não foi sem motivo que, no referido Prólogo
geral, o Santo agrupou todos os cristãos ou batizados, filhos da mesma mãe, a Igreja, e de seu esposo divino, redentor misericordioso, em
dois grupos de caráter religioso e moral, designadamente, os principiantes (incipientibus) e os proficientes26 (proficientibus) ou penitentes (e,
com frequência, utilizou essas expressões), perspectiva essa diretamente relacionada com o objeto que elegemos trabalhar.
25
MOSER, A. OFM, “A concepção moral de Santo Antônio de Pádua”, in: op. cit., p.
50-51: “... Mas como todo pregador inspirado no Evangelho, o que Antônio visa é
sempre a conversão do pecador, para que este viva. Daí a importância que dará aos
mandamentos e sacramentos, como caminhos de vida. E, uma vez que investe com
veemência contra o pecado e a decadência dos bons costumes, nada mais natural que dê
um lugar especial ao sacramento da penitência ...”.
26
Ed. cit., p. 2-3 “... ‘David interpreta-se misericordioso, forte de mão’ ... e significa
Jesus Cristo, Filho de Deus’, que foi misericordioso na Encarnação, forte de mão no
sofrimento e ser-nos-á desejável ... na bem-aventurança eterna. Igualmente é misericordioso na infusão da graça, e isto com os principiantes ... É forte de mão, quando
progride de virtude em virtude, e isto com os proficientes. Por isso, diz em Isaías: ‘Eu
sou o Senhor teu Deus, que te tomo pela mão e te digo: Não temas, porque eu sou o teu
auxílio. Como a mãe piedosa toma na sua mão a mão do filho pequenino que se esforça
por subir, a fim de que possa subir atrás dela, assim o Senhor, com a sua mão piedosa,
toma a mão do penitente humilde para que possa subir pela escada da cruz ao mais alto
grau de perfeição e se torne merecedor de contemplar na sua glória o ‘Rei desejável de
aspecto’...” (cf. também pela ordem: Glo. Int. a 1Rs 16, 13, e JERÔNIMO, De nominibus
hebraicis, PL 23, p. 813, Is 41, 43, 1Pd 1, 42).
126
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A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...
As breves citações que fizemos do Prólogo geral, igualmente,
enriquecidas com o respectivo aparato complementar, indicado pelo
editor, mostram ao leitor outras duas características originais e dominantes em toda a opera antoniana, a saber, a erudição do seu autor,
manifesta na riqueza de informações que, reiteramos, Antônio recolheu nas bibliotecas de São Vicente de Fora e, sobretudo, na de Sta.
Cruz de Coimbra, tendo-a absorvido e, a consequente densidade do
texto que ele consegue diluir e explicar, recorrendo tanto aos métodos
exegéticos quanto às técnicas que empregou, sobre o que, adiante,
voltaremos a tratar.
Por essa razão, conforme escrevemos páginas atrás, os Sermões
antonianos são um manancial rico de ensinamentos religiosos perenes
bem como um acervo de informações acerca dos conhecimentos científicos próprios de uma época27, contemplando a filologia, a botânica, a
zoologia, a geografia, a mineralogia, os quais, às vezes, impregnados de
fantasias, com que faz belas comparações aplicando-as moralmente ao
comportamento humano28; conhecimentos esses que também se esten-
27
No Prólogo, ed. cit. p. 5-6, o próprio Santo esclarece porque teve de lançar mão de
tais conhecimentos, afirmando: “... Em nosso tempo, a estulta sabedoria dos leitores e
dos ouvintes degradou-se a tal ponto, que, se não encontram e não ouvem palavras
elegantes, rebuscadas e altissonantes de novidade, enfastiam-se da leitura e recusam-se
a ouvir ... por isso inserimos no mesmo trabalho uma exposição moral sobre a natureza
de coisas e etimologias de vocábulos...”. Cf. SILVEIRA, Ildefonso, OFM, art. cit., p.
31: “... S. Antônio cita várias vezes exemplos da natureza, mineral, vegetal e animal.
Treze da mineralogia, cinquenta e um da botânica, trinta e sete de animais, vinte e duas
de aves, doze de répteis. Descreve a natureza de vários desses seres, baseado na ciência
do tempo, mas com a intenção de ilustrar o que dizia ...”.
28
Muito a propósito, observa Maria Isabel Pacheco, in “Fundamentos e Sentidos da
Exegese Moral Antoniana”, Itinerarium 154 (1996), p. 53: “... Em nosso entender
essa transposição tem uma função simbólica, na medida em que não se dá apenas no
domínio da linguagem, não é uma figura de estilo, mas funciona como o apontamento
e o indício de um projeto maior de recondução da natureza à sobrenatureza, da história
– da carne e da letra – ao espírito...”.
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dem à filosofia29, ao direito30, e obviamente, à teologia31, embora não
tenham sido expostos e analisados de maneira ordenada e sistemática,
dado o próprio gênero literário desse tipo de obra, mas que revelam
… a organicidade rigorosa de um pensamento apoiado em fundamentos sólidos, estruturados por fontes e autores significativos e que, para ensinar Teologia ou para promover a formação de
pregadores, carreia os materiais do seu conhecimento, os que
pode utilizar – se os têm ao seu alcance – e os que considera
úteis ...32,
que, entretanto, requerem do estudioso que deseje explorá-los, elegendo um desses vastos campos, não só uma leitura atenta e um
desentranhamento pari passu, mas também uma certa bagagem cultural com a qual devem ser cotejados.
Daí, os antonianistas de ontem e de hoje, estribados no Prólogo,
estarem perfeitamente de acordo, ao afirmar que, especialmente, os
Sermões Dominicais, entre outras finalidades concebidas por Antônio,
intelectual e professor, visava a servir, tanto de amplo material de estudo para seus alunos instruírem-se nas Artes predicandi, com o fito de,
no futuro, desempenhar os ministeria presbiterais da catequese e da
29
PACHECO, Maria Cândida M. op. cit., 1999, p. 198: “... que vão da cosmologia
à antropologia, da gnosiologia à metafísica, da ontologia à teologia, passando pela ética
e pela estética, emergindo, no entanto, sempre, da interpretação hermenêutica do texto
bíblico ...”.
30
RÁBANOS, J. M. Soto. “?Formación jurídica en Antonio de Lisboa?”, Actas, Congresso Internacional Pensamento e Testemunho, 8º Centenário do Nascimento de Sto. Antonio, Braga: UCP/Família Franciscana Portuguesa, 1996, vol. I, p. 771, 773, 774775, 780, 783: “... No hay testimonios directos para poder elaborar conclusiones
definitivas respecto a la posible formación juridica de Antonio ... no obstante cabe
atribuirle, ya de principio, algunos conocimientos jurídicos, muy especialmente
canónicos, los adecuados a su excelente formación eclesiástica…”.
31
SILVEIRA, Ildefonso, OFM, art. cit., p. 45: “... S. Antônio...não tratou sistematicamente de um tema específico, mas em seus sermões podemos descobrir todos os temas
mais importantes da teologia...”.
32
Idem, ibidem, p. 197.
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A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...
pregação, quanto de paradigmas e ou de esquemas de sermões (não
como os manuais apropriados que, então, já havia), os quais seus
confrades poderiam vir a usar, dando o seu toque pessoal, ao exercer o
ministério sacerdotal33.
Quanto às fontes em que o Doutor Evangélico estribou-se para
escrever sua opera, considerada em sua totalidade, evidentemente, a
preeminência coube à Sagrada Escritura, tanto em razão do caminho
que escolheu trilhar e dos métodos que elegeu, e acreditamos não estar
sendo redundantes ao empregar palavras sinônimas ao fazer essa afirmação, a qual adiante, quase ao final deste tópico será esclarecida, quanto,
também, porque essa era a principal fonte em que os autores da época
se fundamentavam. A título de ilustração, ele citou o Antigo Testamento 3700 vezes, talvez, com a intenção de refutar, implicitamente,
uma das principais concepções defendidas pela heresia cátara ou
albigense, conforme a qual o Deus do Antigo Testamento era a origem
do mal e, portanto, não podia ser o Pai Eterno, Criador de todas as
coisas visíveis e invisíveis34. Ao contrário, para Antônio a Bíblia toda é a
Palavra de Deus, e ambas as suas partes estão em perfeita consonância
33
CANTINI, Gustavo, OFM Conv., art. cit., Studi Francescani, 29, 1932, p. 420: “...
I Sermoni scritti di Antonio poi sono Sermoni fatti ai Religiosi che volevano prepararsi
al Ministerio della Predicazione; oggi li chiameremmo lezioni. Tutto ciò si ricava in
modo chiarissimo dallo stesso Prologo che Antonio ha premesso ai Sermoni ...”. Cf.
DHAAN, Gilbert. “Saint Antoine et l’exégèse de son temps”, Actas, Congresso Internacional Pensamento e Testemunho, ed. cit., vol. I, p. 154: “... Il paraît certain que les
Sermones de saint Antoine sont en fait un stock de matériaux destinés à aider les
prédicateurs. Chaque sermon (aussi bien les dominicales que les festivi) fournit la
matière d’une série des prédications pour le dimanche ou la fête considérée ... Il ne s’agit
pas pour autant d’un recueil de sermons modèles, comme ceux dont les auteurs d’artes
predicandi accompagnaient parfois leurs exposés théoriques ...”.
34
LONIGO, Cherubino da. “Dio in sè e nelle sue opere secondo S. Antonio”, Atti delle
due settimane, ed. cit., p. 339: “... quello di ricavare dalla Scrittura la prova di ogni cosa
bella e buona, per combattere i Catari e gli Albigesi i qualli, tra gli altri errori, dicevano
anche che la Scrittura dell’Antico Testamento era opera dello spirito cattivo, risuscitando
così l’eresia dei Manichei ...”.
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129
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e se completam. Igualmente, citou o Novo Testamento 2400 vezes35,
e ao fazê-lo
... no utiliza una Biblia latina ‘vulgata’, la cual contiene solamente
el texto sagrado, sino que utiliza una Biblia glosada, es decir,
anotada, entre las líneas y al margen, con breves exposiciones
extractadas de las obras de los padres de la iglesia y, con menor
frequencia, de teólogos posteriores ...36.
Ao nosso ver, as demais fontes utilizadas pelo Doutor Evangélico
podem ser catalogadas em três blocos distintos, nomeadamente, os
Padres da Igreja37 e as Glosas Ordinária e Interlinear38, que citou mais
35
Cf. LEONARDI, C. In: “Il Vangelo di Francesco e la Bibia di Antonio”, Atti del
Congresso Internazionale di Studio sui Sermones di S. Antonio di Padova, ed. cit., p.
300, 302-303, chama a atenção para outros pormenores assaz importantes: “... Molte
di queste citazioni sono esplicite, molte altre implicitamente evidenti. Un buon numero sono citazioni lunghe, di interi passi biblici, che si inseriscono come dei blocchi
orientativi di tutto il sermone, che attorno alla citazione si costruisce ... Delle citazioni
veterotestamentarie bem 1.000 si riferiscono al Pentateuco e ai libri storici, com
un’incidenza fortissima per il Genesi, un terzo esatto: 335 occorrenze. I libri poetici e
sapienziali sono presenti con 1.500 luoghi (con 340 a Giobbe, 180 ai Proverbi, 115
al Cantico dei cantici, 165 all’ Ecclesiastico, 570 ai Salmi). Un poco sorprendono le
1.200 ocorrenze per i libri profetici, com il primato dato a Isaia, che con le sue 600
citazioni suoera i Salmi e i Vangeli. Tra questi, il predominio va a Matteo con 480
citazioni e a Luca con 500, rispetto a Giovanni (370 occorrenze) e soprattutto a Marco
(con solo 75). Buona presenza di Paolo con 570 luoghi (ivi compresa la lettera agli
Ebrei), non grande quella dell’Apocalisse con sole 130 occorrenze, meno di quelle di
cui gode l´Ecclesiastico ...”.
36
REINHARDT, Klaus. “Presencia de la Glosa ordinaria en los Sermones de san Antonio de Lisboa, in: Actas Congresso Internacional Pensamento e Testemunho, ed. cit., vol. I,
p. 417.
37
Santo Ambrósio (Hexameron, De fide ad Gratianum, Expositio in Lucam, De officiis
ministrorum, De Virginibus); São Jerônimo (Epistolae, Adversus Jovinianum, De nominibus
hebraicis, Lexicon origenianum, Commentarioli in Psalmos, Commntarii in Isaiam, in
Jeremiam, in Amos, Commentarius in evangelium Matthaei, Comentarius in Job). Gregório
Magno (Moralia in Job, Homiliae in Ezechielem, Homiliae in Evangelia, Regula pastoralis,
Dialogui, Epistola L, Liber Sacramentorum); Isidoro de Sevilha (Etymologiae, Differentiae
verborum et rerum, De ortu et obitu Patrum, De fide catholica, Sententiae, De ecclesiasticis
officiis, Synonyma, De ordine creaturarum, De natura rerum, Chronicon); São Beda (In
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de cem vezes, ou de modo explícito, ou implícita ou aproximativamente39; os escritores coevos, e os autores pagãos40. Para tanto, basicamente seguimos as indicações de Henrique Pinto Rema OFM41.
Cantica Canticorum; In Marci, In Lucae, In Joannis evangelia expositio); São Bernardo
de Claraval (Epistolae, De Consideratione, De conversione ad clericos; De moribus et officio
episcoporum; De gradibus humilitatis et superbiae, Sermones per annum; Sermones de
diversis; In Cantica Canticorum).
38
REINHARDT, Klaus. art. cit., p. 418-419; 421: “... Cuando, a principios del siglo
XII, Anselmo de Laon y otros maestros de teología comenzaron en Laon, Auxerre y
Paris a glosar de esta forma los libros bíblicos, fue solamente la extensión de una glosa lo
que decidió su colocación entre las líneas o al margen; de este modo podía suceder
fácilmente que una glosa se encontrara en un manuscrito al margen y en otro entre las
líneas. Sólo hacia los años 1150/1160 se fijó la distribución de las glosas en marginales
e interlineales ... Desde 1150 hasta los años 1230/1240, es decir durante casi un siglo,
la Glossa constituyó la obra exegética estandar; era la lengua mediante a la cual la Biblia
habló a los teólogos y a los predicadores...”
39
COSTA, Beniamino OFM Conv., in: “Sant´Antonio e la Glossa”, Il Santo 7 (1967),
p. 163: “... in via ordinaria ricava dalla Glossa le interpretazioni letterali e allegoriche
della Sacra Scritura. Si tratta della parte iniziale dell’esposizione delle pericopi liturgiche
che fanno da trama al sermone: quatro pericopi per il sermone domenicale (vangelo,
introito, epistola, lettura biblica dell’ufficio divino), una sola pericope (il vangelo) per
i sermoni festivi. A se stesso il Santo riserva le interpretazioni morali e pratiche. Non si
escludono tuttavia dalla Glossa interpretazioni morali. Dette interpretazioni sono
spesso introdotte dalle formule: ‘Allegorice’, ‘Moraliter’. Di raro interviene pure ‘Ad
litteram’...”. Às páginas 151-154, 154-157, 157-160 arrola um bom número de
citações desses três tipos.
39
REINHARDT, Klaus. Ibidem, p. 425-426.
40
Entre os autores gregos e latinos que Antônio citou implícita ou explicitamente,
merecem destaque Aristóteles (De historia animalium, De animalibus, De partibus
animalium, De generatione animalium, De somno et vigilia, De juventute et senectute, De
respiratione, Meteorologicorum, Ethicorum, De Plantis); Boécio (Liber de Persona et duabus
naturis); Cícero (De Inventione, Pro Milone, Phillippicae, De officiis, De amicitia,
Naturalia); Filo de Alexandria; Flávio Josefo; Horácio (Epistolae, Odes, Sátiras); Lucano
(De bello civili, Meditationes piissimae); Ovídio (De arte amandi; Metamorphoseon;
Remedia amoris; Ponticae); Plínio o Antigo (Naturalis Historia); Sêneca (De moribus;
Epistolae); Solino (Polyhistor); Varrão (De lingua latina; De re rustica); Virgílio (Eclogae;
Georgicon).
41
In: Índice das Fontes Antonianas, vol. II, p. 1027-1033.
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JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA
Entre os Padres, em parte por ter sido frade agostiniano, como
não podia ter sido de outro modo, Antônio hauriu, principalmente,
dos escritos de Santo Agostinho42, considerado pelos medievais latinos o mais importante de todos eles.
Com referência aos magistri medievais43, o Doutor Evangélico lançou mão, particularmente, dos textos de Pedro Lombardo (século XII).
Com efeito, este se servindo tanto das especulações filosóficas aplicadas à Teologia, quanto do método de estudo, utilizado nas escolas de
então, e recorrendo às partes mais filosóficas dos textos dos Padres da
Igreja, escreveu o seu Comentário às Sentenças em quatro livros, o qual,
como sabemos, indiscutivelmente foi a obra mais completa do gêne42
Ibidem, p. 1025. Citamos apenas as mais relevantes. Contra Faustum manichaeum,
De Genesi contra Manichaeos, De immortalitate animae, De libero arbitrio, De vera et
falsa poenitentia; Enarrationes in Psalmos, In Joannis evangelium tractatus, De civitate
Dei; in Epistolas Joannis; De doctrina christiana, De Scripturis, Regula ad servos Dei,
Soliloquia, Confessiones e muitos Sermones. Cf. KLOPPENBURG, D. Boaventura,
OFM, “Santo Antonio, Doctor Evangelicus” REB, 6 (1946) p. 259: “... Especial
menção merece sua dependência de S. Agostinho. Outrora Cônego regular de S. Agostinho, continuou a ter, por certo, em alto preço seu antigo Pai. Um pouco mais tarde
tornar-se-á isto característico de toda a escola teológica franciscana. Além das 54 citações
explícitas, encontram-se inúmeras implícitas. Nota-se verdadeira familiaridade e intimidade com o Doutor de Hipona. Mas sabe também aproveitar-se dos ditos de Agostinho, para ilustrar sua própria doutrina. Não só em questões particulares, mesmo para
explicar parábolas inteiras e esclarecer alegorias...”.
43
A lista dos magistri medievais citados textualmente ou aproximativamente pelo
Doutor Evangélico também não é pequena: Acardo de São Victor (Sermones); Adão de
São Victor (Sequentiae); Alano ab Insulis (de Lille) (Sermones, Distinctiones dictionum
theologicalium, Liber poenitentialis, Summa de arte praedicatoria), Abade Godofredo de
Auxerre (Declamationes); Graciano (Decretum), Hugo de São Victor (In Phil. 3, 19);
Inocêncio III (Regesta IX, Epistola 196, Sermones de Tempore, Sermones de Sanctis, Sermo
5); Pedro Cantor (Summa de sacramentis et animae consiliis, Verbum abbreviatum);
Pedro Comestor ou Manducator (Historia Scholastica); Pedro Damião (De bono religiosi
status, De divina omnipotentia, Liber salutatorius); Ricardo de São Victor (Benjamin
minor, Benjamin maior, In Cantica Canticorum, Mysticae adnotationes in Psalmos, De
Trinitate, De exterminatione mali et promotione boni, De eruditione hominis interioris);
Roberto de Curson (Summa de poenitentia), Hugo de Folieto (De bestiis et aliis rebus).
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ro, e veio a tornar-se o texto básico de trabalho para os estudantes
universitários de Teologia nos séculos subsequentes44.
Não é demais, pois, ressaltar de novo que a erudição sacra e profana, evidente na opera de Antônio, foi colhida e absorvida em Portugal,
nas bibliotecas das canônicas de São Vicente de Fora e, especialmente
de Sta. Cruz de Coimbra.
Ao examinar o Prólogo geral aos Sermões Dominicais, conforme
indicamos páginas atrás, verificamos que o menorita olisiponense prometeu expor e interpretar as passagens da Escritura que viesse a utilizar,
recorrendo aos três sentidos espirituais ou figurados, então em uso45,
nomeadamente, o alegórico, com o fito de descobrir o “... espírito
oculto e misterioso de Deus, mas este escopo ... se alcançava ... com os
“olhos do coração”, ou, mais propriamente, com os “olhos da Fé” ...”46,
o tropológico ou moral e o anagógico ou espiritual47.
44
LONIGO, Cherubino da. art. cit.: 336. “... Pier Lombardo incomincia ... sempre
coll’autorità della S. Scrittura e dei Padri; la prova filosofica deve sgorgare dagli stessi
testi che raccoglie. Egli incomincia la sua opera coll trattato di Dio e della Trinità..
Questo serio metodo teologico, che dice anche senso di rispettosa ortodossia, colpi
particolarmente S. Antonio che, in molte parti dei suoi Sermoni, fa pensare allo stesso
procedere del Maestro delle Sentenze. Da questi anzi trascrive delle intere pagine ...”.
45
CAEIRO, Francisco da Gama, op. cit. 2ª ed., vol. I, p. 201: “... A posição de Santo
António, ou porque, na altura em que viveu, ele já tivesse à sua disposição uma tradição
mais longa e mais esclarecida sobre a exegese bíblica, ou porque como pregador, houvesse de compreender melhor o valor da exposição, é bastante clara e coerente, embora
a circunstância de sua doutrina ter de ser deduzida da obra sermonária, e colhida, assim,
de modo indirecto, obrigue a um exame mais cuidadoso e, por vezes, extremamente
difícil...”.
46
Ibidem, vol., I, p. 243..
47
SILVEIRA Ildefonso, OFM, art. cit. p. 46: “... O figurado abrangia três tipos:
alegórico..., alegoria termo que designa outra coisa diferente da insinuada... tropológico
(ou moral ..., do grego “tropos”, costume) ... e anagógico (relativo ao além) ..., do grego
“anagogé”, o levantar-se para o alto ...”.
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Antônio cumpriu essa promessa, mas isto não quer dizer que ele não
tenha usado o sentido literal ou histórico porque o desconhecia. Antes,
muitas vezes, serviu-se dele, como se fora um átrio duma casa pelo qual se
tem de passar para chegar à sala principal, isto é, aos sentidos figurados dos
texto bíblicos48. Aliás, estribado no abade Guiberto de Nogent, num trecho do Exórdio ao sermão alusivo ao 9º Domingo depois de Pentecostes,
dirigindo-se aos pregadores, ele tanto ressaltou a importância desse procedimento introdutório quanto a ênfase a ser dada ao significado moral dos
passos bíblicos, primeiramente, afirmando:
... Salomão traz nas Parábolas: ‘Quem aperta muito os úberes
para tirar leite, obtém manteiga e o que violentamente ordenha
tira sangue’. Considera estes quatro elementos: os úberes, o leite, a manteiga e o sangue. Os úberes designam o Velho e o
Novo Testamento; o leite, a alegoria; a manteiga a moralidade;
o sangue a compunção das lágrimas ... O pregador, portanto,
deve tirar dos úberes o leite da narrativa, para dele poder tirar a
manteiga suavíssima da moralidade. Recorde-se que o leite consta
de três substâncias. A primeira é o chamado soro aquoso; a segunda a nata; a terceira a manteiga. O soro aquoso significa a
narrativa; a nata, a alegoria; a manteiga, a moralidade. Esta,
quanto mais suave é, tanto mais suavemente penetra nos corações dos ouvintes, porque os costumes estão corrompidos. Por
isso, ‘deve-se ligar mais à moralidade, que informa os costumes,
do que à alegoria, que ensina a fé, pois a fé, por graça de Deus,
encontra-se difundida em toda a terra’, ... o sangue ... significa
a compunção das lágrimas, que vivificam e sustentam a alma, a
fim de não cair em pecado ... O pecador, pois, enquanto se
48
Cf. CAEIRO, F. da Gama. op. cit., 2ª ed., vol. I, p. 205-206: “... Na terminologia
medieval emprega-se muitas vezes a palavra história como sinónimo de letra, traduzindo neste caso o sentido verbal ou literal da Escritura..., raiz e fundamento da exegese
bíblica, o primeiro degrau ou o primeiro plano a procurar e esquadrinhar para a consecução do conhecimento desejado e da Verdade..., resulta evidente que ele atribuiu à
história a primeira e fundamental posição pelo facto de ela ser extraída directamente da
Escritura... Para manter essa espontaneidade da história, o sentido que mais a poderia
favorecer era o moral, por ser menos doutrinal e mais exortativo...”.
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ordenha violentamente com a palavra da pregação, levantando para
as alturas o seu espírito, tira sangue, isto é, derrama lágrimas, por
ter dissipado os bens do Senhor que lhe foram confiados...49.
Especificamente, no que concrene à exeges50 antoniana nos Sermões Dominicais e Festivos, ao nosso ver, é uma das notas constitutivas
mais importantes dos mesmos, porque o Menorita lusitano compulsou
e absorveu dos autores que o precederam o que de melhor haviam
produzido a respeito e lançou mão de tais conhecimentos, tendo dado
em seus escritos um toque pessoal.
Em primeiro lugar, julgamos que, fica assaz evidente, a razão que
levou Antônio a, inicialmente, ter retirado do Antigo Testamento as
narrativas históricas e tê-las usado nos Sermones Dominicales, e depois,
das hagiografias os exempla dados pelos santos, e inseri-los nos Festivi,
como ponto de partida ou motivação pedagógica para seus alunos e
leitores.
Igualmente, também, não foi despropositadamente, conforme tivemos ocasião de ver, explicitamente, no acima indicado Exórdio ao
sermão do 9º Domingo depois de Pentecostes, e outrossim, podemos
verificar em toda opera antoniana, que o sentido tropológico ou a exposição moral do texto bíblico tem uma importância singular. Com
efeito, o ato de pregar, efetivado pelo pregador, devidamente investido
nesse ministério e bem preparado para executá-lo, tem por fito levar o
49
9º Domingo depois de Pentecostes, ed. cit., vol. I: 760, 761, 762. Cf. também, Abade
Guiberto, Quo ordine sermo fieri debeat, in PL 156, col. 26. , e ainda, Cf. Igualmente,
LEONARDI, Claudio. art. cit., p. 311: “... L’originalità di Antonio piuttosto che
nell´esegesi allegorica è da ricercare nell’esegesi morale. Non è certo casuale la
dichiarazione, che percorre tutti i Sermones, di voler intendere ‘moraliter’ la Bibbia: di
fatto il senso morale occupa una porzione assolutamente maggioritaria dei Sermones ...”.
50
Nas últimas décadas os mais destacados estudiosos desse assunto foram Beryl Smalley,
The Study of the Bible in the Middle Ages. Oxford, 1941. Essa autora consagrou alguns
de seus trabalhos a Santo Antônio; SPICQ, Celas. Esquise d’une histoire de l’exégèse latine
au moyen age. Bibliothèque Tomiste, 26, Paris, 1944; LUBAC, Henri de. Exégèse
médiévale. Paris, 1961, e mais recentemente, G. Dahan.
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ouvinte (bem como o estudante e ou o leitor da opera) à conversio e ao
aperfeiçoamento moral, tornando-o receptivo a tais dons que, gratuitamente, foram-lhe oferecidos pelo Redentor, porquanto o mesmo
... estabelece ... o traço de união entre Deus, por um lado, e,
por outro, os homens, o mundo e a realidade sensíve ...» de
modo que «... o intento moral como seja a salvação de si e dos
outros é o que leva o cristão a procurar na Escritura quer o alimento, o sólido apoio para a sua vida, quer o estímulo da letra,
que, mercê de uma dinâmica especial, se desdobra em novas
significações...51
A exegese de Santo Antônio demonstra também uma abertura de
espírito, aos conhecimentos científicos profanos de seu tempo, utilizando-os como instrumentos que poderiam ajudar seus leitores a compreender melhor o texto bíblico.
É, de notar ainda, no referido Prólogo geral aos Sermões Dominicais
que, empregando uma imagem figurada, a da quadriga mística52, o
Doutor Evangélico explicitou que, tencionava elaborar os seus sermões
alicerçando-os em quatro tipos de perícopes53 escriturísticas, como escrevemos atrás, tiradas dos evangelhos, das epístolas e dos intróitos das
respectivas missas dominicais articuladas com as leituras do Antigo
Testamento, tal como se rezava no Ofício divino ou na Liturgia das
51
CAEIRO, Francisco da Gama. Santo António de Lisboa, vol. I, IN-CM, 2ª ed., 1995,
p. 250.
52
DAHAN, G. art. cit., p. 154: “... la fameuse image du quadrige montre assez que
l’objectif est d’indiquer au prédicateur comment les trois lectures bibliques... (l’introite
de la messe constituan le quatrième élément) concordent, quels, sont les liens thématiques
qui les unissent... Ces deux éléments, destination du recueil et lien avec la liturgie,
expliquent les options herméneutiques: l’exégèse sera uniquement spirituelle...”.
53
FONSECA, L. Gonzaga da, SJ, art. cit., p. 680: “... A perícope [o trecho] evangélica
é dividida em ‘cláusulas’, que serão ordinàriamente as partes do sermão... A epístola e o
introito são igualmente divididos em outras tantas partes e ‘concordados’ brevemente
com as do evangelho; a Escritura ocorrente é usada no desenvolvimento das diversas
cláusulas, onde quer que se pode bem adaptar...”.
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Horas54 de então55, textos esses que ia fazer concordar entre si, o que,
entretanto, nem sempre ocorreu como o demostraram muito bem
Gustavo Cantini OFM Conv.56, Jaques Guy Bougerol OFM57 e
Francesco Costa OFM Conv.58 e, foi assim que o Menorita lusitano
procedeu ao intercalar outras citações do tipo em seus textos.
54
Estas subdividem se em Matinas, Laudes, Prima, Terça, Sexta, Noa, Vésperas e Completas.
55
COSTA, F. OFM Conv., art. cit., 1999, p. 37-38: “... Al tempo di Antonio di
Padova in Occidente da oltre un secolo si erano affermati, come único libro per la
celebrazione dell’Ufficio orario, il Breviario e, come libro único per la celebrazione della
Messa, il Messale cosiddetto ‘plenario’... Del Breviario ... erano venuti a far parte il
Salterio, l’Antifonario, l’Innario, il Lezionario, il Responsoriale, l’ Evangeliario e l’
Omeliario, prima raccolti in altrettanti libri differenti. Dall’ambiente monastico, dove
cominciò ad essere usato nel sec. XI, il Breviario si diffuse ben presto in tutti gli
ambienti ecclesiastici divenendo, per la sua maggiore praticità, il libro ufficiale anche
per la celebrazione dell’ ufficio corale... Sotto il pontificato di Gregorio VII (1073-85)
si può dire che la liturgia in tutto l’Occidente era sostanzialmente romana nella sua
struttura ed erano già in uso sia il Breviario che il Messale plenario ...”.
56
In: “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed i Sermoni di S. Antonio da
Padova”, Studi Francescani, 31 (1934), p. 201-202: “... La promessa in generale è
mantenuta, specie dalla prima Domenica dopo Pentecoste in poi; ma vi sono non
poche eccezioni ... Come si possono spiegare queste anomalie?... Una spiegazione più
propia si trova in ciò che Antonio nel comporre la Mistica Quadriga si sia servito, come
ho accennato, di un materiale che giá precedentemente aveva disposto in sermoni,i
quali con qualche ritaglio e ritocco sono entrati in questa composizione sistematica ...”.
O estudioso, nas páginas seguintes (203-204), a fim de corroborar seu ponto de vista,
arrola uma série de exemplos assaz interessantes.
57
In: “La Struttura del sermo Antoniano”, Atti del Congresso Internazionale di Studio sui
Sermones di S. Antonio di Padova, ed. cit., p. 93-104.
58
Art. cit., p. 35: “... È da ritenere dunque che la quadriga sia il nucleo originario dei
Sermones dominicales, ma che il Santo nella redazione finale a Padova abbia aggiunto al
materiale originario altro materiale utilizzato in altre occassione ... sembra certo, ad
esempio, che il primo dei due sermoni della Domenica I di Quaresima abbia avuto un’
origine indipendente dalla quadriga, brevissimo e incentrato sul vangelo della ‘tentazioni
di Gesù’ senza referimento alle altre ‘ruote’ della quadriga. Nella Domenica II di
Quaresima, troviamo due sermoni, uno sulla ‘Transfigurazione’, secondo il rito della
Curia romana, e l’altro sulla Cananea, letto in altri luoghi, come in Francia; e in terra
francese potrebbe essere stato scritto questo secondo sermone, utilizzato poi dal Santo
in fase di redazione finale ...”.
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Para melhor entendimento do leitor sobre esse procedimento, é
preciso esclarecer dois pontos, a saber, a concordância a que Antônio se
referia que ia fazer concerne às ideias ou aos assuntos a abordar59 e,
aplicada amplamente aos passos do Antigo e do Novo Testamento,
significa que ambos constituem-se num todo, a Bíblia, a palavra de
Deus revelada de maneira especial pelo Verbo60 não, propriamente, à
combinação de palavras e ou frases entre si, embora isto também pudesse acontecer. Tecnicamente, Jaques Guy Bugerol OFM e G. Dahan61
designam esse procedimento por concordância temática.
O outro ponto concerne a uma novidade, no mínimo interessante, introduzida pelo Doutor Evangélico nesta parte de sua obra. Ao
59
FONSECA, L. Gonzaga da, SJ., art. cit., p. 681: “... São sugeridas por uma palavra
preponderante do texto a comentar, palavra que o orador frequentemente introduz no
comentário, quando não a encontra no próprio texto; outras vezes, é, antes, o pensamento que se quer explicar, confirmar ou demonstrar que chama outros e outros passos
bíblicos, onde o mesmo pensamento aparece ou se faz aparecer ...”. O estudioso português, às p. 681-684, demonstra como o Santo fazia a mencionada concordância,
analisando o “Sermão da III Dominga da Quaresma”.
60
DAHAN, G. art. cit., p. 173, 177: “... L’affirmation que Jésus est l’exégète véritable
n’est ni une image ni une pieuse pensée, mais un principe herméneutique... la ligne
directrice principale de leur interprétation… la Bible fournit à la fois un contenu (un
savoir, une réflexion sur Dieu, sur le monde, sur l’homme) et une langage (qui est le
moyen d’accéder à ce savoir) ...”.
61
Art. cit., p. 175: “... Ainsi, dans le sermon pour le 1er dim. de carême, Antoine fait
concorder un épisode de la Genèse, la tentation d’Eve par le serpent (Gen. 3, 1-5) et
un récit de Matthieu, la tentation de Jésus par le diable (Matth. 4, 1-5); la mise en
parallèle des versets souligne la proximité des deux textes...” Antes mesmo, Gustavo
Cantini OFM Conv., in : “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed i Sermoni di S.
Antonio da Padova”, Studi Francscani, 31 (1934): 204, já havia explicado como entender
corretamente aquela expressão antoniana, dizendo o seguinte “(...) La concordanza di cui
si parla qui (...) si tratta di porre in rilievo come le affermazioni e pensieri contenuti nel
Vangelo, ed anche nelle altre tre parti della Liturgia, trovino armonia e consonanza in altre
autorità bibliche tanto del nuovo che del vecchio Testamento. È la caratteristica intima di
ogni sermone medievale...Il metodo che usa Antonio per introdurre questi testi di
concordanza, in generale è quello di citare prima le parole del Vangelo, spiegare brevemente il loro significato, e poi recare il testo di concordanza ...”.
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invés de ter escrito seus sermões de acordo com o calendário da Igreja,
o qual, desde o século IX na Cristandade Ocidental, até hoje, começa
com o 1º Domingo do Advento e termina com o último Domingo
de Pentecostes, cujo número, então, podia variar, entre 22 e 24, conforme o domingo em que caísse a festa (móvel) da Páscoa, organizada a
partir do calendário lunar de 28 dias, Antônio optou por seguir um outro
caminho, qual seja, o de tê-los escrito correlacionando-os com as leituras
do Antigo Testamento que eram feitas de acordo com a recitação do Ofício Divino, a oração litúrgica oficial da Igreja. Assim, o 1º sermão refere-se
ao antigo Domingo da Septuagésima, em cuja época do ano, as preditas leituras eram tiradas do 1º livro bíblico, o Gênesis, e o último, ao
antigo 3º Domingo depois da oitava da Epifania.
Em suma, compartilhando da opinião de G. Dahan face ao minucioso estudo que fez da exegese antoniana62, afirmamos que o Menorita
olisiponense também lançou mão de todos os recursos que a
hermenêutica de seu tempo havia alcançado, paralelamente, tendo conservado o que a exegese monástica tinha de melhor, e tendo sido receptivo às novas contribuições desenvolvidas nas escolas urbanas (catedráticas e canônicas), o que pode ser confirmado, de um lado, mediante
as fontes de sua opera, que indicamos páginas atrás e, de outro, é
suficiente referir que, em vários trechos de sermões usou o sentido
literal bíblico63; que, para Hugo de São Victor, os animais mencionados nas passagens bíblicas assumem um significado alegórico e representam Cristo, Adão, Eva etc., “... in Antonio significano i vizi e le
virtù: la continenza, la clemenza, la povertà di spirito, l’ira, l’ipocrisia, il
62
Observa Maria Cândida Pacheco art. cit., 1999, p. 198, que se trata de “... um dos
temas antonianos mais estudados nas últimas décadas..., e reflecte as tendências de sua
época e de sua própria formação (...)”.
63
FONSECA, Luís G. da, SJ, art. cit., p. 687-691, arrola uma série de exemplos desse
tipo de uso.
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falso cristiano etc...”64. Ademais, ao contrário de São Bernardo e dos
outros membros da escola exegética a que pertencia o Melífluo, o
Doctor Evangelicus não recorreu às citações da Escritura, ou dos Padres
da Igreja ou das Glosas para comprovar um ponto doutrinal que desejava transmitir. Para ele, o trecho da Palavra, objeto da reflexão e explanação, simultaneamente, é o seu começo e o seu fim. As citações
dos Padres, das Glosas ou de outras fontes, apenas serviram-lhe de
instrumento ou de caminho para chegar a um entendimento mais profundo do mesmo65.
Também, constatamos atitude semelhante da parte de Antônio
no que respeita à abertura de espírito para acolher as inovações técnicas
preconizadas pelos especialistas de então na oratória sacra66 e, tal é o
caso da organização formal ou interna que deu à maior parte de seus
sermões, dividindo-os em tema, exórdio ou protema, cláusulas ou
partículas, exposição ou explicação, e epílogo ou conclusão67.
64
CANTINI, G. OFM Conv. “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed i
Sermoni di S. Antonio da Padova”, Studi Francscani, 31 (1934), p. 198.
65
DAHAN, G. art. cit. p. 177: “... L’exégèse de saint Antoine, même si elle ne renonce
à aucune des richesses de l’exégèse traditionelle, notamment de l’exégèse monastique,
n’est pas tournée vers le passé: le repprochement avec les sermons universitaires composés
dans le premier tiers du XIIIe siècle, particulièrement à Paris, confirme qu’Antoine
participe au mouvement de son temps...”.
66
Cf. REMA, Henrique Pinto, OFM, “A Retórica em Santo António de Lisboa no
contexto português e europeu da Idade Média”, in: A Retórica Greco-latina e a sua
perenidade, Actas do Congresso (Coord. José Ribeiro Ferreira), Instituto de Estudos
Clássicos, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 11 a 14 de Março de 1997,
vol. II, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, p. 497-518.
67
DAHAN, G. art. cit., p. 157: “... Dans la divisio textus, saint Antoine recourt à quatre
termes essentiellement: clausulae, notabilia, particulae, partes. En fait, ils ne sont pás
équivalents et l’on a affaire à deux séries: d’une parte, clausulae et notabilia, qui ne
correspondent pas à la structure du texte mais à ses idées fortes, autour desquelles
Antoine organise sa matière... Dans de nonbreux sermons particulae (appliqué
généralement à l’épître) s’oppose à clausulae (appliqué à l’évangile...”.
140
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A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...
Em geral, os protemas nos Sermones Dominicales, obviamente,
hauridos no evangelho lido na missa do dia e articulados com um
lanço do Antigo Testamento, que nas outras partes do sermão poderá
ser retomado, para além de serem variadíssimos, às vezes são sucintos,
às vezes são mais extensos e, nestes casos, constituem-se, até certo
ponto, em minisermões, dirigidos, especialmente, por exemplo, aos
pregadores, aos prelados, aos fiéis indistintamente, a determinados tipos
de pecadores e aos vícios que praticam ou, ainda, reportam-se à prática
das virtudes ou a temas doutrinas, como a Paixão de Cristo.
Quase sempre, o tema68 dos Sermões Dominicais é um trecho ou
uma passagem evangélica lida na missa do dia, tomado na íntegra ou
parcialmente, que está presente em todo o texto do sermão, o qual,
adiante, o Santo explicou minuciosamente, o dividido em partes,
designadas por cláusulas, sem um número fixo, explicação essa feita de
acordo com as possibilidades de interpretação que a passagem permitia,
cujo resultado eram outros pequenos sermões secundários de caráter
moral ou anagógico etc.69
68
CAEIRO, F. da Gama, op. cit., p. 191: “... O tema inicial do sermão dominical é, em
regra, constituído por um texto do Evangelho do dia; a estes Sermões chamou mesmo
o Santo ‘Evangelia’... Quase sempre o Santo emprega a expressão tema para indicar o
texto-base de todo o sermão... mas considera algumas vezes como temas os textos
bíblicos sobre os quais assentam as várias cláusulas em que dividiu o sermão e que
funcionam também como ‘sermões’, embora sermões secundários, no sentido de partes
integrantes do sermão principal...”.
69
Ibidem, p. 192-193: “... Desenvolvido mais ou menos o protema..., é então recordado o tema principal do sermão e efectuada a sua conveniente explanação e desenvolvimento. Quando o tema dava para tal, era sua matéria dividida em partes com certa
ligação entre si, a que o Santo chamou cláusulas, de número maior ou menor, conforme
a necessidade. Em geral, as cláusulas eram três, mas há sermões com duas e alguns com
quatro e mesmo cinco. Estas cláusulas eram novos sermões mais simplificados, partindo
cada uma de seu tema, quase sempre diverso do tema geral, mas, no contexto de cada
um havia ligações ou concordâncias com o tema geral e, às vezes, continuavam ali as
concordâncias com a epístola e o intróito da missa dominical que se não tinham chegado a fazer no sermão de entrada, ou ‘sermo prior’...”.
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JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA
Os epílogos, sob a forma duma oração, contêm “... em síntese
muito curta, a matéria do sermão, ou de um de seus aspectos mais
salientes, acabando-a com a invocação da misericórdia divina ou com
o louvor de Deus e dos seus atributos...”70.
Enfim, queremos ressaltar mais dois aspectos presentes nos Sermones
Dominicales. No Epílogo conclusivo Antônio designou explicitamente
seu trabalho por opus evangeliorum, quer dizer, Obra dos Evangelhos,
dando a entender, claramente, que seu livro se alicerçava, precipuamente,
nos quatro Evangelhos, e que, por isso mesmo, fugia dos padrões comuns dos sermonários, então em uso. Um pouco mais adiante ele
também afirma: “... E tudo o que for encontrado neste volume digno
de rasura e correção, deixo à lima da discrição dos sábios da Ordem o
torná-lo claro e emendá-lo...”71. Se, por um lado, esta frase era usualmente utilizada pelos autores da época, ao final de seus escritos, por
outro, é também um importante testemunho de que, em pouco mais
de vinte anos de existência, a Ordem dos Menores já contava entre
seus membros pessoas cultas e capazes de ajuizar aquele texto.
Por último resta dizer algo sobre a segunda parte da opera sermonária
antoniana, a qual é constituída pelos Sermones in Solemnitatum
Sanctorum per anni circulum ou Festivos, escrita a pedido do Cardealbispo de Óstia, Rinaldo dei Conti di Segni, sobrinho dos pontífices
Inocêncio III (1198-1216) e Gregório IX, e, mais tarde, papa, eleito
em 12 de dezembro de 1254, sob o nome de Alexandre IV, na altura,
Protetor do Ordo Minorum, o qual tendo tomado conhecimento dos
Sermones Dominicales, apreciando o seu valor, e tendo visto e ouvido
Antônio pregar aos integrantes da Cúria Romana (1230), solicitoulhe que escrevesse algo parecido no tocante às festas dos santos.
70
Ibidem: p. 192-193.
71
Ed. cit., p. 613-614.
142
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A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...
O Menorita lusitano atendeu ao pedido do cardeal Rinaldo e começou a escrever os Sermones Festivi, em Pádua72, onde se radicou
logo após ter deixado de exercer o cargo de Ministro Provincial da
Romanha e ter cumprido com a missão que os frades capitulares haviam-lhe (e a outros irmãos) confiado junto à Cúria Pontifícia, incumbência tal que não deve ter se estendido para além do correr de agosto
daquele ano. Todavia, Antônio não chegou a concluir a redação deste
conjunto, cujo último sermão é dedicado a São Pedro e São Paulo (a
festa em seu louvor era celebrada em 30 de junho), porque, como se
sabe, veio a falecer em 13 de junho de 1231, o que, igualmente, leva a
supor que não teve tempo de revisá-lo, como, certamente, deveria ter
tido a intenção de fazê-lo73.
Ao nosso ver, nesta parte da opera o Doutor olisiponense acompanhou o supra-referido calendário litúrgico da Igreja, pois o 1º sermão
concerne ao Natal do Senhor, o 2ª a Santo Estêvão (festejado em 26 de
dezembro), o 3º a São João Evangelista (celebrado em 27 de dezembro), o 4º aos Santos Inocentes (28 de dezembro), e, assim, quase
sucessiva e cronologicamente, apesar de, sob essa perspectiva poder ser
formulada a seguinte indagação: por que Antônio não fez sermões em
louvor a Santa Catarina, a Santo André, a São Tomé, Apóstolo, a San72
A propósito, muito oportunamente, observa Henrique P. Rema OFM, Introdução, p.
XXX: “... é natural que o nosso Doutor Evangélico tenha começado a recolher materiais para a futura obra quando lhe confiaram o ofício de pregar em 1222 e o de ensinar
em 1223...” (cf. também COSTA, F. OFM Conv. “Sermoni antoniani e Libri Liturgici”,
in: Atti..., 1982, p. 141).
73
CANTINI, G. OFM Conv., “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed i
Sermoni di S. Antonio da Padova”, Studi Francscani, 31 (1934), p. 217: “... Antonio
interrompe il lavoro per consacrarsi interamente al ministerio della predicazione, e lo
riprende quando gli agricoltori non possono più seguire Antonio predicatore, perchè
urgevano i lavori della campagna. Allora Antonio si porta in Campo S. Piero... Però
sorella morte viene a troncare la sua esistenza, e così il lavoro rimane poco più che a
metà, e rimane non finito anche l’ultimo sermone che è quello della Commemorazione
di S. Paolo, 30 giugno...”.
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JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA
to Tomás Becket (1118-1170), arcebispo primaz da Inglaterra, martirizado em sua catedral pelos asseclas do rei Henrique II, e canonizado
por Alexandre III (1159-81) em 1172, e a São Silvestre, 314-337,
cujas respectivas festas são (eram) celebradas em 25 e 30 de novembro;
21, 29 e 31 de dezembro? A indagação não se aplica à festa em louvor
da Imaculada Conceição de Maria, aliás, enaltecida pelos Franciscanos
desde João Duns Escoto (1266-1308), também designado por Doutor Mariano, porque esta festa só veio a ser introduzida, após a proclamação do Dogma correspondente, em 8 de dezembro de 1854.
Esses sermões, formalmente num total de 20, se apóiam nas mesmas fontes anteriormente referidas, particularmente nas Glosas, bem
como nos Dominicales, mas têm uma estrutura interna bem mais simples do que aqueles, porque, em geral, nutrem-se no Evangelho lido
na missa do dia do qual o Santo extrai diretamente o tema, e que é
explicado frase por frase ou parte por parte (cláusulas ou partículas),
mas sem longas digressões, gravitando, muitas vezes, em torno dos
ensinamentos relativos à fé74, mas deles não consta o protema ou
exórdio75 e exclui-se a articulação ou concordância com a Epístola, o
74
CANTINI, G. OFM Conv., art. cit., p. 218-219: “... Noto innanzi tutto che nella
spiegazione o commento di questi Vangeli, Antonio si è molto servito della Glossa, sia
ordinaria che interlineare, specie quando delle parole evangeliche dà una spiegazione
allegorica... La spiegazione evangelica in quest’Opera è assai più breve, in generale, che
nella Mistica Quadriga... Per altro la cura maggiore di Antonio, anche qui, è quella di
estrarre il burro dal latte della parola evangelica, vale a dire anche qui tende a moralizzare...”.
75
Há duas exceções. Uma é o sermão em louvor à Ressurreição do Senhor (essa é sua
designação) e a outra, à Festa do Pentecostes. Todavia, o tema e o exórdio do primeiro
fundamentam-se em passos do Antigo Testamento a partir dos quais o Santo escreveu
um sermão alegórico, dois morais e um outro anagógico, cujas conclusões aparecem sob
a forma do epílogo convencional. Quanto ao segundo, o tema e o exórdio respaldamse em Jo 14,26: “O Espírito Paráclito, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará
todas as coisas e vos recordará tudo que vos tenho dito”. Depois vêm um sermão literal
(o único neste conjunto), um outro alegórico e um terceiro, moral, cujos dois últimos
haurem-se em Daniel 7, 10 “De diante do Ancião dos dias saía um impetuoso rio de
fogo”. A palavra fogo é o eixo para a concordância.
144
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A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...
Intróito e com trechos vetotestamentários. Ao final da exposição, todos contêm um epílogo.
Por outro lado, o mesmo passo evangélico abre caminho para a
elaboração de outros dois (breves) sermões paradigmáticos, ou alegóricos ou morais, os quais se articulam, tematicamente, com trechos
tirados do Antigo Testamento ou das hagiografias, conforme o caso,
que estão divididos da sobredita maneira, para facilitar a sua explanação, também de acordo com os modelos exegéticos, referidos páginas
atrás. A título de exemplos, o sermão dedicado à festa da Cátedra de
São Pedro é acompanhado por mais dois sermões alegóricos e mais
dois morais; o em louvor à Ceia do Senhor traz dois sermões alegóricos e um anagógico76, o em louvor a S. Pedro e São Paulo traz um
alegórico em louvor a ambos, um outro desse tipo, exclusivamente
em louvor a São Paulo, e mais dois morais. É de se notar, ainda, a
recorrência frequente a uma interpretação figurada moralizante dos
seres da natureza e dos nomes próprios77.
A modo de conlusão, nas páginas precedentes, pensamos ter apresentado ao leitor a valiosa contribuição inovadora do Santo à exegese
medieval, fundada em sua vasta bagagem cultural e em sua formação
intelectual, obtidas nas canônicas agostinianas de São Vicente de Fora,
em Lisboa e em Santa Cruza de Coimbra.
76
Nesse conjunto há apenas dois sermões desse tipo.
77
CANTINI, Gustavo. Ibidem, p. 222: “... Noto che la descrizione di questi animali
qui è più sintetica e più stringata, che nella Mistica Quadriga; poche parole per delinearli
e poi si passa all’applicazione... Noto in secondo luogo... a differenza del primo, gli
animali hanno pure un significato allegorico. Così la pantera, la calandra, il pellicano, la
gallina il verme sono simbolo di Gesù Cristo; e si capisce che il serpente sia simbolo del
diavaolo... noto anche qui di passagio che nella presente opera vi sono elementi che
rivelerebbero una dipendenza da Ricardo da S. Vittore, sia nella descrizione, sia
nell’applicazione simbolica di alcuni animali”.
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COMENTÁRIOS
INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE
INTRODUÇÃO À LEITURA
ESPIRITUAL, HOJE
Hermógenes Harada *
Algo sobre leitura espiritual
1. Leitura espiritual é uma das atividades recomendadas para o
fomento da vida espiritual. Trata-se na leitura espiritual primeiramente de leitura, que tem o caráter de ser espiritual.
2. Leitura é uma das atividades exercidas e exercitadas pelo ser humano como manifestação do seu espírito. Usualmente o que lemos recebe o nome de livro.
3. Na era da computação, fala-se muito de que o livro tem vida já
contada, pois vai ser substituído pelo computador. Independente de se
isso vai acontecer ou não, é de inter-esse observar que o modo de ser
do livro e da sua leitura tem propriedade específica dele, de tal sorte
que, quem consegue ver essa especificidade sempre apreciará a leitura
do livro e, embora seja inteiramente afeiçoado à técnica da computação, não irá substituir simplesmente, como se fossem coisas iguais, a
experiência da leitura de um livro pela “leitura” de um “texto” do computador.
*
Escrito póstumo.
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149
HERMÓGENES HARADA
4. Existem livros escritos sobre uma porção de coisas. Os livros
que foram escritos sobre uma coisa, mesmo que essa coisa se chame
espírito não são espirituais. Pois, escrever ou falar sobre uma coisa, e
correspondentemente ler ou ouvir sobre... tem um modo de ser todo
próprio, que é diferente do modo de ser do escrever, falar, ler ou ouvir
espiritualmente.
5. No caso do escrever ou falar, ler ou ouvir sobre não se tem propriamente o modo de ser do encontro, mas sim um modo de colocar a
coisa sob o ponto de vista do projeto do meu interesse. Por isso a
primeira coisa que me toca ali é o horizonte, é a perspectiva a partir e
dentro da qual olhamos para uma coisa, sobre uma coisa, ordenandoa, ajeitando-a, submetendo-a ao meu ponto de vista. Esse modo de
ordenar, de encaixar a realidade à perspectiva do ponto de vista, se
chama modo de ser objectivo.
6. Muitas vezes usamos os termos objetividade e objetivo para indicar realidade e real. Essa identificação da objetividade com a realidade
e do objetivo com o real não possui a precisão crítica. Assim, o real não
é igual ao objetivo; a realidade não é igual à objetividade. Objetividade, objetivo, objeto; realidade, real, res (latim = coisa) são categorias
usadas a partir de duas situações de todo próprias do sentido do ser
que decide a epocalidade das épocas denominadas na história da humanidade de Modernidade e Antiguidade.
7. Se mantivermos com precisão a distinção acima feita entre objetividade e realidade, não mais estranhamos quando dizemos que a
objetividade, o objetivo, o objeto é o que aparece na perspectiva do enfoque
da subjetividade.
8. Subjetividade indica não este ou aquele sujeito, este ou aquele
grupo de sujeitos, mas sim o modo como um determinado sentido
do ser vem à fala, compreendendo o ser humano como ser sujeito e
agente de suas ações e estas como interpelações produtivas, e a realidade
150
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INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE
como o conjunto de produtos (pro-jectos) das atuações do agenciamento
do perfazer-se desse ser sujeito nessas interpelações produtivas.
9. Realidade indica, não esta ou aquela coisa (res em latim), este
ou aquele grupo de coisas, mas sim o modo como um determinado
sentido do ser vem à fala, compreendendo o ser humano como uma
das intensidades de ser substância, cujo ser é entendido como um em
si, por e para si. Aqui, a realidade e suas coisas não são produtos da
interpelação projetiva do inter-esse do sujeito e agente homem, mas
sim vigência do ser que se realiza em diferentes níveis e densidades da
sua presença como ordens e esferas das entidades ou coisidades.
10. Aqui observamos que o como do falar, escrever e ler da subjetividade é sobre objeto. O como do falar escrever e ler da realidade é o em
participando da vigência do ser em diferentes níveis da sua densidade
como substância.
11. Nessa diferença do modo de ser epocal, tanto da Antiguidade
como da Modernidade, surge sempre a questão: “Entre” essas duas
totalidades há ligação, continuidade, ruptura, ou complementação?
Há “entre” elas algo de comum, geral? Se não houver, como podemos
nós, hodiernos, ler um livro da Antiguidade?
12. Na realidade, essa é uma questão dificílima de ser respondida
adequadamente, a partir das impostações que fazemos com nossas problemáticas. Mas, em todo o caso, percebemos que no fundo do modo
de ser do todo chamado subjetividade (falar, escrever e ler sobre) e
realidade (falar, escrever e ler conascendo) há um fundo anterior, algo
não dito, oculto qual abismo do não saber insondável e sem fundo.
Com outras palavras, ambas as colocações epocais, no fundo, partem
do retraimento de onde, a partir de que e de que coisa?
13. Estar aberto a essa questão, a essa busca, não por curiosidade
de que tipo for, mas sob o toque de uma profunda afeição e necessidade de uma “vida Severina” de “encontro” é o que a grande tradição do
Ocidente denominou de Espírito ou espiritual.
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HERMÓGENES HARADA
14. Seja quem for, analfabeto ou letrado, criança ou adulto, são
ou enfermo, santo ou pecador, cada qual como é facticamente, se quer
fazer uma leitura espiritual, é necessário que o faça a partir e dentro
dessa aberta, dentro e a partir dessa nuvem do não saber.
15. Essa leitura a partir da nuvem do não saber é como se a própria
coisa escrevesse, falasse, lesse ou ouvisse acerca de si mesma a partir de
si. E isso com suas próprias palavras, sem querer se encaixar nenhum
ponto de vista que não seja a própria coisa ela mesma. Aqui toda a
atenção e todo o cuidado devem estar concentrados em deixar ser, dar
espaço livre para que a coisa ela mesma apareça a partir dela, nela mesma, à vontade. Aqui o eu que escreve, fala, lê ou ouve não é sujeito e
agente de uma ação interpretativa, projetiva, impositiva de condição
para a coisa aparecer (cf. o primeiro modo de escrever, falar, ler e ouvir
sobre), mas é pura e límpida abertura de recepção cordial e afinada ao
surgir, crescer e consumar-se da coisa ela mesma, é ser como que caixa
de ressonância da coisa ela mesma.
16. Esse modo de ser do espaço aberto à ressonância da coisa ela
mesma é o que se denomina muitas vezes de ver simples e imediato na
disposição de abertura ao encontro. Mas, como na nossa maneira usual
de entender fixamos o ver como julgar ou lançar perspectivas, em vez
de ver, auscultar, ouvir atentamente, talvez fosse melhor dizer esperar o
inesperado. Esse ver simples e imediato, esse auscultar, esse ouvir não é
passividade. Pelo contrário, trata-se da máxima atenção plena de acolhimento, é o grau mais alto e denso do conhecimento, entendido
como conascimento (em francês conhecer é con-naître, conascer). Esse
modo de ser de acolhimento se diz em grego antigo légein, donde vem
a palavra Logos, que se traduz geral e usualmente por conversa, discurso, pensamento, espírito, razão, mas cuja tradução mais originária seria talvez acolhida, colheita. Por isso, os gregos antigos definiam o ser
humano como sendo o vivente, o ânimo, como coragem de ser atinente
e pertencente ao Lógos. (Tò zôon lógon écchon) essa definição foi então
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INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE
traduzida para a língua latina e ficou animal rationale, que em português é: homem é animal racional. Mas essa definição é entendida de
modo inteiramente inadequado, quando se interpreta a palavra animal como bicho, bruto, e, racional como racionalista, cerebral. Animal, na definição clássica do homem, significa coragem criativa de ser,
o ânimo vivo; racional, referido ao Logos, à plena atenção de colheita
do ser, de acolhida da coisa ela mesma.
17. Quando usamos a expressão leitura espiritual, podemos entender o adjetivo espiritual de diversos modos. Podemos entender o
espiritual como indicando o objeto da leitura. Por exemplo, posso classificar um objeto como pertencente à classe dos objetos do espírito, por
exemplo, votos religiosos, virtudes, Deus, anjos, alma, encontro, amor;
à classe dos objetos físico-naturais (da natureza), por exemplo, pedra,
animais, plantas; dos objetos da cultura, por exemplo, obras de arte,
monumentos etc.
18. Quando a leitura é classificada conforme o seu objeto, então,
temos o modo de ler, descrito lá em cima como leitura sobre. E assim
podemos denominar esse tipo de leitura sobre de leitura historiográfica,
leitura psicológica, leitura sociológica, leitura prática, técnica, leitura literária, estética, religiosa, moralizante, fundamentalista, espiritual,
espiritualista etc.
19. Mas na expressão leitura espiritual o adjetivo espiritual pode
não estar se referindo ao objeto, mas à leitura. Nesse caso leitura espiritual significa ler espiritualmente. E se a gente pergunta: qual é exatamente esse modo todo próprio de ler espiritualmente, a gente agora
pode responder: é exatamente aquele modo de ler, de colher, de receber, vivo e cordial, grande e profundo, infinitesimalmente diferenciado que está exposto acima nos ns. 13, 14, 15 e 16. Aqui a abertura ao
encontro não deve ser confundida com o olhar sem mais nem menos
imediatista conforme o uso padronizado dos nossos ajuizados, pré-
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HERMÓGENES HARADA
conceitos ou opiniões. O ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro é a evidência que se dá no fundo de nossa alma, e na
maioria dos casos está entulhada por outros tipos de saber, que não
possuem esse caráter de limpidez e imediatez do ânimo e da prontidão
pura. Por isso, deve-se trabalhar duramente para que esse entulho seja
afastado e que apareça com todo o esplendor e pureza a clarividência
de fundo da alma.
20. Essa nossa reunião se chama encontro e não tanto curso. Isso
porque no curso se acumulam informações e saberes sobre objetos do
tema das nossas reflexões. Chama-se encontro, pois em tudo que fazemos na reunião não fazemos outra coisa do que exercitar-nos em ver
de modo simples e imediato, na disposição de abertura ao encontro. Em
nos exercitando longa, tenaz e cordialmente nessa disposição, aos poucos nos vamos abrindo para a recepção agraciada do que a grande tradição do cristianismo chamou de Espírito do Evangelho. E o Espírito do
Evangelho é o sopro vital da espiritualidade cristã, a Vida Espiritual.
21. O nosso modo de compreender usualmente a nós mesmos e
os nossos atos está bastante defasado. Por isso, quando nos reunimos e
nos concentramos para um período de leitura de fontes, começamos a
ter dificuldades, antes nunca sentidas. É que o nosso modo de estudar,
aprender, é de se informar sobre as coisas e entendê-las conforme
parâmetro e tabela de programação que temos na nossa mente. Ler e
pensar e descobrir o que está sendo dito ali nós quase nunca fazemos.
Porque raríssimas vezes exercitamos o pensar, sem perceber, vivemos
desde há muito tempo numa inércia e preguiça mental muito grandes.
A nossa não compreensão vem dessa inércia, e não tanto porque somos analfabetos, não estudados. Quando começamos a leitura espiritual e nos exercitarmos com maior volume e intensidade, vamos sofrer muita frustração e tédio com a inércia da nossa mente. Vamos
sub-portar, sustentar com boa disposição esse tipo de dificuldade e
sofrimento. Sem passar por esse tirocínio, não podemos ser espiritu154
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INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE
ais. Quando eu descubro uma defasagem dentro de mim, não devo
me satisfazer em corrigir somente essa defasagem.
22. Para que a leitura espiritual possa ser feita adequadamente,
hoje, e não permaneça apenas uma leitura espiritualista, da qual pode
vir muito consolo e vivências “emocionais”, sem transformação da nossa
existência, é necessário redescobrir e retomar a dimensão onde direta e
imediatamente se dá o espiritual e o espírito, e então exercitar-se longa
e tenazmente nessa “área”. Para essa retomada e redescoberta, é útil e
necessário entender até certo ponto bem, com precisão, a nossa implicação com o saber científico e o saber usual. Por isso, vamos rapidamente refletir sobre esse tema.
Algo sobre o saber científico e o saber usual
23. Muitas de nossas questões, perguntas e respostas podem ser
ambíguas. Ambíguo é diferente de equívoco. Este último se dá quando
a pergunta não atinge a questão, dela está inteiramente por fora, está
de todo enganada. Resposta à questão equívoca não é complicada, pois
basta mostrar que a pergunta está por fora da questão. Pergunta ambígua é quando nela estão implícitas, digamos, empacotadas várias perguntas, de diferentes pressuposições, com diferentes níveis de compreensão. E, em geral, esse empacotamento não é percebido, tanto por
quem pergunta como por quem quer responder. Há ambiguidade no
sentido lato e estrito. No sentido lato é quando a simultaneidade significativa vem do empacotamento de significações diversas, num único termo, por exemplo, o termo entre pode significar: pode entrar e
também o permeio existente entre duas coisas. O nosso professor de
inglês nos contou que havia uma pessoa que queria mostrar que sabia
inglês. Assim, quando alguém bateu à porta, gritou: between!
Ambiguidade, em sentido estrito, temos quando o sentido de um termo ou de uma frase nos evoca uma realidade, cujo modo de ser conScintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011
155
HERMÓGENES HARADA
tém em si profundidade e densidade de ser que não se deixa explicitar
num ou mais termos.
24. Há usualmente confusão de compreensão mútua, quando se
discute, mormente, entre pessoas estudadas e especializadas. Isto porque cada qual fala e escuta a partir de pressuposições de sua própria
disciplina, na qual é especialista.
25. Nessa questão, a maioria de nós pensa mais ou menos o seguinte:
a) Certamente, existem colocações e perspectivas que vêm da especialização. A especialização tem a sua terminologia, a sua linguagem
própria. Assim, a fala especializada das disciplinas de especialização tem
a sua língua própria. Por isso, a economia tem o seu economês. A
filosofia tem o seu filosofês. E assim adiante: matematês, sociologuês,
psicologuês, pedagoguês, teologuês etc.
b) Mas para além ou por cima de todos esses “especializês” há a fala
geral, comum, compreensível a todos que falam a mesma língua. Por exemplo, termos como número, globo terrestre, pensamento, idéias, Deus, homem, cachorro, cachorro-quente, quente de mais, átomo, molécula, célula,
celular, trânsito, lei de trânsito, multa, guarda de trânsito caolho, papa, Igreja
Católica, a espiritualidade franciscana, o Colégio Bom Jesus etc. etc., todo
mundo entende. Para compreender todos esses termos, a gente não precisa
ser especialista, nem fazer um curso especializado. Basta o uso cotidiano.
Mas é ai que nos enganamos redondamente.
26. Em nossas reflexões, distinguimos duas grandes áreas da compreensão da realidade que denominamos compreensão científica da realidade e compreensão pré-predicativa ou pré-científica da realidade. Aqui,
podemos relacionar o que acima falamos há pouco no n. 25 b) à respeito da compreensão pré-científica da realidade. Essa compreensão é o
que está na linguagem comum, usual do cotidiano, e é entendida por
todos, pensamos nós. E há pouco dissemos: Para entender todos esses
156
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INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE
termos, a gente não precisa ser especialista, nem fazer um curso especializado. Basta o uso cotidiano.
27. Aqui reside uma grande ambiguidade, a qual, se não for
esclarecida, nos leva à equivocação. É o seguinte: O que de imediato
experimentamos como realidade pré-científica e sua compreensão e
identificamos com a vida usual, comum, cotidiana de toda a gente, de
todo mundo é na realidade um abismo insondável e inesgotável da
possibilidade de ser que na perplexidade diante de sua imensidão, profundidade e “abissalidade” denominamos de Vida, Ser. Nós nos movemos, vivemos e somos a partir da Vida e nela, a partir do Ser e nele.
Vida e/ou Ser nos antecede, nos abrange, nos impregna, nos compreende; mas a partir de nós não o compreendemos, pois é nele, com ele, a
partir dele que tudo compreendemos, tudo somos, a tudo pertencemos.
O que sabemos, o que compreendemos, o que fazemos, desejamos e podemos, em resumo, o que somos, é in-stante da entoação desse abismo da
possibilidade de ser. A nossa percepção desse nosso situar-se a partir de e na
Vida, capta a Vida e/ou o Ser como Nada (Abismo), Escuridão, Simples
Fato de ocorrer, Algo que sempre de novo nos escapa e se nos retrai. O que
o ser humano é no fundo dele mesmo é ser percepção desse abismo da
possibilidade de ser, chamado Vida e/ou Ser, é ser percutido pelo toque
desse abismo e repercutir como eclosão cada vez nova de um mundo. Essa
disposição de ser passagem da possibilidade para a realização, cada vez como
surgir, crescer e consumar-se de um mundo, os gregos a denominavam de
psyché; e a possibilidade ou a dinâmica de receber o toque do abismo
insondável da possibilidade insondável de ser e se adentrar nesse abismo,
i.é, nele se abismar chamavam-na de nõus; e a concreatividade de
conascer e se constituir como mundo e ser-no-mundo, chamavam de
lógos. Mais tarde psyché foi posicionada como alma; nõus como espírito
e lógos como razão.
28. Tudo quanto vem à fala e vem a si e se constitui como entonação
do abismo, uma vez surgido do abismo, se constitui como mundo, se
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HERMÓGENES HARADA
estabelece como uma realização da realidade e se firma como posição
ou pré-suposição.
29. Pré-suposição assim se firma e se coisi-fica como fundamento,
como base de todo um sistema de explicitação do que ali jaz contido
como fundo do fundamento. As ciências positivas erguem o seu edifício a partir e sobre tais pré-suposições ou fundamentos coisificados. O
nosso saber pré-científico, parte de tais posições das ciências, as
aprofunda, as “des-constrói”, afundando-as para dentro do abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser.
30. Há várias modalidades de adentrar-se na pais-agem dessa dimensão-matriz pré-científica, que alguém como Antoine de SaintExupéry chama de Terra dos Homens. Só que, a partir do saber científico, essa dimensão-matriz pré-científica somente aparece à raiz de suas
pressuposições fundamentais como terra inculta, ainda não suficientemente evoluída, dimensão irracional, popular, mítico, metafísico, como
“nuvens do não-saber”.
31. É somente quando a existência humana adentra o toque desse
não-saber que começa a habitar a Terra dos homens. A coragem de ser à
luz das nuvens do não-saber, da assim denominada “douta ignorância”,
i. é, de ser psyché, nõus e logos, era chamada pelos gregos de virtude dianoética.
A virtude dianoética e o não saber
32. Dizendo-o assim de modo banal, virtude dia-noética é a virtude intelectual. Usamos o termo grego, porque a autocompreensão do
termo intelectual, hoje, está bastante defasada. Mas para compreender
com precisão o que é dianoético, comecemos com essa compreensão
banal usual para ir aos poucos adequando a nossa compreensão à dinâmica dianoética.
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INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE
33. Virtude dia-noética é o que usualmente denominamos de vigor, força da inteligência.
34. Vigor, força da inteligência é algo de grande importância para
uma instituição, cuja missão é ensino, aprendizagem, pesquisa e investigação. Por isso, a nossa pré-compreensão ou pré-conceito do que seja
vigor ou força e inteligência não nos pode ser indiferente, neutro e
óbvio-geral. Todo o ingrediente de dogmatismo, por menor que seja,
aqui nesse ponto, pode se tornar fatal para o ser do progresso e desenvolvimento humano, conforme o que observa Sto. Tomás de Aquino
no seu famoso opúsculo De ente e essência, a saber, que um pequeno
erro no início se torna um grande no fim1 (cf. citação direta).
35. O pequeno erro, que no fim se torna grande, no nosso caso,
consiste em que, para nós, a compreensão do que seja a excelência do
vigor da inteligência está se tornando uniforme, bitolada e
unidimensional. E esclarece-se isso, tomando as ciências positivas como
modelo do saber verdadeiro (certo, seguro), e mormente, a modo de
ciências naturais. Verdadeiro, a saber, assegurado, certo, objetivo, portanto, real.
36. Essa unilateralidade fez com que considerássemos um “tipo”
de racionalidade como critério de cientificidade e racionalidade como
tal; reduzindo todo outro modo de saber e conhecer ao reino do saber
subjetivo, vivencial, instintivo-espontâneo irracional. Com isso, a compreensão do que seja vigor da inteligência se tornou defasada, e, com
isso, começou a proliferar e a se exacerbar a “cultura” toda própria,
astênica, do racionalismo e espiritualismo e sentimentalismo esteticista.
37. Com isso, o que a grande Tradição do Ocidente denominou e
experimentou como psyché – alma, nõus – espírito, lógos – razão foi
1
“Por que um pequeno erro no princípio é grande no fim, segundo o Filósofo no
primeiro livro do Céu e do Mundo...” (TOMÁS DE AQUINO, De ente et essentia,
edição latim-alemã, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1980, p. 15).
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HERMÓGENES HARADA
reduzido à energia bio-neuro-física; e as três grandes fontes e vigências
da criatividade humana, a saber, crer (religião), poetar (arte) e pensar
(filosofia), se defasaram como espiritualismo, esteticismo e cientificismo.
38. Vivemos, nos movemos e somos numa grande entropia do
espírito (psyché, nõus, logos). Essa entropia epocal é chamada muitas
vezes de esquecimento; ou também de ocultamento, ou mesmo, de retraimento.
39. Esquecimento, ocultamento, retraimento do espírito é epocal,
marca a nossa época, aponta para a nossa época, como sinal dos tempos.
40. Na história da humanidade, o que marca de modo decisivo e
fundamental a inovação e a transformação do seu destinar-se, chamase epocal. A palavra epocal vem do grego epoché, que significa parada,
suspensão a modo da contenção de um movimento ou impulso. O verbo
do qual vem a epoché é epéchein, que por sua vez significa ter, manter,
colocar sobre; segurar, estendendo em direção a; alcançar, estacionar, ter
uma estância, demorar; parar, impedir, manter-se contido, conter-se,
hesitar; estender-se sobre, expandir, avançar sobre; ater-se a, assumir, tomar conta de. Todas essas significações, aliás, afins entre si, se referem
de alguma forma a momentos, aspectos da suspensão contida na tensão do ponto de salto, no instante da eclosão do novo mundo. É nesse
instante que se dá a decisão criativa do todo que se deslancha como
real possibilidade do que permanece de próprio do novo mundo. É
dessa suspensão dinâmica de concentração que surge, cresce e se consuma a nova possibilidade radicalmente outra, mas longamente preparada silenciosamente no subterrâneo da época anterior. Esse concentrarse no ponto de salto e o início do novo mundo, no entanto, se dão na
atualidade presente, não, porém, na superfície do tempo atual, onde o
público e a sociedade estão tomados de anseios, inquietações, confusões acerca dos temas fundamentais da vida, ameaçados por infindas
crises, convulsões, guerras, e-versões de costumes, de moral, por
consumismo e perda de identidade humana; mas bem retraído da pu-
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INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE
blicidade, bem no fundo do subterrâneo do tempo presente na tenaz e
silenciosa labuta do pensar.
41. Esse modo de ser do Historiar-se da Humanidade chamada
epoché, época, epocal se caracteriza como tempo de ambiguidade, que é
interpretada como confusão, equivocação. Uma dessas ambiguidades
epocais que acontecem na instituição do saber, aprendizagem, pesquisa, portanto, na escola, na formação humana é em referência à relação
entre as disciplinas do ensino. A seguir, vamos dar um exemplo dessa
equivocação que no fundo é ambiguidade epocal.
42. O exemplo trata da relação entre ciência chamada ciências positivas e ciência chamada filosofia. Assim, muitas vezes, circula certo
equívoco na compreensão da contribuição da filosofia às ciências positivas. E isto, no meio de nós todos, tanto na compreensão usual da
nossa vida cotidiana, nos seus afazeres, como, também, na compreensão acadêmica, especializada, principalmente quando o especialista é
mais funcionário e usuário do status quo do saber padronizado, oficializado, do que alguém doado à busca da verdade em si e como tal. E
isso vale, mormente, para a própria filosofia. O equívoco consiste em
se representar a contribuição da filosofia como fundamentação positiva do saber das ciências positivas. É que filosofia, no seu ser, não é um
saber positivo, nem positivamente sua fundamentação. Num sentido
todo próprio, para ser determinado mais adiante, a filosofia mais afunda
do que fundamenta, mais nadifica do que positiva. Talvez seja nesse
sentido que Nietzsche diz do filósofo no aforismo …..: Um burro,
pode ele ser trágico? Carregar um peso que não pode suportar, nem lançálo para fora de si (Nietzsche, Götzen-Dämmerung).
43. Tentemos precisar bem em que consiste esse mais afundar do
que fundamentar; mais nadificar do que positivar.
Fundamentar significa dar um fundamento, uma base, algo como
uma laje firme e fixa. Afundar significa afundar, ir à pique. Aqui no ir
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à pique, afundar, devemos evitar de representar esse movimento de
afundar como assentar-se na base fixa, no fundamento, mas sim perder-se no abismo insondável e inesgotável, sem fundo. Quando dizemos aqui sem fundo, é necessário cuidar para não fixar a representação
do espaço vazio. Pois, com abismo insondável e inesgotável, sem fundo
não se está apenas dizendo a negação da base e fundamento a modo de
fixação, mas está-se acenando para a plenitude toda própria, inteiramente simples, total única e una, a qual na perplexidade diante da
impossibilidade de dizê-lo, dizemos Ser, Nada, Vida. Mas em assim o
dizendo, na perplexidade e impossibilidade de dizer, poder, querer, fazer
e ser essa “plenitude”, ela se nos desvela, e nesse desvelar-se se retrai
como ab-ismo (ab-imo) próximo de nós, mais próximo de nós do
que nós a nós mesmos, nos impregna em todas as fibras das articulações de tudo que somos e de tudo que não somos nós mesmos.
Essa plenitude toda própria, dita Ser, Nada Vida, novamente, não
deve ser representada como algo místico, uma divindade, um vazio
cósmico, um ente supremo transcendente, metafísico, ou um “empírico
físico matemático”, mas como o não-saber, pré-sente, ora como transparência do óbvio e-vidente, sereno e imperceptível, ora como escuridão opaca e impenetrável, qual paredão da ignorância, ora como enigmática profundidade insondável, em suma, como a amplidão, fundura e dureza da factualidade presente em toda parte como o a-priori
realidade.
Certamente, talvez fosse útil, aqui, recordar novamente a necessidade de precaução em não confundir esse a-priori realidade com o
caótico e irracional. Isso porque esse pré-vio do a-priori realidade é
anterior ao modo como aparece, pois ele não é algo que aparece saindo
por de trás ou do fundo de um outro algo que ali está ou aparece, mas
é a pré-sença retraída que tudo impregna como en-toação de tudo
quanto é e não é. Desse modo, o “quê” assim tudo impregna e tudo
envolve, na precisão da sua diferença que constitui a sua identidade,
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INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE
não é um outro ente do que o ente a que impregna e envolve, mas é o
ente ele mesmo, sua vigência, seu ser, sua essência, enquanto ente, quer
dizer, em sendo. Aqui, o “saber isso”, ou “disso”, o conhecer não é outra
coisa do que contato imediato e simples, “corpo a corpo”, de “corpo e
alma”, “pele a pele” em sendo.
O verbo ser, o é, não é ativo nem passivo, não tem conteúdo, e,
segundo Kant, é pura posição. Só que quando nós dizemos hoje, pura
posição, passamos por cima da palavra pura e pensamos: aqui se trata da
ação pura, maciça, densa e volumosa de pôr, colocar, posicionar algo.
Com isso pura adquire a conotação de densidade, de volume, atribuída ao conteúdo, ao algo, a “o quê” do objeto posto. O pôr é compreendido a partir de “o que é posto”. Assim, a posição não é captada como
pura posição, apenas posição, posição nua e crua, mas como
“euponhoobjeto” (sujeito empírico). À pureza da posição, somente se
faz jus se posição significa condição da possibilidade de posicionamento
de algo como objeto pelo eu-sujeito. A pura posição está em todos os
elementos que constituem o “todo” do “sujeito empírico” não como
um dos elementos, a modo empírico, mas transcendendo a todos eles,
não, porém, constituindo um algo superior, fora da série, mas como
que constituindo “pregnância”, “plenitude” de ser onipresente em toda
parte, lá onde acontece o ente, ou o em sendo. Essa presença que não
aparece, por não ser algo, mas tudo fazer aparecer, qual espaço livre de
ressonância, qual tonalidade das tonâncias de todos os sons, é o apriori realidade, acima insinuado, o abismo insondável e inesgotável,
fundo sem fundo da possibilidade de ser. É o não-saber, a escuridão que
se abre à raiz de toda e qualquer posição e pressuposição, seja em que
nível e em que dimensão do ente se achar.
A assim chamada contribuição da filosofia às ciências positivas não
consiste, portanto, em embasar as posições das ciências positivas numa
posição mais vasta e profunda, visto ser considerada um saber mais
profundo e mais fundamentando, mas em reconduzir primeiramente
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HERMÓGENES HARADA
a si mesma, em todas as suas posições, e com isso também as pressuposições das ciências positivas, ao toque da percussão do abismo da
possibilidade de ser, que se recolhe à raiz de toda e qualquer posição e
pressuposição, como abertura ao não-saber, afinado ao abismo da plenitude insondável e inesgotável do nada ou da possibilidade de ser.
164
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011
TRADUÇÕES
AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...
AS TEORIAS DA ESCRITURA
CONTIDAS NOS FRUTOS, ISTO É, AS
CONSIDERAÇÕES QUE ALIMENTAM
O ENTENDIMENTO E O AFETO E,
PRIMEIRAMENTE, AS QUE
ALIMENTAM O ENTENDIMENTO *
S. Boaventura
Sumário: Introdução; repetição, 1. – Parte I: As teorias que consistem nas considerações das reflexões salutares em geral. Estes frutos
alimentam o intelecto e o afeto. O pão de muitos é insípido, 2. – Esta
refeição é indicada na Escritura, 3-4. – A alma na qual está plantada a
Escritura é o paraíso, é o jardim fechado e a fonte selada, 5. – Parte II:
A refeição do intelecto em particular. O que é a alma sem o conhecimento da verdade; ela necessita de objeto que dê firmeza aos pensamentos instáveis, 6. – A Escritura mostra isso, 7. – Ela ilumina o
intelecto por doze aspectos, 8. – Primeiro, por dentro, pelos espetáculos internos; em segundo lugar, por fora pelos exemplos propostos, 9.
*
Texto latino das Opera omnia Sancti Bonaventurae, Edição de Quaracchi, Editio
Maior, vol. V, 1891, pp. 329-449. A Colação XVII está na p. 409-414; a Colação XIX,
p. 419-424. O mesmo texto é usado também para a edição Opere di San Bonaventura,
VI/1, Sermoni Teologici/1, Città Nuova Editrice, Roma, 1994. Colação XVII, p. 310325 e a Colação XIX, p. 344-359. Esta última edição é bilíngue: traz o original latino
da Edição crítica de Quaracchi (citada acima) com tradução italiana, feita por Pietro
Maranesi. A tradução dos textos aqui é feita por Fr. Ary E. Pintarelli.
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S. BOAVENTURA
– Em terceiro lugar, por cima, pelas promessas divinas, 10. – Em quarto
lugar, por baixo pelos tormentos do inferno, 11. – Em quinto lugar,
de frente, pelos preceitos que dirigem, 12. – Em sexto lugar, por trás,
pelos juízos rigorosos, 13. – Em sétimo lugar, à direita, pelos consolos
severos, 14. Em oitavo lugar, à esquerda, pelos castigos benignos, 15.
– Em nono lugar, pelo contrário, mostrando os exércitos da tríplice
guerra, 16-18. – Em décimo lugar, ao redor, mostrando ajudas de
todos os lados, 19. – Em décimo primeiro lugar, à distância, pelos
sinais das doze figuras em todas as criaturas, 20-24. – Há perigo para o
teólogo na demasiada investigação das coisas naturais, 25. – Em décimo segundo lugar, de perto, pelos dons das graças; o duplo conhecimento: exterior e interior, 26. –A respeito destes doze mistérios existe
tanto a árvore da vida como a árvore da ciência do bem e do mal, 27.
– Epílogo sobre o tempo futuro, quando não haverá defesa pela razão,
mas pela autoridade, 28.
1. A terra produziu erva verde etc. (Gn 1,12). Foi dito que a visão
da inteligência ensinada pela Escritura trata de três coisas: das inteligências espirituais, que se compreendem pela reunião das águas; das
figuras sacramentais, representadas pela germinação das ervas e das árvores; pelas teorias multiformes, mediante a multiplicação das sementes e a nutrição das árvores. Estas teorias consistem nas considerações
dos tempos que se sucedem, que são como que sementeiras e em correspondência entre si; as outras teorias consistem nas considerações
dos alimentos salutares, porque não só de pão vive o homem (Mt 4,4).
O homem deve considerar de que se alimenta, isto é, da palavra da
Escritura; por isso, é uma árvore que produz fruto (Gn 1,12). Com
efeito, o intelecto necessita de alimento, de que necessita o afeto.
2. Em primeiro lugar, deve-se falar da refeição do intelecto. Mas,
como diz o Apóstolo: O agricultor que trabalha deve ser o primeiro a
colher os frutos (2Tm 2,6); porque é necessário que o pregador primeiramente se encha e se adoce e depois proponha aos outros. Todavia,
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AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...
muitos querem ser vistos e ouvidos como Profetas, mas seu pão ou
seu alimento é insípido, mal cozido e frio, e retêm o povo e pouco
progridem.
3. Deve-se notar que assim como o fruto agrada à vista e ao gosto,
todavia agrada à vista principalmente por sua beleza e formosura, e ao
gosto por sua doçura e suavidade, da mesma forma também estas teorias alimentam o intelecto por sua formosura e o afeto por sua suavidade. – Isso é indicado pela Escritura quando diz: Ora, desde o princípio, o Senhor Deus plantara um jardim de delícias, no qual pôs o homem
etc. (Gn 2,8). Isso é dito como recapitulação depois do sétimo dia,
porque esta plantação foi feita no terceiro dia.
4. E continua: E fez brotar da terra toda a sorte de árvores de aspecto
atraente e saborosas ao paladar: a árvore da vida no meio do jardim, e a
árvore da ciência do bem e do mal (Gn 2,9), para alimentar o intelecto
por sua formosura e o afeto pela suavidade. A realização, porém, estava na árvore da vida, contanto que se precavesse da árvore da ciência.
Portanto, a terra é a Escritura que produziu toda a espécie de árvores de
aspecto atraente quanto ao intelecto, e saborosos ao paladar quanto ao
afeto, isto é, produziu multiformes teorias que agradam e que alimentam. No paraíso celeste não existe plantação senão das razões eternas; e
embora ali exista alimento proveniente das predestinações de todos os
Santos, todavia, gozarei sobretudo pela minha predestinação; e a isso
alude o Salvador quando diz: Alegrai-vos porque vossos nomes estão escritos no céu (Lc 10,20). – Paulo pôde falar do paraíso celeste, pois foi
arrebatado até o terceiro céu (2Cor 12,2); nós não o conhecemos, e só
falamos do terrestre.
5. Mas a alma é o paraíso, na qual foi plantada a Escritura e possui
admiráveis suavidades e belezas. Por isso diz o Cântico dos Cânticos:
És um jardim fechado, minha irmã, minha esposa, um jardim fechado,
uma fonte selada. Tuas plantas formam um paraíso (Ct 4,12-13). A
alma é o jardim, e nela estão os mistérios sacramentais e as inteligênciScintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011
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S. BOAVENTURA
as espirituais, onde brota a fonte das emissões espirituais; mas está
fechado e a fonte selada, porque não está aberto aos imundos, mas
àqueles dos quais se diz: O Senhor conhece os seus (2Tm 2,19). A sabedoria eterna ama este jardim e cuida dele; por isso diz-se no Eclesiástico: Como um canal saído do rio, eu saí do paraíso (Eclo 24,30). Aquele
que planta todas as coisas irrigou este horto, mas a plantação que ele
não planta, será erradicada: Toda planta que meu Pai celeste não plantou, será arrancada pela raiz (Mt 15,13). E continua: Eu disse: Regarei
as plantas do meu jardim, saciarei de água os frutos do meu prado (Eclo
24,31). Ora, rega com o sangue (cf. Hb 9,19) com o qual foi aspergido o livro e todo o povo; rega também com a efusão do Espírito
Santo que se origina dele, efusão presente na Escritura e que encontramos nela. Portanto, estas são as árvores belas à vista e suaves ao paladar,
por causa dos frutos belos e doces.
6. Devemos falar sobre o alimento do intelecto. Com efeito, assim como o corpo sem alimento perde a força, a beleza e a saúde, da
mesma forma a alma sem o conhecimento da verdade se entenebrece,
torna-se enferma, disforme e instável em tudo; portanto, é necessário
que seja alimentada. Assim acontece que quando a mente é errante,
não tendo alimento, desvia-se continuamente e é instável. Por isso, é
dito: Jerusalém cometeu um grande pecado, por isso tornou-se instável
(Lm 1,8) e assim, expulsa do paraíso, anda errante e dá tudo o que tem
de precioso em troca de alimento, para sustentar a vida (Lm 1,11). Por
isso, esta paixão é miserável. Por causa disso nada é mais sadio do que
fixar os pensamentos, para que não descambem para o mal. – Por isso,
João Cassiano dirigiu-se com muitos outros a um santo Padre e o
interrogou a respeito da instabilidade dos pensamentos, dizendo que
em nada podia fixar o intelecto1. E aquele respondeu: Se alguma vez
tinham feito versos, e se então pensavam neles. Responderam que es1
Cr. CASSIANO JOÃO, Collationes, 1, c. 16, Testi patristici 155, Città Nuova Ed., Roma,
2000, p. 85.
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AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...
tavam tão imersos que com dificuldade podiam pensar em outra coisa, a ponto de refletir até dormindo. Ele disse que aquilo era causado
pelo costume. Por isso, é preciso acostumar-se a alguma coisa que,
quando vier à mente, não seja má.
7. Ora, esta é a Escritura, onde se encontra não uma coisa, mas
muitas, nas quais existe prazer espiritual; e assim não sairemos do jardim do paraíso, mas a alma o cultiva e o guarda (cf. Gn 2,15) e dela
[da Escritura] faz para si um pequeno e belo jardim. – Só nesta ciência
existe prazer, não nas outras. O Filósofo afirma que é um grande prazer saber que o diâmetro é assimétrico ao lado; que este prazer seja seu
e se nutra dele2.
8. Da Escritura, porém, sai uma certa luz ou iluminação para o
intelecto unido à imaginação, para que não seja captado pelo sábio
senão olhando em doze direções, isto é, para dentro, para fora, para
cima; para baixo, para frente, para trás; para a direita, para a esquerda;
de frente, ao redor, de longe e de perto.
9. Com sua produção de brotos, a Escritura ilumina [o intelecto]
para dentro mediante espetáculos internos; de fato, [a Escritura] propõe nobres espetáculos espirituais que, de modo especial, são as raízes
da fé; [ilumina] a partir de fora, mediante os exemplos extrínsecos, de
que toda a Escritura está cheia. Se queres um exemplo de paciência,
olha para Jó e Tobias; se de magnanimidade, olha para Davi contra
Golias e para Judas Macabeu; se um exemplo de fé, olha para Abraão
e para a Virgem gloriosa, cuja fé supera a de Abraão. Com efeito,
Abraão acreditou que podia ter um filho de uma anciã estéril (cf. Gn
17,16-17; Hb 11,8-10); Maria, porém, acreditou que uma Virgem
conceberia por obra do Espírito Santo (cf. Lc 1,38); e não teria concebido se não tivesse acreditado. Se queres um exemplo de caridade,
2
ARISTÓTELES, Tópicos, I, c. 15 (106b 39-40).
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S. BOAVENTURA
olha para Moisés, que disse: Perdoa-lhes esta culpa, ou risca-me do livro
que escreveste (Ex 32,32). Se queres um exemplo de misericórdia, lê
no Eclesiástico: Estes são varões de misericórdia, cujas obras de piedade
não foram esquecidas (Eclo 44,10). Se queres um exemplo de justiça,
de fortaleza, de prudência, de pureza, de qualquer virtude honesta, a
Escritura te propõe exemplos. Já que a virtude consiste em ações particulares, não basta uma regra diretiva interior se não houver um exemplo particular; e assim, a Escritura coloca os dois. Contra a ira, deu
uma regra: A resposta branda aquieta a ira (Pr 15,1); veja o exemplo de
Abigail, que quebrou a ira de Davi (cf. 1Sm 25,14-35).
10. E mais, a Escritura ilumina para cima mediante as promessas
divinas, pois ela ensina sobre as coisas que estão acima. Por isso, o
Apóstolo afirma: Porque sabemos que, ao se desfazer a tenda que habitamos – nossa casa terrestre – teremos nos céus uma casa preparada por
Deus e não por mãos humanas, uma casa eterna (2Cor 5,1); e o Salvador diz: Na casa de meu Pai há muitas moradas (Jo 14,2); nos Salmos
se diz: Os filhos dos homens refugiam-se à sombra de tuas asas, saciam-se
da abundância de tua casa e lhes dás a beber da torrente de tuas delícias,
porque contigo está a fonte da vida, e através de tua luz veremos a luz (Sl
36,8-10); e a palavra do Apocalipse: O cordeiro que está no meio do
trono os apascentará e guiará às fontes de água da vida (Ap 7,17); e no
Salmo: As delícias estão à tua direita até o fim (Sl 16,11). Portanto [a
Escritura] nos propõe as promessas divinas.
11. Além disso, a Escritura ilumina para baixo, propondo os tormentos do inferno. Diz o Salmo: Sobre os ímpios fará chover armadilhas, fogo, enxofre e como porção de sua taça terão um vento causticante
(Sl 11,6); e o Apocalipse: E sua parte no tanque ardente de fogo e enxofre (Ap 21,8). E a fumaça de seu tormento sobe pelos séculos dos séculos
(Ap 14,11). Essas coisas são propostas pela Escritura desde o início,
onde se diz que as trevas cobriam a face do abismo (Gn 1,2), até o fim.
– Portanto, a Escritura propõe espetáculos internos, exemplos externos, promessas celestes e suplícios do inferno.
172
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AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...
12. Se estas coisas não são suficientes para ti, mas queres sair e
procurar o alimento do intelecto em outra parte, dar-te-á outras árvores, outros frutos, com os quais poderás te alimentar. A Escritura ilumina para frente mediante preceitos diretivos; para trás, mediante juízos
duros; para a direita, mediante consolos severos; para a esquerda, mediante castigos doces ou benignos. – Com efeito, é preciso ter uma luz
diante de si, pois o preceito é uma lâmpada e a lei, uma luz (Pr 6,23);
ela dirige para o céu, e por isso diz: Se quiseres entrar na vida, observa os
mandamentos (Mt 19,17), aos quais se acrescentam os conselhos (cf.
Mt 19,21); e a Escritura nos propõe isso em toda parte. Por isso, no
salmo se diz: Felizes os de conduta íntegra (Sl 119,1) e: Mostra-me,
Senhor, o caminho de tuas prescrições (Sl 119,33) etc., e em cada versículo
faz-se menção do mandatos, sob o nome de lei, ou de testemunho, ou
de palavra, ou de qualquer outro termo equivalente. Por isso, também
para os Hebreus todos os versículos de um octonário iniciam pela
mesma letra, coisa que não pôde ser observada entre nós, assim que as
vinte e duas letras correspondem aos vinte e dois octonários e cada um
tem oito versos. Por isso, também Agostinho ficou impressionado
com tanta identidade; e todavia, nisso existe uma grande ciência e uma
admirável variedade, pois o próprio Agostinho, uma vez, viu uma
belíssima árvore que tinha vinte e dois ramos e cada um tinha oito
raminhos dos quais brotavam gotas dulcíssimas. E compreendeu que
aquela árvore era o Salmo: Felizes os que conduta íntegra. Por isso, a
meditação da lei é sumamente necessária; e o Salmo diz: Feliz o homem que não segue o caminho dos ímpios, mas sua vontade está na lei do
Senhor. Ele será como a árvore que está plantada junto às correntes das
águas (Sl 1,1-3). E no Eclesiástico: Não sejas curioso nas muitas obras
suas, mas pensa sempre naquilo que Deus te mandou (Eclo 3,22).
13. Além disso, ilumina para trás mediante duros juízos. Com
efeito, Deus sempre fez duros juízos sobre as transgressões dos preceitos, como com Lúcifer, com Adão, com sua mulher, com Caim, com
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S. BOAVENTURA
os luxuriosos sobre os quais veio o dilúvio, com os soberbos que
edificaram a torre, com os Cananeus, com Israel. De maneira semelhante, o Novo Testamento está cheio de juízos. Mas o juízo está atrás
e o preceito, na frente. O juízo tem relação com o preceito; se o transgredires, será punido; se não seguires a luz que dirige, a espada te ferirá;
diz o Salmo: Se não vos converterdes, [Deus] afiará sua espada, pois
retesou e apontou seu arco, e colocou nele dardos de morte, tornou
abrasadoras as suas setas (Sl 7, 13-14). O arco é o juízo da Escritura; a
dureza da árvore é o Antigo Testamento; a corda que dobra a árvore, o
Novo Testamento; os juízos mais leves e mais duros são as flechas. Diz
o Salmo: A lei do Senhor é perfeita, reconforta a alma. O testemunho do
Senhor é seguro, torna sábio o homem simples. Os juízos do Senhor são
verdadeiros, são todos justos (Sl 19,8.10) etc.
14. E mais, a Escritura ilumina para a direita mediante severos
consolos. Não sem motivo são chamados de severos consolos e benignos flagelos, porque os consolos são perigosos. Veja Adão, Saul,
Salomão, o idólatra Jeroboão e o primeiro Anjo; para todos eles os consolos temporais e os triunfos foram ocasião de ruína. Mas são ocasião de
ruína quando agradam; porém, quando não agradam, o homem não se
preocupa. Por isso, Cristo não quis ter um consolo temporal, porque
cairão mil a teu lado e dez mil à tua direita (Sl 91,7) etc. Alguém deve
querer estar do lado em que é menor o número dos que caem.
15. E ainda, a Escritura ilumina para a esquerda mediante flagelos
benignos. Por isso, o Senhor permitiu que o justíssimo Abel fosse
morto. Veja Noé, que durante cem anos fabricou a arca e lá pôs tudo
o que possuía e todo o mundo zombava dele. – E aqui acrescentou
que o rei da França não poderia hoje fazer tal obra se ela for calculada
segundo a medida dos côvados geométricos. – O mesmo se observa
em Abraão, Isaac e Jacó, que foram peregrinos; e José, que não pudera
ser exaltado se antes não ocorresse a venda, o cárcere e a humilhação.
Veja Moisés, que Deus devia colocar à frente de todo o mundo, como
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AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...
foi humilhado: por quarenta anos apascentava o rebanho de um sacerdote (Ex 3,1). Igualmente Davi, enquanto esteve no sofrimento, foi
ótimo e chegou ao reino mediante as tribulações; e depois, quando
esteve na prosperidade, cometeu muitos pecados (cf. 1Sm 24,5-8; 2Sm
6,21-22; 11,2-4.14-15). Da mesma forma Ezequias (cf. Is 38, 39),
foi muito humilde na enfermidade, mas depois foi soberbo com a chegada dos embaixadores dos babilônios. Veja o pobrezinho Elias (cf. 1Rs
17,1-16), que não tinha o que comer a não ser aquilo que lhe trazia o
corvo e aquela pobre viúva; mas ele fechava o céu. Veja João Batista (cf. Lc
1,80), que permaneceu no deserto por sete anos e ali dormia sobre pedras.
O mesmo se diga de Cristo e dos Apóstolos. De maneira semelhante diz
Paulo: Foram apedrejados, foram serrados, foram tentados, foram mortos a
fio da espada, andaram errantes (Hb 11,37) etc. Portanto, os flagelos são
suavíssimos. Pois ou Deus castiga ou não. Mas ele castiga a quem recebe
como filho (Hb 12,6). Esta verdade está provada mediante fatos particulares; portanto, deve ser aplicada universalmente.
16. E a Escritura possui também árvores de que se alimentar. Ela
ilumina mediante as coisas que são opostas. Com efeito, ela nos mostra as infinitas batalhas que estão contra nós, ora por meio de sete
príncipes (Est 1,14), ora por uma guerra, ora por muitas. Esta guerra
dura do dia em que Miguel e seus Anjos lutavam contra o dragão (Ap 12,7).
Ora, ameaça-nos uma tríplice guerra: a guerra doméstica, a guerra civil e a
campestre. – A primeira é com a carne, que tem muitas frentes; esta serva
está sempre pronta a abrir, como Eva. Por isso é dito: Contra aquela que
dorme em teu seio, guarda as portas de tua boca (Mq 7,5).
17. E mais, a guerra civil é a tentação do mundo. Com efeito,
todas as criaturas estão na armadilha (cf. Sb 14,11), porque a beleza da
criatura atrai os homens. Por isso diz: Vaidade das vaidades, tudo é
vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? (Ecl 1,2-3). Vão e inutilmente é feito se nada sobra
ao homem na morte e, assim, tudo é vaidade; e no Salmo se diz:
Desvia meus olhos, para que não vejam a vaidade (Sl 119,37).
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S. BOAVENTURA
18. Além disso, existe a guerra campestre, travada com os demônios, que atacam dia e noite, ora exaltando para que presumamos, ora
mediante a consideração da ciência, ora mediante a consideração da
santidade; ora tornam o homem iracundo e assim diabólico e cheio do
espírito de malignidade; e o fazem cair na tristeza e no desespero e o
mesmo se diga de outros aspectos. A Escritura ensina a fugir destas
coisas. Com efeito, qual a ciência que ensina a fugir das potências contrárias? Nenhuma.
19. E mais, a Escritura ilumina ao redor, de modo que não se
precisa fugir, porque em toda parte temos um refúgio. Com efeito,
temos o próprio Senhor e os Anjos ao nosso redor; por isso, diz-se no
Salmo: Montes estão em volta de Jerusalém, e o Senhor envolve seu povo
(Sl 125,2). Por isso, ao servo de Eliseu que gritava por causa dos ladrões da Síria que queriam capturá-lo, Eliseu disse: Senhor, abre-lhe os
olhos para que enxergue, e o Senhor os abriu. E eis que o monte estava
cheio de cavalos e de carros de fogo ao redor de Eliseu (2Rs 6,17). Também Jacó, temendo seu irmão, viu os Anjos e por isso disse: Estes são os
acampamentos de Deus (Gn 32,3). Por isso, diz o Salmo: O Senhor é
minha luz e minha salvação; a quem temerei? (Sl 27,1). E em outro
lugar: Se o Senhor não estivesse do nosso lado, que Israel o diga (Sl 124,1)
etc., até o fim.
20. E mais, ilumina de longe mediante os sinais das figuras; de
fato, a Escritura cria figuras de todas as coisas. Ora, todas as coisas que
existem no mundo reduzem-se a doze espécies, que são utilizadas pela
Escritura e que são sinais longínquos: as formas celestes, as naturezas
elementares, as naturezas meteóricas, as naturezas minerais; as naturezas que germinam, que nadam, que voam, que andam; órgãos humanos, forças humanas, obras humanas e artes humanas.
21. Portanto, em primeiro lugar está a forma celeste. Com efeito,
a Escritura serve-se de todos os céus e de todas as estrelas; diz o Salmo:
Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento apregoa a obra de
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AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...
suas mãos (Sl 19,2); e o Eclesiástico: O orgulho das alturas é a limpidez
do firmamento, e o aspecto do céu é um espetáculo de glória (Eclo 43,1).
22. As formas elementares: o fogo, o ar, a água e a terra; todas são
usadas pela Escritura. – As naturezas meteóricas, como a nuvem, a
chuva, o orvalho, a neve etc.; utiliza também as luzes que aparecem no
céu, os rios e os lagos. – Existem também as naturezas minerais, como
os sete metais principais e as pedras preciosas, como a pedra de ônix;
lê-se no Gênesis: Lá também se encontra o bdélio e a pedra de ônix (Gn
2,12); e no mesmo lugar: Onde nasce o ouro; e o ouro desse país é ótimo
(Gn 2,11-12). E no Apocalipse existem doze pedras preciosas. – Existem também as naturezas que germinam, como as árvores, as ervas, as
plantas e as sementes; a Escritura trata das hortaliças, das ervas e das
outras coisas que nascem da terra.
23. Há também as naturezas dos que nadam; assim trata do leviatã
(cf. Jó 40,20), dos peixes e dos cetáceos. – Há as naturezas dos que
voam, como o gavião, a águia, a pomba, o pássaro; e existe um grande
mistério, porque só três tipos de voadores são postos no sacrifício (cf.
Lv 1,14). Além disso, fala-se de aves que fogem da luz e de aves que
amam a luz. – Além disso, fala-se de animais que andam, da serpente
e da cobra: Foge do pecado como de uma serpente (Eclo 21,2); como
Deus permitiu que a tentação viesse por meio da serpente. Fala-se também das raposas, da cabra, dos porcos, do cervo, do corso, do urso e
dos bois. Também não deixa de ser um mistério que somente três
tipos de animais que andam eram oferecidos ou sacrificados.
24. E mais, existem as naturezas do homem, de cujos membros a
Escritura trata atribuindo-os em parte a Deus e em parte aos Anjos.
Por isso, Dionísio mostra o que significam os membros humanos nos
Anjos3. – E ainda, existem as forças vegetais, as forças sensíveis, racio3
Cf. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA, De caelesti hierarchia, c. 13, par. 3, PG 3,
302-303.
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S. BOAVENTURA
nais etc., todas elas são plenamente usadas pela Escritura. – Além disso, fala-se das obras humanas, como da construção de casas, dos poços, da agricultura e do comércio; e de todas as artes liberais e mecânicas. O teólogo as utiliza ora como aritmético, ora como astrólogo, ora
como geômetra; vê-lo-ás ora como reitor, ora como médico.
25. Nesta consideração, existe um perigo, porque é um perigo
afastar-se demais da casa da Escritura; com efeito, a criança nunca quer
afastar-se muito da casa. Assim, existe um perigo nas ciências, isto é,
que [os teólogos] se ocupem tanto nas considerações destas ciências
que, depois, não possam voltar para a casa da Escritura, e que entrem
na casa de Dédalo, de forma que não possam sair. Afinal, é melhor
manter a verdade do que a figura. Se eu visse teu rosto e te pedisse que
me trouxesses um espelho claro para ali ver tua face, este seria um
pedido tolo. A mesma coisas acontece quanto às Escrituras santas e às
figuras das demais ciências.
26. A Escritura ilumina também de perto mediante os dons das
graças, que completam todas as coisas que o talento humano não possui. Com efeito, muitos hóspedes da ciência vieram à nossa casa e ao
nosso talento; mas em tais coisas o talento deve pôr um fim. Por isso,
a Escritura ilumina estas coisas de perto; assim, não é preciso ir longe
para a coisa que está perto. Afinal, a Escritura descreve os dons do
Espírito Santo de modo completo; em João se lê: Fatigado do caminho, sentou-se Jesus à beira da fonte (Jo 4,6); e continua: Quem bebe
desta água, tornará a ter sede; mas quem beber da água que eu lhe der,
tornar-se-á uma fonte que jorra para a vida eterna (Jo 4,13-14). – Então, fala-se de uma dupla água; com efeito, é descrito um conhecimento exterior, do qual quem mais beber, mais sede terá; outro interior, do qual se lê: Quem crê em mim, como diz a Escritura, do seu interior correrão rios de água viva. Referia-se ao Espírito que haviam de receber aqueles que cressem nele (Jo 7,38-39). Estas são as águas das fontes
do Salvador (Is 12,3), isto é, os conhecimentos das graças que alimentam as almas.
178
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AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...
27. Próximo a estes mistérios está o mistério da árvore da vida e o
mistério da árvore da ciência do bem e do mal (Gn 2,9). De fato, quem
busca somente o conhecimento, come da árvore da ciência do bem e
do mal. E isso é indicado em Isaías: Porque este povo rejeitou as águas
de Siloé, que correm em silêncio, e preferiu apoiar-se em Rasin e no filho
de Romelias; por este motivo, eis que o Senhor fará vir sobre eles as águas
impetuosas e abundantes do rio (Is 8,6-7). E conforme diz Jerônimo, as
águas de Siloé correm com grande ruído4; portanto, é claro que ali
existe outro sentido. – As águas que correm em silêncio são a Sagrada
Escritura, que não pode ser compreendida senão em silêncio; e ali acontece a iluminação. Como sinal disso é dito ao cego: Vai lavar-te na
piscina de Siloé, que quer dizer enviado (Jo 9,7). Com efeito, estas
águas são obtidas por revelação. Antes, porém, é preciso esfregar os
olhos com barro feito de cuspe e pó (cf. Jo 9,6); a saliva é a sabedoria,
o pó é a carne de Cristo, o barro é a fé no mistério da encarnação. –
Mas os que buscam Rasin e o filho de Romelias são os que buscam as
ciências exteriores. E por isso, o príncipe dos Assírios os dominará (cf.
Is 8,7); o Senhor o quis. E aqui deve-se notar que os filhos de Israel
obtiveram furtivamente os vasos de prata do Egito (cf. Ex 3,22; 11,2;
12,36); e depois, o Senhor não quis mais que eles voltassem para lá.
28. E [Boaventura] disse: Crede-me que ainda haverá um tempo no
qual de nada valerão os vasos de ouro ou de prata, isto é, os argumentos;
nem existirá a defesa mediante a razão, mas somente mediante a autoridade. Por isso, como sinal disso, quando foi tentado, o Salvador não se
defendeu mediante a razão, mas mediante as autoridades (cf. Mt 4,4-10),
embora ele conhecesse perfeitamente mediante as razões. E assim indicou
o que deveria fazer seu corpo místico na tribulação futura.
4
Cf. SÃO JERÔNIMO, Commentarium in Is. Proph., III, c. 8, PL 24, 119: “Siloé é uma
fonte aos pés do Monte Sion, e não derramam águas constantes, mas somente em certas
horas e em certos dias, atravessando cavernas e antros saem de uma rocha duríssima e
com grande fragor; coisa de que não duvidamos, sobretudo nós que habitamos nesta
província”.
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ENIO PAULO GIACHINI
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Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010
O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...
O RETO CAMINHO E O MODO DE
RECEBER OS FRUTOS DA
ESCRITURA, OU COMO, PELA
CIÊNCIA E PELA SANTIDADE, SE
CHEGA À SABEDORIA *
Sumário: Introdução. Convite a perceber os mencionados frutos
da Escritura e a passar da vaidade para a verdade; a dupla passagem, 1.
– Abandonada a vaidade, deve-se seguir a sabedoria, que se goza somente em Deus, 2. – O perigo na passagem da ciência das coisas inferiores para a sabedoria que goza as superiores; da ciência deve-se subir
para a santidade, como caminho médio para a sabedoria, 3-5. – PARTE
I: A ciência e o modo de estudar, que deve ter quatro condições. Destas
quatro. Primeiro, a ordem a ser observada no estudo. Existem quatro
tipos de escritos, 6. – O primeiro tipo, ou a Sagrada Escritura; sua
excelência; como se deve estudar nela, 7-9. – O segundo tipo, ou os
originais dos Santos, 10. – O terceiro, ou as Sumas dos mestres, 11. –
O quarto, ou a filosofia, 12-15. – A segunda condição, ou a assiduidade, 16. – A terceira, ou a complacência, 17-18. – A quarta, ou a medida, 19. – PARTE II: A santidade como caminho para a sabedoria e a
própria sabedoria. Quatro qualidades da vida santa: primeiramente deve
ser uma vida timorata, 20. – Em segundo lugar, impoluta, 21. – Em
terceiro lugar, religiosa, 22. – Em quarto lugar, edificante, 23. – A
sabedoria que é fruto da ciência e da santidade, consiste em quatro
*
Exaemeron, Colação XIX - terceira visão - sétimo e último tratado.
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011
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S. BOAVENTURA
coisas: primeiro, no reconhecimento dos defeitos interiores, 24. – Em
segundo lugar, na mortificação das paixões, 25. – Em terceiro lugar, na
ordenação dos pensamentos, 26. – Em quarto lugar, na elevação do
desejo, 27.
1. A terra produziu erva verde (Gn 1,12) etc. Falou-se dos frutos
da Sagrada Escritura. Para estes frutos nos convida a Sabedoria eterna;
diz-se no Eclesiástico: Como a videira fiz brotar o encanto, e minhas
flores deram frutos de glória e riqueza. Vinde a mim vós que me desejais
e saciai-vos de meus frutos (Eclo 24,17.19). Se quisermos passar, é preciso que sejamos filhos de Israel, que saíram do Egito; os egípcios,
porém, não passaram, mas foram submersos (cf. Ex 14,26-28). Ora,
passam aqueles que põem toda a sua atenção sobre a maneira de passarem das vaidades para a região da verdade. Adão passou da verdade
para a vaidade, por isso, diz-se no Salmo: Na verdade, o homem passa
como uma simples sombra, é em vão que se afadiga; amontoa riquezas e
não sabe quem as desfrutará (Sl 39,7). Como a erva, de manhã floresce
e viceja, de tarde murcha e seca (Sl 90,6). Portanto, quando se ama o
bem mutável, transitório e vão, então o homem passa e a Sabedoria
reprova tal passagem. Esta passagem produz toda espécie de mal. Assim passou Lúcifer, de quem foi dito: De fato, foste precipitado no
inferno (Is 14,15). Primeiramente foi lançado pela culpa e, depois,
pelo juízo. Assim também agiu Adão; depois que perdeu a árvore da
vida, escondeu-se. Com efeito, viu-se despido de todos os bons hábitos e, por causa disso, foi expulso do paraíso (cf. Gn 3,6-7.24).
2. Portanto, a sabedoria e a caridade são os principais frutos; a elas
opõe-se principalmente a vaidade. Por isso, no Cântico dos Cânticos,
expressa-se a sabedoria amorosa. Afinal, ninguém pode pronunciar as
palavras do Cântico dos Cânticos sem a sabedoria e o amor, e também
se não se afastar da vaidade. E assim o Eclesiastes precede esse livro; ali
mostra a vaidade quando diz: Vaidade das vaidades e tudo é vaidade
(Ecl 1,2). Essa afirmação é verdadeira e é provada em todo o livro.
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O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...
Portanto, é preciso passar de todas as coisas para a verdade a fim de que
não exista prazer senão em Deus.
3. Ora, como se há de passar? Todos querem ser sábios e cientistas.
Mas logo acontece que a mulher engana o homem (cf. Gn 3,6.12). A
sabedoria, porém, está acima porque é nobre; mas a ciência está abaixo, parece bela ao homem e, assim, quer unir-se a ela e a alma se inclina para as coisas cognoscíveis e sensíveis, quer conhecê-las e, uma vez
conhecidas, experimentá-las e, consequentemente, unir-se a elas. E assim se debilita, como Salomão, que quis saber todas as coisas e discorreu sobre as árvores, desde o cedro do Líbano até o hissopo (1Rs 5,13);
esqueceu-se da coisa principal e assim se tornou vão. Portanto, a passagem da ciência para a sabedoria não é segura; então, é necessário pôr
um termo médio, isto é, a santidade. Ora, a passagem é um exercício:
a exercitação de passar do estudo da ciência para o estudo da santidade,
e do estudo da santidade para o estudo da sabedoria; deles fala-se no
Salmo: Ensina-me a bondade, a sabedoria e a ciência (Sl 119,66). Inicia pelo mais alto, porque quereria experimentar quanto é bom e suave
o Senhor (Sl 34,9); todavia, não se pode chegar à sabedoria senão pela
disciplina, nem à disciplina senão pela ciência: portanto, não se deve
preferir o último ao primeiro. Seria mau comerciante quem preferisse
o estanho ao ouro. Com efeito, quem prefere a ciência à santidade
jamais prosperará.
4. Em A Cidade de Deus, Agostinho1 diz que os Anjos bons ou
espíritos chamam-se Anjos, isto é, mensageiros, porque se alegram com
a humildade; os espíritos maus chamam-se demônios, isto é, instruídos, porque querem ser chamados a partir de sua altivez. Mas deve-se
temer o que diz Jó a respeito de Beemot-Leviatã: Andará por cima do
ouro como por cima do lodo (Jó 41,21). De fato, na ciência existe a
tentação que facilmente leva à ruína. Daí dizer-se: Sereis como deuses,
1
SANTO AGOSTINHO, De civitate Dei, XV, 23, n. 1, in PL 41, 468.
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S. BOAVENTURA
conhecendo o bem e o mal (Gn 3,5). Por isso, alguns querem investigar
a respeito dos segredos da natureza, como sobre as realidades contingentes. Quanto aos degraus da soberba, o bem-aventurado Bernardo2
afirma que o primeiro vício é a curiosidade, pelo qual Lúcifer caiu; e
também Adão caiu por ele. O desejo da ciência deve ser modificado e
a ela deve-se preferir a sabedoria e a santidade.
5. De que maneira, pois, é preciso ocupar-se da ciência, da santidade e da sabedoria? É preciso conhecer, a fim de participarmos dos frutos da sabedoria e podermos entrar pelas portas da cidade; o Eclesiastes
diz: O trabalho dos insensatos cansa-os tanto que nem sequer sabem como
chegar à cidade (Ecl 10,15), isto é, os que não sabem aplicar-se às
coisas que são necessárias. No Gênesis, diz-se que o Senhor Deus tomou
o homem e o colocou no paraíso para que o cultivasse e o guardasse (Gn
2,15). – É preciso trabalhar na Sagrada Escritura e exercitar o intelecto.
Sêneca afirma: “Encontrei muitos que exercitavam o corpo, mas poucos a inteligência”3. Esta é a exercitação do espírito para a piedade; por
isso, diz-se nos Provérbios: Passei pelo campo do homem preguiçoso e
pela vinha do homem insensato; e vi que tudo estava cheio de urtigas,
que os espinhos cobriam sua superfície e que o muro de pedra estava caído
(Pr 24,30-31). Isso acontece quando o homem tem boa disposição e
não a exercita, mas ali crescem as urtigas da malignidade e os espinhos
da cobiça. A cerca de pedras das virtudes é destruída pela dissipação
dos pensamentos; por isso, no mesmo lugar se diz: Prepara teus trabalhos de fora e lavra cuidadosamente o teu campo (Pr 24,27).
6. A maneira de estudar deve ter quatro condições: ordem, assiduidade, complacência e medida. – A ordem é proposta de diversas
maneiras pelos vários [mestres]; mas é preciso proceder ordenadamen2
SÃO BERNARDO DE CLARAVAL, De gradibus humilitatis et superbiae, c. 10, n .
28, in PL 182, 957.
3
SÊNECA, Epistula 80.
184
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O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...
te, para não tornar secundário o que é principal. Portanto, existem
quatro tipos de escrituras, dos quais é preciso ocupar-se de maneira
ordenada. Os primeiros livros são as Sagradas Escrituras. Segundo
Jerônimo4, no Antigo Testamento existem vinte e dois livros; no Novo
Testamento são oito. Os segundos livros são os originais dos Santos;
os terceiros, as Sentenças dos mestres; os quartos, os livros das doutrinas mundanas ou dos filósofos.
7. Portanto, quem quiser aprender, procure a ciência na fonte, isto
é, na Sagrada Escritura, porque entre os filósofos não existe a ciência
que dê o perdão dos pecados; nem entre as Sumas dos mestres, porque
eles beberam dos originais e os originais da Sagrada Escritura. Por isso,
Agostinho5 diz que ele pode se enganar, como também os outros; mas
lá existe tamanha fé que não pode haver engano. E, em Os nomes divinos, Dionísio afirma que “não se deve aceitar nada, senão aquilo que
nos é comunicado de maneira divina na Sagrada Escritura”6. – O discípulo de Cristo deve estudar na Sagrada Escritura, como as crianças
aprendem primeiro o a, b, c, d etc., depois a silabar, a seguir a ler e por
fim o que significa o discurso. De maneira semelhante, na Sagrada
Escritura, primeiramente deve-se estudar no texto, tê-lo à mão e compreender “o que se diz mediante a palavra”, não só como o judeu, que
sempre o entende em sentido literal. Toda a Escritura é como uma
cítara, onde a corda inferior sozinha não faz uma harmonia, mas somente junto com as outras; de forma semelhante, um lugar da Escritura depende de outro, e até, um lugar refere-se a mil outros lugares.
8. Deve-se notar que, quando Cristo fez o milagre de transformar
água em vinho, não disse logo: faça-se vinho, nem o fez do nada; mas
4
SÃO JERÔNIMO, In libros Samuel, Praef., in PL 28, 593.
5
SANTO AGOSTINHO, Epistula 82, c. 1, n. 3, in PL 33, 277.
6
DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA, De divinis nominibus, c. 1, par. 2, in PG 3,
614.
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S. BOAVENTURA
quis que os servos enchessem os cântaros de água, como diz Gregório7.
Literalmente, não se pode dar a razão de ter agido assim; mas segundo
a compreensão espiritual, a razão pode ser dada: porque o Espírito
Santo não dá a compreensão espiritual se o homem não encher o cântaro de água, isto é, sua capacidade, a saber, o conhecimento do sentido literal, e depois Deus transforma a água do sentido literal no vinho
da compreensão espiritual. – Por isso, Paulo foi profundo, porque
aprendeu a Lei aos pés de Gamaliel (cf. At 22,3). Daí, quem possui a
Escritura é poderoso nos discursos e também belo na palavra. Por isso,
o bem-aventurado Bernardo sabia pouco, mas, porque estudou muito
na Escritura, falava de modo elegantíssimo.
9. Portanto, primeiramente é preciso que o homem possua a Escritura, não como o judeu, que quer apenas a casca. Por isso, uma vez,
um judeu lia o capítulo de Isaías: Senhor, quem deu crédito ao que nós
ouvimos? (Is 53,1; Rm 10,16) etc.; e lia literalmente e não pôde ter a
concordância nem o sentido; por isso, jogou o livro por terra,
imprecando que Deus havia confundido Isaías, porque, conforme lhe
parecia, não podia ter certeza do que dizia.
10. Todavia, o homem não pode chegar a esta inteligência por si
mesmo, mas por aqueles aos quais Deus a revelou, isto é, mediante os
originais dos Santos, como Agostinho, Jerônimo e outros. Portanto, é
necessário recorrer aos originais dos Santos; mas estes são difíceis, e
então, são necessárias as Sumas dos mestres, nas quais se aclaram aquelas dificuldades. Mas é preciso precaver-se da quantidade dos escritos.
Contudo, porque estes escritos trazem as palavras dos filósofos, é preciso que o homem as conheça ou as suponha. – Portanto, existe um
perigo ao descer para os originais, porque é bela a linguagem dos originais; a Escritura, porém, não possui um estilo tão belo. Por isso, Agostinho não considera coisa boa que deixes a Escritura e estudes em seus
7
SÃO GREGÓRIO MAGNO, In Ezechiele, I, hom. 6, n. 7, in PL 76, 831.
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Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011
O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...
livros; assim como nem Paulo daqueles que eram batizados em nome
de Paulo (cf. 1Cor 1,12-13). A Sagrada Escritura deve ser tida em
grande honra.
11. Porém, o maior perigo consiste em descer às Sumas dos mestres, porque, às vezes, nelas há erros; e pensam que compreendem os
originais, mas não os compreendem, antes os contradizem. Por isso,
como seria tolo quem quisesse permanecer sempre nos tratados e nunca subir ao texto, o mesmo acontece também quanto às Sumas dos
mestres. Nelas, porém, a pessoa deve ter o cuidado de sempre seguir a
opinião mais comum.
12. O maior perigo, porém, consiste em descer para a filosofia;
por isso Isaías afirma: Porque este povo rejeitou as águas de Siloé, que
correm docemente, e preferiu apoiar-se em Rasin e no filho de Romelias,
por este motivo, eis que o Senhor fará vir sobre eles as águas impetuosas e
abundantes, o rei dos Assírios (Is 8,6-7) etc. Não se deve mais voltar
para o Egito. – Deve-se ter presente o caso de Jerônimo, que, depois
do estudo de Cícero, não sentia gosto nos livros proféticos e, por isso,
foi flagelado diante do tribunal8. Mas isso aconteceu por causa de nós;
por isso, os mestres devem cuidar de não confiar e apreciar demais os
ditos dos filósofos, para que, com esse pretexto, o povo não volte para
o Egito ou, por seu exemplo, abandone as águas de Siloé, nas quais
está a máxima perfeição, e vá para as águas dos filósofos, nas quais
existe o eterno engano.
13. Isso foi indicado em Gedeão, quando aqueles que foram provados nas águas, isto é, os que lamberam as águas como os cães, lutaram e venceram; enquanto que aqueles que, dobrando os joelhos, beberam inclinados, voltaram; e aos que venceram foram dadas trombetas, ânforas e lanternas, e venceram por meio do clamor das trombetas
8
Cf. SÃO JERÔNIMO, Epistula 22, n. 30, in PL 22, 416.
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011
187
S. BOAVENTURA
e pela explosão das ânforas (cf. Jz 7,4-8.19-25). Estes são os pregadores da Igreja, que tocam a trombeta na pregação. As ânforas são os
corpos, as lâmpadas os milagres. Com efeito, quando morreram pela
verdade, resplandeceram através dos milagres e venceram os inimigos.
Mas aqueles que bebem água com a língua como os cães, que bebem
pouca água com a língua, são os que tomam pouco da filosofia; mas
os que bebem dobrando o joelho, são os que se dedicam totalmente;
aqueles dobram-se a infinitos erros e, assim, fomentam o fermento do
erro. Por isso diz Oséias: Repousou um pouco a cidade, depois da mistura do fermento, até que a massa se levedou toda (Os 7,4); e chocam ovos
de serpentes, para que daquele que for chocado saia uma cobra (Is 59,5).
14. Considera o caso de São Francisco, que pregava ao Sultão. O
Sultão lhe disse que discutisse com seus sacerdotes. E ele lhe respondeu que, partindo da razão, não podia discutir sobre a fé, pois ela está
acima da razão; nem partindo da Escritura, porque eles não a aceitavam; mas pedia que fizesse um fogo e ele entraria com eles9. – Por isso,
não se deve misturar muita água da filosofia com o vinho da Sagrada
Escritura, a ponto de o vinho se tornar água; esse seria um péssimo
milagre; e lemos que Cristo fez vinho de água (cf. Jo 2,9), não o contrário. – Daí se conclui que aos fiéis a fé não pode ser provada através
da razão, mas pela Escritura e pelos milagres. Na Igreja primitiva, os
livros de filosofia eram até queimados (cf. At 19,19). Afinal, os pães
não devem ser transformados em pedras (cf. Mt 4,3).
15. Portanto, a ordem é que primeiro o homem estude na Sagrada
Escritura segundo a letra e o espírito, depois nos originais e os submeta
à Sagrada Escritura; de maneira semelhante, nos escritos dos mestres e
nos escritos dos filósofos, mas de passagem e por alto, como se ali não
devesse permanecer. O que ganhou Raquel, quando roubou os ídolos de
9
Cf. SÃO BOAVENTURA, Legenda Maior S. Francisci, c. 9, 8.; in Analecta Franciscana
I, p. 601; Fontes Franciscanas e Clarianas, Petrópolis: Ed. Vozes, 2004, p. 613.
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Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011
O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...
seu pai? (Gn 31,19). Ganhou tanto que foi mentirosa, fingiu estar
enferma e os escondeu sob os arreios do camelo e sentou-se em cima (Gn
31,34); assim aconteceu quando se escondem os livros dos filósofos.
Nossas águas não devem descer para o Mar Morto (cf. Js 3,16), mas
para sua primeira origem (cf. Sl 114,3).
16. Em segundo lugar, é preciso ter assiduidade. De fato, uma
leitura desordenada é um grandíssimo obstáculo, como quem planta
ora aqui, ora ali; ora lê um, ora, outro. A divagação exterior é um sinal
da divagação da alma; e assim não se pode progredir, porque nada se
fixa na memória. A propósito, Gregório apresenta um exemplo: quando
um homem vê a face de um homem uma só vez, depois não pode
reconhecê-lo perfeitamente, mas quando o vê com frequência, então o
reconhece10. Assim acontece com a Sagrada Escritura: porque no início ela possui uma face obscura, depois, quando é vista com frequência,
torna-se familiar.
17. Em terceiro lugar, é preciso ter a complacência. Com efeito,
assim como Deus relacionou o gosto e o alimento, porque deu sabor
ao alimento e discernimento ao gosto; e por estes dois elementos o
alimento é incorporado: assim, em primeiro lugar é preciso tomar a
Escritura, depois mastigá-la e, por fim, incorporá-la. Para que o homem bebe água turva? Diz Jeremias: E agora, o que vais ganhar indo
para o Egito, para beberes água turva? (Jr 2,18). Bebe antes a água
salutar, isto é, da sabedoria.
18. Observa que o animal que não rumina é imundo. De fato, o
animal rumina porque tem dois ventres: ele traz o alimento à boca,
rumina-o completamente e o lança em outro ventre mais profundo. –
Lê-se no Salmo: Quão doces ao meu paladar são as tuas palavras: mais
que o mel à minha boca! (Sl 119,103). Não ames a meretriz e não
10
SÃO GREGÓRIO MAGNO, Moralia in Iob, IV, pref., n. 1, in PL 75, 633.
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189
S. BOAVENTURA
repudies tua esposa; diz-se no livro da Sabedoria: Amei-a e a desejei
desde a minha juventude (Sb 8,2). Não comas as bolotas e as vagens
dos porcos (cf. Lc 15,16), para ser suspenso com Absalão pelos cabelos (cf. 2Sm 14,26; 18,9), isto é, por teus afetos. As doutrinas antigas
são altas, majestosas, inflexíveis como os carvalhos. Não comas os pepinos do Egito, os porros e os alhos, mas o maná do céu (cf. Ex 16,34; Nm 11,4-9; 21,5); e não tenhas náuseas desse alimento. Não sejas
carnal, como os filhos de Israel; eles não experimentam nenhum outro
sabor, mas os homens espirituais encontravam toda a suavidade do
sabor (Sb 16,20).
19. Em quarto lugar está a medida, a fim de não se querer saber
acima das forças, mas saber com sobriedade (Rm 12,3). Por isso, o sábio diz: Se achaste mel, come o que te basta, para não suceder que,
depois de farto, o vomites (Pr 25,16). Não pretendas mais do que teu
talento é capaz de elevar-se, nem permaneças mais baixo. Por isso, para
significar isso, como diz Dionísio, os serafins voavam com as asas do
meio11, para que o homem não permaneça aquém do que pode nem
suba além do que pode; assim como aqueles que cantam além de suas
forças, jamais produzirão uma boa harmonia. – E Agostinho12 afirma
que aqueles que não estudam de modo ordenado são como pequenos
potros, que correm ora para cá, ora para lá; mas o jumento, com seu
andar lento, caminha muito, porque caminha de modo regular; assim
alguém que não é dotado, mas que sabe ordenar seu estudo, tem o
mesmo resultado que um inteligente que estuda sem ordem.
20. Mas quem quer progredir nesse estudo, é preciso que tenha a
santidade e possa aplicar-se a uma vida timorata, impoluta, religiosa e
11
DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA, De ecclesiastica hierarchia, c. 4, par. 8, in PG
3, 482.
12
Cf. SANTO AGOSTINHO, Hypognost. (entre as obras de Santo Agostinho), II, c.
11, n. 20, in PL 45, 1632.
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Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011
O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...
edificante. – Esta é a vida timorata dos Santos para que, em tudo o
que faz, sempre tenha uma atitude de temor, quer vá à Missa ou à
mesa, quer esteja parado ou caminhe, porque em tudo pode existir
pecado; Jó afirma: Eu temia todas as minhas obras, sabendo que não
perdoas ao culpado (Jó 9,28). O temor é um ótimo sinal, e a audácia é
um péssimo sinal, porque o audaz jamais se corrige.
21. Em segundo lugar, é preciso ter uma vida impoluta, que realiza tudo por amor de Deus, não por amor a alguma coisa, pois qualquer amor é suspeito se não for amor de Deus. Por isso diz Agostinho13, e também o bem-aventurado Bernardo numa carta a um monge14, que o amor dos Apóstolos pelo corpo de Cristo impedia a vinda
do Espírito Santo. Que dizer do amor pelas outras criaturas? O Salmo
afirma: Minha alma recusa consolar-se (Sl 77,3) etc. Guarda-me como a
pupila de teus olhos, Senhor (Sl 17,8). A pupila não está bem limpa
quando nela há vapor, pó ou umidade.
22. Em terceiro lugar, é preciso que haja uma vida religiosa, fechada como o muro de uma vinha (cf. Is 5,5; Sl 80,13); assim é necessário que o homem modere o gosto, a língua e os outros sentidos, porque se alguém acredita ser religioso e não refreia a língua, engana-se a si
mesmo, porque vã e sua religião (Tg 1,26). Cerca teus ouvidos com espinhos (Eclo 28,28). Nossa vida não deve ser dada a conversas, mas a
lágrimas.
23. Em quarto lugar, é necessário que seja uma vida que edifique o
próximo e o distante, para estar pronto a edificar a todos e condoer-se
se alguém se escandaliza por sua causa; e deve cuidar de não prejudicar
o outro, porque se só eu comer bem e os outros jejuarem, seria mal
feito. E este é o fruto de outras considerações.
13
SANTO AGOSTINHO, In Ioannis Evangelium, tr. 94, n. 4, in PL 35, 1869.
14
SÃO BERNARDO DE CLARAVAL, Epistula 462, n. 6, in PL 182, 665.
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011
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S. BOAVENTURA
24. E mais, das coisas já ditas, isto é, da ciência e da santidade,
segue-se o fruto da sabedoria ou o estudo, que consiste em quatro
momentos necessários, isto é, o primeiro é o reconhecimento dos próprios defeitos internos. Por isso, no frontispício do templo de Apolo
estava escrito: “Conhece-te a ti mesmo”, sem isto é impossível chegar
à sabedoria. Por isso, quanto mais o sábio progride, tanto mais despreza a si mesmo. Por isso, é um mau comerciante aquele que engana a si
mesmo, como faz quem se considera mais do que vale; mas deve estimar os outros e desprezar a si mesmo; e este é o mais importante
estudo da sabedoria, isto é, que o homem se persuada de seus defeitos
e se torne humilde aos próprios olhos.
25. O segundo estudo da sabedoria é a mortificação das paixões,
que são as sete afeições da alma, quatro principais e três anexas: o temor, a dor, a esperança e a alegria; o desejo, a vergonha e o ódio. Também em todas essas coisas pode existir o excesso. Ora, quando grita
demais, o menino é repreendido; assim o homem deve domar e refrear estas paixões por uma censura judicial, para que, quando vier a dor,
diga a si mesmo: fique em paz; e a mesma coisa com as outras paixões;
e abandona estas puerilidades e desejos pueris. Com efeito, os meninos seguem os impulsos das paixões; maldito o menino de cem anos (Is
65,20).
26. O terceiro estudo da sabedoria é a ordenação dos pensamentos; por isso: O insensato olha pela janela para dentro da casa do próximo (Eclo 21,26). E aqui existe uma grande dificuldade para ordenar
nossas imaginações, para que, quando estamos na Igreja, não pensemos em nada senão no que se faz; e assim sobre os outros aspectos; e
necessariamente é preciso ordenar estes pensamentos, para que o Espírito Santo entre por meio da sabedoria, porque o Espírito Santo da
disciplina foge dos fingimentos e se afasta dos pensamentos desatinados
(Sb 1,5). E assim, é preciso ter certas matérias sobre as quais nos exercitamos.
192
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O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...
27. O quarto estudo da sabedoria é a elevação do desejo; isso dá
valor aos outros estudos, para que, esquecidos do que fica para trás, nos
lancemos para o que está na frente (Fl 3,13). Os olhos do sábio estão em
sua cabeça (Ecl 2,14). O coração do sábio está à sua direita (Ecl 10,2).
Nisso consiste o estudo do sábio: que nosso estudo não se dirija senão
para Deus, que é todo desejável (Ct 5,16). Estas quatro coisas são difíceis se não se tiverem os primeiros estudos; mas com estes são fáceis. E
assim é fácil ter o domínio sobre as paixões, como se diz de certo
filósofo, que disse a seu servo: “Como te castigaria se não estivesse
irado”15.
15
Cf. M. T. CÍCERO, Tusculanae, IV,c. 36.
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S. BOAVENTURA
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DEPOIMENTOS
FREI HERMÓGENES HARADA: A UNIVERSIDADE DO VAZIO
FREI HERMÓGENES HARADA:
A UNIVERSALIDADE DO VAZIO
Sérgio Wrublevski *
A existência de frei Hermógenes Harada marcou decididamente a
existência de muitos homens e mulheres que tiveram a graça de participar do desafio espiritual nos mais diversos níveis de participação:
como irmão, amigo, mestre do espírito. A sua morte tornou ainda
mais nítida a sua presença viva, corajosa, prenhe de acenos de renovação, sempre tão preciosos em nossos tempos de indigência espiritual.
Como poderia ser compreendido o seu principio de vida e trabalho, que o fez trabalhar incansavelmente com tanta alegria e nitidez até
os últimos instantes, que o fazia tão procurado e estimado por tantos,
e que o fazia, ao mesmo tempo, ser tão incompreendido por muitos?
De seu pai, professor escolar, budista convertido ao exército da
salvação e depois ao catolicismo, a modo dos missionários alemães no
Japão, frei Hermógenes disse ter recebido acenos para a atitude fundamental: fazer de sua existência algo de benéfico para a humanidade, e
isto, de modo entusiasmado, abnegado e sem pretensões subjetivas.
No jargão filosófico, essa atitude significa fazer a existência ser um
caminho de universalidade na condição particular-singular. Buscar,
em toda a radicalidade, a universalidade de modo absoluto e finito na
*
Doutor em filosofia pela UFRJ, professor de Filosofia no IFITEPS (Nova Iguaçu –
RJ).
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 197-198, jan./jun. 2011
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SÉRGIO WRUBLEVSKI
existência singular, traz como desafio fazer de cada tempo e lugar da
existência o encontro cada vez único, concreto e pleno de realização.
Isto significa assumir toda a existência factual como lugar singular e
criativo de uma acolhida cada vez mais ampla e originária, e de tal
modo que cada concreção origina, a partir desta pura abertura, múltiplas concreções de universalidade. Este é o vazio cheio, do qual a
cultura do oriente e todas as grandes intuições religiosas falam.
Esta exigência de radical transcendência na finitude acolhe e ultrapassa tanto as possibilidades da filosofia acadêmica, como também as
possibilidades do budismo, do cristianismo e franciscanismo, enquanto movimentos históricos e juridicamente institucionalizados, para
convocar cada homem a exercitar esta transcendência a partir do e no
seu enraizamento finito em direção a uma pura disponibilidade, capaz
então de ser agenciamento tanto da humanização do homem, de sua
autêntica divinização, e da divinização de toda criatura.
Esta atitude de espírito recusa uma filosofia entendida como reunião de conhecimentos e sabedorias de vida, mas admite e busca
potenciar a fala desveladora do filosofar. Trata-se de uma atividade
reflexiva, na qual problemas filosóficos desabrocham e problemas aparentes são desmascarados. As respostas do presente conduzem, muitas
vezes, a uma crítica da cultura explícita, na qual este filosofar perde seu
sentido.
Uma tal reflexão filosófica se torna, cada vez, diálogo formativo,
que não necessita de medidas objetivas, nem de doutrinas filosóficas,
termos técnicos e métodos, mas é, antes de tudo, vida existencial, puro
testemunho que forma e transforma o mundo. Esta unidade de vida e
atuação é, então, sementeira para novas possibilidades de renovação da
força de espírito. Como lembra o poeta Hölderlin, uma pérola preciosa, mesmo escondida nas profundidades da terra, não deixa de atuar e
transformar, pela força de sua própria essência.
198
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 197-198, jan./jun. 2011
UMA DESPEDIDA
UMA DESPEDIDA
Alberto da Silva Moreira *
Partilho com vocês, a seguir, uma reflexão que escrevi depois da
visita ao túmulo do Hermógenes e que enviei a alguns amigos dele.
Na segunda-feira à tarde, dia 29 de junho, fazia um tempo lindo
nas colinas verdes de Rondinha; o vento balançava as árvores e fazia
rolar as muitas folhas secas pelo chão. Tantas questiúnculas, brigas de
frades, projetos urgentes e outras coisas estavam na minha cabeça. Tudo
muito humano, demasiadamente humano. Fui largando tudo e soltando o espírito ao tomar o caminho que conduz ao pequeno cemitério dos frades. Foi uma graça estar sozinho e ter bastante tempo. Sentei-me na grama e fiquei olhando o monte de terra fresca que ainda
recobre o Harada. Por cima do monte de terra alguém colocou umas
duas plantas, verdes e cheias de flores brancas e vermelhas, parecendo
um ramalhete que brotou e criou raízes. Belas e rudes como a vida. I
fioretti da frate Hermógenes. Continuei a antiga conversa com o Harada.
Desta vez, mais perguntas do que respostas, e muitos silêncios... Um
profundo sentimento de gratidão e de paz me invadiu, sem tristezas
ou arrependimentos; uma grande comunhão de espírito e uma grande
vontade de aprender mais deste grande espírito, desta grande alma com
quem tivemos a pura graça de conviver por tantos anos. A decisão de
aprender mais e direito, e seguir em frente, acreditando firmemente na
*
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-GO.
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 199-200, jan./jun. 2011
199
ALBERTO DA SILVA MOREIRA
“comunhão dos santos”, ou como o Harada dizia, naquela “comunidade anônima e silenciosa dos guerreiros”, verdadeira família dos que
lutam, às vezes sem não ter com quem contar. Pensei que os verdadeiros discípulos e amigos, assim como as plantas, estão unidos, no silêncio, por debaixo da terra que tudo sustenta. Com esses sentimentos no
coração e tais pensamentos na mente me levantei, inclinei-me em reverência ao humilde mestre; saudei ainda fraternalmente Hildefonso,
Basílio, Barnabé e os mais antigos que não conheci, e tomei o caminho que conduz ao dia de hoje.
Alberto da Silva Moreira, Julho de 2009.
200
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 199-200, jan./jun. 2011
UMA DESPEDIDA
NUR - Núcleo de Estudos em Filosofia no Mundo Islâmico
Medieval - UNIFESP
Coordenação: prof. Dr. Jamil Ibrahim Iskandar e profa. Dra. Cecilia
Cintra Cavaleiro de Macedo
http://www.sites.google.com/site/nurunifesp/
O núcleo dedica-se a investigar o desenvolvimento do pensamento filosófico medieval sob o domínio islâmico através do estudo
das obras de seus maiores expoentes , bem como suas origens e
influências sobre a história do pensamento filosófico. Para tanto,
conta com três linhas de pesquisa: Filosofia medieval
islâmica, Filosofia medieval judaica, e origens e desdobramentos
da Falsafa, sendo esta última dedicada à investigação das fontes
destes pensamentos, dos diálogos possíveis com outras correntes
filosóficas e outros ramos do conhecimento, assim como dos
desdobramentos posteriores destas importantes contribuições na
história do pensamento até os dias atuais.
O trabalho principal do grupo consiste nas pesquisas individuais e compartilhadas dos professores integrantes e na orientação de
monografias, trabalhos de iniciação científica e dissertações. Os professores participantes mantêm também um grupo de estudos
presencial na UNIFESP/Campus Guarulhos, em caráter permanente, voltado a temas e obras compreendidos por estas linhas de
pesquisa, assim como desenvolvem ações no sentido da divulgação
desta área de investigação.
Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 199-200, jan./jun. 2011
201
SÉRGIO WRUBLEVSKI
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FREI HERMÓGENES HARADA: A UNIVERSIDADE DO VAZIO
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lauda = 2.100 toques) e vir acompanhados de um resumo de no
mínimo 8 e no máximo doze linhas.
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nome(s) do(s) autor(es) e breve currículo, relatando experiência
profissional e/ou acadêmica, a instituição em que trabalha atualmente, endereço, número do telefone e do fax e e-mail.
A editoria agradece qualquer contribuição, no sentido de melhoria
da revista, sejam comentários, sugestões, críticas...
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