revista n¼9 - Movimento Escola Moderna
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revista n¼9 - Movimento Escola Moderna
O Trabalho Oficinal da Escrita Introdução O procedimento dominante na iniciação ao ensino e aprendizagem da escrita consistiu na prática do desenho das letras que, combinadas e copiadas, formam palavras, as quais, agrupadas, formam frases. Estas, ligadas entre si, formariam textos. Tratava-se de um trabalho mecânico de combinatórias, de cifração e decifração a que a cópia e o ditado correspondiam como estratégias de aquisição formal. Tinha como objectivo uma produção sem erros ortográficos e respeitadora de cânones e estereotipos vazados em redacções sobre as férias, as estações do ano ou, recuando no tempo, sobre animais domésticos, sobre a pátria, tudo de acordo com as propostas dos manuais vigentes. A iniciação na escrita foi predominantemente entendida nos programas escolares como uma sequência pré-determinada de actividades a realizar pelo aprendiz, sequência que lhe permitiria um conjunto hierarquizado de aquisições. A partir do início da década de oitenta, o trabalho de muitos investigadores, sobretudo anglosaxónicos, veio, porém, a caracterizar a aprendizagem da escrita como um processo complexo, global, holístico-construtivo e assente numa prática dialógica. Escrever é uma tarefa de resolução de problemas, constitui uma tentativa continuada de descobrir o que se quer dizer e desenvolve-se num trabalho comunicativo de interacção social. Do que se trata, hoje, é de propiciar contextos que constituam convite à comunicação desbloqueada, recebendo-se os diversos processos e intencionalidades dos alunos, ajudandoos e ajudando-se estes, entre si, a descobrir o que querem dizer. A revisão do já escrito é uma tarefa que permanentemente se pode reiniciar, porque qualquer escrito é passível de ilimitadas reformulações: escrever é reescrever. Para alguns, Deus (a perfeição) está na reescrita! Segundo Niza, S. (1989) «Impõe-se um espaço de liberdade negocial no interior da escola para que os temas, os motivos, os ritmos de produção e as suas finalidades surjam de um acordo em cooperação que garanta a motivação intrínseca da escrita. Assim, poderá tornar-se gratificante o processo de desenvolvimento e regulação dos escritos, porque estes surgem como conquista permanente de novos sentidos e potencialidades para a escrita, por oposição a velhos processos de constrangimento e insucessos constantes.» (p. 3) 1. A aprendizagem da escrita na escola: reprodução e correcção Durante muito tempo, apoiados por estudos de investigação que predominantemente se ocuparam em categorizar e em descrever géneros (narrativo, poético, dramático...), os professores de língua obrigavam os seus alu- ESCOLA MODERNA Nº 9•5ª série•2000 Ivone Niza 31 ESCOLA MODERNA Nº 9•5ª série•2000 32 nos à prática de processos de repetição de modelos e à exercitação de regras gramaticais que levariam à produção de textos bem formados, redigidos em boa escrita, ou seja, segundo a escrita de autores consagrados. Na verdade, a autoridade da literatura clássica foi uma constante ao longo da história da pedagogia da leitura e da escrita, bem como a prática de exercícios de gramática sem a qual, acreditava-se, não se podia aprender a escrever. Produzir textos «no domínio do literário» e «comunicar oralmente e por escrito com correcção e elegância» são enunciados presentes ainda nos Programas de Língua Portuguesa que atravessaram os anos oitenta. Os parâmetros que determinariam a correcção dos textos das crianças não estavam, porém, explicitados, pelo que nos podemos interrogar acerca dos conceitos de «elegância» (!) na fala e na escrita que cada professor teria como exigência para textos de crianças/adolescentes em fase de desenvolvimento da escrita. Esta promiscuidade do trabalho de aprender a escrever com a boa escrita (já escrita) dos autores literários e com o ensino da gramática normativa, mantém-se desde há séculos, confundindo-se o ensino da produção escrita, com a leitura (recepção) literária. As redacções ou composições foram-se reproduzindo, na escola, como colagens de frases feitas, retiradas de fontes pouco diversificadas e facilmente reconhecíveis. Os (bons) alunos aplicavam expressões unanimemente reconhecidas e aceites pela escola, daí resultando textos impessoais, exercícios formais, a maioria das vezes cegos ao sentido e à comunicação. Tratava-se (e em muitas práticas escolares, trata-se ainda) de uma falsa produção, da negação do processo de produção do discurso individual que, ao produzir-se, simultaneamente se renova, multiplicando-se na e pela leitura dos possíveis interlocutores, instituindo zonas de intersubjectividade. O reconhecimento e a reprodução de modelos oficiosos e consagrados contribuía para a redução ou mesmo o apagamento do sujeito que escrevia, dado que era reconduzido, na escola, a um mesmo passado (o dos autores literários de referência) em que, cada vez menos, um adolescente poderia reconhecer-se. A consequência tem sido, para muitos, a recusa em produzir escrita por insegurança, por medo de se expor. Para outros, a utilização de estereotipos funciona como máscara ou produto de valor tradicionalmente assegurado. Em 1988, Zemelman e Daniels afirmavam: « Na verdade, a escrita tem sido tão mal ensinada nas nossas escolas e as crianças têm sido obrigadas a perder tanto tempo com coisas inúteis e objectivos desmoralizadores que perderam a vontade de escrever. Agora, enfrentamos uma batalha enorme ao tentar religar os nossos alunos e nós próprios a todas as possibilidades de aprendizagem e de descoberta que a escrita nos oferece.» (p. 4) Considerava-se que os bons alunos, os que escreviam bem, o faziam por uma espécie de intuição ou de dom, uma vez que, efectivamente, na escola, não tinham sido ensinados a escrever, exactamente como não o tinham sido os alunos que escreviam com dificuldades. Porque, para todos, o ensino da língua consistia na leitura e na transmissão de regras de escrita segundo os exemplos dos bons autores, na prática de exercícios de aplicação e de reconhecimento de aspectos parcelares da morfologia e da sintaxe, na identificação de figuras de retórica e na verificação e avaliação de todos estes aspectos nos textos escritos pelos alunos. Agia-se como se os sujeitos em aprendizagem já dominassem a língua (Zoellner, 1969). Para este investigador, a pedagogia da escrita era simplista, internalista e intelectiva: «Nós não estamos lá muito interessados naquilo que o aluno está a escrever («is writing»); estamos é muitíssimo interessados naquilo que ele já escreveu («he has written».)» (p. 289) E era sobre o já escrito que os professores procuravam, assinalavam e corrigiam os erros, dualidades em presença, segundo o jogo de intenções e finalidades, de acordo com a história que significa por si e para os outros. Os estudos da aquisição da escrita pelas crianças, lembrados por Niza, S. (1998), podem categorizar-se numa primeira tendência que assume a língua como um sistema padronizado de estruturas e de normas fixas. O seu desenvolvimento é entendido como a passagem de um estado de incompetência linguística a um estado de «competência» orientado por modelos «correctos» e de «autores» e assente em estratégias de reprodução e de treino. Uma segunda tendência considera a escrita um objecto de conhecimento construído individualmente e dinamizado pelo «conflito cognitivo». O erro desempenha uma função construtiva e aceleradora. Uma terceira tendência considera a actividade mental na alfabetização uma actividade interdiscursiva radicada no conflito sociocognitivo. O ensino processa-se num quadro funcional de comunicação através de processos discursivos dialogais. Aprender significa fazer, usar, praticar com finalidade social explícita e em interacção cooperada. O alfabetizando, enquanto escreve, aprende a escrever e aprende acerca da escrita. Trata-se da perspectiva instrumental e funcionalista presente nos trabalhos de Vygotsky e esboçada na investigação-acção de Smolka (1988) e de Castro Neves e Alves Martins (1994). 2. Perspectivas actuais sobre aprendizagem e desenvolvimento da produção escrita Entendendo-se, hoje, a linguagem como uma acção com função metacognitiva entre interlocutores, é fundamental para a sua aprendizagem que os professores, todos os professores de língua, estejam preparados para desencadear actividades de oralidade, de escrita e de leitura numa concepção dialógica da linguagem. ESCOLA MODERNA Nº 9•5ª série•2000 sobretudo ortográficos e de pontuação (portanto «erros» da zona de superfície textual) dos alunos. A focalização realizava-se sobre a palavra e a frase. Uma concepção de ensino e de aprendizagem da escrita que devia sempre passar pela leitura e correcção pelo professor, teve como efeitos perversos o pouco espaço e tempo atribuídos à escrita fora dos momentos consignados para a avaliação. Menos escrita, porque o professor não podia estar sempre a policiar, a corrigir, e fugas à escrita porque a ninguém agrada expor-se, constantemente, como objecto de correcção. Nesta lógica, os exames, as provas globais, constituem momentos formais de avaliação e de classificação de produções linguísticas que não puderam ser largamente experienciadas, porque o trabalho do professor acontece em diferido: ensina gramática mas pede redacção, explica oralmente mas avalia a escrita que encomenda aos alunos. Segundo Semeghini (1997) com a democratização do ensino instalou-se a crise. A partir da década de setenta surgem os excluídos da escola, embora inseridos na escola. Começaram a ser frequentes expressões como fracasso escolar, e mais recentemente, fracasso da escola. E segundo muitos investigadores (Smolka, 1988, Patto, 1990, Kramer, 1995) a crise da escola e a crise do ensino-aprendizagem da língua materna têm caminhado em paralelo. Mas não restam dúvidas, hoje, quanto ao papel da escola : a ela cabe adaptar-se aos alunos que tem, trabalhando as interferências da modalidade oral dos alunos sobre a escrita, dando-lhes instrumentos e estratégias para adquirirem o domínio da modalidade escrita da língua sem o qual permanecerão iletrados, ou seja, excluídos. A escrita falhou na escola como espaço de intersubjectividade, como forma de acção entre autor/leitor, como uma actividade com sentido social, como uma experiência de comunicação que se institui no momento particular em que se manifesta, segundo as indivi- 33 ESCOLA MODERNA Nº 9•5ª série•2000 34 De modo radical, Bakthine (1997/1929) afirma: «Qualquer palavra apresenta duas faces. É tão determinada pelo facto de proceder de alguém, como pelo facto de ser dirigida a alguém. Constitui precisamente o produto da interacção entre o locutor e o auditor. Qualquer palavra serve de expressão a um, por relação com o outro. Através da palavra definome em relação ao outro, ou seja, em última análise, perante a colectividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e o outro.» (p. 124) Para Bakthine (1981) a interacção verbal constitui a realidade fundamental da língua. Ora, a realização de um trabalho pedagógico que assenta na interacção verbal, na concepção de língua como um todo orgânico, vivo, que se institui pela dialogia, está já muitíssimo longe da concepção de língua como objecto parcelarizável, que pode ser dividido em gramática, redacção, leitura e em que se pode caminhar daquilo que se definiu como mais simples (e o que é mais simples na interacção comunicativa?), para mais complexo. Vygotsky (1979) afirma: «A linguagem escrita é precisamente a álgebra da linguagem. E tal como a assimilação da álgebra não é uma repetição do estudo da aritmética, mas representa um plano novo e superior do desenvolvimento do pensamento matemático abstracto, o qual reorganiza e eleva a um nível superior o pensamento aritmético que se elaborou anteriormente, assim a álgebra da linguagem (a linguagem escrita) permite à criança o acesso ao plano abstracto mais elevado da linguagem, reorganizando por isso mesmo, também, o sistema psíquico anterior da linguagem oral.» (p. 260) Ou seja, não só o pensamento se realiza na linguagem, como a linguagem escrita desempenha funções determinantes no desenvolvimento, acelerando-o. O mesmo autor considera, também, que a aprendizagem da escrita tem repercussões na realização da linguagem oral. Esta, reestrutura-se em função da experiência metacognitiva que o trabalho da escrita desencadeia, porque a experimentação sucessiva da escrita do que se quer dizer, cria, progressivamente, hábitos de planificação que permitem um controlo cada vez mais consciente sobre a actividade linguística e comunicativa. Trata-se do entendimento da aprendizagem da escrita como uma via de (re)descoberta e de (re)construção da língua oral e escrita. A mais recente investigação sobre as funções da escrita no desenvolvimento preocupase em analisar os comportamentos de quem escreve, aproximando os mecanismos de funcionamento dos descritos pelos profissionais da escrita, os escritores. Assim, para Elbow e Belanof (1995, p. 3) qualquer pessoa pode desempenhar a função de escritor: • «Cada pessoa está habitada por palavras e ideias. E se parece a cada um que não é assim, quer dizer que se bloqueou ou reprimiu. E quanto mais cada um se reprime, menos consegue escrever.» Esta parece ser a situação mais comum não só de muitos alunos, como de muitos professores: a insegurança, o medo de escrever. • «Cada pessoa é dona da sua própria escrita.» Só ela própria pode saber em que medida o que pôs no papel vai de encontro àquilo que quer significar. Todos os outros, colegas, professor, amigos, podem ajudar a ver como funcionam as palavras, mas só o próprio pode decidir sobre quais as sugestões importantes e quais as mudanças a fazer, se for caso disso. • «Como acontece com todos os escritores, cada pessoa que escreve precisa de partilhar o seu texto com outros.» Só se pode perceber o que significa comunicar através da escrita, quando experimentamos ler os nossos textos para uma audiência. Ora, grande parte dos problemas de escrita nas escolas tem a ver com o facto de se escrever para o professor (que tem por função ava- oportunidades para falar com outros acerca das escolhas que se fazem. Aí, se pode escrever para si, com os outros, para os outros, por causa dos outros e daquilo que nos rodeia. Fazer radicar a produção escrita na dinâmica discursiva da comunicação faz com que aquela se organize mais como um desenvolvimento do que como uma aprendizagem. 3. A prática da escrita em oficina na sala de aula Enunciam-se, em seguida, sete princípios que devem ser considerados no ensino e na aprendizagem da escrita segundo Atwell, N. (1987, p. 18): 1. «Quem escreve precisa de uma regularidade temporal para o fazer.» Ou seja, quem escreve precisa de tempo para pensar, escrever, reler, mudar de opinião, voltar a escrever. Quem escreve precisa de tempo porque mesmo quando não se está a escrever, está a antecipar-se o momento em que se estará. Os escritores precisam de tempo para o exercício continuado de escrever. 2. «Quem escreve precisa de construir e organizar os seus tópicos.» Desde o primeiro dia do jardim de infância, as crianças devem usar a escrita como um meio de pensar e de dar forma às suas ideias e interesses. 3. «Quem escreve precisa de réplica (response).» Uma réplica de ajuda deve acontecer durante e não depois do momento da escrita. Pode vir dos companheiros de escrita e do professor, que de modo consistente modela as ajudas e questões que ajudam quem escreve a reflectir sobre o conteúdo da sua escrita. 4. «Quem escreve deve aprender os mecanismos da escrita no momento em que precisa deles.» Ao professor cabe fazer notar os erros no momento em que ocorrem e passar as regras e as maneiras de dizer mais adequadas numa ESCOLA MODERNA Nº 9•5ª série•2000 liar) sobre um assunto que normalmente este domina. Donde, ser preciso escrever para mais pessoas para se perceber que elas têm diferentes reacções ao mesmo escrito, o que nos permite aprender, progressivamente, a considerar essas diferentes reacções. • «Como qualquer escritor, cada um de nós é já um utilizador sofisticado da língua.» Quando falamos não se pensa em cada palavra que se utiliza, mas no que queremos significar e as palavras tendem a ajustar-se ao que se quer comunicar. Na verdade, quando se escreve e se está concentrado naquilo que se quer dizer, as capacidades naturais para a linguagem funcionam, do mesmo modo que produzimos linguagem correcta quando falamos, sem necessitarmos de uma permanente vigilância sobre isso. São estas capacidades que nos ajudam a ajuízar a nossa própria escrita, bem como a escrita dos outros. Assim, o que é importante como estratégia, é confiar no que já se sabe (mesmo que não seja muito) e naquilo que se quer dizer, através de um movimento discursivo que sempre supõe a intervenção do outro com quem comunico. Graves (1984) afirma que o pior inimigo do professor que ensina a escrever é a ortodoxia acerca das regras que o professor ou o aluno devem cumprir ou não podem infringir, é a representação da autoridade do professor que detém a última palavra. Porque o pior de tudo, é que estas atitudes e representações suspendem a aprendizagem. Para este autor, a ortodoxia é um fado que se evita à medida que alunos e professores se desafiam a escrever e tomam consciência dos ganhos dessa aprendizagem. Donde a importância do trabalho em oficina de escrita. Aí, se propicia tempo para a escrita e para a leitura, se tem liberdade para fazer escolhas e 35 ESCOLA MODERNA Nº 9•5ª série•2000 36 perspectiva de gramática textual e em colaboração com os outros companheiros de escrita e não em lições expositivas a que se seguem a prática de exercícios gramaticais morfológicos e sintácticos descontextualizados e, por isso mesmo, dificilmente transponíveis para o momento da produção. 5. «As crianças precisam de conhecer adultos que escrevem.» É necessário que os adultos escrevam, partilhem a escrita com os seus alunos e demonstrem o que escritores com experiência fazem no processo de composição, deixando as crianças e os adolescentes ver os esboços de outros que escrevem com todas as suas falhas e todas as tentativas para melhorar. 6. «Quem escreve precisa de ler.» É importante o acesso, o contacto com uma grande variedade de textos. Em prosa e em verso, ficção e não ficção. 7. «Os professores de escrita precisam de se responsabilizar pelos seus conhecimentos e pelo seu ensino.» Devem procurar recursos profissionais (materiais, dispositivos pedagógicos) que reflictam as mais actualizadas conclusões da investigação acerca da escrita pelas crianças. E devem tornar-se escritores e investigadores observando e aprendendo a partir do seu próprio comportamento e do dos seus alunos enquanto escritores. Relembre-se que a ordem da escrita não é igual à ordem do mundo e que a adequação entre ambas necessita de longa e nunca terminada aprendizagem. O percurso não é, porém, ao contrário do que muitos quiseram e continuam a querer acreditar, o da prática da leitura para a prática da escrita. O percurso de aprendizagem da escrita consiste na permanente e obsessiva experimentação da escrita que muitos escritores referem. Lobo Antunes (2000) confessa em entrevista, a propósito de mais um romance seu em formação : «Estou na fase de corrigir. O rascunho está pronto. Agora falta tudo.» O processo de trabalho em oficina requer a experimentação cooperada entre alunos e professor, de um percurso que vai desde a fala daquilo que se quer escrever à produção escrita (que pode ser a pares ou em pequeno grupo), até à leitura/comunicação dos textos produzidos. Trata-se da instituição de circuitos comunicativos que dão sentido e determinam a actividade de escrita. E é no acto de comunicação da produção escrita que a análise e a avaliação do que se escreveu, acontecem. Neste trânsito comunicativo aprofunda-se a compreensão de como se escreve e o conhecimento acerca do que se escreve (donde ser legítimo invocar a função metalinguística provocada pelo processo de produção escrita). Os alunos produzem textos a propósito ou provocados por momentos e situações de fala e de registos informais, ou a partir de outros desencadeadores (imagens, jogos, ficheiros). Os textos produzidos circulam no grande grupo, porque toda a escrita precisa de audiência, tem função e sentido social e acontece para ser lida, apreciada. Clanché (1988), que analisou milhares de textos livres de crianças e de adolescentes, afirma: «A instituição escolar pensa que é necessário conhecer-se as regras da escrita antes de se escrever. Mas para o jovem, o que conta é saber para quem e porque se escreve. O como, é secundário.» (p. 200) Refiram-se, finalmente, alguns aspectos da função libertadora da escrita. Lucy Calkins no seu livro The Art of Teaching Writing (1989) afirma: «Escrever permite-nos mudar o caos em alguma coisa de belo, permite-nos desenhar momentos seleccionados nas nossas vidas, dominar e celebrar momentos organizados da nossa existência.» (p. 3) Cita escritores como Ana Morrow Lindberg: «Devo escrever, devo escrever a todo o custo. Porque escrever é mais do que viver.» (p. 3) Como Jonh Cheever: «Quando comecei a es- Conclusão Em «A formação social da mente» (1998) Vygotsky defende que o ensino tem de ser organizado de forma a que a leitura e a escrita se tornem necessárias às crianças; a escrita deve ter significado despertando em quem a pratica uma necessidade intrínseca e deve ser incorporada numa tarefa necessária e relevante para a vida. Afirma ainda que a escrita deve ser ensinada naturalmente, como um momento natural e não como um treino imposto de fora para dentro. Donde a importância do trabalho oficinal da escrita na escola. Nele, as crianças e os adolescentes podem reconhecer-se como autores porque escolhem os motivos para escrever, os públicos/audiência dos seus textos, as formas e modalidades de escrita de acordo com as situações de comunicação que instituíram: escrever no âmbito de projectos, corresponder-se com alguém, organizar histórias em grupo. Segundo Niza, S. (1998) a escola não proporciona ainda práticas correntes de trabalho educativo, radicado em processos discursivos autênticos, que promovam a linguagem escrita numa perspectiva de construção cooperada da sua aprendizagem. Mas não se vê como se pode esperar muito mais tempo. Déttry, B. (1998) formula no seu artigo «Abandono Escolar precoce e dificuldades na construção da identidade: jovens em risco» uma aspiração igualmente inadiável: «A escola como outros organismos (...) poderiam dar apoio ao enriquecimento do eu abrindo novas facetas às identidades em construção dos adolescentes». (p. 93). Enquanto que para os adolescentes, escrever constitui uma forma de avaliação do mundo, (Clanché, P. 1988) muitos alunos vivem ainda hoje, na aula de Português, o duplo constrangimento provocado pelo professor que obriga a ler, explica gramática, mas pede e avalia redacção. Ora, a prática da produção escrita, tal como a caracterizámos em permanente experimentação, pode funcionar, simultaneamente, como registo e apreciação da experiência quotidiana e como instrumento de conhecimento e de transformação do homem. Necessário seria, pois, que a prática da escrita se estendesse a todas as aulas de Língua. Para que isso aconteça, é urgente que a consciência desta necessidade radique nos professores que continuam a ser, como toda a gente que escreve e também como os seus alunos, aprendizes de escrita. Bibliografia ATWELL, N. (1987), In the middle. Writing, reading and learning with adolescents. Portsmouth NH: Boynton/Cook. BAKHTINE, M. (1977/1929), Marxisme et philosophie du langage. 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E cada um de nós só se sente tocado pela escrita quando esta se transforma num projecto pessoal e interpessoal. 37 ESCOLA MODERNA Nº 9•5ª série•2000 DETRY, B., «Abandono escolar precoce e dificuldades na construção da identidade: jovens em risco.», in Inovação, 11, 1998, pp. 87-94. ELBOW, P; BELANOF, P. (1995), A community of writers. New York: McGraw-Hill. GRAVES, D. H. (1984), A researcher learns to write. Portsmouth, NH: Heinemann. KRAMER, S. (1995), Alfabetização, Leitura e Escrita – Formação de Professores em Curso. Rio de Janeiro: Papéis e Cópias de Botafogo e Escola de Professores. LOBO ANTUNES, A. (2000), Entrevista à Revista Pública. 30/1/2000 NIZA, S. (1998), Criar o gosto pela escrita. Lisboa: Ministério da Educação/DEB. NIZA, S. (1989), «Alfabetização e desenvolvimento da escrita», in Escola Moderna, 2ª série, nº 2-Lisboa- MEM. PATTO, M. H. S. (1990), A produção do fracasso escolar. São Paulo: T. A. Queiroz. 38 PÉCORA, A. (1999), Problemas de redacção. 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