A Banalização da Escatologia bíblica Em pleno século XIX, mais

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A Banalização da Escatologia bíblica Em pleno século XIX, mais
A Banalização da Escatologia bíblica
Em pleno século XIX, mais precisamente entre 1843-1844, um grupo de
estudantes da escatologia bíblica previu a vinda de Cristo, e consequentemente o
fim, para uma data na primavera daqueles anos. Esse movimento conhecido na
história estadunidense como movimento Milerita foi seguido por mais de 50 mil
pessoas das mais variadas denominações cristãs da época (batistas, metodistas,
congregacionais etc) de acordo com Whitney R. Cross em seu clássico The Burned
Over District (que trata as origens sociológicas e históricas dos movimentos
religiosos no oeste estadunidense entre os anos 1800-1850). Não precisamos
explicar que após o malogro, o movimento logo se desfez, dando origem a vários
outros grupos, entre os quais os Adventistas do Sétimo Dia.
Não foram somente os Mileritas que insistiram em fazer leituras escatológicas
do texto bíblico produzindo tanta frustração e descrença. As chamadas
Testemunhas de Jeová fizeram o mesmo quando o seu fundador, Charles T. Russel,
marcou o fim para 1914, em seu famoso livro The Time Is at Hand (É Chegado o
Tempo). As Testemunhas de Jeová de hoje pensam que 1914 sempre marcou o
início dos chamados “últimos dias”, porém no período de publicação do The Time Is
at Hand, esta data era vista como assinalando o fim dos “últimos dias” e não o
começo como crido atualmente (o início dos “últimos dias” seria 1874 de acordo com
a primeira cronologia exposta por Russel).
Tais alvoroços escatológicos não fazem apenas parte da leitura estatológica
dos séculos passados. No ano, de 2009, vários planfetos impressos pela
www.ebiblefellowship.com , foram distribuídos na cidade de São Paulo declarando
que o fim será em 21 de Outubro de 2011, data esta que será a do arrebatamento
da Igreja de Cristo. Tal panfleto declara:
“No ano de 2011 DC serão exatamente 7000 anos depois do dilúvio de Noé.
Será o fim do período de tempo dado ao homem para encontrar a graça de Deus.
Isto significa que o tempo para encontrar refúgio em Cristo tem se tornado muito
curto. Não nos resta muito tempo até o ano de 2011…sabemos que o ano de 2011 é
o ano em que se completará 7000 anos depois do dilúvio. E também sabemos que
Deus vai destruir o mundo nesse ano. Mas quando isso vai ocorrer em
2011?…Dizemos anteriormente que a era da Igreja chegou ao fim no ano de 1988
DC” (O Arrebatamento 21 de Maio de 2011, pp.3,4).
Com certeza mais uma vez desculpas serão dadas com relação a esse êrro
escatológico, e como sempre novos cálculos deverão ser feitos para se
“harmonizar”mais uma vez as informações supostamente extraídas da Bíblia.
Por que a história religiosa está cheia de tantos erros de interpretação
escatológica? Será a escatologia uma matéria irreconciliável do ponto de vista
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histórico-teológico? Será que o tempo do fim deve causar necessariamente tantos
erros na tentativa de acertos por parte dos interpretes da escatologia?
Especulação e incredulidade
Não foram apenas os chamados grupos sectários do século XIX que se
aventuraram em fazer leituras escatológicas com base em sua época gerando
incredulidade e banalizando este tema de tamanha importância para o panorama
bíblico. Quando lemos a história secular européia podemos verificar as “raízes” da
tantas especulações acerca do “tempo do fim” ocorrida nos séculos anteriores
(através dos séculos). Entre os nomes daqueles que insistiram em determinar uma
data real ou aproximada para o fim estão, o monge Glaber Radhulfus (990-1033); o
astrônomo, matemático e filósofo Abraham Bar Hiay Hanasi (1065-1136); o médico
Arnold Villanova (1235-1313); o matemático Johannes Stoeffer (1452 –1531) e até
mesmo o famoso reformador protestante Martinho Lutero (1483-1546).
O velho mundo (a Europa) muito sofreu com as especulações acerca do fim
levando em conta os “sinais” lidos pelos “escatólogos” de plantão. A peste negra, por
exemplo, que entre 1347 – 1351 dizimou entre 25% a 40 % de toda a população
européia, foi compreendida como sendo um dos sinais do fim profetizado por Jesus
em seu famoso sermão escatológico relatado nos evangelhos sinóticos (Lc 21.11).
Como uma das consequências de tamanha catástrofe foi uma grande depressão
econômica e uma crescente escacez de mão de obra, o quadro apocalíptico estava
montado. Apresentando assim os seus ‘cavaleiros’ (Ap 6.5-8)!
Tentar apartir do quadro histórico atual no qual vivemos fazer uma releitura
dos eventos escatológicos que foram enxergados como sendo o sinal irrefutável do
fim, tem produzido muitas interpretações exóticas da escatologia bíblica. Tais
atitudes comuns ao longo dos séculos produziu uma grande banalização da questão
escatológica, e consequentemente uma onda de grande incredulidade com relação a
doutrina da vinda gloriosa do Senhor.
A pouco tempo o famoso tele-evangelista Moris Cerullo, ao participar de um
programa televisivo de grande audiência no Brasil (“Vitória em Cristo”) , mencionou a
crise econômica de 2008 como sendo uma prova de que o “juízo financeiro” de
Apocalipse 6 era chegado. Durante toda a programação ele foi chamado de “profeta”
e fez um apelo para que o Brasil ouvisse a sua advertência. O mais curioso é que no
livro de Apocalipse não é declarado que durante a manifestação dos cavaleiros virá
algum tempo de prosperidade. Ao contrário, tempos de grande angustia como nunca
visto, inclusive a mortandade de grande parte da população mundial (1/4). As
afirmações de Apocalipse não se harmonizam com a informação escatológica de
Cerullo.Outra pergunta que deve ser feita é: por que haverá uma grande
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prosperidade no Brasil nestes próximos anos (como profetizou Cerullo), se o quadro
escatológico de Apocalipse com relação a escacez é global? Ou a economia global
atual não possui nenhum desdobramento escatológico absoluto (mencionado no
texto bíblico) como afirmou Cerullo, ou teremos que desconfiar das informações
contidas em Apocalipse sobre esse tema! Tais especulações no meio evangélico só
tem servido para produzir grande instabilidade e confusão na compreensão do
panorama escatológico bíblico, assim como ocorrreu na idade média através dos
“profetas” da época.
Diante de tantos erros de leitura do panorama escatológico, se faz necessário
atentar para algumas verdades no que diz respeito a este importante tema bíblico,
para que estejamos livres de tais interpretações exóticas e sedutoras do tempo do
fim.
Pra que serve a escatologia?
O panorama profético é de suma importância para a revelação do Deus
verdadeiro, pois a Biblia é o único livro religioso em todo o mundo que possui
profecias claramente verificáveis do ponto de vista histórico. O que a põe num
patamar de superioridade com relação a todas as outras obras religiosas cridas por
bilhões de fieis em todo o planeta. Nem o Corão, nem a Gita, nem os Analetos, nem
a Tripitaka, ou qualquer outra literatura considerada religiosa pode mencionar o
cumprimento de profecias no panorama histórico como prova de sua autoridade.
Somente a Bíblia pode fazer tal reivindicação.
As profecias bíblicas têm uma grande significância em virtude da
demonstração de que o criador conhece de antemão todo o futuro, sendo capaz de
apresentá-lo dentro de um panorama profético e histórico com riqueza de detalhes
que não poderiam ser declarados a não ser por conhecimento prévio de um ser
pessoal. Mas além disso não devemos ver as profecias escatológicas apenas como
um meio de demonstração do poder e onisciência de um Deus grandioso e pessoal.
Elas apontam para a preocupação de Deus em demonstrar para o seu povo os
acontecimentos futuros, visando sua convicção e firmeza no Senhor, e também
estabelecer a fé em sua infalível palavra.
Os livros escatológicos de Daniel (no Primeiro Testamento), e Apocalipse (no
Segundo Testamento), não foram escritos para produzir medo e temor, mas para
gerar confiança nos corações daqueles que são sábios para entender claramente os
sinais do fim (Dn 12.10).
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Existem importantes princípios a serem seguidos para uma compreensão
mais acurada dos eventos relacionados aos “últimos tempos”. Evitando assim a
repetição dos mesmo erros cometidos no passado.
Cinco princípios fundamentais para o entendimento das profecias bíblicas
I. Saber que o conhecimento escatológico é dinâmico.
As Escrituras demonstram que o conhecimento escatológico é dinâmico,
sendo portanto o seu entendimento desenvolvido a partir de um processo de
eventos históricos que culminam no claro entendimento profético no período de seu
devido cumprimento no kairós de Deus (kairós é a apalavra grega para designar o
período ou tempo de atuação de Deus nos negócios humanos).
Deus ainda no livro de Daniel deixou bem claro que o conhecimento
escatológico possuia tal natureza dinâmica dentro do panorama profético, sendo
portanto as vezes de completo desconhecimento do próprio escritor bíblico (Dn
8.15,16).
O profeta Daniel não possuia um entendimento exato sobre o significado de
algumas visões que teve. E as palavras do Senhor neste mesmo livro advertem o
profeta de Deus sobre o fechamento de seu livro, que seria aberto somente no
futuro, quando o conhecimento sobre seu tema seria mais facilmente compreendido
(Dn 12.8,9).
Portanto é necessário saber que os eventos escatológicos se cumprem a medida
que determinados eventos históricos lançam luz sobre eles, nos ajudando a
entender melhor a profecia bíblica. Assim, tentar interpretar uma profecia bíblica
antes do tempo de sua revelação através dos fatos históricos, gerará mais
especulações do que certezas.
II. Saber que existem profecias de duplo cumprimento (profecias de “dupla
referência”).
Algumas profecias bíblicas possuem um cumprimento particular e local, outro
completo e global. Um dos grandes exemplos de tais profecias é o sermão
escatológico de Mateus 24. Visto de uma forma particular, claramente se refere a
destruição de Jerusalém no ano 70 d. C. (24.16-20). Mas ao lermos todo o capítulo
tendo em vista a história universal saberemos que alguns eventos ainda se
cumprirão no futuro de forma global (24.25-31). Portanto se faz necessário
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averiguarmos os detalhes relacionados aos eventos proféticos que temos lido nos
textos bíblicos.
III. Fazer uma avaliação comparativa dos textos escatológicos que mencionam um
mesmo tema.
O panorama escatológico está baseado em textos que possuem um certo
paralelismo. Portanto não podemos ignorar este fator, visto que um texto pode trazer
detalhes que não são trazidos num outro quadro escatológico que prestigiou certos
detalhes. Jesus fez questão de mencionar “ a abominação da desolação, de que
falou Daniel” (Mt 24.15. Grifos do autor) ao lançar luz sobre o quadro escatológico
relatado em Daniel 9.27, exortando seus ouvintes a um completo entendimento do
panorama bíblico.
IV. Saber que algumas profecias são lacônicas.
Os profetas bíblicos algumas vezes só viam os “picos” proféticos, mas não
enxergavam os vales!
Algumas profecias bíblicas, mesmo mencionadas num único texto, poderíam
ter um cumprimento parcial. Um anterior e outro posterior.
Jesus quando entrou na sinagoga de Nazaré mencionou o texto de Isaías 61
como tendo cumprimento naquele momento (Lc 4. 16-21). Mas ele leu somente a
primeira metade do segundo verso do texto mencionado pelo profeta, demonstrando
assim que houve um cumprimento profético total apenas da primeira parte da
profecia, sendo o cumprimento do restante que se refere ao “dia da vingança” num
período posterior do ministério do Messias, quando ele vier para cumprir seu papel
de vingador (Is 61.1,2). Levando em conta o tempo presente, temos uma lacuna
profética de quase 2.000 anos num mesmo texto bíblico!
V. Avaliar as profecias dentro de um panorama mais literalista.
O método alegórico de interpretação não se apega de forma alguma as
palavras, mas sim a um suposto sentido figurado que estaria relacionado as
mesmas (ou por trás das mesmas). Assim um quadro profético sempre deveria ser
analisado dentro de uma visão relativista do texto, mas não absoluta. A doutrina do
milênio (que é uma das mais controversas no debate escatológico) se compreendida
literalmente nos daria uma impressão de restauração paradisíaca da terra (algo não
estranho para quem acredita numa leitura literal da narrativa de Gênesis com
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relação ao local de habitação do primeiro casal), mas se entendida de forma
alegórica pode possuir multiplas interpretações, de acordo com a criatividade do
interprete bíblico, dificultando assim uma compreensão clara e objetiva do
significado dos textos sobre o tema.
Se Analisarmos as profecias messiânicas cumpridas durante a primeira parte
do ministério do Messias Jesus poderíamos considerar o literalismo como forte
evidência interpretativa no que diz respeito a outra profecias co-relacionadas, pois
as mesmas se cumpriram de forma literal e não figuradas (Is 53.1-12; Dn 9. 25-26).
Aprendendo com nossos erros
Em anos recentes, um chip produzido pela motorola foi a grande
sensasão dos intérpretes da “escatologia bíblica”. Um pequeno chip quase do
tamanho de um grão de arroz, foi suficiente para se especular sobre que tipo de
marca será a marca da besta mencionada no livro de Apocalipse. Como o chip pode
ser facilmente introduzido sob a pele já foi visto como sendo a tecnologia ideal
usada pelo domínio do anti-cristo para controlar as pessoas (na década de 80 era o
código de barras essa tecnologia). Não pretendo negar essa possibilidade, mas
também acho que devemos ser mais cuidadosos com afirmações que fazemos
acerca de que tipo de marca será. Estas declarações tem causado mais histeria do
que uma avaliação produtiva e séria da questão escatológica. E se amanhã surgir
uma nova tecnologia ideal para esse propósito (rastrear pessoas e auxiliá-las na
compra e venda de produtos sem o auxílio do papel moeda) mudarão esses
“intérpretes do fim” a sua visão? Qual será a próxima novidade nesta área?
As cinco “dicas” anteriormente mencionadas poderiam nos auxiliar a uma
compreensão mais séria da teologia escatológica evitando assim uma grande
confusão na avaliação dos textos proféticos, minimizando leituras absurdas e
infantis, como as propagadas na década de 80, onde em plena guerra fria se
diabolizou a Rússia e se acreditou que naquele período veríamos a invasão de Israel
pelos soviéticos (“Gogue e Magogue”). A União Soviética se fragmentou, a guerra
fria acabou, o comunismo faliu, e as “profecias por se cumprir” causaram frustração.
É necessário que aprendamos mais com todos esses erros!
Bibliografia
PENTECOST, J. Dwight. Manual de Escatologia: Vida, 1998
CROSS, Whitney R. The Burned Over District: Cornell University Press, 1982
FERREIRA, Júlio Andrade (org). Antologia Teológica: Fonte Editorial, 2005
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