26.07.2009 às 16:44 O potro de amor
Transcrição
26.07.2009 às 16:44 O potro de amor
26.07.2009 às 16:44 O potro de amor Homero Fonseca “R. já a tinha puxado para cima de si e a beijava com deleite, sorvendo seus lábios, abrindo-os. Por um bom tempo, de olhos fechados (...) L. mergulhou num aturdimento feliz, sensação densa e palpitante que parecia amolecer seus membros e aboli-los, fazendo-a flutuar, cair, girar.” (...) “Com os olhos entrecerrados, as mãos atrás da cabeça, avançando os seios, cavalgou naquele potro de amor que se balança com ela, ao seu compasso, ruminando palavras que mal podia articular, até sentir que ia desfalecer”. Até tu, Vargas Llosa? Esses dois trechos aí de cima são de uma novela B, desses livrinhos em papel jornal, do ramo da putaria, que circulam ensebados de mão em mão, comprados baratinhos em bancas de estações rodoviárias? Embora não sejam tão explícitos e tão claramente endereçados a provocar comichões libidinosas no leitor carente – e isso é o que caracteriza um texto como pornográfico e não, erótico – são bastante explícitos e bem próximos daquela intenção, digamos, pornográfica. Estão estilística e semanticamente bastante próximos da "pulp fiction". Senão vejamos: “R. já a tinha puxado para cima de si” – nada mais explícito, não dando brecha à imaginação do leitor. Já sabemos, pelos antecedentes do texto, que o casal está na cama etc e tal. “(..) e a beijava com deleite, sorvendo seus lábios, abrindo-os” – descrição supérflua, digna da melhor literatura B. É de se esperar que o beijo e todas as preliminares provoquem deleite, beijar sorvendo os lábios e abrindo-os é o que todos fazem, se não se trata de um beijo puro de irmãos, de pais, amigos. A frase seguinte – “Por um bom tempo” – daí até “fazendo-a flutuar, cair, girar” – é um amontoado de lugares-comuns realmente notável, o tipo de descrição do ato sexual esperada por jovens (e não-jovens também!) ansiosos por uma vida sexual menos insípida do que a que usufruem nos motéis em fim de farra. Por fim, temos um momento que se pretende extraordinário, a aproximação do clímax – que neste tipo de novela tem de ser narrada milimetricamente, com palavras pomposas e imagens mais ou menos grandiloqüentes: “Com os olhos entrecerrados, as mãos atrás da cabeça, avançando os seios, cavalgou naquele potro de amor que se balança com ela, ao seu compasso, ruminando palavras que mal podia articular, até sentir de ia desfalecer”. Só faltou dizer que a personagem ouviu trombetas retumbantes... Mas a imagem da cavalgada “naquele potro do amor” é realmente imbatível, o paroxismo do mau gosto. E no entanto, desavisado leitor, os trechos citados aí em cima não são de nenhuma novela B. São de autoria de um dos maiores romancistas contemporâneos, o peruano Mario Vargas Llosa e estão logo no primeiro capítulo da novela “Elogio da Madrasta”, lançada original em 1988 e publicada recentemente no Brasil pela Alfaguara. E não pense, descuidado leitor, que por ter vindo à luz há 21 anos, fosse obra de iniciante, pois, àquela altura, Vargas Llosa, hoje com 73 anos, já tinha publicado muitas de suas obras-primas, como "Batismo de Fogo", "A Casa Verde", "Conversa na Catedral", "Pantaleão e as Visitadoras" e "A Guerra do Fim do Mundo" (romance sobre Canudos, como sabeis, prezado leitor, de matar de inveja toda a corporação literária brasileira, que não produziu obra de ficção de tal envergadura sobre capítulo tão portentoso de nossa história). Mas o que quero dizer com isso? Que a referida novela é ruim como uma sua congênere B? Longe mim essa intenção, esquivo leitor. “Elogio da Madrasta” não é tão ruim. O escritor talentoso e o macaco velho (o conhecedor dos códigos literários) estão entrevistos por trás do biombo da alcovacenário, exercitando os truques que alçam a obra acima das novelas primárias, (semi)pornográficas. A história de Dom Rigoberto e dona Letícia (usei só as iniciais, no começo do texto, para dar um certo efeito), mais o enteado desta, Alfonsito, tem uma estrutura sofisticada, alternando capítulos que remetem a fatos e mitos da história antiga usados pretensiosamente nos jogos sexuais dos protagonistas e trazem ilustrações de uma seleta pinacoteca, constituída de obras de pintores somente conhecidos em meios cultos, como Bronzino, Jordaens, Tiziano, Francis Bacon e Fra Angelico. Além disso, a estrutura dorsal da narrativa, centrada nas relações entre um homem maduro, sua jovem e sensual segunda esposa e o filho pré-adolescente, incorpora elementos universais como a perversão, o ciúme, a inocência (no caso, questionável), a maldade, a ética social. Tudo isso num ritmo onde não está ausente uma tensão difusa no princípio e aguda no final, quando a trama chega ao seu ápice e o leitor conhece algumas verdades sobre cada um dos personagens, não sem alguma surpresa. Em suma, tema, trama, personagens, ritmo e cenários são construídos conforme os cânones da alta literatura. O consagrado autor escorrega apenas na linguagem, deixando-se aprisionar na armadilha do gênero (novela erótica), ao lançar mão de uma quantidade além do tolerável de chavões, lugares-comuns e descrições bisonhas, feito esta: “acariciaba las nalgas, en un movimiento circular y metodico, mientras le besaba los pechos” (“acariciava as nádegas, num movimento circular e metódico, enquanto beijava-lhe os peitos.”) O que prova apenas, arguto leitor, que mesmo nas melhores famílias inglesas podem-se flagrar traços de vulgaridade. Em tempo: desconfiado de que esses pecados não tão veniais assim pudessem ser obra da tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht, dei uma conferida no original. Mas está tudo lá, inclusive “esse potro de amor”. E não me venham com alguma teoria escalafobética para justificar como apropriação, colagem ou outra pós-modernidade qualquer, pérolas como “paraíso carnal”, “turbilhão de prazer”, “sedosidades embriagadoras”, “doce delícia”, “sentimentos contraditórios” etc. e tal.