Anais - 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB
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Anais - 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB (ELLUNEB) Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB (ELLUNEB) Elizabeth Gonzaga de Lima (ORG.) Caio Vinicius de Souza Brito Juan Muller Fernadez Ricardo Horacio Piera Chacón Roberto Rodrigues Campos Reitor da Universidade do Estado da Bahia José Bites de Carvalho Diretor do Departamento de Ciências Humanas Prof. Flávio Dias Santos Correia Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem Prof. Gilberto Nazareno Telles Sobral Presidente da Comissão Organizadora do V ELLUNEB Profa. Verbena Maria Rocha Cordeiro Presidente da Comissão Científica do V ELLUNEB Profa. Elizabeth Gonzaga de Lima Projeto Gráfico da Capa Roberto Rodrigues Campos Caio Vinicius de Souza Brito Formatação Roberto Rodrigues Campos Caio Vinicius de Souza Brito Endereço para Correspondência UNEB Departamento de Ciências Humanas Rua Silveira Martins, nº. 2555, Prédio da Pós-Graduação Cabula, 41195-001, Salvador BA Fone (71) 3117-2442 E-mail: [email protected] [email protected] Encontro de Leitura e literatura da UNEB (5.: 2015: Salvador, BA) Anais do 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB: Leitura e Literatura: do centro às margens, entre vozes, livros e redes. Salvador, 09, 10, 11 e 12 de novembro de 2015 / Organizado por Elizabeth Gonzaga de Lima et al . Salvador: 2015. 1076 p. ISSN: 2357-9021 Leitura - Congressos. 2. Literatura - Congressos. 3.Linguagem. Universidade do Estado da Bahia. Acesse nosso site: www.elluneb.uneb.br Comissão Organizadora COMISSÃO DOCENTE Ana Maria Lisboa de Mello (PUCRS) Elizabeth Gonzaga de Lima (UNEB) Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Luciana Sacramento Moreno Gonçalves (UNEB) Lynn Rosalina Gama Alves (UNEB) Márcia Rios da Silva (UNEB) Maria do Socorro Silva Carvalho (UNEB) Maria Zélia Versiani Machado (CEALE / UFMG) Marly Amarilha (UFRN) Sayonara Amaral de Oliveira (UNEB) Verbena Maria Rocha Cordeiro (UNEB) SECRETARIA EXECUTIVA Caio Vinicius de Souza Brito (UNEB/UNIJORGE) Juan Muller Fernandez (UNEB/PPGEL) Maximiano Martins de Leireles (UNEB/PPGEDuC) Milena Guimarães Andrade Tanure (UNEB/PPGEL) Ricardo Horacio Piera Chacón (UFBA) Rita de Cássia Lima de Jesus (UNEB/CONFHIC) Rita de Cássia Oliveira Carneiro (UNEB/PPEDuC) Roberto Rodrigues Campos (UNEB/UNIJORGE) Sara Menezes Reis de Azevedo (UNEB) Comitê Científico Elizabeth Gonzaga de Lima - PRESIDENTE Adelino Pereira dos Santos (UNEB) Carlos Augusto Magalhaes (UNEB) Edil Silva Costa (UNEB) Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios (UNEB) José Henrique de Freitas Santos (UFBA) Kênia Maria de Almeida Pereira (UFU) Lícia Maria Freire Beltrão (UFBA) Luciana Sacramento Moreno Gonçalves (UNEB) Lynn Rosalina Gama Alves (UNEB) Mairim Linck Piva (FURG) Márcia Rios da Silva (UNEB) Maria Anória de Jesus Oliveira (UNEB) Maria Antônia Ramos Coutinho (UNEB) Maria Helena da Rocha Besnosik (UEFS) Maria do Socorro Silva Carvalho (UNEB) Maria Zélia Versiani Machado (UFMG) Obdália Santana Ferraz Silva (UNEB) Paula Perin Vicentini (USP) Rita Aparecida Coelho dos Santos (UNEB) Sayonara Amaral De Oliveira (UNEB) Silvio Roberto dos Santos Oliveira (UNEB) Tânia Maria Hetkowski (UNEB) Tânia Regina Dantas (UNEB) Vera Teixeira de Aguiar (PUCRS) Apresentação O Encontro de Leitura e Literatura da UNEB A Universidade do Estado da Bahia-UNEB, por meio dos Programas de PósGraduação em Estudo de Linguagens (PPGEL) e em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc), promove, no período de 9 a 12 de novembro de 2015, na cidade de Salvador, Bahia, o 5º ELLUNEB, em continuidade aos debates iniciados nas edições anteriores, 2005, 2007, 2010 e 2013 e às ações que integram e articulam os cursos de graduação e pósgraduação, no sentido de fortalecer as relações entre ensino, pesquisa e extensão nos campos da leitura, literatura e educação. O 5º ELLUNEB, tendo como destaque o tema “Leitura, e literatura do centro às margens: entre vozes, livros e redes”, além de refletir o atual contexto plural, desafiador e instigante, reafirma seu compromisso de trazer ao cenário acadêmico temáticas que convoquem o debate, a troca de experiência e a reflexão sobre a importância dos múltiplos caminhos da leitura e da literatura dentro de outros cenários e enredos nos quais o leitor possa construir outro entendimento de sua formação pessoal e profissional. Ter um olhar mais crítico e perspicaz sobre os usos que a sociedade, em geral, e a escola, em particular, fazem da leitura e da literatura, contribui não só para rever a prática de cada um, como também ressignificar o lugar dos mediadores culturais de leitura. Desse modo, sua realização ganha sentido e relevância, ao dar visibilidade e concretude à leitura, se pensada como elemento formativo de identidades complexas e plurais. No rastro das muitas produções e estudos acadêmicos, eventos nacionais e internacionais, campanhas e anos consagrados à leitura e à literatura, o ELLUNEB, alinhado aos eixos das linhas de pesquisa Leitura, Literatura e Identidades do PPGEL e Formação do Educador do PPGEDUC e aos programas de Mestrados Profissionais MPEJA, GESTEC e o PROFLETRAS do DCH V da UNEB - estes com estudos nesse campo e uma articulação mais direta com a educação básica -, potencializa o espaço de debate no campo da leitura, da literatura e da formação do leitor. O evento conta ainda com o apoio dos seguintes órgãos e instituições: CAPES, CNPQ, PróReitoria de Extensão da UNEB (PROEX), Fundação Pedro Calmon (Secretaria de Cultura do Estado da Bahia), Centro de Alfabetização Leitura e Escrita (CEALE) da UFMG e Instituto Anísio Teixeira (IAT). Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A proposta da realização do evento vislumbra, sem dúvida, a constituição de um espaço de intercâmbios e entradas de novas abordagens teóricas que se entrecruzam e se desdobram em atividades de pesquisa, ensino e extensão. Esse Encontro configura-se ainda numa oportunidade ímpar de os professores dos referidos programas de pós-graduação da UNEB estabelecerem redes institucionais a partir dessa temática, fazerem circular suas produções acadêmicas e percorrerem diferentes linguagens para dar corpo e densidade teórica à pluralidade de temas propostos para as Conferências, Mesas-Redondas, encontros com escritores e atividades culturais envolvendo professores, crianças e jovens. Vale mencionar que desde a sua segunda edição, instituiu-se o Concurso Paulo Freire para relatos de experiências inovadoras de professores da Educação Básica e outro Concurso em que se premiam produções literárias. A cada ELLUNEB, esta premiação homenageia um escritor e uma forma literária, em 2015, será o poeta Manoel de Barros e nesta edição, será a poesia verbo-visual na web. Além de possibilitar e estimular as produções de novos talentos, estes concursos recobrem-se de significado particular para aqueles que ainda não tiveram seus trabalhos publicados, divulgados e mesmo reconhecidos. Tal iniciativa permitirá incluir e abrigar parceiros com raras oportunidades de dialogar com diferentes vozes e pontos de vista. Neste ano, em particular, de celebração de seus 10 anos, o ELLUNEB fará uma 14 homenagem à Mãe Stella de Oxóssi, a Iyalorixá, do Ilê Axé Opô Afonjá, um dos mais importantes terreiros da capital baiana, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), situado no Cabula, mesmo bairro que sedia o campus central da UNEB. Importante liderança negra feminina, Mãe Stella é escritora e, atualmente, ocupa a cadeira 33 na Academia Baiana de Letras, cujo patrono é o poeta Castro Alves. Sua militância abarca questões religiosas, sociais e culturais. Educadora, fundou no terreiro uma escola e o Museu Ohun Lailai, além de uma biblioteca itinerante, com livros sobre diversas religiões, em um ônibus que fica no terreiro, mas também circula por diversos bairros populares de Salvador e intenciona atrair, crianças e adolescentes para o mundo da leitura. A força desse Encontro está, enfim, em aproximar e agregar professores e alunos de todos os níveis de ensino, do setor público e privado num espaço em que o centro, a margem, as vozes, os livros e as redes encontram-se para constituir leitores, suscitar debates, buscas e inquietações, permitindo ainda que a produção acadêmica e literário-artística Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. circule de forma democrática e significativa. E, acima de tudo, o evento pretende propiciar o entendimento de que todos nós somos leitores e que o mundo que nos rodeia pode ser entendido por meio do aprendizado extraído de nossas leituras e, assim, poderemos transformar nossa realidade e ampliar igualmente as experiências. Salvador, dezembro de 2015. Elizabeth Gonzaga de Lima Presidente do Comitê Científico 15 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 16 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 17 Eixo I Leitura e Literatura nas Redes Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 18 UMA TRAVESSIA MACHADIANA ENTRE LIVROS, PERSONAGENS E LEITORES Antonia Claudia de Andrade Cordeiro Faculdade Maria Milza - FAMAM [email protected] RESUMO Este trabalho discute o livro como um tema da prosa machadiana tomando como base o seguinte corpus: os romances Helena (1976) e Quincas Borba (1891) e o conto Casa Velha (1885). Para tanto, selecionou-se três categorias para se refletir sobre o livro como a mídia mais prestigiosa do século XIX: livro como veneração, distração e mercadoria. Para tanto, fundamentou-se nos trabalhos de Roger Chartier (1994), Robert Darnton (2010), Fischer (2006), Umberto Eco (2011), Silviano Santiago (1982), Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2002) e John Gledson (2003). Nesta discussão, a imagem do livro encontra-se atrelada às classes sociais que detinham os privilégios da cultura letrada no contexto do Brasil oitocentista. A apropriação de livros como bens culturais aparece representada nesses textos ficcionais de Machado de Assis que se inserem no contexto do século XIX, seja pelo tempo cronológico ou pelo tempo da narrativa, os quais oferecem uma imagem do livro como um objeto de distinção para os personagens que detêm a sua posse. No romance Helena (1876), por exemplo, os livros figuravam no interior de um lar burguês, sob a posse do Conselheiro Vale, quem ocupava um lugar de distinção na sociedade e na residência do padre Melchior, um representante do clero. No conto Casa Velha (1885), cujo enredo se desenrola em torno de uma biblioteca particular, mais uma vez a posse de um conjunto de livros, algo que não era comum no contexto histórico em que se insere, é justificada pela posição social do proprietário. É nesse contexto que o livro adquire o status de objeto sagrado, cuja importância simbólica é acentuada pela reverência prestada por determinadas personagens. O livro assume essa condição ao se tornar motivo de adoração dos leitores. No que diz respeito ao romance Quincas Borba (1891), o objeto livro também está associado a uma classe social em ascensão, porém, o sentido é outro em relação ao que se observou em Helena e Casa Velha, pois o personagem principal não mantém com os livros uma relação de encantamento, apenas reconhece o seu poder simbólico no seio social em que vive. Neste caso, o livro é apresentado como um objeto material que, em razão do valor de mercado, figura como parte de uma herança, mostrando assim que a condição de mercadoria por ora prevalece sobre o seu status cultural. Nesse romance, pode-se contemplar também a leitura como forma de passatempo. É no contexto dessa narrativa que o livro é tratado como um meio de entretenimento, considerando a prática de leitura desenvolvida pelo personagem principal. O que se verifica, então, é que diferentemente de Helena e Casa Velha, em Quincas Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Borba, destaca-se o livro como forma de entretenimento, deixando, portanto, de ser tão venerado. Isso implica reconhecer uma mudança na percepção de Machado de Assis no que diz respeito à relação dos leitores com os objetos impressos e também uma modificação da imagem pública do livro, que não estaria atrelado apenas à ideia de suporte do saber e da cultura, mas também à de um importante meio de entretenimento. PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis; Prosa; Livro; Leitor. No ensaio sobre a ficção brasileira modernista, em “Vale quanto pesa”, Silviano Santiago (1982) trata do consumo de livros no Brasil na segunda metade do século XX, em especial de livros de ficção, chamando atenção para a sua circulação limitada, com edições de três mil exemplares para um país de 110 milhões de habitantes. Além disso, observa que o livro é um objeto caro e “impróprio para circular num país de analfabetos e semianalfabetos”. Enfatiza também que há um público de ficção “reduzidíssimo, ao mesmo tempo sofisticado e conservador, petulante e cosmopolita”, circunscrito à classe média “privilegiada por todos os milagres brasileiros desde os anos 30, tanto os econômicos e sociais quanto os culturais.” Após traçar esse panorama, o crítico chega à conclusão de que 20 “O livro é, pois, objeto de classe no Brasil e, incorporado a uma rica biblioteca particular e individual, é signo certo de status social” (SANTIAGO, 1982, p. 28). Essa imagem do livro atrelada às classes sociais que detinham os privilégios da cultura letrada não é exclusiva do século XX, pois desde o século anterior poder-se-ia contemplar essa distinção na apropriação de livros como bens culturais. Alguns textos ficcionais de Machado de Assis que se inserem no contexto do século XIX, seja pelo tempo cronológico ou pelo tempo da narrativa, oferecem essa imagem do livro como um objeto de distinção para os personagens que detêm a sua posse. No romance Helena (1876), por exemplo, os livros figuravam no interior do lar burguês, nas mãos do Conselheiro Vale, que “[...] ocupava elevado lugar na sociedade, pelas relações adquiridas, cabedais, educação e tradições de família” (ASSIS, 2006, v. 1, p. 273) e na residência do padre Melchior, representante do clero. Com a morte do conselheiro, a posse dos livros e dos demais bens da casa é transferida para o seu único filho, Estácio, que passa a ser o mantenedor da estrutura familiar em torno da “vontade senhorial”, como designou Sidney Chalhoub (2003). Cabe destacar que, entre os bens que herdara, os livros mereciam uma atenção especial de Estácio, pois eram mantidos na casa como bens de muito apreço: Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Durante dous dias não saiu ele de casa. Tendo recebido alguns livros novos, gastou parte do tempo em os folhear, ler alguma página, colocá-los nas estantes, alterando a ordem e a disposição dos anteriores, com a prolixidade e o amor do bibliófilo. (ASSIS, 2006, v. 1, p. 304-305) Estácio queria estar sempre rodeado dos familiares e de seus livros, não gostava de se ausentar da residência, de onde se sentia “senhor”. Vê-se essa característica do personagem na passagem em que Estácio viajou a Cantagalo com a família de Eugênia, sua noiva, não sem muita insistência dela. Estando fora da Corte, ele escreve uma carta a Helena, sua suposta irmã, contando sobre a solidão e a tristeza que o afligiam naqueles dias: “Quando esta carta te chegar às mãos, estarei morto, morto de saudades de minha tia e de ti. Nasci para os meus, para a minha casa, os meus livros, os meus hábitos de todos os dias.” (ASSIS, 2006, v. 1, p. 332). Dentre os costumes de Estácio, cabe destacar o de ler diariamente: Pelas cinco horas da manhã, Estácio acordou e ergueu-se. A manhã estava fresca; quase toda a família dormia. Estácio desceu; o único escravo que achou levantado preparou-lhe uma xícara de café. Não tendo ainda chegado os jornais, bebeu-a sem a leitura de costume. (ASSIS, 2006, v. 1, p. 352). Ainda na referida carta, Estácio solicita à Helena: Manda-me, entretanto, alguns livros. No meu quarto só achei um Manual de Medicina Prática. Manda-me alguma cousa que me faça lembrar o Andaraí. Tira da estante oito ou dez volumes, à tua escolha. (ASSIS, 2006, v.1, p. 333). Como diz Jorge Luís Borges (2011), o livro não é uma extensão do corpo, como o telefone que é a extensão da voz, mas, sua singularidade estaria no fato de ser uma extensão da memória e da imaginação. Assim, pode-se associar essa singularidade do livro com o que vivencia Estácio, pois, de acordo com sua visão, os livros serviriam de auxílio para que ele se ambientasse em um lugar estranho, pois o fariam lembrar “dos seus” e representariam um refúgio diante da saudade do lar. 21 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Outro personagem que possuía livros em sua residência era o padre Melchior. Tratase de um homem solitário, recluso e que passa a maior parte do seu tempo lendo “[...] amava sobretudo estar separado dos homens. Nessas horas, que eram a maior parte do tempo, lia ou meditava, esquecido ou estranho a todas as cousas do seu século” (ASSIS, 2006, v. 1, p. 345). Na descrição da casa do padre, por exemplo, Machado destaca a presença material do livro, em seus antigos formatos in-fólio, do latim folium (folha), dobrada uma vez, e in quarto (formando quatro quadrados), dobrada duas vezes: A sala de visitas era ao mesmo tempo gabinete de estudo e de trabalho. Simples era a mobília, nenhuns adornos, uma estante de jacarandá, com livros grossos in-quarto e in-fólio; uma secretária, duas cadeiras de repouso e pouco mais. (ASSIS, 2006, v. 1, p. 345). A casa do padre, cuja simplicidade é realçada pelo escritor, parece ascender dessa condição pela aura de conhecimento que lhe é atribuída, tanto na figura do 22 padre que lê e se instrui, quanto na descrição de um espaço no qual os livros parecem preencher a carência material. Em relação aos dois personagens, Estácio e Melchior, pode-se dizer que, além de possuírem um status social que lhes garantia a posse de livros, singularizam-se em relação aos demais por manterem uma relação de intimidade com esse objeto de grande valor cultural. No conto Casa Velha (1885), cujo enredo se desenrola em torno de uma biblioteca particular, mais uma vez a posse de um conjunto de livros, algo que não era comum no contexto histórico em que se insere, é justificada pela posição social de seu proprietário: “[...] porque o dono da casa, falecido desde muitos anos, havia sido ministro de Estado” (ASSIS, 2006, v. 2, p. 999). A Casa Velha que dá título ao conto é descrita como uma edificação sólida e vasta. Segundo John Gledson (2003), trata-se de uma aristocrática casa nos arredores do Rio, tomando por base a descrição que lhe é atribuída, com sua imponente solidez e sua autossuficiência. Tanto a casa quanto a biblioteca são apresentadas no conto como espaços suntuosos e ambas exalando “um cheiro de vida clássica” (ASSIS, 2006, v. 2, p. 1.001). Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. É nesse contexto que o livro adquire o status de objeto sagrado, cuja importância simbólica é acentuada pela reverência prestada por determinadas pessoas que habitam a casa. Dentre elas, cabe destacar a personagem D. Antônia, herdeira da Casa Velha e da biblioteca do marido, que mantinha o condicionamento patriarcal da casa. Em relação aos livros deixados pelo marido, guardava-os como objetos muito valiosos “[...] mas é que livros e papéis estão lá em grande respeito. Não se mexe em nada que foi do marido, por uma espécie de veneração, que a boa senhora conserva e sempre conservará” (ASSIS, 2006, v. 2, p. 999). Essa forma de tratar os livros eleva-os à condição de objeto-fetiche, pois, de acordo com Marco Antônio de Almeida (2001), o livro assume essa condição ao se tornar motivo de adoração dos leitores. Percebe-se que a biblioteca assume igual posição representativa em relação à casa, configura-se como lugar de recolhimento, extremamente solene e pouco habitado, “peça que raramente se abria” aos membros da família. Ela é apresentada como um espaço de grandes dimensões e bastante segura, com um aspecto antiquário, tomando por base, neste caso, o fato de conter muitos livros no formato in-fólio: Era uma vasta sala, dando para a chácara, por meio de seis janelas de grade de ferro, abertas de um só lado. Todo o lado oposto estava forrado de estantes, pejadas de livros. Estes eram, pela maior parte, antigos, e muitos in-fólio; livros de história, de política, de teologia, alguns de letras e filosofia, não raros em latim e italiano. (ASSIS, 2006, v. 2, p. 1.003). O fato de a biblioteca se manter fechada parece ser justificado pela morte do exministro, pois, como disse D. Antônia, ninguém “[...] mexe em nada que foi do marido” (ASSIS, 2006, v. 2, p. 999). É como se a morte do dono marcasse também a morte da biblioteca como espaço em que se lê e se instrui. É também pela ausência definitiva do proprietário que a aura desse espaço se eleva, tornando-se ainda mais sublime e, por isso mesmo, intocável. Contudo, na narrativa, com o surgimento de um novo personagem leitor, o padre que pede a permissão de D. Antônia para frequentar a biblioteca, de onde buscaria material para escrever uma obra política sobre a história do reinado de D. Pedro I, esse espaço passa a ser não apenas habitado, mas enche-se de vida na 23 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. medida em que chega a ser o palco privilegiado de revelações e desenlaces familiares. Uma das pessoas que conviviam na Casa Velha e que não tinha acesso à biblioteca era Cláudia, também conhecida por Lalau, uma agregada que fora criada por D. Antônia após ter ficado órfã. Embora D. Antônia a tenha educado, fazendo com que soubesse ler e escrever, não lhe concedia permissão para frequentar a biblioteca, possivelmente por ser uma pessoa agregada à família, cuja condição socioeconômica não lhe dava o direito de partilhar de determinados espaços e objetos da casa. No entanto, com o avivamento da biblioteca, em virtude da presença do padre, Lalau procura se aproximar desse espaço, mostrando-se deslumbrada com um lugar até então desconhecido. Quando a agregada entrou na biblioteca, parecia estar entrando pela primeira vez, pois deixou logo tudo para contemplar aquele ambiente. Nesse momento, ela também se assusta com o tamanho dos livros: “Achou-os grande demais; admirava como havia quem tivesse a paciência de os ler. E depois alguns eram tão velhos!” (ASSIS, 2006, v. 2, p. 1.012). É interessante notar que o tamanho dos livros é associado a um tempo bem diferente do que vive a personagem, pois ela os designa “tão velhos”, como se vindos de uma época na qual o 24 tempo de leitura exigiria vagar e paciência. No que diz respeito ao tamanho dos livros, a personagem admite, de certa forma, que não teria paciência de lê-los, referindo-se apenas ao seu aspecto físico. Isso implica reconhecer uma relação entre a materialidade do livro e o ato de leitura. Considera Roger Chartier que os formatos do livro interferem nos gestos de leitura: Com efeito, cada forma, cada suporte, cada estrutura da transmissão e da recepção da escrita afeta profundamente os seus possíveis usos e interpretações. [...] A cada vez a constatação é idêntica: a significação, ou melhor, as significações, histórica e socialmente diferenciadas de um texto, qualquer que ele seja, não podem separar-se das modalidades materiais que o dão a ler aos seus leitores. (CHARTIER, 1994, p. 105). É válido dizer também que, assim como outros objetos, os livros envelhecem. E nesse processo de envelhecimento não se desvencilham das marcas de seu tempo. É por isso que se pode afirmar que a materialidade do livro representa um tipo de memória. Segundo Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Umberto Eco (2011, p.20): “À memória que o livro transmite, por assim dizer, de propósito, acrescenta-se a memória da qual emana, enquanto coisa física, o perfume da história de que ele está impregnado”. Considerando o tempo da narrativa, tomando como marco o ano de 1839 em que o padre decide escrever a obra política, e sabendo que desde o século anterior os livros passaram a ser impressos nos formatos in-oitavo e duodécimo, como atesta Fischer (2006) em História da leitura, é possível inferir que a personagem se encontra distante da memória de livro que estava sendo evocada, do formato in-fólio, preferindo simplesmente designá-los “velhos”, talvez pelo desgaste dos exemplares ou por aspectos congêneres. Além de Lalau, Félix e D. Antônia passam a frequentar assiduamente a biblioteca, local onde o padre se encontrava diariamente, e é para quem se dirigem em busca de conselhos e intervenções para a solução de seus problemas. D. Antônia quer impedir o amor de Félix por Lalau, pois não aceita que seu filho se case com alguém abaixo de sua condição social, e busca o padre para que ele o dissuada da ideia de se casar com a agregada. Lalau e Félix se amam, mas não têm o consentimento da matriarca, por isso, recorrem ao padre para convencê-la do casamento. Em meio a esse conflito, cujo cenário principal é a biblioteca, o padre desvia-se um pouco do seu intento inicial, o de buscar material de pesquisa para a sua história, e passa a se envolver cada vez mais com o conflito familiar. Ao penetrar a intimidade da casa, pelas portas da biblioteca, o padre tem acesso à memória familiar, uma vez que as marcas deixadas por aquele que leu revelam fissuras do passado e se presentificam nesse novo leitor. Mas, como diz Umberto Eco, ao tratar de um visitante medíocre que, ao ver sua biblioteca, faz-lhe a pergunta: “Já leu todos?”: O que o desgraçado não sabe é que a biblioteca não é somente o lugar da sua memória, onde você conserva o que leu, mas o lugar da memória universal, onde um dia, no momento fatal, será possível encontrar aqueles outros que leram antes de você. (ECO, 2011, p.49). Adotando essa formulação de Umberto Eco (2011), pode-se dizer que o padre encontra-se com o ex-ministro, dono da biblioteca e também único leitor que tinha pleno acesso aos livros, posição que nem a morte lhe furta, pois a viúva se refere à biblioteca do marido em um estado sempre presente. Esse encontro virtual é marcado pela seguinte 25 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. interpelação do padre ao ex-ministro: “– Estás morto. Gozaste e descansas; mas eis aqui os frutos podres da incontinência; e são teus próprios filhos que vão tragá-los” (ASSIS, 2006, v. 2, p. 1.033). É interessante observar que o narrador se dirige ao finado em discurso direto, o que possibilita analisar essa passagem como um diálogo, ou seja, “um encontro”. Até esse episódio, pelo que lhe informou D. Antônia, o padre pensava que era Lalau a filha do relacionamento extraconjugal do pai de Félix, motivo que a excluía definitivamente da possibilidade de se casar com este, uma vez que seriam irmãos por parte de pai. O padre continua seu trabalho na biblioteca e, ao folhear um livro em busca de uma nota que acabara de fazer, descobre um bilhete escrito pelo ex-ministro para a mãe de Lalau, no qual há menção a uma criança que foi fruto da infidelidade conjugal, mas que já se encontrava morta. Com a certeza do óbito da criança, o padre pensa que a situação estaria resolvida, mas o que ele ainda não sabia era que D. Antônia tinha inventado a possível consanguinidade entre Félix e Lalau para afastá-los, sem jamais cogitar da traição do marido. É curioso notar que é na própria biblioteca que D. Antônia recebe a notícia de que fora traída: “[...] e foi na sala dos livros, enquanto Félix estava fora, que lhe contei o que acabava de saber” (ASSIS, 2006, v. 2, p. 1.041). D. Antônia, que criou a história de uma 26 possível infidelidade do marido, foi surpreendida pelo padre com a confirmação de que fora de fato enganada. Esse episódio se configura como uma quebra da aura, profanando o que até então estava incólume, a integridade do defunto e, por conseguinte, a da biblioteca. Quanto à reação de D. Antônia, o narrador a descreve da seguinte forma: A razão é que o golpe recebido fora profundo. Vivera na fé do amor conjugal; adorava a memória do marido, como se pode fazer a uma santa de devoção íntima. Tinha dele as maiores provas de constante fidelidade. Viúva, mãe de um homem, vivia da felicidade extinta e sobrevivente, respeitando morto o mesmo homem que amara vivo. E vai agora uma circunstância fortuita mostrar-lhe que, inventando, acertara por outro modo, e que o que ela considerava puro na terra trouxera em si uma impureza. (ASSIS, 2006, v. 2, p. 1.041). Vê-se que o segredo da família se mantinha guardado nos livros, sem que isso lhe afetasse, mas o avivamento da biblioteca na figura do novo leitor, o padre, fez com que os livros “falassem”, ou seja, mostrassem as trilhas deixadas pelo seu antigo leitor. No conto, parece que Machado de Assis não só escolhe a biblioteca como palco privilegiado para o Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. enredo, mas, propositadamente, esconde “o segredo” da família nos livros para que um leitor fosse o responsável pela revelação. De acordo com Jean Marie Goulemot (2011), existe a crença em um segredo que toda biblioteca dissimula, segredo este que não cessa de se esquivar, lembrando o caso célebre do romance O nome da rosa, de Umberto Eco, no qual o livro da comédia de Aristóteles não deveria ser aberto para que seu conteúdo jamais fosse revelado. Mas, por uma espécie de ironia, o padre, narrador dessa história, parece escutar as vozes dos livros, que se descrevem como pacificadores, totalmente isentos dos conflitos da casa. Os livros, arranjados nas estantes, olhavam para mim, e talvez comentavam a minha agitação com palavras de remoque, dizendo uns aos outros que eles eram a paz e a vida, e que eu padecia agora as consequências de os haver deixado, para entrar no conflito das cousas. (ASSIS, 2006, v. 2, p. 1.033). 27 É possível dizer, portanto, que Machado de Assis faz uso da metáfora da biblioteca como um entrecruzamento de vozes entre os livros. Essa mesma metáfora é fornecida por Jean Marie Goulemot (2011), lembrando Anatole France, em La chemise (A camisa), que evoca a biblioteca como um barulhento concerto ensurdecedor de vozes vindo dos livros: Eles [os livros] discutem sobre tudo: Deus, a natureza, o homem, o tempo, o número, o espaço, o conhecido e o desconhecido, o bem e o mal, eles examinam tudo, contestam tudo, afirmam tudo, negam tudo. (apud GOULEMOT, 2011, p. 213). Tanto em Helena como em Casa Velha, embora o livro não ocupe a posição central na história narrada, ele ajuda a compor o cenário, configura-se como um objeto que ocupa um lugar especial no contexto da casa. Trata-se de um objeto que, a partir da sua relação com os personagens, vai-se destacando como um bem simbólico no contexto da primeira metade do século XIX. Se considerarmos a época em que se passam ambas as narrativas, poder-se-ia até afirmar que a referência ao livro é documental, pois demonstra como se tratava de um objeto Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. que, cada vez mais, fazia parte dos lares de uma classe média que começava a se consolidar nos centros urbanos do Brasil pós-joanino. Como afirmam Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2002), é apenas no século XIX que se originam as primeiras formas de um público leitor, embora ralo e inconsistente inicialmente. No que diz respeito ao romance Quincas Borba, o objeto livro também está associado a uma classe social em ascensão, porém, o sentido é outro em relação ao que se observou em Helena e Casa Velha, pois o personagem principal não mantém com os livros uma relação de encantamento, apenas reconhece o seu poder simbólico no seio social em que vive. Neste caso, o livro é apresentado como um objeto material que, em razão do valor de mercado, figura como parte de uma herança, mostrando assim que a condição de mercadoria por ora prevalece sobre o seu status cultural. É o que se pode perceber através da trajetória de Rubião, personagem principal, que enriquece com a herança deixada por Quincas Borba: 28 Quando o testamento foi aberto, Rubião quase caiu para trás. Adivinhais por quê. Era nomeado herdeiro universal do testador. Não cinco, nem dez, nem vinte contos, mas tudo, o capital inteiro, especificados os bens, casas na Corte, uma em Barbacena, escravos, apólices, ações do banco do Brasil e de outras instituições, jóias, dinheiro amoedado, livros, — tudo finalmente passava às mãos do Rubião, sem desvios, sem deixas [sic] a nenhuma pessoa, nem esmolas, nem dívidas. (ASSIS, 2006, v. 1, p. 654). É importante frisar nessa passagem outro aspecto associado à valoração dos livros, itens que poderiam compor o rol dos bens listados em uma herança. De acordo com Robert Darnton (2010), os diversos usos que as pessoas fazem dos livros, tais como: seu uso em juramentos, troca de presentes, concessão de prêmios e doação de heranças fornecem indícios de seu significado para diferentes sociedades. Ao comparar o livro com outros materiais impressos, tais como folhetos, gazetas e cartas manuscritas, André Belo (2002) diz que os livros eram merecedores de inventário, ao passo que esses outros objetos escritos, por serem mais frágeis, eram considerados de pouco valor econômico para vender e, por isso, não eram registrados, chamando a atenção para o fato de que, entre os séculos XV e XVII, as publicações não se resumiam ao livro impresso, circunstância que deveria ser levada em consideração em pesquisas sobre a leitura. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Na narrativa, Rubião pensa, de início, em obter lucro com a venda dos livros herdados, o que já demonstra sua relação fugaz com os livros: Herdeiro de tudo, nem uma colherinha menos. E quanto seria tudo? Ia ele pensando. Casas, apólices, ações, escravos, roupa, louça, alguns quadros, que ele teria na Corte, porque era homem de muito gosto, tratava das cousas de arte com grande saber. E livros? Devia ter muitos livros, citava muitos deles. Mas em quanto andaria tudo? Cem contos? Talvez duzentos. Era possível; Trezentos mesmo não havia que admirar. Trezentos contos! Trezentos! (ASSIS, 2006, v. 1, p. 654). No entanto, em sua necessidade de, cada vez mais, impressionar as opiniões dos seus convivas, sobretudo de Sofia, mulher pela qual se apaixona ainda que fosse esposa do seu amigo Palha, muda de ideia, desiste de vender os livros e resolve mantê-los em sua casa, por motivos tão somente de ostentação. Com a instalação definitiva na Corte, ele passa a dialogar com os bens simbólicos da classe burguesa, entre eles: bronzes, quadros, bandejas de prata, cálices, charutos importados e livros; além de adquirir alguns hábitos, tais como: assinar jornais (mesmo sem os ler) e ir ao teatro (mesmo sem gostar): Rubião protegia largamente as letras. Livros que lhe eram dedicados, entravam para o prelo com a garantia de duzentos e trezentos exemplares. Tinha diplomas e diplomas de sociedades literárias, coreográficas, pias, e era juntamente sócio de uma Congregação Católica e de um Grêmio Protestante, não se tendo lembrado de um quando lhe falaram do outro; o que fazia era pagar regularmente as mensalidades de ambos. Assinava jornais sem os ler. Um dia, ao pagar o semestre de um, que lhe haviam mandado, é que soube, pelo cobrador, que era do partido do governo; mandou o cobrador ao diabo. (ASSIS, 2006, v. 1, p. 760). Ressalta-se, a partir da passagem acima, a artificialidade com que a personagem principal se relaciona com os livros, principalmente na condição de leitor. É interessante que, apesar de ter sido professor, Rubião não se interessa pelos livros a título de devoção como, pelo menos, fazem alguns personagens de Helena e de Casa Velha. Rubião lê fortuitamente e, 29 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. quando o faz, desiste por qualquer trivialidade; ele é um típico leitor de folhetins, e sua leitura se constitui mais como uma maneira de se entreter. É importante frisar que o tipo de leitura representado em Rubião, como uma espécie de distração, está atrelado ao que se convencionou chamar de literatura de entretenimento, ou aquela destinada à cultura de massa. A partir da leitura que faz de Umberto Eco (2004) sobre a cultura de massa e de seus “níveis” de elaboração, José Paulo Paes (1990) traça um panorama da literatura de entretenimento, desde o seu surgimento até a sua consagração, partindo de um contexto mais amplo até se chegar ao Brasil. O autor brasileiro afirma que o surgimento dessa literatura em nível mundial se deu em fins do século XVIII, e sua consolidação definitiva ocorreu durante o século XIX: Fosse a princípio através do folhetim semanal ou do conto esparsamente publicado na imprensa, fosse mais tarde sob a forma permanente do livro, o certo é que os vários gêneros da literatura de entretenimento tiveram, na segunda metade do século XIX, uma legião de autores e uma vasta produção, avidamente consumida por um público cada dia maior. (PAES, 1990, p. 31). 30 Ainda segundo o autor, foi esse gênero o responsável pelo surgimento paulatino de novos leitores em diversos países, inclusive, no Brasil, vindos do proletariado urbano e do campesinato, os quais contavam também com os avanços da instrução pública. A partir das observações de José Paulo Paes (1990), pode-se dizer que o tratamento do livro como um meio de entretenimento começou a surgiu no contexto da segunda metade do século XIX brasileiro, o que pode ser contemplado em Quincas Borba, romance publicado em 1891, cujas ações se passam no contexto brasileiro das décadas de 60 e 70 daquele século, considerando sobretudo a prática de leitura desenvolvida por Rubião. Nessa mesma linha, Alessandra El Far (2006), ao tratar das estratégias de alguns livreiros no contexto brasileiro do final do século XIX, os quais apostaram nos mais variados gêneros da literatura e também em livros baratos, de leitura fácil e atraente, diz que esses comerciantes contribuíram tanto para diversificar o mercado livreiro quanto para ampliar o público consumidor de livros, para além das camadas abastadas e ilustradas da sociedade. Dessa forma, os setores menos favorecidos economicamente passariam a ter acesso a esse objeto impresso e, ao mesmo tempo, ter-se-ia aflorado um público cujo tratamento destinado Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. ao livro passaria pelo passatempo e pela diversão. E era assim que Rubião se comportava como leitor: Ultimamente, ocupava-se muito em ler; lia romances, mas só os históricos de Dumas pai, ou os contemporâneos de Feuillet, estes com dificuldade, por não conhecer bem a língua original. Dos primeiros sobravam traduções. Arriscava-se a algum mais, se lhe achava o principal dos outros, uma sociedade fidalga e régia. Aquelas cenas da Corte de França, inventadas pelo maravilhoso Dumas, e os seus nobres espadachins e aventureiros, as condessas e os duques de Feuillet, metidos em estufas ricas, todos eles com palavras mui compostas, polidas, altivas e graciosas, faziam-lhe passar o tempo às carreiras. Quase sempre, acabava com o livro caído e os olhos no ar, pensando. (ASSIS, 2006, v. 1, p. 712). A leitura como forma de passatempo também aparece no conto “Missa do Galo”, publicado em 1899, cujo enredo se dá entre os anos de 1861 e 1862. O narrador, o jovem Nogueira, lê para fazer passar o tempo, enquanto espera à chegada da meia-noite, horário combinado com o vizinho de irem assistir à Missa do Galo: Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’ Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumavam fazer, quando são de espera [...]. (ASSIS, 2006, v. 2, p. 606). Como se pode observar, a preferência de Rubião e de Nogueira pelos romancesfolhetins, como os de Alexandre Dumas, representa o gosto de uma grande camada de leitores brasileiros do período. Levando em consideração que ambos os personagens se encontram no Rio de Janeiro, pode-se associar essa inclinação aos romances-folhetins franceses ao gosto do leitor carioca que, segundo Needell (1993), era francófilo, volúvel conforme a moda e fetichista. Pode-se inferir também que Machado de Assis, por meio de seus personagens, alude à massificação do livro como uma mercadoria de consumo para o escasso público leitor do século XIX. Além disso, demonstra conhecimento de que os escritores teriam que submeter 31 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. as suas obras às leis de mercado, o que implica também ter que escrever algo que agradasse ao público, como acontecia com as publicações em folhetins lidas por Rubião e por Nogueira. O escritor conseguia, dessa forma, discutir o processo de mudança que os livros estavam sofrendo com o advento da postura de transformá-los em objetos de mercado, os quais não perdiam o caráter de fetiche também. O que se verifica, então, é que diferentemente de Helena e Casa Velha, em Quincas Borba, destaca-se o livro como forma de entretenimento, deixando, portanto, de ser tão venerado. Os personagens destacados também indicam uma importante distinção em sua relação com os livros: Estácio e o padre Melchior buscam conhecimento nos livros e os veem como parte de suas vidas. Quanto às personagens D. Antônia e Lalau, não há indícios de que sejam leitoras dos conteúdos dos livros, mas a primeira mantém a biblioteca em sua casa como um verdadeiro santuário, e ambas prestam uma espécie de culto aos livros. Já para Rubião, os livros servem para entretê-lo ou fazer passar o tempo. Isso implica reconhecer uma mudança na percepção de Machado de Assis no que diz respeito à relação dos leitores com os objetos impressos e também uma modificação da imagem pública do livro, que não estaria atrelado apenas à ideia de suporte do saber e da 32 cultura, mas também à de um importante meio de entretenimento. Referências Bibliográficas ASSIS, Machado de. Obra Completa. 11. reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006. 3v. v.1: Romance; v.2: Conto; Teatro: v.3: Poesia; Crônica. BELO, André. História & livro e leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. BORGES, Jorge Luís. O livro. In: ______. Borges oral & Sete noites. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.11-21. 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Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 25-40. 33 NAS ENTRELINHAS DO FACEBOOK: LEITURA MULTIMODAL DOS GÊNEROS DIGITAIS Clériston Jesus da Cruz Graduando (UNEB/PIBID) clé[email protected] Denise Silva Bitencourt Graduanda (UNEB/PIBID) [email protected] Ilza Carla Reis de Oliveira Docente (UNEB) [email protected] RESUMO Este trabalho surge com a proposta de analisar os textos imagéticos, com linguagem verbal e não verbal, compartilhados no Grupo PIBID/UNEB (Campus XXII) - PIBID XXII - presente na rede social Facebook, mediante os estudos dos Gêneros Textuais, no que concerne basicamente à Multimodalidade. A multimodalidade é um traço constitutivo dos gêneros textuais, visto que, desde o discurso oral até a composição escrita, estes apossam-se dos mais diversos recursos semióticos para que os textos possam ser facilmente entendidos pelos sentidos. Assim, o objetivo motivador desse artigo é perceber como a concatenação dos diversos recursos semióticos, nas postagens compartilhadas pelos integrantes do referido grupo, auxiliam para a construção de sentidos dos textos multimodais, da mesma maneira que contribuem para o trabalho do professor em sala de aula, pois os avanços tecnológicos modificaram as relações socais, por conseguinte, essas modificações impactaram inevitavelmente o nicho educacional. Dessa maneira, este artigo sustenta-se com base nos estudos acerca dos gêneros textuais, com maior enfoque no que se refere aos textos multimodais. Ademais, o trabalho é motivado pelo Subprojeto do PIBID (Conhecimento, criação e reflexão sobre práticas de leitura e escrita nas escolas euclidenses: dos formatos tradicionais aos novos suportes), bem como pelo Projeto de Extensão (Multiletramentos: O Trabalho com Leitura e Escrita por meio de Projetos de Práticas de Letramentos locais envolvendo as TICs), uma vez que ambos os projetos possuem como tema norteador a leitura e procuram refletir sobre suas práticas. Como metodologia para a presente pesquisa, adotou-se o método qualitativo, cunhado à coleta de dados de caráter etnográfico, no qual a participação e observação do pesquisador é necessária, visto que para ter acesso ao material para análise se fez necessário ser parte integrante da rede Facebook. Para percorrer o trajeto de análise textual, volveu-se à Linguística Sistêmico-Funcional, de Halliday, e a Semiótica Social, bem como à teoria da multimodalidade, de Kress & Van Leeuwen a partir da percepção de Dionísio & Vasconcelos (2013, 2014). Ainda sobre Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Multimodalidades, reportou-se a Rojo & Moura (2012), Serafim ([s.d]), Marques (2009). Em relação ao objeto de pesquisa, lançou-se mão de Kirkpatrick (2011) que faz todo um estudo acerca do fenômeno mundial Facebook. Quanto ao Gênero Digital, buscou-se como aporte teórico os estudos de Mascurchi (2010). PALAVRAS-CHAVE: Facebook; Leitura; Multimodalidade; PIBID. 1 APRESENTAÇÃO Em um alojamento de estudantes em Cambridge, Massachusetts, um garoto de 19 anos, une-se a três colegas com ideias inovadoras. A priori, não previam a dimensão de suas conjecturas, todavia, em um ambiente vulgarmente desorganizado surgiria um suporte que revolucionaria suas vidas. De desenhos rabiscados em um quadro-branco, Mark Zuckerberg conquistou o mundo. As fórmulas e símbolos traçados pelo quarteto tornar-se-iam o que hoje conhecemos como Facebook (KIRKPATRICK, 2011). De acordo com Kirkpatrick (2011), inicialmente, a ferramenta era utilizada somente pelos alunos de Harvard, posteriormente, devido o grande sucesso obtido, expandiu-se involuntariamente em escala mundial. Desse modo, o Facebook ganhou uma gama de funcionalidades, que se distanciou de sua concepção primária: a criação de uma web site para atender as necessidades que os universitários tinham de conhecer os perfis dos alunos matriculados. Dessa maneira, este artigo sustenta-se com base nos estudos acerca dos gêneros textuais, com maior efetividade no que se refere aos textos Multimodais, pois essa espécie de texto utiliza-se de recursos que unificam as linguagens verbais, nãoverbais, gestuais, do mesmo modo que elementos pictóricos e tipográficos. Em suma, este trabalho surge com a proposta de analisar os textos postulados no grupo PIBID XXII presente na rede social Facebook, mediante os estudos dos Gêneros Textuais, no que concerne basicamente a Multimodalidade. Assim, o objetivo motivador é perceber como a concatenação dos diversos recursos semióticos, nas postagens compartilhadas pelos integrantes do referido grupo, auxiliam para a 35 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. construção de sentidos dos textos multimodais, bem como auxiliam no ensino e na leitura dos numerosos gêneros textuais. Para percorrer o trajeto de análise textual, volveu-se à Linguística SistêmicoFuncional, de Halliday, e a Semiótica Social, bem como à teoria da multimodalidade, de Kress & Van Leeuwen a partir da percepção de Dionísio & Vasconcelos (2013, 2014). Ainda sobre Multimodalidades, reportou-se a Rojo & Moura (2012), Serafim (s/d). Atinente ao objeto de pesquisa, lançou-se mão de Kirkpatrick (2011). Quanto ao Gênero Digital, buscou-se como aporte teórico os estudos de Mascurchi (2005) e para a metodologia da coleta de dados da pesquisa, André (1995). O Grupo é uma das muitas ferramentas disponibilizadas pelo Facebook. Segundo a descrição disponível na própria página da rede social, “Os grupos tornam mais fácil compartilhar com amigos, familiares e companheiros de equipe”. Dessa maneira, a ferramenta Grupo oferece aos membros a possibilidade de interagir dialogicamente, tendo como base os elementos que nele são distribuídos. Isto posto, o grupo PIBID XXII constitui-se em um suporte que contribui para a ampliação das 36 discussões estabelecidas nas reuniões, em benefício do aprendizado individual, crítico e reflexivo. Partindo desse pressuposto, o objeto da pesquisa serão as postagens compartilhadas no Grupo referente ao PIBID/UNEB, Campus XX – Euclides da Cunha. Nele participam 59 pessoas, entre elas: Bolsistas de Iniciação à Docência, Bolsistas de Supervisão e Coordenadores de Área. O Subprojeto Conhecimento, criação e reflexão sobre práticas de leitura e escrita nas escolas euclidenses: dos formatos tradicionais aos novos suportes “[..] foi pensado no sentido de desenvolver a leitura, a escrita, garimpar informações diversas na área das diversas linguagens e debater as práticas de leitura e escrita entre os envolvidos, oportunizando aos participantes tecer redes a partir dos saberes individuais em prol da melhoria particular, criativa e crítica...” (OLIVEIRA, 2014). Como metodologia para a presente pesquisa, adotou-se o método qualitativo, cunhado à coleta de dados de caráter etnográfico, no qual a participação e observação do pesquisador é necessária, visto que para ter acesso ao material para Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. análise se fez necessário ser parte integrante da rede Facebook. Nesse seguimento, Marli Eliza D. A. de André proporciona o seguinte esclarecimento: Em que medida se pode dizer que um trabalho pode ser caracterizado como do tipo etnográfico em educação? Em primeiro lugar quando ele faz uso das técnicas que tradicionalmente são associadas à etnografia, ou seja, a observação participante, a entrevista intensiva e a análise de documentos. A observação é chamada de participante porque parte do princípio de que o pesquisador tem sempre um grau de interação com a situação estudada, afetando-a e sendo por ela afetado. As entrevistas têm a finalidade de aprofundar as questões e esclarecer os problemas observados. Os documentos são usados no sentido de contextualizar o fenômeno, explicitar suas vinculações mais profundas e completar as informações coletadas através de outras fontes (1995, p. 25). Portanto, assentamo-nos também nas informações de Marcuschi, que diz: “move-nos a convicção de que uma etnografia da Internet é de grande relevância para entender os hábitos sociais e lingüísticos das novas ‘tribos’ da imensa rede mundial, que vêm se avolumando e diversificando a cada dia.” (2005, p.14) Ao passo que este artigo é motivado pelo Subprojeto do PIBID, também é necessário destacar a relevância do curso de extensão Multiletramentos: O Trabalho com Leitura e Escrita por meio de Projetos de Práticas de Letramentos locais envolvendo as TICs, cuja finalidade é discutir e “ampliar as habilidades de leitura e escrita e exercitar os conhecimentos linguísticos (oralidade, convenções da escrita, gêneros textuais etc.)”, concernente aos multiletramentos, uma vez que ambos os projetos possuem como tema norteador a leitura e procuram refletir sobre suas práticas. O referido curso é coordenado e ministrado pela professora Ilza Carla Reis, no campus XXII da UNEB, onde atualmente é professora substituta. 2 DOIS LADOS DA MESMA MOEDA: MULTIMODALIDADES E MULTILETRAMENTOS Os neologismos são criados quando emergem novos fatos, novas ideias, novas maneiras de compreender os fenômenos (SOARES, 2009, p. 16). Em vista disso, por volta da década de 80, irrompe um novo termo, denominado Letramento. Um dos 37 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. primeiros aparecimentos atribui-se à Kato (1986), no livro intitulado No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. Posteriormente, o trabalho desenvolvido por Tfouni (1988), acentua o vocábulo ao diferenciá-lo de alfabetização. Soares (2009, p.15), considera a possibilidade de ser este “o momento em que letramento ganha o estatuto de termo técnico no léxico dos campos da Educação e das Ciências Linguísticas”. De maneira oposta à alfabetização, “letramento envolve muito mais do que ler e escrever”, pois “é o uso dessas habilidades para atender às exigências sociais” (SOARES, 2009, p. 74). Entretanto, à medida que ocorrem as mudanças sociais, surgem-se outras necessidades. Por consequência, em 1996, afirma-se, pela primeira vez, a premência de uma pedagogia dos multiletramentos. Logo, o termo multiletramento foi introduzido por pesquisadores integrantes do Grupo de Nova Londres, ao salientarem “a necessidade de a escola tomar a seu cargo (...) os novos letramentos emergentes na sociedade contemporânea, devido às novas TICs” (ROJO, 2012, p. 1112). Outrossim, o grupo evidenciara o fato de as novas ferramentas de acesso à 38 comunicação acarretarem novos letramentos, de caráter multimodal ou multissemiótico. Destarte, Rojo reitera que “para abranger esses dois “multi” — a multiculturalidade característica das sociedades globalizadas e a multimodalidade dos textos por meio dos quais a multiculturalidade se comunica e informa, o grupo cunhou um termo ou conceito novo: multiletramentos” (ROJO, 2012, p. 13). Concernente aos estudos modais, Gunter Kress – integrante do GNL, Theo van Leeuwen e Robert Hodge – são considerados pioneiros, visto que propuseram o desenvolvimento das principais noções da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), proposta por Michael Halliday. O posicionamento teórico de Halliday, acerca da LSF, assinalou a instância em compreender e descrever a linguagem em funcionamento como um sistema de comunicação humana e não como um conjunto de regras gerais, desvinculadas de seu contexto de uso. Para essa corrente teórica, a língua organiza-se em torno de duas possibilidades alternativas: a cadeia (o sintagma) e a escolha (o paradigma)... Vale ressaltar que o termo sistêmico refere-se às redes de sistemas de linguagem (...). Já o termo funcional refere-se às funções de linguagem, que usamos para produzir. (CUNHA E SOUZA, 2011, p. 24-25) Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Considerando as postulações desenvolvidas pela LSF – três funções da linguagem: ideacional, interpessoais e textuais, bem como a compreensão de texto como “signo” – Kress e van Leeuwen propagaram, inicialmente, a Gramática de Design Visual (GDV). Ao referir-se às palavras de Street, Dionísio (2014, p. 44) destaca que o autor considerou a GDV “como sendo o primeiro momento dos estudos sobre multimodalidade, pois a GDV traz ideias essenciais para o tratamento da imagem na construção de sentido dos textos”. Nesse emaranhado de conjecturas, acentua-se a Semiótica Social, que compreende a comunicação como, intrinsecamente, multimodal (DIONISIO, 2014, 44). Em consequência, a multimodalidade surgiu como uma resposta à mudança social e ao cenário da semiótica (idem). A Lingüística Sistêmico-funcional e a Semiótica Social se cruzam permitindo nos dizer que o ponto de partida de enfoques multimodais em análises textuais está em estender-se a interpretação da linguagem e de seus significados para uma vasta gama de modos comunicacionais e representacionais utilizados numa determinada cultura. A multimodalidade assume que todos os modos semióticos foram moldados através de seus usos cultural, histórico e ideológico para realizar funções sociais. (PIMENTA, s/d, p. 4) Palavras, imagens, elementos pictóricos, musicais, sonoros, gestuais, tabelas, gráficos, redes sociais etc, são comumente utilizados em nossa sociedade, sem a menor percepção de que estes se configuram como textos multimodais. A multimodalidade é um traço constitutivo dos gêneros textuais, visto que, desde o discurso oral até a composição escrita, estes apossam-se dos mais diversos recursos semióticos para que os textos possam ser facilmente entendidos pelos sentidos. Dessarte, a multimodalidade prevê sujeitos que escolhem e combinam individualmente os recursos semióticos disponíveis com a finalidade de aperfeiçoar o sentido dos textos e a sua capacidade de interação. 39 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Em vista disso, no livro Múltiplas Linguagens para o Ensino Médio, Dionísio e Vasconcelos (2013, p. 21) traz à luz concepções de Van Leeuwen (2004: 285) sobre Recursos Semióticos. De acordo com os glossários existentes nos livros Introducing Social Semiotics e The Routledge Handbook of Multimodal Analysis, a definição de recurso semiótico que prevalece é a estabelecida por Van Leeuwen: “Ações, materiais ou artefatos que nós usamos com propósitos comunicativos, quer produzidos fisiologicamente - por exemplo, com nosso aparato vocal, os músculos que usamos para criar expressões faciais e gestos – ou tecnologicamente, por exemplo, com lápis a tinta, ou computador e software - junto com os meios nos quais cada um desses recursos podem ser organizados. Recursos semióticos têm um sentido potencial, baseado nos usos passados e numa série de possibilidades baseadas no usos possíveis [...]. A união entre multimodalidades e multiletramentos consiste no fato de que, se os gêneros se materializam na forma de representação multimodal, na conjunção de diversos recursos que se integram na construção do sentido, o conceito de letramento também precisa ir além do meramente alfabético. Requer uma mudança também na 40 forma de ler os textos. Para compreender as multissemioses dos textos devemos possuir múltiplas maneiras de ler. Os textos multimodais, que juntam os mais variados elementos gráficos, constituem-se em uma dificuldade de compreensão para quem somente decodifica (DIONÍSIO e VASCONCELOS, 2014, p. 43-44). 3 DO QUADRO-BRANCO À TELA: RECURSOS SEMIÓTICOS NO TEXTO Com fundamento nas discussões traçadas até o momento, partir-se-á para as análises das postagens retiradas do grupo PIBID XXII. Assim, será avaliado em primazia como as três representações semióticas - imagem, palavra e tipografiaauxiliam a construção do sentido. Vale ressaltar que os textos foram selecionados tendo em vista a amplitude de discursos construídos pelos integrantes do grupo em meio à leitura dos textos multimodais. No texto 1, representado pela figura compartilhada por Andréa Mascarenhas, coordenadora do subprojeto PIBID no já referido campus, percebe-se que os recursos semióticos vigentes assessoram a fabricação do sentido no texto multimodal. Desse Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. modo, a “utilização de recursos semióticos diversos pode auxiliar os leitores a estabelecerem conexões não previstas na organização textual dos gêneros das questões, guiando-os na busca pela compreensão. ” (MORAES, 2014, p. 80). Isto posto, serão apresentadas análises feitas segundo a observação textual, com especificidade nos objetos multimodais e nas semioses (múltiplas linguagens). 41 Figura 1:<https://www.facebook.com/groups/pibideuclides/> Numa análise da primeira imagem percebe-se que a escrita em caixa alta (letra bastão) demostra a intenção do autor em transmitir a mensagem com facilidade e para um grupo inespecífico, pois a letra de características impressas é conhecida por diversos sujeitos. O alinhamento à esquerda possibilita a compreensão de um texto pautado na informalidade, visto que o texto formatado em justaposição é comumente utilizado para produções formais (artigos acadêmicos, reportagens etc.), desvelando, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. por conseguinte, uma informação de amplo acesso, independentemente de seu perfil social e cultural. A partir da observação das cores, os diferentes tons de cinza destacam a imparcialidade referente ao gênero - masculino e/ou feminino - uma vez que culturalmente se convencionou atribuir cores específicas para retratar ambos os sexos (azul para homens e rosa para mulheres). Esse pressuposto se corrobora na afirmação de Barros (2012, p. 86): “[...] as cores atraem os homens e são, por eles, consideradas quentes ou frias, leves ou pesadas, calmantes ou excitantes, alegres ou tristes, vivas ou mortas, festivas ou de luto”. O emprego da ferramenta gráfica Negrito, nas expressões “30 Reais, 20 Reais, 50 Reais”, remete-nos à incisiva temática do capitalismo, porquanto foi a partir deste mote que se suscitou comentários díspares no grupo PIBID XXII. 42 A.M. Vamos ao debate! Por trás dessa 'matemática' estão postas questões seríssimas e nunca tão atuais como agora! Abraços [...] A.O. Acho que trata-se de uma concepção familiar, ao menos no meu modo de entender a questão, meu círculo familiar, por exemplo sempre esteve estruturado no pilar da coletividade, partindo desse pressuposto o que é de um é do outro e vice e versa, assim pouco importa se o dinheiro é proveniente do trabalho da mulher ou do homem, há uma colaboração mútua entre eles, a famosa comunhão de bens. A.O. Entretanto, a leitura acima é minha, pode ser que a real intenção seja trazer a tona a discussão da mulher independente, moderna, que inverteu os padrões sociais e agora sustenta seu parceiro, ou ao menos ganha mais que ele, contra discurso feminista ao chamado machismo. [...] E.A. Pelo que vejo e avalio sobre a questão, inferindo algumas vivências, o texto trás um cenário onde a mulher detem a primazia, a palavra final na hora do uso do dinheiro. dizer que a mulher tem 50 seria dizer que ela tem domínio sobre o dinheiro do marido (bolso). A palavra dela que irá decidir o destino final deste. [...] A.O. Podemos ler, entre outras coisas: relações de dependência desproporcional; camuflagem de um falso poder feminino; desvalorização das funções domésticas, quando realizadas por mulheres; descrédito na capacidade feminina de gerir as finanças do lar... I.C.R Ótimas leituras! E também percebo uma falsa impressão de supremacia da mulher. Não estaria subentendido nesse "o homem tem 30 reais e a mulher tem 20 reais" a ainda presente desigualdade Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. nos salários entre homens e mulheres que ocupam as mesmas funções? Talvez a mensagem não traga esse contexto, mas logo veio-me isso à mente! A.M. Sim, I.C.R, querida, muito bem e pertinente sua colocação. Na maior parte das vezes que escutamos/lemos essa 'pseudo' piada, ficamos quase sempre presos na teia da brincadeira e quase passamos batidos em relação aos tantos abismos que esse tipo de discurso pode esconder de modo tão eficiente e ao mesmo tempo tão cruel! É o velho e ainda atual retrato da mulher vista pelo prisma social patriarcal. Com base em Koch e Elias (2011), constata-se nas ponderações supracitadas, uma concepção de leitura como um exercício fundamentado na interação autor-textoleitor, levando em consideração os conhecimentos do leitor, bem como seu lugar social e vivências. Partindo desse pressuposto, é válido destacar que valorizar o leitor e seus conhecimentos díspares “implica aceitar uma pluralidade de leituras e de sentidos em relação a um mesmo texto” (KOCH, 2011, p. 21). Não obstante, os comentários apresentados, paradoxalmente, possuem divergências e concomitantemente semelhanças, pois no traçar do debate os integrantes do grupo ancoravam-se nos dizeres anteriores, com o intuito de arquitetar sua opinião singular. Na figura 2, capa do Jornal Extra, datado de 8 de julho de 2015, também compartilhado pela professora doutora Andréa Mascarenhas, apresenta-se um fato que fomentou diversas querelas. A morte de um assaltante amarrado em poste e espancado até a morte por pedestres em São Luís (MA) movimentou a redação do Jornal Extra a produzir uma capa, intitulada Do Tronco ao Poste, que despertou nos leitores a memória de cenas ocorridas há 200 anos. O historiador Luiz Antônio Simas (09/07/15), em entrevista ao Jornal Extra online, analisa as reações inflamadas à capa impressa do EXTRA: “Não basta acabar com a escravidão. É preciso destruir sua obra”. A imagem do jovem negro amarrado a um poste mostra que, 127 anos depois da abolição da escravatura, a sociedade brasileira ainda reproduz as cenas que o abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910) lutava para extirpar do país (MONTEAGUDO, 2015, s/p). 43 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 44 Figura 1: Fonte: <https://www.facebook.com/groups/pibideuclides/>. No texto multimodal em análise se destaca os tons branco e preto, os quais representam luto, discriminação, tristeza, angústia e morte. Desse modo, Barros, acerca de ambas as cores reverbera o branco é associado à pureza, à limpeza, à inocência, ao desprendimento; é a cor da morte no Oriente; está relacionado, ao mesmo tempo, com a existência, o excesso (de luz, de presença de todas as cores) e com a falta, a ausência (de cor); o preto é, também, ora relacionando com a noção de ausência, de falta (de luz), ora com a de excesso, de saturação (de pigmento), como é próprio do nome; daí ter os sentidos de sobriedade, dignidade, mistério, fantasia, sofisticação, elegância e, ao mesmo tempo, os de silêncio, morte, luto, penitência, terror; as pessoas que preferem o preto são, em geral, tanto os rebeldes sociais, os marginais, quanto as pessoas de poder, autoridade, tradição e responsabilidade (2012, p. 87-88). Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A escolha da imagem em preto e branco, na qual o negro se encontra preso no pelourinho (instrumento de punição utilizado nas cidades brasileiras para punir os infratores, consideravelmente os negros) é conhecida pelo receptor, uma vez que é extremamente difundida nos livros didáticos, especificamente em História. Assim, propicia de imediato uma interação entre enunciador e enunciatário, ativando os conhecimentos prévios destes. As letras em bastão utilizadas em ‘DO TRONCO AO POSTE’ chamam a atenção do leitor para comunicar, de forma evidente, o conteúdo que será exposto à reflexão pelo texto da reportagem. Ademais, o enunciador colocou primeiramente os termos ‘DO TRONCO’, para posteriormente apresentar a imagem correspondente, e assim sucessivamente, concedendo uma facilidade de compreensão por parte daquele que chega ao texto. A comparação entre as imagens, presentes na capa da revista, foram elementos fundamentais para possibilitar a rememoração dos eventos históricos que envolveram os afrodescendentes. Nesse ponto, percebe-se a presença de um dos cinco fatores pragmáticos responsáveis para que a textualidade se estabeleça, apontados por Beaugrande, Dressler e por Costa Val: a Intertextualidade. A respeito disso observa-se que Na produção e interpretação de um texto, os interlocutores se valem de crenças e conhecimentos que fazem parte da história e da cultura de sua sociedade, conhecimentos e crenças que lhes vieram sob a forma de textos – falados e escritos – na família, na escola, na igreja, no trabalho, no jornal, no rádio, na TV, na literatura, etc. Cada texto, como diz Bakhtin, é como um elo na grande corrente de produções verbais que circulam numa sociedade. Cada texto retoma textos anteriores, reafirmando uns e contestando outros e, utilizando sua ‘matéria prima’, se inclui nessa “cadeia verbal”, pedindo resposta e se propondo como ‘matéria prima’ para outros textos futuros. Ou seja, a intertextualidade é fundamental, indispensável, na constituição de qualquer texto (COSTA VAL, 2004, p. 04). É válido ressaltar a presença da Situacionabilidade - fator pragmático de textualidade - no que concerne ao contexto, uma vez que foi o ocorrido representado pela última imagem que suscitou a discussão. Assim sendo, “o contexto pode, realmente, definir o sentido do discurso e, normalmente, orienta também tanto a 45 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. produção quanto a recepção”, como afirma Costa Val (2004, p. 5). Por fim, a imagem, em sua publicação na rede virtual, ainda acompanha uma pequena introdução (200 anos e a reflexão: evoluímos ou regredimos?) que convida o internauta a refletir antes mesmo de adentrar no conteúdo proporcionado pelo texto multimodal. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os avanços tecnológicos modificaram as relações socais, por conseguinte, essas modificações impactaram inevitavelmente o nicho educacional. À vista disso, os professores são colocados diante de uma nova perspectiva de multiletramento, pois as inovações tecnológicas desencadearam novos gêneros discursivos, ressignificando o ato de ler. Sabe-se que, durante muito tempo, os livros constituídos por muitas figuras e pouquíssimas palavras, foram destinados excepcionalmente às crianças, por serem considerados ‘mais fáceis’. Em contrapartida, aos adultos eram atribuídos os livros 46 caracterizados pela supremacia do texto-verbal, em que as figuras se tornavam esporádicas (DIONÍSIO, 2014, p. 13-14). Entretanto, essa postura tradicional não subsiste nas hodiernas relações sociais, nas quais aumentam-se as possibilidades de organização textual, prevalecendo o “visuoverbal”. A estrutura social, caraterizada pela heterogeneidade e hibridismo, requer uma combinação de diversos modos de representação de sentidos para compor textos. Com as análises das imagens percebe-se que as redes sociais, em especial o Facebook, oportunizam a inter-relação entre texto escrito, imagens e outros elementos gráficos. Assim, constata-se que os textos compostos pela aglutinação de variados recursos geradores de significados, isto é, recursos semióticos, contribuem para a efetivação de textos multimodais e, por conseguinte, uma prática de letramento que põe o leitor em contato com diferentes estruturas textuais. Referências Bibliográficas ANDRÉ, Marli Eliza D.A. de. Etnografia da Prática Escolar. Papirus. eISBN 978-85308-1058-0, 1995. 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A LEITURA PARA ALÉM DA DECODIFICAÇÃO DE PALAVRAS: UMA EXPERIÊNCIA FORMATIVA PROPORCIONADA PELO PIBID Fabrício Oliveira da Silva UNEB – Universidade do Estado da Bahia [email protected] RESUMO Este artigo discute a prática de leitura instituída em uma turma do Ensino Fundamental, da Escola Municipal São Pedro, localizada no município de Irecê-Ba, a partir das experiências formativas vivenciadas no Programa Institucional de bolsa de Iniciação à Docência – PIBID. Tem como objetivo refletir sobre as contribuições que o PIBID favorece ao processo de leitura em se tratando de crianças do Ensino Fundamental. Nesse sentido, procura a partir das experiências vivenciadas no âmbito do programa apresentar uma experiência do trabalho desenvolvido na referida turma. Enfoca as contribuições do programa para a formação do pedagogo, evidenciando a escola como lócus de formação e de lugar em que as observações constituem elementos essenciais para o bom desenvolvimento de práticas de ensino de leitura e de escrita. Relaciona tal experiência ao fortalecimento da formação docente que através da prática do dia-a-dia proporciona o deleite das múltiplas vivências de um docente, aproximando a teoria discutida na universidade à prática cotidiana da escola. Nesta direção, a formação docente é potencializada pela condição de inserção do licenciando na complexidade da realidade escolar, considerando diferentes tempos de organização do trabalho educativo realizado pela escola. O PIBID é tecido em sua organização estrutural, por meio da qual apresento o subprojeto desenvolvido no âmbito do colegiado de pedagogia da UNEB, no DCHTCampus XVI no município de Irecê. A análise ancora-se no desenvolvimento das atividades de leitura a partir de uma visão clássica de alfabetização, tendo como referência Ferreiro (2011) e Jolibert (1994). Explicita como se constitui o PIBID enquanto projeto de iniciação à docência, tomando como embasamento teórico as diretrizes do próprio programa. Nessa perspectiva, este trabalho se desenvolveu por meio das experiências proporcionadas pelo acompanhamento às aulas, conversas estabelecidas com a professora e supervisora do projeto, atividades de leitura e escrita, aproximação com os alunos, reuniões com o coordenador de área, bem como leituras desenvolvidas a partir da realidade da escola. Visa refletir a prática de leitura Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. não somente como decodificação de palavras, fundamentando tal perspectiva em Martins (2007) à sombra da discussão para reforçar a leitura como prática de mundo, de interpretação de objetos, imagens, senas e situações que cercam o cotidiano de cada um. Em outras palavras, a concepção de leitura que é desenvolvida neste artigo ancora-se na ideia de que o sujeito é agente do processo de produção de sentidos e produz a leitura numa perspectiva dialógica, em que o leitor é também produtor de significados para aquilo que lê. Logo, ler não significa apenas decodificar os signos linguísticos. PALAVRAS- CHAVE: PIBID, Leitura, Formação docente, Alfabetização 1. INTRODUÇÃO O presente artigo divide-se em três sessões. A primeira intitulada tecendo o PIBID discorre sobre como se dá a organização do programa em sua esfera maior. Ressalta a configuração do PIBID no âmbito da Universidade do Estado da Bahia, analisando a implementação das ações do PIBID no âmbito do DCHT – Campus XVI – Irecê, que teve início ano de 2012. Na segunda sessão nomeada de o impacto do PIBID na prática da leitura, 50 estabelece-se um dialogo com os autores Ferreiro (2011), Jolibert (1994) e Martins (2007) para promover embasamento teórico sobre as vivências de observações das bolsistas, estudantes de licenciatura em pedagogia. Neste panorama aborda-se o lúdico no processo de alfabetização das crianças como elemento favorecedor do despertar das mesmas para o universo da leitura. A terceira e última sessão recebe o nome de fortalecimento da formação docente. Trata das contribuições do PIBID para a formação dos estudantes tendo em vista que as bolsistas servem como disseminadores das práticas proporcionadas pelo programa, pois as mesmas se inserem na escola desde os primeiros semestres do curso, relacionando a teoria com a prática docente de sala de aula, além de contribuir diretamente para a promoção de discussões sobre as inovações pedagógicas com os supervisores, professores regentes da escola básica, em uma dialética constante em que as leituras vão sendo realizadas como forma de atualização de conhecimentos. Ademais, o artigo, ancora-se nas concepções teóricas de Freire (1996) e Paiva (2010), focalizando o lugar dos processos de formação do professor. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 2. TECENDO O PIBID Programa Institucional de bolsa de Iniciação a Docência (PIBID) é organizado pelo o Ministério da Educação, sendo o mesmo financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A UNEB possui cerca de 33 mil alunos que fazem curso de licenciatura, muitos oriundos das camadas populares e que fizeram o ensino fundamental e médio em escolas públicas. Evidencia-se uma grande parcela eminente do processo de cotas, pois a UNEB é pioneira nesta política de ação afirmativa. Neste sentido é que nasce o PIBID no cenário desta universidade, com vistas a potencializar os processos de formação dos estudantes que fazem licenciatura. Surge o PIBID na UNEB em 2009 com o intuito de integrar o estudante de licenciatura em seu universo de trabalho, diminuir os índices de evasão, despertar nos alunos um interesse e um envolvimento maior com a docência, propiciar uma correlação entre a teoria e prática desde os primeiros semestres, fornecer subsídios de formação de conhecimento quanto à realidade das escolas e ao mesmo tempo aprovisionar uma formação continuada aos professores da escola básica com o desígnio de melhorar os indicadores da escola pública e assim estreitar os laços entre Universidade e Escola Básica. Neste contexto, o projeto institucional coaduna-se com as orientações propostas pelo MEC. São os objetivos proposto no edital interno do PIBID: a) inserir os estudantes dos cursos de Licenciatura da UNEB na cultura organizacional das escolas da Educação Básica do Estado da Bahia; b) valorizar o magistério, incentivando os estudantes que optam pela carreira docente; c) promover a melhoria da qualidade da Educação Básica do Estado da Bahia; d) promover a articulação integrada da educação superior com a educação básica; e) elevar a qualidade das ações acadêmicas voltadas à formação inicial de professores nos cursos de licenciaturas da UNEB; f) estimular a integração da educação superior com a educação básica no ensino fundamental e médio, de modo a estabelecer projetos de cooperação que elevem a qualidade do ensino nas escolas da rede pública; g) fomentar experiências metodológicas e práticas docentes de caráter inovador, que utilizem recursos de tecnologia da informação e da comunicação, e que se orientem para a superação de problemas identificados no processo ensino-aprendizagem; h) valorizar o espaço 51 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. da escola pública como campo de experiência para a construção do conhecimento na formação de professores para a educação básica; e i) proporcionar aos futuros professores participação em ações, experiências metodológicas e práticas docentes inovadoras, articuladas com a realidade local da escola. (Edital PIDID UNEB, 2011, p.1) O PIBID funciona na UNEB considerando os subprojetos que estão espalhados em 18 campi, somando 669 bolsistas de Iniciação a Docência (Licenciandos), 79 bolsistas de supervisão (professores da Educação Básica) em 26 escolas públicas parceiras (estaduais e municipais). O coordenador de área é um professor efetivo da universidade, o qual tem um projeto de pesquisa-ação relacionado ao curso e aprovado pela equipe da CAPES. Constitui no âmbito do subprojeto como a pessoa responsável por coordenar, estruturar as ações dos supervisores e dos bolsistas de iniciação a docência (ID). Os supervisores são professores concursados da rede pública de ensino com pelo menos dois anos de experiência na instituição. Integram-se ao projeto na perspectiva de 52 abrirem as portas das suas salas para receberem os bolsistas de ID e instrumentalizálos mostrando a realidade da escola em suas diversas formas e anseios. Portanto, esta ação está também entendida como um momento em que o supervisor busca da Universidade ações ressignificadoras da sua práxis escolar. Já o bolsista ID tem por obrigação cumprir a carga horária, de pelo menos, 30 horas mensais na escola, desenvolvendo observação participante, orientado e acompanhado pelo supervisor. Em uma esfera geral todos os três seguimentos produzem e entregam relatórios a cada quatro meses, evidenciando as impressões e análises oriundas de cada ação desenvolvida ao longo do quadrimestre. Isto por que a CAPES acompanha o trabalho que está sendo desenvolvido em cada instância além de conferir fielmente as frequências de ambas às partes. Eminentemente o supervisor e o bolsista ID precisam passar por um processo seletivo o qual vai deste a entrega da documentação solicitada pelo edital com, escritura de uma carta de caráter elucidativo dos reais interesses para inserção no programa. Há ainda a realização de uma entrevista, por meio da qual os candidatos precisam esclarecer a sua disponibilidade e mostrar interesse em atuar efetivamente Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. nas ações que serão implementadas no subprojeto. Já a seleção para coordenador de área está condicionada à escrita do subprojeto e sua submissão à pró-reitoria de graduação da Univerisadade. O funcionamento do PIBID em Irecê campus XVI no curso de Licenciatura Plena em Pedagogia está estruturado com a participação de um universo de 24 bolsistas de iniciação à docência, de um coordenador de área, e de três supervisores, desenvolvendo as ações em três escolas Municipais parceiras. São elas: Escola Municipal Duque de Caxias, Escola Municipal Marcionilio Rosa e Escola Municipal São Pedro. Por ser um subprojeto desenvolvido no curso de Pedagogia, as escolas são da esfera municipal, exatamente pela possibilidade de desenvolvimento das ações nas séries iniciais do ensino fundamental. A divisão se dá de uma forma em que há um supervisor para cada escola recebendo oito bolsistas para trabalharem subprojetos em diferentes perspectivas condizentes com a realidade que em cada espaço educativo se evidencia. Cada supervisor recebe dois bolsistas de ID por dia para realizar suas atividades, totalizando quatro dias da semana. Em um dia específico da semana, nas três instituições parceiras, há um encontro com todos os agentes para a discussão das ações pedagógicas que serão desenvolvidas em cada contexto da realidade escolar. Nesta perspectiva busca-se favorecer uma análise documental, dialogar/sugerir no planejamento semanal do professor e contribuir com a potencialização do trabalho desenvolvido pelo mesmo. Esse encontro acontece duas vezes por mês e são semelhantes aos encontros com o coordenador de área, que semanalmente faz o alinhamento das ações norteadoras do subprojeto, esclarece a organização e o funcionamento e promove avaliações de cada ação desenvolvida. A observação participante por semana é de quatro horas e as reuniões com supervisor ou coordenador são de duas horas. Há ainda duas horas semanais dedicadas a estudos bibliográficos que sejam relevantes e fundantes com a essência do projeto, o qual tem por essência desenvolver estratégias para a promoção de habilidades de escrita e de leitura em cada escola. Cumprem-se, portanto, um total de trinta e duas horas semanais, que são efetivamente exigidas pelo programa. 53 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Em cada escola há uma perspectiva de se entender e estudar o processo de desenvolvimento de leitura e de escrita. Partindo da realidade da Escola Municipal São Pedro, as bolsistas puderam relacionar diretrizes do subprojeto tendo em vista os estudos do processo de alfabetização com as ações previstas num projeto interno da unidade, intulado “Leitura na perspectiva de alfabetização”. Trata-se de um projeto voltado para o encanto e o fascínio pela leitura através do lúdico e da poesia nas séries iniciais com o objetivo de refletir sobre o impacto que a parceria PIBID/ escola causa no processo de leitura e alfabetização estreitando assim o mundo da leitura e o universo da infância. 3. IMPACTO DO PIBID NA PRÁTICA DE LEITURA De início a primeira impressão ao adentrar numa turma de 1º ano, da Escola Municipal São Pedro, é a de que seria impossível o desenvolvimento do trabalho de uma professora de alfabetização, considerando que as turmas apresentam em torno de trinta alunos. É muito complicado o acompanhamento individual, pois enquanto 54 uma criança é observada, as demais não ficam quietas. Ademais, as bolsistas de iniciação depararam-se com crianças que preocupam quanto aos modos de trabalhar e conviver em grupo. Encontraram crianças que provêm de uma realidade preocupante. Em sua maioria revelam-se como pessoas agressivas e não respeitam colegas e professores. Vivem em um universo de extrema permissividade ou falta de limites fora da escola. Quando estão nela não aceitam ouvir um não, não obedecem à professora e ainda perturbam as outras crianças e o desenvolvimento das atividades pedagógicas da aula. É ainda muito angustiador, em uma situação como essa, para uma professora trabalhar com práticas de leitura, seja atividade escrita, leitura compartilhada ou momento da leitura. É uma tarefa quase que impossível a de conseguir observar individualmente cada criança, pois é notável em uma única turma alunos com realidades bem diferentes. Enquanto se têm crianças com o nível de leitura bem desenvolvido, outras ainda nem conseguem reconhecer todas as letras do alfabeto. Numa atmosfera em que a pouca habilidade das crianças com a escrita, bem como a Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. agitação e inquietação delas, fica difícil prosseguir com as atividades de leitura e desenvolver a contento um trabalho de qualidade. Com o tempo e com muito diálogo com os estudantes, a situação vai se revertendo e a professora cultiva o respeito dos alunos que internalizam certas regras para um bom convívio em grupo. Há de se ressaltar que com a chegada das bolsistas do PIBID, a professora vai tendo condições de fazer atendimentos individualizados, pois enquanto o faz, as bolsistas vão encaminhando atividades com o restante da classe, que passa também a desenvolver carisma e respeito pelas licenciandas. Percebe-se a relevância de se poder dar um suporte ao trabalho docente ao observar as crianças na perspectiva de se compreender o envolvimento de cada uma na execução de tarefas. Mas de fato a percepção das bolsitas, por estarem em outra dinâmica da realidade escolar, faz fluir um diálogo com a professora, com vistas a produção de diretrizes norteadoras das atividades de leitura para garantir melhor êxito no processo, uma vez que se percebe o caminho que a criança está trilhando para fazer suas tarefas. As bolsistas se configuram, principalmente em atividades de leitura, como facilitadoras nesse processo, pois enquanto divididos em grupos para atividades diferentes, de acordo com o nível de aprendizagem, é mais fácil perceber as dificuldades de cada criança. É o caso das divisões para a realização de jogos que necessitam do uso da leitura entre as crianças. Geralmente são divididas em grupos supervisionados por uma bolsista, em que são escolhidos jogos que estimulem e requeiram a prática de leitura. É importante ressaltar que mesmo aquelas crianças que não conseguem ler ou até mesmo reconhecer certas letras desenvolvem com êxito jogos que envolvem técnicas de alfabetização. Isso é possível dadas as ilustrações contidas nas cartas dos jogos, por meio das quais interpretam a lógica do jogo. Essa dinâmica remete a Martins (2007) quando a autora evidencia que a leitura não se restringe ao decodificar de palavras, mas está inserida em um universo maior, por meio do qual lemos as imagens, os objetos ao nosso redor, uma sena ou uma simples situação. E é isso o que acontece com estas crianças que ainda não leem e não decodificam 55 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. palavras, elas tornam o imagético um instrumento útil à interpretação para a realização da atividade a elas exposta no momento. Outra atividade de leitura que deu e está dando muito certo é criação específica da dimensão espacial e temporal do momento de leitura. Antes este momento acontecia na sala onde cada criança deveria dispor de algum livro para ler, ainda que só lessem as imagens. Ou aindar, visava apenas focar no observar, para tentar suscitar, a partir de outro tipo de interpretação, que é o caso das ilustrações, imaginar o conteúdo, a história do livro. Porém tínhamos uma situação em que poucos se interessavam em manusear os livros para compreender sua estrutura. Ademais dessa dificuldade, muitas crianças se encontravam dispersas e atrapalhavam com a bagunça que faziam, comprometendo o interesse dos poucos que desejavam participar de atividades de leitura. No decorrer da aula e com as atividades desenvolvidas, as bolsitas foram percebendo e conhecendo melhor cada possibilidade e realidade de leitura e escrita das crianças, por meio de identificação de níveis de leitura. Assim o objetivo era o de 56 compreender se estas se encontram no nível pré-silábico, silábico, silábico-alfabetico ou alfabético. E para desenvolver bem essa tarefa, fizeram uma imersão teórica na obre de Ferreiro (2011), que tece as hipóteses dos níveis de leitura, fazendo identificações d3e cada classificação dos níveis. Partindo desse pressuposto de conhecer cada um desses níveis, as licenciandas puderam reconhecê-los nas produções das crianças e assim intervir de maneira mais eficiente para auxiliar a transição de cada criança entre as etapas.. Contudo, para uma prática de leitura eficaz em que se desenvolva nas crianças o hábito de ler é preciso, como fala Jolibert (1994), criar um ambiente estimulante, que as crianças vivam em um meio propicio à prática de leitura, encontrem livros a sua disposição, participem de momentos de leitura, uma atividade desenvolvida sob essa ótica proporciona o prazer ao ler e torna esta atividade mais significativa. E foi nessa ótica que o momento de leitura foi criado, tendo como elemento motivador o interesse de cada criança pelo livro/texto que em vez de lhe ser apresentado, era objeto de sua escolha no ambiente de leiturização. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 4. FORTALECIMENTO DA FORMAÇÃO DOCENTE O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência tem trazido muitas contribuições para a trajetória acadêmica das bolsistas envolvidas, principalmente para o fortalecimento da formação docente, instigando a busca por novos conhecimentos. Uma das grandes vantagens de compor a rede de bolsistas do PIBID é a de estar diretamente ligado com a realidade a ser enfrentada futuramente, quando se tornara professoras de fato, pois o programa insere desde muito cedo as licenciandas nas escolas, fortalecendo assim a compreensão das estudantes para com o que ocorre no universo escolar. A realidade da escola, com toda a sua complexidade se apresenta como lócus primordial do processo de formação. É o compreender a escola para nela atuar com competência e conhecimento de causa. É desse lugar que buscamos analisar a metáfora que se popularizou no âmbito do PIBID: conhecer o chão da escola. Ao observar a prática, as atitudes, os métodos e a linguagem utilizada pela professora supervisora, estão as licenciandas aprendendo como lidar com a docência, pois o que se tem pela frente é um exemplo do qual se pode separar os atos desnecessários que não trouxeram nenhum benefício ao aluno dos atos eficazes, que deram certo e contribuíram para a aprendizagem dos estudantes e futuramente no exercício do nosso ofício poder continuar produzindo novas formas e estratégias daquilo que na escola se faz e que dá certo. Com isso o PIBID está a colocar o estudante frente à sua futura profissão levando-o a experiência de conhecer as atividades a serem desenvolvidas, os obstáculos a serem ultrapassados e os caminhos a serem seguidos, contribuindo assim para o esclarecimento dos altos e baixos da docência e evitando uma posterior decepção, coisa que na maioria dos casos só são descoberta ao final do curso de licenciatura, quando geralmente a escola é conhecida pelos estágios. Através do PIBID podemos conhecer a escola no seu interior, as discussões pedagógicas, o conselho de classe, o trabalho da gestão e coordenação pedagógica. Tudo isso passa a ser objeto de análise e de compreensão, permitindo que o processo formativo seja ancorado pela realidade escolar e por toda a sua complexidade e 57 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. dinâmica. Pelo programa, as licenciandas puderam participar também da jornada pedagógica 2013 e compreender como se dá a escolha de métodos e ações a serem desenvolvidas nas escolas em um ano letivo, podemos também conhecer como funciona uma rede escolar e quais as políticas que a regem. Infelizmente o programa não abrange a todos os estudantes das universidades. O ingresso a este ainda é restrito a um número limitado de vagas, que não chega a 20% do quantitativo de estudantes matriculados num curso de licenciatura. Logo apenas alguns conseguem realizar as entrevistas e atender aos critérios de documentações e vagas. Entretanto, sabe-se já que o ideal seria que todos os licenciandos pudessem participar já que este programa traz contribuições indispensáveis ao processo de formação docente. A prática da professora supervisora na Escola Municipal São Pedro ainda nos traz enorme contribuição por que ao observar tal prática está o licenciando aprendendo a trabalhar os conteúdos de forma que a criança se identifique com assuntos estudados, pois os livros didáticos existentes nas escolas públicas trazem 58 alguns exemplos que podem confundir a criança, ou seja, os alunos por estarem inseridos em um território eminentemente rural, às vezes se perdem com assuntos que são voltados para a realidade urbana, geralmente do sul do país. Quando a supervisora está aplicando alguma atividade fica bastante visível que ela usa exemplos de coisas do conhecimento das crianças, exemplo, que são internos ao território de Irecê e isso é muito importante para a aprendizagem dos alunos desta localidade, que se reconhecem diante do assunto abordado pela professora. É importante também para as bolsistas que ao observá-la estão aprendendo a universalizar/localizar o assunto para torná-lo mais acessível aos seus futuros alunos, mesmo sabendo que no exercício da profissão um dos maiores recursos ainda será o livro didático. Freire (1996) defende que o professor deve levar em conta os conhecimentos prévios dos alunos e a sua realidade cotidiana. Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os da classe populares, chegam á ela saberes socialmente construídos na pratica comunitária, mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. (FREIRE, 1996, p.30). Portanto, como grande lição, para as bolsitas, das experiências tecidas no âmbito de práticas de leitura na escola, fica a concepção de que o professor não deve se embasar apenas no livro didático, mas relacionar os assuntos contidos nos livros com a realidade do aluno ou utilizar outros tipos de livros que trazem literaturas atraentes aos estudantes. Como faz a professora supervisora, que traz interessantes e curiosas historinhas de autores que escrevem para o público infantil. Alguns inclusive da própria região como Paiva (2010), por exemplo, que em suas histórias relata sobre brincadeira com lama e outras típicas das crianças nordestinas. Conheci uma menina levada/Que brincava de lama na chuva Ficava toda enlameada/Dobrava a esquina, fazia a curva/ E ia brincar com a molecada. (PAIVA, 2010, p.18). Este contato com os livros faz com que a criança desperte seu interesse pela leitura, motivada a fazê-la a partir dos aspectos de ser também produtor de sentidos. A criança não busca ler o que está posto mecanicamente, mas assume uma posição de criação de sentidos, realizando inferências e criações próprias, idealizadas pela sua imaginação e motivação. Ao se observar essa prática da professora de colocar livros de leituras diversas ao alcance dos alunos, estão (alunos, professora e bolsistas) aprendendo conjuntamente e fortalecendo o nosso processo de formação. A referida escola localiza-se em Irecê, território agrário onde a maioria dos habitantes se mantém com o trabalho rural. O serviço que os alunos desta escola conhecem com apropriação certamente será o da roça. Podem até conhecer a engenharia, medicina, advocacia, mas provavelmente não terão segurança para falar do assunto, no entanto se forem questionadas com relação ao trabalho agrícola podem até dar aula sobre. Isso se dá devido ao contato que os alunos têm com tal serviço, ou seja, ao falar de atividades da roça estão falando de algo seu que é visto e vivido cotidianamente. Quando esses exemplos são trazidos para a sala de aula o aluno aprende com mais facilidade, pois já têm noção sobre o que está sendo discutido. 59 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Nesse aspecto o PIBID foi incentivo até para elaboração de projetos de pesquisa e dentre eles um sobre educação do campo justamente porque houve a percepção de que nas escolas localizadas nos meios rurais não há um currículo que contempla a educação contextualizada. Diante do exposto podemos dizer que o PIBID traz inúmeros benefícios para os graduandos que dele participam, promovendo as atividades que são de grande importância para a formação do indivíduo. Por isso se faz tão necessário na universidade, assim como também na vida acadêmica de qualquer estudante. Estando imersos na sala de aula, aprendemos que não precisamos nos prender ao livro didático, mas ter flexibilidade para inserir assuntos locais, relacionados aos globais que despertem e chamem a atenção dos alunos. Compreende-se também que há diferentes formas de se trabalhar a leitura com as crianças. Sabe-se ainda que a escola não funciona a ermo, mas que há toda uma política que lhe dá sustentação. Eminentemente o programa funciona como disseminador de conhecimentos adquiridos, uma vez que os bolsistas em seu universo acadêmico se colocam 60 enquanto sujeitos participantes das vivências escolares e que por isso desenvolvem uma compreensão das dinâmicas da escola, que dão sentido ao fazer pedagógico, objeto de seus estudos no curso de Pedagogia. Neste sentido, a participação no PIBID permite aos bolsistas a falarem de suas experiências vividas na Educação Básica, compartilhando assim toda sua experiência adquirida na escola com os colegas que não fazem parte desta vivência. Ora esta fala é solicitada pelo professor de uma disciplina da faculdade, ora ela vem espontânea no decorrer de uma conversa. Propagando e contribuindo para implementação e formação da massa universitária através de relatos de vivências. Para um estudante de licenciatura se tornar um bom professor ele necessita tanto dos conhecimentos teóricos vistos na academia quanto do treino da prática docente, formando assim uma práxis em que a teoria está vinculada à prática. Devido ao modelo de formação tratar as coisas isoladamente, tende-se a dissociar teoria de prática, em que na verdade por trás de uma boa prática sempre existe uma teoria que muitas vezes foge do nosso conhecimento. Por isso o PIBID torna-se eficientemente formador de professores completos, exatamente por proporcionar Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. participação em experiências práticas, que faz ressignificar, ou não, toda uma teoria de aprendizagem aprendida noa anos das licenciatura na universidade.. Além de contribuir para a formação continuada do professor supervisor, que tem a oportunidade de está atualizando os seus conhecimentos acadêmicos em uma parceria com os bolsistas de ID traçando uma relação dialética entre ambos, o programa aproxima a realidade formativa vista no Ensino Superior com as dimensões reais da Educação Básica. Sem utopias, sem devaneios, e sem ideologias. O foco é o tempo real da escola em suas condições normais de temperatura e de pressão. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Compreendemos que a parceria PIBID/ escola se configura de suma importância, não somente para a formação docente, possibilitando aproximar a prática da realidade das estudantes universitárias, como também um ótimo e eficiente diálogo entre universidade e comunidade escolar. Assim universidade e escola básica necessitam estreitar vínculos a fim de que se possa conhecer a realidade educacional presente na comunidade na qual a universidade está inserida e que nela se consiga intervir a fim de ser obter bons resultados, como o favorecimento de melhorias nos indicadores de aprendizagem de leitura e escrita das crianças. Ao estreitar os vínculos entre esses dois polos, universidade e escola, será possível assim como ocorre no decorrer das atividades proporcionadas pelo PIBID um compartilhamento de saberes, em que se leva as experiências do dia-a-dia da escola para a sala da universidade, promovendo discussões acadêmicas com base nas dimensões locais e reais da comunidade. Há também de se ressaltar que há uma grande contribuição e potencialização do papel da universidade, no que tange a formar profissionais docentes com competência técnica e saber pedagógico oriundos das teorias, mas que não se desvinculam das realidades práticas do ofício de ser professor. Com essa compreensão, também consideramos ser resultado das conversas e de todo esse trabalho prático a motivação para a produção acadêmica. É necessário 61 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. darmos um retorno e compartilhar com colegas engajados na mesma área as experiências vivenciadas nesse projeto de iniciação à docência. O PIBID enquanto projeto de iniciação à docência possibilita aos estudantes dos cursos de licenciaturas adentrarem no universo da escola e conhecer a realidade da mesma, sua prática docente, intervenções pedagógicas esclarecendo e tornado concreto o que é discutido e estudado na academia. Ainda nesse processo proporciona à reflexão, instigando o pensamento a refletir sobre a prática docente instituída na escola, fazendo com que as bolsistas percebam-se, ou não, inseridas e motivadas a continuar nesse processo, licenciandose professoras de séries iniciais. Nesse caso constituiu como fortalecedor da formação docente que encantou as bolsistas e enraizou a certeza do querer fazer parte da docência. É uma parceria que causa efeitos positivos no universo da sala de aula observada pelas bolsistas e também na formação dessas graduandas. É positivo na medida em que ajuda e facilita o trabalho de leitura realizado com as crianças 62 levando estas a aproveitarem melhor esse momento, e no processo de formação haja vista que as universitárias adentram mais cedo na escola fazendo conhecer e vivenciar esta realidade. Tanto as licenciandas, como os estudantes da escola básica passam a realizar um processo de leitura que vai além da decodificação de palavras. Lê-se as experiências, as imagens, o texto, o cotidiano, a docência, a escola, enfim, lêse a vida. As observações, reuniões com a supervisora e com o coordenador de área do projeto possibilitaram e continuam possibilitando um enriquecimento de conhecimento sobre os processos de leitura nas séries iniciais do ensino fundamental, promovendo ações e estudos que objetivam o conhecimento de correntes teóricas e práticas de uma leitura na perspectiva dialógica, em que a criança é também produtora de sentidos. Através dessas vivências podemos afirmar que o início da experiência docente se firmou em um terreno propício e motivador à continuidade desse trabalho que se constitui na figura do professor. Percebemos os reflexos desse projeto na vida acadêmica das licenciandas ao perceber em aula e em meio às discussões como foram compreendendo a docência na Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. escola, sua complexidade e dinâmica. O foco na leitura e nos processos como as crianças a desenvolvem permitiu perceber a importância que há para o professor se aproximar das experiências das crianças, como forma de conhecer sua motivação e interesse pela leitura. A pesar de este ser um projeto para poucos universitários é através desses exemplos que as bolsitas puderam conseguir levar outros a conhecer suas experiências enquanto bolsistas do PIBID. E indiretamente fazer pessoas alheias ao projeto entender como este funciona. Assim é de grande importância o PIBID para a prática de leitura do 1º ano, da Escola Municipal São Pedro, que através das bolsistas desenvolve um trabalho de alfabetização juntamente com a professora da referida turma a fim de formar nas crianças o hábito de ler. Ainda é notório o papel desse projeto na vida e formação acadêmica que fortalece o desejo de querer estar engajada na área educacional. REFERÊNCIAS FERREIRO, Emilia. Reflexões Sobre Alfabetização. 26ª Ed. Cortez. São Paulo, 2011. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários a pratica educativa. 33ª Ed. Paz e Terra. São Paulo, 1996. JOLIBERT, Josette. Formando Crianças Leitoras. Artes Médicas. Porto Alegre, 1994. MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 74ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 2007. PAIVA, Núbia Pereira. Era uma vez uma poesia. Coleção Ciranda. Irecê- BA, 2010. http://www.uneb.br/pibid/files/2010/09/edital_prograd_pibid_uneb_n.065_02.08. 2012.pdf (acessado em 12/08/2013) 63 FERNANDO BONASSI E OS MODOS DE SE LER LITERATURA NA CONTEMPORANEIDADE Fernanda Santos de Oliveira Universidade do Estado da Bahia [email protected] RESUMO O presente trabalho tem por objetivo analisar os modos de leitura e as demandas do texto literário, ao estabelecer uma relação entre leitura e literatura na contemporaneidade, enfatizando as implicações das mídias nas novas configurações do texto literário. Para tanto, partindo da análise da narrativa minimalista de Fernando Bonassi, escritor contemporâneo, serão discutidos os novos moldes do processo criativo e seus efeitos no fazer literário da era pós-moderna, marcada pela fragmentação e superficialidade. Dessa forma, serão discutidos o método de composição do autor e a maneira como as questões estéticas são problematizadas na obra, de forma a questionar os padrões tradicionais de leitura e de literatura. A escolha pela narrativa de Fernando Bonassi se justifica pela aproximação da mesma com a atual linguagem cotidiana, formatada num instigante trabalho de exercício poético. Fundamentam este trabalho reflexões sobre as relações entre cultura, leitura e literatura pautadas nas concepções de Márcia Abreu, Néstor Canclini e HansRobert Jauss, além dos suportes teóricos da literatura contemporânea desenvolvidos por Beatriz Resende, Karl Erik Schollhammer e Regina Dalcastagnè. Este trabalho, portanto, incitará a discussão a respeito do lugar da leitura e da literatura na contemporaneidade. O estudo da ficção contemporânea se justifica pela importância de se refletir sobre as potencialidades das formas de representação de uma realidade múltipla e diversificada, intercedida pela mídia. É no contexto de uma cultura globalizante que se insere a atual vertente da literatura brasileira, envolta por uma atmosfera híbrida marcada pelo descentramento. Ao entrelaçar o cotidiano, a poesia e a mídia, Fernando Bonassi provoca um olhar desafiador e questionador sobre a realidade, de tal forma que redimensiona a relação do leitor com o texto. Sua narrativa minimalista, por sua vez, assumindo novas modulações estéticas, rearticula o fazer literário, apontando para a possibilidade de ampliação do universo textual e para uma maior interatividade com o leitor. Ao criar uma estética diferenciada para a representação da subjetividade humana, o escritor atende às demandas de um contexto que exige uma nova postura diante do processo criativo e do ato de ler. Nesse sentido, por meio de uma linguagem inovadora, a arte literária permite que o leitor exerça o seu papel de forma interativa. No interstício, portanto, entre a leitura e a literatura o fazer artístico revisa paradigmas, desconstrói a institucionalização da linguagem e reorganiza as relações autor-texto-leitor. PALAVRAS-CHAVE: Fernando Bonassi;leitura;literatura;contemporaneidade. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 1 APRESENTAÇÃO A discussão sobre a leitura e a literatura na contemporaneidade é imprescindível ao considerar as novas modulações estabelecidas entre o autor, o leitor e o texto. Nesse contexto imerso por novas plataformas de escrita, a escrita torna-se urgente, assim como o leitor e o texto aproximam-se cada vez mais. Numa sociedade de multimídias ou metamídias, requer uma revisão dos conceitos tradicionais de leitura e literatura de forma que sejam atualizados às demandas da contemporaneidade. Para tal entendimento, a Teoria da Recepção auxilia ao abordar sobre a influência da mídia partindo do pressuposto da interação entre texto e leitor. Com o advento da internet, o processo de leitura virtualizou-se e tornou a comunicação veloz. Nesse contexto de simultaneidade, rapidez e instantaneidade, a escrita torna-se urgente como conseqüência de uma contemporaneidade midiática. Pluralidade e diversidade são as marcas que conduzem o processo de leitura e de escritura. Nesse ínterim, evidencia-se como a leitura e o fazer literário estão imbricados com a cultura de forma que são constantemente reconfigurados para se constituírem em práticas mais adequadas ao tempo e espaço contemporâneos. A escrita literária, hoje, é tomada por uma atmosfera da brevidade e fugacidade. Nesse sentido, a narrativa contística contemporânea vem assumindo uma formatação cada vez mais curta e ao assumir essa demanda da urgência, acaba por provocar mudanças na atividade de leitura. O fazer literário, portanto, transforma a relação entre o texto e o leitor. E o texto literário, por sua vez, cada vez mais se aproxima do universo da web, com sua estrutura fragmentada. Logo, as plataformas midiáticas implicam mudanças nos modos da escritura literária, como também nos modos de ler. Por conseguinte, há uma desterritorialização da leitura e da literatura provocada pela ruptura com as delimitações impostas por qualquer tipo de categorização. 65 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 2 AS IMPLICAÇÕES DO CONTEMPORÂNEO NA ESCRITA DE BONASSI Quais são as implicações das mídias atuais na configuração do estilo do escritor contemporâneo? A intimididade das novas gerações com o texto eletrônico contribui para a mudança no próprio fazer literário? Leitura e literatura movimentam-se em torno dos efeitos midiáticos da contemporaneidade. Neste rumo ao novo, os modos de ler e do fazer literário são atualizados. As noções de escrita e de leitura no decurso histórico, portanto, não são excludentes, mas são ampliadas configurando novos modos de apreensão de uma realidade 66 múltipla e híbrida. A forma híbrida do texto literário contemporâneo relaciona-se com as transformações midiáticas evidenciando como a literatura constitui um espaço de representação sócio-cultural. A literatura contemporânea abriga narrativas fragmentadas e marcadas por um sentido de urgência. A estrutura da narrativa contística assume um contorno característico das novas plataformas de escrita. Assim como a comunicação cotidiana é marcada pela rapidez e brevidade, a literatura se apropria de tais elementos e se reconfigura em um novo formato. Considerando os novos recursos tecnológicos, a performance de leitura tornase mais interativa. E a literatura impressa, por sua vez, vem assumindo remodelações para se ajustar ao atual contexto. Abriu-se espaço para novas experiências de leitura. Os padrões de categorização dos textos literários são alargados à medida que os autores extrapolam as fronteiras do processo criativo. A narrativa minimalista de Fernando Bonassi é exemplo da remodulação da literatura contemporânea. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A leitura dos minicontos aproxima-se dos modos de ler do cinema, por exemplo, ao se inserir no universo híbrido e exigir do leitor uma postura interativa e flexível. É uma escrita tomada pelo efêmero, pela velocidade e pelo simultâneo, características da temporalidade atual. É, pois, nesse contexto que a ambiência da leitura volta-se para o não-lugar. Assim como a narrativa contemporânea é breve, as novas plataformas de divulgação da obra também aproximam o leitor do texto. E, assim, o lugar de leitura é indefinido. Lê-se em qualquer momento e em qualquer lugar. Em meio ao fluxo intenso de informações, o miniconto acaba por representar a necessidade de comunicação rápida da sociedade atual. Logo, um novo modo de ler e um novo modo de escrita se impõe na contemporaneidade. Ao analisar o miniconto “SÓ”, de Fernando Bonassi, observa-se como se estrutura sua narrativa minimalista: SÓ Se eu soubesse o que procuro com esse controle remoto... (BONASSI, 2001, p. 30). Primeiramente, o conto se apresenta numa estrutura breve muito próxima das formas de comunicação das mídias atuais. Além disso, faz alusão ao controle remoto trazendo à tona a própria tematização da relação entre o homem e a televisão. O sentar em frente ao aparelho televisivo é um dos comportamentos da contemporaneidade, além da mudança de canais de forma compulsiva que representa a necessidade do homem de buscar por programas que atendam aos seus gostos. É uma relação um tanto conflituosa que se estabelece entre a televisão que como meio de comunicação de massa contribui para a homogeneização dos gostos e por outro lado, o homem que utiliza o controle remoto na busca incessante por algo que satisfaça suas necessidades. No miniconto, abaixo, se vê como a tematização das mídias contemporâneas é novamente problematizada: Era como se o ruído do despertador rachasse o seu crânio. Não acreditou que conseguisse levantar da cama. Quase se afogou na 67 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. água do chuveiro. Já na hora em que a mulher lhe serviu suco, não acreditou que pudesse engolir. Desceu as escadas e os degraus pareciam desdobrar-se neles mesmos, infinitos, como numa perseguição de filme. O tráfego até o trabalho nada menos que intransponível. O calor: insuportável. Trabalhou violentamente o resto da vida (BONASSI, 1996, p. 31). A linguagem objetiva e ao mesmo tempo adjetivada expressa a sensibilidade do escritor ao descrever o relato do cotidiano das grandes metrópoles. É o rachar do crânio, o afogar na água do chuveiro, o engolir o suco, a infinitude dos degraus, o tráfego intransponível, o calor insuportável e o trabalho violento que representam a brutalidade do presente. As frases curtas e adjetivadas atingem o leitor de forma imediata e fazem do diálogo com a linguagem jornalística a reconfiguração de um novo estilo. É a literatura se mesclando com a mídia jornalística e demonstrando sua potencialidade híbrida. A linguagem jornalística permeia a narrativa literária, como se pode observar no seguinte miniconto: 68 Dirige direto. Saiu de São Paulo no meio da tarde de sexta, domingo mal amanheceu e Cuiabá já ficou pra trás há muito tempo. Voa sobre os buracos da BR 262. Só pára pra comer, uma vez por dia – e pra ir ao banheiro, sempre que em vontade. Não pensa em descansar. Vai em frente, ver até onde agüenta (BONASSI, 1996, p. 73). Ao tempo em que se aproxima do relato jornalístico, o miniconto por meio da força literária provoca o leitor a refletir sobre a realidade de São Paulo. Da descrição do trajeto entre São Paulo e Cuiabá, o leitor é levado para dentro do texto de forma a fazê-lo repensar sobre a correria cotidiana na qual o homem “não pensa em descansar”. O miniconto seguinte desmistifica a realidade imposta pelos meios de comunicação: A primeira vez que eu vi um cadáver no asfalto: “As ruas são perigosas, garoto. As pessoas amanhecem mortas assim-assim. E o trânsito fica uma bosta e a gente fica enjoado.” A primeira vez eu vi um cadáver no asfalto: muitos furinhos de tiros, uma caveira simbólica sobre a carcaça murchante e menos sangue que nos filmes, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. ventava. E eu fiquei muito impressionado que as velas não apagassem e os jornais não voassem (BONASSI, 1996, p. 187). Ao apresentar um novo ponto de vista do narrador-personagem a respeito do momento em que se deparou com um cadáver, a realidade retratada nos filmes se apresenta sob uma perspectiva diferente. Assim, é perceptível como as mídias são tematizadas nos minicontos de Bonassi de forma a provocar no leitor um questionamento da forma como a realidade é posta por tais veículos. No miniconto a seguir, Bonassi novamente se reporta ao discurso televisivo de forma provocadora: AS VOZES DA TELEVISÃO. Ele deveria ter tomado as providências. Elas falaram com ele que iam acabar chegando. Um dia após o outro fazendo caretas diabólicas entre os comerciais e os filmes... Agora elas estão bem ali, atrás da porta. Todas elas. Querem estuprar a sua filha, deitada na sua cama, dormindo. Ele devia ter imaginado, ter desligado o aparelho – antes que elas saíssem do tubo e se instalassem no corredor. Elas disseram. O suor pinga do seu corpo para a lâmina. Esmurram a porta – o ruído reverbera dentro da sua cabeça, como um piano desafinado. Elas vão entrar no quarto/estuprar a sua filha dormindo na sua cama. Ah não! Antes que isso possa acontecer ele a mata com cinco facadas. (BONASSI, 1996, p. 47) E, ao tematizar em seus minicontos a retratação da realidade pelas mídias, Bonassi vai além e apresenta uma forma contística que se aproxima dos veículos de comunicação. É o caso da narrativa a seguir: Escuro. 4 X 6. Num canto: colchão, travesseiro, cobertor e lençol revirados. Westclox.A TV sobre a própria caixa de papelão reforçada com isopor. O corpo diagonal. Decúbito do ventre. Cortina de tafetá. Carpete cinza melado de sangue e gosma. Itacarpet & Nylon. Ferimento cutâneo revela lesão produzida por instrumento pérfurocortante atingindo as vísceras maciças. Hemorragia. Contusão do abdome – fratura de bacia. Porrete. Língua macerada (ao que tudo indica) pela própria vítima. Dentada. Um faz a foto, outro mexe na bolsa. (Bonassi, 1986, p. 29) Ao apresentar termos específicos da linguagem cinematográfica, Bonassi reconfigura a escrita literária e desenvolve uma forma própria para o conto. É o cinema, a TV, os filmes e os jornais que entremeam sua narrativa minimalista e cria um estilo próprio para tematizar o cotidiano da contemporaneidade. 69 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Os minicontos com sua economia de palavras representam a velocidade da sociedade atual impregnada pela influência da internet no cotidiano. É visível que a fragmentação e a superficialidade engendrados pelos novos meios midiáticos interferem na configuração de novas práticas de leitura e escrita. No miniconto seguinte, a estrutura frásica de Bonassi evidencia a configuração de uma escrita econômica que se aproxima da estrutura de um roteiro cinematográfico: O SENHOR ENTRA PELO LADO ESQUERDO do galpão. Deixa o tíquete com um segurança. Não tem como errar: só deixam o senhor dá a volta inteira no refeitório, por um corredorzinho: de um lado a parede de azulejo até o teto, de outro a cerquinha de metal cromado. Mesmo que o senhor não queira, o senhor vai indo. Pressa. Muita gente pra comer e pouco tempo pra servir. Fila única. Na boca da cozinha só um instante: garfo-faca-colher-guardanapo-pão-arroz-feijão-carne-salada-gelatina. Mal o senhor vê e a sua bandeja está feita. Se o senhor esquece de estender a bandeja em alguma hora, fica sem. Não tem conversa. Logo já tem o de trás cutucando as suas costas com a bandeja dele. Assim mesmo. O senhor veja: ele nunca pegava o garfo. Dizia que ele sempre esquecia. Não sei. Nunca pegava o garfo e por isso ficava olhando a minha comida. Esperava eu acabar pra usar o meu. O senhor veja: nesse dia aquele olhar caído na minha comida foi me fazendo um mal. Primeiro um bolo no estômago, depois a coisa subindo. Não sei. Subindo pelo estômago, pelo peito, pelo ombro, indo pro braço, depois pra mão. Não chegava a ser um formigamento. Era como se aquele garfo na minha mão fosse virando assim uma unha, uma unha de metal bem comprida... Então, depois, era como se virasse uma garra, uma garra de bicho... O senhor veja: na hora que eu ergui a minha garra de bicho, tudo ficou preto e eu não vi mais nada. (BONASSI, 1996, p. 33-4) 70 A escrita literária de Fernando Bonassi é estruturada de forma a se aproximar da dinâmica da comunicação contemporânea. O estilo do autor é tomado por uma brevidade próxima das formas de comunicação atuais, como a leitura de mensagens eletrônicas, de outdoors de propagandas, dentre outras. Seu fazer literário representa a economia de palavras de uma sociedade marcada pela velocidade. São as palavras e a brevidade do cotidiano emergindo no processo criativo do fazer literário. 2.1 O (NÃO) LUGAR CONTEMPORANEIDADE DA LEITURA E DA LITERATURA NA Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A leitura e a literatura, na perspectiva contemporânea, ocupam um lugar flutuante na medida em que estão imbricadas com um contexto múltiplo e conturbado. As relações entre cultura, leitura e literatura são reorganizadas com o advento das novas plataformas tecnológicas que determinam uma forma de interação cada vez mais breve e híbrida. Conforme Canclini: As fusões multimídia e as concentrações de empresas na produção de cultura correspondem, no consumo cultural, à integração de rádio, televisão, música, notícias, livros, revistas e Internet. Devido à convergência digital desses meios, são reorganizados os modos de acesso aos bens culturais e às formas de comunicação. Parece mais fácil aceitar o processo socioeconômico das fusões do que reconsiderar o que vinha sendo sustentando nos estudos sobre educação e leitura, nas políticas educacionais, culturais e de comunicação. (CANCLINI, 2008, p. 33) A escrita contemporânea reflete uma grande urgência. E a literatura se posiciona como um instrumento capaz de interagir com a instabilidade temporal e espacial ao tempo em que se faz imediata: A escola ensina posições corretas para ler livros, a mídia, como colocar-nos para sermos espectadores ou seduzirmos, e o corpo parece inexistir quando se fala em conectar-se com as redes virtuais invisíveis. No entanto, os comportamentos corporais são o cenário onde a literatura, a música e a comunicação digital tornam-se enfim visíveis. (CANCLINI, 2008, p. 42) A literatura imediata tem por objetivo impor sua presença em meio a um universo dominado pelas multimídias. Por meio de uma estrutura curta e fragmentada, a literatura intensifica sua visibilidade ao buscar seduzir o leitor. Além disso, conta com o hibridismo com outras linguagens rumo a uma eficiência estética. A turbulência midiática, portanto, exige um novo olhar sobre os modos de leitura e escrita literária. Márcia Abreu ressalta que “a avaliação estética e o gosto literário variam conforme a época, o grupo social, a formação cultural, fazendo que 71 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. diferentes pessoas apreciem de modo distinto os romances, as poesias, as peças teatrais, os filmes” (ABREU, 2006, p. 59). Jauss observa que: O horizonte de expectativa da literatura distingue-se daquele da práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas também antecipar possibilidades não concretizadas, expandir o espaço limitado do comportamento social, rumo a novos desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura. (JAUSS, 1994, p. 52) Schollammer ressalta que “a preferência pelos minicontos e outras formas mínimas de escrita que se valem do instantâneo e da visualização repentina, num tipo de revelação cuja realidade tenha um impacto de presença maior” (SCHOLLAMMER, 2011, p. 93). E, assim, o fazer literário utiliza o espaço urbano como peça fundamental nas construções narrativas proporcionando a problematização das contradições da atualidade: 72 a força da globalização dos bens simbólicos e da circulação da mídia vem acarretando, como previsto desde o início, uma homogeneização do gosto, das expectativas, do consumo, representada pela americanização que se espalha por onde as redes midiáticas do “Império” se estendem. Neste sentido, a força da globalização atingiria o imaginário e as práticas culturais, em flagrante conflito com a diversidade e o pluralismo. (RESENDE, 2008, p. 19) Resende destaca que a presentificação “parece também se revelar por aspectos formais, o que tem tudo a ver com a importância que vem adquirindo o conto curto” (RESENDE, 2008, p. 28). Ao desenvolver um estilo enxuto e objetivo, Bonassi se apropria da linguagem midiática, reconfigurando-a, e desnuda o universo das grandes cidades o qual a maioria dos leitores se encontra imersa: E isso se faz ainda mais complexo quando o autor resolve acelerar a movimentação de suas personagens, sabotando alguns elementos da narrativa tradicional, como o encadeamento espaço-temporal. Então, para acompanhar seus protagonistas não basta segui-los nas ruas, é preciso correr atrás deles pelos engarrafamentos da cidade, alcançar as autoestradas, tomar trens, aviões, navios, persegui-los por continentes e tempos diferentes, esbarrando, muitas vezes, no sem- Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. sentido de seu percurso, reflexo do sem-sentido de sua existência. (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 116) Acompanhando, pois, a turbulência da contemporaneidade a literatura assume uma forma que possibilita o contato mais rápido com o leitor interativo. Ao se apropriar da linguagem midiática, portanto, a literatura proporciona uma releitura do cotidiano e manifesta o sentido de urgência que domina a sociedade. A realidade múltipla e diversificada, intercedida pela mídia, é representada na literatura de Bonassi, seja na tematização, seja através da forma. E, assim, a cultura globalizante se insere na atual vertente da literatura brasileira, envolta por uma atmosfera híbrida marcada pelo descentramento e pelo fragmentário. A narrativa minimalista, por sua vez, assumindo novas modulações estéticas, rearticula o fazer literário, apontando para a possibilidade de ampliação do universo textual e para uma maior interatividade com o leitor. O formato da literatura de Bonassi se ajusta, portanto, ao espaço e tempo contemporâneos que se mostram cada vez mais curtos. A força de sua literatura reside, pois, no imediatismo contemporâneo. Bonassi apresenta um recorte da contemporaneidade em sua ficção. Numa perspectiva que torna sua narrativa capaz de apreender seu entorno e reconfigurá-lo a partir de um presente agitado. E, assim, circunscreve sua escrita na urgência e imediatismo da temporalidade atual. A presentificação evidencia-se na eficiência do seu fazer literário que é imbricado com os traços midiáticos. É a ficção que, por sua vez, instiga uma leitura provocadora e questionadora da linguagem dos meios de comunicação e impõe um novo olhar para o universo da escrita. Nesse contexto, as formas curtas dos minicontos conquistam espaço ao utilizar linguagem e estilo que se mesclam com as formas de comunicação do presente. Logo, insere-se nesse espaço dominado pela fragmentação, pelo hibridismo e brevidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS 73 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Ao analisar os minicontos de Fernando Bonassi percebe-se como os novos modos de leitura e escrita promovem mudanças no próprio fazer literário que cada vez mais é influenciado pelos novos suportes do computador e da internet. Tal estudo aponta para o fato de que a relação entre o autor e a palavra na contemporaneidade é entremeada pela fragmentação e brevidade. As fronteiras do fazer literário são flexibilizadas ajustando-se ao contexto contemporâneo dominado pela expansão de uma linguagem da urgência. Assim, emergem-se um modo de leitura urgente e uma escrita urgente. É a era dos meios de comunicação e do texto eletrônico determinando novas práticas. Logo, justifica-se a importância de se refletir sobre o domínio da internet e sua forma de inscrição no universo da leitura e da escrita. É preciso compreender como os novos suportes interferem nos modos de veiculação dos textos e como determinam mudanças nas relações entre o autor, a escrita e o leitor. É uma nova concepção das práticas de leitura que se instaura na contemporaneidade influenciando no estilo do autor. Assim, os minicontos de 74 Fernando Bonassi na medida em que apresentam uma estrutura breve e fragmentada se aproximam da forma de manejo dos textos eletrônicos. A urgência sobre as formas midiáticas incursiona-se, paralelamente, no fazer literário de escritores contemporâneos ao abusar das formas breves e adotar uma linguagem curta e fragmentária. É o novo suporte de leitura e escrita transfigurando o fazer literário, adaptando-se às demandas impostas pelo mundo virtual. Referências Bibliográficas ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006. BONASSI, Fernando. 100 histórias colhidas na rua. São Paulo: Scritta, 1996. ————. O amor em chamas (Pânico, horror & morte). São Paulo: Estação Liberdade, 1989. ________. Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. São Paulo: Objetiva, 2001. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. CANCLINI, Néstor García. Leitores, espectadores e internautas. Tradução Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008. DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Editora Horizonte. 2012. JAUSS, H. Robert. A História da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Biblioteca Nacional, 2008. SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 75 MILTON HATOUM: UM AUTOR CONTEMPORÂNEO NA LITERATURA BRASILEIRA Mariana Rocha Santos Costa Instituto Federal da Bahia – IFBA [email protected] RESUMO A Literatura e seus mecanismos de escrita têm sido alvo de um turbilhão de questionamentos ao longo dos últimos tempos. O status da figura do autor, a função dessa arte escrita, o papel do leitor contemporâneo e os limites do mercado editorial são apenas alguns dos temas dessas discussões acaloradas. O presente trabalho tem como objetivo central discutir algumas questões concernentes à autoria na contemporaneidade, deslocando as noções de morte do autor e função-autor, postuladas por Roland Barthes e Michel Foucault, ao afirmar que há uma revivificação da voz e da figura autoral no século XXI. Com base nos ‘círcuitos contemporâneos do literário, propostos por Ítalo Moriconi, busca-se compreender os espaços pelos quais transita o escritor e as várias facetas que ele pode assumir para conquistar os leitores contemporâneos. Como exemplo desse autor do início do século XXI que se faz presente nos circuitos mercadológicos, sem, contudo, se deixar corromper pelos vendilhões de uma Literatura semi-letrada, está o escritor amazonense Milton Hatoum. Preocupado com uma escrita de qualidade, ele é o escritor de três romances premiados e consagrados pela crítica, – Relato de um Certo Oriente (1989), Dois Irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005); uma novela – Órfãos do Eldorado (2008); um livro de contos – A Cidade Ilhada (2009); um livro de crônicas – Um solitário à espreita (2013), além de diversas outras crônicas, poesias e ensaios. Sua obra já foi traduzida em doze línguas e publicada em catorze países. Além disso, ele é atualmente colunista de um jornal. Consagrado escritor brasileiro da Literatura hodierna, Hatoum é utilizado como modelo de um escritor preocupado com a qualidade e a estética do texto literário, ainda assim comprometido com a divulgação da sua obra nos circuitos mercadológicos literários. Esse texto ainda prima por analisar de que forma esse autor da contemporaneidade brasileira, que foge do conceito hermético de ‘regionalista’, se configura nos círculos literários e cria uma imagem de si que não prejudique as possibilidades múltiplas de leitura que a linguagem pode oferecer a um leitor atento. A partir dessas discussões, conclui-se que o autor contemporâneo precisa se inventar para transitar pelos espaços midiáticos, pois a subjetividade inerente ao sujeito faz com que ele desempenhe funções sociais específicas a depender de cada contexto, uma vez que a sua presença extradiegética é, para o leitor, uma grande inovação da contemporaneidade no sentido de produção de significações textuais. Assim, Milton Hatoum se apresenta como um autor acessível para o seu leitor, seja ele convencional ou não. Preocupado em ser respeitado em todos os círculos nos quais transita, ele já obtém notoriedade e é considerado um dos maiores nomes da Literatura nos dias de hoje. Mantendo-se firme em seus preceitos estético-literários, ele se atualiza e se conecta. Ele é, também por isso, benquisto pelo público e pelos pares. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. PALAVRAS-CHAVE: Autor. Contemporaneidade. Milton Hatoum. A constante transformação pela qual passa a Literatura e seus conceitos atraem uma babel de posicionamentos da crítica e dos estudiosos da área. Todavia, tal desencontro de ideias é pertinentemente compreensível, dadas as transformações significativas e bruscas pelas quais o mundo tem passado nessa era volátil que apelidamos de contemporaneidade. Para Agamben (2009), o homem verdadeiramente contemporâneo não é aquele que se adapta à sua era, pelo contrário, é aquele que não se integra plenamente a ela e nem se adéqua às suas pretensões; assim, por estar fora da realidade contemporânea vigente, ele consegue perceber com mais clareza o seu tempo. Faz-se necessária certa distância a fim de se compreender os entraves e dialética do mundo circundante; por isso, o homem contemporâneo está dissociado da cronologia temporal, ele é, em certo sentido, anacrônico. No que tange à Literatura, Agamben diz que: “O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra” (2009, p.61). Assim, o escritor é capaz de fixar seu olhar no tempo para nele perceber não as luzes do século, mas o seu escuro, uma vez que essa luminosidade cega, e o escuro traz certas nuances que passam sem que sejam percebidas pela maioria dos homens comuns. Em uma belíssima metáfora que explica a contemporaneidade, Agamben (2009) associa-a às galáxias, onde aquelas luzes no céu que ora são vistas, são luzes há muito emanadas. As novas projeções luminosas, as atuais e contemporâneas, estão sendo projetadas para que sejam vistas apenas daqui a alguns anos. É nesse escuro que está o verdadeiro cerne da contemporaneidade, que nem todos conseguem perceber. Para compreender a contemporaneidade, há ainda que se fazer uma relação entre o presente e a História, pois cada tempo tem a sua produção social, cultural e política, sendo necessário atar as produções atuais ao passado, numa concepção linear, mas teleológica, uma vez que tudo retorna para o ponto de partida. Portanto, ser contemporâneo é também uma questão de coragem. Pois, segundo o autor, esse conceito, finalmente, se encaixa na figura daquele que: dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocálo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, 77 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. de ‘citá-la’ segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual não se pode responder (2009, p.72). Felizmente, apesar dessa quantidade de interrogações que está impregnada no campo da Letras, o que tem havido são mutações, e não uma extinção dos parâmetros necessários para o fazer literário. Assim, nessa atmosfera de reconfigurações conceituais, há um aspecto que merece um olhar ainda mais delicado e cuidadoso: o papel que exerce o autor enquanto persona existente fora dos limites das páginas em que insere o produto do seu trabalho intelectual e a forma como ele se projeta no século XXI. Pensando a autoria em termos históricos, Michel Foucault (2002) nos apresenta uma linha cronológica acerca desse papel ao longo das eras. Segundo ele, na Antiguidade, a obra literária não era marcada como produto específico de um autor, pois a autenticidade do texto era atestada por sua incansável repetição ao longo dos anos. O contador de histórias tinha o direito de apropriar-se dela ao seu bel prazer, 78 com o intuito de melhorá-la. Apenas em fins da Idade Média os textos literários passaram a ser obrigatoriamente reconhecidos por sua assinatura; quando eles se transformaram em ferramentas de propagação de ideias urgiu a necessidade de saber a quem punir por tal conduta considerada infame: precisava-se de um nome. Em seguida, coadunando com esse espírito de fixação referenciada de autoria, nos séculos XVIII e XIX a noção de copyright fez com que o capitalismo insuflasse a necessidade de recompensa financeira pelo trabalho intelectual. Por tudo isso, conclui-se que a noção de autor – tal qual a concebemos ainda hoje – é uma criação da sociedade moderna. Em meados do século XX, Roland Barthes (2004) reflete acerca dessa figura tão contraditória e comenta que, embora gozando então de inúmeros privilégios, esse personagem tendia ao desaparecimento. Barthes criticava o pensamento corrente, o qual consistia na centralização da figura autoral pelos críticos, com o intuito de explicar determinada obra. Para ele, a voz do autor num texto serviria apenas para limitá-lo, encapsulando-o em significados herméticos, quando na verdade o texto deveria possibilitar inúmeras relações de significados. Na concepção por ele Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. condenada, o autor se manifestaria como aquele que está para além do seu texto, anterior a ele e, na mesma medida, responsável por sua escrita: autor e livro não se situariam na mesma linha de tempo, pois ele precederia a obra, alimentando-a – o autor seria o deus do seu texto. Mas, evoca Barthes como solução para esse engano, o scriptor moderno – figura por ele proposta – suplanta o autor, enterrando-o. Para este, a obra acontece concomitante à sua performação: escritor e obra se fazem juntos. No momento em que a escrita começa, o autor é condenado à própria morte, pois um texto não é escrito linearmente, com significado unívoco, ele é um compósito de citações e ideais de outros que não o escritor. Por isso, o seu gesto de escrita nunca é original: o escritor apenas mistura as palavras, contrapondo-as ou apoiando-se nelas para construir novas ideias, as quais chamará de suas. Logo, para Barthes (2004), “a escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-ebranco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pelo corpo que escreve”. Com a morte do autor e a ascensão do leitor, este último assume, então, um lugar de fulcral importância, segundo as concepções barthesianas. Uma vez que o escritor não possui sentimentos, paixões ou opiniões e apenas repete, mesmo que inconscientemente, as palavras que já foram ditas, a linguagem adquire posição de honra nessa perspectiva do processo de escrita: o corpo que escreve é o do escritor, e este não existe de fato fora do texto. Portanto, se atribuir um autor para determinado texto significa explicá-lo e, sobretudo, fechá-lo, é na figura do leitor, o qual deve encontrar seu horizonte de expectativas dentro da obra lida, que a escrita deverá reencontrar o seu devir; mas para que esse leitor onipotente possa nascer, o autor já deve estar morto. Com a postulação da morte do autor, elege-se a linguagem como a fonte primeva dos estudos textos: é a partir dela e para ela que uma obra deve ser apreendida. Esse desaparecimento da figura autoral, todavia, deixa lacunas que, sozinho, o mecanismo da linguagem não consegue preencher plenamente. Em virtude dessa falta que resulta da supressão do autor, Foucault (2002) propõe a função-autor, não enquanto explicação da origem do texto literário, mas como um 79 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. dispositivo de coesão e compreensão dos discursos, sendo possível, sob a égide de certo nome do autor, categorizar, classificar e validar os textos literários, direcionando a forma como eles devem ser lidos dentro de determinado grupo social. Embora morto e enterrado nos círculos literários devido à preleção fúnebre de Barthes, mas com seu espectro fantasmagórico foucaultiano rondando os estudos do texto, o que se tem visto nessa era de transição secular é um retorno, uma revivificação desse autor. Há, desde o início do século XXI, um avivamento da presença autoral na literatura. Esse resgate, entretanto, não é uma retomada daquela velha prática dos críticos, que primavam pela descoberta da origem e explicação cartesiana da obra. O autor do século XXI retorna como o responsável pela autoria do texto, mas não com autoridade despótica sobre ele. Antes, ele ressurge enquanto um personagem do espaço público midiático, afinal, acreditar na morte de alguém que se mostra presente o tempo todo – em jornais, revistas, televisão, congressos, palestras e sites da internet... – é uma postura um tanto complicada para os leitores contemporâneos. 80 Tomando por base esses pressupostos, percebe-se que pensar a Literatura Brasileira Contemporânea no que tange à autoria e produção literária pode parecer uma tarefa problemática; contudo, ela é abordada de forma bastante otimista pelo professor Ítalo Moriconi (2005) ao apresentar as novas e novíssimas gerações brasileiras de 90 e 00, formadas por escritores entusiastas e agressivos no exercício de encontrar o seu lugar no mercado, ocupando espaços de visibilidade. Ainda assim, diz ele, essa agressividade imputada aos novos escritores é considerada uma atitude democrática, e não excludente, como propunham as mentalidades de gerações anteriores, firmadas em valores cindidos ideológica e culturalmente em época de guerra fria. Moriconi (2005), em seu artigo Circuitos Contemporâneos do Literário, faz uma abordagem dos circuitos literários de produção no Brasil no período contemporâneo, categorizando-os em três diferentes instâncias, todas marcadas pelo mercado como suporte de circulação: mercadológico, acadêmico e da vida literária. No primeiro circuito, a obra se mostra relacionada a outras esferas da cultura, como cinema, televisão e outras artes, preocupando-se sempre com o seu diálogo com o público Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. consumidor. Nesse círculo, ser bem sucedido implica compreender e seguir as tendências socioculturais e políticas do momento. No circuito acadêmico, a preocupação do autor está centrada na crítica e na recepção das universidades, os quais pregam valores clássicos da Literatura numa exigência que tangencia a escrita do cânone. Aqui, o grande público é um alvo irrelevante. Finalmente, o autor destaca uma novidade positiva no atual cenário brasileiro: o circuito da vida literária, um movimento de renovação da literatura no Brasil, cujo valor de referência se manifesta nas relações dialógicas entre os próprios autores contemporâneos. Esses espaços de troca de experiências e ideias, contudo, já não são mais “a livraria, a redação de jornal, nem o bar, a praia, a universidade. (...) o espaço de circulação dos textos, de diálogo e interação auto-reflexionante se deu mesmo nos sites e revistas literários na internet” (MORICONI, 2005, p.10). Nesses espaços virtuais fornecidos pelas novas tecnologias de informação é que brotará um número considerável de autores na contemporaneidade. Essa nova vida literária com a qual os autores da nova geração brasileira se identificaram se faz num âmbito de fluidez muito grande, pois os meios virtuais dispõem de uma plasticidade capaz de moldar a literatura e seus insubstituíveis constituintes – leitor e autor – à sua própria maneira. Se o autor teve que se remodelar para atender aos reclames de uma sociedade mais dinâmica, com o leitor não seria diferente. A mídia digital e os meios de comunicação de massa põem em xeque toda a conjuntura pré-estabelecida da tradição literária, trazendo em seu bojo muitas inovações que se incorporaram à Literatura, incluindo-se o diálogo intersemiótico entre o texto e as imagens, sons e movimentos. O leitor contemporâneo tem ao seu alcance uma gama de possibilidades de leitura que lhe é fornecida pela rapidez de informações que são despejadas das mais variadas formas em seu cotidiano. Não lhe basta mais ler o livro, o leitor requer uma atmosfera em que o texto seja devassado das maneiras mais variadas possíveis. O leitor da contemporaneidade tem se tornado cada vez mais exigente. Nessa era do computador e da rápida disseminação das informações, as quais acabam por se tornar facilmente descartáveis, as concepções que os teóricos e críticos tinham do fazer literário não poderiam sair incólumes. Sobre tal temática, Philippe 81 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Lejeune (2008) diz que, no século XXI, a aura de mistério que outrora envolvia o leitor e o autor não existe mais. O leitor de antes não conhecia o autor de um texto e tinha, na verdade, dificuldades até em reconhecê-lo através de retratos, os quais eram raros mesmo nas edições dos livros. Hoje, esse espaço vazio que era preenchido com a imaginação do leitor se esvai, pois ele está em contato constante com a imagem especular do escritor, às vezes numa apresentação anterior mesmo ao contato com a obra em si, seja nas fotos tão comuns nos encartes dos livros, nas revistas especializadas, ou ainda com sua voz e gestos exibidos na televisão: a imagem do autor se tornou corriqueira nos dias de hoje. A projeção de si que é feita no mercado pelo autor subverte ainda alguns modelos antigos dessa relação leitor/autor. Outrora, o interesse pela figura autoral se dava a partir do conhecimento e interesse que se tinha pela obra: alguém lia um livro e se interessava pela pessoa capaz de tê-lo produzido, buscando a partir daí dados biográficos, imagens, outras obras etc. Na contemporaneidade, todavia, não é assim que o processo se dá. O autor se torna uma figura ativa – e atrativa – no mercado 82 editorial: seu desempenho nos meios de comunicação é o elemento propulsor para alavancar a venda de seus livros; assim, o leitor conhece a figura do autor de antemão, devido ao largo apelo que ela tem nos círculos midiáticos, e, a partir daí, essa figura tem a função de excitar a curiosidade desse leitor para a obra: a performance que o autor adota é o impulso para conduzir novos leitores para seu trabalho. Tal apagamento dessa aura de mistério em que o autor se encontrava envolvido é fruto, entre outras coisas, de um desejo insaciável de projeção do ‘eu’ que se mostrou possível a partir das metamorfoses vertiginosas que as redes digitais e os meios de comunicação futurísticos propiciaram a seus usuários. A política de espetacularização de si e devassamento da vida íntima transformaram o indivíduo resultante dessa era em alguém ávido por se mostrar e, em contrapartida, conhecer o outro que também se mostra em sua pretensa vida real. O leitor do século XXI é bastante diferenciado dos leitores de outrora: ele é alguém que se projeta nos espaços públicos virtuais e, como consequência disso, espera um autor que também se apresente nessas novas mídias. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Paula Sibilia diz que, vivenciado essa contemporaneidade, as ‘personalidades’ do século XXI também são convocadas a se deixarem ler nesses espaços. Essa publicização do que antes era aceito como privado exige que tais personas criem para si – e para outros – estratégias de visibilidade midiática. Essa dita sociabilidade líquida faz surgir “um tipo de eu mais epidérmico e flexível, que se exibe na superfície da pele e das telas” (2008, p.23). Assim, o leitor não quer mais criar uma imagem meramente verossímil do seu autor, ele quer conhecê-lo, devassá-lo, compreendê-lo e, ainda mais incisivamente, o leitor deseja que o seu autor lhe apresente a sua obra, personificando-a. Bruno Lima Oliveira, em seu artigo O retorno do autor na Literatura Contemporânea expõe essa problemática de forma contundente ao dizer que as facilidades tecnológicas de nosso tempo parecem indicar um fenômeno curioso que repercute na literatura. A possibilidade de apreensão do real de forma imediata refletiria no leitor um vilipêndio pela ficção, como se esta o ‘passasse para trás’ e o subtraísse da realidade, agora prontamente acessível (2009, p.2). O autor que se subtrai a essa nova realidade, fica aquém das flutuações que o mundo atual impõe. A ele não cabe mais o papel de ser um corpo que escreve e, depois desse processo, lega sua obra para ávidos leitores. Revivificado, o autor aglutina para si novas tarefas: a ele compete não apenas criar, mas tornar essa criação o mais próxima possível do real; e o que dará um novo tom a essa realidade será a sua própria projeção na mídia: blogs, entrevistas, palestras e conferências. Dessa forma, ali, frente àquele ser supostamente onipotente, o leitor almejará corrigir todas as lacunas que supunha encontrar na obra. Esse talvez seja o momento crítico desse novo lugar em que colocaram o autor: nesse pedestal, sua voz detém um peso muito maior do que supostamente deveria; então, cabe a ele construir um ethos, um modo de operação de discursos, a fim de que a sua fala não destrua a possibilidade plural de significações que o texto já conquistou. Para ser bem sucedido nos circuitos literários, o autor contemporâneo deve figurar na mídia e no mercado editorial, e para isso, ele tem que se inventar. Proliferar a máxima que defende o retorno do autor, sem, contudo, encontrar dispositivos que possam auxiliar na compreensão de quem ele é, se mostra um tanto 83 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. problemático. Quando se diz que um autor retorna, vários são os questionamentos que povoam os estudos do texto, pois urge a necessidade de saber quem é esse autor que volta. Além disso, se ele volta reinventado, deve-se tomar muito cuidado com a forma de interpretar seus discursos polifônicos. Logo, harmonizar a imagem de autor exterior à narrativa e sua ficção dentro dos limites (não) impostos pela cultura contemporânea é o maior desafio para o autor de século XXI. Ao estudar o papel do intelectual e do escritor no mundo contemporâneo, Edward Said (2007), empreende um estudo acerca do status do Humanismo e da Crítica nessa sociedade vigente. De fato, o autor leva em consideração as mudanças na própria base desse conceito, e propõe um estudo não do humanismo como um todo, mas sim como uma prática crítica dos intelectuais num mundo beligerante. Essa proposta se faz interessante no mundo contemporâneo, pois abarca o pensamento humanista como uma prática útil para os intelectuais “que desejam saber o que estão fazendo, com o que estão comprometidos como eruditos, e que também desejam conectar esses princípios ao mundo em que vivem como cidadãos” (SAID, 2007, p.16). Said 84 (2007) demonstra grande preocupação com o humanismo na vida contemporânea e prima por demonstrá-lo como uma atividade crítica, uma postura frente a um mundo que clama por uma práxis profícua na construção de cidadania, desconstruindo assim o imaginário do termo enquanto um legado patrimonial; nessa perspectiva, os fatos históricos contemporâneos devem servir de reflexão para a base desse humanismo novo. De fato, houve uma grande alteração no mundo desde a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Esses eventos funestos alteraram drasticamente a sociedade e sua forma de encarar os eventos circundantes. Coadunando com essas mudanças, a globalização e a disseminação rápida de informações – através de meios de comunicação de massa e ligados à rede digital – colaboraram para transformar a sociedade de um modo ainda mais incisivo, onde se mistura o que pertence à esfera pública e ao domínio privado. A internet limita os poderes da censura e proibição instituídos pelos governos e dá mais autonomia aos cidadãos contemporâneos. Mesmo sendo controversa essa realidade, há que se encarar esse mundo novo de frente, ao invés de meramente perpetuar antigos valores e concepções. Na tentativa de abrir o cânone literário para novas abordagens culturais que ultrapassassem os limites dos clássicos ocidentais, Said (2007) vem mostrar como essa abordagem reducionista se torna vazia e quebradiça num contexto contemporâneo Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. permeado pela pluriculturalidade. Segundo ele, toda cultura está ainda passando por um processo de autodefinição, por isso, ele incorpora um humanismo avesso ao cânone – quando esse termo refere-se ao que execra tudo o que esteja fora do tradicionalismo exclusivista de uma cultura elitista e se esquece de outras culturas e tradições. Humanismo não é apenas uma consolidação daquilo já foi sentido e experimentado, mas antes uma crítica ao que vem sendo desenvolvido a fim de evitar uma massificação arbitrária. Essa nostalgia dos tempos passados equivaleria a um pensamento anacrônico; humanismo é – nesse mundo democrático – crítica, revelação, descoberta: e não retraimento ou exclusão. Na esteira desse pensamento, ele aponta direcionamentos mais epistemológicos, como o elo histórico entre humanismo e crítica, em que se pode comprovar como toda ação pautada em grandes feitos humanísticos teve um componente de aceitação do novo. O tradicional, canônico não deve ser oposto às inovações contemporâneas. No século XXI, o tradicional e o novo sempre se encontram – nem tudo o que já foi deve ser descartado, e nem tudo o que virá pode ser dispensado: é aqui que o cânone se abre, não para perder a sua unicidade, mas compreendendo que sem uma concepção histórica, social e econômica, é um trabalho de Sísifo manter-se voltado apenas para o passado, sem abraçar as novas concepções literárias. Assim, é necessário que haja certa reflexão e ação, extinguindo o pessimismo que tende a se instalar num mundo povoado de insatisfações dos radicais, que relutam em aceitar o novo, e dos reacionários, que se impacientam por soluções imediatas para a aceitação de suas verdades. Tomando por base esses pressupostos humanistas encabeçados por Said (2007), reaparece o questionamento do papel dos escritores e intelectuais nessa nova conjuntura. Em suas palavras: A importância de escritores e intelectuais é eminentemente, até esmagadoramente clara, em parte porque muitas pessoas ainda sentem a necessidade de ver o escritor-intelectual como alguém que deve ser escutado como guia no presente confuso e, ao mesmo tempo, também como líder de uma facção, tendência ou grupo disputando mais poder e influência (SAID, 2007, p.112). O conceito mais primário de escritor seria o de alguém a quem se atribui certa aura de criatividade e uma capacidade quase sacrossanta de ser original. Mas, essa perspectiva tem 85 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. mudado bastante nos últimos anos e o escritor vem assumindo gradativamente papéis que antes eram reservados apenas aos intelectuais e críticos. Entre essas novas atribuições, cabe ao escritor contemporâneo papéis que o inserem na sociedade, como ser o porta voz da verdade para o poder, testemunhar a perseguição e sofrimento de um grupo e apresentar-se como figura dissidente nos conflitos com as autoridades. Logo, o escritor contemporâneo não pode permanecer aquém da problemática social que está representando: ele será a voz que denuncia e os olhos que se abrem para o povo. Nessa medida, o escritor-intelectual do século XXI é também o responsável por impedir o desaparecimento do passado, apresentando sempre narrativas alternativas que se desvinculem da memória oficial preocupada em estabelecer uma identidade nacional missionária. Nesse sentido, essa nova literatura deve fornecer perspectivas históricas diferenciadas a fim de ajudar na construção de um panorama histórico mais verossímil e acessível. Ao cumprir esse papel, ele estará também colaborando para que a Literatura firmese como campo de coexistência ou definindo algumas esferas que dificilmente serão conciliáveis. O lugar desse escritor contemporâneo ainda está em construção, é provisório, mas passa pelo: 86 domínio de uma arte exigente, resistente, intransigente, na qual, lamentavelmente, ninguém pode se refugiar, nem buscar soluções. Mas apenas nesse exílio precário é possível compreender de fato a dificuldade do que não pode ser compreendido, e continuar a seguir em frente mesmo assim (SAID, 2007, p.132). 1 MILTON HATOUM E AUTORIA NA CONTEMPORANEIDADE Embora essa nova geração fervilhe de escritores nascidos no bojo da tecnologia da rede, alguns ainda há que, sem se afastar delas, florescem da palavra escrita com suor e sangue, mas não se excluem das novas mídias para propalar o fruto de seu trabalho. Como exemplo desse autor do início do século XXI que se faz presente nos circuitos mercadológicos, sem, contudo, se deixar corromper pelos vendilhões de uma Literatura semi-letrada, está o escritor amazonense Milton Hatoum. Preocupado com uma escrita de mais humanista, nos termo de Said, ele é o escritor de quatro narrativas de ficção premiados e consagrados pela crítica, – Relato de um Certo Oriente (1989), Dois Irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Eldorado (2008), além de um livro de contos – A Cidade Ilhada (2009), e outro de crônicas – Um solitário à espreita (2013), além de outras crônicas, poesias e ensaios. Sua obra já foi traduzida em doze línguas e publicada em catorze países. Além disso, ele é atualmente colunista de um jornal. Reconhecido como um dos grandes nomes que despontaram no Brasil durante essa transição de séculos, Hatoum é leitor de romances canônicos e, por isso, um autor que se inspira neles; suas narrativas se mostram sob forte influência de escritores como Flaubert, Guimarães Rosa e Machado de Assis. Herdeiro do romance moderno, ele se preocupa antes com a forma, com a estética enquanto força motriz na produção do seu texto, sem, entretanto desconhecer o lugar social da literatura enquanto modo indireto de conhecer o mundo, si próprio e o Outro. Apesar dessa aproximação com a esfera canônica da criação literária, ele não se retrai na solidão do circuito acadêmico, deixando-se ser entrevisto nos espaços de diálogo entre os pares e com o público. Milton Hatoum é um escritor bastante diferenciado dessa nova geração de escritores atuais – os quais, em sua maioria, se formaram nos âmbitos virtuais, em blogs e redes sociais. Ele desempenha um papel mais tradicional e clássico do escritor, sendo o defensor de uma Literatura que se escreve com a paciência do rascunho, escrita e reescrita, tendo ficado mais de dez anos sem publicar qualquer romance entre seu primeiro romance e o seguinte. Ainda assim, Milton Hatoum não se exime da função autoral que a contemporaneidade demanda, pois ele é uma figura presente nos espaços de visibilidade pública, sendo um escritor que consegue viver do ofício de escrever. Filho de imigrantes libaneses, Hatoum nasceu na cidade de Manaus e ali ambienta no Norte do país as suas narrativas, além de alguns contos. Refutando veementemente o título de ‘regionalista’ que muitos insistem em lhe atribuir, sua escrita trata de assuntos universais, que dialogam com o ser humano em sua essência. Uma figura facilmente reconhecível nos ambientes acadêmicos, o exprofessor de Literatura não se esquiva de dar o seu quinhão de contribuição para os interessados em compreender os processos de sua criação literária. Para isso, detém um sítio eletrônico com informações acerca de si, sua publicação e publicações sobre 87 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. a sua obra, o qual dispõe, inclusive, de fotos e informações de contatos das editoras que a publicam no Brasil e em terras estrangeiras. Além disso, ele participa de congressos, feiras e conferências literárias para debater a literatura, sua obra ou mesmo o seu processo de criação. Vídeos e entrevistas do autor são também facilmente encontrados disponíveis na internet, denotando que a figura autoral de Milton Hatoum não se projeta como um mistério para qualquer interessado em conhecê-la com mais acuidade. O autor contemporâneo precisa se inventar para transitar pelos espaços midiáticos, pois a subjetividade inerente ao sujeito faz com que ele desempenhe funções sociais específicas a depender do contexto. “Os escritores mentem muito”, diria o próprio Milton Hatoum, afirmando não acreditar nos autores que propalam a ideia de que simplesmente escrevem, sem um roteiro específico prévio. Todavia, essa sua assertiva traz implicações muito complexas, afinal, quando um escritor ‘diz’, a forma que aquele dito deve ser interpretado é bastante relativa. “À qual verdade discursiva, portanto, devemos associar o autor contemporâneo? À de seus romances? 88 À de sua fala em um periódico acadêmico? À de um bate-papo informal em um programa de variedades?” (LIMA, 2009, p.4). Quiçá, todas essas instâncias devam ser levadas em consideração, mas nenhuma delas creditada como verdade absoluta. Milton Hatoum é um escritor que transita pela realidade para falar da sua própria ficção. Ou ainda, ele é um escritor que emerge de um mundo ficcional criado pelas suas próprias verdades. Seja como for, ele desempenha a sua função de escritor – suas palavras devem ser sempre analisadas com certa cautela – ou mesmo descuidadas, a depender do leitor. A presença extradiegética do autor é, para o leitor, uma grande inovação da contemporaneidade no sentido de produção de significações textuais. O autor de hoje produz vários paratextos acerca da sua própria obra, como palestras, entrevistas, notas explicativas etc. Em um mundo onde as mudanças ocorrem com uma rapidez tamanha que muitas vezes são sequer percebidas para ceder espaço a outras novidades, tal produção se torna bastante significativa, já que pesquisas e análises sobre a obra podem ser também desenvolvidas a partir dessa pluralidade de outros gêneros textuais produzidos pelo próprio escritor fora das páginas da sua Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. escrita formal. Não que isso seja condição sine qua non para a compreensão da obra, pois, como já mencionado, sabe-se que, depois de escrito, um texto não pertence mais a quem o escreveu, sendo o próprio autor, ao comentá-la, apenas mais um leitor dela. Porém, para o leitor cauteloso e interessado em desvendar as significações múltiplas que a linguagem permite, ouvir a percepção de quem escreveu o texto pode ser um exercício bastante produtivo. Para Hatoum, literatura se faz a partir de uma tradição de escrita e da experiência do próprio autor, tudo isso permeado, em primeira instância, pela linguagem. Sua escrita paciente ensina que a pressa não é uma boa amiga do romancista: ele deve costurar suas ideias com tempo, aliando-se à arte de cortar os excessos e reescrever em busca de uma estética saudável. Ampla produção e publicação não são, necessariamente, para ele, a marca de um bom escritor: sem o afã de produzir demasiadamente, ele se especializa em escrever com esmero. A fortuna crítica de Milton Hatoum é, de certa forma, inacessível em sua amplitude, pois a cada dia novos artigos, resenhas, dissertações e teses estão sendo publicadas no âmbito acadêmico. Notícias, tweets, entrevistas, vídeos e páginas de grupo nas redes sociais são desenvolvidos diuturnamente no âmbito dos meios de comunicação. Sua produção literária ainda está em expansão, já que ele está escrevendo um novo romance que deverá ser brevemente publicado, o qual gerará uma nova onda de textos acerca de sua história e da relação que o autor mantém com ela, entre outras fabulações. Além disso, suas narrativas Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos e Órfãos do Eldorado já obtiveram direitos de imagem e estão em processo de adaptação para a televisão e o cinema, advento que o autor considera bastante favorável. Dessa forma, ele presenteia o leitor conectado aos novos moldes virtuais que a literatura abrange, alegando ainda confiar no profissionalismo daqueles que estão a cargo desse trabalho – pacificando, com sua aprovação, os temores do leitor mais arraigado aos moldes tradicionais, de que tal transfiguração de gênero possa prejudicar a qualidade da sua obra. Assim, Milton Hatoum se apresenta como um autor acessível para o seu leitor, seja ele convencional ou não. Preocupado em ser respeitado em todos os círculos nos quais transita, ele já obtém notoriedade e é considerado um dos maiores nomes da 89 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Literatura nos dias de hoje, sem para isso, precisar se corromper aos ditames de um capitalismo devorador ou da volatilização dos meios virtuais de comunicação. Mantendo-se firme em seus preceitos estético-literários, ele se atualiza e se conecta. Ele é, também por isso, benquisto pelo público e pelos pares. Milton Hatoum é uma figura exponencial nesse fazer literário com qualidade estética digna do cânone, mas com projeção mundial e espaço cativo no mercado editorial, pois sua atuação nos campos de visibilidade dá ao público a sensação de estar diante de um ícone literário mais acessível, uma vez que ele prefigura a contemporaneidade conforme postulada por Agamben (2009). Assim como o autor, seus narradores passam pela problemática de enfrentar a transição dos séculos. Nos romances Cinzas do Norte (2005) , Dois Irmãos (2000) e Órfãos do Eldorado (2008) todos os narradores enfrentam a difícil travessia temporal para analisarem suas vidas. 2 CONSIDERAÇÕES 90 Questionar a qualidade literária que circula nos tempos hodiernos é uma tolice infundada. A facilidade de divulgação que os meios não-impressos possibilitam para a produção em massa são uma via de mão dupla, pois, ao mesmo tempo, auxiliam para que a boa Literatura produzida possa ser disseminada. A internet e os meios digitais favorecem a convivência do leitor com o autor, criando espaços de diálogo e interação bastante favoráveis para a revitalização de um pensar literário mais democrático. Nesse processo dialógico, lucram o leitor, pela riqueza de experiências que absorve, e o próprio escritor, pela possibilidade de fazer sua obra conhecida, lida e comentada – obtendo ainda a aprovação e a consagração do público no seu próprio recorte diacrônico. Milton Hatoum é uma figura exponencial nesse fazer literário com qualidade estética digna do cânone, mas com projeção mundial e espaço cativo no mercado editorial, pois sua atuação nos campos visibilidade dá ao público a sensação de estar diante de um ícone literário mais acessível. Referências Bibliográficas Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. BARTHES, Roland. 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UFMG, 2008 LIMA, Bruno. O retorno do autor na Literatura Brasileira contemporânea. In: Simpósio Nacional de Letras e Linguística, 1, 2009, Uberlândia. Anais. Uberlância: EDUFU, 2009. Disponível em :< http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/arquivos/gt_lt16_artigo_5.pdf> Acesso em 09/02/2012. MORICONI, Ítalo. Circuitos contemporâneos do literário (indicações de pesquisa) In: Gragoatá, Niterói, n. 20, 1º sem. 2006. SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Cia das Letras, 2007. SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. 91 A Sociologia e a Arte: Repensando o nacionalismo e a diversidade cultual no ensino médio. Oyama dos Santos Lopes UNEB (Universidade Estadual da Bahia) EMITEC (Ensino Médio com Intermediação Tecnológica). [email protected] RESUMO Neste artigo encontra-se um relato de como aconteceu na prática à aula interdisciplinar intitulada: A cultura brasileira nos festejos juninos e na copa do mundo de 2014, as atividades foram desenvolvidas pelas disciplinas Sociologia e Arte, na primeira série do Ensino Médio com Intermediação Tecnológica – EMITec. O estudo de como esses eventos interfere para a mudança nas relações sociais do brasileiro e na formação cultural deste povo foi motivo de intensa interatividade durante as aulas, com isso as professoras das duas disciplinas se apropriaram de recursos pedagógicos diversos como vídeos, imagens, reportagens jornalísticas, textos comerciais e músicas para desenvolver a aprendizagem dos alunos de uma forma lúdica. Na aula foram desenvolvidos conceitos como nacionalismo e diversidade cultural, temas relevantes no ensino da Sociologia. Reconhecendo a importância de partilhar esta experiência com todos aqueles que valorizam o processo ensino aprendizagem, resolvemos descrever todas as etapas que fizeram parte das aulas de Sociologia e Arte. As aulas do EMITEC são ministradas a distância pelo sistema IPTV, com a utilização de recursos tecnológicos como satélites, aparelhos de TV, computadores, Webcam e internet. Durante as aulas acontecem diversos momentos de interatividade entre os alunos e entre professores e alunos. Os professores mediadores foram imprescindíveis para o sucesso das atividades e das aulas. As professoras bem como os mediadores (professores de base) foram norteando o debate e estimulando o educando a interagir com professores e colegas, através de levantamentos de ideias dos alunos conectados através do chat. As metodologias que se mostram eficientes no ensino presencial muitas vezes são também as mais adequadas ao ensino a distância. O que muda, basicamente, não é a metodologia de ensino, mas a forma de comunicação. Isso implica afirmar que o simples uso de tecnologias avançadas não garante um ensino de qualidade, segundo as mais modernas concepções de ensino. As estratégias de ensino devem incorporar as novas formas de comunicação e, também, incorporar o potencial de informação da Internet. Já que o mundo vive uma nova era, e as evoluções tecnológicas trouxeram também mudanças na vida cotidiana. A nova metodologia experimentada por nós professores do ensino médio, com características de educação a distância ao mesmo tempo em que percebe-se também características do ensino presencial tem nos estimulado a criar e produzir sempre aulas que envolvam o aluno tanto em aspectos que visem o profissional como o emocional. Esta é uma modalidade de ensino que tem estimulado o aperfeiçoamento do professor pesquisador. As estratégias, as metodologias utilizadas e as formas de avaliações proposta pelas disciplinas serão aqui socializadas de forma detalhada. Palavra Chave: Sociologia, arte, educação a distancia. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Introdução: O presente artigo é o resultado de uma atividade didática desenvolvida pelas professoras de Sociologia Oyama dos Santos Lopes e de Arte Elci Paim do Programa Ensino Médio com Intermediação Tecnológica (EMITec) à aula interdisciplinar intitulada: A cultura brasileira nos festejos juninos e na copa do mundo de 2014. O programa EMITec foi lançado em 2011, como um dos projetos estruturantes da Secretária de Educação do Estado da Bahia e surgiu como uma alternativa pedagógica que visa atender, em sua maior parte, educandos das localidades mais longínquas do Estado da Bahia e que sofre com a carência de docentes habilitados em diferentes componentes curriculares como exemplo das disciplinas de Física, Química, Sociologia e Filosofia, diante desses desafios, a Educação com a Intermediação Tecnológica pode ser a solução eficaz para suprir os percalços que inviabilizam uma educação de qualidade nessas localidades além de assegurar a jovens e adultos que moram em localidades distantes da zona rural o acesso, a permanência e a conclusão do ensino médio, o EMITec tem como objetivos possibilitar dar continuidade aos estudos em outro nível de ensino e atenuar as desigualdades socioculturais no Estado. As aulas ocorrem ao vivo, através de uma solução tecnológica desenvolvida especialmente para o programa, que inclui possibilidades de videoconferência e acesso simultâneo à comunicação interativa entre os alunos e professores, via satélite VSAT assim, a estratégia adotada pelo EMITec garante a democratização do acesso e da conclusão dos estudos do Ensino Médio a milhares de jovens que vivem em localidades carentes do Estado da Bahia, além da perspectiva de transpor a barreira da distância o programa permite também inclusão digital a todos esses estudantes. As aulas do EMITec são ministradas a distância pelo sistema IPTV, com a utilização de recursos tecnológicos como satélites, aparelhos de TV, computadores, Webcam e internet. Durante as aulas acontecem diversos momentos de interatividade entre os alunos e entre professores e alunos. Do ponto de vista das estratégias didáticas o EMITec vem durante todos esses anos utilizando recursos que já são aconselhados por diversos autores, como exemplo de Santos (2008) que defende a utilização de inúmeras possibilidades do uso 93 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. positivo de recursos tecnológicos na educação sempre contextualizando o que acontece no mundo com os acontecimentos regionais e locais. Atualmente as TICs (Tecnologias da Informação e da Comunicação) veem causando uma ultra mega rápida expansão de novas formas de comunicação, com isso o computador e o celular com acesso a internet são os principais elementos para toda essa evolução. A nova sociedade, decorrente de toda esta revolução tecnológica e seus desdobramentos na produção e na área da informação, apresenta características possíveis de assegurar à educação e, consequentemente, ao educando uma autonomia até aí nunca alcançada (BRASIL, 1998). A modalidade de Educação a Distância (EAD) “[...] se reveste de imensa potencialidade não como solução para todos os problemas, mas cumprindo papel relevante como modalidade de educação do futuro.” (OLIVEIRA, 2008, p. 35). Neste sentido, o Ensino Médio com Intermediação Tecnológica (EMITEec) não encontra barreiras de espaço, e executa o seu papel desafiador não de educação para o futuro, mas como uma educação para os dias de hoje. 94 Moran (2011) afirma que o modelo de Educação a Distância, no qual professores e alunos estão separados por espaço e tempo é favorável para o processo de ensino aprendizagem. O autor ainda realça que na Educação a Distância embora os alunos e professores estejam separados física, espacial e temporalmente, a aprendizagem sempre acontece porque viabiliza através dos recursos tecnológicos, particularmente os relacionados a comunicação, o encontro docentes e discente e assim o saber pode ser buscado, construídos e sedimentado. A Educação a Distância (EAD) é a modalidade de ensino que permite que o aprendiz não esteja fisicamente presente em uma ambiente formal de ensino e aprendizagem, tendo um tutor para realizar a mediação dos trabalhos pedagógicos (SANTOS,2011). No entanto, os estudantes do Programa Ensino Médio com Intermediação Tecnológica (EMITec) utilizam esse ambiente formal para participar das aulas em tempo real, apesar do professor vídeo conferencista ocupar outro espaço físico, os estúdios de transmissão das teleaulas, os estudantes do referido programa frequentam a unidade escolar em horários diários que são comuns ao currículo da rede estadual de ensino da Bahia, além de possuírem um professor mediador que realiza a intermediação das atividades que são desenvolvidas. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Os processos de ensino aprendizagem devem ser dinâmicos e multi-direcionais gerando a necessidade de criação de mecanismos diferentes dos tradicionalmente utilizados no ensino presencial. Estes usos de estratégias tradicionais, por vezes, provocam uma série de problemas de aprendizagem muito graves, na medida em que os alunos se desmotivam ao serem obrigados a frequentarem aulas não motivadoras, diante disso, o professor necessita criar estratégias que estimulem os alunos, elaborando aulas mais dinâmicas e interessantes para a educação básica, no caso do EMITEC, ensino médio, em que quase sempre é composto por uma clientela composta por adolescentes que já fazem o uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) em outros campos da vida social. Os profissionais que atuam nesse programa todos os dias encontram o desafio de produzirem aulas dinâmicas e instigantes para serem aplicadas em sala com o auxilio dos recursos tecnológicos e é uma dessas experiências exitosas que irei aqui detalhar. A aula aqui citada foi desenvolvida por professoras videoconferencistas de Sociologia e Arte. Assim, este artigo tem como objetivo geral descrever o desenvolvimento dessa teleaula, envolvendo saberes de um outro componente curricular que forma o currículo do ensino médio. Este momento aconteceu durante o período de 3 aulas seguidas em tempo real e algumas das atividades propostas foram concluídas em outros momentos sem a presença do professor especialista. O estudo de como as festas juninas e a Copa do Mundo interfere para a mudança nas relações sociais do brasileiro e na formação cultural deste povo, foi motivo de intensa interatividade durante a teleaula com essa temática, por esse motivo essa foi a aula escolhida para ser socializada esse artigo. Utilizou-se a metodologia de relato de experiência e pesquisa bibliográfica, com aporte teórico de Linhares (2001), Gidens 2005 entre outros para descrever as estratégias utilizadas durante a teleaula de forma pormenorizadas, ao tempo que fundamenta as estratégias apresentadas, relatando um pouco sobre o papel da Sociologia como disciplina na matriz curricular do ensino médio. Descrição e Fundamentação da Estratégia A Sociologia esteve ausente dos currículos do Ensino Médio Brasileiro durante trinta anos e o seu retorno foi gradativo a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/ 1996(BRASIL, 1996) e posteriormente tornou-se obrigatória a inclusão da Sociologia 95 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. como disciplina nas três séries do Ensino Médio diante disso os professores encaram o desafio da reapresentação da Sociologia. Assim sendo, objetiva-se rapidamente apresentar uma proposta curricular da disciplina de Sociologia, desenvolvida no Programa Ensino Média com Intermediação Tecnológica, com oferta do curso de ensino médio regular, utilizando a metodologia de mediação tecnológica para localidades da zona rural de difícil acesso e que não possuem unidades escolares com oferta para esse nível de educação. Para um melhor entendimento do currículo de Sociologia específico para o ensino médio, faz-se necessário compreender o que é própria Sociologia. Diante da diversidade de formulações e definições para tal disciplina, muitas vezes ela não é um conjunto de conhecimentos prontos, um sistema acabado, fechado em si mesmo. É antes de tudo um modo de se colocar diante da realidade, procurando refletir sobre os acontecimentos a partir de certas posições teóricas. Essa reflexão permite, para além da pura aparência dos fenômenos sociais, é ir além e buscar as raízes e sua contextualização em um horizonte amplo que abrange valores sociais, históricos, culturais, políticos e econômicos. 96 Nessa perspectiva entende-se por currículos não como conteúdos prontos para serem repassados para estudantes, mas como construção e seleção de conhecimentos e práticas sempre expostos a novas dinâmicas, sociais, políticas, culturais e intelectuais dos contextos em quem estão inseridos. Em concordância com as teorizações mais recentes sobre currículo admite-se, ainda, a perspectiva que trata o currículo como instrumento de poder, de modo que, o ato de selecionar um tipo de conhecimento, conferindo-lhe privilégio em relação a outros, representa um modo de exercer o poder. As teleaulas desenvolvidas com intermediação tecnológicas são planejadas e organizadas visualizando as interações necessárias entre os envolvidos no processo de ensino e de aprendizagem. Durante o planejamento e a elaboração destas aulas são utilizados diversos recursos pedagógicos como músicas, charges, imagens, fotografias, vídeos relacionados a temática trabalhada, tudo isso com o objetivo de proporcionar o enriquecimento do ensino da Sociologia, contextualizar e promover a interatividade, tão necessária para a metodologia adotadas pelo Programa EMITec. Nas aulas com intermediação tecnológicas a interatividade é utilizada para estimular o pensar dos estudantes provocando, assim, a sua participação e interação com colegas, mediadores e professores videoconferenciastas e assistentes. Esse momento torna-se um Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. espaço reservado para o posicionamento dos estudantes, sendo um grande diferencial para as aulas de Sociologia a distância. O uso de vídeos, imagens, reportagens jornalísticas, textos comerciais e músicas tem servido de estímulo para a participação efetiva dos estudantes do EMITec. Todas as salas virtuais fazem questão de expressar a sua opinião, bem como contribuir com as suas participações. Segundo Silva (2005), esta interatividade pode ser entendida como a possibilidade do receptor transformar as mensagens e, não simplesmente recebê-las passivamente. Trata-se de ter aí uma coautoria da mensagem tanto do emissor como do receptor, É uma construção em conjunto. Desta forma, a interatividade consegue dinamizar a educação a distância tornado-a prazerosa, instigante e possível de desenvolver uma aprendizagem significativa, com qualidade e de forma responsável facilitando os deslocamentos tão necessários ao conhecimento. A Sociologia é por natureza interdisciplinar, já que necessita compreender diversos aspectos da vida social do homem e nesse sentido a Arte e a Sociologia estão sempre presentes nas ações da população e na vida dos educandos, entre outros saberes disciplinares. Foi com o intuito de descrever esta experiência e a relação estreita com outra área do conhecimento que será aqui relatada a estratégia da aula de Sociologia com a parceria da disciplina de Arte para estimular e a construção de conhecimento dos estudantes. Estratégia: Práticas Interdisciplinares no Ensino da Sociologia e Artes. Esta aula foi desenvolvida durante o período em que acontecia a Copa do Mundo no Brasil em 2014, com estudantes do 1º ano do Ensino Médio. O tema da aula foi: A Cultura Brasileira nos festejos juninos e na Copa do Mundo, tendo como objetivo geral, analisar a importância dos festejos juninos e da copa do mundo na formação cultural do povo brasileiro e como objetivos estratégicos: proporcionar uma reflexão sobre o momento em que a paixão do brasileiro pelo futebol faz aflorar o sentimento nacionalista da população brasileira; repensar sobre a diversidade cultural do Brasil e do Nordeste. Com esse escopo foram pensadas as aulas interdisciplinares de Sociologia e de Artes. Para a efetivação da proposta, fez-se necessário a apropriação de recursos pedagógicos diversos como vídeos, textos comerciais, imagens, reportagens jornalísticas 97 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. relacionados a temática e que possibilitasse a aprendizagem dos estudantes de uma forma lúdica. Para fins didáticos dividiu-se esta aula em seis etapas. Etapa 1 – Momento de Reflexão e de Interatividade A partir do tema proposto os estudantes foram levados a refletirem sobre os seguintes questionamentos: Culturalmente o que muda durante e após a Copa do Mundo no Brasil e os festejos juninos? Por que não nos preocupamos em ser patriotas fora do mundial? De que forma a copa do mundo influencia no cotidiano do povo Brasileiro? Esteticamente como podemos perceber essas influências? 98 Durante o momento de interatividade as professoras videoconferencistas foram analisando as respostas dos estudantes e fazendo as intervenções necessárias, contribuindo com os conhecimentos científicos e fazendo a ponte com o conhecimento do senso comum, proporcionando uma melhor compreensão da temática trabalhada. ETAPA 2- Atividade em Equipe Após a etapa de reflexão e interatividade, os estudantes foram orientados a se organizarem em equipes para a realização de uma pesquisa com base no seguinte procedimento: Dividir a sala em duas equipes e solicitar que cada equipe pesquise letras de músicas de forrós. 1ª Equipe: pesquisar letras de “forrós” tradicionais. Ex: Luís Gonzaga, Trio Nordestino, Dominguinhos, Flávio José, etc. 2ª Equipe: pesquisar letras de “forrós” da atualidade Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. ETAPA 3- Escolha e Levantamento de Questões Após a realização da pesquisa foi solicitada que as equipes identificassem em cada letra das músicas escolhidas aspectos que mostrassem as seguintes informações: Homenagem a cultura Nordestina; Problemas sociais encontrados nas músicas; Tratamento dado as mulheres. ETAPA 4 – Análise das Músicas Nesta etapa foram propostas brincadeiras relacionadas aos festejos juninos e exibidas músicas juninas, comercias da copa além de reportagens jornalísticas em que mostravam um pouco da cultura nordestina. Ao final da aula as professoras videoconferencistas provocaram o alunado levantando alguns questionamentos: Por que a música junina deixa as pessoas tão alegres? O que melhor caracteriza os festejos juninos e as comemorações da copa na sua comunidade? 99 A copa do mundo no Brasil está interferindo nas comemorações juninas? Por que? Ao final da análise e respostas dos estudantes foi proposta uma dinâmica denominada de “bilhetinho da sorte”, brincadeira muito comum durante os festejos juninos no Nordeste, em que os estudantes escolhem um número e as professoras videoconferencistas clicavam no slide e surgia e mensagem. ETAPA 5- Exibição do Vídeo Oficial da Copa do Mundo no Brasil- 2014 Após realizar a análise proposta na etapa 4, foi recomendado aos alunos que assistissem ao vídeo oficial da “ Copa do Mundo no Brasil 2014”. Em seguida, orientou-se que os estudantes respondessem aos seguintes questionamentos, com a finalidade de serem postados pelos professores mediadores no chat: Qual mensagem o filme nos transmite? Quais elementos da cultura brasileira foram identificados no filme? Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Você consegue se identificar no vídeo? Em qual momento? ETAPA 6- Construção de SLOGAN Após o vídeo e respostas aos questionamentos solicitou-se que a classe fosse dividida em 5 equipes. Cada equipe produziria um slogam ou frase de efeito que corresponde a frases de fácil memorização usada em contexto político, religioso ou comercial como uma expressão repetitiva de uma ideia ou propósito. Os slogans como o tema “Copa do Mundo ou Seleção Brasileira” deveriam ser afixados no mural da escola e também serem divulgados pelos professores mediadores no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). ETAPA 6- Avaliação da Atividade: Como proposta avaliativa formal da construção e apropriação de conhecimentos nas disciplinas de Arte e Sociologia, as turmas em equipes, sob a orientação do professor mediador deveriam utilizar a atividade desenvolvidas na etapa 2 e de posse das letras das músicas cada equipe deveria elaborar uma produção escrita, e postar nos blogs das turmas 100 para socializar com as outras comunidades. Para a produção escrita foi sugerida a elaboração de: acróstico, paródia, cordel ou poema, contendo elementos encontrados na pesquisa. Considerações Finais As metodologias que se mostram presentes no ensino presencial nem sempre são as mais adequadas para o ensino a distância. As estratégias de ensino de ensino devem incorporar as novas formas de comunicação e, também, incorporar o potencial de informações da Internet. Utiliza-se da intermediação tecnológicas para desenvolver aulas à distância em tempo real requer uma nova postura dos professores no processo ensino aprendizagem. Isso implica afirmar que o simples uso de tecnologias avançadas não garante um ensino de qualidade, segundo as mais modernas concepções de ensino. Silva (2001, p.37) se expressa a respeito da educação contemporânea e as novas tecnologias dizendo que: Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. “[...] o impacto das transformações de nosso tempo obriga a sociedade, e mais especificamente os educadores, a repensarem a escola, a repensarem a sua temporalidade [...]”. E ainda acrescenta que: “Vale dizer que precisamos estar atentos para a urgência do tempo e reconhecer que a expansão das vias do saber não obedece mais a lógica vetorial. É necessário pensarmos a educação como um caleidoscópio, e perceber as múltiplas possibilidades que ela pode nos apresentar, os diversos olhares que ela impõe, sem, contudo, submetê-la à tirania do efêmero” (SILVA, 2001, p.37). A nova metodologia experimentada pelos professores do ensino médio, com características de educação a distância ao mesmo tempo em que percebe-se também características do ensino presencial tem motivado estes profissionais a criarem e produzirem sempre aulas que envolvem e mobilizem os alunos, além de motivar o professor para a pesquisa. Por tudo que consideramos anteriormente, podemos dizer que a educação a distância é uma modalidade de ensinar e aprender altamente democrática, pois iguala as oportunidades de acesso ao saber, ao conhecer e fomenta a educação permanente. Portas se abrem para muitos, cria-se a possibilidade do aprendizado sem fronteiras e em diversos níveis para um grande número de interessados, independente do espaço e tempo. REFERÊNCIAIS BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1998. ______. Lei nº9349/96 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Dispõe sobre as diretrizes e bases da educação nacional. 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LEITURA, MÍDIA E LITERATURA O exemplo do blog como um dispositivo para o ensino de literatura Silvane Santos Souza – mestrando do Pós-Crítica/UNEB – [email protected] Eliane Bispo de Almeida Souza – mestranda do Pós-Crítica/UNEB [email protected] RESUMO Este artigo discute sobre a importância do uso das TIC nas aulas de Literatura, mais especificamente as midiáticas, trazendo a concepção de blog, como um dispositivo capaz de despertar o prazer dos alunos em ler e analisar textos literários, bem como estabelecer uma relação de parceria e construção em rede, a partir da cooperação e colaboração. Procurando despertar o interesse dos discentes pelas obras literárias, enfatiza a importância do blog literário que possibilita o prazer em ler e socializar as ideias, uma vez que a leitura linear não corresponde mais a única forma de conhecimento sobre determinadas obras e contextos. Assim, traz uma reflexão sobre a empregabilidade do blog como um dispositivo capaz de agregar e subsidiar o ensino de literatura, em que a leitura passa ser vista como uma prática multilinear, capaz de promover rupturas nas conjunturas tradicionais da leitura linear. Além disso, o contexto atual requer além da manipulação, o processo de interação. Hoje temos o que podemos denominar de espaço de interação ou cibercultura, o qual propicia o desenvolvimento do letramento digital, onde se dão as relações entre o campo midiático e o literário. O foco principal do presente artigo está na capacidade de promover reflexões que impulsionem novo pensar sobre o fazer pedagógico construído com mais envolvimento entre campo docente e atuação discente. Vale destacar que na construção de um blog literário é mister agregar associação de manifestações literárias das últimas décadas, uma linguagem clara, com formatos midiáticos e envolventes. Neste pensar, também se propõe abordar a linguagem midiática como um dispositivo literário, situando-a não como uma linguagem subliterária. Outro ponto discutido é a abordagem da expressão do verbal literário a partir do suporte midiático, destacando-se as manifestações construídas com o uso da hipermídia ou do hipertexto. A linguagem literária verbal ganha um sentido mais amplo com os processos midiáticos, uma vez que cada conexão possibilita a apresentação de expressões que, muitas vezes, não foram capazes de serem demonstradas, como é o caso das performances utilizadas no momento da leitura, a qual passa a incorporar fruição com participação física e da encenação. Por fim, discute que a linguagem do cânone não se restringe ao conhecimento construído nos moldes do tradicionalismo dos textos escritos. Dentro da concepção da arte literária, a mídia, a exemplo do blog, também consegue conectar e estruturar produções dentro de uma concepção canônica e atual. Como aporte teórico para construção destas ideias, foram utilizados autores como Rojo (2002), Gomes (2010), Goodson (2007), além de Ângela Kleiman(2005), Magda Soares(2004) e outros. PALAVRAS-CHAVE: Blog; Literatura; Leitura; Processos midiáticos. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 1 APRESENTAÇÃO No contexto atual em que a educação encontra-se inserida, surgem muitas inquietações sobre o domínio das Tecnologias Educacionais. Muitos professores de Literatura não estão se sentindo preparados para a manipulação adequada dos recursos tecnológicos, principalmente, os midiáticos. Neste pensar, faz-se necessário realizar um processo reflexivo sobre as competências essenciais que o professor de Língua Portuguesa e Literatura precisa desenvolver para tornar-se capaz de se sentir efetivamente um educador letrado, digitalmente, e proporcionar aos seus educandos práticas significativas de leitura de diversos gêneros textuais. Como a era cibernética requer além da manipulação, o processo de interação, hoje temos o que podemos denominar de espaço de interação ou cibercultura, o qual propicia o desenvolvimento do letramento digital, pois vivemos em uma sociedade 104 colaborativa em que a maior parte do conhecimento é construído em rede. Aproveitando essas inovações tecnológicas, o professor deve incentivar seus alunos a serem leitores ao utilizar as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) nas aulas de literatura. Um exemplo de uma ferramenta que contribui para o desenvolvimento e aprimoramento da leitura e escrita é o blog. Ele pode ser usado nas aulas de Literatura para divulgar textos literários e servir de incentivo para ampliar a leitura dos alunos. Segundo Roxane Rojo (2002, p. 2), “ler envolve diversos procedimentos e capacidades (perceptuais, práxicas, cognitivas, afetivas, sociais, discursivas, lingüísticas)”. O blog literário permitirá desenvolver todas essas capacidades proporcionadas pela leitura de textos literários de uma forma prazerosa. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) sinalizam a necessidade de o professor fazer uso dos recursos tecnológicos. Porém, muitos ainda não se sentem preparados para esta situação, o que torna mais necessária a introdução dos recursos midiáticos nos contextos educacionais, principalmente, no que tange ao domínio das competências e habilidades que levam ao desenvolvimento do letramento digital, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. levando o aluno a desenvolver e aprimorar habilidades de leitura e interpretação de textos. Este artigo objetiva discutir sobre o uso das TIC nas aulas de Literatura, despertando o prazer dos alunos em ler e analisar textos literários. Procurando despertar o interesse dos alunos pelas obras literárias, enfatiza a importância do blog literário como ferramenta que possibilita o prazer em ler e socializar as ideias. 2 O ENSINO DE LITERATURA E AS TICS Um dos principias desafios a ser enfrentado pelos educadores no ensino de literatura permeado pelas TIC é a reflexão sobre o currículo de literatura, Goodson (2007) aponta que, “no novo futuro social, devemos esperar que o currículo prescritivo se comprometa com as missões, paixões, e propósitos que as pessoas articulam em suas vidas” (GOODSON, 2007, p. 251). Com isso, fica explícito que o ensino de literatura precisa transcender para além das escrituras registradas nos grandes clássicos. Ele também salienta que: Grande parte da literatura sobre aprendizagem falha na abordagem dessa questão crucial do interesse, por isso a aprendizagem é vista como uma tarefa formal que não se relaciona com as necessidades e interesses dos alunos, uma vez que muito do planejamento curricular se baseia nas definições prescritivas sobre o que se deve aprender, sem nenhuma compreensão da situação de vida dos alunos. Como resultado, um grande número de planejamentos curriculares fracassa, porque o aluno simplesmente não se sente atraído ou engajado. (GOODSON, 2007, p. 250) Assim, devemos pensar no planejamento do currículo tendo em vista as definições prescritivas que levem em consideração as situações vivenciadas pelos alunos. Hoje, mais do que nunca, a necessidade de comunicação faz com que as novas tecnologias sejam renovadas constantemente, ultrapassando as barreiras naturais. Com isso, a possibilidade de utilização na educação torna-se cada vez mais urgente. Segundo Gomes (2010), “com a revolução digital, ampliam-se as possibilidades de uso da palavra escrita e os objetos de leitura diversificam-se numa escala inédita” (GOMES, 2010, p. 2). 105 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O educando precisa desenvolver habilidades de expressão oral e escrita. Com o uso das TIC, essas habilidades serão mais prazerosas e interessantes. Gomes (2010) salienta também que “a necessidade de a escola responder às novas demandas de leitura provenientes dessas mídias é outro fator de reconfiguração do lugar da literatura no ensino da língua” (GOMES, 2010, p.2). Mas, para que o ensino de literatura se concretize como prática de formação e reflexão sobre as situações vivenciadas, antes de tudo, devemos pensar as práticas de leitura literária como uma concepção ideológica. Vale salientar que o conceito de tecnologia é cabível ao ser concebida como o “processo criativo, através do qual o ser humano encontra respostas para os problemas do seu contexto, superando-os.” (Lima Jr. 2005). Este processo é transformador, capaz de produzir, de forma criativa, e reproduzir aquilo que denominamos de conhecimento. Os professores sentem dificuldade em formar leitores críticos, pois deparam106 se com a falta de interesse dos alunos em ler, principalmente textos que fazem parte de gêneros longos como os romances. Com o uso das TIC nas aulas de Língua Portuguesa, os educandos serão despertados a terem gosto pela leitura, desenvolvendo habilidades que lhe ajudarão a se expressar melhor por meio da oralidade e da escrita, tornando-se assim um cidadão letrado digitalmente. Quando afirmamos que a tecnologia e a educação são dependentes, queremos salientar que a expressão da oralidade e da escrita têm influência nas práticas pedagógicas centradas no discurso oral. Segundo Pinheiro-Mariz e Silva (2012, p. 2), os processos que estabelecem uma relação entre a educação e as tendências tecnológicas ocorreram “pelo fato de que nos dias de hoje não se pode pensar em educação sem a sua relação direta com os recursos oferecidos pelas tecnologias atuais [...] e essa é uma realidade que abraça a maioria das crianças”. As autoras deixam claro que, por mais que os professores tentem não utilizar os recursos tecnológicos, estes já fazem parte das manifestações do conhecimento. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 3 O BLOG COMO DISPOSITIVO PARA O ENSINO DE LITERATURA Um exemplo claro de processo tecnológico a serviço da educação são os blogs, mecanismos eficazes para formação do homem, na perspectiva do letramento, pois, permite a emissão de opinião sobre o que lê, além de fazer uso da leitura e da própria escrita como prática social, em prol de um bem comum que é a aprendizagem de todos. Na mídia interativa, o conhecimento é construído e reconstruído constantemente. Isso permite um processo de emancipação e a negação da estagnação, sendo esta última concepção muito comum quando nos deparamos com professores que não estão propícios à inovação, e isso acarreta em muitas situações de insucesso que faz com que a escola não seja um ambiente acolhedor, o qual os alunos inicialmente procuram. Ao fazer uso das mídias na sala de aula, o professor de Literatura pode criar, junto com seus alunos, um blog para socializar os conteúdos construídos durante as aulas e divulgar os textos literários analisados. Essa ferramenta, que terá a interação de todos, permitirá a socialização de conhecimento e incentivo de leitura de textos diversos, inclusive os imagéticos. Assim, o professor poderá explorar a multimodalidade de textos durante as suas aulas. A informação e a comunicação sempre foram elementos de grande importância para as sociedades, principalmente no processo de construção e disseminação da cultura, pois, desde os tempos mais remotos, a humanidade buscava trocar informações, as quais eram essenciais para localização, registro de território e, principalmente, para o processo de comunicação. No entanto, durante muito tempo, se imbricou a concepção das classes dos dominantes. Muitas das práticas e das representações [...] não se deixam explicar senão por referência ao campo do poder. [...] o campo do poder é o espaço das relações de força entre agentes ou instituições que têm em comum possuir o capital necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos (econômico ou cultural especialmente). [...] Ele é o lugar de lutas entre detentores de poderes. (BOURDIEU, 2010, p. 244) Ao incorporar o processo de representação nas propostas escolares, estaremos também contribuindo para a formação do sujeito-leitor, que se torna mais 107 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. dinamizadora com a utilização dos dispositivos tecnológicos. O qual deve ser colocado como mediador entre a prática docente e a aprendizagem, uma vez que, penetrando no domínio curricular onde as representações são, antes de tudo, a possibilidade de cristalização de modelos considerados saudáveis e viáveis para uma sociedade aparentemente bem estruturada, resulta na possibilidade de formulação de uma nova forma de pensar sobre o mundo. Neste pensar, Moita Lopes (2006, p. 27) diz que uma Linguística Aplicada transdisciplinar ou indisciplinar precisa contemplar “questões de ética e poder”, o que configura a necessidade de um trabalho de realização e não de sofrimento para todos os envolvidos no processo que é histórico e cultural. Conforme os autores Azevedo Neto e Sousa (2006), a informação deve ser considerada como o principal elemento na agregação de valor aos mais variados produtos e serviços nos diversos campos do saber e da produção. Com isso, pode se afirmar que o conhecimento é fruto da obtenção da informação, e quando fazemos uso deste conhecimento, estamos de fato exercendo o processo de letramento, pois conseguimos direcionar 108 para as práticas sociais, uma das mais importantes ferramentas utilizadas na aquisição do conhecimento que são a leitura e a escrita. A escola, dentro da perspectiva de alfabetizar letrando, deve vincular ao currículo os princípios da linguística Aplicada como forma de agregar pressupostos, pois ela é vista como uma área nômade e mestiça, uma vez que ela ousa pensar de forma diferente para além de paradigmas consagrados. Já segundo Barreto (1994), quando a informação é assimilada de forma adequada, ocorre uma modificação no acumulado de informações do indivíduo, trazendo benefícios ao seu desenvolvimento e ao desenvolvimento da sociedade em que vive. O que ocorre de fato é o processo da passagem de uma situação de menor equilíbrio para uma de maior equilíbrio. Na construção coletiva de um blog, sempre ocorre a transição de opiniões que levam sempre ao desequilíbrio e assim, cada um busca nos alternativas para construir o equilíbrio. Lévy (2000), afirma que novas maneiras de pensar e de conviver estão sendo formadas no mundo das telecomunicações e da comunicação. A aquisição e Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. aprimoramento da capacidade de escrita, leitura, interpretação, visão, audição, criação, ensino e aprendizagem são capturados por uma informática cada vez mais avançada, o que acaba corroborando para aulas de Literatura mais interativas, despertando o gosto dos alunos pela arte literária. Com o advento da internet, a leitura e a escrita deixam de ser realizadas apenas de forma linear. Nessa nova estrutura, os textos são conectados de acordo com o grau de aproximação, surgindo assim uma concepção crítica que permite a construção de competências cognitivas capazes de promoverem mobilizações e potencializam a aquisição da aprendizagem a partir do uso dos recursos tecnológicos disponíveis. Dessa forma, as aulas de literatura passam a ter um teor inovador, instigando os alunos a conhecerem as obras literárias Cavalcante (2008) diz que novas tecnologias digitais correspondem à aplicação de conhecimento científico ou técnico como também métodos e materiais criados para a solução de uma dada dificuldade. Assim, fica claro o conceito de tecnologia e sua diferença da simples comunicação, bem como sua diferença da informação, sendo a primeira ambiente de veiculação e a segunda forma de determinar, processar e reproduzir informações. Sendo estas últimas importantes para que a aprendizagem aconteça. Segundo Kesnki (1996): “a aprendizagem pode se dar com o envolvimento integral do indivíduo, a partir de desafios, da exploração de possibilidades, do assumir de responsabilidades, do criar e do refletir juntos” (KENSKI,1996). Ao utilizar o blog, o professor de literatura poderá desenvolver todas essas competências sinalizadas por Kenski. O aluno passa a ser o protagonista do processo educativo ao pesquisar e socializar o conhecimento. No processo de construção da aprendizagem, surgem novas possibilidades de interação. Um exemplo de ambiente de interação e construção do conhecimento em rede é o blog, em particular o blog literário. Segundo Paiva (2008), o termo blog foi criado em 1997 por Jorn Barger, com a intenção de se fazer uma lista de Links interessantes e divulgá-la. Com isso, seria possível uma maior disseminação das ideias, como também, a transmissão de descobertas recentes, o que há muito tempo não ocorrera. Desta forma, o blog pode ser entendido como um meio de transmissão 109 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. de informação e comunicação, possibilitando agilidade, maior abrangência e socialização das ideias levantadas e exploradas em um determinado contexto. No processo de ensino e aprendizagem das obras literárias, para que sejam realizadas ações prazerosas, podemos utilizar diversas fontes de interação. Moacir Gadotti (2002) salienta que, pelo avanço das novas linguagens tecnológicas, onde nem tudo pode ser utilizado, e que elas precisam ser selecionadas, avaliadas, compiladas e processadas para que se transformem em conhecimento válido, relevante e necessário para o crescimento do homem como ser humano em um mundo alto sustentável. Não basta disponibilizamos dos recursos apenas para uso de forma exacerbada e incontrolável, é preciso cuidado no que se é disponibilizado, principalmente, quando se trata de formação de personalidade. Na atualidade, para se efetivar a construção da cidadania, faz-se necessário repensar os processos de construção de conhecimento, buscando-se, para isso, processos educacionais que ancorem uma educação de qualidade. Para concretização 110 de tais ideais, devem ser priorizados a reflexão, o pensamento crítico, além da abertura para discussões e realização de ações mais significativas. O blog literário é uma ferramenta que o professor de literatura tem para superar os desafios da desmotivação dos alunos para ler as obras literárias, sobretudo os clássicos. Como sujeitos e comunidades, é imprescindível que se busquem a transformação dos contextos sociais com vistas à emancipação e construção de saberes. Assim, a escola precisa, antes de tudo, ser um espaço de construção e disseminação da cultura do saber, possibilitando, de acordo com Corrêa (2002, p. 221), do “acesso igualitário ao espaço público como condição de existência e sobrevivência dos homens enquanto integrantes de uma comunidade política, deixando clara a necessidade de superação das chamadas medidas compensatórias, mas que as ações concretizadas sejam frutos das discussões coletivas.” Portanto, a tecnologia, em especial, a dos ciberespaços, deve contribuir para fazer com que as aulas de Literatura se tornem mais dinâmicas, além de influenciar no desenvolvimento das demais disciplinas. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Algumas das possibilidades existentes e que podem ser aproveitadas no ambiente escolar como instrumentos facilitadores do aprendizado são resultantes das ferramentas essenciais e indispensáveis na era da comunicação, também chamadas de novas tecnologias, que ganham espaço efetivo nas salas de aula. Como exemplo, podemos destacar os Computadores ligados à internet, software de criação de sites, televisão a cabo, sistema de rádio e jogos eletrônicos. A metodologia respaldada na transdisciplinaridade é capaz de articular textos com outros formatos que vão além do literário, e tal combinação de imagens, sons, silêncios, unidos às lembranças armazenadas na memória, propiciam o surgimento de novas aprendizagens. Na contemporaneidade, principalmente diante das mudanças ocorridas na sociedade, com o acesso aos meios tecnológicos antes restritos a maioria da sociedade, pode-se salientar que o blog e seus aplicativos devem ser vistos como veículos de disseminação do mundo digital, o qual depende de outros meios para sua consolidação. 111 CONSIDERAÇÕES FINAIS Hoje é cada vez mais comum o uso das novas tecnologias de informação e de comunicação, as quais são usadas na comunicação social. Elas estão cada vez mais interativas, em que os usuários se comunicam em tempo real, além de agregarem recursos que lhes permitem criar novas alternativas e aberturas. Os programas de multimídia, como o vídeo interativo, os chats, os fóruns são considerados alguns dos mecanismos construídos nos blogs que conseguem promover o intercambio entre os indivíduos e o conhecimento. Por meio desses programas, os educandos podem ressignificar as obras literárias, construindo videoclips, socializando vídeos com dramatizações das obras lidas, expondo imagens, realizando enquetes e, principalmente, interagindo com outros colegas sobre o texto literário analisado. O fazer pedagógico corresponde ao processo de condução de situações educativas que direcionem o educando ao desenvolvimento de potencialidades. Para isso, de acordo com o posicionamento de Stuart Hall (1996) em relação à teorização Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. pós-colonial, foi preciso desenvolver um modo de pensar que tem como objetivo atravessar/violar limites ou tentar “pensar nos limites” ou “para além dos limites”, que levem a resolução de situações-problemas da prática social. Através do uso do blog literário como mecanismo que promove a interação entre os educandos e o conhecimento produzido é possível não só apresentar novas perspectivas de construção e apreciação de produções, como também realizar conexões entre quem produz e quem pensa sobre aquele tipo de produção. Com isso, a produção do conhecimento direciona-se para a criação de hipertextos, o qual pode ser considerado como um tipo de produção que consiste nos tópicos e nas suas ligações. Os tópicos podem ser parágrafos, frases, expressões ou simples palavras, as ligações correspondem as conexões que podem ser agregadas ao texto, como é o caso dos links, que levam ao aprofundamento de expressões. Com aulas interativas assim, o professor de literatura oportunizará aos alunos a leitura de diversas obras literárias de uma maneira mais simples e instigadora. 112 A investigação sobre a aprendizagem construída por intermédios dos recursos tecnologicamente midiáticos nos remete a necessidade de qualificação dos educadores, sobretudo os de Língua Portuguesa e Literatura, bem como para a abertura dos currículos escolares de forma a promover a formação plena do indivíduo, contribuindo para que este faça o uso social da leitura e da escrita como mecanismos das práticas sociais. Para isso, um dos meios mais eficaz é o uso das tecnologias, em especial o blog literário que agrega perspectivas interativas, além de permitir a coletividade e colaboração entre os indivíduos ao socializar a leitura das obras literárias estudadas. Para esta proposta metodológica a intertextualidade é hoje um dos dispositivos que conecta narrativas como romance, novela de televisão, roteiro de um filme, letra e música de uma canção. Porém, diante de tais ideias positivas, também salientamos a necessidade da formação adequada do professor de Literatura para auxiliar no processo, bem como o que a escola está fazendo para garantir o direito da aprendizagem ao aluno. Para tal desafio, nada melhor do que o uso do blog literário nos processos de aquisição, utilização e discussão da leitura e da escrita como prática social. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Referências: AZEVEDO NETO, Carlos Xavier de; SOUZA, Edivânio Duarte de. Informação e construção da cidadania: representação das ações de informação da Casa Pequeno Davi. Informação & Sociedade: Estudos, João Pessoa, v.16, n.1, p. 203-214, jan./jun. 2006. BARRETO, Aldo de Albuquerque. A questão da informação. 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Vera Massagão Ribeiro – 2ª Ed. – São Paulo, Global , 2004. 114 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 115 Eixo II Literatura, Experiência e Memória Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 116 A TELA, O ESPELHO, O POEMA: Um estudo do autorretrato na poesia Almi Costa dos Santos Junior Graduando do curso de Letras Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus X [email protected] Gabriela Fernandes Professora do curso de Letras Língua Portuguesa e Literaturas na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus X [email protected] RESUMO O presente trabalho parte de um estudo que pretende compreender o autorretrato enquanto possibilidade de temática e de técnica para a produção poética. Nas artes plásticas o autorretrato é uma técnica que permite ao artista reproduzir a sua própria imagem da maneira que se vê refletido no espelho ou sua própria imagem registrada em uma foto. Diante da tela e podendo observar a si mesmo de alguma maneira, o pintor escolhe as cores e as formas que irão compor a obra, decidindo que partes de si estarão naquele espaço. Pensando nisso, acredita-se que este estudo se faz importante para a compreensão de que o poeta também faz uso desta técnica, inicialmente difundida através das artes plásticas por artistas como Albrecht Dürer e Leonardo Da Vinci, e posteriormente muito utilizada por pintores como Egon Schiele, Frida Kahlo e Vincent Van Gogh. Pintores como Rembrandt, autor de vários autorretratos, viram nesta técnica a possibilidade de aprimoramento artístico, além de autoconhecimento. Além das mudanças físicas naturais e visualmente perceptíveis, os autorretratos são capazes de sugerir diversas leituras sobre o seu autor. Tal como a expressão ut pictura poesis (como a pintura, é a poesia), atribuída a Horácio, ou a expressão muta poesis, eloquens pictura (a pintura é uma poesia muda, a poesia é uma pintura falante), atribuída por Plutarco ao poeta grego Simônides de Céos, é válido pensar que a poesia e a pintura existem em grau de igualdade, como artes irmãs. Ou seja, assim como na pintura, é possível que na poesia o autor se autorretrate, utilizando o poema como espaço limitado dessa reprodução. Desta forma, busca-se utilizar os pressupostos teórico-metodológicos dos estudos interartes na condução de delimitações importantes, na tentativa de se aproximar de um conceito de autorretrato poético. Quanto a este ponto, busca-se embasamento teórico em Rosa Maria Martelo. Com principal objetivo de identificar o autorretrato na poesia, pretende-se compreender os motivos pelos quais se defende neste trabalho a ideia de que o poeta se autorretrata em alguns de seus poemas. Para isso serão feitas análises com poemas de Mia Couto, Manoel de Barros e Cecília Meireles, tendo por base as análises feitas quadros dos autores citados anteriormente. As análises, tantos dos quadros quanto dos poemas servem para que se compreenda o autorretrato além de sua função de registro momentâneo de seu criador, pensando que existem outras leituras possíveis, mais íntimas. Da mesma forma, discute-se a escolha do termo Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. autorretrato, comparando artes plásticas e poesia, em sentido de aproximar as duas artes. PALAVRAS-CHAVE: Poesia; Autorretrato; Interartes. POESIA E PINTURA Os estudos entre literatura e pintura não são novos, o que não reduz a sua capacidade produtiva. É preciso dizer que este trabalho não compara obras especificamente, mas as duas artes, no sentido mais amplo. Aprofundando ainda mais e deixando os caminhos mais visíveis, o que se pretende é estudar um conceito que se relaciona com essas duas artes, fora todas as relações possíveis já amplamente discutidas na academia. O que é considerada como a primeira relação feita entre poesia e pintura tem origem no poeta grego Simônides de Céos (556 – 468 a. C.) em uma citação feita por Plutarco (ca. 46 – 120 d. C) em De Gloria Atheniensium III. A expressão muta poesis, 118 eloquens pictura a ele remetida traz a ideia de que a pintura é uma poesia silenciosa e a poesia é uma pintura falante. (MELLO, 2010, p. 222) Simônides põe as duas artes em relação de igualdade. O mesmo faz Horácio com a expressão conhecida por ut pictura poesis, cuja tradução remete a “como a pintura, é a poesia”. Assim, pretende-se compreender o conceito de autorretrato mantendo o diálogo que existe entre poesia e pintura, pensando-se que é possível perceber a poesia na pintura, bem como enxergar as imagens que a poesia evoca – lembrando que as duas se olham através do mesmo espelho. O AUTORRETRATO A partir do Renascimento e de artistas como Albrecht Dürer (1493) e Leonardo Da Vinci (1515), pintores e desenhistas reconheceram a possibilidade de retratarem a si mesmos. O autorretrato é a forma que o artista encontra para pintar-se longe de suas vaidades ou carregado delas. Ao criar um retrato de si mesmo o pintor abre possibilidades de se mostrar, se esconder ou se deixar ser interpretado, sugerindo leituras e não as proporcionando. (CLARK, 2007, p. 200) Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O autorretrato pode ser uma forma de aprimoramento das próprias técnicas, funcionando também enquanto temática. Rembrandt (1606), considerado o mais importante pintor holandês, principalmente por seus inúmeros autorretratos, conseguiu construir através de suas obras uma biografia capaz de mostrar as diversas mudanças físicas que lhe ocorreram com o tempo. 119 Auto-retrato (1629) e Auto-retrato (1669), Rembrandt A pintura feita em 1629 retrata Rembrandt aos seus 23 anos e de 1669 aos 63 anos, feita no ano de sua morte. As obras mostram as marcas que o tempo deixou no rosto do pintor, mas ainda permitem leituras a respeito da busca do artista pelo autoconhecimento. Outra característica particular, já observável no quadro de 1629, é como a luz se configura nestas obras (e em diversas outras do pintor); como se houvesse uma única fonte de ou uma mais intensa de um dos lados e uma mais fraca do outro, técnica que inspirou um efeito na fotografia e leva o nome do pintor, conhecido por Luz Rembrandt1. Técnica utilizada em estúdios fotográficos, conseguida através de um refletor e uma fonte de luz ou duas. Uma luz mais potente é posicionada em um ponto mais alto e uma menos potente, mais abaixo, do outro lado, formando um contraste de luz e sombra. É efeito é formado por um triângulo de luzes que se forma abaixo da linha dos olhos da pessoa retratada. 1 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Talvez nem o pintor saiba se é capaz de se representar fielmente, sem o estranhamento natural, como pode acontecer ao pintar outras naturezas, como expõe Clark (2007): O fato de o próprio pintor estar sentado na frente de um espelho tende a provocar um movimento dialético de vaivém sem exigir um esforço desnecessário por parte do dialetista; o espelho naturaliza o movimento, por assim dizer, fazendo parecer que ele se dá no espaço, entre um self que está aqui onde estou e outro que está lá no espelho; não passa de óbvio artifício especioso fazê-los estranhos um ao outro. (p. 197) Talvez ocorra que, pelo fato do autorretrato ser feito enquanto o pintor observa o seu reflexo no espelho ou à sua imagem captada em uma fotografia, a tendência seja reproduzir o que ele vê: características físicas, a pose escolhida, a luz naquele momento. Novaes (2007) diz que “O auto-retrato é um instantâneo do momento em que o sujeito se encontra, mas não por muito tempo”, e isso talvez dialogue com a prática incessante do autorretrato para Rembrandt. Mas olhando para o autorretrato feito 120 por Leonardo da Vinci em 1512, em que o artista se retrata muito mais velho do que estaria no momento em que fez o desenho, talvez seja possível ver o autorretrato além do papel definido de instantâneo do momento e que exista muito mais a conhecer do que o retrato externo. Retrato de um homem em giz vermelho (cerca de 1512 a 1515), Leonardo da Vinci Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Alguns estudiosos acreditam que da Vinci tenha se retratado em idade mais avançada propositalmente para se parecer com o Platão retratado no quadro Scuola di Atene (Escola de Atenas) feito pelo pintor Rafael Sanzio (1483) entre 1509 e 1510. O autorretrato possui características bem presentes nos desenhos de da Vinci, o perfeccionismo anatômico, o rebuscamento aos detalhes (fios de cabelo e barba, rugas) e a preocupação com sombreamentos bem posicionados, mesmo num autorretrato que a certo ponto se assemelha a uma espécie de esboço. Com isso, pode-se compreender o autorretrato além do seu objetivo de instantâneo do momento, podendo sugerir leituras ainda mais íntimas do artista. Ao longo dos anos vários artistas utilizaram o autorretrato como forma de explorar suas técnicas e de criar uma identidade. O pintor Vincent Van Gogh (1853) desenvolveu técnicas bastante singulares e pessoais na pintura, retratando as pessoas a sua volta, os lugares onde viveu, paisagens, imagens de sua memória e a sua própria imagem, em diversos momentos de sua vida. Tendo uma vida marcada por conflitos, pela solidão e pelo não reconhecimento de sua arte, Van Gogh talvez tenha deixado em seus autorretratos mais do que simplesmente a reprodução de sua imagem refletida no espelho. Auto-retrato (1887) e Auto-retrato com chapéu de feltro (1887), Vincent Van Gogh 121 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. No mesmo ano, o pintor fez dois autorretratos que trazem características similares, mas técnicas diferentes. No primeiro (à esquerda) existe maior fidelidade com sua imagem, luz bem posicionada, provocando brilhos e sombras nos cabelos e na barba, tons da pele também bem escolhidos, sem deixar perder qualquer ponto; no entanto, essa preocupação foca-se no rosto, as roupas e o fundo são compostos de traços e pontos que, em determinadas partes se movimentam, noutras parecem estáticas, em cores contrastantes (azul e amarelo; laranja, azul e verde). No segundo (à direita) parece que a preocupação e a suavidade diminuem, o quadro é todo feito em traços, cuja espessura aumenta de acordo com que se afastam do rosto que centraliza, e existe um movimento específico para cada ponto do quadro: no rosto e no chapéu, nas roupas e no fundo; o fundo possui uma fluidez que contorna a imagem do pintor, nos remetendo ao mito de Narciso que olha (e se apaixona) por sua imagem na água. O olhar fixo, a face imóvel sem sorriso, a sobrancelha um pouco franzida, como se um quadro olhasse para o outro, como um espelho. Além de pensar na inquietude do pintor em relação às técnicas utilizadas no momento da 122 pintura, se pode pensar como seus quadros são reflexos de sua vida. Egon Schiele (1890), também é considerado um dos mais conhecidos pintores a utilizar o autorretrato, dono de um traço muito significativo e pessoal. Auto-retrato com as mãos no peito (1910) e Auto-retrato com a cabeça baixa (1912), Egon Schiele Os autorretratos acima mostram duas possibilidades diferentes, em um intervalo cronológico relativamente curto. De um lado o Schiele autorretratado em Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. cores suaves (vários tons de amarelo) e traços sutis que formam o cabelo e os que contornam o rosto e as mãos. Do outro, o artista de olhar profundo, as cores sobrepostas, escuras (quase não se vê o uso de branco, mas tons de trigo e creme e uso excessivo de preto e castanho), num ritmo que parece perdido, é possível ver as marcas do pincel e camadas de tinta em alto-relevo. São cores tão próximas que a certo ponto a imagem parece se fundir, dissolver, como se a qualquer momento ela fosse se tornar uma mancha. O exagero nas formas anatômicas é uma característica peculiar do pintor. Ele se apropria da liberdade artística – tanto em relação à superfície, quanto ao seu âmago interpretativo, sugerindo leituras sobre si que talvez não pudessem ser expostas de outra forma. Alguns artistas decidem se autorretratar de modo a não se reproduzirem do ponto de vista da realidade, mas reinventam-se. Um exemplo desta temática é o quadro Autorretrato blando con bacon frito (Autorretrato mole com bacon frito) do pintor espanhol Salvador Dali (1904). 123 Fotografia de Salvador Dali e Autorretrato blando con bacon frito (1941) Conhecido por suas pinturas surrealistas, Dali faz um autorretrato utilizando sua principal técnica, criando algo bem diferente do que se espera de um autorretrato. A imagem mostra o retrato do pintor totalmente adverso da realidade: o rosto desforme, como se derretesse, sustentando por muletas, traços inspirados no surrealismo. Um leitor que nunca tenha visto a imagem de Dali talvez não seja capaz de reconhecer. Mas um leitor que possui essa informação pode captar as pistas Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. deixadas no quadro e reconheça que se trata de um retrato próprio, como o bigode, característica marcante do pintor. No quadro é possível notar o uso dominante do dourado, muito utilizado em suas obras, além do amarelado e do castanho. Existe ainda muito contraste, muitas sombras e pouco brilho. Ele não se retrata exatamente como está no reflexo do espelho ou impresso na fotografia, mas o faz a partir do estilo pelo qual ficou mais conhecido, através da plasticidade que lhe é peculiar, não apenas dando ao seu quadro aspectos surrealistas, mas sendo o próprio surrealismo, como ele mesmo afirmara. ENTRE A TELA E O POEMA Já fui eu esse de paletó Sei estar andando com o pé no chão Posso ser alguém que passa a dó Eu já fui vulto na escuridão Quase que alguém morre do coração Já fui eu que entrei na contramão Ah, sei lá eu 124 Se o cara que vem lá, será eu? Mas sei imaginar Eu me enxergo no lugar 5 a seco – Sei lá eu Tal como o pintor que, ao se pintar, manipula as cores e as formas que irão fazer parte da composição do quadro, o poeta conduz as palavras que irão retratá-lo no poema. A imagem no poema pode ser totalmente oposta à refletida no espelho, mas diante dele, em palavras, está o seu reflexo. É possível que nem o próprio poeta saiba como e porque chegou àquela imagem, mas é provável que se reconheça retratado nela, assim como diz Rosa Maria Martelo, é o autor que se retrata que “háde ficar parecido com o seu auto-retrato e não o inverso”. (2004, p.14). A pintora mexicana Frida Kahlo (1907) produziu vários autorretratos durante a sua carreira, em situações diversas. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. La columna rota (1944) e El venado herido (1946), Frida Kahlo Através deles, a pintora pôde ilustrar as dores que sentia por conta do acidente sofrido aos 18 anos, das operações realizadas para reconstruir o seu corpo e das doenças contraídas durante sua vida. Na obra La columna rota (1944) existem pontos que trazem a dor: as lágrimas no rosto, vários pregos pelo corpo, além da visualização interna de uma coluna (que lembra uma coluna grega) quebrada, exatamente no lugar de sua medula espinhal. Em El venado herido (1946) a pintura retrata quase todo seu corpo quase todo animalizado, assumindo características de um veado; flechas perfuram seu peito, seu pescoço e cinco flechas se enfileiram por sua medula espinhal. Frida Kahlo se submeteu a mais de trinta cirurgias e delas sete foram de coluna. É válido observar que, no(s) autorretrato(s) o autor não se parece com algo, ele é. Em determinado ponto, ela assume formas de construção danificada, em outra, formas de um animal ferido. Da mesma forma o poeta nem sempre se retrata do mesmo ponto, já que está em constante movimento e o poema materializa apenas uma parte deste ir-se, cabendo ao leitor tentar descobrir em que medida no poema está o poeta que se autobiografa e o poeta que se autorretrata, como observa Rosa Maria Martelo: o texto tudo fará para dificultar esta distinção, sugerindo ao leitor que é precisamente o sujeito biográfico que é descrito na obra, quando, na 125 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. verdade, o leitor apenas poderá conhecer um autor textual que se autoretrata enquanto sujeito biográfico. (MARTELO, 2004, p. 14) A condução do poema, como um todo, acaba por se tornar escolha, dever ou responsabilidade do poeta. Ao se autorretratar, o poeta deve reconhecer que parte de si pode ficar à mostra, como pode deixar de ser mostrada. E a depender de que forma ele o faz, talvez nem o leitor e nem ele mesmo sejam capazes de identificá-lo. Mia Couto (1955), poeta e escritor moçambicano, é dono de uma linguagem imagética, carregada de uma mistura entre espiritualidade e materialidade (talvez, devido à sua formação de biólogo). No poema Identidade, entre imagens de seu lugar de origem, ele se une, se vê e é também tudo aquilo que o cerca: Preciso ser um outro para ser eu mesmo Sou grão de rocha Sou o vento que a desgasta Sou pólen sem insecto 126 Sou areia sustentando o sexo das árvores Existo onde me desconheço aguardando pelo meu passado ansiando a esperança do futuro No mundo que combato morro no mundo por que luto nasço Os primeiros dois versos trazem a necessidade do poeta em ser “outro” para que enfim seja ele mesmo. Octavio Paz chama isso de outridade (ou alteridade), algo que: Não está dentro, no nosso interior, nem atrás, como algo que surge de repente no limo do passado, mas está, por assim dizer, adiante: é algo (ou melhor: alguém) que nos chama a ser nós mesmos. E esse alguém é nosso próprio ser. (PAZ, 2012, p. 186) Mia Couto dá imagens que no fim serão a sua própria imagem; ora é “grão de rocha”, ora é o próprio “vento” que desgasta a rocha; ora é “pólen”; ora é “areia” que sustenta “o sexo das árvores”; elementos muito ligados ao ambiente africano, além Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. das metáforas próprias de seu povo: a árvore, como origem, com raízes fincadas, mas cujos galhos crescem para fora. Aqui, ele é a própria terra que sustenta as árvores, sua origem não é uma só. O poeta só reconhece sua própria existência a partir da existência de outro e talvez o espelho proporcione esse momento de encontro; aqui, sou um, no espelho, sou outro. O poeta Manoel de Barros (1916) também acredita ser mais de um, como ele escreve em Os dois: “Eu sou dois seres [...] O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidade. / O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades e frases.” (BARROS, 2013, p. 405); tanto um, quanto outro possui “vaidades”, embora o primeiro seja feito de elementos materiais (“unha”, “roupa”, “chapéu”) e o segundo seja feito de seus principais produtos enquanto poeta (“letras”, “sílabas” e “frases”). Mia Couto e Manoel de Barros fazem um movimento que, para Octavio Paz, é inevitável, quando observa a necessidade do homem em ser outro, sugerindo que seu ser sempre o leva para além de si (PAZ, 2012, p. 187), como Manoel de Barros em Retrato do artista enquanto coisa, farto de cumprir sua função de homem-social (Não aguento ser apenas um sujeito que abre / portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, / que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, / que aponta o lápis, que vê a uva etc. etc.), declara: “Perdoai / Mas eu preciso ser Outros.” (BARROS, 2013, p. 347-348) Se na pintura, ao se autorretratar, o artista busca nas cores e nas formas uma maneira de tornar visível a sua própria imagem, na poesia o poeta se habilita das palavras e das metáforas para formar a si mesmo. Em Retrato, a poetisa Cecília Meireles (1901) dá ao leitor pistas de como é a sua imagem, sugerindo ao mesmo tempo como era a sua imagem no passado, numa espécie de reflexão diante do espelho: Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. 127 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida a minha face? A ideia do passado aparece nos verbos no pretérito imperfeito (“tinha”) e perfeito (“dei”, “ficou”), mas se dispõe antes e depois do verbo em tempo presente (“mostra”), o que indica justamente a pessoa de agora, lembrando-se da pessoa de antes. A esperança da poetisa é de que sua face esteja presa em algum espelho; o tempo lhe deu características que a tornam estranha a si mesma, além de trazerem cargas negativas (“rosto triste”, “magro”, “olhos tão vazios”, “lábio amargo”; “mãos sem força”, “paradas”, “frias” e “mortas”). O seu rosto ainda aparece como uma máscara alheia ao ser, algo que ela possui e não aquilo que é (“Eu não tinha esse rosto de hoje”). O “eu” transita por corpos nos quais ele possa habitar, buscando por trás dos disfarces de alguma máscara, o ser capaz de construir a sua imagem. Os títulos dos poemas mostrados até aqui já sugerem a noção que se pretende 128 estabelecer neste trabalho: a relação entre poesia e pintura ou imagem e poesia, a ideia da outridade e reconhecimento do poeta nas imagens do poema. Para o primeiro ponto, observamos o título do poema de Cecília Meireles, Retrato. Ainda, o segundo poema de Manoel de Barros citado não possui título especificado em palavras, é sinalizado em uma sequência pelo número 11, forma como o poeta organizou os poemas do livro Retrato do artista quando coisa2. Para a noção de outridade (alteridade), a necessidade do poeta em ser outro, o poema Os dois, também de Manoel de Barros. E, pra retomar a ideia do poeta que espera ver a sua própria imagem nas imagens construídas no poema, o título escolhido por Mia Couto para o poema aqui citado, Identidade. Analogia ao livro de James Joyce, Um retrato do artista quando jovem, que por sua vez tem relação (mesmo que não intencional) com o autorretrato de Jacques-Louis David, Retrato do artista (1794). 2 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. À GUISA DE CONCLUSÃO Seria precipitado fazer considerações finais de um artigo que é, na verdade, parte de um processo ainda maior. A linha de análise utilizada para investigar a recorrência do autorretrato na poesia de Mia Couto, Manoel de Barros e Cecília Meireles é a mesma que pretendo utilizar em meu trabalho de monografia de conclusão de curso. Reconheço que ainda há muito a estudar para chegar, no mínimo perto, do que se espera de um conceito sobre o autorretrato poético. Aliado aos estudos interartes, as pesquisas sobre poesia e a leitura de poetas que escrevem voltando-se para a temática do “eu”, está a constante escrita e reescrita. Tal como Rembrandt, a prática incessante pode servir de aprimoramento e de registro biográfico, mas espero que sirva, acima de tudo, de um contínuo processo de autoconhecimento e autodescobrimento. REFERÊNCIAS CLARK, T. J. Modernismos: ensaios sobre política, história e teoria da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2007. MARTELO, Rosa Maria. Em parte incerta: estudos da poesia portuguesa moderna e contemporânea. Porto: Campo das Letras, 2004. 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As atividades de leitura foram desenvolvidas em um colégio da rede municipal de ensino, situado na cidade de Jequié/Bahia, constituindo-se como uma ação de mediação realizada pela bolsista voluntária do Projeto de pesquisa “Escritoras Brasileiras na Escola” (FAPESP/UESB). Tendo em vista que o nível de leitura dos alunos é uma preocupação constante dos profissionais que atuam na educação, faz-se necessário que essa prática de leitura seja desenvolvida de maneira adequada e prazerosa, útil e enriquecedora ao universo escolar e à realidade social do aluno. Utilizamos como procedimento metodológico o estudo dos textos: “Ofélia, a ovelha” e “Moça tecelã”, da escritora Marina Colassanti, cujo principal foco é garantir reflexão sobre os contos de fadas tradicionais e o conto “Moça tecelã” e tecer comentário sobre as obras dando ênfase à temática feminina e questões de gênero. Palavras-chaves: Leitura; Literatura; Autoria feminina. INTRODUÇÃO Quando eu era criança, durante muito tempo pensei que os livros nascessem como as árvores, como os pássaros. Quando descobri que existiam autores, pensei: também quero fazer um livro. (LISPECTOR, escritora brasileira 1920 – 1977). De acordo com BARBOSA (2011), os estudos de gênero buscam a visibilidade para as autoras femininas, que muitas vezes não são trabalhadas em sala de aula. Considerando que a dinâmica pedagógica no contexto escolar requer do profissional docente a realização das mais diversas atividades para que um Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. conteúdo seja explorado é que nos propomos realizar esse trabalho diferenciado na perspectiva de mediar o processo de aprendizagem com relação à temática de gênero. Para atingir nosso objetivo priorizamos a utilização de recursos pedagógicos diferenciados e lúdicos. ORLANDI (2000) defende o uso da ludicidade, e afirma que esta facilita a produção de sentido na aprendizagem. De acordo com SOARES (2009) a escolha das leituras deve ser feita tomando como critério básico a possibilidade de que a leitura precisa ser feita de maneira prazerosa, sedutora, que tenha o poder de levar a descoberta do prazer de ler. Nesta leitura “o novo” deve se fazer presente, pois a leitura traz novas descobertas, provocando o fascínio por um universo encantado da literatura Infantil e Juvenil. Este trabalho procurar mostrar parte do projeto “Memória das escritoras brasileiras na escola” realizado na UESB campus de Jequié o qual leva para as escolas públicas obras das escritoras brasileiras, a saber: Zélia Gattai, Marina Colassanti, Ana Maria Machado, Adriana Falcão e Silvia Orthof. Todas essas escritoras têm uma literatura voltada para as discussões feministas, mostrando as varias faces da mulher 132 presente na sociedade. Colassanti escreve brilhantemente histórias para crianças, seus textos são lúdicos e realistas, tocando em conteúdos delicados que devem chegar às crianças em desenvolvimento intelectual. Na obra “Moça tecelã”, Colassanti conta a história de uma jovem que um dia se percebeu sozinha e então resolveu casar-se, mais após o casamento viu que seu marido só tinha interesse no luxo que ela podia proporcionar e isso a fez infeliz, então a moça tecelã se arrepende e desmancha tudo que foi construído, inclusive o casamento. No fragmento a seguir é possível perceber a dura rotina da personagem: “Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia” (COLASSANTI, 2004, p.7). No fragmento é possível perceber como a moça tecelã era explorada pelo companheiro. Sabemos que essa história é muito parecida com a realidade de muitas mulheres brasileiras, mulheres que dedicam uma vida ao seu companheiro e, no entanto, são infelizes, sem ter o carinho e a atenção devida dentro de uma relação conjugal. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A partir dessa e de outras reflexões sobre a produção dessa escritora, a pesquisa foi desenvolvida no Ginásio Municipal Dr. Celi de Freitas, na cidade de Jequié, Bahia. A pesquisa realizada entre o segundo semestre de 2014 e primeiro semestre de 2015, nesse período também realizamos sessões de estudos sobre teóricas femininas, para embasamento das atividades de campo. Trabalhamos com estudantes do 3º ano no turno matutino em 2014, e no turno vespertino em 2015, turmas distintas. As oficinas de leitura foram realizadas nestas turmas, pois percebemos que ambas precisavam trabalhar com a temática feminina em suas leituras de sala de aula, pois as profissionais de educação nem sempre proporcionam aos seus alunos essas discussões. A FORMAÇÃO DO LEITOR Os profissionais da educação sabem que o caminho para a aprendizagem e alargamento de fronteira intelectual parte da leitura que o estudante tem acesso durante a sua vida escolar. A literatura tem grande parcela de responsabilidade no desenvolvimento intelectual do aluno e na sua formação política e social. Palo e Oliveira afirmam que “a literatura infantil surge como uma forma literária menor, atrelada à função utilitário-pedagógica do que literatura” (PALO E OLIVEIRA, 2006, p.9). Sabemos que a literatura vai muito alem do utilitário-pedagógico, pois dela parte a as reflexões, e discussões sobre inesgotáveis temáticas sociais, através do real e do imaginário. No processo de formação do leitor, é de suma importância que os estudantes tenham acesso fácil aos livros na escola e também no ambiente familiar. ZILBERMAN (2003) afirma que: “Preservar as relações entre a literatura e a escola, ou o uso do livro em sala de aula, decorre de ambas compartilharem um aspecto em comum: a natureza formativa” (ZILBERMAN, 2003, p. 25). Para proceder à literatura em sala de aula, o professor precisa levar em consideração os pontos de contato entre o leitor e o seu cotidiano, para que a literatura seja significativa e proveitosa no processo formativo. O leitor precisa ver na leitura referências de seu cotidiano, pois dessa forma é possível torná-la mais prazerosa e significativa em suas reflexões. 133 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Em sala de aula é importante o professor dar prioridade a textos literários completos, pois fragmentos nem sempre atraem a atenção do estudante ou mostram as possibilidades interpretativas do texto, mesmo quando o mediador tem o intuito de abordar aspectos gramaticais do texto, “A experiência de leitura, portanto, não consiste simplesmente em decifrar o código de um texto e muito menos em lhe atribuir um único sentido” (YUNES, 2003, p. 34). Portanto priorizar a leitura integral em sala de aula ou em espaços educativos, incentiva o gosto pela leitura e ajuda o estudante compreender melhor o conteúdo a ser explorado. No projeto “Memórias das Escritoras Brasileiras”, foi priorizado esse estilo de leitura, e quando não era possível concluir a obra em 2horas aula, deixava-se a conclusão para a aula seguinte, isso aguçava a curiosidade dos estudantes, fazendo-os perceber como o ato de ler é bom e proveitoso, não necessariamente sendo maçante, como os jovens costumam reclamar. Durante todas as etapas do Projeto Memórias das Escritoras Brasileiras na Escola nos preocupamos em levar leituras que estivessem de acordo com as 134 necessidades das turmas e que tocasse nas questões do feminino de uma maneira agradável e de simples entendimento. Desde os primeiros passos, a literatura feminina esteve associada às temáticas do cotidiano, da identidade e do doméstico sob uma estética intimista e confessional. E justamente por isso fora considerada menor: por tratar de trivialidades, amenidades e assuntos menos sérios, numa época em que o mundo privado era estigmatizado e, junto com ele, sua protagonista: a mulher. (BARBOSA, 2011. P.76) Ainda vivemos em uma sociedade que se refere à literatura feminina e discussões feministas como assunto menor, mais trabalhamos com os estudantes a visão realista dessas obras e a importância de não se ignorar as temáticas feministas nos contextos atuais. A LITERATURA FEMININA EM SALA DE AULA A escritora possui um jeito próprio de abordar temáticas diferenciadas e se destaca quando os temas são amor e família. Marina Colasanti escreve desde a Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. infância, quando morava em solo Italiano e foi ganhadora de vários prêmios como: Prêmio Jabuti de Poesia por Rota de Colisão (1993). As obras infantis da escritora, sempre trazem uma reflexão feminina, muito pertinente para que as crianças aprendam desde pequenas a importância de se respeitar as mulheres e os seres humanos em geral. Para estudar a autora com alunos de uma escola pública do interior da Bahia, escolhemos as obras: “Ofélia, a ovelha” e “Moça tecelã”. Essas obras têm uma sensibilidade muito grande, a primeira trata da aceitação física da mulher e sua necessidade de mudança, e a segunda obra trata dos desejos e decepções de um casamento vivido por uma mulher independente. São obras bem ilustradas de linguagem essencialmente fácil que promove o entendimento do aluno e o gosto pela leitura. Em tempos de tantas mutilações femininas na busca da eterna juventude achamos oportuno ler “Ofélia, a ovelha”, fábula que reflete as inquietudes femininas e suas descobertas através da experiência de assumir uma nova identidade, que buscava a aceitação pessoal: 135 Ele não podia saber, como sabia Ofélia, que aquela ovelha não era a mesma que havia partidos. Continuava talvez um pouquinho sem graça, uma pouco sujinha como todas as outras. Mais tinha andado sozinho pelo mundo. E agora, embora ovelha entre ovelha, era única, diferente de todas as outras. (COLASSANTI, 2003, p.16) O texto literário de autoria feminina é então uma transnominação da saga das mulheres, também como uma ferramenta de alerta e denúncia onde há uma voz por detrás das letras. As mais difíceis batalhas já foram travadas e as mulheres, de uma forma geral, vivem a “completa” independência conquistada, especialmente percebida pelo texto literário em si. Essa realidade é encontrada nas obras da escritora Marina Colassanti. “Ofélia, a Ovelha”, é na verdade uma fábula, na qual a personagem principal é a ovelhinha Ofélia que um belo dia estava matando a sede no riacho e observou sua aparência no reflexo da água, viu que seus pelos estavam encardidos e os cachos amarelados, e pensou que precisava mudar o aspecto. Ofélia então decidiu ir à feira e lá encontrou uma pele de raposa, achou muito bonita e decidiu apanhar para usar. Uma coisa a ovelhinha não pensou, com a nova pele ela estaria assumindo uma nova Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. identidade. Por conta da nova identidade, Ofélia correu muitos perigos e quase morreu, pois foi confundida com uma raposa e os fazendeiros da região tentaram matá-la. Após uma longa caminhada, Ofélia sentiu saudade do rebanho e do pastor. Prosseguiu a caminhada e sentiu sua pele escorregar do corpo. A ovelhinha reencontrou o seu antigo rebanho, mais ela já não era igual às outras, pois tinha andado pelo mundo sozinha adquirindo experiências diferentes em lugares diferentes. A segunda obra trabalhada foi “Moça tecelã” da escritora Marina Colasanti. Essa obra, conta a história de uma jovem que gostava do tear, tecia belos tecidos durante o dia. Em um belo dia após refletir a vida, percebeu que necessitava de um companheiro, então continuou a tecer seus tapetes e de repente bateram na porta, ela nem precisou abrir, pois o moço foi entrando em sua vida. A moça começou a pensar como seriam os filhos que teria com o rapaz, mais este se pensou em ter filhos, logo esqueceu. O marido conheceu o poder do tear, e logo foi fazendo exigências com: casa 136 maior, palácio, cavalos... E a moça tecia dia e noite os caprichos do marido. E pensou como seria bom estar sozinha novamente. E quando anoiteceu a moça sentou ao tear, enquanto o marido dormia começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, o palácio e por último o seu marido, e se viu novamente na vida simples e tranquila em que vivia. A moça tecelã usou de sua autonomia, para decidir o que era melhor para sua vida, percebeu que permanecer casada não a estava fazendo feliz. Nas duas obras, percebemos que a mulher é o personagem principal, é o ser pensante, que tem sentimento apesar dos relances de fragilidade é o ser forte em busca de mudanças. As duas personagens retratam muito bem a figura da mulher do século XXI: determinada, forte, ousada e idealista. Essas leituras devem fazer parte da rotina das crianças, pois irá fortalecer o combate ao machismo que ainda ronda a cabeça de homens e mulheres. As escritoras brasileiras já enfrentaram bastante preconceito e não tinham sua literatura reconhecida e não eram aceitas em espaços públicos, antes frequentados por homens. Essas primeiras escritoras sentiram bem a exclusão da mulher do espaço público, quando começaram a receber a censura da critica literária Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. (essenciamete exercida pelo homem) e o crivo da sociedade da época. Percebe-se que as escritoras resolvem apontar sua limitação, em seus prefácios, informando mesmo que nem podem competir com os escritores por terem pouca instrução, porque se dedicam ao fazer literário entre seus afazeres domésticos e outros contratempos. (ALVES, 1999.p.108) No inicio do século XX as mulheres brasileiras ainda eram vistas como essencialmente responsáveis pelo funcionamento domestico e não tinham sua literatura respeitada e reconhecida perante a sociedade, pois os críticos literários eram do sexo masculino e estavam vestidos com as capas do preconceito e máximo. Uma experiência de leitura: PERFIL DOS LEITORES Os estudantes que participaram das oficinas com obras da escritora Marina Colasanti, estudam no Ginásio Municipal Dr. Celi de Freitas. Em 2014, trabalhamos com uma turma no segundo semestre, eles estavam cursando o 3º ano do Ensino fundamental I. Os estudantes estavam na faixa etária de 07 a 08 anos. A maioria já estava alfabetizada e tinha um nível de discussão muito bom. Receberam a contação de história com muito entusiasmo, era uma turma que tinha a verdadeira “sede” pela leitura. Em 2015, trabalhamos com outra turma de 3º ano do Ensino Fundamental I, no período da tarde, com estudantes na faixa etária de 07 a 08 anos. A turma tem sofrido com os problemas enfrentados pela educação nacional. Falta biblioteca, laboratórios de ciência e de informática em grande parte das escolas da rede pública da educação básica. Existe um atraso na alfabetização das crianças, ausência de recursos didáticos que é diferente entre as regiões, e isso dificulta o aprendizado. A violência urbana também interfere no aprendizado das crianças. Portanto alguns alunos ainda não dominam a leitura e a escrita, estão em processo de alfabetização, mas gostam bastante de ouvir a contação de história e na medida do possível produzem textos escritos. Percebemos que os estudantes interagem muito bem nas discussões, sobre a temática de gênero, e não demonstraram surpresa ou rejeição às temáticas propostas 137 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. nas obras estudadas. Consideramos uma troca de conhecimento enriquecedora, tanto para a pesquisadora, quanto para os estudantes. Uma experiência de leitura: PRODUÇÕES DOS LEITORES Na primeira oficina, intitulada “A aparência da Ovelha Ofélia”, 2014, trabalhamos com a obra “Ofélia, a ovelha”. Após a leitura e comentários sobre o texto, os alunos ilustraram e escrevam a importância do ser humano se valorizar e não ficar preso a aspecto físico, pois isto pode afetar a capacidade de ser feliz. Após as orientações os alunos produzirem imagens, que serviram para montagem de dois cartazes com as seguintes produções: Fig.1 Fig.2 138 Nos dois cartazes aparecem produções realizadas pelos alunos durante as oficinas de leitura. Na figura 1 e 2, eles recontam a fábula com ilustrações, mostrando que todos somos iguais com as nossas diferenças, pois em um vídeo que assistiram antes da leitura da fábula contava que havia uma ovelha que era negra e que sofria preconceito quando estava com sua lã grande e se destacava das demais e quando era tosada ficava com a mesma aparência das demais, mais havia uma diferença a Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. ovelha negra amava a sua aparência e com o passar do tempo as suas amigas queriam ser como ela: bonita, lãs brilhantes e bem pateadas e com a estima em alta. Na oficina intitulada: “A Moça Tecelã: um olhar feminino”,2015, trabalhamos com a obra “Moça tecelã” e depois de realizada a contação de história, discussão e brincadeiras, solicitamos que os estudantes escrevessem um novo final para a o conto “A Moça Tecelã” e ilustrassem o texto. A seguir, apresentamos os resultados da proposta. Texto 1 139 A moça tecelã “No final a moça tecelã se transformou em uma princesa, ela fez um castelo bem bonito de cores: rosa, roxo, amarelo, branco e vermelho. Depois ela casou-se e teve três filhos e ai virou uma rainha”. (Karine) Texto 2 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. “A moça tecelã terminou com o marido, por que achava ele egoísta. Ela não era feliz, então encontrou um homem que queria ser feliz com ela, e depois de dois anos este homem a pediu em casamento. A moça tecelã desmaiou de alegria e felicidade e elas viverão felizes”. (Carolina) Texto 3 140 “A moça tecelã ficou com o marido e teve muitos filhos, depois teve que fazer uma viagem, deixou as filhas com o marido. Ela nunca mais volta, o marido ficou muito triste. A moça tecelã não quis mais voltar para casa, pois quis ser muito rica. O marido construiu um castelo com os filhos e viverão felizes para sempre”. (Tatiana) Texto 4 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. “Eles podiam viajar, e se não querem ter filho também podem ser felizes para sempre” (Emilly) No texto 1 observamos que o novo final dado a história foi baseado nos contos de fadas antigos, onde a mocinha casa-se com o mocinho e vive feliz para sempre. Ela também ilustra uma família tradicional com pai, mãe e filhos. Sabemos que as novas famílias fogem a esse padrão social, muitas crianças hoje não são criadas pelo pai e sim um padrasto, novo companheiro ou companheira da mãe. Muitos avôs também assumem o papel de pai e mãe das crianças do século XXI, entretanto essas famílias não apareceram na produção dos alunos. No texto 2 outra estudante descreve que o marido era egoísta e por isso a Moça Tecelã deveria romper com esse marido e casar-se com outra que a fizesse feliz. Esta analise já foge aos modelos tradicionais da sociedade, pois a estudante propõe um novo casamento para que a personagem fosse feliz e tivesse os filhos que tanto sonhou. A ilustração foi uma casa simples, relembrando a primeira casa da Moça Tecelã. Já no texto 3 o final dado pela aluna é levemente tradicional e no seu fim rompe com as tradições familiares. A personagem casa e tem filhos, porem decide ir embora em busca de um enriquecimento e decide não voltar. Este texto reflete uma realidade de Muitas mulheres de hoje que ficam divididas entre se doar para família ou seguir carreira profissional em busca de sua independência financeira. No texto 4 e último a estudante Emilly continua com uma proposta um pouco fora dos padrões tradicionais, a aluna sugere que os personagem se casem, porem que não tenham filhos, rompendo com os ensinamentos cristãos,que propõe que todo casal deve gerar filhos para dar continuidade a sua descendência, portanto a estudante propõe um casamento com expectativas diferentes, mais que busca no final a felicidade. Com os novos finais para o Conto “Moça Tecelã”, foi notória a boa influencia que a literatura feminina causou nas estudantes. De acordo com BARBOSA, “É, portanto, essa vertente dos estudos literários sinaliza o papel da literatura como espaço de representações de identidade de gênero é, sobretudo, de resistência, luta e renovação social”. (BARBOSA, 2011. P.95). A literatura sempre vai contribuir com a renovação social, através dos estudos de gênero muitas barreiras e preconceitos serão vencidos, portanto cabe aos profissionais da educação, escolher uma literatura que 141 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. contribua para o sujeito seja critico e reflexivo, não só com as temáticas de gênero, mais todas as discussões e reflexões necessárias para termos uma sociedade mais respeitosa e igualitária. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados obtidos foram bastante significativos, dentre os quais a participação efetiva dos alunos em sala de aula que compartilharam das discussões de maneira segura, encarando com naturalidade os temas propostos e demonstrando familiaridade com as questões de gênero, como relatou a professora da classe, que acompanhou todas as atividades. Consideramos que os experimentos de leitura dentro do Projeto das Escritoras Brasileiras foram muito relevantes, percebemos que a literatura de autoria feminina traz discussões e reflexões essenciais para os estudantes. Penso que os profissionais de educação não devem negar essas possibilidades de leituras aos seus alunos. 142 Percebemos que ainda existe um machismo, mais as mulheres tem superado e mostrado o seu potencia na sociedade brasileira. Um tema que vejo muito importante para discussões futuras é a quentão do novo conceito de família, na sociedade atual é cada vez mais difícil pensar no modelo tradicional de família, isso é percebido pelos estudantes que já convivem com as novas formações familiares, quando o pai é padrasto ou quando a criança tem duas referências femininas como mãe ou duas referencias masculinas como pai que são realidades das novas formações das famílias contemporâneas. REFERÊNCIAS Barbosa, Adriana. Ficção do Feminino. Vitória da Conquista. UESB, 2011. COLASANTI, Marina. A moça tecelã. São Paulo. Global, 2004. COLASANTI, Marina. Ofélia, a ovelha. São Paulo. Global, 2003. CRISTINA, Ramalho. Literatura e feminismo proposta teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro. ELO Editora e distribuidora, 1999. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. ORLANDI, E. (2000). Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes. 2.ª ed. PALO, Maria José. Literatura infantil: voz de crianças. São Paulo. Ática, 2006. YUNES,Eliana. A experiência da leitura. São Paulo. Loyola, 2003. ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo. Global Editora, 2003. 143 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 144 BIBLIOTECA ESCOLAR: espaço e tempo para o letramento literário Ana Claudia Costa de Aquino Teixeira ProfLetras/UEFS [email protected] Flavia Aninger de Barros Rocha Orientadora/ProfLetras/UEFS [email protected] RESUMO O tema da leitura e dos letramentos tem suscitado discussões em âmbito nacional devido ao desempenho não satisfatório dos estudantes em indicadores nacionais e internacionais. Buscando compreender essa realidade numa turma de 5º Ano de uma escola municipal de Feira de Santana, observações preliminares apontam que os índices de reprovação dizem respeito ao baixo desempenho da compreensão leitora. Nessa perspectiva, o presente estudo, Biblioteca Escolar: espaço e tempo para o letramento literário, desenvolvido como projeto de trabalho final de curso no ProfLetras/Uefs, procura responder ao seguinte problema de pesquisa: Como o espaço da biblioteca escolar pode favorecer o letramento literário? A escola, concebida como espaço diverso e dinâmico, comporta multifaces para a aprendizagem. Sendo pensada e estruturada para favorecer a aprendizagem, não pode priorizar a sala de aula como espaço único para as práticas de letramento. Contribuir para a construção de conhecimentos que auxiliarão na formação de indivíduos que se posicionem criticamente frente às demandas crescentes que se impõem à sociedade moderna, exige por parte de todos os envolvidos no processo educacional um olhar para a escola como sendo uma luneta sempre direcionada ao mundo. Nesta escola, cada indivíduo precisa se conhecer e se reconhecer como parte da história que se constrói todos os dias, dentro e fora de seus muros. Portanto, é necessário que este indivíduo se reconheça em todos os ambientes que formam a escola. Podemos, metaforicamente, perceber a biblioteca escolar como um organismo vivo e, portanto, um espaço que não pode parar de crescer. Nessa perspectiva, qual corpo não sente os efeitos de um órgão parado ou parcialmente em funcionamento? Para o último estado, o corpo fará um esforço extra para cumprir suas funções vitais e para o primeiro estado, sofrerá danos talvez irreversíveis. Nesse sentido, o presente trabalho apresenta uma proposta de pesquisa-ação que objetiva dar visibilidade e funcionalidade ao espaço da biblioteca escolar numa escola municipal de Feira de Santana, no que se refere ao letramento que se faz por meio da literatura infantojuvenil, capaz de desencadear um movimento de descoberta do sujeito leitor. Fundamentada em Yunes (2002; 2009), Kleiman (2005), Solé (1998), Cosson (2014), Silva (1999) entre outros, a pesquisa - utilizando-se de estratégias de abordagem qualitativa, recorre às técnicas de observação direta e questionário para a coleta de dados - objetiva refletir e descrever as práticas de leitura no espaço da biblioteca escolar, propondo atividades, organizadas em sequência didática, que favoreçam o contato com textos literários para a ampliação da compreensão leitora. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. PALAVRAS-CHAVE: Biblioteca escolar; Leitura; Letramento; Literatura. APRESENTAÇÃO Por ser múltipla e diversa, a leitura é um território vasto para ser explorado. Por meio dela os sujeitos interagem na comunidade em que vivem. No presente trabalho, exploraremos a leitura da literatura infanto-juvenil, suas possibilidades e contribuições para fortalecer o letramento de meninos e meninas de 5º Ano do Ensino Fundamental I, inseridos numa escola municipal do município de Feira de Santana. Este trabalho visa ainda reconhecer a importância da literatura no ensino de língua materna, objetivando encontrar novos caminhos para um uso significativo do espaço da biblioteca escolar. Dar visibilidade à biblioteca da escola como espaço de letramento impõe aos envolvidos no processo de aprendizagem ressignificar os espaços que compõe uma unidade escolar. A sala de aula não é o único espaço de aprendizagens, e a biblioteca juntamente com os outros ambientes da escola, é mais um espaço potencial para 146 incrementar as múltiplas possibilidades de aquisição de novos saberes através dos múltiplos letramentos. As atuais discussões em torno da competência leitora apontam para uma retomada de posicionamento no que diz respeito às práticas de ensino. Discute-se de quem é a responsabilidade pela formação do leitor competente; há o debate sobre como se deve ensinar a ler e, ainda, o porquê do fracasso do ensino de leitura em larga escala. Discutir as práticas de ensino implica também discutir o processo de alfabetização que, visto como processo contínuo, não abarca apenas a leitura do código, mas também a relação que essa decodificação tem com a leitura do mundo, o que chamamos de letramento. É necessário discutir a demanda de que o usuário da língua deve assumir uma postura ativa em relação ao seu próprio processo de aprender, checando no cotidiano as várias possibilidades das aprendizagens conquistadas. Pensar o letramento como um direito ao acesso dos bens culturais presentes na sociedade é papel de todo e qualquer educador. Nessa perspectiva, o letramento se torna condição fundamental para meninos e meninas em busca de Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. desbravar o mundo ao redor. Sem este, são meros replicadores de aulas, espaço e tempo em que suas vozes são mantidas em segundo plano, abrindo caminho não apenas o fracasso escolar, mas para seus potenciais talentos. Nesse sentido, fortalecer o letramento deve ser uma busca constante no espaço escolar. Pesquisar, aplicar e checar estratégias nessa direção mobiliza os educadores para um processo dinâmico do ensinar e aprender, na busca por ações significativas que viabilizem a aquisição de novos conhecimentos e competências. Sendo assim, este projeto se configura em uma pesquisa-ação com o objetivo principal de intervir num ambiente escolar, buscando conhecer e conferir práticas leitoras e também propor atividades envolvendo leitura de literatura na biblioteca escolar com a finalidade de favorecer o letramento e, ainda, analisar os efeitos dessa ação. 2 LEITURA(S) E LETRAMENTO(S) Quantas leituras cabem no mundo? Tantas quantas os nossos sentidos nos possibilitem. Lemos o céu e lemos a terra; lemos os gestos e o infinito; lemos com os olhos e com o nariz; lemos silêncios e ausências. Ler com os sentidos nos possibilita avançar na leitura dos sinais convencionados pela sociedade moderna, porque a leitura vai muito além de decifrar a escrita que a produziu, ler é ver e sentir. Sendo uma habilidade tão própria da vivência humana, a leitura deve ser ampliada a fim de possibilitar ao indivíduo o sentimento de pertencer ao mundo letrado, mas também a condição de se perceber como construtor das histórias que compõem a História. Em geral, ao falarmos de leitura direcionamos o nosso discurso e a nossa atenção aos índices de aprovação e reprovação dos exames nacionais (Inaf, Prova Brasil) e internacionais (PISA) que sinalizam para os nossos graves problemas. Mas é importante lembrar que ler é uma atitude de interpretação do mundo que nasce com o indivíduo e que vai muito além de decifrar códigos convencionados para reger uma sociedade. É por meio do ato de ler que concebemos o mundo, o recriamos, e dele tomamos posse para outras leituras ao longo da vida. Ler na escola é uma das 147 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. muitas leituras que realizamos no cotidiano porque ler está sempre além do papel, é ver, sentir, ouvir e estabelecer novas relações e interpretações. O desafio de unir a leitura escolar à leitura de mundo tem sido tema de muitas discussões, como as importantes contribuições de Yunes (2002; 2009) e Antunes (2009). Apesar dos avanços nas discussões e estudos, a distância entre teoria e prática continua sendo sentida no cotidiano das agências formais de ensino. Desde o início da década de 80, o ensino de Língua Portuguesa na escola tem sido o centro da discussão acerca da necessidade de melhorar a qualidade da educação no País. No ensino fundamental, o eixo da discussão, no que se refere ao fracasso escolar, tem sido a questão da leitura e da escrita. Sabe-se que os índices brasileiros de repetência nas séries iniciais — inaceitáveis mesmo em países muito mais pobres — estão diretamente ligados à dificuldade que a escola tem de ensinar a ler e a escrever (BRASIL, 1998, p. 19). Essa dificuldade da escola brasileira, como confirmam os PCNs (1998), no trecho acima, resulta em uma falha no seu papel primordial que é de favorecer que 148 meninos e meninas em idade adequada se apropriem de habilidades que os emancipem, os tornando autônomos em suas comunidades por meio do uso adequado às práticas cotidianas da linguagem. Por isso, pensar as estratégias de ensino para melhor viabilizar a leitura no espaço escolar e fora dela é uma urgência da qual não podemos nos eximir. As práticas de ensino são concebidas para promover o imbricar das leituras – leitura de mundo + leitura formal –, mas podem não cumprir ou cumprir parcialmente seu papel e, são passíveis de ajustes. Em primeiro lugar, pensadas de forma paralelas e não cruzadas às muitas realidades do cotidiano escolar, as práticas de ensino se tornam apenas ecos, nos quais o discurso do professor em nada aponta, muitas vezes, para as vivências dos estudantes. A falha também se realiza por não posicionar o aluno/protagonista como foco das aprendizagens escolares, deixando de convidá-lo a colaborar na construção, participação e ampliação de seus saberes. Assim, não há espaço para a palavra da criança e, a ela, resta repetir o discurso valorizado do professor, postura escolar tão combatida por Freire (2011, p.43): Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. [...] a alfabetização como ato de conhecimento, como ato criador e como ato político é um esforço de leitura do mundo e da palavra [...] na nova caminhada que começa até os oprimidos, se desfaça de todas as marcas autoritárias e comece, na verdade, a acreditar nas massas populares. Já não apenas fale a elas, mas as ouça, para poder falar com elas. Se compararmos o ingresso escolar a uma viagem, teremos que admitir que ninguém viaja sem uma bagagem. Há quem leve pouca, outros que levem muita e tantos que não levam bagagem visível, mas a levam no coração. Ao chegar no espaço escolar, viagem necessária nas sociedades letradas, todos trazem uma bagagem, adequadas ou não ao novo destino, são bagagens de vida, contextos culturais e individuais, limitações e potencialidades. É dever da escola conhecer, valorizar, analisar cada bagagem e também apresentar os atrativos para essa viagem chamada escola. A escola pode muito no que diz respeito à ampliação da visão de mundo dos estudantes. É ela que, por meio da leitura e da escrita, tenta ocupar com resultados questionáveis, ao longo do tempo, a posição de porto seguro para a construção das sociedades. É importante lembrar que, há muitos estudantes que passaram pelo espaço escolar – lugar onde os mistérios da leitura e da escrita deveriam ser desvendados – que ainda se perguntam se a viagem valeu a pena. A esse respeito, Yunes (2002, p.15) nos provoca a refletir: Como a leitura, este portal extraordinário para um mundo novo, sendo a princípio tão sedutor, pode se transformar no pesadelo de muitos, vida a fora? E não é esta a única consequência trágica da relação com a escrita: o bloqueio à leitura vai se delinear como obstáculo mais sério a toda a aprendizagem qualificada [...]. No espaço escolar, dois mundos são apresentados aos novos viajantes, o oral e o escrito e estes nunca se contrapõem, mas se complementam e dialogam para a produção e fruição de novos discursos. Fragmentá-los provoca muitas vezes consequências lastimáveis porque viajar não se torna tão interessante quando somente o outro diz do seu mundo. Todos dizem dos seus lugares, porque todos têm 149 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. o que ensinar, têm o que trocar e querem descobrir. “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo.” (Freire, 2011, p.39). Nessa direção, o contar histórias, ou o uso do texto literário no cotidiano escolar promove, além do cruzamento dos discursos oral e escrito, a receptividade ou abertura para outros mundos, outras vivências. É no contato e nas trocas de experiências geradas pelo encontro com o texto literário que os estudantes, com o auxílio do mediador/educador, vão ampliando a bagagem cultural, gerando novas habilidades em se expressar e se comunicar com autonomia. Yunes (2009, p.13) explica este processo: Saber falar o que se quer dizer e de forma que outros o entendam, é exercício importante para dominar o discurso que se começa a esboçar no uso que cada um faz da língua, na intenção de se expressar e se comunicar com os outros. Seu contraponto é ouvir, saber escutar, concentrar a atenção na palavra do outro, esperar para poder falar, "arrumar as ideias" pouco a pouco, dominando o impulso de falar concomitantemente, de causar mais ruído do que comunicação. 150 Portanto, para além do ler e do escrever, a escola deve promover momentos de interação nos quais seja possível a todos exercitar o direito de dizer sobre suas experiências e, com isso, empregar a atitude de saber ouvir, cumprindo a meta de ampliar o letramento tão necessário no cotidiano das sociedades modernas. Às práticas que priorizam metas para além da leitura pela leitura e que capacitam o indivíduo para agir no mundo e reagir a ele, denominamos letramento apesar de que “a palavra ‘letramento’ não está ainda dicionarizada” (Kleiman, 2006). Além disso, é importante compreender que, nessa perspectiva, o letramento se inicia antes mesmo de as crianças serem alfabetizadas. Dele lançamos mão para a compreensão de uma sociedade que passa continuamente por uma evolução nas formas de dizer o mundo. Mas o que é e como se faz o letramento? Segundo Kleiman (2006, p. 19), Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos. As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou não-alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de prática [...]. Ainda com base nos estudos de Kleiman (2006), letramento não é um método de ensino como muitas vezes é concebido. O letramento é uma condição de se perceber no mundo, de pensar e agir sobre ele através das várias leituras que se realiza, seja a leitura dos discursos (textos orais) ou de textos propriamente ditos. Nas sociedades regidas pela escrita, os níveis de letramento são evidenciados pelo uso que cada indivíduo faz da língua. Fazemos o letramento enquanto vivemos e participamos de práticas sociais diárias (eventos de letramento escolares e não escolares): ler placas, fazer contas no supermercado, vender produtos, mediar situações, ler na biblioteca da escola. O letramento é uma ampliação da alfabetização, pois envolve compreender não somente o código, mas também, o seu sentido nas situações de uso. Por isso, as práticas de ensino devem colaborar para que os estudantes tenham êxito em seu desempenho do fazer diário em variadas demandas a que estão expostos. 3 O TEXTO LITERÁRIO: CONTRIBUIÇÕES PARA A FORMAÇÃO DO LEITOR NAS SÉRIES INICIAIS Uma criança, um texto, livros. Folheia, visualiza, brinca de ler. Os textos e suas magias. Seus encantos nos levam para muitas e tantas outras formas de leitura. Ler imagens, ler palavras; refletir, indagar, criar, recriar. Eis o papel primordial da leitura: permitir a reflexão, suscitar a imaginação, analisar as construções da língua e perceber as infinitas possibilidades da linguagem. Dentre as muitas leituras, a leitura de literatura nos aguça a apreciar a vida “por trás do espelho”. É a literatura que nos permite uma contra-leitura do real e as inúmeras possibilidades de ler uma mesma realidade. Mas de qual literatura estamos nós aqui a nos pronunciar? 151 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O termo literatura pode nos remeter aos escritos que tratam de áreas profissionais específicas como literatura médica ou jurídica. Neste trabalho, a literatura (ou o texto literário) em pauta diz respeito àquela que se relaciona direta e exclusivamente com a arte da palavra. De acordo com Proença Filho (1986), o que difere o texto literário do texto não literário é o fato deste último se caracterizar pela transparência, por objetivar diretamente a informação. O texto literário é uma criação artística e sua principal característica é “a marca da opacidade: abre-se a um tipo específico de descodificação ligado à capacidade e ao universo cultural do receptor” (PROENÇA FILHO, 1986, p. 8). A linguagem específica da literatura é o seu principal aspecto de distinção entre outros textos (mas é importante sinalizar que há a possibilidade de se encontrar traços literários em textos não literários: um discurso de paraninfo de uma turma de formandos elaborado em forma de cordel (Oliveira, 2010) pode ser tomado como um exemplo dessa ocorrência), pela linguagem a literatura almeja alcançar aspectos 152 estéticos e criar o universo imaginário e ficcional. Sendo assim o que realmente marca um texto tornando-o literário? A literariedade – conjunto de características específicas (linguísticas, semióticas, sociológicas que permitem considerar um texto como literário) – considerada como “um desvio em relação às ocorrências mais ordinárias da linguagem” (Souza, 2003, p. 47). Os PCNs (Brasil, 1997) sinalizam que “a literatura não é cópia do real, nem puro exercício de linguagem, tampouco a mera fantasia que se asilou dos sentidos do mundo e da história dos homens” (Brasil, 1997, p.37), ela se relaciona com a realidade de forma indireta. O real é apreendido pelo imaginário e assim escapa da elaboração convencional. Essas considerações marcam a literatura infantil, pois faz acordar a imaginação por meio de uma linguagem que visa aproximar-se do universo da criança. Mas é importante considerar que a literatura para crianças, nos moldes em que hoje se apresenta, nem sempre foi assim. Até o século XVII a criação literária não era destinada à infância até porque a infância não era uma etapa relevante para a Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. sociedade da época. Somente com o surgimento da Burguesia a infância passa a ser valorizada. “A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas igualmente meio de controle do desenvolvimento intelectual da criança e manipulação de suas emoções (ZILBERMAN, 2003, 15)”. A criança vista como um ser “vazio”, era concebida nesse momento como indivíduo que precisa ser moldado às exigências do contexto social marcado pela ideia de perpetuação das propriedades da família. Cria-se então a Pedagogia e esta, por sua vez, inicia um mercado próprio do livro infantil e juvenil com o projeto de levar a cabo os desejos da burguesia. A ascensão da escola faz surgir um gênero literário com o objetivo maior de trazer ordem ao novo modelo de família, portanto produzido para transmitir valores morais e influenciar de forma decisiva as condutas. Não há motivação para ensinar a literatura, ela é apenas um pretexto. As primeiras produções que iniciam uma ruptura com a proposta burguesa diz respeito aos escritos de Charles Perrault no século XVII e os irmãos Grimm, no início do século XIX. As narrativas são marcadas por atributos extraordinários como herói, o mágico e o ser encantado, iniciando assim um novo tempo para a literatura infantil e seu público alvo. Por deslocar a temática de cunho real, trazendo o fantástico para o texto destinado à infância, a literatura infantil foi condenada ao desprestígio (Zilberman, 2003) exatamente por não atender as “prerrogativas pedagógicas” da época e tentar falsificar a realidade. Perseguir o objetivo da literatura infantil foi a missão de muitos escritores e, aqui no Brasil, Monteiro Lobato foi um dos que inaugurou essa caminhada dando vida a uma boneca de pano e a um sabugo de milho, personagens que conviveram por muito tempo no imaginário das crianças, dos jovens e dos adultos. E pergunto: O que fazemos com uma boneca e um sabugo de milho? Uma das possíveis respostas pode ser brincar e, não mentiríamos se chegássemos à conclusão de que um dos objetivos da literatura infantil é brincar com o livro e seu texto. Ler um livro deve(ria) ter os mesmos objetivos do brincar: manipular, experimentar, repetir quantas vezes quiser. Por esta razão o livro de literatura infantil deve fazer parte da “pequena bagagem” das crianças (Não se enganem, dos adultos também!) e reconhecida como item de primeira necessidade. 153 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Os letramentos, como entendidos anteriormente, são a base da vida humana em coletividade, sejam aqueles construídos nas relações sociais diárias ou construídos no espaço escolar. Portanto, entendido como construção social, o letramento é plural pois, são muitos e específicos. Dentre os muitos letramentos a que estamos expostos, o letramento literário talvez seja o que nos acompanha desde muito cedo: nas contações de histórias na hora de dormir, nos causos, nas cantorias e em tantas outras manifestações literárias, nas poesias cantadas e encenadas. No espaço escolar, a leitura de literatura, antes apreendida pelo ouvir, toma forma nas páginas, nas imagens, nas palavras escritas na materialidade do texto. Por meio também do livro, o letramento literário é construído, abrindo portas para o fortalecimento da leitura e, consequentemente, da escrita. O texto literário, ricamente polissêmico, além de favorecer o desenvolvimento da subjetividade e da discussão das experiências humanas, pode produzir momentos de aprendizagem significativos, pois toca em diversas áreas do conhecimento. O letramento literário [...] possui uma configuração especial. Pela própria condição de existência da escrita literária [...] o processo de letramento que se faz via textos literários compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também, e sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio. Daí sua importância na escola, ou melhor, sua importância em qualquer processo de letramento, seja aquele oferecido pela escola, seja aquele que se encontra difuso na sociedade (COSSON, 2014, p. 12). 154 Inicialmente podemos conceber o letramento literário como uma das variadas práticas sociais da escrita que se configura na literatura. Assim, a sua conceituação está diretamente relacionada à leitura efetiva de textos literários tanto no espaço escolar como fora dele. Sendo uma prática social, a escola tem responsabilidade de vivenciá-lo a fim de não somente apresentar o texto literário mas, também, incorporá-lo às práticas escolares 4 BIBLIOTECA ESCOLAR: ESPAÇO E TEMPO PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Entendemos que a escola, através de práticas de dinamização da biblioteca, pode mobilizar vivências de leitura que impulsionem uma cultura de leitura, uma cultura que traz à luz leitores e autores de um novo mundo, fortalecendo a identidade leitora e construindo uma rede de aprendizagens significativas para os sujeitos. Para a escola desenvolver um trabalho pedagógico que tenha, no limite, tal finalidade, julgamos indispensável que o professor lance mão de novos instrumentos de ensino em acréscimo à exposição oral e ao livro didático adotado. E, entre, eles, a biblioteca escolar pode ocupar um lugar destacado, não como depósito do saber acumulado, mas sobretudo como agência disseminadora desse saber e promotora da leitura (SILVA, 1999. p. 20). Mas qual é o lugar da biblioteca escolar? Para Silva (1999), a biblioteca escolar pode ser comparada à Bela Adormecida. Fechada em si mesma. Contemplada, através das frestas ou dos vidros das janelas, como sendo um artefato de museu, inerte mas (ainda que alguns ignorem) detentora de parte da História. Quem poderá despertá-la do seu sono profundo? A quem recairá a incumbência de beijá-la e trazer de volta o seu encanto? Que seja uma Sherazade, para lhe dar as devidas honras de princesa, herdeira de muitos tesouros. Quase invisível e muitas vezes marginalizada no espaço escolar, a biblioteca é um potencial no que se refere ao ensino/aprendizagem, pois viabiliza a circulação do conhecimento científico, a divulgação de informações e a ampliação de práticas de leitura com fins a consolidação dos múltiplos letramentos. É um espaço de trocas e de descobertas, portanto, conceber a biblioteca como espaço de silêncio vai de encontro às práticas reais de produção do conhecimento que ocorrem nas interações sociais que se instauram no compartilhamento de ideias. Distante de cumprir suas reais funções, a biblioteca não faz parte da realidade da maioria das escolas (Silva, 1999), mas alimenta o imaginário das crianças que julgam encontrar ali as mais belas histórias de mocinhos e princesas e os grossos e pesados livros de pesquisa para fortalecer seus vínculos com os estudos e estabelecer novos círculos de amigos leitores, ouvindo e se fazendo ouvir nas muitas trocas sobre leituras realizadas. 155 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Dar voz a estes sujeitos situados no espaço escolar, além de confirmar o direito de falar e de se fazer ouvir, lança as potenciais sementes a germinar numa sociedade tão carente em dar sentidos à palavra recepcionada através da leitura de literatura. A biblioteca escolar, além de espaço para o letramento informacional, digital e tantos outros, é o lugar onde o tempo pode e deve ser tecido em função do pensar e falar sobre a literatura. Para promover a ampliação da compreensão leitora no cotidiano escolar propomos atividades organizadas em sequência didática entendendo tratar-se de uma organização que visa a progressão de conhecimentos sobre determinado objeto de aprendizagem, aqui leitura de crônicas literárias, até que se alcance um saber fazer. Segundo Dolz (2004 p. 51), a sequência didática é: [...] uma sequência de módulos de ensino, organizados conjuntamente para melhorar uma determinada prática de linguagem. As sequências didáticas instauram uma primeira relação entre um projeto de apropriação de uma prática de linguagem e os instrumentos que facilitam essa apropriação. 156 Sendo assim, lança mão de saberes construídos pelos autores Baldi (2009), Cosson (2014) e Solé (1998). É no espaço da biblioteca escolar que se pretende, com o auxílio das propostas de estratégias de compreensão leitora elaboradas por Solé (1998) compreendidas como pré-leitura (previsões sobre o texto), leitura (leitura compartilhada/independente do texto) e pós-leitura (resumo/avaliação do texto lido), intervir de modo que as atividades da SD sejam aplicadas, observadas, adequadas à realidade e às necessidades da turma e avaliadas percebendo os desdobramentos de cada ação proposta. Nesse sentido, Baldi (2009, pp. 17-18) aponta caminhos para a dinamização da biblioteca: Acreditamos que a biblioteca de uma escola deve ser um lugar especialmente cultuado por toda sua comunidade. [...] Cada biblioteca terá sua própria organização, mas é importante que, em todas elas, se queremos que a criança se aproxime dos livros e da leitura e deles desfrute ao máximo, o acesso seja sistemático, dinâmico e planejado com coerência e preocupação pedagógica. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Os encontros na biblioteca escolar ampliam as possibilidades de tocar o texto literário e ser tocado por ele. Nesses encontros, há a possibilidade de ampliação da visão de mundo e a compreensão da releitura do cotidiano. O momento é de que a professora/o professor seja um guia de leitura, permitindo que cada menina e menino encontrem seus próprios caminhos de ler, construindo vínculos com o texto literário. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ainda em andamento, o projeto aqui apresentado busca criar momentos para o ensino de leitura de textos literários na biblioteca escolar que deve ser ampliado a cada série/ano. Necessário se faz tomar a leitura como objeto de ensino e, para isso, deve ser pensada como prática a ser conquistada por todos que adentram o espaço escolar. Acreditando no potencial do texto literário, que agrega em si o real, o imaginário e o mágico, eleger espaços e pensar o tempo para a leitura se torna urgente não como forma apenas de instrumentalizar o indivíduo para as demandas sociais, mas também possibilitar o cruzamento de histórias de vida, ajudando a ressignificar a realidade ao redor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALDI, Elizabeth. Leitura nas séries iniciais: uma proposta pra formação de leitores de literatura. Porto Alegre: Editora Projeto, 2009. 157 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília-DF, 1998. Disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf. Acesso em 14 de março de 2015, 20:50:09. _________. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. 1ª à 4ª séries. Brasília: 1997, 144 p. COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2014. DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY , B; e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e organização de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas/ SP: Mercado de Letras, 2004). FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2011. KLEIMAN, Ângela. Preciso “ensinar” o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever? Cefiel/IEL/Unicamp: 2005. OLIVEIRA, Luciano Amaral. Coisas que todo professor de português precisa saber.: a teoria na prática. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. 158 PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 1986. SILVA, Waldeck Carneiro da. Miséria da biblioteca escolar. São Paulo: Cortez, 1999. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6ª ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. YUNES, Eliana. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009. _______. Pensar a leitura: complexidade. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO; São Paulo: Loyola, 2002. ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 159 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 160 ENTRE O PROFESSOR E A PRÁTICA PEDAGÓGICA DE LEITURA LITERÁRIA: a voz do leitor no ensino de literatura Aparecida de Fátima Brasileiro Teixeira Universidade do Estado da Bahia (UNEB) [email protected] RESUMO A leitura literária transita pelo espaço pedagógico, entre corredores barulhentos, “silenciosas” bibliotecas e salas de aula imersas de leitores. Dessa forma, este texto pretende expor a voz do leitor após a realização de uma prática metodológica de leitura literária no Ensino Médio de um colégio da rede pública do estado da Bahia. Como metodologia da pesquisa foi utilizada uma abordagem etnográfica, tendo como instrumentos de coletas de dados observação das aulas e questionário fechado com os alunos. A base teórica da pesquisa tem como referência Cosson (2011, 2014), Zilberman (2003), Pennac (1993), Geraldi (1997), dentre outros. O que se percebe é que a voz do leitor acerca do que ele pensa sobre a leitura e suas práticas pedagógicas, não é ouvida no espaço de sala de aula. As leituras são propostas, as atividades desenvolvidas, mas não há um espaço para o leitor se posicionar sobre a metodologia de leitura desenvolvida. Há momentos para responder aos questionamentos das atividades, mas não há situações para o leitor expor suas inquietações. Com isso o professor cria uma imagem do leitor, assim como uma imagem da leitura realizada e a voz do leitor é silenciada no processo avaliativo da leitura literária. PALAVRAS-CHAVE: leitura literária; leitor; mediação docente 1. APRESENTAÇÃO A discussão que se segue traz uma reflexão sobre a prática pedagógica de leitura literária no Ensino Médio. Esse ensino perfaz um trajeto que foca prioritariamente a sistematização dos conteúdos direcionadores para a historiografia literária. A não leitura de uma obra literária deixa lacunas preenchidas por movimentos literários, pelo uso excessivo do livro didático, considerando-o como um dos principais eventos de letramentos utilizado na sala de aula. Dentre as atividades realizadas na sala de aula, tendo uma obra literária como foco, não se efetiva uma atuação docente que prime por uma proposta de interação e valorização da formação do leitor literário. Portanto, a primazia será dada, neste Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. texto, ao leitor e a sua responsividade (Bakthin,1997), a sua contrapalavra seja de aceitação, seja de rejeição, de crítica, de acordo com a prática pedagógica de leitura. Destarte, o objetivo central deste texto é apresentar a voz dos alunos/leitores sobre a leitura de uma obra literária e qual o posicionamento desses leitores sobre a metodologia utilizada. Os estudos de Cosson (2011, 2014), Zilberman (2003), Pennac (1993), Geraldi (1997), Bakhtin(1997) contribuem para relacionar o que ocorre na prática de sala de aula e nas discussões presentes no campo epistemológico. O que se percebe é que a prática de leitura não é vista com o vigor que lhe deveria ser dado. As inferências do que se leu não são possíveis de serem construídas por um leitor que buscou estratégias para simular o lido. É preciso que se valorize na sala de aula a voz do leitor e que se construa uma discussão da leitura literária com a mediação do professor, do leitor e da sua compreensão responsiva nos discursivos esboçados. A análise e interpretação da prática vivenciada no espaço docente demonstrarão um olhar para a leitura na sala de aula. 162 2. A LEITURA LITERÁRIA E A MEDIAÇÃO DOCENTE NA SALA DE AULA A leitura literária está além da sala de aula, sendo que, na escola, os docentes do Ensino Médio focam as suas escolhas na grande literatura canônica e desconsideram a leitura em outros espaços. A literatura, como afirma Cosson, é o: uso da palavra para criar mundos ou um sentimento de mundo correspondendo a um uso específico da palavra, valem as transformações em novas manifestações, como cinema, a canção popular e as HQs, e os novos usos, como dados pelos jovens que se apossam da literatura para outros fins. (COSSON, 2014, p. 23) Embora essa tessitura não seja vislumbrada na sala de aula, o que se percebe são marcas da sistematização, da escolarização nas leituras propostas. Com uma variedade de configurações, a leitura permanece enquadrada no livro didático, dissecada em fichas de leitura, indagada em questionários retirados da internet. São questionamentos direcionados para averiguar, medir, avaliar, retratar o viés do leitor Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. do Ensino Médio, para demonstrar que a leitura foi feita e que foi possível conectar a historiografia literária estudada no ensino de literatura. Nesse sentido, tratando do lugar da leitura literária na escola, Zilberman (2003, p. 265) apresenta a seguinte assertiva: “a leitura de fragmentos de textos literários presentes no livro didático não forma o leitor do livro, que é onde materialmente se apresenta a literatura”. Como enfatiza Cosson (2014, p 12, grifo nosso), “a situação do ensino de literatura na escola não deixa dúvida para o que se pode esperar da formação do leitor literário ou mais precisamente da ausência de formação do leitor literário”. Muitas vezes a literatura mantém presença priorizando leituras curtas, como a poesia, o conto, a crônica, e no término da unidade didática, o livro aparece para complementar o conteúdo trabalhado, para culminar uma escola literária. A leitura do livro no espaço pedagógico, a depender do conceito de leitura de cada docente, distancia tanto o leitor/aluno quanto o leitor/professor que não prioriza esse ato de ler no seu dia a dia. Será que podemos esperar o tempo em que, como bem intensifica Zilberman “a literatura está em parte alguma”? Diante das diversas práticas pedagógicas, a mediação do professor é fundamental para direcionar a protagonização da leitura literária no ensino de literatura. O que é lido? Que escolhas serão feitas? Para quem as escolhas serão feitas? Quem é o leitor? Que outras leituras fazem parte do seu dia a dia? Qual o objetivo da leitura realizada? Quais as estratégias que serão utilizadas para mediar a comunicação entre os elementos da leitura: autor, texto, leitor e contexto (COSSON, 2014, P. 37)? Essas indagações são pertinentes no processo de intervenção docente e contribuem no desenvolvimento de práticas que valorizem o leitor literário. É necessário que o professor interaja com a leitura que permeia os entrelugares do espaço docente. Isso se contrapõe à intensa manutenção do cânone inserido no espaço acadêmico, nos livros didáticos, nas revistas literárias, impondo a sua padronização, presente na interpretação textual, nas citações de obras literárias, nos fragmentos ilustrativos, nas releituras, em outras linguagens. Assim é montada a tessitura, a trama em que a literatura está submersa no espaço pedagógico. 163 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A leitura no âmbito escolar pode abranger os seguintes momentos, a depender do docente, da sua formação como leitor. Primeiramente a escolha feita pelo professor/leitor, ou por alguns pré-requisitos ou conhecimentos prévios, por indicações de colegas (professores), livros didáticos, catálogos de editoras. Essa escolha norteará o planejamento e dará ao docente base para dialogar com o livro escolhido. Na sequência, o aluno/leitor é a outra peça a ser encaixada nos emaranhados dessa tessitura. É o momento de degustar a leitura escolhida por outrem, a leitura que poderá abrir margens para dialogar com um conteúdo sistemático. Após o ato de ler, após o tempo dedicado às palavras literárias, a prática metodológica é desenvolvida e, no decorrer desse processo, a atuação do leitor se manifesta, mesmo que o livro não tenha sido lido. Por fim, o professor se posiciona frente às atitudes dos “leitores” e lhes atribui uma apreciação do que foi exposto. 3. O LEITOR E A SUA CONTRAPALAVRA 164 O leitor entra em cena. Qual o seu posicionamento diante das práticas de leitura literária? Como leitor, a sua atitude deveria ser, de acordo com o significado do termo - o sujeito atuante ou que escolhe o livro a ser lido (no espaço extraescolar ou escolar) ou atua de acordo com a indicação de outrem. Ao escolher, o leitor utiliza diversas estratégias correspondentes ao seu contexto social, às suas idiossincrasias. A escolha pode ocorrer, através de elementos diversos, desde a capa e/ou título do livro, exposições sucintas na orelha do livro, comentários de outros leitores. Em contraparte, há, no processo de escolarização, “imposições” que buscam a tão desejada formação do leitor através da seleção de livros lidos por unidades e que precisam ter um produto da leitura para provar que ela foi realizada (resumos, avaliações, produções escritas e artísticas). O que é imposto, na escola, não garante a realização do ato de ler, no processo de aprendizagem, e gera uma busca para burlar as práticas pedagógicas para conquistar a tão desejada nota. Mesmo propondo leituras, os professores “sabem” da possível negatividade desse ato. A prática pedagógica de leitura garante que o livro Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. foi lido, ou melhor, foi indicado (coordenação pedagógica, professores) desde a organização do programa da disciplina até a realização da atividade, embora o que ocorra, nesse processo, não garanta a realização da leitura. Cada aluno, a depender da sua atitude diante da atividade, irá articular algumas estratégias para desenvolvê-la, desde a leitura do livro, a leitura de fragmentos, a leitura de resumos, a apreciação de filmes, considerando-os como substitutos do ato de ler. Para demonstrar a realização dessa ação, o leitor utilizará estratégias de simulação da leitura para atuar defronte do professor para “provar” a leitura realizada (resolução da atividade escrita, atividades que são realizadas com base nos leitores, nos resumos de internet, nas pesquisas rápidas de fragmentos, de palavras chaves) e conseguir realizar a avaliação desejada. O leitor se articula para dar a resposta, independentemente se ela condiz ou não com a leitura do livro. Esse quadro demonstrativo de identificação da compreensão do leitor e das inúmeras possibilidades de sentidos da prática docente consiste em uma atitude prenhe de respostas, caracterizada em uma situação de compreensão responsiva ativa. Ao indicar esse dialogismo, pode-se perceber, em momentos divergentes, a inserção do ouvinte em tempos díspares de uma enunciação viva. Para Bakhtin (1997), “a compreensão passiva das significações do discurso ouvido é apenas o elemento abstrato de um fato real que é o todo constituído pela compreensão responsiva ativa” (p. 290). Mesmo que a resposta não seja pronunciada no ato comunicativo de leitura, ela pode ser realizada por meio de atitudes, no espaço escolar, como resoluções de atividades escolares, como reflexões, por exemplo, no ato do pronunciamento ou em um tempo/espaço que não seja o escolar. Então, Bakhtin reitera: O locutor postula esta compreensão responsiva ativa: o que ele espera, não é uma compreensão passiva que, por assim dizer, apenas duplicaria seu pensamento no espírito do outro, o que espera é uma resposta, uma concordância, uma adesão, uma objeção, uma execução, etc. A variedade dos gêneros do discurso pressupõe a variedade dos escopos intencionais daquele que fala ou escreve. O desejo de tornar seu discurso inteligível é apenas um elemento abstrato da intenção discursiva em seu todo. (BAKHTIN, 1997, p. 291) 165 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O sujeito leitor discursivo, em uma visão da compreensão responsiva, será responsável por seu posicionamento, com isso, figura como apto a interagir e corresponde também como protagonista real da comunicação. Se ele pergunta, afirma ou ratifica, há intenção de uma manifestação do ouvinte/leitor. Essa responsividade iminente comunga com pontos cruciais do convívio social, em que não podemos negar sujeitos dialógicos repletos de dizeres a se revelarem em situações necessárias à produção de vozes. Portanto, os enunciados são orientados para uma réplica e intrínseco a essa resposta há um interlocutor presumido, promovendo uma articulação de várias vozes sociais. No sentido da discussão, ao associar a responsividade à leitura de literatura, não se configura apenas reconhecer formas linguísticas ou estilos literários, tampouco apreender o que/por que o autor quer dizer. Nessa visão de leitura, são respostas que repetem o já dito pelo outro (autor), sugerindo uma suposta voz que se enuncia nas propostas educacionais. Por conseguinte, Jurado reforça que, para que a interação se evidencie nas vertentes discursivas-enunciativas: são convergentes o caráter sócio-histórico da linguagem, a noção geral de que o texto só existe enquanto enunciado na interação verbal, nas relações sociais. Ou seja, a leitura é um ato social, um evento; e o texto só adquire sentido na interação. (JURADO, 2003, p. 166 70) Em conformidade com o já dito até então, Faraco (2009, p. 66) expressa que, nas relações dialógicas, é preciso que o conjunto de materiais linguísticos, na esfera do discurso: tenha fixado a posição de um sujeito social, (...) isto é, fazer réplicas ao dito, confrontar posições, à palavra do outro, confirmá-la ou rejeitá-la, buscar-lhe um sentido profundo, ampliá-la. Em suma, estabelecer com a palavra de outrem relações de sentido de determinada espécie, isto é, relações que geram significação responsivamente a partir do encontro de posições avaliativas. (FARACO, 2009, p. 66) Na sala de aula e em proposições de leitura, o sujeito está em evidência para se posicionar frente ao ato linguístico e ser respondente, diante das atividades Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. planejadas. Essa atuação discursiva e as vozes que se enunciam no ensino de literatura, especificamente em uma prática de leitura, nortearam esta pesquisa. 4. A VOZ DO LEITOR LITERÁRIO NO ENSINO DE LITERATURA Esta pesquisa foi realizada em uma escola pública situada no alto sertão baiano, no município de Guanambi - BA. Foram observadas duas turmas de Ensino Médio, 2º A e 2º B, especificamente as aulas de literatura. O foco da pesquisa direcionou-se para leitura literária na sala de aula e como se dá a compreensão responsiva do leitor. A pesquisa foi qualitativa, seguindo uma abordagem etnográfica, e utilizou dos seguintes instrumentos de coleta de dados: observação das aulas, registro de campo, questionário semiestruturado com os alunos. Para a observação das aulas foram necessárias seis semanas, em cada turma cinco aulas foram utilizadas para desenvolver a pesquisa. No decorrer da observação, era de conhecimento do pesquisador que o livro O Xangô de Baker Street, de Jô Soares, fora escolhido para ser trabalhado na unidade. Nesse ínterim, o professor trouxe a leitura do box informativo (CEREJA; MAGALHÃES, p.330, 2010) sobre o livro proposto e uma aluna (2º A) fez uma solicitação: que a professora passasse o filme para apreciação. Em um dos momentos da aula, a professora comentou rapidamente o que contém cada parte do livro. Em contrapartida, era visível que outros livros (Ladrões de raios, Fazendo meu filme) estavam sendo lidos pelos alunos no decorrer da aula e nos corredores da escola, sendo que não havia uma interferência, nem interação do professor durante este processo. Após o desenvolvimento da atividade Dominó Literário, foi realizado um questionário semiestruturado com 33 alunos das duas turmas pesquisadas. A escolha dos alunos foi aleatória e não houve critérios para decidir quem participaria da pesquisa. Os resultados foram analisados e convertidos em gráficos no editor de planilhas Microsoft Excel para melhor visualização das respostas. Apesar de outras questões terem sido feitas aos alunos, para esta pesquisa foram selecionadas as que faziam referência à atividade supracitada. 167 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Abaixo seguem os gráficos nomeados de acordo com as perguntas do questionário: Percebe-se, no gráfico 1, que, mesmo o livro tendo sido proposto para realização de uma atividade avaliativa, um número significativo de alunos não o leu. Várias questões interferiram nessa negatividade do ato de ler e a justificativa apresentada por alguns dos alunos reforça o ocorrido no gráfico 2: Gráfico 1: Leitura do livro proposto pelo professor Fonte: Produção do próprio autor 168 A resposta dos alunos aborda diversas questões referentes à leitura do livro indicado em sala de aula. Caminhos foram traçados pelo leitor para desviar-se do contato com olivro, para driblar esse processo. Um dos principais fatos apresentados para justificar a não realização da leitura (GRÁFICO 2) foi a apreciação do filme anteriormente a leitura do livro, considerando que o este pode ser substituído. Vale salientar que os alunos desconsideraram a estrutura composicional de cada gênero discursivo (livro e filme), negando os diversos locutores que estão imersos no processo de produção autoral. É mister que o espaço pedagógico demonstre as variadas facetas de um gênero discursivo, expondo as idiossincrasias de cada um. Um gênero não supre o outro, são leituras diversas que mobilizam competências e promovem habilidades a depender dos objetivos pedagógicos de cada docente. Gráfico 2: Justificativa da (não)leitura do livro Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Fonte: Produção do próprio autor Outro fato apresentado pelos leitores consiste nos trabalhos escolares, vistos, na fala dos alunos, como algo que ocupou o tempo que poderia ser dedicado à leitura. A leitura feita na escola perfaz o caminho da escolarização e traz consigo traços que não priorizam o leitor literário nem o processo de formação desse leitor. Nesse sentido, o que se encontra na sala de aula são artimanhas para a não realização 169 da leitura. A escolarização da leitura literária é uma expressão refletida por Rildo Cosson (2011), ao afirmar que, se o texto literário ocupa o espaço educacional, é inevitável considerá-lo como escolarizado. Com isso faz-se necessário distinguir a escolarização da literatura, a depender das práticas de leitura utilizadas na sala de aula, como demonstrado por Soares: (A escolarização) adequada seria aquela escolarização que conduzisse eficazmente às práticas de leitura literária que ocorrem no contexto social e às atitudes e valores próprios do ideal de leitor que se quer formar; inadequada é aquela escolarização que deturpa, falsifica, distorce a literatura, afastando, e não aproximando, o aluno das práticas de leitura literária, desenvolvendo nele resistência ou aversão ao livro e ao ler. (SOARES, 1999, p. 47): Reflexão necessária para perceber como mudam os papéis dos envolvidos a função dada ao texto literário quando este está no espaço de escolarização, a mediação docente e a atuação dos alunos/leitores. Portanto, no espaço extraescolar, o leitor procura encontrar os seus desejos, inquietações respondidas, curiosidades. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Outro aspecto observado na análise dos questionários, exposto no gráfico 2, foi o tempo para a leitura, o número significativo de trabalhos escolares, o desinteresse. Essa perspectiva traz atribuições que negam uma prioridade para o que foi indicado para ser lido. O que está oculto nessas práticas pode ser vislumbrado como uma mediação inadequada ou uma desvalorização de aspectos estéticos literários, tendo como foco o cumprimento da realização da leitura. Alguns alunos consideraram o livro ruim, outros informaram que “Todos falaram que era chato” (ALUNO1). A mediação literária é fundamental para capturar o leitor, mesmo que não seja feita pelo docente, o colega ao lado pode contribuir. A voz do outro interfere de forma expressiva nesse momento, embora cada mediador possua contribuições diferenciadas. O poder da palavra aqui referendado é evidenciado quando vem de um dos seus pares. Na maioria das vezes estes conseguem muito mais do que a mediação do docente. Os alunos que informaram que a leitura foi realizada (GRÁFICO 1) - um número pequeno - mencionou que a leitura foi necessária, precisava realizar a leitura 170 e uma aluna disse que “Gosta das obras do escritor”. (ALUNO 2), A posição dos leitores perante a leitura, em contrapartida, esboçou um contrassenso nas respostas dos alunos, visto que eles não apreciaram a totalidade da leitura do livro. Alguns que informaram ter gostado do livro, expuseram, na justificativa da questão, que: “Li o livro pela metade para fazer a avaliação” (ALUNO 3), “Estava no meio da leitura e decidi assistir ao filme” (ALUNO 4). Esse fato demonstra que boa parte dos entrevistados desistiu da leitura do livro após assistirem ao filme, considerando que o filme foi utilizado para o desenvolvimento da atividade, um gênero substituto do outro. Outros afirmaram, ainda, não terem gostado do livro sem mesmo o terem lido. Há no leitor uma visão de que a literatura proposta pela escola só traz “livros tediosos” (ALUNO 5). Como considerar que algo não me agrada sendo que o desconheço? Abaixo, no gráfico, segue o posicionamento dos alunos/leitores: Gráfico 3: Consideraram o livro interessante Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Fonte: Produção do próprio autor Após o intervalo de leitura feito no espaço exterior às aulas de literatura, foi realizada a prática pedagógica com o objetivo de verificar se houve ou não a realização da atividade. Para a atividade do livro foi realizado um Dominó Literário, tendo como base imagens - retiradas do indexador de imagens do google - e palavras centrais de cada capítulo. Essa atividade foi realizada no final da unidade e foi perceptível que muitos alunos não leram o livro (o que nos mostram os gráficos acima) e que se preocupavam unicamente com o valor atribuído à atividade. Antes da realização dessa metodologia, a professora comentou o título do livro, o autor, personagens e concluiu expondo os valores da ficha de avaliação. Percebe-se, nessa prática docente, um foco no avaliar, medir a leitura realizada. Muitas discussões poderiam ter sido feitas antes da realização da atividade. Essas reflexões incentivariam a leitura do livro e poderia ter sido articulada uma interação com os livros lidos no espaço externo à escolarização. Na voz dos alunos fica clara a valorização de uma prática pedagógica diferenciada, mesmo que o livro não tenha agradado a todos. Eles perceberam que a realização do Dominó Literário evidenciou “a necessidade de interagir com a turma” (ALUNOS 6 e 7); outro aluno expressa no seu registro a importância dessas práticas, sendo que em uma prática interessante “lembramos da história de uma forma diferente” (ALUNO 8) e “entendemos o contexto histórico da história” (ALUNO 9); o aluno 9 enfatiza que a ludicidade contribui com o processo de aprendizagem “sendo uma forma mais ‘divertida’ de entender o que se passa”. 171 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Em contrapartida aos dizeres mencionados, a aluna 2 aborda uma das discussões constantes sobre a formação do leitor literário na escola e a obrigatoriedade da leitura, que “nos obriga a demonstrar se lemos o livro ou não, já que exige riqueza em detalhes”. Fica notório que a elaboração da atividade, ao solicitar de forma detalhada aspectos do livro, impõe ao leitor uma reposta. Dessa forma, há necessidade de demonstrarmos a alguém o produto de nossa leitura? A indagação é respondida por outra, feita por Pennac: Leitura, ato de comunicação? Mais uma bela piada dos comentaristas! Aquilo que lemos, calamos. O prazer do livro lido, guardamos, quase sempre, no segredo de nosso ciúme. Seja porque não vemos nisso assunto para discussão, seja porque, antes de podermos dizer alguma coisa, precisamos deixar o tempo fazer seu delicioso trabalho de destilação. E este silêncio é a garantia de nossa intimidade. O livro foi lido, mas estamos nele, ainda. (...) Lemos e calamos. Calamos porque lemos. Seria engraçado ver alguém emboscado nos esperando na virada de nossa leitura para nos perguntar: “Entãããão? É bom? Você entendeu? Relatório!” (PENNAC, 1993, p. 82): 172 As palavras de Pennac demonstram o valor atribuído às respostas de leitura, sendo que o processo de escolarização necessita destas para promover a aprendizagem, a interação, o diálogo. Geraldi discute essa obrigatoriedade dos textos utilizados nas escolas: Tornam textos, que se elegem para as aulas, em leitura obrigatória, cujos temas valem por si e cujas estratégias de construção são também válidas em si. Reificam-se os textos. E, contraditoriamente, “repartindo-os” pela escolarização, sacralizam-nos. (GERALDI, 1997, p. 169) A mediação da atividade contou com a participação ativa e detalhada da docente e de colegas que leram o livro e participaram, expondo posicionamentos e reflexões no decorrer da interação. O gráfico 4 apresenta a voz dos leitores sobre a contribuição dessa atividade para incentivar a leitura do livro. Como uma atividade avaliativa com o intuito de concluir uma unidade escolar, ficou evidente a negatividade de interesse dos alunos em ler o livro em um momento extraescolar. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Gráfico 4: Satisfação dos alunos sobre a atividade realizada Fonte: Produção do próprio autor Muitos alunos informaram que não leram o livro, porque há escolhas mais interessantes e que fazem parte do seu estilo, outros disseram que o fato de terem assistido ao filme fez com que eles tivessem conhecimento de todos os acontecimentos do livro. Os alunos que afirmaram que pretendem ler o livro após a exposição de colegas e professores, informaram: “achei muito interessante a história” (ALUNO 11), “gostei do enredo da história”. Esse fato demonstra que alguns aspectos da mediação inquietaram no leitor a descoberta de fatos do enredo da construção literária. Gráfico 5: Leitura do livro após a realização da atividade Fonte: Produção do próprio autor 173 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Pensar as práticas pedagógicas de leitura literária vai além da formação do leitor literário como uma das principais competências desejadas pelo público docente. Como formar o leitor de literatura através da leitura de cânones impostos por uma padronização curricular? Talvez esta não seja uma pergunta feita nos espaços escolares. Há uma preocupação com a formação do leitor, mas o que diz o leitor sobre o que é lido e sobre as atividades desenvolvidas não são questões a serem respondidas. Na escola os discursos dos outros não são priorizados no que se refere às práticas de leitura, sendo que eles trazem caminhos, inquietações e promovem no docente reflexões oportunas que podem construir, conjuntamente, aluno/leitor e professor/leitor, a teia da interação e do diálogo acerca do ato de ler ou até do direito ao ato de não ler. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa trouxe considerações oportunas para refletir sobre o ensino de 174 literatura e, principalmente, a leitura literária, observando que não adianta impor leituras, a avaliação não determinará o ato de ler. Vale salientar que uma mediação de qualidade oportunizará, pelo menos, inicialmente, a construção sinfônica do grupo de leitores na sala de aula. Quando o tom da melodia for proferido, o leitor saberá qual é o seu momento, qual é o seu espaço e qual é o personagem que o capturará na trama da narrativa. Ensinar a leitura literária é uma prática distante no Ensino Médio, visto que o ensino de literatura se enquadra na historiografia literária como foco e da leitura como um mito desejável de ser realizado, mas distante de práticas condizentes ao ato de ler. Entre o educador e as metodologias é fundamental que seja priorizado aquele que centra a prática docente - o leitor, mesmo que esse negue a categoria de leitor literário. A valorização deste “eu” do leitor promoverá a construção de coletividades de vozes e norteará diálogos discursivos capazes de transbordar responsividades. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In:_____. Estética da criação verbal. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 277-327. CEREJA, William Roberto; Thereza Cochar. Português linguagens: vol. 2. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2011. ______. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: contexto, 2014. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. JURADO, Shirley Goulart de Oliveira Garcia. Leitura e letramento escolar no ensino médio: um estudo exploratório. 2003. 175p. Dissertação de Mestrado. (Mestrado em Linguística Aplicada). Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2003. PENNAC, Daniel. Como um romance. Tradução de Leny Werneck. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. SOARES, Magda. A escolarização da leitura infantil e juvenil. In: BRANDÃO, Heliana Maria Brina; EVANGELISTA, Aracy Alves Martinse; MACHADO, Maria Zélia Versiani. (Orgs.). A escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. ZILBERMAN, Regina. Letramento literário: não ao texto, sim ao livro. In: PAIVA, Aparecida et all. (orgs.) Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces – o jogo do livro. Belo Horizonte: Autêntica, Ceale, 2003. ANEXO Questionário sobre a leitura do livro 1. Você leu o livro indicado pela professora? Por quê? 2. Caso você não tenha lido o livro, pretende lê-lo diante da exposição feita pela professora e por alguns colegas, no momento da avaliação? 175 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 3. Que meio você utilizou para fazer a leitura do livro (celular, computador, livro impresso, outros)? 4. Como você considerou a atividade realizada na aula de literatura sobre livro lido atualmente? 5. Você considerou o livro interessante? O que ficou evidente no momento da leitura? Você considera que a escolha do professor foi pertinente? 6. Para os alunos que não leram o livro, a atividade realizada pela professora incentivou a leitura? Por quê? 176 A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTOJUVENIL COMO DISCIPLINA PARA O CURSO DE LETRAS VERNÁCULAS Arigésica Andrade Moura Mestranda em Educação Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS [email protected] Eixo Temático 2: Literatura, Experiência e Memória Pesquisas denotam que nos últimos anos, a inclusão da Literatura Infantojuvenil como disciplina nos currículos de cursos de formação de professores vem sendo alvo de debates no meio acadêmico. Nos cursos de Letras Vernáculas, conforme levantamento de dados realizado, há uma oscilação no que se refere à inserção da literatura infantojuvenil como disciplina. Esta, ora surge no currículo como componente obrigatório, ora de forma secundária, inserida em outra disciplina ou como optativa. Apesar de oscilar nos currículos de diversas instituições de ensino superior, esse gênero marca forte presença na sala de aula. Em vista disso, acredita-se que à medida que tais instituições deixam de incluir a Literatura infantojuvenil como disciplina nessas licenciaturas, geram uma lacuna na formação desses profissionais, pois, em tese, faltaria a esses profissionais embasamento teórico-metodológico neste ramo do conhecimento. Concebendo o curso de Letras Vernáculas como espaço de formação inicial do professor de Língua Portuguesa, supõe-se que se o graduando tiver acesso as discussões em torno da Literatura infantojuvenil, a um referencial teórico sobre esse gênero, possivelmente sua prática pedagógica terá maior embasamento teórico e por isso teria uma melhor preparação para seu exercício profissional. Visto que, em sala de aula, enquanto professor mediador será necessário que detenha mínimo conhecimento acerca de questões relacionadas à teoria literária. A atuação do professor, em se tratando de mediação de leitura, é o ponto-chave para a tessitura desses primeiros diálogos entre a criança e literatura infantojuvenil. A mediação perpassa pela seleção dos livros, organização do ambiente, escolha do modo de contar. Abarca ainda as discussões sobre o texto, os espaços de escuta, as produções. Ao professor, enquanto mediador, cabe estimular a interação entre o leitor e a obra e é nesse processo dinâmico que vai se formando o leitor. É válido destacar ainda que tão importante quanto obter conhecimento teórico, é ter uma vivência de leitura. O estudante de Letras precisa ser e se perceber leitor literário. Diante disso, este artigo pretende discutir a importância da Literatura infantojuvenil como disciplina para o curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). O presente trabalho busca ainda destacar a relação entre leitura, literatura e práticas culturais de leitura, apontando-as como elementos singulares na constituição do professor-leitor. Para tanto, tem por base autores como Amarilha (1997), Candido (1995), Faria (2006), Lajolo (1993), Zilberman (1987; 2014), além das pesquisas de Araújo (2015), Castilhos (2013), Cerqueira (2007) e Oliveira (2015) entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Leitura; Literatura infantojuvenil; Formação de professores. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 1 APRESENTAÇÃO Este trabalho é oriundo da pesquisa de Mestrado que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UEFS, acerca das implicações da disciplina Literatura infantojuvenil na prática de licenciados em Letras, pela Universidade do Estado da Bahia. Ao observar o currículo de cursos de formação de professores, de modo mais específico, os currículos de Letras Vernáculas de universidades estaduais da Bahia, notou-se que a presença da disciplina Literatura Infantojuvenil, oscila nas matrizes curriculares. Há momentos em que surge de maneira secundária, como disciplina agregada à outra, ora aparece como optativa, sendo disponibilizada quando há oferta de vagas. Ao discutir literatura, literalidade e os livros para crianças e jovens, Maria Alice Faria (2010, p.11) confirma essa perspectiva ao argumentar que “em função da exclusão pela academia da literatura infantojuvenil, do campo da literatura 178 considerada “verdadeira”, o estudo da produção para crianças e jovens não consta, na maioria das vezes, dos currículos em cursos de formação de professores”. Seguindo na contramão, as discussões em torno do gênero, da formação do leitor, do professor mediador de leituras tem se intensificado nos últimos anos. A presença marcante da literatura infantojuvenil nas salas de aula da educação básica também desperta a atenção e leva a pensar sobre a formação do professor. Com base nisso, acredita-se ser fundamental que a licenciatura oportunize momentos de vivência com o texto literário, bem como um embasamento teóricometodológico acerca desse gênero, a fim de que a prática pedagógica do licenciado possua maior respaldo. Partindo, pois, desses pressupostos, este artigo, pretende discutir a importância da literatura infantojuvenil como disciplina para o curso de Letras Vernáculas. Pretende ainda, tecer algumas considerações acerca da relação entre leitura, literatura e práticas culturais de leitura, apontando-as como elementos singulares na constituição do professor-leitor. Para tanto foi utilizado como aporte teórico autores como Zilberman (1987; 2014), Candido (1995), Faria (2006), Lajolo Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. (1993), Mortatti (2014) entre outros, além de pesquisas recentes sobre essa temática como as de Cerqueira (2007), Castilhos (2013), Oliveira (2015) e Araújo (2015). 2 A DISCIPLINA LITERATURA INFANTOJUVENIL NO CURRÍCULO Entende-se a literatura como um fenômeno da linguagem que reflete o contexto social, cultural no qual está inserida, mas também se compreende que esta é arte que utiliza a palavra de forma polivalente, de maneira a prender o leitor, estabelecendo com ele um diálogo, transportando-o para uma realidade paralela. Assim, o leitor é, em certa medida, coautor, porque completa continuamente a obra com seus sentidos (MOISÉS, 2003). Vista dessa maneira, a literatura tem um papel significativo a cumprir na sociedade, ser agente formador de uma nova mentalidade. Tal posicionamento é confirmado por Coelho (2000, p.15): “A literatura, em especial a infantil, tem uma tarefa fundamental a cumprir nesta sociedade em transformação: a de servir como agente de formação, seja no espontâneo convívio leitor/livro, seja no diálogo leitor/texto estimulado pela escola”. A literatura contribui para o desenvolvimento cognitivo, psicológico, emocional, linguístico do sujeito, porque sua matéria-prima é a linguagem. Esta arte também supre a necessidade inata do ser humano de simbolismo. Uma narrativa, por exemplo, traduz simbolicamente a realidade do leitor e incorpora esse universo afetivo-emocional na história, contribuindo assim para a formação desse sujeito. Partindo dessa perspectiva, coaduna-se com Candido (1995), quando afirma que todos têm direito à literatura. Assim como se tem o direito ao lazer, à moradia, ao trabalho, à crença, tem-se o direito à arte, à literatura. No entanto, nem sempre o contexto socioeconômico possibilita aos indivíduos à vivência literária. Nesse sentido, pensando acerca dos cursos de formação de professores, de modo mais específico, da licenciatura em estudo, Letras Vernáculas, algumas indagações são suscitadas: Como está sendo contemplado o saber literário no curso de Letras? Existe uma articulação equilibrada entre leituras literárias e 179 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. fundamentação teórica? Como o curso tem preparado esses professores que, em tese, formarão leitores? Tais questionamentos são salutares porque se acredita que é importante para a formação do graduando ter contato com discussões teóricas em torno da literatura infantojuvenil, mas também ter momentos de vivência literária, a fim de que posteriormente possa desenvolver uma prática pedagógica com embasamento. Afinal, ele será um mediador de leituras, caberá a esse profissional selecionar, indicar obras literárias. Oliveira (2010) corrobora tal posicionamento: Há alguns fatores primordiais a serem considerados quando nos referimos às mediações do professor para formar leitores. Por certo, os mais importantes são a história de leitura e a qualificação profissional, situações que interferem no desempenho do professor. (...) É necessário repensar a formação inicial e continuada, de modo que o processo de formação docente, seja construído e reconstruído em favor de uma nova postura pedagógica que inclua, com consistência, a leitura do texto literário nas diversas modalidades de ensino (2010, p. 50). 180 A presença da literatura infantojuvenil enquanto disciplina no currículo de Letras pode contribuir para um redimensionamento do olhar do estudante acerca da compreensão de práticas de leitura, de sua própria percepção sobre ser leitor. Em vista disso, com base no levantamento de dados realizado, notou-se que a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) traz um diferencial na matriz curricular do curso de Letras Vernáculas, em detrimento das demais universidades estaduais, porque inclui no currículo o estudo da literatura infantojuvenil, através de uma disciplina específica, anteriormente denominada Literatura Infantojuvenil (Tema Especial I), com carga horária de 75 horas, e atualmente designada O estético e o lúdico na literatura infantojuvenil, com carga horária de 60 horas. Observando a alteração de nomes das disciplinas já é possível notar uma mudança no olhar sobre o estudo da literatura infantojuvenil na licenciatura. Conforme a ementa, este componente curricular “estuda o estético e o lúdico na literatura infantojuvenil, analisando a relação entre o imaginário e a realidade. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Discute os conceitos, a história e as condições de produção e recepção do texto, tanto da linguagem oral, quanto da linguagem escrita.” (UNEB, 2009, p. 146) A ementa, norteadora do trabalho docente, sinaliza a alteração no modo de se perceber a literatura infantojuvenil no currículo de Letras. No entanto, vale destacar que é fundamental que haja reciprocidade dos discentes, para que o aprendizado se realize e possa ter implicações significativas na prática pedagógica desses futuros professores. Tão importante quanto isto, é que haja uma vivência literária por parte dos estudantes. História de leitura e qualificação profissional estão inter-relacionadas e ambas se refletem na práxis do professor. 3 ENTRELAÇANDO DISCUSSÕES Com base no que foi exposto, serão brevemente apresentadas três histórias de leitura realizadas para a pesquisa que compõe a Dissertação, bem como a análise inicial dessa coleta de dados, como uma forma de melhor elucidar a importância da Literatura Infantojuvenil como disciplina para o curso de Letras Vernáculas. Como percurso metodológico optou-se pelo método qualitativo, sendo instrumentos de coleta de dados a Pesquisa Bibliográfica, Documental e a Entrevista semiestruturada. O lócus escolhido foi o campus XXII, da Universidade do Estado da Bahia, situado na cidade de Euclides da Cunha. Os sujeitos da pesquisa são seis estudantes egressos do referido campus, professores das séries finais do ensino fundamental. Entretanto, como a pesquisa encontra-se em andamento, serão brevemente apresentados aqui apenas os relatos de três entrevistados. Buscando preservar suas identidades, os nomes que os representam são fictícios. Ana (35) e Lívia (36) são naturais do município de Tucano e lecionam há dez anos na rede pública de Quijingue, cidade do interior da Bahia, situada a 333 quilômetros da capital, Salvador. Ambas têm em comum a alfabetização tardia – foram alfabetizadas apenas aos dez anos de idade. Ana nasceu no Povoado Casa Nova pertencente a Tucano, Bahia, e até os dez anos, a única referência de leitura que se recorda é de uma tia que lia as cartas que 181 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. chegavam para sua mãe. Posteriormente, na escola, as atividades que envolviam leitura estavam sempre associadas ao livro didático, às datas comemorativas, mas não lembra de um trabalho que buscasse desenvolver o gosto pela leitura. O encontro significativo com o texto literário ocorreu somente no Ensino Médio. Nesse momento houve o incentivo à leitura e atividades que suscitavam o interesse dos alunos pelo universo literário. Após concluir o Ensino Médio, embora desejasse cursar Geografia, iniciou os estudos em Letras Vernáculas pela facilidade de acesso. Foi aprovada no concurso municipal de Quijingue no mesmo ano de aprovação do vestibular. Em 2004 concluiu a graduação e atualmente está realizando sua segunda especialização. Ao estudar o componente curricular O estético e o lúdico na literatura infantojuvenil, Ana relata que a docente buscou aliar teoria e prática, oportunizar a vivência literária. Com isso, a disciplina contribuiu para o melhor entendimento do texto literário, para a construção de um novo olhar sobre a literatura infantojuvenil, como pode se observar em sua fala: 182 Veja só, hoje a gente tem que ter um olhar direcionado, tentar ajudar o aluno a perceber isso e vamos supor, eu vou trabalhar com o conto tradicional, esse conto tradicional e uma outra versão. E como é essa outra versão? Ter esse olhar, a partir de algo, de uma situação tentar ver de outra forma, ter esse olhar crítico. Eu acho que é nesse sentido de reflexão mesmo, de o aluno perceber que em alguns momentos pode inferir, que através daquela leitura ele pode opinar, dizer “eu acho”, “eu não concordo com esse autor”, “ele poderia ter feito de tal maneira”. Eu acho que ela (a disciplina) ajudou nesse sentido, desse olhar crítico, de análise, de observação. Ao articular teoria e prática, a professora da disciplina cooperou significativamente para a aprendizagem dos alunos e isto se refletiu na prática pedagógica destes. A obra literária Ludi vai à praia, de Luciana Sandroni, trabalhada em O estético e o lúdico na literatura infantojuvenil, foi posteriormente foco central de um projeto pedagógico que Ana desenvolveu na escola em que atua. O estudo do livro A bolsa amarela, de Lígia Bojunga, foi inspiração para a execução de um miniprojeto de leitura. Sabendo que um dos objetivos do curso é Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. preparar para o exercício profissional, nota-se a relevância deste componente curricular para o curso. A história de leitura de Lívia também confirma essa perspectiva. Lívia é oriunda do Povoado Pedra Grande, da cidade de Tucano. Ao contrário de Ana, a entrevistada teve um contato marcante com narrativas orais no seio de sua família. O avô materno, o pai e a irmã costumavam contar histórias. Havia, inclusive, reunião de familiares à noite para ouvir narrativas como Cancão de Fogo. Na escola houve também papel significativo de uma professora e de uma estagiária em sua formação leitora na alfabetização, relatou que, posteriormente, o contato com textos literários e com conhecimentos sobre esse gênero se deu de forma mais sistematizada no Ensino Médio. Anos depois de concluir a educação básica, ingressou no curso de Letras, foi aprovada no concurso municipal de Quijingue e no momento faz uma especialização em Psicopedagogia Institucional e Clínica. Analisando as falas de Lívia, nota-se que os encontros de com o texto literário ficaram guardados em sua memória afetiva sempre atrelados à fruição, porque “ler, de certa forma, é reencontrar as crenças e, portanto, as sensações da infância. A leitura que outrora ofereceu para nosso imaginário um universo sem fim, ressuscita esse passado cada vez que, nostálgicos, lemos uma história.” (JOUVE, 2002, p. 17) Esse aspecto se reflete em sua relação com o texto literário, tanto enquanto leitora, quanto em seu trabalho em sala de aula associada à fruição, como é possível perceber nestas palavras: Tem até um livro, Os miseráveis, que, meu Deus, me conquistou de uma forma que eu já li umas seis vezes, mas eu vou ler de novo, porque eu vou trabalhar com os meninos e vou reler e é como se eu não tivesse lido ainda, porque a cada leitura você encontra coisas novas, então vai redescobrindo. É um clássico que eu amei. A literatura supre a necessidade inata do ser humano de simbolismo. Como é possível notar em sua fala. Percebe-se inclusive o poder de subjetivação que essa arte exerce sobre seu receptor. Isso faz pensar que a literatura contribui para que o leitor elabore seus problemas, seus conflitos e evolua. Ao atuar no subconsciente e no 183 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. inconsciente organizando o caos interior do homem, confirma no ser humano sua humanidade, como defende Antônio Cândido (1995, p. 176) em seu artigo O Direito à Literatura: [...] há “conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”. (grifos do autor) Ao ser questionada sobre o trabalho desenvolvido na disciplina O estético e o lúdico na literatura infantojuvenil, relata que Bettelheim, com seu livro A psicanálise dos contos de fadas, foi um teórico que lhe marcou. A ideia de desconstrução de estereótipos, de valores presentes nos contos de fadas como a fada sempre boa e a bruxa má perpassou a disciplina, trouxe um novo olhar sobre o texto literário e isto foi levado para sua sala de aula, como expressa nesta fala: 184 Pesquisadora: A disciplina favoreceu a você uma nova postura pedagógica? Lívia: Sim e também pela questão de você ver o livro e você não ler só por ler. Você lê e como é que se diz, de você repetir o que o autor disse, você vai além, você vai ter uma nova visão, um outro olhar ali daquela história. Uma outra intenção também. Não é só ler pra mostrar que a Chapeuzinho Vermelho ela era a menininha indefesa ali, mas que também ela podia ter provocado, o que ela podia ter provocado, Os três porquinhos também. Ela (a professora) trabalhou também com essa história. Será que o lobo queria realmente devorálos? Ou houve uma provocação maior por parte dos porquinhos? Então, nos ajudou a recontar essas histórias aos nossos alunos. Ao buscar a desconstrução desses estereótipos, a disciplina contribui para o desenvolvimento de uma nova postura diante da obra literária. Houve uma ressignificação do leitor, porque passou a se perceber sujeito ativo, capaz de fazer inferências, de atribuir sentidos, de posicionar-se criticamente perante o texto, de problematizá-lo. E essa ressignificação extrapola os muros da universidade, quando o licenciado se sente instigado a compartilhar essas descobertas, anseia desenvolver em seus alunos esse novo encontro com o texto literário. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A mudança do olhar sobre o texto também é marcante no relato de Mariana. Natural de Tucano, teve uma infância e adolescência perpassadas por brincadeiras típicas da fase. Sua escolarização se iniciou já em casa. Embora sua mãe tivesse apenas até a 3ª série do Ensino Fundamental (atual 4º ano), conseguiu iniciar o processo de alfabetização da filha. Por isso, quando Mariana ingressou na escola, já detinha certo conhecimento em detrimento dos demais colegas. A literatura aparece em sua vida por meio de seu avô que contava histórias da tradição oral e a deixavam fascinada, como expressa nesta fala: “Meu avô sim que gostava de contar histórias e sabia muitas histórias. Eu lembro que aquilo ia me cativando. Ele ia contando e eu parava assim (fez expressão de contemplação)...o mundo podia acabar e eu ouvia.” Essa sensação de encantamento marca sua relação com a literatura, de modo que os contatos posteriores com a leitura literária na escola serviram para reforçar esse sentimento. Na licenciatura destaca que houve um redimensionamento de seu olhar sobre o texto, principalmente com a disciplina O estético e o lúdico na literatura infantojuvenil e isso foi levado para sua prática pedagógica, como revela nesta fala: a relação que eu tenho com a leitura é essa, eu procuro explorar mesmo, coisa que antes da faculdade eu não tinha essa percepção (...) O texto é além, hoje eu extrapolo as ideias do texto com os alunos (...) Se não fosse a faculdade eu não teria essa visão, estaria trabalhando o texto só por trabalhar (...) principalmente nas aulas da professora Sandra, do Estético e o Lúdico, a gente percebia isso, que o texto vai muito mais além. Assim como Ana e Lívia, Mariana desenvolve trabalhos de fomento à leitura em sala de aula, há um anseio por proporcionar encontros significativos com a leitura literária. A mesma cita como exemplo sua experiência durante a disciplina O estético e o lúdico na literatura infantojuvenil com o livro de Lígia Bojunga, A bolsa Amarela. No curso foi solicitada a leitura e análise da obra, mas ao encontrar-se com o texto, sentiu a necessidade de também de levá-lo para a sala de aula. Nota-se com isso que Mariana, assim como Ana e Lívia, buscou durante o curso realizar essa articulação entre teoria e prática. “Tentei trazer tudo que a faculdade me proporcionou pra sala de aula, adaptando ou dando nova roupagem, 185 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. mas tudo trazia pra o meu aluno e aí sentia a necessidade de trabalhar a leitura, e isso me deu oportunidade de trabalhar outros livros com os alunos”. Observando, pois as histórias de vida dessas professoras é possível notar a relação existente entre leitura, literatura e práticas culturais de leitura. Sua história leitora e sua qualificação profissional se inter-relacionam e se refletem numa prática pedagógica que busca despertar o encantamento, a fruição, o encontro significativo com a leitura literária. CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo o que foi exposto, nos cursos de Letras Vernáculas a literatura infantojuvenil, enquanto disciplina, oscila no currículo de algumas instituições estaduais de ensino superior da Bahia. Ora aparece na matriz curricular como componente obrigatório, ora de forma secundária, inserida em outra disciplina ou ainda como optativa. 186 Apesar disso, o gênero é presença marcante na sala de aula. Em vista disso, entende-se que à medida que essas instituições deixam de incluir a Literatura infantojuvenil como disciplina nessas licenciaturas gera uma lacuna na formação desses profissionais, pois, em tese, faltaria a esses profissionais embasamentos teórico e metodológico neste ramo do conhecimento. A presença da literatura infantojuvenil enquanto disciplina no currículo de Letras pode contribuir para um redimensionamento do olhar do estudante acerca da compreensão de práticas de leitura, de sua própria percepção sobre ser leitor, como foi expresso nos relatos dos sujeitos entrevistados. Às vezes o anseio que move a prática dessas professoras se expressa num sentimento de falta, como na história de leitura de Ana. O fato de não ter tido acesso desde a infância à literatura infantojuvenil, concretiza-se em sua busca constante por uma trabalho pautado no fomento à leitura. Outras vezes, o que move esta prática é a memória afetiva que relaciona a literatura infantojuvenil à momentos singulares, perpassados pelo deslumbramento, pela fruição, vivenciados na infância, no aconchego da família. Em todos os casos, no entanto, é inegável que a disciplina Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. oportunizou uma vivência com o texto literário infantojuvenil, possibilitou a articulação entre teoria e prática, denotando com isso sua relevância para o curso de Letras Vernáculas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANDIDO, Antonio. O Direito à Literatura. In: _________. Vários Escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1995, p. 169-191. COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1ª ed. São Paulo: Moderna, 2000. FARIA, Maria Alice. Como usar a literatura infantil na sala de aula. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2010. JOUVE, Vincent. A leitura. Trad. Brigitte Hervot. São Paulo: Ed. Unesp, 2002. MOISÉS, Massaud. Conceito de Literatura. In: ______. A criação literária-poesia. São Paulo: Cultrix, 2003, p. 24-44. OLIVEIRA, Ana Arlinda de. O professor como mediador das leituras literárias. In.: PAIVA, Aparecida; MACIEL, Francisca; COSSON, Rildo (Coord.). Literatura: ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010, p. 41-54 (Coleção Extrapolando o Ensino). UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA. Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias – DCHT – Campus XXII. Colegiado de Letras. Projeto do Curso de Licenciatura Plena em Letras com Habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas para fins de reconhecimento. Euclides da Cunha, 2009. 187 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 188 JORNAIS BAIANOS E REMINISCÊNCIAS: LEITURAS SOBRE A DITADURA MILITAR Brígida Prazeres dos Santos Bolsista - IC –FAPESB – UFBA [email protected] Eliana Correia Brandão Gonçalves UFBA [email protected] RESUMO Este trabalho tem por objetivo refletir sobre as memórias da censura às obras artísticas historiadas em jornais baianos, que apresentam os registros de momentos vividos pelos sujeitos na ditadura militar e o movimento repressivo que marca esse regime ditatorial, em especial considerando o fato de que a censura tentou bloquear a circulação de ideias tidas como perigosas para a sociedade armada. A pesquisa, que se desenvolve a partir da leitura e da análise de registros dos regimes ditatoriais em jornais baianos, tem por objetivo ressaltar a importância dos textos localizados e que apresentam vestígios da repressão e da censura. A reflexão ocorre a partir da consulta aos jornais baianos, em especial A Tarde e Jornal da Bahia, constantes no acervo da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, localizada nos Barris, com o fim de considerar a leitura dos relatos sobre a violência e sobre a vigilância, que não foram silenciados durante esse período histórico. Para tanto, foram necessários alguns aportes teóricos referentes às questões sobre acervos documentais, memória, regimes ditatoriais e censura, entre os quais Le Goff (1996), Soares (1988), Brettas (2010) e Araújo (2015). Os jornais viabilizaram o resgate dos arquivos e das memórias, mesmo com a censura, cumprindo seu papel de dispositivo de manipulação ideológica referente aos interesses da sociedade armada. Este fato fica claro nesta pesquisa, já que alguns jornais investigados estão em circulação até hoje, como os que foram objeto da pesquisa, enquanto outros não suportaram a pressão da época visto que a censura não teve o mesmo efeito sobre os diferentes tipos de jornais e revistas, comprometendo alguns relativamente pouco e condenando outros ao fechamento. É preciso lembrar que, muitas vezes, o mecanismo de repressão do governo nem precisava chegar a anular a publicação de uma matéria pronta, pois os próprios editores e jornalistas sabiam que tipo de notícia poderia inflamar os ânimos dos representantes do regime. Nesse contexto, em alguns casos, antes da notícia ser divulgada, era comum que os censores enviassem bilhetes ou fizessem ligações, determinando às notícias que não iriam para as páginas de jornal, já em outras situações, a visita de um censor empreendia um controle ainda maior. Por fim, vale ressaltar que, apesar da imprensa ter sido alvo da censura durante a ditadura instaurada pelo golpe civil-militar de 1964, seu papel enquanto testemunho, isto é, tudo aquilo que pode evocar o passado histórico, continuou sendo de grande valia para o resgate e a leitura de parte da história de silenciamento e de repressão dos sujeitos na ditadura militar. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. PALAVRAS-CHAVE: leitura; jornais; memória; regime ditatorial; violência. 1 APRESENTAÇÃO Este artigo consiste em dar notícias sobre a pesquisa com o mapeamento dos vestígios de memórias da ditadura militar presentes nos jornais baianos, durante as décadas de 60-70, que tem sido desenvolvida desde 2014, com o auxílio de bolsa de IC da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB, no curso de Letras da Universidade Federal da Bahia - UFBA. A pesquisa está vinculada ao projeto intitulado Arquivos culturais e construção do léxico: a vigilância nos regimes ditatoriais, coordenado pela Profa. Dra. Eliana Brandão (UFBA) que tem, entre outros, o objetivo de ler e reavaliar fontes testemunhais, históricas ou ficcionais, presentes em jornais brasileiros, que divulgam relatos sobre a memória da violência e da vigilância, durante a vigência da ditadura militar, entre as décadas de 60 – 80 (1964-1985). 190 A censura implementada na ditadura tentou impedir a circulação de vários conceitos considerados subversivos nos jornais. Dessa forma, é necessário resgatar e analisar os relatos da censura dos regimes ditatoriais presentes em jornais baianos, pois os textos da imprensa são considerados como testemunhos das memórias da violência e do silenciamento. A leitura e a reflexão sobre os registros ocorrem a partir da consulta aos jornais baianos, em especial A Tarde e Jornal da Bahia, constantes no acervo da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, localizada nos Barris, com o fim de considerar a leitura dos relatos, sobre a violência e sobre a vigilância, que não foram silenciados durante esse período histórico. Até o presente momento na pesquisa, foram analisados 14 textos localizados nos referidos jornais, que se configuram como fontes de contestação e resistência, devido à tentativa de registrar tais ocorrências, mesmo estando sob vigilância e sofrendo a censura de forma a não poder publicar certas matérias que fossem tidas como afronta ao governo. Para facilitar a seleção e organização dos dados coletados na pesquisa em jornais baianos, os textos localizados foram organizados em fichas catalográficas, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. permitindo assim reflexões e debates acerca da importância das fontes documentais como documento de fatos históricos distanciados do nosso tempo, mas que se refletem na constituição política, social e cultural de nosso país. 2 DITADURA E CENSURA Com a catalogação e análise de registros de memórias de regimes ditatoriais em jornais baianos, a pesquisa ressalta a importância dos textos registrados em jornais baianos que apresentam vestígios da censura e repressão vividas no período ditatorial das décadas de sessenta e setenta, visto que a censura tentou impedir a circulação de várias ideias consideradas subversivas para a sociedade armada. Os jornais foram investigados por tratarem de documentos, isto é tesouros da memória que arquivam vestígios desse momento sombrio de nossa sociedade, momento de violência em suas variadas faces, e momentos de silenciamentos de vozes. Foi necessário compreender a importância dos arquivos como um documento de memórias não vividas e para isto foi indispensável um referencial sobre a memória dos regimes ditatoriais nos jornais baianos, a partir do aporte teórico de Luca (2008), Berg (2002), Gonçalves (2015), Santos (2012), Le Goff (1996), Brettas (2010) e Milanesi (1986). O Ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou por dez anos, ou seja, até dezembro de 1978 e produziu um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados. 191 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Figura 1 - Há 44 anos militares decretaram o AI-5 Fonte – SICA (2012, p. 1) Para Berg (2002) a repressão foi causada por um regime militar que ditava regras de forma violenta, este regime foi marcado pela tortura, pela arbitrariedade policial, elevando assim os poderes do presidente em detrimento dos direitos civis, dentre eles o direito à expressão. Para os regimes autoritários, nos quais foi importante um controle ideológico ao lado da repressão, os instrumentos necessários 192 para este momento foram dois em especial: a propaganda e a censura. Considerando a afirmação de LUCA (2008, p. 129), “não há como deixar de lado a censura. Em vários momentos, a imprensa foi silenciada, ainda que por vezes sua própria voz tenha colaborado para criar as condições que levaram ao amordaçamento”. Percebe-se que a censura teve um papel histórico decisivo, pois foi um aparelho de manipulação ideológica alusiva aos interesses da sociedade armada, contudo, os jornais viabilizaram partes do resgate dos arquivos, resquícios das memórias de vozes emudecidas pelo regime ditatorial. Berg (2002, p. 17) ainda afirma que “a censura teve um papel determinante, pois, foi um dispositivo de manipulação ideológica referente aos interesses da sociedade armada, em especial o papel da censura, foi o de expor o discurso do regime”. Para a autora a censura poderia ser vista através de três níveis: censura preventiva, que era prévia normalmente, percebida nas páginas de roteiros e nos vazios de jornais; censura coercitiva, tinha a função de reprimir invadindo teatros, espancando, ameaçando e prendendo os artistas; e por fim a censura punitiva, que no mínimo exilava e no máximo matava (BERG, 2002, p. 36). Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Percebe-se que a censura teve um papel histórico decisivo, pois foi um aparelho de manipulação ideológica alusiva aos interesses da sociedade armada, contudo, os jornais viabilizaram partes do resgate dos arquivos, resquícios das memórias de vozes emudecidas pelo regime ditatorial. Esses jornais resgatam parte dos tesouros da reminiscência de um tempo pretérito, mesmo estando sob vigilância, tendo que, por muitas vezes, “preencher” suas páginas com os espaços em branco ou ocupado por receitas causando assim uma oposição ao governo. Figura 2 – Censura, nunca mais! 193 Fonte – Imprensa Livre (2011, p. 1) Os jornais são tidos como testemunho dos momentos de violência e de censura do militarismo, em especial por conseguirem registrar vestígios dessas ocorrências mesmo estando sob a vigilância. Com a censura, muitos jornais não podiam publicar matérias que fossem tidas como afronta ao governo. Assim, para Gonçalves (2015, p. 569) As fontes documentais ganham olhares e espaços, no sentido de promover a divulgação de fatos que até então estavam apagados. Nessa reavaliação, o arquivo ganha o seu lugar de destaque, nos debates linguísticos e culturais, passando a compor fundos específicos, com documentos de arquivos públicos e privados. Assim, para se estudar a censura, é necessário conhecer a sua trajetória, para avaliar se houve continuidade ou descontinuidade nos métodos sensórios. E, para repensar essa questão é preciso investigar os fundamentos teóricos e os valores impostos e incorporados pelos militares, tidos como os detentores do poder, pois “os militares no poder comportaram-se como se estivessem realmente em uma guerra, na Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. qual é preciso não só identificar para si o inimigo, mas torná-lo visível perante a Nação e transformá-lo em inimigo desta.” (BERG, 2002, p. 36) 3 LEITURA, BIBLIOTECA E ACERVO DE JORNAIS Segundo Brettas (2010, p. 101), a biblioteca pública é uma instituição social e cultural e por esse motivo uma ordem social dominante influencia ou determina a trajetória dessa instituição, principalmente no que diz respeito à constituição do acervo e ao controle e acesso à informação nele contida. Desse modo, a função de uma biblioteca, entre outras, é guardar um acervo cuja informação registre parte da memória escrita de um grupo social e o modo como é organizada e consultada pode influenciar uma coletividade, em sua maneira de se identificar e de se comportar diante de outros grupos sociais (identidades) e na formação de suas idéias (ideologias). Uma 194 biblioteca pública é um centro de informações atuando permanentemente, atendendo à demanda da população, estimulando o processo contínuo de descobrimento e produção de novas documentos, “organizando a informação para que todo ser humano possa usufruí-la”. (MILANESI, 1986, p. 15) E é exatamente esse fato que chama atenção com a pesquisa com acervos de jornais, na Biblioteca Pública do Estado da Bahia, localizada no centro da cidade, no bairro dos Barris. Esta biblioteca pública oferece um mundo de informações e conhecimento para todos, devolvendo, ao mesmo tempo, ao povo baiano, sua memória através de um enorme acervo e um banco de dados relativamente atualizado, visto que “o documento é tudo aquilo que pode evocar o passado” (LE GOFF, 1990, p. 536) Basicamente a pesquisa com jornais tem sido desenvolvida no Setor de Notícias da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, no qual são abrangidos jornais e revistas. Figura 3 - Biblioteca Pública do Estado da Bahia recebe Encontro de Escritores Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Fonte – AUGUSTO (2014, p. 1) Na pesquisa, estão sendo selecionadas e organizadas matérias de jornais baianos publicados na década de setenta, particularmente A Tarde e Jornal da Bahia, que apresentem textos que registrem contestação e resistência no contexto cultural, teatral, literário etc. Segundo Le Goff (1990), memória significa lembrança, recordação, e o homem necessita recordar, lembrar, rememorar, pois deseja que algo permaneça. A memória é responsável pela articulação dos grupos sociais com o tempo, uma vez que, mais que guardiã do passado, ela permite a relação deste com o presente e o planejamento do futuro. Ao avaliar o passado, o homem ou o grupo social pode verificar quais os equívocos que atrapalharam a sua trajetória, para não cometê-las novamente. Pode também verificar os acertos e as coisas boas realizadas, e perpetuá-las. O passado, no entanto, é construído e reconstruído a todo o momento e a memória não é estática e o seu processo “faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios” (LE GOFF, 1990, p. 424). Parte dos registros da produção cultural e literária, elaborados durante a vigência de regimes ditatoriais, encontra-se disperso e esquecido em jornais baianos de ampla circulação. Assim, é importante a busca dessas fontes documentais no sentido de selecionar, organizar e descrever esses textos, localizados em arquivos públicos, que relatam as memórias de um período de censura, por meio da vigilância a vários segmentos artísticos e sociais, pois de acordo com Gonçalves (2015, p. 557): 195 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Os textos escritos sob a vigência da censura enfocam uma realidade diferente, marcada pela disciplina, submissão e interdição, construída a partir de uma mistura de memórias da repressão, mas, ao mesmo tempo, ideais de liberdade e desejo de poder. [A ditadura militar no Brasil foi] (...) uma época que afetou a concepção ideológica, social, linguística e artística da nossa sociedade. Assim, questões atinentes à guerra, à política, às prisões, entre outras, podem ser interpretadas à luz das referências ao contexto histórico, social, cultural e geográfico da época, mas também elas poderão ser vistas à luz dos signos utilizados na época e dos conteúdos significativos que eles vinculam. É possível, dessa forma, conceber uma realidade organizada pelos signos. Assim, nenhum discurso é decisivo, mas temporário, pois ele reflete o momento vivenciado daquela realidade, até mesmo porque linguagem é ação que se concretiza na prática do discurso. Os jornais registraram parte da atuação da censura que tentava impedir a circulação de produções consideradas subversivas ou parcialmente subversivas. Assim, “não há como deixar de lado a censura. Em vários momentos, a imprensa foi silenciada, ainda que por vezes sua própria voz tenha colaborado para criar as condições que levaram ao amordaçamento”. (LUCA, 2008, p. 129) Para tanto, é 196 imprescindível resgatar e sopesar os relatos destes resquícios de memória da censura dos regimes ditatoriais presentes em jornais baianos. Figura 4 - DITADURA MILITAR: A GRANDE IMPRENSA NÃO AFRONTOU Fonte – ANJOS (2014, p. 1) Para tanto, é imprescindível resgatar os relatos da censura dos regimes ditatoriais presentes em jornais baianos, pois os textos da imprensa são considerados Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. como testemunhos das reminiscências da violência e do silenciamento. (GONÇALVES, 2015) Assim, O papel desempenhado por jornais e revistas em regimes autoritários como o Estado Novo e a ditadura militar, seja na condição difusor de propaganda política favorável ao regime ou espaço que abrigou formas sutis de contestação, resistência e mesmo projetos alternativos, tem encontrado eco nas preocupações contemporâneas, inspiradas na renovação da abordagem do político. (LUCA, 2008, p.129) Segundo Santos (2002, p. 21) os jornais são testemunhos/monumentos, isto é, memórias que representam o movimento de repressão e censura do período ditatorial e que tinham sobretudo o intuito de impedir a circulação de ideias ditas perigosas ou subversivas. 4 RESULTADOS DA PESQUISA COM A LEITURA DE JORNAIS BAIANOS 197 A partir da seleção e organização dos dados coletados nos jornais, entre 20142015, com os jornais A Tarde e Jornal da Bahia, constantes no acervo público da Biblioteca Central do Estado da Bahia, foi composto um catálogo informatizado, permitindo assim reflexões acerca da importância das fontes documentais. Entretanto, por se tratar de uma época de censura, muitos jornais foram examinados, porém sem êxito quanto ao achado às informações relevantes para a pesquisa. Alguns números dos jornais de 1968 e 1969, não foram disponibilizados para leitura no acervo da Biblioteca Central do Estado da Bahia, devido a não existirem ou por estarem em um estado degradado e por isso sem ter a possibilidade de consulta por parte dos leitores. Foram os casos dos exemplares do jornal A Tarde, do mês de dezembro de 68 e dos meses de janeiro e fevereiro de 69. O Jornal da Bahia apresentou uma condição de conservação melhor do que a do jornal A Tarde, no entanto observou-se que o referido jornal foi menos ousado e não registrou, no período analisado, tantas matérias que servissem para a leitura da vigilância e da violência no âmbito artístico e cultural. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Assim, foram consultados 824 jornais e destes 14 textos foram selecionados nas seções dos jornais, todos de A Tarde. Para sistematizar a pesquisa, foram elaboradas fichas catalográficas para organizar os textos encontrados na pesquisa e constituir catálogo com os vestígios dessas memórias. Os registros foram organizados da seguinte forma: 1. No topo da ficha, encontra-se a referência completa do jornal (jornal, seção, coluna, data, ano, número da edição, pagina e acervo onde foi localizada a matéria); 2. Na linha abaixo, em colunas separadas: título da matéria; assunto; seção; e outras informações (registra se a matéria traz texto e imagem, se foi assinada, isto é, creditada a alguém etc.); 3. Na sequência, nas linhas que se seguem, separadamente: imagem digitalizada (facsímile) do texto selecionado; descrição do jornal; resumo da matéria; e transcrição da matéria. Segue exemplo: Figura 5 – Exemplo de Ficha - Catálogo 198 REFERENCIA: A Tarde. Política e políticos, segunda coluna. Bahia, Salvador, sexta-feira, 08 de março de 1968, nº 18586, p.3. Acervo da Biblioteca Pública do Estado da Bahia. TÍTULO Livro do escritor apreendido em Ilhéus. baiano foi ASSUNTO SEÇÃO OUTRAS INFORMAÇÕES RELEVANTES Produção literária censurada “Raio X de uma Cidade” de Creso Coimbra Política e políticos Texto escrito acompanhado de imagem e sem créditos autorais. IMAGEM DIGITALIZADA Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 199 DESCRIÇÃO DO JORNAL Recorte de Jornal. Ao centro, título da matéria, “Raio X de um cidade”, constante na seção Política e políticos. Texto em duas colunas, contendo 20 linhas na primeira e 17 na segunda coluna, constando ao todo um total de 37linhas. RESUMO DA MATÉRIA O livro “Raio X de uma cidade”, de autoria de Creso Coimbra, lançado em Itabuna, Salvador e Ilhéus, foi apreendido pelo subdelegado de polícia federal de Ilhéus, sob a alegação de ser imoral, pois continha palavras pornográficas. A apreensão ocorreu na segunda-feira, num depósito pertencente ao encarregado pela distribuição do livro, em Ilhéus. Cem volumes foram apreendidos pelos prepostos da subdelegacia de polícia federal, os quais não deram recibo da apreensão. Os policiais mantiveram clima de apreensão no seio da população, ameaçando com prisão a quem vendesse ou comprasse o livro. TRANSCRIÇÃO DA MATÉRIA Livro de escritor baiano foi apreendido em Ilhéus O livro ” Raio X de uma cidade” de autoria de Creso Coimbra, lançado, recentemente em Itabuna, Salvador e Ilhéus, foi apreendido pelo subdelegado de Polícia Federal de Ilhéus sob a alegação de que é amoral pois contém palavras pornográficas. A apreensão ocorreu na sedências contra a arbitrariedagunda-feira, num depósito perde praticada pelos policiais. tencente ao encarregado pela Falando à reportagem de A Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. distribuição do livro em Ilhéus. Cem volumes foram apreendidos pelos prepostos da subdelegacia de Polícia Federal os quais não deram recibo da apreensão. Os policiais mantêm um clima de apreensão no seio da população, ameaçando com prisão a quem vender ou comprar o livro. O escritor Creso Coimbra Esteve, ontem, na Justiça Federal pedindo imediatas provides de autógrafos em Salvador. TARDE, Creso Coimbra disse que se o uso de palavra de baixo calão em obras literárias fôsse motivo de apreensão, os escritores Jorge Amado, Erico Veríssimo e Nelson Rodrigues, jamais poderiam ter dado ao público as magnificas obras que ultimamente têm deleitado a milhões de brasileiros cultos. Reagindo contra a apreensão ilegal, Creso Coimbra fará dentro de breves dias uma tar- Esses arquivos analisados são de grande importância para se fazer uma releitura de fatos históricos e culturais, pois a violência muitas vezes é entendida como agressão física apenas, mas ao analisar os textos de jornais produzidos na ditadura militar fica muito nítida as várias faces da violência, por meio do silenciamento. Como exemplo, foi localizada uma seção em branco de um número de um jornal; e uma receita, registrada, de forma desordenada, em uma sessão não apropriada para esse tipo de registro. Além disso, foram localizadas notícias de livros 200 de escritores apreendidos, de cantores exilados, de estudantes presos em sala de aula, de manifestações em praça pública de pessoas, enfim de peças apreendidas e proibidas de serem exibidas em todo território brasileiro e do impedimento da livre expressão. CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa com jornais baianos tem apresentado resultados importantes para a leitura dos textos produzidos nos regimes ditatoriais. Por se tratar de uma pesquisa com registros de décadas pretéritas, a conservação dos jornais é também uma questão a se preocupar, pois os mesmos estão, em sua maioria, em situação precária já que se encontram rasgados, algumas folhas estão soltas e, em muitos casos, sem a folha de capa e ̸ou cortados da dobra para baixo, causando a perda de informações. Em suma, os jornais apresentam algumas imagens desgastadas, devido ao tempo, causando uma captura fotográfica sem tanta qualidade. Esse fato pode acontecer por não haver um acompanhamento por parte dos responsáveis pelo Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. acervo quanto ao modo de utilização correta dos jornais antigos que rasgam com facilidade. Uma possível solução para driblar as perdas de jornais presentes em acervos públicos é a digitalização destes jornais antes que se percam por completo e seja impossibilitada a sua leitura por parte dos leitores. Figura 6 – Exemplo da conservação precária de jornais baianos - Jornal A Tarde, maio de 1968 Fonte: Acervo da Biblioteca Central do Estado da Bahia - Barris 201 Por fim, considerando que os acervos são centros de informação, por definição será um instrumento de desordem, contudo possuem múltiplos discursos que se desdobram ao infinito, propondo alguns caminhos que deixam a pesquisadora com a possibilidade de avaliar esses contextos e desenvolver suas leituras. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A Tarde. Política e políticos, segunda coluna. Bahia, Salvador, sexta-feira, 08 de março de 1968, nº 18586, p.3. Acervo da Biblioteca Pública do Estado da Bahia. ANJOS, Anna Beatriz. Ditadura militar: a grande imprensa não afrontou. Revista Fórum Semanal, abr de 2014. Disponível em: http://revistaforum.com.br/digital/141/ditadura-militar-a-grande-imprensa-naoafrontou/. Acesso: 30 de julho de 2015. AUGUSTO, Carlos. Biblioteca Pública do Estado da BAHIA. In: Jornal Grande Bahia. 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Disponível em: www.forumverdade.ufpr.br/blog/2012/12/14/ha-44-anos-militares-decretaram-oai-5/. Acesso: 28 de julho de 2015. VINTAGE da memória à literatura Cláudio do Carmo Universidade do Estado da Bahia/UNEB; [email protected] RESUMO Esta comunicação se assenta na investigação que busca na arquitetura da memória e suas relações no âmbito da literatura um ponto de congruência. Para tanto, procede-se a uma revisão do passado e suas fulgurações no âmbito das representações. Daí supor, que a memória constitui uma reconstrução em termos atuais deste passado e que, por sua vez, se ancora e se abastece na atual crise do presentismo (CANDEAU, 2014). O vintage, expresso no deslocamento da experiência vivida, que passa a ser apropriada por gerações que não a viveram é o mote para a experiência narrativa, especialmente contemporânea. Neste sentido, o romance “Fim” de Fernanda Torres, cuja temática sugere a ideia de geração é propícia a este apontamento ao mapear as possibilidades teóricas que dão sustento à memória e buscar nas relações sedimentadas no âmbito do constructo literário, seja na forma textual, seja no conteúdo subjacente aos textos literários o sentido para o entendimento da literatura como prática cultural e social. Nesse sentido, a geografia do texto literário caracterizada pelo lugar de interseção entre espaços empíricos constituídos e aqueles imaginados, constitui o entrelugar que produz relatos e representações das mais constantes, emergindo e fazendo emergir daí uma memória de contornos imprecisos a memória e suas formulações literárias, estejam elas nos textos, nos autores, na estética dos livros, na vida cultural. Em seguida, mapeado as teorias que dão sustento à memória, busca-se estabelecer as relações sedimentadas no âmbito do constructo literário, seja na forma textual, seja no conteúdo subjacente aos textos literários. Nesse sentido, a geografia do texto literário caracterizada pelo lugar de interseção entre espaços empíricos constituídos e aqueles imaginados, constitui o entre-lugar que produz relatos e representações das mais constantes, emergindo e fazendo emergir daí uma memória de contornos imprecisos A literatura, assim, é entendida como registro de campo, na concepção tomada a Pierre Bourdieu, cujo sentido se estabelece a partir de um pertencimento e propicia que a prática literária, como cultura, interfira na construção, refutando a crença numa reflexão passiva e mesmo determinista. O vintage é apropriado por gerações que não o viveram e esta é a tônica de sua especificidade, pois assenta-se numa aplicação carregada de ressignificação, cuja estética inadequada legitima seu pertencimento ao ser retomada por tempos contemporâneos. Tal estética, vintage, é sentida em narrativas as quais buscam retomar um repertório que se esmera nas argumentações consolidadas, ao referir-se a enredos que dialogam com o tempo contextual, mas que não precisamente ao contexto contemporâneo e sim ao passado, como se o tempo vivido estivesse sendo retomado e recuperado ( sem erros) na atualidade. PALAVRAS-CHAVE: vintage; memória; Fim; literatura contemporânea. Um passado que não existe. Contraditória, a memória não é o passado, é uma reconstrução do passado, que mantém uma infidelidade ao que aconteceu. Em outras palavras, a memória atualiza o passado sem se comprometer em transformar este Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. passado em verdade. Neste sentido a capacidade de apreensão deste passado é que faz com que esta memória seja mais ou menos relevante. Vale lembrar que a memória não é um conteúdo em si, algo concreto que se possa pegar, mas antes uma estratégia, um meio, um dispositivo, ou poderíamos assinalar uma força invisível que aciona certos mecanismos de atuação na realidade. Embora Michel Foucault nunca tenha definido propriamente o termo dispositivo, este encontra-se disperso em sua obra, sobretudo a partir dos anos setenta, conforme assinala AGAMBEM (2010, p. 29): É um conjunto heterogêneo, linguístico e não linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposição filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. Esta estratégia, dispositivo, é fundamental na compreensão do alcance da memória, enquanto capacidade de se manifestar e objetivar materialmente qualquer possibilidade, inclusive de interferência na realidade. “O dispositivo tem sempre uma estratégia concreta e se inscreve sempre numa relação de poder, como tal, 204 resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber.” (op. cit. 2010, p.29.) Fica claro, pois que a manifestação tem a real necessidade de materialização e é o que acontece com a memória que dotada desta capacidade, pode ser, com efeito, expressa no patrimônio, no texto literário, nas relações sociais e ou pessoais, enfim, na linguagem. Outrossim, esse dispositivo revelado pela memória guarda em si uma relação de poder que interfere decisivamente nas representações daí decorrentes. Não há dúvida sobre certo consenso que posta a memória como uma atualização constante e permanente do passado, e se é assim, podemos sublinhar que o passado estará sempre atuando concomitante ao presente e modificando-o. reside aí, nesta ligação inexorável entre passado e presente o sentido significativo da memória. Se as memórias representam sobretudo heranças, ou seja, relações diretas que se dão através do tempo, é natural que tais relações se mostrem modificadas por uma série de interferências que acabam por constituir a base mesma de qualquer tipo de memória. De outro modo, as memórias se diferem pelo nível de interferência em suas constituições, embora, como anota POLLAK (1992, p.202), “Se destacamos essa característica flutuante, mutável, da memória, tanto individual quanto coletiva, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. devemos lembrar também que na maioria das memórias existem marcos ou pontos relativamente invariantes, imutáveis.” Desta maneira, o afastamento temporal ou espacial da memória original, nos leva a ambiguidade de ter algo que em nada se parece com memória e ao mesmo tempo conserva traços que sublinham uma estrutura memorialística. Pode parecer estranha a afirmação, se estamos falando de memória, e estamos, que embora a memória se abasteça do passado e seu principal repertório gire em torno deste passado, é cabível a suposição da inexistência do passado. Se é assim, o acesso a suas fulgurações se dá no âmbito das representações. Daí supor, que a memória constitui uma reconstrução em termos atuais deste passado e que, por sua vez, se ancora e se abastece na atual crise do presentismo (CANDEAU, 2014). A categoria memória, então, é submetida a uma série de percalços que a atualizam, dentre estas ganha forma uma expressão estética intitulada vintage. O termo não é novo e tem sua origem, francesa, expressa na ideia de deslocamento da experiência vivida, que é empurrada para um tempo posterior, embora permaneça com elementos fundamentais de um tempo remoto, numa espécie de transtorno da memória que ascendeu principalmente nas últimas duas décadas. O vintage é apropriado por gerações que não o viveram e esta é a tônica de sua especificidade, pois assenta-se numa aplicação carregada de ressignificação, cuja estética inadequada legitima seu pertencimento ao ser retomada por tempos contemporâneos. Tal estética, vintage, é sentida em narrativas as quais buscam retomar um repertório que se esmera nas argumentações consolidadas, ao referir-se a enredos que dialogam com o tempo contextual, mas que não precisamente ao contexto contemporâneo e sim ao passado, como se o tempo vivido estivesse sendo retomado e recuperado ( sem erros) na atualidade. Nesse sentido, a geografia do texto literário caracterizada pelo lugar de interseção entre espaços empíricos constituídos e aqueles imaginados, constitui o entre-lugar que produz relatos e representações das mais constantes, emergindo e fazendo emergir daí uma memória de contornos imprecisos, já que se situa num passado que inexiste e somente tem alcance imaginário. O passado que se faz ausente, ao mesmo tempo que é 205 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. representado e recuperado a partir do presente, interfere no corpo agindo nas disposições que ele produziu. Pierre Bourdieu (2001, p.184), completa: O habitus, produto de uma aquisição histórica, é o que permite a apropriação do legado histórico. Assim como a letra só deixa de ser letra morta pelo ato de leitura que supõe uma aptidão adquirida para ler e decifrar, a história objetivada (nos instrumentos, monumentos, obras, técnicas etc.) somente consegue converter-se em história atuada e atuante quando é assumida por agentes que, por conta de seus investimentos anteriores, se mostrarão inclinados a se interessar por ela e dotados das aptidões necessárias para reativá-las. Uma vez adquirida, a história, ela estará, por força do hábito presentificada nas ações continuamente. Esta aquiescência, envolve variados sentidos e formas de experiência, tais como a bagagem intelectual, o conhecimento e múltiplos aspectos da vida social e comportamento. Aprendemos pelo corpo e é através dele que as injunções sociais regulares se apresentam, através de ritos que tendem a inscrever os sexos nos corpos. A própria distinção entre masculino e feminino, é uma das mais notórias atividades do corpo que age de maneira a marcar explicitamente, em que 206 pese o tautologismo, as categorizações sociais. Assim, o corpo, materializa a memória e constitui dos mais celebrados constituintes políticos, asseverando a qualificação da memória como política, através de uma protomemória que na palavra de Candau, (2014, p.23 ) é “uma memória de baixo nível que não pode ser destacada da atividade em curso e de suas circunstâncias, pois constitui os saberes e as experiências mais resistentes e mais bem compartilhadas pelos membros de uma sociedade.” O vintage, como uma expressão estética relacionada ao tempo, atua politizado também, já que constitui uma metáfora da memória, e como sabemos, as expressões políticas estão carregadas do argumento memorialístico, como mnemotécnicas atuando no pano de fundo e estruturante dos acontecimentos. As relações entre política e literatura de maneira mais explícita são antigas e necessariamente remetem a memória como condição de liame entre as duas categorias. Modernamente, data do século XIX o estreitamento dessa relação, sobretudo com o caso Dreyfus na França e o célebre manifesto “ j’acuse” de Emile Zola Em linhas gerais, o manifesto de Zola, representou não só a indignação, mas também a inserção do escritor no campo político. Como se sabe a memória é um Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. conceito que envolve muitos desdobramentos, se configurando, inclusive em verdadeiras teorias da memória, no sentido de explicá-la. O que nos leva a concluir que existem memórias, que embora oriundas de um tronco comum, seja por uma leitura mitológica, social, psicológica, filosófica, entre outras, podem assumir diferenças fundamentais que aparentam uma distância profunda de possível origem, causando um mascaramento inclusive na sua própria condição. De outro modo, o mascaramento da memória faz com que esta se desassemelhe, podendo assumir condições outras várias, sendo a mais notória destas condições o esquecimento, além de uma não-memória. Assim, podemos falar em teorias da memória, que abarcam um vasto campo que vai desde uma episteme filosófica até ao mais antigo conhecimento sobre memória, passando por tratativas de cunho espiritual ou religioso, destacando o mito como forma arcaica e original. No entanto, em tempos mais recentes a memória se ampliou em concepções que buscam explicar o mundo e os acontecimentos, desdobrando-se naturalmente numa visão de aspecto mais pedagógico, as mnemotécnicas, bem como com o advento das novas tecnologias a memória se explica por fenômenos mecânicos de caráter neurológicos e sistêmicos. Outrossim, é mister relacionar o alcance da memória ao campo cultural, que suscita uma série de interpretações e dá-lhe uma condição de relevância ao destacar algo que parecia restrito a campos tão distintos como exóticos. A cultura como prática política se manifesta mais evidente nas formas de relação pessoal, mas o alcance da memória influi, lê e explica as expressões culturais, já que sua existência é agudamente percebida. Com efeito, os conhecimentos sobre memória ampliam e refundam uma espécie de historicidade na qual o vintage é um sintoma mais evidente, quando questiona os parâmetros e mesmo a projeção da memória. Na origem, a memória em descrição mitológica, se confunde com Mnomósine que seria sua personificação e tem o significado primevo de lembrar-se. Fora amante de Zeus, dando origem as nove musas, concebidas a partir do pedido dos deuses, que derrotados os Titãs, argumentam da necessidade de cantar condignamente a grande vitória. Assim, após esposar Mnemósine durante nove noites consecutivas, concebe as nove musas que tem variadas funções relacionadas à lembrança. Tal narrativa mitológica é a base para entendermos como a atuação do tempo interfere e produz o 207 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. relato literário. A criação literária se fundamenta na memória e é através dela que o tempo age, sendo capaz de justapor, fundir e relacionar memórias e tempos diversos. A anotação do poeta Hesíodo dá bem a dimensão da função exercida pelas musas como metáfora da memória na ação do tempo: São as Musas que acompanham os reis e ditam-lhes palavras de persuasão, capazes de serenar as querelas e restabelecer a paz entre os homens. Do mesmo modo, acrescenta o poeta de Ascra, é suficiente que um cantor, um servidor das Musas celebre as façanhas dos homens do passado ou os deuses felizes, para que se esqueçam as inquietações e ninguém mais se lembre de seus sofrimentos. (BRANDÃO, 1986, p.203) Nota-se que o mito fundador da memória continua a formular os conceitos e definições que a envolvem. Sua vinculação às artes, a faculdade quase sobrenatural 208 de lembrar e criar mundos elegíveis e perfeitos, a atração que exerce sobre os homens. A memória, então, partindo desta concepção mitológica que permanece como uma herança a fundamentar todo o conceito percorrido em plena modernidade, chega à contemporaneidade suscitando abordagens por vezes contraditórias, mas que a colocam como um dos aspectos primordiais da cultura contemporânea. A ideia de geração é fundamental no estabelecimento da noção do vintage e sua consequente aplicação literária. A geração como se sabe, pressupõe a sucessão de épocas ligadas pelo tempo e materializadas em algum tipo de valor, seja este afetivo, ou assentados em heranças visíveis como comportamento, indumentária e a transmissão de experiências coletivas, desta maneira pode-se assegurar a geração como matriz narrativa do vintage, já que a predisposição dos tempos é essencial para caracterizar o repertório daí vinculado. Vou me deter em alguns apontamentos relativos ao texto narrativo que servirá como base para vislumbrarmos a ocorrência da memória e seu desdobramento geracional entendido como vintage. Note-se que o texto contemporâneo é adequado a esse Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. apontamento pois configura uma atualização da memória e incorpora os tempos de uma maneira eficaz. A propósito, o entendimento de contemporâneo é essencial para uma completa compreensão, já que a atuação da memória como um dispositivo que aciona o tempo em sobreposições é crucial neste processo. AGAMBEM (2014, p.5859) sugere que: É verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender seu tempo. O estudo parte da narrativa “Fim” de Fernanda Torres, cuja temática sugere a ideia de geração e a precisão fronteiriça entre memória e identidade. Tal obra parece traduzir realidades em que a competência discursiva a transforma não somente em representação urbana como lugar de vivência ficcional, ou seja, espaço de encenação real ficcionalizado, mas também como lugar imaginado que se faz real a partir da ficção, na medida em que “interpela” este mesmo real. Uma literatura de condição estética vintage, por ser o território do encontro, do entre-lugar de tempos e espaços, vale dizer, há um encontro entre as teorias que informam a memória e suas formulações literárias, estejam elas nos textos, nos autores, na estética dos livros, na vida cultural. Vamos encontrar esse entendimento em narrativas literárias contemporâneas, que sugerem um rompimento entre gerações, como é o caso do romance intitulado “Fim” de Fernanda Torres, publicado em 2013, cuja temática sugere a ideia de geração e a precisão fronteiriça entre memória e identidade. Tal obra parece traduzir realidades em que a competência discursiva a transforma não somente em representação urbana como lugar de vivência ficcional, ou seja, espaço de encenação real ficcionalizado, mas também como lugar imaginado que se faz real a partir da ficção, na medida em que “interpela” este mesmo real. Uma literatura de condição estética contemporânea, cujo teatro da memória se movimenta em um território de encontro, do entre-lugar de tempos e espaços. 209 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O livro é despretensioso. Longe de ser uma obra-prima, tem a contradição assegurada no fato da autora Fernanda Torres, ser atriz originariamente de sucesso e ter a primeira incursão no campo literário. A contradição se estabelece porque a um só tempo representa um capital não desprezível na aceitação da obra, mas também um fator de desconfiança pela origem apartada das letras. No entanto, é justamente esta marca fronteiriça ou contraditória que pode nos interessar na medida em que sinaliza uma das constantes da literatura contemporânea. Não esperemos uma obra fundamental para a vida do leitor, nenhum romance de fundação, mas incrivelmente nossa expectativa e percepção, ainda assentados no paradigma moderno, recaem sobre um modo de ver e sentir que não entusiasma. Temos, então, uma narrativa que traz as marcas constantes da estética contemporânea. E neste sentido a autora deixa bem claro que é e está contando uma história, não temos mais aquela pretensa ilusão de realidade moderna, muito pelo contrário, o texto se ironiza o tempo todo, parecendo buscar uma inverossímil convicção que no fundo soa como vida da gente. O aspecto político já se desenha nesta dicção da autora, ao deixar à mostra um rastro 210 da vivência que flerta frequentemente com o ficcional. O romance trata da história de cinco amigos: Álvaro, Sílvio; Ribeiro; Neto e Ciro, que relatam através de um narrador em 3ª pessoa, na maioria das vezes, já que este narrador se move através de pontos de vista múltiplos, suas trajetórias, entrecruzadas por um pano de fundo do Rio de Janeiro dos anos cinquenta, chegando aos dias atuais. O trabalho da memória está todo aí, numa perspectiva de trazer o passado à tona como um acerto de contas com o presente. E este acerto se dá a partir de uma trama que se sucede relatando as efetivas agruras dos personagens, tecendo uma espécie de cartografia afetiva da memória. Percebe-se que ao longo da narrativa são citados e situados vários acontecimentos que se explicam e dão sentido por que estão no Rio de Janeiro, numa clara alusão ao espaço narrativo e ao tempo da ação como componentes literários. As dez e meia desceu do taxi na avenida Francisco Bicalho, em frente ao Instituto Médico Legal. O prédio exalava podridão. O cheiro ardia nas ventas, penetrando nos poros mesmo com as narinas tapadas. O bafo pútrido de fora piorou do lado de dentro. Não podia ter escolhido um dia mais fresco? Irene se dirigiu à recepção, pegou a senha e sentou-se para aguardar na cadeira de plástico. O assento Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. rachado beliscou a coxa obrigando-a a manter a perna sob vigília. (TORRES, 2013, p.30-31) De maneira um tanto sutil, os tempos se confundem numa mesma cena, fazendo emergir um novo modelo que mistura elementos do passado e do presente. É ilustrativo atentar para o espaço: “Instituto Médico legal na avenida Francisco Bicalho”, e evidenciar que tal lugar, sabido sobretudo pelos cariocas, é uma construção nova, especialmente feita para abrigar o novo Instituto Médico Legal e que esta construção neste lugar existe há cerca de cinco anos, pois antes era localizado na rua dos Inválidos, no Centro do Rio de Janeiro. Ou seja, o tempo da narração nos remete a estes últimos anos. No entanto, a narração mistura elementos da memória de um Instituto Médico Legal que não existe mais, que era o antigo endereço, com cadeiras de plástico, assento rachado e, principalmente, o forte cheiro “que exalava podridão”. Esta descrição corresponde ao prédio velho e não à nova construção, mas para efeitos da narrativa misturou-se o tempo, numa autêntica operação de fusão das memórias. Deste modo, as atitudes, os relacionamentos, enfim, o comportamento e modo de ser, dos personagens se adequam a um estereótipo carioca. Ora, a narrativa então se vale destas marcas cartográficas para se constituir, como as que identificamos em: “ O consultório do Matos fica num edifício comercial aqui de Copacabana lotado de médicos senis.” (op.cit, 2013, p.27). Ao que parece não poderíamos ler esta história sem os componentes geográficos e locais que a compõe, pois expressaria uma outra história. Assim, temos o registro indiscutível da memória ao lidar com a narrativa, que salienta um aspecto contumaz da contemporaneidade a relação tempo-espaço. Tal relação, tempo-espaço, é frequentemente sublinhada ao longo da narrativa, como se a memória só estivesse ali como adorno, como referencial vazio, não como um dado nostálgico e permanente. Deste modo a narrativa se move entre memória e lugares, mas sem dar o peso que outrora procuramos. Não há culpa naquilo que foi vivido, não se quer recuperar nada: Irene recebeu com frieza a notícia da morte do homem com quem vivera quinze anos de sua juventude. A filha telefonou aflita de Uberaba, estava no aeroporto, o pai jazia numa geladeira no IML, Ela havia deixado as crianças com o marido e não conseguiria fazer a 211 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. conexão em São Paulo, passar na delegacia e ainda tratar com a funerária a tempo de sepultá-lo à tarde“ (op.cit, 2013, p.30) . A cena descrita demonstra bem o sentido de uma ausência de coerência histórica, desvelando um liame temporal que está sendo fundido. Assim como podemos notar também na fala peremptória do personagem Álvaro ao morrer, logo no primeiro capítulo dedicado a ele, que faz uma reflexão sobre a vida e as possibilidades da ocorrência de morte, quando busca apreender o tempo vivido e a sua consequência no presente. A morte não existe. Nem o budista reencarnacionista acha que vai voltar igual ao que foi. Vou estar na planta, na baba da lagarta que devora a planta, na mosca que lambe a baba da lagarta que devora a planta. Estarei por ali. Foi de bom tamanho, eu estava cansado. A indiferença daqui me cai bem (...) .Desintegro no ar sobre Copacabana. Uma vez, li que a morte era o momento mais significativo da vida, e é mesmo. A minha foi boa, está sendo, não por muito mais” (op. cit. 2013, p.29). Essa constatação do personagem, com a consciência da morte vindo à superfície deixa bem claro que não há nada a lamentar. Foi a vida, fim. Irene, uma das 212 personagens que desempenham um papel relevante na trama, pois é esposa de Álvaro, tem na relação necessária com os amigos deste uma constante também em sua vida, já que vive as memórias de Álvaro de maneira orgânica; uma memória por tabela, na concepção de POLLAK (1992, p.205). São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não (...) É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorre um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada. A memória por tabela se situa no mesmo campo semântico do vintage, ou seja, uma memória de segunda ordem, herdada, em que o tempo passado se confunde e é apropriado pelo presente. Irene então se move também nesta perspectiva externando uma ruptura sentimental e a um só tempo vivenciando uma memória por adesão. Com isto, a ficção literária contemporânea, qual o caso de “Fim”, se assenta na perspectiva da reconfiguração do tempo, da qual a noção de vintage é uma das Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. vertentes, desdobrando-se ainda na política cotidiana, predominantemente do corpo ou ainda étnica e social. Deste modo, o romance contemporâneo aponta para a mudança de paradigma ao traduzir sintomas e revelar memórias que parecem não querer ser lidos como memórias, bem como lugares que não representam lugares. REFERÊNCIAS AGAMBEM, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2010. BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Tradução Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. v. 1, Petrópolis, Vozes, 1986. CANDAU. Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014. POLLAK, Michael . Memória e identidade social. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212 TORRES, Fernanda. Fim, São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 213 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 214 HISTÓRIA DE LEITURA DE PROFESSORES E SUAS IMPLICAÇÕES NAS AULAS DE LITERATURA NO ENSINO MEDIO Cleide Selma Alecrim Pereira (UNEB/PPGEduc) [email protected] RESUMO Este artigo intitulado “Histórias de leitura de professores e suas implicações nas aulas de literatura no Ensino faz parte de minha pesquisa de Mestrado sobre histórias de leitura de professores egressos do curso de Letras vernáculas, da infância à fase adulta, na condição de docentes do Ensino Médio. O objetivo é investigar como se constituíram estas histórias de leitura na vida e profissão desses professores e quais as implicações na atividade docente no ensino médio para a formação do leitor. A pesquisa fundamenta-se na ideia de que a leitura literária é um direito do ser humano e que a formação leitora dos professores contribui para fazer deste um mediador de leitura que estimula nos alunos o hábito e gosto pela leitura literária. De natureza qualitativa, o trabalho utiliza-se da abordagem autobiográfica na perspectiva de Ferraroti (2010) e Souza (2006, 2008), dentre outros, como método de investigação e para isto faz uso da entrevista narrativa para a coleta dos achados da pesquisa. A base teórica desse trabalho é constituída por autores que abordam a Sociologia da leitura e as suas práticas culturais, dentre e fora da escola, tais como Chartier (2011), Lafarge e Sagré, (2010); Abreu (2006). Para a concepção de literatura e do ensino da Literatura, elege-se, Cândido (1995), Todorov (2010) Paulino (2008,2004), Cosson (2014) e Lajolo (2001). E para a discussão sobre a formação docente ampara-se em Nóvoa (1989-1995 e 2010), Tardif (2012,2014) e Antunes (2011). PALAVRAS-CHAVE: Histórias de leitura; Ensino de literatura; Formação de professor do Ensino médio; Pesquisa autobiográfica. 1. APRESENTAÇÃO Desenvolvido no contexto do Mestrado em Educação e Contemporaneidade da UNEB, este estudo, ainda incompleto, propõe investigar as histórias de leitura de professores egressos do curso de Letras Vernáculas do Campus XXII da UNEB. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O interesse na presente pesquisa surge a partir da necessidade de analisar a relação entre as histórias de leitura desses docentes desde à infância até a fase adulta e a relação com as aulas de literatura no ensino médio, ministradas por eles no contexto de uma escola pública em Euclides da Cunha, Bahia. A partir da interpretação da formação leitora e das práticas educativas dos professores e tomando como material de análise as entrevistas narrativas concedidas por eles, objetivo investigar a contribuição das suas histórias de leitura para a formação de leitores no ensino médio. Diante disso, o problema deste estudo parte das seguintes questões: Qual a relação entre as histórias de leitura de professores egressos do curso de Letras e o ensino de Literatura no ensino médio? Como as práticas de leitura literária de professores contribuem para a formação de leitores na escola básica? A relevância desta pesquisa que tem como base de análise as narrativas dos docentes, parte da compreensão da grande contribuição destas, tanto para os processos formativos dos professores envolvidos, quanto para a valorização das suas experiências, por 216 entender que a trajetória de leitura dos docentes contribui para torná-los profissionais mais preparados e seguros ao ensinar literatura e transformarem suas práticas educativas e a formação do leitor na escola básica. Assim, frente a esta realidade, há de se preocupar com a forma como os professores constroem ou podem construir propostas para as práticas e acessos à leitura literária na escola básica, especialmente no ensino médio. Também faz parte deste estudo verificar se a formação universitária do professor e os saberes advindos da sua história de vida e de leitura, têm lhes ajudado na busca por metodologias, estratégias e práticas inovadoras de incentivo ao gosto e hábito da leitura literária, sem terem de apenas obrigá-la aos alunos, mas ensinando maneiras de ler e de gostar de ler a estes jovens, de forma a transformarem o ambiente da sala de aula em local adequado a ação estimuladora do ato de ler. Aponta Bresson (2011, p 35) que a aprendizagem da leitura requer ensino, mesmo em sociedades alfabetizadas como a nossa. Para ele, “o ensino da leitura é o meio de transformar os valores e os hábitos dos grupos sociais que são os seus hábitos”. Portanto, não ensinar nas aulas de Língua Portuguesa a leitura literária Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. como uma arte estética é retirar dos alunos um bem cultural e social de extremo significado para suas vidas. Conforme Abreu, (2006, p 82), a literatura pode ajudar a “escapar das armadilhas da alienação e à padronização do mundo”, assim como pode “manter a consciência das injustiças e da necessidade de combatê-las”. Portanto, se não é a família o espaço em que esses valores são transmitidos a muitos dos alunos, é na escola onde se pode iniciar a gostar de ler, através do incentivo dos professores leitores, especialmente professores de literatura. Como resultado deste estudo, busco contribuir de alguma maneira para repensarmos as inquietações relacionadas à formação do professor, especialmente do profissional de Letras, mediador da leitura literária e, consequentemente, da forma como tem levado para a sala de aula o incentivo à leitura das obras literárias, contribuindo para a formação do gosto pela leitura. 2. PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS Esta pesquisa qualitativa, de abordagem autobiográfica, parte das histórias de leitura de seis docentes, (cujos nomes aqui são fictícios), que atuam numa escola pública no ensino médio em Euclides da Cunha, Bahia e foram colhidas através de entrevistas narrativas com gravador de áudio. Ao se pensar sobre os processos de formação docente, escolho a abordagem autobiográfica como método para esta investigação por encontrar em Nóvoa (1988, p.116) uma razão para melhor entender as histórias de vida na perspectiva deste método, que, segundo ele, “integra-se no movimento atual que procura repensar as questões da formação”, acentuando a ideia de que ninguém forma ninguém e que a formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida. A importância da utilização do método autobiográfico, na pesquisa com educadores, é que ele tem uma “dimensão formativa e autoformativa”, concebida como uma tomada de “consciência de si e de suas aprendizagens experienciais”.(SOUZA,2006, p, 138).Neste tipo de pesquisa, os sujeitos-professores têm a oportunidade de, ao mesmo tempo, rememorar fatos e acontecimentos de sua vida pessoal e profissional como também refletir sobre ações, decisões tomadas, 217 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. percursos trilhados, pessoas envolvidas nesse percurso de tantas e diferentes situações experienciais e formativas. Portanto, a abordagem (auto)biográfica permite por diferentes vias – diários, biografias, memoriais, entrevistas narrativas, dentre outros, potencializar o “processo de conhecimento que se constrói ao longo da vida e que se materializa nas experiências e aprendizagens constitutivas de identidades e subjetividades” (SOUZA, 2008, p. 88).Nessa linha de pensamento, as ideias de Ferrarotti (2010) corroboram enormemente com os estudos nesse campo: Uma narrativa biográfica não é um “relatório de acontecimentos”, mas uma ação social pelo qual um indivíduo retotaliza sinteticamente a sua vida (a biografia).[...] Não há mais verdade biográfica numa narrativa oral espontânea do que num diário, numa autobiografia ou num livro de memórias. E só alcançaremos essa verdade biográfica se sublinharmos a verdade interacional que a narrativa encerra. (FERRAROTTI, 2010, p.46) Esta metodologia guarda, portanto, uma dupla dimensão, de um lado proporciona ao sujeito pesquisado refletir sobre seus percursos formativos e 218 autoformativos e de outro abre ao pesquisador a oportunidade de conduzi-lo com sutileza a identificar e compreender as tensões que o constituíram como pessoa e profissional. Diante disto, as entrevistas narrativas irão permitir, sem dúvida, definir as categorias que revelam as representações dos professores acerca de sua formação leitora, particularmente no campo da literatura, em diferentes tempos e espaços socioculturais. Sabe-se que as memórias das primeiras leituras na família e na escola marcam o sujeito, o qual se constitui também a partir de outras experiências vividas em tempos e espaços diversos que vão formando sua personalidade, preferências, identidade e o constituindo como profissional. Há de se pensar também com Lacerda (2003, p.27) que “a memória reconstrói lembranças de lugares, de pessoas e práticas sociais”, que se constituem em traços de nossa identidade cultural, pessoal e profissional. Antunes (2011), na linhagem de Novoa (1992) e Huberman (1989), diz que as memórias dos professores sobre seus mestres, suas lembranças da escola, da forma como foram ensinados, influencia na sua maneira de desenvolver o processo de Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. ensino-aprendizagem em sala de aula, ou seja, na forma de tornar-se professor. Procurei entender as trajetórias pessoais e profissionais dos sujeitos através das entrevistas autobiográficas as quais visibilizaram as histórias de leitura e de formação docente, que muito revelaram sobre sua maneira de lidar com os processos de ensino aprendizagem nas aulas de literatura. Para isto parto de dois eixos temáticos centrais, sendo o primeiro as Histórias de leitura dos professores desde a infância até a fase adulta, ou seja, a constituição leitora deles; o outro eixo é sobre as aulas de literatura no ensino médio por estes mesmos professores egressos do curso de Letras da UNEB. Para o primeiro tema, investiguei o papel da família, da escola e da universidade na formação leitora, e no segundo tema, as estratégias de ensino de leitura literária, as metodologias, obras adotadas, formas de avaliações, suportes de leitura e as concepções de leitor pelos professores. 3. HISTÓRIAS DE LEITURA E OS ESPAÇOS DE FORMAÇÃO DO PROFESSOR- LEITOR 219 Todos nós, independentemente de gostarmos ou não de ler, do poder aquisitivo ou da escolaridade, temos a nossa história de leitura. Orlandi em Discurso e leitura afirma (1999, p 41/43) que “ todo leitor tem sua história de leitura, assim como “toda leitura tem sua história”. Os variados perfis de leitores e leituras surgem desde quando se constituiu a história dos sujeitos leitores. E leitor somos todos nessa sociedade globalizada, informatizada e cercada de possibilidades de leitura em sentido amplo, tanto a leitura verbal quanto a não-verbal. No entanto, busco analisar a história do leitor de obras literárias, representados aqui na figura do professorleitor, já que relaciono as histórias de leitura destes com o seu fazer pedagógico nas aulas de literatura/leitura literária no ensino médio. A maneira como nos foi apresentada, na família e na escola, a leitura e os objetos de leitura a ela associados como livros, textos, cadernos, lápis, desenhos, gravuras, inscrições marcam de forma particularizada a cada um de nós, a cada família, a cada sujeito que pode diferentemente ressignificá-los ao longo de sua própria história de vida. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Para os professores, sujeitos dessa pesquisa, particularmente, suas histórias de leitura não se findaram com a conclusão da escola básica ou mesmo do curso de Letras na Universidade, ao contrário, elas estão sempre ampliando e refletem diretamente em sua atuação em sala de aula, em suas escolhas e seleção de materiais, em sua concepção de aluno- leitor e de leitura ao longo de seu trajetória profissional, a depender de como seu percurso de leitura se consolidou e dos modelos de leitor e de leitura que se fizeram presentes na vida de cada um. Chaves (2006, p 166) nos diz que “ diferentemente de outros profissionais, o professor interage intensamente com seu campo de atuação profissional desde quando estudante”. Mais do que isso, muito antes de serem estudantes, também, a sua história de leitura na família, seus primeiros contatos contribuíram para formar o ser –professor, especialmente o professor mediador de leitura literária. As posturas dos professores, sujeitos desta pesquisa, no dia a dia da aula, assim como as suas concepções de avaliação, de como ensinar, de como intermediar a aula, “podem encontrar suas origens nas histórias de escolarização, mais do que nos cursos de 220 licenciatura” (op. cit. p 166), isto é, de quando começaram a se relacionar com a escola, as aprendizagens leitora neste espaço, assim como a relação com seus professores. Também, a forma como os professores agem frente à leitura pode estar respaldado nos seus antigos modelos de leitores que os inspiram na sua prática. Há uma compreensão nas pesquisas acadêmicas que as histórias de vida e de formação dos professores não podem ser dissociadas de sua prática em sala de aula, daí a importância, aqui, de se pesquisar como os professores foram iniciados na família e na escola na atividade leitora e como ao longo de sua história de vida e de formação essa leitura significou a sua trajetória pessoal e profissional. Quando os professores refletem, rememoram sobre sua formação, eles ressignificam suas ações pedagógicas, suas escolhas as quais passam a ter um caráter formativo. Para Chaves, 2006, p 162) “ a história de vida pessoal é indissociável da história de vida profissional dos professores, entendendo ambas as dimensões como elementos constitutivos das práticas, condutas, opções e posturas assumidas”. 3.1. O LUGAR DA FAMÍLIA NA FORMAÇÃO LEITORA Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Diferente do que muitos pensam, que a escola é a responsável pela iniciação leitora das crianças, estudos e pesquisas têm demostrado que a família ainda é a grande responsável pela iniciação leitora dos pequenos, principalmente a figura da mãe Os professores, sujeitos desta pesquisa, ao falarem de suas leituras na infância ou adolescência confirmam que é na família que nascem os primeiros estímulos e incentivo à leitura. Eu lembro que minha mãe me deu o livro do Menino Maluquinho- eu tenho até hoje em casa-, pintei todo o livro, que era em preto e branco, eu não sabia ler, pintava todo e o livro tá guardado ainda em casa [...]ela desencaixotava os livros e a gente ia olhar com aquele cuidado que tinha que levar pros outros[...] minha mãe foi minha primeira alfabetizadora.[...] A gente tinha bastantes livros em casa e guardamos alguns de recordação[...] A gente ajudava a mexer por curiosidade mesmo, ver, era novo, tirar do pacote, era uma sensação absurda e ai a gente foi criando gosto, minha irmã primeiro, depois eu fui incentivada por ela, mantivemos o ritmo, incentivando o meu, o filho dela também...ainda mantenho o hábito da leitura. (Professora Cristal ) 221 Assim como a professora Cristal, a professora Bárbara também recorda o quanto a família esteve presente nessa formação do hábito leitor. Eu venho de uma família que sempre me incentivou a questão da leitura, embora nós não tivéssemos condição de comprar livros, minha tia tinha uma condição maior, ela comprava os livros, então contava bastante histórias pra gente. Desde cedo, três, quatro anos, quando fui para escolinha, para educação infantil, na escola eu tive mais contato com a leitura, porém também a gente não tinha condição de comprar livros, então ela sempre comprava e lia para gente ou emprestava gibis. (Professora Bárbara) Para Hébrard, apud Horellou e Segré (2010, p 81-82), “ a criança aprende a ler ao impregnar-se precocemente dos diferentes tipos de escrito que lhe são lidos pelos adultos que a cercam”. Assim de forma natural, a criança vai familiarizando-se com os livros, os diversos gêneros textuais, naturalizando a relação dela com os objetos livros. E assim completam os autores que “ as histórias em quadrinhos continuam sendo as leituras preferidas das crianças que tem dificuldades com o escrito”. A professora Lírio, mesmo já sendo alfabetizada, já mocinha curiosa por revistas proibidas, atribui a sua descoberta pela literatura, pelo prazer de ler, a seu Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. primo, a partir do momento em que ele a inicia nessas leituras literárias. É para ele que ela guarda as melhores recordações de alguém que foi importante na sua iniciação pelo gosto e desejo de ler. Eu sempre fui encantada por ler. Eu lembro que na época a gente não era muito aconselhada, as mocinhas a lerem essas revistas. E eu pegava as revistas e lia, então todo livro me fascinava. Mas eu acredito que assim, a minha formação leitora mesmo, foi graças a um primo... chamado Ivo, ele morava em São Paulo e depois ele veio pra cá...e ele tinha uma biblioteca, que era um tanto ambulante, ele trouxe de São Paulo pra cá esses livros todos, e ai eu lembro que tinha um armariozinho de madeira cheio de livros, e eu li todos os livros dele, eu li a coleção de José de Alencar inteira, eu li todos os romances na época, ai depois eu fui lendo outros, eu lembro que eram os Irmãos Corsos que contavam a história de dois irmãos gêmeos, bem fantástico. E a partir daí eu nunca mais parei de ler. Em suas memórias, Lirio guarda autores, conteúdos, móveis de guardar livros, coleções que leu e nunca mais as esqueceu. A escolha do que ler, como e quando ler, se for isenta de pressão e obrigação deixa marcas positivas nos leitores, 222 especialmente nos adolescentes e crianças que nem o tempo as apaga. As histórias de leitura dos professores são marcadas por poucos livros em casa ou completa ausência deles, poucos recursos financeiros na família, analfabetismo de familiares e sensibilidade de outros de iniciar a criança no universo fabulosos da literatura. Os professores Sol, Catarina e Vitoriano não tiveram a sorte que muitas crianças têm/tiveram de terem mães, pais ou parentes que as incentivam nas primeiras leituras. Sol e Vitoriano vieram de origem de pais sem livro e sem leitura. A mãe de Catarina, mesmo sendo leitora, como ela afirma, talvez por desinteresse, desconhecimento, ou mesmo por achar que leitura é para quem já sabe ler como os grandes, não a estimulava à leitura, não a cobrava que lesse, pelo menos é o que recorda em suas memórias. Assim, ela expressa: “Não tenho ninguém que me espelhou na formação leitora. Que eu já tenha pensado nisso não. ”. Esse “ninguém”, entendemos como um membro familiar, papel que teria ficado para a escola, mas que, infelizmente, esta também deixou a desejar na sua função de estimuladora do hábito e gosto pela leitura. Catarina continua a afirmar que tanto na infância quanto na Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. adolescência não foi incentivada nem pela escola nem pela família, mesmo com a mãe alfabetizada e leitora. E assim, relembra: ...eu tive uma carência muito grande, não por meus pais serem tão afastados da leitura, são pessoas alfabetizadas, são pessoas mais ou menos esclarecidas, mas eu não tinha essa cobrança da leitura e nem na escola também eu percebo que a gente não tinha essa cobrança de ler, do incentivo. Minha mãe, ela sempre lia... mas eu não tive isso... Tanto a professora Sol, quanto os professores Catarina e Vitoriano vieram de famílias que não foram modelos de leitura em sua formação, mesmo que por motivos diferenciados, como pobreza, analfabetismo, desinteresse ou ignorância dos pais, o fato é que nenhum membro familiar está presente nas suas memórias de leitura, na sua iniciação a este universo. “Para a sociologia das práticas culturais, a leitura é a arte de fazer que se herda mais do que se aprende” (HÉBRARD,2011, p 37), daí a importância primorosa da família nessa herança do capital cultural proporcionado pela leitura. São as lembranças de Sol da primeira decifração, decodificação da língua ou da leitura como ela afirma, lembranças estas que inclui o livro didático em casa, mas não o livro de historinha, ficando o vazio por não ter tido alguém na família que cobrasse dela as leituras literárias, que a estimulasse a isto. 3.2 . O LUGAR DA ESCOLA NA FORMAÇÃO LEITORA DOS PROFESSORES Em relação ao espaço escolar, as lembranças dos professores dos mestres que os estimularam a ler, não foram tão significativas e empolgantes como foram de suas leituras no ambiente familiar. Conforme a fala da professora Sol sobre suas lembranças da leitura na época da escola, ela diz: “Livro mesmo não. Se eu li, foi algum texto”. Mais à frente ela afirma que não se lembra de professores que a incentivaram à leitura literária na adolescência, que a busca partiu dela mesma: “Eu mesma que fui procurando assim... Estava inquieta, angustiada. Procurei esses livros de autoajuda. Depois veio, na oitava séries mais ou menos, tinha os livros didáticos eu tinha contato, que tinha os textos e poemas, eu já começava a me entusiasmar com esses poemas e livros”. (Professora Sol) 223 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Essa professora, cujos pais eram analfabetos, não tem memória de leitura na infância, seja na família, seja na escola. Segundo ela, a busca pela leitura foi um caminhar solitária, estimulada pela necessidade de entender ou solucionar seus conflitos de adolescente Assim também, a professora Catarina lembra que ela não teve o incentivo à leitura nem na família nem na escola: “...mas eu não tive isso, tanto é que as minhas dificuldades que tive e tenho hoje, elas são reflexos das minhas séries iniciais”. Mais à frente ela traz lembranças de suas leituras no Ensino Médio, porém as memórias de leituras vêm sempre associadas as leituras que são pedidas pelos professores para fins avaliativos; não foi uma busca espontânea da aluna, por puro gosto de ler, mas uma leitura para um fim especifico, utilitário, que é passar nos vestibulares e alcançar uma universidade, então ela diz: 224 Ai já vem aquela cobrança também na questão das aulas de literatura, de língua portuguesa, aquela cobrança que é feita quando você está pensado em fazer o exame vestibular, esses exames nacionais o ENEM ... leituras, machadianas, essas obras que eu, como aluna, e meus alunos, hoje, eu percebo que não gostam.... Por causa da leitura da época, leitura obrigatória. (Catarina) Os autores Horellou e Segré (2010, p 80e 81) nos trazem que “ a iniciação à leitura é um longo processo que pressupõe, antes da iniciação escolar, o contato precoce da criança pequena com o mundo do escrito”. Complementam também que “é necessário que o texto escrito esteja inserido no universo familiar da criança desde a mais terna idade”. Portanto, quando a criança chega à escola com um déficit de leitura advindo de seu ambiente familiar, a dificuldade de acompanhar as normas escolares e códigos escrito é bem maior para ela, mas isto não significa que os professores não possam e não devam apresentar a criança a literatura, o universo da ficção e tornar esse aluno um leitor em potencial. Antunes (2011, p 26), ao dialogar com Nóvoa (1992), afirma que: “Muitas das lembranças da forma como o docente era tratado, enquanto ainda era aluno do EF (Ensino Fundamental) na maioria das vezes, influenciarão na maneira como ele tratará seus alunos”, ou seja, para a autora a escola dos antigos mestres influenciará Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. esse aluno, quando ele for exercer a sua função docente. Assim complementa: “ Esses aspectos irão auxiliar no conhecimento e nas características das etapas profissionais, vivenciadas ao longo da carreira docente” (p. 26) O professor Vitoriano, que na infância foi alfabetizado na zona rural, onde não havia livros em casa, já que os pais eram analfabetos, passou pela educação infantil sem memória de leitora literária, assim como a professora Sol. Ele lembra que somente no Ensino Médio é que foi apresentado à literatura, ao livro literário propriamente: “Cheguei até a segunda série do ensino médio sem nenhuma indicação de livros, sem nenhum professor solicitar nenhuma leitura de nenhuma obra literária ou de qualquer outra ordem”. Suas memórias de leitura na escola básica vão de uma fase de ausência da leitura literária, antes do ensino medio, para uma fase de apresentação e descoberta desse universo no ensino médio: “Na segunda série do ensino médio, o primeiro livro que li por indicação de uma professora de literatura e a partir desse momento, que foi As Pupilas do Senhor Reitor, foi despertado o prazer e o gosto pela leitura”, até uma fase de ampliação e encantamento pela literatura, do aluno que se deixou ser levado pela magia das palavras como arte, estética, plurissignificação como é a literatura Há também nas memórias da leitura escolar, as boas lembrança da mãe no papel da professora, da família como continuadora e estimuladora da leitura no contexto da escola, ou seja, família e escola como instituições iniciadoras na formação leitora da criança. E assim diz a professora Cristal “A gente estudou no início numa sala multiseriada....e minha mãe foi minha primeira alfabetizadora e ai depois a gente começou a estudar aqui na cidade” Horellou, e Segré (2010, p 122) sentencia que às vezes “ a descoberta da leitura se faz ao longo de um avanço escolar, ao sabor de uma relação calorosa estabelecida com um professor”. E quando esse professor faz parte da família consanguínea e afetiva, como a mãe da professora Cristal, com certeza estas lembranças são muito agradáveis e duradoras, pois associa família e escola numa relação de afeto. 3.3 . O LUGAR DA GRADUAÇÃO NA FORMAÇÃO LEITORA 225 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O curso de Letras, através de sua proposta curricular, não dá conta sozinho de preparar os futuros professores para a mediação da leitura literária na escola básica com propostas mais inovadora e antenadas com as pesquisas atuais sobre leitura. Em virtude disso, a investigação das histórias de leitura destes sujeitos ampliou-se para outros lugares de leitura em sua formação como a infância, a escola básica, a universidade e a formação profissional e continuada Mas o que dizem os professores em suas narrativas sobre o curso de Letras, as aulas de literatura e a sua formação para ensinarem literatura na escola básica? Nas suas falas sobressai a ideia que o currículo de Letras parte do princípio que os alunos que chegam já têm um repertório de leitura amplo, estão preparados para a discussão das obras literárias. Todavia, segundo eles, o curso volta-se mais para o estudo da teoria, da crítica literária e esta postura não é bem aceita por alguns dos professores, sujeitos dessa pesquisa. Desta forma, a professora Lírio se posiciona da seguinte maneira sobre a forma como começam a estudar literatura no curso de Letras: 226 [...] na graduação em si mesmo a gente estuda muito mais os críticos, os teóricos do que a própria obra. A leitura mesmo em si dos textos literários acaba sendo algo ou por sua motivação, por interesse. Você não começa a trabalhar, pelo menos nós não começamos a trabalhar na universidade através da obra literária; você começa da crítica literária, das escolas literárias. (Profa Lírio) Os professores Catarina e Cristal informam que no currículo de Letras da UNEB há muita teoria na área dos estudos literários e a prática voltada para este campo não existe, ou seja, eles não aprendem como ensinar literatura no sentido de mediação, incentivo, estimulo ao hábito e gosto pela leitura. Ainda o fazem como seus professores faziam no passado: para fins avaliativos, controlar se o aluno leu mesmo ou não. Mas para Bárbara, que já era professora antes da graduação assim se expressa sobre o curso “ amadureci bastante minha prática em sala de aula, foi uma contribuição enorme porque a universidade amplia a sua visão da sala de aula, sua visão de mundo, amplia a questão da prática”. Portanto, para ela, uma teoria necessária, que ajudou a amadurecê-la para o exercício da docência, pois a professora já lecionava antes do curso de Letras. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Para Vitoriano, a leitura na universidade foi ampliada e amadurecida: “novos saberes literários, novos autores nos sãos apresentados[..] a leitura literária é vista de uma forma mais complexa, mais detalhada, que se debruça sobre a própria obra”. Na universidade, segundo Vitoriano, ele leu a obra completa de Machado de Assis em razão da monografia de final de curso, isto mostra que este professor se comportou como um leitor voraz de literatura. O que se percebe é que a história de leitura do professor Vitoriano é formada tanto por obras indicadas e avaliadas por seus professores no ensino médio e Universidade quanto também por autores e obras que ele buscou sozinho como leitor maduro. As indicações e cobranças dos docentes não o desestimularam a ser leitor, ao contrário, foi por conta das indicações de um professor, que Vitoriano descobriu a literatura como prazer. A professora Bárbara traz em sua fala a contribuição das aulas de literatura na graduação: A universidade traz a você uma maturidade literária muito grande: na universidade você tem a possibilidade de estudar a literatura e não história como acontece no ensino médio, o estudo das escolas literárias. ” Contudo se o curso de formação de professores não ajuda muito na prática, no dia a dia, os estudos contínuos pelo grupo de professores da área contribuem para a mudança de posturas, para o aprendizado com os pares, com os mais experientes. Assim, a professora Catarina revela a importância do dia a dia no contexto escolar aprendendo com os erros e acertos: “A teoria é válida? É...., mas eu acho que a prática no eu dia a dia, acho que ela é mais importante...com os erros. Aprendendo mais na prática. Você praticar…no dia a dia, você errando, você acertando...você conversa com o colega”. Assim, a formação continuada, no espaço escolar, pelos professores poderá possibilitar a leitura e a reflexão constante sobre o fazer pedagógico, especialmente sobre formas metodológicas e criativas de como estimular a leitura literária no contexto escolar no ensino médio. Embora haja queixas dos professores sobre a falta de relação entre teoria e prática no curso de Letras Vernáculas e embora também estudos confirmarem que os professores repetem as práticas dos seus professores quando desenvolvem o processo de ensino aprendizagem, Antunes (op. cit, p. 27) adverte que “ a criatividade, a espontaneidade, a curiosidade e a pesquisa, aliados à prática docente 227 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. são contribuições fundamentais para a aquisição de uma nova competência profissional”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Compreendemos que a prática docente não pode restringir-se a modelos de ensino na escola e na graduação, já que este modelo tem deixado a desejar no sentido de contribuir com o ensino da leitura literária para além dos muros da escola básica. A formação teórica e metodológica sólida dos professores e atualização constante, assim como a discussão sobre autonomia docente, reflexão e criticidade constantes sobre a prática podem contribuir em muito para uma postura de não aceitação passiva de currículos e conteúdo no contexto da escola. Assim o professor pode ousar mais no ensino da leitura, preocupando-se menos com notas e avaliações e mais com a formação integral do aluno, planejando aulas prazerosas de leitura literária, que possam contribuir para a formação do 228 hábito leitor. A habilidade do professor, aliado à sua formação teórica e metodológica vai ser um facilitador para conquistarem esses alunos que já estão com um pé fora da escola, nos anos finais do Ensino médio. Contudo, Giardinelli (2010, p. 73) aborda que: “ Se o docente não lê, se não está preparado para desfrutar a leitura, não saberá transmitir eficazmente nenhuma estratégia, por melhor que seja...jamais poderá transmitir o prazer de ler aos seus alunos”. Não resta dúvida, todavia, que para ser um professor leitor é preciso tempo e condições financeiras, aquietar-se no seu canto para embeber-se, inebriar-se de leitura e, a partir desta, levar a sua contribuição, as experiências e sugestões de leitura do que leu e gostou, para proporcionar ao aluno uma curiosidade e vontade de adentrar também no universo do livro, do encantamento ou do oficio que é a arte de ler. Ao docente não cabe somente cobrar e exigir do aluno; mas é importante que possa falar de livros de que gostou, falar de livros com encanto, daqueles que lhe proporcionaram momentos de leitura e descontração inesquecíveis, discutindo com eles sobre a importância da literatura na vida dos indivíduos. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Assim, ao melhorar a sua prática em sala de aula no que se refere ao ensino da literatura, evitando obrigá-la e escolarizá-la, apenas para fins avaliativos, os professores contribuem para a formação de um público leitor que continua a ler por gosto. Desta forma, estes professores farão muito mais por estes alunos do que fizeram seus professores do passado, os quais não marcaram as memórias de seus alunos, e farão muito mais do que o curso de Letras os ensinou, ou a família os ajudou, pois, cada profissional tem uma trajetória de vida individualizada, particularizada, mesmo passado pelos mesmos cursos, mesmas escolas, mesmas oportunidades, os resultados não serão iguais, necessariamente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Marcia. Cultura Letrada. São Paulo. Editora da Unesp, 2006. ANTUNES, Helenise Sangoi. Ser aluna e ser professora: um olhar para os ciclos de vida pessoal e profissional. Santa Maria:UFSM, 2011. BRESSON, François. A leitura e suas dificuldades. In: CHARTIER, R. Práticas da leitura. 5ª ed. S. P.: Estação Liberdade, 2011. Tradução de Cristine Nascimento CHAVES, Silvia Nogueira. Memória e autobiografia: nos subterrâneos da formação docente. In: SOUZA, Elizeu C. (org.). 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DOS REGISTROS DAS MEMÓRIAS À FORMAÇÃO DO LEITOR: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE E DE PRÁTICAS LEITORAS A PARTIR DO ESTUDO DAS MEMÓRIAS DE LEITURA DA COMUNIDADE ACADÊMICA DA UESB/JEQUIÉ3 Elaine Teixeira Novaes (Secretaria Municipal de Educação de Jequié) / [email protected] Elane Nardotto(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia - Campus Jequie/ [email protected] Maria Afonsina Ferreira Matos (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB) [email protected] Resumo: Este trabalho objetiva apresentar dados referentes à primeira etapa do projeto de pesquisa Dos registros das memórias à formação do leitor: uma proposta de análise e de práticas leitoras a partir do estudo das memórias de leitura da comunidade acadêmica da UESB/Jequié. Para tanto, partiu da orientação do método biográfico (LEVI, 2006; ROSENTHAL, 2006), do conceito de memória (PÊCHEUX, 2007; ROUSSO, 2006) e das discussões de leitura propostas por Geraldi (1999), Lajolo (2002) e Zilberman (1991). Constatou-se, na análise das memórias de leitura, elementos que “indiciam” questões relacionadas com a formação de professores que atuam na Educação Básica, permitindo assim, a sinalização de novos traçados para uma didática que renove o trabalho com leitura em sala de aula. Palavras-chave- formação do leitor- memórias- pedagogia da leitura Contextualização da pesquisa O projeto de pesquisa4 Dos registros das memórias à formação do leitor: uma proposta de análise e de práticas leitoras a partir do estudo das memórias de leitura da comunidade acadêmica da UESB/Jequié faz parte da linha de pesquisa Memórias de leitura que, por sua vez, faz parte constitutiva do Centro de Estudos da Leitura (CEL)/UESB 3 4 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/Campus Jequié. Projeto de pesquisa financiado pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. (Campus Jequié). Destaque-se que o CEL5 iniciou suas atividades a partir das experiências do Estação da Leitura (ESTALE) que desde 1991 desenvolve trabalhos de pesquisa e extensão do Laboratório de Memória (LM) do Departamento de Ciências Humanas e Letras (DCHL) da UESB. Convém mencionar que o interesse em desenvolver este projeto de pesquisa deve-se ao fato de que estudos (ZILBERMAN, 1991; LAJOLO, 2002) acenam à necessidade de configurar pesquisas sobre práticas formadoras de leitores. E com o intuito de colaborar nesse campo de investigação, apresentamos, nesta primeira fase da pesquisa, aspectos relativos à formação do leitor da comunidade acadêmica da UESB como forma de problematizar a seguinte questão: quais elementos extraídos das memórias de leitura da comunidade acadêmica da UESB/Jequié constituem-se em subsídios para a elaboração de práticas efetivas e eficazes na formação do leitor? Para a nossa análise, separamos no conjunto da produção de que dispomos (cerca de 400 memórias de leitura)6, 97 textos os quais foram produzidos no ano de 232 2004 em disciplinas do Curso de Letras da UESB. A análise desses textos nos permitiu a constituição de indicadores capazes de contribuir no processo de formação do leitor e, sobretudo, extrair subsídios para, posteriormente, elaborar práticas efetivas e eficazes em tal formação, levando em conta que o objetivo geral deste projeto enseja refletir sobre o processo de formação do leitor, a partir da análise das histórias de leitura da comunidade acadêmica do Campus da UESB/Jequié, com o intento de elaborar um novo constructo teórico no campo da Pedagogia da leitura, para intervenções em escolas públicas do município de Jequié-BA e microrregião. Desse modo, nesta primeira fase, seguimos o percurso dos seguintes objetivos específicos: analisar as memórias de leitura da comunidade acadêmica do Campus da UESB/Jequié; extrair, das memórias coletadas, elementos capazes de permitir a organização de novos traçados para uma didática que renove o trabalho com a leitura em sala de aula; constituir um banco de dados com os elementos extraídos dessas memórias. 5 6 www.celeitura.com Banco de dados do Centro de Estudos da Leitura (CEL). Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. DA ESCOLHA TEÓRICO-METODOLÓGICA Uma vez anunciada a natureza do objeto de investigação, optamos por uma abordagem metodológica a qual pudesse alcançar o objetivo deste trabalho. Para isso, fizemos a escolha do método biográfico uma vez que por meio das memórias produzidas pelos alunos da UESB, tem-se subsídios para interpretar o fenômeno estudado. Estamos partindo do pressuposto de que quando os indivíduos falam de suas experiências, utilizam a memória autobiográfica, que pode ser compreendida não como reprodução de eventos passados, mas como reconstruções congruentes à compreensão atual. Nesse contexto, o presente é explicado tendo como referência o passado reconstruído; e ambos são utilizados para gerar expectativas sobre o futuro. Além disso, o método biográfico envolve o uso e a coleta de documentos da história de vida e de narrativas, não se constituindo em uma construção subjetiva dos indivíduos, nem produto de modelos sociais prefigurados objetivos e sim pela vida de experiência do mundo, numa inter-relação do mundo e do eu (ROSENTHAL, 2006). Desse modo, o foco desse método reside nas experiências de vida que alteram ou formam o significado de si mesmos e que tem como pressuposto básico a importância da interpretação e da compreensão como a chave que forma a vida social. Sobre a interpretação, Levi (2006) ao abordar a biografia e hermenêutica, afirma que o material biográfico torna-se intrinsecamente discursivo, mas não se consegue traduzir a totalidade de significados e o “[...] que se torna significativo é o próprio ato interpretativo, isto é, o processo de transformação do texto, de atribuição de um significado a um ato biográfico que pode adquirir uma infinidade de outros significados” (LEVI, 2006, p. 178). Atrelado à idéia do método biográfico, temos o conceito de memória compreendido como memória coletiva, haja vista que os eventos de leitura memorizados são reconstruídos a partir de dados e de noções comuns aos diferentes membros da comunidade social. Pêcheux (2007, p. 50) afirma que, entre outros, o papel da memória deve “ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista 233 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. da “memória individual”, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas [...]”. Desse modo, nos textos tomados para análise, as memórias de leitura foram analisadas como uma “[...] reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional” (ROUSSO, 2006, p.94). Nessa perspectiva, acreditamos que as memórias de leitura da comunidade acadêmica da UESB trazem a inscrição de práticas discursivas sobre os modos de apropriação da formação do leitor na esfera social: seja na família, seja em instituições de ensino. Tem-se, com isso, subsídios para discutir as condições socioculturais da leitura atreladas às práticas de formação leitora nos espaços formais de educação e/ou fora deles. No que diz respeito à leitura, impõem-se, também, a necessidade de definir a forma como esta é concebida, já que a perspectiva teórica que assumimos em relação 234 à leitura trará importantes implicações no que diz respeito ao leitor e, por conseguinte, ao trabalho com a leitura. Nesse sentido, tomamos a concepção de leitura defendida por Geraldi (1997). O autor defende que o trabalho de leitura incide sobre dois sentidos: a compreensão responsiva do leitor integrada as estratégias do dizer do autor. Assim, não há uma “fonte” exclusiva de onde emanam os sentidos possibilitados pela leitura e sim um encontro entre leitor e autor tendo o texto como lugar dessa interlocução. Além desses autores, elencamos as discussões de cunho sócio-político de Zilberman (1991) e Lajolo (2002) pelo fato de suas ideias privilegiarem aspectos políticos, sociais e ideológicos que permeiam o processo de formação do leitor no espaço escolar. ANÁLISE PRELIMINAR PARA ELABORAÇÃO DE PRÁTICAS FORMADORAS DE LEITORES NO ESPAÇO ESCOLAR Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Conforme mencionamos, separamos 97 memórias de leitura como corpus de análise deste estudo. Iniciamos a nossa análise com a leitura dos textos de modo que, neste momento inicial, não fizéssemos “recortes” e sim, uma leitura integral do que estava posto nas memórias dos pesquisados, numa tentativa de seguir a orientação de Rosenthal (2006), a qual sinaliza que a reconstrução da história de vida exige uma atitude analítica diante do texto, na qual cada parte seja integrada ao todo. Em seguida, estabelecemos, na segunda leitura, indicadores configurados na Tabela abaixo, para que pudéssemos apreender melhor o nosso objeto de análise, levando em consideração a questão fundadora desta primeira fase da pesquisa: quais elementos extraídos das memórias de leitura da comunidade acadêmica da UESB/Jequié constituem-se em subsídios para a elaboração de práticas efetivas e eficazes na formação do leitor? Com isso, tem-se a Tabela 1: Tabela 1 – Demonstrativo da recorrência de motivação no processo de formação do leitor 235 Ausê ncia de motivação no processo de formação do leitor no espaço escolar Prese nça de motivação no processo de formação do leitor no espaço escolar Prese nça de motivação no processo de formação do leitor no convívio familiar Ausê ncia de motivação no processo de formação do leitor no convívio familiar Alus ão à relação de prazer ou “desprazer” com a leitura Alus ão para que o processo de formação de leitores se constitua no espaço escolar 43 ocorrências 36 ocorrências 70 ocorrências 19 ocorrências 39 ocorrências 39 ocorrências Inicialmente, estamos compreendendo ocorrência como o número de vezes em que percebemos situações sobre a motivação no processo de formação do leitor nas esferas familiar e escolar. Os indicadores (ausência de motivação no processo de formação do leitor no espaço escolar; presença de motivação no processo de formação do leitor no espaço escolar; presença de motivação no processo de formação do leitor no convívio familiar; ausência de motivação no processo de formação do leitor no convívio escolar; alusão à relação Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. de prazer ou “desprazer” com a leitura; alusão para que o processo de formação de leitores se constitua no espaço escolar) da Tabela 1 é o ponto de partida para a constituição da nossa análise que, por sua vez, subsidia o objetivo do projeto de pesquisa que, a partir da análise das histórias de leitura da comunidade acadêmica do Campus da UESB/Jequié, enseja elaborar um novo constructo teórico no campo da Pedagogia da leitura, para intervenções em escolas públicas de Jequié e microrregião. Observamos que o número de ocorrências (43) do indicador ausência de motivação no processo de formação do leitor no espaço escolar já justifica a elaboração de um trabalho nas escolas públicas de Jequié e microrregião. Isso vem ao encontro do número de ocorrências (39) do indicador alusão para que o processo de formação de leitores se constitua no espaço escolar. Nesta, verificamos que há um interesse por parte dos pesquisados (estudantes de Letras/professores da Educação Básica) em estabelecer intervenções na formação leitora dos alunos para que, de certa forma, minimizem o que constatamos no indicador ausência de motivação no processo de formação do leitor no convívio familiar (19 ocorrências), o que implica uma alusão à 236 relação de prazer ou “desprazer” com a leitura, pois formação leitora encontra-se intimamente relacionada com o despertar da paixão pela leitura. E sobre isso, nós chamamos a atenção do indicador presença de motivação no processo de formação do leitor no convívio familiar (70 ocorrências), a qual evidencia a importância do convívio com os livros e com a “contação de histórias” de forma prazerosa, no espaço familiar, como parte constitutiva da trajetória leitora. Nesse contexto, verificamos também, a intervenção do espaço escolar como presença de motivação no processo de formação do leitor (36 ocorrências), o que mostra a excelência deste lugar como primeiro passo para muitos alunos rumo ao mundo da leitura. Levemos em conta que, ao escolhermos a configuração da Tabela 1 por número de ocorrências, encontramos num único texto a presentificação de todos os indicadores, o que implica a escolha desse texto para analisarmos o processo de formação do leitor. Abaixo segue a transcrição do texto escolhido: Minha história com a leitura começou um pouco tarde, pois morava na zona rural e o único contato com o material escrito era através dos jornais velhos que meus irmãos traziam da feira Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. embrulhados com sabão, carne, etc [...]. Como não havia ninguém que soubesse ler, me contentava, apenas com as figuras. Minha irmã ou, às vezes, minha mãe eram as pessoas que me contavam algumas histórias (principalmente de caçadores e lobisomem) nas noites de céu estrelado para que não dormíssemos tão cedo, já que não tínhamos também, acesso à energia elétrica. E, finalmente, aos sete anos de idade, já morando na cidade com o propósito de estudar, tive meus primeiros contatos com os livros, mas não suportava os livros que não havia figura (principalmente os dicionários, riscava todas as suas páginas). O primeiro material impresso que possuí (e gostava porque era repleto de letras) foi uma cartilha que a pedido da professora minha mãe mandou comprar em uma outra cidade, pois não havia e não há livrarias nem biblioteca na cidade onde moro. Assim foi a minha infância inteira, quase sem nenhum contato com livros ou até mesmo com revistas e gibis [...]. Mas meu primeiro livro foi “Chapeuzinho Vermelho” que encontrei no lixo da escola e, o segundo, foi um presente de uma tia evangélica que me deu uma bíblia e um livrinho com cânticos da igreja. Foi nessa época que resolvi ser evangélico [...]. Finalmente, no segundo grau, li um livro de Jorge Amado “A morte e a morte de Quincas Berro D’água” que me emprestaram e depois não devolvi pois marquei o livro inteiro para não esquecer de algumas falas dos personagens que me chamava a atenção. A leitura do livro foi uma exigência da professora e escolhi este livro porque era de poucas páginas e as letras eram graúdas. Mas foi só durante a leitura do livro que pude perceber todo o fascínio da leitura na vida de uma pessoa [...]. Passado este episódio só me reencontrei com um livro no último ano de ensino médio, também a pedido de uma professora (por sinal foi por causa dela que escolhi o curso de Letras). Foi nesse último ano que participei do único evento proposto pela escola com o objetivo de mostrar a importância da leitura, pois até então todos os eventos da escola que eu havia estudado eram as gincanas que tinha como tarefa recolher livros, alimentos e só [...]. Na minha família ninguém gosta de ler, exceto minha irmã que foi criada por minha avó em outra cidade e por sinal foi a única dos irmãos que conseguiu cursar uma faculdade. Ela sempre me incentivou nos estudos, mas não na leitura. Por meus pais não serem letrados, a leitura nunca foi assunto nas nossas conversas. [...] Resumidamente, não sou um bom leitor, ou melhor, não tenho esse bom hábito de ler. Na verdade, não incorporei ainda. [...] ao fazer este relatório de leitura pude refletir sobre o meu papel como futuro incentivador de leitores que é o professor de Língua Portuguesa. A partir dessa reflexão, constatei que seria melhor trocar de curso [Curso de Letras], do que não ter o poder de mudar a relação de centenas de alunos que talvez não tenha um incentivador por perto para que essa triste trajetória não se repita. 237 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O fato de trazermos um único texto para a análise de todos os indicadores configurados na Tabela 1, pode parecer contraditório haja vista tais indicações constituíremse oposições entre si. No entanto, a memória de leitura selecionada materializou momentos diferentes na trajetória de formação leitora e, ao mesmo tempo, constatamos que as ideias postas pelo autor também trazem informações diametralmente opostas sobre a sua formação leitora, o que evidencia questões como Com que tipo de textos nos defrontamos quando usamos, como fonte de dados de nossa pesquisa, autobiografias escritas ou transcrições obtidas a partir de relatos de histórias de vida? Será que consideramos esse material como fonte que oferece uma visão deficiente daquilo que aconteceu? Será que começamos com a suspeita de que esse material apresenta uma distorção do que foram fatos objetivos, tratando então de “tapar” buracos para encontrar o mundo real por trás das palavras? (ROSENTHAL, 2006, p. 193). De acordo com a autora, tais questões são suscitadas pelo fato de ocorrer uma indagação se a autobiografia constitui-se como uma fonte boa ou má. Inferimos que, para além 238 de tais questões, consideramos a autobiografia como artefato simbólico, o qual pode trazer experiências de um “eu” na sua inter-relação com o “mundo”, o que para nós pode ser concebido como uma memória coletiva. Com isso, constatamos que, de um modo geral, não ocorreu na história de leitura do pesquisado um incentivo para que ele se constituísse como leitor, salvo em momentos esporádicos como por exemplo, a tia evangélica que deu de presente a ele uma bíblia e um livro de cânticos. Chamamos a atenção para esse episódio, visto que, a partir daí, ele se tornou evangélico também, o que pode ter sido resultado das leituras dos textos religiosos ou do próprio incentivo da tia. Não desconsideraremos que a irmã e a mãe foram na sua trajetória leitora contadoras de histórias, embora ele afirmasse em outro momento, que a irmã incentivava-o nos estudos, mas não na leitura. Por outro lado, ele se refere aos pais como não letrados e que a leitura nunca tinha sido assunto nas conversas de família. Acrescentamos que no final da memória de leitura, o pesquisado finaliza com as seguintes palavras: [...] Resumidamente, não sou um bom leitor, ou melhor, não tenho esse bom hábito de ler. Na verdade, não incorporei ainda. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Se levarmos em conta que o processo de hominização na perspectiva teórica de Vigotski (2001) e Bakhtin (2003), trata-se de uma atividade essencialmente social, pois o homem se forma e relaciona-se com os seus pares por meio da troca ou influência mútua, compreendemos tais palavras do pesquisado. No processo de sua constituição, ele não foi submetido na infância e na adolescência a todo o momento em situações de práticas leitoras, o que talvez explique a sua autoavaliação de que não é um bom leitor, ou melhor, não incorporou ainda o hábito de ler. Em seguida, afirma: [...] ao fazer este relatório de leitura pude refletir sobre o meu papel como futuro incentivador de leitores que é o professor de Língua Portuguesa. A partir dessa reflexão, constatei que seria melhor trocar de curso [Curso de Letras], do que não ter o poder de mudar a relação de centenas de alunos que talvez não tenha um incentivador por perto para que essa triste trajetória não se repita. Verificamos no trecho acima, uma tomada de consciência da trajetória leitora do pesquisado quando relata, já adulto, sobre o seu papel de incentivador de leitores, possivelmente seus futuros alunos, já que se tornará professor de Língua Portuguesa. Nesse caso, Zilberman (1991) e Lajolo (2002) asseveram que a responsabilidade pelo incentivo à leitura fica a cargo do professor de Língua Portuguesa. No entanto, as questões que giram em torno da leitura, literatura e ensino deveria ser responsabilidade de todos os professores da escola. Isso porque a leitura é, por sua própria natureza, um campo transdisciplinar, sendo, portanto, fator de desenvolvimento individual em qualquer área de atuação na qual o cidadão invista seus esforços, o que pode ser abordado em qualquer disciplina escolar. Além disso, constatamos que, ao se considerar como futuro incentivador de leitores, há, a nosso ver, questões relacionadas à formação docente. Vimos na Tabela 1, especificamente no indicador ausência de motivação no processo de formação do leitor no espaço escolar, que das 97 memórias categorizadas, 43 ocorrências referem-se a tal ausência, podendo ser “cruzada” com o indicador alusão para que o processo de formação de leitores se constitua no espaço escolar que, por sua vez, materializou 39 ocorrências. Se por um lado, nas memórias de leitura dos pesquisados há uma “denúncia” do modo como as práticas de incentivo à leitura ocorreram no espaço escolar. Por outro, há uma preocupação para que ocorra uma formação leitora no referido 239 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. espaço. Desse modo, não desconsideraremos que o professor como aquele que lida diretamente com os alunos, pode ser um fomentador de uma prática leitora na sua sala de aula. Mas, chamamos a atenção que, além de estratégias internas no espaço escolar, a formação de leitores diz respeito à política de popularização do livro e da leitura que é de responsabilidade do poder público, na medida em que é este que, numa sociedade que se deseja democrática, representa a maior parte das pessoas de uma nação (ZILBERMAN, 1991). À guisa de considerações finais, retomemos a questão fundadora desta primeira fase da pesquisa: quais elementos extraídos das memórias de leitura da comunidade acadêmica da UESB/Jequié constituem-se em subsídios para a elaboração de práticas efetivas e eficazes na formação do leitor? Com a análise, constatamos elementos que “indiciam” práticas de formação de professores que atuam na Educação Básica, conforme explicitado por nós. Ademais, tais elementos são capazes de permitir a organização de novos traçados para uma didática que renove o trabalho com leitura em sala de aula. Desse modo, a segunda fase desta pesquisa enseja fomentar a formação de leitores no espaço escolar, visto que foram considerados os 240 elementos recorrentes nas memórias que respondem à questão de pesquisa, passíveis de serem transformados em propostas didáticas. Com isso, acreditamos que as ações didáticas têm por finalidade a formação do cidadão/leitor enquanto sujeito do pensar e do agir no campo complexo das relações sociais, que se materializará por meio de intervenções, as quais se colocam em questão a interlocução no ensino-aprendizagem da leitura, aproximando-se das recentes discussões que tratam o leitor como produtor de sentidos, ou seja, leitor que, numa atitude responsiva, dialoga com o autor por meio do texto (GERALDI, 1997). Como refletir sobre o processo de formação do leitor, a partir das memórias de leitura, tem o intento de elaborar um novo constructo teórico no campo da pedagogia da leitura para aplicá-lo em escolas públicas de Jequié e microrregião, verificamos que há uma demanda para pesquisa/intervenção posterior que, possivelmente, ampliarão as nossas discussões preliminares, mesmo porque concordamos com Bakhtin, quando diz que Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. [...] todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo [...] todo enunciado [...] tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros [...] o falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva (BAKHTIN, 2003, p. 274-275). REFERENCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína. Usos e abusos da história Oral. Marieta de Moraes Ferreira. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2006. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6 ed. São Paulo: Ática, 2002. PÊCHEUX, Michel. 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São Paulo: Contexto, 1991. 241 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 242 QUEBRANDO O SILÊNCIO COM A LEITURA DO VOCABULÁRIO DE TORTURAS E TORTURADOS DE MÁRCIO MOREIRA ALVES Elifrance de Oliveira Marins Bolsista - IC – CNPQ – UFBA [email protected] Eliana Correia Brandão Gonçalves UFBA [email protected] RESUMO O trabalho tem por objetivo refletir sobre a leitura do vocabulário presente no livro Torturas e Torturados de Márcio Moreira Alves que explicita as relações de violência e de vigilância registradas nessa fonte e produzida em um regime ditatorial. Alves foi um jornalista e político brasileiro que lançou Torturas e torturados, em 1966, no intuito de denunciar e documentar fatos e registros de torturas ocorridos no período militar no Brasil, de forma bem detalhada, sem esconder nada e sempre concluindo os relatos com observações pessoais ou depoimentos fidedignos, a fim de sensibilizar a consciência da sociedade. O livro foi proibido e recolhido pelo Governo Federal e também usado como argumento para a tentativa de impugnação da candidatura de Alves a deputado federal. Naquele período, a censura interditou o livro do escritor, não só pelo mesmo ser denunciativo, mas porque a censura impedia a expressão dos fatos pelos sujeitos, a utilização de espaços, a tomada de posturas, bem como cerceava as rememorações. Posteriormente, a obra foi liberada pela justiça, em julho de 1967, ano em que saiu sua segunda edição. Assim, é preciso ressaltar que o livro trata de fatos e de pessoas retratadas por um observador e não por uma vítima, pois é fato que a tortura foi uma forma de violência utilizada pelos militares para silenciar os sujeitos, intimidá-los e, por esse motivo, faz-se necessária à leitura dos itens lexicais do vocabulário que compõe essas relações, visto que essas unidades lexicais podem ser lidas e refletidas na produção do escritor. Dessa forma a proposta é refletir sobre a pesquisa com a leitura dos dados lexicais constantes nesse livro, visto que, segundo Gonçalves (2014), diante de um regime em que há a impossibilidade de falar e escrever com liberdade de expressão, o resgate dos testemunhos é também o resgate dos ecos das vozes desses sujeitos, que tiveram suas histórias e memórias silenciadas. Portanto, a leitura da violência nos regimes ditatoriais é decorrente das questões de silenciamento e do não dito, posto que a censura reflete a proibição e a liberdade de expressão, fazendo-se necessária a seleção e o uso de unidades lexicais que representam as marcas de uma memória silenciada. Por fim, a análise da dimensão dos aspectos léxico-semânticos, verificados no testemunho documental, apresenta modos de explicação de fenômenos que podem ser verificados em textos produzidos na ditadura militar, demonstrando que o léxico de uma língua é carregado de marcas importantes em relação aos aspectos políticos, sociais, históricos e culturais. PALAVRAS-CHAVE: Leitura; léxico; tortura; violência; ditadura militar. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 1 APRESENTAÇÃO Este trabalho está voltado para a leitura e debate acerca do vocabulário presente no livro Tortura e torturados, como uma fonte documental que testemunha fatos linguísticos e culturais, que se refletem na constituição histórica de nosso povo. O estudo tem sido desenvolvido no curso de Letras da Universidade Federal da Bahia - UFBA, com o auxílio de bolsa de IC do Conselho Nacional de Pesquisa CNPQ, que atualmente é chamado de Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. A pesquisa também está vinculada ao projeto intitulado Arquivos culturais e construção do léxico: a vigilância nos regimes ditatoriais, coordenado pela Profa. Dra. Eliana Brandão (UFBA) que tem, entre outros, o objetivo de ler e reavaliar fontes testemunhais, históricas ou ficcionais, com a finalidade de analisar e interpretar as unidades lexicais que representam acontecimentos vinculados à violência e à vigilância e que evidenciam a construção de espaços semântico-lexicais na 244 composição dos discursos produzidos durante a vigência de regimes ditatoriais. O estudo do léxico apresenta uma estreita relação com o mundo e sua história, valores, crenças, hábitos, leis e costumes de uma determinada época. O conhecimento do léxico permite um complexo estudo da realidade e da forma como cada sujeito de sua época organiza o mundo que nos rodeia e designa dessa forma diferentes esferas sociais, linguísticas e culturais. Os textos de Vilela (1994), Berg (2002), Orlandi (2007), Gonçalves (2015), Santos (2012), Biderman( 2001), Ilari (2002), ARAUJO (2013), Abbade (2015), Alvez (1966), Soares (2015) e Maués (2015) trouxeram informações esclarecedoras e discursivas para a temática da pesquisa, não apenas por refletir o que foi a ditadura, mas porque também revelam como e porque os acontecimentos do período militar do Brasil ainda se relacionam com a atual sociedade brasileira, isto é, os textos não relatam somente o silenciamento do não dito na época da ditadura, mas também, refletem como e porque se davam esse silenciamento. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 2 A DITADURA MILITAR E A LEITURA DO LIVRO DE ALVES A ditadura militar no Brasil foi um duro período conduzido por militares. Nesse espaço de tempo o Brasil foi destacado por vários atos constitucionais que colocava em prática a censura, a tortura em cima de todos que eram contra o regime, perseguição política, a falta total de democracia, ou seja, uma época totalmente marcada por um passado rigoroso e por uma violência traumática. Durante todo esse período muitos brasileiros reagiram e lutaram contra a ditadura de variadas formas. Muitos estudantes, artistas e intelectuais da época se manifestaram contra a ditadura. De acordo com Araújo (2013, p. 27), Silva (2013, p.27) e Santos (2013, p. 27), uma forte repressão se abatera sobre as lideranças sindicais e políticas ligadas principalmente aos partidos trabalhistas e comunistas que haviam liderado as lutas políticas antes mesmo de 64. Os grupos de luta se juntavam para apoiar a liberdade democrática, para levantarem cartazes contra as prisões arbitrárias, a tortura, à censura, pela liberdade de organização, revelação e manifestação política. Figura 1 – Imagem do povo que vai às ruas e exigi o fim da Implantação do Socialismo no Brasil (19/03/1964) Fonte - O GLOBO, 2014. Os acontecimentos do período da ditadura militar no Brasil (1964-1985) ainda estão vivos e próximos, mas não suficientemente claros. As informações oficiais sobre o regime militar possuem várias lacunas; muitas vítimas e desaparecidos políticos ainda aguardam que suas histórias sejam esclarecidas e lembradas. Araújo (2013, p. 245 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 28), Silva (2013, p.28) e Santos (2013, p. 28). Dessa forma, a identificação de “lugares de memória” relacionados a esse período tão marcante do nosso tempo torna-se fundamental como fonte de conhecimento, estudo e ensino. Diante de um regime em que há a impossibilidade de falar e escrever com liberdade de expressão, o resgate dos testemunhos é também o resgate dos ecos das vozes desses sujeitos que tiveram suas histórias e memórias silenciadas pelos regimes ditatoriais. (GONÇALVES, 2015) Os relatos de tortura nas instituições totais, como presídios, hospitais psiquiátricos, faculdades, teatros etc. mostram como a prática não apenas era tolerada, mas naturalizada como forma de controle e punição de corpos deformados de cidadania e direitos. A discussão da tortura não se debruça apenas na lembrança de um passado, mas ainda se revela como prática persistente no cotidiano brasileiro, retocada pelas condições do tempo presente. (VANNUCHI, 2010, p.8) A tortura é comum no Brasil desde sempre e para Soares (2010), essa prática é uma herança maldita trazida pelos portugueses “educados” nos métodos da dita 246 sagrada Inquisição que permanece até hoje. Os indígenas, os hereges, os negros escravos, os pobres em geral, todos foram vítimas de violência e abuso e para punir, dar exemplos ou mesmo arrancar informações, era usado o meio de tortura, do sofrimento. (SOARES, 2010, 21) Torturar é um ato desumano, porque quem tortura trata as vítimas como seres indignos, ou até mesmo como seres que merecem passar por tal ato de violência, logo assim é incontestável que o passado da ditadura militar deixou o país mergulhado em trevas, a sociedade vivia com pavor e medo, calados, sem direito de exprimir seus pensamentos e ideias, sem coragem de denunciar atos repugnantes que muitas vezes assistiam, mas não denunciavam para que tais atos não virassem contra elas mesmas e fossem dessa maneira as próximas vitimas de repressão. (SOARES, 2010, 23) Portanto, conhecer a verdade e ter acesso à história é um direito de todos. Ofertar conhecimento histórico de acontecimentos que marcaram nosso passado repressivo e que ainda condicionam nosso presente é certamente um ato político. Pois se trata de lembrar não apenas para que haja justiça com as vítimas, mas também para que toda a sociedade se envolva na consolidação da nossa cultura Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. democrática. Araújo (2013, p. 28), Silva (2013, p.28) e Santos (2013, p. 28). Denunciar atos passados que nunca sequer foram conhecidos, é dar passos firmes para fortalecer um modelo de sociedade cada vez mais ativa e exigente com respeito aos direitos humanos. Consoante Maué (2011, p.51), em 1964 surgiram às primeiras denúncias de torturas, que deram origem, em 1966, ao primeiro livro de denúncia desses fatos: Torturas e torturados de Alves. No ano de lançamento, o livro foi recolhido e proibido pelo governo federal e ainda foi usado contra a negação da candidatura do jornalista e autor como deputado federal. Apesar disso, em 1967, de acordo com Maués (2011), a obra foi liberada pela justiça em sua segunda edição. Figura 2 – Márcio Moreira Alves 247 Fonte – O GLOBO, 2009 O livro reúne investigações detalhadas, depoimentos, trechos de reportagens, e documentos que denunciavam o uso da tortura já nos primeiros meses da ditadura, durante o governo do general Castelo Branco. Segundo a revista Veja (2009), Alves morreu aos 72 anos, no dia 03 de abril de 2009, depois de cinco meses internado no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro, devido a um acidente vascular cerebral. Figura 3 – Capa do livro - Torturas e Torturados Fonte – LIVRARIA TRAÇA ONLINE (2015) Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O exemplar de Alves é bastante trágico e sombrio, pois retrata fatos narrados e exprimem verdades que comprovam a condenação da violência presente numa sociedade aterrorizada pelos governantes militares do Brasil. O livro não trata de ideias ou conceitos políticos, trata de pessoas que sofreram e morreram durante a luta e opressão do autoritarismo. É um livro que não só mostra a inumanidade, mas também apresenta o terrorismo como arma política mais poderosa do estado. Numa época em que a polícia usava métodos violentos para amedrontar as pessoas e onde a tortura começou a fazer parte do cotidiano de todos na sociedade, a agressividade passou a não ser mais surpresa na sociedade, posto que, a tortura passou a ser usada em longa escala contra muitos presos políticos e reprimir dessa forma qualquer opinião, pensamento ou ideia que fosse contra o governo. (LIMA, 1996, p.1; 2) Foi por conta da coragem de Alves, de criar uma obra denunciativa, investigativa e histórica baseada em testemunhos ricos e reais de pessoas que vivenciaram um dos períodos mais temidos do Brasil, que o vigente trabalho tem por objetivo estudar, selecionar e analisar os itens lexicais de violência e vigilância 248 presentes nesse texto e mostrar dessa forma que a temática não interessa apenas a nossa própria história, como também interessa a história do mundo moderno. 3 O VOCABULÁRIO DE TORTURA E TORTURADOS É o léxico que permite o saber partilhado que existe na consciência de cada falante de uma língua, ou seja, é através dele que se caracteriza a primeira via de acesso a falas e textos, quer sejam eles tecnológicos, científicos, jornalísticos, políticos, religiosos, entre outros. Portanto, para Biderman (2001, p. 13), “o léxico de uma língua natural constitui uma forma de registrar o conhecimento do universo”. É por isso que o estudo do léxico se apresenta em três ramos de aprendizagem, a lexicografia, ou seja, a elaboração de dicionários, a lexicologia, os estudos teóricos que embasam a aplicação cientifica do léxico e, por fim, a terminologia, que se especializa no estudo dos termos, a palavra especializada e os conceitos próprios de diferentes áreas de especialidade. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Assim, o processo de nomeação dos seres e objetos terrestres gera o chamado léxico das línguas naturais, pois o homem se apropria do símbolo real para criar o símbolo linguístico, ou seja, as palavras. Desse modo, surgem as identificações linguísticas através de sistemas classificatórios que o próprio indivíduo criou, gerando conceitos e vocabulários distintos e variados. No entanto, a formação do vocabulário vai depender da taxonomia, dos modelos de categorização e elaborações especificas de cada cultura e nação. Portanto, cada civilização carrega uma herança linguística, já que ao longo da sua história vai se constituindo um parâmetro da realidade sócio-cognitiva com a criação dos signos lexicais. (BIDERMAN, 2001, p. 13) À medida que as civilizações cresciam, o conhecimento da realidade crescia junto também, gerando dessa forma criações técnicas e cientificas, e consequentemente ampliando o vocabulário de acordo com as novas noções e invenções da época. Dessa maneira, conforme Biderman (2001, p. 15), no mundo contemporâneo, sobretudo, está ocorrendo um crescimento geométrico do léxico português e das línguas modernas de modo geral, em virtude do gigantesco progresso técnico e cientifico da rapidez das mudanças sociais provocadas pela frequência e intensidade das comunicações e da progressiva integração das culturas e povos. Para Vilela (1994, p.14) o léxico é o elemento mais transformador da língua, pois é nele que se reflete toda a mudança. A ciência da lexicologia tem por objetivo de estudo a análise da palavra, a categoria lexical e a estrutura do item lexical. Mesmo com tamanha grandeza vocabular, a categorização do léxico e a lexicologia é uma área pouco estudada, mas a pesar disso, o estudo do léxico não deixa de ser importante e necessário para desvendar inúmeros mistérios de nossa história social e linguística, mistério estes que são e podem ser descobertos pelo estudo e análise do léxico existente nessas línguas em momentos específicos da história de cada povo. Biderman (2001, p.16). E é baseado nessa linha de estudo teórico do léxico, que este trabalho visa explorar o estudo do vocabulário presentes no livro Torturas e Torturados de Alves, que relata as relações de violência e vigilância registradas nessa fonte escrita e produzida no período do regime ditatorial no Brasil. 249 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Apesar do seu pequeno universo de estudo, cada palavra segundo Biderman (2001, p.16) faz parte de uma vastíssima estrutura que deve ser considerada segundo duas coordenadas básicas, a estrutura paradigmática e a estrutura sintagmática. É dentro dessas duas estruturas que se percebe uma infinidade de significações linguísticas, já que a lexicologia é paralela à semântica que por sua vez, se apropria do processo e dimensão dos significados linguísticos. Para isso, tenta-se organizar tal dimensão da lexicologia e dos seus conceitos, numa extensa e significativa obra que conhecemos como dicionário. É através da ciência da lexicografia, ou melhor, dos dicionários, que iniciaram listas de palavras explicativas no intuito de auxiliar os leitores de textos bíblicos e textos de antiguidade clássica do período latino medieval. Foi através da lexicografia que a descrição lexical foi realizada e é através dela que vem despertando grande interesse entre os linguistas. Acrescenta-se que nos dicionários estão registrados os signos lexicais referentes a conceitos formados por diversas culturas de uma época, tendo funções 250 normativas e informativas, portanto, a elaboração dos dicionários deve estar organizada com entradas lexicais ou termos de uma língua referente ao universo extralinguístico, nomenclaturas do dicionário e sua macroestrutura. O verbete tem como eixo básico a definição da palavra em maiúsculas e ilustração contextual do mesmo vocábulo ou através de abonações por contextos da língua oral, escrita. O verbete também deve obter informações sociolinguísticas do uso da palavra e estar associado ao lema por meio de redes semântico- lexicais. O dicionário é um recurso muito simples e prático para fazer entender palavras que nem sempre compreendemos. O dicionário de língua faz uma descrição do vocabulário da língua em questão, buscando registar e definir os signos lexicais que referem os conceitos elaborados e cristalizados na cultura. Por outro lado, o dicionário é um objeto cultural de suma importância nas sociedades contemporâneas, sendo uma das mais relevantes instituições da civilização. (BIDERMAN, 2001, p. 16) A vista disso, fora ou dentro da educação acadêmica, um dicionário pode prestar muitos e variados serviços ao leitor; cada um deles associado a um Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. determinado aspecto da descrição lexicográfica, ou seja, do conjunto de explicações que ele fornece sobre cada uma das palavras registradas. Para Abbade (2013, p.718), a pesar dos primeiros estudos das palavras terem sido realizados para organizá-las alfabeticamente nos chamados dicionários, os vocabulários não são lidos apenas por lexicográficos, mas também por outros leitores. A proposta é estudar o léxico constante no livro Torturas e Torturados de Alves, que faz referência ao emprego de torturas ocorridas após o Golpe Militar de 1964. É inegável que a tortura foi uma forma de violência utilizada pelos militares para silenciar os sujeitos, intimidá-los e por esse motivo faz-se necessário estudar o vocabulário, isto é, o subconjunto que se encontra em uso efetivo por um determinado grupo. O vocábulo conforme Abbade (2015, p.717) é a realização da palavra no enunciado do discurso. Portanto, o estudo do vocabulário na obra de Alves compõe relações de violência e de vigilância, por meio da tortura, que estão registradas nas produções escritas produzidas no período do governo militar. Assim, Vale ressaltar que a análise de fenômenos linguísticos por meio da escolha dos itens lexicais, presentes nos discursos dos textos escritos, que representam acontecimentos vinculados à violência da censura, à opressão e à morte, possibilita o resgate dos arquivos e das memórias daqueles que, diante de tais acontecimentos, viram suas vozes silenciadas, vetadas suas palavras e seus ditos – devido ao contexto político dos regimes ditatoriais – que denunciam as atrocidades que vitimaram esses sujeitos. Desse modo, parte-se da reflexão de alguns itens lexicais que revelam a censura, parcial ou total, e, também aqueles divulgadores e portadores de denúncia diante de um quadro político e militar de veto, de opressão e de indignação. (GONÇALVES, 2015, p. 545) Segundo Gonçalves (2015), a violência nos regimes ditatoriais é decorrente das questões de silenciamento e do não dito, visto que a censura reflete a proibição e a impossibilidade da liberdade de expressão, fazendo-se necessário a seleção e o uso de unidades lexicais que representam as marcas de uma memória silenciada. Portanto, é de interesse da pesquisa demonstrar como o léxico de uma língua está coberto de manifestações importantes em relação aos variados aspectos sociais, históricos, diplomáticos e étnicos. 251 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Muitos textos da eram modificados através de outras palavras e insinuavam novos sentidos. Segundo Orlandi (2007, p.107), a censura é a interdição da inscrição do sujeito em formações discursivas determinadas, isto é, proíbem-se certos sentidos porque se impedia o sujeito de ocupar certos lugares, certas posições, ou seja, dá a entender que a oposição à lexia é, também, uma oposição ao indivíduo enunciador, a sua expressão, suas afeições, suas rememorações e ao seu grupo de fala. O dicionário é um recurso muito simples e prático para fazer entender palavras que nem sempre compreendemos do que se trata: O dicionário de língua faz uma descrição do vocabulário da língua em questão, buscando registrar e definir os signos lexicais que se referem aos conceitos elaborados e cristalizados na cultura. Por outro lado, o dicionário é um objeto cultural de suma importância nas sociedades contemporâneas, sendo uma das mais relevantes instituições da civilização. (BIDERMAN, 2001, p. 16) Sendo assim, a partir da seleção, descrição e análise dos itens lexicais, por meio de consultas a obras lexicográficas, os dados foram organizados na ficha252 catálogo da seguinte maneira: 1. Na parte superior é apresentada a referência completa do livro de Alves (1966); 2. Em seguida, logo abaixo, apresentam-se em quatro colunas: a unidade lexical; a transcrição dos verbetes dos três dicionários consultados, nos quais se registram as unidades lexicais analisadas; abonação, que apresenta o contexto, no qual o item lexical está inserido; e a observação, na qual se registram informações complementares sobre o item lexical. Figura 4 – Exemplo de Ficha – Catálogo REFERÊNCIA: ALVES, Márcio Moreira Alves. Tortura e torturados. 2 ed. composto e impresso nas oficinas da Empresa Jornalística PN, S.A. Rua Luiz de Camões, 74 Rio – GB: Rio de Janeiro, 1966. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/marcio_alves_torturas_e_torturados.pdf. Acesso: 26 de outubro de 2015. UNIDADE DICIONÁRIOS ABONAÇÃO OBSERVAÇÃO LEXICAL HOUAISS (2011) FERREIRA (1986) CUNHA (1996) [Agredir] Agredir v. (1818) 1t.d praticar agressão contra Agredir. [Do lat. Agrgredere.] v.t.d. 1. Atacar, assaltar Agredir vb. ‘atacar, brigar, assaltar,’ / 1871, A idéia de que torturas estivessem O item lexical inserido no texto de Alves está na Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. (alguém ou algo); atacar, assaltar. 2t.d dirigir ofensas ou injúrias a; insultar <agrediu-o com palavras ásperas>3 pron. trocar agressão; agredir reciprocamente. acometer. 2. Injuriar, insultar: embriagado, agredia, inconveniente, os passantes. 3. Bater em; surrar; espancar. agredir 1858/ do lat. Agredi. [Dor] Dor/ô/ s.f. (sXIII) med sensação penosa, desagradável, produzida pela excitação de terminações nervosas sensíveis a esses estímulos, e classificada de acordo com o seu lugar, tipo, intensidade, periodicidade, difusão e caráter. Dor(ô) [Do lat. dolore.] s.f.1. Med. Sensação desagradável, variável em intensidade e em extensão de localização, produzida pela estimulação de terminações nervosas. Dor sm. Sofrimento físico ou moral, mágoa, aflição’ / XVI, door XIII, dolor XIV/ Do lat. dolor- oris. [Choque] Choque s. m (1694) 1 Estímulo súbito Choque [do fr. Choc] S. M. 1. Embate, encontro de Choque sm. ‘encontro de dois corpos em sendo empregadas em larga escala contra os presos políticos era de tal forma infame, agredia tão brutalmente a formação moral dos brasileiros que, embora a considerasse impossível, não a examinamos, a época, com a atenção necessária. (ALVES, 1966, p. 31). Os carcereiros queriam saber onde estavam os planos da revolução que haviam recebido de Moscou e onde haviam escondido as metralhadoras. Lorenzetti foi levado para outra sala e Dorremi lembra-se apenas de seus gritos lancinantes. Presume que era dor dos elétricos que dava voz ao torturado. (ALVES, 1966, p. 36) Os carcereiros queriam saber onde estavam forma flexional do verbo transitivo direto agredir encontrado nas formas flexionadas nos dicionários de Houaiss (2009), Cunha (1986) e Ferreira (1999). O contexto apresentado relata a história dos jovens estudantes Dorremi e Lorenzetti, rapazes que na época possuíam 20 anos de idade. Eles haviam 253 sido sequestrados por três homens armados e depois de serem torturados foram abandonados na estrada. A dor no contexto apresentado remete a gritos de socorros, clamor. E segundo o próprio dicionário de Ferreira (1999), dor não remete apenas a dores físicas como também pode ser descrita em momentos de pesares e aflição, ou seja, como sentimento, como protesto. O contexto apresentado relata a história Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. dos nervos, com contração dos músculos, causado por uma descarga elétrica no homem ou num animal. dois corpos em movimento ou de um corpo em movimento e um em repouso. 2. Embate, encontrão. 3. Reconto violento de forças militares 4. Carro de choque. movimento ou de um corpo em movimento e um em repouso’. Do fr. Choc, dev. de choquer e , este, do med. Neerl.. schokken, ou do ing. To shock. . [Esmurrar] Esmurrar v(1713) 1. T.d. dar murros em. 2 t..d fig. Infligir maus tratos; golpear, maltratar, 3. T.d tornar embotado(instru mento cortante) ETM. Es- + murro + -ar SIN/VAR esmurrar. Esmurrar. [De es - + murro + -ar] V. t. d. Dar murros em: indignado com a proposta, esmurrou a mesa; “ conheço muito patife que não sai de junto do altar, a esmurrar os peitos e engolir hóstias.” Esmurrar-> murro [Metralhadora] Metralhadora s.f. (1881) arma de fogo automático que dispara um grande número de projéteis em curto espaço de tempo Etim. fem. substv. do adj metralhador, calcado no fr. mitrailleuse (1867) 'id.', de mitrailler 'metr alhar'; vermetralhhomon. metralhadora /ô/ (f metralhador /ô/ [adj.s.m.]) Murro sm (1665) pancada forte desferida com a mão fechada; Metralhadora (ô). [fem. Substantivado do adj. Metralhador] S. F Arma de fogo automática, que em pouco tempo dispara numerosos projetis análogos aos dos fuzis. Metralhadora s.f ‘balas de ferro, pedaços de ferro, cacos etc., com que se carregam projetis ocos’ 1973 Do fr. mitraille// metralhadora 1881// metralhar XIX. Os carcereiros queriam saber onde estavam os planos da revolução que haviam recebido de Moscou e onde haviam escondido as metralhadoras. (ALVES, 1966, p. ?) Murro s.m. pancada com mão fechada . [ soco e bras.,N.E] bogue. Aum: Murro sm.’ Pancada com a mão fechada’ XVIII. De Cerca de oito ou nove da manhã seguinte, depois de um 254 [Murro] os planos da revolução que haviam recebido de Moscou e onde haviam escondido as metralhadoras. Lorenzetti foi levado para outra sala e Dorremi lembra-se apenas de seus gritos lancinantes. Presume que era dor dos choques elétricos que dava voz ao torturado. (ALVES, 1966, p. 36) Presume que era dor dos choques elétricos que dava voz ao torturado. Com ele, limitara-se a fazer a roleta Russa e esmurrarem seu estômago. (ALVES, 1966, p 36) dos jovens estudantes Dorremi e Lorenzetti, rapazes que na época possuíam 20 anos de idade. Eles haviam sido sequestrados por três homens armados e depois de serem torturados foram abandonados na estrada. O contexto apresentado relata a história de Dorremi oliveira, rapaz que na época tinha 20 anos e havia sido sequestrado por três homens armados. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. soco, morraça. Dar m. em faca de ponta. Fraseologia 2.insistir em fazer algo que será infrutífero, que não tem possibilidade de se concretizar; orig. obsc. Sinônímia e variantes bogue, macaca. murraça. origem obscura. melancólico episódio de masturbação vivido com um dos carcereiros que era pederasta, Dorremi teve de assinar um papel em branco, onde seria escrita sua “confissão”. Relutou por duas vezes em fazê-lo mas foi rapidamente convencido por murros e golpes de telefone. (ALVES, 1966, p.36) A organização de fichas catálogos descritivos, principalmente aqueles relativos ao estudo do vocabulário de textos produzidos durante a vigência de regimes ditatoriais, permiti que o leitor tenha um acesso mais direto às etapas metodológicas da pesquisa, possibilitando dessa forma o desenvolvimento de reflexões e debates acerca da importância da leitura de fontes documentais como testemunho de fatos linguísticos, históricos e culturais, que se refletem na constituição semântico-lexical e histórica de nossa língua (GONÇALVES, 2015). CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste artigo, foram apresentadas leituras sobre a construção lexical presentes no livro “Torturas e torturados” de Marcio Moreira Alves, que explicita as relações de violência e vigilância registradas nessa fonte escrita e produzida em regime ditatorial, sobretudo, no andamento governamental do general Castelo Branco. Foi observado que a tortura foi uma forma de violência utilizada pelos militares para silenciar as vítimas de opressão, intimidá-los e, por esse motivo, faz-se necessário estudar do vocabulário que compõe as relações de violência e de vigilância, por meio do sofrimento humano. 255 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Assim, a leitura da tortura não se debruça apenas na lembrança de um passado, mas ainda se revela como prática persistente no cotidiano brasileiro, retocada pelas condições do tempo presente e, com um contato mais direto com os fatos registrados no texto, pode-se ler que a obra é um testemunho de que toda a forma de tortura precisa ser repudiada. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBADE, Celina Márcia de Souza. Filologia e o estudo do léxico. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ileel/artigos/artigo_244.pdf. Acesso: 29 de setembro de 2015. ALVES, Márcio Moreira Alves. Tortura e torturados. 2 ed. composto e impresso nas oficinas da Empresa Jornalística PN, S.A. Rua Luiz de Camões, 74 - Rio – GB: Rio de 256 Janeiro, 1966. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/marcio_alves_torturas_e_torturados .pdf. Acesso: 26 de outubro de 2015. ARAUJO, Maria Paula; SILVA, Isabel Pimentel; SANTOS, Desirree dos Reis. 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Coimbra: Almedina, 1994. p. 9-41. 257 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 258 FUXICOS BIOGRÁFICOS Experiências vividas e narradas de alfabetizadoras do sertão Fabiane Santana Oliveira Universidade do Estado da Bahia - UNEB [email protected] Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios Universidade do Estado da Bahia - UNEB [email protected] RESUMO Fuxicos são artesanatos muito presentes no sertão, os quais, nas palavras de Araújo (2013), representam uma composição originária como teia formada por retalhos de tecidos entrelaçados com sua estamparia multicor. Fuxicos são como metáforas de narrativas (auto)biográficas que permitem revelar a tessitura das histórias dos sujeitos e as subjetividades que lhes constituem. Partindo desta conceitualização, buscamos, neste artigo, tecer reflexões sobre o desenvolvimento do processo de investigação-formação intitulado Fuxicos Biográficos: experiências vividas e narradas de alfabetizadoras do sertão; uma atividade inspirada nos ateliês biográficos de projeto de Delory-Momberger (2006), procedimento que, por meio de atividades de exploração, atos de escritura de si, leitura e compreensão do outro, permite aos sujeitos a inscrição de suas histórias de vida e formação, numa dinâmica que inter-relaciona o passado, o presente e o futuro. Os Fuxicos Biográficos foram desenvolvidos com o intuito de apreender as narrativas de professoras alfabetizadoras que atuam em turmas de 1º ano, no município de Tucano, no sertão da Bahia. Trata-se de um trabalho de natureza qualitativa, no qual, ganham destaque as discussões teóricopráticas que abrangem o método (auto)biográfico, em suas interfaces de pesquisa e de formação. Para tanto, utilizamos como instrumentos de construção e análise de informações a observação participante, diário de campo, levantamento documental (planejamento, avaliação e textos literários). Ressaltamos que os Fuxicos Biográficos se configuraram como um valiosíssimo procedimento de investigação-formação que resultou na escrita de narrativas (auto)biográficas, mais especificamente, os memoriais de formação, ou seja, a apresentação de um segmento de vida, no qual o sujeito esteve implicado em sua formação profissional, reconstruindo suas experiências. A escrita do memorial de formação partiu da realização de atividades provocadoras que permitiram, a cada professora alfabetizadora, rememorar suas trajetórias e suas práticas; atividades de exploração desenvolvidas em grande grupo e em subgrupos, com suportes diversos que possibilitaram-lhes reescrever seus percursos, evocando tempos, espaços, eventos e sujeitos que foram significativos, partindo de eixos orientadores previamente definidos, a saber: a entrada e a trajetória formativa na profissão, experiências formativas para alfabetização, as práticas alfabetizadoras e o ser professora alfabetizadora do sertão. No decorrer de cada encontro formativo procuramos utilizar práticas que favorecessem a expressão oral e escrita dos sentidos que os sujeitos em formação dão às suas aprendizagens, sendo este procedimento, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. antes de tudo, uma prática de interação e comunicação, que prima pelo diálogo entre todos os participantes. Este trabalho procura evidenciar, portanto, o modo como os Fuxicos Biográficos permitiram que os sujeitos envolvidos em sua realização retomassem e reconstruíssem, por meio da memória, as vivências e experiências ocorridas em seus processos formativos e em suas atuações profissionais, envolvendo as singularidades do contexto sertanejo, além de abordar os próprios sentidos que os sujeitos participantes atribuem às aprendizagens construídas ao longo deste processo formativo. PALAVRAS-CHAVE: Experiência; Narrativas; Professoras Alfabetizadoras; Sertão. INTRODUÇÃO Fuxico é um artesanato muito presente no sertão, composto da união de pequenas trouxas de tecido, as quais, entretecidas, constituem flores coloridas, uma “composição originária como teia formada por retalhos de tecidos entrelaçados com sua estamparia multicor” (ARAÚJO, 2013), que se configura, neste trabalho, como 260 uma metáfora que revela a tessitura das narrativas de alfabetizadoras do sertão, a partilha e o entrelaçamento entre elas. Partindo disso, intitulamos o procedimento de investigação-formação utilizado com o intuito de apreender narrativas de alfabetizadoras - memoriais de formação- como Fuxicos Biográficos: experiências vividas e narradas de alfabetizadoras do sertão, uma atividade inspirada nos ateliês biográficos de projeto de DeloryMomberger (2006) que, segundo esta, configura-se como um espaço de inscrição da história de vida do sujeito numa dinâmica que inter-relaciona o passado, o presente e o futuro, fazendo emergir um projeto pessoal. Trata-se de um procedimento que, por meio de exploração, socialização, atos de escritura de si e compreensão do outro, permite aos sujeitos, além da inscrição de suas histórias de vida e formação, extraírem um “projeto de si profissional” (DELORY-MOMBERGER, 2006, p. 364). O trabalho com os Fuxicos configura-se como um desdobramento da pesquisa intitulada PROFESSORAS ALFABETIZADORAS DO SERTÃO BAIANO: trajetórias de formação-profissão, vinculada às ações do Grupo de Pesquisa Docência, Narrativas e Diversidades – DIVERSO, o qual está inserido na linha de pesquisa 2: Educação, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Práxis Pedagógica e Formação do Educador do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade de Estado da Bahia – PPGEduC/UNEB. O artigo está desenvolvido em três seções, sendo a primeira destinada à uma breve explanação sobre as potencialidades da (auto)biografia nos processos de investigação-formação. Na segunda seção tecemos uma apresentação e reflexão sobre a experiência formativa das alfabetizadoras nos Fuxicos Biográficos, e na terceira e última discorremos sobre as implicações dos Fuxicos Biográficos no processo formativo das alfabetizadoras do sertão, partindo dos sentidos atribuídos pelas próprias alfabetizadoras, expressos em seus registros avaliativos. Concluímos o texto com uma reflexão geral sobre o desenvolvimento do trabalho e os resultados obtidos. 1. POTENCIALIDADES DA (AUTO)BIOGRAFIA NOS PROCESSOS DE INVESTIGAÇÃO-FORMAÇÃO De acordo com a pesquisadora Passeggi (2008, p. 27), “auto-bio-grafar é aparar a si mesmo com as próprias mãos”, é uma maneira que a vida de cada sujeito tem de beneficiar-se de um (re)nascimento, pela mediação da escrita. Trata-se, segundo esta, de um processo que envolve três elementos: a identidade dos sujeitos, isto é, a consciência de si mesmo, representada pelo termo autos; a vida simplesmente vivida – bios; e a escrita – grafia, que simboliza o meio desse novo nascimento do eu. Entendida na relação entre esses elementos, a (auto)biografia tem sido amplamente utilizada no âmbito das pesquisas em educação, como uma abordagem metodológica cujos princípios revelam uma maneira de ampliar o conhecimento sobre a pessoa em formação, sugerindo que os sujeitos inscrevam-se no movimento singular de busca pelo “conhecimento de si” (SOUZA, 2006), por intermédio de registros narrativos, sejam eles orais e/ou escritos. Este método surgiu como um novo paradigma científico que pretendia atribuir à subjetividade valor de conhecimento, cujos fundamentos partem da tomada de consciência sociopolítica por meio da pessoa, tendo como materiais de pesquisa o sujeito-objeto e a interação pessoal, método, portanto, de domínio do 261 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. qualitativo, alheio a todo esquema de verificação de hipóteses previamente estabelecidas, cujas raízes estão na tradição hermenêutica que é “o resultado de uma reflexão pessoal, ou seja, a passagem de uma consciência imediata que é a das sensações, das vivências e das experiências, a uma consciência refletida” (FINGER, 2010, p. 125). Assim, nos movimentos de investigação-formação que têm como base a (auto)biografia, parte-se do princípio de que os sujeitos aprendem a partir de sua própria história; estes sujeitos são ativos, compreendidos como atores/autores que constroem o próprio conhecimento. Através do rememorar experiências vividas e narrá-las, os sujeitos se (re)apropriam de sua própria história e refletem sobre a mesma, podendo ser levados a produzir novos conhecimentos e posicionamentos diante de suas relações pessoais e profissionais. Como afirma Delory-Momberger (2014, p.91), nesses processos, “os sujeitos investem nos espaços de aprendizagem, e a sua conscientização permite definir novas relações com o saber e com a formação”. Compreendemos que os processos formativos ocorrem quando, aliados ao 262 rememorar, narrar/escrever, o sujeito empenha-se na atividade de reflexão tanto sobre sua trajetória, quanto sobre as trajetórias de outros sujeitos envolvidos no mesmo processo. Num trabalho (auto)biográfico de produção e socialização de narrativas, desenvolvemos ações partilhadas que, conforme Delory-Momberger (2014), permitem compreender o outro e compreender a si mesmo através do outro, provocando efeitos transformadores. 2. A EXPERIÊNCIA FORMATIVA DE ALFABETIZADORAS DO SERTÃO NOS FUXICOS BIOGRÁFICOS Fuxicos Biográficos configuram-se como um procedimento investigativo por permitir ao pesquisador compreender como, através da memória, os sujeitos reconstroem e refletem sobre suas experiências, atribuindo-lhes sentido - no caso específico da pesquisa no qual este dispositivo foi efetivado, permitindo compreender as trajetórias de formação-profissão e as práticas pedagógicas de professoras alfabetizadoras no município de Tucano, sertão da Bahia. Apresenta-se, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. ainda, como formativo por ser uma construção própria do sujeito que tem a possibilidade de produzir uma “mudança qualitativa, pessoal e profissional, engendrada por uma relação reflexiva com sua história” (DELORY-MOMBERGER, 2014, p. 96). A experiência formativa deu-se após mapeamento docente do ciclo da alfabetização no município de Tucano-BA, quando obtivemos um quadro de 110 professores alfabetizadores que atuam, em 2015, em turmas de 1º, 2º e 3º anos, além de turmas multisseriadas que envolvem este segmento. Realizamos um recorte desse quadro e, por intermédio da Secretaria Municipal de Educação, enviamos convites a 24 professoras alfabetizadoras que atuam em turmas de 1º ano do Ensino Fundamental para participar de um encontro de socialização da proposta de investigação-formação e para efetivação das inscrições. O encontro de socialização/inscrição foi um momento importante para a compreensão do trabalho, os objetivos e dispositivos a serem efetivados ao longo dos Fuxicos, sendo, imprescindível, neste momento inicial que, apresentássemos, brevemente, a essência do método (auto)biográfico e da fonte biográfica que seria produzida: os memoriais de formação. Partimos, então, de leituras literárias, com textos poéticos que traziam noções (auto)biográficas, aspectos da memória e da escrita de si, a exemplo dos textos: Infância, de Carlos Drummond de Andrade (1999); Retrato, de Cecília Meireles (2001); Auto-retrato, de Manuel Bandeira (1996); Auto-retrato falado, de Manoel de Barros (1993); Grande Desejo, de Adélia Prado (1999); e Minha Culpa, de Florbela Espanca (2002), entre outros textos e autores que, em sua poesia, trazem elementos desse universo da escrita de si ou de um eu-poético que reflete sobre a própria existência. Neste encontro, foi posto um quadro de inscrição com 12 vagas, com o intuito de que se inscrevessem alfabetizadoras que atuassem em diversas localidades do município de Tucano, construindo um conjunto favorável à condução das atividades, maior envolvimento e trocas intersubjetivas entre elas. Os Fuxicos Biográficos foram realizados em seis encontros com a participação efetiva de nove das doze alfabetizadoras inscritas; duas professoras optaram por não dar continuidade ao trabalho, e uma professora, após ter sofrido acidente que trouxe- 263 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. lhe dificuldades de locomoção, desenvolveu a maior parte das atividades em casa, produzindo sua narrativa, porém, sem participar dos momentos essenciais de socialização. O primeiro encontro dos Fuxicos Biográficos foi destinado à sensibilização do grupo sobre a importância deste procedimento de investigação-formação e a firmar o compromisso de participação na pesquisa Professoras Alfabetizadoras do Sertão Baiano: trajetórias de formação-profissão. Partindo de uma conversa inicial sobre o contexto da pesquisa (auto)biográfica, no qual o trabalho se insere, retomamos a proposta de trabalho, os objetivos e dispositivos a serem efetivados, construindo um contrato didático/biográfico com as participantes. Elaborado democraticamente entre a pesquisadora/formadora e as alfabetizadoras, com vistas a garantir a participação efetiva, responsável e integral destas em todos os momentos, o contrato serviu para fixar as regras de funcionamento dos Fuxicos, enunciar a sua intenção “autoformadora” (Pineau, 2010) e oficializar a relação consigo e com o grupo de 264 trabalho. Os Fuxicos Biográficos foram apresentados na perspectiva da “autoformação” delineada por Pineau (2010), com o entendimento de que, neste movimento de investigação-formação estão implicadas as ações do outro (heteroformação) e do meio vivido (ecoformação), de modo que houvesse a compreensão de como sua realização proporcionaria a apropriação do poder de formação pelas alfabetizadoras que, ao tomar este poder nas mãos, tornam-se tanto sujeito quanto objeto de formação para si mesmo e para o outro. Na perspectiva apresentada por Pineau (2010), autoformar-se consiste na dinâmica de diferenciar-se dos outros sujeitos/objetos, refletir-se, emancipar-se e autonomizar-se, tendo a consciência histórica de como as ações do outro e do meio são significativas para a formação de si próprio, através das relações estabelecidas. A leitura literária ganhou espaço de destaque, mais uma vez, em nosso primeiro encontro, tanto a partir de um trecho do texto poético retirado do livro Dias e noites de amor e de guerra, de Eduardo Galeano (2014), quanto da leitura da narrativa Foram muitos, os professores, de Bartolomeu Campos de Queiroz (1997). A literatura foi Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. apresentada como estratégia de mobilização para que as alfabetizadoras se sentissem impulsionadas a empreenderem-se no movimento de escrita de suas próprias narrativas. Os Fuxicos Biográficos permitiram que os sujeitos envolvidos em sua realização retomassem e reconstruíssem, por meio da memória, suas vivências e experiências ocorridas no processo formativo e na atuação profissional envolvendo as singularidades do contexto sertanejo. Para isso, os quatro encontros seguintes, partiram de eixos orientadores das narrativas, sendo eles: 1 - a entrada e a trajetória formativa na profissão; 2- experiências formativas para alfabetização; 3 - as práticas alfabetizadoras; 4 – ser professora alfabetizadora do sertão. Estes quatro encontros tiveram como principais objetivos: rememorar experiências que foram/são significativas no processo de formação-profissão das alfabetizadoras; narrar experiências, trajetórias e percursos da vida que impulsionaram para a escolha da docência e para o trabalho com a alfabetização, narrar sobre as práticas alfabetizadoras, bem como sobre a alfabetização e docência no contexto do sertão. 265 As histórias escritas a cada encontro foram socializadas por meio de contação e da leitura integral dos textos, possibilitando espaços em que as outras professoras pudessem realizar intervenções nas narrativas individuais de suas colegas, estimulando o movimento de reescrita do texto. O sexto e último encontro foi destinado à socialização dos memoriais de formação, no coletivo, e à realização da avaliação desse movimento investigativoformativo. Momento de síntese e reflexão, no qual as alfabetizadoras puderam fazer um balanço do que foi formador ou não no procedimento desenvolvido, revelando as percepções e sentidos atribuídos por cada professora em relação à participação nos Fuxicos Biográficos. Durante todos os encontros foram realizadas, portanto, atividades provocadoras que visavam levar ao movimento de escrita do memorial de formação e de sua socialização, atividades de exploração desenvolvidas em grande grupo e em subgrupos, com suportes diversos que permitiam às participantes reescrever seus percursos, evocando tempos, espaços, eventos e sujeitos que foram significativos. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 3. IMPLICAÇÕES DOS FUXICOS BIOGRÁFICOS NO PROCESSO FORMATIVO DE ALFABETIZADORAS DO SERTÃO A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo. (GALEANO, 2014, p.10) Ao longo dos Fuxicos Biográficos, as alfabetizadoras investiram na rememoração e reflexão sobre suas trajetórias formativas e profissionais e, assim como é destacado nos versos de Galeano (2012), trouxeram, em suas narrativas, o “que merecia ser salvo”: espaços, tempos, acontecimentos e sujeitos marcantes; a compreensão e a interpretação de como e o quê representam/representaram em suas histórias. Segundo Delory-Momberger (2014, p.54) a narrativa (auto)biográfica instala uma hermenêutica da “história de vida”, ou seja, “um sistema de interpretação e de construção que situa, une e faz significar os acontecimentos da vida como elementos 266 organizados no interior de um todo”. Dessa forma, compreendemos que, ao narrar suas histórias, as alfabetizadoras abordaram não a vida em si, mas a compreensão e o significado que atribuíram ao vivido, o qual adquiriu o status de experiência à medida que se empenharam num trabalho reflexivo sobre o que se passou e, diante do que foi observado, percebido e sentido, conseguiram extrair algo de significativo e formador para sua vida. A narrativa assumiu, neste trabalho, um espaço de rememoração, organização, estruturação e interpretação das situações do vivido e das experiências que ficaram. O ato de narrar pode ser compreendido como a ação de dar sentido às experiências; nas palavras de Larossa (2002, p.21), dar sentido a “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”. As alfabetizadoras trouxeram, também, os sentidos e significados que atribuíram às experiências que tiveram nesse processo de investigação-formação. Apresentamos, aqui, trechos das avaliações das alfabetizadoras: Bela, Esther e Sophia, sobre o desenvolvimento dos Fuxicos Biográficos, de modo a compartilhar parte desses sentidos e significados. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Quando questionadas sobre como percebiam a relação entre a proposta inicial da investigação-formação e sua efetiva realização, as professoras demonstraram-se surpreendidas diante da dimensão do trabalho. Estavam acostumadas com modelos de formações aplicacionistas e normativos que focavam, meramente, na relação com o trabalho pedagógico, estudos teóricos sobre “como ensinar” e o que seus alunos “devem aprender”. O olhar e o narrar sobre si mesma, representou uma inovação em seus processos de formação continuada, como pode ser observado no trecho: No início imaginei que fosse uma formação no sentido de receber orientações do trabalho pedagógico relacionado à alfabetização, bem como fazer estudo de alguns pesquisadores com embasamentos teóricos. Após sua realização percebi que além do diálogo, trocas de experiências com as outras colegas participantes, é um mergulho profundo nas vivências/experiências dos outros, no sentido de conhecer o trabalho pedagógico praticado na sala de aula. (Sophia, alfabetizadora do sertão, 2015). Sophia demonstra compreensão sobre a riqueza do trabalho a partir da narrativa de suas experiências, percebendo-se, não mais como sujeito passivo, mas como sujeito autor de sua própria formação, uma formação compartilhada, concretizada na relação com o outro. Para esta professora, a formação permitiu um novo olhar sobre o ser e o fazer profissional, no sentido de conhecer, de uma nova maneira, o trabalho da sala de aula, sentimento compartilhado por Bela, segundo a qual “a pesquisa-formação contribuiu para minha formação pessoal como professora, além de ampliar minha visão para a alfabetização”. A professora Esther afirmou que “previa um simples registro sobre a trajetória e socialização desses. Não esperava mexer em muitos retalhos da minha história de vida”, revelando que teve suas expectativas superadas, diante do que lhe foi proposto e efetivado. Questionadas se a experiência formativa trouxe-lhes implicações pessoais e profissionais, as professoras afirmaram de forma positiva, como exemplificam os trechos: Foi uma oportunidade para pensar nas escolhas que fazemos na vida e o poder dessas escolhas nos traçados da nossa história. Momentos 267 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. que me possibilitaram repensar nos espaços e sujeitos nessas andanças no município e o que esses espaços e sujeitos construíram em mim como profissional e como pessoa. (Esther, alfabetizadora do sertão, 2015). No âmbito pessoal me possibilitou visitar memórias que estavam guardadas em meu passado, me trazendo pessoas e momentos importantes em minha vida. No profissional lembrou minha trajetória pra chegar até aqui, me fez perceber o quanto é importante estar participando de formações, mas também me fez ver que eu sou capaz de fazer bem o que me proponho a fazer, pois faço com responsabilidade e dedicação. (Sophia, alfabetizadora do sertão, 2015). Percebemos que as implicações pessoais e profissionais decorrentes dessa formação aparecem de maneira indissociadas, e que, entre as mais significativas, está a reafirmação do ser professora alfabetizadora e da escolha pela docência, reforçadas pelas memórias das trajetórias pelas quais passaram e dos sujeitos que tiveram participação importante nesta construção. As alfabetizadoras elencaram, em suas fichas de avaliação, pontos positivos e 268 negativos em relação ao desenvolvimento dos Fuxicos Biográficos, tendo prevalecido entre os positivos aspectos voltados para a partilha de experiências entre as “fuxiqueiras”, como se autodenominavam; a rememoração e a reflexão sobre suas trajetórias formativas e profissionais, conforme apresentam abaixo: Revisitar nossa memória para reviver as experiências e trajetórias profissionais/pessoais; fortalecimento do desejo de ser professora alfabetizadora ao retomar a minha história profissional; valorização do trajeto profissional/pessoal; trocas de experiências e aberturas entre as “fuxiqueiras”; Biografar essa trajetória. (Esther, alfabetizadora do sertão, 2015). Partilhar experiências; encontrar colegas alfabetizadoras; rememorar momentos e pessoas que fizeram parte de minha história; refletir sobre o processo formativo vivenciado; refletir sobre a prática pedagógica. (Sophia, alfabetizadora do sertão, 2015). Vale destacar que, assim como a professora Esther apresenta em sua avaliação, os Fuxicos Biográficos se configuraram como um espaço de valorização profissional e pessoal. Sendo levadas a refletir sobre suas trajetórias, as professoras se reafirmaram na profissão e resinificaram suas práticas. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Entre os aspectos negativos prevaleceu o fator tempo, considerado insuficiente, pelas “fuxiqueiras” para o desenvolvimento da formação e, ainda, a carga horária de trabalho que possibilitou que os encontros fossem realizados, em sua maioria, aos sábados. Para a professora Bela, o ponto negativo foi a restrição da formação a um pequeno número de alfabetizadoras, avaliando que esta experiência formativa deveria ser expandida para outros profissionais: “A professora-formadora abordou os eixos de forma clara . Além disso, os encontros foram cercados de boa energia e descontração. Gostaria que mais professoras do primeiro ano tivessem se disponibilizado para aprender junto conosco”. Partilhando de ideias semelhantes, a professora Esther sugeriu: “Enviar à SEMEC um relatório final do sucesso e contribuições para os professores alfabetizadores que participaram da formação”. Indicando, com esta sugestão a “possibilidade de expansão da formação para outros profissionais da rede municipal”. De modo geral, as professoras revelam sentimentos positivos em relação ao desenvolvimento e suas participações nos Fuxicos Biográficos, fazendo-nos perceber o quão valioso é o investimento nesses processos investigativos e formativos que devolvem ao professor o poder de sua própria formação, e atribuem às narrativas (auto)biográficas valor e conhecimento. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio da rememoração do passado podemos compartilhar experiências e momentos prazerosos, rever erros, absorver conselhos e traçar o futuro. Na troca de experiência percebemos que as adversidades por vezes se assemelham entre colegas. (Bela, alfabetizadora do sertão, 2015). É assim que a professora Bela conclui sua avaliação sobre o processo de investigação-formação vivido, trazendo os elementos que lhes foram significativos, 269 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. com ênfase ao papel da memória na (re)apropriação de sua história, ao compartilhamento de suas experiências tecidas nos Fuxicos/narrativas e o entrelaçamento de sua própria história com as histórias de cada alfabetizadora, ao revelar que, embora sejam experiências singulares, em muito elas se aproximam, “se assemelham”, diante do sentimento de pertencimento a um mesmo fenômeno (docência/alfabetização) e a um mesmo lugar (sertão). Os Fuxicos foram desenvolvidos através de práticas que favoreceram a expressão oral e escrita dos sentidos que as alfabetizadoras do sertão dão às suas aprendizagens. Movimento que teve como base a (auto)biografia, ou seja, o trabalho voltado para a narrativa de si, materializado na produção dos memoriais de formação, além do trabalho de escuta/leitura e compreensão da narrativa do outro, denominado por Delory-Momberger (2014) de “heterobiografia”, representando, antes de tudo, uma prática de interação e comunicação, que primou pelo diálogo entre todas as participantes, instaurando a formação na relação com o outro. Fuxicos Biográficos instauraram-se na perspectiva formativa por permitir às 270 alfabetizadoras intensos momentos de reflexão e reinterpretação de suas trajetórias de formação-profissão, rever seus percursos e suas práticas, reconhecendo-se como profissionais com limites e possibilidades, compreendendo a narrativa como esse meio de (re)nascimento e de transformação de si, que permitiu, no presente, rememorar e ressignificar o passado e, nas palavras da professora Bela, “traçar o futuro”. REFERÊNCIAS ANDRADE, Carlos Drummond de. 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O componente curricular em questão teve como eixo estruturante a discussão das perspectivas teórico-metodológicas da abordagem (auto) biográfica, as histórias de leitura e suas implicações para a formação e autoformação de professores-leitores. Nesse texto, em meio às referências estudadas, evidencio a experiência de leitura de Sanches Neto (2004), narrativa na qual busquei compreender os elementos que contribuíram em sua constituição leitora, e entrelaço sua narrativa às narrativas de professoras alfabetizadoras, colaboradoras de minha pesquisa de mestrado, intitulada “histórias de vida de professoras alfabetizadoras: espaços de vidaformação” (2013). A pesquisa se propôs investigar como se tornaram professoras a partir de suas histórias de vida, e ao mergulhar em suas narrativas, ficaram explícitas memórias escolares e referências familiares que demonstraram a relação que estabeleceram com a leitura, com o livro, bem como sua ausência e a repercussão dessa relação na (auto)formação. Longe de seguir uma ordem cronológica, linear, mas tendo garantida a temporalidade, fator importante nas narrativas como ressalta Bertaux (2010), as crônicas de Sanches delineiam por meio dos acontecimentos e das decisões que toma, seus encontros com o livro. Fica evidente como as histórias de leitura estão implicadas nas histórias de vida, e como a narração da própria vida expressa a interioridade e afirmação de si mesmo. As narrativas das professoras evidenciam: o acesso fácil aos livros, por ter mãe professora, o que a leva ter maior prazer na presença dos livros do que em contato com brinquedos; a presença da irmã que sempre tinha livro às mãos e desperta o desejo de também tê-los; a valorização do livro enquanto objeto; as condições financeiras difíceis e a percepção do esforço da mãe em conseguir os livros, que precisavam ser apagados para serem utilizados novamente; a consciência da responsabilidade e necessidade de se trabalhar na constituição leitora das crianças na escola, tendo em vista o pouco incentivo à leitura que vivenciam fora dela e desvalorização do próprio livro, reflexo da própria história dos familiares. Assim sendo, compreendo que as histórias pessoais e coletivas de leitura, sejam elas tecidas a partir de percursos singulares e/ou plurais de formação na relação com seus pares, proporciona uma constituição leitora única para cada sujeito, porque singulares somos todos nós. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. PALAVRAS-CHAVE: literatura; narrativas docentes; histórias de vida; constituição leitora. NARRAR PARA CONTEXTUALIZAR... A pesquisa Histórias de Vida de Professoras Alfabetizadoras: espaços de Vida/Formação teve sua origem nas experiências vividas em meu estágio curricular, que fizeram nascer o desejo de investigar a formação de professores. Desejava compreender quais os elementos contidos na formação que, de fato, influenciavam a forma de o professor ser professor, ou de como ele se via enquanto professor, e ainda, como isso refletiria em sua prática. Após contatos iniciais com leituras sobre a abordagem (auto)biográfica veio a compreensão de que seu lastro teóricometodológico-epistemológico possibilitaria adentrar o espaço das discussões sobre formação com olhares lançados sob outras perspectivas para além dos modelos de formação encapsulados em disciplinas, que transcendem os espaços tradicionais de 274 formação, rumo a processos que valorizam o conhecimento de si. Compreendendo, portanto “que a formação implica em estarmos, a partir da nossa existência implicada, nos aproximando, nos disponibilizando, interpretativa e sensivelmente, diante de outras existências em formação” (MACEDO, 2010). Portanto, é o ato de pesquisar que me impulsiona a adentrar um programa de pós-graduação e consequentemente, aprofundar os conhecimentos necessários a realização da mesma. O Tópico Especial abordagem (Auto)biográfica, formação de professores-leitores, ministrado em 2011 pelas Professoras Verbena Cordeiro e Jane Adriana Rios, no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade, da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC/UNEB), veio contribuir nesse sentido, uma vez que tinha entre seus objetivos discutir as perspectivas teóricometodológicas da abordagem (Auto)biográfica, as histórias de leitura e suas implicações para a formação e autoformação de professores-leitores. Bem como, entender, a partir de histórias de leitura, as relações entre práticas culturais de leitura e processos de (auto)formação. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Como requisito final do componente curricular, foi pedido um texto/artigo sobre uma ficção memorialística, no qual deveriam estar articuladas questões epistemológicas e metodológicas discutidas na disciplina. É aqui que me encontro com a obra “Herdando uma biblioteca” de Sanches Neto (2004), a partir da qual escrevi o trabalho final. No ano seguinte, 2012 realizei o trabalho de campo de minha pesquisa. Os métodos utilizados para adentrar as histórias de vida das professoras, através de suas narrativas coletivas e individuais foram: os ateliês-biográficos (DELORYMOMBERGER, 2006) – os quais a partir da consideração do relato como construção da experiência do sujeito e da história de vida como espaço de formação, articulam as temporalidades (presente, passado e futuro), garantindo a dimensão coletiva da formação docente, fundamental à construção da profissionalidade. E as entrevistas narrativas (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002) – momento no qual as pessoas lembram o que aconteceu, colocam a experiência em uma sequência, encontram possíveis explicações para elas e jogam com a cadeia de acontecimentos que constroem a vida individual e social. Posterior a esse momento, se inicia um movimento não menos complexo que é o de compreensão das narrativas. Quando é necessário mergulhar e se encharcar com o que as colaboradoras disseram acerca de tudo, buscar os entrelaçamentos, as singularidades e pluralidades em meio às histórias e memórias. Foi nesse percurso e na construção dos quadros de análise que, em contato com as narrativas das professoras, rememorei trechos da leitura de Sanches Neto, e nutri o desejo de escrever um texto no qual buscaria articular aspectos singulares-plurais das narrativas desses autores, que comigo compartilharam memórias. Trabalhar com as narrativas não significa, simplesmente, ouvir o que se tem a dizer, mas provocar/promover a reflexão do sujeito sobre seus próprios percursos, o que gera a conscientização sobre seu próprio ser e fazer. Quando conta sua história, o sujeito narra o seu percurso de vida e passa a retomar alguns sentidos dados ao longo dessa trajetória, mas não só isso, passa também a redefini-los, reorienta-los e, principalmente a construir novos sentidos para essa história. A narrativa [...] permite uma tomada reflexiva, identificando fatos que 275 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. foram constitutivos da própria formação. [...] E a quem ouve (ou lê) permite perceber que sua história entrecruza-se de alguma forma (ou em algum sentido/lugar) com aquela narrada (e/ou com outras) (MORAES, 2001, p. 183). Estando o espaço aberto para as relações entre literatura, leitura e pesquisas (auto)biográficas na constituição do professor-leitor, a partir das histórias de vida e de leitura, que marcam os diferentes percursos de formação e autoformação docente, lanço-me, enfim, a realizar os entrecruzamentos possíveis. HERDAR E EXPERIENCIAR: ASPECTOS SINGULARES-PLURAIS. Embora minha pesquisa não tenha objetivado investigar as histórias de leitura das professoras alfabetizadoras, suas narrativas de formação deram a possibilidade de compreender as influências e experiências vividas na perspectiva da constituição 276 leitora. Assim sendo, evoco ao diálogo autores que tiverem essa constituição como objeto de estudo. Foram seis as professoras que colaboraram com minha pesquisa. Nesse texto evoco excertos das narrativas de quatro dessas professoras. São elas MulheresProfessoras da rede municipal de ensino de Salvador, que buscaram em suas memórias afetivas nomes de mulheres para ser o pseudônimo pelo qual desejaram ser identificadas na pesquisa. Como nos lembra Cordeiro e Souza (2010, p. 224), “arriscar-se a uma leitura mais aguçada das intricadas relações que perpassam os múltiplos caminhos de formação de leitores é algo complexo e instigante”, arrisco-me aqui a percorrer essa trajetória. Ao narrarem sobre o início da escolarização, as professoras se reportaram a sua infância e evocaram referências familiares que as atravessaram e demarcaram o lugar da escola em suas trajetórias. Dominicé (2010, p. 89) ressalta que “[...] as relações familiares influenciam de forma importante as opções tomadas no curso escolar ou a construção da escolha da profissão”, o que no conjunto das narrativas ficou evidente. A maioria das professoras tiveram influência das mães e irmãs na Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. escolha profissional (aspecto plural), com motivos e incentivos distintos (aspecto singular). A escolha por ser chamada de Maria foi uma homenagem para quem, de forma especial, lhe possibilitou escrever outra história e mostrou-lhe que ter fé na vida, mesmo diante das dores e alegrias, valia a pena – Maria é o nome de uma mulher, professora aposentada, que aos 70 anos se tornou, por opção, sua mãe adotiva. Minha mãe era professora aposentada, já tinha 70 anos quando me tomou para criar, e o contato com o conhecimento, com os livros, para mim foi tudo muito fácil, era muito natural. Como ela era professora, tinha muitos livros em casa, eu fui alfabetizada muito cedo. Ela era católica, rezava Santo Antônio e eu com 4 anos ficava lá na frente com aqueles ritos, aquelas orações, ladainhas, e o pessoal pensava que eu tinha decorado, e eu estava lendo o responsório. Eu tinha muito prazer em ler, em ter esse contato mesmo, porque eu sempre ganhava mais livro do que brinquedos, muito embora eu tivesse brinquedos que eu gostaria de ter, mas assim, tinha muito mais prazer em ler. (Excerto da Entrevista Narrativa, 2012). Na narrativa da professora Maria o prazer na/pela leitura é reflexo da influência do contexto, da cultura familiar, que possibilita o fácil acesso às leituras. Na história de Sanches são narradas diversas estratégias necessárias para que tivesse acesso à leitura e para se herdar uma biblioteca, diante da ausência do incentivo presente na vida de Maria. Miguel Sanches Neto, professor universitário, crítico literário e escritor, em seu livro “Herdando uma biblioteca” mescla ficção e memória através de crônicas que conjugam aspectos reveladores de sua vida e trabalho e, sobretudo, de como ele se constituiu leitor. De família humilde, pai analfabeto e padrasto comerciante - que estabelecia uma relação meramente monetária com o papel e para quem a leitura era uma forma disfarçada de vadiagem, livro não era artigo comum no lugar onde passou sua infância, bem como não fazia parte do horizonte cultural da família. Das muitas orfandades que sofri, uma das mais fortes foi não ter herdado uma biblioteca familiar. [...] Eis aqui um escritor de pais sem livros e sem leitura, que não encontrou vizinho, professor ou bibliotecário para adotá-lo e que frequentou bibliotecas e livrarias 277 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. com o mesmo sentimento de desamparo das crianças brasileiras que vivem na rua. (SANCHES, 2004, p. 34) O amor aos livros o levou a buscar na “infração da lei” uma maneira de possuí-los e suprir sua necessidade de leitura. Arrancar folhas para ter a foto de um autor querido, roubar livros após ter conquistado a confiança da bibliotecária, foram alguns esforços na busca de diminuir a distância de seus objetos de desejo. [...] O amor aos livros e um sentimento de exclusão me levaram a esse crime, que depois defini como saudável ato de revolta contra a sociedade em que vivia. [...] Roubar livros que nos solicitam amorosamente é uma forma de herdar à força uma biblioteca que nos foi negada (Ibdem, p. 19, 20). Na pesquisa realizada por Moraes (2001) outras estratégias emergem nas narrativas das professoras como forma de fazer circular o texto escrito: o empréstimo, a encomenda, a troca, a xerox (diante da dificuldade financeira, apesar de ter sido citado que essa estratégia nem sempre satisfazia os leitores). Certamente, diante da necessidade e desejo de cada um, muitas e criativas táticas são 278 desenvolvidas para se chegar até o livro, a leitura. As influências familiares são explicitadas na narrativa da professora Morena, ela que se inspirou no amor de mãe para a escolha do nome (homenagem à meninamulher de sua vida, sua filha), traz outra experiência com os livros, a qual Sanches igualmente vivenciou: o apagamento de seus registros e/ou dos registros de outros para que sua própria marca pudesse ser realizada. Minha mãe sempre teve preocupação em relação à educação, por não ter condições financeiras ela sempre achou que o estudo, a educação é que ia fazer a diferença em nossa vida, na vida dos filhos. Meu pai não se preocupava com essa coisa de estudo, mas minha mãe sim, então ela sempre foi muito cuidadosa com o fardamento, se empenhava para conseguir livros pra gente. Por não ter condições, não poder comprar os livros, ela se interessada e comprava de segunda mão, ou eram doados e a gente apagava. Eu me lembro que a primeira coisa que ela comprava era borracha, muitas borrachas (risos) porque tinha que apagar os livros! Eu tinha uma tristeza (alonga a palavra tristeza) por conta disso porque escrever em livro novo é muito bom, mas tudo bem, eu via o interesse dela. (Excerto da Entrevista Narrativa, 2012). Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Os primeiros livros que “passaram” pelas mãos de Sanches foram os escolares, e não depositava neles sentimento de pertença, uma vez que ao final de cada ano, tinha que apagar as lições e deixar os livros “limpos” para quem viesse a usá-los. [...] Livros, para nós, eram instrumentos sagrados de aprendizagem, território em que o prazer não podia se manifestar, nem nas linhas ingênuas de um menino querendo soletrar as belezas do sexo oposto. E eles não nos pertenciam. [...] Fim de ano, para mim, era jogar fora meu esforço de aprendizagem, como se tudo não tivesse valor, como se fosse algo descartável. Talvez por isso eu tenha adquirido um preconceito e um hábito: ser contra o saber provisório da escola. [...] O livro não era espaço em que podia ficar impressa minha marca de possuidor. E a escola acabou figurando, para mim, como lugar vazio e desimportante. Tudo que ela nos transmitia virava pozinho de borracha, sujo de grafite, no fim do ano. (SANCHES, 2004, p. 10, 11,12). A professora Luíza, que escolheu esse nome por gostar e pela beleza que ele a transmite, também teve influência familiar na sua constituição leitora e aprendeu no seio dessa instituição a valorizar e respeitar o objeto livro. 279 Quando minha irmã retornava para casa, eu a observava sempre lendo, escrevendo, anotando livros e me recordo que meus pais tinham vários guardados na estante, quando eles não estavam por perto eu os pegava e escrevia neles. Aprendi a valorizá-los no momento em que minha mãe e meu pai diziam: “livro não se risca”, “não rasgue os livros” e tomando-os de minhas mãos guardava-os outra vez. (Excerto da Entrevista Narrativa – 2012) De instrumentos sagrados de aprendizagem, território onde o prazer não podia se manifestar, os livros ocupam para Sanches o lugar de objeto de desejo. Ele nos mostra como matamos suas possibilidades quando não o lemos: Enquanto não passar pelos olhos do leitor [...] O livro não chega a ser propriamente livro. É apenas papel impresso [...] Uma ferramenta desprovida de sua principal função, a de interferir na constituição do humano. [...] Olho os livros velhos em minha estante, encadernações estragadas e penso que eles podem ser chamados de livros, pois seguem em mim (SANCHES, 2004, p. 80, 81). Apesar de sua sede por livros clássicos, não defende que esse seja o caminho ideal na constituição de um leitor, mas que o critério de escolha de uma leitura seja Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. um imperativo interior, que torna urgente ler um clássico hoje, um romance amanhã. “E só lemos plenamente com o que somos, jamais apenas com o que adquirimos, embora a bagagem ajude na decodificação do texto”. Tardelli (2001) e Moraes (2001) desenvolveram pesquisas com a preocupação de desmistificar o discurso sobre a crise da leitura sustentado em um modelo que defende uma prática única de leitura, um “leitor ideal”, o que desqualifica e/ou exclui outras possibilidades de leitura para além dos cânones. Ao buscar o que revelavam as narrativas sobre as histórias de vida e leitura de professores, perceberam a pluralidade de leitura desses sujeitos, a partir da interação com pessoas e objetos distintos. Isso revela a necessidade de a escola rever seu papel enquanto instituição formadora de leitores, deixando de validar apenas uma única forma dessa prática. Sobre as práticas desenvolvidas na escola, Sanches traz forte conteúdo crítico, quando acentua que a biblioteca foi o primeiro espaço livre que frequentou, pois nela elegia suas leituras, o que o fazia se sentir dono de suas próprias escolhas e o 280 certificava de que nela se formou leitor. O autor define a escola como lugar paralisante, onde somente as informações capazes de manter a imobilidade social dos sujeitos são difundidas, capazes de conformá-los a se manterem como submissos na cadeia produtiva. “Nessa escola gastei minha infância [...] Fui um desses pardais que sonhavam com alturas e não com migalhas caídas no chão. E o lugar onde pude exercer este projeto foi a biblioteca pública. Nela, não havia conteúdos predefinidos, nem o desejo de me moldar” (SANCHES, 2004, p.17). A narrativa da professora Ione revela sua crítica à ausência do incentivo e valorização do livro e da leitura por parte das famílias na realidade da qual a escola onde atua faz parte, o que aumenta a responsabilidade da escola em despertar o interesse pela leitura. Foi o encanto da primeira professora, que se dedicava a aprendizagem de seus alunos e aos quais dirigia muita atenção, o motivo para escolher como pseudônimo o nome Ione, sua “pró” da alfabetização: “os primeiros professores marcam muito, professor de alfabetização marca muito, professora Ione marcou muito”. Os meninos daqui às vezes chegam no grupo 4 e não sabem nem manusear um livro, então nossa preocupação da alfabetização e do Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. letramento para a alfabetização ser algo funcional na vida do sujeito [...] Os meninos não vivem essa preocupação que a gente tem, o gosto pela leitura, de incentivar a leitura, o livro em casa às vezes é o que eu uso para acender o fogo, para me abanar, não são todas as famílias porque tem algumas que são bem comprometidas com a aprendizagem do aluno, mas a maioria, o livro é qualquer coisa, serve pra qualquer coisa, menos para eu sentar, estudar, conhecer historia, ou então é aquele livro que é pra fazer dever, é aquilo apresentado como obrigação”. (Excerto da Entrevista Narrativa, 2012). Enquanto as histórias de vida das professoras revelam a relação de valorização dos livros e da leitura nos contextos em que viveram, no seio de suas famílias, na realidade em que atuam não conseguem perceber o mesmo tratamento dispensado e necessitam imprimir esforços extras para que as crianças criem uma relação de intimidade com o livro e com a leitura. O trabalho de Tardelli (2001) demonstra que a escola é citada somente após a família, enquanto aquela instituição incentivadora da leitura. A pesquisa desenvolvida por Kramer e Souza (1990), apresenta a figura da professora tanto como provocadora e incentivadora da leitura, quanto como àquela que pressiona e cerceia a mesma. Denuncia, na direção de Sanches, que a escola acaba exercendo um papel crucial na formação do não-leitor, no momento em que os livros se tornam obrigatórios, únicos, seguidos de guias de interpretação; quando se didatiza o ato da leitura e da escrita; quando se utiliza critérios pedagógicos na seleção dos livros. Sem dúvidas, tanto o que revelam as narrativas das professoras, quanto os sentimentos de Sanches, quanto os resultados dos trabalhos dos autores citados, são legítimos. Retratam a realidade brasileira de nossas escolas; de uma política nacional preocupada em avaliações; a necessidade de incentivos à formação continuada de professores, bem como da reestruturação dos currículos da formação inicial; da necessidade de que nossa atenção se volte para que leitores desejamos que nossas crianças, jovens e adultos se tornem. Segundo Nóvoa (1999, p.17), a partir do momento em que à escola concebida como local privilegiado de estratificação social, “os professores passam a ocupar um lugar-charneira nos percursos de ascensão social, personificando as esperanças de 281 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. mobilidade de diversas camadas da população: agentes culturais, os professores são também, inevitavelmente, agentes políticos”. Na pesquisa que desenvolvi, bem como nas pesquisas acessadas, demonstram que no movimento de trazer à consciência o que até então lhes era imperceptível, a saber, a influência de suas trajetórias de vida na forma como são, ou que um dia foram professoras, e até mesmo, o próprio conjunto de influências que lhes constitui, reelaboram experiências e demarcam a complexidade da vida. No mesmo sentido, veem aberta diante de si a possibilidade de ressignificar seus percursos, de potencializar suas práticas, de se implicarem, por ser ainda tempo, para a reconstrução de suas identidades e para fortalecerem a docência enquanto devir. Um devir de possibilidades para a formação docente, discente, para a instituição escola. Fica evidente como a abordagem (auto)biográfica, o trabalho com as narrativas, os estudos da história cultural - que comporta os gestos e vozes de leitores já consolidadas, mas também uma infinidade de outras práticas de leitura, podem se 282 articular e contribuir numa dimensão formadora, que avança de práticas e concepções simplistas sobre a constituição de leitores. LIVROS, GOSTOS, MEMÓRIAS... Longe de seguir uma ordem cronológica, linear, mas tendo garantida a temporalidade, fator importante nas narrativas como ressalta Bertaux (2010), as crônicas de Sanches delineiam por meio dos acontecimentos e das decisões que toma, seus encontros com o livro. Fica evidente como as histórias de leitura estão implicadas nas histórias de vida, e como a narração da própria vida expressa a interioridade e afirmação de si mesmo. Como foi sendo delineado no texto, um leitor se constitui pelas diversas experiências que constituem suas histórias de vida, e pelos processos singulares de Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. formação e autoformação pelos quais passa. A leitura, sendo plural em práticas e sentidos, propicia representações concretas e simbólicas diferentes nos leitores. E assim se fazem os leitores, com muitas e particulares histórias de leitura que se articulam, numa relação dialética, entre o saber da experiência, o conhecimento e a vida. É um saber singular, subjetivo e particular ao indivíduo ou ao coletivo com todos os desafios que cada experiência comporta. Isto porque a transformação do acontecimento em experiência vincula-se ao sentido e ao contexto que cada sujeito vivencia (CORDEIRO; SOUZA, 2010, p. 229). E assim nos constituímos leitores: no seio de uma família culta ou humilde; na busca solitária por uma cultura letrada; na troca, no empréstimo, nas visitas às bibliotecas, também herdadas ou formadas pela compra de livros... Mas acima de tudo, pelo desejo de ler despertado e cultivado em algum momento de nossa existência. Portanto, precisamos compreender que as histórias pessoais e coletivas de leitura revelam sentidos diferentes, por serem construídas a partir de diferentes e singulares percursos de formação. Por essa constatação é que Cordeiro e Souza (2010, p. 224) afirmam a necessidade de compreendermos as histórias de leitura “entre a subjetividade e o lugar social de cada indivíduo, com seus diferentes ritmos, formas de ler, tempos e espaços de leitura os mais inusitados”. Herdar bibliotecas, livros; experienciar leituras, gostos; narrar histórias, memórias... Cada um caminha por caminhos singulares e plurais na concretização desses verbos! REFERÊNCIAS BERTAUX, Daniel. 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Denominado simplesmente de ficção, Água viva não mais ostenta aquelas marcas tradicionais do gênero novela ou romance. Sua história é o próprio ato de escrever, mesclada, em certos momentos, por fatos do cotidiano inseridos para protelar um gozo que se derrama lentamente ao longo de todo o processo. Nesse jogo especular em que a escrita vê a si mesma, há um sujeito que cria e é criado, preso numa teia que o alimenta e o aprisiona ao mesmo tempo nas tessituras de um desejo imorredouro. A autora, consciente do fazer artístico, reflete no livro sobre esse processo, ciente da dimensão impotente da linguagem, vazio sem o qual a vida se torna intolerável. Meu objetivo aqui é analisar a imagem da caça associada à figura mitológica de Diana, como metáfora da própria escrita. Diana, a caçadora, deusa romana assimilada a Ártemis, avessa ao amor e ao convívio dos homens, conservou-se virgem, preferindo a caça a qualquer outra atividade. Ela é a selvagem deusa da natureza, cognominada senhora das feras. Ártemis é aquela caçadora que costuma massacrar os animais que simbolizam a doçura e o amor, salvo quando são jovens e puros. Embora vigem, Diana é ainda a deusa dos partos e reina sobre o mundo presidindo o nascimento e o desenvolvimento dos seres. No seu trabalho de caça, é acompanhada por feras que simbolizam os instintos inseparáveis do ser humano. Tal qual a deusa irmã de Apolo, a narradora do livro em pauta, dispara o arco sobre o mundo da linguagem em busca dos signos capazes de dizer a realidade. Entretanto, o objeto a ser capturado resvala sempre, escapa às setas da palavra, cavando um rastro de repetição e, consequentemente, colocando a voz que narra numa batalha ad infinitum. Esse gesto repetido, por sua vez, não aparece na narrativa como suplício ou fracasso, mas, por outro lado, surge como condição mesma do fazer artístico e como possibilidade alegre de permanecer no ato. À esta narradora incansável, interessa mais o ato em si, o trabalho contínuo de captura, a errância sobre o alvo. Trata-se, portanto, de um texto de natureza bibliográfica, que tem no trabalho analítico-comparativo seu procedimento principal. PALAVRAS-CHAVE: Escrita; Caça errante; Diana; Água viva; Clarice Lispector. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 1 INTRODUÇÃO [...] tu que me trazes uma lembrança machucada de coisas vividas que, ai de mim, sempre se repetem, mesmo sob formas outras diferentes (Clarice Lispector, Água viva, p. 52). Água viva, texto-mosaico de Clarice Lispector, surge como tentativa de captar um sentido que resvala continuamente, confrontando a voz que narra com sua impotência perante os signos, lançando-a no mundo paradoxal da linguagem. Imagem de embate e agonia (no sentido grego do termo), o processo de escrita nesse texto, além de evidenciar o próprio conflito do fazer artístico, mostra a fixação da narradora ao próprio ato, numa postura narcísica de quem, movida por um Eros obsessivo, enovela-se nesse gozo mortífero. Clarice Lispector produziu três versões distintas desse livro, o que em agosto de 1973 foi publicado com o nome de Água viva. Segundo Olga Borelli (1981), apesar 286 de dar a impressão de ser um texto corrido, feito num jorro só, foi, no entanto, de penosa elaboração. A autora passou três anos anotando palavras e frases, sem conseguir estruturá-lo. Por sugestão de Álvaro Pacheco, editor da Artenova, Clarice começa a escrever esses textos, juntando anotações feitas há muitos anos, alguns trechos publicados em sua coluna no Jornal do Brasil. Segundo a sua biógrafa Teresa Montero Ferreira (1999), em julho de 1971, a escritora concluiu Atrás do pensamento: monólogo com a vida. Nesse mesmo mês, recebeu a visita do professor Alexandrino Severino, a quem confiou os originais do novo livro para que fosse traduzido para o inglês. Em 1972, Clarice interrompeu Atrás do pensamento: monólogo com a vida, que passou a chamar Objeto gritante, alegando que não estava atingindo o que queria. Decide que não iria publicá-lo até que o aprimorasse mais. “[...] Esse livro, Água viva, eu passei três anos sem coragem de publicar achando que era ruim, porque não tinha história, porque não tinha trama” (LISPECTOR, 2005, p. 147). Nesse trabalho, Olga Borelli passa a auxiliar a amiga, datilografando seus textos e ajuntando as anotações dispersas. Quando terminava a estruturação de cada capítulo, dava para Clarice fazer as modificações necessárias. De acordo com Teresa Ferreira (1999), a segunda Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. versão do livro Objeto gritante sofreu profundas alterações: as passagens pessoais e alguns fragmentos publicados nas crônicas do Jornal do Brasil foram suprimidos. Das 151 páginas originais somente as primeiras 50 e as últimas três tinham algo em comum. Tentando reduzir ao máximo os aspectos autobiográficos da obra, Clarice substitui a profissão da narradora, passando de escritora à pintora que se enveredava no ato de escrever. Antes de publicar esse livro, a autora sente-se em dúvida e encaminha o material para a apreciação de alguns amigos: Nélida Piñon, Fauzi Arap, José Américo Motta Pessanha e, por fim, Alberto Dines. Quando foi enviado para esse último, o livro já tinha outro título: Água viva. Este, por sua vez, escreve a Clarice em 20/07/1973, contando de sua satisfação em relação à leitura do livro. Elogia-o, considera-o um texto acabado, livro-carta, sinfonia que se metamorfoseia continuamente. “Acho que você escreveu uma sinfonia. É o mesmo uso do tema principal desdobrando-se, escorrendo até se transformar em novos temas que, por sua vez, vão variando, etc, etc” (LISPECTOR, 2002, p. 285). O processo de construção de Água viva faz-se por meio do trabalho de corte e recorte de textos anteriores. Clarice utiliza-se de outros textos já escritos, juntando fragmentos e compondo dolorosamente esse livro despedaçado. Quando percebeu que o material estava ficando muito grande, decide reduzi-lo, eliminando algumas páginas, principalmente aquelas que acenavam para o campo biográfico. Entretanto, mesmo depois dessa censura autobiográfica, outros textos, principalmente as crônicas do Jornal do Brasil, permanecem diluídos ao longo do livro. Para Edgar Cézar Nolasco (1997), Água viva se constitui especificamente a partir das relações entre textos em que um texto menor (um fragmento) relaciona-se com outro texto menor (outro fragmento), encaminhando-se todos esses fragmentos para a construção da escritura do livro que não se quer escrita concluída. Nessa poética do fragmento, na prática escritural dessa obra, a autora faz frequentemente uma apropriação disfarçada, levando um texto/fragmento de um lugar para outro; reescreve-o, reorganiza-o, desloca-o. Em Água viva: ficção (1973), Clarice Lispector põe em evidência a dilaceração do próprio processo da escrita que se constitui num movimento insistente, 287 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. fragmentário e repetitivo, perfazendo um ciclo em contínuos desdobramentos. Nesse jogo cambiante, o agente dessa atividade tenta plasmar um desejo sempre deslocado, uma pulsão escorregadia. Nessa batalha de Jacó com o Anjo, a narradora nem vence nem é vencida, mas continua no combate, onde vida e morte se abeiram e se revezam. Aqui elegemos como elemento para discussão a metáfora da caça como busca, no seio da linguagem, pelos elementos de representação. Para tanto, utilizamos a imagem de Diana, lexema que surge na obra como indicativo desse trabalho árduo de procura por um material que possibilite o repouso e a satisfação, ainda que momentâneos. 2 CAÇAR, ROLAR PEDRAS E APANHAR A MAÇÃ: ESCRITA E REPETIÇÃO EM ÁGUA VIVA A narradora de Água viva, imagem do escritor em sua peleja, autorepresenta288 se como sujeito que se arvora a tocar um ideal por meio da linguagem. Nessa “luta com a vibração última”, o Ideal não se deixa ver, apenas oferece sombras de sentido, espectros de uma possibilidade. “Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido” (LISPECTOR, 1998a, p. 29). Há entre o desejo e o objeto, entre o sujeito e o Ideal uma defasagem capaz de manter o indivíduo na existência. A obra clariciana de modo geral resulta nessa luta mítica, tensão contínua e contumaz com a palavra. “[...] a coisa é muito mais do que consegui dizer, então na verdade eu fiz muito: eu aludi!” (LISPECTOR, 1998b p. 177). Essa contenda, “é uma tarefa trágica por excelência, que é também de preencher o vazio de Deus, aclamar sua gloriosa insubordinação com o pecado da arte e entre o fascínio e a suspeita perante o signo” (GUIMARÃES, 2012, p. 148). Há em Lispector a consciência do empobrecimento da palavra, ainda que esta seja a única via de representação. “Mas ao mesmo tempo essa condição linguageira, esta finitude humana, se muitas vezes ela faz a infelicidade do filósofo, ela constitui entretanto um trunfo para o artista: sua fraqueza é a sua força, seu fracasso será sua glória” Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. (PRADO JUNIOR, 1989, p. 26). A tragédia em Clarice resultaria desse saber-se incapaz perante as coisas, mesmo quando se tem a linguagem ao alcance. Diante disso, resta o trabalho laborioso de Tântalo, o que acaba num exercício metalinguístico, em que a autora se alimenta “com minha própria placenta” (LISPECTOR, 1998a, p. 43) ou ainda “Eu não tenho do que me nutrir: eu como a mim mesmo” (LISPECTOR, 1999, p. 109). Desse trabalho insistente com a linguagem a partir da ciência de uma ferida que lhe faz mancar, Clarice Lispector produz uma escrita do desassossego. Ao mesmo tempo em que tem consciência dessa condição, a autora vinga-se dessa falta e materializa a perda, transformada agora em texto. Há uma espécie de aproveitamento desse estado, quando, da fraqueza, a autora retira a força que sustenta seu próprio labor. Ao mesmo tempo em que há em Água viva a busca por um sentido no seio da linguagem, sentido esse sempre rasurado, há também um desejo obsessivo em tocar o real, em transpor as barreiras do simbólico e deixar a coisa exposta em si mesma, desprovida dos sentidos maquiados pelo matiz civilizacional. Há ainda, paradoxalmente, à medida que o sujeito se aproxima desse real, uma vontade de caos, de desordem dos sentidos, demarcados pela narradora logo nas primeiras linhas da narrativa. “Mas bem sei o que quero aqui: quero o inconcluso. Quero a profunda desordem orgânica que no entanto dá a pressentir uma ordem subjacente. A grande potência da potencialidade. [...] Quero a experiência de uma falta de construção” (LISPECTOR, 1998a, p. 31). Os significantes “inconcluso”, “desordem” e “potencialidade” atados entre si na mesma cadeia de significado entram na trama do próprio desejo ou, mais precisamente, no jogo da própria pulsão de morte, princípio disjuntivo que direciona o sujeito para uma busca sempre repetida, mas, por sua vez, lugar de gozo, zona de satisfação. Há ainda, nesse mesmo excerto, um sujeito enunciador que se mostra firme em sua decisão, através da reiteração do verbo querer no tempo presente e enfatizado mais uma vez pelo dêitico “aqui”. Desse modo, a voz enunciativa delimita claramente sua perspectiva em relação ao percurso inconcluso/desejante que se estabelece em Água viva. Embora esse querer reiterado pareça perder, aos olhos do 289 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. leitor desatento, um pouco dessa vitalidade durante uma maiêusis em construção (construção do sujeito narrador, do texto e do próprio leitor, este representado na figura do tu interlocutor), ele perdura ad infinitum, quando a narrativa termina não finalizando, mas se propaga num eterno devir, evidenciando o contínuo querer de uma fonte que jamais se esgota, pulsação perene. O desejo aqui deseja o desejo, almeja o movimento, busca por um signo que não o completa, que sempre se desfaz para, logo em seguida, fazer-se semblante novamente. “Erige dentro de ti o monumento do Desejo Insatisfeito. E assim as coisas nunca morrerão, antes que tu mesmo morras. Porque eu te digo, antes mais triste que lançar pedras é arrastar cadáveres” (LISPECTOR, 2005, p. 20). Lançar pedras, atirar flechas e apanhar a maçã no escuro são significantes usados no universo ficcional clariciano que funcionam como metáforas de uma escrita errante. Tais significantes se aproximam – pela sua insistência – da ordem do desejo e da pulsão. A epígrafe usada no livro, citação do pintor francês Michel Seuphor já ilustra o que será uma das grandes questões da obra: 290 Tinha que existir uma pintura totalmente livre de dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência (LISPECTOR, 1998a, p. 07) A metáfora da escrita como pintura muito recorrente ao longo da narrativa confirma o desejo de fazer vir à tona pela escrita aquilo que não se pode ter, deixar emergir o resto, aquilo que sucumbiu a toda significação, o que escapou ao campo do simbólico, e que, desse modo, ficou fora do campo da linguagem, da representação. “Quero apossar-me do é da coisa” (LISPECTOR, 1998a, p. 10). Ou ainda, como ela (a narradora) explicita logo nas primeiras linhas de sua narrativa: “[...] – mas agora quero o plasma – quero me alimentar diretamente da placenta” (LISPECTOR, 1998a, p. 09). A narradora quer resgatar o rebotalho através de uma escrita sem sentido, escrita alógica que se identifica com o it/id. “[...] quero a coisa mais primeira porque é fonte de geração [...] ambiciono beber água na nascente da fonte [...]” (LISPECTOR, 1998a, p. 19). Nesse fragmento, vários significantes reforçam o desejo de real, no Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. sentido lacaniano do termo: “primeira”, “geração”, “fonte” (reiterado), “água” e “nascente” que remetem para um ponto inicial, anterior à linguagem, aquilo que fica atrás do pensamento, como a personagem indica ao longo de sua escrita. Nesse sentido, seguindo as reflexões de Plínio Prado Junior (1989), podemos dizer que a escrita clariciana inscreve uma ausência, faz alusão a algo que se evola, atesta “que há um resto”, deixando à mostra um distanciamento entre ser e linguagem, entre real e representação. O abismo que se configura entre o anterior à linguagem e o plano simbólico é representado em Água viva como experiência dolorosa, uma vez que, lidar com a frustração nem sempre é tarefa fácil para o ego, muito embora haja um gozo que sustente essa prática (no plano do inconsciente). Às vezes, a narradora parece querer abandonar a escrita, diante dessa falência da linguagem: “Renuncio a ter um significado” (LISPECTOR, 1998a, p. 30); em outras, aceita sua danação, seu suplício: “[...] sou Diana a Caçadora de ouro e só encontro ossadas. ” (LISPECTOR, 1998a, p. 30), reconhecendo-se como impotente frente ao real. Sem paliativos, a voz que narra opta por dizer o que é possível, usando o recurso que lhe é cabível, que está e estará a seu dispor: as palavras em sua opacidade, em sua ilusão referencial. Enquanto tentativa de plasmar a falta, de saldar a hiância produzida pelo Pai, pela Lei, a escritura configurada em Água viva caminha para a repetição e consequentemente para o gozo do ato, afirmação dionisíaca da experiência em meio às ossadas recolhidas nessa caça infinda. Aqui mais uma vez o texto clariciano faz ecoar vozes advindas de outros textos, os rumores de Diana, a Sagitária do arco de ouro. Diana, a Caçadora, deusa romana assimilada a Ártemis, avessa ao amor e ao convívio dos homens, conservou-se virgem, preferindo a caça a qualquer outra atividade. Ela é a selvagem deusa da natureza, conforme Chevalier e Gheerbrant (2006). Cognominada senhora das feras, é a caçadora que costuma massacrar os animais que simbolizam a doçura e o amor, salvo quando são jovens e puros. Embora virgem, Ártemis é a deusa dos partos e reina sobre o mundo humano presidindo o nascimento e o desenvolvimento dos seres. Em outros momentos, associam-na a uma deusa lunar, vagando como a Lua e brincando nas montanhas. “Como Apolo tende a 291 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. se tornar o Sol, sua irmã é o astro das noites” (BACHÉS, 2005, p. 97). É acompanhada por feras em suas caminhadas que simbolizam os instintos, inseparáveis do ser humano. Diante desses símbolos associados à deusa Diana, podem-se ler na narrativa de Lispector alguns desses traços. O primeiro dele é o da caça acima destacada. A narradora é a que perambula pela floresta dos signos em busca de alimento para sua escrita, munida com seus instrumentos de guerra à procura de elementos para sua composição que não se fecha. Ela é Diana “fracassada” em sua procura, perdida no bosque onde os animais são escassos, apanhando apenas ossadas, restos de uma caça farta, sinais de uma abundância agora não mais possível. Tal como a deusa, a voz central do texto encontra sinais, simulacros de uma coisa à deriva nesse encontro faltoso, nessa captura frustrada. Se Diana, “a de arco-de-ouro do Longe-vibrador irmã fragueira” (HOMERO, 2008, p. 705), recusa os restos e prefere continuar sua empreitada à busca de animais dóceis e frescos, a personagem-narradora de Água viva, ao contrário, prefere alimentar-se dessa sobra, opta por arriscar-se nessa floresta 292 de símbolos vagantes e vacilantes, na certeza de que a caça ideal jamais será capturada: “[...] Insetos, sapos, piolhos, moscas, pulgas e percevejos – tudo nascido de uma corrupta germinação malsã de larvas. E minha fome se alimenta desses seres putrefatos em decomposição” (LISPECTOR, 1998a, p. 49). Entretanto, semelhante à filha de Zeus, ela também aposta na procura, insiste na empreitada, fazendo disso uma situação de prazer, mesmo quando os animais almejados já estão sob o reino da decomposição: “[...] Na minha viagem aos mistérios ouço a planta carnívora que lamenta tempos imemoriais: e tenho pesadelos obscenos sob ventos doentios. Estou encantada, seduzida, arrebatada por vozes furtivas” (LISPECTOR, 1998a, p. 49). Iconograficamente, Diana é representada com vestes curtas, pregueadas, com os joelhos descobertos, à maneira das jovens espartanas. É seguida por uma matilha de cães mais velozes que o vento, e das ninfas suas companheiras. De forma semelhante a seu irmão Apolo, carrega o arco e a aljava cheia de setas temíveis e certeiras. Arqueira como Apolo, a deusa usa das mesmas armas para combater ou castigar (Brandão, 1991). Essa imagem da deusa guerreira e caçadora aparece na narrativa clariciana sob duas formas: metonimicamente, quando se faz referência aos Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. instrumentos de guerra e, metaforicamente, quando se faz menção ao Sagitário. Vejamos como se processam essas remissões. No decorrer do texto, a narradora faz menções aos instrumentos de guerra, os mesmos associados à deusa romana em sua descrição iconográfica. “O que saberás de mim é a sombra da flecha que se fincou no alvo” (LISPECTOR, 1998a, p. 17), [...] “o que importa é o dardo” (LISPECTOR, 1998a, p. 17); ou ainda quando identifica palavras com dardo como nesse já citado fragmento: “Uso palavras soltas que são em si mesmas um dardo livre: ” (LISPECTOR, 1998a, p. 27). Nessas remissões, construímos a imagem de uma caçadora no reino das palavras, não tão certeira como a deusa romana. À narradora clariciana interessa mais o ato em si, o trabalho de captura, a errância sobre o alvo. Para ela, o arco está sempre retesado, prestes a disparar sobre um animal que sempre resvala por entre as florestas densas e penumbrosas. Há esta tensão como a de um arco prestes a disparar a flecha. Lembro-me do signo Sagitário: metade homem e metade animal. A parte humana em rigidez clássica segura o arco e a flecha. O arco pode disparar a qualquer momento e atingir o alvo. Sei que vou atingir o alvo (LISPECTOR, 1998a, p. 53). Este trecho anuncia a segunda remissão à imagem iconográfica da deusa: Sagitário com o arco em punho. Nesse sentido, ela é símbolo do movimento, dos instintos nômades, da independência e dos rápidos reflexos (Chevalier e Gheerbrant, 2006). É, em Água viva, o deslizar contínuo da escrita, texto em pulsação que caminha em direções várias. “Não sei sequer o que vou te escrever na frase seguinte. A verdade última a gente nunca diz” (LISPECTOR, 1998a, p. 64). Enquanto a flecha usada por Diana simboliza o controle sobre a caça, a utilizada pela narradora clariciana serve para mantê-la viva. Atingir o alvo implica risco de morte, tocar o Absoluto, voltar à Coisa. Repetir aqui implica viver, manter-se no percurso. Outro traço que se pode encontrar representado em Água viva é aquele que associa Diana à fecundidade, aquele que a relaciona com a deusa que protege os partos e preside o nascimento e o desenvolvimento dos seres. Segundo Juanito Brandão (1991), a essa deusa, em Bráuron, eram-lhe consagradas as vestes das que faleciam ao dar a luz. Com o epíteto de “a que alimenta, a que educa”, Diana 293 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. acompanhava as meninas em sua fase de crescimento. As noivas, às vésperas de seu casamento, ofereciam-lhe uma mecha de cabelo e uma peça do enxoval, para implorar-lhe proteção e fertilidade. Na narrativa de Lispector, a narradora está em vias de parto da escrita: “[...] Antes rompo o saco de água. Depois corto o cordão umbilical. E você está vivo por conta própria” (LISPECTOR, 1998a, p. 41). Ou ainda: “[...] Não estou coisificando nada: estou tendo o verdadeiro parto do it. Sinto-me tonta como quem vai nascer” (LISPECTOR, 1998a, p. 41). O livro é também a representação dessa maiêusis lenta e gozosa cujo produto é aquilo que é presenteado ao leitor: uma água viva cintilante e escorregadia. A obra pode ser lida como imagem de um grande cordão umbilical que ata narradora e texto, numa forma espiralar sem que a primeira consiga se desvencilhar desse laço narcísico que a aprisiona e a alimenta; aranha que tece continuamente uma teia da qual se torna a própria vítima. Ligado a esse mesmo aspecto, Diana é ainda a deusa lunar, irmã de Apolo. Segundo Brandão (1991), Diana estava associada à Hécate e a Selene, personificação antiga da Lua, cujo culto à filha de Leto suplantou inteiramente. Desde muito cedo 294 Ártemis (Diana) foi identificada com a Lua, devido ao caráter ambivalente desse satélite. A Lua-Ártemis surge na mitologia com um tríplice desdobramento, o que se pode chamar de deusa triforme. Inicialmente a Lua era representada por Selene, mas, dada a índole pouco determinada de Selene e as diversas fases da Lua, foi a DeusaLua desdobrada em Selene (que corresponderia mais ou menos à Lua Cheia); Ártemis (Quarto-Crescente); e Hécate (Quarto Minguante e Lua Nova). Cada qual age de acordo com as circunstâncias, favorável ou desfavoravelmente. Percorrendo as várias fases, manifestam as qualidades inerentes a cada uma delas. No QuartoCrescente e Lua Cheia, normalmente é boa, dadivosa e propícia; no Quarto Minguante e Lua Nova, é cruel, destruidora e malévola. Como símbolo da Lua, a narradora de livro em questão é aquela que repete, que não cessa de dizer, não termina sua história porque ela não se fecha, tensionada por um ciclo infinito. Antes de mais nada, ela é o símbolo da transformação, da metamorfose e do devir. É a que conhece o nascimento e a morte constantemente no seu ato de narrar, nessa tarefa de paradoxos, de tensão e de aleluias, como fica claro no trecho a seguir: Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Terei que morrer de novo para de novo nascer? Aceito. Vou voltar para o desconhecido de mim mesma e quando nascer falarei em ‘ele’ ou ‘ela’. Por enquanto o que me sustenta é o ‘aquilo’ que é um ‘it’. Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se. É duro como uma pedra seca. Mas o âmago é it mole e vivo, perecível, periclitante. Vida de matéria elementar (LISPECTOR, 1998a, p. 54). É nesse tecer e destecer que a narrativa se constrói e ao mesmo tempo, o sujeito da escrita vai se criando, em meio à dor e alegria. O sujeito que se constitui nesse processo é periclitante, declinante, lua em várias fases a se mover infinitamente no espaço tracejado do texto. Nessas fases, a narradora também revela traços de personalidade diferentes: ora é suave e sutil, ora é diabólica e violenta, conforme esta declaração: “[...] meu demônio é assassino e não teme o castigo: mas o crime é mais importante que o castigo. Eu me vivifico toda no meu instinto feliz de destruição” (LISPECTOR, 1998a, p. 75). Segundo Jean-Louis Backés (2005), na Idade Média o nome de Diana é frequentemente associado a caçadas selvagens e a cortejos noturnos de feiticeiras, ditas conduzidas por Herodíades, dama de Abonde ou Diana. Na narrativa de Clarice, há um aceno ligeiro a essa era, quando a narradora, logo após identificar-se à Diana, relembra sua infância, que aqui se confunde com a infância da própria humanidade. Enfeitiçada no ato da escrita, ela é a discípula de Satã a pintá-lo em seus seios de ouro, Bacante arrebatada em seu furor dionisíaco. [...] Navego na minha galera que arrosta os ventos de um verão enfeitiçado. Folhas esmagadas me lembram o chão da infância. A mão verde e os seios de ouro – é assim que pinto a marca de Satã. Aqueles que nos temem e à nossa alquimia desnudavam feiticeiras e magos em busca da marca recôndita que era quase sempre encontrada embora só se soubesse dela pelo olhar pois esta marca era indescritível e impronunciável mesmo no negrume de uma Idade Média – Idade Média, és a minha escura subjacência e ao clarão das fogueiras os marcados dançam em círculos cavalgando galhos e folhagens que são o símbolo fálico da fertilidade: mesmo nas missas brancas, usa-se o sangue e este é bebido (LISPECTOR, 1998a, p. 30-1). A narradora de Lispector é aqui a guardiã da fertilidade, aquela que em círculos contínuos tenta contornar o real, dando-lhe uma existência fantasmagórica através da escrita. É ela o oleiro que dá contorno a um vazio, através da criação de 295 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. um vaso, “objeto feito para representar a existência do vazio no centro do real que se chama a Coisa” (LACAN, 1997, p. 153). CONSIDERAÇÕES FINAIS Há, na ficção de Clarice Lispector, uma procura contínua que movimenta o enredo e impulsiona as personagens em suas angústias. Joana, Virgínia, Lucrécia, G.H., Lóri, Macabéa e tantas outras estão em trânsitos permanentes quer seja dentro de si mesmas, quer seja em torno do real, furo de onde nascem suas demandas. Em Água viva, a viagem está centrada na busca pela Coisa no próprio fazer artístico. Metalinguístico, este livro encena a si mesmo, quando nos apresenta uma fiandeira incansável diante do seu ofício. Neste trabalho de Sísifo, emergem três grandes metáforas para o fazer artístico: lançar pedras, atirar flechas e apanhar a maçã no escuro. Tais imagens carregam em si as ideias de insistência, repetição e continuidade. Para além da busca pela finalização da tarefa, há a hybris do artista, há 296 uma fenda sempre aberta, há o limite da linguagem. Nesse sentido, a personagem não repousa como o escritor em seu labor, anjo caído que vive a brigar com suas pulsões. Apesar da angústia diante desse limite, há o grito de aleluia, há o prazer sisifiano de quem volta feliz com sua pedra, o gozo de quem constrói sua felicidade nesse ato repetido. Para além de uma poética do ressentimento, há em Clarice Lispector um gesto afirmativo que concebe a vida como tecido que se faz e desfaz na luta com a linguagem e com sua fragilidade. Há em Clarice ainda uma poética da repetição que, a partir dessa condição irrecusável, faz da vida uma caça errante cujo alvo sempre resvala, mantendo o sujeito na vida, no labor, no gozo. REFERÊNCIAS BACHÉS, Jean-Louis. Ártemis. In: BRUNEL, Pierre (Org.) Dicionário de mitos literários. 4 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005, p. 95-9. BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 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Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999. NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura: uma leitura (des)construtora dos processos de criação das escrituras de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e Água viva. 1997. 266f. (Mestrado em Letras: Estudos Literários) Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais, 1997. PRADO JÚNIOR, Plínio W. O impronunciável: notas sobre um fracasso sublime. Remate de males, Campinas, Unicamp, 9, p. 21-9, 1989. 297 TERTÚLIA LITERÁRIA DIALÓGICA E TERTÚLIA DIALÓGICA CIENTÍFICA: outros caminhos para a formação leitora Glauce Maciel Barbosa Pereira Universidade do Estado da Bahia [email protected] José Marcos Pereira Instituto de Educação Gastão Guimarães [email protected] RESUMO O presente trabalho visa ressaltar a importância de estimular a prática leitora das obras da Literatura Clássica Universal e a aprendizagem dos conhecimentos científicos. Esse trabalho está sendo realizado em dois ambientes educacionais distintos: Universidade do Estado da Bahia - UNEB e a escola da Educação Básica em Feira de Santana – Instituto de Educação Gastão Guimarães. Na primeira instituição está sendo aplicada a Tertúlia Literária Dialógica (TLD) e na segunda a Tertúlia Dialógica Científica (TDC). Essas metodologias de acesso ao conhecimento têm seus pressupostos alicerçados nas teorias: Ação Comunicativa - Habermans (1980), Teoria da Dialogicidade - Freire (1960) e da Aprendizagem Dialógica engendrada por Flecha (1990). Vale ressaltar que por estarem fundamentadas nessas teorias é que se tornam democráticas, já que o sujeito não precisa ser leitor ativo para interagir com os demais participantes dessa atividade. A aplicação da Tertúlia Literária Dialógica estimula os leitores participantes a ampliar seu repertório leitor e a elaborar suas demandas acadêmicas, tais como: trabalhos de conclusão de curso, atividades pedagógicas durante os estágios supervisionados e a prática docente nos espaços de educação. Defende-se que a TLD instrumentaliza os sujeitos envolvidos com a democratização do saber, com a dessacralização da leitura dos livros da literatura clássica universal e com a ampliação das vias de acesso a esta, ainda propiciando um diálogo igualitário entre sujeitos dos mais variados níveis culturais. Já a Tertúlia Dialógica Científica discute conhecimentos produzidos pelo homem ao longo da sua existência perseguindo os mesmos princípios da primeira Tertúlia. A metodologia empregada nesse trabalho foi a pesquisa de campo na perspectiva da abordagem qualitativa, e teve como instrumento de coleta de dados um questionário aplicado aos professores das áreas de Língua Portuguesa e Biologia. Os resultados dessa pesquisa comprovaram que a aplicação dos enfoques educativos Tertúlia Literária Dialógica e Tertúlia Dialógica Científica nos lócus pesquisados poderão mudar as práticas de ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa e da Biologia, viabilizando assim a formação de sujeitos leitores mais preparados para solucionar as demandas da vida. Tanto a TLD como Tertúlia Dialógica Científica poderão ser empregadas nas atividades leitoras, não apenas nas escolas ou nas universidades, mas nas diferentes agências de letramento: igrejas, ONGs, associações entre outras. A implementação Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. desses métodos de formação leitora certamente promoverão a inserção de diversos sujeitos com variados níveis de conhecimento nas muitas rodas de conversação. Essa pesquisa tem como proposta sugerir uma metodologia de ensino e aprendizagem numa perspectiva diferenciada que promova a formação do leitor proficiente a partir da reflexão de textos literários e científicos. PALAVRAS-CHAVE: conhecimento científico; literatura; leitores. 1 APRESENTAÇÃO Esse trabalho está pautado nas dificuldades de formação leitora em ambientes formais de ensino e objetiva discutir a necessidade de ampliação de atividades de leitura, visando a formação leitora dos alunos e a ampliação do leque de conhecimentos do público envolvido, bem como implementar o uso da Tertúlia Literária Dialógica e Tertúlia Dialógica Científica, doravante TLD e TDC respectivamente, em espaços educacionais distintos. Sendo assim, os pressupostos metodológicos que estão subsidiando este estudo contemplam tanto as peculiaridades do ensino na Educação Básica, quanto na educação superior. Na Universidade do Estado da Bahia – UNEB, a TLD é divulgada e aplicada através dos cursos de extensão desenvolvidos pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão em Educação de Pessoas Adultas - NPEEJA – CAMPUS XIII em Itaberaba - Bahia, em que fazem parte das ações desse núcleo a comunidade acadêmica e comunidade externa. As atividades do aludido núcleo surgiram a partir das demandas dos alunos da UNEB e da comunidade externa que reclamavam por metodologias de formação da competência leitora que se diferenciassem das práticas de leitura realizadas em sala de aula. Sendo assim, optamos por difundir uma atividade cultural baseada na Literatura Clássica Universal que estimulasse tanto a competência leitora, assim como a aprendizagem significativa dos diversos temas relacionados à cultura universal de maneira cooperativa. Assim, parte da motivação em realizar essa pesquisa se deu por causa do desejo em aprofundar estudos sobre os fenômenos sociais, desencadeados a partir da prática de leitura fundamentada na TLD na Educação Superior. Uma das mudanças percebidas foi que essa metodologia de estímulo à leitura e prática da oralidade tem 299 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. conquistado os discentes dessa universidade estimulando produções de trabalhos acadêmicos e de pesquisa sob a luz da TLD. As ações desenvolvidas pela UNEB contemplam alunos da própria instituição, alunos e professores da Educação Básica, assim como os de outras IES. Essas atividades ocorrem quinzenalmente no Campus XIII e, visam, através da TLD, ampliar o repertório de saberes dos leitores participantes bem como instrumentalizar educadores para as suas atividades pedagógicas em sala de aula. Vale salientar que essa atividade didática pode ser aplicada em qualquer agência de promoção do conhecimento, por isso interessa também a outras pessoas da comunidade que por sua vez multiplicam-na em seu meio social. Essa pesquisa tem seus desdobramentos na Educação Básica no Instituto de Educação Gastão Guimarães, escola situada na cidade de Feira de Santana – Bahia. Nesse cenário educacional está sendo implantado a TDC sob a constatação do professor de Biologia, também autor deste texto, de que seus alunos do 1º (primeiro) ano do Ensino Médio apresentavam dificuldades na compreensão dos conteúdos 300 trabalhados nessa disciplina, em virtude da falta dos conhecimentos prévios fundamentais para aquisição de novas informações. A opção pela TDC objetivou, dessa forma, contribuir para a compreensão e avanço no conteúdo programático da disciplina mencionada. As atividades de fomento à leitura, desenvolvidas através do Instituto de Educação Guimarães, com base na TDC, intentam executar ações de incentivo à leitura e ampliação do conhecimento científico no 1º (primeiro) ano do Ensino Médio, uma vez que esse enfoque educativo pode auxiliar na compreensão e avanço dos conteúdos relacionados ao programa de ensino da disciplina Biologia. Nesse sentido, a TDC visa discutir e reelaborar conceitos relacionados às ciências ao longo da existência humana. Sendo assim, para que efetivamente aconteçam variações significativas nas modalidades de incentivo à leitura, faz-se mister que as diversas agências de leitura, sejam elas formais ou não formais, apliquem através do seu ator central na proposta de construção de conhecimentos - o professor mediador, métodos capazes de viabilizar a aprendizagem de forma substantiva e cooperativa. Lastreados na Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. realidade dos ambientes educacionais, acima citados, é que se problematiza a eficácia dos métodos mais usuais, na formação do leitor, aplicados pelos professores. Assim, defendemos que o uso da TLD e TDC favorece a ampliação do conhecimento e efetivamente formam leitores proficientes. Cabe reenfatizar que as Tertúlias Dialógicas apresentam-se como um recurso didático-metodológico nas práticas leitoras em sala de aula capazes de estimular o intercâmbio de experiências entre seus participantes além de ampliar o repertório de conhecimentos literário, científico e de mundo dos que as praticam. Desse modo, pode-se afirmar que as práticas educacionais que não estejam no contexto de vida dos educandos pouco contribuem para uma aprendizagem efetiva. Na esteira desse pensamento corroboramos com a afirmação de que, torna-se imprescindível, então, o estabelecimento de novos paradigmas de aquisição dos conhecimentos e de constituição dos saberes, para que os aprendizes se desprendam dos cursos uniformes ou rígidos que não correspondem a suas necessidades reais e as especificidades de seu trajeto de vida (LEVY,1999, p.169). Nessa perspectiva, é possível sublinhar não somente a importância da Literatura Clássica Universal, mas provocar um diálogo entre esta e outras produções clássicas universais a partir de uma estratégia de incentivo ao prazer; de não só decodificar signos, mas, sobretudo, de inferir sobre o que está sendo decifrado através de uma dinâmica de leitura que muito se distingue das mais tradicionais. 2 DESENVOLVIMENTO TEÓRICO A TLD, com base na CONFAPEA7 (1999), lastreia-se na Aprendizagem Dialógica, e ocorre através das produções clássicas da humanidade; tais como: literária, de artes e musical. Os princípios da Aprendizagem Dialógica que alicerçam a TLD são: 1 - Diálogo igualitário; 2 - Inteligência Cultural; 3 - Dimensão Instrumental da Educação; 4 - Solidariedade; 5 - Criação de sentido; 6 Confederação de Federações e Associações de Participantes em Educação e Cultura Democrática de Pessoas Adultas da Espanha, por meio do projeto "Mil y Una Tertulias Literarias Dialógicas por Todo el Mundo", atuando em vários grupos de tertúlias na Espanha, Estados Unidos, Dinamarca, França, República Checa, Austrália e Brasil. 7 301 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Transformação; 7 - Igualdade de diferenças. Partindo desses pressupostos inferimos que através das tertúlias, todo mundo pode sonhar e sentir, dar sentido à nossa existência. A contribuição de cada um é diferente da do resto e, portanto, irrecuperável se não temos em conta cada uma delas. Cada pessoa excluída é uma perda irreparável para todas as demais. Do diálogo igualitário entre todas é de onde pode ressurgir o sentido que oriente as novas mudanças sociais para uma vida melhor. (FLECHA, 1997, p.35). Por esse veio discursivo, as Tertúlias Dialógicas viabilizam discussões sobre os clássicos universais e diferentes conhecimentos científicos elaborados ao longo da existência humana, entre pessoas de idades, gêneros e culturas diferentes. Havendo, assim, outras tertúlias: Tertúlia Literária Dialógica; Tertúlias Dialógicas Musicais; Tertúlias Dialógicas de Arte e Tertúlias Dialógicas Científicas. (COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM8, 2013, p.15). A nossa reflexão contempla a TDL e TDC e diante disso afirmamos que o desenvolvimento das atividades leitoras com base nos pressupostos metodológicos 302 das referidas tertúlias ocorrem da seguinte forma: deve ser realizado, preferencialmente, uma vez por semana, em grupo, podendo ocorrer em aproximadamente duas horas. Elege-se a obra literária a ser discutida, lê-se parte dessa obra, que pode ser um capítulo ou algumas páginas desse texto, discute-se o texto e em seguida já se define quais páginas, capítulo ou a obra literária serão lidas para serem analisadas no próximo encontro; a disposição dos participantes deve ser em círculo, os próprios membros da tertúlia devem eleger duas pessoas do grupo e uma assumirá a função de moderador e a outra a de apoio. Essas iniciativas devem ser anteriormente acordadas entre os participantes (FLECHA, 1997). As tertúlias estão lastreadas nos princípios do diálogo igualitário que faz com que seus participantes se sintam à vontade para expressar o que pensam sobre a obra analisada, pois não estão condicionados a se basearem em nenhuma crítica literária. Essa forma de discutir os diversos textos estimula as várias conjecturas elaboradas pelos seus participantes possibilitando assim aprendizagem comunicativa. “Este caderno é elaborado pelo CREA - Centro de Investigação em Teorias e Práticas de Superação de Desigualdades da Universidade de Barcelona”. 8 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Nessa perspectiva, as tertúlias de acordo com as suas especificidades estimulam a análise de diversas temáticas sejam elas relacionadas à literatura clássica universal, uma obra de arte, uma peça musical, uma situação – problema, à matemática. Essas atividades em grupo são gratuitas, devendo incluir também quem ainda não se fez leitor proficiente, ou melhor, quem está se alfabetizando. A culminância se dá na socialização das memórias da tertúlia. Nesse sentido, essa prática de estímulo à capacidade leitora busca fomentar o acesso aos vários conhecimentos, estimular as diversas capacidades de aprendizagem dos sujeitos envolvidos e possibilitar a livre elaboração de sentido para a leitura, assim a TLD, é uma atividade cultural educativa desenvolvida a partir da leitura de livros da literatura clássica universal. A atividade está baseada no diálogo como gerador de aprendizagem. Na tertúlia literária não se pretende descobrir nem analisar aquilo que o autor ou autora de uma determinada obra quer dizer em seus textos, mas, sim, promover uma reflexão e um diálogo a partir das diferentes e possíveis interpretações que derivam de um mesmo texto. (MELLO, 2003, p.449). Ainda com base em (Mello 2003) a TLD oportuniza a todos os envolvidos, nessa dinâmica, a leitura das obras da literatura clássica universal que versam sobre sentimentos e questões existenciais humanas. Privilegiando as obras que transcendam ao tempo e espaço oportunizando a análise de textos literários de qualidade como garantia do direito de todo cidadão independente da sua condição sociocultural. Dessa forma; como reitera Berbel (1998, p.141): “o conhecimento de suas características não permite confundi-las, mas certamente, torná-las alternativas inspiradoras de um ensino inovador que ultrapasse a abordagem tradicional”. Vale salientar que essa atividade de fomento à formação da competência leitora pode ser aplicada tanto na Educação Básica quanto na Educação Superior, justificando, assim, o seu entrecruzamento nesse trabalho. A interface se dá, pois o trabalho que é desenvolvido na Educação Superior contempla profissionais da Educação Básica. No caso deste estudo, cabe lembrar que o projeto de extensão, desenvolvido pelo NPEEJA já citado, atende aos professores das escolas da região de Itaberaba. Na Educação Básica, o profissional pesquisador envolvido nessa pesquisa aplicará a TDC na sua sala de aula com alunos da Educação Básica. 303 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A prática da Tertúlia Literária Dialógica, surge na escola de Pessoas Adultas la Verneda de Saint – Martí em Barcelona na Espanha. Tem sua gênese relacionada aos movimentos sociais ocorridos na Espanha no período de democratização, posterior à ditadura de Franco. Essa metodologia chegou ao Brasil em 2002. As TLD’s são difundidas desde então através do (NIASE), Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa da Universidade Federal de São Carlos (NIASE, 2013). Face ao exposto, apresenta-se esse método de formação do leitor literário, a fim de estimular a prática leitora das obras da literatura clássica universal, através de atividades extensionistas com o objetivo disseminar na comunidade acadêmica os pressupostos metodológicos da TLD, assim instrumentalizando-os para elaboração das atividades acadêmicas: tais como: Trabalhos de Conclusão de Cursos, atividades pedagógicas durante os estágios supervisionados e doravante subsidiando a sua prática docente nas salas de aula. Ademais a divulgação da aplicação desse método pedagógico na comunidade externa, por meio das atividades extensionistas desenvolvidas através do NPEEJA, 304 visa municiar não somente graduandos de diversas IES, mas professores das diversas áreas do conhecimento com mais um recurso didático que poderá ser empregado nas várias atividades de leitura formais ou não formais. Vale ressaltar que esse enfoque educativo é democrático, uma vez que o sujeito não precisa ser alfabetizado competente para poder interagir com os demais participantes da TLD. De acordo com Mello (et al., 2004, p. 02) pode-se aplicar a TLD em grupos de pessoas de várias níveis de alfabetização: “... Atuamos junto a homens e mulheres de uma turma de EJA e de duas turmas da Universidade da Terceira Idade”. Os minicursos que ocorrem através das várias ações extensionistas implementadas e realizadas pelo referido campus da UNEB visam instrumentalizar sujeitos envolvidos com a democratização do saber que multiplicarão esse método de prática leitora nos incontáveis cenários sociais desmistificando a leitura dos livros da literatura clássica universal e dos textos que registram conhecimentos científicos engendrados há séculos pelos homens. Em conformidade com essa afirmação, a Tertúlia Literária Dialógica é uma atividade cultural e educativa desenvolvida a partir da leitura de livros da Literatura Clássica Universal. É gratuita, aberta a todas as pessoas de diferentes coletivos Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. sociais e culturais, incluindo pessoas recém alfabetizadas. O objetivo é promover espaços de diálogo igualitário e de transformação (pessoal e do entorno social mais próximo (MELLO, et al., 2004,p.02). A TLD visa proporcionar a inserção do sujeito nos múltiplos universos do conhecimento, além de viabilizar a elaboração de vários sentidos para os textos literários de acordo com a sua vivência de mundo, considerando que esse princípio é um direito de todo cidadão. Esse método de acesso ao conhecimento de mundo através da literatura clássica tem seus pressupostos metodológicos alicerçados nas teorias da: Ação Comunicativa – que tem como mentor Habermans (1980), Teoria da Dialogicidade - Freire (1960) e da Aprendizagem Dialógica engendrada por Flecha (1990). A TLD tem como pressuposto elementar a Aprendizagem Dialógica que democratiza e humaniza a literatura promovendo a intersubjetividade na sua aplicação. Corroborando com essa afirmação registra Flecha (1997, p.50) que: “a leitura não vem da autoridade do professor ou do currículo, mas sim de sentimentos humanos muito intensos. Não era para ser individualmente estudada, mas, sim, coletivamente compartilhada.” É importante destacar que o intercâmbio de informações sobre o texto literário discutido favorece a ampliação de conhecimentos pelo sujeito na medida em que as interpretações vão sendo socializadas, pois podem potencializar as demais, gerando assim, através dessas interações a ampliação das inferências realizadas, uma vez que essa atividade de ação cooperativa contribui para o acionamento do processo cognitivo dos sujeitos envolvidos. Na esteira desse pensamento estão as TDC’s que, [...] fortalecem o diálogo entre ciência e sociedade, estreitam relações e reforçam a capacidade dos participantes de questionar, buscar informações e discutir os grandes mistérios debatidos pela ciência (COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM, 2013, p.15). Portanto a TDC objetiva explorar na área das ciências conteúdos/ temas relacionados à engenharia humana no que tange ao engendramento e sistematização do saber instituído, a partir do pressuposto de que o conhecimento não é uma verdade absoluta e que esse deve ser questionado. 3 PERCURSO METODOLÓGICO 305 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Conforme o que foi explicitado anteriormente, essa investigação teve como um dos propósitos discutir a necessidade de ampliação de atividades de leitura na Educação Básica e Superior, com vistas a contribuir tanto para a formação leitora, bem como para ampliar o leque de conhecimentos do público envolvido nos dois segmentos educacionais. A pesquisa está caracterizada como pesquisa de campo de abordagem qualitativa. Na mesma linha de pensamento, a pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado, ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (MINAYO,1995, p.21-22). Utilizamos como instrumento de coleta de dados um questionário contendo 15 (quinze) perguntas, referentes à prática de formação leitora utilizada nas salas de aula. 306 Selecionamos uma amostra de 06 (seis) professores de Língua Portuguesa que atuam em escolas públicas da cidade de Itaberaba. E 06 (seis) profissionais que atuam na área da Biologia na cidade de Feira de Santana, totalizando 12 (doze) docentes. Os sujeitos informantes serão apresentados pela letra S acompanhada da numeração sequenciada de S1 a S12. A análise dos dados seguiu a lógica de análise do conteúdo entendida como, um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objectivos de descrição de conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. (BARDIN, 2009, p. 44). Dessa forma, encontramos a relação entre os dados trazidos do campo empírico e as categorias direcionadas a TLD e TDC. Os resultados serão apresentados em duas sessões, na primeira, serão discutidas as questões alusivas à TLD e, na segunda, as questões inerentes à TDC. 3 REVELAÇÕES A PESQUISA Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 3.1 Sobre a TLD Do questionário aplicado aos professores, sujeitos dessa pesquisa, selecionamos 03 (três) questões por considerarmos decisivas para compreender como se dá o processo de incentivo à leitura em sala de aula. Dos 06 (seis) sujeitos informantes sobre a categoria TLD, quando questionados se a conheciam, 04 afirmaram conhecer essa metodologia; os demais afirmaram que não tiveram oportunidade de conhecê-la. Os atores sociais que já vivenciaram a TLD informaram9: é uma técnica de leitura prazerosa, já que o processo acontece de forma espontânea sem cobrança sem exigências, permitindo ao leitor descobrir o mundo que o cerca, além de mexer com vários sentimentos e emoções, pois a Literatura trata da condição humana, dos valores, dos medos e anseios de cada ser. (S1) Gosto, principalmente por incentivar a participação individual. (S2). Sim, [...] aprendi muito e coloquei em prática essa técnica que meus alunos adoram, pois sempre participam por prazer (S3). Sim conheci a prática educativa através de oficinas na UNEB, campus XIII (S4). Com base nas respostas dadas pelos entrevistados inferimos que a atividade pode proporcionar um revés no ensino de Língua Portuguesa e Literaturas/ leitura. Desmistificando a crença de que nem todos possuem a competência intelectual para opinar, conjecturar, criar novos conceitos sobre determinados temas. Nesse sentido: “um muro cultural duramente colocado pelos discursos dominantes: que a Literatura Clássica Universal só pode ser lida por quem teve longa formação acadêmica” (GIROTTO, 2007, p. 67). Mas para que haja a transposição desse “muro”, entendemos que o primeiro passo pedagógico tem que ser dado por aquele que viabiliza a disseminação do conhecimento a ser des(construído) e re(construído) – o professor. A segunda questão selecionada foi: “o que você pensa sobre as técnicas de leitura que aplica com os alunos, em sala de aula? Os 06 seis professores responderam: Algumas são bem sucedidas e outras precisam ser avaliadas de forma crítica. (S3). São proveitosas, mas falta amadurecimento linguístico por parte dos alunos. (S4). 9 Questionário aplicado aos sujeitos da investigação no dia 12 de agosto de 2015. 307 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Envolvente para os alunos que tem compromisso com a aprendizagem [...] (S2). Técnicas são boas, mas é bom deixá-los livres para argumentar o que eles gostariam como fossem (S1). As que aplico são relativamente boas e tem dado certo (S5). Acredito que estou procurando fazer o melhor, para que o processo de leitura aconteça de forma significativa e que o aluno possa ter maior interesse por esse mundo mágico que é ler e ter vários olhares e vários saberes. (S6). Percebemos que a maioria dos informantes buscam implementar, nas suas salas de aula, algumas técnicas de promoção da leitura e acreditam que os alunos envolvidos devem socializar suas inferências sobre os textos como forma de dar sentido ao que leram, assim como possibilitar que essas atividades de formação leitora devem ser realizadas através de consenso entre os envolvidos, pois assim conquistariam efetivamente uma grande maioria dos sujeitos. Dois professores argumentam que falta maior comprometimento por parte do aluno, sugerindo que o estímulo à habilidade de compreensão dependa exclusivamente dele, isentando-se no processo de mediação. 308 A questão que trata sobre as dificuldades encontradas no ensino de Língua Portuguesa, a última selecionada para este texto, foi sobre a “dificuldade de compreensão leitora dos textos pelos alunos”. As respostas de 04 (quatro) dos 06 (seis) informantes sugerem a necessidade de revisão da metodologia de leitura que está empregada em sala de aula. Assim sendo, pensamos que se faz necessária uma análise sobre a seleção de textos que está sendo explorada, uma vez que estas escolhas não estão contribuindo para promover a interação do aluno com o conhecimento de forma crítica dificultando, assim, a formulação de suas inferências sobre o que está sendo lido. 3.2 Sobre a TDC Os informantes da Educação Básica, professores de Biologia, investigados quando perguntados “se conheciam a TDC - Tertúlia Dialógica Científica” todos afirmaram não conhecer o método. Sobre a questão: “O que você pensa sobre as técnicas de leitura que aplica com os alunos, em sala de aula?” 05 (cinco) sujeitos afirmaram: Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. No momento não desenvolvo nenhuma técnica de leitura. (S8). São insuficientes para o progresso do aluno. (S10). Não aplico técnica de leitura. (S9). Poderia ser melhor se tivesse mais interesse dos alunos. (S11). Acredito que os objetivos, na maioria, das vezes são satisfatórios, já que os estudantes são estimulados à leitura. (S7). As respostas em tela sugerem que não são aplicadas, pelo menos pela maioria dos informantes, atividades de estímulo à formação e/ou exercício da competência leitora. Essas respostas nos fazem refletir sobre as atribuições de cada educador em sua respectiva área, sendo assim, o que poderia fazer o professor em suas aulas, senão criar possibilidades, ou mediações, através da leitura, de compreensão do conteúdo? Já em relação aos obstáculos que impedem o ensino e aprendizagem foi realizada a pergunta: “Você encontra dificuldades no ensino de Biologia? De que ordem?” Os informantes foram unânimes em afirmar que as maiores dificuldades referem-se à “compreensão leitora dos textos pelos alunos”. As respostas registradas nessa questão nos fazem pensar que a dificuldade de compreensão leitora é um fenômeno complexo tendo em vista que para a efetivação da aprendizagem se faz necessário que se compreenda o que se lê. Assim, fica subtendido que o processo de ensino e aprendizagem, nesse cenário, pode estar comprometido. Se fazendo premente uma reestruturação pedagógica nesse contexto. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme as respostas analisadas, podemos compreender que a perspectiva de implementação da prática de leitura em sala de aula pautada nas Tertúlias Dialógicas que compreendem a TLD e TDC são apreciadas pelos sujeitos investigados que a conhecem. Alguns desses sujeitos afirmam que as atividades que já aplicam na área da leitura não são tão exitosas, reiterando, assim, a nossa hipótese de que a metodologia Tertúlia Dialógica pode tornar-se uma resposta efetiva para a ampliação da capacidade leitora dos sujeitos através da aprendizagem dialógica, bem como para possibilitar a dilatação do seu repertório cultural. 309 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Face ao exposto, sugerimos, então, a aplicação das Tertúlias Dialógicas nos vários e distintos cenários educacionais do Brasil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARDIN, L. Análise de conteúdo. Edição Revista e Actualizada. Lisboa: Edições 70, 2009. BERBEL, Neusi Aparecida Navas. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos ou diferentes caminhos? v.2,n.2,1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/icse/v2n2/08>. Acesso em: 19 mar 2002. COMUNIDADES. Aprendizagem de. Atuações de êxito, 2013 . Disponível em: http://www.comunidadedeaprendizagem.com/uploads/materials/6/580d15e17ff1 060840d2c6606046dc28.pdf. Acesso em: 20 oct 2015. CONFAPEA. Tertulias Literarias Dialogicas. Barcelona: Espanha, Mimeo, 1999. FLECHA, R. Compartiendo palabras: El aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona, Editora Paidós, 1997. 310 GIROTTO, Vanessa Cristina. Tertúlia Literária Dialógica entre Crianças e Adolescentes: conversando sobre âmbitos da vida. 2006. 161 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2007. LÉVY, P. Cibercultura. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999. MELLO, Roseli Rodrigues. Tertúlia Literária Dialógica: espaço de aprendizagem dialógica, Contrapontos (UNIVALI), Itajuí, v. 3, n. 3, p. 449-457, 2003. MELLO, Roseli Rodrigues; Batel, Thaís Helena; Bogado, Adriana Marcela; Hori, Tiago. Tertúlia Literária Dialógica, Anais do 2º Congresso Brasileiro de Extensão Universitária Belo Horizonte, 2004. MINAYO, M.C.S. (Org). Pesquisa Social: Teoria, Método e Criatividade. Petrópolis: Vozes, 1995. NIASE, Ufscar. Tertúlias Dialógicas: Reconhecidas como tecnologia educacional pelo MEC para o Mais Educação e escola de tempo integral, 2013. Disponível em: http://www.niase.ufscar.br/tertulias-dialogicas. Acesso em: 08 oct 2015. SOB O VÉU DA MEMÓRIA Literatura sapiencial em “Luces y virtudes sociales”, de Simón Rodríguez Isabela Cristina Tavares da Silva Universidade Federal de Pernambuco [email protected] RESUMO Nascido em Caracas no ano de 1771, época em que a ilustração toma a colônia da América Espanhola, Simón Narciso Rodríguez tenta através de seus escritos e de seu trabalho docente revogar por uma educação de qualidade, libertadora, preparando os habitantes da América para a vida em República, que está prestes a surgir. Esse personagem, integrante do grupo de intelectuais componentes do Projeto e do Processo de Libertação da América Latina, torna-se conhecido como Maestro del Libertador (por ter sido professor fundamental na formação de Simón Bolívar) ou Maestro de las Américas (dadas suas contribuições para as bases da educação social na América Latina). Dentre suas produções, com ponto norteador a temática da educação venezuelana pelo olhar daquele que já fora integrante desse sistema como estudante, destacam-se: Sociedades Americanas e Luces y virtudes sociales. Inserindo essa investigação no campo dos Estudos Culturais, especificamente no tocante à Literatura Colonial e Pós-Colonial, objetivamos neste trabalho perceber a função da memória coletiva para a constituição da obra Luces y virtudes sociales (editada e publicada pela Biblioteca Ayacucho em 1990), bem como, o modo pelo qual tal escrito se insere na categoria denominada literatura sapiencial. Por isso, torna-se indispensável recorrer aos estudos biográficos sobre Simón Rodríguez, em contraponto com a História da América Latina e da educação na Venezuela, e em comparação com educadores de visibilidade inseridos no mesmo contexto, como o Licenciado Miguel José Sanz e Andrés Bello. Do mesmo modo, faz-se necessário tentar estabelecer os limites da literatura sapiencial, e delinear na obra as marcas ou fragmentos que indiquem essa classificação. Para tanto, utilizamos como aporte teórico: os apontamentos biográficos produzidos por González (2006) a respeito de Simón Rodríguez; indicações de Contreras (2010) e Gúzman (2014) sobre o processo de ilustração na Venezuela e suas consequências na educação; a definição de literatura sapiencial elaborada por Caramelo (2004); contribuições acerca da memória coletiva e sua relação com identidade e literatura de Halbwachs (1990) e Alemán (2010). Notamos com o desenvolvimento da pesquisa a importância do registro de Simón Rodríguez para a conservação de uma representação da memória coletiva relacionada ao período Colonial, ponto esse, denotado pelo próprio autor; também transparece que essa memória exerce grande influência para a tese central da produção de Simón Rodríguez: a Instrução Geral (prevendo a educação integral do sujeito). Com intencionalidade de garantir uma boa estruturação, compreensão e difusão do texto e da tese, a obra apresenta-se como um conjunto de instruções que devem ser passadas aos novos habitantes (cidadãos republicanos), permitindo a inserção no conjunto da literatura sapiencial, denotando seu caráter didático- Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. pedagógico e a mescla com palavras de sabedoria, presentes na tradição cultural de Língua Espanhola. PALAVRAS-CHAVE: Simón Rodríguez; memória coletiva; literatura sapiencial; Libertação da América. 1 APRESENTAÇÃO Para iniciar uma reflexão sobre o papel da memória coletiva na construção da obra Luces y virtudes sociales e a maneira pela qual se insere na categoria de literatura sapiencial, faz-se necessário realizar um breve apanhado biográfico acerca do legado de Simón Rodríguez, auxiliando a compreensão da formação de tal obra. Simón Narciso Rodríguez nasceu em Caracas, no ano de 1771, época em que a atual capital da Venezuela vem sendo tomada pela ilustração advinda dos títulos de Castilla, ao mesmo tempo em que está dominada pelo quadro de escravidão para a produção de cacau. Neste contexto, Simón Rodríguez e seu irmão Cayetano, considerados de personalidade díspares, são educados em parte pelo seu tio José 312 Rafael Rodríguez, sacerdote, e em parte pelo sistema de ensino público oferecido em Caracas. Ambos, Narciso e Cayetano, bebem da mesma educação, mas tomam rumos totalmente diferentes: Simón representa a figura do rebelde, revolucionário viajante do mundo, enquanto Cayetano é o polido católico exemplar que nunca saiu de seu país. O fator contribuinte para a formação intelectual do jovem Simón Narciso é a chegada de livros na Colônia, em especial, a entrada clandestina de obras francesas para os venezuelanos, e para os americanos em geral, fazendo de Simón aquele que “desembocará no obstante, en la mar de lo innovador ideológico, de lo aglutinador sociológico, de lo educador puro” (GONZÁLEZ, 2006, p. 10) e em quem “todos los valores de entonces, universitarios o no, hicieron su ruta erudita por personal esfuerzo, auto educándose, leyendo” (ibidem). Da sua experiência na escola pública brota o cerne de sua crítica à educação precária, de currículo pobre oferecida pela Metrópole à Colônia, impedindo a ilustração dos homens nessa sociedade, garantindo assim, o poder pela dominação dos saberes ou do conhecimento advindo das Luzes. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Em 23 de maio de 1791, Rodríguez é nomeado oficialmente como professor de educação primária de Caracas. No ano seguinte, começa a trabalhar como educador de Simón Bolívar (feito pelo qual se torna conhecido como maestro del Libertador), aplicando durante o processo os princípios de conservação do estado natural da criança, tratados no relato pedagógico que compõe a obra Emillio, de Rousseau. A adoção dessa metodologia faz de Bolívar um autodidata, chegando a ser considerado “el mayor autoilustrado de su tiempo” (GONZÁLEZ, 2006, p. 13). Como professor, Rodríguez defendeu algumas ideias revolucionárias no campo da educação, escrevendo vários textos críticos que expressam sua visão diante de seu tempo, para a construção de outra perspectiva de futuro, perspectiva essa, associada ao projeto de Libertação da América Latina. Chegou durante sua trajetória a defender a educação de meninas de todas as classes e raças, projetando, inclusive, esse propósito junto a Simón Bolívar. Dentro de sua produção, também se encontram críticas direcionadas diretamente ao governo em relação à educação fornecida, na maioria das vezes acrescidas de um plano de mudanças ou sugestões, como nos aponta González (2006, p. 22): “al acusar sin titubeo y con palabra franca, el maestro, no solo denuncia como rebelde, sino que parece un anticipador de lo que se hará en América una vez independiente”. 2 ANÁLISE No fomento do processo de independência da América Latina, nota-se fortemente no planejamento revolucionário da educação, a presença do princípio de igualdade, que preconiza os ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo, em Simón Rodríguez, como apontado anteriormente, e em seus contemporâneos, a exemplo o Licenciado Miguel José Sanz. Nomeado curador ad litem o menino Bolívar, o Licenciado Miguel José Sanz também estabelece profundas relações com os revolucionários republicanos e critica arduamente a educação fornecida à população caraquenha, assim como Rodríguez, baseado nos princípios roussenianos. Sua tese crítica à educação venezuelana está baseada no ensino rudimentar, e, por conseguinte, no pouco conhecimento do povo 313 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. em relação aos tópicos de geografia, cultura e história, pensando essas matrizes de ensino como fundamentais para o reconhecimento da identidade do sujeito. Entre suas ideias para a reestruturação escolar estão: uma escola ativa em torno de trabalhos técnicos (ofício mecânico e agricultura prática), uma escola aberta para todos sem discriminações socioeconômicas e raciais. Miguel José Sanz também destaca que “la falta de cultivo del entendimiento, es lo que hace al hombre perseverante en aquellos errores que tan perjudiciales le son a su felicidad” (GUZMÁN, 2014, p. 5). Em seu Informe sobre la instrucción pública (1794), Simón Rodríguez apresenta um plano de instruções com reparos necessários na Escola de Primeiras Letras de Caracas, com linhas semelhantes às do Licenciado, acrescentando a isso o objetivo de motivar os estudantes para a educação e para o reconhecimento da função do professor no processo de ensino. Contreras (2010) destaca que tanto Rodríguez quanto Sanz “están convencidos de que la educación es el instrumento que va a forjar el ciudadano virtuoso, pieza clave para la felicidad de la república” (p. 315). 314 Cézar Gúzman (2014) dá um passo à frente em relação a Contreras, ao associar a Rodríguez e a Sanz, Andrés Bello e Bolívar, caracterizando-os como pensadores da educação como uma ferramenta para a liberdade. Assim, define que as ideias desses homens latino-americanos “se han proyectado más allá del tiempo finito de sus creadores, como precursores de una educación popular que superará los prejuicios de las castas, que se fundamentaban en la discriminación racial” (p. 1). Percebe-se a partir dessas observações, a integração das ideias e esforços para conseguir a emancipação da América Latina e bem firmar a República na nova sociedade. No ano de 1825, Rodríguez é nomeado Diretor do Ensino Público, Ciências Físicas, Matemática e Artes da República Bolivariana: “En el Cuzco, esa sede de dos culturas, la inca y la hispana amestizada, firmó el Libertador los primeros decretos revolucionarios sobre educación, bajo la influencia de Rodríguez, que era quien iba a responsabilizarse de todas las transformaciones, de todos los golpes profundos” (GONZÁLEZ, 2006, p. 73). Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Observa-se ao longo da trajetória de Simón Rodríguez, o caráter pedagógico de seus escritos, além das críticas e informes produzidos, aparece nas obras Educación e Luces y virtudes sociales. Esta última, publicada pela Biblioteca Ayacucho na compilação de textos de Rodríguez intitulada: Sociedades Americanas (1990), mesmo título da primeira publicação do autor presente na coletânea. Essa edição é resultado da publicação de Luces y virtudes sociales em duas partes: a Introducción (Concepción, 1834) e Luces y virtudes sociales (Valparaíso, 1840). Ambas as publicações tomadas como referência pela Biblioteca Ayacucho, tem data posterior ao processo de independência da América Latina, no entanto, há indicações de que as referências utilizadas por Rodríguez apresentam uma imagem do período durante o processo de formação e revoluções que compõem a Libertação da América, chegando o próprio autor, a afirmá-lo em comentário prévio à obra Sociedades Americanas: “Mi genio comunicativo me ha hecho leer mis borradores a muchos – y mis borradores sobre la Instrucción Pública tuvieron principio, a fines del siglo pasado, en Europa, donde viví enseñando por espacio de muchos años” (RODRÍGUEZ, 1834 apud. AYACUCHO, 1990, p. 153). Ao pensarmos todos os aspectos circundantes da produção de Simón Rodríguez, denotam-se o caráter pedagógico e sua relação para a constituição da memória coletiva no tocante ao projeto de Libertação da América e no próprio projeto de educação proposto em Luces y virtudes sociales, ao pensar o ensino para os latino-americanos da novidade República, como expresso no seguinte fragmento “Esta obra […] se dirige a los que entran en una sociedad que no conocen, a los que necesitan formar costumbres de otra especie para vivir mejor bajo un Gobierno diferente del que tuvieron sus padres” (RODRÍGUEZ, 1840 apud. AYACUCHO, 1990, p. 223); articulando a reconfiguração da memória dos sujeitos colonizados a sujeitos independentes, colaborando na construção da identidade cultural de um povo propriamente latinoamericano e do ideal de unidade latino-americana, corroborando assim, para uma nova escrita da história. Trata-se, portanto, da memória coletiva como uma articulação entre memória social e memória cultural, como apresenta Maurice Halbwachs (1990, p. 35): “A memória coletiva [...] envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas. Ela evolui segundo as suas leis”. Fazendo com 315 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. que um indivíduo seja capaz “ [...] de se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para evocar e manter as lembranças impessoais, na medida em que essas interessam ao grupo”. Rodríguez, homem de seu tempo, articula as construções de seu contexto: sua experiência na escola pública como aluno e professor, a Ilustração e a efervescência da Libertação da América, permitindo a troca de ideias críticas com seus contemporâneos (exercício da memória social), utilizando-se de um discurso popular, baseado na tradição (caso visto mais adiante no tratamento do uso de aforismos), para deixar marcas presentes na memória do povo latinoamericano: a herança da educação popular e social, o testemunho do esforço intelectual com a finalidade de alimentar a Independência da América Latina (exercício da memória cultural). Esses pontos contribuem com a tentativa de apagar, em certa medida pela rememoração, a ferida (fazendo apropriação da afirmação de Paul Ricoeur, na conferência Memória, história, esquecimento (Budapeste, 2003): “As questões em jogo 316 dizem respeito à memória, já não como simples matriz da história, mas como reapropriação do passado histórico por uma memória que a história instruiu e muitas vezes feriu”) deixada pelos colonizadores, reconstruindo a memória, remodelando as identidades e a identidade coletiva desse povo para uma nova forma de sociedade e uma nova visão de mundo, com as quais não estariam habituados. Ou seja, há um movimento de memória no presente, com base no passado, dotado de implicações futuras. Como explicita alemán (2010, pp. 173 – 174): “La identidad se sustenta en la memoria, esto es, se forma y se construye mediante el recuerdo. Sin la facultad y sin el hecho de recordar se hace imposible la formación de la identidad. La función de la memoria aparece vinculada a una de las características que definen de manera esencial tanto al individuo como a la sociedad: la dependencia del pasado, la imposibilidad de abdicar del ayer. […] La memoria nos da conciencia de nosotros mismos. […] Sin memoria, no hay identidad”. O processo de articulação da memória coletiva na obra se dá mediante dois fatores: 1) conteúdo pedagógico, instrutivo; 2) recurso aforístico utilizado como Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. norteador da escrita do texto. É através dessas maneiras que Luces y virtudes sociales se insere no campo da literatura sapiencial que “[...] testemunha este diálogo permanente com a sociedade, numa sucessão de perguntas e respostas que parecem, não raras vezes, libertar-se do tempo, mostrando-se válidas para outras épocas. Tem uma função social, na medida em que configura um quadro idealizado de uma sociedade estável e ordeira. Reflete as relações sociais, mas sugere, igualmente, um projeto de sociedade e uma certa concepção de poder” (CARAMELO, 2004, p. 355). Pode-se dizer, contudo, a propósito da literatura sapiencial que a mesma recorre a um discurso de sabedoria, garantindo a credibilidade necessária para cumprir sua função instrutiva, já que esse discurso está pautado na tradição (memória cultural), passado de geração em geração, em maior escala através da oralidade. Afirma-se, portanto, que a literatura sapiencial é uma forma de oralidade secundária, por ser aquela que está relacionada a sociedades urbanas em transformação. Sendo assim, vale classificar a literatura sapiencial por seu caráter em três subcategorias: 1) discurso dos anciãos ou palavras de sabedoria; 2) literatura pedagógica; 3) literatura filosófica. O discurso dos anciãos compreenderia o hall conhecido como Provérbios e Instruções (CARAMELO, 2004), onde estariam inseridos os huehuetlatolli, no campo da literatura pré-colombiana ou os Cantares de Salomão, na tradição bíblica ocidental. A literatura pedagógica daria conta das escritas de função moralizante, como os casos presentes em O Conde Lucanor, na literatura espanhola e as fábulas de Esopo e La Fontaine, além dos escritos didáticos e que versem sobre Educação, como a produção crítica de Paulo Freire. Na literatura filosófica, como a nomenclatura antecipa, estariam as obras inseridas no campo da Filosofia. Considerando essas categorias, é possível afirmar que há uma simbiose entre as palavras de sabedoria e a literatura pedagógica em Simón Rodríguez, especificamente, em Luces y virtudes sociales. Rodríguez aponta em sua obra a presença desse discurso de sabedoria, justificando o uso dos aforismos no seguinte fragmento: “A los sabios que se debe hablar por sentencias (el que las entienda es 317 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. sabio) y se les debe hablar así, porque para ellos las sentencias son palabras” (RODRÍGUEZ, 1840 apud. AYACUCHO, 1990, p. 205). A fórmula de sentenças presente em várias partes do texto recorre a seu caráter popular, permitindo a compreensão dos “poucos ilustrados”, já que o povo é dotado de sabedoria (advinda das tradição da cultura popular), exemplificada nos seguintes fragmentos: “hagan bien lo que han de hacer mal sin que se pueda remediar” ( façam bem o que hão de fazer mal sem que se possa remediar); “nadie va a la guerra sin armas, porque pesan” (ninguém vai à guerra sem armas, porque pesam”; “errar y padecer hasta que haya quien conozca que la necesidad no consulta voluntades” (errar e padecer até que haja quem conheça que a necessidade não consulta vontades) ; “no es querer saber más que todos el desear que todos sepan lo que deben ignorar” (não é querer saber mais que todos desejar que todos saibam o que devem ignorar) ; “curiosos que desean aprender para saber son estudiantes” (curiosos que desejam aprender para saber, são estudantes). Nota-se nessas sentenças, o caráter das palavras de sabedoria, inscritas no 318 caso apresentado, no campo dos provérbios com criações originais de Simón Rodríguez. Em Consejos de Amigo al Colegio de Latacunga, o maestro advoga pela originalidade da América Latina de maneira enfática, assim como em outros de seus escritos, sendo assim, acredita-se que em certa medida, inserir dentro do campo da tradição suas criações, seja uma das maneiras de fincar a originalidade do latinoamericano pela instância da escrita. Rodríguez enfatiza na obra a ideia do educar como uma arte, com a finalidade de trabalhar as virtudes do homem, ou seja, para que através da educação o homem possa gozar da sua existência [na República]. Reiterando assim, sua visão de educação com função para a vida e não somente com a ideia de conhecer determinados saberes escolares, chegando a destacar a pureza com a qual se deve educar, mantendo a luz e elevando a educação às condições de verdade, princípios justificados por Rohden, em A educação do homem integral (2007). Fica clara a defesa da República na obra através dessa afirmação: “El Gobierno Republicano es protector de las Luces Sociales, porque sus Instituciones saben que sin las luces no hay virtudes” (RODRÍGUEZ, 1840 apud. AYACUCHO, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 1990, p. 199). Sendo assim, a República é a maneira pela qual se chega à educação verdadeira e, portanto, à liberdade. A mesma sentença também reforça a ideia de confiança na República, pois é através dela que será garantida a harmonia para a promoção do bem-estar de todos. As virtudes do homem republicano estariam baseadas na Instrução Geral, firmada em quatro pilares: social, corporal, técnico e científico. Esses pilares seriam responsáveis por ajudar a construir uma sociedade apta a aprender e ensinar em união, assim como para trabalhar sob as regras de um governo prudente, formando: uma nação forte disposta a lutar pelos ideais do governo, que passariam a ser seus próprios ideais; especializada, para que cada um possa desenvolver suas capacidades, que juntas serão uma unidade; pensadora, uma sociedade consciente para entender e aplicar os princípios ideológicos da República. CONSIDERAÇÕES FINAIS O caráter instrutivo/didático de Luces y virtudes sociales, é apresentado por Simón Rodríguez em forma de conselho, exemplificado pela citação: “Acostumbrarse, pues, al hombre que ha de vivir en… República, a buscar desde su infancia, razones y proporciones en lo que puede medirse exactamente para que por ellas aprenda a descubrir razones y consecuencias en las providencias y en los procedimientos del Gobierno, para que sepa aproximarse al infinito moral: para que sus probabilidades no sean gratuitas, ni sus opiniones infundadas” (RODRÍGUEZ, 1840 apud. AYACUCHO, 1990, pp. 225-226). Na perspectiva de Rodríguez, o professor é aquele que guia a aprendizagem do estudante e o apoia, buscando levá-lo à reflexão a partir de suas próprias vivências e experiências. Sua posição de ator social permite-o advogar pela Instrução Geral e pela educação social, e mesmo com esse importante papel para a República, cabe ao professor (pelo cuidado em valorizar suas virtudes) manter sua humildade. O estudante é movido pela curiosidade, pois a mesma tira o homem da ociosidade e da escuridão e o carrega em direção as luzes do conhecimento. Com a perspectiva de autoeducação, o aprendiz é o responsável pelo conteúdo de sua 319 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. aprendizagem e pelo que deseja aprender, assim como, carrega a função de propagar as luzes adquiridas através da educação à sociedade. As aulas estão estruturadas em formato de conferência, pois, segundo o Rodríguez, professor e estudante estão em constante troca de interpretações dos saberes. Por fim, o autor demonstra a sua consciência em relação ao impacto de sua formação intelectual na sua memória, e possivelmente, o que suas obras produziriam na memória coletiva latino-americana, considerando a leitura uma atividade de compreensão, já que, para ele, ler não é nada mais que articular memórias. Sobre isso, registra em Luces y virtudes sociales: “cada sentido tiene sus recuerdos: y, juntándose los de los unos con los de los otros, forman la memoria. Disponerlos, por sus conexiones, es un arte que los antiguos llamaron mnemónica. Memoria es, pues, un conjunto de recuerdos” (RODRÍGUEZ, 1840 apud. AYACUCHO, 1990, p. 221). Vê-se aí a importância do ler e do registro literário para recuperar as memórias e mantê-las vivas. 320 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEMÁN, M.M. Literatura, memoria e identidad. Una aproximación teórica. Cuadernos de Filología Alemana, 2010, Anexo III. pp. 171 – 179. AYACUCHO, B. Sociedades Americanas. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1990. CARAMELO, F. 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NOS PASSOS DOS “CAPITÃES DA AREIA”: UMA NARRATIVA DE TÁTICAS E ASTÚCIAS CONTRA AS ESTRATÉGIAS DE CONTROLE DA ORDEM ESTABELECIDA Jadson Santana da Luz RESUMO Este trabalho tem como objetivo a construção de uma análise interpretativa da narrativa de Capitães da areia, de Jorge Amado, no confronto com o contexto sociojurídico dos anos 1930. A partir da leitura do romance, o estudo visa discutir as táticas utilizadas pelos personagens do romance para fazer frente às estratégias de controle e submissão colocadas em jogo pelo Estado brasileiro para conter, em nome da ordem e da paz social, uma miríade de crianças em situação de abandono, menores vulneráveis, que tinham as ruas da capital baiana como o seu único espaço de sobrevivência. Capitães da areia expõe todo esse cenário e se coloca do lado dos desfavorecidos sociais ao narrar as astúcias e táticas empreendidas contra a opressão social que os cerca. Os estudos de Michel de Certeau serviram para interpretar o desenrolar dessa luta. PALAVRAS-CHAVE: Capitães da areia, leis, contexto sociojurídico, táticas, astúcia, estratégias. Livro marcado pelo estigma da incineração, perseguido pela censura do Estado Novo, Capitães da areia narra situações cotidianas protagonizadas por um grupo de crianças e adolescentes nas ruas da cidade de Salvador. O romance expõe os maus tratos duma sociedade opressora a um grupo de crianças vítimas do abandono, vulneráveis, portanto, às mazelas sociais, e que encontram as ruas da capital baiana como o seu único espaço de sobrevivência. Chamados de capitães da areia, e sobrevivendo de pequenos furtos e assaltos, muitos desses menores, tal como apresenta a narrativa, foram abandonados pelos pais ou, por circunstâncias diversas, tornaram-se órfãos. Essas crianças têm como esconderijo um trapiche abandonado, onde buscam guarida nas fugas da polícia e também onde guardam e dividem o que conseguem com os furtos. Abandonados Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. pelo Estado, sem família, apenas encontrando a piedade de um pároco sensível à situação, os menores se organizam estabelecendo regras de convivência e laços de solidariedade. Na travessia de um cotidiano adverso, os capitães da areia, liderados por Pedro Bala, enfrentam a terrível epidemia de varíola, arquitetam invasões à delegacia de polícia, assaltos às mansões do bairro rico da Graça, vão às festas do candomblé da mãe Aninha, troçam do modo de vida que leva a elite e criam táticas para baldar a opressão social sofrida. Boa parte da obra de Jorge Amado, sem dúvida, pode ser caracterizada pelas articulações que o escritor estabelece entre cidade, cultura, política e identidade. As cidades, seja Salvador ou as demais tematizadas pelo escritor, são representadas como locus onde se imbricam repressão política e cultura popular, cor de pele e luta de classes, liberdade e abandono, solidariedade e indiferença. Isto é, no universo romanesco amadiano a cidade se faz perceptível como espaço culturalmente heterogêneo, no qual o binômio exclusão social e luta por sobrevivência está presente como linha mestra. 322 O romance Capitães da areia, dividido em três partes e mais um prólogo, não narra apenas o drama de crianças órfãs, mas também uma complexa rede de sociabilidades tecidas no cotidiano de uma cidade, cujos verdadeiros “donos” é a imensa população de pobres que faz das ruas o palco de uma luta renhida pela liberdade. É um livro sobre uma saga coletiva onde as ruas de Salvador e seus personagens vêm ganhar protagonismo. No romance, percebe-se muito bem que a narrativa sobre a cidade está atrelada ao modo como o texto expõe as vivências e a dinâmica cultural da população pobre nas vielas sinuosas da “velha urbe”. Embora apresente um espaço urbano hostil e segregante, o livro revela a relação simbiótica entre a cidade e seus personagens. A cidade de Salvador, em Capitães da areia, não é apresentada como simples pano de fundo. Ela é a própria condição de possibilidade da narrativa, pois é o lugar onde se articulam cultura, política, pobreza, repressão e luta pela sobrevivência. É neste sentido que o grupo dos capitães da areia está ligado umbilicalmente ao fluxo urbano caracterizador da cidade. “Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conhecia totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas” (AMADO, 2009, p.27).10 Capitães da areia é uma síntese da realidade social brasileira de 1930. Nele vemos expresso o resultado de séculos de abandono e desprezo das elites e dos poderes estatais constituídos com os espoliados pelo poder econômico. O amargor de uma vida precarizada e perseguida é o que se pode ver nas páginas do livro considerado subversivo pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Portanto, é um livro que expõe uma imenso problema social, isto é, um drama causado pela exclusão e pelo esquecimento. A elite brasileira esteve atenta aos potenciais perigos que poderiam advir do seio das classes populares. Neste sentido, desde meados do século XIX, buscou pensar meios de contenção e dispositivos de segurança para captura de indivíduos e grupos populacionais que não se enquadrassem às regras ditadas pelos quadros sociais estabelecidos. Com o passar do tempo, o que se viu foi a sofisticação dos braços de operacionalização do sistema penal, sobretudo durante o longo período em que Getúlio Vargas esteve no poder. A essas configurações tramadas, escalonadas e calculadas pelo poder, Michel de Certeau chamou de “estratégia”, que é, nas palavras do autor, [...] o cálculo (ou manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa etc.). Como na administração de empresas, toda racionalização "estratégica" procura em primeiro lugar distinguir de um "ambiente" um "próprio", isto é, o lugar do poder e do querer próprios. Gesto cartesiano, quem sabe: circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro. Gesto da modernidade científica, política ou militar (1998, p.99). 10 As citações seguintes dessa edição virão acompanhadas apenas da indicação de página. 323 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Na narrativa de Capitães da areia estratégias de repressão ganham referência. Mas são referenciadas de um modo distinto daquele que costuma trazer o discurso institucional, que as trata como eficientes meios de reforma moral e reinserção social. Nesse romance, as estratégias repressivas do sistema de poder são mostradas quase sempre com suas falhas, suas fissuras, com seus embaraços e em sua ineficiência. É nas brechas deixadas por esses deslizes, por essas pequenas distrações do poder, que os “capitães da areia”11 encontram espaço para gestar aquilo que Certeau chamou de “táticas”. Na definição do autor: Um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base onde capitalizar seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias. [...] Ao contrário, pelo fato de seu não lugar, a tática depende do tempo, vigiando para ‘captar no voo’ possibilidades de ganho. O que ela ganha, não guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para os transformar em ‘ocasiões’. Sem cessar, o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas. Ele o consegue em momentos oportunos onde combina elementos heterogêneos [...], mas a sua síntese intelectual tem por forma não um discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ‘ocasião’ (CERTEAU, 1998, p.46-47) [grifos do autor]. 324 Jogar com os acontecimentos, tirar proveito das distrações de guardas e transeuntes, disfarçar-se de mendigo, instalar esconderijo em zonas abandonadas, valer-se do silêncio nas ruas dos bairros estabelecidos, irromper contra os palacetes e encenar situações para garantir “níqueis” ou oportunidade de furto, são modos táticos de baldar a ordem que proliferam em Capitães da areia. Tal como leciona Certeau: Essas performances operacionais dependem de saberes muito antigos. Os gregos as designavam de métis. Mas elas remontam a tempos muito mais recuados, a imemoriais inteligências com as astúcias e simulações de plantas e de peixes. Do fundo dos oceanos até as ruas das megalópoles, as táticas apresentam continuidades e Nesta texto, em diferentes momentos, os personagens desse romance são referidos como “capitães da areia”, numa assumida adesão à perspectiva do narrador. 11 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. permanências. Em nossas sociedades, elas se multiplicam com o esfarelamento das estabilidades locais como se, não estando mais fixadas por uma comunidade circunscrita, saíssem de órbita e se tornassem errantes (1998, p. 47). Na luta contra as instituições colocadas na arena pelo Código de Menores de 1927, contra as regras de uma suposta boa moralidade, contra as árduas reprimendas das práticas penais de tortura e contra as máquinas de guerra instituídas pelo Governo Vargas, só restavam aos capitães da areia as transgressões possibilitadas pelas táticas, já que, no fim das contas, eles sabiam demais as leis do reformatório, as escritas e as que cumpriam. Portanto, os personagens que compõem o romance não estão inertes aos preconceitos de classe nem às armadilhas montadas contra eles no tecido social. Em Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios de Salvador, escrito em 1944, numa referência explícita a Capitães da areia, Jorge Amado revela alguns modos de contra-atacar desses personagens e também mostra, numa interlocução com seus leitores, que eles representam sujeitos reais, conhecidos de longa data. 325 Os molecotes atrevidos, o olhar vivo, o gesto rápido, a gíria de malandro, os rostos chapados de fome, vos pedirão esmola. Praticam também pequenos furtos. Há quarenta anos escrevi um romance sobre eles. Os que conheci naquela época são hoje homens maduros, malandros do cais, com cachaça e violão, operários de fábrica, ladrões fichados na polícia, mas os Capitães da Areia continuam a existir, enchendo as ruas, dormindo ao léu. Não são um bando surgido do acaso, coisa passageira na vida da cidade. É um fenômeno permanente, nascido da fome que se abate sobre as classes pobres. [...] Parecem pequenos ratos agressivos, sem medo de coisa alguma, de choro fácil e falso, de inteligência ativíssima, soltos de língua, conhecendo todas as misérias do mundo numa época em que as crianças ricas ainda criam cachos e pensam que os filhos vêm de paris no bico de uma cegonha. (AMADO, 2012, p.344). Malandragem, vivacidade, rapidez, atrevimento, o que são, senão potenciais de força, táticas, contrapoderes, modos de insurreição aptos a suscitar o combate contra a coação da ordem estabelecida? É mobilizando essas forças, que provêm das margens, que os capitães da areia vão conflagrar alvoroços, promover revoltas e instaurar os movimentos de subversão típicos das “táticas”. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A prática de delitos é uma das táticas privilegiadas pelo narrador de Capitães da areia no decorrer da história. Trata-se de uma arma de luta, de uma forma de combater e demarcar uma linha de fronteira entre os princípios morais supostamente civilizados das elites e o modo de vida que levava o grupo dos capitães da areia. Neste sentido, o delito em Capitães da areia é colocado como operador de sentido por meio do qual se estabelece uma constelação de relações sociais. Conforme Josefina Ludmer, “desde o começo mesmo da literatura, o delito aparece como um dos instrumentos mais utilizados para definir e fundar uma cultura: para separá-la da não-cultura e para marcar o que a cultura exclui” (LUDMER, 2002, p. 10). Ao trazer o delito como instrumento crítico, Jorge Amado articula e apresenta formas de organização social, construindo a identidade cultural dos “capitães da areia”. Nessa esteira, Jorge Amado se serve do delito como meio de fazer crítica cultural, social, política, literária e, por que não, econômica, visto que nos apresenta vidas de sujeitos que lutam e sobrevivem, a despeito da pobreza que pesa sobre eles. Em Capitães da areia, o Corredor da Vitória, bairro das elites, é apresentado 326 como cenário de uma das investidas do grupo dos capitães. Trata-se do assalto à casa do Comendador José Ferreira, apresentado na narrativa como um dos mais abastados e creditados negociantes da cidade. O fictício Jornal da Tarde, no prólogo que compõe o romance, narra a cena nos seguintes termos: ASSALTO Não tinham passado ainda cinco minutos quando o jardineiro Ramiro ouviu gritos assustados vindos do interior da residência. Eram gritos de pessoas terrivelmente assustadas. Armando-se de uma foice o jardineiro penetrou na casa e mal teve tempo de ver vários moleques que, como um bando de demônios (na expressão curiosa de Ramiro), fugiam saltando as janelas, carregados com objetos de valor da sala de jantar. A empregada que havia gritado estava cuidando da senhora do comendador, que tivera um ligeiro desmaio em virtude do susto que passara. O Jardineiro dirigiu-se às pressas para o jardim, onde teve lugar a LUTA Aconteceu que no jardim a linda criança que é Raul Ferreira, de 11 anos, neto do comendador, que se achava de visita aos avós, conversava com o chefe dos "Capitães da Areia", que é reconhecível Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. devido a um talho que tem no rosto. Na sua inocência, Raul ria para o malvado, que sem dúvida pensava em furtá-lo. O jardineiro se atirou então em cima do ladrão. Não esperava, porém, pela reação do moleque, que se revelou um mestre nestas brigas. E o resultado é que, quando pensava ter seguro o chefe da malta, o jardineiro recebeu uma punhalada no ombro e logo em seguida outra no braço, sendo obrigado a largar o criminoso, que fugiu ( p. 10-11). A extensa citação serve para perceber como as táticas narradas por Jorge Amado são apresentadas no confronto entre a imponência do suposto clima de segurança do rico casarão e a pobreza articulada com a destreza dos capitães da areia. Nesta cena do romance, o saber prático adquirido nos treinos de capoeira com o amigo Querido-de-Deus valeu a Pedro Bala a esquiva, o certeiro contragolpe e, por fim, a fuga. Como se vê, a capoeira, uma prática considerada tipo penal até 1937, é uma das astúcias valorizadas pela narrativa. Talvez uma forma encontrada pelo autor para, de um lado, denunciar o absurdo da proibição e, de outro, expressar seu apreço aos amigos capoeiras. Vale dizer que os empreendimentos das táticas só podem ser pensados em Capitães da areia, se remetidos ao tecido cultural pelo qual se enredam os personagens. Na narrativa seus protagonistas são como que um amálgama de cruzamentos culturais, uma espécie de herdeiros de saberes seculares, da esperteza aprendida no cotidiano. São desses saberes práticos, saberes imemoriais como quis Certeau, que sucedem as táticas. Assim, é ao lado dos que forjam as táticas que a narrativa se inclina para mostrar as vielas, as quermesses, os candomblés, toda uma cultura popular que à época se encontrava escamoteada, obscurecida e perseguida na cidade de Salvador. A evidência dessa colocação pode ser observada através do ocorrido no episódio intitulado “Aventura de Ogum”, em que é creditado aos capitães, pela ialorixá Don’Aninha , o resgate da imagem de Ogum, que havia sido levada numa batida policial. Conforme o narrador, Don’Aninha disse aos meninos com uma voz amarga – Não deixam os pobres viver... Não deixam nem o deus dos pobres em paz. Pobre não pode dançar, não pode cantar para seu deus, não pode pedir uma graça a seu deus – sua voz era amarga, uma voz que não parecia da mãe-de-santo Don’Aninha. – Não se contentam de matar os pobres a fome... Agora tiram os santos dos pobres... – e alçava os punhos. [...] 327 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Quando a deixaram, rodeada das suas filhas-de-santo, que beijavam sua mão, Pedro Bala prometeu – Deixa estar, mãe Aninha, que amanhã te trago Ogum (p. 94). Pouco tempo depois, os “capitães da areia” arquitetam um estratagema. A ideia era que um deles se infiltrasse na Central de Polícia, onde o Ogum de Don’Aninha estava apreendido. Pedro Bala toma a frente do intento e, ao forjar um assalto no bairro do Campo Grande, deixa-se capturar. Já na Central de Polícia, “o chefe dos capitães” localiza a imagem de Ogum, envolve no seu paletó e aguarda que o chame para a oitiva. Na oitiva, Pedro Bala inventa para o comissário que é da ilha de Itaparica, Mar Grande, e que o pai não pode voltar para buscá-lo por conta do temporal. Como não podia ficar na rua, empreendeu o assalto para que o guarda o levasse para a delegacia. Tomando como impossível que uma criança daquela idade estivesse inventando uma história tão cheia de detalhes como a apresentada, o comissário manda que ponha o menor em liberdade. É quando Pedro Bala pede para buscar o paletó que havia esquecido. Em seguida, colocou o paletó “debaixo do 328 braço, nem parecia trazer a imagem envolvida nele. Atravessaram o corredor novamente, o guarda o deixou na porta. Pedro tomou para o Largo dos Aflitos, rodeou o velho quartel, desabou pela Gamboa de Cima” (p. 105). Não só o grupo de menores abandonados se utiliza das táticas, mas também aqueles que se solidarizam com a sua situação. O padre José Pedro utiliza-se de sua autoridade de pequeno pároco para convencer as beatas a adotarem um daqueles meninos, escreve carta ao Jornal da Tarde em solidariedade aos “capitães da areia”, o que o leva a ser denunciado ao alto clero, a sofrer a reprimenda do Cônego, e ser acusado pelo clérigo de favorecer práticas comunistas e de atentar contra as leis da Igreja e do Estado. Mas, por fim, consegue permanecer como padre e não quebra o vínculo de amizade com os “capitães da areia”. Por sua vez, a costureira Ricardina também se coloca contra as agruras pelas quais passam as crianças no Reformatório. Para isso, escreve carta ao jornal, desculpa-se do mau uso da língua oficial, meio de se fazer ouvir, denuncia os desmandos do diretor da instituição e desafia o veículo de imprensa a mandar um representante “para ver como são tratados os filhos dos pobres que têm a desgraça de cair nas mãos daqueles guardas sem alma” (p.16). Se Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. entendemos, com Foucault, que todo exercício de poder pressupõe um contrapoder, vemos que há aí uma espécie de micropolítica do cotidiano. Em relação à justiça, a luta pode tomar várias formas. Em primeiro lugar, pode-se usar contra ela suas próprias armas, por exemplo, apresentar queixa contra a polícia. Isso não é evidentemente um ato de justiça popular; é a justiça burguesa apanhada em uma armadilha. Em segundo lugar, pode-se fazer guerrilhas contra o poder de justiça e impedi-lo de se exercer. Por exemplo, escapar da polícia, ridicularizar o tribunal, ir pedir satisfações a um juiz. Tudo isso é guerrilha anti-judiciária [...] (FOUCAULT, 1998, p.66). E Capitães da areia esboça uma espécie de guerrilha antijudiciária. O atabalhoamento do Juiz de Menores, os vícios e as faltas do Chefe de Polícia, a displicência do Bedel e do Comissário, são modos de ridicularização, denúncia e exposição de um sistema judiciário que anda em descompasso com as regras de eficiência que estabelecem os códigos. Localiza-se em Capitães de areia, mesmo que precariamente, a figuração de um saber jurídico que se produz no âmbito das praticas cotidianas. Uma espécie de direito dos marginalizados. Prolifera na narrativa um sem número de regras de cordialidade, normas de respeitabilidade, táticas de sobrevivência que tem como foco a união dos “fracos” contra a investida da opressão social. Contra as leis do Estado repressor, as leis dos “capitães da areia”. Essa é a batalha que se observa nas páginas do romance. É em defesa da regra principal do grupo, a de não furtarem uns aos outros, que o personagem Pedro Bala se vê obrigado a expulsar um dos meninos. Também em nome das leis dos “capitães da areia”, Sem Pernas desconsidera a possibilidade de ficar vivendo numa luxuosa casa da Graça onde o acolheram como “pobre órfão”. Na verdade, uma tática para se infiltrar na casa e arquitetar um grande roubo. Acerca da lei do grupo, pensava Sem Pernas que “antes de tudo estava a lei do grupo, a lei dos Capitães da Areia. Os que a traíam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo” (p. 126). Por fim, o personagem Pirulito aborta uma tentativa de furto, “porque ele pensava que trair as leis (nunca tinham sido escritas, mas existiam na consciência de cada um deles) dos Capitães da Areia era um pecado também” (p. 111). Durante toda a história contada 329 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. no romance, o narrador refere-se a esse código de ética do grupo de meninos abandonados. Mas “as leis dos capitães da areia” não se destinavam apenas à organização interna entre os menores. Elas também expressavam um senso ético de trato humanitário. Ao relatar uma caminhada do grupo em direção ao encontro do grupo rival, chefiado por Ezequiel, menor que havia sido expulso do “trapiche”, o narrador ressalta que “vão alegres. Levam navalhas e punhais nas calças. Mas só o sacarão se os outros puxarem. Porque os meninos abandonados também têm uma lei e uma moral, um sentido de dignidade humana” (p. 189). Pelo que é possível depreender do texto de Certeau (1998), as táticas também são meios que os despossuídos encontram para lutar contra as estratégias de acumulação. Se, de um lado os muros, os esconderijos e os sistemas de vigilância estão postos para resguardar nas chácaras e nos palacetes montantes de peças de ouro, do outro, os capitães da areia diagramam ciladas, ardis e truques para malograr o somítico hábito de acumular das elites. Robinhoodianos por necessidade, 330 os heróis do romance ironizam com os agentes acauteladores do capital da burguesia. No diálogo, em que planejavam furtar chapéus de feltro na Vitória, um dos “capitães da areia” responde: “Tu liga pra guarda? Se ainda fosse tira... Guarda é pra correr picula” (p.33). O Gato não poderia ficar fora do catálogo de astúcias que Jorge Amado explora em Capitães da areia. Talvez o cognome do personagem seja uma referência sarcástica ao uso comum do termo “gatuno”, expressão pejorativa endereçada aos meninos de rua pelos jornais, nas primeiras décadas do século passado. O certo é que, no romance, o personagem é um perito em armar “treitas”. Ágil no jogo com o seu baralho viciado, o moleque arrancava altas somas do desavisado que se enganasse com a sua aparência infantil. A primeira cilada armada pelo Gato foi na casa do Sr. Gastão, flautista e namorado da prostituta Dalva, mulher pela qual o menor se apaixonara. Atendendo ao pedido feito por Dalva, ir até à casa do músico avisar que ela o esperava, o menino flagra o tal Gastão bêbado na cama com uma amante. Tanto o flautista quanto a mulher escarnecem da figura do gato. A mulher perguntava: “quem é esse Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. cocadinha?”. O músico respondia: “É um filhote somente. Não faz medo”. Por fim, convidaram o menor para entrar. Nesse meio tempo, Gato já aproveitava o descuido do casal embriagado e furtava a bolsa da amante que estava esquecida na cadeira sobre os vestidos. “Na rua o Gato contou sessenta e oito mil-réis. Jogou a bolsa no pé da escada, meteu o dinheiro no bolso. E foi para rua de Dalva, assoviando” (p.42). A principal astúcia que se observa nas ações desse personagem é o proveito que ele tirava da imagem de criança. Nas páginas de Capitães da areia há toda uma narrativa que se volta à exposição de uma religiosidade sincrética. Xangô, Omolu, Ogum, Santo Antônio, a Santa Virgem da Conceição e a Nossa Senhora das Sete Dores estão relacionados no romance como uma rede complexa de elementos heterogêneos. Se “João Grande acreditava era em Xangô, em Omolu, nos deuses dos negros que vieram da África. O Querido-de-Deus [...] misturava-os com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa”. (p.107). Também o Pirulito, menino que furtava santos, amalgamava uma inventiva hagiografia de Santo Antônio. Para ele, o santo franciscano era um mártir brasileiro, um revoltoso justiceiro, que havia sido condenado à forca depois de tentar salvar o pai do cadafalso. Nas palavras do narrador: “Pirulito contava a história de Santo Antônio [...] do modo como Professor lia histórias heróicas de marinheiros corajosos e revoltosos” (p.180). Percebe-se que como o Menocchio , de O queijo e os vermes, Pirulito reelabora, adultera e se apropria da imagem do santo português para colocá-la ao lado dos capitães da areia. Assim, o santo reinventado torna-se mais um guia, uma entidade protetora dos menores abandonados. Certeau esteve atento a esse tipo de astúcia urdida no seio das classes populares quando analisou práticas religiosas de comunidades rurais. Para o teórico: Os "crentes" rurais desfazem assim a fatalidade da ordem estabelecida. E o fazem utilizando um quadro de referência que, também ele, vem de um poder externo (a religião imposta pelos missionários). Reempregam um sistema que, muito longe de lhes ser próprio, foi construído e propagado por outros, e marcam esse reemprego por "super-ações", excrescência do miraculoso que as autoridades civis e religiosas sempre olham com suspeita, e com razão, de contestar às hierarquias do poder e do saber da sua razão. Um uso ("popular") da religião modifica-lhe o funcionamento. (CERTEAU, 1998, p.78) 331 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Mas não é só em Capitães da areia que o sincretismo religioso está presente. A fusão entre “santos negros” e “santos brancos” é uma característica da escrita amadiana. É algo que se pode ver em outros romances do escritor, vestígio da sua cosmovisão. Ao tratar da procissão de Nosso Senhor Bom Jesus dos Navegantes, Jorge Amado revela o prisma sincrético pelo qual vê a cultura e a religiosidade baiana. Na cidade do Salvador da Bahia de Todos-os-Santos, as cores, as coisas, os sentimentos, os ritos, os deuses são misturados, nossa verdade é a mistura de raças, de culturas, de crenças, de ritmos, de alegrias e dores, de lutas de escravos malês, jejes, nagôs, congos e angolas, para criar a nação brasileira, original e única, civilização e cultura mestiças, a luminosa face de nosso povo. Na galeota do Senhor dos Navegantes viaja também Iemanjá. (AMADO, 2012, p.122). Arte do furto, jogo de mimeses, lance de truques, são os procedimentos que utilizam os saltimbancos da narrativa de Capitães da areia. É do uso de um desses 332 ardis que advém o apelido do Professor. Esse personagem, cujo nome de batismo era João José, passará a ser chamado de Professor a partir do momento em que “num livro furtado ele aprendera a fazer mágicas com lenços e níqueis e também porque, contando aquelas histórias que lia e muitas que inventava, fazia a grande e misteriosa mágica de os transportar para mundos diversos” (p.30). Além de ilusionista e um dos principais mentores dos planos de roubo, era um hábil ladrão de livros. “Desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra, se tornara perito nestes furtos” (p.30). Digno da alcunha, o Professor ainda se fazia um arguto contador de história. Muitos do grupo levavam jornais até o trapiche, para que ele procedesse à leitura, já que era o único que lia correntemente. Esse “pequeno” narrador, tal como expressa a narrativa: Gostava de saber coisas e era ele quem, muitas noites, contava aos outros histórias de aventureiros, de homens do mar, de personagens heroicos e lendários, histórias que faziam aqueles olhos vivos se espicharem para o mar ou para as misteriosas ladeiras da cidade, numa ânsia de aventuras e de heroísmo. [...] o treino diário da leitura despertara completamente sua imaginação e talvez fosse ele o único Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. que tivesse uma certa consciência do heroico das suas vidas. Aquele saber, aquela vocação para contar histórias, fizera-o respeitado entre os Capitães Areia, se bem fosse franzino, magro e triste, o cabelo moreno caindo sobre os olhos apertados de míope. (p.30) Ao que parece, esses singulares modos de leitura, que redirecionam e cruzam cultura popular e cultura letrada, são práticas que datam de muito tempo. Engenhos interpretativos urdidos no decorrer dos séculos. O já citado livro de Ginzburg revela isso ao apresentar como, no século XVI, o moleiro Menocchio lia textos “destinados a grupos intelectuais dos mais refinados” (2006, p.19). O historiador revela a existência de uma “circularidade cultural”, isto é, “[...] influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica, particularmente intenso na primeira metade do século XVI” (2006, p.15). Certeau tratou sobre as atividades de leitura cotidianamente realizadas pelos consumidores, em centros urbanos americanos e europeus, entre os anos de 1974 a 1978. Para o teórico, os leitores não estão entregues à passividade diante das formalizações impostas pelos “aparelhos escriturísticos da disciplina”. Ao contrário, “no espaço tecnocraticamente construído, escrito e funcionalizado onde circulam, as suas trajetórias formam frases imprevisíveis, 'trilhas' em parte elegíveis” (CERTEAU, 1998, p.45). É da leitura de narrativas de jornais, reelaboradas pelo Professor, que o Volta Seca enxergava no bando de Lampião os revolucionários donos da caatinga, os transgressores que lutavam contra a opressão dos coronéis do sertão. Ávido para saber da notícia que trazia o jornal Diário, o menor entra no Trapiche a procura do Professor para que este leia o fragmento sobre Lampião. – Quero que tu leia pra eu ouvir essa notícia de Lampião que o Diário traz.Tem um retrato. – Deixa pra amanhã que eu leio. – Lê hoje, que eu amanhã te ensino a imitar direitinho um canário. O Professor buscou uma vela, acendeu, começou a ler a notícia do jornal. Lampião tinha entrado numa vila da Bahia, matara oito soldados, deflorara moças, saqueara os cofres da Prefeitura. O rosto sombrio de Volta Seca se iluminou. Sua boca apertada se abriu num sorriso. E ainda feliz deixou o Professor, que apagava a vela, e foi para o seu canto. Levava o jornal para cortar o retrato do grupo de Lampião. Dentro dele ia uma alegria de primavera. (p. 46-47) 333 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Volta Seca é um dos capitães que mais odiava a polícia. Toda vez que sabia do assassinato de algum soldado pelo bando de Lampião era tomado por uma imensa felicidade. O grande ódio decorre da tarde em que soldados o pegaram. Na ocasião ele tinha 16 anos. Os agentes o torturaram e ele xingava todos, inclusive o delegado. “Ele não soltou um grito enquanto apanhou. Oito dias depois o puseram na rua, e ele saiu quase alegre, porque agora tinha uma missão na vida: matar soldados de polícia” (p. 237). O ódio do personagem estava impresso no seu “rosto sombrio”, nas marcas que o sistema penal deixara no seu corpo. Mas não era só ódio que Volta Seca possuía, tinha também um grande talento em imitar animais os mais vários, sobretudo os do sertão. Essa astúcia foi o que rendeu ao Nhozinho França, proprietário do velho carrossel instalado em Itapagipe, o lucro decorrente do largo acesso das crianças atraídas pelo chamariz das imitações do personagem. 334 Em frente à bilheteria Volta Seca imita vozes de animais e chama o público. Leva uma cartucheira como se estivesse no sertão. Nhozinho França achou que isto chamaria a atenção do povo e Volta Seca parece mesmo um cangaceiro com o chapéu de couro e a cartucheira atravessada. E imita animais até que se reúnam homens, mulheres e crianças na sua frente. Então oferece entradas, que as crianças compram. Vai uma alegria por toda a praça. (p. 66-67) Imitações, pantomimas, dribles, acrobacias são lances, táticas de combate usadas contra as estratégias do poder estabelecido. No capítulo “Como um trapezista de circo”, o Sem-Pernas, mesmo manco, jogava picula com os guardas. “Sem-Pernas corria de um lado para outro da rua, os guardas avançavam. Ele fez que ia escapulir por outro lado, driblou um dos guardas, saiu pela ladeira” (p. 242). Não era apenas a rapidez na elaboração das táticas de escape que tornava difícil a apreensão dos capitães da areia. Entre o grupo também estava assentada uma espécie de lei antidelação, um preceito de lealdade estabelecendo que, se porventura fossem presos, não deveriam revelar a identidade dos demais e menos ainda o esconderijo no trapiche. É em respeito a esta cláusula ética que Predro Bala se mantém silencioso na delegacia, mesmo estando submetido à tormentosa tortura. O Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. protagonista também se negou a dar informações do grupo ao fictício Jornal da Tarde, conforme o articulista. Na Chefia de Polícia quisemos ouvir Pedro Bala. Mas ele nada nos disse, como tampouco quis declarar às autoridades o lugar onde dormiam e guardavam seus furtos os "Capitães da Areia". Só declarou seu nome, disse que era filho de um antigo grevista que foi morto num meeting na célebre greve das docas de 191..., que não tinha ninguém no mundo. (p. 193) Na fuga de Pedro Bala do reformatório, a narrativa expressa a reprovação do menor em relação a um interno acostumado a entregar os companheiros. Henrique, o delator, já havia denunciado dois outros companheiros ao bedel responsável por manter a ordem durante a noite. Na madrugada em que o chefe dos capitães da areia empreendia a fuga, o mexeriqueiro despertou e, quando ia soltando o alarme, Pedro Bala o repreendeu: – Olha, xereta, trata de dormir. Se tu piar, eu te abro a garganta, palavra de Pedro Bala. E se tu disser alguma coisa depois que eu sair... Tu já viu falar nos Capitães da Areia? – Já. – Pois eles me vinga. (p. 209) Pela evasão do menor observa-se um conjunto de táticas e astúcias. A cena começa evidenciando o cenário vigiado do canavial. Os bedéis circulavam pelo canavial quando Pedro Bala vê o Sem-Pernas sendo “tangido” por um dos vigilantes. Ele espera um descuido e passa para o menor um bilhete onde pedia que conseguisse uma corda. No dia seguinte, o chefe dos capitães encontra um punhal e “o rolo de corda fina e resistente” (p. 208) escondido entre as moitas. Em seguida, “Pedro mete o rolo de corda debaixo do paletó, abre para o dormitório. Um bedel vem descendo a escada com um revólver na mão. Pedro se esconde atrás de uma porta” (p. 208). Ao chegar ao interior dormitório, esconde os objetos sob o colchão e volta para o canavial. Duas noites depois, o menino lançava a corda que completou com o lençol, 335 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. o nó resistente que deu ele aprendera com o Querido-de-Deus. Após lançar a corda, Pedro acelera a debandada. Se deixa escorregar pela corda, salta ao chão. O pulo é grande, mas ele já salta correndo. Pula a cerca, após evitar os cachorros policiais que estão soltos. Desaba pela estrada. Tem alguns minutos de vantagem. O tempo dos bedéis se vestirem e saírem em sua perseguição e soltarem os cachorros também. Pedro Bala prende o punhal nos dentes, tira a roupa. Assim os cachorros não o conhecerão pelo faro. E nu, na madrugada fria, inicia a carreira para o sol, para a liberdade. (p. 209-210) Com essa disparada de Pedro Bala para a liberdade, a narrativa expõe o modo de uso das táticas. A espera da ocasião, a rapidez para se valer do momento oportuno, e a percepção aguçada são os ingredientes necessários para a escapada. O que se viu na ação do personagem foi a elaboração de táticas constituídas a partir do uso de meios e instrumentos marginais, isto é, o rolo de corda, o punhal, o bilhete trocado e o aprendizado do nó. Todos estes artifícios laterais ao cotidiano regrado da casa de 336 custódia. As pequenas táticas urdidas pelos capitães da areia nas brechas deixadas pelo Estado repressor são como minúsculas máquinas de guerra que se multiplicam no decorrer do romance. Essas fagulhas microfísicas, esses diminutos focos de incêndio são como ínfimos estágios de erosão capazes de causar, em seu conjunto, colapsos nas engrenagens do poder estabelecido. Era por intermédio dessas pequenas astúcias cotidianas que os capitães da areia partiram para enfrentar os condicionamentos impostos pelas armadilhas de opressão social. Eis a maneira como lutam os “fracos” contra as “estratégias” do Estado. A história de uma guerrilha empreendida por crianças desprovidas de amparo social é o que se pode ler em Capitães da areia. Um escrito de combate contra um contexto social e jurídico insensível à pobreza e à infância abandonada. Uma narrativa escrita com aqueles que, através de práticas cotidianas transgressoras, enfrentam as autoridades estabelecidas e trapaceiam as rígidas relações de poder de um arranjo social injusto e desigual. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. REFERÊNCIAS AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios de Salvador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. FOUCAULT, Michel. Sobre a justiça popular. In: Microfísica do poder. 13 ed., Rio de Janeiro, Graal,1998, p.39-68. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. LUDMER, Josefina. O corpo do delito. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. 337 NARRATIVA DE APRENDIZAGEM DE UMA LÍNGUA ADICIONAL Joana Angélica Santos Lima (UNEB\UFMG) [email protected] RESUMO Nesse trabalho, propõe-se identificar e refletir sobre os principais componentes que constituem o processo de aprendizagem em uma narrativa de aprendizagem da língua adicional, extraída da coletânea de narrativas que compõem o projeto coordenado pela Professora Vera Menezes (UFMG), “Aprendendo com Memórias de Falantes e Aprendizes de Língua Estrangeira” – AMFALE, o qual reúne pesquisadores que visam investigar aspectos diversos dos processos de aquisição e de formação de professor de línguas estrangeiras através de narrativas de aprendizagem. A narrativa estudada trata-se de um relato minucioso sobre a trajetória das experiências da sua autora durante o processo de aprendizagem da língua inglesa como língua adicional. Segundo Paiva (2011), a aquisição da segunda língua (doravante, ASL) é desenvolvida através de interações dinâmicas e constantes entre os subsistemas, alternando momentos de estabilidade com momentos de turbulência. A autora destaca que motivação, identidade, e autonomia são elementos cruciais para conexões socioculturais bem sucedidas e a consequente evolução do sistema de ASL e que uma vez interligados, atuam “como um combustível potente para colocar o sistema em movimento, contribuindo para seu desenvolvimento e mudança”. A motivação, na perspectiva de Paiva (2011), atua como uma força dinâmica, que envolve fatores sociais, afetivos e cognitivos, e que se manifesta em desejos, atitudes, expectativas, interesses, necessidades, valores, prazer e esforços. Quanto á autonomia, Magno e Silva (2008) explica a autonomia aprendente é uma capacidade a ser incentivada em variados contextos de aprendizagem da ASL. Essa capacidade, conforme Benson (2001), é multidimensional, e assume diversas formas para diferentes indivíduos, e até para o mesmo indivíduo em diferentes e contextos e épocas. Segundo Gibson (1979), as affrodances, também um forte aliado para o Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. processo do sistema ASL, referem-se ao “relacionamento recíproco entre um organismo e uma tração particular do seu ambiente”. Esse ambiente de aprendizagem é repleto de linguagem que promove ao aluno ativo e participante oportunidades de aprendizagens. Considerando os referidos componentes presentes na narrativa analisada, foi possível perceber que a motivação para tal processo de aprendizagem, por parte da autora se deu na infância em meio a situações e brincadeiras diversas com membros da família e colegas; e, que seu encantamento e a vontade de aprender cada vez mais, assim como a prática docente de alguns dos seus professores ao longo do curso escolar o fizeram desenvolver sua “autonomia aprendente”. Além disso, possibilitou perceber também, que as principais affrodances que promoveram tal processo foram dentres outros, sala de aula, livros didáticos, letras de músicas, filmes, a interação com os colegas, etc. Essa análise configura-se de grande importância para somar e contribuir com as discussões sobre o processo de ensino-aprendizagem de uma língua adicional, segundo a teoria da Complexidade. 339 Palavras-chave: Aprendizagem; Lingua Inglesa; Narrativa. 1. INTRODUÇÃO A aprendizagem de línguas é um processo complexo, dinâmico, que contém fatores, muitas vezes imprevisíveis, que interagem entre si. Paiva (2008) evidencia uma série de variações que implicam no processo de aprendizagem: as biológicas, de inteligência, aptidão, atitude, idade, estilos cognitivos, motivação, personalidades; as efetivas de contexto onde ocorrem tal processo, dentre outros, chamando atenção para o fato de que cada pessoa tem suas características individuais. Esse estudo ocupa-se em analisar, à luz da teoria da complexidade, narrativa de aprendizagem na língua adicional, ou seja, na língua inglesa com a finalidade de investigar a trajetória de aprendizagem do aprendente, selecionado através da escolha aleatória de sua narrativa, a qual faz parte do acervo da coletânia de Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. narrativas do projeto “Aprendendo com Memórias de Falantes e Aprendizes de Língua Estrangeira” – AMFALE coordenado pela Professora Vera Menezes Paiva (UFMG). Além disso, finaliza investigar também alguns elementos que delineiam o processo de aprendizagem, tais como: motivação, autonomia e affrodances, os quais no sentido de alguns teóricos, aninhados entre si, fazem-se de grande valia para a eficacia da aquisição de uma segunda (ASL). Vale ressaltar que esse trabalho se desenvolverá nas seguintes seções: 2) Aprendizagem da língua adicional, onde se fará uma reflexão sobre o processo de aquisição de uma segunda língua, em especial a inglesa; 2.1) em que será definido os conceitos dos elementos que fazem parte do processo de aprendizagem de língua adicional: motivação, autonomia e affrodances; 3) em que se fará a análise da narrativa selecionada se atentando para a presença dos referidos elementos; 4) Considerações finais, em que será feito uma breve reflexão sobre os resultados obtidos nesse estudo. 340 Espera-se com esse trabalho poder contribuir com a ampliação das discussões sobre o processo de ensino aprendizagem da língua inglesa, embora o volume do corpus em análise seja insipiente para garantir grandes reflexões e, consequentemente contribuições para literatura. 2. APREDNDIZAGEM DA LÍNGUA ADICIONAL Para muitos teóricos, a aprendizagem é um processo dinâmico e complexo. Conforme PAIVA (2005) a aprendizagem de uma língua, assim como qualquer outra aprendizagem é um processo dinâmico não-linear e, portanto, imprevisível. Pequenas diferenças nas condições de aprendizagem podem resultar resultados assaz diferentes. No sentido de Holland (1995), os sistemas complexos se constituem de um grande número de elementos ativos que se adaptam e mudam seus comportamentos em decorrência de suas interações. No processo de mudança, os comportamentos desses sistemas não são proporcionais às suas causas devido à sua não linearidade. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Além de não lineares, esses sistemas são também abertos, tendo em visto o movimento da informação ao fluir para dentro ou para fora do sistema, em função da sua característica funcional. Uma outra característica desses sistemas é a sua dinamicidade, segundo Paiva: Esses sistemas são também sistemas dinâmicos. De acordo com Lorenz (2001, p. 8), existem dois tipos de sistemas, os que "variam deterministicamente ao longo do tempo" e aqueles que "variam de forma aleatória". Este último parece ser o caso da linguagem e de sua aquisição. Williams (1997, p.19) aponta que "[A] palavra dinâmica significa força, energia, movimento, ou mudança" e que "[U]m sistema dinâmico é tudo que se move, muda, ou evolui no tempo." Durante esse processo dinâmico, os agentes aprendem uns com os outros, recebem feedback, ganham experiência e mudam. Tais sistemas são também chamados de sistemas caóticos, porque, como explica Holland (1998, p. 45), "(...) pequenas mudanças nas condições locais podem causar grandes alterações no comportamento global de longo prazo (...)". Essa característica dos sistemas caóticos é conhecida como dependência sensível às condições iniciais. (PAIVA, 2011, p. 73) Ainda sobre esses sistemas, a autora observa que “Lewin (1992, p. 20) argumenta que [A] maioria dos sistemas complexos exibe [...] atratores, os estados em que o sistema finalmente se acomoda, dependendo das propriedades do sistema". Esses atratores, definidos como “caóticos”, configuram-se rotas percorridas pelo sistema dinâmico, apresentando-se em três tipos: atrator ponto fixo, conhecimento previamente adquirido por onde perpassam todas as trajetórias de aprendizagem; o periódico que seria a cognição; o caótico conhecido como atratores estranhos, por se tratar dos diversos fatores que interferem na aprendizagem (interação, input, materiais, output, etc.). Esses atratores mudam frequentemente. “Eles mudam, as possibilidades dinâmicas mudam à medida que o meio ambiente muda” (LEWIN, 1994, p. 93 apud PAIVA, 2005). Paiva esclarece que a aprendizagem de uma língua adicional exibe habilidades inerentes para se adaptar a diferentes condições presentes nos ambientes externos e internos. Considerando a complexidade dessa aprendizagem, atenta-se a duas posições diferentes sobre a aquisição da linguagem assumindo: (a) a existência de 341 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. estruturas mentais inatas, conforme visão generativista; (b) aquisição da linguagem por meio da repetição e criação automática de hábitos linguísticos, conforme o pensamento estruturalista, onde destaca o input, a interação, e o output como aspectos cruciais para a aquisição por desencadearem conexões neurais e socioculturais. Dentre as conexões socioculturais, a autora destaca como “elementos-chave” para o desenvolvimento da aquisição de uma segunda língua, a motivação, a identidade e a autonomia, assomando também os affrodances, os quais serão explicados brevemente, a seguir. 2.1 Elementos da aprendizagem de uma língua adicional Motivação A palavra motivação tem sua origem no verbo latino movere,s ignificando mover, motivo, algo que nos leva a agir. De acordo com Dörnyei (2005), a motivação 342 é compreendida como impulso, força, desejo ou estímulo que varia de indivíduo para indivíduo e que o conduz à ação, fazendo-o se esforçar e persistir numa tarefa. Para o autor, a motivação abrange a direção e a intensidade do comportamento. Faz parte de um processo evolutivo, o qual pode variar, conforme diferentes influencias externas e internas ao aluno. As influencias externas dizem respeito ao ambiente de aprendizagem, aos recursos dos quais dispõem, a interação como os outros, as exigências culturais e a opinião de pessoas com as quais o aluno convive. A interna, por sua vez, refere-se ao próprio interesse do aluno em aprender, envolvendo sua curiosidade, habilidades e atitudes mediante o processo de aprendizagem. Na perspectiva de Paiva (2011), a motivação funciona como uma força dinâmica que envolve fatores sociais, afetivos e cognitivos, e, se manifesta em ‘desejos, atitudes, expectativas, interesses, necessidades, valores, prazer e esforços”. Para ela, varia muito no decorrer do processo de aquisição, não se limitando apenas ao contexto educacional. Trata-se, pois, de um processo que muda com o tempo, podendo variar de pessoa para pessoa, de acordo com sua necessidade de aprender. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Essa necessidade de aprender, assomada às atitudes favoráveis em relação à atividade e o desejo de atingir suas metas estabelecidas levam o aprendiz esforçar-se na realização de tarefas. Dörney (2010) orienta que a motivação deve ser tratada a partir de uma visão dinâmica que possibilite perceber que as características de um indivíduo com relação à sua motivação podem mudar ao longo do processo, como também ao longo do dia ou de uma atividade. Vale notar que a motivação se configura uma condição necessária para a autonomia, a qual será discutida, a seguir. A autonomia A autonomia é um sistema sócio-cognitivo encaixado no sistema da aquisição da segunda língua, envolvendo estados e processos mentais do indivíduo, como também dimensões política, social e econômica. Marcado pela sua não linearidade, esse processo sofre períodos de variabilidade, instabilidade e adaptabilidade. (PAIVA, 2006). Paiva e Braga (2008) ainda acrescem que na perspectiva da complexidade, a autonomia ocupa-se de propriedades e condições emergenciais complexas e que encontra-se estritamente ligada ao seu ambiente. Evidencia-se que quando autônomos, os aprendizes podem aproveitar dos propiciamentos (affrodances) linguísticos em seu ambiente, envolvendo-se em práticas sociais da linguagem. Assim, para que esses aprendizes possam se adaptar e conviver bem numa sociedade complexa faz-se necessário implementar um ensino voltado para a autonomia, não apenas, no do que diz respeito ao ensino de línguas, mas também em qualquer circunstância. Identidade Paiva (2008) diz que a aprendizagem de uma língua é também um processo de construção de identidade. Apropriando-se das palavras de Norton (2000, p. 5), 343 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. explicita a identidade como “o modo como uma pessoa compreende sua relação com o mundo, como essa relação é construída ao longo do tempo e do espaço, e como a pessoa compreende possibilidades para o futuro”. A autora ainda acrescenta que a identidade não se trata de uma experiência unificada de pertença, mas sim um conjunto de múltiplos pertencimentos em uma dimensão fractal. Por não tratar desse processo nessa análise, não se aterá nesse estudo maior aprofundamento sobre o mesmo. Affrodances Além dos processos acima citados por Paiva, deve-se elencar como elemento importante que envolve a aprendizagem de um língua adicional, o affrodance, termo criado por Gibson (1986), intencionando apresentar o mutualismo, a complementaridade entre o indivíduo e o ambiente, espaço que significa, para o agente, aquilo que ele percebe. Segundo ele, affrodances, também um forte aliado para 344 o processo do sistema ASL, referem-se ao “relacionamento recíproco entre um organismo e uma tração particular do seu ambiente”. Esse ambiente de aprendizagem é repleto de linguagem que promove ao aluno ativo e participante oportunidades de aprendizagens. Para o autor, os affordances são o produto das relações entre estruturas físicas do ambiente e o intelecto dos seres vivos. Esses affordances do meio são propiciados por objetos físicos e reais do ambiente e dependem de como são percebidas na subjetividade/singularidade e compartilhamento social das percepções. Michaels e Carello (1991) mencionam que o agente e o ambiente se adaptam como peças de um quebra-cabeça, explicando que tal complementaridade pode ser visualizada através de conceito ecológico de nicho, entendido por Gibson (1977, 1979) como cenário de caracteres ambientais apropriados aos animais que se ajuntam adequadamente. (OLIVEIRA e RODRIGUES, 2006, p. 125) 3. A NÁLISE DE NARRATIVA DE APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Orientado pela teoria da complexidade, cuja compreensão de aprendizagem é de um sistema complexo não linear, investiga-se nesse trabalho, a complexidade dos sistemas de ASL enfatizando apenas três dos seus componentes, a saber: motivação, autonomia e affrodances. Por se tratar de um estudo piloto, o mesmo se desenvolveu mediante análise de apensas uma narrativa de um aprendente da língua inglesa, com formação e graduação em uma instituição pública, cujo texto integra a coletânia de narrativas que compõem o projeto coordenado pela Professora Vera Menezes (UFMG), “Aprendendo com Memórias de Falantes e Aprendizes de Língua Estrangeira” – AMFALE, o qual reúne pesquisadores que visam investigar aspectos diversos dos processos de aquisição e de formação de professor de línguas estrangeiras através de narrativas de aprendizagem. As narrativas de aprendizagens são consideradas uma grande ferramenta para as discussões sobre o processo ensino-aprendizagem. Murphey (1999), por exemplo, argumenta que através da leitura de narrativas dos seus alunos, os professores aprender como ensinar de forma mais apropriada. Ele explicita que: 345 A história de aprendizagem de cada pessoa é singularmente construída por eventos, desejos, decisões, estratégias, crenças, ações, e percepções individuais. A escrita de nossas histórias nos permite refletir sobre essas forças e nos torna conscientes de nossa parte na construção de nossa história. Essa consciência meta-cognitiva nos capacita a ter mais controle sobre o futuro de nossa aprendizagem. (minha tradução) (Paiva, 2008) Vale notar, que a seleção da narrativa se deu de forma livre, sendo, portanto, a primeira encontrada após o acesso ao site do projeto. Em sua narrativa, o informante faz um relato reflexivo sobre suas experiências de aprendizagem da língua inglesa no espaço escolar, desde as séries iniciais ao seu acesso ao nível superior. A análise se desenvolveu mediante uma leitura minuciosa, onde foi possível perceber dentre outros, os elementos em foco nesse estudo, visto que os mesmo são internconectados na ASL. Motivação A motivação do aprendiz é fator determinante e também fundamental para garantir o sucesso na aprendizagem de uma língua adicional. Assim, é necessario Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. que o aluno se envolva no processo desenvolvendo as atividades propostas, bem como mostrando seu interesse nas aulas, etc. De acordo com as falas do informante, percebeu-se um certo movimento entre a motivação e a desmotivação, visto que ele, deixa claro que teria sido motivado, primeiramente, pelo contato com os irmãos, as músicas, filmes, eficiência de alguns professores durante o ensino básico, etc. Entretanto, deixa entender, também, que em alguns momentos de sua vida de estudante, teria se deparado com professores que não conseguiam inovar e nem avançar nas aulas, trabalhando apenas com o verbo to be: “Em alguns casos, o estudo do present e perfect do verbo to be era, praticamente o único asssunto dado.” No sentido de Dornyei, a motivação pode se dar de forma extena ou interna. Viu-se que os motivadores externos responsáveis pela sua aprendizagem foram as brincadeiras, o contato com as músicas internacionais que os irmãos mais velhos gostavam de ouvir, filmes, revistas, acesso à internet, etc. Quanto aos motivadores internos, foram marcados pela encantamento com a língua desde a infância, o desejo de aprender a língua, como també o empenho em aprimorar cada vez mais sua 346 parendizagem: “Ficava deslumbrada com as novas aprendizagens e diazia: Quero aprender a falar inglês.”: Autonomia Magno e Silva (2008) explicam que a autonomia aprendente é uma capacidade a ser incentivada em variados contextos de aprendizagem da ASL. Essa capacidade, conforme Benson (2001), é multidimensional, e assume diversas formas para diferentes indivíduos, e até para o mesmo indivíduo em diferentes contextos e épocas. Ao analisar a narrativa, percebeu-se que o interesse do informante em estudar a língua inglesa se desenvolveu de forma autônoma, partindo da admiração pela mesma e também do desejo constante de aprendê-la. A autonomia do aprendiz promoveu sua busca pelo aprimoramento contínuo dessa língua em diferentes contextos. Esta contribuiu muito na sua formação, possibilitando-lhe, pois, melhor e maior desempenho nas situações em que se deparava: compreensão de letras de músicas, de textos diversos, filmes, etc. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Enfim, ciente da importância de aprimorar minhas habilidades para poder seguir em frente e poder trilhar com sucesso numa carreira acadêmica, resolvi me matricular no curso de língua inglesa. Esse período foi muito significativo, pois aprendi o suficiente para suprir as necessidades básicas. Sigo tentando aprimorar esse conhecimento... Como se pode ver, tais resultados corroboram a ideia de que a autonomia e a motivação são elementos interligados na aprendizagem, pois o fato de buscar aprimorar-se a todo momento na língua inglesa, fez-lhe tornar-se um aprendiz mais seguro e mais autônomo. Affrodances Na visão de Gibson, a percepção do affrodance é ecológica e resulta da interação recíproca entre o agente e o ambiente. Complementando tal visão, Paiva (2009) evocando Van Lier acrescenta que affrodance diz respeito “a algo com potencial para a ação e que emerge quando interagimos com o mundo físico e social. As precondições para que o significado emerja são ação, percepção e interpretação em ciclo continuo de reforço mútuo”. A autora acrescenta que contexto de aprendizagem de línguas, os propiciamentos (affrodances) não são os mesmos para todos os aprendizes, visto que há contextos que podem favorecer mais oportunidades para a aprendizagem de uma segunda língua do que outros. E que no Brasil, os affrodences oferecidos no processo de ensino aprendizagem da língua inglesa são muito mais “ricos” se comparados com o mandarim, em decorrencia de sua presença significativa em inúmeras produções culturais que bombardeiam os brasileiros no cinema, na imprensa, no rádio, na televisão, e na Internet. A análise da narrativa permitiu perceber que os affrodances evidentes no texto foram, a priore, as músicas e os filmes, utilizados como input da língua inglesa. A interação do informante, enquanto agente do processo, com esses afrrodances, fez emergir outros novos affrodances, tais como revistas, documentários, sites da internet e redes sociais, etc. 347 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. No contexto atual em que vivemos - um mundo globalizado, conectado com os quatros lados do mundo - muitas coisas mudaram. Esse contato “involuntário” que só aumenta cada vez mais, tem sido mais reforçado pelas redes sociais - grandes responsáveis pelas interações entre os grupos hoje e tem reforçado muito o processo de aprendizagem das línguas. Tendo em vista que os affrodances referem-se ao relacionamento recíproco entre um organismo e uma tração particular do seu ambiente, foi possível observar ainda tantos outros na narrativa, como sala de aula, cartazes, livros, professores, cursos de aprimoramento, panfletos, autdoor, etc. Enfim, as percepções oferecidas pelo ambiente foram muitos na trajetória de aprendizagem do informante, pois todos esses elementos proporcionaram uma relação de complementaridade com o informante, enquanto agente. Considerando, sua experiência na escola, o informante não deixa claro a existência de affrodances suficientes e necessários para sua aprendizagem na sala de aula, levando a entender que ele preenchia essas lacunas recorrendo a ambientes 348 externos à escola. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse estudo se constitui de uma análise de narrativa de aprendizagem da língua inglesa como língua adicional. Por se tratar de um estudo piloto desenvolvido em uma disciplina cursada pela autora do mesmo, não se pôde fazer grandes inferências em relação ao processo ensino aprendizagem no espaço escolar. Entretando fica claro, nessa narrativa, a necessidade de se investir mais na formação do professor de língua estrangeira para que estes possam promover um ensino mais eficaz e prazeroso para seus alunos, de forma que se tornem aprendizes autonômos e mais felizes. No tocante a trajetória do informante, notou-se que ele foi impulsionado tanto pela motivação externa, quanto interna, marcada pelo seu desejo de aprender a lingua estudada constantemente. Notou-se ainda que através da sua auto- Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. organização e determinação, conseguiu obter sucesso na sua aprendizagem. Suas ações e reações determinaram seu percurso e os resultados alcançados. Enfim, vale dizer que, aninhados entre si, a autonomia, a motivação e os affordances muito contribuíram para aprendizagem do informante. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DÖRNYEI, Z. The relationship between language aptitude and language learning motivation: Individual differences from a dynamic systems perspective London: Continuum. In E. Macaro (Ed.), Continuum companion to second language acquisition. 2010, p. 247-267. GIBSON, J. J. The ecolocogical approach to visual perception. New Jersey: London: Lawrence Erlbaum Associates, 1986. OLIVEIRA e RODRIGUES. Affrodances: a relação entre agente e ambiente. Ciencias e Cognição. São Paulo: 2006. Vol. 09, p. 120-130. PAIVA, V.L.M.O. Modelo fractal de aquisição de línguas. In: BRUNO, F.C. (Org.) Reflexão e Prática em ensino/aprendizagem de língua estrangeira. São Paulo: Editora Clara Luz, 2005. p. 23-36 __________. Propiciamento (affordance) e autonomia na aprendizagem de língua inglesa In: LIMA, Diógenes Cândido. Aprendizagem de língua inglesa: histó³rias refletidas. Vitória da Conquista: UESB, 2010. ________. Linguagem e aquisição de segunda língua na perspectiva dos sistemas complexos. In: BURGO, V. H; FERREIRA, E. F; STORTO, L. J. Análise de textos falados e escritos: aplicando teorias. Curitiba: Editora CRV, 2011. P. 71-86. 349 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 350 FATO E FICÇÃO NA OBRA DE DANILO KIŠ: UMA LEITURA DE UM TÚMULO PARA BORIS DAVIDOVITCH Luan Queiroz da Silva Graduando em Letras da UFBA – Bolsista de Iniciação Científica PROPCI/UFBA ([email protected]) Antonio Marcos Pereira Professor Adjunto IV – Instituto de Letras/UFBA ([email protected]) RESUMO: O espaço (auto) biográfico contemporâneo, tal como nos apresenta Arfuch (2010) constitui-se em uma zona híbrida, instável, irregular. Uma zona em que predominam a interdiscursividade entre os gêneros, a transversalidade dos discursos e uma dificuldade cada vez maior de etiquetar e classificar as produções que trabalham com a escrita da intimidade. Este novo cenário exige que o leitor incorpore novas formas de olhar às narrativas, armando-se de procedimentos de leitura específicos, porém ao mesmo tempo ambíguos, afinal uma obra de ficção pode conter elementos (auto) biográficos, assim como uma produção (auto) biográfica pode se construir predominantemente de invenção. Como encarar então este tipo de texto? Uma destas experimentações cada vez mais crescentes no interior do espaço (auto) biográfico é uma constante na bibliografia de um escritor iugoslavo que nas palavras de Sontag (2001), sempre esteve sob ataque e portanto, de modo forçoso, no ataque: Danilo Kiš. Espectador de períodos tempestuosos da História Mundial, filho de um país que celebrava a literatura provinciana (e que logo, opunha-se ao modelo nada conservador de escrita de Kiš), transformado em astro por seus conterrâneos apenas após a sua morte em 1989, o que se estabelece na produção deste autor, em especial na obra que analisamos, Um túmulo para Boris Davidovitch, é uma forte tensão entre fato e ficção. Ou seja, na construção mimética, Danilo Kiš incorpora às suas narrativas ficcionais, uma série de estratégias comumente presentes nas narrativas biográficas. Esse procedimento, que também aparece em Vidas Imaginárias (2011), de Marcel Schwob; História Universal da Infâmia (1986), de Jorge Luís Borges; e Mortes Imaginárias (2005), de Michel Schneider, insere Um túmulo para Boris Davidovitch na tradição das genericamente chamadas ficções biográficas (Premat, 2010). São obras que se estruturam no formato de relatos curtos, em que a veracidade e o testemunho, típicos da biografia, se mesclam com a invenção, a especulação e a dúvida da invenção ficcional. Pensando nestas questões, neste trabalho, lançamos um olhar analítico sobre os sete relatos que compõem Um túmulo para Boris Davidovitch, de Kiš, buscando compreender como se organizam as narrativas, como se estabelece essa tensão entre ficção e realidade na obra, e de que maneira o escritor iugoslavo assume o que Premat (2010) chama de posição de falsário, ao introduzir nas narrativas como dados autênticos personas e informações que, na verdade, não encontram referentes no mundo real. Paralelamente, buscamos conexões entre a obra de Kiš e os outros livros que compõem a tradição na qual ela está inserida, propondo o estabelecimento de uma genealogia que se configure não Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. pela herança de sangue, típica da crítica comparativista tradicional, e sim, como propõe Souza (2007), pela aproximação, que se vale tanto de coincidências ideológicas entre os autores quanto de experiências biográficas comuns, que pode ser feita pela crítica a partir de liberdades interpretativas, de rede de associações que se compõem de elementos ficcionais, teóricos e biográficos. PALAVRAS-CHAVE: Biografia; Ficção; Ficções Biográficas; Leitura Literária; Danilo Kiš. INTRODUÇÃO Durante uma entrevista em 1976 quando perguntado sobre o processo de criação de suas obras e sobre a maneira como um autor consegue imprimir um estilo de época em seus livros, Danilo Kiš, em dado momento, fez questão de dizer: não há como pedir a um escritor para que ele seja um gênio, assim como você não consegue distinguir um gênio quando vê um; portanto, aqueles escritores que estão além do seu tempo podem muito bem hoje serem invisiveis, desconhecidos. (KIŠ, 1995, p. 352 174-5) É interessante perceber como esta afirmação pode valer para entendermos um pouco a própria trajetória literária de Kiš. Nascido em Subotica – pequeno municipio localizado na antiga Iugoslávia – Danilo Kiš foi, durante boa parte de sua vida, rechaçado pela crítica local e pelos seus conterrâneos escritores, sendo reconhecido e elevado à categoria de grande autor nacional somente após a sua morte, em 1989. A verdade é que Kiš sempre esteve interessado em explorar diferentes temáticas a partir de um olhar muito diferenciado e deslocado do apresentado por outros escritores da Europa Oriental, ainda muito conectados a uma literatura conservadora, que se compreendia como suficientemente política ao agregar ao seu discurso um forte teor nacionalista. Como aponta Susan Sontag (2001): Kiš era de um país pequeno onde os escritores são importantes, para o bem, ou para o mal, e onde os mais dotados se tornam legisladores morais e, às vezes, até políticos. [...] A cumplicidade da maioria dos escritores e artistas sérvios não exilados com o atual triunfo do Grande Imperialismo Sérvio sugere que as vozes antinacionalistas, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. das quias a de Kiš era a mais destemida e eloquente, sempre foram minoria. (SONTAG, 2001, p. 126) Isso, no entanto, não faz com que o projeto literário do escritor se distancie das questões e das problemáticas típicas da sua terra e de sua época. Pelo contrário: ainda que tenha encontrado resistência por parte dos seus conterrâneos contemporâneos, tenha vivido um bom tempo fora da Europa Oriental – tendo lecionado em universidades na Hungria e na França -, e que tenha sido traduzido para vários idiomas como o francês e o inglês, ganhando considerável respeito em círculos literários da Europa Ocidental e da América do Norte, principalmente após a publicação de Um túmulo para Boris Davidovitch, Kiš jamais se afastou do que Sontag chama de sentido exarcebado do lugar do escritor e da responsabilidade do escritor que, literalmente, vinha com o território. (SONTAG, 2001, p.126) Se o trabalho de Kiš pertence, como nos alerta o biógrafo Mark Thompson, a todas as línguas, seus livros, assim como os seus restos mortais, pertencem, porém, a um único lugar. (THOMPSON, 2014) Lugar este historicamente marcado por guerras, pela opressão, pelo medo, pela perseguição política e por ideologias perversamente segregacionistas, sendo todo este caldeirão turbulento uma marca bastante presente no projeto literário de Kiš. Ao mesmo tempo, há na constituição deste projeto um interesse quase obsessivo pelo valor da forma e da estrutura da enciclopédia, o que conduz parte de sua ficção a ser marcada pela organização de elementos fragmentários e aparentemente dispersos, o que nos leva a conclusão de que “a trajetória ficcional de Danilo Kiš assume a forma de um arquivo.” (SOARES, 2008, p.1) Uma das obras de Kiš em que particularmente essas características são bem latentes é justamente a que nos propomos a analisar: Um túmulo para Boris Davidovitch. UM TÚMULO PARA BORIS DAVIDOVITCH: FATO E FICÇÃO Obra que catapultou o sucesso de Danilo Kiš na Europa Ocidental (SONTAG, 2001, p. 128), Um túmulo para Boris Davidovitch compila sete relatos, que apesar de 353 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. diferentes, encontram conexões entre si, como nos revela o sugestivo subtítulo da edição brasileira do livro, publicada pela Companhia das Letras em 1987: Um túmulo para Boris Davidovitch – Sete capítulos de uma mesma história. As conexões entre os sete capítulos se dão não apenas na temática – o cenário de todas as histórias e as vidas de seus protagonistas é permeado pelo terror, pela perseguição política, pela opressão e pelo sofrimento – mas também pelo fato de que um personagem de uma história comumente é citado ou aparece como coadjuvante em outra: A.L Tcheliustnikov, por exemplo, correspondente de um jornal local, caracterizado como dono de “botas cor de framboesa, cintilantes” (KIŠ, 1987, p.38), e que é torturado e preso ao final do capítulo intitulado Os Leões Mecânicos, e sua amante, Nastasia Fedotievna M, são citados no capítulo seguinte, O Círculo Mágico das Cartas: [...] bastava que Korchunidze exprimisse esse desejo com uma palavra ou mesmo um olhar, para que as botas cor de framboesa do antigo tchekista Tcheliustnikov resplandecessem nos pés do novo 354 proprietário (Kostik), ou então, graças à amabilidade e à benevolência do cozinheiro, ex-assassino e gigolô, era fornecida uma ração generosa à mulher do ex-secretário do Comitê Regional, a branca Nastasia Fedotievna M, que depois era conduzida a Kostik, pois o Artista gostava de mulheres bem fornidas, “brancas e redondas, o que há de melhor em matéria de mulheres russas.” (KIŠ, 1987, p. 63) Seis dos sete relatos encenam-se durante a dura opressão assumida pelo Estado stalinista. Presos políticos, homens injustiçados, figuras que se opuseram (ou foram traídas) pelo governo ganham, então, destaque nestes capítulos. Um capítulo em especial, Cães e Livros, retorna ao ano de 1330 para falar da opressão da Igreja contra os judeus durante o período da Inquisição. Para realizar a organização e a união destas histórias tão díspares, Danilo Kiš recorre a um procedimento também utilizado pelo escritor iugoslavo em outra obra, Enciclopédia dos Mortos, o princípio da “lógica das coincidências”. (SOARES, 2008, p. 2) Segundo Soares (2008), torna-se comum na bibliografia de Kiš aglutinar elementos e vozes distintas a partir do estabelecimento de um princípio analógico. Se em Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Enciclopédia dos Mortos, o que une todos os relatos e ajuda a manter a aparência de uniformidade temática do livro é a morte, em Um túmulo para Boris Davidovitch, é a opressão e a perseguição em sua forma mais crua que funcionam como um módulo organizador de todas as sete histórias que compõem a obra. De uma forma bem clara, todos os personagens de Um túmulo para Boris Davidovitch encontram-se sufocados, seja pelas mazelas provocadas pela violência do Estado ou das próprias condições sociais (como nos capítulos A porca que devora sua ninhada e Os leões mecânicos), seja pelas mazelas provocadas pela Igreja e pelas condições oriundas da religião (neste caso, o capítulo Cães e Livros). Neste ponto, haveria uma similaridade muito forte entre Um túmulo para Boris Davidovitch e História Universal da Infâmia, de Jorge Luís Borges, obra em que sete diferentes relatos são construídos tendo como módulo organizador o caráter “infame” de seus protagonistas. Como veremos depois, esta não é a única coincidência entre a obra de Kiš e o trabalho de Borges. Em ambos os livros há uma tensão muito marcada entre fato e ficção, com a presença de procedimentos tradicionalmente classificados como biográficos mesclando-se a utilização de diversas “armadilhas” ficcionais. São obras que se configuram como “um catálogo de infrações: hibridação genérica, metadiscursividade, finais abertos ou conjeturais, especulação, elipses narrativas.” (PREMAT, 2010, p.4) A especulação que improvisa a partir de referências factuais, a utilização de dados apócrifos e de fontes não verificáveis, a insegurança no papel de biógrafo, a inclusão de notas de rodapé, enfim, todos estes elementos que ajudam a constituir os relatos, estabelecem a tensão entre fato e ficção, fazendo parte desta obsessão de Kiš pelo documental, que irá condicionar a sua obra e dar sentido aos múltiplos nós das malhas da memória das catástrofes que o preocupam. (SOARES, 2008, p. 2) Na tentativa de atribuir veracidade ao que está sendo contado, o escritor acaba por assumir o que Premat (2010) chama de posição de falsário, afinal Danilo Kiš brinca, ao por exemplo, fazer passar por reais, personagens que não encontram referentes em nosso mundo – temos Oscar Blum, socialista austríaco que teria conhecido Novski, protagonista do capítulo que dá nome ao livro – e a utilização de personagens históricos interagindo com personagens ficcionais – temos o político 355 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Édouard Herriot sendo guiado pelas ruas de Kiev pelo ator e mais tarde prisioneiro do Estado A.L Tcheliustnikov no capítulo Os Leões Mecânicos. A poética de Kiš tende a forjar um narrador quase sempre incerto, frequentemente adepto da especulação e da omissão de informações e fontes, como se pode perceber nos seguintes trechos, presentes no capítulo Um túmulo para Boris Davidovitch: Depois de uma brecha óbvia em nossas fontes (e que não queremos impingir ao leitor, para deixar-lhe o prazer enganoso de pensar que se trata de uma história que, como de hábito, confunde-se, para maior felicidade do escritor, com o poder de sua imaginação). (KIŠ, 1987, p. 92) Alguns testemunhos levam-nos a crer que Novski, arrastado por uma onda de entusiasmo e de amargura, recebeu a notícia do armistício, apesar de tudo, como um golpe. (KIŠ, 1987, p. 94, grifo nosso) 356 No primeiro trecho, é possível perceber o tom metalinguístico e levemente irônico do narrador, ao admitir a falta de informações totalmente confiáveis que garantam a autenticidade dos supostos fatos. Já no segundo trecho, revela-se que a partir da análise de alguns testemunhos, chegou-se a conclusão de como o personagem Novski reagiu à notícia do armistício. Mas de quem seriam esses testemunhos? Onde eles foram obtidos? Qual o grau de confiabilidade deles? Estas informações são omitidas. Também durante várias partes do livro, os adjetivos ‘autêntico’ e ‘confiável’ são usados para caracterizar os testemunhos, as cartas e demais documentos supostamente utilizados pelo narrador para a construção dos relatos apresentados, não nos sendo revelada, porém, a localização das fontes. Dentre estes trechos, destacamos: Essa história, nascida na dúvida e na incerteza, só tem o mal (que alguns chamam de sorte) de ser verdadeira: foi registrada por mãos Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. honestas, segundo testemunhos confiáveis. (KIŠ, 1987, p. 7, grifo nosso) Os documentos autênticos, embora pareçam palimpsestos, estão momentaneamente ausentes aqui. A vida de Gould Verschoyle confunde-se de certa maneira com o nascimento da jovem república espanhola. (KIŠ, 1987, p. 24, grifo nosso) Certamente que a utilização destes procedimentos de construção narrativa (especulação, omissão de informações, ausência de explicações para determinadas ações e acontecimentos) pode ser uma consequência da própria escolha do escritor pelo fragmento, pela espaço mais restrito e comprimido do relato. A própria linguagem cinematográfica, ágil, recheada de flashes e de atos simultâneos que aparece em alguns trechos do livro pode ser também, ao ser emulada literariamente, produzir um efeito dessa natureza, como se pode perceber em: Vejo Verchoyle deixar Málaga a pé, vestindo um casaco de couro tomado de um falangista (sob o casaco havia apenas um corpo magro, nu, e uma cruz de prata presa a um cordão de couro); vejo-o investir armado com uma baioneta, levado por seu próprio grito como se o levassem as asas do anjo exterminador; vejo-o berrar para cobrir os clamores dos anarquistas, cuja bandeira negra drapeja sobre o vale despojado que cerca Guadalajara, e que estão prontos a morrer uma morte sublime e insensata [...] (KIŠ, 1987, p. 25) LIÇÃO DE ANATOMIA E A NECESSIDADE DE UM LIVRO RESPOSTA Diante da hibridez e da maneira particular com a qual Danilo Kiš construiu sua obra, uma parte da crítica de seu país não poupou esforços para menosprezar o trabalho do escritor, caracterizando alguns dos documentos e testemunhos presentes em Um túmulo para Boris Davidovitch como produto de plágio. 357 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Uma destas vozes que reagiram à publicação do livro de Kiš foi a de Dragan M. Jeremic – nome desconhecido por nós, mas à época autor de grande destaque no mundo iugoslavo, não apenas produtor de literatura como também agente poderoso e influente no campo literário local de então. Jeremic se manifestou em uma longa carta aberta na qual, entre outras coisa, afirmava que: En mi opinión, sería mejor que Kiš simplemente confesara que ha omitido citar las fuentes por diferentes motivos: porque no son importantes para el objetivo con el que escribió esta prosa, o al menos que no quiso cargar el texto con notas a pie de página, suponiendo que los críticos descubrirían por sí mismos qué, de donde, en qué medida y con qué fin había sido copiado. (KIŠ, 2013, p. 90) Para Jeremic e outros, a documentação, os testemunhos e alguns dos nomes citados em Um túmulo para Boris Davidovitch não seriam tão apócrifos assim. Na verdade, para estes críticos, Danilo Kiš teria buscado essa pluralidade de informações presentes no livro em leituras de depoimentos de vários autores aos quais não 358 conferiu qualquer crédito. Kiš, portanto, passou a ser caracterizado em alguns círculos de seu país como um plagiador. Para rebater seus opositores, Danilo Kiš resolveu defender-se usando a sua melhor arma: a literatura. Escreveu, então, Lição de Anatomia, livro-resposta, que traz a opinião do escritor iugoslavo em relação ao que ele chama de “incrível campanha de difamação que iniciaram contra Um túmulo para Boris Davidovitch.” (KIŠ, 2013, p. 90) Para driblar a opinião de Jeremic, por exemplo, Kiš resolve atacar a inexperiência e a ausência de legitimidade do crítico, que seria mais conhecido por seu trabalho como funcionário público do que como especialista literário. Como então, o escritor poderia considerar como legítima e merecedora a opinião de Jeremic sobre a sua obra? En qué medida me he servido de fuentes, qué, de dónde, en qué medida y con qué fin había sido copiado, sería en cualquier literatura y en cualquier ambiente literario civilizado, asunto de investigadores y de la crítica universitaria; no obstante, sobre la cuestión del material Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. literario y cómo se utiliza todavía se hablará en ese libro […] Y para que él [Jeremic] fuera capaz de encontrar en un libro las llamadas fuentes, valorara de dónde proceden, y de qué medida y con qué fin se han copiado, tendría que – en pocas palabras – procurarse algunos conocimientos elementares sobre literatura, sobre literatura moderna en particular. (KIŠ, 2013, p. 90) Kiš também aproveita o espaço do livro para comentar algumas outros temas, como a força que infelizmente o nacionalismo e as falsas ideologias imprimem na literatura de seu país, o que impedia que autores mais experimentalistas e menos conservadores como ele alçassem voos mais altos dentro dos círculos literários de sua região; as questões familiares e autobiográficas que aparecem em boa parte de suas obras, principalmente na trilogia chamada Circo Familiar; e principalmente, um aspecto que muito nos interessa aqui, e que tem haver com a filiação à qual o escritor iugoslavo está vinculado: o seu elogio a Borges. Quando fala do escritor argentino em um dos capítulos iniciais de Lição de Anatomia, Kiš é enfático: “No hay duda, la narración, con más exactitud el arte narrativo, se divide en el que había antes de Borges y el de después de Borges.” (KIŠ, 2013, p. 52) Não era esta a primeira vez em que Kiš declarava a sua admiração por Borges. Quando perguntado, por exemplo, sobre sua genealogia, ele frequentemente respondia que se considerava “um filho de Borges e de Bruno Schulz.” (SONTAG, 2001, p. 129) E não é dificil perceber as coincidências entre o projeto literário dos dois autores. Assim como Borges, Danilo Kiš está muito preocupado na valorização do aspecto enciclopedístico, do fragmento, das informações apócrifas e da atribuição de autenticidade e veracidade, ainda que dúbias, à narrativa ficcional. Há no projeto literário de ambos, representado aqui por dois livros, Um túmulo para Boris Davidovitch e História Universal da Infâmia, uma série de características e marcas que tornam possível desenhar uma genealogia que incorpore estas duas obras, baseada no que chamamos genericamente de ficções biográficos e que, segundo a definição de Premat (2010), apresentam-se como: 359 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. [...] biografias de personagens célebres do passado ou de figuras inventadas, muitas vezes breves e fragmentadas, que funcionam como um refúgio ou uma ressurreição do relato (da capacidade de contar). São, geralmente, biografias de escritores, artistas, criadores, série infinita de espelhos do autor, espelhos nos quais a identidade se esboça, se deforma, se aprofunda, se define como um avatar significativo, embora seja irreal, significativo porque é irreal. (PREMAT, 2010, p.1) AS FICÇÕES BIOGRÁFICAS: SCHWOB, BORGES & KIŠ A dificuldade cada vez maior de classificar determinadas obras como (auto) biográficas ou não, assim como a intensa aparição na contemporaneidade de obras que subvertem as características tradicionais da biografia, situando-se em uma zona instável e heterogênea, muitas vezes colada à discursos anteriomente considerados como divergentes – ficção e fato; ficção e notícia; biografia e ficção – seria, segundo 360 Arfuch (2010), uma das características da própria definição do espaço biográfico contemporâneo, entendido como essa confluência de múltiplas formas, gêneros e horizontes de expectativa. Nesse sentido, o espaço biográfico aparece como um interessante campo de indagação, no qual diferentes gêneros manifestam seus contatos em formas variadas de intertextualidade e interdiscursividade. É dentro desta perspectiva que as experimentações do espaço biográfico, e aí falamos mais detidamente das ficções biográficas, passam a ser interesse dos pesquisadores e ganham voz e vez dentro dos estudos críticos e literários. De maneira geral, e improvisando aqui uma conceituação afinada com os objetos que estamos examinando, o que chamamos de ficções biográficas pode ser entendido como um conjunto de textos que se estruturam no formato de relatos breves, fragmentados, em que há uma clara reversão ao modelo clássico de se escrever uma vida, tradicionalmente apoiado no que Bourdieu (2006) chama de ilusão biográfica, ou seja, a tentativa ineficiente de se entender a vida biografa como uma série de acontecimentos sucessivos, um ir e vir, uma trajetória linear. O que percebemos nas ficções biográficas é um movimento que corresponde à noção de que Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. a fragmentação pode servir como um mecanismo satisfatório de expressão literária, ao se integrar a uma organização lógica de escrita da vida, porém não necessariamente a uma organização cronológica e linear. (BOURDIEU, 2006, p. 184) São também marcas destes textos certa ficcionalização assumida presente nas narrativas; a quase sempre ausência de homogeneidade dos personagens escolhidos para terem suas vidas narradas – seja em relação ao contexto histórico em que viveram estes personagens, seja em relação a suas condições socieconômicas, por exemplo. Dois livros incorporados à esta tradição e que particularmente interessam aqui por causa de suas conexões com a obra de Kiš são Vidas Imaginárias, de Marcel Schwob e História Universal da Infâmia, de Jorge Luís Borges. Comumente considerado como origem hipotética do gênero, Vidas Imaginárias, de Marcel Schow, publicado em 1896, é a compilação de vinte e dois relatos sobre figuras reais, invisíveis ou supostamente não interessantes para a História. Schwob subverte a biografia tradicional ao criar pequenos relatos em que na escrita da vida biografada confunde-se verdade documental e factual com imaginação e invenção. O escritor francês recorre a uma série de artificios que já comentamos quando falamos sobre a análise de Um túmulo para Boris Davidovitch, de Kiš: especulação, falta de explicação para diversos acontecimentos, incerteza no papel de biográfo, omissão das fontes. Tudo isso em prol da arte, que para Schwob, “(..) é contrária às ideias universais, descreve apenas o individual, deseja apenas o único. Não classifica, desclassifica.” (SCHWOB, 2011, p. 47) Não há a preocupação em escrever biografias totalmente autênticas, estritamente apoiadas no caráter documental. As vidas transformadas em escritura por Schwob “em vez de tratarem-se de biografias referenciais, estruturadas ao redor de um conceito de verdade, se tratam intencionalmente de vidas imaginárias, situadas ao âmbito da estética.” (PREMAT, 2010, p.3) Procedimentos parecidos são utilizados por Borges, que assim como Kiš também recorre a inclusão de notas de rodapé e a invenção de nomes documentos que aparecem na narrativa como elementos aparentemente autênticos. Ao final de História Universal da Infâmia, por exemplo, há anexo um índice de fontes em que 361 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. aparece um referência falsa: Die Vernichtung der Rose (port. ‘O Nome da Rosa’), revelando o jogo criativo do escritor argentino. Compondo um elo mais recente nessa genealogia, Kiš também é, como vimos, responsável por enquadrar em uma disputa estética e política os artifícios que caracterizam esse subgênero. Sua produção, assim, ao mesmo tempo que recupera procedimentos de seus antecessores, não se limita à emulação do já realizado: conduz a novas inquietações, e nos convida a examinar mais minuciosamente as implicações e desafios críticos apresentados pelos gêneros híbridos ou imprecisos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. – Rio de Janeiro: Eduerj, 2010. BORGES, Jorge Luís. História Universal da Infâmia. Tradução de José Bento. – Lisboa: Assírio e Alvim, 1982. 362 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína. (orgs.). Usos e abusos da história oral. 8 ed. – Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 183-191. KIŠ, Danilo. Um túmulo para Boris Davidovitch. – São Paulo: Companhia das Letras, 1987. __________. Homo Poeticus: essays and interviews. Edited and with an Introduction by Susan Sontag. – United States: Farrar Straus & Giroux, 1995. __________. Lección de anatomía. Tradução de Luisa Fernanda Garrido e Timohir Pistelek. – Barcelona: Acantilado, 2013. PREMAT, Júlio. Monstruos, infames y criminales. Ficciones biográficas, de Schwob a la actualidad. – Paris: 2010. 40 p. SCHWOB, Marcel. A cruzada das crianças e Vidas Imaginárias. Tradução de Dorothée de Bruchard. Introdução de Marcelo Jacques de Moraes – São Paulo: Hedra, 2011. 162 p. SOARES, Leonardo Francisco. Um inventário alfabético da morte: A enciclopédia dos mortos, de Danilo Kiš. São Paulo: Anais da Abralic, 2008. TRAVESSIAS NO UNIVERSO DA LEITURA ATRAVÉS DA TERTÚLIA LITERÁRIA Cecilia de F. Boaventura de Macêdo Profª rede estadual e-mail: [email protected] Luciana de Souza Pereira Cerqueira Profª rede estadual e-mail: [email protected] A Tertúlia Literária é uma proposta de atividade de leitura que reúne pessoas das mais diversas formações com o intuito de promover um diálogo entre os participantes de determinado grupo a partir da leitura de um texto. Nosso intuito com essa prática no grupo de pais dos estudantes é desmistificar a leitura demonstrar que esta pode favorecer àqueles que não possuem formação acadêmica e sua prática como troca de saberes e de experiências vividas. A tertúlia é a proposta de uma atividade de leitura sem obstáculo social, e tem como base o diálogo com as diferentes esferas da vida, onde a aprendizagem efetiva-se nos diversos espaços que o homem convive, na conversa com os amigos, na troca de experiências com os parentes e colegas. As bases teórico-metodológicas da Tertúlia Literária como aprendizagem dialógica estão pautadas em Paulo Freire para a área de Educação, e Habermas para a Sociologia. Nesse sentido todas as falas são respeitadas igualmente, as diferentes manifestações de linguagem são consideradas a partir da validade dos argumentos, e não pela imposição de poder de um sobre o outro, oportunizando a todos indistintamente o diálogo na exposição de suas ideias. O presente projeto acontece numa escola da rede estadual de Feira de Santana com os pais de estudantes da escola visando despertar nestes o gosto pela leitura de variados gêneros textuais, de maneira que os mesmos possam desenvolver um olhar crítico e investigativo acerca da realidade em que vivem, destinando-se a promover uma aproximação destes com a leitura de textos considerados simplórios até a leitura dos clássicos da literatura universal. A concretização da proposta acontece por meio de encontros quinzenais de leitura entre pais e educadores, cuja leitura seja realizada antecipadamente pelos membros do grupo e também em conjunto, de forma compartilhada. Na sequência ocorre a manifestação dialógica das impressões do texto, destacando os aspectos que mais se evidenciam a partir das experiências de vida de cada um. A partir das discussões que são suscitadas em razão de cada leitura feita, os membros têm a oportunidade de expor suas vivências e expectativas de vida, fazendo com que o grupo se torne mais integrado, favorecendo aos educadores uma aproximação maior do contexto social, histórico e cultural em que vivem os estudantes e suas as famílias. A cada encontro, uma nova leitura será sugerida, a qual deverá ser realizada no ambiente familiar, em conjunto e, com isso, o hábito de leitura poderá ser despertado também nos demais membros da família, inclusive nos estudantes. Palavras-chave: TERTÚLIA; PAIS; DIÁLOGO; APRENDIZAGEM Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 1. APRESENTAÇÃO A leitura é uma atividade que, para além da decodificação, possibilita ao ser humano a oportunidade de enveredar por caminhos impensados, se autoconhecer, bem como compreender a sua função no contexto social, histórico e cultural do qual faz parte. Nesta perspectiva, a Tertúlia Literária, que é uma atividade cultural e educativa, em que pessoas se reúnem para ler um livro – clássico da literatura nacional ou universal, ou mesmo um texto mais curto, a exemplo de um conto ou uma crônica – se torna uma atividade de leitura dialógica propícia para incentivar o hábito da leitura e o desenvolvimento do senso crítico. Partindo para a observação do contexto de leitura e aprendizagem de uma escola pública estadual, o Colégio Estadual Governador Luiz Viana Filho, situada na cidade de Feira de Santana na Bahia, cujo alunado é, predominantemente, carente e residente em bairros populares, percebemos que a prática de leitura por parte dos estudantes é precária e necessita de estímulos que partam da escola e também da família. Sabemos que muitos fatores levam a essa realidade, mas à escola, cabe a tarefa de 364 buscar estratégias para tentar dirimir as dificuldades e propiciar aos estudantes a oportunidade de alcançar níveis de aprendizagem mais elevados e satisfatórios. Nesse sentido, Girotto (2007) considera que a leitura torna-se uma habilidade social fundamental no atual contexto, tanto para a formação da capacidade de nele se movimentar, como para a construção de possibilidade de transformação do contexto e das interações. Mais especificamente, defende-se a ideia da prática compartilhada de leitura de literatura e reflexiva enquanto aprendizagem dialógica. (GIROTTO, 2007. p. 19).clássica universal ou nacional ser o lugar da prática dialógica Assim, sentimo-nos instigados a desenvolver este trabalho. Com ele, pretendemos chegar a um dos cernes do problema, ou seja, a falta de incentivo à leitura no ambiente familiar, fato que causa consequências negativas com relação ao hábito da leitura para todos os sujeitos e compromete as demais aprendizagens. Pensamos num projeto de leitura que fosse significativo para os pais, a leitura de uma forma competente, onde as particularidades fossem respeitadas, focando a Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. leitura como uma experiência interpessoal e dialógica. Nesse sentido concordamos que a leitura é um processo pessoal e particular, onde cada indivíduo tem sua própria experiência diante do texto lhe dando sentido. Nossa proposta consiste no desenvolvimento de encontros de leitura, denominados Tertúlia Literária. Estes encontros acontecem quinzenalmente na biblioteca da escola e são organizados de forma que professores e pais dos estudantes leiam textos de variados gêneros e, a partir da leitura que deve ser realizada durante o encontro e também antes dele, ou seja, ainda em casa juntamente com os seus familiares, possa trazer suas contribuições pessoais expondo suas ideias, suas experiências de vida, suas expectativas, enfim, tudo o que for pertinente e despertado a partir da leitura do texto. Para Magnani (1989, p. 102) leitura e literatura são formas de conhecimento, tornando-se necessário pensá-las do ponto de vista do seu funcionamento sóciohistórico; pois a leitura não é um ato isolado de um indivíduo ante ao escrito de outro indivíduo. O gosto se forma e a aprendizagem escolar da leitura da literatura desempenha importante função no desenvolvimento sendo que: O texto literário propõe uma ação na esfera imaginativa, criando uma nova relação entre situações reais e situações de pensamento, ampliando, assim, o campo de significados e auxiliando na formação dos planos da vida real (MAGNANI, 1989, p. 104) A formação do gosto não acontece de forma simples– é alguém que participa ativamente deste processo – que vai romper com o estabelecido, refletir a sua prática, desmistificar os modelos de leitura estabelecidos; buscar uma nova percepção da linguagem, e que vão se integrando ao processo em desenvolvimento, pela própria superação das novas necessidades que vão surgindo na busca da superação de uma prática, uma vivência de sala de aula e de vida, nesse movimento de interpretações que é a linguagem como poderosíssimo recurso da expressão e da comunicação. 2. A PRÁTICA DA LEITURA NUMA PERSPECTIVA DIÁLOGICA 365 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O exercício da leitura é uma das principais formas de aquisição de conhecimentos, de desenvolvimento de valores, de conscientização, uma vez que os sujeitos têm a oportunidade de enxergar a si mesmo, ao outro e o mundo em que vivem de maneira mais intensa, mais viva e muito mais reflexiva e crítica. A fruição, no entanto, entre todas as benesses advindas do hábito de ler, se destaca como sendo a grande e principal função da leitura, pois é através dela que as pessoas adentram em um universo jamais conhecido. Todavia, ler parece não representar algo comum na rotina da população brasileira, de modo que as pesquisas apontam para um número baixíssimo de livros lidos anualmente, por habitante, e ainda, para um grande déficit no que se refere à proficiência leitora. Tudo isso se levarmos em conta países importantes social e economicamente, como é o caso do Brasil. Precisamos mudar esse panorama com práticas de leitura que transformem os indivíduos e possibilite a igualdade no acesso às informações de forma efetiva. 2.1. A LEITURA NA HISTÓRIA 366 No transcorrer da história, o contato com a leitura sempre pertenceu aos que detinham o poder. No período medieval, por exemplo, a leitura era privilégio de poucos, especialmente do Clero. Somente a partir da ascensão da burguesia, em virtude do atendimento ao mercado de trabalho que então se formava, a leitura começou a se popularizar, ainda que com um caráter fortemente moralista. Infelizmente, ainda hoje, sabemos que a leitura não faz parte do cotidiano dos brasileiros, como também conhecemos as razões que levam a esse lamentável fato. É oportuno, também, lembrarmos que a leitura funciona como um fator de ascensão para as classes economicamente desfavorecidas. Já para as classes privilegiadas ela funciona como uma forma de expressão que envolve prazer, conhecimento e status. E que o estímulo à leitura deve permear a trilha educativa como forma de desenvolver no indivíduo habilidades e competências críticas, bem como de torná-lo consciente da sua atuação na sociedade. Mas, além disso, deve atender a uma necessidade inerente ao homem, de sentir prazer, de degustar palavras, as quais, potencialmente, têm o poder de preencher lacunas na alma humana e ainda de transformá-la. Temos na escola em termos de leitura o texto imposto e não proposto em que sua mensagem deve ser acatada e nunca contestada pelo leitor. Segundo Zilberman Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. (1984, p. 27) é a leitura que vem trazer a possibilidade de ruptura com a ideologia dominante para o jovem e a criança que tem a expectativa, e espera através do ensino tornar-se um sujeito consciente e atuante, gerando assim a sua integração no contexto socioeconômico e cultural. Nossas escolas, no entanto, têm atendido muito mal a essa questão, haja vista os números escabrosos de leitores “fúteis” e de não leitores. Sendo assim, fica explícito, que o papel dos profissionais da educação não vem sendo cumprido com eficácia no sentido de desenvolver aptidões ou gosto pela leitura, o que implica em uma sociedade desinformada e desatenta para questões que a cercam, e que, poderiam ser alteradas se tivéssemos cidadãos esclarecidos e politicamente ativos. A prática de uma atividade leitora favorece a formação de leitores competentes, que consigam penetrar em um texto, desvendando-lhe as ideias subjacentes, chegando até mesmo a extrapolá-las e posicionar-se criticamente diante das noticias dos vídeos, dos programas televisivos e os textos que circulam na mídia. Ser leitor, segundo Cordeiro (2004, p. 100) significa ter tido ao longo da vida, oportunidades de práticas leitoras, capazes de desenvolver hábitos e gosto pela leitura, além de condições materiais de acesso aos livros. Nosso intuito, como professores de língua portuguesa, com a tertúlia literária é favorecer um processo de perspectiva de vida para além de uma partilha de opiniões, mas promover às pessoas que estavam ali uma perspectiva de leitura como criação de sentido na expansão de suas culturas, vinculando literatura e mundo, parafraseando Freire literatura e leitura de mundo. E Maciel (2011) reforça nosso pensamento dizendo que Os círculos de cultura ganham, nesse sentido, uma inesperada e inovadora dimensão dialógica. O reconhecimento de uma cultura local ganha forma pelas inúmeras experiências de diálogos entre pessoas e culturas. Desloca-se o eixo do educacional para o cultural. O ensinar e o aprender expressa agora valores culturais em uma espécie de tradição inovadora. Esse deslocamento permitia aos educando mais do que a leitura da palavra em si mesma, permitia a leitura do mundo e o reconhecimento de uma cultura própria. MACIEL (2011, p. 8). 367 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. É o momento da contextualização das culturas presente nesse espaço pela expressividade da palavra que é dada a cada membro, quando compartilha o lido, quando relatam suas experiências que o texto suscitou, com caráter transformador, valorizando o saber popular num diálogo igualitário. 2.2 A TERTÚLIA LITERÁRIA A tertúlia literária dialógica parte do principio de que a leitura deva ser compreendida como parte de um processo mais amplo, o letramento - àqueles das camadas populares que não tiveram acesso, ao menos parcialmente, ao mundo letrado - que é um processo mais abrangente no processo de apropriação dos usos das diferentes práticas de leitura nas mais diversas práticas sociais, traz uma dimensão de emancipação ao indivíduo, pois estes que possuem um saber que não é valorizado pelas classes mais abastadas da sociedade, entre outras coisas, daria oportunidade a estes últimos. Conforme Freire, possuem um conhecimento que ultrapassa as fronteiras das letras, o conhecimento da vida, as experiências sofridas pela 368 exclusão. Para Zilberman (1984, p.26) ler possui um vínculo com a linguagem, pois, o ato de ler se configura como uma relação privilegiada com o real, já que engloba, tanto um convívio com a linguagem, como o exercício hermenêutico de interpretação dos significados, em que, nas vivências do dia-a-dia o leitor vai construindo uma representação mental do mundo, o leitor intervém de modos diversos com o texto, interage , preenche lacunas, constrói sentidos. Na Tertúlia Literária há a partilha da leitura da realidade de cada um, em que são expostos e respeitados seus depoimentos do que a leitura partilhada pôde lhe lembrar ou relembrar, ou que a leitura fez-lhe emergir na prática diária. Seus dizeres das lutas de um povo que foi abortado o direito de estudar em detrimento da necessidade financeira ser preponderante para sobrevivência. São depoimentos de suas lutas para além das paredes daquele espaço que acontecem, são dizeres que remetem às relações histórico-sociais. É essa população que teve excluído os direitos básicos da existência humana e dos princípios da formação de sujeitos críticos. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Trazemos alguns princípios da aprendizagem dialógica que orienta a atividade de Tertúlia Literária, conforme Girotto & Mello, estão apoiadas nas elaborações de Habermas, sobre Ação Comunicativa, e Freire, sobre dialogicidade. Eles são: 1) Diálogo Igualitário: o que se considera é a função de validade de um argumento e não a posição de poder das pessoas que estão na interlocução; assim todos (as) podem aprender igualmente; 2) Inteligência Cultural: todas as pessoas possuem inteligência cultural, a pessoa tem que ter oportunidades e condições de demonstrá-las em interações; nesse sentido, as distinções acontecem pelos suas diversos desenvolvimentos ocorridos frente a diferentes entornos; a desigualdade decorre da valoração que a sociedade faz de uns conhecimentos, desvalorizando os demais. Cabe romper com esse círculo vicioso e dialogar com base na inteligência cultural. 369 3) Transformação: as relações entre as pessoas e seus entornos são transformadas a partir da aprendizagem dialógica. Como afirma Paulo Freire (2004, p.28): “as pessoas não são seres de adaptação, mas de transformação”... “Se a educação não pode tudo, sem ela não há transformação”. 4) Dimensão Instrumental: os estudos de Flecha nos permitem entender que a capacidade de seleção e processamento de informações é o melhor instrumento cognitivo para se desenvolver na sociedade atual; portanto, a aprendizagem dialógica e a reflexão permitem a aprendizagem instrumental de conhecimentos e habilidades necessários para operar transformações e para agir no mundo. 5) Criação de sentido: o sentido ressurge quando a interação entre as pessoas é dirigida por elas mesmas, ou seja, a criação de sentido com outras pessoas onde se estabelece um diálogo horizontal. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. É nesse sentido que este trabalho mostra-se pertinente, haja vista a necessidade de que sejam tomadas medidas interventivas que visem, sobretudo, oferecer subsídios para a formação de leitores competentes, que consigam penetrar em um texto, desvendando-lhe as ideias subjacentes, que desenvolvam a sua criticidade e se tornem ativos na sociedade da qual fazem parte. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebemos durante os encontros iniciais das Tertúlias Literárias que os pais em sua predominância mães - timidamente expunham suas falas, e provocamos para que se coloquem, sempre guiada por um mediador, que não se coloca como detentor da palavra, mas permite que os participantes coloquem seus argumentos e possibilita a todos participarem, indiscriminadamente, mediando também para que os que falam muito possam dar vez aos que pouco falam. Buscamos, nos encontros, sempre deixar os participantes bem à vontade e 370 recebemos com abraços calorosos, telefonamos antes dos encontros iniciais reforçando a data e horário e lembramos que podem chamar vizinhos e parentes para virem também participar. Algumas vezes os filhos - alunos da escola - também participaram. Em suas falas, alguns participantes confessaram que “não falavam, muitas vezes, por achar que não seriam bem aceitos, ou que seria uma bobagem o que poderiam dizer, ou sem importância”. Fica expressa uma atitude de opressão subjacente à fala por sentir-se inferior culturalmente, por não sentir-se capacitado suficientemente a ter o direito de falar. Isso remete ao item 1, Diálogo igualitário que é a validade do argumento e não a posição de poder das pessoas que falam. Ou sua inteligência cultural. Neste sentido, a Tertúlia Literária torna-se um momento e evento em que a aprendizagem dialógica e a reflexão permitem a aprendizagem instrumental de conhecimentos diversos. Uma aprendizagem que possibilite, segundo Freire “uma conscientização do analfabeto, a libertação do oprimido que hospeda o opressor”, propondo uma nova relação social, trazendo para o espaço escolar a realidade dos Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. alunos pela fala dos pais ou parentes, no desvelamento do texto, na construção do saber partilhado. Por isso a tertúlia vai muito mais além do que uma simples roda de leitura, é uma forma de dizer-se. REFERENCIAS CONFAPEA. Tertulias Literarias Dialogicas. Barcelona, Espanha: mimeo, 1999. CORDEIRO, Verbena M. R.; SOUZA, Elizeu C. (orgs.) Memoriais, literatura e práticas culturais de leitura. Salvador: EDUFBA, 2010. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa I: Racionalidad de la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 2001. ________. Teoría de la Acción Comunicativa II: Crítica de la razón funcionalista. Madrid: Taurus, 2001. FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. 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O texto emergiu de diálogos iniciais entre orientando-orientadora no percurso investigativo da construção de uma tese de doutorado que tem como objeto de estudo o Sensível na formação leitora e docente. A investigação se localiza entre dois eixos temáticos –leitura e formação – em diálogo com referenciais teóricos no campo da autobiografia, do saber sensível e da experiência. De nossa perspectiva, a constituição do leitor-professor se inscreve numa história de vida, em uma trajetória pessoal, social e cultural: passa por um retorno do sujeito sobre si – o ver – o olhar para si mesmo, para suas vivências, acontecimentos; o rever – relembrar fatos, contextos, acontecimentos e situações; e o transver – ver-(se) de outro modo, reinventar-(se), transformar o vivido em experiência, mudar percepções, concepções e o sentimento de mundo; criar e recriar-se. No dizer do poeta (Manoel de Barros): O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê – ou seja, pensar a formação do sujeito como um movimento que perpassa pelo ver (o olhar), o rever (relembrar) e o transver (imaginar). Interessa-nos pensar a constituição leitora como um processo que envolve sentidos, lembranças, memórias, acontecimentos e afetos, demarcando trânsitos e deslocamentos entre o texto lido e o contexto do sujeito, entre a experiência provocada pelo texto e a própria experiência do leitor-professor. A perspectiva de investigar como o sensível constitui e afeta o leitor-professor nos remete ao Elogio da Razão Sensível (MAFFESOLI,1998) no sentido de um paradigma de ciência que agrega a sensibilidade, o cotidiano, a narrativa, a metáfora e o imaginário. Assim, a leitura se mostra como experiência da singularidade e da pluralidade, como abertura ao desconhecido, ao acontecimento da existência, processo nem sempre possível de racionalizar, ou seja, de deixar de fora emoções, memórias e devaneios. O devaneio, na perspectiva de Bachelard (2009), seria esse gesto de voar fora do real, de sair da rotineira noção de tempo e realidade, de suspender as certezas e de se deslocar para outras dimensões afetivas, temporais e imaginárias. Esses movimentos podem potencializar o aprofundamento da própria existência, no modo como a leitura repercute na constituição do sujeito e nas ressonâncias que produz na reinvenção de si e da realidade. PALAVRAS-CHAVE: Sensível; constituição do sujeito; leitor-professor. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O presente texto busca interrelacionar inspirações teóricas e fruições estéticas que nos levem às veredas do Sensível na constituição leitora. Assim, decorrendo de diálogos iniciais entre orientando-orientadora, este trabalho inaugura a escrita-narrativa de um percurso investigativo: a construção de uma tese de doutorado que tem como objeto de estudo o Sensível na formação leitora e docente. Na verdade, a escrita deste texto se configura como vereda de uma travessia maior: desdobramento de experiências e encontros em diferentes espaços acadêmicos, profissionais e poéticos da minha existência, nos meus modos de ser: homem-humano, sujeito-travessia, professor, estudante, pesquisador e leitor. Leituras e conversas que instigaram minha imaginação. Interrogações. Experiências que foram deslocando minha existência acadêmica, profissional e pessoal. Pessoas no meio do caminho: Manoel de Barros (o poeta), professora Cristina D’Ávila, professor Elizeu Clementino, e, principalmente, professora Verbena Cordeiro12. Gente que me inspira a "permanecer nos espaços do rio", ou ir: "nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro, o rio..." (Guimarães Rosa ). Nesta travessia rumo ao ingresso no doutorado, outras margens emergiram. 374 Novos percursos: criativos, inventivos e autorais. Percursos que envolveram espaços vastos, intensos desejos, riscos, silêncios, movimentos desconhecidos, rotas desafiadoras e misteriosas. Era horizonte-futuro. O rio foi desenhando outros contornos: não previstos, imaginados. Foi preciso uma abertura a sensibilidade poética. A presença do Manoel de Barros – em mim, ou: o encontro com sua poesia se deu, primeiramente, através das redes sociais, especificamente no facebook, quando tive contato com trechos de seus poemas, a exemplo da curta metragem Histórias da unha do dedão do pé do fim do mundo, ou ainda com o documentário Só dez por cento é mentira: a desbiografia oficial de Manoel de Barros. A poesia contribuiu para aguçar ainda mais a minha sensibilidade, ou: o sertão leitor sensível. O texto-vídeo Histórias da unha do dedão do pé do fim do mundo, por exemplo, é uma curta metragem que faz peraltagens com as palavras e cria situações que podem parecer absurdas para os adultos, mas não para as crianças. Num diálogo 12 Minha orientadora no Doutorado em Educação – PPGEduc-UNEB - co-autora deste texto. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. lúdico entre textos de Barros e desenhos de Evandro Salles, a animação vai construindo imagens e sentidos inusitados por meio da brincadeira com as coisas e com as palavras: Tem um livro sobre águas e meninos. Gostei de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água O mesmo que criar peixes no bolso. O menino era ligado em despropósitos. (...) Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira No escrever o menino viu que poderia ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo O menino aprendeu a usar as palavras Viu que podia fazer peraltagens com as palavras E começou a fazer peraltagens (Manoel de Barros, 2013, p. 453). 375 Essas experiências sensíveis de leitura me colocavam em estado de poesia. O estado poético possibilita um olhar de encantamento na relação com a vida, com o mundo, ao tempo em que faz desbordar “as in-tensidades e a policromia dos Sentidos que plasmam o imaginário e que compõem as texturas estéticas da plasticidade da condição humana” (ARAÚJO, 2008, p. 126). Em relação ao documentário Só dez por cento é mentira, a (des) biografia oficial de Manoel de Barros, fui afetado pelo desejo de voar fora da asa (Manoel de Barros, de me tornar um leitor-pesquisador-escritor ainda mais livre, mais criativo, mais inventivo, mais autoral. Isto inspirava a possibilidade de romper, a partir de uma imaginação criadora e de um pensamento sensível, com as formas sisudas na produção de conhecimento instituídas pela ciência moderna. Outras experiências formativas também foram importantes nesse sentido. Assim, em 2014, ainda condição de aluno especial no Doutorado em Educação – PPGEduc-UNEB, participei das aulas do componente curricular Autobiografia: abordagem teórica e metodológica e do componente curricular Abordagem Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. (Auto)biográfica e Formação de Professores e Leitores, o que me possibilitou o contato com o professor Elizeu e professora Verbena. Lembro-me que nessas aulas, éramos desafiados a voar fora da asa: era preciso um pensamento singular, inventivo e autoral, nos modos de ser pesquisador e leitor. Neste mesmo ano, participei do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Ludicidade – coordenado pela professora Cristina D’Ávila – no qual tive contato com a discussão do Sensível em Maffesoli. Careço dizer, portanto, que minhas implicações com o referido objeto de estudo – o sensível na formação leitora e docente – são decorrentes das referidas experiências: movimentos formativos que ampliaram meu horizonte de investigação sobre a formação dos estudantes de Letras, mobilizando outras inquietações e questões de pesquisa, antes centradas na produção das identidades de estudantes de Letras13. Nesse horizonte de investigação, busquei localizar esta pesquisa entre dois eixos temáticos – leitura e formação, em diálogo com referenciais teóricos no campo do Sensível, da (Autobiografia) e da Abordagem Experiencial. A aproximação com essas abordagens se dá em/por diferentes perspectivas: 376 epistemológica, teórica, metodológica e estilística. O estudo se configura em um modo de fazer ciência/pesquisa que se permite surpreender com a trajetória que se mostra, com a vida que é, com um sujeito que (se) diz, próprio de uma razão aberta e sensível - que não se aparta da experiência (estética e estésica) que constitui o sujeitoprofessor-leitor e suas trajetórias formativas. A temática do Sensível torna-se relevante à medida que o cenário educacional emergente passa por um processo de mudanças epistemológicas, teóricas e metodológicas, cuja transição aponta movimentos de ruptura com os pressupostos da ciência moderna que coloca a racionalidade técnica e a objetividade em detrimento da experiência (do) sensível. Nesse contexto de ruptura paradigmática, valoriza-se um saber sensível que permita um retorno à subjetividade humana, à sensibilidade, à criatividade, nas múltiplas dimensões que constitui o humano, tendo em vista romper com uma ciência que se construiu fora do sentido de uma razão sensível (MAFFESOLI, 1998). Sendo assim, 13 Projeto de Pesquisa apresentado na seleção para aluno regular do PPGEduc 2014. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Para além da lógica racional que marcou a modernidade, a vida social pode repousar sobre o compartilhamento de um não-lógico que não faz menos sentido. As numerosas participações afetuais, emocionais, que pontuam a vida diária, pedem classificação nessa rubrica (MAFFESOLI, 1998, p. 148). O ato de pensar é aqui abordado a partir da perspectiva do saber-sensível, no sentido de ruptura com modelo de saber-razão instituído pela ciência moderna, cujos pressupostos apartam a mente do corpo, o sujeito do conhecimento, a subjetividade da objetividade. Nesse movimento de ruptura, entende-se que “produzir sentido, interpretar a significância, não é uma atividade puramente cognitiva, ou mesmo intelectual ou cerebral, é o corpo, esse laço de nossas sensibilidades, que significa, que interpreta” (DUARTE, 2000, p. 136). Do mesmo modo, o pensar não significa apenas raciocinar, calcular ou argumentar, mas dar sentidos ao que somos, ao que nos acontece (LARROSA, 2002), plasmando, assim, num dizer redundante, uma experiência autobiográfica sensível. O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê! Esse trecho extraído de um poema do Manoel de Barros configura-se como uma metáfora para pensar a formação do sujeito. Um movimento que perpassa pelo ver (o olhar), o rever (relembrar) e o transver (imaginar). Ou num outro modo de dizer: a constituição do professor-leitor se inscreve numa história de vida, em uma trajetória pessoal, social e cultural, perpassa por um processo do retorno do sujeito sobre si – o ver – o olhar para si mesmo, para suas vivências, acontecimentos; o rever – relembrar fatos, contextos e situações; e o transver – ver-(se) de outro modo, reinventar-(se), transformar o vivido em experiência, mudar percepções, concepções e o sentimento de mundo, criar e recriar-se. Interessa pensar a constituição leitora como um processo que envolve sentidos, lembranças, memórias, acontecimentos e afetos, demarcando trânsitos e deslocamentos entre o texto lido e o contexto do sujeito, entre a experiência provocada pelo texto e a própria experiência do leitor-professor. Experiências que se dão no movimento da vida, da existência humana, nos processos formativos do leitor-professor. 377 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Neste percurso, algumas perguntas investigativas emergem: Como a experiência sensível de leitura constitui e afeta o leitor-professor? Como a leitura se articula a vida e a existência? Como a leitura repercute na constituição do sujeitoleitor-professor e nas ressonâncias que produz na reinvenção de si e da realidade? Ou ainda outras reflexões: na contemporaneidade, qual o lugar da experiência, da sensibilidade, da subjetividade, da estesia, do estético, da imaginação criadora, da metáfora, da invenção, do devaneio? No cenário contemporâneo, marcado pelo excesso da informação e da opinião, do pragmatismo, da falta de tempo, do excesso de trabalho, que experiências sensíveis de leitura são possíveis? O Leitor-professor contemporâneo quando experimenta a fruição da sensibilidade faz um furo no sujeito da Ciência Moderna, um furo no rigor método (lógico) em relação ao ato de ler. Quem seria esse sujeito-leitor-professor? Um sujeito epistêmico, com subjetividade? Um sujeito de sensibilidades? Um sujeito fragmentado que enuncia vários eus para dizer de si? Um sujeito que inventa para se conhecer? Limites borrados, porosidade das fronteiras. Não mais na perspectiva de 378 um sujeito que se mostra pleno, verdadeiro, essencializado, completo (CORDEIRO, 2008). Quer dizer: uma autobiografia que não acontece apenas na ordem dos acontecimentos cronológicos e lineares, até porque a vida vivida não acontece assim. O sujeito sai da lógica de uma ordem temporal, psicológica, faz rasuras de si (CORDEIRO, 2008). Deixa um vazio. Essa mirada epistemológica demarca rupturas: a (escrita da) vida não como uma narrativa sistemática, conforme o modelo canônico de uma biografia. Isto estabelece, de algum modo, relações com discussões que foram tecidas na aula da disciplina “Abordagem (auto)biográfica e formação de professores/leitores14”, especificamente da noção de biografema proposta por Barthes. Essa perspectiva ampliou meu horizonte compreensivo sobre a vida/experiência narrada/escrita: porque não se trata mais de pensar a vida apenas numa concepção majoritária de biografia – uma escrita sistemática, linear, histórico-cronológica, mas de pensá-la também desde a perspectiva da pulverização, da dispersão, da fragmentação e da incompletude do sujeito, ou: vidas que se engendram e tornam a biografia sempre 14 Quando da minha participação como aluno ouvinte, no PPGEduc, UNEB. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. aberta a novos sentidos e significações: o eu é uma invenção constante em seu devir (FIGUEREIDO, 2013). A leitura – leia-se a constituição do leitor - para além de um ato racional, meramente cognitivo, ou de apropriação teórica e conceitual; para além de um modo de vida contemporâneo – prático e utilitarista - que dá visibilidade a informação. A perspectiva é ampliar a noção de leitura centrada num processo lógico-formal de compreensão e interpretação, para dá vazão à instância do simbólico, ao percurso subjetivo e singular do leitor, pela via do saber, da narrativa, da sensibilidade e do imaginário. A leitura como experiência sensível 15, como um processo mais humano, mais encarnado: o existir humano, do ser-estar sujeito no mundo. Nesse jogo de se enfatizar o caráter problemático e experiencial da leitura, impõe-se a necessidade de desnaturalizar o saber do senso comum e o paradigma do processamento da informação que restringe a leitura à decifração e à compreensão do texto escrito (KASTRUP, s.d). Conforme ressalta Benjamin (1987), a informação – como sendo uma nova forma de comunicação – tem mais visibilidade na sociedade atual, o que provocou uma crise na narrativa: Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que nos acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. Nisso Leskov é magistral. (Pensemos em textos como a Fraude, ou a Águia branca.) O extraordinário e o miraculoso são narrados com maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio atinge uma amplitude que não existe na informação (BENJAMIN, 1987, p. 23). Esta perspectiva, embora demarque sua singularidade, não desconsidera as múltiplas dimensões que constituem o ato de ler: Leitura como decodificação; Leitura como prática social, Leitura como uma ação política do homem sobre o mundo; Leitura como uma forma de sabedoria; Leitura como um método; Leitura como actividade voluntária; Leitura como atividade terapêutica (CARLOS, 2009). 15 379 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A leitura enquanto experiência está para além da noção de leitura enquanto aquisição de informação ou de acumulação. Está para além da perspectiva de um exercício cultural ou pedagógico, ou do ócio. Centra-se na subjetividade do leitor: o leitor está aberto em sua relação com o texto, vai ao encontro do texto, deixa se afetar, transformar-se. No ato de ler, a vida se inscreve: ou seja, o leitor põe em jogo processos autobiográficos que contribuem para significar o próprio texto ou mesmo ressignificar o vivido. Na leitura como experiência de formação deixamo-nos afectar (afectos) pela vivência que o texto nos dá através da sua abertura: trazemos para a nossa vida uma alteridade que nos interpela, transformando-nos em escritores e leitores na nossa existência; (re)escrevendo a vida (autobiografando-nos), fazendo obra mediante fracturas e transgressão dos modelos imobilizantes no interior dos quais quotidianamente vivemos. Transformando-se pela leitura, os sujeitos abrem-se à transformação do mundo, à sua própria configuração estética (CARLOS, p. 150). 380 A leitura seria, nesse contexto, um meio, uma possibilidade formativa para o sujeito pensar e sentir por si mesmo, de maneira mais singular e autoral; ou ainda como espaço de formação e transformação das sensibilidades; um encontro consigo ou com a alteridade que o constitui (LARROSA, 2011). O sensível na formação leitora pode se caracterizar, nesse contexto, como uma forma de resistência ao excesso de informação e contra o desperdício da experiência que constituiu a modernidade. Cabe ressaltar que a leitura enquanto experiência sensível não se dá em todas as formas e atos de ler, até porque a leitura consiste numa atividade com várias facetas; é complexa, plural e se desenvolve em várias direções (MANCINI, 2013). Sendo assim, não configura todo o processo de formação do leitor, mas é parte constitutiva da subjetividade leitora, potencializadora do devaneio, do pensamento inventivo. A perspectiva de investigar como o sensível constitui e afeta o leitor-professor remete ao Elogio da Razão Sensível (MAFFESOLI,1998) no sentido de um paradigma de ciência que agrega a sensibilidade, o cotidiano, a narrativa, a metáfora e o imaginário. Assim, a leitura se mostra como experiência da singularidade e da Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. pluralidade, como abertura ao desconhecido, ao acontecimento da existência (Larrosa, 2011), processo nem sempre possível de racionalizar, ou seja, de deixar de fora emoções, memórias e devaneios. O devaneio, na perspectiva de Bachelard (2009), seria esse gesto de voar fora do real, de sair da rotineira noção de tempo e realidade, de suspender as certezas e de se deslocar para outras dimensões afetivas, temporais e imaginárias. Esses movimentos podem potencializar o aprofundamento da própria existência, no modo como a leitura repercute na constituição do sujeito e nas ressonâncias que produz na reinvenção de si e da realidade. O leitor, numa relação mais livre, mais sensivelmente e subjetivamente implicado com o texto, pode encontrar possibilidades de voar fora da asa: ou seja, de escapar ao enclausuramento das fórmulas prontas. Isso seria, no dizer de Maffesoli (1998, p. 29), um pensamento que permite entrever a emoção, o sofrimento, o cômico, que é o próprio de uma vida que não se reconhece no esquema, preestabelecido, de um racionalismo de encomenda (MAFFESOLI, 1998). A ênfase posta sobre as experiências sensíveis é uma boa maneira de reconhecer os percursos subjetivos e singulares que integram as histórias de leitoresprofessores, o que pode propiciar descobertas de múltiplos e inesperados caminhos para a formação pessoal e profissional do leitor-professor (CORDEIRO, 2008). De tudo, fica o aprendizado mais bonito: a gente carece não apenas de ler o mundo ou as palavras no sentido de interpretar-compreender, a gente carece também de desver o mundo, as palavras, para encontrar novas coisas de ver, novas possibilidades de se dizer. Os deslimites da palavra dão ao leitor um novo jeito de olhar o mundo, possibilitam um exercício de desautomatizar o olhar, a ação, e transformar o real a partir de uma imaginação poética: transver o mundo, a realidade, a si mesmo. Seria uma maneira de sair do enfado, de expulsar o tédio, de ampliar a realidade? de reinventar a si mesmo e a vida? A gente nem carece de ser poeta para fazer essas coisas: nas veredas da leitura, o ser-tão sensível. REFERÊNCIAS 381 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. ARAÚJO, Miguel Almir de Lima de. Os sentidos de sensibilidade: sua fruição no fenômeno do educar. Salvador: EDUFBA, 2008. BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. BARROS, Manoel de. Menino do Mato. São Paulo: Leya, 2010. BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2013. CARLOS, Elter Manuel. Palavramundo: a leitura como experiência de formação. Dissertação de Mestrado em Filosofia da Educação, Faculdade do Porto, 2009. CORDEIRO, Verbena Maria Rocha. De caso com a leitura. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 43, n. 2, p. 75-78, abr./jun. 2008 CONTRERAS DOMINGO, José y FERRÉ, Núria Pérez de Lara. La experiencia y la investigacion educativa. CONTRERAS, José y Lara, Núria Pérez de (comps). Investigar la experiencia educativa, Madri, Morata, 2010. DUARTE JUNIOR, João Francisco. O sentido dos sentidos: e educação (do) sensível. Curitiba: Criar Edições. 382 LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade em educação. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz, v.19, n.2, p.04-27, jul/dez , 2011. MANCINI, Flávia Griep. O valor simbólico da leitura: cartas auto-biográficas de leitores professores. Tese de Doutorado, Pelotas, 2013. MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. Só dez por cento é mentira: a desbiografia oficial de Manoel de Barros. Direção: Pedro Cezar. Produção: Pedro Cezar, Kátia Adler, Rafaela Treuffar e Lully Villar. Roteiro: Pedro Cezar. Depoentes: Bianca Ramoneda e outros: Artezanato Eletrônico, Vite Produções, Sarapuí Produções Artísticas, 2009. UMA CIDADE DA MEMÓRIA E AS MEMÓRIAS DE SALVADOR NAS NARRATIVAS DE CARLOS RIBEIRO Milena Guimarães Andrade Tanure PPGEL-UNEB [email protected] RESUMO A presente pesquisa tem como objeto a produção literária de Carlos Ribeiro e desenvolveu-se a fim de analisar como, a partir de representações do espaço urbano, o texto literário desse escritor baiano é capaz de engendrar a leitura de memórias subjetivas e coletivas. Partindo do conceito de memória, as considerações se desenvolvem no intuito de inventariar esse mapa memorialístico a partir das lembranças das personagens em uma cidade de Salvador da atualidade ou do passado. Demarcando um dos espaços da cidade de Salvador que se deixa representar em suas narrativas, analisamos o centro antigo da cidade. A análise fundamenta-se em autores, sobretudo, das áreas de antropologia e sociologia que analisam a categoria de memória. Para a categoria de nostalgia, tem-se a pesquisa de Marcos Natali. Tem-se, ainda, a historiadora Pesavento, cujas pesquisas voltavam-se, em especial, para a relação entre história, cidade e tempo. Pesavento coloca em cena uma natureza significativa dos espaços urbanos que está para além da materialidade física e, desse modo, estabelece uma clara relação entre história e literatura. Assim, a análise da obra de Carlos Ribeiro desenvolve-se a partir do entrecruzamento de tais leituras a fim de evidenciar o modo como a narrativa literária é capaz de revelar a relação entre memórias urbanas e humanas. PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Memória; Carlos Ribeiro; Cidade de Salvador APRESENTAÇÃO Carlos Jesus Ribeiro, nascido em Salvador no final da década de 1950, é um dos expressivos escritores baianos da contemporaneidade que têm a sua narrativa de vida relacionada com a narrativa da cidade que se faz representar em sua produção literária. Tal afirmativa se deve, em especial, por um entrelaçamento que é possível se estabelecer entre a trajetória e caminhos percorridos pelo escritor e as transformações dos espaços da cidade de Salvador que se deixam ver em suas narrativas. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Ainda criança, quando morava no Centro Histórico, mais precisamente no Tabuão, Carlos Ribeiro estudou na Escola Santa Tereza, no bairro Santo Antônio Além do Carmo. Em seu discurso de posse na Academia de Letras da Bahia (ALB), Ribeiro (2007) destaca que foi nesse local que empreendeu os seus primeiros passos no mundo das letras. Posteriormente, aos oito anos de idade, mudou-se com sua família para o bairro de Itapuã, espaço marcante em suas narrativas e recorrente em todos os seus livros em que a cidade de Salvador se faz presente. Nesse bairro, Ribeiro cursou o, à época, ginasial, no Colégio Estadual Lomanto Júnior, instituição de ensino na qual seu pai era vice-diretor e professor de português e francês. Novamente no Centro da cidade, nos bairros de Nazaré e na Praça da Piedade, concluiu o então segundo grau, nos colégios Central e Águia. Os espaços da cidade de Salvador se fazem expressivos em quase todas as suas narrativas. Esses nos quais o escritor empreendeu as suas primeiras caminhadas e vivenciou significativas experiências se revelam ainda mais marcantes em seus contos e romances. O Centro Histórico em que morou no início dos anos 1960, por 384 exemplo, representa o início de uma trajetória ficcional, conforme afirmou Ribeiro (2002, p.229) em texto de exposição da série Com a palavra o escritor: “Muito tempo antes de sequer sonhar em ser um escritor, eu já construía naquele espaço acanhado do apartamento, no Taboão, a minha obra, que era o meu próprio mundo, um mundo de horizontes largos e luminosos [...]”. A esse mesmo espaço que é revisitado e recriado em tantas de suas narrativas, Ribeiro retornou anos depois e a ele custou crer que naquele local decadente de paredes e pátios sujos coubessem tantas maravilhas. Ao relatar essa melancólica lembrança, Ribeiro (2002) faz alusão a uma passagem do livro Terra dos homens, de Exupery, na qual se retrata o parque em que se costumava brincar quando criança e se constata a impossibilidade de se voltar àquele espaço, uma vez que seria preciso não retornar ao parque, mas à própria infância. É por essa impossibilidade de reviver os espaços e experiências de um tempo passado, representados em muitas de suas memorialísticas narrativas, que Ribeiro (2002, p.229) afirma: Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Para falar de mim, preciso voltar àquele mundo maravilhoso que entretanto se perdeu para sempre (digo esta palavra com reservas, pois, como Ulrica, personagem de Borges, também penso que “sempre é uma palavra que não é permitida aos homens”). E, como não posso reencontrar aquele “tempo perdido”, só me resta, também agora, assumir essa ficção que teço sobre mim mesmo, procurando convencer-me – e a vocês – de que ela é real. Ribeiro (2002) relata que, no meado dos anos 1960, quando sua família se mudou para o bairro de Itapuã, começou a fazer as primeiras anotações em cadernos nos quais registrava vivências do dia-a-dia. As fantasias e realidades do mundo dos homens se faziam representar no papel, assim como as paixões amorosas que vieram e, de modo ainda embrionário, a realidade política e social do país. Nesse sentido Ribeiro (2002) afirma que nesse período ainda não tinha conhecimento das atrocidades oriundas da ditadura militar e acreditava que o Brasil era “um país que vai para frente”1. Somente anos depois o escritor se deu conta que era ele também vítima de um massacre silencioso, uma vez que teve de enfrentar, assim como grande parte de sua geração, um inimigo mais insidioso: a alienação e ignorância impostas por aquele sistema opressor. Como formação profissional, aos 17 anos, não pensava em ser escritor, mas tinha a noção de que o seu futuro se atrelava ao uso da palavra (RIBEIRO, 2002). Optou por cursar jornalismo na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), tendo concluído a graduação em 1981. Em toda sua narrativa é possível perceber o modo como o ficcionista é marcado pela sua constituição de jornalista, sendo por esse motivo que o escritor, amigo e confrade de Academia, Aleilton Fonseca (2002, p.222-223) afirma: Através de seus artigos, crônicas e contos publicados em livros, revistas e jornais, podemos observar que as suas atividades literárias e jornalísticas se interpenetram, de maneira que podemos sentir a presença do escritor no texto jornalístico e vice-versa.[...] Mas Carlos não é simplesmente um jornalista que se tornou escritor. Ao contrário, parece que a tendência para a literatura que o levou à área da comunicação. Ainda sobre a sua formação profissional, é relevante destacar que Carlos Ribeiro fez mestrado e doutorado, também na UFBA, mas no Instituto de Letras, voltando-se para a área da Teoria Literária e desenvolvendo os seus trabalhos a 385 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. partir da análise da lírica e da crítica social na obra do também escritor e jornalista Rubem Braga. Um sujeito contemporâneo e suas inquietações se fazem presentes na obra de Ribeiro, quer sejam nos contos ou nos romances. Por esse motivo Lígia Telles, ensaísta e professora da UFBA, na orelha do livro O chamado da noite, localiza a narrativa de Ribeiro em uma dada tradição ficcional: Carlos Ribeiro dá continuidade à tradição ficcional que situa o homem no cotidiano, sozinho em meio à multidão, dela extraindo, ao perambular pelas ruas de sua cidade, a matéria poético-narrativa, conforme o fizeram Baudelaire e Poe. Na voz que conta minúsculas aventuras, os heróis das grandes narrativas são substituídos pelos seres comuns que se movimentam quer pelo espaço exterior da cidade, quer pelo espaço interior da memória. Personagens vislumbrados pelo narrador no transitar diário da cidade grande – no caso, a cidade de Salvador – duram o tempo em que são capturados pelo olhar; personagens recuperados pela memória do narrador persistem, a despeito do escoar do tempo; personagens que habitam seus sonhos atestam um mundo de desejos projetados. Através de todos eles, delineia-se o perfil de um sujeito, na expressão da sua subjetividade, razão pela qual as pontas do território narrativo e do território lírico se tocam (RIBEIRO, 1997). 386 Nesse sentido, é válido sinalizar, ainda, que suas narrativas estão permeadas de aspectos memorialísticos que perpassam tanto por memórias individuais quanto coletivas. Cabe pensar, portanto, de que forma se apresenta para o leitor de Carlos Ribeiro uma escrita da memória que é subjetiva, mas também coletiva, uma vez sendo uma escrita da memória da cidade de Salvador. AS MEMÓRIAS DE UMA CIDADE O espaço da escrita da memória, seja ela autobiográfica ou não, é também o de criação e, nesse sentido, na publicação Com a palavra o Escritor, Ribeiro, ao afirmar que o relato sobre a sua constituição como escritor faria com que ele precisasse percorrer não só os caminhos da memória, mas também os do esquecimento, revela ter consciência disso. Ao procurar reconstituir os elementos que compõem a minha história, no trato com a palavra escrita, selecionando-os, discriminando-os, reorganizando-os, deparo-me com um território no Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. qual procuro discernir, muitas vezes inutilmente, as fronteiras entre a realidade e a imaginação. Rememorar, para mim, é, portanto, mais que qualquer outra coisa, tomar consciência do esquecimento, como um viajante que só tem consciência de que não conhece determinada região ao percorrê-la (RIBEIRO, 2002, p.228). No processo de criação em que o lembrar e o esquecer se relacionam, Ribeiro (2002) relata como uma de suas primeiras lembranças remete a um dos dias passados no antigo apartamento em que morou no Taboão, Centro Histórico de Salvador, nos anos de 1960. Na lembrança, retoma o seu antigo quarto e um dia em que um ruidoso som o levou à cozinha na qual sua mãe e a tia preparavam ago em um liquidificador. Ribeiro (2002) revela que, anos depois, sua tia lhe havia dito que naquela época ainda não havia liquidificador na casa, fato esse que o surpreendeu ao constatar que uma das suas primeiras e mais marcantes lembranças se relacionava com algo que não existiu. Como afirmou, espantou-se ao perceber que uma das mais antigas imagens da sua memória tratava-se de uma ficção, uma invenção. É em razão dessas constatações que Ribeiro (2002, p.229) diz: “Talvez possa afirmar, com razoável grau de certeza, que a minha ficção é o resultado da confluência de uma memória infiel com uma imaginação um tanto excessiva”. A partir dessas considerações podemos considerar uma escrita da memória um texto ficcional, assim como o texto ficcional é um escrita de memorialística. A análise da produção literária do escritor, para além de ater-se ao que há de real no texto ficcional, evidencia, não apenas memórias particulares do narrador ou personagem, mas o modo como a produção de Ribeiro se relaciona com a própria constituição e modificação de Salvador e como as memórias subjetivas se entrelaçam com a memória da cidade e demais cidadãos que nela constituíram suas lembranças. Na obra de Carlos Ribeiro é possível identificar uma escrita de si que, pela representação da cidade – lugar de diversas vivências – também se constitui uma escrita de memórias coletivas. Os seus contos e romances colocam em cena becos, casarões e ruas que apresentam uma simbologia diretamente associada às vivências experimentadas ao longo do curso da história urbana e da vida dos seus cidadãos. É válido destacar, assim, que o espaço ganha a sua natureza significativa a partir das situações que são nele vividas. 387 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Pensando a construção do lugar e da subjetividade humana, Duarte (2002, p. 75) afirma: A construção dos lugares é rica pois não diz respeito às pedras, mas às suas escolhas, sua organização, sua finalidade e sobre o amálgama etéreo que as une. Assim como a casa pode ser vista como síntese do processo de construção de um lugar e sua similaridade com a construção psicológica de seu construtor, a apropriação de espaços urbanos, potencialmente constituídos por um número maior de elementos, e, principalmente vivido coletivamente, faz-se pela vivência de seus lugares, que são construídos pelo uso. Tais espaços construídos pelo uso são retomados por Ribeiro e não colocam em cena locais constitutivos apenas de suas memórias, mas espaços que, de algum modo, dizem respeito às narrativas memorialísticas de diferentes sujeitos que se enlaçam por um mesmo eixo central: a representação de espaços significativos em suas vivências. A marca da cidade se faz presente em seu texto de diferentes formas. Nesse sentido, em seu discurso de posse na Academia de Letras da Bahia (ALB), Ribeiro 388 evidencia “que, em essência, permanece o menino que formou sua personalidade num mundo especial: a cidade de Salvador, Bahia”. (RIBEIRO, 2007, p.3). É essa cidade que se encontra marcante em suas narrativas. Ainda em tal discurso afirma: É nesta cidade privilegiada, nesta cidade que amo como se cada uma das suas curvas, pátios, varandas, colinas, sacadas, praias, dunas, árvores e esquinas, de alguma maneira misteriosa, fizessem parte de mim, que me flagro como alguém que subitamente percebe ter vivido muitas vidas. De cada uma delas pode-se trazer uma imagem: um quarto minúsculo e infinito, num velho apartamento do Centro Histórico, iluminado por réstias de luz, num remoto final de tarde, no qual um menino encontra-se, solitário, entre chuvas de flechas e répteis pré-históricos vagando entre as mobílias da sala de estar; um mar noturno, numa das 1001 noites míticas do bairro de Itapuã, de onde sopra um vento fresco que sacode os coqueirais numa noite qualquer dos anos 60; dunas alvas, tão remotas e improváveis, nas quais nós, heróis e príncipes de um reinado sem dono, nos lançávamos em aventuras mortais por entre túneis de mato e repastos de cajus e pitangas, mangabas e tamarindos (RIBEIRO 2007, p.3, grifo nosso). Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Na passagem, é nítida a percepção de como a constituição de si, a cidade e as memórias se entrelaçam e constituem uma única coisa por meio do ato de narrar. Em suas narrativas, a cidade antiga subsiste no homem contemporâneo do mesmo modo como o homem do passado se vê em uma cidade em constantes processos de modificação que lhe causam certo estranhamento. É por essa razão que Ribeiro revela sua escrita como meio de retomar esses espaços do passado: Cada dia fica mais distante aquele paraíso, da infância, aquele paraíso que, de alguma forma, todos nós buscamos reencontrar, mesmo que, muitas vezes, não nos demos conta disso. Aí está, pois, a razão de eu escrever: a de encontrar o caminho de volta à Terra Prometida, ao Éden, à Shangri-La, numa caminhada construída com símbolos, sonhos, invenção, memória e significados (RIBEIRO, 2002, p.236). Em Ribeiro, o homem está na cidade assim como a cidade está no homem. Há que se perceber, contudo, que isso não se dá apenas com aquele que, nas teias narrativas, conta a si, mas com todos aqueles que, de algum modo, se relacionam com os mesmos ambientes e, pela narrativa, rememoram espaços e as experiências neles experimentadas. Há que se destacar que, ao se representar os espaços físicos, constituem-se espaços da memória que significam não pela sua própria existência, mas pelas relações humanas que são nele travadas e as vivências que deixam marcas na própria cidade e na memória. Nesse sentido, Gomes (1999, p. 24) afirma: [...] indagar sobre as representações da cidade na cena escrita construída pela literatura é, basicamente, ler textos que leem a cidade, considerando não só os aspectos físico-geográficos (a paisagem urbana), os dados culturais mais específicos, os costumes, os tipos humanos, mas também a cartografia simbólica, em que se cruzam o imaginário, a história, a memória da cidade e a cidade da memória. Como elementos constitutivos do ser e do espaço, as lembranças do passado são retomadas nos contos de Carlos Ribeiro com um tom nostálgico que é característico em sua obra. Nessas retomadas memorialísticas, a cidade é apresentada enquanto local em que foram vividas saudosas experiências, tanto individuais, quanto coletivas. Nesse sentido, em entrevista concedida em 2008, relata: “Em 1981, escrevi um livro de contos, Já vai longe o tempo das baleias, que retrata a vida dos 389 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. moradores no bairro de Itapuã”. Do mesmo modo, em entrevista ao jornal A Tarde, em 1997, Ribeiro, falando de O chamado da Noite, publicado nesse mesmo ano, comentou: “O livro enfoca um momento de minha própria geração e, como fui bastante influenciado pelo cinema, tem muito de imagem, muitas citações de filmes, muitos cortes que lembram o cinema” e acrescenta: Os personagens do romance são seres oníricos, personagens fictícios, como elementos de um sonho. Ao mesmo tempo, acrescento à história diversos elementos de minha própria vivência, as passeatas universitárias do final da década de 70, a perseguição política dos anos de ditadura, a alienação de toda uma geração, mas tudo isso em um tom leve e até humorístico. Como ele revela, a memória se faz presente em diversos contos do autor em um jogo entre ficcional e real que vai compondo as suas narrativas. Assim, observase em Ribeiro um olhar sobre a cidade marcado pela nostalgia das vivências inesquecíveis, sobretudo da infância e juventude vividos no centro histórico de Salvador e no bairro de Itapuã, que são indispensáveis para se construir 390 simbolicamente os espaços urbanos. Nesse retorno ao passado, por sua vez, tem-se tanto a mistura entre o menino que já se deixou de ser e os espaços urbanos de outrora, quanto o sujeito contemporâneo que, recordando espaços da memória, apresenta ao leitor os tecidos urbanos que constituem suas lembranças. Tais lembranças, uma vez tratando de práticas e lugares socialmente compartilhados, não dizem respeito, única e exclusivamente, a memórias individuais. Percebe-se, ainda, que a representação dessa relação entre a memória coletiva e as memórias subjetivas recupera características singulares dos espaços físicos capazes de torná-los significativos ou retratar o quanto significativo são ou foram. O CENTRO DE UMA CIDADE DA MEMÓRIA Representativo de uma imagem de Bahia, o centro antigo, espaço onde surgiu a cidade de Salvador, passou por diversos processos de modernização que deram origem à formação social e espacial que hoje se apresenta. Milton Santos (2008), em Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. pesquisa sobre o centro histórico de Salvador, observou, já no final da década de 1950, que, no passado, o cérebro e o coração da cidade encontravam-se nesse espaço. Ao se fazer a leitura de tal produção de Milton Santos, sobretudo ao localizá-la cronologicamente, não há que se falar que nesse período o centro antigo já tinha perdido a sua importância central na cidade. Tal leitura se revela importante, aqui, para que possamos observar as transformações que já ocorriam, sobretudo a partir da década de 1940, e que, relacionadas a outros fatores, influenciariam na remodelagem da cidade. A princípio, Santos (2008) apresenta um centro que, sobretudo por ser o espaço em que se constituíam as dinâmicas políticas e econômicas do Estado, delineou-se como espaço de suma importância para a Bahia. No entanto, ao destacar as transformações pelas quais o centro antigo vinha passando, Santos (2008, p.20) apresenta de que forma o crescimento da cidade naquele período “e a expansão de suas atividades conduziram à modificação da fisionomia do centro, provocando o aparecimento de grandes edifícios, construídos nos espaços vazios, ou substituindo velhas casas”. Ao retratar o surgimento e a evolução desse centro, não há como se escusar de revelar como, atrelado ao desenvolvimento e à construção de modernos prédios do bairro do Comércio, tem-se um processo de decadência de estruturas históricas em nome da modernização. Assim, percebe-se que “[...] forças de transformação e forças de resistência entram em luta e dão como resultado seja a criação de uma paisagem inteiramente nova, seja a transformação ou adaptação da paisagem antiga, que, então, se degrada” (SANTOS, 2008, p.30). Desse modo, é preciso pensar as transformações do centro antigo a partir da existência de processos de modernização que dão origem a novas relações com antigos espaços urbanos. A partir disso, percebe-se como a cidade toma novos rumos, modernizando novos espaços e deteriorando espaços históricos. No início da década de 1960, Ribeiro viveu nesse centro, tendo morado no Pelourinho, estudado no bairro do Carmo e, em anos seguintes, após período em que morou do bairro de Itapuã, concluiu seus estudos em escolas localizadas no bairro de Nazaré e na Praça da Piedade. Diante de seu contato com essa antiga centralidade e 391 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. sua atuação jornalística e literária pela preservação dos espaços naturais e culturalmente relevantes, Ribeiro tomou para si o dever de resguardar o centro antigo em sua antiga forma, assim como as práticas sociais que se fizeram marcantes. Dessa forma, as representações desse espaço revelam vivências inesquecíveis, sobretudo da infância, que são indispensáveis para se construir simbolicamente os espaços urbanos. Nesse momento, analisaremos qual o Centro Histórico que se faz representar nas narrativas de Carlos Ribeiro. Ao falar da cidade de Salvador na literatura baiana, Antônio Torres coloca Ribeiro no rol dos contemporâneos ficcionistas que estão pintando “as novas pulsações da cidade” e que representam “uma Salvador sem farofa e sem dendê”. No entanto, questionaremos isso ao longo das análises que se seguem, uma vez sendo possível vislumbrar um constante rememorar que, pela narrativa, reconstrói o Centro Histórico da cidade da Bahia com seus monumentos, cinemas, lojas e, sobretudos, práticas sociais. Em suas representações do centro antigo, Ribeiro lança um olhar sobre a 392 cidade marcado pelo tom nostálgico. No conto “O visitante invisível”, primeiro de Contos de Sexta-feira (2010), o tom nostálgico se faz emblemático. É perceptível na narrativa que a visão do eu é formada por uma emotividade que tenta, pela memória, recuperar as suas vivências da infância, uma reaproximação espaçotemporal com aquilo que foi significante. No que tange ao uso do termo nostalgia na análise aqui feita, é válido destacar que Marcos Piason Natali (2006), em sua obra A política da nostalgia: um estudo das formas do passado, apresenta tal categoria enquanto conceito que passou por processos de transformações, mas que teve a sua origem relacionada aos estudos médicos. Ao tratar do modo como os estudos da medicina objetivavam explicar sensações e características há muito conhecidas, Natali (2006, p. 18) afirma que, em 1688, o médico suíço Johannes Hofes, a fim de descrever a dor que era provocada pela impossibilidade de se voltar para casa, fez a união das palavras gregas nostos (voltar para casa) e algos (sofrimento, uma condição dolorosa). Desse modo, percebese que, a partir da necessidade de nomear uma determinada entidade clínica, inventou-se a palavra nostalgia. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Há que se perceber, ainda, que a nostalgia estava, no princípio, associada a sensações de dor causadas pela ausência de alguém ou pelo distanciamento de algum lugar. Natali (2006) destaca, contudo, que, com a gradativa transformação do conceito, tem-se o sentimento nostálgico atrelado, também, à distância temporal. Desse modo, a ampliação do conceito foi [...] fazendo da nostalgia não apenas o sofrimento causado por uma separação física, seja da terra natal ou de um ente querido, mas também uma dor provocada pela distância temporal, pela passagem do tempo. Assim, o transtorno podia ser suscitado pelo falecimento de um ser querido ou pela transformação irreparável de um lugar conhecido, e desta forma já não era necessário viajar ou imigrar para ser acometido pela doença; a transformação de sua vida cotidiana já era suficiente para provocar nostalgia até naqueles que jamais haviam deixado sua terra natal. O que o sujeito lamentava, nesses casos, era a transformação do presente em passado, em meio a um período de crescente industrialização e urbanização (NATALI, 2006, p. 28) Ao discorrer sobre o poema Le Cygne, de Baudelaire, Natali (2006, p. 35) aborda sobre o modo como a voz poética que se enuncia reivindica para si o direito ao sentimento de nostalgia. Paris muda! mas nada em minha nostalgia Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos, Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria, E essas lembranças pesam mais do que rochedos. (BAUDELAIRE, 1985, p. 327) Na passagem em destaque, afirma-se a existência de inúmeras novidades urbanas, no entanto, nenhuma delas é capaz de superar o sentimento nostálgico. No poema, A cidade — sua arquitetura, suas ruas, seus bairros — pode ser transformada, mas a memória do sujeito alega ser mais resistente que as pedras e não se desintegra com a reacomodação material da cidade. Morta a velha Paris, o parisiense descobre-se exilado em sua própria cidade, atormentado por recordações do que já não é, sem sequer ter deixado o seu lar. (NATALI, 2006, p. 35-36) Isso se mostra presente na obra de Ribeiro. Na narrativa em análise, é possível aferir um tom de angústia e um retorno cíclico ao espaço em que se viveu expressivas experiências. Isso é identificável, por exemplo, a partir da presença do mesmo trecho 393 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. no início e no final da narrativa: “Escuta. Façamos de conta que você possa tornar-se invisível. E que possa fazer uma viagem no tempo. Você desce, agora, a ladeira do Pelourinho, vê? É um dia qualquer de 1963” (RIBEIRO, 2012). A repetição nos remete a um eterno retorno aos espaços que já não mais são como no passado. Nas primeiras passagens do conto, é possível perceber a existência de um eu ficcional que, marcado por um sentimento de nostalgia, tenta reconstituir as vivências deixadas para trás pelas mudanças da vida e os lugares afetivos corroídos pelas transformações da cidade. A princípio, no início do conto, apresenta-se para o leitor o espaço a ser desvelado pelo retorno ao passado, o centro antigo da cidade do Salvador. 394 Escuta. Façamos de conta que você possa tornar-se invisível. E que possa fazer uma viagem no tempo. Você desce, agora a ladeira do Pelourinho, vê? É um dia qualquer de 1963. O céu tem uma intensa luminosidade avermelhada. Uma menina, com um vestido amarelo, toca acordeom na janela de um sobrado. Um bêbado dorme na calçada próxima à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Os casarões são velhos e desbotados. Homens vestem roupas brancas. Sinos tocam nos ares finos da velha Salvador. Você passa pela banca de revistas. Desce a Rua Silva Jardim, no Taboão. Chega em frente ao Plano Inclinado do Pilar. Um homem, com grande bigode grisalho, bebe grapetti com o filho no bar que fica no andar térreo do edifício Bola Verde. Ele compra doces e chocolates. É sábado e ninguém, senão você, carrega um passado que ainda não existe. [...] Talvez por isso quase se possam ouvir sussurros nas varandas e nas sacadas dos casarios. (RIBEIRO, 2012, p. 21) Observa-se, assim, que a voz que se enuncia no conto nos convida a um passeio por vivências e espaços do passado. Como se percebe, já nas primeiras linhas, a narrativa determina o centro antigo de Salvador como o espaço em que são desvelados sentimentos e vivências. O Pelourinho, bairro antigo e um dos mais emblemáticos do centro histórico, é apresentado ao longo da narrativa com uma roupagem distinta da que lhe é ofertada na atualidade. Não nos é evidenciado, assim, o Pelourinho abandonado – não apenas no sentido de ignorado pelo poder público, mas pelo próprio povo baiano. O espaço central não se apresenta, ainda, enquanto destinação quase que exclusivamente voltada aos anseios turísticos. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Observa-se em Carlos Ribeiro, tanto neste conto quanto em outras narrativas, um constante memorialismo que nos leva a questionar, senão constatar, a existência de um choque entre o homem contemporâneo e o menino do passado diante da cidade de hoje que apresenta os resquícios de outra época. Ao se pensar essa escrita da memória presente no conto, percebe-se que a retomada do passado, atrelada a uma leitura geral da obra de Carlos Ribeiro, permite que se aponte tal elemento da narrativa como uma marca crítica e denunciativa. É possível se afirmar que, retornar aos espaços do passado objetiva contrapor passado e presente a fim de evidenciar o esvaziamento das funções que eram exercidas por aquele espaço central. Na atualidade, o que cabe ao centro antigo é ocupar as narrativas memorialísticas, uma vez que, de modo geral, ele está ausente no cotidiano do cidadão baiano. Assim, “viajar, portanto, no passado, na tradição, é transformá-lo, salvando-o do esquecimento, tornando-o produtivo: ramos viçosos” (GOMES, 1994, p. 45). No conto de Ribeiro, há uma relação entre as memórias urbanas e subjetivas. Desse modo, apresenta-se para o leitor uma série de imagens que integram a história da cidade, como a ladeira do pelourinho, a janela de um sobrado, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, casarões “velhos e desbotados” e o edifício Bola Verde. Revelam-se, ainda, elementos íntimos que apresentam as feições singulares do núcleo familiar, como uma antiga geladeira GE, uma mulher que arruma um quarto, um menino que brinca, livros na estante, “travessas de farofa de ovo com manteiga, arroz, carne, leite, café e deliciosas fatias de parida” (RIBEIRO, 2012, p. 22). Os tecidos da memória são responsáveis por entrelaçar a história subjetiva e urbana na formação de um único corpo narrativo. Citando a obra de Walter Benjamim, Infância em Berlim, Renato Cordeiro Gomes (1994) nos apresente importantes relatos que evidenciam o modo pelo qual as imagens benjaminianas tentam reconstruir a infância por meio dos “labirintos da recordação”. O mesmo ocorre nas narrativas de Carlos Ribeiro. Assim como na obra de Benjamin abordada por Gomes (1994), “O visitante invisível” representa uma tentativa de, através do registro escrito, preservar a memória da cidade – que, em verdade, está diretamente atrelada às vivências da 395 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. infância. Gomes (1994, p. 65) nos apresenta uma importante afirmação ao citar a colocação de Bolle (1984, p. 3-5) sobre a memória e a cidade: “Recuperar o passado significa: construir o sentido e o presente, tendo como arma de resistência a memória afetiva, por meio da memória topográfica”. Em Ribeiro (2012), o que se coloca é exatamente essa tentativa de se recuperar o passado por meio dos espaços que constituem os tecidos da memória urbana e do personagem-narrador. CONSIDERAÇÕES FINAIS O encantamento pela cidade se faz representar nas narrativas de Ribeiro a partir de um processo de recriação de uma cidade e das memórias experimentadas nesse espaço urbano. Há que se observar, ainda, a representação de um sujeito contemporâneo que, envolvido pela modernosidade2, se espanta com os vazios deixados pelas experiências do passado que não mais existem, como a segurança ao se andar pela cidade e as relações subjetivas íntimas travadas nos múltiplos espaços 396 de convivências que não se restringiam ao fugaz e impessoal tempo vivido nos shoppings Center. Assim, evidencia-se o homem inserido na contemporaneidade, mas marcado e atento ao passado e que, em seu perambular pelas ruas, realiza o inventário do que se perdeu em decorrência dos processos de modernização que se impuseram à cidade. Ribeiro possibilita que pensemos, desse modo, o homem em sociedade e as relações sociais no mundo pós-moderno. Com sua literatura, o escritor toma para a si a necessidade de combater um mundo reificado, denunciando-o por meio de suas narrativas repletas de feições memorialísticas. As personagens, de modo geral, apresentam-se atravessadas pelas transformações impostas pelo tempo, assim como as modernizações que causaram mudanças irremediáveis aos espaços do passado. Essas transformações colocam em cena um sujeito marcado pela memória que, perambulando por espaços da cidade que não mantêm a mesma fisionomia, retoma vivências experimentadas em um outro tempo. Assim, o tom nostálgico das narrativas retrata, a partir da representação de Salvador, as perdas acumuladas, sendo a cidade tanto o cenário dessas perdas como uma das perdas irrecuperáveis. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A pesquisa aqui apresentada, portanto, expõe a ligação entre a vida urbana e a vida subjetiva no texto de Ribeiro a partir da representação da cidade e de um homem mergulhado no mundo contemporâneo. Dessa forma, com uma linguagem densa de poesia e humanidade, nos dizeres de Guido Guerra, a obra de Ribeiro apresenta denso material da projeção da imagem urbana no texto literário. É possível avaliar, portanto, que em Ribeiro um sentimento nostálgico se faz representativo nas narrativas e produz uma imagem de espaços de Salvador que não se oferecem apenas de modo saudosista ou desencantado, mas como meio de assegurar a permanência daquilo que não se quer perder. REFERÊNCIAS DUARTE, Fábio. Crise das matrizes espaciais: arquitetura, cidades, geopolítica, tecnocultura. São Paulo: Perspectivas, FAPESP, 2002. GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 397 ______. A cidade, a literatura e os estudos culturais: do tema ao problema. Ipotesi (UFJF), Juiz de Fora, v. 3, p. 19-30, 1999 NATALI, Marcos Piason. A política da nostalgia: um estudo das formas do passado. São Paulo: Nankin, 2006. RIBEIRO, Carlos. Já vai longe o tempo das baleias. Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1981. _____. O chamado da noite. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997. _____. Com a palavra o escritor. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2002. _____. Lunaris. Salvador: EEP Publicações e Publicidade, 2007. ______Discurso de Carlos Ribeiro na ALB. Salvador, 31 de maio de 2007 Disponível <<http://www.carlosribeiroescritor.com.br/especial_discurso.htm>> em: _____. O visitante noturno: contos. Salvador: SECULT, 2000. FUNCEB, EGBA, 111 p. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. _____. Contos de sexta-feira e duas ou três crônicas. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2012. _____Entrevista a Bela Marchi. Salvador, novembro/2008 Disponível em: http://www.carlosribeiroescritor.com.br/novo/fortunacritica/entrevista-a-bela-marchi/ Acesso em 20 ago. 2014 _____Entrevista Cultura: Carlos Ribeiro. Entrevista. Salvador: A Tarde Cultural – 26/4/1996.Disponível em: http://www.carlosribeiroescritor.com.br/novo/fortunacritica/entrevista-cultura-carlos-ribeiro/ Acesso em: 20 ago. 2014 SANTOS, Milton. O centro da cidade do Salvador: estudo de geografia urbana. 2ª ed. São Paulo: Editora da Universidade da São Paulo; Salvador: Edufba, 2008. 398 A LEITURA DE MUNDO E A FORMAÇÃO DE LEITOR QUE FORMA LEITOR Uma experiência de reflexão sobre a formação do sujeito leitor no curso de pedagogia Mônica de Santana Dias Graduanda do curso de Pedagogia do DEDC I –UNEB E-mail:[email protected] Rosemary Lapa de Oliveira Professora Adjunta do DEDC I - UNEB E-mail: [email protected] RESUMO Este trabalho visa relatar a minha vivência como leitora, tendo em vista que a leitura vai além dos códigos linguísticos, considerando a “leitura de mundo” um dos primeiros atos de ler. Esse texto memorialístico é fruto da atividade de uma prática referendada desenvolvida pela professora Rosemary Lapa de Oliveira, no Componente Curricular do curso de Pedagogia Referencial Teórico Metodológico de Língua Portuguesa. Por meio dele, pude refletir sobre minha formação como leitora, assim como sobre minha futura práxis pedagógica. Diante disso, o presente relato aborda desde a compreensão da leitura de mundo que ocorre antes da decodificação dos códigos linguísticos, em um processo de escuta das lendas contadas por meus familiares no interior da Bahia sobre o homem que se transforma em lobisomem e, depois, a percepção do que era narrado e os contextos de acontecimento do texto: tanto o real quanto o virtual. As leituras realizadas entre as lendas e o contexto social foram essenciais no momento de aprender a ler, pois hoje percebo que considerava a leitura dos códigos linguísticos um complemento da interpretação que já tinha do meu contexto. Aprendi a reconhecer as letras com o subsídio da minha mãe, isso reforça a importância da família no processo de ensino e aprendizagem das crianças, já com o conhecimento dos códigos linguísticos, nasceu o interesse pelas leituras das revistas de história em quadrinhos. Logo, ao perceber o meu encantamento pelos gibis, por ter enredos que faziam parte da minha infância, a minha mãe disponibilizou-me as coleções dessas revistas, o que possibilitou conhecer personagens que expressavam os mesmos sentimentos e emoções que eu tinha. Essas histórias em quadrinhos me estimularam a buscar outras obras literárias como os romances que fizeram parte da minha adolescência, sendo que nesse período os acessos aos livros ocorriam por causa da presença das bibliotecas comunitárias localizadas nos bairros, as quais disponibilizavam aos seus frequentadores o empréstimo as variadas obras que para mim foi mais um incentivo no processo de formação como sujeito leitor. Assim, nesse processo de recordação dos meus momentos de leituras, percorrendo desde a infância até o início do curso de Pedagogia, pude refletir sobre a relação do ato de ler com a minha futura ação como pedagoga. Logo, quando adentrei no curso de licenciatura em Pedagogia, tive um encontro com as ideias defendidas por Paulo Freire que desvenda uma pedagogia que posiciona o sujeito como autor de sua história, contribuindo para a formação Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. crítica sobre a realidade que o cerca e também com as técnicas de ensino de Célestin Freinet, cujas propostas são vivenciadas dentro do ambiente escolar, como as aulas passeios, que são pautadas na convivência dos educandos com a sua comunidade. PALAVRAS CHAVES: Escrita memorialística; História em quadrinhos; Bibliotecas comunitárias. 1. APRESENTAÇÃO Este trabalho visa relatar a minha constituição enquanto leitora, tendo em vista que a leitura vai além dos códigos linguísticos, considerando a “leitura de mundo” um dos primeiros atos de ler, concordando com o que diz Freire (2011), pois “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, logo a nossa formação enquanto leitor ocorre antes da leitura dos códigos linguísticos em um complemento ao ato de ler as palavras. Esse texto memorialístico foi fruto da atividade em sala de aula proposto como prática referendada desenvolvida pela professora Rosemary Lapa de Oliveira, 400 no Componente Curricular Referenciais Teórico-Metodológicos de Língua Portuguesa, do curso de Pedagogia que impulsionou os discentes dessa licenciatura a relerem o texto de Freire (2011) A importância do ato de ler e, através dele rememorar sua história desde a infância até a entrada no curso superior em uma reflexão sobre como se constituíram enquanto leitores e mediações pretendem desenvolver para auxiliar o processo de constituição de leitor em seus estudantes. A prática concebida pela professora fez-me retomar memórias de uma infância que com as tarefas do cotidiano já não tinha tempo para pensar, considerando-se que nem sempre como educadores temos a possibilidade de repensar em nosso desenvolvimento de leitor desde a infância para incrementar nossas aulas e foi justamente durante os momentos que refleti sobre minha história, em especial a de leitora, que pude pensar em minha prática como futura docente. Durante as aulas, eu e meus colegas falamos sobre nossas vivências enquanto leitores tendo como base o capítulo I do livro “A importância do ato de ler” escrito pelo autor Freire (2011), o qual relata a sua experiência com as leituras ao repensar em sua constituição enquanto leitor, considerando a interpretação do contexto social Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. uma “leitura de mundo” atitude que as crianças conseguem realizar antes da leitura de palavras. Já com o domínio dos códigos linguísticos, a interpretação dos fatos do cotidiano passa a contribuir para ampliação do conhecimento e como em um ciclo essas leituras das palavras escritas possibilitam a ampliação do conhecimento de mundo em um processo de enleituramento, segundo destacou Oliveira (2015). Nesse circuito da leitura, o sujeito quanto mais contatos com variadas formas de textos, maior será seu conhecimento de mundo, sendo que a medida que for praticando o ato de ler, ativa os saberes já adquiridos em situações anteriores e com isso constroem experiências com leitura. 2. MINHA CONSTITUIÇÃO COMO LEITORA Deste modo, esse relato narra desde a compreensão da leitura de mundo, em um processo de escuta das lendas contadas por meus familiares no interior da Bahia até a percepção do que era narrado e os contextos de acontecimento do texto: tanto o real quanto o virtual. Pois de acordo com Koch (2014) o conhecimento relacionado às vivências pessoais permite a produção de sentido. Por isso, considero que as leituras realizadas entre as lendas e o contexto social foram essenciais no momento de aprender a ler, visto que hoje percebo que considerava a leitura dos códigos linguísticos um complemento da interpretação que já tinha do meu contexto. Concordando com Freire (2011, p.11) “a decifração da palavra fluía naturalmente da ‘leitura’ do mundo particular”. Quando esse autor iniciava seu processo de alfabetização, demostrou que a leitura de mundo contribuiu no desenvolvimento da aprendizagem dos códigos linguísticos. Depois desse período, com meus avós no interior da Bahia, viajei para São Paulo e com o subsídio da minha mãe aprendi a reconhecer as letras. Seguidamente, comecei a ir para a escola e com a autonomia da leitura despertou-me o interesse em ler as revistas de histórias em quadrinhos (HQs), as quais, segundo Vergueiro (2010), são meios de comunicação consumidos em todo o mundo e apreciadas por crianças e jovens. Logo a minha mãe percebeu o meu encantamento pelos gibis, por conter enredos que faziam parte da minha infância, e disponibilizou-me as coleções dessas 401 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. revistas, o que me possibilitou conhecer personagens que expressavam os mesmos sentimentos e emoções que eu tinha em minha infância, valorizando esse período da minha vida. De acordo com Ariès (1981), no período medieval, não havia a descoberta da infância, sendo que as crianças eram visualizadas como um adulto em miniatura, isso deixa evidente que as peculiaridades das crianças não eram respeitadas. Com a evolução afetiva no espaço familiar, essas relações promoveram uma ampliação no conhecimento do que seria a infância, o que contribuiu para criação de objetos e de literatura direcionadas para as crianças. Portanto, os gibis com sua linguagem infantil, foram um incentivo ao ato ler e a presença da minha mãe e avós reforçam a importância da família no processo de minha aprendizagem ainda criança. Essas leituras das histórias em quadrinhos me estimularam a buscar outras obras literárias como os romances que fizeram parte da minha adolescência, por que essa literatura contém informações diversas que direciona o leitor a pesquisar novos dados a fim de compreender o que foi lido anteriormente nas HQs. Para Vergueiro 402 (2010), a leitura de revistas em quadrinho pode contribuir para formação de leitores, desenvolvendo hábitos de leitura de outros gêneros. Visto que, ao iniciar a leitura por texto que consideram agradáveis, como as HQs, as crianças podem sentir mais interesse por buscar leituras de variados livros e em outras revistas. Após alguns anos, retornei a Salvador e imediatamente tive contato com as bibliotecas comunitárias que se localizavam no bairro em que residia, as quais foram essenciais para o meu desenvolvimento enquanto leitora das obras literárias brasileiras na adolescência, pois foi à ocasião em que tive boas experiências de leitura com obras de ficção e os mais belos romances, hábito que adquiri com as leituras das revistas em quadrinhos na infância que revelam ser de grandes valia nesse período da minha vida. Essas bibliotecas comunitárias ficavam tão próximas à minha casa que eu podia ir andando até cada uma delas. A primeira localizava-se ao lado de uma escola pública e era administrada por uma igreja e a segunda, a biblioteca Jorge Amado, ficava localizada no caminho que eu passava para ir à escola. Fui informada da existência dessas bibliotecas por colegas da sala de aula, logo me inscrevi para Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. receber a carteira de empréstimo para livros e me tornei figura assídua nesses locais. Diante disso, considero que a mediação dos meus colegas de classe mostrando–me o caminho para esses espaços de leitura contribuiu para minha constituição enquanto leitora, pois ampliaram meus conhecimentos sobre a literatura. Em relação à escolha dos livros, apreciava variados tipos de obras literárias, já que durante a leitura de histórias em quadrinhos tive acesso a informações diversas, o que colaborou para torna-me uma leitora flexível e disposta a conhecer outros autores através de suas obras. Isso para mim foi mais um incentivo no processo de formação enquanto leitora. No entanto, na fase em que cursava o primeiro ano do ensino médio, a escola pouco contribuía para o incentivo à leitura, pois os professores raramente faziam indicações de livros e a direção da escola não oferecia um local adequado para promover o acesso aos livros disponíveis. Segundo Oliveira (2011, p.20), É função da escola letrar os alunos, fazendo-os ter consciência dos diferentes contextos (situações) e prepará-los; Proporcionando experiências com a língua em sala de aula, ensinando-os e propiciando momentos para que eles apropriem-se dos “recursos comunicativos” necessários, para que eles (alunos) saibam articular a ‘teoria a ‘prática’ e sejam bem sucedidos em seu desempenho em seja lá qual for à situação (OLIVEIRA,2011, p.20). Diante disso, percebe-se que a escola deixava de cumprir seu papel de letrar, ao impossibilitar que os alunos frequentassem a biblioteca, visto que não ofertava um espaço de leitura, porque os livros que deveriam estar à disposição dos estudantes, ficavam em um quarto trancado no fundo da escola, distante do acesso dos alunos e mesmo quando eu e outros poucos alunos iam pedir livros emprestados, não havia funcionários para receber os estudantes que se encontravam ávidos por ler. Assim sendo, o meu processo como sujeito leitor ocorreu com muito incentivo da minha família, colaboradora fundamental, que forneceu as bases, quando na infância contavam lendas e, depois, com as revistas em quadrinhos concedidas pela minha mãe. Portanto, percebe-se que a família assume uma posição essencial no processo de desenvolvimento na aprendizagem e consequentemente na formação 403 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. enquanto leitor. Assim, foram essas situações familiares que mediaram a minha constituição como leitora tanto do mundo quanto de obras literárias. Outra contribuição que considero importante em minha experiência de leitora foi com as bibliotecas comunitárias do bairro em que eu morava, as quais disponibilizavam os livros para empréstimo, estimulando a leitura e valorizando o interesse que eu e os meus colegas frequentadores desses espaços tínhamos pelo ato de ler. Do mesmo modo, fica evidente para mim, a importância de meus colegas de sala de aula, como mediadores, que me levaram e indicaram o caminho para encontrar as bibliotecas do bairro. 3. REFLEXÃO SOBRE A MINHA PRÁTICA DOCENTE Com os resultados obtidos por meio da prática referendada desenvolvida pela professora Rosemary Lapa de Oliveira, através dessa rememoração do meu processo como leitora e por meio de leituras das obras de autores como Paulo Freire e Célestin 404 Freinet, enfim consegui analisar como gostaria de atuar como formadora de leitores, pois acredito que a leitura começa pelo ato de ler o mundo e se desenvolve pelo enleituramento. Portanto, em uma reflexão sobre a minha prática docente, pretendo utilizar o diálogo para construir as aulas, tendo em vista que os alunos já possuem os conhecimentos prévios adquiridos em suas relações sociais. Diante disso, no processo de ensino e aprendizagem, estarei aprendendo e ensinando com os educandos em sala de aula, concordando com o que diz Freire (1987, p.68), Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não valem (FREIRE, 1987, p.68). Sendo assim, considero que para um ensino aprendizagem por meio de diálogos, é preciso respeitar os conhecimentos dos discentes, como afirma Freire (1996), já que eles chegam à sala de aula possuindo saberes e experiências que Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. influenciam a prática docente. Percebe-se, então, a importância da família e da comunidade na aquisição de saberes por parte dos educandos. Por isso que ao valorizar as experiências do educando também estamos estimulando o interesse de estudantes ao ato de ler, pois assim como eu, conhecendo o bairro que residia, tive acesso aos livros por meio das bibliotecas comunitárias, as quais possibilitaram a minha constituição enquanto leitora, almejo estimular que os estudantes conheçam sua comunidade, a fim de que encontrem espaços de cultura e de educação, como bibliotecas e teatros, contribuindo para constituição de sujeitos leitores críticos. Segundo Imbernón (2012), Freinet utilizava a aula passeio para promover o diálogo e o incentivo à escrita e à expressão oral. Por isso, pretendo utilizar a técnica de aulas passeio da pedagogia de Freinet, assim como a impressa na escola a fim de estimular o interesse das crianças a escreverem de forma livre suas situações do cotidiano. Segundo Maury (1993, p.34) “a impressa na escola trouxe para o campo da prática diária a expressão livre e a prática criadora de nossos alunos” e, assim, por meio de impressos que circulem no ambiente, incentivar que os educandos exponham suas ideias e vivências. Dessa maneira, conhecendo as técnicas de ensino, como aula passeio e a impressa na escola, desenvolvida por Freinet que despertava o interesse dos educandos para leitura e escrita, tomando como base essa prática, buscarei valorizar o contexto social dos educandos assim como suas experiências em uma atividade que vai além das didáticas escolares, concordando com Maury (1993, p.34) quando diz que: A criança que sente um objetivo em seu trabalho, e que pode dedicar-se por inteiro a uma atividade não mais escolar, mas social e humana, esta criança sente que nela se libera uma poderosa necessidade de agir, de buscar, de criar (MAURY, 1993, p.34). Com essa expectativa de dar valor ao contexto social do aluno, almejo fazer uma integração entre a comunidade e a escola e, com isso, conduzir meus alunos a encontrarem espaços de aprendizagens que são disponibilizados em seus bairros. Assim como promover a autonomia dos educandos, seguindo as ideias defendidas por Freire (1996) em uma pedagogia da autonomia em que o professor deve respeitar 405 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. a autonomia, dignidade e a identidade do educando e cooperar para o desenvolvimento de sujeitos críticos que assumam uma posição de nãosilenciamento, o que segundo Oliveira (2015) ocorre por meio “da tomada de consciência e da criticidade”. Nessa busca por incentivar a leitura, a autonomia e a reflexão dos discentes, o professor precisa investir em sua própria formação enquanto docente. Esse investimento, cujo objetivo é conduzir o educando a ultrapassar a “curiosidade ingênua”, direcionando-os por meio do rigor metódico, o qual exige a pesquisa científica, como salienta Freire (1996), com intuito de ir além do senso comum, reunindo a prática e a teoria no ensino. Sendo assim, o professor precisar ser um pesquisador, um sujeito curioso e que siga o rigor metódico conforme afirma Freire (1996) e com isso influenciar seus educandos a pesquisarem, relacionando os conhecimentos adquiridos em sala com suas vivências pessoais a fim de ampliar seus saberes. Essa maneira de ensinar transpõe o ensino verticalizado em que professor é detentor do conhecimento e 406 direciona para uma pedagogia em que são respeitados os saberes dos educandos assim como o conhecimento do docente, pois “não há docência sem discência” como declara Freire (1996), logo esse formato de ensino acontece de maneira horizontal, pois existe a reciprocidade de ambas partes em um processo de construção da aprendizagem. Diante disso, busco, enquanto estudante, essa vivência através da pesquisa para que quando graduada possa ser em sala uma professora e pesquisadora, unindo teoria científica a prática e contribuindo para formação de leitores críticos. Para isso, como estudante, procuro investir em minha formação enquanto leitora, dedicando-me à pesquisa científica como uma maneira de ampliar meus saberes sobre o incentivo à leitura em sala de aula. E foi por meio dessa procura que no período da rememoração na prática referendada pensei no tema sobre as revistas de histórias em quadrinhos, tendo em vista que é um recurso que ainda não é amplamente utilizado pelos professores nos anos iniciais. Essa ferramenta pedagógica que são as HQs que por divulgações preconceituosas, como salienta Vergueiro (2010), ainda são pouco utilizadas em sala Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. de aula por serem consideradas somente um entretenimento para as crianças e não algo que beneficie a aprendizagem e o estímulo à leitura. No entanto, nos momentos de recordações sobre a minha constituição como leitora, pude perceber como as HQs fizeram parte do meu processo de desenvolvimento enquanto leitora e por isso considero esse gênero textual uma fonte de informações que amplia o repertório de saberes dos alunos e incentiva a leitura de outras obras além de aumentar as possibilidades de intervenções pedagógicas dos professores no ensino aprendizagem. Dessa forma, com intuito de ampliar as discussões sobre o uso pedagógico das HQs em sala de aula além de mostrar a utilização assim como o valor pedagógico desse gênero textual no ensino aprendizagem das crianças, inscrevi-me para fazer parte do projeto leitura na escola – a constituição do sujeito leitor desenvolvido pela professora Rosemary Lapa de Oliveira no programa de iniciação científica promovido pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Nessa investigação, busco descrever como as revistas de histórias em quadrinhos podem contribuir para o incentivo a constituição de sujeitos leitores. Assim sendo, por meio da pesquisa científica, procuro preparar-me à docência, investido em minha formação como leitora para que possa incentivar a novos leitores em sua constituição no ato de ler. CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim, nesse processo de recordação dos meus momentos de leitura, percorrendo desde a infância até o início do curso de Pedagogia, pude refletir sobre a relação do ato de ler com a minha futura ação como pedagoga. Considerando que, desde quando adentrei no curso de licenciatura tive encontros com as ideias defendidas por Paulo Freire, que desvenda uma pedagogia que posiciona o sujeito como autor de sua história, contribuindo para a formação crítica sobre a realidade que o cerca e também com as técnicas de ensino de Célestin Freinet, cujas propostas são vivenciadas dentro do ambiente escolar atual e que são pautadas na convivência dos educandos com a sua comunidade. 407 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Como maneira de preparar-me para atuação como docente, participo de eventos cientifico direcionados ao ensino e investido na pesquisa científica, a fim de ser uma professora que, conhecendo a teoria, possa expandir minha prática docente com intuito de beneficiar os educandos em sua formação enquanto leitores e em toda a aprendizagem. Por conseguinte, como resultado dessa reflexão conclui que como docente espero que por meio de minha ação pedagógica colabore para que os educandos possam encontrar estímulo para constituírem-se sujeitos leitores de livros e do mundo. REFERÊNCIAS ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. IMBERNÓN, Francisco. Pedagogia Freinet. Penso Editora, 2012. 408 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente. São Paulo: Paz e Terra, 1996. ______________. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ______________. A importância do ato de ler. Em três artigos que se completam. 51 ed. São Paulo: Cortez, 2011. KOCH, Ingedore Villaça, ELIAS, Vanda Maria. Ler e Compreender os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2014. MAURY, Liliane. Freinet e a Pedagogia. São Paulo: Martins Fontes, 1993. OLIVEIRA, Rosemary Lapa. 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LITERATURA, IDENTIDADE E CULTURA: um olhar para as práticas literárias em classes multisseriadas de escolas rurais Nanci Rodrigues Orrico; Universidade do Estado da Bahia, [email protected] Elizeu Clementino de Souza; Universidade do Estado da Bahia, [email protected] Heleny Andrade Nunes; Universidade Federal do Recôncavo da Bahia [email protected] RESUMO Vinculado ao projeto “Multisseriação e trabalho docente: diferenças, cotidiano escolar e ritos de passagem”, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa (Auto)Biografia, Formação e História Oral (GRAFHO/UNEB), o texto configura-se como entrada de uma pesquisa de mestrado que vem sendo desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC/UNEB), que investiga memórias e práticas de leitura de professores de classes multisseriadas do município de Amargosa/BA. O texto tem como objetivo discutir questões relacionadas à construção das identidades das crianças estudantes de escolas rurais, relacionando-as com as práticas pedagógicas, especialmente, no que se refere às diversas literaturas que perpassam o cotidiano escolar. Reconhecendo como inegável a relação entre literatura e formação identitária, busca-se refletir sobre a maneira como os textos literários têm sido trabalhados na escola, incluindo as diferentes literaturas e atividades de leituras propostas pelos livros didático/literários e projetos desenvolvidos no cotidiano das escolas. Neste contexto, aborda-se a importância da literatura como essencial para o desenvolvimento social, emocional e cognitivo infantil, discutindo padrões de ética/estética presentes nos livros e materiais literários analisados, de forma a propor um debate em torno das práticas leitoras que acontecem nos ambientes escolares, especialmente daqueles localizados nas áreas rurais. Espera-se, ainda, refletir sobre como os professores das classes multisseriadas, que trabalham muitas vezes concomitantemente com alunos de Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, reinventam o seu cotidiano, aproximando os materiais que recebem da sua realidade e contexto social. Entrelaçando temáticas como identidade, ruralidades, literatura e multisseriação, o texto ancora-se teoricamente em autores como Hall (2003), Bakthin (2003), Souza (2012), Rios (2011), Kleimann (2007), Soares (2005), Freire (2005), Cordeiro (2006), Colomer (2007), Certau (1994) e outros. O estudo nasce da constatação de que a presença do sujeito do campo nas diversas literaturas que circulam nas escolas evidencia uma visão da cultura rural estereotipada ou ausente, reforçando marcas preconceituosas que existem na sociedade sobre as pessoas que trabalham e habitam nas áreas campesinas brasileiras. Entendemos como imprescindíveis que elementos da ruralidade e da diversidade cultural brasileira estejam presentes nas práticas literárias escolares, pois eles contribuem para a visibilidade de outro imaginário cultural, baseado no Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. princípio da diversidade e da pluralidade, essenciais para a concepção da identidade da criança. O texto destaca a necessidade de investimento para a construção de materiais pedagógicos que valorizem a singularidade rural como forma de romper o silêncio contra a discriminação que ainda persiste nos livros literários, negando o outro em sua diversidade. PALAVRAS-CHAVE: leitura, literatura, identidade, cultura, multisseriação. INTRODUÇÃO Com o objetivo de promover um debate sobre questões que circulam no entorno da interseção entre literatura, identidade e cultura, este artigo emerge das reflexões suscitadas no âmbito do projeto “Multisseriação e trabalho docente: diferenças, cotidiano escolar e ritos de passagem” (GRAPHO/UNEB) e ainda das ações de uma pesquisa de mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação e Contemporaneidade (PPGEduC/UNEB). As ideias aqui apresentadas refletem um movimento teórico-reflexivo em 410 defesa das potencialidades da abordagem (auto)biográfica e da relevância da leitura, em especial a literária, para a formação integral do ser humano. Essas questões, fundamentam e evidenciam uma preocupação com a construção identitária de crianças e jovens alunos de escolas rurais ao constatar que as práticas de leitura desenvolvidas nas classes multisseriadas têm sido pautadas em livros literários e materiais pedagógicos cuja visão da cultura rural apresenta-se de forma estereotipada ou ausente, reforçando marcas preconceituosas que existem na sociedade sobre as pessoas que trabalham e habitam nas áreas campesinas brasileiras. Como forma de apreender questões relacionadas ao espaço escolar das escolas rurais, entendendo a dinâmica de organização do trabalho com a literatura nestes locais, espera-se problematizar as vias pelas quais os textos literários têm chegado às classes multisseriadas, se por livro literário, didático, projeto ou outras formas de acesso. Nesta perspectiva é intenção nossa, neste artigo, propor um olhar também para as diferentes literaturas e atividades de leituras que perpassam o contexto escolar pesquisado, reconhecendo a importância da literatura como essencial para o Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. desenvolvimento social, emocional e cognitivo infantil e discutindo padrões de ética/estética presentes nos livros e materiais literários analisados. Dessa forma, ancorado nos estudos de autores como Hall (2003), Bakthin (2003), Souza (2012), Rios (2011), Kleimann (2007), Soares (2005), Freire (2005), Cordeiro (2006), Colomer (2007), Certau (1994) e outros, intenciona-se apresentar nesse texto uma discussão sobre literatura e identidade cultural, de forma a visualizar as práticas leitoras que acontecem nos ambientes escolares, especialmente aquelas localizadas nas áreas rurais. Dentre as questões que nos mobilizam enquanto pesquisadores no desenvolvimento deste estudo, interessa-nos, principalmente, o mapeamento de como os professores de classes multisseriadas, que trabalham muitas vezes concomitantemente com alunos de Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, apreendem estas questões e reinventam o seu cotidiano, aproximando os materiais que recebem da sua realidade, do contexto social e (re)criam novas formas de se pensar a literatura em suas classes. Por fim, concordando com as palavras de Cordeiro, quando afirma que: “É pela e na literatura que escritor e leitor realizam sonhos, alimentam fantasias, desejos e utopias, prefigurados em seus enredos, personagens e cenários, catalizadores das polaridades e ambigüidades humanas [...]” (2006, p. 68), apostamos nos estudos que possam contribuir para o ensino da literatura de forma vinculada com as raízes identitárias dos sujeitos, rompendo, dessa forma, com o ensino pautado na lógica urbanocêntrica, que insiste em se manter nas escolas rurais, desenraizando os sujeitos da suas marcas culturais e negando-lhes a representatividade das suas singularidades nas práticas educativas. IDENTIDADE, RURALIDADES, LITERATURA E MULTISSERIAÇÃO: uma tessitura de múltiplos retalhos “Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo [...] Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. “ (Fernando Pessoa, 1990, p. 8) 411 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A escolha da epígrafe nos possibilita pensar em identidade, remetendo-nos à reflexão e ao questionamento: Sim, mas o que resultamos de tudo? De tudo o que vivemos, ouvimos e lemos? Como se constrói a nossa identidade? Essas indagações têm ganhado força na contemporaneidade, promovidas, principalmente, pelas discussões em torno do que tem se chamado de “crise de identidade” ou do pertencimento. (HALL, 2003) Apreendemos dos estudos de Bauman (2005) o quanto a identidade se revela como construção e inconclusão, sendo esta um processo que não cessa de acontecer e vai se revelando nos encontros com o outro e na ressignificação dos nossos próprios referenciais, diante de tudo o que vivemos e convivemos. Segundo Faria e Souza (2011, p. 1): “A essência da identidade constrói-se em referência aos vínculos que conectam as pessoas umas às outras [...]”. Da mesma perspectiva que Bauman, mas interessado na identidade cultural, Stuart Hall (2003) demonstra preocupação com a descentração do sujeito moderno e apresenta o conceito que denomina de "identidades culturais" como aspectos de nossas identidades que surgem de nosso 412 "pertencimento" a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais. Mas, pensar em construção de identidade de crianças e jovens exige um refletir sobre tudo aquilo que têm sido a elas apresentados, sejam através dos filmes e programas que assistem, das histórias que ouvem e leem, dos brinquedos que têm e desejam e de uma série de outros objetos e referências. Entendendo que a construção da identidade do indivíduo inicia-se na sua infância e prossegue por toda a vida, sofrendo influência do meio e de todos os referenciais com os quais ele irá se deparar ao longo de sua trajetória, chega-se a uma situação que tem sido fonte de preocupação. Na contemporaneidade, a maioria das crianças e jovens brasileiros moradores de áreas rurais não têm desenvolvido um sentimento de pertencimento à sua raça, à sua comunidade, às suas raízes culturais, negando e desvalorizando sua descendência cultural. Entendendo que as práticas escolares têm tido um enorme peso no desenvolvimento dessa constituição identitária, é nosso objetivo problematizar alguns elementos da relação identidade cultural e ruralidades que têm emergido no Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. desenvolvimento da pesquisa de dissertação supracitada, cujo objeto de estudo gira em torno das memórias e práticas de leitura de professores de classes multisseriadas de escolas rurais. Observa-se, ao analisarmos principalmente os materiais didáticos e livros literários utilizados no trabalho cotidiano no contexto das classes multisseriadas, que o aluno proveniente da zona rural tem tido sua identidade muitas vezes invisibilizada e suas ruralidades - que são as especificidades, o cotidiano e as vivências do rural (SOUZA, 2011, 2012; RIOS, 2011), não têm sido valorizadas. Sua identidade rural muitas vezes acaba sendo suplantada para criação de uma mais adequada à escola, já que a maneira como os alunos da roça são percebidos nos materiais pedagógicos, é de negação às suas maneiras de ser, viver e apreender o rural. Ao analisarmos a presença do sujeito da roça na literatura infanto-juvenil que circula nas escolas evidencia-se que a visão desta cultura tem sido ou ausente nos livros adotados ou percebida de forma marginalizadora e esteriotipada, reforçando as marcas preconceituosas que existem na sociedade brasileira sobre os sujeitos que vivem, trabalham e/ou estudam em áreas rurais. Bourdieu (1999), ao discutir sobre as sociedades contemporâneas e as relações sociais que mantêm os diferentes grupos sociais, tendo o sistema de ensino como instituição que permite a reprodução da cultura dominante, afirma o quanto a escola tem sido espaço da perpetuação das desigualdades sociais. Essa máxima é confirmada quando se observa que o material literário utilizado pelo professor de classe multisseriada muitas vezes não reconhece e contempla a diversidade cultural brasileira, atendendo quase sempre às ideologias hegemônicas, que usam o livro como um veiculo da indústria cultural a favor da imagem do indivíduo branco e urbano como única referência positiva. O que se constata é que a escola, inclusive às localizadas em áreas rurais, ao ignorar a diversidade sócio-cultural existente na nossa sociedade, acaba selecionando e privilegiando as manifestações e os valores culturais das classes hegemônicas, explicitando aos seus alunos que eles precisarão dominar outro aparato cultural e concepção de mundo que não é o seu. A ação pedagógica, nesses casos, tende à reprodução cultural e social, pois os filhos das classes trabalhadoras rurais têm, na escola, um espaço de ruptura no que se refere aos valores e saberes de sua prática, já 413 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. que os materiais didático-literários mostram, de forma implícita ou não, o quanto eles são desprezados, ignorados e desconstruídos na sua inserção cultural, ou seja, mostra que eles necessitam apreender novos padrões ou modelos de cultura para serem inseridos na sociedade. Ao pensar na leitura em escolas rurais, ratifica-se que a concepção de leitura defendida neste artigo é de que ela só acontece quando há compreensão, interação. Essa visão busca ancoragem na concepção bakhtiniana de linguagem, que permite pensar a prática educativa e o ensino e a aprendizagem da leitura numa perspectiva de dialogismo, em que as relações travadas com o texto superam a mera decifração e oralização de sinais gráficos e somente se institui quando o leitor estabelece uma relação com o texto e com autor, em uma atitude responsiva que o torna capaz de ler e de dialogar, de se posicionar diante do que leu. Sendo assim, constata-se o quanto a leitura na perspectiva de que ela se institui somente na relação interlocutiva e dialógica (Bakhtin, 2003), entre autor e leitor tem sido um desafio para os alunos de classes multisseriadas, já que se torna difícil “dialogar” com um texto que não te 414 representa social e culturalmente. Sabemos que é inegável que elementos da diversidade cultural brasileira precisam estar presentes na literatura, pois eles contribuem para a visibilidade de outro imaginário cultural, baseado no princípio da diversidade e da pluralidade, das ruralidades, das africanidades e toda a nossa multiculturalidade, o que se torna essencial para a concepção da identidade do povo brasileiro e da criança/jovem morador de área rural. Dessa forma, evidenciando nossa preocupação com o leitor que está se formando nas classes multisseriadas das escolas rurais e com o quanto essa leitura tem sido desvinculada das raízes identitárias dos sujeitos, busca-se, a partir de então, a socialização de atividades propostas por professores, colaboradores da pesquisa de mestrado, que atuam em classes multisseriadas. Fica evidente o quanto eles entendem a importância que a leitura assume na construção de propostas que rompam com a lógica urbanocêntrica e que sejam representativas das singularidades de quem vive e trabalha em áreas rurais. Como a abordagem adotada na pesquisa é a (auto)biográfica, o estudo tem permitido aprender os relatos dos professores e: Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. [...] entendê-las em seu tríplice aspecto: tanto como fenômeno (o ato de narrar-se), quanto como método de investigação e, ainda, como processo de autoformação e de intervenção na construção identitária de professores e de formadores, expressas em diferentes modos de narração e discursos da memória. (SOUZA, 2008, p. 37) Sendo assim, observa-se as experiências literárias construídas pelos colaboradores como um movimento que revela inconformidade diante das questões expostas e busca de alternativas através da (re)invenção do cotidiano escolar (CERTAU, 1994). As atividades (re)construídas evidenciam a necessidade de fugir dos estereótipos e o desejo de construir, em suas classes, uma identidade positiva acerca das ruralidades que representam os sujeitos que ali estão. (RE)INVENTANDO A LITERATURA NO COTIDIANO DAS ESCOLAS RURAIS: em busca da singularidade negada Segundo Certeau, a leitura é uma atividade de “[...] produção silenciosa [que] introduz, portanto, uma ‘arte’ que não é passividade [...]” (1994, p. 50), Nessa perspectiva, observa-se, pelos relatos dos professores colaboradores da pesquisa, que as atividades de leitura realizadas nas escolas rurais parceiras, buscam desenvolver a participação, a não passividade dos alunos para alcançar as competências leitoras definidas pela Secretaria de Educação e demais órgãos normativos da educação brasileira. Contudo, é preciso relatar também a necessidade de superar a negação da singularidade do sujeito da roça, já que esta não aparece nem no livro didático nem nos demais livros literários e textos dos projetos que os professores recebem para trabalhar. Em todos esses materiais não se visualiza uma relação entre os textos literários e a vida cotidiana do aluno campesino. Neste sentido, o livro didático passa a ser meramente um recurso, utilizado pelos docentes quando há possibilidade de que a atividade seja adaptada. É o caso da experiência que narra um dos “artesãos intelectuais” (MILLS, 2009), como chamo os professores que exercem o “ofício” da docência e da intelectualidade em contexto de multisseriação. Nesse caso, a classe multisseriada reúne alunos de Educação Infantil ao 5º ano do Ensino Fundamental. 415 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A experiência relatada pelo professor colaborador da pesquisa evidencia um olhar sensível e atento para as oportunidades de construção de práticas pedagógicas nas quais seja possível o entrelaçamento entre o ensino de Língua Portuguesa e a identidade cultural dos alunos. Nesta perspectiva, a partir de uma atividade presente no livro didático com o qual trabalha, no qual se propõe a leitura da biografia de Patativa do Assaré como forma de estudar esta modalidade textual, o professor cria uma sequência didática ampliando a proposta do livro e traz vídeos e textos sobre o escritor, iniciando um trabalho sobre a cultura do artista e ainda sobre a literatura de cordel, como mostram as imagens cedidas pelo docente. Imagem 1– Biografia de Patativa do Assaré. Imagem 2 – Vídeo e textos de Patativa do Assaré. 416 Fonte: Acervo pessoal do professor “artesão intelectual” 1 – junho de 2015 Observa-se a busca em superar o distanciamento dos livros didáticos e literários e projetos de leituras propostos pela Secretaria de Educação na ampliação do trabalho com um texto que tem relação mais próxima dos alunos. Dessa forma, nota-se a literatura no cotidiano das escolas sendo reinventada em busca de ações Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. que aproxime os textos do contexto no qual os alunos estão inseridos, em busca de situações que possam de fato promover um diálogo com os leitores, propiciando identificação cultural e prazer pela leitura. Na continuidade da sequência, os alunos estudam as características do gênero textual literatura de cordel, além de realizar leituras e debater sobre o assunto. Também começam a produzir seus textos de literatura de cordel e apresentam para a comunidade escolar. Imagem 3– Texto sobre literatura de cordel. Imagem 4 – Textos produzidos pelos alunos. 417 Fonte: Acervo pessoal do professor “artesão intelectual” 1 – junho de 2015. A reflexão que a atividade supracitada suscita leva-nos a pensar sobre as possibilidades positivas deste trabalho para a identidade dos alunos e também para a dos docentes, que se reconstrói e toma outros sentidos à medida que professores e alunos se reconhecem no espaço em que estão inseridos e assumem essa identidade sem negação e subordinação. Neste processo, no qual o professor vai buscando a superação das deficiências e ausências do material didático com atividades de leitura que façam sentido para o aluno morador de área rural, ele luta contra um poder que é exercido nas relações sociais e que está em todas as partes, mas na escola emerge, muitas vezes, como uma força de modo a negar ou sucumbir as raízes identitárias dos sujeitos que ali estão. Como aponta Foucault (1979, p. 88): “Parece-me que se Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. deve compreender o poder, primeiro, como uma multiplicidade de correlações de forças imediatas”. E esse poder que se encontra presente nas relações de forças no âmbito das escolas rurais também é superado quando outro “artesão intelectual” pensa em uma atividade de valorização das gerações mais velhas e convida a comunidade e avós dos alunos a participar de uma dramatização de um livro literário intitulado” A colcha de retalhos (2010)”, de Conceil Côrrea da Silva e Nye Ribeiro Silva, livro de propriedade do docente, que narra uma história entre um neto e sua avó sobre o valor de se preservar e cuidar do que e de quem gostamos, oportunizando uma discussão sobre memória e as nossas histórias. Além disso, estimula as relações intergeracionais, promovendo um diálogo com os mais velhos e estabelecendo uma relação de troca de informações e valorização da comunidade nas atividades escolares, o que fortalece as relações entre família, comunidade e escola. As fotos, também cedidas pelo docente, retratam esse momento. Imagem 5– Livro utilizado na atividade narrada. 418 Fonte: Acervo pessoal do professor “artesão intelectual” 2 – setembro de 2015. Imagens 6 e 7– Dramatização e apresentação de cartazes confeccionados sobre a história lida para as famílias. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Fonte: Acervo pessoal do professor “artesão intelectual” 2 – setembro de 2015. Imagem 8– Apresentação de jogral feita pelos alunos sobre a família e a importância dos laços familiares. 419 Fonte: Acervo pessoal do professor “artesão intelectual” 2– setembro de 2015. Observa-se que o empoderamento que nasce da leitura, em atividades como estas quando desenvolvidas na escola, apresentam-se como extremamente eficazes no sentido de atuar como um dispositivo capaz de sustentar os sonhos dos alunos campesinos, por se verem na própria história como protagonistas e não apenas como figurantes. Também conseguem dialogar com o texto, já que a dialogicidade necessária para que a leitura de fato aconteça não pode ser dissociada da vida cotidiana. Por isso, a escolha das atividades, e dos diferentes gêneros textuais, precisa ter conexão com o contexto social dos interlocutores. Nesse caso, a relação entre autor/leitor Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. acontece porque o aluno sabe de onde se fala e para quem e o porquê se fala. É nesse sentido que Bakhtin (2003) afirma que: O papel dos outros, para quem se constrói o enunciado, é excepcionalmente grande, como já sabemos. Já dissemos que esses outros, para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo também para mim mesmo), não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação discursiva. Desde o início o falante aguarda a resposta deles, espera uma ativa compreensão responsiva. É como se todo o enunciado se construísse ao encontro dessa resposta. (BAKHTIN, 1992, p. 301). Outro fato importante a ser considerado é que as situações didáticas apresentadas retratam elementos da vida cotidiana dos alunos e das relações estabelecidas na comunidade e nas famílias que ali residem, propiciando a relação texto - leitor e a conscientização positiva do vocabulário utilizado culturalmente entre os povos da comunidade campesina. Dessa forma, ocorre domínio interpretativo da palavra escrita, de tal modo que fornece elementos pós releituras 420 capazes de fortalecer o engajamento com produções escritas e outras leituras, inclusive a de mundo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse texto insere-se numa discussão pouco tematizada nas produções acadêmicas - a das práticas literárias pensadas e protagonizadas por professores de classes multisseriadas de escolas rurais. Em notas (in)conclusivas, ressaltamos neste artigo a necessidade de que mais estudos e relatos de experiências sobre questões aqui levantadas ocorram, na tentativa de rompermos silêncios e práticas pedagógicas ancoradas em processos de formação de leitores apenas decodificadores de palavras. Segundo Kleimann (2007) o professor que oportuniza apenas atividades nas quais a concepção de leitura, implícita ou não, seja a do ato de ler como mera decodificação de palavras, forma seus alunos nessa perspectiva e não consegue promover a fruição estética nem modificar a visão de mundo deles. Nesta perspectiva, as reflexões aqui problematizadas e as experiências relatadas Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. evidenciam a potencialidade do trabalho no qual os alunos e professores são protagonistas e se identificam social e culturalmente com os textos trabalhados. Acreditamos que o desenvolvimento de propostas didático-pedagógicas que entrelacem leitura literária e identidade cultural pode contribuir para que os estudantes da roça se sintam mais valorizados, fortalecidos e conscientes das suas marcas identitárias, além de que, atividades como as socializadas, favorecerem a configuração de um “novo” rural, que fuja dos estereótipos do campo como local de atraso, ajudando consequentemente na construção de uma “nova” escola, com professores que tenham como principal desafio perceber e valorizar a vida neste espaço, à medida que o mundo, o lugar, nossas experiências e nossas histórias estão dentro de nós e formam a teia da nossa vida, não devendo nunca ser negligenciadas ou desrespeitadas. Concluímos que a escola se configura como espaço fundamental para a construção das identidades dos sujeitos que ali estão e que é necessário repensar as práticas literárias desenvolvidas nas escolas rurais, a fim de que a educação e a leitura para os alunos desses espaços possam ser mais significativas e emancipatórias, de modo que estes possam produzir seus territórios singulares de identidades, valorizando suas ruralidades e seus modos de ser, existir e aprender. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BAKHTIN, Mikhail. Estética Da Criação Verbal. Tradução: Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. Escritos de Educação. Capítulo II, Tradução: Aparecida Joly Gouveia. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p 41-64. CERTEAU, Michel de. 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ENTRE LIVROS E HISTÓRIAS: memórias de leituras, formação do leitor e pesquisa (auto)biográfica Rita de Cássia Oliveira Carneiro Doutoranda do PPGEduC/ Universidade do Estado da Bahia-UNEB [email protected] RESUMO A ampliação do campo de discussão da pesquisa com história de vida, as narrativas de si, a biografia e autobiografia tem entrecruzado espaços para investigação de questões relacionadas também com a literatura e os processos de formação leitora, aspecto este bastante frutífero, principalmente por proporcionar um outro olhar sobre algumas concepções construídas pelo senso comum a respeito do conceito de leitura e leitor. Aliadas à esta questão, as investigações sobre as experiências de leitura de professores têm contribuído para redefinir o conceito de leitor atribuído a este sujeito. O presente artigo é resultante das discussões teóricas produzidas no semestre 2014.2, no âmbito da disciplina Abordagem (Auto)biográfica Formação de Professores-Leitores, do programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia e as contribuições proporcionadas por estas leituras para a minha formação enquanto pesquisadora. A proposta da disciplina foi de nos fazer refletir sobre as “perspectivas teóricometodológicas da abordagem (auto)biográfica com ênfase nas histórias de leitura, e suas implicações na formação”, para levar-nos a compreender a partir de narrativas de vida e de leitura (biográficas e ficcionais), as relações entre práticas culturais de leitura e de formação. Neste texto procuro estabelecer relações entre as leituras realizadas na disciplina, o campo da pesquisa (auto)biográfica e a formação do professor-leitor, bem como sua contribuição para o estágio de construção atual da minha pesquisa, memórias de leitura apontadas no relato de uma das professoras, e minhas próprias memórias de leitura, entendendo a importância do campo da memória e da pesquisa (auto)biográfica para a compreensão dos percursos e trajetórias da leitura e da constituição dos leitores nos diversos espaços educativos. Ao buscar estabelecer uma ponte entre a minha pesquisa e a disciplina, o fiz a partir do que temos de mais próximo: a pesquisa (auto)biográfica voltada para a investigação de processos formativos, no caso desta investigação, das professoras leigas. Palavras-chave: Memórias; Formação do Leitor; Pesquisa (Auto)biográfica 1- INTRODUÇÃO O campo da pesquisa em educação no Brasil, principalmente na investigação sobre os processos de formação docente, ganhou novos contornos a partir da Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. introdução de uma concepção de pesquisa compreendida como pesquisa (auto)biográfica, marcadamente no final dos anos 1990, alargando-se o escopo dos trabalhos com este viés nas décadas seguintes. O crescimento de tais investigações provocou o surgimento de grupos de pesquisas e associações de pesquisadores de diversas universidades promovendo simpósios, seminários e congressos regionais, nacionais e internacionais, o que contribuiu para ampliar as discussões e trocas entre pesquisadores de todo o país e pesquisadores internacionais, que se debruçam sobre narrativas autobiográficas e história de vida, não apenas na pesquisa em educação, como também nas diversas temáticas das Ciências Humanas. A utilização da abordagem (auto)biográfica em nosso país, no âmbito das pesquisas educacionais que investigam questões relativas à docência, memória, gênero, e formação tem ampliado as possibilidades de análise do fenômeno educacional, configurando-se no que alguns autores passaram a denominar de “movimento biográfico”, em virtude do espraiamento deste tipo de investigação. Neste viés os trabalhos de Sousa, Catani, Souza e Bueno (1996); Catani, Bueno, Sousa 424 e Souza (2003); Demartini (1988) e Souza (2006) são importantes para nos ajudar a compreender os caminhos da pesquisa (auto)biográfica e das histórias de vida em formação. A ampliação do campo de discussão da pesquisa com história de vida, as narrativas de si, a biografia e autobiografia tem entrecruzado espaços para investigação de questões relacionadas também com a literatura e os processos de formação leitora, aspecto este bastante frutífero, principalmente por proporcionar um outro olhar sobre algumas concepções construídas pelo senso comum a respeito do conceito de leitura de leitor. Aliadas à esta questão, as investigações sobre as experiências de leitura de professores têm contribuído para redefinir o conceito de leitor atribuído a este sujeito. E neste aspecto Morais (2011, p. 172) nos chama a atenção para o fato de que [...] alguns estudos mais recentes, apoiados na história cultural, têm conseguido alcançar práticas, materiais de leitura, modos de ler que o “discurso de crise”, tecido de forma contundente nos últimos 20 anos, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. a partir de outros paradigmas de investigação e de interpretação da realidade brasileira, não conseguiu alcançar. Ao referir-se ao “discurso de crise” da leitura em nossa sociedade, apontada por algumas pesquisas, a autora questiona os modelos interpretativos dessas pesquisas pois estes parecem que não dão conta dos diversos “modos como os leitores se aproximam, fazem uso e se apropriam de um texto” (idem p. 173). Desse modo, as narrativas de professores/as que contam sua história de vida, suas experiências de leitura contribuem para compreendermos seus percursos e formas como se apropriam do texto e se tornam leitores, desmistificando uma concepção de leitura e de leitor clássico. 2 - UM NOVO OLHAR SOBRE O MESMO: AS CONTRIBUIÇÕES DA DISCIPLINA 425 A proposta da disciplina foi de nos fazer refletir sobre “as perspectivas teórico-metodológicas da abordagem (auto)biográfica com ênfase nas histórias de leitura, e suas implicações na formação”, para levar-nos a compreender “a partir de narrativas de vida e de leitura (biográficas e ficcionais), as relações entre práticas culturais de leitura e de formação”. Como uma questão prática nos fez também rememorar nossa experiência leitora, ao escrevermos o “Rascunhos de mim”, narrando as reminiscências dos inicios de nossa relação com a leitura e com os livros. Embora tenha feito essa disciplina em 2007, durante o mestrado, houve mudanças significativas, tanto na ementa como nas leituras sugeridas, desse modo discussões produzidas durante o semestre contribuíram para ampliar e sedimentar minhas perspectivas sobre esse viés de pesquisa, além de me fazer refletir sobre aspectos concernentes à minha investigação em andamento. A leitura do texto de Benjamim “O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” foi importante para nos fazer lembrar o papel da narrativa e daquele Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. que narra com o conhecimento de seu mundo e a profundidade que o torna um grande conhecedor da vida e dos costumes de seu tempo e comunidade. O texto de Walter Benjamim (1996, p. 198) é uma leitura importante que demonstra a força e o poder da palavra do sujeito que sabe contar uma história e como afirma o autor “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.” Ao trabalharmos com as narrativas em nossas pesquisas é mister compreendermos o lugar de onde fala o sujeito e a riqueza de suas experiências que deixa transparecer na narrativa. No caso particular da minha pesquisa, a narrativa da trajetória de trabalho das professoras leigas e de seu processo formativo em serviço é uma contribuição importante para a história da educação na Bahia que tem sido devedora destes sujeitos, visto que pouco tem de vestígios de seu trabalho e contribuição na historiografia da educação em nosso Estado. Em Pierre Bourdieu (2006) – A ilusão biográfica – a leitura me serviu de alerta 426 para não esquecer algumas questões importantes para o meu trabalho. Em primeiro lugar para quem faz pesquisa autobiográfica precisa pensar o sujeito em sua complexidade, como um ser inacabado, aberto ao devir, que não se revelará em sua totalidade, mesmo que se diga fazendo isso. Outro ponto é a crítica que o autor faz – na verdade o cerne de seu ensaio – à impossibilidade de se fazer uma biografia ou autobiografia justamente pela questão anterior: do sujeito contar-se a si mesmo e produzir uma história da sua vida. Porém, ao contrário do que afirma o autor neste ensaio, acredito na pesquisa autobiográfica porque compreendo que as narrativas que os sujeitos fazem de sua vida não é a história totalizadora, pormenorizada, cronológica – porque ninguém consegue fazer isso –, mas não é menos verdadeira a história que os sujeitos constroem a partir do momento em que são instados a narrarem a si mesmos, construindo essa narrativa pela memória do vivido. E neste sentido concordo com Sarlo (2007, p. 09) ao afirmar que “o passado é sempre conflituoso” visto que a memória que temos do vivido ou do que lembramos deste tempo vivido, se faz no presente, é um passado presentificado. E deste modo rememorado, sentido pelo sujeito que não pode reconstitui-lo em sua inteireza, é Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. preciso tomar a lembrança do passado somente como “um advento, uma captura do presente” (idem). Creio que é nisso que reside também a beleza desses relatos. Mas há também um aspecto significativo neste texto que é a noção de trajetória apontada por Bourdieu (2006, p. 189) que a define “como série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações”, pois isto chama a atenção para a necessidade de contextualização dessa trajetória, ou seja a história (trajetória) individual em relação à história social, a relação espaço-temporal dos acontecimentos. E o conhecimento da história é importante para entendermos as relações entre sociedade, os sujeitos e a produção de sua vida. Interessou-me bastante esta noção, pois vou trabalhar a trajetória de vida-formação das professoras leigas e deste modo pretendo apropriar-me melhor deste conceito. Em minha pesquisa tenho lançado mão, além das narrativas orais, de documentos pessoais fornecidos por algumas professoras tais como cadernos de apontamentos dos cursos de formação, livros utilizados por elas, e outros documentos ainda por analisar, além da legislação sobre formação de professores da época, pois relato em si não inviabiliza a utilização de outras fontes que podem ampliar ou sedimentar essas narrativas. A leitura do texto de Lacerda(2003), precedido pelo prefácio de Roger Chartier nos faz adentrar no mundo íntimo, memorialístico e autobiográfico da escrita de mulheres de meados do século XIX ao início do século XX. Um trabalho de folego que nos ajuda a pensar sobre as formas como as mulheres se inscrevem e escrevem suas memórias e autobiografias. O texto de Lilian Lacerda despertou meu olhar para a questão metodológica para a forma como ela organiza os dados e constrói a narrativa. Assim também foi a leitura do texto de Coutinho(2014), “Notícias de clã”, por tratar-se de uma pesquisa que tem como horizonte teórico a noção de biografema de Roland Barthes, e escrita como um ensaio biográfico. Isto para mim foi bastante inspirador, pois abre outras possibilidades de escrita para a tese além de que, esses textos tem como centro a história de mulheres, e este também é o foco da minha tese, a história de mulheres, professoras leigas. 427 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Com relação ao texto de Figueiredo (2013), sua leitura foi extremamente rica pois nos remeteu à busca de outros textos que, lidos concomitantemente, ampliou a compreensão da temática da autobiografia, agora voltada para a literatura e a ficção, e no rol dessa leitura foram incluídos os textos de M. Foucault, “O que é um autor?”; e o texto de Roland Barthes, “A morte do autor”. Figueiredo nos leva ao universo da biografização ficcional, da biografia como gênero literário produzindo uma discussão da temática com uma extensa referência que sustenta suas argumentações. Deste texto suscita-me o desejo de aprofundar-me em dois conceitos cunhados por Roland Barthes que aparecem neste texto: o de “biografema” e o de “punctum”, tal como aponta Figueiredo (2013, p. 20) estes dizem respeito “não a completude de uma história, não a foto toda, mas pequenos detalhes, algumas inflexões, que emocionam numa biografia ou numa foto”, pois acredito que podem ser importantes para o meu trabalho. A atividade prática de rememorar nossas experiências com a leitura, as influencias que tivemos e que nos constituíram leitores e leitoras foi muito 428 interessante pois ao partilhar as leituras dos “Rascunhos de mim” percebi que havia muitas similaridades entre os relatos. Neles havia sempre alguém que introduzia o leitor no mundo das palavras, fosse através da contação de histórias, ou de leituras compartilhadas, havia também os relatos de leituras “proibidas”, contrabandeadas. Livros tomados de empréstimo de algum familiar ou amigo, ou mesmo de alguma biblioteca próxima onde morava, também foram relatados nos Rascunhos e ao ouvirmos os relatos nos sentíamos contemplados de alguma forma pois havia muito em comum. E é sobre o meu relato que procuro fazer uma aproximação com a minha pesquisa, a seguir. 3 - SOBRE AS HISTÓRIAS DE LEITURA E SUAS CONEXÕES: O “RASCUNHO DE MIM” E O MEU OBJETO DE INVESTIGAÇÃO Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O que me aproxima da história de vida das professoras leigas, objeto de minha pesquisa? Ao escrever sobre minhas memórias de leitura que chamei de “Rascunhos de mim ou... de como me encantei com as palavras” eu começo marcando justamente essa aproximação: “Minha relação com as palavras começa com a escola. Sou a primogênita de uma professora leiga [...]”. Mas não apenas isso, minha mãe foi também minha primeira professora e como acontecia com quase todas as professoras leigas que trabalhavam na zona rural, a casa também era a escola, e por esta razão eu afirmo em meu relato que “eu, literalmente, nasci numa escola.” Além disso, a relação com o suporte escrito para a leitura é algo que também me aproxima dos sujeitos da pesquisa. Em suas primeiras narrativas as professoras falam sempre da dificuldades de acesso aos livros, sendo estes adquiridos especificamente para o estudo, ou seja eram livros didáticos requeridos para o seu aprendizado escolar. Em minhas reminiscências eu falo sobre isso também, sobre a falta de livros em casa, fossem didáticos ou mesmo de literatura – algo raro, para não dizer inexistente durante minha infância. O trabalho com as reminiscências nos faz compreender que memória e esquecimento são uma via de mão dupla, não lembramos tudo o que ficou registrado na lembrança, que lutamos para manter vivo é o que é significativo para nós, porque como afirma Bosi (1994, p.39), “A memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento”. E há muita coisa que não me lembro, ou as lembranças parecem uma imagem desfocada na distância do olhar da memória e o que vem são fragmentos, instantâneos fotográficos de um decurso do vivido como o punctum de Roland Barthes, aquele elemento em uma fotografia que nos transporta a outra dimensão, que nos emociona, nos comove. E este exercício de escrever as lembranças de minha relação com os livros e com a leitura, me faz compreender mais ainda os sujeitos da minha pesquisa – as professoras – e suas dificuldades em narrar-se para um outro, neste caso o pesquisador, porque a memória é também fragmentada, dá conta de alguns pormenores, daquilo que nos marcou de alguma forma, mas “esquecemos” outros fragmentos que não desejamos trazer à tona, narramos biografemas, no sentido barthesiano. 429 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Surge nesse início da pesquisa, despertada pelas discussões realizadas durante o semestre, mesmo não sendo o foco do meu trabalho, a questão da formação leitora das professoras leigas – sujeitos da minha investigação – visto que minha história de vida se conecta de algum modo com elas. O que instou-me a pensar sobre minha própria experiência com a leitura, sendo eu oriunda também da zona rural e filha de professora leiga, que não por coincidência é também um dos sujeitos da pesquisa. Deste modo ao retomar as leituras dos textos e das primeiras entrevistas realizadas com quatro professoras tentei observar estes aspectos, se apareciam nos depoimentos. As primeiras conversas com quatro das seis professoras contatadas até o momento, fizeram-me refletir sobre como teriam sido suas experiências leitoras e os suportes dessas leituras De seus relatos iniciais pude depreender que a escassez de livros era comum à todas. Elas se referiam aos livros didáticos, comprados com muito sacrifício para estudar, além da cartilha em que foram alfabetizas. A leitura compartilhada da bíblia e de algumas histórias, geralmente com um fundo moral, 430 foram algumas indicações dessas experiências relatadas por uma das professoras. Das conversas iniciais gravadas com quarto professoras, apenas uma delas faz referências aos livros que tinha acesso e aos modos de leituras. Foi com esta professora, também, que encontrei vários livros escolares – alguns do seu processo de escolarização primária – além de cadernos de apontamentos do período dos cursos de formação e aperfeiçoamento (PAMP). O relato feito pela professora tem um traço religioso forte, pois suas referências de leituras são de textos religiosos, da Bíblia ilustrada comprada pelo pai, e que este lia aos domingos pela tarde, no que ela chamou de “escolinha bíblica”. Além dessa leitura a professora M.A. se referiu a outros livros de histórias que de alguma forma tinham um fundo moral, que trazia ilustrações que ela disse recordar-se. Assim como a professora M.A. minhas primeiras lembranças de histórias são de ouvir histórias, do meu pai, da minha mãe. A figura do narrador que conta a história que ouviu de outros narradores se faz presente na minha história de leitura e na da professora M.A., figura esta que está em vias de extinção como aponta Walter Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Benjamim (1996, p.198) que para ele “Uma das causas desse fenômeno é óbvia, as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo.” Há poucos espaços hoje para a contação de histórias em família, aqueles momentos em que todos se reuniam na cozinha em torno da mesa ou na sala para ouvir “causos” e histórias. Embora de alguma maneira, alguns de nós, talvez num gesto de saudosismo tentemos manter essas práticas familiares, o que resulta muitas vezes uma concorrência com a televisão, o computador ou o telefone celular, quando fica cada vez mais difícil uma reunião familiar em torno do pai ou da mãe para ouvir/contar histórias. É certo, porém, que a figura do contador de histórias ainda não desapareceu completamente, pois há também uma tendência a profissionalização desse sujeito narrador em espaços não formais e eventos literários, como acontece na Feira do Livro promovida pela Universidade Estadual de Feira de Santana. À GUISA DE CONCLUSÃO Na construção deste artigo me propus estabelecer relações entre as leituras realizadas na disciplina, o campo da pesquisa (auto)biográfica e a formação do professor-leitor, e seu contributo para o estágio de construção atual da minha pesquisa, memórias de leitura apontadas no relato de uma das professoras, e minhas próprias memórias de leitura. Tentei cumprir a promessa feita no resumo deste texto, ao apresentar uma análise de algumas das leituras realizadas durante o semestre e que em relação ao meu objeto de estudo estão mais próximas. Ao buscar estabelecer uma ponte entre a minha pesquisa e a disciplina, o fiz a partir do que temos de mais próximo: a pesquisa (auto)biográfica voltada para a investigação de processos formativos, no caso desta investigação, das professoras leigas. Tendo a disciplina o foco na formação do professor-leitor, busquei a partir do Rascunho de mim e do relato de um das professoras estabelecer uma ponte com essa temática. Embora a minha investigação esteja no início e as primeiras conversas com as quatro professoras não tenham revelado muito desse aspecto da leitura – apenas 431 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. uma delas faz referências às suas leituras e modos de partilha dessas leituras –, a disciplina faz suscitar as possibilidades desses olhares para as próximas entrevistas com estes professores e com as que não foram ainda contatadas. Isto não significa a mudança no foco da pesquisa, mas estar atenta ao surgimento de elementos novos que podem redimensionar as perspectivas na análise dos dados. Para além da relação da disciplina com a minha pesquisa em curso, as leituras e a escrita suscitada à partir daquelas, me fez compreender mais ainda a importância do sentido das palavras na minha história de vida. Se até os 10 anos de idade os livros não estiveram presentes materialmente na minha vida, as histórias ouvidas de meus pais compuseram meu imaginário e alimentaram a minha fome de palavras, que daí em diante, desde que me lembro, os livros estiveram presentes em minha vida, e acho que Eliane Brum (2014, p. 12) tem razão: “A morte é um mundo sem palavras”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 432 BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004 BENJAMIM, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIM, Walter. 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Rio de Janeiro: DP&A: Salvador, BA: UNEB, 2006. 434 UMA VOZ PORTUGUESA COMO TESTEMUNHA DA GUERRA COLONIAL EM ANGOLA: EXPERIÊNCIA, TRAUMA E REPRESENTAÇÃO Romilton Batista de Oliveira Universidade Federal da Bahia – UFBA [email protected] RESUMO Este artigo investiga a trilogia autobiográfica e memorialística do escritor português António Lobo Antunes como um indispensável testemunho da guerra colonial em Angola. Os romances Os Cus de Judas, Memória de elefante e Conhecimento do inferno constituem o corpus desta pesquisa. Pretende-se descrever como o conceituado escritor, baseado em sua própria experiência com a guerra, descreve as cenas de horror vistas por sua frágil visão humana. Os personagens-narradores dos romances em análise, principalmente o personagem-narrador do romance Os Cus de Judas, o médico, que consegue perceber o que antes não percebia. Foi estando longe de Portugal, nas terras prenhes de África, que o personagem principal adquire uma nova consciência de vida, ficando transtornado, sem entender o porquê de tanto sofrimento. Lobo Antunes consegue em seus romances abrir novas portas para o entendimento do que foi esta terrível guerra. Ele descreve, seduzido por uma memória, tecida por uma linguagem ferida em seu complexo mundo interior. Ao tornar-se um sobrevivente, torna-se, também, uma testemunha importante para narrar a difícil guerra colonial, ocorrida no território angolano. Sua escrita literária, nesse sentido, é o resultado do trabalho com a memória traumática. O trauma consegue perfurar a alma de seus sobreviventes, permitindo-lhes um grande momento de dor e silenciamento. Muitos sobreviventes da guerra, portugueses ou angolanos, ao retornarem para os seus respectivos lugares de origem, voltavam em silêncio, e ainda muitos permancem até hoje. No entanto, há ainda muitos que conseguem dialogar com esse inevitável passado que faz parte do presente, tanto na vida de portugueses quanto na vida de angolanos. Há importantes nomes de escritores africanos, como, por exemplo, José Eduardo Agualusa, Mia Couto, Pepetela, entre outros, que fazem uso da literatura como veículo de comunicação, capaz de resgatar, recuperar e ressignificar a memória do passado africano no difícil período histórico, dominado pela colonização portuguesa. Lobo Antunes parte de um discurso do lado do colonizador, mas seus textos literários são, por excelência, críticos e necessários para a própria história afro-lusófona. Este artigo é metodologicamente bibliográfico, dialógico e interdisciplinar. Autores como Bakhtin (1995), Stuart Hall (2006), Aleida Assmann (2011), Beatriz Sarlo (2007), Márcio Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Seligmann-Silva (2003, 2005), Walter Benjamin (1994), entre outros, são de suma importância, na construção de um consistente diálogo com o passado construído sobre os pilares da memória traumática. A literatura de traço testemunhal é um forte aliado na representação da voz daqueles que conseguem romper com os lacres da indizibilidade e irrepresentabilidade discursiva. Esta pesquisa prisma por este caminho e contribui nesta direção, sendo mais um trabalho que caminha pelas teias da complexa dimensão humana. PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Trauma; Representação; Memória; Afro-lusofonia. APRESENTAÇÃO Os romances que fazem parte do corpus desta pesquisa direcionam-se historicamente à Guerra Colonial e ao seu fim, bem como o inevitável fim de um mundo burguês, marcado por valores tradicionais. Os anti-heróis dos seus romances são pessoas que exercem profissões liberais, oriundas de “boas famílias”, refletindo a própria disfuncionalidade familiar do autor. E nesse sentido Os Cus de Judas constitui 436 um bom exemplo, além de vários outros romances escritos por ele, em que os personagens/narradores cruzam suas vozes nesses dois espaços: Portugal e Angola. O objetivo deste artigo, que tem como tema Uma voz portuguesa como testemunha da guerra colonial em Angola: experiência, trauma e representação é analisar três conceitos importantes entre si, que estão relacionados à descrição do testemunho da experiência do escritor português António Lobo Antunes, por meio de seus três primeiros romances publicados nos anos de 1979 e 1980, mencionados anteriormente. Esses romances fazem parte de sua trilogia autobiográfica que marcou a vida deste escritor para sempre. O principal conceito norteador deste trabalho é o trauma, fenômeno que se inscreve no corpo, em forma de “ferida”. Vários autores darão suporte que são de relevantes contribuições, em relação a esta questão: a presença do trauma nas obras literárias de Lobo Antunes. Assim, para o alcance de nossos objetivos, selecionamos autores de vários campos do conhecimento que dialogam com os estudos literários, desde o aspecto psicológico ao sociológico, além do filosófico e histórico, com o Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. intuito de realizar um consistente diálogo, acerca do processo mnemônico que se faz presente nos romances, por meio das vozes de seus respectivos narradorespersonagens. Apresentamos nesta pesquisa, oriunda da tese em construção do Doutorado em Cultura e Sociedade, na UFBA, a representação da memória e sua articulação com a linguagem, citando entre outros teóricos, o filósofo e linguista Mikhail Bakhtin, que, através de seu conceito de intertextualidade e dialogia, autoriza-nos a usar termos como “vozes” em nosso trabalho. Faremos uso também de autores que alicerçam nossas inquietações como João Carlos Tedesco, autor do importante livro Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração (2004), em que o autor traz importantes contribuições na relação da memória com outros vários conceitos que com ela se interage, mostrando que a memória nos ajuda a identificar formas de pensar no decorrer do tempo, produzindo sujeitos históricos, revigorando símbolos e reconstruindo a vida pelo veio da narração e da experiência. Outra importante contribuição vem do livro de Maurice Halbwachs, Memória coletiva (2006), em que o autor analisa a memória num contexto social e historicamente situado, centralizando-se mais no espaço do que no próprio tempo. Fortemente influenciado por Émille Durkheim, elabora dois relevantes conceitos: o de memória individual e o de memória coletiva, direcionando seus estudos para a memória coletiva. O centro de nossa atenção no que diz respeito ao conceito de memória gira em torno de dois autores, Henri Bergson que se preocupa com o “dentro” da memória e Maurice Halbwachs que se volta para o “fora” da memória. Cada um, a partir de suas abordagens em torno da teoria da memória, possui importância decisiva nesta pesquisa, pois toda memória se ancora nessas duas dimensões temporais e espaciais: o exterior e o interior. “A memória é o recurso máximo de conformação da escritura, é o princípio mobilizador do ofício da representação” (PINTO, 1998, p. 22). Enfim, esses e outros autores são citados aqui para tornar viável um diálogo interdisciplinar, capaz de direcionar nosso foco em torno da memória traumática que se faz presente no testemunho do sobrevivente do trauma de guerra: Lobo Antunes. 437 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Nesse sentido, a voz literária loboantuniana é necessária para compreender melhor os conflitos existentes entre Portugal e Angola, contextualizados por dois segmentos históricos que foram sendo desfeitos e desconstruídos através dessas guerras – o colonialismo e o descolonialismo –, guerras ocorridas em várias colônias portuguesas, que não aceitavam mais ser escravizadas e comandadas pelo regime ditatorial português. Política e ideologicamente construída, na esteira de um sistema de pensamento absolutista, centralizador, homogênio e hegemônico. EXPERIÊNCIA, TRAUMA, CORPO, VOZ, REPRESENTAÇÃO E LITERATURA Por que colocamos a palavra experiência antes das palavras trauma, corpo, voz e representação neste título? Porque acreditamos que é por meio dela que os sujeitos adquirem representações e necessárias condições para falar, de seu 438 respectivo lugar, sobre o que lhes aconteceu. Assim, sem experiência não há narrativa, nem tampouco representações, testemunhos, memórias. Segundo Beatriz Sarlo: A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passado. Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum. A representação inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetívle), mas a de sua lembrança. (2007, p. 24-25). A autora traz à tona, com exatidão e clareza, o que esta pesquisa acredita, como já mencionamos anteriormente. No entanto, Benjamin em seu livro Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (1994), especificamente em seus capítulos “Experiência e pobreza” e “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, afirmou que “com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável” (1994, p. 198). Beatriz sarlo discorda deste pensamento benjaminiano, acreditando que a experiência enriquece os sobreviventes. “O sujeito não só tem experiências como pode comunicá-las, construir seu sentido e, ao fazê-lo, afirmar-se como sujeito” (SARLO, 2007, p. 39). Os autores/sobreviventes/personagens/narradores jamais conseguiriam escrever o que os seus olhos viram, senão por meio do imaginário. Sem este importante recurso que subjetiva a voz humana, não seria possível falar dos traumas oriundos dessas grandes catástrofes. A condição dialógica é estabelecida por uma imaginação que, abandonando o próprio território, explora posições desconhecidas em que é possível surgir um sentido de experiências desordenadas, contraditórias e, em especial, resistentes a se render à ideia simples demais de que elas são conhecidas porque foram suportadas. (SARLO, 2007, p. 41). Para João Carlos Tedesco: O conceito de experiência é complexo: pode estar envolvido na ideia do que se vive (só em parte consciente), no processo por meio do qual o sujeito se apropria do vivido e o sintetiza, no exercício controlado, repetitivo, subjetivamente depurado, na via de acesso ou ter um dote de sabedoria, no exercício e a aquisição de capacidade de elaboração, no vivido, particularmente significativo e carregado de expectativas de competência, [...] Fala-se em experiências como passado presente, no qual eventos podem ser recordados; incorpora-se algo do passado no presente, como faculdade de conter os diversos vividos numa continuidade dotada de sentido. (2004, p. 98-99). O autor explana com veemência autoridade, descrevendo a experiência como algo complexo, afirmando com exatidão, que essas experiências vivenciadas no passado transformam o nosso presente, dando a ele um novo sentido. Desta forma, entendemos que o ponto de partida para olharmos o passado é o presente. É do presente que eu nós devemos nos dirigir-mos ao passado. “O passado é sempre conflituoso. [...] O retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente” (2007, p. 9). Afirma ainda a autora que o s verdadeiros testemunhos de tais atrocidades (referindo-e a qualquer catástrofe, e em especial ao Holocausto) não podem vir à tona, não podem falar, e este silêncio imposto pelo assassinato torna incompleto o testemunho dos “sobreviventes. A autora comenta ainda que: 439 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. De modo radical, não se pode representar os ausentes, e dessa impossibilidade se alimenta o paradoxo do testemunho: quem sobrevive a um campo de concentração sobrevive para testemunhar e assume a primera pessoa do que seriam os verdadeiros testemunhos, os mortos. Um caso-limite, terrível, de prosopopeia. (SARLO, 2007, p 35). Lobo Antunes é um exemplo de sobrevivente que rompe com os lacres da impossibilidade de se falar dos escombros da guerra. Ele consegue falar utilizando-se de uma potência de linguagem que emerge de seu mundo interior, carregado de imagens que seus olhos presenciaram. Mas é, em seu corpo, que estão presentes as marcas desta irrepresentabilidade. Sua experiência, enquanto médico e portador de um domínio linguístico psiquiátrico deu ao autor condições de escrever sobre os horrores que presenciou na guerra colonial em Angola. Para Jorge Larrosa Bondía (2002) 440 as palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras. (BONDÍA, 2002, p. 21) Concordamaos plenamente com Bondía, pois é a palavra que domina o mundo, as pessoas e as relações humanas. Nesse sentido Mikhail Bakhtin, já afirmava que “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. [...] A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social” (BAKHTIN, 1995, p. 36). Ainda complementa o autor, dizendo: “a palavra funciona como elemento essencial que acompanha toda criação ideológica, seja ela qual for”. (BAKHTIN, 1995, p. 37). Michel Foucault chama a atenção, de que nem tudo podemos falar falamos, pois somos interditados por determinadas ideologias em nossos discursos. Em relação a isso, ele comenta: Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não tem o direito de dizer tudo em qualquer cirscunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância direito Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que não cessa de se modificar. [...] Por mais que o discurso seja aparentemente bem ouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. (FOUCAULT, 2008, p. 9-10) Foulcault, em seu livro A ordem do discurso (2008), faz menção a três grandes sistemas de exclusão que atingem o discurso: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade. Mas é no terceiro sistema de exclusão que ele mais chama a atenção: a vontade de verdade. Conforme Foucault, trazendo agora a ideia de disciplina, afirma que ele “é um princípio de controle da produção do discurso Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permancente das regras” (FOUCAULT, 2008, p. 36). E complementando ainda as ideias em torno do controle dos discursos, o autor faz a seguinte reflexão: Desta vez, não se trata de dominar os poderes que eles têm, nem de conjurar os acasos de sua aparição; trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles. Rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam; ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas (diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a todos os ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que fala. (2008, p. 36-37) O autor é um férreo crítico do sistema dominante que determina o que as pessoas devem ou não fazer ou pensar. Sendo um pós-estruturalista, por excelência, suas contribuições são de grande importância para a crítica cultural ou mesmo ao sistema de pensamento que reproduz em seu seio uma única voz, excluindo tantas outras de seu espaço discursivo. Foucault (2008) afirma em tom de alerta que ninguém se deixe enganar diante da ordem do discurso verdadeiro ou do discurso publicado e livre de qualquer ritual, pois se exercem ainda formas de apropriação de segredo e de não-permutabilidade. “Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (Idem, p. 44). Há, por traz de nossas palavras, 441 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. formações ideológico-discursivas, emanadas de estruturas que estão acima de nós, bem sedimentadas politicamente, tornando-nos reprodutores de seus discursos. Agora, o autor oferece-nos o conceito do que vem a ser discurso. Segundo ele: O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim tomar a forma de discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si. [...] o discurso nada mais é do que um jogo, de escritura, no primeiro caso, de leitura, no segundo, de troca, no terceiro, e essa troca, essa leitura e essa escritura jamais põem em jogo senão os signos. [...] Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo o caso; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade. (FOUCAULT, 2008, p. 49-53). Não é a linguagem que tem a primazia; o único objeto imanente que pode ser submetido à analise é o discurso: “É no discurso atualizado em frases que a língua se forma e se configura” (COQUET, 2013, p. 112). Ainda segundo Jean Claude Coquet 442 “o locutor é duplamente centrado, no tempo e no espaço. No tempo, pois “é sempre no presente que estamos centralizados” [...]; no espaço, pois ele ocupa um centro de perspectiva no mundo. Mas é um centro móvel, um centro que se desloca ao mesmo tempo que se renova o presente do discurso. (COQUET, p. 112-113). A representação está integrada à memória. É por meio da memória que acumulamos conhecimento e experiência, através das quais formulamos nossos pensamentos em torno da vida e das coisas que nos cercam. Passado, presente e futuro se misturam em nossas mentes, pois “aquilo que dirige não são poucas ideias que ocupam presentemente nossa atenção; são isto, sim, os resíduos deixados por nossa vida anterior”, como bem enfatizou o autor acima. Percebemso também que segundo o autor, as representações estão sempre em confronto e são produzidas por meio do movimento do corpo. Falamos até este momento da importância da palavra, da linguagem, do discurso e da representação, pois quando dizemos que o mundo gira em torno da palavra, queremos dizer que as coisas e as palavras representam os sujeitos que Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. vivem em sociedade. Mas a palavra, o discurso, a representação está relacionada ao corpo dos sujeitos que enunciam suas vozes, externa ou internamente. O corpo é um misterioso lugar de inscrição do trauma, um potente lugar de onde saem os signos que estão aprisionados por ele. Assim, por muito tempo, o corpo não era visto com bons olhos. O pensamento iluminista que perdurou por muito tempo em nosso mundo, analisava a realidade a partir da razão, descartando o corpo do sistema de pensamento que era construído e aceito pelos pensadores e demais pesquisadores. Filósofos como Merleau-Ponty e Henri Bergson (2010) colocam em cena o corpo como ponto de partida na construção do conhecimento e da própria realidade. “Quando a narração se separa do corpo, a experiência se separa de seu sentido” (SARLO, 2007, p. 27). Para Bergson, em relação à experiência e ao corpo, o autor afirma que: Com relação às representações, ele é um instrumento de seleção, e de seleção apenas. Não poderia engendrar nem ocasionar um estado intelectual. No que diz respeito à percepção, nosso corpo, pelo lugar que ocupa a todo instante no universo, marca as partes e os aspectos da matéria sobre os quais teríamos ação. [...] No que diz respeito à memória, o papel do corpo não é armazenar as lembranças, mas simplesmente escolher, para trazê-la à consciência distinta graças à eficácia real que lhe confere, a lembrança útil, aquela que completará e esclarecerá a sitação presente em vista da ação final. (2010, p. 209). Assim, o autor acaba esclarecendo que o corpo é muito importante nos estudos da memória e da representação. É corpo que seleciona e nos movimenta, marcando os aspectos da matéria sobre os quais teríamos ação. Informa ainda o escritor que o papel do corpo, diante da memóra, não é armazenar as lembranças, mas para escolhê-las, conferindo ao corpo um lugar de suma importância para a análise e entendimento de nosso foco: o trauma nas obras loboantunianas, o trauma como “ferida” que está no corpo. A arte – como Benjamin já notara –, assume agora o papel de domesticadora dos indivíduos para a vida numa sociedade onde o choque se tornou parte da ordem do dia [...]. A verdade parece residir no trauma: no corpo como anteparo dessa ferida; num corpo cadáver que é visto como uma protoescritura que testemunha o trauma. Nessa nossa cultura fascinada pelo trauma estabelece-se uma nova ética e estética da representação (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 43). 443 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. É, portanto, o corpo, o elemento gerador e selecionador das lembranças que eles guardam silenciosamente. Lobo Antunes, astutamemnte, consegue dialogar com o seu corpo e fazê-lo selecionar as principais imagens que a sua frágil visão detecta. O corpo, sem dúvida, carrega dentro de si a experiência vivida pelos indivíduos que sobreviveram a catástrofes ou guerras. O trauma, conceito norteador deste trabalho, consegue perfurar o tempo vivido dos sobreviventes da guerra, sentimentos que adentram o interior de suas vítimas, causando-lhes um grande desconforto humano, como se eles perdessem o seu velho, fixo e seguro sentido das coisas e passassem a viver numa zona de desconforto e desequilíbrio constante. “Essa terapia do trauma consiste no aprendizado de uma nova relação com o mundo” (ASSMANN, 2011, p. 314), possibilitando a inevitável desconstrução da identidade daqueles que passaram pela experiência com o horror desumano. Segundo Tedesco (2004, p. 93), “a identidade se faz pouco a pouco, com base na experiência vivida, rememorada, retida anteriormente. Nesse sentido, a memória é o componente essencial para a identidade 444 do indivíduo e sua integração social”, ou mesmo a desintegração social, em se tratando da memória traumática. Em se tratando de guerra, podemos afirmar que ela tem o poder de desfazer, desmanchar, destruir e desconstruir sentimentos, pensamentos, discursos e representações culturais. Quem dela faz parte não retorna o mesmo. É ela o material da origem do trauma. Lobo Antunes é um grande exemplo desse fenômeno que desloca e descentra o homem de seus antigos valores. Ao retornar da guerra, o autor/personagem/narrador revela que: O medo de voltar ao meu país comprime-me o esófago, porque entende, deixei de ter lugar onde fosse, estive longe demais, tempo demais para tornar a pertencer aqui, a estes outonos de chuvas e de missas, estes demorados invernos despolidos como lâmpadas fundidas, esses rostos que reconheço mal sob as rugas desenhadas, que um caracterizador irónico inventou (ANTUNES, 2007, p. 182). Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Lobo Antunes tem a sua vida abalada, se sente ameaçado pelo passado e inseguro com o devir, gerando, com isso, um desconforto diante da realidade, uma crise de identidade, como bem sinaliza Stuart Hall ao afirmar que esta crise é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” [...] Esta perda de um ‘sentido de si’ estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento-descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma crise de identidade para o indivíduo. ( 2006, p. 7- 9) Noutro momento do romance Os cus de Judas, o autor ainda desabafa: Talvez que a guerra tenha ajudado a fazer de mim o que sou hoje e que intimamente recuso: um soldado melancólico a quem se não telefona e cujo telefonema ninguém espera, tossindo de tempos a tempos para se imaginar acompanhado, e que a mulher-a-dias acabará por encontrar sentado na cadeira de baloiço em camisola interior, de boca aberta, roçando os dedos roxos no pêlo cor de novembro da alcatifa. (ANTUNES, 2007, p, 56). O autor/personagem/narrador está passando por uma crise de identidade e de representação. A guerra costuma fazer isso em seus sobreviventes, deixando-os à mercê do caos-interior em que as suas vidas se tranformam. Podemos averiguar que na citação a seguir, retirada dos romances em análise, a presença de uma memória interpelada por signos que remetem ao corpo, demonstrando, desta forma, a inscrição do trauma no corpo, e respectivamente a retomada de uma dolorida consciência de sujeito que se está envelhecendo, um sujeito em desconstrução e em crise de representação, um sujeito em estado de choque: Em cada manhã, ao espelho, me descubro mais velho: a espuma de barbear transforma-se num Pai Natal de pijama cujo cabelo desgrenhado oculta pudicamente as rugas perplexas da testa, e ao lavar os dentes tenho a sensação de escovar mandíbulas de museu, de caninos mal ajustados nas gengivas poeirentas. (ANTUNES, 2008, p. 66). Ainda, noutro momento, podemos encontrar novamente, o trauma inscrito no corpo através da seguinte citação: 445 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. [...], encontrei uma mulher numa cama e uma criança num berço dormindo ambas na mesma crispação desprotegida feita da fragilidade e abandono, e fiquei parado no quarto com a cabeça cheia ainda dos ecos da guerra, do som dos tiros e do silêncio indignado dos mortos, a escutar, sabe como é, os sonos que se entrelaçavam numa rede complicada de hálitos, um tornozelo da minha mulher sobrava, pendente, dos lençóis, e eu comecei a afagá-lo de leve até ela acordar, afastar os cobertores sem nenhuma palavra, e me receber inteiro na cova morna do colchão. (ANTUNES, 2008, p. 86) Tornar o indizível visível através da linguagem é quebrar os lacres que não conseguiam romper com as “amarras” da irrepresentabilidade, é produzir discurso onde predomina silêncio e dor, produzir palavras no campo onde os signos estão amarrados a uma incompreensibilidade discursiva, como bem se pode constatar no romance Conhecimento do inferno, na voz de seu personagem/narrador: [...] e o seu corpo estendeu-se, tenso, na direção do som, à maneira de uma corda de arco que o dedo do gemido arrepiava. Escutava esse som nocturno na manhã do hospital, carregado das misteriosas ressonâncias e dos impalpáveis ecos das trevas, essa amêndoa de sombra na luz poeirenta, excessiva, da manhã, com a mesma expectativa dolorosa, o mesmo indizível pavor com que sentia aproximarem-se de si as trovoadas de África, pesadas de uma angústia insuportável (ANTUNES, 2006, p. 47). 446 Vejamos agora uma citação do romance Memórias de elefante em que podemos perceber as palavras finais do persoangem/narrador e a sua desilusão diante da trágica realidade: Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas. Talvez mesmo, meu amor, que compre uma tapeçaria de tigres como a do Senhor Ferreira: podes achar idiota mas preciso de qualquer coisa que me ajude a existir (ANTUNES, 2009, p.157-158). Assim, podemos dizer que o narrador narra “porque pressente que algo de fundamental foi esquecido; mas, enquanto não poder eliminar esse esquecimento, só poderá narrar tomado por forte sentimento de desorientação, de angustiante Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. sensação de ‘desmoronamento do mundo’” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 367). Nesse sentido, vale trazer à tona o pensamento de Montaury, pesquisador das obras de Lobo Antunes, quando ele afirma que os personagens de suas obras são “seres perdidos num vasto mundo feito de ausências e de morte, onde a representação e a mediação transformam a experiência fragmentada e desintegrada em tecido de real” (1996, p. 303). O autor/personagem/narrador é conduzido ao seu desfecho final, tornando claro no que ele se transformou. A experiência com a guerra modificou-lhe para sempre a sua forma de pensar, agir e estar no mundo. Na última página do romance Os cus de Judas, podemos constatar, por meio da voz de suas respectivas tias o resultado da guerra: As tias instalavam-se a custo no rebordo de poltronas gigantescas decoradas por filigramas de crochet, serviam o chá em bules [...] – Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem uma voz fraca, amortecida pela dentadura postiça, como que chegada de muito longe e muito alto, articulou, a raspar sílabas de madeira com a espátula de alumínio da língua: – Estás magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada a fazer (ANTUNES, 2007, p. 13 e 196). Assim, podemos entender que Lobo Antunes retorna não como um retornado, mas como um sobrevivente que tem que dar conta desse novo sujeito em que ele transformou: um “outro” machucado, ferido e transformado pelas marcas de um passado que jamais sairá de sua mente, pois, ele foi ferido no corpo e na alma pelo “fantasma” que acompanha todos os sobreviventes de catástrofes. CONSIDERAÇÕES FINAIS A experiência é o alicerce necessário para que o evento vivenciado traumaticamente pelo escritor viesse à tona. Ele utiliza a literatura para narrar a sua experiência, com o trauma de guerra que, segundo a maioria dos pesquisadores, é irrepresentável e indizível. Porém, o sobrevivente escritor age como um “lobo voraz” da linguagem humana e consegue romper com os lacres que aprisionam o trauma no interior de si mesmo. Nesta pesquisa, apresentamos o trauma como uma “ferida”, 447 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. que se aloja no corpo. O corpo tornou-se, nesse sentido, um potente lugar de inscrição deste “mal”, que transformou a vida de Lobo Antunes para sempre. Dialogamos com diversos autores de forma interdisciplinar, por entendermos que o trauma é um tema analisado por várias áreas do conhecimento humano, desde o filosófico e histórico ao sociológico e literário. Autores como Seligmann-Silva, Beatriz Sarlo, Walter Benjamin, Maurice Halbwachs, Henri Bergson, Michel Foucault e Stuart Hall foram citados para que pudéssemos analisar, de forma mais consistente, o trauma nos romances de Lobo Antunes. O resultado desta pesquisa está em fase de conclusão, mas podemos, desde já, antecipar, que todos os romances de Lobo Antunes são tecidos por signos (linguagem ou discurso) construídos sob o domínio de uma forte presença traumática. A literatura torna-se uma constante ameaça para o esquecimento, na medida em que ela descreve a memória individual/coletiva de um povo, trazendo em suas páginas a experiência de personagens que sobrevivem à guerra (à morte), “resgatando” e ressignificando a memória e a história de seu passado. Ela representa, 448 e se apresenta como um importante instrumento de “ressignifiçação” da memória, de uma memória que é reconstruída por meio das vozes que ecoam de seus silêncios interiores. Sem memória, o caos se estabeleceria, e depressa o esquecimento varreria de nosso espaço nossas próprias histórias e memórias. A literatura loboantuniana autobiográfica representa, nesse sentido, uma voz, um discurso, uma representação pessoal do escritor vivenciada nos liames do horror bélico, uma voz importante para se entender melhor a guerra colonial em Angola e as suas terríveis consequências, tanto para a história de Angola como para a história de Portugal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, A. Lobo. 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E ao professor, como principal agente de formação de alunos leitores, a necessidade de repensar a sua prática educativa, o que perpassa pelo investimento em um processo formativo contínuo, que apresente a literatura como uma forma de lidar, compreender, explorar e transformar o mundo, favorecendo a incorporação da leitura à vida pessoal e profissional, tendo em vista a construção de uma prática educativa qualificada. Este artigo pretende promover uma reflexão sobre as implicações da proposta do programa Pró-Letramento, área de linguagem, que integra a Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica, na formação docente. Trata-se de um recorte da pesquisa intitulada O Próletramento e as suas Implicações na Formação do Professor Leitor, do Programa de PósGraduação em Educação, da Universidade Estadual de Feira de Santana, a qual, ainda na fase de análise dos dados coletados, aponta, importantes reflexões dos sujeitos envolvidos sobre as implicações do curso para a constituição docente. Nessa perspectiva, esta escrita tem o desejo de socializar alguns resultados que emergiram do processo, no qual a sustentação teórico-metodológica foi ganhando sentido a partir dos princípios da abordagem qualitativa, com viés na (auto)biografia, por compreender a necessidade de articular vida e profissão, na constituição docente, elegendo como dispositivos de recolha de “dados” a entrevista narrativa e a análise de documentos do curso e pessoais. No desenvolvimento dessa produção, fez-se necessário estabelecer um diálogo dos percursos formativos dos sujeitos entrevistados com teóricos que versam sobre formação docente e leitura, a saber: Nóvoa (2009); Lajolo (1988), Freire (1995), Gatti (2006, 2008), dentre outros. A analise dos documentos que integram o programa e das entrevistas realizadas, a luz da teoria supracitada, parecem apontar uma distância entre a proposta teórica do curso Pró-Letramento e a sua execução, bem como a ausência de um trabalho intencional na formação leitora do professor. O que nos leva a questionar os princípios formativos previstos no discurso teórico da Rede Nacional de Formação, ao nos depararmos com uma proposta de curso que privilegia a aplicação de atividades conforme observa-se no curso Pró-Letramento, em detrimento do aprofundamento em conhecimentos que respaldem e favoreçam um trabalho de reflexão e investigação da prática. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. PALAVRAS-CHAVE: Formação continuada de professores; Reflexão da prática; Professor-leitor. APRESENTAÇÃO Estamos vivendo em uma sociedade que exige cada vez mais respostas inovadoras aos diferentes e complexos problemas apresentados. São novas demandas que trazem consigo novos desafios para todos os segmentos que a constituem. No setor educacional, as atuais discussões apontam para a necessidade de repensar o sistema educativo, na expectativa de que este se constitua, segundo Nóvoa (2009), em um novo espaço público para a educação. O que significa assumir uma nova função frente à sua complexidade, reconhecendo os limites da educação na transformação política da sociedade, porém, consciente de que é através da educação que podemos compreender segundo Freire (1986), as relações de poder estabelecidas na sociedade, bem como 452 preparar e participar de programas na perspectiva de promover mudanças. Nessa perspectiva, “ ‘O novo’ espaço público da educação chama os professores a uma intervenção técnica, mas também a uma intervenção política, a uma participação nos debates sociais e culturais, a um trabalho continuado junto às comunidades locais.” (NOVÓA, 2009, p.24). O que explicita a importância e a complexidade do papel do professor na contemporaneidade, fomentando a urgência na construção da identidade da profissão, o que perpassa sobretudo pela necessidade em investir em uma concepção de formação continuada de professores que promova conhecimentos teórico-práticos, possibilite um trabalho qualificado, logo a sua condição de intervir no mundo. Assim, torna-se imprescindível compreender o contexto atual da formação de professores, inicial e contínua, desenvolvidas pelos sistemas municipais em parceria com o governo federal, à luz da teoria, tendo em vista às necessárias mudanças. Nessa perspectiva, esta escrita tem o desejo de socializar alguns resultados que emergiram do processo de desenvolvimento da pesquisa intitulada O Pró-letramento e as suas Implicações na Formação do Professor Leitor, do Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Feira de Santana, a qual, ainda na fase de análise dos dados coletados, aponta importantes reflexões dos sujeitos envolvidos sobre as implicações do curso para a constituição docente. A sustentação teórico-metodológica foi ganhando sentido a partir dos princípios da abordagem qualitativa, com viés na (auto)biografia, por compreender a necessidade de articular vida e profissão, na constituição docente “ancorada na idéia da emancipação da pessoa, as histórias de vida em formação propõem que o sujeito se aproprie de seu processo de formação ao se tornar autor de sua história” (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 16), elegendo como dispositivos de recolha de “dados” a entrevista narrativa e a análise de documentos do curso e pessoais. No desenvolvimento dessa produção, fez-se necessário estabelecer um diálogo dos percursos formativos dos sujeitos entrevistados com teóricos que versam sobre formação docente e leitura, a saber: Nóvoa (1992); Lajolo (1988), Freire (1995), Gatti (2006), dentre outros. 1. FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES: UM CAMINHO A SER CONSTRUÍDO Em 1997 registra-se uma expressiva expansão e reorganização da formação docente em nível superior, instalando-se no país uma grande disputa de espaço para com o trabalho de formação de professores da educação básica. No que diz respeito à formação continuada desses profissionais no Brasil, as discussões intensificaram-se na década de 80, partindo de cursos de curta duração, até programas de extensão, nas modalidades: presencial, semipresencial e a distância. A partir de 1990, com a compreensão de que a melhoria do ensino estava atrelada à qualificação docente, o Ministério da Educação (MEC), em parceria com os sistemas de ensino estaduais e municipais, vem implementando vários programas de formação continuada para os professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, visando sobretudo resolver os problemas originários da formação inicial do professor. Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional- 453 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. LDB, 9394/96, observa-se que as discussões sobre formação de professores da educação básica passam a ganhar maior visibilidade, ao estabelecer que Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-seá em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal. (BRASIL, 1996) Para apoiar as instituições educacionais no trabalho com formação de professores, visando mudanças curriculares e nas práticas educativas, em consonância com a LDB 9394/96, o MEC criou, em 1997, os Referenciais para a Formação de Professores, primeira versão, que foi submetida a apreciação de educadores e especialistas de todo o país, tendo publicada uma versão mais completa em 1999. Além de apoiar as discussões sobre formação docente, os Referenciais para a Formação de Professores teve como finalidade provocar orientar mudanças na formação de professores, 454 e conforme consta no referido documento, ao tratar que essa proposta [...] reflete as temáticas que estão permeando o debate nacional e internacional num momento de construção de um novo perfil profissional de professor. É, portanto, uma referência em relação à qual os autores podem se posicionar, promover discussões e reformulações e criar novas experiências nas suas diferentes realidades, de acordo com as suas possibilidades e especificidades. (BRASIL, 1999, p. 32) Esse documento se constituiu em um marco no trabalho com formação de professores, norteando muitas propostas de formação desenvolvidas no contexto da educação pública, trazendo a tona, dentre outras questões a considerar, a importância da reflexão da prática no trabalho formativo. Ao conceber que a promoção das necessárias mudanças educacionais perpassa necessariamente pelo desenvolvimento de um trabalho de formação docente contínuo, vislumbra-se um processo formativo que favoreça a construção de uma prática educativa qualificada e de afirmação da identidade e profissionalização do Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. professor. Nessa perspectiva, ainda em 2006, o MEC, em parceria formalizada em convênio com universidades, constituiu a Rede Nacional de Formação Continuada (BRASIL,2006). São iniciativas que apontam para a importância da implementação de políticas de formação de professores que vão muito além do curso de formação inicial, em consonância com as demandas educacionais que a sociedade contemporânea vem impondo. Sobre essa questão, a pesquisadora Bernadete Gatti (2006, p.13), em entrevista concedida à Folha Dirigida, alerta para a necessidade de assumirmos “ [...] que o papel da escola, e dos professores, é o de ensinar- educando, uma vez que postulamos que sem conhecimentos básicos para interpretação do mundo não há verdadeira condição de formação de valores e de exercício de cidadania”. Colaborando na ampliação dessas discussões, a referida autora, reforça a importância de uma formação inicial de qualidade para o exercício da docência, contudo enfatiza que a formação profissional não se restringe somente ao trabalho realizado na Graduação, mas deve ser desenvolvida ao longo da carreira, através da formação continuada, observando que Nenhuma formação universitária forma um profissional completo. Com o avanço dos conhecimentos não é possível absorver tudo. Todo profissional precisa de uma formação suplementar – que é uma formação permanente com cursos de extensão de especialização e no próprio ambiente de trabalho. (GATTI, 2006, p.4,) (Grifo meu) Em consonância com as idéias de Gatti (2006), ao tratar da importância da formação permanente dos professores, Freire (1995), ressalta que o professor aprende a ser professor no processo de ensino, assim necessita de espaços em que possa refletir com seus pares sobre suas ações docentes. Nesse sentido, com uma abordagem de educação e formação bem mais ampliada, em 2015, o Ministério da Educação e Conselho Nacional de Educação publicam a resolução nº 2, de 1º/07/2015, que estabelece as Diretrizes Curriculares em nível superior e para a formação continuada dos Profissionais da Educação Básica, 455 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. [...] definindo princípios, fundamentos, dinâmica formativa e procedimentos a serem observados nas políticas, na gestão e nos programas e cursos de formação, bem como no planejamento, nos processos de avaliação e de regulação das instituições de educação que as ofertam. (BRASIL, 2015, Cap.1. Art.1º) Como vimos, as discussões teóricas e os dispositivos legais parecem bastante articuladas ao abordarem a importância em assegurar um trabalho de formação docente ao longo de toda a carreira docente, alinhamento que precisa ser garantido também nas políticas e nas práticas de formação continuada de professores oferecidas nos sistemas de ensino, para que estes não fiquem restritos a propostas de formação continuada compensatórias, conforme nos alerta Gatti (2008, p. 58), ao afirmar que muitos programas de formação realizados pelo governo se enquadram na perspectiva compensatória e não de atualização e aprofundamento. 2. PRÓ-LETRAMENTO: UMA POLÍTICA DE FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES 456 Em meados da década de 90, registra-se no Brasil um investimento acentuado destinado à formação continuada de professores na área de linguagem. São projetos e programas desenvolvidos pelo Educação- MEC, governo federal, através do Ministério da a exemplo Programa de Formação de Professores Alfabetizares- PROFA, GESTAR, o Pró-Letramento, dentre outros. Como uma das políticas de formação do governo federal em convênio com estados e municípios, o programa de formação continuada de professores da educação básica, intitulado “ Pro-Letramento - Mobilização pela Qualidade da Educação - é um curso, na modalidade semipresencial, que prevê a melhoria da qualidade de aprendizagem de leitura, escrita e matemática nos anos ou séries iniciais do ensino fundamental.” ( Guia do Pro-Letramento/ BRASIL, 2012, p.1), resultado da parceria entre Ministério da Educação e as universidades que integram a Rede Nacional de Formação Continuada de Professores, criada pelo MEC em 2004, com a seguinte constituição Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A Rede Nacional de Formação Continuada é formada por Universidades em que se constituem Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação. Cada um desses Centros mantém uma equipe que coordena a elaboração de programas voltados para a formação continuada dos professores de Educação Básica em exercício nos sistemas estaduais e municipais de educação. (BRASIL, 2006, p.20) São cinco centros de pesquisa que trabalham por áreas prioritárias de formação, o Curso Pró-Letramento integra a área de Alfabetização e Linguagem, apresentando os seguintes objetivos: [...] oferecer suporte à ação pedagógica dos professores dos anos ou séries iniciais do ensino fundamental, contribuindo para elevar a qualidade do ensino e da aprendizagem de língua portuguesa e matemática; • propor situações que incentivem a reflexão e a construção do conhecimento como processo contínuo de formação docente; • desenvolver conhecimentos que possibilitem a compreensão da matemática e da linguagem e de seus processos de ensino e aprendizagem; • contribuir para que se desenvolva nas escolas uma cultura de formação continuada; • desencadear ações de formação continuada em rede, envolvendo Universidades, Secretarias de Educação e Escolas Públicas das Redes de Ensino. (BRASIL, 2012, p.01). Para tal, o programa defende uma proposta de formação continuada críticoreflexiva sobre o fazer docente, reconhecendo e valorizando os saberes dos professores, de suas práticas e do cotidiano escolar. O referido programa foi implantado no município de Feira de Santana em 2008 e ficou até 2013, quando finalizou a ultima turma, com a chegada do PNAIC – Pacto Nacional Pela Alfabetização na Idade Certa. Apesar do Pró-Letramento ter sido desenvolvido parte na publica municipal por seis o anos, não foi possível levantar material escrito sobre a sua implantação, em 2008, nem dos demais anos de sua realização, junto a Secretaria Municipal de Educação. Após muitas buscas, foram resgatados alguns documentos escritos e registros orais, em entrevista realizada com uma professora que participou da implantação do programa, nos informando que 457 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O programa foi lançado na Bahia em 2008 e o município de Feira de Santana aderiu ainda nesse mesmo ano. Para tal, criou um grupo, constituído de professores de língua portuguesa e de matemática da rede municipal. Os professores foram liberados de sala de aula, para atuarem como orientadores de estudo. Na área de linguagem, eram três orientadores de estudo. (Professora Margarida, entrevista 2015) [...] ao coordenador fazia um trabalho mais burocrático, seleção para tutor e professor, inscrição, definição de turmas, como a demanda no momento inicial foi muito grande, tive também que estabelecer, juntamente com a secretaria, critérios de participação, ai optamos em trabalhar com os professores da escolas que já tinham implantado o Ensino Fundamental de Nove Anos.(Professora Margarida, Entrevista, 2015) De início, o município ofereceu uma média de oito turmas do curso PróLetramento sob a coordenação geral da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), do estado do Paraná, envolvendo professores do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental I, com duração de um ano. Ao coordenador administrativo coube também o apoio logístico para a realização dos encontros de formação dos 458 orientadores de estudo com os professores cursistas, o que se constituiu, segundo a professora, em alguns momentos como pontos de dificuldade, desabafando que “Foram vários problemas enfrentados no desenvolvimento do curso, de ordem logística e de infraestrutura, para dar conta do Pró-Letramento, desde o início dos trabalhos até à sua finalização.”( Professora Margarida, Entrevista 2015) A fala da professora Margarida confirma que a atribuição do coordenador era meramente administrativa, fazendo jus à nomenclatura atribuída a essa função no programa e revelando a falta de ênfase em espaços de estudos e reflexão coletiva com os professores cursistas e orientadores de estudo, para além dos encontros presenciais, o que se espera de uma coordenação que tem como foco principal o pedagógico. Logo, imprescindível em um trabalho de formação docente que tem a prática como objeto de reflexão para a tomada de decisão. São constatação que demonstram a fragilidade dessas políticas de formação de professores que costumam não assegurar na prática o que defende no discurso, conforme podemos observar no trecho abaixo extraído da proposta teórica do curso Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Assim, a prática passa de mero campo de aplicação a campo de produção do conhecimento, à medida que a atividade profissional envolve aprendizagens que vão além da simples aplicação do que foi estudado e os saberes construídos no fazer passam a ser objeto de valorização sistemática. A formação continuada deve voltar-se para a atividade reflexiva e investigativa, incorporando aspectos da diversidade e o compromisso social com a educação e a formação socialmente referenciada dos estudantes. (BRASIL,2006,p.23) (grifo meu) Na medida em que vai se desvelando o trabalho de formação realizado com o Pró-Letramento no município de Feira de Santana, observa-se uma certa discrepância entre a sua execução e a proposta teórica do curso, a exemplo da falta de ênfase em espaços de estudos e reflexão coletiva , envolvendo os professores cursistas e orientadores, o que fica evidente ao atribuir ao coordenador uma função meramente burocrática. No que diz respeito a formação continuada e como esta se desenvolvia, o portfólio de uma das professoras, elaborado como trabalho final de conclusão do curso, traz uma coletânea de atividades e textos trabalhados na formação, que apenas apresenta e não relata os temas e/ou matérias apresentados no corpo da produção, conforme anuncia o objetivo expresso pela Professora no referido documento, O objetivo deste portfólio que aqui se inicia, consiste em relatar os temas desenvolvidos no Programa de Formação Continuada de Professores Pró-Letramento, que foram realizadas no período de 06 de maio a 01 de dezembro de 2008. Tendo incluso neste portfólio textos, trabalhos atividades desenvolvidas, etc.(Portfólio, 2008, p.01) Ao analisar o portfólio, observei que trata-se de uma exposição de atividades e textos trabalhados no curso, com raras reflexões, não se constituindo no que expressa o objetivo supracitado, sem nenhum registro de que este foi avaliado pelo professor orientador de estudo. O que não condiz com uma proposta de formação de professores baseado na reflexão sobre a prática proposta por este programa ao definir que “[...] a formação continuada deve desenvolver uma atitude investigativa e reflexiva, tendo em vista que a atividade profissional é um campo de produção do 459 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. conhecimento, envolvendo aprendizagens que ultrapassem a simples aplicação do que foi estudado.” (Guia do Pró-letramento, BRASIL, 2012, p.01). Vale ressaltar, que o portfólio pode se constituir em um importante instrumento de análise das situações cotidianas da escola e da própria implicação pessoal do professor na tarefa de educar, a luz das discussões teóricas e dos conhecimentos construídos no curso. Contudo, o portifólio analisado apresenta apenas uma atividade, na finalização do mesmo, que consta um relato descritivo de uma atividade, onde a professora cursista inicia, refletindo sobre a importância da leitura na formação do aluno-leitor, a saber O ensino da leitura e, particularmente a importância da literatura na formação pessoal e intelectual das crianças nas séries iniciais ainda ocupa pouco espaço nos programas de formação das escolas brasileiras. Se faz necessário um contato mais estreito da criança com a escrita e a leitura dentro de um contexto mais significativo. (Portfólio, 2008,p.63) A tentativa de reflexão realizada pela Professora Girassol, a quem pertence o 460 portfólio supracitado, só aparece na última atividade apresentada neste documento, não mais assegurada nas demais partes do relato escrito. Isto é um prenúncio da sua necessidade em promover um trabalho reflexivo. O que parece ter acontecido ao acionar os conhecimentos prévios, fundamentos teóricos construídos no seu processo de formação inicial sobre leitura, os conhecimentos metodológicos assegurados no curso Pro-Letramento, revelados na sua entrevista, aliando-os com os conhecimentos que a experiência docente lhe revelou, tendo em vista a ressignificação da sua prática educativa, logo da sua prática “O despertar para a leitura, busquei mais fora do curso, o curso me deu a vara, não deu o peixe, com as leituras que eu já tinha, foi muito mais fácil para mim. Eu aprendi muito!” (Professora Girassol, entrevista 2015). Essas constatações levam a crer que a utilização do portfólio no PróLetramento compromete o seu valor formativo por não permitir a almejada articulação teórico-metodológica e prática que a reflexão favorece na formação docente, a partir da utilização desse importante instrumento, impossibilitando a análise sobre o trabalho realizado, bem como a sistematização dos saberes adquiridos no curso, conforme está posto na proposta de formação do Pró-Letramento: Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Assim, a prática passa de mero campo de aplicação a campo de produção do conhecimento, à medida que a atividade profissional envolve aprendizagens que vão além da simples construídos no fazer passam a ser objeto de valorização sistemática. A formação continuada deve voltar-se para a atividade reflexiva e investigativa, incorporando aspectos da diversidade e o compromisso social com a educação e a formação socialmente referenciada dos estudantes. (BRASIL,2006,p.23) Dessa forma, o referido documento reafirma a importância do uso de registro reflexivo enquanto atividade que favorece a reflexão e a investigação no processo formativo. Outro aspecto considerado pelos entrevistados, diz respeito ao número significativo de estagiários participando do Pró-Letramento, em 2008. Essas especificidades muitas vezes são desconsideradas no trabalho desenvolvido, deparando-se com turmas constituídas por uma boa parte de estagiários que ainda não são profissionais da educação e, como tal, desconhecem os saberes pertinentes a docência. “São demandas locais que comprometem o trabalho desenvolvido no curso quando este foi pensado para um público específico, professores que atuam nas séries iniciais do ensino fundamental, que por si só já apresentam a sua heterogeneidade. ” (Professor, entrevista 2015). A cada resgate de registros escrito e oral, a partir das entrevistas, bem como das impressões dos sujeitos entrevistados reforça-se a importância desta produção para as reflexões sobre as políticas de formação continuada no contexto da educação municipal de Feira de Santana, bem como de outros municípios. Tal posicionamento encontra eco no trecho abaixo, quando a Professora Girassol avalia o programa, destacando no que este poderia melhorar para contribuir na sua formação e contemplar a necessidade de formação Senti falta de leituras direcionadas a formação leitora do professor, porque depois que deixamos a academia, deixamos muito de lado as leituras, ate porque a gente foca muito no trabalho. Acho importante também leituras de textos literários, científicos, que o curso garantisse mais teoria. Professor sente falta disso, até ao fazer o relatório avaliativo do aluno, a gente percebe que tem aquela dificuldade na 461 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. fundamentação, sobre os saberes do professor. Uma coisa eu posso afirmar, se tiver Pró-Letramento novamente eu quero. (Professora Girassol, entrevista 2015). Podemos confirmar a inquietação relatada pela professora, na fala da orientadora de estudo entrevistada, narrar a organização dos encontros realizados presenciais com os cursistas 462 O Pro-Letramento já traz uma pauta preestabelecida para o trabalho, ao orientador de estudo cabe a este desenvolvê-la com os professores cursistas. O grupo de Feira de Santana tinha sempre o cuidado de iniciar os encontros com uma leitura compartilhada, até mesmo pela nossa sensibilidade com a leitura e com a experiência do PROFA, para mim ali é que se dava a formação do professor leitor, mesmo que ele não percebesse, mas ali é que se dá a formação leitora. A leitura compartilhada era realizada na perspectiva de levar o professor a ler. Essa atividade era realizada pelo formador e no decorrer do curso, os professores é que levavam textos e realizavam a leitura, eles se envolviam muito. Usávamos aqui uma pauta bem parecida com a do PROFA, porque a gente entendia que o ProLetramento era um desdobramento do PROFA, para mim isso era muito claro, essas políticas estão articuladas. Apesar de que,em nenhum momento isso é dito pra gente. Eu acredito que o PróLetramento realizado pelo grupo de Feira se preocupava com a formação leitora do professor, até pela experiência que a gente tinha com outras formações.(Orientadora de Estudo, entrevista 2015) A fala da orientadora de estudo é também bastante reveladora no sentido de mostrar a importância da sensibilidade e preparação com a leitura do orientador de estudo para o trabalho no Pró-Letramento o que atribui a participação em programas/cursos que participara anteriormente, um diferencial do grupo de orientadores de Feira de Santana, não se constituindo portanto, em uma intencionalidade deste programa. Ainda, a orientadora denuncia a descontinuidade das políticas de formação na área de linguagem e trás à tona a autonomia do grupo de orientadores de estudo, procurando desenvolver um planejamento coletivo, inserindo em uma pauta preestabelecida atividades de incentivo à leitura do professor, o que se pode observar também na fala da professora Girassol: Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. O programa ajuda muito em como trabalhar a leitura em sala de aula com os alunos da gente, mas se a gente não tivesse uma leitura prévia, digo respaldo teórico, habilidade com leitura, não ia conseguir. Elas davam muitas referências pra gente procurar, buscar, caso contrário, estagnava ali. (Professora Girassol, entrevista 2015) A constatação da professora Girassol de que seu empenho pessoal no processo formativo, bem como os conhecimentos prévios foram determinantes para o seu bom desempenho no curso, ressoou como uma aparente omissão do curso com a realização de aprofundamento teórico no espaço de formação, imprescindível ao que se propõe a abordagem de formação continuada de professores da rede de formação a qual o curso está ligado, a saber: Se a formação continuada supõe cursos, palestras, seminários, atualização de conhecimentos e técnicas, ela não se restringe a isso, mas exige um trabalho de reflexão teórica e crítica sobre as práticas e de construção permanente de uma identidade pessoal e profissional em íntima interação, como também das dimensões individual e social dos atores envolvidos no processo educativo. (BRASIL, 2006,p.24) No que se refere aos conteúdos abordados pelo programa, a Professora Margarida destaca a relevância destes, contudo enfatiza a dificuldade dos cursistas em acompanhar as discussões como algo bastante recorrente nos encontros formação de realizados, o que, possivelmente, deve ter comprometido as demais atividades do curso, a exemplo da participação na discussão dos textos lidos, a qualidade das atividades realizadas e o planejamento das ações a serem desenvolvidas em sala de aula. O material do Pró-Letramento é muito bom! Mas, os orientadores de estudo sempre falam que os professores sinalizaram muita dificuldade no trabalho com os alunos, na realidade com os conteúdos do curso e sobretudo com leitura, por não serem leitores. Foram muitas resistências, querendo se apegar ao livro didático, só com o tempo foram fazendo as outras atividades do curso. Acredito que as dificuldades são principalmente por não serem leitores, não terem alguns conhecimentos necessários ao trabalho com essa concepção de leitura do programa. (Professora Margarida, entrevista 2015). 463 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A fala da professora parece revelar que a proposta de trabalho com leitura do Pró-Letramento apresenta uma concepção de leitura, de leitor, bastante desconhecida até então pelos cursistas, logo distinta das práticas desenvolvidas no âmbito escolar, nas quais a aparente “incapacidade” desses profissionais no desempenho da função de ensinar, reflete-se na pouca habilidade do aluno para ler. O que leva Lajolo (1988, p.82), a uma importante conclusão É necessário um investimento maciço na formação de professores para que a escola possa ser aliada no projeto de tornar o Brasil um país de leitores. Hoje, as escolas recebem livros. Prefeituras, Estados e União compram muitos e bons livros. Mas nem sempre os educadores sabem o que fazer com eles. Alguns os guardam a sete chaves, com medo de os alunos os estragarem. Além de a escola precisar deixar os livros acessíveis, os professores precisam ser leitores. Precisam gostar de ler. Precisam saber discutir livros. Precisam ter livros em casa. Precisam, enfim, aprender a ser bons, ótimos leitores. (grifo meu) A necessidade de fazer com que a leitura, principalmente a literária, na escola 464 se torne algo prazeroso, capaz de motivar o aluno a desejá-la concebendo-a como um ato político, ainda não se faz presente nas práticas de muitos professores do Ensino Fundamental, suscitando importantes indagações na fala dos sujeitos entrevistados: Como ensinar o desejo pela leitura se os professores não sentem prazer no ato de ler, conforme costumam expressar no dia a dia da formação, nas atividades que envolvem a leitura? Outra questão que não quer se calar, como o professor pode formar leitores se este não se percebe como tal, ou melhor, se a formação continuada não favorece a sua formação leitora? Na fala das entrevistadas, observa-se que, embora sejam leitoras, as experiências acumuladas ao longo de suas vidas não foram suficientes para garantir o desenvolvimento de uma prática educativa que promova a formação de alunos leitores. Diante disso, reconhecem a necessidade de um maior investimento na sua formação continuada, bem como na dos demais integrantes do curso PróLetramento. Para tal, a Professora Margarida dá algumas pistas Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Os orientadores de estudo sempre sinalizavam a dificuldade que os professores cursistas sentiam no trabalho com o material do curso. Dificuldade com a leitura, por não serem leitores, apresentavam resistências, querendo se apegar ao livro didático. Só com o tempo foram fazendo as outras atividades do curso, mas, eram muitas as dificuldades, principalmente por não serem leitores. Algo preocupante, porque, para o público que temos, o professor é o único que leva a leitura, uma realidade em que os nossos alunos não têm pais leitores, não têm livros, o ambiente de casa não favorece a leitura. Se a escola não abre o leque de possibilidades, fica difícil. (Professora Margarida, 2015) A compreensão de que a leitura deve ser um direito de todos, primeiro direito básico, para que todos os outros direitos sejam compreendidos, logo para o exercício da cidadania, denota à escola a urgência em ressignificar o seu papel no trabalho com essa temática. E ao professor, como principal agente de formação de alunos leitores, a necessidade de repensar a sua prática, o que perpassa pelo investimento em um processo formativo contínuo, que apresente a leitura, tendo como base a literatura como uma forma de lidar, compreender, explorar e transformar o mundo, favorecendo a incorporação da leitura à vida pessoal e profissional, tendo em vista a construção de uma prática educativa qualificada. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao confrontar a proposta de formação da Rede Nacional de Formação de Professores com o documento do referido curso, aliado às falas dos entrevistados e material produzido no município pode-se constatar que, os princípios formativos previstos no discurso da rede, se perdem em uma proposta de curso que privilegia a aplicação de atividades, em detrimento do aprofundamento em conhecimentos, que respaldem e favoreçam um trabalho de reflexão e investigação da prática. As dificuldades enfrentadas pelos professores no processo formativo mostram que as políticas de formação continuada de professores favoreça a construção de saberes essenciais ao exercício da docência, assim, na área de linguagem, espera-se respostas para um trabalho com leitura, que dê conta das atuais demandas da educação contemporânea, por esta nos apresentar novos 465 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. contornos, novas habilidades, novos comportamentos leitores, a princípio, bastante diferentes das experiências de leitura vivenciadas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Guia Geral do Pró-Letramento- Programa de formação de Professores das Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Ministério da Educação. Brasília: 2007. BRASIL. Guia Geral da Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de Educação Básica. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Brasília: 2006. DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e Educação: figuras do indivíduoprojeto. Natal, RN: EDUFRN; Paulus, São Paulo, 2008. 466 CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÂO. Resolução nº 2 de 1º de julho de 2015. Disponível em, http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias= 17719-res-cne-cp-002-03072015&category_slug=julho-2015-pdf&Itemid=30192, Acessado em 14/09/2015. FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. São Paulo: Cortez, 1995 NÓVOA, António. Professores: imagens do futuro presente. Educa: Lisboa, 2009. GATTI, 2008 Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008 Gatti, Bernadete A. Avaliação institucional: processo descritivo, analítico ou reflexivo? Estudos em Avaliação Educacional, v.17, 2006. LAJOLO, Marisa. Professores precisam gostar de ler. Jornal do Professor. disponível em http://portaldoprofessor.mec.gov.br/conteudoJornal.html?idConteudo=2908. Acesso em 14 de setembro 2015. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 467 ENTRE MAPAS, REVISTAS E LIVROS: PRÁTICAS CULTURAIS DE ESTUDANTES-PROFESSORAS DO PPGEDUC/UNEB16 Sara Menezes Reis de Azevedo17 UNEB- [email protected] RESUMO: Esta comunicação é fruto das reflexões e leituras realizadas pelas pesquisadoras, e de um recorte da dissertação intitulada "E assim nos fizemos leitoras": histórias de vida e de leitura de estudantes do PPGEduc no período de 2005 e 2010, desenvolvida no âmbito do Programa de PósGraduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). O objetivo é dialogar sobre em que medida as práticas culturais de leitura dessas estudantes implicam diferentes processos formativos pessoais e profissionais. Verificaram-se, a partir das histórias de leitura dessas mulheres, as concepções em torno do ato de ler, os usos sociais de leitura, marcas e práticas constituídas dentro e fora dos espaços formais. Entrecruzamos as contribuições da História Cultural e da Formação docente, articulando-as aos estudos de Chartier (1990, 2001, 2004), Cordeiro (2006), Passegi (2011). Utilizamos Histórias de Vida, pois possibilitam maior entendimento dos percursos formativos e leitores das colaboradoras. A análise dos dispositivos formativos elencados possibilitou maior visibilidade às histórias de vida e de leitura das colaboradoras. Os escritos retrataram as trajetórias leitoras e os percursos formativos experienciados. Participar do movimento de (auto) formação proporcionou às estudantes- professoras reflexões e ressignificações para as suas vidas pessoais e práticas docentes. Palavras- chave: Leitura; Leitoras; Práticas Culturais; Histórias de Vida. 1. Primeiras impressões leitoras A presente comunicação é fruto das reflexões empreendidas e leituras realizadas pelas pesquisadoras, em suas itinerâncias leitoras, e de um recorte da dissertação intitulada "E assim nos fizemos leitoras": histórias de vida e de leitura de estudantes do PPGEduc no período de 2005 e 2010, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós- Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Discutimos na dissertação em que medida as práticas culturais de leitura de estudantes do PPGEduc da UNEB implicam diferentes processos formativos pessoais e profissionais. Foi realizado um mapeamento, a partir das histórias de leitura dessas mulheres, sobre as concepções em torno do ato de ler, as formas de ler, os Este artigo é uma versão ampliada e revisada do artigo intitulado “Diálogos sobre docência, leitura e leitores: histórias de práticas culturais de leitura de estudantes-professoras do PPGEduc/Uneb”, apresentado no VI Congresso Internacional de Pesquisas (Auto)Biográficas (CIPA), ocorrido entre os dias 16 e 19/11/2014, no Rio de Janeiro. 17 Licenciada em Pedagogia, especialista em Alfbetização e Letramento (FAMA) e Mestre em Educação e Contemporaneidade, pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). 16 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. usos sociais de leitura, repertórios, marcas e práticas constituídas dentro e fora dos espaços formais. Duas vertentes teórico- metodológicas foram entrecruzadas: as contribuições da História Cultural e da Formação docente, articulando-as aos estudos de Chartier (1990, 2001, 2004), Cordeiro e Souza (2007), Passegi (2011), dentre outros. O trabalho fez uso das Histórias de Vida, por estas possibilitarem um maior entendimento dos percursos de formação e de leitura das colaboradoras. Compreendendo a notoriedade dos estudos realizados com as Histórias de vida, Jean Poirier (1999, p.12) revela que elas “[...] querem fazer falar os ‘povos do silêncio’, através de seus representantes mais humildes”. Assim sendo, analisar as histórias de vida de estudantes possibilitou-nos o conhecimento de suas práticas culturais de leitura [antes (des)conhecidas ou (des)valorizadas] e a implicação destas no seu cotidiano docente. O entendimento sobre as práticas culturais de leitura na perspectiva de Roger Chartier (2011) assinala diversos modos de ler (coletiva ou individualmente, herdadas ou inovadoras, públicas ou íntimas) e por representações que os sujeitos possuem sobre o que seria o “leitor ideal”. Não se trata apenas de saber ler ou não, mas dos usos e manuseios desta leitura, das suas finalidades, das diversas maneiras de ler, do que ele chama de “prática cultural” (CHARTIER, 2011, p.105). A cada leitura realizada dos escritos das estudantes- professoras, o que foi lido muda de sentido, torna-se outro, ganha novo significado. A análise dos Rascunhos de Mim e dos Memoriais possibilita a produção desse escrito, através do qual busco dar visibilidade às histórias de vida e de leitura das colaboradoras. Dois dispositivos formativos produzidos entre os anos de 2005 a 2010 foram tomados para efeitos desse estudo – Memoriais e Rascunhos de mim - para se investigar as práticas culturais de leitura empreendidas por estas estudantes e qual a implicação daquelas em sua prática cotidiana. Tais escritos retratam suas trajetórias leitoras e os percursos formativos experienciados na docência, revelando que a possibilidade de transcrever suas histórias, e participar do movimento de formação e autoformação proporcionou reflexões e ressignificações para às suas vidas pessoais e práticas docentes. 469 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Na dissertação foram utilizados e analisados os dispositivos de cinco colaboradoras. Aqui, para efeitos dessa comunicação, traremos os escritos de duas estudantes, que também são professoras. Faremos a exposição e categorização de elementos a partir dos escritos mencionados. 2. Sobre os dispositivos elencados: Aprofundando o conhecimento sobre os Memoriais e os Rascunhos de Mim No contexto contemporâneo em que vivemos, é válido lembrar que a corrente de investigação-ação-formação das histórias de vida se desenvolve em um período em que "os indivíduos têm cada vez mais dificuldades de encontrar seu lugar na história coletiva” (DELORY-MOMBERGER, 2011, p.47). Numa lógica de se repensar a educação de adultos,é preciso remeter os sujeitos a (re) encontro de si mesmos, tendo em cada narrativa (oral ou escrita) da história de vida, a ressignificação da própria história de formação. A utilização dos Memoriais como dispositivo formativo e investigativo se 470 inscreve em uma perspectiva de escrita pautada no ato de auto-bio-grafar (escrever sobre a própria vida), configurando-se como um elemento que possibilita “o acesso à vida e à docência através da voz e da letra de quem é professor (a).” (PASSEGI, 2008, p.1). Por meio do memorial, o sujeito-autor “[...] narra sua história de vida intelectual e profissional, analisa o que foi significativo para a sua formação [...] sendo também, um modo de cada autor modificar-se”. (PASSEGGI e CAMARA, 2008, p.15). Segundo Passegi (2011), o memorial pode ser de dois tipos: acadêmico e de formação. O memorial acadêmico é descrito com vistas ao ingresso ou progressão funcional em instituições de ensino superior. O memorial de formação é produzido durante a formação inicial ou continuada, sendo geralmente acompanhado por um orientador. Neles, o autor assume, simultaneamente, os papéis de narrador e de candidato e se inscreve em um movimento de tecer uma imagem pública de si. Assim o memorial configura-se como "um espaço-tempo de tensões contraditórias: o da injunção de falar de si, e o de sedução de se inventar pela narrativa" (PASSEGI, Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 2011, p.20). Os excertos que aparecerão no próximo espaço desse texto, são de dois memoriais acadêmicos, escrito para fins de ingresso no Mestrado e no Doutorado em Educação e Contemporaneidade, do PPGEduc. O dispositivo denominado Rascunhos de Mim18 é cunhado ao longo do componente curricular Abordagem (Auto)Biográfica e Formação de Professores e Leitores desde o ano de 2005. Ao longo da disciplina, os estudantes que dela participam são convidados a construir e refletir sobre as suas histórias de leitura. Para Cordeiro e Souza (2007), os Rascunhos de Mim constituíram-se: [...]Como escritas de si, nas quais cada um abriga suas memórias de leitura, atravessando tempos e espaços reais e imaginários, cujos gestos e práticas culturais de leitura encontram um sentido que se abrem à compreensão de que as histórias de leitura se constroem por caminhos os mais imprevistos. (CORDEIRO e SOUZA, 2007, p.223) A fecundidade desse dispositivo possibilita aos leitores o encontro de um lugar de ressignificação e (re)criação de memórias, além de um espaço formativo e de reflexão sobre os seus percursos. Assim, esse dispositivo metodológico "[...] possibilitou ao grupo tematizar quais os sentidos da leitura no processo de formação e qual o papel da narrativa para a constituição do sujeito da experiência.” (CORDEIRO e SOUZA, 2007, p.225). Esclarecidas as potencialidades dos dispositivos, expomos aos leitores as colaboradoras da pesquisa. Posteriormente esclareceremos as impressões, memórias e singularidades das Histórias de Vida das duas educadoras, apresentando também as categorias que emergiram do entrecruzamento dos dispositivos. 3. Das colaboradoras: as cúmplices da nossa pesquisa Elencamos nesta comunicação os Rascunhos de Mim e Memoriais acadêmicos de duas estudantes, que nos foram cedidos após seu ingresso no mestrado e/ou doutorado no PPGEduc, no recorte temporal entre 2005 e 2010. Quanto à Este texto foi incluído como um dos dispositivos formativos utilizados na disciplina Abordagem (Auto)Biográfica e Formação de Professores e Leitores, ministrada pelos professores Dra. Verbena Cordeiro e Dr. Elizeu Clementino de Souza. 18 471 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. apresentação dos nomes das colaboradoras, indico os pseudônimos 19 por elas elencados: Anna e Nilza. Para escolha das colaboradoras, foram definidos como critérios: a) ter cursado a disciplina Abordagem (Auto)Biográfica e Formação de Professores e Leitores, por ser esse o componente curricular em que é solicitada a produção do texto Rascunhos de Mim; b) ter participado do processo seletivo para mestrado/ doutorado no Programa de Pós- Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), pois essa seleção solicita a escrita de um Memorial. O corpus dessa comunicação ficou constituído por duas leitoras, estudantes do PPGEduc. Segundo Fischer (2000), “em se tratando de histórias de vida, mais importante do que a quantidade de sujeitos é a validade, extensão e qualidade dos testemunhos que se pretende obter”, portanto, a nossa preocupação não versou sobre a quantidade de colaboradoras, nem na escrita da dissertação, nem no momento de produção dessa comunicação. As colaboradoras tem 43 e 46 anos, residem na cidade de Feira de Santana. 472 Cada uma delas é casada e possui uma filha. Ambas cursaram o Magistério, sendo que uma graduou-se em Pedagogia e a outra em Geografia. Possuem percursos formativos que somam mais de 15 anos de atuação, entre os níveis fundamental, médio e superior. Hoje, as duas são professoras da UNEB. Nilza concluiu o doutorado enquanto essa pesquisa estava em andamento, no ano de 2013. Anna está cursando o doutorado. As histórias de leitura foram, para efeito de análise, organizadas pelas categorias. A partir desta sistematização, pensamos ajudar os leitores a acompanhar melhor não apenas os percursos e itinerâncias formativas, mas também entender como essas professoras se constituíram leitoras. É importante esclarecer que a leitura dos estudos empreendidos por Pompougnac (1997) foi uma das fontes inspirativas para esclarecer aos leitores os Escolhidos pelas professoras que colaboram com este estudo, os pseudônimos respeitam o que preconiza o Conselho de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, por meio da portaria 196/96, que delimita os marcos dos trabalhos realizados com pessoas. É importante destacar que os nomes elencados por elas tem ligação emocional: são nomes de mães e professoras. 19 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. perfis, trajetos e práticas culturais de leitura das colaboradoras que conosco partilharam suas singulares memórias, registradas em relatos que mesclam elementos diversos. Para tanto, estabelecemos algumas categorias de análise que foram emergindo das (várias) leituras dos escritos das estudantes. Utilizaremos duas: a) Leitura e docência: percursos formativos; b) Práticas Culturais de Leitura. Em alguns momentos, essas categorias podem fundir-se devido à densidade dos escritos das professoras e a incapacidade nossa de separar tempos, pessoas, eventos e influências nas suas trajetórias leitoras. Julgamos ser necessário assim proceder para que não seja prejudicado o entendimento do leitor face aos eventos apresentados sobre os escritos das colaboradoras. Era preciso respeitar as ordens e as temporalidades diversas trazidas nos textos. A experiência de ler e reler muitas vezes as memórias das colaboradoras, materializadas em seus Rascunhos de Mim e Memoriais, nos desafiou a mergulhar mais intensamente em seus sentidos diversos, e a buscar maior acolhimento teórico para que pudéssemos compreender suas memórias escritas em suas dimensões mais íntimas e singulares. Trata-se de uma tentativa de entender os sentidos que se desvelam diante das suas escritas de si. Na análise interpretativo-compreensiva de Paul Ricoeur (1996), encontramos inspiração para buscar entender esta dimensão mais profunda da compreensão e análise das histórias de vida e de leitura das professoras. Para este tipo de análise, o que é relevante não é a objetivação da realidade, mas a apreensão de sentidos colocados pelos sujeitos. 4. Leituras e histórias cruzadas Apesar do suporte teórico de Ricoeur (1996), foi preciso tomar o cuidado de apenas não tentar decifrar os textos para a construção das categorias de análise. Era preciso adentrar às suas múltiplas dimensões. O pensamento de Chartier (2006) nos alertou: “Pensamos que ler um texto é compreendê-lo, isto é, descobrir-lhe a chave. Quando de fato nem todos os textos são feitos para serem lidos nesse sentido” (CHARTIER, 2006, p.234). 473 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Com essa precaução, iniciamos o movimento de interpretação compreensiva dos escritos das professoras, respeitando o direito dos textos de serem interpretados: são eles uma explosão de significados (PRADELLI, 2013). Ao entrecruzar as memórias das duas estudantes que colaboraram com a pesquisa, percebemos a gama de informações que emergiram. Na tentativa de compreender esses elementos para com eles estabelecer um diálogo e perceber as potencialidades que daí surgem, estabelecemos algumas categorias de análise que foram emergindo das (várias) leituras dos escritos das professoras: a) Leitura e docência: percursos formativos; b) As práticas culturais de leitura das estudantes do PPGEduc. As acepções sobre o ser/ constituir-se/ reconhecer-se enquanto professora estão, nos relatos partilhados, ligadas a memórias desveladas desde os anos iniciais da infância e às trajetórias retrospectivas da trilha docente. Assim, 474 Uma autobiografia busca sempre “manter coesas” as representações de uma prática cultural eminentemente polimorfa, visto que se propõe nela escrever o que constitui a unidade de uma vida, a história de uma personalidade. Mas, nem por isso, ela deixa de ter um significado social. (POMPOUGNAC, 1997, p.49) E essa prática cultural eminentemente polimorfa, parafraseando Pompougnac (1997) é encarnada em gestos, hábitos, tempos e espaços diversos. Compreendendo que os caminhos da profissão docente não são apenas diversos, mas também podem ser contraditórios, empreendemos nossa análise em torno de possíveis respostas ao problema que norteou toda a pesquisa, a saber: Que marcas da docência são percebidas nas vidas das professoras? E qual a implicação dessas marcas nos seus percursos (formativos e de atuação profissional)? Dividimos as impressões sobre essas respostas possíveis, entrecruzando-as com trechos dos Memoriais e Rascunhos de Mim das colaboradoras. Investigar e desvelar as marcas da docência e o impacto dessas nos percursos pessoais e profissionais das professoras que colaboram com esse trabalho tornou-se parte do nosso espectro de inquietações. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Apesar de contarmos aqui com dados de duas professoras, é importante destacar o que preconiza Fischer (2000), “em se tratando de histórias de vida, mais importante do que a quantidade de sujeitos é a validade, extensão e qualidade dos testemunhos que se pretende obter”, portanto, a nossa preocupação não versou sobre a quantidade de colaboradoras. 4.1- Leitura e docência: percursos formativos É sabido que as dimensões pessoais e profissionais entrecruzam-se com nossas histórias de vida e de leitura e são indicotomizáveis (NÓVOA, 2010) ratificando as múltiplas dimensões existentes por trás da docência. São estruturantes, trazendo marcas, impressões, conceitos e trajetórias das nossas – e de outras tantasindividualidades. No aspecto docente da vida de Nilza, são múltiplos os modos de ler seu percurso docente. Simultaneamente à entrada no curso de Magistério do Instituto Gastão Guimarães (respeitada instituição de ensino de Magistério na cidade de Feira de Santana), foi feito por Nilza um investimento em compras de livros diversos, em meados dos anos de 1980. A razão desse movimento foi a necessidade de maior embasamento teórico para a realização do vestibular para a tão sonhada Licenciatura em Geografia: Logo em seguida, no afã da aprovação no vestibular, comecei a comprar livros da Literatura Brasileira- Machado de Assis, Drummond de Andrade, Aloísio de Azevedo, Fernando Sabino- uma vez que no decurso da formação no curso de Magistério no Instituto de Educação Gastão Guimarães (IEGG), não me foi apresentada/exigida a leitura de obras dos referidos autores. Por conta própria comecei a juntar dinheiro para comprar os livros que, em meados dos anos de 1980, ainda eram muito caros. A fim de facilitar a aquisição de alguns exemplares, me associei ao Círculo do Livro e, a partir daí, comecei a montar a minha biblioteca. (NILZA, Rascunhos de Mim, 2010) As leituras denominadas pela estudante como leituras geográficas, obrigatórias na graduação e continuadas nos outros percursos formativos, inserem-se como fundamentais para conhecimento de teóricos e teorias outras. Nomes como Milton 475 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Santos, Josué de Castro, Roberto Correia Lobato, Selma Garrido Pimenta, Ilma P. Veiga, Paulo Freire, Cipriano Luckesi,20 emergem como os primeiros exemplares da recém-inaugurada biblioteca da docente. Em um momento em que não era possível adquirir os livros, Nilza relata sua filiação a um “Círculo”. Isso permitiu a ela ler e trocar exemplares diversos. Esse movimento é validado por Ana Alcídia Moraes (2000), quando lembra que em alguns casos é preciso que os leitores articulem outras estratégias: empréstimos, encomendas, “círculos de leitura”. Nilza também relata que a sua consolidação enquanto pesquisadora é uma oportunidade de (auto) reflexão, pois ela descreve a leitura como responsável por esse movimento. É possível perceber esta constatação no momento em que produziu o Memorial de seleção para o Doutorado, no ano de 2010, descrito por ela como decorrente das suas inquietações enquanto professora em constante processo de formação e, também das vivências, lembranças e aprendizagens da/na sua trajetória pessoal e profissional. Na vida de Anna as leituras realizadas na docência são descritas como 476 fundantes para a sua prática. Ambos os textos produzidos, Memorial e Rascunhos, acentuam a entrada na universidade enquanto consolidação de uma concepção de leitura e reconhecimento de si enquanto leitora. É no decorrer do curso de Pedagogia, cursada na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) no ano de 1988, que Anna relata que as vivências com as leituras acadêmicas, políticas, sociais e humanas foram se tornando decisivas na construção da sua identidade pessoal e profissional. A militância dentro do Diretório Acadêmico, bem como em sindicatos, fortalece a condição leitora de Anna imbricada com uma modificação social. As vivências com projetos de alfabetização de funcionários tornam sua prática docente politizada e cada vez mais implicada com uma significativa transformação dos que, por meio da leitura das palavras, transformam a si e aos outros. Rememorando da sua participação no PROLER- Programa Nacional de Incentivo à Leitura21, Anna consegue redimensionar a sua postura enquanto leitora e São teóricos que versam sobre temas diversos ligados à Geografia e à Pedagogia, denominados pela prof. Nilza como seus “iniciadores” no campo dos estudos teóricos sobre a docência. 20 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. docente. Ela relata que a participação nesse programa proporcionou um aprendizado significativo sobre “o ato de ler, que é individual e coletivo, é formador e transformador, é criativo e crítico”. (ANNA, Rascunhos de Mim, 2006) No momento em que escreveu seus textos (Memorial e Rascunhos de Mim), Anna estava na condição de mestranda em Educação e Contemporaneidade, no ano de 2006, cuja pesquisa versava sobre as representações e as práticas culturais de leitura dos professores e professoras egressos do curso de Pedagogia oferecido pela Rede UNEB 2000. O encontro com outras pessoas, lugares, oportunidades e aportes teóricos subsidiaram o seu olhar sobre a condição nossa de leitores do cotidiano, fundamentado também nas práticas culturais de leitura de Roger Chartier (2006): Alguns autores tratam a leitura como passaporte para uma viagem que começa na primeira linha, mas que não se sabe jamais onde poderá terminar, outros afirmam que lemos para dar conta da realidade e de todos os desafios que dela recebemos ou a ela impomos. [...] Mesmo concordando com todos eles, eu prefiro afirmar que sem prazer não podemos de forma nenhuma formar leitores desejantes. Por isso meus caros leitores, vamos beber nas várias fontes que o universo dos livros nos oferece. (ANNA, Rascunhos de Mim, 2006) É bebendo nessas fontes diversas que discorremos sobre a relação íntima que entrecruza a leitura e a docência na vida das colaboradoras. Nos seus escritos, verificamos que trata-se de uma relação indicotomizável. Revisitando as leituras realizadas na docência na vida das estudantes pesquisadas, depreendemos que, ao entrar em contato com o texto, o leitor depara-se com questões políticas, históricas, sociais e econômicas. Isso descaracteriza a suposta “neutralidade” da leitura. Por outro lado, é possível perceber o que esclarece Roger Chartier (1994, p.13): “aqueles que são capazes de ler textos não o fazem da mesma maneira”. Os O Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER) teve sua atuação consolidada em alguns municípios no país nos anos 1980. O seu surgimento está atrelado às pesquisas realizadas na década de 80, no âmbito da leitura, que revelavam a necessidade de se estabelecer uma Política Nacional de Incentivo à Leitura com metas e estratégias claras. Sua realização estava condicionada às parcerias com as prefeituras, universidades e outras instituições locais. Seu papel foi de fomentar a realização de encontros, seminários de formação de recursos humanos para a promoção da leitura (LIMA, 2008). 21 477 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. diversos modos de ler durante a docência revelam diferentes modos de inserção social e acesso aos impressos nas histórias de vida e de leitura das colaboradoras. 4.2- Modos diversos de ler: As práticas culturais de leitura das estudantes do PPGEduc Nesta categoria, após os devidos esclarecimentos teórico-metodológicos em torno da conceituação das práticas culturais de leitura, especialmente demarcadas nos estudos desenvolvidos por Roger Chartier, dentre outros pesquisadores, apresentamos passagens dos escritos das estudantes sobre o que elas liam. Para Araújo (2006): [...]Todo ato cultural é subversivo, a memória do eu se cose à memória dos outros quando do exercício da indignação. Por isso é necessário rigor contra a violência da desinformação ou, antes, da sonegação ao banquete platônico, que nos sonegam e dão de sobra aos privilegiados. (ARAÚJO, 2006, p. 77) Podemos depreender que é na contramão que caminham os escritos que nos 478 fornecem pistas das práticas culturais de leitura das colaboradoras. Na vida de Nilza, ganham destaque as leituras de revistas. As mais populares entre as jovens dos anos 1970 e 1980 eram Júlia, Sabrina e Capricho. As revistas eram guardadas com um zelo quase sagrado, assim como os livros, impressos outros que chegariam em outro momento na vida de Nilza. Sanches Neto (2010) também revela uma relação ritualística com seus livros. Esse trecho similar nas trajetórias de leitura de Sanches Neto e Nilza se evidencia na sacralização do objeto (ambos não marcam definitivamente os livros que leem, apenas provisoriamente com lápis). Sanches Neto vai mais além e se refere a termos como “culpa” e a “mácula” que a marca de uma caneta causaria, respectivamente ao seu corpo – faz uma comparação com a tatuagem - e ao papel- e os ritos aos quais se entrega antes, durante e depois de cada leitura (como no caso dos lápis que aponta religiosamente com um estilete). É por meio da revista Capricho que Nilza começa a trocar cartas com outras jovens de diversos lugares do país. A expectativa em ler e escrever cartas aos novos amigos é descrita como um momento de uma espera ansiosa. A diversidade dos Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. locais de origem dos jovens com os quais ela trocava cartas e as peculiaridades das suas culturas locais a levaram a um tipo outro de prática cultural de leitura, essencial para a sua constituição enquanto professora de Geografia: Ler os espaços, suas formas, cores, traços, geometrias: assim fui me constituindo geógrafa.[...] Para além do livro, outra leitura que me seduzia, desde cedo, foi a leitura de mapas e globos, mesmo sem dominar os signos, significados e significantes dos mapas, a linguagem cartográfica me seduzia e me encantava. Fazia muitas viagens imaginárias, visitava países, cidades, lugares, atravessava o Atlântico, navegava no Pacífico, percorria os canais, lagos e florestas. Quantas aventuras! Múltiplas itinerâncias. (NILZA, Rascunhos de Mim, 2010) É leitor, pela concepção tradicionalista e preconceituosa, apenas aquele que lê os livros certos, aprovados pela escola, pela mídia, pelas universidades, pela crítica literária, ainda mesmo que esses critérios de avaliação sejam vinculados a noções particulares de cidadania, leitura, cultura ou conhecimento. Assim, “[...] todos os demais escritos- mesmo que materialmente idênticos aos livros “certos”- são nãolivros. Da mesma forma, aqueles que os leem- embora leiam- são não-leitores, pois leem Sabrina, Paulo Coelho, leem literatura popular”. (ABREU, 2005, p. 154). As leituras que se realizam em torno de objetos outros, desvalorizados por essa concepção, são destituídas do status de leitura e são ignoradas em prol da manutenção desta leitura mítica e preconceituosa. Assim, vislumbrando apenas as leituras certas de impressos certos- entenda-se, livros, são ignoradas as práticas culturais de leitura realmente desenvolvidas e efetivamente realizadas. Negam-se as leituras e as pessoas que as operam. Para Anna, as leituras realizadas ao redor dos pés de manga, são marcadas como práticas culturais significativas. E estão atreladas aos muros da escola. É nesse lugar que ela rememora as práticas culturais de leitura mais marcantes: Aqui sim, me recordo que foi através das cobranças das leituras autodirigidas que se deu o contato mais intenso com a leitura. Na época a Série Vaga-Lume estava em evidência na escola pública. Li Zezinho – o dono da porquinha preta; O Escaravelho do Diabo; O Mistério dos Cinco Estrelas... Estes foram os responsáveis pela minha atração/sedução pela literatura. Depois destes, outros começaram a povoar o universo mágico da leitura. (ANNA- Rascunhos de Mim, 2006) 479 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Reflitimos com Darnton (1992, p. 213) que “o ‘onde’ da leitura é mais importante do que se poderia pensar, pois a colocação do leitor em seu ambiente pode dar sugestões sobre a natureza de sua experiência”, ou seja, essas vivências trazem não apenas sensação de liberdade e cumplicidade com o lugar onde moravam, como também trazem marcas das singularidades e histórias tecidas por cada indivíduo. Essa valorização da leitura escolar, e posteriormente, acadêmica, em certa medida pode ser compreendida se levarmos em conta que Anna representa a chegada de uma primeira geração da família a ter um processo de escolarização mais longo. Se considerarmos que as colaboradoras dessa pesquisa são também professoras e, portanto, “estão expostas a impressos diversificados e a necessidades sociais que pressionam por seu uso, seja em instâncias públicas, seja em instâncias privadas” (BATISTA, 1998, p. 27-28), então, não é difícil reconhecer que elas estão imbricadas com as mais variadas estratégias e práticas culturais de leitura. São, 480 indiscutivelmente, leitoras, leitoras de sua vida, de suas necessidades, de seu entorno sociocultural, enfim, leitoras. 5. E assim elas se fizeram/ nós nos fizemos leitoras... Somos a leitura que os outros e nós também fazemos de nós mesmos... com a provocação de Angela Pradelli (2013), concluímos por ora as discussões que nos levaram a construção desse escrito. Essa apropriação retrospectiva em torno das práticas culturais de leitura e do fazer docente produz um movimento de reflexão em torno dos percursos experienciados. Essa reflexão, por sua vez, poderá ser utilizada como suporte para possíveis mudanças e transformações, com vistas à produção de práticas mais significativas. Cremos que, tanto as leitoras que colaboraram com a construção deste trabalho quanto nós, na condição de pesquisadoras, podemos representar este movimento enquanto uma importante etapa de nossos processos formativos. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Não temos dúvidas que revisitar as histórias de vida e de leitura dessas estudantes do PPGEduc será uma inesgotável e rica fonte de novas descobertas sobre como cada sujeito, em tempos e modos distintos, constrói conceitos e se define ou se reconhece leitor. Certamente ainda há muito o que se pesquisar dentro dos escritos dessas professoras, hoje nossas cúmplices. Assim, vislumbramos que o escrito teórico-epistemológico aqui apresentado possa referenciar práticas outras a partir da percepção que o leitor tem de si e de suas leituras, articulando-as com sua vida-formação e profissão, entrecruzando o ser ao fazer, para que, com sensibilidade, reflexão e criatividade, seja compreendido como um ser com dimensões complexas imbricadas entre o eu profissional e eu pessoal. Que outras histórias e práticas sejam investigadas! E que daqui surjam novas possibilidades de fazer pesquisa. Em busca da potência em torno desse conhecimento outro, é que, o mergulhar nas histórias de vida dos sujeitos enquanto movimento de formação, se torna premente. REFERÊNCIAS ABREU, Marcia; SCHAPOCHNIK, Nelson (Org.). Cultura letrada no Brasil – objetos e práticas. Campinas, SP: Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil (ALB); São Paulo, SP: Fapesp; 2005. ANNA, R.C.B.M. Memorial. [S.l: s.n]. Salvador, 2006. 12p. _____________. Rascunhos de mim. [S.l: s.n]. 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O mesmo representa um desdobramento da pesquisa desenvolvida no Programa de Mestrado em Crítica Cultural da Universidade do Estrado da Bahia (UNEB), cujo intuito se sustenta em uma reflexão entorno das práticas de leituras e a formação de professores-leitores, reflexão essa que em plena contemporaneidade, requer pensar a noção de leitura de uma forma plural, rizomática, que transgrida o conceito tradicional de leitura - a decodificação dos signos linguísticos. Visibilizando as diversas práticas de leituras que a pósmodernidade possibilita ao sujeito leitor. O que nos permite configurar o ato de ler como objeto de cultura, elemento constituinte na formação do sujeito, e sendo este sujeito uma professora de Língua Portuguesa, o estudo das práticas culturais de leituras dessas professoras de Língua Portuguesas perpassando pelo viés das suas experiências cotidianas, possibilita uma reflexão a partir da noção do sujeito histórico e social, pois como é sabido o/a professor/a de Língua Portuguesa apresentam histórias de vida distintas, assim como as suas histórias de leituras, o que equivale dizer que, a prática cultural de leituras de cada sujeito está atrelada a sua condição social de sujeito, como afirma Cordeiro (2008) às práticas culturais devem ser entendidas a partir do lugar social de cada sujeito. Neste sentido, têm-se uma pesquisa que ancora-se na (auto)biografia e que tem as narrativas de formação como dispositivos de análise, uma vez que a abordagem autobiográfica possibilita ao pesquisador descrever e analisar fatos que marcam a vida e a formação dos sujeitos, experiências essas situadas dentro de um contexto sócio-histórico e cultural, como bem coloca Josso (2007), pois à medida que o sujeito narra um fato biográfico, faz uma interpretação do que foi vivido, do que foi experienciado por ele, uma ação dupla vivenciada pelo sujeito narrador, cabendo ao pesquisador que trabalha com o método autobiográfico fazer a interpretação e compreender o que foi narrado pelo sujeito colaborador na pesquisa. Nestas perspectivas, busca-se utilizar as narrativas das histórias de vida de professoras de Língua Portuguesa, visto que os relatos descritos apresentam, em geral, um estilo informal, narrativo, ilustrado por figuras de linguagem, citações, exemplos e descrições que nos revela os processos formativos na transição de sujeito-leitor a professora-leitora, permite-nos assim, desenhar a genealogia das suas formas de ler a partir das suas narrativas e o significado cultural da leitura na vida desse professor/leitor. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. PALAVRAS-CHAVE: Práticas de leituras, Leitura; Formação de Professores-Leitor APRESENTAÇÃO Pensar a leitura apenas como a decodificação dos signos é negar a sua função social, é ir de encontro às teorias que a definem como uma prática social que valoriza os saberes experienciados do indivíduo. Além disso, é se fundamentar na “grande divisão”, uma concepção que Street (2014) qualifica as modalidades de língua oral e escrita do sujeito de acordo com as suas habilidades cognitivas. Este mesmo autor critica esta concepção, por negar as inúmeras práticas de leituras na qual o indivíduo está inserido, estabelecidas pelas estruturas culturais e de poder de uma sociedade. Martins (2006) nos afirma que aprendemos a ler a partir do nosso contexto pessoal. E temos que valorizá-lo para poder ir além dele. Dentro desta concepção é que discorro este artigo, com a finalidade de analisar as práticas de leituras no processo de formação docente realizadas no curso de Licenciatura em Letras do Campus II da universidade do Estado da Bahia, de modo a perceber como elas têm contribuído para a formação do professor leitor, pois: O ato da leitura resulta de um investimento individual condicionado aos processos sociais, produzindo sentidos e se inserindo em uma dinâmica social na qual o leitor tem um lugar e uma referência de si, do outro e do mundo que o circunda (CORDEIRO, 2008, p. 197). Esta autora coloca que as histórias de leitura devem ser compreendidas a partir das subjetividades de cada sujeito, de suas trajetórias de vida e de formação, ou seja, das experiências e do lugar social que cada um ocupa, com seus diferentes ritmos, maneiras de ler e dos diferentes tempos e espaços de leitura que os constituem, pois “contar história de uma vida é dar vida a essa história” (ARFUCH, 2010, p.42). Assim, os pesquisadores que investigam história de vida, de leitura, práticas de formação docente e de formação de leitores nos fazem pensar que a leitura é uma prática social indispensável a qualquer sujeito e, se a situarmos no espaço educacional, percebemos que nesta esfera há uma verdadeira justaposição de povos e 485 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. culturas. E, como fica a figura do professor, em especial do professor de Língua Portuguesa, ao trabalhar a questão da leitura? É possível apenas uma prática de leitura para atender os sujeitos? Diante dessas questões-problema em torno da leitura, a qual é, sem dúvida, o alicerce para o exercício da sua função. Compreende-se que o trabalho que o professor desenvolve com a leitura decorre de sua visão do mundo, e do modo como põe os seus hábitos de leitores a serviço das atividades que desenvolve. Sua subjetividade enquanto um sujeito que se afirma leitor implica em seus conhecimentos específicos e pedagógicos, possibilitando uma práxis. Assim, compreender o processo identitário de professores em formação através de suas histórias de vida, da visão particular de suas experiências, pode ser uma forma de visibilizar esses sujeitos, dando uma ressignificação as suas práticas de leituras vivenciadas no processo de transição de estudante leitor a professor leitor. PRÁTICAS DE LEITURAS: O QUE É LER? E COMO SE LÊ? 486 A vida contemporânea exige o constante exercício da leitura, já que esta ação é considerada um requisito de inclusão social e uma ferramenta indispensável para a convivência nesta sociedade, bem como para o delineamento de novas fronteiras do saber, já que toda e qualquer atividade humana está relacionada com o uso da língua, através de enunciados, orais ou escritos, provindos de todo ser humano, independentemente de sua classe social, uma vez que o domínio da leitura e da escrita é fundamental para que o sujeito saiba atribuir significados a cada processo por qual vivenciou, ressaltando que este sujeito é um ser social que interfere no seu meio, posicionando-se criticamente. Mas, afinal, o que é a leitura? É o modo como se interpreta um conjunto de informações impressas? É a ação de decodificação e codificação dos signos? No contexto da contemporaneidade, esta pequena palavra – leitura –, rompe com a dicotomia de apenas reconhecer e sonorizar as letras, com o passar dos tempos, assim como outras palavras, ela se ressignificou e carrega consigo um leque Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. de significação. Entende-se a leitura como um processo interativo, porque se acionam e interagem os diversos conhecimentos do leitor a todo o momento para chegar à compreensão do que se lê, pois: A leitura, evidentemente, não é um ato isolado do indivíduo ante ao escrito de outro indivíduo. Sua dinâmica pressupõe a decodificação de sinais e propõe a imersão do leitor no contexto social da linguagem e da aprendizagem, através da compreensão do discurso de outrem. (CRUZ, 2012, p. 71). De fato, a leitura envolve certa dinâmica, como nos assegura Cruz (2012), pois, ao ler, é preciso que o leitor compare o que foi lido com sua bagagem de conhecimento mundano, ou seja, requer sua interpretação acerca do que está escrito nas linhas e nas entrelinhas para se inferir sentido, questionando-o, assim “analisar a leitura significa se interrogar sobre o modo de ler um texto, ou sobre o que nele se lê (ou se pode ler)”, como diz Jouve, (2002, p. 13). Concomitante a isso, a leitura é objeto de conhecimento, instrumento para novas aprendizagens e entretenimento, pois o seu discurso desperta no leitor algo que costuma denominar de prazer e possibilita ao indivíduo que faz a leitura uma visão ou interpretação pessoal das condições sociais, políticas e econômicas de um povo em um dado momento de sua história, uma vez que “o ato de ler é, já em si próprio, fortemente subjetivo” (JOUVE, 2002, p. 18). No entanto, para se tornar um sujeito crítico na era contemporânea, é indispensável o domínio das práticas de leitura, leitura essa marcada cada vez mais pelas presenças de imagens, sons e palavras que têm como suporte a televisão, o vídeo, o cinema, o computador, implicando assim, novas formas de ler e novas formas de interferir no mundo da cultura tecnológica, pois: O fluxo sequencial do texto na tela, a continuidade que lhe e dada, o fato de que suas fronteiras não são mais tão radicalmente, visíveis, como no livro que encerra, no interior de sua encadernação ou de sua capa, o texto que ele carrega, a possibilidade para o leitor de embaralhar, de entrecruzar, de reunir textos que são inscritos na mesma memoria eletrônica: todos esses traços indicam que a revolução do livro eletrônico e uma revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler. (CHARTIER, 1998, p. 13). 487 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Assim, as novas práticas de leituras, apresentam características físicas e corporais do sujeito leitor, sujeito esse que rompe com a maneira tradicional de ler, aquela determinada pelas bibliotecas, na qual o sujeito se posta diante do livro e passa a degustá-lo silenciosamente, página após página, seguindo sempre a mesma prática de ler. Os novos paradigmas concernentes à leitura implicam novas relações sociais para com a linguagem, trazendo possibilidades também novas, em particular no âmbito do hipertexto, considerado como o texto escrito que passa a fazer parte da interação do sujeito com o contexto comunicativo. Essa desconstrução linear da leitura (e consequentemente da escrita também) para uma dimensão indisciplinar, reflete uma ruptura de paradigma com relação à linguagem e o pensamento, bem como suas concepções sociais e políticas, pois os sujeitos leitores são diversos, o que caracteriza também os diferentes modos de ler e de escrever e variam segundo diferentes instituições, considerando-se a tendência à 488 contextualização das atividades, estratégias, saberes, segundo a situação específica, num tempo e espaços concretos. Segundo Chartier (1990), as histórias das práticas de leituras têm com intuito identificar em cada época as modalidades partilhadas, vivenciadas pela leitura, descrevendo, assim, as formas, posturas e gestos praticados pelos respectivos sujeitos, produzindo uma significação e sentido desta prática. Deste modo, a noção de leitura como uma prática sociocultural que perpassa pela relação de poder presente na sociedade e analisar as práticas de leituras dos estudantes/professores pressupõe entender e compreender as práticas de letramento vivenciadas por esses mesmos sujeitos, pois, é sabido que a leitura é proveniente da experiência existencial e a mesma não apresenta uma única dimensão existencial para os mesmos leitores, pois: O trabalho de leitura é, em grande parte, um processo de produção de sentido, no qual o texto participa mais como um conjunto de obrigações (que o leitor toma mais ou menos em consideração) do que como escrita mensagem. A partir de então, pensamos poder mostrar que as inferências inerentes ao ato léxico apoiam-se mais Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. sobre a capitalização cultural específica de cada leitor do que sobre a aprendizagem escolar de uma técnica de decifração. (HERBRARD, 2011, p.37 - 38). Corroboramos com Herbrand (2011) quando coloca que cada leitor vivencia o que lê a partir de suas representações concretas e simbólicas e essas experiências ganham sentido quanto o sujeito se transforma e aprende a partir das suas marcas sócio-históricas. CONTEXTO METODOLÓGICO DA PESQUISA Conforme já mencionado, o presente texto aborda uma reflexão a partir das práticas de leituras e a formação de professores-leitores. Tendo como abordagem teórica as práticas culturais de leituras, ancoradas nos estudos autobiográficos de narrativas de formação, uma vez que a abordagem autobiográfica possibilita ao pesquisador descrever e analisar fatos que marcam a vida e a formação dos sujeitos, experiências essas situadas dentro de um contexto sócio-histórico e cultural, como bem coloca Josso (2007), pois à medida que o sujeito narra um fato biográfico, faz uma interpretação do que foi vivido, do que foi experienciado por ele, uma ação dupla vivenciada pelo sujeito narrador, cabendo ao pesquisador que trabalha com o método autobiográfico fazer a interpretação e compreender o que foi narrado pelo sujeito colaborador na pesquisa. Ao me apropriar do método (auto)biográfico, a princípio busquei articular este método aos meus objetivos, de um modo que esta metodologia me norteasse a buscar os indícios que me levaria a compreender a constituição identitária do professor – leitor. Sendo assim, a partir das narrativas de duas professoras de Língua Portuguesa egressas do curso de Letras da UNEB-Campus II, as quais vivenciaram os saberes da práxis docente, pois como critério de seleção foi estabelecido que as colaboradas estivessem atuando em sala de aula. A seleção desses sujeitos se fundamenta no fato de serem profissionais educacionais que vivenciam o campo linguístico e literário diariamente em seus espaços escolares. Vivência essa na qual a leitura permeia por toda a sua ação. 489 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Assim sendo, este trabalho caracteriza-se como uma pesquisa de natureza qualitativa, ancorada no método (auto)biográfico para analisar as práticas de leituras vivenciadas pelas professoras de Língua Portuguesa, na perspectiva de entender como essas práticas contribuíram para a formação do professor leitor, tendo em vista a entrevista narrativa como técnica de recolha das narrativas de formação leitora, pois: A entrevista de pesquisa biográfica instaura assim um duplo empreendimento de pesquisa, um duplo espaço heurístico que age sobre cada um dos envolvidos: o espaço do entrevistado na posição de entrevistador de si mesmo; o espaço do entrevistador, cujo objeto próprio é criar as condições e compreender o trabalho do entrevistado sobre si mesmo. (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 527). O falar de si, nesta pesquisa, possibilita visibilidade ao professor em formação, ao permitir ouvir as suas singularidades, o que cada momento relatado revela de sua experiência e de sua existência. O relato não se limita apenas a ação de contar, ele vai 490 além, adentrando na subjetividade do sujeito, desnudando-o, lhe permitindo reviver momentos pela ação de rememorar, já que as narrativas, sejam elas de vida, de formação ou de profissão, produz no sujeito narrador: [...] ele tem também o poder de produzir efeitos sobre aquilo que relata. É nesse “poder de agir” do relato que se baseiam as propostas de formação que se valem das “histórias de vida” para dar início a processos de mudança e de desenvolvimento nos sujeitos. (DELORYMOMBERGER, 2012, p. 529). Sendo assim, as narrativas aqui apresentadas é apenas um recorte do corpus da pesquisa intitulada “Memórias docentes: nas entrelinhas do currículo”, que se encontra em fase de desenvolvimento, vinculada ao Programa de Pós-graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, do campus de Alagoinhas, cujos relatos orais são transcritos pelo trabalho da memória e evidenciam as subjetividades dos sujeitos, seu valor heurístico, a partir de uma análise interpretativa-compreensiva. Uma vez que, ao rememorar suas lembranças, as professoras revisitam e revivem o processo de apropriação das suas práticas de Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. leitura, buscando pistas dos percursos, preferências de textos, ambientes, modos, acesso e pessoas que contribuíram na sua formação, enquanto leitora. O QUE AS NARRATIVAS NOS CONTAM: UM MERGULHO NO UNIVERSO DAS LEITURAS A partir das entrevistas realizadas e analisadas chegamos à seguinte descoberta: os relatos das duas professoras de Língua Portuguesa aqui apresentadas, evidenciam que elas iniciaram os seus primeiros contatos com a leitura na escola, considerada por elas como um lugar de encontro com os mais variados saberes, possibilitando-lhes a entrada no processo de alfabetização por via da escolarização, iniciando um percurso que direcionaria para o mundo da docência. Desse modo, as primeiras práticas de leituras vivenciadas por estas professoras está atrelada a seus processo de processo de alfabetização/escolarização e, ao rememorarem este momento, as professores refletem regressando no tempo essas primeiras aprendizagens. Ao passo que íam narrando essas experiências, o sentido atribuindo à leitura era ressignificado. Uma ação que redesenhava as práticas de leituras vivenciadas nas histórias das professoras a partir das suas subjetividades, uma vez que “os processos de formação de professores e leitores se modelam na tensão entre as experiências que demarcam as histórias de vida de cada sujeito e seus percursos de formação e autoformação” (CORDEIRO; SOUZA, 2010, p. 217). Assim, as lembranças das leituras experiênciadas pelas colaboradoras estão atreladas as suas experiências educacionais, conforme Cordeiro e Souza (2010), os sujeitos, ao narrarem suas práticas de leituras, entram em contato com suas lembranças, histórias e representações sobre as aprendizagens vivenciadas no espaço escolar/acadêmico, como forma de tornar esses “espaços”, o espaço privilegiado da leitura. Para tanto, a abordagem (auto)biográfica possibilita o entrelaço das histórias individuais com as histórias sociais, já que os sujeitos autores dessas narrativas são sujeitos ativos que se apropriam do mundo social que está a sua volta, dando lhes sentidos diversificados que, por sua vez, são traduzidos em suas práticas, se 491 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. manifestando na sua subjetividade; assim “a abordagem biográfica prioriza o papel do sujeito na sua formação, o que quer dizer que a própria pessoa se forma mediante a apropriação de seu percurso de vida, ou do percurso de sua vida escolar” (BUENO, 2002, p. 22). Assim, uma das professoras, identificadas como professora Aline, coloca: [...] a gente não tinha acesso a livros, não tinha acesso a revistas, não tinha acesso a televisão, rádio, essas coisas todas; meu Deus quando eu vim ter acessa a isso eu já estava grande, grande que eu quero lhe disser eu já tava assim [...] com nove dez anos de idade. [...]. A gente morava em um sítio lá tinha porco, tinha cavalo, tinha jegue, tinha peru, tinha pato, tinha coque, tinha pombo, minha mãe criava essas coisas. [...] Então, tudo isso pra mim era motivo de criar história, tudo isso, cada coisa no quintal de lá de casa tinha uma história, tudo eu inventava, eu tinha uma facilidade grande pra, pra isso. Eu achei que isso me [...] facilitou a aprendizagem [...]. (Aline – Entrevista narrativa, 2011). Esse relato da professora Aline demarca o seu encontro com o mundo abstrato da leitura, um indivíduo capaz de compreender o significado dos diversos objetos e sujeitos que se manifestavam no seu espaço. Ela lia o mundo como o mesmo se 492 mostrava para si, o ato de ler era materializado pelas ressignificação das coisas que a colaboradora os davam, a leitura não estava representada por meio da escrita, e se da sua arte, dos cheiros, da sua capacidade de imaginar. A professora Aline possui uma experiência própria, cotidiana e pessoal, tornando a leitura única, incapaz de se repetir, e este é o seu grande encanto. “Daí porque as histórias de leituras devem ser compreendidas entre a subjetividade e o lugar social de cada indivíduo, com seus diferentes ritmos, formas de ler, tempos e espaços de leituras os mais inusitados” (CORDEIRO, SOUZA, 2010, p. 224). O domínio da leitura e da escrita possibilita o indivíduo compreender a sua razão de ser no mundo, buscando cada vez mais novos conhecimentos sobre a realidade a qual pertence. Insere-se na realidade, nas histórias registrando os processos decorrentes, acumulando-os na memória devido ao fato de ser leitor e escritor, despertando no sujeito leitor uma reflexão não só naquele contexto em que está situada a história, uma leitura que proporcione ao leitor compreendê-la em outros contextos (res)significando-a. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. A colaboradora Aline, conforme a concepção de Sonia Kramer (2000, p. 21) apresenta a leitura como experiência, ao falar: [...] de livros e de histórias, contos, poemas ou personagens, compartilhando sentimentos e reflexões, plantando no ouvinte a coisa narrada, criando um solo comum de interlocutores, uma comunidade, uma coletividade. (Aline – Entrevista narrativa, 2011). De fato, o domínio da leitura e da escrita é fundamental para que o sujeito saiba atribuir significados a cada processo por qual vivenciou. Assim sendo, a professora Aline coloca que: Mas foi na quinta série que eu comecei a ter acesso a livros que eu não tinha acesso antes, eu li a..., você conhece A ilha perdida, o Menino de asas, Menino de engenho conhece? Eu li tudo isso...da quinta à oitava série eu li o Menino de asas, eu li Menino de engenho , eu li A ilha perdida, eu li o Escaravelho do diabo, eu li..., o que mais que eu li..., eu li tanta coisa bacana....eu li o Escaravelho do diabo, A ilha perdida o que eu li mais Zuleide. Eu li a Moreninha..., eu li muita coisa nessa época que me marcou, eu li...também....meu pé de laranja lima, eu li um bocado de coisa bacana nessa época, que hoje os meninos não ler. [...] (Aline – Entrevista narrativa, 2011). Este relato da professora Aline evidencia a forma como a escola institucionaliza e direciona as leituras de uma forma sútil, pois esta colaboradora afirma que o contato com o livro era tão fascinante e não percebia esta intenção escolar. No espaço escolar prevalecem as obras literárias, postura que a literatura desde sempre representa como uma ferramenta de ensino que endossa valores e serve como pretexto para o ensino de determinados conteúdos. Sanches (2004) descreve essa intencionalidade escolar com base na escola pública (sua realidade, não que a escola particular fugisse a essa regra), uma vez que vivencia um currículo que determina os conteúdos escolares se firmando em uma instituição conformadora, mais que formadora, mostrando que o que está em jogo não é o prazer ou conhecimento desta leitura, mas a construção de informações que possibilitem ao aluno comprovar a leitura realizada. A experiência da professora Aline também se cruza com a experiência da professora Kátia, embora esta perceba as imbricações propostas pela instituição 493 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. escolar, o que difere são os tempos e os espaços vivenciados, mas a escola permanece a mesma, pois a professora Aline vivenciou esses saberes na década de 70, enquanto que a professora Kátia nos anos 90, com uma disparidade de vinte anos, embora a escola tenha continuado a promover práticas de leituras que garantam ao aluno efetivamente ler e compreender a obra lida. Sobre essas questões, a professora Kátia coloca que: Eu me lembro que a gente fez um trabalho com Fátima Berenice de Vidas, com o livro a obra Vidas secas, eu nunca esqueci de Vidas Secas. Eu li no ensino médio pra mim foi um livro que passo batido porque a escola também deixou a desejar nesse sentido, mas depois do contato que eu tive com esse livro na graduação eu nunca esqueci desse livro porque aquilo foi significativo. (Kátia – Entrevista narrativa, 2011). Neste excerto narrativo da professora Kátia fica nítido que a mesma vivenciou duas práticas de leitura com a mesma obra literária, sendo em tempo e espaços diversos, assim como as propostas curriculares, o primeiro momento enquanto aluna do ensino médio em uma instituição particular, e no segundo momento como aluna 494 do curso de Licenciatura em Letras. Quanto às práticas de leituras vivenciadas no espaço da academia, vale ressaltar que o espaço acadêmico foi o mesmo para ambas, apenas em tempos diferentes, pois tanto a professora Aline, como a professora Kátia vivenciaram práticas de leituras significativas que íam de encontro com as ideologias das práticas de leituras escolares. A professora Aline afirma que fez: [...] literatura portuguesa com Nanci, conheci o Primo Basílio um estudo...que num vai me sair da memoria nunca mais a profundidade que Nanci fez com que a gente estudasse o crime do padre amaro e tantas coisas bacanas que eu vivi na faculdade, entendeu. (Aline – Entrevista narrativa, 2011). Conforme Souza, as histórias de vidas ou a narrativa (auto)biográfica se constitui em um método que nos permite “[...] compreender as histórias de escolarização de professores em processo de formação” (2006, p. 135), pois uma narrativa onde o sujeito se autorevela, permitindo-o se conscientizar da sua formação Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. acadêmico-profissional, é uma nova forma de pensar a formação docente, suplantando as práticas tradicionais presente nos curso de formação docente. Sendo assim, a sala de aula, para a professora Kátia, tornou-se um espaço vivo de narrativas, onde os sujeitos tecem os conhecimentos a partir de uma rede de subjetividades, desconstruindo os saberes imutáveis, como nos propõe Alves e Oliveira (2002), ao descrever o currículo a partir da realidade cotidiana da escola, pois analisa os saberes curriculares sem nenhum julgamento de valor, compreendendo e valorizando a pluralidade de conhecimentos que há neste espaço. Nessa concepção curricular, os estudos não partem mais da teoria social hegemônica e sim das diversas questões sociais que são vigentes. Ler é, fundamentalmente, uma prática social, esta totalmente atrelada às situações vivenciadas no contexto familiar, escolar, acadêmico, dentre outros. As leituras oriundas de outros espaços e de obras não canônicas, também constitui um sujeito leitor, com habilidades de ser um cidadão crítico. Nesta perspectiva de prática de leitura, na qual não se institucionaliza o que ira ler, o ler é determinado pelo gosto, pelo prazer, sem as amarras que as instituições escolares possibilitam ao aluno, assim como ao professor visibilizar outras leituras para construírem os saberes que lhes serão úteis dentro e fora do ambiente escolar. Assim, cabe nos questionar e romper com a institucionalização das práticas de leituras que são impostas pelo currículo escolar, pois a leitura é a base da sustentação da aprendizagem para o aluno e a sua a ausência na formação do professor seria uma mutilação, pois a leitura é, sem dúvida, o alicerce para o exercício da sua função profissional. Assim coloca a professora Aline, ao dizer que: Eu lia muita revista em quadrinho também viu, e na minha adolescência adivinhe o que eu li muito, muito, muito, muito, muito que deu até um trabalho na faculdade eu fiz com Jeane Magalhães Julia, Bianca, Sabrina, eu li tudo. Eu viajei com aqueles homens maravilhosos, com aqueles castelos encantadas, com aquelas praias paradisíacas maravilhosas, lindas, perfeitas minha, minha adolescência foi tumultuada daqueles homens parecendo um Deus grego. Eu li tudo que você pensar assim. E eu digo a você que isso tudo me ajudou a escolher Letras como meu curso. (Aline – Entrevista narrativa, 2011). 495 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Neste relato da professora Aline fica evidenciada uma satisfação ao degustar o livro, pois referida docente tem liberdade em escolher o que se quer, “ser sujeito de minhas escolhas, mesmo que elas recaíssem sobre livros e autores errados” (SANCHES, 2004, p.18), já que o livro possibilita uma satisfação, não somente por têlo, mas pela essência que o texto transmite ao sujeito leitor. Assim, Sanches (2004) coloca que a: [...] satisfação psicológica não se dá pela posse do objeto, mas pela fruição de sua essência, nunca conquistada de fata, exigindo que ele sempre retorne a ela – por isso tendemos não só a reler como buscar os livros da mesma família. (SANCHES, 2004, p. 66). Assim, neste fragmento, Sanches (2004) nos propõe conceber o ato de ler com um momento de se aventurar-se no desconhecido, descobrindo e construindo mundos, um mundo no qual criamos um sentimento de pertença. Permitindo-nos vivenciar diversos eus, rompendo com a lógica e a historicidade do tempo, possibilitando-nos vivenciar um devir. E, deste modo, a professora Aline vivenciou 496 todos os seus livros. Para Cruz (2012), as práticas de leitura, sejam elas canônicas ou não, permitem uma junção de cultura, o encontro do mundo autor e do leitor em um único código/língua, um discurso em que o leitor se envolve, elaborando um ponto de vista, no qual interpreta de acordo com a sua vivência no/do mundo, uma vez que “Ler nos forja a alma e nos insere no tecido cultural que envolve a frágil e forte existência humana”, nos assegura Hazin (2006, p. 64). Sendo assim, as práticas de leitura guardam a identidade de cada leitor, o modo com se constituiu ou está se constituindo, a partir do espaço da escola/academia, dentre outros, que possibilitem a leitura e o tempo dedicado a essa prática são fatores inerentes à construção do sujeito professor-leitor. As experiências aqui rememoradas pelas duas professoras colaboradoras nesta pesquisa, evidenciam que as práticas de leitura estão ligadas às questões culturais e não apenas com a imposição escolar, embora este espaço e tempo, qual seja, a escola e os percursos de escolarização tenham influenciado a sua identidade leitora, apesar Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. do gosto pela leitura já existir, o que lhe faltava no caso da professora Kátia era apenas uma ressignificação da prática que lhe foi apresentada no espaço escolar. Quanto à professora Aline, o fascínio pela aventura promovida pela leitura, ainda menina, não lhe permitiu conhecer a ideologia escolar para com a leitura. Do mesmo modo, conhecer as histórias de leituras de duas alunas egressas do curso de Letras da UNEB/Campus-II nos leva a refletir o valor significativo que essas práticas vivenciadas nos espaços escolares e educativos, como a escola e a academia contribuíram significativamente para a construção de uma identidade leitora. CONSIDERAÇÕES FINAIS A problematização referente à leitura aqui apresentada vai além da dicotomia codificação/decodificação dos signos, e sim a apropriação dos significados de um texto, isto é, a produção de sentido que o sujeito leitor constitui. Assim é fundamental que instituições de ensino sejam e possibilitem a esses sujeitos espaços de leitura reflexiva, concebendo em seus espaços as diversas práticas de leituras vivenciadas e construídas ao longo de sua escolarização e de sua vida. Diante desta perspectiva, o estudo desenvolvido com as professoras de Língua Portuguesa, a parir de suas histórias de leitoras, a fim de compreender em quais circunstâncias suas práticas de leituras experiênciadas nos espaços de ensino contribuíram para um perfil de um sujeito-leitor, assim como esta incide em seus processos de formação continuada de professoras-leitoras, pois ao (re) viverem essas experiências, implícito ou explicitamente, estas demarcam o papel formativo das práticas de leitura na sua identidade e na sua formação continuada. Assim, pode perceber nas vozes das professoras colaboradoras da pesquisa que é visível a forma homogênea e institucionalizada que o espaço escolar propõe às práticas de leituras e ganham um caráter utilitarista, porque servem de pretexto para o ensino de regras gramaticais, constituindo-se de textos fragmentados desvinculados dos contextos em que foram produzidos e distantes das necessidades de leitura dos alunos, se finalizando em uma aprendizagem não significativa. 497 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Para tanto, ao dar visibilidade as narrativas das professoras, é possível dar a sua vida outros sentidos, repensar as experiências do passado, processo que se relaciona à história e à cultura, já que a memória de cada um se liga à memória do grupo e aos laços de coletividade. Permite-nos assim, desenhar a genealogia das suas formas de ler a partir das suas narrativas e o significado cultural da leitura na vida desse professor/leitor. 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(ver entre outros: Rojo 2009; Kleiman, 2005; Borges da Silva, 1999; Moura, 2012; Mendes, 2008). Dentre os estudos empreendidos está a leitura como um conceito que pode ser interpretado de diversas formas, e não somente como uma exclusividade verbal. Na educação infantil até o final do ensino fundamental I, a presença da linguagem artística e de textos não verbais, frequentemente aparecem nas produções dos alunos, mas, com o passar dos anos, esse tipo de linguagem começa a desaparecer. No entanto, muitos educadores reconhecem que há uma maior motivação por parte dos alunos, ao propor uma atividade em que o aluno possa se expressar mais livremente, a exemplo do desenho, da pintura e de produção de textos literários. Durante a realização da minha pesquisa de mestrado, dei início a um processo de grandes descobertas. O acesso ao conhecimento, adquirido nas leituras e discussões em sala de aula, passou a refletir na minha prática docente, levando-me a refletir e experimentar algumas atividades de leitura e produção de textos. Foi a partir das minhas reflexões sobre multimodalidade de gêneros textuais que surgiu a ideia de levar para sala de aula o livro Pintando Poesia da artista plástica baiana Ada Brito. Outro aspecto que me motivou a desenvolver esse estudo foi o meu desejo de inserir os alunos no universo da poesia e da pintura, possibilitando-os descobrir diferentes formas de leituras. A experiência desenvolvida com um pequeno grupo do ensino fundamental II (6º ano) foi bastante exitosa. A motivação dos alunos, revelada nas suas produções, me fez refletir e repensar sobre a minha prática em sala de aula. E é nessa perspectiva que será apresentado um relato de experiência de uma professora que versa sobre sua proposta de atividade de leitura e escrita de textos verbais e pictóricos, desenvolvido em uma turma do ensino fundamental II de uma escola pública em Salvador. PALAVRAS-CHAVE: experiência docente; prática de leitura; poesia; pintura. 1 APRESENTAÇÃO Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Foi durante o período em que cursava o mestrado acadêmico que as leituras e discussões sobre gêneros textuais passaram a refletir na minha prática docente, levando-me a refletir e experenciar algumas atividades de leitura e produção de textos que fugiam um pouco da nossa rotina em sala de aula. Paralela às atividades referentes ao meu objeto de estudo do mestrado realizei atividades de leitura e produção de poemas e leitura de imagens. A disposição dos alunos para escrever, comentar oralmente e, principalmente, representar seus textos por meio de imagens me motivou a levar para sala de aula, textos que reunissem poesia e pintura. Conforme Vicentini (2011apud Aguiar e Silva), dentro do processo evolutivo, a poesia e a pintura estão entrelaçadas. Ambas são “artes irmã”, quanto ao efeito e a produção de sentidos. As duas artes proporcionam ao leitor diferentes formas de ver, refletir, sentir e criar. A motivação para a prática que ora apresento surgiu do meu interesse pela literatura e a pintura e do desejo de inserir os alunos no universo dos poemas e da pintura, possibilitando-os descobrir diferentes formas de leituras. Foi a partir das minhas reflexões sobre multimodalidade de gêneros textuais, somado ao meu interesse e as respostas dos alunos, que surgiu a ideia de levar para sala de aula um livro de poesias pintadas. A obra apresentada ao grupo foi o livro Pintando 502 Poesia22, da artista plástica baiana Ada Brito. Tomando como pano de fundo o livro Pintando Poesia, visando contribuir para o aprimoramento das práticas de leitura e escrita no contexto escolar, foram traçados os seguintes objetivos: Verificar se e como o aluno estabelece a relação existente entre os poemas e as pinturas; Incentivar a turma na produção e leitura de textos não-verbais; Analisar as produções textuais dos alunos. 22 Pintando Poesia. Livro de Poesias Pintadas, da artista plástica e escritora baiana Ada Brito. O livro está registrado na Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro, 01 de junho de 1990. Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. 2 O LIVRO PINTANDO POESIA Pintando Poesia representa a obstinação e sensibilidade de uma artista à produção de algo “inédito” na sua carreira – a composição de uma obra que reúne poemas e pinturas. Em 1983, a artista plástica baiana Ada Brito23, escreve um poema com todas as letras começadas pela letra S. Ela não imaginava que esse seria a inspiração para algo que parecia impossível – a produção de um livro composto por 24 poemas trabalhados em todas as letras do alfabeto (incluindo a letra K), tendo todas as palavras iniciadas pela mesma letra e ilustrações produzidas pela própria autora. Elementos da cultura popular, recordações da infância, brinquedos anjos e seres mitológicos são elementos marcantes que compõem um universo de palavras e cores. Artista consagrada e de grande participação no cenário artístico eixo BahiaRio de Janeiro, nas décadas de 70 a 90, Ada Brito possui um acervo artístico de subido valor estético, merecedor de um estudo sistemático, no entanto há poucas referências bibliográficas acerca do seu trabalho. Em artes cênicas, Ada criou o Teatro de Títeres da Hora da Criança24, premiado no 1º Salão de Arte Visual – Rio de Janeiro. Criou figurinos e cenários, dentre esses está a cenografia do show dos “70 anos de Caymmi” – Rio de Janeiro e Opereta Narizinho – Bahia e também produziu desenhos em quadrinhos, como a revista comemorativa do Sesquicentenário da Bahia, editada pela Abril Cultural, em 1973. Ada Paiva da Rocha e Brito (13 nov. 1940) Nascida em Salvador/BA Graduada em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Além da pintura, Ada Brito dirigiu o Departamento de Artes Plásticas da Hora da Criança. 23 O Teatro de Títeres da Hora da Criança recebeu, por sua participação especial, uma Medalha de Prata, no I Salão de Arte Visual, realizado no Ministério da Educação e Cultura do Rio de Janeiro, de 17 a 24 de novembro de 1975. 24 503 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Vejamos abaixo uma pequena amostra do livro Pintando Poesia. Poema em S O poema em S foi o primeiro poema e trouxe inspiração para a produção do livro. (fragmentos do Poema em s) Se sentimento silencioso Se sentisse... Seria seu... Sílfide sublime Sonho supremo Sem subterfúgios Pintura Poema em S – Rio de Janeiro, 1984 Semblante singular Superior, singelo... 504 Poema em X O poema não possui verbo e para ela, foi o mais difícil de produzir. O poema em X foi Inspirado num jogo de xadrez, sendo composto de: 1º verso – 4 palavras dissílabas; 2º verso- 4 palavras trissílabas; 3º verso- 4 palavras polissílabas. Xale Xadrez Xodó Xerez Xerife Ximbica Xereta Xixica Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. Xeque mate Xadrezista Xingamento Xirimbabista. Vale ressaltar que os poemas apresentam palavras que para uma turma de 6º ano seria de difícil compreensão, mais isso não foi empecilho para que a turma observasse mais a sonoridade e a composição dos poemas (toda iniciada pela mesma letra). Poucos foram os alunos que perguntaram o que significava determinadas palavras. O encanto pela imagem e a sonoridade despertou muito mais o interesse da turma. 3 A PROPOSTA DE ATIVIDADE COM A TURMA Essa experiência foi desenvolvida com uma turma do ensino fundamental II, em uma turma do 6º ano de uma escola pública estadual. A turma era composta por 22 alunos com faixa etária entre 10 a 11 anos. Primeiro momento: Vamos ler esse texto? (Monet); Meu improviso; teu improviso; Apresentando o livro. No primeiro momento foi apresentada uma pintura de Monet para que os alunos contemplassem a pintura e realizassem uma leitura do que viam e sentiam na imagem. Em seguida, alunos e professora criaram um pequeno texto escrito literário para representar a pintura. Escrevendo na louça, a professora deu início ao texto e os alunos completavam seu texto. Esse momento foi marcado pela integração e criatividade dos alunos. Após essa motivação, foi apresentado à turma o livro Pintando Poesia. Foi notável o encantamento dos alunos pelos poemas e, em especial, pela pintura. Segundo momento: Vamos tentar? Quem se habilita? 505 Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. No segundo momento, a turma foi convidada e motivada para produzir seus textos verbais e pictóricos. Algumas produções foram inéditas e acompanhadas de ilustrações também produzidas pelos alunos, outras preferiram copiar poemas extraídos do livro didático e criaram imagens para ilustrar esses poemas. Vejamos abaixo uma amostra do trabalho realizado com a turma. Poesia (aluna 10 anos). Liberdade/ Fernando Pessoa (aluna 10 anos). 506 “Um peixe que está na água não tem escolha do que ele é. Os gênios possuem este talento que possuímos de nadar na areia. Somos peixes, e nos afogamos”. James Dean. O peixe e cada talentos/ James Dean. (Por um aluno 11 anos) Nos trabalhos dos alunos, foi possível perceber que há uma relação ente o verbal e pictórico. Todos os trabalhos demonstraram uma relação entre a mensagem escrita e as imagens criadas. A criatividade nas ilustrações e coerência com o texto verbal foram os primeiros registros anotados. Outro aspecto observado foi a motivação de grande parte da turma na produção de imagens para seus textos escritos. Em um dos nossos encontros para realização dessa atividade, em uma conversa com um grupo, um aluno disse que ao fazer as imagens parece que o texto ganha mais sentido. Esse fala do aluno revela que desenhar, colorir seu texto não é apenas um recurso didático Anais o 5º Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 5, único, 2015. para mera distração, mas que pode permitir ao professor observar a linguagem e as hipóteses de leituras dos alunos. CONSIDERAÇÕES FINAIS “Quando o professor consegue encantar o leitor, você pode dizer: a leitura tem reflexos na sala de aula.” (Kleiman, Ângela, 2007 - em entrevista à revista Na Ponta do Lápis) De início, esse estudo foi mais uma proposta da minha prática pedagógica, motivada por um interesse pessoal de encantar a turma com uma proposta de diálogo entre o texto verbal e o pictórico. No entanto, percebi que foi uma experiência bastante exitosa e que merecia um estudo mais fundamentado. A motivação dos alunos, revelada nas suas produções, me fez refletir e repensar sobre as práticas de leituras, gêneros textuais e formação de leitores, levando-me a repensar a minha prática em sala de aula. No que tange aos objetivos traçados nesse estudo, posso afirmar que foram alcançados, entretanto, vale ressaltar que ao verificar as produções dos alunos, percebi que havia outras possibilidades de explorar uma atividade dessa natureza, por essa razão p