a menina repetente - Criança e Infância
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a menina repetente - Criança e Infância
A MENINA REPETENTE Anete Abramowicz Ao Vinicio Agradeço aos professores, leitores precisos e fundamentais para a elaboração deste trabalho: Maria Machado Malta Campos, Sarita Maria Affonso Moysés, Sonia Kramer e Peter Pál Pelbart. Agradeço a Isabel Marasina por ter acolhido e ajudado a organizar as irrupções e os colapsos de subjetividades: meus e das meninas. Agradeço a José e Belinha, meus pais, e a Leonardo e Eliane, meus irmãos, por estarem comigo, solidários em vários momentos. A Renato e Eduardo, que eu adoro. E às meninas repetentes, que com sua força e seu sofrimento, ensinaram-me um outro tipo de olhar e de escuta em relação ao fracasso. SUMÁRIO PREFÁCIO APRESENTAÇÃO INTRODUÇÃO 1. A PESQUISA (POR QUE UMA CRIANÇA ERRA) O olhar e a escuta O erro. O fracasso. O repetente 2. MICROFÍSICA DA REPRESSÃO Sala de aula: Punição e tempo Disciplina Desejo de punição Resistência 3. O APRISIONAMENTO: A NEGATIVIDADE DA REPETÊNCIA FEMININA Cenas de meninas A menina repetente 4. A REPETÊNCIA FEMININA: A POSITIVIDADE O Silêncio A produção do heterogêneo na escola Agenciamentos Recreio e brincar Fala menina 5. OS DISCURSOS: ESCOLA E CENTRO DE JUVENTUDE As professoras – Mulheres A infância A ideologia do devotamento e do sacrifício As transformações do magistério “Aqui é o fim do mundo” ou a suposta filantropia na escola A síndrome da exclusão e da captura 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A história de Kátia BIBLIOGRAFIA Este caminho que faz o homem atraído avançar sem descanso não é acaso precisamente a distração e o erro? Michel Foucault PREFÁCIO Se eu penso nas salas de aula de tantas escolas por aí, olhos entreabertos, não vejo nada. Se eu penso, olhos fechados, em Kátias, Marias, Michelles, Lucineides, vejo tudo tão claro, tão nítido. Consigo vê-las. Mas não nas salas de aula. Consigo vê-las nas esquinas, nos cruzamentos das cidades, com seu olhar maroto, rindo para as pessoas dentro dos carros. Consigo vê-las com suas vassouras, seu olhar abaixado, nas tarefas domésticas. Consigo vêlas com cadernos escondidos, mais cheios de desenhos e de sonhos do que de letras. Consigo vê-las na continuidade das histórias de suas mães: histórias de rupturas e que têm narrado a mesma história: a de ser mulher e pobre ou de ser pobre e mulher. E nessas histórias todas essas meninas e mulheres seguem a mesma estrada. Essa estrada comum não tem encruzilhadas, não é cortada por tantas outras estradas, como aquela percorrida por D. Quixote, na Espanha, tentando descortinar o futuro de seu país. Para as Kátias, a estrada tem sido reta, sem curvas e sem saídas. Bastante diferente das ruas das cidades. Apenas igual porque tanto a estrada como essas ruas não têm futuro. O tempo de percurso dessa estrada é curto, termina mais cedo, pois tantas outras mulheres, às vezes caminhando por essa mesma estrada, vestidas de palavras e de letras soltas, como professoras, têm ajudado as Kátias a saírem rápido do percurso. Mas é nessa estrada que mulheres e meninas têm se encontrado. Talvez seja por isso que tantas dessas mulheres abreviam o tempo das meninas nessa estrada. Talvez porque não consigam suportar o reflexo de seus vultos – quase fantasmas no olhar infantil que se abaixa, na servidão imposta. O que ainda tem revelado o sexo de mulheres e meninas é o cabelo, rebelde, que se eriça, enquanto caminham... Ao ler o livro de Anete, perguntei-me sobre os sonhos de suas meninas repetentes, os sonhos de suas professoras, os sonhos das mães das meninas. E se haveria diferença entre eles. E se o olhar de Kátia, abaixado para não ser visto, perseguindo os “As”, não era o olhar que exaspera aquela que não tem mais, no próprio olhar, o brilho do sonho. E que, por não conseguir mais se movimentar, necessita da imobilidade dos outros. Mais do que escrever um livro, Anete traça um retrato de meninas e mulheres na escola. Triste. Porém, um retrato que, ao desvendar e por em movimento olhares, gestos, expressões, não nos deixa ficar acomodados ou simplesmente impotentes. E mais: ele nos escapa se pretendemos fazer dele um clichê. Ao tentar encontrar, nas idéias de Foucault, os elementos que lhe propiciariam delinear esse mundo feminino, Anete supera, pela força do movimento das histórias, como a da Kátia, o conceito de apropriação, que norteia seu trabalho. São suas meninas que vão sugerindo, de maneira quase imperceptível, mas captada por Anete, como elas constroem e têm construído táticas e estratégias para poderem caminhar nessa estrada. E Foucault rende-se a essa invenção cotidiana de um conceito de apropriação, ficando mais próximo de Certeau, mas muito mais próximo das vidas das meninas. Por isso não apresento o livro como o da menina repetente porque, em nenhum momento, elas se repetem. Elas recriam, no automatismo das letras, na obrigação imposta, a força, a energia, muitas vezes efêmera e transitória, que as coloca em movimento. E essa força que nos escapa, também nos exaspera, a nós, professoras, que temos dito e repetido (nós sim) para todas essas meninas que a estrada é aquela, a única. São esses movimentos e olhares, fugidios, as lágrimas de um recreio, que configuram as mudanças possíveis e imediatas. Basta fecharmos os olhos e pensarmos nelas. Ou melhor, nem precisamos fechar os olhos para conseguir ver as mudanças. Só contrapô-las ao vazio das escolas e começar... Sarita Maria Affonso Moysés APRESENTAÇÃO Existem duas importantes vertentes de análise sobre a repetência escolar das crianças das classes populares. Em uma destas, o fracasso é diagnosticado como negatividade, por déficits de inteligência, afeto, cultura, nutrição ou condição financeira. Com base nisso, criam-se micropolíticas em torno da idéia de carência, em que as crianças passam a viver seus desejos e saberes como falta de algo nelas mesmas que as estaria impedindo de viver com sucesso sua escolaridade. Para a outra vertente, as crianças são fracassadas, mas como “vítimas” de uma (des)ordem capitalista, na qual a escola estaria cumprindo sua função na reprodução da desigualdade social, excluindo e discriminando essas crianças. Observando no Centro de Juventude1 as crianças repetentes, pareceu-me impossível pensar que elas sofrem o processo de exclusão sem nenhuma resposta, nenhum movimento. Com base nessa primeira observação, fui construindo algumas questões referentes à escola pública e às crianças dessa classe social. Como é o processo de seleção na escola? Como atuam as diversas forças presentes no interior de uma escola? Quem reprova ou exclui a criança? De que maneira? Qual é o movimento da criança no processo de exclusão? Ou seja, como se constrói um(a) fracassado(a)? E um aprendiz? Não se trata aqui de procurar culpados pelo fracasso escolar: família ou sua ausência; carência cultural, alimentar; sociedade capitalista ou Estado. Trata-se de observar e analisar como e de que maneira todos os elementos estão ou não presentes em uma instituição escolar. Dizer que na escola repetem os mais pobres não responde a todas as indagações quando todas as crianças pertencem à mesma classe social. Não se pode pensar a pobreza como uma categoria invariante e homogênea de análise e como condição necessária para o fracasso ou a exclusão escolar. As concepções que entendem a escola como reprodutora das 1 Programa de educação complementar, projeto implantado pela Prefeitura Municipal de São Paulo em 1976. Durante dez anos, atuei como coordenadora pedagógica de um Centro de Juventude, e, por cinco anos, de uma creche no bairro do Jaguaré, em São Paulo. desigualdades sociais falam concretamente pouco sobre quem são os “escolhidos” para a reprovação. Ao procurar investigar a forma pela qual a escola produz e individualiza o fracassado, como é chamado o repetente, encontrei a menina. Ao verificar as singularidades, as dispersões dos acontecimentos e as tramas que vão constituindo subjetividades e interioridades e, portanto, o sujeito escolar, explicitou-se uma forma minuciosa de como a instituição escolar cria a menina repetente. A menina e o fracasso, foi esse o encontro provocado pela pesquisa; e por essa via fui construindo a investigação e a investigadora. Deparar-me com a menina e a repetência, como mulher, foi como chegar a um “buraco negro”, tamanho o vácuo e tamanha a intensidade. No lugar em que tentei construir esse trabalho – da menina e do fracasso – parecia que dali eu não sairia mais. Foi mais fácil pensar a repetência em geral, assexuada, do que a repetência feminina. A negatividade da repetência para a menina chega ao máximo de um paroxismo: criança, pobre, repetente e mulher. O mecanismo da repetência, em seu caráter punitivo, reveste-se de sua forma mais crua para as meninas, elas são sobrepunidas: como alunas e como mulheres. A repetência da menina é o retrato da máxima falta, ponto zero da instituição escolar.2 A repetência não é apenas um movimento da escola visando à exclusão de crianças. As crianças respondem à escola, falam também por meio da repetência (o que querem dizer essas falas?). Elas também excluem a escola (como, de que maneira?). Há uma resposta (afirmação, negação, resistência?) à escola nesse movimento repetente. A criança repetente produz alguma coisa durante esse processo, o que significa dizer que não há apenas 2 Não desconheço que os dados estatísticos mais gerais sobre o país indicam que as meninas levam alguma vantagem sobre os meninos em seu percurso escolar (Rosemberg 1975, p. 81). Neste trabalho, entretanto, procuro investigar a qualidade específica da vivência do fracasso entre as meninas observadas, e é dessa qualidade que trato aqui. Na Secretaria de Educação de São Paulo não existem estatísticas mais atualizadas em relação às repetências feminina e masculina. No entanto, obtive os seguintes dados em relação ao desempenho escolar, na 1a série, das meninas e dos meninos. Dados que demonstram um melhor desempenho das meninas: DESEMPENHO EM RELAÇÃO AO SEXO – 1a SÉRIE (Obs.: 20 questões) fundamental fundamenta1 Fonte: Levantamento Saeb – 1994 * Denominação dada a algumas escolas públicas de ensino fundamenta1 e médio, durante o Governo Fleury. negatividade durante o processo repetente. Portanto, o que se impõe na trajetória deste trabalho é tentar entender qual é a positividade expressa na repetência feminina, procurando compreender que a repetência não ocorre por alguma falta ou excesso das crianças, mas que pode significar a (re)produção de outros e novos códigos de desejos e territórios, ou mesmo, a marca de uma singularidade. INTRODUÇÃO O FRACASSO: UMA PRIMEIRA FORMA DE ME APROXIMAR Existe uma produção institucional de saber que fala sobre e da infância das crianças das classes populares. Na família são os pais, em geral as mães, que falam pelos seus filhos; na escola são os professores, os diretores e os especialistas que falam sobre seus alunos das classes populares. Muitos se referem a eles chamando-os de menores, e a mídia pede para prevenir a marginalidade potencialmente presente nessas crianças e nesses adolescentes. Essas falas produzem saberes e imagens. Imagens que variam entre a criança pobre e carente (o lugar da falta) ou a infância em perigo, e os pequenos marginais (o lugar do excesso) ou a infância perigosa. De “bons e pobres selvagens” a “maus e selvagens”. A infância em perigo precisaria de cuidado e proteção e a infância perigosa, de limite e contenção. Qualquer projeto educacional ancorado nessas visões de infância trará a marca assistencial: cuidado e prevenção. Nesse vai-e-vem entre a infância em perigo e a perigosa, há uma passagem: de um lado a criança é vista como impotência, como falta – sem casa, comida, afeto, saber –, de outro, como potente, ladra e marginal. Essas imagens produzem pena e culpa, as crianças precisam ser cuidadas, assistidas, e também punidas, a criança precisa ser contida. No entanto, nos dois casos as crianças e/ou os adolescentes são vítimas. Vítimas porque se encontram na infância. A infância de certo modo redime-as de seus atos. As crianças não são responsáveis nem vistas como sujeitos de suas ações e seus saberes, são objetos e como tal falam delas, explicam-nas, compreendem-no. Coisificam-se as crianças com o intuito de, imobilizando-as, torná-las inofensivas. Dessa forma esvazia-se um certo potencial diruptivo presente na infância (Pelbart 1989). A partir do século XVIII, quando se definiu um lugar para a infância, concedendo-lhe direitos e até privilégios, tirou-se dela a possibilidade de transitar (também entre os adultos), de existir em suas diferenças; as crianças foram encarceradas nas famílias e nas escolas. Transformaram-se no “mesmo”, menor, infantil e infantilizadas. Assim reduziu-se de certa forma um poder presente na infância que embaralha os códigos (de escrita, de desejos), transpõe limites e subverte a ordem. A sociedade adulta, aquela que se arroga o direito de bater nas crianças e dar ordens às crianças (prática antiga na história da infância), com base neste novo esquadrinhamento – familiar e escolar – acaba por exigir das crianças novas atitudes de disciplina, de vínculos, de fala etc. A escola produz, veicula essas imagens e se organiza com base nessa concepção de infância. O fracasso escolar é, para a infância em perigo, conseqüência das suas “carentes” condições de vida, e toma parte na produção de infâncias perigosas já que, de certa forma, contribui para a volta das crianças às ruas quando são reprovadas. No primeiro caso, a escola coloca-se como impotente, passando apenas a contribuir para a reprodução da desigualdade social, no segundo caso a escola é culpada, produtora da desigualdade. Diagnosticado o fracasso, parte-se em busca dos culpados: a escola como (re)produtora da desigualdade social; as carências afetiva, cultural e alimentar da clientela; as inadequações pedagógicas. Mas a imagem da infância permanece inalterada como o lugar do não-saber, com uma imagem idealizada como boa ou má em que todos falam por ela. Aquilo que é fracasso é construído sobre o lugar da infância. Para fazer soarem o som da instituição escolar e as vozes dos professores e dos alunos, entrecruzando os ruídos, com base no olhar e na fala da menina repetente, fui até a escola onde estudavam algumas das crianças, acompanhar o seu dia-a-dia. Neste trabalho procuro narrar e refletir essa experiência. Ele foi apresentado em 1992 como dissertação de mestrado junto ao programa de pós-graduação em Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. No primeiro e segundo capítulos, examino a concepção de aprendizagem praticada pela escola, a forma pela qual é produzido o repetente, o movimento das crianças durante esse processo, com base no que é entendido como erro. No terceiro capítulo, narro cenas de meninas na escola, procurando mostrar a negatividade da repetência feminina e a maneira pela qual a escola produz a repetente. No quarto capítulo, transcrevo e analiso a fala das meninas acerca de suas condições de vida e a sua relação com a escola e busco compreender a positividade da repetência feminina. No quinto capítulo, analiso os discursos das instituições escola e Centro de Juventude sobre as crianças repetentes e discuto o magistério de ensino fundamental como uma ocupação feminina. Por fim, apresento a história de Kátia, que é uma síntese da repetente e também um limite entre um caso clínico e um escolar. 1 A PESQUISA (POR QUE UMA CRIANÇA ERRA) Durante um ano, uma vez por semana, observei quatro classes do ciclo básico3 de uma escola estadual de ensino fundamental no bairro do Jaguaré, em São Paulo. Entrevistei as meninas repetentes, os meninos da classe especial, as professoras das classes observadas, a coordenadora pedagógica, a faxineira e o diretor da escola. O ciclo básico foi escolhido porque acredito que é nessa fase, como momento fundamental, no princípio da alfabetização, que começa o processo de seleção escolar.4 A escola escolhida foi aquela que a maioria das crianças com as quais eu trabalhava no Centro de Juventude freqüentava. Essa era uma escola que, aparentemente, tinha garantida toda a infra-estrutura necessária para uma efetiva ação pedagógica: prédio com muros em sua volta, espaços internos grandes e disponíveis, presença constante do diretor na escola, existência de coordenadora pedagógica, classe especial, associação de pais e mestres etc. A observação foi realizada da seguinte maneira: eu chegava à escola no início do período, às 7 horas, e permanecia na classe, em silêncio, até às 11 horas. Cada semana assistia à aula em uma das quatro classes escolhidas. Anotava tudo o que conseguia escutar e observar: a aula da professora, as conversas e os silêncios das crianças, as eventuais ocorrências durante o dia e o recreio. Numa semana observava o recreio das crianças e na outra, o dos professores. As crianças sempre me perguntavam por que eu escrevia tanto e indagavam se escrevia tudo o que falavam. Respondia que sim e às vezes lia para elas. Algumas crianças ficavam encantadas com essa espécie de eco-espelho de suas falas. Falavam, pediam para eu escrever e depois ler o que haviam falado, silenciavam e escutavam. As professoras também se mostravam curiosas e às vezes pareciam incomodadas, mas nada diziam. Em 3 O ciclo básico foi implantado em 1984 e teve como objetivo ampliar em um ano o período de alfabetização, agrupando 1a e 2a séries do ensino fundamental em dois anos contínuos. 4 Emília Ferreiro publica um ensaio no boletim informativo Paginas para el docente que trata sobre os problemas fundamentais da educação na América Latina e no Caribe e em relação à repetência e na retenção afirma que: “as maiores taxas de repetência se situam nas três primeiras séries do primeiro grau: o filtro mais severo está na passagem do primeiro para o segundo ano da escola primária, alcançando em alguns países da região cifras excessivas (no Brasil, por exemplo, passam para a segunda série pouco mais da metade dos que ingressam)” (Ferreiro 1990). geral, conversavam comigo durante a aula, na maioria das vezes queixavam-se das crianças e das dificuldades que encontravam para ensiná-las. Esses relatórios são, portanto, descrições pessoais do acontecido na escola. Para as entrevistas com as crianças foram escolhidas quatro meninas repetentes, na faixa etária entre 7 e 14 anos; três meninas moradoras de favelas e uma moradora de cortiço. Essas entrevistas foram realizadas no Centro de Juventude, após o período escolar. Elas foram gravadas e transcritas. Os critérios de escolha das meninas foram os seguintes: dentre as crianças que freqüentavam o ciclo básico da escola pesquisada, foram escolhidas meninas que eram repetentes, consideradas como “problema” pela escola, portanto, meninas para quem a questão do fracasso estava de alguma maneira colocada. O tempo de conversa variou de 40 minutos a duas horas. As meninas resistiam, estranhavam minhas perguntas em relação à escola, “mentiam”, enganavam: “tudo o que eu te disse ontem era mentira”, respondiam como se elas fossem a instituição, as mães ou as professoras “eu tinha que ser reprovada, era muito bagunceira”. Jogo, esconde-esconde, conteúdos ocultos, estratégias de defesa e ataque. O tipo de pergunta formulado determinava a posição da resposta. Quem substituíam foi tomado como um dado de análise e o fato de já conhecê-las permitiu-me, muitas vezes, confrontar o que falavam com as ações cotidianas. O olhar e a escuta Essa investigação pode ser definida como um estudo de caso, exploratório e qualitativo, no qual a investigadora teve a função de observadora, em se tratando da observação das meninas na escola, e participante, pois há uma inserção considerável sob forma de interação e integração com o grupo estudado no Centro de Juventude. O espaço da pesquisadora foi sendo construído durante a investigação. Houve um esforço de procurar reconstruir a escola a partir do lugar do fracassado e uma vigilância constante para não se confundir ora com as crianças, ora com a professora, tentando sair da polaridade opressor-oprimido. A perspectiva do retido é uma fronteira: entre a escola e fora dela, ou seja, não é o de fora (dos já excluídos da escola), nem o de dentro (dos que passam de ano). Lugar de vertigem. Lugar do entre. A reprovação é aparentemente o retrato da máxima falta: falta de afeto, alimentação e saber. Este lugar do retido em aparente imobilidade é o lugar do mais-movimento e de intensa velocidade. Movimento incessante de repetições e de busca de saídas (nem sempre por fora das repetições, mas pelas repetições). Intensas forças em funcionamento, de sair e de permanecer, repetir e não mais. Múltiplas forças com resultado zero, de aparente imobilidade. Esse é também um lugar de encontro, entre a professora que repete anos e anos sua concepção de ensino e aprendizagem e fracassa; e do aluno que é reprovado e repete. Lugar do fracasso. O campo empírico não foi apenas considerado como um plano de constatação de hipóteses preestabelecidas, mas foi também utilizado para experimentação conceitual. As noções conceituais foram instrumentos que ajudaram a explicitar os movimentos, as falas, os silêncios, as recusas e as afirmações das meninas repetentes, na busca de uma inversão. Inversão e deslocamento. Desinvestir os lugares e as pessoas dos discursos verdadeiros e científicos e (re)investir a menina (para além do fracasso e da repetência) como possuidora de um saber. Não do saber da verdade ou do bom senso, mas de um saber local. Testar a força destas falas, que se constituem em ações discursivas (Foucault 1970), é o que se tentou no trabalho. Nesse percurso guiei-me pelo pensamento de Michel Foucault, pois foi esse autor que, a meu ver, melhor analisou a relação entre discurso e verdade; e por Mikhail Bakhtin que concebe a língua como construção coletiva, em que a escrita, sem perder sua característica individual, orienta-se socialmente. Com base nesses autores procurei entender e analisar as falas e as práticas de aprendizagem e linguagem praticadas nessa escola. O saber da criança, em particular da menina, pobre e repetente como saber dominado é desqualificado; é considerado como sendo incompetente, ingênuo, não-elaborado, inferior e oriundo do senso comum, ao mesmo tempo em que se constituem saberes: esta é a função da desqualificação que, pretendendo explicar o fracasso, a menina e a pobreza, cria, na realidade, estereotipias. Nada entra na ordem do discurso se não satisfaz certas exigências ou se não está, de entrada, qualificado para entrada. É como se existisse uma espécie de polícia discursiva. (Foucault 1970, p. 32) Assim dar voz as meninas é um esforço para substituir as estereotipias pelos sujeitos concretos. Não existe uma nova tipologia da menina repetente. Esse trabalho não tem como objetivo construir um novo tipo, mas sim evitar a cristalização de qualquer um. Tal procedimento visa a outra percepção sobre a repetência. Não somente inversão ou nova tipificação, mas produção de novos efeitos. Inversão e deslocamento. Como analisar o discurso? Qual o critério para que se defina o engano, a mentira, a resistência? Como saber a quem pertencem os enunciados, ou seja, que fala está sendo reproduzida? É preciso ter claro que o centro organizador dos enunciados está situado no meio social, portanto, as falas das meninas são a expressão de suas condição de existência e concepção de mundo (Bakhtin 1986). O lugar social em que a criança vive é produtor e reprodutor de saberes e enunciados que favorecem a identificação da criança com o meio e consigo mesma. A fala nunca é algo acabado, é um devir permanente (Bakhtin 1986), um acontecimento que exige instrumentos teóricos que sigam os movimentos reais dessa prática discursiva. Nesse sentido, não existem categorias de análise que sejam entidades fechadas e exclusivas. Com a fala das meninas e as observações na escola realizei uma espécie de cartografia5 polifônica, de forma que os acontecimentos e as vozes escolares se ligassem umas às outras e mantivessem relações. O acontecido na escola trouxe ao mesmo tempo a marca de singularidade: da criança, da professora, da sala de aula, da rotina, do espaço e de generalidade: escolar e social. Essa espécie de cartografia entrecruzada desses dois registros de certa forma garantiu a ligação entre os diversos elementos e ao mesmo tempo a autonomia de cada um deles. A questão do erro escolar foi aparecendo como um aspecto fundamental na concepção de aprendizagem praticada pelas quatro professoras observadas nesta escola. Baseado no erro 5 “Para os geógrafos, a cartografia – diferentemente do mapa, representação de um todo estático, – é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornam-se obsoletos.” (Rolnik 1989, p.15). das crianças e nas reações das professoras, fui compreendendo que por meio dessas observações era possível entender dois aspectos fundamentais a concepção de aprendizagem e a produção do fracasso e do repetente e, portanto, do aprendiz dessa escola. Pelo erro foi possível ir assinalando a cartografia; o material foi tomando forma e se configurou como um “padrão”, em que as situações ganharam, para mim, significado e estrutura. Na profusão de dados recolhidos, a questão do erro ordenou, organizou e desencadeou todo o resto do estudo. Pelo erro, que é uma via de ruína, construí aquilo que as professoras entendem por aprender, já que o erro só pode ser definido no interior de uma prática específica. O erro. O fracasso. O repetente “É verdade que em algum lugar é de noite?”, pergunta uma criança à professora. “Não é que é verdade, história é assim mesmo!” Para compreender quem é o repetente, é preciso que se responda algumas questões: Qual é a concepção de linguagem e aprendizagem existente na escola? Quem é o aprendiz na percepção das professoras, com quem elas falam enquanto ensinam? O que ensina a professora e o que aprende o aluno? Que tipo de aprendiz é esse que repete no seu processo de aprendizagem, portanto, quem é o repetente do ponto de vista da escola e da criança? O erro produz um diagrama no interior da classe, que esquadrinha e disciplina, produz os bons e os ruins, os inteligentes e os ignorantes. É um esquadrinhamento sutil e fecundo, pois se faz em nome da verdade e da ciência, que se opõem ao erro. O erro não se constitui em um episódio esporádico no interior da escola, o erro constrói o aprendiz, a concepção de aprendizagem e a linguagem, como se verá. Contarei um momento da sala de aula para ilustrar a relevância do erro, procurando entender os processos que ele desencadeia na sala. A história mostra que uma criança supostamente errou porque não esperou o final da explicação. Esse é um dos motivos pelos quais a criança erra durante o processo de aprendizagem. “Papai do céu, obrigado pela nossa vida.” Assim se inicia uma aula do ciclo básico, em uma classe onde há crianças “retidas” três vezes, numa determinada etapa. No final do dia, quando todas as crianças já estavam cansadas, como observava a professora, foi distribuída a última folha de papel (outras três já haviam sido entregues): um desenho. A professora anunciou o fato à classe e pediu para as crianças colocarem os lápis de cor em cima das carteiras. Essas mexeram em suas malas à procura dos lápis. Algumas nada encontraram, outras retiraram alguns lápis sem ponta e outras pegaram suas caixas de lápis, que foram utilizadas por muitas crianças. Ouviam-se falas desencontradas, gritos parecendo de alegria e excitação, até o instante de silêncio, um único berro, da professora. A professora distribuiu a folha que continha um palhaço desenhado em formas geométricas para ser colorido. Alexandre, ao receber a folha, pegou rapidamente os seus lápis e começou a pintar. Lá na frente ouviu-se um berro. Era a professora dizendo que ainda não era para começar, pois havia algumas explicações a serem dadas. A professora iniciou uma explicação sobre o que é um círculo, um retângulo, um triângulo. Enquanto isso as crianças aguardavam o momento de começar o trabalho, sem palavras e com falas de mãos e pés, corpos que se mexiam em infinitos sons. Quando a professora terminou a explicação, Alexandre reiniciou seu desenho; nesse momento, um novo grito ecoou na classe: “Você vai errar!” Era a professora que continuava a explicação, dizendo que cada figura geométrica deveria ser pintada de uma cor, o quadrado de verde, o círculo de amarelo, e assim por diante. De fato, Alexandre errou. Apagou o que havia pintado, pegou uma nova cor, a correta, quando uma criança brincando gritou: “Você vai errar!” Alexandre parou, olhou seu desenho, conferiu com o modelo da lousa, olhou para a professora, para a criança do lado e dando uma forte risada reiniciou seu desenho, voltando várias vezes seu olhar para a professora e para a lousa. Mais tarde, Alexandre interrompeu seu trabalho sem terminá-lo e pareceu aguardar o sinal da saída. Podemos pontuar neste instante de aula alguns aspectos importantes em relação à concepção de aprendizagem dessa escola e a produção do aprendiz. O erro é um dos fundamentos dessa concepção. Essa possibilidade, ao ser anunciada, interrompe o fazer das crianças. O erro não só paralisa mas também movimenta e é no movimento que se encontra a sua força. Ele disciplina e desloca. Essa palavra não só reprimiu Alexandre, mas desencadeou um processo. Quando Alexandre recebeu a folha, o que ele desejava era pintá-la; aos poucos foi o próprio desejo que se modificou. No final, Alexandre não só desejava pintar, mas desejava sobretudo acertar a instrução. O acerto envolve obediência. Obedecer o espaço, o tempo da norma e a própria ordem. Esperar o tempo de começar. Espera que traz como aprendizagem o disciplinamento das próprias forças e vontades. Para iniciar o trabalho, é preciso esperar a permissão e as eventuais explicações. No entanto, é preciso mais que a obediência, é necessário o desejo de obediência. Dessa forma constrói-se uma certa subjetividade de aprendiz necessária a essa escola. Fazer das leis, normas, é uma das condições de êxito da escola6 Nessa concepção, para ir bem na escola, acertar, não ser reprovado, é preciso repetir. Seguir o modelo, copiá-lo. Não basta apenas pintar o palhaço; é preciso pintar de forma que todos fiquem iguais. Não se ensina no diverso. Homogeneidade, eis o que busca a escola. Não há lugar para diversidade ou multiplicidade de desejos, busca-se o mesmo. As aulas são sempre iguais: matemática, português, educação física. As folhas de papel que são entregues também são iguais, o que muda são os caracteres; às vezes são números, às vezes palavras e outras vezes são representações de formas por meio de linhas, pontos e manchas, desenho. É preciso sempre seguir o modelo, repetir. 6 “A ordem da lei impõe-se por meio de um poder essencialmente punitivo, coercitivo, que age excluindo, impondo barreiras. Seu mecanismo fundamental é o da repressão. A lei é teoricamente fundada na concepção `jurídico-discursiva' do poder histórico-politicamente criada pelo Estado medieval e clássico. A norma, pelo contrário, tem seu fundamento histórico-político nos Estados modernos dos séculos XVIII e XIX, e sua compreensão teórica explicitada pela noção de `dispositivo'. Os dispositivos são formados pelos conjuntos de práticas discursivas e não discursivas que agem, à margem da lei, contra ou a favor delas, mas de qualquer modo empregando uma tecnologia de sujeição própria.” (Costa 1983, p. 50) “Zero até dez, escrevam três vezes.” (Aula de matemática da professora Delma.) “Foi esse aí que nós fizemos ontem bbbbbbbbbb, hoje nós vamos aumentar bbbbbbbbbb. Façam até o final da linha.” (Aula de português da professora Marilena.) Na aula de educação física a professora fica de costas para as crianças, faz um movimento com os braços e diz: “Agora vocês, dez vezes.” (Aula de educação física da professora Tuca.) “Façam quatro linhas da letra d.” (Aula de português da professora Eunice.) “Hoje é dia do soldado. Vou dar um soldado para vocês pintarem. Podem começar, bem bonito. Pintem a calça de verde.” O modelo a ser seguido não é qualquer um, é apenas um, único, o da professora, que detém o poder de ensinar. “Depois que eu acabar o meu, posso ensinar a eles?”, pede Rita à professora. “Não”, responde a professora. Em outra classe: “Margarete, pára de fazer as coisas para ela, todo mundo tem mão”, diz a professora. Na classe não podem existir interações durante os “ensinamentos”. É o professor quem ensina uma língua como se ela já estivesse pronta, acabada, como se fosse natural. O processo de construção, as interações e interlocuções das crianças na escola e fora dela não são levados em conta nessa concepção de aprendizagem e linguagem. A linguagem trata sobretudo de histórias e relações, mas isso a escola faz desaparecer, por meio de um “discurso pedagógico autoritário”7 Repetição e homogeneidade: é neste espaço que surgirá o repetente. As crianças não podem ensinar a si próprias. Seus movimentos devem ser contidos. As ações permitidas são: sentar, copiar e calar. Aprender para essas professoras é não errar. Tarefa impossível do ponto de vista de quem aprende. Parece quase evidente que o erro faz parte da aprendizagem. No entanto, para a concepção de aprendizagem subjacente à conduta das professoras observadas, errar não é 7 “O discurso pedagógico é um discurso autoritário: sua reversibilidade tende a zero (não se dá a palavra), há um agente único (aquele que tem o poder de dizer), a polissemia é contida (se coloca o sentido único), o dizer recobre o ser (o referente está obscurecido).” (Orlandi 1987, p. 85) somente cometer erros. Errar significa desobedecer, negligenciar, desafiar, ser indisciplinado, já que aprender é seguir o modelo, copiar, repetir, calar-se e sentar-se. Portanto, para que não existam erros, é preciso que um tipo de aprendiz esteja sendo construído por meio das práticas adotadas na sala de aula. O erro, como afirmei anteriormente, constitui-se de dois momentos, um repressor e outro produtor, disciplina e desloca, diz não e sim. E é no sim que se cria, de um lado, o desejo de obediência sem o qual a escola não teria êxito, e de outro, o desejo do erro e do fracasso que está presente em alguns casos de crianças repetentes. As situações escolares em que aparecem os erros são inúmeras, porém nenhuma delas passa sem a advertência ou a repreensão das professoras. Classifiquei em dez as razões pelas quais as crianças erram, e as reações das professoras. As situações que exemplificam cada um dos tipos estão descritas a seguir. Resumem inúmeras situações semelhantes que registrei na escola e foram escolhidas por serem as que mais explicitam cada tipo de erro. 1. As crianças erram porque omitem alguma letra ou som ao falar e/ou escrever. “Já imaginou você com a cara da Néia e a Néia com a sua cara?” (Fala a professora após uma criança trocar uma letra ao escrever.) “Por que você comeu letra, estava com fome?”, pergunta a professora. Uma criança omite uma letra de seu nome ao escrevê-lo: “Se você não sabe escrever o seu nome, imagine o resto!” (Professora.) “Rosana, fale escola”, pede a professora. “Ecola.”, diz Rosana. (Risos das crianças.) 2. A criança não espera o final da instrução, esquece de preencher algo, faz a mais, não faz idêntico ao modelo e erra. A reação da professora varia entre um grito de “eu não mandei fazer”, até a ironia contida na pergunta: “Por acaso você nasceu de chocadeira?” (A criança esqueceu de escrever seu nome.) “Está certo, professora?”, pergunta uma criança. “Não mandei fazer o a”, responde a professora. 3. A criança se distrai e erra. “Vocês não prestam atenção, vocês estão mais preocupados com o que acontece no barraco ao lado, é coisa de casa.” (Diz a professora em tom alto e irado.) Nestes momentos, aparece também a imagem, a estereotipia e a raiva que as professoras têm das crianças dessa classe social. 4. As crianças repetem exatamente o processo pelo qual são ensinadas, e erram. Uma criança lê: le-i-te (quando, por exemplo, as professoras ditam uma palavra, falam silabando: bo-i; muitas vezes a palavra fica irreconhecível). “Não é le-i-te, é lei-te, olha o encontro vocálico!”, diz a professora. “Há tanto tempo que eu te ensino que Amélia é junto!” (Professora.) 5. As crianças erram porque inventam, experimentam, criam. “Eu não ensinei esta letrinha, a senhora faça aquilo que eu ensinei e não aquilo que vem desorganizadamente em sua cabeça.” (Professora.) “Ninguém vai escrever o que nunca viu. Eu não vou pensar algo que não existe e que nunca escrevi, vou pensar algo que conheço e que escrevi.” (Professora.) A professora Tuca comentando sobre um erro cometido por uma menina, disse que perguntou para a classe qual é o animal que sobe no telhado e faz miau. Uma criança respondeu que era a vaca. Um menino comentou que ela deve ter visto isso na televisão, em algum desenho. A professora passou a criticar os desenhos da TV. 6. Erram porque buscam sentido, atribuem outro sentido ou por “atos-falhos”, associações livres, bloqueios (Bettelheim 1984). Uma professora dá um jogo de sílabas, coloca duas sílabas juntas e pede para as crianças lerem: BA BO As crianças repetem incessantemente boba, e após um grito da professora lêem babo (o que deve ser difícil para as crianças que principiam o processo de alfabetização, pois estão na luta pelo crescimento). Uma aluna pergunta: “O que a senhora ditou, tia?” “A faca é afiada”, responde outra criança. “Não! A frase correta é: a faca é da babá”, diz a professora. Pareceu à criança que tinha mais sentido falar de uma faca afiada do que de uma faca da babá. No entanto, errou. A professora coloca as sílabas BA BE e deixa por algum tempo, pedindo para as crianças lerem. Elas não o fazem. A professora trabalha com leitura de sílabas e não com sentidos. 7. Erram porque estão aprendendo, mas as professoras desconhecem os processos pelos quais as crianças aprendem a ler e a escrever. A professora entre chateada e indignada, mostra-me o caderno de uma menina, dizendo que não tem mais nada a fazer. Estava escrito: “afadaéboa”. A professora risca. 8. Erram porque o certo é arbitrário, depende das vontades de quem ensina. A professora manda uma menina para a lousa escrever macaco, insiste e manda por duas vezes a menina apagar o seu escrito dizendo que o m está maior que o acaco e esta palavra é minúscula. “Vou ensinar o masculino e o feminino. O que é feminino?”, pergunta a professora. “É mulher”, diz uma criança. “Não, é tudo o que eu puser o a”, afirma a professora. Em outra classe, diz a professora: “Nós vamos grafar, numerar e isto é uma dificuldade, não quero canetinha, não inventem, não inventem.” Passa a ensinar as crianças a grafar o 1. Sobe, desce e tracinho. Passa de carteira em carteira para ver se as crianças estão grafando o 1 corretamente, e diz em voz alta: “Eles podem estar escrevendo errado e depois não tem quem corrige. Depois alguém me pergunta se as crianças não sabem escrever o 1, não, não sabem.” 9. Erram porque resistem, porque querem, por puro acaso. A professora mostra-me o caderno de uma criança, onde poderia estar escrito baú ou bau. A professora diz que isso se chama rebeldia, pois há vezes que ela faz e vezes que não, por isso é que ela não diz mais nada, não ensina mais. Diz que a criança é repetente (como querendo dizer que já foi castigada, punida) e que há crianças nesta classe há cinco anos. 10. Erram porque não entendem. E esse erro é o mais grave em termos das reações das professoras. É como se neste momento se explicitasse o que está subjacente e implícito nas relações entre as professoras, os alunos e a concepção de aprendizagem. Não entender é uma ameaça para essa concepção. Não entender significa não poder repetir, copiar. Por isso atribuem ao não entendimento um problema físico ou psíquico. Nesse tipo de erro as crianças em geral também se manifestam, parecem não agüentar o erro, a dúvida, o desentendimento do colega. A professora pede para uma criança ler. A criança lê “nauma”. Em seguida a professora diz que ela vai voltar para a classe da “minhoquinha” ( é como chama o período inicial da alfabetização), para o a,e,i,o,u. Diz a professora: “Toda a criança tropeça e continua, mas você vem com coisa que não existe.” Uma criança pergunta o que é para fazer, pois não havia entendido. A professora diz que nem seguir o modelo ela sabe, e explica-lhe o que fazer chamando-a de “pobre-diabo”. Uma criança erra ao escrever março. Outras crianças comentam: “Ela não sabe fazer março. É a coisa mais fácil.” “Você enxerga bem?”, pergunta a professora. “Olha março, veja como você escreveu!” Uma criança não sabia fazer o m maiúsculo: “Ô menina põe a cabeça para funcionar, parece que está enferrujada.” “Ela é burra, ela é burra”, diz um menino. A professora grita com uma menina: “Levante e leia o seu papel.” (A criança começa a chorar.) “Leia sem chorar”, grita a professora. (A criança põe o rosto entre os braços, chora e não consegue ler.) Uma outra menina comenta baixinho: “Não sei porque chorar, só por causa de uma merdinha desta.” (Referindo-se à professora.) Que tipo de professor e de aprendiz estão sendo construídos nesta concepção pedagógica em que errar é impedido durante o processo de aprendizagem? As crianças arrancam as folhas dos cadernos quando erram e escondem, acusam-se, às vezes xingam-se, riem uma das outras nas suas dificuldades, apagam muito o que fazem durante as tarefas, falam quase que todo o tempo “não entendi, não sei e não consigo”, por fim aprendem a obedecer, a calar, a esperar, a repetir e a copiar. Muitas ficam dependentes das professoras ou de uma criança “mais esperta” para realizar os trabalhos, pois foram menorizadas e infantilizadas no processo de aprendizagem. “Vocês têm sempre a mania de dizer que não sabem”, diz a professora. “Vanessa, está certo, não precisa apagar toda hora.” (Professora) As professoras envergonham-se quando, por acaso, cometem algum erro, jamais dizem que não sabem, não permitem que os cadernos das crianças fiquem errados, estão sempre vigilantes, parecendo em guerra contra os eventuais erros, sentem-se muito fracassadas diante do que consideram tantos erros. A professora disse-me que não deixa os alunos errarem no ditado, vai corrigindo enquanto eles fazem, para que os cadernos fiquem corretos. “Hoje é um novo dia, um novo mês e uma nova vida, quem não está bem é a oportunidade para colocar as coisas em ordem.”, diz a professora. Por esses dados já se poderia adiantar que o fracasso escolar não é “privilégio” apenas dos mais pobres, das crianças com déficit de inteligência ou nutrição. Errar, que para a escola é uma demonstração da incapacidade da criança e serve para desqualificá-la como aprendiz, para a criança pode vir a ser uma tática; o desejo de outra coisa, um confronto, uma distração, uma afirmação, a marca de uma singularidade... 2 MICROFÍSICA DA REPRESSÃO No sentido de compor o ambiente escolar, transcrevo e analiso momentos da escola, em forma de “flashes” em relação ao tempo, à disciplina e à punição. Esses recursos utilizados pela escola estão presentes em vários de seus momentos, que aqui estão destacados pelo seu caráter repressivo, punitivo e de adestramento. É uma visão “dura” da escola naquilo que ela tem de repressivo em seu poder de dizer não. Essa escola coloca em funcionamento ao mesmo tempo práticas sutis, moleculares e violentas de disciplinarização do corpo, da palavra e do desejo. O castigo corporal, que parecia abolido da escola, na realidade encontra-se presente: pune-se o corpo quando não mais se alcança a alma. Sala de aula: Punição e tempo Uma sala de aula é permeada de acontecimentos silenciosos e não, invisíveis e não. Na sala de aula realizam-se cotidianamente violências e suavidades. A suavidade (como por exemplo, o cuidado das professoras com a higiene das crianças) é exercido de maneira tão violenta, que parece que a violência é a própria suavidade ampliada. O cotidiano escolar é regido por tempos estritos para os acontecimentos. O tempo socialmente necessário (que é uma média arbitrária definida pela professora) para determinada lição, o tempo para falar, para o recreio, para ir ao banheiro, para a merenda. O cotidiano escolar é pontuado por um sinal. Pontua o tempo que é sempre acompanhado por uma certa ansiedade e angústia demonstradas pelas crianças por algum movimento: risos, gritos e palmas. As crianças não dominam o tempo, obedecem-lhe, até que seus corpos acabam por funcionar de acordo com este tempo determinado por outros: a vontade de comer, de ir ao banheiro. Todas as crianças recebem um copo de flúor e apesar do desejo de tomá-lo todas aguardam a permissão: “Agora, tomem.” (Autoriza a professora.) “As crianças estão falando como se hoje fosse o dia das crianças.” (Comenta a professora, enquanto as crianças realizam uma atividade proposta por ela.) As crianças não são “donas” das palavras. Na escola que pesquisei, as crianças têm o direito à fala livre no momento excedente ao período escolar, na hora do recreio, por exemplo. Em sala de aula a palavra é do professor, ao aluno cabe decorar e repetir a palavra dita. Há momentos marcados para a expressão da criança na sala de aula. A palavra não pode ser desperdiçada. É somente nos momentos de “excedência” da escola, a hora do recreio, o banheiro (esse espaço cumpre algumas funções, entre elas a de ser um espaço de trégua para as crianças), que as crianças adquirem o direito à palavra. Nos momentos mais livres do controle institucional é que as crianças falam e as palavras lhes pertencem. Uma fala livre num momento institucional é sempre punida de alguma maneira. Nessa escola o recreio era de 30 minutos e seu tempo foi diminuído para 15 minutos pelo diretor, que alegava ter muito trabalho nesta hora. As crianças que se excediam de acordo com as regras da escola, eram punidas através de uma conversa com o diretor. Na classe em que eu assistia aula, isto foi assim comunicado aos alunos: “Tenho uma notícia de jornal para vocês, o recreio vai diminuir em 15 minutos. Vocês terão menos recreio. Não vai começar ainda, só quando o seu Antonio (diretor) pedir para o técnico.” (Anuncia a professora.) “Ah droga, então eu vou sair”, diz Ronaldo (aluno). Outra criança brinca de locutora: “Atenção, atenção, diminuiu o recreio, brincar menos, estudar mais.” Na sala dos professores, ouve-se os seguintes comentários: “As crianças estavam se matando nesta hora e dando muito trabalho ao seu Antonio.” Comenta outra professora: “Não vai dar tempo nem de sentar.” A escola não discute o porquê dessa “matança” entre os alunos neste momento, apenas decide diminuir o tempo de recreio. As crianças nesse horário não tinham, por exemplo, o direito de usar a bola, apesar da quadra existente na escola. As meninas dispõem de um repertório maior de jogos sem bola, mais silenciosos, menos diruptivos do que os meninos, como passar anel e amarelinha, conforme pude observar várias vezes. Disciplina Um caderno sujo, uma letra mal desenhada, uma fala fora de hora, um ruído qualquer que se desprende sem controle, uma desobediência, uma negligência, uma preguiça momentânea, quando assim julgadas pela professora, recebem algum tipo de punição. Em geral são berros ou falas grossas num tom de voz alto para que todas as crianças escutem. As punições são públicas. Não vi nenhuma criança ter a sua atenção chamada silenciosamente. A eficácia da punição parece estar no fato de ser pública. O objetivo é que todos escutem, o que não quer dizer que isso aconteça. Parece que é dessa forma que se organiza o múltiplo. Impõe-se uma ordem. É um tipo de punição que vai de um, de uma singularidade, e joga para o todo, para o múltiplo. ...“Enquanto a taxinomia natural se situa sobre o eixo que vai do caráter à categoria, a tática disciplinar se situa sobre o eixo que liga o singular ao múltiplo. Ela permite ao mesmo tempo a caracterização do indivíduo como indivíduo, e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada. Ela é a condição primeira para o controle e o uso de um conjunto de elementos distintos: a base para uma microfísica de um poder que poderíamos chamar de `celular'.” (Foucault 1983, p. 136) A professora conversa em voz alta com uma aluna: “Margarete, por que você não fez a lição? ... Com quem você mora? Com o meu pai. Onde você come? Com a minha madrinha. Quem eu vou chamar para dar bronca em você? Não sei.” A vida das crianças é tornada pública pelas professoras. As crianças e principalmente as professoras conversam entre si sobre a vida uns dos outros, tudo é trocado. A professora pede para Rita ir ao banheiro lavar a boca. Rita volta e esconde o rosto na carteira. A professora manda-a de volta ao banheiro. As crianças dizem-lhe: “Não adianta, a Rita tem boqueira.” Recebi de uma professora a seguinte confidência em relação a uma menina de sua classe, em um pedaço de papel: Há professoras que não utilizam apenas o grito como estratégia disciplinar, elas também batem nas crianças. Uma criança parece dançar e cantar na sala de aula. Eunice fala que elas (as professoras comumente utilizam-se do plural para se referir a uma única criança, elas nunca são únicas, singulares, são sempre muitas, os pobres, os menores, os carentes) não têm o hábito de ouvir, que na casa deles, elas não escutam. Eunice segura o menino cantante e lhe dá um tapa no traseiro. Na aula de educação física, Anderson pula, canta e grita. Tuca vai até ele, chama a sua atenção e, segurando-o pela orelha muda-o de lugar. Marilena bate na mão de um menino e grita: “Se levantar de novo sem a minha permissão, você vai ver!” “Você vai fazer tudo de novo. Olha para a frente Eliete.” (Empurra-a com a mão.) Eunice puxa o cabelo de Fabiano que pintava seu caderno: “Não pinte o caderno que eu encapei!” Os professores empurram, seguram ou agarram as crianças com força quando desejam que alguma ordem seja obedecida imediatamente. No depoimento de uma menina repetente, apareceu a questão do apanhar em relação a uma outra escola de São Paulo em que ela estudava antes desta. Esses fatos indicam, diferentemente do que se pensa, que bater nas crianças continua existindo como prática disciplinar utilizada pelas professoras. Falas repreensivas, olhares ameaçadores, reprovação em alguns casos, muitas vezes se torna uma tecnologia mais suave de disciplinamento. Bater é uma explosão em um cotidiano tenso, belicoso e gerador de fracassos e fracassados. Nelson retorna à sala depois da aula de educação física, chamando a atenção de todos. É colocado de castigo atrás da porta da sala, bem no canto. Ele reclama , a professora acaba tirando-o dali dizendo: “Eu sei que você está cansado, se me encher de novo vai ficar o dia todo aí de pé.” Existe também o castigo “moral.” Uma criança é obrigada a refazer cinco vezes um ditado na sala do diretor, pois mentiu quando a professora perguntou-lhe se aquele ditado sem nome não era o dele. Ele afirmou com veemência que não. Mais tarde a professora verificou que ele havia mentido e lhe impôs o castigo, falando sobre as virtudes da verdade. Desejo de punição As crianças também pedem punição, às vezes para si próprias, às vezes para um colega: “Tem gente conversando, professora.” Uma criança acusa a outra de estar brincando com lápis de cor. Uma criança acusa a outra de estar falando, rindo, brincando “fora de hora” ou sem “permissão.” A criança diz: “A professora disse que vai mudar todos de lugar, silêncio” A professora ausenta-se. Depois de algum tempo retorna à sala e pergunta: “Quem estava falando, assobiando, gritando?” “O Luciano”, respondem as crianças. A professora começa a gritar com ele em tom generalizador, dizendo que é sempre ele etc. Rita (aluna) pede à professora substituta: “Me põe de castigo atrás da porta como a Tuca sempre faz!” Um canto, um assobio, um riso, uma brincadeira, um gesto não-programado, alguma fala espontânea pode significar um ponto produtor de rupturas, de fuga8; as próprias crianças tratam de combater. É como se uma força pudesse provocar mais desejos, parece ser o próprio desejo de outras coisas que as crianças não suportam, o desejo que fala sem controle, sem história, sem sentido: todos combatem parecendo não suportar, pedem ao professor a lei. Castiguem-me. O desejo acaba desejando a repressão. Parece que um gesto é capaz de arrebentar tudo. “Se as crianças conseguissem que seus protestos, ou simplesmente suas sugestões fossem ouvidas em uma escola maternal, isto seria o bastante para fazer explodir o conjunto do sistema de ensino. Na verdade, esse sistema nada pode suportar: daí sua fragilidade radical em cada ponto, ao mesmo tempo que sua força global de repressão.” (Foucault 1984, p. 72) Resistência A professora dá como exercício para a classe escrever quatro linhas da letra d. Nelson ao invés de fazer quatro linhas conforme, o pedido, faz sete linhas dessa letra. A professora diz: 8 “Um campo social não cessa de ser animado por toda espécie de movimentos de decodificação e de desterritorialização que afetam `massas', segundo velocidades e intensidades diferentes. Não são contradições, são fugas.” (Deleuze e Guattari 1980, p. 268) Em outro momento afirma Deleuze: “Diz-se erroneamente (sobretudo no marxismo) que uma sociedade se define por suas contradições. Mas isto é verdade em grande escala. Do ponto de vista da micropolítica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que são moleculares. Sempre vaza ou foge alguma coisa que escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação: o que se atribui a uma `evolução dos costumes', – os jovens, as mulheres, os loucos, etc.”. (Deleuze e Guattari 1980, p. 263) “Por isto que você fica com a mão tão cansada.” Nesse erro cometido por Nelson (esta criança freqüenta o Centro de Juventude), eu tinha como hipótese a explicação de que ele não conseguia contar e fazer o exercício ao mesmo tempo. Ele me mostrou depois, realizando essa tarefa ao meu lado, que não era isso o que ocorria. Era capaz de realizar as duas tarefas ao mesmo tempo; contar e escrever. O que ocorria é que ele não pensava enquanto fazia. Uma mão prisioneira e uma cabeça livre, distraída. Esse tipo de proposta de atividade permite tal procedimento, quem realiza a tarefa é apenas uma “mão.” As crianças executam as tarefas propostas, mas se defendem: não pensam. Não que não possam fazê-lo, é que não precisam, não querem. Nelson já repetiu duas vezes a primeira série e repetiu novamente no ano em que eu realizava a pesquisa. Roseli, com 13 anos, na primeira série, mostrou-me seu caderno com a capa da Escola Porto Seguro, onde, segundo ela, escreve coisas. Disse que esse caderno era da filha da patroa de sua mãe e esta lhe deu. Olhando os meus escritos, me disse: “Olhe aqui, minha letra é igual à sua, eu brinco aqui de escolinha e já sei escrever.” Com uma escrita inventada por ela, brinca de escrever rapidamente, corretamente e com sentido. Em seu caderno ela escreve bem e passa de ano. É uma maneira que encontrou para viver nesta escola, possui uma paralela. 3 O APRISIONAMENTO: A NEGATIVIDADE DA REPETÊNCIA FEMININA Há diferenças entre ser menino e ser menina em uma escola. Há diferenças entre a infância feminina e a infância masculina. Considerei a menina repetente como o grau “zero” na instituição escolar. O lugar do “nada”: a menina aparentemente fala pouco, rebela-se pouco e ao repetir de ano, ao fracassar em sua escolaridade aproxima-se do trabalho doméstico, do qual algumas mulheres procuram se libertar. A escola produz uma realidade social (que é produção de desejo) que é ao mesmo tempo material, social e semiótica9 A menina repetente vive, há um tempo, um movimento que não começou na escola, mas é atualizado por ela e que lhe atribui uma função doméstica. Isso significa dizer que há uma atualização, realizada pela escola, de um certo tipo de prática e discurso de uma determinada sociedade; são estratégias de cristalizações existenciais e de novas configurações no campo social. No imaginário social, no inconsciente institucional, a repetência no menino é de certa forma aceita como “coisa de moleque”, “coisa da idade”, rebeldia; na menina é burrice, “incompetência”, “não dá para a coisa”, ou seja, não existe para ela lugar no mundo do saber, restando-lhe o lugar do não-saber: o trabalho doméstico. Obtive o seguinte depoimento de uma das professoras quando lhe perguntava a respeito das diferenças que ela observava em relação à repetência feminina e a masculina: “No meu conceito, o homem precisa mais de estudo do que as mulheres, as meninas serão donas de casa, é chocante, mas é isto, elas são reprodutoras, se tiverem sorte vão casar e voltar para o barraco ou para a cidade de onde vieram.” 9 “Na verdade, a produção social é unicamente a produção desejante em condições determinadas. Dizemos que o campo social é imediatamente percorrido pelo desejo, que ele é seu produto historicamente determinado, e que a libido não precisa de nenhuma mediação ou sublimação, nenhuma operação psíquica, nenhuma transformação, para investir as forças produtivas e as relações de produção. Não há senão o desejo e o social, e nada mais. Mesmo as forças mais repressivas e mais mortíferas da reprodução social são produzidas pelo desejo, na organização que deriva dele sob esta ou aquela condição que deveremos analisar.” (Deleuze e Guattari 1976, p. 46) A infância feminina da criança dessa classe social está hoje vinculada a um determinado trabalho doméstico. A menina vem substituindo cada vez mais o lugar da mulher, mãe trabalhadora, nos afazeres domésticos. Com o menino, às vezes ocorre o mesmo; no entanto, o menino acaba ingressando no mercado de trabalho, ou no subemprego como engraxate, vendedor de limão, carregador de feiras ou supermercados, manobristas; ou mais tarde talvez em alguma função desqualificada no mercado formal, caso fracasse na escola. Para a menina fracassada, resta o trabalho doméstico em sua ou em outra casa. Cenas de meninas Ser menina é diferente de ser menino e esse não é um fato novo. Nas sociedades mais antigas, encontramos algumas práticas em relação às meninas: enterrar viva a menina logo após o nascimento, obrigatoriedade de cinto de castidade etc. Ainda, como procedimento comum em certos países árabes, realiza-se a circuncisão nas meninas entre sete e oito anos. Esses fatos permanecem circunscritos a um mundo selvagem: primitivo ou fanático. A preferência pela amamentação de meninos10, a felicidade quando nasce um menino que é demonstração da virilidade do pai, e de outros inúmeros atributos, em geral, positivos para o menino e negativos para a menina, que permanecem como uma espécie de segredo, nas sociedades ocidentais, num discurso trancafiado nas famílias conjugais. Esta espécie de ideário coletivo, com um caráter muitas vezes folclórico, materializa-se nos diversos equipamentos coletivos que centralizam a distribuição de valores e de sentidos. Que tipo de menina produz a escola pesquisada? Ariès afirma que a escolarização do século XVII não era monopólio de uma classe, era sem dúvida o monopólio de um sexo. As mulheres eram excluídas. Por conseguinte, entre elas os hábitos de precocidade e de infância curta mantiveram-se inalterados da Idade Média até o século XVII (Ariès 1978, p. 189.) Poderemos verificar como até hoje a infância das meninas é menos separada dos adultos do que a dos meninos. 10 “Brunet e Lezine informam que numa amostra de criança de ambos os sexos, que haviam estudado, 34% das mães recusavam nutrir ao peito as filhas pois consideravam essa prática como um trabalho forçado ou porque impedidas por motivos de trabalho que elas colocavam em primeiro plano. Já as mães de filhos varões, exceto uma, preferiam amamentá-los ao peito.” (Belotti 1987, p. 28) Na escola que pesquisei não há somente uma separação entre os meninos e as meninas, mas também uma separação entre as meninas: boas e más, aprovadas e reprovadas. Quando a menina recebe alguma punição por negligência ou indisciplina, a questão ser menina vem embutida na punição, uma espécie de sobrepunição, como aluna e como menina, mulher. “Um caderno não pode estar cheio de orelhas, você é uma menina. Caderno feio eu jogo no lixo”, dizia uma professora. “Nunca vi uma menina sentar deste jeito.” (Ouvia-se tal comentário em outra classe) “Rosana, por que você não prende o cabelo com a chuquinha da Xuxa, fica bonitinho.” “Uma moça que se preza não faz isso, você é uma menina tão bonita, por que faz isto?” Marcília leva uma bronca por causa das suas unhas grandes, a professora diz que ela não tem idade para ter unhas deste tamanho, a professora mostra as suas. A escola exige uma maneira de ser menina para que se cumpra um certo “padrão” social. Os cabelos penteados, o jeito correto de sentar, de escrever, a limpeza no caderno são exigências escolares não só para se constituir num aluno, mas para a disciplinarização do corpo e do sexo. As professoras sentem-se à vontade para interferir no penteado, no corpo, na fala das meninas. “Nem parece menina” é o veredicto proferido pela professora que se arroga não só como aquela que sabe, mas também como aquela que define o que é e não é ser mulher. Quando a menina não cumpre com os quesitos escolares, tem a sua condição sexual questionada. As professoras atuam no limite estreito da esteriotipia do que é ser menina ou menino. Fazem crer que determinados afazeres e modos de ser são inatos à menina, quase como se fossem hereditários. Em geral, quando as professoras não alcançam a alma é o corpo que punem; no entanto, na menina, a alma é também o corpo. Na aula de educação física, Anderson grita e faz bagunça. Tuca muda de lugar dizendo que ele quer aparecer o tempo todo e que como castigo ele irá ficar na fileira das meninas. Ficar perto das meninas é um castigo que a professora impõe ao menino. É como se a condição de mulher fosse inferior. A menina desde aí vai aprendendo não só uma diferença em relação aos meninos, mas uma desigualdade, para menos, em relação a eles. As meninas respondem a esta expectativa e algumas se aliam à professora nesta tarefa de disciplinarização do corpo, que é no limite uma tarefa de higienização (não deixar nenhum vestígio de diferenciação não só entre os meninos e as meninas, mas também, das meninas entre si). Uma menina pergunta à professora: “Você não falou para cortar unha em casa e vir limpa para a escola? Falei. Pois ele está com a unha parecendo um urubu!” As meninas cuidam do asseamento dos meninos, o inverso nunca ocorre. Fazem isso também em suas casas ao cuidar de seus irmãos menores. A menina repetente Na sala de aula são construídos vários esquadrinhamentos que separam, dividem, compartimentalizam, particularizam, mas com o objetivo de selecionar e homogeneizar. No interior destes esquadrinhamentos existe um em relação às meninas. Algumas das que se sobressaem em termos de obediência às normas escolares: notas altas, silêncio, disciplina, são convidadas pelas professoras a ajudarem-nas no outro período de aula. São uma espécie de aprendizes de professora, cuja responsabilidade é vigiar as crianças e manter a ordem. Na classe que observei, a menina ajudante avisa a professora que uma criança falou palavrão. Em outro momento uma criança requisita a ajuda dessa aluna e obtém a resposta para ela se virar sozinha, em outro, ordena a uma menina fechar a porta da sala. Perguntei à professora se os meninos também participam dessa atividade, ela afirmou que eles não gostam e não fazem questão disso. Esse tipo de professor que as crianças têm como modelo na escola parece servir apenas às meninas. Na escola maternal11, por conseguinte, meninas e meninos encontram a solene ratificação da situação social e da divisão de papéis masculino e feminino, porque ali onde se cuida delas os homens se acham totalmente ausentes. E como o das mães, assim também o trabalho das professoras não é visto como um trabalho ou profissão no pleno sentido da palavra, mas como um serviço mais ou menos autoritário, mais ou menos benévolo, e absolutamente gratuito. O fato de identificar a professora com a mãe prejudica as meninas, também porque as leva a identificar-se igualmente com a professora. (Belotti 1987, p. 121) Nesse esquadrinhamento escolar a menina repetente também tem uma função. 11 Elena G. Belotti refere-se à escola maternal italiana que vai de zero a seis anos. A professora diz para Roseli, 13 anos, aluna da 1ª série: “Roseli, pegue um pano lá fora e limpe as mesas dos baixinhos.” (Grupo de meninos no princípio da alfabetização) Roseli sai da sala de aula, parecendo já saber onde se encontram os panos de limpeza da escola, volta com um pano na mão e com desenvoltura, leveza e força limpa as mesas dos meninos. Termina essa tarefa, leva o pano embora. Não se ouve nenhum comentário, nem das crianças, nem da professora, nem um agradecimento. Como se essa situação fosse óbvia, lógica e sobretudo natural, como se esse afazer pertencesse, de fato, à tal menina. Em outro momento, a professora entra na sala de aula que está suja. Reclama da sujeira dizendo que as culpadas são as crianças do ginásio, reclama da ausência da servente, das funções que um professor deve ter apesar dos seus estudos e pede à Rita (nove anos, 1ª série) ir lá fora buscar duas vassouras. Rita sai e volta com duas vassouras, entrega uma à professora e começa a limpar a sala de aula com a outra. Terminado esse serviço, a professora entrega novamente as duas vassouras para Rita. Sem nenhuma palavra, Rita sai com as duas vassouras, volta minutos depois, senta em sua cadeira, pega o material de sua mala e passa a desempenhar uma segunda função na escola: a de aluna. Durante o ano em que estive na escola, não vi nenhum menino, nem menina considerada boa aluna, limpando a sala de aula. A função da “faxina” desde a escola já está atribuída a determinadas meninas, em geral, às repetentes. A menina repetente é sobretudo aquela que fracassa não apenas em sua escolaridade, mas também na sua condição de mulher. A menina repetente é aquela que de certa forma permanece no lugar zero. Um lugar atribuído apenas às mulheres, o trabalho doméstico. Portanto, na menina há uma superposição de fracassos: “ser menina” e “ser repetente.” Nesse sentido é que a menina passa a ocupar uma posição de fracasso na escola, por isso o ponto zero institucional. A repetência passa a ser “um castigo” também em sua condição de mulher: a menina fica aprisionada no trabalho doméstico. 4 A REPETÊNCIA FEMININA: A POSITIVIDADE Para a infância sobrou pouco: essa escola e um tipo de família. Inexiste outra alternativa e espaço para as crianças. Algumas quando conseguem, podem ou querem, acabam fugindo de algum jeito, dessa escola e da família. Na escola constroem-se Penélopes, mulheres temerosas de fuga e de aventuras, fadadas à permanência e que passam seus dias tecendo. Tecem a mesma coisa no mesmo tecido. Assim são as professoras, assim querem que sejam as meninas. As meninas repetentes são quase uma réplica das Penélopes, ou exatamente Penélopes, na vassoura e no tecer. Mas ao repetir tentam também não se deixar tecer no mesmo tecido. Existe uma expectativa vazia em relação à menina, é justamente neste espaço que ela se constrói. Nada se espera dela e pelo silêncio, raiva, encontros, solidariedade, ela se movimenta. A repetência, o silêncio na menina é um sintoma, não só de recusa, de falta, mas também de desejos, é preciso potencializar essa fala e significar esse silêncio. Na sala de aula realizam-se vários enfrentamentos das crianças em relação à instituição e às professoras. Enfrentamentos diferentes quando realizados pelas meninas ou pelos meninos. Existem escapes sutis e outros já conhecidos pelas professoras para se sair de um certo sufoco e aprisionamento de uma sala de aula. Ir ao banheiro, apontar o lápis no lixo da sala, beber água durante a aula de educação física são algumas das estratégias já conhecidas de que as crianças se utilizam para transitar, se desviar ou para travar um embate. O silêncio, o riso, a ironia, alguns agenciamentos solidários (por exemplo entre as meninas e as merendeiras, ou mesmo as crianças entre si), a ternura são formas mais invisíveis de sobrevivência na escola. Pude observar também enfrentamentos violentos entre a professora e uma criança repetente. Essa menina chegou a bater na mão da professora. A maneira com que a professora interfere no corpo e na subjetividade da menina cria um certo tipo de intimidade (que é também controle e domínio) entre elas, que gera, ao mesmo tempo, um aprisionamento e um reconhecimento por parte das meninas dos caminhos e dos limites institucionais. Parecem saber até onde podem ir e se ultrapassam esse limite é porque de certa forma nada mais importa ou porque já não puderam mais se conter. O silêncio A professora busca o silêncio, este é um pedido ininterrupto: silenciar. O desejo de domínio. É como se para aprender fosse necessário neutralizar tudo silenciando. A fala das crianças (que é escutada como barulho) parece capaz de interceptar o conteúdo e a aprendizagem. É como se um corpo imóvel, silenciado, pudesse ser mais facilmente preenchido por um conteúdo, do que um corpo em movimento. No entanto, este corpo silenciado deve responder ao primeiro sinal da professora. As crianças também se utilizam do silêncio, às vezes como desarme da palavra, outras vezes como um esconderijo, parecendo compreender que o exercício da palavra está ligado à questão do poder. Na realidade, uma sala de aula é permeada de silêncios; no entanto, a professora apenas conversa com o “barulho” no esforço de silenciá-lo. Em um dia de observação na escola, percebi, quase no final do período, que uma menina negra que estava sentada na minha frente havia permanecido em silêncio por quase toda a manhã. E que aproximadamente cinco crianças falavam durante as aulas, o resto permanecia calado. É difícil significar o silêncio das crianças que quase nunca falam, é o silêncio do desconhecido, do neutro, parece ser também um silêncio de pensamento e da razão (Barthes 1987). O Absoluto Silêncio Dá o sinal do recreio. As crianças berram. A professora grita e diz que ninguém irá sair e manda as crianças abaixarem as cabeças. Silêncio total. A professora começa a recortar uma folha, ouve-se o ruído do corte no ar e no papel, passa a olhar criança por criança em suas carteiras; ar vitorioso e o absoluto silêncio permanece. A professora levanta-se vagarosamente e passa a mandar fileira por fileira embora da sala. Nesse tipo de situação o silêncio é imposto como um castigo. Um exercício brutal de força utilizado pela professora que busca silenciar um intenso desejo das crianças: sair. Nesses casos as crianças nem procuram alternativas para driblar esse incômodo, já que sabem que essa tensão deve acabar. Em outros momentos as crianças buscam saídas. O Desarme do Silêncio Anderson ia acusar uma menina e foi interrompido na primeira palavra pela professora. A professora diz: “Escrevam palavrinha com a letrinha cu.” (nenhuma criança sorri.) Uma menina olha para a outra, Eunice (professora) intercepta o olhar das meninas, imediatamente elas olham para frente. Renata (aluna) diz: “Que calor!” Completo silêncio, a professora passeia entre eles, dizendo que não podem demorar. Algumas crianças tentam conversar, mas parece que Eunice é onipresente... Uma menina pede para ir ao banheiro, retorna, outro pede para ir; o barulho recomeça. O olhar da professora é uma forma de inibir as crianças e um pedido tácito de silêncio. No decorrer do ano as crianças acabam se sentindo vigiadas mesmo quando não o estão sendo de fato. Como o Panóptico (Foucault 1983, p. 173). Afora silenciar, ir ao banheiro foi a forma que as crianças encontraram para sair desse clima e fugir do silêncio. O Silêncio como desarme da palavra. “Quem te ensinou coordenação? (Pergunta a professora.) ... Você não tem coordenação? ... Por que você não responde? ....” Em uma outra classe: “O que está acontecendo contigo que você está piorando, hein Pierre? Pergunta a professora. ... Olhe para mim. ... O que está acontecendo? ... O que está acontecendo? (Fala alto quase gritando.) Nada.” Responde Pierre. Em todas as classes, em vários momentos da aula escuta-se a pergunta: “Vocês entenderam? ....” O silêncio é uma resposta comum utilizada pelas crianças em resposta às professoras. Silêncio que as irrita, porque exigem algum som quando perguntam. No entanto, utilizamse do tom da pergunta e formulam acusações. As crianças utilizam-se do silêncio para responder as questões referentes ao entendimento de alguma explicação. Silenciam o que pode significar pleno ou nenhum entendimento; ou a pura neutralidade, o quase nada. O Silêncio como esconderijo Há momentos em que o silêncio é um instrumento utilizado pelas crianças para realizar outras coisas. Silenciando estão protegidas para efetuarem alguns desejos. Enquanto a professora explica uma lição, Luciano em absoluto silêncio brinca com seu apontador como se fosse uma luneta. Margarete, em silêncio, come seu lanche escondido debaixo da carteira. Uma criança, em silêncio, vai realizando uma outra lição escondida debaixo da carteira. O Silêncio como repouso Em alguns momentos da sala de aula surge o silêncio. Um silêncio repousante advindo de algum conteúdo que de alguma forma respondeu momentaneamente aos desejos ou necessidades das crianças, uma espécie de silêncio produtor. “Agora faremos um desenho”, diz a professora. As crianças comemoram e depois silenciam. Uma criança mexe com outra que lhe pede: “Não me enche, não me atrapalhe.” (Silêncio.) O silêncio permanece durante quase 30 minutos. Nelson (criança multirrepetente, que quase nunca silencia) é elogiado pela professora. Após o elogio permanece quieto por dez minutos! A produção do heterogêneo na escola Uma escola democrática não é apenas aquela que recebe a todos (em certa medida o exército também o faz), mas sim a que acolhe as diferenças e mais do que isto produz o diferente. A escola atual procura homogeneizar tudo e repelir o diferente, o heterogêneo, pela evasão, pela repetência e também pela classe especial – que é a classe homogênea dos diferentes. Os repetentes abrem um espaço na escola (de fracasso e de vazio) que faz com que todos se interroguem sobre ela. Pela linguagem repetente as crianças alargam os seus espaços de fala (mesmo que seja um ruído, um grito, um gesto tresloucado), de expressão, de trânsito e de agenciamentos na escola. Por essa linguagem as crianças tentam se libertar, e por vezes também pertencer a este “confinamento” em que se transformou a escola, ainda que não o consigam ou o elevem ao extremo. Os repetentes criam situações que somente sua condição de repetentes permitiria. As meninas repetentes, que aparentemente nada constroem, utilizam-se de tudo o que a escola fornece: o conteúdo pedagógico, o recreio, as saídas das salas; arruínam e inventam outras coisas. Poderíamos afirmar que um outro tipo de razão manifesta-se na escola pelo repetente. Cenas loucas (todas as meninas que serão mencionadas são repetentes). Roseli ajoelha-se no meio da sala e começa a falar como se estivesse rezando. Lucinéia começa a ler alto sua cartilha como se estivesse declamando. Durante uma explicação de um exercício de matemática, Margarete começa a cantar alto. Em um outro dia, novamente Margarete começa a bater com força o seu lápis na mesa, durante uma explicação da professora. Durante uma aula, Rita, de repente, levanta-se da sua carteira, vai para a frente da sala, dança e diz: “Eu não estou com vontade de escrever no caderno de classe.” Rosana começa a brincar de amarelinha no meio da sala. Depois passa a pular. Os enfrentamentos Por vezes, a menina repetente se interpõe entre a professora e uma outra criança que porventura esteja sendo repreendida, deslocando para si a atenção e às vezes a raiva da professora. Realizam também atos desafiadores, transitam por toda a sala e conseguem às vezes, numa espécie de guerrilha, minar a aula que estava sendo dada. A professora fala com Anderson: “Quer que eu chame a sua mãe para você entrar na surra? O que está acontecendo?” “Surra de mãe não dói”, diz Lucinéia. “Dói sim, pode não doer na vida”, responde a professora. A professora pára de falar com Anderson e começa uma discussão sobre a dor ou não de um tapa da mãe. Lucinéia conversa comigo, a professora se irrita e tira-lhe a caneta; Lucinéia diz: “Estou pouco me lixando, faz um gesto com os ombros.” Margarete aponta seus lápis, olha para a professora que não estava prestando atenção, joga toda a sujeira do apontador no chão e depois coloca a língua para fora. A professora abre a porta da sala dizendo que está com calor, depois de alguns instantes Lucinéia levanta-se e fecha a porta dizendo estar com frio. Agenciamentos Rita aparece um dia no Centro de Juventude com um pacote, pergunto-lhe o que tem dentro: “É o que sobrou da merenda. Quem te deu? A Maria (merendeira). Ela sempre te dá? Não sei, sai correndo para brincar.” As meninas repetentes, por transitarem tanto pela escola, seja porque vão buscar as vassouras, os panos, falar com o diretor etc., acabam se relacionando com as faxineiras, merendeiras, e conquistam coisas para si. Recreio e brincar Elena Belotti, em seu livro Educar para a submissão, discutindo as diferenças entre o brincar das meninas e dos meninos, concluiu que em geral as brincadeiras das meninas são ritualísticas, obsessivas e também fóbicas. Afirma que as meninas brincam assim não por alguma razão de ordem biológica, inata, mas porque estes brincares foram sendo atribuídos socialmente. Não poderia suceder que os jogos rituais, repetitivos, coercitivos das meninas, em que a sua atenção se detém na aquisição de habilidades sofisticadas mas circunscritas, sejam verdadeiros e autênticos comportamentos fóbicos de base ritual obsessiva? Que sejam um aspecto generalizado daquele perfeccionismo que substitui a agressividade reprimida e inibida em suas manifestações? Típicos neste sentido, são os jogos com corda, também em grupo como sozinhas, em que se passa do mais elementar saltar por cima dela com os pés juntos, até as variações mais complexas que prevêem uma notável coordenação de movimentos e muitas vezes um virtuosismo, dado que se chega à combinação do tipo: um salto com o pé esquerdo, um salto com o direito, dois saltos de pés juntos e ao mesmo tempo cruzando a corda por cima da cabeça, como vi uma menina de uns oito anos fazendo e que, enquanto saltava, parecia em estado de hipnose. Essa maneira de brincar com a corda é desconhecida dos garotos, que aliás não ligam muito para ela, considerando-a com desprezo brincadeira de mulher. (Belotti 1987, p. 83) Ainda, segundo Belotti, as meninas acabam sendo mais que os meninos objetos “de repressões mais massivas quando demonstram uma grande vitalidade, virtuosismo ou mobilidade consideradas excessivas” (Belotti 1987, p. 82). Por um lado, Belotti tem razão, as meninas possuem um repertório maior que os meninos, de brincadeiras onde a repetição e a mesmice são as principais marcas. Evidente que não são as meninas que repetem mas sim os repertórios das canções e das histórias que contêm ciclos rítmicos repetitivos. Como se fossem cantos religiosos ou lamentos que se repetem: apaziguam a dor, fazem o tempo passar etc. Por outro lado com este repertório repetitivo, também mais silencioso e menos diruptivo, em situações mais confinadas como é o caso da escola, onde não existe nenhum objeto para se brincar, as meninas acabam conseguindo se divertir, enquanto os meninos como que enlouquecidos correm de um lado a outro e brigam muito nos momentos de recreio. Passar anel, brincar de amarelinha, mamãe e filhinho, passear de mãos dadas pela escola são algumas opções de divertimento para as meninas, enquanto os meninos amassam um papel e tentam jogar futebol, mas logo desistem do intento, pois o papel se desmancha a todo momento. Fala menina A história das meninas pode ser lida como uma história particular ou como fragmentos de histórias compartilhadas por aproximadamente 100 meninas com as quais trabalhamos no Centro de Juventude, na medida em que essas vidas estão socialmente determinadas. Observamos através das falas das meninas que a infância feminina vem realizando cotidianamente uma espécie de dupla jornada. Além dos trabalhos necessários que as meninas realizam para se (re)produzir enquanto criança, como brincar e estudar, por exemplo, fazem também o trabalho doméstico, necessário para a (re)produção do trabalhador. Assim, o ser e estar menina de baixa renda está hoje vinculado à necessidade desse trabalho, que aos poucos vai-se tornando natural, dado. Essa naturalidade esconde a história desse aprisionamento que, de certa forma, liberta a mulher e aprisiona a menina. Todas as meninas, quando perguntadas sobre esse trabalho, afirmam que isso é o que menos gostam de fazer em suas vidas. “Roseli o que você menos gosta de fazer? Lavar a roupa. Você trabalha em sua casa? Lavo o prato, limpo o fogão, varro a casa, faço tudo. Todo dia você faz isto? Sim. E sua mãe? Minha mãe trabalha. Ela chega de noite, entre seis e meia e sete horas.” Quando perguntei para Roseli, que tem 13 anos e estuda na 1ª série, o que ela mais gosta de fazer, respondeu: “De brincar de boneca.” Todas as outras meninas afirmam que brincar é o que mais gostam de fazer. Rita, nove anos: “O que faz em sua casa? Dobro a roupa, limpo, arrumo as duas camas, mas o que eu menos gosto de fazer é chegar em casa e estar cheio de lençol para eu lavar.” Lucinéia, 11 anos, 1ª série: “O que você menos gosta de fazer? Não gosto de varrer a casa. Você trabalha em casa? Sim, lavo a louça, limpo a geladeira, varro o chão, limpo as coisas, lavo as minhas roupas, os calçados quando estão sujos e depois vou dormir. O seu irmão não te ajuda? Não, ele vai trabalhar, ele tem 11 anos e cuida de carro.” Os meninos das classes populares, quando não são menores que as meninas e, portanto, são elas quem cuidam deles, trabalham fora, na rua, e quando isso não ocorre, em geral não se exige deles o mesmo que das meninas. A necessidade da mulher de trabalhar fora e contribuir para o orçamento familiar tem deixado às meninas o trabalho doméstico, que elas realizam sem nenhuma satisfação. Perguntamos em nosso trabalho, para as meninas de 14 anos, por que vinham ao Centro de Juventude, e obtivemos a seguinte resposta: “Para não ter que ficar em casa trabalhando.” É pequena a quantidade de meninas de 12 a 14 anos no Centro de Juventude. Além da evasão que ocorre quando elas chegam nessa idade, na maioria das vezes, as mães tiram essas meninas para que fiquem em casa ajudando ou substituindo-as nos afazeres domésticos. Essas meninas são moradoras de favela e cortiços, tipo de moradia que a classe trabalhadora tem conseguido conquistar através de seus trabalhos. No Jaguaré, um bairro eminentemente industrial, sobrevive um espaço de cortiços: o Morro Continental. É preciso salientar que as condições de vida aí parecem piores que na favela. Os moradores desse cortiço são migrantes, que como nômades vem e voltam à sua terra na época da colheita. Por vezes as crianças interrompem a sua escolaridade devido a essa transitoriedade de morada. Ter um território fixo é uma das primeiras condições para a escolaridade. Em outro momento, as meninas falam de suas famílias, que são diferentes das famílias que a mídia difunde ou mesmo dos livros didáticos utilizados pelas crianças. Margarete, oito anos, 1ª série: “Moro só com o meu pai em um quarto no barraco da favela. Não conheci minha mãe, só no retrato. Um dia, eu peguei o retrato da minha mãe piquei bem picadinho e joguei na privada. Porque sim. Eu não gosto dela porque ela não me paga nada, e meu pai paga e ela não me dá carinho e meu pai sim, só gosto do meu pai. Ela me deixou bem pequeninha, de meses, com meu pai, aí eu vim para a creche, ficava no berçário, no maternal. Minha mãe está na casa da mãe dela.” Rita, nove anos, 1ª série: “Minha mãe não é minha mãe e meu pai não é o meu pai.” Não só a família é diferente, é outra coisa, como também a sua organização no espaço, o qual é exíguo para a quantidade de pessoas moradoras. Nesse tipo de família não existe a divisão entre o mundo infantil e adulto. Tudo se conhece, se troca e se compartilha. Esse encontro entre dois mundos coloca outros conteúdos à “infância”. Suas vidas são, não só coletivizadas no interior de suas casas, mas este tipo de moradia, com ausência de espaço, também as joga para as ruas em contato com outras crianças e famílias. Todas desejam crescer para poder trabalhar e sonham com profissões possíveis se conseguissem passar de ano. Enfermeira, manequim e professora são as profissões que se destacam, outras ainda falam em ser “polícia fêmea”. Polícia, o delegado, o juiz e a Febem estão sempre presentes nas falas das meninas. A escola é vista como um dever de que gostam, uma das exigências de ser e estar criança nesta sociedade. A maioria delas vai à escola “para ser gente”, “poder trabalhar”, “porque gosta”, “porque precisa”. Não ir à escola é não pertencer ao mundo urbano com os seus infinitos códigos, principalmente os escritos. Não ir à escola é quase não ser gente. “Por que você vai na escola? Porque minha mãe quer que eu estude. Por que? Para ser gente. Você não é gente? Para trabalhar. Se ela não te mandasse na escola, você iria? Não, eu tenho preguiça.” Para a mãe dessas crianças ir à escola significa “não ser como elas.” A instrução é vista como uma possibilidade de ascensão social. Baixa instrução, baixa remuneração, é exploração, ao passo que alta instrução, maior salário, não é visto como tal. Essa visão de educação supõe que quando se estuda mais é possível deixar de ser trabalhador. Quando as meninas são perguntadas sobre o que se aprende na escola, três aspectos se destacam: o caráter disciplinar da escola, a aprendizagem por repetição e centrada na cartilha e “que a escola serve para passar de ano”. Margarete, oito anos, 1ª série: “O que você aprende na escola? O que aprendo? A, e, i, o, u, ba, be, bi, bo, bu, ca, ce, ci, co, cu. (Risos.) O que mais você aprende fora isto? Espera eu pegar a minha cartilha. (Fica um tempo lendo o que consegue na cartilha.) Lucinéia, 11 anos, 1ª série: “O que você aprende na escola”? Eu aprendo a ler, estudar, ter educação, não ser mexedor com ninguém, não ser respondidor, nem bagunceiro, não machucar ninguém.” O aspecto disciplinar percorre todo o tempo a fala das meninas. É por indisciplina que explicam o porquê de suas repetências. “Na escola não se pode brincar, só na hora do recreio. Por que você repetiu? Era bagunceira.” (Margarete.) “Porque ficava bagunçando enquanto os outros faziam lição.” (Rita.) “Bagunçava muito.” (Lucinéia.) “Fui embora de São Paulo, eu não gostava de estudar, agora eu gosto. Por que você não gostava de estudar? Porque a professora me batia.” A repetência está associada à bagunça, à indisciplina, ao não cumprimento das regras escolares. A repetência está mais associada à questão da educação do que ao saber. Quem é que não repete de ano, perguntei às meninas? “São os educados, a mãe deles dá educação, têm letra bonita.” Quando perguntei às meninas como é que a escola ensina, sabem que a repetição, a cópia, a cartilha e a quantidade são os motores da aprendizagem. “Como a escola ensina?” “Pega a cartilha, abrimos e ensinam mandando a gente juntar as palavras e ir lendo.” (Margarete.) “A professora passa a lição na lousa e manda a gente copiar.” (Margarete.) “Na cartilha. No primeiro dia de aula a professora botou a lição na lousa, eu fiquei perguntando, fiquei chata, aí ela falou, é só você copiar. Aí me deu vontade de ler.” (Lucinéia.) “Com a cartilha. Eu já sei a cartilha toda, porque eu tinha uma cartilha velha em casa.” (Roseli.) “Tem que estudar bastante. A tia passa a lição na lousa, nós vai escrevendo, escrevendo, tem que escrever bastante. Passar de ano é fazer bastante lição.” (Rita.) As crianças querem aprender a ler e a escrever, acham um defeito, uma falta, uma vergonha quem não sabe. Querem aprender porque sabem da necessidade que têm disso para transitarem pela cidade, entre as pessoas, ou para pertencer. “Quero aprender para aprender, para quando alguém pedir para a gente escrever, a gente saber. Para escrever carta para a família e para escrever para algum programa de televisão.” (Roseli.) “Para fazer as coisas, ser delegado, outras coisas, eu não quero ser delegado, quero ser manequim.” (Margarete.) “Para tomar ônibus e não se perder.” (Rita.) As meninas se expressam com muita clareza em relação ao funcionamento da escola, suas regras, normas, conceitos e leis. Reconhecem as expectativas sociais silenciosas e não, dos pais, professores, colegas, em relação ao desempenho escolar que deveriam ter. Evidente que este saber não é a condição para o êxito na escola, mas sim para a permanência nela. As meninas explicitam o “tipo humano” que a escola constrói e necessita, mas não conseguem atuar dessa forma. Através das suas ações silenciadas, raivosas, solidárias, expressam uma espécie de resistência, “replicam” ao repetir. Repetem porque realizam coisas diferentes das que a escola propõe, repetem porque se retardam, se distraem, brigam, bagunçam, porque estão cansadas de seus afazeres de casa, porque silenciam quando deveriam falar, repetem porque funcionam às avessas desta escola, repetem “porque nem parecem meninas”, e finalmente repetem porque são desejantes e ao fazê-lo desqualificam esta escola. 5 OS DISCURSOS: ESCOLA E CENTRO DE JUVENTUDE As professoras – Mulheres Neste capítulo pretendo analisar de que maneira as instituições escola e Centro de Juventude compreendem a criança repetente, e ao mesmo tempo procurar apontar algumas questões referentes à relação entre magistério e trabalho feminino. Nota-se nesta escola a presença maciça de mulheres: merendeiras, faxineiras, professoras, secretária, auxiliar de direção, coordenadora pedagógica. Dois homens, um professor do ginásio e o diretor. Nas classes menores não há nenhum homem. Apenas mulheres, uma única por classe, chamada de polivalente. É monopólio das mulheres o trabalho em educação quando as crianças têm idade que variam de zero a 11 anos: da pré-escola até a quarta série. Esse fato confirma as estatísticas sobre o magistério das quatro primeiras séries do ensino fundamental.12 A formação exigida dos professores para exercer essa função é o magistério ou normal. Para as creches, em geral, não precisam de nenhuma formação. O curso tem a duração de três anos para os professores de primeira a quarta série e quatro anos para a formação dos professores de pré-escola. O programa é considerado fácil de ser cumprido e a pessoa sai habilitada para ser professor13. 12 “No Brasil, como em inúmeros outros países, o magistério é uma atividade profissional predominantemente feminina. Dados do Recenseamento Demográfico de 1980, que são as informações desagregadas mais recentes de que dispomos, revela que 86,6% do professorado brasileiro é do sexo feminino. As mulheres representam a quase totalidade (99%) do ensino pré-primário e a maioria absoluta (96,2%) do ensino de primeiro grau (1a a 4a série), embora sua presença decline gradativamente nos níveis subseqüentes. Este fato, no entanto, nem sempre é levado em conta nos estudos educacionais, que ignoram a condição feminina da maioria do professorado, o que se reflete na avaliação incompleta da atuação dessa profissional.” (Bruschini e Amado 1988, p. 5) 13 ”Vários dos trabalhos analisados referem-se aos efeitos da lei (5692/71) sobre o antigo curso normal, agora `magistério a nível de segundo grau'. Tais efeitos teriam sido negativos, trazendo para este curso mais e mais alunos e alunas não interessados em se tornar professores/as: teriam feito esta opção para `escapar' de disciplinas presentes nos demais currículos do segundo grau, ou porque era considerada alternativa `mais fácil' para obter o certificado de conclusão do segundo grau. Tratava-se freqüentemente dos estudantes menos bem preparados, e provenientes em grande parte de estratos mais baixos.” (Bruschini e Amado 1988, p. 9) As concepções de infância e de mulher aliadas ao desprestígio crescente da profissão e o conseqüente rebaixamento das faixas salariais explicam tanto aquela exigência mínima para a habilitação desse profissional, quanto o fato dessa profissão ser quase que exclusivamente feminina. A infância Ariès em seu livro História social da criança e da família, mostra-nos que a partir do século XVII, modificou-se a concepção de infância concedendo-se uma nova atenção às crianças, que antes não se manifestava. Mas isso não significa o reconhecimento privilegiado que as crianças terão na família moderna, onde constituirão o centro das atenções. No século XVII, a teologia cristã difunde uma imagem de infância como má, marcada pelo peso do pecado original. A pedagogia, profundamente influenciada pelas concepções religiosas – pois, quase sempre os pedagogos eram mestres em teologia – responde a essa imagem de infância atribuindo um papel importante ao castigo redentor: punir o corpo para salvar a alma. Para a pedagogia tradicional, a infância é, então, interpretada com referência a tudo que se passa como antíteses da humanidade verdadeira: a animalidade, a selvageria, a morte (preferível à infância, segundo Santo Agostinho)14, a doença (Aristóteles), a loucura (Platão). Se a infância é assim rebaixada é porque a humanidade é idealizada: a infância é definida por oposição à sabedoria e à santidade. Comparada com esses estados, ela é um quase nada, é uma pura insuficiência... ... A insuficiência, a negatividade, a corrupção da criança fundam, na pedagogia tradicional, o direito do adulto à intervenção. A criança deve ser submetida a uma vigilância constante, não deve fazer nada por si mesma, o adulto deve mostrar-lhe tudo. (Charlot 1976, p. 120) O teólogo também pedirá aos pais contenção em seus excessos de amor e pedirá à mãe que não amamente os seus filhos. 14 “Durante longos séculos, a teologia cristã, na pessoa de Santo Agostinho, elaborou uma imagem dramática da infância. Logo que nasce, a criança é símbolo do mal, um ser imperfeito esmagado pelo peso do pecado original. Em a Cidade de Deus, Santo Agostinho explicita longamente o que entende por `pecado de infância'. Descreve o filho do homem, ignorante, apaixonado e caprichoso: `Se o deixássemos fazer o que lhe agrada, não há crime que não se precipitaria'.” (Badinter 1980, p. 55) Com Descartes modifica-se a concepção de infância, já que estamos sob a ascensão da razão. As crianças que se caracterizam por ser o outro, outra razão, serão para Descartes apenas ignorância e erro, ou a “ocasião do erro.” Temos aqui a passagem do pecado ao erro. Alguns sentimentos irão se encontrar no século XVIII, os da infância e do amor materno, um amor favorável à espécie e à sociedade. A sobrevivência das crianças passa a ter importância, o que não tinha até então. A criança adquire um valor mercantil, representa uma riqueza econômica para a qual a quantidade de homens passa a ser apreciada em detrimento da qualidade. Alguns encontros ocorrem no século XIX, quando a infância passa a ocupar um lugar privilegiado: nascimento de uma espécie de Estado protetor, no lugar do pai, por meio de criações institucionais, o internamento das crianças (em escolas e internatos) e a mulher chamada a ser mãe, papel que é solicitado e preservado (Badinter). A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles. A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até os nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização. Essa separação – e essa chamada à razão – das crianças deve ser interpretada como uma das faces do grande movimento de moralização dos homens promovido pelos reformadores católicos ou protestantes ligados à Igreja, às leis, ou ao Estado. (Ariès 1978, p. 11) No final do século XIX, na França, são editadas várias leis de proteção à infância, entre elas a da obrigatoriedade escolar (1881). Essas normatizações da relação adulto-criança são estratégias sanitárias e políticas de, por um lado, fazer penetrar por intermédio da criança “a civilização no lar” das classes trabalhadoras e, por outro, corrigir a situação de abandono em que se poderiam encontrar as crianças das classes trabalhadoras, mas também, na mesma medida, reduzir a capacidade sócio-política dessas camadas, rompendo os vínculos iniciáticos adultos-criança, à transmissão autárquica dos saberes práticos, as liberdades de movimentos e de agitação que resultam do afrouxamento de antigas coerções comunitárias (Donzelot 1980, p. 76) A partir deste novo alvo nascente, a infância, constituem-se saberes e poderes sobre ele: políticos, econômicos, jurídicos, médicos, religiosos e educacionais. Hoje, restam-nos imagens contraditórias onde a criança é inocente (esse nem sempre foi atributo da infância) e má, vive perigos e é perigosa, é a nossa continuidade e prenúncio de nossa morte. A ideologia do devotamento e do sacrifício Para a escola pública estadual, a criança quando não perigosa, é um ser frágil, medroso, carente de vínculos de caráter maternal; portanto, oferece-se a ela uma escola onde uma única mulher é a professora, para que se faça a substituição da mãe na escola. Veicula-se a necessidade de se cuidar da escola, por ser uma espécie de segunda casa e não porque é um patrimônio coletivo cultural. Reproduz-se na escola a retórica do amor materno, acentuando-se seu caráter repressivo, tirânico e paralisante. A escola prepara-se para receber esse ser pequeno e frágil e assusta-se com o encontro. A criança é errante, possui uma espécie de devir-vagabundo, curioso por tudo e desejoso de viver todas as coisas no mesmo momento. A escola maternalizante oferecida às crianças tem uma árdua tarefa para capturar esta criança, torná-la sedentária e fazer cumprir os desígnios escolares na construção do tipo humano necessário. Persiste a idéia de que trabalhar com crianças pequenas em educação é trabalho de mulher. Concepção reforçada pelo valor que se paga socialmente para essa função. Quanto menor a criança, menor o salário. A idéia de vocação, sacrifício, e entrega inerentes à mulher são requisitos importantes para que a mulher exerça essa função. Essa espécie de sensibilidade atribuída à mulher é a mesma que dá vida às crianças, cuida dos enfermos e da velhice. Que sensibilidade é essa que opta por se sacrificar e ilude-se com a possibilidade de preencher as faltas? Quando perguntei a uma das professoras sobre o motivo pelo qual trabalhava com crianças desta classe social, respondeu: “Eu não escolhi, fui escolhida, faz parte da minha religião.” O devotamento, o espírito de sacrifício, a ilusão de onipotência e tudo o que há nisso de mágoa, ressentimento, culpa e dor estará presente na relação entre o aluno e a professora. As idéias de instinto materno, subjetividade e sensibilidade feminina são construções sociais que se transformam em amarras para a condição da mulher e produtores de perversidade. A mulher e a menina acabam tendo que funcionar conforme esse padrão. É como se esse jeito de ser mulher estivesse inscrito desde toda a eternidade na natureza feminina. Uma mulher diferente não é diferente, é anormal, já que é um desafio lançado contra a natureza. É preciso submeter o humano a esse tirânico determinismo. As transformações do magistério O acesso, as contradições e as transformações pelas quais o magistério passou pelo fato de ter se tornado uma profissão feminina foram analisadas em alguns estudos aos quais me remeto: Apple, Bruschini, Mello e Novaes.15 O magistério no século XIX era uma profissão masculina que se “feminizou” no século XX. Esse processo alterou a própria ocupação, magistério, que passou a ser desqualificada: controle mais rígido (o currículo foi padronizado e distribuído nos graus, horário mais rigoroso de trabalho), separação das questões administrativas (em geral, a cargo dos homens) das salas de aula e do rebaixamento salarial com uma crescente proletarização da profissão. Esses fatos podem ser explicados por várias razões: por uma ideologia que define “o lugar próprio da mulher”, a sala de aula como uma extensão do trabalho produtivo e reprodutivo que as mulheres faziam em casa, a preparação ideal para a maternidade. Com a obrigatoriedade escolar e as lutas populares pelo acesso à escolaridade, os custos da escola tornam-se muito altos. Uma maneira de controlar esses custos crescentes foi alterar as práticas aceitas de recrutamento: foi só empregar mestres mais baratos – mulheres (Apple 1988, p. 17). No 15 Michael Apple – “Ensino e Trabalho Feminino: uma análise comparativa da história e ideologia” in Cadernos de Pesquisa, nº 64, São Paulo. Fundação Carlos Chagas, 1988. Cristina Bruschini e Tina Amado – “Estudos Sobre Mulher e Educação: algumas questões sobre o magistério”, in Cadernos de Pesquisa., nº 64, São Paulo. Fundação Carlos Chagas, 1988. Guiomar Namo de Mello – Magistério de 1º Grau: da competência técnica ao compromisso político, São Paulo. Cortez Editora, 1985. Maria Eliana Novaes – Professora Primária – Mestra ou Tia, 4ª ed,. São Paulo. Cortez: Autores Associados, 1991. Reino Unido, segundo Apple, entre 1855 e 1935 as mulheres recebiam aproximadamente 2/3 do que os colegas masculinos. No Brasil, segundo Bruschini, em 1980, 84,9% das professoras brasileiras ganhavam menos do que 5 salários mínimos ao mês, enquanto 47,8% dos professores se situavam na mesma faixa de rendimento mensal”(Bruschini e Amado 1988, p.6). Em relação às diferenças salariais entre os professores e os especialistas no Brasil, Novaes afirma que no período 1966-1980, pode-se constatar que, enquanto o salário real dos professores sofre uma tendência decrescente, para os especialistas registra-se exatamente o contrário. Ainda segundo Novaes, enquanto nos anos de 1966-73 os professores recebiam um salário 30% inferior ao do especialista, a partir de 1973 essa proporção cai para aproximadamente 50%. Como as despesas do Estado com o pessoal do setor de educação não tem crescido (Minas Gerais, 1978), não é difícil inferir que o aumento de vencimentos dos especialistas tem sido financiado com o achatamento dos salários do Magistério” (Novaes 1984, p.44). O magistério tornou-se uma profissão feminina também porque os homens a abandonaram. Muitos dos que continuaram na profissão tendiam a ser encontrados em postos de mais alta autoridade, status e remuneração. A burocratização da ocupação permitiu esta divisão sexual do trabalho em educação. A luta das mulheres para a entrada no mercado de trabalho fez do magistério uma opção atraente: era “distinto” em relação às outras profissões femininas, podiam exercer algum poder, ser independentes economicamente etc. As professoras Nos depoimentos das professoras pesquisadas, merecem destaque alguns de seus discursos referentes à percepção que têm de suas práticas pedagógicas. A questão do controle administrativo-burocrático exercido pelos vários órgãos da secretaria da educação e pela administração da escola, a questão salarial e o desprestígio da prática docente aparecem em seus discursos, em geral, como a explicação para os vários fracassos das crianças em relação à aprendizagem. O controle do trabalho internamente à escola é exercido pelo diretor, pela coordenadora pedagógica e por algumas das professoras que são chamadas de “panela da diretoria”. “O pessoal da Secretaria (da Educação) está lá no alto, longe da realidade escolar, o diretor deveria ter autonomia de trabalho.” Não pedem autonomia para elas, pois sentem que necessitam de um modelo para trabalhar, pois de alguma maneira reconhecem os seus limites e dificuldades para o ensino, principalmente em relação à alfabetização. “A escola faz muito ensaio, mesmo o ciclo básico, a Secretaria inventa e o professor do Estado tem que seguir de qualquer jeito.” “A culpa da repetência do aluno não é só do professor, ele segue uma linha, aí muda a política e o professor tem que mudar tudo.” “Nesta escola nós temos uma liberdade vigiada, as provas são as mesmas para todas as classes do ciclo básico onde quem realiza são as professoras das classes de crianças mais fortes e a coordenadora pedagógica, temos o caderno volante que tem que ser escrito todo dia por uma criança para que eles nos vigiem.” Para outra professora, considerada por algumas das professoras como aliada da diretoria, ela compreende o caderno volante como uma forma da professora defender-se de um eventual processo que alguma família possa abrir contra a sua prática docente. A administração escolar intervém, não só em questões relativas ao currículo escolar, mas em relação à maneira de ser das professoras: uma delas foi chamada à diretoria e foi proibida de usar determinadas roupas consideradas imorais: saia curta, blusa com decote e bermuda, qualquer traço indicativo de sexualidade da professora deveria ser vigiado e banido da escola (intervenção parecida com aquela exercida pelas professoras em relação às meninas). As quatro professoras pesquisadas afirmam gostar de educação e dizem que vieram das classes sociais mais baixas: uma delas contou que já passou fome, foi faxineira e que por isso entende estas crianças. Nenhuma delas optou por trabalhar com a alfabetização, foram designadas para essas classes pela administração escolar. Em relação às suas lembranças de escola, as quatro professoras, por razões diferentes, foram reprovadas uma vez em sua escolaridade. Consideravam a escola “antiga”, mais forte e também mais rígida (as professoras mais velhas entre 40 e 50 anos vieram de colégio de freiras, e só fizeram o normal, a professora mais jovem, entre 25 e 30 anos, cursou uma escola estadual e fez pedagogia em uma faculdade privada). Interessante o depoimento de uma das professoras em relação à sua repetência, pois de alguma maneira revela uma certa positividade da repetência, como foi indicado nos capítulos anteriores: “Eu tinha vontade que a escola pegasse fogo e que a minha professora queimasse junto. Ela batia com a minha cabeça na mesa, eu acho que ela era louca. Eu repeti e fiquei tão contente que parecia que tinha ganho um presente de Natal, aquilo foi um meio de ofender aquela professora, foi uma resposta a ela.” As professoras mais velhas lembram-se de suas professoras como solteiras, e que ser professora era uma espécie de “espera marido”, mas que elas, no entanto, não tinham esse objetivo. Esse fato corrobora a afirmação de Apple: a questão do casamento, tão alegada pelos educadores masculinos, emerge em histórias de algumas, a ele relutantemente pressionadas pelas respectivas famílias temerosas de que ficassem solteironas dependentes, e não nos relatos das professoras sobre sua própria atração ou ansiedade em se casar. (Apple 1988, p.19) Uma das professoras afirma que sua mãe não queria que ela se casasse, mas que tinha dois sonhos: morar no Largo da Matriz, e que ela fosse professora. Em relação à questão salarial, todas elas afirmam que, hoje em dia, o dinheiro não faz falta por ser tão pouco; no entanto, não continuam na educação apenas por esporte, afirmam gostar do que fazem. Outro aspecto que merece destaque, em relação às professoras pesquisadas, é o forte caráter religioso que permeia suas falas e a própria prática docente. É por essa via que entendem e justificam a opção pelo trabalho com esta classe social. O conteúdo religioso serve como prática disciplinar utilizada pelas professoras: obrigam as crianças a entrarem na fila, falar bom-dia e repetir uma oração; referem-se a Deus várias vezes e ameaçam as crianças com a “punição divina”. Em relação à opção de trabalhar em escola pública com crianças desta classe social, dizem preferi-la pois não existe a interferência dos pais no aspecto educativo. Nessas falas aparece novamente o temor e a insegurança das professoras em relação ao seu próprio saber. Elas temem o erro e o fracasso, talvez por isso não se desviem das instruções dos livros e das cartilhas, porque não saberiam dizer o “que é certo ou errado.” De certa maneira sabem de seus limites em relação à alfabetização. “Aqui é o fim do mundo” ou a suposta filantropia na escola Com base em um certo tipo de esquadrinhamento escolar, espacial e de estratégias políticas de ensinamento, aparece a criança repetente. Com a organização de um espaço não-diferenciado16, carteiras enfileiradas, uma única cartilha, com um único professor e uma mesma lição, sob o simulacro da homogeneidade, sob o discurso de oportunidades iguais, surge aí o ser mais idêntico e homogêneo de todos: o repetente, o que deve repetir a mesma coisa todo o tempo. O repetente individualizado como sujeito aprendiz, entre a massa não-diferenciada de “pobres da mesma idade”, passará a ser alvo de poderes e saberes. Ele será um ponto de cruzamento de uma série de saberes que procurarão explicar este fracasso: o sociológico (sintoma da reprodução social), biológico (subnutrição), psicológico (déficit de inteligência), além da assistência social e da própria pedagogia. O repetente será aquele que acabará justificando a criação de uma tecnologia disciplinar, enfatizando a necessidade do sentar, calar para aprender etc. A escola que produz evasão e repetência passará a funcionar como uma espécie de ambulatório e a definir-se por incessantes reinscrições em sistemas não-escolares (Foucault) por meio da merenda, classe especial, escola período integral. É também por esse lugar que entra o “social” na escola, supondo dar às crianças aquilo que elas não têm na realidade social, uma filantropia no interior da escola. O professor sai do campo educacional e acaba penetrando nos campos jurídico, psicológico e religioso. Essa reinscrição nesses sistemas não educa nem qualifica melhor as crianças, mas carrega de ciência a reprovação. A repetência sai do âmbito puramente escolar e passa ao âmbito da verdade, já que é científica. O professor não é apenas um educador, mas um juiz, um psicólogo, um padre. Sob essa aparente suavidade científica, nesse entrelaçamento de saberes, reprovam-se as crianças e amplia-se o poder de punir. 16 “O espaço escolar se assemelha a uma missa permanente, a instituição religiosa é a instituição de referência para a concepção de tal organização espacial.” (Querrien 1979, p.49) As professoras explicam porque as crianças são reprovadas: durante todo o ano as professoras vão selecionando e diagnosticando seus alunos e explicando as razões do fracasso. O Estado, os pais, e as próprias crianças, em geral, são os três culpados que vão se alternando nas explicações das professoras, conforme vão ocorrendo as situações. Nesses momentos, o professor transfigura-se em médico, psicanalista ou padre. Culpa das crianças Quando as crianças são as culpadas pelo seu fracasso parece ser o médico, psicólogo ou o padre quem fala. “Anderson deve ir para a classe especial, pois ele tem desvio mental e comportamental.” “As crianças têm audição fraquíssima, atenção, memorização e não têm fixação, darei um ditado e não terei devolução.” “Renata não tem raciocínio lógico e não terá condições de fazer problemas e será reprovada.” “Eles são incapazes de qualquer coisa, até de guardar o material.” Fala de uma professora substituta acerca de uma classe de multirrepetentes: “Não tem graça trabalhar nesta classe, tudo é repetição, não entra nada na cabeça das crianças por isso é sempre a mesma coisa, nas outras classes as coisas avançam aqui é sempre a mesma coisa, não vejo a hora da Tuca voltar.” “O processo de assimilação das crianças é muito difícil: 50% desenvolve em forma de aprendizagem, 30% tenta, 20% não adianta. Para algumas crianças isto é vídeo-tape, acho que as crianças que repetem deveriam ir para a classe especial.” Fala de uma professora da classe especial acerca de um aluno seu: “Ele precisa de Igreja, precisa de um mundo espiritual.” As professoras explicam o fracasso de seus alunos por meio de um discurso aparentemente científico, utilizando estatísticas se necessário, e definem as crianças como seres que têm deficiência de audição, memória, assimilação etc. Quando as crianças já estão na classe especial, local que se define como o lugar dos deficitários, incompetentes, problemáticos, neste momento, a ciência não pode mais dar às crianças aquilo que porventura as professoras julgam que lhes falte, algumas colocam o problema para além delas, e além do mundo terrestre, a questão torna-se espiritual e é entregue “na mão de Deus”. Culpa dos pais Quando os culpados pelo fracasso das crianças são os pais, parecem ser o juiz ou a assistente social os que falam: “O problema das crianças é a irresponsabilidade dos pais. As crianças faltam porque a mãe se atrasa. Não é que não aprende por falta de metodologia, mas por problemas em casa cujos pais afirmam não agüentar a vida das crianças.” “A Margarete e seu pai, por exemplo, já perderam o interesse e eu mandaria ela para frente pois ela já está lendo, no outro ano ela repete.” “Os pais nem sequer apontam o lápis das crianças e querem que nós os alfabetizemos.” Uma professora reclama que os pais pedem o caderno das crianças e depois ele volta faltando folha, a professora ironicamente diz: “É que os pais auto-didatas dão lição para as crianças. O que os pais podem fazer com os alunos, mesmo que sejam catedráticos da USP? Podem alfabetizar?” As professoras “brigam” muito com os pais em sala de aula, quando algo não vai bem em classe, reclamam de que estes não as ajudam, acusam os pais e os inferiorizam diante das crianças; estas sempre silenciam nestes momentos. O Estado Reclamam do governo estadual pois gostariam de ter autonomia para gerir a escola e de possuir verbas para administrar a seu modo o conteúdo escolar, o calendário e as reformas necessárias à escola. “Não é o momento das crianças entrarem em férias, quando voltarem será uma ré só, não deveria ser o Estado o marcador das férias”, diz a professora. “O Estado não dá, os pais não têm, você só conta com o lápis.” Uma criança vomita na sala, a professora indignada grita: “Olha as leis do nosso país, tem que alfabetizar uma criança que solta lombriga pela boca. Olha o estado de nossas crianças. É o fim do mundo, aqui é o fim do mundo.” Por fim, quando não há mais culpados, restam as dúvidas e as arbitrariedades da reprovação. “No fim do ano não sei, eu não poderia ser juiz porque eu sempre tenho dúvidas. Eu sou muito exigente. Eu penso, será melhor ele repetir ou ser aprovado? Sempre fico preocupada.” “Etapas é tudo papo furado, conversa para boi dormir, estas crianças estão carimbadas e ninguém quer elas, já estão marcadas, todas vão permanecer no mesmo lugar o ano que vem, ou seja, no mesmo ano. Eles farão uma triagem e as crianças permanecerão, além de mim ninguém as quer”, diz a professora da classe “dos mais fracos.” A síndrome da exclusão e da captura O programa Centro de Juventude, que anteriormente era chamado de Osem (Orientação Sócio-Educativo ao Menor), foi implantado pela Prefeitura Municipal de São Paulo em 1976, depois de alguns projetos fracassados. Assim, em 1973 havia o programa “O Menor Trabalhador da Rua”, em 1975 “O Menor Adolescente”, em 1976 “Osem”, o qual foi reprogramado em 1979. Finalmente, em 1986, o nome muda para Centro de Juventude. Este programa está a cargo da Secretaria Municipal da Família e do Bem-Estar Social. Em 1989 esse programa contava com 304 núcleos distribuídos pelas regiões periféricas de São Paulo e atendia 30.389 crianças na faixa etária entre sete e 14 anos moradoras de favelas e cortiços e com uma renda familiar de um a três salários mínimos.17 Apesar das modificações ocorridas após 1976, é neste ano que o então Osem, hoje Centro de Juventude, foi implantado e sua linha teórica formulada, permanecendo, em essência, a mesma até hoje. É um programa concebido dentro de uma concepção assistencialista e inserido no âmbito da ideologia da privação cultural, subjacente à política educacional da década de 1970. O Osem e os projetos que o antecederam, fazem acreditar que apenas pela via educacional integrar-se-ia o “menor” no contexto urbano e no mercado de trabalho. Procurar impedir o fracasso escolar e tirar as crianças das ruas ( para conter a infância perigosa ) são dois aspectos centrais e a própria razão de ser desse programa, formulado pelos técnicos da prefeitura. O Estado responde aos efeitos das desigualdades produzidas por este tipo de sociedade criando um equipamento social dentro de sua lógica que visa ao equilíbrio, à integridade social ou à ordem. É importante lembrar que a Febem também foi estruturada em 1976, pois neste ano o “problema do menor” passa a ser uma questão de Estado18. Dessa forma, as crianças e os adolescentes das classes populares, concebidas 17 Fonte: Rede direta – Prodam. Rede particular e indireta Subes/Central. 18 “Contudo será apenas após 1964 que o problema do menor recebe um estatuto de problema social, que deverá ser submetido aos preceitos da ideologia de segurança nacional. Desta forma, o menor deixa de ser responsabilidade de instituições privadas e de alguns organismos governamentais, atuando de acordo com seus como “menor” passam a ser objeto de intervenção e obviamente de saber, não só do professor, mas também dos assistentes sociais, pedagogos, psicólogos, médicos, juizes (de menores) etc. Os Centros de Juventude formam uma rede paralela de ensino, a cargo da Secretaria da Família e do Bem-Estar Social, e não da Secretaria da Educação, e enfrentam os mesmos problemas da rede pública de ensino: capacitação de monitores, falta de verbas, evasão, supervisão inócua. A Secretaria do Bem-Estar Social de certa forma trabalha com o que aparece como “residual” na escola e na sociedade como um todo: os fracassados e evadidos das escolas (meninos de rua, do Centro de Juventude), as crianças de zero a seis anos em creches, os trabalhadores de rua (mendigos, catadores de papelão) etc. Amplia-se dessa maneira o número de instituições que passarão a cuidar da infância. Como no século XIX na França, o Estado busca ocupar o lugar do ausente, o pai, por meio das criações institucionais. Um Estado paternalista ou a “substituição do patriarcado familiar por um patriarcado de Estado” (Badinter 1986, p.289). As instituições em geral, e também a escola, têm por objetivo tirar as crianças das ruas para controlá-las de alguma maneira. Quando a criança se evade ou é evadida da escola, ela de certa forma retorna às ruas. O Centro de Juventude tem por função tentar capturar de novo essa criança. Instaura-se sobre ela uma infra-estrutura de prevenção, iniciando-se uma ação educativa para que se possa oportunamente retê-la aquém do delito. Temem a marginalidade para além do Centro de Juventude. O Centro de Juventude estrutura-se para dar às crianças aquilo que supõe faltar-lhes na realidade social. A instituição cria com as crianças uma relação perversa desigual, entre aqueles que têm (a instituição) e aqueles que não têm (os carentes, as crianças). preceitos em âmbito regional, para se enquadrar aos objetivos nacionais explicitados na Política Nacional do Bem-Estar do Menor cuja responsabilidade passa a ser da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor... A PNBM apresenta-se veiculando a idéia da necessidade da prevenção e do controle do problema do menor em geral. Como salienta Paul Singer, a finalidade dos serviços de controle está em desenvolver técnicas possíveis para evitar que qualquer contradição (entre sociedade e Estado) se agudize. Portanto, sejam elas no plano econômico, social ou político, desde que ameacem o chamado mundo das mercadorias, dentro da ordem devem ser acionados os mecanismos de prevenção e controle (preventivos, punitivos ou repressivos), objetivando recolocar o indivíduo numa situação de ajustamento.” (Queiroz 1984, p.34) O fato de instituir repousa num equívoco, nessa ilusão de que eu sou a necessidade de tua carência e tu tens o que eu preciso. Isso vale tanto para institucionalização de relações restritas, como para outras instituições mais duras. (Albuquerque 1984, p. 84) Muitas vezes as crianças acabam atuando conforme esse desígnio, o que se expressa na fala de uma delas: “Eu não posso aprender, tenho um problema na cabeça.” A forma de atuar do Centro de Juventude é capturar a criança, não permitindo que ela fracasse. Assim, no Centro de Juventude nada se ensina, ou se ensina às crianças aquilo que de certa forma elas já sabem. Aquilo que se convencionou chamar de “saber escolar”, matemática, português, estudos sociais, transformou-se, para o Centro de Juventude, em jogo de fácil assimilação. Tal saber recebe o nome de reforço-escolar e se constitui em uma espécie de “artesanato cognitivo”, como trabalhos manuais, de montar e remontar. Para a carência alimentar o Centro de Juventude propõe reforço alimentar, para a evasão e repetência escolar, reforço escolar, para a carência afetiva, tia ou vizinha, já que as pessoas que trabalham diretamente com as crianças são as moradoras do bairro. Os livros pedagógicos do Centro de Juventude e o treinamento que os monitores (assim são chamadas as pessoas que trabalham diretamente com as crianças) recebem mensalmente da prefeitura são centrados em técnicas e estratégias de ensino, além de discussões sobre temas considerados próprios para esse tipo de população: agressividade e sexualidade, por exemplo. Os objetos de conhecimento como a leitura, escrita, a matemática, que já são recortados e didatizados pela escola, no Centro de Juventude transformam-se em jogos. Familiarizam-se e infantilizam-se os conteúdos para que as crianças não errem e também não se esforcem para aprender. Aquilo que para a escola é carência, aqui é entendido como doença e fragilidade. Não exigir muito e não permitir o fracasso é o esforço do Centro de Juventude. Essas ações como estratégias políticas reforçam uma imagem de criança frágil, doente, impotente (transforma-se a infância perigosa na infância em perigo) e sobretudo fracassada. Reforçam aquilo que procuram evitar: o fracasso. O Centro de Juventude acaba atuando paralelamente à escola, às vezes buscando complementá-la, outras vezes substituindo-a, mas necessariamente acaba tendo que lidar com o que se convencionou chamar de “os fracassados” da escola ou com aqueles com que a escola não pode e não quer trabalhar. O Centro de Juventude é uma máquina de (re)captura em relação à máquina de exclusão em que se transformou a escola. A proposta do Centro de Juventude assemelha-se à proposta illichiana acerca das redes de ensino: os professores desaparecem dando lugar a instrutores ou aprendizes (o que diferencia um monitor das crianças é sua maior experiência de vida, e a escolaridade um pouco maior do que a das crianças). Recorrem-se à certos apoios: às pessoas mais idosas podem ser consultoras sobre que espécie de aptidão aprender, que métodos seguir, que tipo de companheiros procurar..., e para indicar questões que devem ser discutidas entre os companheiros e para cobrir as deficiências das respostas dadas. (Illich 1973, p.131) Aprender não se distingue de ensinar nesta estrutura igualitária, todos conquistarão a educação partilhando-a: “um modelo é uma pessoa que tenha habilidade e está disposta a demonstrá-la na prática” (Illich 1973, p. 145). A sociedade sem escola no seio e na (re)captura da sociedade escolar. Ao institucionalizar essa população, concentrando-a, o Estado cria, involuntariamente condições para um agrupamento e acaba possibilitando determinados trabalhos. O ponto de partida para se (re)pensar um trabalho com as crianças e adolescentes do Centro de Juventude exige a superação dos conteúdos (e as práticas) embutidos nesse “ser fracasso”. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS No percurso deste trabalho tentei construir a cartografia de uma escola, buscando um outro olhar e escuta, em relação à repetência. O tema é antigo e permanece urgente, já que a escola tem se mostrado eficiente como máquina de exclusão. Identifiquei no interior da escola, um lugar, de onde pudesse, reconstruí-la: o do fracasso, o do retido. Quando me deparei com o fracasso, percebi que existia um lugar que parecia do mais-fracasso, o da menina repetente. O “zero” institucional. A partir daí procurei entender a escola com e através da menina repetente. Percebi que o encontro entre a menina e a repetência era marcado também por positividade, ou seja, a menina não é apenas falta, carência, ela produz, deseja e fala pela repetência. Falas silenciosas, tresloucadas, resistentes, solidárias, falas (que pela repetência) fazem com que muitos se debrucem sobre a escola. Como as meninas se movimentam no interior da escola, quais são as suas táticas, as suas trajetórias foi o que tentei reconstruir durante o trabalho. As ações das meninas, ações descodificantes que, na qualidade de táticas, por vezes arruinam o fazer da professora, levando todos para o lugar do fracasso, se dão por instantes, em momentos fugidios, invisíveis e são fluxos: de palavras, de idéias, de desejos. As meninas realizam coisas na escola por baixo das leis, por trás da instituição, recusando, parodiando-a, brincando com o terreno que lhe é imposto. Se parecem com fantasmas, pois não ocupam propriamente um lugar espacial contra o poder, são puro movimento. Para entender os movimentos das meninas penetrando nessas linhas de resistências, ataques e afirmação da escola descrevi situações, narrei histórias, pequenos fragmentos de ações que começam e nem sempre terminam, apenas se multiplicam. As histórias são inúmeras (de confronto, de fuga, de risos, de brincadeiras, de ironia e de erros) que aconteciam num tempo movidas pelas ocasiões e acasos, e na velocidade de um instante. Que enquanto cenas se desfaziam. Quando eu percebia um gesto, ele já não estava mais ali e não era mais nada. As meninas em suas práticas descodificantes, embaralhando todos os códigos, se constituíam em uma máquina de guerra. Para compreender esses movimentos das meninas não poderia fazê-lo a partir de categorias rígidas e fechadas, mas, deixando passar algo através da escrita, de um olhar e de uma escuta em relação a elas. Esses movimentos não se deixam codificar. Na qualidade de fluxos não podiam ser traduzidos, interpretados em significados ou significantes, mas continham sentidos, tentei uma certa sintonia e um partilhar com as meninas. Procurei subir e entrar no barco penetrando nas brechas das montanhas, a deriva. Tal qual a nau dos loucos descrita por Foucault na História da Loucura com suas passageiras por excelência, prisioneiras de sua própria partida (da passagem). Incidem hoje sobre a escola, com base no e através do repetente, vários saberes: biológico, sociológico, psicológico, pedagógico etc. A escola se apropria e entrelaça esses saberes e isso não tem significado, necessariamente, mais qualificação, mas sim, tem atribuído à repetência um caráter científico. A concepção de aprendizagem e de linguagem realizada por esta escola e pelas professoras (que também estão a elas submetidas: como produto e produtoras do fracasso) vai no sentido de reduzir a heterogeneidade de escrita, de gestos, de falas, de desejos, a um modelo único de aprendiz (e de fracassado). Padroniza-se um certo modo de se construir um tipo humano, uma força de trabalho eficiente para esta escola e sociedade. Na última parte do livro, a síndrome da exclusão e da captura, procuro analisar a maneira pela qual a instituição alarga sempre os seus horizontes, cria outros (outras instituições) e recoloca esses movimentos, essas linhas de fugas sob novas bases, as endurece para impedir as fugas. Deleuze diz que não há nenhuma posição de desejo contra a opressão, por mais minúscula que seja essa posição que não ponha em causa de vez em quando, o conjunto do sistema capitalista, e que contribua para o fazer fugir. Por fim, me esforcei para realizar um tipo de trabalho de escrita, de pensamento e escuta que se deixasse derivar num certo nomadismo, procurando compartilhar com as meninas, suas falas e ações, para que ecoem e se conectem com o exterior da escola. Que a ele se ligue diretamente para produzir efeitos. Acredito que as falas das meninas, que são a sinalização de um novo tipo de escola, reverberem e ecoem para que outros olhares e escutas possam ser produzidos. Por último escrevo sobre Kátia, que para mim foi uma espécie de síntese “da fracassada” e aquela que me fez ir ao encontro de uma positividade quase invisível na escola, a suavidade. A história de Kátia Desde a primeira vez em que vi Kátia nesta escola, tive vontade de ir narrando o seu percurso. Para mim ela de alguma forma concretizava o fracasso. Se o fracasso tivesse uma forma, escolheria Kátia para materializá-lo. Kátia era uma menina, com seus sete anos, recém chegada na escola, mas muito pequena, parecendo ter quatro ou cinco anos. Suas roupas estavam sempre impecavelmente limpas, suas botas pretas anunciando algum problema ortopédico e sustentava óculos tão grandes que pareciam servir como um esconderijo para o seu rosto. Nunca falou nada. Um dia, chorou com força e às vezes seus dentes apareciam com um lampejo de sorriso para suas colegas. Na sala de aula nenhum movimento, nenhum gesto, às vezes abaixava a cabeça na carteira e ali permanecia, uma estátua, um devir-estátua; e tamanha suavidade. Kátia era uma espécie de “café com leite” da classe, as professoras nada lhe ensinavam e pouco falavam com ela. No começo do ano as professoras demonstravam algum tipo de compaixão, no final do ano não havia mais esse sentimento e aparecia a raiva. Kátia era uma pedra, um obstáculo, não expressava nada. Começou o ano na sala da professora Eunice, onde esta lhe pedia para contornar a letra a, durante as quatro horas que ali permanecia; depois de quatro meses, com o remanejamento escolar, já que no ciclo básico não existe reprovação, Eunice que era a única professora efetiva da escola escolheu uma classe de crianças “mais fortes”, crianças que já haviam chegado na etapa necessária (uma família silábica qualquer) e Kátia mudou de sala. Começou novamente, novos amigos, nova professora e um novo silêncio. Nessa classe, passava os seus dias contornando a letra a, novamente. Um certo dia, por alguma razão, Kátia chorava com muita intensidade durante o recreio, próxima da sala dos professores. Eunice avisou Tuca (a professora de Kátia após o remanejamento) que esse era um problema para ela e que Eunice não sairia dali. Tuca disse que também não a atenderia, só quando terminasse o recreio iria até ela. Já não me lembro mais, mas no final do recreio Kátia não mais chorava, estava imóvel novamente. Passaram-se mais quatro meses e Kátia foi mandada para a classe especial. Ali permaneceu até o final do ano, onde a professora dava-lhe de lição contornar a letra a. Kátia percorreu todo o ano contornando a letra a. Os movimentos e ruídos de Kátia ocorriam no recreio. Curiosamente ela jamais ficou sozinha. As meninas, sempre e somente as meninas, passeavam com ela de mãos dadas por toda a escola, beijavam-lhe o rosto e lhe serviam o lanche que porventura estivessem comendo. Nunca ouvi um som sair de Kátia, mas ela falava com as meninas e as atraía. Uma vez bateu o sinal do final do recreio. Kátia pôs o dedo na boca, parecendo nervosa e permaneceu sentada no meio do corredor. Várias crianças aproximaram-se dela saindo de suas fileiras e afobadas diziam: “O recreio terminou.”. “O recreio acabou.” Kátia, como que paralisada, levantou-se. Em um certo dia durante o ano, Kátia movimentou-se pela primeira vez na sala, foi até o lixo, apontou o seu lápis e foi notada pela professora que começou a festejar. Nunca mais Kátia se movimentou. Kátia permaneceu um ano na escola, em uma clausura absoluta, sendo o recreio o único momento de repouso: podia ficar imóvel sem ser incomodada (então movimentava-se). Kátia era uma espécie de excrescência para esta escola; nos seus primeiros oito meses em uma escola, já estava na classe especial, lugar onde ficam depositadas as crianças que nada aprendem, permanecem ali até o dia em que consigam aprender alguma coisa que a escola reconhece como aprendizagem ou até que cresçam tanto e não caibam mais nestas carteiras e assim possam sair dali. A minha tristeza é que Kátia só tinha sete anos e era extremamente pequena. Nesta escola e com a Kátia conheci suavidades que jamais tinha me dado conta que poderiam existir: a solidariedade e o afeto das meninas que se aproximavam de Kátia e de sua imobilidade. BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE, José A. Guillon. “Panorama atual do movimento institucionalista”, in Gregório Barenblitt (coord.), O Inconsciente Institucional, Petrópolis, Vozes, 1984. APPLE, Michael. “Ensino e trabalho feminino: Uma análise comparativa da história e ideologia”, in Cadernos de Pesquisa, no 64, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, fev./1988. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família, 2a ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1978. BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado. O mito do amor materno, 2a ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985. BAKHTIN, Mikhail (Volochinon). Marxismo e filosofia da linguagem, São Paulo, Hucitec, 1986. BARTHES, Roland. “Aula de 2/1978 no College de France”, publicada na Folha de S. Paulo em 3/10/1987. BELOTTI, Elena Gianini. Educar para a submissão. 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