o turismo residencial e os resorts integrados no pólo

Transcrição

o turismo residencial e os resorts integrados no pólo
O TURISMO RESIDENCIAL E OS RESORTS INTEGRADOS NO PÓLO DE
DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO DO OESTE: ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO
Mafalda Patuleia
TURISMO NAS ILHAS CAYMAN: OS EFEITOS DA OCORRÊNCIA DE FURACÕES NA
ATIVIDADE TURÍSTICA LOCAL
Lucas Rebello de Oliveira • Eduardo Ferraz Martins • Raffaela Martins Medeiros
• João Carlos Soares de Mello
GESTIÓN FINANCEIRA DE UN NEGOCIO: EL PARTICULAR CASO DE LA EMPRESA
FAMILIAR EXTREMEÑA
Remedios Hernández-Linares • Cristina Barriuso • Ascensión Barroso • Tomás
M. Bañegil
DIAGNÓSTICO DO NÍVEL DE COMPETÊNCIAS DE LÍNGUA INGLESA E PERCEPÇÕES
DE CONHECIMENTOS DE UM GRUPO DE ALUNOS UNIVERSITÁRIOS
Ana Paula Correia • Filipa Perdigão Ribeiro
EROTICIZATION OF THE RELIGIOUS IN THE POETRY OF FLORBELA ESPANCA
Maria da Conceição Lopes Gordon
O INTÉRPRETE ESTÚPIDO
Rui Lopes
Dos Algarves n.º 20 – 2011
ISSN: 0873-7347
ÍNDICE
O TURISMO RESIDENCIAL E OS RESORTS INTEGRADOS NO PÓLO DE
DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO DO OESTE: ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO
Mafalda Patuleia
4 - 22
TURISMO NAS ILHAS CAYMAN: OS EFEITOS DA OCORRÊNCIA DE FURACÕES NA
ATIVIDADE TURÍSTICA LOCAL
Lucas Rebello de Oliveira • Eduardo Ferraz Martins • Raffaela Martins
Medeiros • João Carlos Soares de Mello
23 - 47
GESTIÓN FINANCEIRA DE UN NEGOCIO: EL PARTICULAR CASO DE LA EMPRESA
FAMILIAR EXTREMEÑA
Remedios Hernández-Linares • Cristina Barriuso • Ascensión Barroso • Tomás
M. Bañegil
48 - 63
DIAGNÓSTICO DO NÍVEL DE COMPETÊNCIAS DE LÍNGUA INGLESA E PERCEPÇÕES
DE CONHECIMENTOS DE UM GRUPO DE ALUNOS UNIVERSITÁRIOS
Ana Paula Correia • Filipa Perdigão Ribeiro
64 - 83
EROTICIZATION OF THE RELIGIOUS IN THE POETRY OF FLORBELA ESPANCA
Maria da Conceição Lopes Gordon
84 - 100
O INTÉRPRETE ESTÚPIDO
Rui Lopes
101 - 121
Dos Algarves n.º 20 – 2011 ISSN: 0873-7347
REDACÇÃO Nº 20 / EDITORIAL BOARD NO 20
DIRECTORA / EDITOR:
Filipa Perdigão
SUBDIRECTORA / CO-EDITOR:
Rita Baleiro
REDACÇÃO / EDITORIAL BOARD
Cristina Gonçalves • Ana Paula Correia
REVISORES LINGUÍSTICOS / LANGUAGE REVIEWERS
Ana Paula Correia • Olívia Hernandez • Cristina Firmino
CONCEPÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO SITE / WEB DESIGN
Carlos Sousa • Pedro Cascada
ESGHT / UALG
Universidade do Algarve
Campus da Penha
8000 FARO
Tel. +351 289 800 100
http://www.esght.ualg/
http://dosalgarves.com
ISSN: 0873-7347
INDEXAÇÃO / ABSTRACTING
DOAJ – Directory of Open Access Journals http://doaj.org/
Dos Algarves n.º 20 – 2011
ISSN: 0873-7347
O turismo residencial e os resorts integrados no pólo de
desenvolvimento turístico do oeste: estratégias de desenvolvimento
Mafalda Patuleia
Doutoranda FE - Universidade do Algarve • Instituto Superior de Novas Profissões
[email protected]
Resumo
Quanto maior for o conhecimento estratégico sobre os mercados, produtos e serviços,
processos e procedimentos, competências e legislação aplicável, mais fácil será a tomada de
decisões nas actividades diárias por parte das organizações responsáveis. No caso do Pólo de
Desenvolvimento Turístico do Oeste tem-se verificado uma orientação estratégica assente no
desenvolvimento do fenómeno do turismo residencial e dos resorts integrados associados à
implementação de produtos como o golfe, o touring cultural, a animação, entre outros, como
uma forma de resposta aos problemas impostos pela sazonalidade. No sentido de averiguar
estes pressupostos, o presente artigo pretende através de técnicas qualitativas baseadas na
recolha documental e na análise de conteúdo de vários planos de orientação estratégica,
verificar a visão organizacional desta entidade regional relativamente à implementação de
uma oferta diversificada e diferenciada neste destino turístico.
Palavras-chave: segundas residências; turismo residencial; resorts integrados e orientações
estratégicas.
Abstract
The greater the strategic knowledge is on markets, products, services, processes and
procedures, responsibilities and applicable legislation, the easier it will be for local
authorities and businesses to make decisions on their own daily activities. In the case of the
West Tourism Region there has been a strategic direction based on the development of the
phenomenon of the second homes and residential resorts associated with the implementation
of integrated products such as golf, cultural touring, entertainment, among others, as a
response to the problems posed by seasonality. Through content analysis, the aim of the
present article is to examine the organizational vision of this regional authority and, based on
the strategic regional guideline plans, to offer a structured implementation of other types of
tourism destination products.
Keywords: second homes; holiday homes; residential tourism; residential resorts; strategic
regional guideline plans.
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Dos Algarves nº20 - 2011
Página | 5
Introdução
Nos últimos anos, a actividade turística tem sofrido um conjunto de alterações
que a tornam num fenómeno cada vez mais complexo de analisar e de investigar.
Estas alterações podem estar relacionadas com as alterações de paradigma que se
verificam por parte da oferta ao se adequar a uma procura cada vez mais
diversificada.
Assiste-se a uma clara heterogeneidade nas motivações dos indivíduos nas
sociedades emissoras que se traduzem num verdadeiro “mosaico” de
comportamentos e de atitudes onde, muitas vezes se verificam implícitos valores
de ética e de sustentabilidade. Escolhe-se o rural, o verde, o ecoturismo, o
turismo ético, os passeios ao ar livre, o contacto com a natureza, as artes
tradicionais, as festas e outras expressões culturais tradicionais, o exotismo e a
autenticidade (Cavaco, 2008). Paralelamente existe uma consciencialização
generalizada de que é necessário recuperar os valores e os costumes perdidos em
consequência do progresso, marcado pelo consumismo e pelas consequências
negativas que afectam a saúde de cada um, assistindo-se a uma intensificação da
procura de produtos e serviços que promovam o bem-estar individual inerente a
novos estilos de vida. A resposta a esta procura tem sido colmatada com o
crescente desenvolvimento de produtos, como a segunda habitação, que se
apresenta como uma possível resposta a este tipo de necessidade. Para Huete
(2009), o turismo residencial tornou-se num elemento básico que engloba um
colectivo de indivíduos interessados em alcançar valores que lhes transmitam
bem-estar e qualidade de vida.
Por outro lado, a globalização e o processo de unificação da Europa através
da implementação da circulação da moeda única facilitou as transacções
comerciais e turísticas, assim como o incremento da oferta de residências para
uso turístico e como consequência um aumento da concorrência dos receptores
de turismo residencial. Ou seja, tudo pode apontar para um aumento das pessoas
que vão optar pela compra de uma segunda residência, sobretudo em lugares
Mafalda Patuleia
Página | 6
onde percebam que existem mais atractivos para o seu bem-estar (ibidem). Esta
mobilidade inter-residências é cada vez mais heterogénea na forma como se
apresenta, perante uma diversidade de motivações que a caracteriza. Estamos a
falar, por exemplo, de utilizadores nacionais, internacionais, activos ou
reformados, que utilizam estas residências em espaços como os resorts
integrados, onde existe uma gestão integrada de hotelaria, atracções, desporto,
entre outros.
No caso do Pólo de Desenvolvimento Turístico do Oeste as orientações
estratégicas para o desenvolvimento do turismo residencial em espaços como os
resorts integrados surgem associadas ao desenvolvimento de produtos turísticos,
como o golfe, o touring cultural, a animação, entre outros, como uma forma de
resposta aos problemas da sazonalidade.
1. Considerações sobre a segunda residência
A utilização da segunda residência como prática turística não é um fenómeno
recente (Cravidão, 1988). Há muito que a existência de casas de campo ou de
praia fazem parte da paisagem que nos rodeia. Possivelmente cada um de nós,
enquanto criança, tem no seu imaginário a casa onde outrora, na companhia dos
pais e/ou dos avós, se deslocava de “armas e bagagens” durante longos meses de
veraneio. Esses meses transformavam-se em tempos singulares e particulares que
se quereriam ausentes de práticas regulares vividas no dia-a-dia.
O desenvolvimento da segunda residência foi acompanhado pelo
amadurecimento das práticas de lazer e de turismo, que só a partir dos anos 60 do
século XX foram expressão de análise pelo volume atingido tornando-se num
alvo de estudo e reflexão pela aceitação que tiveram nas várias camadas sociais.
Vários são os factores que contribuíram para este desenvolvimento: o
crescimento económico que se registava em alguns países da Europa do Norte, a
institucionalização das férias pagas, o desenvolvimento dos transportes e das vias
Dos Algarves nº20 - 2011
Página | 7
de comunicação, o aumento da esperança de vida aliado, por um lado ao
envelhecimento da população nos países mais desenvolvidos e por outro, ao seu
poder de compra (Almeida, 2009).
Um dos primeiros obstáculos que se encontra ao estudar este fenómeno diz
respeito à definição que lhe devemos atribuir. Isto porque, quando se pensa na
prática turística em segundas residências pensa-se numa prática que, para alguns,
está no limiar do conceito de turismo. Por exemplo, Cohen (1974) conclui que os
proprietários de segunda habitação são considerados turistas marginais devido à
sua forma de procedimento e à sua falta de inovação no seu perfil de viajante. No
entanto, vários argumentos contrariam esta questão, justificados com base na
importância que o mesmo constitui para o crescimento do turismo
interno/doméstico, ou seja, se o ignorarmos significa negligenciar também dados
importantes para justificar os comportamentos dos turistas e as infra-estruturas
turísticas (Jaakson, 1986; Coppock, 1977).
Constata-se também, que a apresentação das várias reflexões sobre este
fenómeno espelha diferentes variáveis, que se encontram imbricadas nas
características do próprio conceito, como por exemplo: (1) o tipo de regime de
propriedade da habitação se é própria ou alugada; (2) o tipo de actividade que é
desenvolvida neste tipo de alojamento, uma vez que à partida estas casas se
destinam especialmente ao lazer e ao ócio, e o facto de aí se desenvolverem
actividades profissionais possibilita ou não classificá-las como residências
secundárias; (3) a distância a que fica da residência habitual; (4) o tempo de
permanência, ou seja, se é apenas para utilização de fim-de-semana ou mesmo
short break ou então, por um período mais lato como o período de férias; (5) e
por último se o tipo de alojamento movíveis e/ou amovíveis fazem parte ou não
desta classificação (Jaakson, 1986; Coppock, 1977; Mazón et al., 2008; Huete,
2009; Almeida, 2009).
O termo turismo residencial encerra em si alguma complexidade, existindo
autores que o denominam como casa de férias, casa de verão, casa de campo,
casa de fim-de-semana, segunda residência, residência secundária, turismo
Mafalda Patuleia
Página | 8
residencial, semi-migração, migração de verão, suburbanização sazonal, segunda
habitação, entre outros. No entanto podemos referir que este é um segmento onde
o turista utiliza durante a sua estada uma segunda residência, que pode estar
inserida num edifício ou condomínio privados ou então num conjunto turístico
(resort) (Almeida, 2009).
2. O turismo residencial e os resorts integrados
No estudo do turismo residencial, a primeira constatação reside no problema
conceptual do significado do mesmo dado às novas formas de mobilidade nas
sociedades modernas que se situam entre a mobilidade temporal e a migração
permanente (Bell e Ward, 2000; Williams e Hall, 2000). Se a definição de
turismo já imbrica um problema conceptual difícil de esclarecer, o entendimento
da questão semântica do turismo residencial é ainda bem mais complexo (Santos
e Costa, 2009). Se não vejamos, logo à partida a própria expressão em si é
contraditória porque se pressupõe que o alojamento turístico seja por si próprio
um alojamento temporário, e o alojamento residencial, por regra permanente.
Outros autores acrescentam que esta conjugação de palavras, que na sua natureza
apresenta alguma controvérsia, tornou-se generalizada e utilizada como marca
comercial ao serviço dos interesses dos promotores imobiliários e dos
organismos estatais, fazendo com que se qualifique como actividade turística, a
mera venda imobiliária de imóveis a não residentes (Mazón et al., 2008). No caso
da literatura anglo-saxónica a utilização da expressão “turismo residencial” é
muito escassa, sendo vulgarmente substituída pela expressão “second home
tourism” (Huete, 2009).
Em Portugal, nos últimos anos, a expansão da segunda residência deu lugar
ao conceito de turismo residencial que é actualmente analisado como um novo
paradigma no mercado imobiliário turístico (Almeida, 2009). A ideia é colocada,
pela primeira vez em Portugal, no Plano Estratégico Nacional de Turismo em
Dos Algarves nº20 - 2011
Página | 9
2007. O turismo residencial e os resorts integrados surgem, entre outros produtos
estratégicos, como um novo produto turístico, que pelo seu estudo diferenciado,
irá verificar-se que são dois universos de alojamento distintos na forma como se
apresentam.
Temos por um lado a utilização de segundas residências situadas em zonas
urbanas e/ou rurais, no litoral e/ou interior, como forma de turismo e de lazer, e
noutra perspectiva o universo dos resorts integrados que consiste em segundas
residências localizadas em empreendimentos turísticos que promovem um
variado conjunto de actividades e experiências com características específicas,
situados em espaços com continuidade territorial, planeados e submetidos a uma
gestão integrada (TP, 2007). Na tabela seguinte apresentam-se as principais
características de um resort integrado.
Tabela 1: Caracterização dos Resorts Integrados
O alojamento normalmente ultrapassa as 2.000 camas podendo atingir as
20.000.
Os resorts integrados destinam-se, normalmente, a segmentos de mercado com
Motivações
motivações pelos desportos náuticos, golfe, mice, gastronomia, entre outros.
O alojamento pode ser utilizado de forma exclusiva ou então para investimento,
Proprietários
colocando-o no mercado de arrendamento através de empresas especializadas.
Os resorts integrados oferecem uma panóplia de actividades que vão desde o
lazer, a estética e a animação. Estão inseridos num contexto onde predomina a
Experiência
qualidade, o respeito ambiental, a segurança, a sensação de exclusividade,
novas experiências e estados emocionais positivos.
Os resorts integrados devem garantir todas as condições de segurança, vistas
Condições
panorâmicas, eventos, paisagens variadas, oferta de lazer e serviços de
estruturais
restauração e serviço personalizado.
Encontram-se em ambiente urbano, periurbano, praia, rural, montanha, entre
Ambiente
outros.
envolvente
Alojamento Diversidade na tipologia, na categoria e no tipo de propriedade do alojamento.
Dimensão
Fonte: Elaboração própria a partir de PENT (TP, 2007), Huete (2009) e Almeida (2009).
Este plano estratégico acrescenta que Portugal tem um elevado potencial para
se desenvolver enquanto receptor do turismo residencial principalmente em
regiões como Alentejo, Algarve e Oeste. Assim o principal objectivo de Portugal
deverá ser focado num crescimento com qualidade e não em quantidade, não
Mafalda Patuleia
Página | 10
devendo por isso o turismo residencial ser confundido com negócio imobiliário.
O seu desenvolvimento deverá ter como base a qualificação e competitividade da
oferta, a excelência ambiental e urbanística, a formação dos recursos humanos, e
a dinâmica e modernização empresarial (TP, 2007).
Por outro lado, estes espaços turísticos devem reunir esforços para acrescentar
valor aos seus produtos, com base num sistema de experiências inovadoras que
envolvam a variedade, a singularidade, a qualidade, a sofisticação e a simbologia
aos clientes, mas sempre definido cuidadosamente tendo em conta os segmentos
de mercado a que se dirigem.
3. Os resorts integrados no pólo de desenvolvimento turístico do
oeste
A região do Oeste conhecida como “a terra de vinhedos e de mar” situada
entre o Oceano Atlântico e o maciço que se estende para Norte desde a serra do
Montejunto é, segundo o Plano Territorial de Desenvolvimento do Oeste (2008),
“uma região de extrema beleza natural delimitada, a Oeste, por uma extensa linha
de costa banhada pelo vigoroso oceano Atlântico, onde pontuam bonitas praias
de areia fina, imponentes e escarpadas arribas e locais de inigualável beleza
como as Berlengas, única reserva marítima do país, ou a Lagoa de Óbidos”.
É um território com identidade geográfica e socio-económica própria, que
abrange uma extensão de 2 220 Km2 caracterizada pela sua ruralidade assim
como pela singularidade das suas praias e termas e pela riqueza patrimonial dos
seus principais núcleos históricos.
Actualmente esta região é circunscrita pela NUT III Oeste e tem a nomeação
de Entidade Regional de Turismo do Oeste (ERTO), assim como a designação de
Turismo do Oeste abrangendo, actualmente, doze municípios são eles: Alenquer,
Arruda dos Vinhos, Bombarral, Cadaval, Caldas da Rainha, Lourinhã, Óbidos,
Peniche, Sobral de Monte Agraço, Torres Vedras, Alcobaça e Nazaré (ver mapa
Dos Algarves nº20 - 2011
Página | 11
1), que em colaboração com a administração central e local, tem como
objectivos, a prossecução de políticas do sector, a realização de estudos sobre a
sua região e a monitorização e a valorização da oferta que existe na região.
Mapa 1: Municípios do Pólo de Desenvolvimento Turístico do Oeste
Fonte: Site do Turismo do Oeste (2010)
No caso desta região a expansão de segundas residências atingiu, nos últimos
anos, um grande desenvolvimento. De acordo com os Censos de 2001, o
fenómeno da segunda habitação no Oeste cresceu 45% face a 1991, enquanto a
média nacional foi de 40% (Roca e Leitão, 2008). Para além disso o turismo
residencial e os resorts integrados são uma das referências no PENT (2007)
como sendo um molde de desenvolvimento para a referida região.
Esta crescente oferta de segundas residências inseridas nos resorts integrados
inclui também a oferta de hotéis, imobiliário turístico, actividades desportivas,
principalmente o golfe mas, também, a equitação, o ténis, bem como o comércio,
a restauração, o spa e os health clubs. Esses empreendimentos oferecem ainda
outros equipamentos e/ou serviços para aumentar a sua competitividade, entre
eles, os country clubs, os centros de congresso e as áreas agrícolas com cultivos
tradicionais. Fazem-se deles espaços onde se comercializam experiências únicas
Mafalda Patuleia
Página | 12
capazes de surpreender e de satisfazer as expectativas inerentes à qualidade, à
diferenciação e à afirmação da vertente do único (Cavaco, 2008).
Para Roca e Leitão (2008) a região do Oeste é o principal destino, depois do
Algarve, para quem quer ter uma segunda residência. Neste sentido é explicável a
existência desta oferta através dos complexos turísticos que já existem e que
estão projectados. Torna-se cada vez mais evidente que, de acordo com o
aumento e com a diversificação da procura implícita nas práticas turísticas é
necessária uma correcta planificação de futuras acções baseadas no real
conhecimento do comportamento e no perfil deste tipo de turista residencial quer
nacional quer estrangeiro, e na identificação das motivações que lhe estão
subjacentes. Os autores acrescentam, que boa parte do investimento em resorts
integrados é estrangeiro bem como o mercado de potenciais proprietários de
segundas residências nesses empreendimentos (ibidem).
Segundo o artigo publicado por Rowat (2010), a região do Oeste, ainda
apelidada pelos mercados externos como região da Costa de Prata, tem vindo a
ser apreciada pela beleza das suas praias e da sua natureza. Actualmente, existe
uma preferência pela compra de imóveis nesta região por pessoas que fogem da
massificação que atingiu, nos últimos anos, quase toda a região algarvia.
Segundo o autor existem dez motivos que contribuem para a compra de
propriedades na região do Oeste, são eles: (1) menor massificação no que
respeita ao desenvolvimento turístico, sendo que a compra é realizada com base
num destino onde estejam asseguradas as condições para um desenvolvimento
sustentável da região; (2) acessibilidades asseguradas pela construção da autoestrada A8 que garante uma boa mobilidade inter-regional; (3) binómio
tradicional/modernidade que se verifica pelas modernas construções que se criam
na região, como hospitais, bancos, comércio mantendo-se ao mesmo tempo o
espírito tradicional que a região sempre proporcionou a quem a visita; (4)
diversidade cultural assente na variedade de eventos que se realizam na região;
(5) viabilidade económica através da solidez do investimento; (6) existência de
opções na região que dão continuidade do investimento apesar do aumento da
Dos Algarves nº20 - 2011
procura;
(7)
grande
variedade
Página | 13
de
escolhas
que
dizem
respeito
à
animação/recreação com base em outdoor activities, como surf, pesca, golfe e
equitação; (8) diversificação e qualidade em produtos como a gastronomia e a
produção vitivinícola; (9) clima temperado com temperaturas que tornam
agradáveis os dias de Verão, contrariando as altas temperaturas que se fazem
sentir no sul do país; (10) por último, praias que conseguem manter a sua
naturalidade e a sua originalidade.
Perante a crescente implementação de projectos (ver tabela 1) torna-se cada
vez mais importante disponibilizar aos responsáveis, instrumentos que
coadjuvem as acções no sentido de planificar e orientar, de forma a evitar
situações de saturação como as que se vivem em Espanha, na região valenciana.
De acordo com Huete (2009) é imprescindível a planificação de futuras
actuações imobiliárias de forma racional e sustentável, assim como a
implementação de soluções que atenuem os problemas de integração e a relação
dos turistas com os autóctones desta região.
4. Orientações e planos estratégicos
De acordo com os estatutos enunciados no Diário da República, nº 4º da
Portaria Nº 1153/2008, de 13 de Outubro (PCM, 2008) cabe à entidade, cujo
nome se designa por Pólo de Desenvolvimento Turístico do Oeste, definir e
implementar a estratégia para o desenvolvimento turístico desta região. Esta
estratégia está assente em cinco planos estratégicos: (a) Plano Estratégico
Nacional de Turismo (TP, 2007); (b) Plano Regional de Ordenamento do
Território do Oeste e Vale do Tejo (CCDRLVT: 2009); (c) Programa Territorial
de Desenvolvimento do Oeste (AMO, 2008a); (d) Programa de Acção para os
Municípios do Oeste e Municípios da Lezíria do Tejo (AMO, 2008b); (e)
Programa do Quadro de Referência Estratégico Nacional - Centro (CE, 2007).
Todos estes planos citam a importância do fomento de actividades associadas ao
Mafalda Patuleia
Página | 14
turismo residencial e ao seu enquadramento territorial, assim como os respectivos
impactes.
Depois da verificação dos planos, a primeira referência que deve ser feita
prende-se com a abrangência territorial dos mesmos, ou seja, a maioria não se
dedica apenas à região em análise, mas também à região do Vale do Tejo. São
duas regiões contíguas com características próprias e individuais, mas que
totalizam um conjunto semelhante de estratégias devido ao seu estado de
desenvolvimento. Referimo-nos ao Plano Regional de Ordenamento do Território
do Oeste e Vale do Tejo (CCDRLVT, 2009), ao Programa de Acção para os
Municípios do Oeste e Municípios da Lezíria do Tejo (AMO, 2008b) e ao
Programa do Quadro de Referência Estratégico Nacional – Centro (CE, 2007).
Na perspectiva destes documentos estratégicos está implícita a ideia que a
região tem beneficiado com a expansão e valorização da agricultura, com o
reforço das actividades de armazenagem e logística, bem como das
acessibilidades, pela proximidade ao pólo de consumo e actividade económica da
capital. Por outro lado, na vertente do lazer, o Oeste e Vale do Tejo são regiões
com um forte potencial de procura que garante o desenvolvimento de produtos
turísticos e de lazer, de qualidade e muito diversificados assentes em recursos
regionais e nas identidades territoriais, marcadas pelas diferenciações históricas,
culturais e paisagísticas.
Este modelo territorial é sustentado pelo facto da região do Oeste estar
referida como Pólo de Desenvolvimento Turístico no PENT (TP, 2007). Esta
consagração traduz o reconhecimento inequívoco do potencial da região e da
intenção política em valorizar o conjunto de recursos existentes que a posicionam
como uma das regiões do país mais atractivas ao nível dos investimentos
turísticos (AMO, 2008a). Deste modo, salienta-se a importância de salvaguardar
a região das possíveis “tensões” que a possam afectar no decorrer do seu
desenvolvimento.
Os planos estratégicos PENT (TP, 2007), PROT OVT (CCDRLVT, 2009) e
PTDO (AMO, 2008a) referem o turismo residencial, os resorts integrados e as
Dos Algarves nº20 - 2011
Página | 15
actividades que lhe estão associadas, como produtos estratégicos sob a égide de
orientações e critérios que possam coligir exigências de integração e qualificação
territorial e ambiental, com uma ajustada flexibilização das localidades espaciais.
Para reforçar esta ideia, sublinha-se também a importância do touring cultural,
com base na diversidade dos centros históricos e monumentais da região, onde
em associação com a elaboração de rotas turísticas poderá ser valorizado o
conhecimento e o aproveitamento dos recursos existentes de forma a transformalos em atracções turísticas. Estas podem ser naturais, criadas pelo homem sem a
intenção de atrair visitantes, criadas com o fim de atrair visitantes (artificiais) ou
eventos especiais e mega eventos (Swarbrooke, 1995).
Para além dos produtos estratégicos como os resorts integrados e o touring
cultural e paisagístico, o produto golfe deve ser entendido como uma forma de
resposta a problemas de sazonalidade e a sua oferta deve concentrar-se na região
do litoral Oeste em conformidade com a implementação da oferta de resorts
integrados. Na tabela 2 pode verificar-se essa conjugação estratégica que existe
actualmente entre a criação de campos de golfe e os empreendimentos de resorts
integrados.
O turismo de golfe está associado a fluxos de turistas de valor acrescentado
em função do seu nível de rendimento, permitindo alcançar taxas de receita per
capita superiores à média. No que diz respeito à procura na Área Promocional de
Lisboa, onde se inclui a região do Oeste, apesar de o ano de 2002 ter tido um
crescimento no número de voltas realizadas, a taxa de ocupação dos campos de
golfe é inferior a 40%. A partir de 2004, a receita média por volta estagnou e
iniciou-se um processo descendente até aos dias de hoje (Moital e Dias, 2009).
Esta performance revela alguma preocupação com o crescimento do sector. Se a
expansão da procura é feita através do efeito do passa-a-palavra, torna-se cada
vez mais importante que os turistas se sintam satisfeitos com a experiência vivida
(ibidem). Neste sentido, retoma-se a ideia da necessidade de apresentar um
sistema sofisticado de actividades e experiências relacionadas com serviços
Mafalda Patuleia
Página | 16
complementares à prática em si mesma (e.g. escolas de desportos náuticos,
centros de wellness, academias de golfe, entre outros).
Tabela 2: Inventariação do Golfe Resorts na Região do Oeste
Óbidos
Óbidos
2008
1997
Nº
Buracos/
Golfe
18
18
Peniche
1996
9
Golden Eagle
Rio Maior
1994
36

Campo Real I e
II
Torres
Vedras
Torres
Vedras
2005
27

1963
18
Previsão de
construção
Nome do Resort
Localidade
Integrado
Bom Sucesso
Praia D´el Rey
Club de Golf do
Botado
Vimeiro
Inauguração
Imobiliário
residencial


Previsão de
construção
Cadeia Hoteleira
Hilton Bom Sucesso
Mariott Hotel
Previsão de
construção
Previsão de
construção
Campo Real Hotel –
Orizon
Previsão de
construção
Outros resorts integrados projectados
Quinta de
Abrigada
Royal Golf &
Spa
Quintas de
Óbidos
Pérola da Lagoa
Pinhal Atlântico
Golfe
Rainha Golf &
Spa
Falésia D´El
Rey
Sizandro Village
Resort
Quinta da
Charneca
Previsão de
construção
Previsão de
construção
Alenquer
-
18
Óbidos
-
18
Óbidos
-
-
-
Óbidos
-
9
Previsão de
construção
Alcobaça
-
18
-
Caldas da
Rainha
-
18
Óbidos
-
18
-
18
-
18
Torres
Vedras
Torres
Vedras
Previsão de
construção
Previsão de
construção
Previsão de
construção
-
Fonte: Elaboração própria a partir de elementos cedidos pela Entidade Regional de Turismo do Oeste
(2009), Federação Portuguesa de Golfe (2010), Associação de Turismo de Lisboa (2010) e PENT (TP,
2007).
De acordo com a oferta de campos de golfe que existe actualmente no Oeste o
PENT (2007) refere que, se existe uma forte dependência entre os mesmos (um
Dos Algarves nº20 - 2011
Página | 17
turista joga, em média, 3 a 4 campos por viagem), eles devem ser pontos de
informação e de venda dos outros campos que compõem a região, ou seja,
estamos perante as chamadas “cortesias” entre os campos de golfe de forma que
a oferta se torne fiável e consistente. Neste sentido, o Programa Territorial de
Desenvolvimento do Oeste (AMO, 2008a), elaborado pela Associação de
Municípios do Oeste e pelos seus municípios associados, refere que o produto
turismo residencial e resorts integrados são produtos estratégicos de interesse
para a região, mas deve estar sempre agregado ao turismo de golfe. Este turista
revela um poder de compra acima da média, os seus picos manifestam-se fora do
período de verão, combatem a sazonalidade, e arrastam um conjunto alargado de
actividades económicas como a restauração, a hotelaria, o turismo ou o
imobiliário.
Para este plano, o crescimento que se pretende para a região só pode ser
positivo se os efeitos forem assumidos e sentidos pela globalidade da região, ou
seja, quanto mais os resorts assumirem o modelo “aberto” maior é a circulação
de turistas (ibidem). Estas questões relacionadas com a mobilidade e o consumo
conduzem-nos ao efeito multiplicador que a actividade turística desencadeia. O
termo multiplicador é um dos conceitos económicos mais citados no estudo do
turismo. Baseia-se na noção de interdependência das empresas dentro de uma
determinada economia local, sendo que qualquer mudança que ocorra ao nível da
procura afectará não somente a empresa que produz esse bem/serviço, mas
também outros sectores que fornecem bens/serviços para a actividade, bem como
os fornecedores (Cooper et al., 2007).
Na análise do Programa Territorial de Desenvolvimento do Oeste (AMO,
2008a) constata-se que sua orientação se pauta por uma visão futurista e global
da realidade intermunicipal com base em reflexões e discussões aprofundadas. É
delineada a estratégia “Oeste 2020” assente num efectivo espaço de
oportunidades endógenas e duradouras, estruturadas pela dimensão crítica, a
qualidade, o equilíbrio social e territorial e a sustentabilidade das mudanças em
curso. É reconhecida a existência de uma panóplia de recursos como a paisagem,
Mafalda Patuleia
Página | 18
a gastronomia, os vinhos, o património natural e cultural, entre outros. Mas não
obstante esta enorme valorização potencial do turismo, este plano considera que
“o sector apresenta ainda um peso consideravelmente baixo face ao que já
assume no país, embora seja evidente o crescimento sustentável do sector guiado
pelo aumento da procura turística” (AMO, 2008: 13). As razões apresentadas
prendem-se, à luz do que acontece em outros destinos portugueses, com a fraca
internacionalização desta região enquanto destino turístico, com a forte
concentração nas origens (dependência de certos mercados emissores) e com a
forte concentração nas atracções turísticas (muito ligadas ao turismo de sol e
mar).
Em termos gerais o Programa de Acção para os Municípios do Oeste e
Municípios da Lezíria do Tejo para os anos de 2008-2017 (AMO, 2008b), não
propõe especificamente nenhuma área estratégica na actividade turística. Em
termos gerais valoriza-se o aproveitamento do espaço enquanto espaço de
valorização do património natural, histórico e arquitectónico, e enquanto novo
pólo emergente para a construção de uma estratégia nacional de actividade
turística. São referidos apenas os projectos estruturantes que servem de base ao
desenvolvimento da região e que estão interligados com o crescimento do
turismo.
Estas orientações surgem com o intuito de atenuar as consequências que
advêm da deslocalização do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL) para o actual
Campo de Tiro de Alcochete. Como refere este programa de acção, resultante da
colaboração entre a Administração Central e Local, a principal motivação e a sua
implementação está relacionada com a vontade de encontrar sinergias que
promovam o encontro entre as políticas de ordenamento do território, de
desenvolvimento regional e de mobilidade e transportes, de forma a assegurar
uma coerência e racionalidade para a tomada de decisões, garantindo o aumento
da competitividade e da coesão do território em causa. Pretende-se que seja
delineado um conjunto de projectos estruturantes capazes de promover a
maximização dos investimentos já realizados na região devido à localização do
Dos Algarves nº20 - 2011
Página | 19
novo aeroporto na Ota. Refira-se que, do ponto de vista turístico, o PENT (TP,
2007) desvaloriza esta deslocalização do novo Aeroporto ao referir que “caso o
novo aeroporto se venha a instalar na Ota, ou em Alcochete, o pólo beneficiará
turisticamente; por outro lado, o seu desenvolvimento não está condicionado à
sua construção porque o pólo se encontra a uma distância relativamente curta do
aeroporto da Portela” (PENT, 2007: 13).
O turismo residencial e os resorts integrados caracteriza-se entre outras
razões, pela procura de destinos onde existam boas acessibilidades terrestres e
aéreas (Mazón et al., 2008) Se por um lado, é um segmento de mercado que
assume actualmente um papel importante para muitos destinos, porque originam
fluxos de procura durante todo o ano, não só permitindo uma sustentação de rotas
das companhias aéreas, assim como uma redução dos índices de sazonalidade
(Almeida, 2009), do ponto de vista das acessibilidades terrestres “o Oeste tem a
A8 como principal via de acesso, o que torna fácil chegar à região, contudo a
mobilidade intra-regional encontra-se comprometida pela insuficiência de eixos
transversais” (AMO, 2008: 10). Neste sentido temos uma complementaridade
entre as acessibilidades aéreas e terrestres que tornam o destino propício à visita
e à estada.
Por último é importante referir o Programa do Quadro de Referência
Estratégico Nacional – QREN 2007-2013 aprovado pela Comissão Europeia em
09/10/2007 pela Decisão C(2007) 4693. Este programa serve como apoio às
estratégias enunciadas nos outros planos de orientação estratégica revelando uma
sintonia na estrutura e no cumprimento de objectivos do mesmo com base no
financiamento elegível para a região do Centro.
Conclusão
A realização deste artigo tem como objectivo reflectir sobre a forma como se
quer desenvolver o turismo residencial e os resorts integrados na região do Oeste
Mafalda Patuleia
Página | 20
através de estratégias que se querem concertadas na actividade turística, de forma
a evitar situações que decorreram do desenvolvimento das segundas residências e
da sua extraordinária expansão, provocando em determinados destinos,
resultados menos positivos nos espaços litorais e rurais.
Muitas destas regiões debatem-se actualmente com problemas relacionados
com a degradação de carácter social, ambiental e económico, que ao se
relacionarem provocam resultados de carácter bastante complexo. Se por um
lado, a vivência da população local é alterada com a chegada de novos residentes,
por outro lado a excessiva dependência das economias locais, nomeadamente o
sector imobiliário, provoca a subvalorização do preço das habitações e o deficit
orçamental das comunidades locais.
As segundas residências dão origem a uma ocupação temporária e pouco
rotativa, ocorrendo apenas em períodos de férias, fins-de-semana e pontes,
fazendo com que, na maior parte do tempo os apartamentos se encontrem
desocupados não gerando qualquer contributo para o pressuposto efeito
multiplicador do turismo nas economias locais. Este pressuposto verifica-se pela
interdependência que existe entre as empresas locais e qualquer mudança que se
verifique nas despesas turísticas que produzirá uma mudança ao nível de
produção, rendimento familiar, emprego, receitas do governo e fluxos de moeda
estrangeira da economia. “Essas mudanças podem ser maiores, iguais ou menores
em relação ao valor da mudança nas despesas turísticas que as causou” (Cooper
et al.: 2003: 166). O desenvolvimento turístico deve ser mais racional onde a
construção residencial-turística deve ser acompanhada de oferta hoteleira, mais
dinâmica, geradora de riqueza e postos de trabalho durante todo o ano (Mazón et
al, 2008). Se analisarmos as zonas turísticas do mediterrâneo verificamos que
existe um desequilíbrio entre o alojamento hoteleiro e extra-hoteleiro, chegando
o primeiro a ter uma presença muito reduzida (ibidem). É o que alguns autores
apelidam de “triunfo do sector imobiliário turístico sobre o stricto sensu do
turismo” (Bote et al., 1999 in Mazón et al., 2008: 103). Neste sentido e através da
percepção do que correu mal noutros destinos turísticos, onde este produto
Dos Algarves nº20 - 2011
Página | 21
turístico foi desenvolvido, é importante que este crescimento assente em
estratégias bem definidas e concertadas entre todos os intervenientes. Entende-se
que é um produto a ser desenvolvido nesta região, mas ao mesmo devem ser
desenvolvidas outras actividades complementares como o golfe, os itinerários
turísticos, a animação, entre outros.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, C. (2009). Aeroportos e Turismo Residencial. Do conhecimento às Estratégias,
Tese de Doutoramento em Turismo no Departamento de Economia, Gestão e Engenharia
Industrial da Universidade de Aveiro.
AMO (2008a). Programa Territorial de Desenvolvimento do Oeste 2008-2013, Óbidos:
Associação de Municípios do Oeste.
AMO (2008b). Programa de Acção para os Municípios do Oeste e Municípios da Lezíria do
Tejo 2008-2017, Óbidos: Associação de Municípios do Oeste.
BELL, M. e WARD, G. (2000). “Comparing temporary mobility with permanent migration”, in
Tourism Geographies, nº 2 (1).
CAVACO, C. (2008). “Turismo de Saúde e Bem-estar” in Actas do I Seminário sobre Turismo
e Planeamento do Território, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa,
pp.19-64.
CCDRLVT (2009). Programa Regional de Ordenamento do Território do Oeste e Vale do Tejo
2008-2013, Lisboa: Comissão Territorial de Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale
do Tejo.
CE (2007). Programa do Quadro de Referência Estratégico Nacional – QREN 2007-2013,
aprovado pela Comissão Europeia em 09/10/2007 pela Decisão C(2007) 4693.
COHEN, E. (1974). “Who is a Tourist? A Conceptual Clarification” in Sociological Review, 22
(4), 527-555.
COOPER, C., FLETCHER, J., WANHILL, S., GILBERT, D. e SHEPHERD, R. (2003).
Turismo, Princípios e Práticas, 2ª Edição, São Paulo: Bookman.
COOPER, C., FLETCHER, J., WANHILL, S., GILBERT, D. e SHEPHERD, R. (2007).
Turismo, Princípios e Práticas, 3ª Edição, São Paulo: Bookman.
COPPOCK, J.T. (1977). “Social Implications of Second Homes in Mid-and North Walles”, in
Second Homes: curse or blessing?, J.T. Coppock (ed.), Oxford: Pergamon, pp.147-154.
CORBIN A. (2001). História dos tempos livres, Lisboa: Editorial Teorema.
CRAVIDÃO, F. D. (1988). A residência secundária da burguesia de Coimbra, Prova
Complementar de Doutoramento em Geografia Humana, Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra.
HUETE, R. (2009). Turistas que llegan para quedarse – Motivos para el traslado residencial
en el Mediterráneo espanhol, Dissertação de Doutoramento na Universidade de Alicante,
Departamento de Sociologia I y Teoria de la Educación.
JAAKSON, R. (1986). “Second-home domestic tourism”, in Annals of Tourism Research, nº 13,
pp. 357-391.
MAZÓN, T., HUETE, R. e MANTECÓN, A. (2008). “De qué hablamos cuando hablamos de
turismo residencial?” in Cuadernos de Turismo da Universidade de Alicante, nº22, pp.101121.
Mafalda Patuleia
Página | 22
MOITAL, M. e DIAS, R. (2009). Determinantes da satisfação do turista de golfe em Lisboa:
uma comparação entre britânicos e nórdicos, in III Congresso Internacional de Turismo de
Leiria e Oeste, no Instituto Politécnico de Leiria.
PCM (2008). “Estatutos da entidade regional de turismo do pólo de desenvolvimento turístico
do oeste”, in Diário da Republica, nº 4º da Portaria Nº 1153/2008, de 13 de Outubro.
M. e LEITÃO, N. (2008). Segundas residências em meio rural: o caso da região Oeste,
Portugal, http://tercud.ulusofona.pt/Publicacoes/2008/com-P2-07.pdf (consultado a 07.09.
2010).
ROWAT D. (2010). Top tem reasons to purchase property in the silver coast region in
Newsregion, www. newsregion.com, (consultado a 06.01. 2010).
SANTOS R. e COSTA C. (2009). La segunda residência y su relación com el alojamiento
turístico en Portugal, in T. Mazón, R. Huete e A. Mantecón (eds) Turismo, urbanización y
estilos de vida: Las nuevas formas de movilidad residencial. Barcelona: Icaria, pp. 79-96.
SWARBROOKE, J. (1995). The Development and Management of Visitor Attractions, Oxford:
Butterworth-Heinemann.
TURISMO DO OESTE (2010). Municípios do Pólo de Desenvolvimento Turístico do Oeste,
www.rt-oeste.pt, (consultado a 29.09.2010).
TURISMO DE PORTUGAL (2007). Plano Estratégico Nacional de Turismo, Lisboa: MEI.
WILLIAMS, A. e HALL, M. (2000). “Tourism and migration: new relationships between
production and consumption” in Tourism Geographies, nº 2, pp.5-27.
MAFALDA DE ALMEIDA SERRA PATULEIA é docente no Instituto de Novas Profissões (INP),
onde lecciona Estudos Turísticos e Sociologia do Turismo e do Lazer. É coordenadora da
Licenciatura em Turismo no INP, da Licenciatura em Gestão Hoteleira no ISCAD e é membro
do Conselho Pedagógico do INP. Licenciou-se em Turismo no INP e é mestre pelo ISCTE –
IUL em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação. É actualmente doutoranda em
Turismo na UALG.
Submetido: Setembro 2010
Aceite: Fevereiro 2011
Turismo nas Ilhas Cayman: os efeitos da ocorrência de furacões na
atividade turística local
Lucas Rebello de Oliveira • Eduardo Ferraz Martins • Raffaela Martins Medeiros • João
Carlos Soares de Mello
UFF, Universidade Federal Fluminense
[email protected][email protected][email protected][email protected]
Resumo
Este artigo faz uma abordagem acerca do desenvolvimento e dos impactos naturais que
influenciam a indústria do turismo, especificamente sobre as atividades turísticas nas
Ilhas Cayman. Foi realizada uma pesquisa literária nas principais publicações sobre o
tema, e os dados mais relevantes estão apresentados na forma de gráficos e tabelas que
demonstram evoluções, desde o ano 2000, no comportamento de dados relacionados à
ocupação das ilhas, disponibilidade de leitos, e tipos de chegada à região.
Em paralelo, foi feita uma análise sobre a ocorrência de furacões na região, e os efeitos
destes sobre as atividades turísticas. São apresentadas diversas análises sobre as
conseqüências de tais fenômenos naturais sobre as taxas de chegada ao local, e
especialmente, a associação entre os graus de intensidade dos furacões e os diferentes
impactos sobre toda a região alvo desta pesquisa.
Palavras-chave: turismo; Ilhas Cayman; furacão.
Abstract
This paper elaborates an approach about the development and the natural impacts that
affect the tourism industry, specifically in the Cayman Islands. The literature review is
based in major publications on the subject, and the most relevant data are presented as
graphs and tables that show developments, since 2000, the behavior of data related to the
occupation of the islands, bed availability, and types arrival to the region. In parallel, an
analysis was made on the occurrence of hurricanes in the region and their effect on
tourism activities. Are given several analysis on the consequences of such natural
phenomena on the rates of arrival on site, and especially, the association between the
degree of intensity of hurricanes and the different impacts on the entire target region of
this research.
Keywords: tourism; Cayman Islands; hurricane.
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
L.R. Oliveira • E.F. Martins • R.M. Medeiros •J.C.S. de Mello
Página | 24
1. Introdução1
Ao longo das décadas, o turismo tem experimentado um crescimento
contínuo e de profunda diversificação tornando-se um dos setores com
crescimento econômico mais acelerado em todo o mundo. Esta propagação
global do turismo em países industrializados e desenvolvidos tem produzido
benefícios relacionados à economia e empregabilidade em diversos outros
setores, desde construção e agricultura a telecomunicações (WTO, 2010). Entre
os anos de 1950 e 2005, as chegadas turísticas internacionais aumentaram a uma
taxa anual de 6,5%, crescendo de 25 a 806 milhões de viajantes. Além disso,
enquanto em 1950 os 15 melhores destinos absorviam 88% das chegadas
internacionais, em 1970 a proporção era de 75%, diminuindo para 57% em 2005,
o que reflete a emergência de novos destinos, muitos deles em países em
desenvolvimento. Em 2020, estima-se que as chegadas internacionais irão
superar 1,5 bilhões de pessoas (WTO, 2010). Nesse contexto, percebe-se que
algumas nações já definiram o turismo como uma prioridade há alguns anos,
entre as quais se destacam países mediterrâneos, países caribenhos, México e
EUA. Dessa forma, nota-se uma transformação significativa, através da qual o
mundo como um todo começa a visualizar a importância do turismo como meio
de desenvolvimento econômico e inclusão social (CAMPOS, 2005). Nesses
locais, movidos pela indústria de turismo, o custo de ignorar a mudança climática
pode ser mais alto do que o de combatê-la. Esse é o caso das Ilhas Cayman, que
tem no turismo a principal fonte de receita, compondo cerca de 70% do Produto
Interno Bruto (PIB). Reconhecida por ter sido um paraíso fiscal, as Ilhas Cayman
fazem parte do Reino Unido, estando localizadas entre Cuba e Jamaica, e sendo
composta por hotéis de luxo e praias intocadas.
1
A redacção deste artigo obedece à variedade do Português do Brasil.
Dos Algarves n.º20-2011
P á g i n a | 25
Figura 1: Localização das Ilhas Cayman
Fonte: www.worldlicenseplates.com/world/CA_CAYM.html
Esse conjunto, que reúne as ilhas Grand Cayman, Cayman Brac e Little
Cayman, com aproximadamente 260 km² de extensão, possui as maiores fontes
de renda relacionadas aos serviços financeiros e de turismo, sendo este último
iniciado por volta de 1957, sob o pioneirismo da indústria de mergulho no
Caribe. Com o passar dos anos, a atividade turística foi intensificada e
atualmente, cerca de 2 milhões de visitantes chegam anualmente ao local. O
resultado dessa crescente atividade é a pedra angular da transformação do
território, altamente dependente da atividade pesqueira, no destino de turismo
luxuoso e centro bancário sofisticado, onde a população apresenta a mais elevada
renda per capita da região. Em meio ao cenário exposto, este trabalho tem por
objetivo a realização de um estudo sobre o impacto de furacões na indústria do
turismo nas Ilhas Cayman, e análise de índices e indicadores referente à atividade
turística na região.
2. Referencial teórico
2.1. A influência dos fenômenos naturais na atividade turística
Atualmente existe uma série de dificuldades à realização da atividade
turística. Dentre elas destacam-se o terrorismo, conforme estudo realizado por
Sönmez (1999), eventos climáticos e oscilações na economia mundial. Burrus Jr
L.R. Oliveira • E.F. Martins • R.M. Medeiros •J.C.S. de Mello
Página | 26
(2002) discute como furacões de baixa categoria afetam operações dos mais
variados seguimentos. Dwyer et al. (2004) aborda como o turismo deve ser
avaliado sob a ótica de atividade econômica, o que muitas vezes é de difícil
mensuração.
Quando se trata de uma área turística sujeita a fenômenos naturais, muitos
fatores devem ser discutidos para que se obtenha uma compreensão racional dos
problemas. Especificamente para as Ilhas Cayman, Fankhauser et al. (1999) e
Keeney e McDaniels (2001), recomendam a incorporação de ativos de risco
climático para o planejamento e estratégias de desenvolvimento, gestão de planos
de crescimento para equilibrar a conservação ambiental e o desenvolvimento
econômico, proteção do ambiente natural de degradação; planos de contingência
global no caso de catástrofes naturais e artificiais, a adoção de abordagens de
mitigação de desastres.
Tompkins (2005) analisou como deve ser a distribuição de responsabilidades
entre governo e população em momentos de crise, de modo a minimizar o
impacto de eventos naturais de grande porte, concluindo que o gerenciamento
dos riscos do clima é um desafio para todas as ilhas de pequeno porte e que o
papel do governo na gestão dos riscos é, em parte, para conduzir as mudanças
através do comando, mas principalmente para incentivar ou apoiar o
comportamento adaptativo dos membros individuais da sociedade e do setor
privado
Para Pelling e Uitto (2001), existe uma inter-relação íntima do crescimento
econômico e a saúde do ecossistema em pequenas ilhas, o que significa que altos
níveis de incerteza sobre a direção das ondas e do nível do mar, as taxas de
precipitação e tempestades possam ter consequências significativas para a
economia e o meio ambiente.
Dos Algarves n.º20-2011
P á g i n a | 27
2.2. Abordagem sobre características e intensidade dos furacões
O estudo dos furacões ocorre desde o final do século XIV. De acordo com a
definição do INPE, um furacão é um ciclone tropical que se tornou muito intenso
com ventos girando no sentido horário no Hemisfério Sul e em sentido antihorário no Hemisfério Norte ao redor de um centro de baixa pressão.
Normalmente, bem no centro do furacão há uma região sem nuvens e com ventos
calmos, chamada de olho do furacão. Nesta região, há movimentos de ar
descendentes, ao lado de uma grande área circular de centenas de quilômetros
com vigorosos movimentos ascendentes do ar, o que provoca formação de
nuvens e muita chuva.
Além disso, há também várias outras formas de ciclones, como os ciclones
extra-tropicais, onde também os ventos giram em torno de um centro de baixa
pressão, mas os processos físicos de formação e manutenção são muito distintos
daqueles que atuam no furacão. Normalmente, os ciclones tropicais se formam
quando um centro de baixa pressão viajando sobre oceanos tropicais encontra
águas com temperaturas acima de 26ºC. Nesse ponto, aumenta a evaporação da
superfície do oceano e o ar úmido ascendendo próximo ao centro esfria e
formam-se nuvens com mais de 8 a 10 km de altura.
Quando o vapor d'água se condensa nas gotículas de chuva, libera o calor
latente de condensação devido à mudança de fase da água. Esse calor liberado
aquece o ar, que sobe ainda mais e faz com que a pressão atmosférica baixe mais
no centro do sistema. Com a diminuição da pressão, mais ar circundante é
deslocado em direção ao centro do sistema e o sistema se realimenta disso para
continuar a se intensificar. Quanto mais baixa a pressão em seu centro, mais
fortes serão os ventos ao seu redor, tendo que estar acima de 119 km/hora para
ser classificado como furacão.
Em seu trabalho, Dias (2006) apresenta uma descrição um pouco mais
detalhada para cada categoria de furacão:
L.R. Oliveira • E.F. Martins • R.M. Medeiros •J.C.S. de Mello
Página | 28
O furacão F0, também classificável como tempestade tropical, possui
velocidades de 65 a 120 km/h. Pode causar danos leves: problemas em chaminés,
galhos e árvores quebrados, árvores de raízes rasas são arrancadas, danos em
cartazes. Já o furacão F1 possui velocidades entre 120 e 180 km/h, e pode causar
danos moderados: o limite inferior é a velocidade em que ocorrem
destelhamentos, e veículos grandes, como caminhões, são derrubados;
automóveis em movimento são desviados para fora das estradas.
Os furacões F2 apresentam velocidades de 180 a 250 km/h, causam danos
consideráveis como o destelhamento completo de casas, queda de grandes
árvores, e fazem com que objetos leves se transformam potencialmente perigosos
podendo ser lançados a grandes distancias. O furacão F3 apresenta velocidades
de 250 a 330 km/h, e já causa danos severos como derrubada de telhados e
paredes; trens descarrilados e tombados, maioria das árvores arrancadas, carros
pesados levantados do chão e atirados; o segundo mais devastador é o F4, cujas
velocidades variam de 330 a 420 km/h, e seus danos são devastadores: casas
totalmente demolidas, estruturas com fundações frágeis atiradas a alguma
distância, carros atirados, grandes objetos ―transformados em mísseis‖. Todavia,
ainda há um tipo mais impactante, o F5, no qual as velocidades encontram-se
acima de 420 km/h. Os danos causados por eventos deste tipo são catastróficos:
casas arrancadas de suas fundações e atiradas a distâncias consideráveis, carros
transformados em mísseis e atirados a distâncias superiores a 100 m, árvores
arrasadas, ocorrência de fenômenos incríveis.
Devido a possibilidade de tais eventos ocorrerem uma série de modelos
foram criados, na busca de aumentar a previsibilidade tanto para a indústria,
quanto para a população poder evacuar a área de forma ordenada. Para Prideauxa
(2003), os atuais modelos de previsão não são robustos o suficiente para evitar
catástrofes, devendo-se então focar em novos modelos, que usem parâmetros
mais adequados para que a previsibilidade dos eventos seja maior e que áreas
dependentes deste tipo de informação sejam menos afetadas. Para Dias (2006),
no caso do furacão, a possibilidade de previsão é bem maior e já há considerável
Dos Algarves n.º20-2011
P á g i n a | 29
habilidade em prever a transição de ciclones para furacão assim como da
trajetória seguida por esses sistemas.
No entanto, o autor ressalta que as incertezas na trajetória ainda são da ordem
de 50 a 100 quilômetros para previsões com antecedência de 48 horas, o que
ainda é considerado grande: significa que os ventos extremos podem atingir uma
ou outra região com impactos muito localizados. A ocorrência de furacões pode
ser inicialmente identificada com antecedência de vários dias, até uma semana.
Outro exemplo de utilização de modelos para avaliação de furacões foi
apresentado por Aguirre (1991), no qual foi avaliada a evacuação de hotéis em
Cancun durante o furacão Gilbert. No entanto, não foi encontrado um estudo que
buscasse relacionar a quantidade de turistas com a quantidade e a categoria de
furacões na região do Caribe.
3. Análise de dados
O Caribe insular é uma das principais regiões no mundo que mais depende do
turismo, com uma contribuição na economia estimada em 14,8% do PIB da
região e contribuindo para aproximadamente 2,4 milhões de empregos. Segundo
estudo do ECLAC (2005), o turismo no Caribe possui três componentes
principais: em Terra onde turistas passam a noite em terra; (2) Turismo
Desportivo, onde os turistas passam a noite em um iate, e (3) Embarcação de
Turismo de Cruzeiro, onde o turista permanece em um navio de cruzeiro.
Nas Ilhas Cayman, foram observadas ocorrências especialmente dos tipos (1)
e (3), sendo que, nos últimos anos a representatividade da entrada através de
cruzeiros apresentou um aumento de cerca de 15% em relação ao ano 2000.
Além disso, esse tipo de atividade turística tem demonstrado certa robustez e
crescimento, dado que o primeiro quadrimestre de 2010 já apresenta valores
referentes a 44% dos registrados em 2009.
L.R. Oliveira • E.F. Martins • R.M. Medeiros •J.C.S. de Mello
Página | 30
Tabela 1: Quantidade anual de chegada de turistas em Cayman
Foi percebido que o turismo gerado pelos cruzeiros tem se mostrado bastante
significativo, e representa em média, desde o ano 2000, cerca de 84% de todas as
chegadas, como pode ser visto no gráfico abaixo.
Gráfico 1: Tipos de chegada em Cayman
Nesse estudo, serão feitas duas análises distintas de dados referentes ao
turismo local, conforme mostrado a seguir:
(a) Impacto dos Furacões na Quantidade de Turistas
i. Furacões em Cayman;
ii. Furacões em áreas próximas;
iii. Estimativa do impacto dos furacões.
(b) Ocupação da Região
i. Disponibilidade de Vagas;
Dos Algarves n.º20-2011
P á g i n a | 31
ii. Ocupação dos hotéis/apartamentos;
iii. Duração da estadia.
3.1. Análise do impacto dos furacões na entrada de turistas em Cayman
O fluxo de turismo na região apresenta similaridade ao longo dos anos. E
observa-se que o período compreendido entre Novembro e Maio é marcado pela
grande presença de turistas. Um fato a ser destacado é que apesar deste período
não abranger a época de verão do hemisfério norte (abrange o fim da primavera,
inverno e outono), o maior movimento no período se deve basicamente a dois
fatores: o primeiro é devido ao comportamento, principalmente do turista
americano, que busca fugir do inverno extremamente rigoroso de seu país
movendo-se para regiões de temperatura moderada, e a segunda causa é a
temporada de furacões que se concentra no período de julho a novembro. Tais
fatos podem ser analisados no gráfico 2, que demonstra a evolução do turismo ao
longo dos anos e meses.
Gráfico 2: Entrada de turistas em Cayman
L.R. Oliveira • E.F. Martins • R.M. Medeiros •J.C.S. de Mello
Página | 32
Para o aprofundamento do estudo foram identificados os furacões ocorridos
nas Ilhas Cayman e em áreas próximas que compõe a rota dos cruzeiros que
levam turistas a ilha. A figura abaixo permite visualizar o mapa do Caribe e
visualizar os locais analisados além das Ilhas Cayman. Para determinar estes
locais foram avaliados quais são os cruzeiros disponíveis no ano de 2010 e as
rotas que a maior parte deles segue, sendo as áreas assinaladas as que mais têm
suas rotas relacionadas a paradas em Cayman.
Figura 2: Áreas do Caribe analisadas
Fonte: http://stormcarib.com/climatology/WCAR_map_bathy.htm
As Ilhas Cayman, assinaladas ao centro tiveram um total de 7 furacões na
última década. Esses furacões são apresentados na tabela 3, na qual podem ser
vistos também informações como nome, ano em que ocorreu, mês, ilha atingida,
e categoria.
Na tabela 2 é apresentada a legenda de cores utilizada para efetuar a
marcação dos furacões tanto nas tabelas seguintes, quanto nas figuras e apoio a
analise. Na tabela 4 são apresentados os dados referentes à quantidade de turistas
que visitaram as ilhas, estando assinalados com uma linha simples os meses em
Dos Algarves n.º20-2011
P á g i n a | 33
que houve um furacão ou com linha dupla os meses em que houve 2 ou mais
eventos.
Tabela 2: Categorização dos furacões
Legenda
Categoria
TS
F1
F2
F3
F4
F5
Tabela 3: Furacões ocorridos em Cayman no período de 2000 a 2009
Como esperado, percebe-se que a quantidade de furacões de categoria 4 e 5
são menores do que a dos demais furacões. No entanto, uma vez que ocorrem,
tais eventos causam um impacto muito grande conforme será percebido através
da leitura da tabela abaixo.
L.R. Oliveira • E.F. Martins • R.M. Medeiros •J.C.S. de Mello
Página | 34
Tabela 4: Quantidade de turistas em Cayman no período de 2000 a 2009
No mês de setembro de 2002 houve uma redução significativa em relação à
quantidade média de turistas devido ao fato de terem ocorrido tanto uma
tempestade tropical (TS), também denominado furacão F0, e um furacão de
categoria 1, sendo que este último, por ter ocorrido no dia 30 do mês em questão
em uma ilha e no dia 1º de outubro em outra, aparentemente causou impacto na
quantidade de turistas de ambos os meses.
O ano de 2004 foi o mais marcante para a ilha devido ao furacão Ivan. Este
furacão de categoria 5, afetou a maior parte de Grand Cayman. Como
conseqüência ocorreu um forte declínio na quantidade de turistas em setembro e
outubro. Alguns estragos foram observados como, por exemplo, o fechamento do
porto, fazendo com a quantidade de turista fosse inferior aos 2 mil visitantes em
outubro.
Em 2008, os meses mais afetados foram agosto e novembro. Em agosto
houve uma tempestade tropical, denominada Fay e o Furacão Gustav no final do
mês, que gerou uma redução na atividade turística em setembro. Em novembro
houve o furacão Paloma, com categoria 4 em Litlle Cayman e Cayman Brac e
categoria 3 em Grand Cayman. Por não ter atingido Grand Cayman com a
mesma intensidade das outras ilhas, o impacto percebido não foi tão grande,
embora possa ser percebido um decréscimo na quantidade de turistas. Além
disso, vale ressaltar o impacto que este evento teve em Cayman Brac, que teve
sua quantidade de hotéis e apartamentos disponíveis para atividade turística
reduzidas a zero.
Dos Algarves n.º20-2011
P á g i n a | 35
A partir desses dados, como era esperado, foi possível perceber que nos anos
nos quais não ocorreram grandes tempestades, a quantidade de turistas
apresentou um resultado superior ao dos demais, e que nos anos em que houve
furacões de categoria 4 ou 5, a média de turistas diminuiu em mais de 500 mil, o
que é um dado de grande representatividade.
Na tabela 5 são apresentados os mesmos dados apresentados na tabela 3,
porém referentes as demais localidades analisadas mencionadas na figura 2.
Tabela 5: Furacões ocorridos em áreas próximas a Cayman no período de 2000 a 2009
L.R. Oliveira • E.F. Martins • R.M. Medeiros •J.C.S. de Mello
Página | 36
Tabela 6: Quantidade de turistas em áreas próximas à Cayman no período de 2000 a 2009
No ano 2000 houve apenas um furacão em áreas próximas a Cayman, porém
o comportamento neste ano apresentava resultados ruins, por isso não foi
possível avaliar se a quantidade de turistas em outubro foi baixa devido ao
furacão Keith, de categoria 4. Em 2001, os meses de agosto, setembro e outubro
apresentaram um resultado ruim, no entanto somente o de agosto pode ser
relacionado a eventos climáticos, pois a queda abrupta de setembro e outubro,
possivelmente é devida ao ataque sofrido em 11 de setembro, o qual criou
sensação de insegurança na população americana, que é a maior fonte de turismo
para as Ilhas.
Com único furacão assinalado em 2002, o fato da tempestade Isidore ter
atingido Cancun como um furacão de categoria 3 possivelmente afetou o fluxo
de cruzeiros, por ser Cancun um dos pontos anteriores ao de Grand Cayman. Já a
tempestade Claudette, ocorrida em julho de 2003, aparentemente não impactou a
atividade turística em Cayman, conforme pode ser visto na tabela acima. Em
2004 houve impacto dos mesmos furacões que arrasaram Cayman, com destaque
para o Ivan.
Com os dados do ano de 2005 é possível avaliar o impacto que tempestades
tropicais em áreas próximas a Cayman podem ter na atividade turística da ilha.
Neste ano, o mês de julho foi marcado por dois furacões, o Dennis e o Emilly, de
categorias 3 e 4, respectivamente. O fato dos furacões terem ocorrido na região, a
Dos Algarves n.º20-2011
P á g i n a | 37
qual é o ponto de destino anterior a Grand Cayman, possivelmente contribuiu
para a baixa quantidade de turistas no período .
Já as tempestades ocorridas em agosto e setembro, Rita e Katrina
respectivamente, aparentemente não causaram grandes impactos no turismo em
Cayman, embora se saiba que o último causou danos de grandes proporções em
Nova Orleans, nos Estados Unidos. Ainda em 2005, a tempestade Wilma atingiu
Cancun e Cozumel com categoria 4, e possivelmente foi a causa da baixa
quantidade de turistas no mês de outubro.
Em 2007 o único evento identificado foi o furacão Dean, de categoria 5,
ocorrido no dia 21 de agosto. Devido a sua ocorrência ter se dado no fim do mês,
o impacto maior foi percebido em setembro, porém a diminuição de turistas não
foi tão grande devido ao fato de Ambegris Caye ser rota de uma pequena
quantidade de cruzeiros. Em 2008 ocorreram diversos eventos, porém todos
foram classificados como tempestade tropical (TS), o que não deveria ter
causado grande impacto no turismo. Porém percebe-se que a tempestade Arthur,
ocorrida em 31 de maio, parece ter causado impacto no mês de junho, o qual
também pode ter sido afetado pela ocorrência da Copa do Mundo na Alemanha.
Em julho, a tempestade Dolly aparentemente não causou impacto na quantidade
de turistas, que se manteve linear com o mesmo período dos anos anteriores. Já o
mês de agosto foi marcado por dois eventos que também ocorreram em Cayman,
o Fay e o Gustav, sendo que este último, por ter ocorrido no fim do mês,
aparentemente afetou a média de turismo de setembro.
Observa-se ainda que de Novembro a Junho não é comum a presença de
furacões nesta região. E que, onde ocorreram os eventos houve em grande parte
diminuição do número de turistas quando se compara o mesmo mês em outros
anos.
L.R. Oliveira • E.F. Martins • R.M. Medeiros •J.C.S. de Mello
Página | 38
Tabela 7: Entrada de turistas e ocorrências de furacões em Cayman e áreas próximas
Para quantificação do impacto dos furacões, foram realizadas também
regressões lineares para estimar qual teria sido o fluxo de turistas se não tivessem
ocorrido os eventos. Segundo Werkema e Aguiar (1996) a análise de regressão
pode ser utilizada para descrever, predizer, controlar ou estimar fatos.
Montgomery (2003) destaca que a regressão linear simples um único regressor
ou preditor X e uma variável dependente Y.
No presente caso, as variáveis X foram os 12 meses anteriores ao da
ocorrência de um furacão para analisar o comportamento turístico considerando
também sazonalidades existentes e a variável Y a quantidade de turistas. Nos
meses em que não houve furacão, mas que foram afetados por eventos do mês
anterior, também foi estimado o valor, utilizando-se o valor projetado do mês em
que houve furacão causador do impacto. Após a previsão, foi calculada a
diferença desta projeção com o valor real de turistas na região para refletir assim
o impacto dos furacões. Esta diferença entre o projetado com a regressão e o
valor real pode ser observada na tabela 8. Os dados da regressão linear
permitiram projetar a perda ocorrida devido aos furacões.
Dos Algarves n.º20-2011
P á g i n a | 39
Tabela 8: Diferença entre o valor projetado e o valor real de turistas nos meses e anos que
ocorrerão furacões em Cayman
Na Tabela 9 é apresentado o resultado obtido a partir da diferença entre a
média dos valores obtidos pela regressão linear e o dado real, por categoria de
furacão, na entrada de turistas em Cayman. Destaca-se também que, dependendo
do período do ano, o impacto pode ser diferente devido à sazonalidade. Observase, por exemplo, que um furação F5 pode gerar uma diminuição no fluxo de
entrada de turistas de aproximadamente 130.000 pessoas.
Tabela 9: Valor estimado de impacto por categorização dos furacões na entrada de turistas
em Cayman
Com esta análise observou-se que, devido ao fato dos furacões F3 sempre
ocorrerem junto a outros furacões, não foi possível avaliar se o valor obtido é
aceitável ou não, embora o valor do impacto, superior ao do F5, indique que esta
categoria necessitaria de uma abordagem distinta. O mesmo problema foi
enfrentado na estimativa do F1, que foi afetada pelo comportamento dos furacões
ocorridos no mês de novembro, um período de maior atividade turística. Uma
possível conclusão acerca das tempestades de menor categoria (até F2) é que elas
L.R. Oliveira • E.F. Martins • R.M. Medeiros •J.C.S. de Mello
Página | 40
podem eventualmente prejudicar o turismo de forma similar, e aumentariam
gradativamente a partir do furacão F3.
3.2. Ocupação da Região
A ocupação da região está relacionada à atratividade de infra-estrutura e aos
serviços turísticos oferecidos por cada uma das ilhas. Os turistas que impactam
nesta analise são os oriundos de transporte aéreo, devido ao fato de que turistas
de cruzeiros apresentam a peculiaridade de desembarcar de manhã e embarcar no
fim da tarde do mesmo dia, ou seja, não utilizam a rede hoteleira da região. A
maior parte da procura se dá em Grand Cayman, a maior das três ilhas,
considerada a cidade capital com muitas atividades turísticas, estrutura moderna
e passeios históricos. As demais procuras são por Cayman Brac e Little Cayman,
sendo a primeira uma comunidade marítima tradicional, com paisagens naturais e
variedades de fauna e flora; e a última, a menos desenvolvida da região, em
grande parte desabitada.
As características das ilhas, relatadas acima, são reflexo direto na
disponibilidade de cada uma para o acolhimento dos turistas. Conforme o gráfico
abaixo, se observa na disponibilidade de leitos, que Grand Cayman é responsável
por 93% da ocupação da ilha. No entanto, a partir desse gráfico é possível
analisar também dois fatos que se relacionam diretamente a disponibilidade de
leitos a categoria do furacão: o ano de 2004 foi encerrado sem uma informação
oficial de leitos disponíveis devido ao impacto causado pela Ivan, e o ano de
2008, no qual a rede hoteleira de Cayman Brac foi reduzida a zero devido à
passagem do Paloma na ilha.
Dos Algarves n.º20-2011
P á g i n a | 41
Gráfico 3: Disponibilidade de leitos nas três ilhas
Também foi realizada uma análise do tempo de estada na região, e observouse que há uma diferença significativa entre os turistas que se hospedam em
hotéis, ficando em média cinco dias, e os turistas que alugam apartamentos para
dispor de mais tempo de viagem, em média 11 dias. Outro fato observado, pela
análise dos gráficos 4 e 5 é que o tempo de estadia na ilha não costuma sofrer
impacto de ocorrência de fenômenos naturais de proporções pequenas e médias
ou fatos históricos, ou seja, a média de dias em que os turistas permanecem na
ilha tende a se manter constante, variando apenas de acordo com o tipo de
hospedagem escolhida.
Gráfico 4: Tempo médio de estada nas ilhas
L.R. Oliveira • E.F. Martins • R.M. Medeiros •J.C.S. de Mello
Página | 42
Gráfico 5: Tempo médio mensal de estada nas ilhas entre 2000 e 2004
No gráfico 6 foi possível observar que o comportamento até o ano de 2004
mostrava-se sazonal, sem relacionar-se fortemente com eventos climáticos,
exceto pelos dados de setembro e outubro de 2004, quando a devastação causada
pelo furacão Ivan provavelmente impediu que os turistas tivessem atividades na
ilha.
Gráfico 6: Tempo médio mensal de estada nas ilhas entre 2005 e 2009
Os anos de 2005 e 2006 apresentaram comportamento similar ao dos
períodos analisados no gráfico 5, exceto ao último quadrimestre de 2004. A
partir do meio de 2007 alguns meses apresentam comportamento anômalo,
porém sem apresentar relação com furacões.
Em complemento à análise anterior, foram pesquisados dados referentes à
ocupação dos hotéis e apartamentos, ano a ano, desde 2000. Como resultado,
Dos Algarves n.º20-2011
P á g i n a | 43
pode-se observar que os hotéis são mais procurados pelos turistas. Este fato pode
estar associado ao custo elevado referente aos aluguéis de apartamentos, para um
período curto de permanência na ilha.
Nesse contexto, podemos observar que a demanda por hotéis sofre uma
influência maior de impactos externos, já que é mais procurada que os
apartamentos, que possuem demanda praticamente estável pelos seus serviços.
Dessa forma, pode-ser atribuir às quedas de ocupação de 2001, o acontecimento
de 11 de setembro, com reflexos bastante intensos no ano seguinte.
Gráfico 7: Percentual de ocupação de hotéis e apartamentos da ilha
Dados de Ocupação - %
80
70
60
50
40
30
20
10
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
% Ocupação de hoteis
% Ocupação de apartamentos
Gráfico 8: Percentual Mensal de ocupação de hotéis e apartamentos da ilha de 2000 à 2004
L.R. Oliveira • E.F. Martins • R.M. Medeiros •J.C.S. de Mello
Página | 44
A taxa média de ocupação mensal apresenta um comportamento sazonal,
porém constante dentro da sua sazonalidade. Assim, como na análise do tempo
médio de estadia, a única variação percebida possível de ser relacionada com
furacões se deu no último quadrimestre de 2004, pois trata-se de um período de
crescimento da taxa de ocupação e no referido ano, nos meses de outubro e
novembro, apresentou um resultado decrescente em relação a setembro.
Gráfico 9: Percentual Mensal de ocupação de hotéis e apartamentos da ilha de 2005 à 2009
O gráfico 9, que apresenta os dados para o período de 2005 a 2009 não
apresentou grandes mudanças no comportamento apresentado no período
anterior, o que reforça a idéia de que apenas grandes eventos climáticos afetam
este indicador.
Numa análise macro, percebe-se que a partir de 2003 ocorre uma
recuperação lenta, com crescimento moderado até 2008, acompanhado de uma
suave queda em 2009. Essa queda pode ser associada ao Furacão Paloma, de
intensidade h4, que ocorreu em novembro de 2008, gerando reflexos no ano
seguinte. Nota-se, porém, um crescimento acentuado no primeiro quadrimestre
de 2010 nos dados referentes à região.
Dos Algarves n.º20-2011
P á g i n a | 45
4. Conclusão
Conclui-se que o objetivo do desenvolvimento de um estudo sobre o impacto
de fenômenos climáticos no desenvolvimento turístico nas Ilhas Cayman,
especialmente sobre a ocorrência de furacões, e suas conseqüências sobre o setor
foi alcançado e apresentou uma contribuição importante para compreender os
efeitos na região.
Destaca-se também a importância da analise dos indicadores e índices
referente à atividade que deram suporte ao desenvolvimento do trabalho. Umas
das contribuições significativas foi a relação da classificação dos furações com o
impacto no fluxo de entrada de turistas, refletindo a diminuição de turistas na
região na ocorrência de fenômenos climáticos.
Para mensurar este impacto foi necessário o rastreamento dos furacões na
região, bem como o levantamento da entrada de turistas desde o período do ano
2000. Com os dados, foram realizadas regressões lineares para projetar o fluxo
turístico sem a ocorrência de fenômeno climático. Após a previsão, comparou-se
com o valor real de entrada de turistas no período dos eventos e foi possível
diagnosticar uma relação do impacto no turismo local com as classificações dos
furacões.
A regressão múltipla seria uma sugestão de pesquisa futura para
compreender o efeito de outras variáveis no fluxo de turistas em Cayman. Outras
variáveis foram utilizadas, porém com análises gráficas e de forma qualitativa.
Este tipo de regressão permitiria uma compreensão mais complexa e quantitativa
de diferentes variáveis no turismo local.
O tema abordado no presente trabalho exigiu conhecimento de assuntos
como turismo, estatística, engenharia e economia. Para análise do caso foi
importante o conhecimento de análise gráfica, sobre ferramentas de gestão e
visão sistêmica do fluxo de turismo e dos impactos na região. Estes fatores
justificam a escolha do tema para o estudo no curso de mestrado de Engenharia
de Produção que, além de identificar à problemática, contribuiu com o
entendimento dos impactos dos eventos climáticos no turismo da região.
L.R. Oliveira • E.F. Martins • R.M. Medeiros •J.C.S. de Mello
Página | 46
Referências
Aguirre, B.E. (1991). Evacuation in Cancun during Hurricane Gilbert. International Journal of
Mass Emergencies and Disasters.
Burrus, R.; Dumas, C; Farrell, C.; Hall, W. (2002). Impact of Low-Intensity Hurricanes on
Regional Economic Activity. Natural Hazardds Review / August.
Campos, M. A. (2005). Importância do Turismo Internacional Para Economia Mundial. Etur,
disponível em: http://www.etur.com.br.
Dwyler L., Forsyth P., Spurr, F. (2004). Evaluating tourism's economic effects: new and old
approaches. Tourism Management 25 (3), 307-31.
Dias, M. (2006). Furacões e Tornados: um espetáculo de Rotação na Atmosfera Terrestre.
Revista USP, São Paulo, n.72, p. 44-53. Dezembro/Fevereiro 2006-2007.
ECLAC – Economic Commision for Latin America and the Caribbean, 2005.
Fankhauser, S., Smith, J.B., Tol, R.S.J. (1999). Weathering climate change: some simple rules
to guide adaptation decisions. Ecological Economics 30, 67–78.
Government of the Cayman Islands (2000). Cayman Islands Compendium of Statistics.
Statistics Office, Government of the Cayman Islands. Grand Cayman, George Town. 2000.
Keeney, R.L., Mcdaniels, T.L. (2001). A framework to guide thinking and analysis regarding
climate change policies. Risk Analysis 21, 989–1000.
Landsea C. (1993). A Climatology of Intense (or Major) Atlantic Hurricane. American
Meteorological Society.
Montgomery, D.C., Runger, G. C. (2003). Estatística Aplicada e Probabilidade para
Engenheiros, Segunda Edição; Editora LTC.
Pelling, M., Uitto, J.I. (2001). Small island developing states: natural disaster vulnerability and
global change. Environmental Hazards 3, 49–62.
Pittock, A.B., Jones, R.N., Mitchell, C.D. (2001). Probabilities will help us plan for climate
change—without estimates, engineers and planners will have to delay decisions or take a
gamble. Nature, 413, 249.
Prideauxa, B., Law, S. B. E., Faulkner, B. (2003). Events in Indonesia: exploring the limits to
formal tourism trends forecasting methods in complex crisis situations. Tourism
Management 24, 475–487.
Sonmez S. (1999). Tourism in Crisis: Managing the Effects of Terrorism. Journal of Travel
Research, 38, 1, 13-18.
Tompkins E. (2005). Planning for climate change in small islands: Insights from national
hurricane preparedness in the Cayman Islands. Global Environmental Change.
Werkema, C., Aguiar, S. (1996). Análise de Regressão: como entender o relacionamento entre
as variáveis de um processo; Editora Werkema.
Sites consultados:
http://www.cptec.inpe.br/glossario/gloss_prin.shtml#19 > acessado em 24 de junho de 2010.
http://www.eclac.org/cgi-bin/getProd.asp?xml=/publicaciones/xml/5/23825/
P23825.xml&xsl=/portofspain/tpl-i/p9f.xsl&base=/portofspain/tpl/top-bottom.xslt > acessado
em 25 de junho de 2010.
http://stormcarib.com/climatology/WCAR_map_bathy.htm > acessado em 18 de junho de 2010.
http://www.caymanislands.ky/statistics/default.aspx > acessado em 19 de junho de 2010.
http://www.unwto.org/aboutwto/why/en/why.php?op=1 > acessado em 23 de junho de 2010.
www.worldlicenseplates.com/world/CA_CAYM.html > acessado em 17 de junho de 2010, as
14:20.
Dos Algarves n.º20-2011
P á g i n a | 47
LUCAS REBELLO DE OLIVEIRA: Engenheiro de Produção formado pela UFF (2007) e bolsista
do Mestrado em Engenharia de Produção da UFF. Possui experiência como consultor nas áreas
de Gestão Estratégica, Planejamento Estratégico, Gestão de Operações
e
Sustentabilidade. Possui interesse de publicação nos temas anteriores e em gestão de turismo.
EDUARDO FERRAZ MARTINS: Engenheiro de Produção formado pela UFF (2008) e bolsista do
Mestrado em Engenharia de Produção da UFF. Possui experiência como consultor nas áreas de
Gestão Estratégica , Planejamento Estratégico, Gestão de Operações e Sustentabilidade. Possui
interesse de publicação nos temas anteriores e em gestão de turismo.
RAFFAELA MARTINS MEDEIROS: Engenheira de Produção, graduada pela Universidade
Federal Fluminense em 2007, e mestranda pelo Departamento de Engenharia de Produção da
mesma instituição, tendo como áreas de interesse a Gestão Estratégica, Sustentabilidade e
diálogo com stakeholders. Possui experiências como consultora em gestão e planejamento de
engenharia.
JOÃO CARLOS SOARES DE MELLO: Licenciatura Engenharia Mecânica pela Universidade
Federal Fluminense (1981), Mestrado em Matemática pela Universidade Federal Fluminense
(1987) e Doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2002). Realizou estágio pós doutoral na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
em 2006. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal Fluminense, departamento de
Engenharia de Produção.
Submetido: Setembro 2010
Aceite: Fevereiro 2011
Gestión financiera de un negocio: el particular caso de la empresa
familiar extremeña
Remedios Hernández-Linares • Cristina Barriuso • Ascensión Barroso • Tomás M.
Bañegil
Facultad de Ciencias Económicas y Empresariales, Universidad de Extremadura
[email protected][email protected][email protected][email protected]
Resumen
Numerosos estudios han recogido las características singulares de la empresa familiar,
derivadas de interrelación empresa-familia. Nuestra intención es conocer la particular
actitud de este tipo de negocios en relación a sus estrategias de financiación ya que, según
la literatura, la concentración de la propiedad típica de la empresa familiar permite
eliminar costes de agencia, la intención de transmitir un legado a los descendientes lleva a
que sus balances y cuentas de pérdidas y ganancias no tengan la necesidad de ofrecer una
imagen adecuada frente a terceros, y su horizonte de inversión a largo plazo constituye
una importante restricción financiera. Así, tras la investigación empírica realizada,
podemos concluir que en los negocios familiares extremeños existe una elevada
concentración de la propiedad, y que convendría buscar un equilibrio entre los distintos
sistemas que conforman la empresa familiar para que ésta no tenga que renunciar a las
oportunidades que le brinda el mercado.
Palabras Clave: empresa familiar; gestión financiera; estrategias de financiación;
concentración de la propiedad; nivel de apalancamiento; empresas extremeñas.
Abstract
Many studies have shown that family business has unique characteristics derived from the
confluence of two systems: the company and the family. The objective of this research is
to understand the unique behaviour of family businesses in relation to financing
strategies, since, according to the literature, the concentration of ownership that
characterizes these companies enables them to eliminate costs agency, the interest in
transmitting a heritage to descendants enables that their sheets and profit and loss
accounts do not have to provide a suitable image and their horizon of long-term
investment is an important financial restriction. Thus, after the empirical study, we can
draw several conclusions: there is a high concentration of ownership among family
businesses in Extremadura, and it is necessary to seek a balance between the two systems
of the company (family and business) in order to allow the company to take advantage
opportunities offered by the market.
Keywords: family business; financial management; concentration of ownership;
leverage; extremaduran companies.
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Dos Algarves n.º20-2011
Página | 49
1. Introducción y objetivos
A pesar de que los negocios familiares han sido la columna vertebral de la
actividad económica desde épocas y civilizaciones antiguas, la empresa familiar
es un campo de estudio relativamente nuevo, que comenzó a recibir la atención
que merecía hace sólo unas décadas, ya que los estudios anteriores a 1975 eran
bastante limitados (Handler, 1989). Así su nacimiento como disciplina de estudio
puede datarse en la segunda mitad de la década de los setenta (Wortman, 1994),
si bien su consolidación no se producirá hasta la década de los noventa, momento
a partir del cual el mundo empresarial e institucional comienza a adquirir plena
conciencia de la importancia económica que posee esta tipología de negocios.
Prueba de ello son la aparición de la publicación Family Business Review en
1988, y la creación del Family Business Network en 1997, así como la
proliferación de estudios científicos, libros, artículos y seminarios sobre el tema.
El punto de partida de muchas de las investigaciones realizadas sobre las
empresas familiares ha sido tratar de conocer si éstas son diferentes de las de
cualquier otra naturaleza, y si efectivamente lo son en qué manera y por qué
razones. Y gran parte de los estudios efectuados al respecto ha demostrado que
efectivamente son diferentes, y adolecen de características propias derivadas de
la confluencia de dos realidades complejas y dinámicas: empresa y familia. Una
de estas diferencias se basa en que el asumido solapamiento de familia y negocio
puede producir actitudes particulares en relación a las estrategias de financiación
seguidas por las empresas familiares, tal y como afirman López-Gracia y
Sánchez-Andújar (2007). Por ello, durante los últimos años, las investigaciones
sobre los asuntos financieros de la empresa están adquiriendo una notable
preeminencia. En la línea de estos estudios científicos, y bajo el amparo de la
Cátedra de Empresa Familiar de la Universidad de Extremadura, nace este
trabajo de investigación, cuyo objetivo principal es esbozar los principales rasgos
que caracterizan la gestión financiera de este tipo de negocios en Extremadura.
R. Hernández-Linares • C. Barriuso • A. Barroso • T. M. Bañegil
Página | 50
2. La empresa familiar: definición e importancia
La mayor parte de la riqueza del mundo es generada por las empresas
familiares (Craig y Dibrell, 2006), y los estudios e investigaciones llevados a
cabo hasta el momento confirman que el panorama económico de la mayoría de
los países se encuentra dominado por empresas familiares (Astrachan y
Schanker, 2003; Morck y Yeung, 2004; Déniz y Cabrera, 2005). Y los datos
confirman este importante peso de las empresas familiares dentro de las
diferentes economías. Según los datos del Instituto de la Empresa Familiar, en
Estados Unidos las organizaciones empresariales de carácter familiar constituyen
el 80% del total de empresas, y generan el 50% del empleo (no del empleo
privado, sino del empleo total, generado tanto por instituciones públicas como
privadas) del país; y en Europa, hay 17 millones de empresas familiares (que
generan cien millones de puestos de trabajo), lo cual supone el 60% del tejido
empresarial de la Unión. No obstante hay que resaltar que su peso difiere
significativamente entre las distintas economías europeas, como demuestra el
estudio llevado a cabo por Gallup Europa y el Family Business Network
International1 en ocho países europeos (Alemania, España, Finlandia, Francia,
Holanda, Italia, Reino Unido y Suecia), según el cual la importancia relativa de
las empresas familiares fluctúa entre el 61% de Holanda y el 91% de Finlandia.
En España, según datos del Instituto de la Empresa Familiar, se estima que
hay más de 2.950.000 organizaciones empresariales de carácter familiar, lo cual
supone el 85% del total de empresas. Y según esta misma fuente, dichas
empresas generan el 75% del empleo privado y facturan el 70% del Producto
Interior Bruto del país, realizando el 59% de las exportaciones de nuestra
economía; y aunque representan el 30% de la capitalización bursátil, el 50% de
las empresas españolas que cotizan en bolsa son familiares.
1
Estudio: Family Business International Monitor.
Dos Algarves n.º20-2011
Página | 51
Sin embargo, al comparar estos resultados hay que tener en cuenta la
problemática de la circunscripción del término originada por la falta de
unanimidad sobre la definición del concepto empresa familiar, ya que a pesar de
que la historia de la investigación sobre este tema se extiende a lo largo de más
de treinta y cinco años, no hay acuerdo sobre la definición del concepto empresa
familiar (Litz, 1995; Astrachan, Klein y Smyrnios, 2002).
Encontrar una delimitación conceptual del término empresa familiar es el
primer requisito para poder construir un marco teórico sólido (Pérez et al., 2007).
Sin embargo, articular una definición precisa del concepto es una tarea no exenta
de complicaciones (Lansberg, Perrow y Rogolsky, 1988). Por esta razón, una
parte significativa de la literatura existente sobre este tema se ha centrado en la
búsqueda de una definición que permita identificar claramente a las empresas
familiares diferenciándolas de las de cualquier otra tipología. Dicha pesquisa ha
dado lugar a numerosas definiciones establecidas en función de diferentes
criterios, siendo los más generalmente empleados los de propiedad y gestión.
En el caso de la propiedad existe cierto consenso a la hora de considerar
necesaria la posesión mayoritaria del capital (Barnes y Hershon, 1976; Lansberg,
Perrow y Rogolsky, 1988), si bien hay otros autores (Donckels y Fröhlich, 1991)
que establecen unos límites más restrictivos.
En el caso de la gestión el debate es aún más intenso. Daily y Dollinger
(1993), entre otros, consideran que para definir una empresa como familiar sería
imprescindible que dicha organización estuviera gestionada por la familia,
mientras que para los investigadores Graves y Thomas (2006) es suficiente con
que uno de los miembros de la familia forme parte del equipo de gestión.
A pesar del asenso generalizado sobre la utilización de estos dos criterios,
muchas delimitaciones conceptuales recurren también a otras dimensiones como
el número de generaciones de la familia propietaria, la influencia de la familia en
la empresa, el compromiso de la primera en el negocio o la vocación de
continuidad del mismo, entre otros.
R. Hernández-Linares • C. Barriuso • A. Barroso • T. M. Bañegil
Página | 52
Nosotros, en la búsqueda de una definición operativa y funcional que se
limite a identificar las características observables y medibles que diferencian a
este tipo de negocios del resto, apostamos por basar el estudio empírico en la
definición propuesta por Graves y Thomas, quienes consideran que una empresa
familiar es “aquella en la que la mayoría de la propiedad pertenece a la familia y
al menos uno de los familiares propietarios pertenece al equipo de gestión.”
(2006: 208).
3. La empresa familiar: su gestión financiera
Las empresas familiares son consideradas una forma de negocio sumamente
compleja. A ello contribuyen tanto temas operacionales y estratégicos relativos a
la propiedad como el habitual solapamiento entre gestión y control (Craig y
Moores, 2006), solapamiento que generalmente se traduce en que los dueños y
los gestores son los mismos individuos o representan a la misma familia
propietaria (Naldi et al., 2007).
Pero, sin duda, una de las características más definitorias de este tipo de
compañías es su preocupación por mantener el control de la empresa dentro del
núcleo familiar. Tradicionalmente se han presentado argumentos antropológicos
para explicar esta decisión de mantener una empresa bajo el control de miembros
de la familia. De hecho autores como Solari (1971) defienden que el hecho de
mantener una empresa como familiar responde a factores culturales. Sin
embargo, otros investigadores (Jensen y Meckling, 1976) abogan a razones más
puramente económicas, y sostienen que una estructura de propiedad más
concentrada facilita la alineación de objetivos de directivos y propietarios. En
esta misma línea, Pertusa y Rienda (2003) afirman que cuando tenemos una
empresa familiar y los roles de propietario y directivo recaen sobre la misma
persona se eliminan costes debido a la supresión de las relaciones de agencia, lo
cual permite obtener una serie de ventajas que no poseen el resto de empresas no
familiares. En idéntico sentido se manifiestan también Vilaseca (2002), López-
Dos Algarves n.º20-2011
Página | 53
Gracia y Sánchez-Andújar (2007), o Carrasco-Hernández y Sánchez-Marín
(2007).
No obstante, aún a pesar de que los costes de agencia se asocian en
numerosas ocasiones a empresas con gran dispersión del capital, es preciso
insistir en que si bien la relación principal-agente puede verse favorecida por el
aumento de la participación de los gestores en la propiedad, llega un determinado
momento, un punto de inflexión, a partir del cual la concentración de una gran
parte de la propiedad en manos del gestor conlleva la disminución de la eficacia
de los incentivos al desempeño, y de los mecanismos de control de gestión. Este
efecto negativo puede ser más importante que los resultados parcialmente
positivos del aumento de la participación en el capital por parte de los gestores
(Morck y Yeung, 2003), pudiendo adquirir dicha consecuencia contradictoria una
relevancia aún mayor en el caso de las empresas familiares (Chrisman, Chua y
Sharma, 2005), debido a que en ellas es más difícil implantar (y resultan menos
efectivos) tanto los mecanismos de control de gestión, como los sistemas de
compensación e incentivos.
Además hay que tener en cuenta que los líderes de las empresas familiares
están motivados por construir un legado duradero para sus hijos (Kellermans et
al., 2008) y que la motivación por transmitirlo a los descendientes se refleja
incluso en los balances y en las cuentas de pérdidas y ganancias de la
organización, ya que en las empresas familiares, a diferencia de lo que ocurre con
sus equivalentes de otras tipologías, estos “no se encuentran tan mediatizados por
la necesidad de ofrecer una imagen adecuada frente a los accionistas y en general
frente a terceros.” (Corona, 2005: 461).
Y a ello hay que añadir que la visión a largo plazo propia de las
organizaciones empresariales de carácter familiar tiene consecuencias directas
sobre la asunción de riesgos por parte de los inversores. Según Zellweger (2007),
dicha asunción de riesgos guarda una estrecha relación con su horizonte
temporal, y el horizonte de inversión a largo plazo constituye, en su opinión, una
fuente de ventaja para las empresas familiares. Sin embargo, para otros autores
R. Hernández-Linares • C. Barriuso • A. Barroso • T. M. Bañegil
Página | 54
esta visión a largo plazo puede generar otros efectos menos positivos como el
establecimiento de importantes restricciones financieras, sobre todo cuando el
patrimonio familiar se encuentra comprometido en la empresa (Galve y Salas,
2003). Usar una estructura de propiedad con alto nivel de apalancamiento o
limitar el crecimiento permite a la empresa familiar mantener el control y
perseguir objetivos complejos (Wu, Chua, y Chrisman, 2007).
4. Diseño y metodología de la investigación empírica
El diseño de esta investigación empírica trata de establecer los
procedimientos de un plan de acción con el fin de obtener la información que nos
permita satisfacer el objetivo que nos hemos planteado al abordar la realización
de este trabajo. Para ello, y siguiendo la lógica investigadora, hay tres cuestiones
que resultan fundamentales: la unidad de análisis, las fuentes de información, y el
instrumento de recogida de dicha información (Tadeo y Pérez, 2005).
En cuanto a la unidad de análisis resulta obvio que ésta es la empresa
familiar, y en concreto la empresa familiar extremeña, puesto que como hemos
dicho anteriormente, esta investigación nace en el seno de la Cátedra de Empresa
Familiar de la Universidad de Extremadura. Pero ante la carencia de estudios
previos al respecto en nuestra comunidad autónoma, y ante la dificultad de
disponer de información específica sobre las empresas familiares (Daily y
Dollingter, 1993; Claver, Rienda y Quer, 2007), nos vimos obligados a partir de
una base de datos genérica que agrupa y recoge los datos de las organizaciones
empresariales con forma societaria y sede social en Extremadura, si bien
limitamos nuestro objeto de estudio sólo a aquellas empresas con más de cinco
empleados, lo cual nos proporcionó una población de 3.767 empresas.
Así, en la primera fase de la investigación, gracias a un pre-test inicial
telefónico dirigido a los propietarios o directivos de la sociedad (y realizado a
941 empresas), y partiendo de la consabida definición de Graves y Thomas
Dos Algarves n.º20-2011
Página | 55
(2006), conseguimos definir como familiares a un importante número de
empresas extremeñas.
Figura 1: Dimensiones para definir a una empresa como familiar
Fuente: Elaboración propia
Del conjunto de empresas familiares extremeñas, a 180 se les aplicó, de
manera personal, el cuestionario definitivo elaborado a partir de un análisis
Delphi2, cuyo panel de expertos está conformado por un total de 12 profesores y
catedráticos procedentes de distintas universidades españolas3, la mayoría
miembros de la Red de Cátedras del Instituto de la Empresa Familiar.
Consideramos que un panel de 12 expertos nos permitía contar con un grupo lo
suficientemente heterogéneo como para enriquecer las discusiones del grupo,
aportando diferentes puntos de vista, y evitando los problemas que podría
conllevar un panel formado por un número de miembros más elevado (falta de
respuesta, dificultad para efectuar el análisis de los resultados, etc.).
2
El método Delphi es un proceso sistemático e iterativo encaminado hacia la obtención de las
opiniones, y si es posible del consenso, de un grupo de expertos. Para evitar las influencias
negativas de los miembros dominantes del grupo se mantiene el anonimato de sus participantes,
garantizando así que todas las opiniones individuales sean tomadas en consideración con el
resultado final del grupo (Landeta, 1999).
3
Universidad de Alicante, Universidad de Cádiz, Universidad de Cantabria, Universidad Carlos
III de Madrid, Universidad de Córdoba, Universidad de Extremadura, Universidad de Girona,
Universidad de La Rioja, Universidad de Las Palmas, Universidad Miguel Hernández de Elche,
Universidad de Oviedo y Universidad de Sevilla.
R. Hernández-Linares • C. Barriuso • A. Barroso • T. M. Bañegil
Página | 56
Como resultado de la metodología Delphi obtuvimos una serie de atributos
que han constituido el soporte fundamental del cuestionario final, aplicado por
miembros de la Cátedra de Empresa Familiar durante los meses de mayo y junio
de 2009, en plena recesión económica.
5. Resultados
Tras el análisis de la información extraída de dichas encuestas personales, en
este
apartado
recogemos
y
discutimos
los
resultados
referentes
al
comportamiento financiero de las empresas familiares extremeñas que a nuestro
entender resultan más significativos.
En cuanto a la concentración de la propiedad, hemos de decir que en el
conjunto de España ésta es un fenómeno frecuente entre las empresas familiares.
Los resultados que arroja nuestro estudio confirman este fenómeno dentro de la
realidad empresarial de la región extremeña, puesto que según nuestros datos en
más del 84% de de las empresas familiares extremeñas la propiedad se encuentra
en manos de una misma familia.
Gráfico 1: ¿Cuántas familias distintas son propietarias de la empresa?
3,89%
11,67%
84,44%
Una
Fuente: Elaboración propia.
Dos
Tres o más
Dos Algarves n.º20-2011
Página | 57
Por tanto, en una amplia mayoría (84,44%) de las empresas familiares
extremeñas no hay ningún socio o accionista que no pertenezca al grupo familiar,
es decir, el núcleo familiar controla el 100% de la propiedad. En el 11,67% de
estos negocios hay dos familias propietarias. Y sólo en el 3,89% el capital de la
empresa es controlado por tres o más de tres núcleos familiares.
En cuanto al solapamiento entre propiedad y gestión, éste también es un
fenómeno frecuente en las empresas familiares, tal y como recoge la literatura
sobre el tema. En determinadas ocasiones este solapamiento conlleva
consecuencias positivas, como la reducción de los costes de agencia. Sin
embargo, en otros casos, las consecuencias son más cuestionables, como ocurre
cuando se confunde los bolsillos de empresa y familia. Por ello, preguntamos a
los entrevistados acerca de su grado de acuerdo o desacuerdo con la utilización
de los recursos financieros de la empresa para necesidades particulares de la
familia y viceversa.
Gráfico 2: Es recomendable utilizar los recursos financieros de la empresa para necesidades
particulares de la familia
Fuente: Elaboración propia.
R. Hernández-Linares • C. Barriuso • A. Barroso • T. M. Bañegil
Página | 58
En lo que respecta a la primera de estas preguntas, los resultados que se
recogen en el gráfico anterior resultan bastante concluyentes, ya que el 48,60% y
el 36,31% de los encuestados manifiestan estar en desacuerdo o muy en
desacuerdo respectivamente con la utilización de los recursos financieros de la
empresa para necesidades particulares de la familia, y sólo un reducido 10%
manifiesta estar de acuerdo o muy de acuerdo con la utilización particular de los
recursos empresariales.
En relación a la segunda de estas cuestiones, la conveniencia de utilizar los
recursos
financieros de la familia para las necesidades particulares de la
empresa, más de la mitad de los encuestados (54,45%) se manifiestan en
desacuerdo o muy en desacuerdo con dicha práctica, mientras que el 30% se
manifiesta de acuerdo con la misma, y el 6,11% muy de acuerdo.
Gráfico 3: Es recomendable utilizar los recursos financieros de la familia para necesidades
particulares de la empresa
35,00%
30,00%
31,67%
25,00%
20,00%
30,00%
22,78%
15,00%
10,00%
9,44%
5,00%
6,11%
0,00%
Muy en
desacuerdo
En
desacuerdo
Indiferente
De acuerdo
Muy de
acuerdo
Fuente: Elaboración propia
En cuanto a la preocupación y el interés por transmitir el legado empresarial
a los descendientes, un porcentaje muy elevado (68,97%) manifiesta estar de
acuerdo o muy de acuerdo (48,28% y 20,69% respectivamente) con la idea de
que es importante que la empresa continúe en el futuro en manos de sus
Dos Algarves n.º20-2011
Página | 59
descendientes u otros miembros de la familia; un 24,71% manifiesta su
indiferencia y alrededor de un 5,32% indica estar en desacuerdo o muy en
desacuerdo, no considerando importante este hecho. En algunos casos, la
indiferencia o incluso el desacuerdo, es fruto de situaciones particulares en las
que no existe un sucesor familiar o la empresa se encuentra con graves problemas
de sucesión.
Gráfico 4. Importancia de que la empresa continúe en el futuro en manos de sus descendientes u
otros miembros de la familia
Fuente: Elaboración propia
6. Conclusiones
Esta investigación constituye el primer estudio empírico sobre la empresa
familiar realizado en Extremadura, contribuyendo así al reconocimiento de su
importancia como figura empresarial dominante dentro del tejido empresarial de
nuestra región. A pesar de que se trata de una investigación más amplia, en este
trabajo nos hemos centrado en estudiar el comportamiento financiero de la
R. Hernández-Linares • C. Barriuso • A. Barroso • T. M. Bañegil
Página | 60
empresa familiar extremeña, ya que el carácter familiar de un negocio es un
factor determinante en su estructura de capital (López-Gracia y Sánchez-Andújar,
2007), y probablemente en su forma de afrontar la gestión financiera.
Nuestro estudio nos ha permitido confirmar que en las empresas familiares
extremeñas hay una notable preocupación por mantener el control del negocio
dentro de la órbita familiar, con las limitaciones financieras y de capital que de
ello se derivan, y que en determinadas ocasiones restringe o frena el crecimiento
y/o la velocidad de expansión del negocio.
De igual manera, los resultados de nuestro trabajo de investigación revelan
que la amplia mayoría de los empresarios familiares encuestados muestran su
desacuerdo con la utilización de los recursos financieros del negocio para
necesidades particulares de la familia. También es mayoritaria la proporción de
encuestados que no está de acuerdo con utilizar los recursos financieros de la
familia para necesidades particulares de la empresa. Sin embargo, el rechazo de
esta práctica no se manifiesta de una forma tan taxativa como en el caso anterior.
Estos resultados nos permiten concluir que el empresariado familiar
extremeño es consciente de la importancia de mantener separados los recursos
financieros y el patrimonio empresarial del patrimonio y los recursos familiares.
No obstante, en general, hallamos una mayor flexibilidad a la hora de incorporar
el patrimonio familiar al negocio que en ante la idea de cubrir las necesidades
familiares con los recursos de la empresa, situación ante la que encontramos una
rotunda oposición.
Por último, hemos podido verificar que para los encuestados es importante
que sus empresas continúen en el futuro bajo el control de sus descendientes u
otros familiares, mostrando así la clara vocación de continuidad que caracteriza a
las empresas familiares. Esta vocación de continuidad en manos de la familia
contribuye también a explicar el elevado nivel de apalancamiento de su
estructura de propiedad.
Es importante, por tanto, que las decisiones de financiación de una empresa
familiar traten de buscar un equilibrio entre el control de la empresa por la
Dos Algarves n.º20-2011
Página | 61
familia, por un lado, y la posibilidad de aprovechar las oportunidades de
crecimiento existentes, por otro.
Referencias bibliográficas
Astrachan, J.H. y Schanker, M.C. (2003). Family businesses’ contribution to the U.S. economy:
a closer look. Family Business Review, 16 (3), 211-219.
Astrachan, J.H.; Klein; S. B.; Smyrnios, K.X. (2002). The F-PEC scale of family influence: A
proposal for solving the family business definition setting. Journal of Business Venturing,
18, 553-558.
Barnes, L. B. y Hershon, S. A. (1976). Transferring power in the family business. Family
Business Review, 8 (2), 131-155.
Carrasco-Hernández, A. y Sánchez-Marín, G. (2007). The determinants of employee
compensation in family firms: empirical evidence. Family Business Review, 20 (3), 215228.
Chrisman, J.J.; Chua, J. H.; Sharma, P. (2005). Trends and directions in the development of
strategic management theory of the family firms. Entrepeurship Theory and Practice, 29,
555-575.
Claver, E.; Rienda, L.; Quer, D. (2007). ¿Incide el carácter familiar en el compromiso
internacional de las empresas españolas? Investigaciones Europeas de Dirección y
Economía de la Empresa, 13 (3), 13-32.
Corona, J. (2005). Manual de la Empresa Familiar, Barcelona: Ediciones Deusto.
Craig, J. B. y Dibrell, C. (2006). The natural environment, innovation, and firm performance: a
comparative study. Family Business Review, 19 (4), 275-288.
Craig, J. B. y Moores, K. J. (2006). A 10-year longitudinal investigation of strategy, systems,
and environment on innovation in family firms. Family Business Review, 19(1), 1-10.
Cromie, S.; Stephenson, B.; Monteith, D. (1995). The management of family firms: An
empirical investigation”, Family Business Review, 13 (4), 11-34.
Daily, C. M. y Dollinger, M. J. (1993). Alternative methodologies for identifying family-versus
nonfamily-managed business. Journal of Small Business Management, 31 (2), 79-90.
Déniz, M. C. y Cabrera, M. K. (2005). Corporate Social Responsibility and Family Business in
Spain. Journal of Business Ethics, 56, 27-41.
Donckels, R. y Fröhlich, E. (1991). Are Family Business really different? European Experience
from STRATOS. Family Business Review, 4 (2), 149-160.
Gallup Europa y Family Business Network International (2008). Family Business International
Monitor. Disponible en: http://www.fbni.org/fbn/web.nsf/LibraryLU2/AA3786AA36C250F9872575210070073E/$file/Monitor2008.
pdf
Galve, C. y Salas, V. (2003). La empresa familiar en España. Fundamentos económicos y
resultados, Bilbao: Fundación BBVA.
Graves, C. y Thomas, J. (2006). Internationalization of Australian Family Business: A
Managerial Capabilities Perspective. Family Business Review, 19 (3), 207-224.
Handler, W. C. (1989). Methodological issues and considerations in studying family business.
Family Business Review, 2 (3), 257-276.
Jensen, M. C.; Meckling, W. H. (1976). Theory of the firm: managerial behavior, agency cost
and ownership structure. Journal of Financial Economics, 13 (2), 324-340.
Kellermans, F.W.; Eddleston, K.A.; Barnett, T.; Pearson, A. (2008). An exploratory study of
family member characteristics and involvement: Effects on entrepreneurial behavior in the
family firm. Family Business Review, 21 (1), 1-14.
R. Hernández-Linares • C. Barriuso • A. Barroso • T. M. Bañegil
Página | 62
Landeta, J. (1999). El método Delphi. Una técnica de previsión para la incertidumbre,
Barcelona: Editorial Ariel.
Lansberg, I. S.; Perrow, E. L.; Rogolsky, S. (1988). Family business as an emerging field.
Family Business Review, 1 (1), 1-8.
Litz, R. A. (1995). The family business: Toward definitional clarity. Family Business Review, 8
(2), 71-81.
López-Gracia, J. y Sánchez-Andújar, S. (2007). Financial structure of the family business:
evidence from a group of small Spanish firms. Family Business Review, 20 (4), 269-287.
Morck, R. y Yeung, B. (2004). Family control and the rent seeking society. Entrepreneurship:
Theory and Practice, 28, 391-409.
Morck, R. y Yeung, B. (2003). Agency problems in large family business groups.
Entrepreneurship: Theory and Practice, summer, 367-382.
Naldi, L.; Nordqvist, M.; Sjöberg, K.; Wiklund, J. (2007). Entrepreneurial orientation, risk
taking, and performance in family firms. Family Business Review, 20 (1), 33-47.
Pérez, M. J.; Basco, R.; García-Tenorio, J.; Giménez, J.; Sánchez, I. (2007). Fundamentos en la
Dirección de la Empresa Familiar. Emprendedor, empresa y familia, Madrid: Editorial
Thomsom.
Pertusa, E.M. y Rienda, L. (2003). Las relaciones de agencia y la gestión de la empresa familiar:
revisión teórica de su eficacia y eficiencia frente a empresas no familiares. Revista de
Economía y Empresa, 49, 67-78.
Sharma, P.; Chrisman, J. J.; Chua, J. H. (2003). Predictors of satisfaction with the succession
process in family firms. Journal of Business Venturing, 18, 667-687.
Solari, A. E. (1971). Teoría, acción social y desarrollo en América Latina, México: Siglo XXI
Editores.
Tadeo, R. J. y Pérez, M. J. (2005). Comportamientos en la dirección y gobierno de la empresa
familiar. Análisis empírico de la profesionalización como garantía de continuidad. Tesis
Doctoral, Universidad Complutense, Madrid.
Vilaseca, A. (2002). Conflict of interests and objectives between non-employed shareholders
and top management team. Family Business Review, 15 (5), 299-320.
Ward, J. L. (1997). Growing the family business: special challenges and best practices. Family
Business Review, 10 (4), 323-337.
Wortman, M. S. (1994). Theorical foundations for family –owned business: a conceptual and
research based paradigm. Family Business Review, 7 (1), 3-27.
Wu, Z.; Chua, J. H.; Chrisman, J. J. (2007). Effects of family ownership and management on
small business equity financing. Journal of Business Venturing, 22, 875-895.
Zellweger, T. (2007). Time horizon, cost of equity capital, and generic investment strategies of
firms. Family Business Review, 20 (1), 1-15.
REMEDIOS HERNÁNDEZ-LINARES. Máster en Marketing, Máster en Enseñanza e Investigación
de las Ciencias Sociales, Experimentales y Matemáticas, Licenciada en Administración y
Dirección de Empresas, Licenciada en Investigación y Técnicas de Mercado. Doctoranda y
profesora sustituta en la Universidad de Extremadura.
CRISTINA BARRIUSO IGLESIAS. Profesora colaboradora del Departamento de Dirección de
Empresas y Sociología (área de Organización de Empresas), de la Universidad de Extremadura.
Máster en Administración de Negocios en Internet y Comercio Electrónico por la Universidad
Politécnica de Madrid.
ASCENSIÓN BARROSO MARTÍNEZ. Licenciada en Administración y Dirección de Empresas.
Doctoranda y Becaria de Investigación del Departamento de Dirección de Empresas y
Sociología de la Universidad de Extremadura.
Dos Algarves n.º20-2011
Página | 63
TOMÁS M. BAÑEGIL PALACIOS. Catedrático de Universidad. Doctor en Ciencias Económicas
por la Universidad Autónoma de Madrid. Director del Departamento de Dirección de Empresas
y Sociología y Director de la Cátedra de Empresa Familiar de la Universidad de Extremadura.
Las líneas de investigación de todos los autores giran principalmente en torno a la empresa
familiar, la gestión del conocimiento y la responsabilidad social.
Submetido: Setembro 2010
Aceite: Fevereiro 2011
Diagnóstico do nível de competências de língua inglesa e percepções de
conhecimentos de um grupo de alunos universitários
Ana Paula Correia • Filipa Perdigão Ribeiro
ESGHT, Universidade do Algarve
[email protected][email protected]
Resumo
Este estudo tem como objectivo aferir o nível de domínio linguístico da língua inglesa de
22 alunos de Inglês I para Turismo. Surge na sequência da crescente heterogeneidade dos
conhecimentos e competências dos alunos e visa consciencializá-los dos seus
conhecimentos reais, implicando-os na participação deste diagnóstico e fornecer ao
professor pontos de referência em relação às áreas/competências que devem ser
reforçadas. Pretendemos destacar a relevância i) da aferição/diagnóstico de competências,
ii) da motivação para o sucesso na aprendizagem de língua estrangeira e iii) do
desenvolvimento do trabalho autónomo. A metodologia do estudo baseia-se na utilização
do sistema de avaliação de língua –Dialang – e na aplicação de um questionário. Os
dados obtidos pelos alunos a pós aplicação dos testes – leitura, escrita, vocabulário e
gramática – foram comparados com as respostas ao questionário que apresentavam a
autopercepção dos alunos face ao seu próprio domínio de língua. Embora a amostra fosse
demasiado reduzida para ser representativa, a análise quantitativa simples dos resultados
permite indicar claramente os pontos fortes e fracos dos participantes relativamente à
língua inglesa. O estudo oferece um instrumento válido e fiável para os aconselhar e
motivar quanto à forma de melhorar essas competências linguísticas de forma autónoma.
Palavras-chave: ensino língua inglesa; competências linguísticas; diagnóstico;
motivação; autonomia de aprendizagem.
Abstract
This pilot study aims to assess the level of linguistic competencies in English of 22
students attending English I for Tourism. This study stems from the increasing
heterogeneity of language skills and language levels of our students; it aims to spur
students‟ self-awareness of their de facto language level and at the same time tries to
guide teachers in relation to the skills/fields of language knowledge that should be
covered in class. Finally, the study also aims to involve students in their self-assessment.
We wish to make salient i) assessment of skills, ii) motivation as an important means of
succeeding in learning a foreign language and iii) learner-centred teaching and learners‟
autonomy. Our methodology is based on the assessment system Dialang. Data collected
from tests‟ overall results were compared with questionnaires‟ answers which portrayed
students‟ self-perception in relation to their own language skills and levels. Even though
the sample was not large enough to be representative, a simple quantitative analysis of
results clearly indicates strengths and weaknesses of these language users; additionally,
these results seem to point the way to a reliable and valid instrument to council, guide and
motivate students for improving their language skills autonomously.
Keywords: TEFL; language skills; assessment; motivation; learning autonomy.
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Dos Algarves n.º20 - 2011
Página | 65
1. Introdução
O estudo apresentado neste artigo tem como objectivo aferir o nível de
domínio linguístico da língua inglesa de vinte e dois alunos que frequentaram a
disciplina de Inglês I para Turismo do 1.º ano da Licenciatura em Turismo da
Escola Superior de Gestão, Hotelaria e Turismo (ESGHT), da Universidade do
Algarve
(2009-2010).
O
estudo
visa,
por
um
lado,
promover
a
consciencialização, por parte dos alunos, dos seus conhecimentos reais de forma
a criar um ponto de partida para uma aprendizagem mais autónoma, autocrítica e
motivada e, por outro lado, fornecer ao professor um ponto de referência em
relação às áreas que devem ser substancialmente reforçadas e trabalhadas em sala
de aula (Alderson, 2005:4). Embora este estudo se apresente como um estudo de
caso dos alunos da ESGHT, é importante realçar que a metodologia e resultados
aqui apresentados poderão servir como estudo exploratório para a sua replicação
noutros contextos semelhantes e na avaliação de outras línguas estrangeiras,
dentro do contexto mais alargado dos objectivos do Conselho da Europa, para
promover o multilinguismo e o multiculturalismo.
Como ferramenta de diagnóstico do nível das competências linguísticas,
seleccionámos o Dialang - sistema de avaliação da língua. Este sistema é um
software de acesso livre na Internet que permite aferir os níveis de compreensão
oral, compreensão escrita, expressão escrita, vocabulário e estruturas gramaticais
em catorze línguas europeias.1
De forma a compreender em maior profundidade as competências dos
alunos e a sua autopercepção decidimos também aplicar um questionário curto
para poder enquadrar melhor cada aluno e comparar os resultados obtidos com o
percurso de aprendizagem do inglês dos alunos.
O presente artigo é constituído por cinco partes. Num primeiro momento,
faz-se a contextualização do estudo, a identificação do problema e a apresentação
dos objectivos. Segue-se a apresentação e descrição do sistema de avaliação
Para mais informações sobre este programa consultar „About
http://www.lancs.ac.uk/researchenterprise/dialang/about. consultado em 12.12.2010.
1
Dialang‟
A. P. Correia • F. Perdigão Ribeiro
Página | 66
Dialang. De seguida, é apresentada a organização do estudo e descrevem-se as
opções metodológicas conduzidas pela equipa, bem como a operacionalização do
projecto e, num quarto momento, discutem-se os resultados obtidos. Por fim, são
apresentadas as conclusões.
2. Contextualização do estudo
O Conselho da Europa vê a coesão na educação como um factor vital para
manter os direitos humanos e as liberdades na Europa. Não está apenas
preocupado com a incrementação da diversidade linguística e cultural dos seus
Estados-membros mas também com a promoção do multilinguismo e do
multiculturalismo entre os seus cidadãos (Sedgwick, 2007: 236). O Conselho
apoiou a Declaração de Bolonha, financiou o desenvolvimento do Quadro
Europeu Comum de Referência 2001 (QECR) e o desenvolvimento do Portefólio
Europeu de Línguas (Council of Europe, s.d.: 2001)através do projecto Políticas
Linguísticas para uma Europa Multilingue e Multicultural. Através desta acções,
o Conselho da Europa pretende desenvolver a abordagem harmoniosa do ensino
da língua baseado em princípios comuns, nomeadamente uma abordagem
coerente centrada no aluno:
To develop a harmonious approach to language teaching based on common principles
by pooling, through international co-operation, member States‟ experience
andexpertise in this area. The aim is to promote a coherent learner-centred approach to
language teaching, integrating aims, content, learning experiences and assessment.
(Council of Europe, s.d).
O nosso estudo situa-se neste contexto mais alargado da prossecução dos fins
estabelecidos pelo Conselho da Europa para o ensino/aprendizagem das línguas
estrangeiras e da alteração do paradigma de ensino baseado no professor para o
desenvolvimento de estratégias mais centradas no aluno, incluindo estratégias e
estilos de aprendizagem individuais.
O ensino da língua inglesa em cursos de ensino de inglês para fins
Dos Algarves n.º20 - 2011
Página | 67
específicos2tem como objectivo não só a motivação dos alunos para o domínio da
língua (Gardner, 1991; 2001) mas, essencialmente, a sua preparação para a
utilização eficaz da língua no contexto do mercado de trabalho (Weigle, 2002: 1).
Todavia, a nossa experiência enquanto docentes do ensino superior
politécnico mostra-nos que os conhecimentos da língua inglesa dos alunos
portugueses que terminam o ensino secundário são, muitas vezes, insuficientes e,
por isso, surgem estudantes no ensino superior com um domínio mínimo de
inglês. O nível de língua das disciplinas de inglês oferecidas no ensino superior
corresponde à expectativa que estes alunos, universitários, representem o
resultado de sete ou oito anos de aprendizagem de inglês nos níveis de ensino
anteriores e que sejam capazes de revelar competências linguísticas e bases
sólidas desta língua. O percurso de aprendizagem de Inglês até ao 11.º ou 12.º
corresponderia assim ao nível B2 do Quadro Europeu Comum de Referência
para as Línguas (QECRL).3
Porém, um dos problemas com que os professores se deparam nas aulas de
língua inglesa da ESGHT – e que julgamos não se limita apenas a esta instituição
- reside no facto de, numa mesma turma (Inglês I para Turismo) o professor ter
de lidar, na maior parte das vezes, com alunos que nunca estudaram inglês ou
que estudaram inglês somente entre três a cinco anos em simultâneo com alunos
com um nível de proficiência bastante elevado. Esta assimetria gera problemas
no funcionamento em sala de aula uma vez que o professor se vê confrontado
com alunos com necessidades e processos de aprendizagem muito díspares
(Shank e Terrill, 1995). Embora não constituam o nosso objecto de investigação
neste estudo, é importante explicitar outras duas variáveis importantes neste
processo: o facto de os alunos apresentarem estratégias individuais de
aprendizagem muito distintas que, naturalmente, condicionam a evolução dos
O ensino de línguas para fins específicos (ESP – English for Specific Purposes) pode ser
definido, de um modo genérico, como uma abordagem centrada nas necessidades presentes e/ou
futuras do estudante (Hutchinson e Waters, 1987: 19).
3
Desenvolvido pelo Conselho Europeu entre 1989 e 1996, o QECRL é um guia utilizado para
descrever os objectivos a serem alcançados pelos estudantes de línguas estrangeiras na Europa
que é, presentemente, o quadro de referência mais reconhecido no domínio da aprendizagem de
línguas.
2
A. P. Correia • F. Perdigão Ribeiro
Página | 68
seus conhecimentos e competências e também os próprios professores
oferecerem estratégias de ensino diferenciadas (ver Vermunt e Verloop, 1999).
Ao longo dos anos, os docentes de língua inglesa da ESGHT têm verificado
que estes estudantes, quando submetidos ao ensino de inglês para fins
específicos, não conseguem lidar com esta aprendizagem, manifestando sérias
dificuldades na activação de competências devido à falta de conhecimentos
linguísticos sólidos de base (Dudley-Evans e St John, 2006: 5),o que os impede
de desenvolver trabalho autónomo. Dickinson (1994) e Dudley-Evans e St. John
(2006: 5), mais recentemente, referem aliás que muitas das dificuldades no
desenvolvimento do trabalho autónomo na aprendizagem do inglês como língua
estrangeira (EFL – English as a Foreign Language) se devem à falta de
conhecimentos prévios.
A crescente heterogeneidade face aos conhecimentos e competências dos
alunos em inglês torna cada vez mais problemática a gestão do programa e das
turmas (Wrigley e Guth, 1992: 57), o que origina, por vezes, a desmotivação dos
alunos que não conseguem acompanhar o ritmo da turma devido à sua deficiente
aprendizagem anterior ou, no extremo oposto, dos que acabam por ser forçados a
repetir conteúdos (Bell, 1991; Shank e Terrill, 1995;Trang e Baldauf, 2007). Por
outro lado, também se nota nos alunos desta disciplina alguma incapacidade para
aferir as suas reais dificuldades ou necessidades de aprendizagem nas várias
competências e, tal como Trang e Baldauf (2007) observaram, nota-se
igualmente uma forte resistência ao desenvolvimento de rotinas de autoaprendizagem, tais como a utilização de dicionários, gramáticas ou mesmo a
Internet.
Dado que os professores se confrontam cada vez mais com esta disparidade
e, também, porque a capacidade para falar e escrever a língua inglesa ao nível
intermédio avançado (ver secção 3 abaixo) é uma competência fundamental e
indispensável do aluno do ensino superior, resolvemos seguir o conselho de
Weigle (2002:1): “Wherever the acquisition of a specific language skill is seen as
important, it becomes equally important to test that skill.” Assim, considerou-se
da maior relevância i) testar e aferir o nível de conhecimentos da língua inglesa,
Dos Algarves n.º20 - 2011
Página | 69
nas suas várias componentes, deste grupo de alunos, recorrendo a um
instrumento fiável, ii) confrontar esses resultados com a própria auto-avaliação
dos alunos e iii) enquadrá-los nos níveis propostos pelo QECRL.
Em suma, pretende-se contribuir para uma actividade docente mais
informada, para uma maior motivação dos alunos relativamente à aprendizagem
da língua inglês a assim como para uma maior eficácia da sua aprendizagem
aspectos fundamentais já tipificados por Warschauer (1996) e Dickinson (1995)
respectivamente.
3. O sistema de avaliação da língua - Dialang
O sistema de avaliação Dialang é um software para avaliação linguística que
permite conhecer e melhorar as competências linguísticas em catorze línguas
europeias (alemão, dinamarquês, espanhol, finlandês, francês, grego, holandês,
inglês, irlandês, islandês, italiano, norueguês, português e sueco). O projecto foi
desenvolvido por vinte e quatro universidades4 e instituições europeias, e teve o
apoio financeiro da Comissão Europeia de Dezembro de 1996 a Junho de 2004.5
Este sistema oferece testes diagnósticos metodologicamente desenvolvidos e
validados por especialistas europeus, permite a aferição das diferentes
competências linguísticas (compreensão oral, compreensão escrita, expressão
escrita, domínio vocabular e estruturas gramaticais) e proporciona o feedback
imediato dos resultados e aconselhamento de especialistas. Este programa pode
ser descarregado gratuitamente da Internet e os seus utilizadores têm de estar
online para poderem utilizar o software.
É também importante sublinhar que se trata do primeiro sistema de avaliação
linguística que tem como base o QECRL. A estrutura de avaliação do sistema
Dialang, assim como as escalas descritivas usadas para reportar os resultados dos
4
Em Portugal, por exemplo, estiveram envolvidas neste projecto as Universidades de Coimbra e
de Aveiro.
5
O projecto Dialang foi desenvolvido com o apoio da Comissão Europeia ao abrigo do
programa Sócrates – LINGUA 2.
A. P. Correia • F. Perdigão Ribeiro
Página | 70
seus utilizadores, fundamentam-se directamente neste quadro de referência que
se encontra dividido em seis níveis (A1, A2, B1, B2, C1 e C2; a escala estende-se
do A1=utilizador básico ao C2=utilizador proficiente) (Huhta et al., 2002).
Os seis níveis de referência estão estabelecidos para as diferentes
competências comunicativas: leitura, escrita, oralidade e compreensão oral. A
utilização de níveis comuns de referência contribui para a clareza e uniformidade
do Dialang, para a comparação dos processos de ensino e aprendizagem e
também para o respectivo reconhecimento dos níveis de competência alcançados.
Os materiais de avaliação deste sistema compreendem todos estes níveis e
apresentam avaliações independentes para as várias componentes linguísticas.
Os testes diagnósticos realizados com este sistema têm como objectivo
compreender os pontos fortes e fracos dos utilizadores relativamente à língua e,
simultaneamente, aconselhar quanto à forma de melhorar o seu desempenho
linguístico, para que o utilizador se torne mais consciente do seu domínio da
língua.
A escolha deste software prende-se com o facto de, tanto quanto nos foi
possível pesquisar, não termos encontrado nenhum outro sistema com estas
características (livre acesso, cinco componentes linguísticas em catorze línguas
europeias, diagnóstico imediato e feedback alargado baseado nas tarefas
efectuadas). De facto, tal como os especialistas na área da avaliação de línguas
estrangeiras que descrevem o Dialang como uma “ferramenta de diagnóstico
única” (Alderson, 2005: 3; Hughes, 2003:16), consideramos que este software
proporciona uma excelente base para um diagnóstico eficaz das necessidades
individuais do seu utilizador.
3.1 Procedimentos para a utilização do sistema Dialang
O sistema de avaliação Dialang está disponível para download. Depois de
iniciarem o programa, é pedido aos utilizadores que escolham a língua em que
desejam que todas as instruções e feedback sejam apresentados e a língua do teste
Dos Algarves n.º20 - 2011
Página | 71
que pretendem realizar. De seguida, seleccionam o teste a que desejam
responder, escolhendo uma das cinco alternativas possíveis: leitura, escrita,
audição, vocabulário e gramática.
O Dialang funciona com testes de nível adaptado, ou seja, com base nas
respostas da auto-avaliação, o sistema escolhe um teste com o nível de
dificuldade adequado ao utilizador a partir de três escolhas possíveis: elementar,
independente ou proficiente. São utilizados dois procedimentos que possibilitam
a definição do nível do aluno: em primeiro lugar, um pré-teste baseado no
conhecimento do vocabulário e, seguidamente, um conjunto de perguntas através
das quais o utilizador faz uma auto-avaliação dos seus conhecimentos de inglês.
Inicialmente, os utilizadores do Dialang têm de reconhecer, de entre uma lista de
palavras, os verbos que existem na língua inglesa e os que não existem (por
exemplo “to fear” ou “to fabulation”6). Este teste é utilizado para determinar a
variedade vocabular do utilizador. No segundo passo é apresentado ao utilizador
uma escala com seis níveis de capacidade e, de seguida, um conjunto de
afirmações iniciadas por “I can” (por exemplo: “I can write simple isolated
phrases and sentences” ou “I can give clear detailed descriptions of complex
subjects”7) que solicitam uma resposta de sim/não, através das quais o próprio
utilizador avalia as suas competências linguísticas na língua seleccionada. As
respostas dadas permitem, então, seleccionar o nível de dificuldade adequado ao
nível do utilizador e a partir do qual o teste se inicia. Cada teste é composto por
um total de trinta itens (por exemplo, escolha-múltipla, preenchimento de
espaços, respostas curtas).
No final de cada um dos testes, e após completar o total do conjunto de
tarefas, o sistema fornece o feedback ao utilizador, apresentando os resultados
que, como já foi referido, se baseiam na escala de seis níveis do QECRL e dá a
oportunidade aos seus utilizadores de compararem as respostas dadas com as
respostas correctas do teste a que responderam. No final desta secção, o
utilizador pode escolher realizar o teste numa outra componente linguística na
6
7
Fase II – Teste diagnóstico
Fase III – Auto-avaliação
A. P. Correia • F. Perdigão Ribeiro
Página | 72
mesma língua ou não continuar. Como limitação, o programa não permite
nenhuma impressão ou gravação dos testes durante a sua execução, nem dos
resultados e do feedback.
4. Método
No que diz respeito ao método seguido, foi já referido que estes testes
diagnósticos foram realizados por um total de vinte e dois alunos, o que
representa cerca de 50% dos alunos inscritos numa turma (o número médio de
alunos inscritos é de quarenta e cinco) e quase 100% dos que frequentam as aulas
numa base regular. A aplicação dos testes diagnósticos teve lugar no início do
segundo semestre de 2010.
Tabela 1: Fases e duração das sessões
Fases das sessões
1. Aplicação do questionário
2. Leitura das instruções para a realização do teste
3. Pré-teste
4. Teste de Leitura - feedback e registo dos resultados
5. Pausa
6. Teste de Escrita - feedback e registo dos resultados
7. Pausa
8. Teste de Vocabulário - feedback e registo dos resultados
9. Teste de Estruturas gramaticais - feedback e registo dos resultados
Duração total
Duração
aproximada em
minutos
00:05
00:05
00:10
00:45
00:10
00:45
00:10
00:20
00:20
02:508
A estes alunos foi pedido, no primeiro momento, que preenchessem um
questionário com informação sobre o seu percurso na aprendizagem da língua
inglesa de forma a procedermos à caracterização da população. Neste
8
De notar que a longa duração das sessões se deve à forma como os testes Dialang estão
estruturados. Uma forma de evitar o cansaço dos participantes será dividir a realização dos
testes em diversas sessões de menor duração.
Dos Algarves n.º20 - 2011
Página | 73
questionário pedimos também aos alunos que fizessem uma auto-avaliação dos
seus conhecimentos nas competências e componentes que seriam depois
avaliadas pelo Dialang. No segundo momento, e após serem dadas informações
sobre o programa Dialang e instruções para a realização dos vários testes, estes
alunos responderam ao pré-teste e, de seguida, aos testes de leitura, escrita,
estruturas gramaticais e domínio vocabular. Nesta fase foi também fornecido um
documento escrito com a listagem de todos os procedimentos a seguir na
realização dos vários testes. O terceiro momento consistiu no registo escrito dos
resultados dos testes num documento concebido especificamente para esse efeito.
Os documentos foram todos elaborados em inglês. Cada um dos quatro
momentos acima referidos foi organizado da forma apresentada na Tabela 1.
5. Caracterização da amostra
A partir do questionário inicial preenchido pelos alunos, a nosso pedido, com
o objectivo de obtermos informação sobre o seu percurso na aprendizagem da
língua inglesa, conseguimos fazer a caracterização da amostra.
Tabela 2. Anos de aprendizagem de Inglês
Anos de Inglês
Nº de alunos
%
1 a 2 anos
1
4,5
3 a 4 anos
2
9,1
5 anos
2
9,1
6 a 7 anos
8
36,4
8 a 9 anos
6
27,3
> 10 anos
3
13,6
Total
22
100,0
A. P. Correia • F. Perdigão Ribeiro
Página | 74
Dos vinte e dois alunos inquiridos, vinte são de nacionalidade portuguesa,
um de nacionalidade brasileira e um de nacionalidade timorense. Destes alunos,
dezasseis são do Algarve, cinco vêm do resto do país e um é de Timor (mas
encontra-se a frequentar o curso em Portugal). Todos estes estudantes estudam ou
estudaram outras línguas, principalmente francês e alemão mas também italiano e
espanhol. Dos vinte e dois alunos, dezasseis têm menos de 20 anos e cinco têm
entre 21 e 33 anos.
Podemos também verificar na Tabela 2 a grande dispersão do número de
anos em que estes alunos estudaram inglês, por exemplo, temos um aluno que só
estudou inglês durante um a dois anos e nove alunos que estudaram mais de oito
anos.
6. Resultados
Como referido anteriormente, ao preencherem o nosso questionário inicial,
todos os alunos tiveram que indicar o nível (poor, fair, good, very good,
excellent) que consideravam corresponder aos seus conhecimentos (nas quatro
componentes: leitura, escrita, gramática e vocabulário) antes de iniciarem os
testes do Dialang.
O gráfico 1 apresenta o cruzamento entre a auto-avaliação que os alunos
fizeram das suas capacidades de leitura e o resultado do teste de leitura do
Dialang. Podemos verificar que 40% dos alunos que consideraram as suas
capacidades de leitura boas, muito boas e excelentes (good, very good, excellent)
foram posicionados no nível A1 e A2, ou seja, no nível elementar. Este grande
desfasamento entre o que os estudantes consideram dominar e o que na realidade
dominam é consistente em vários dos testes realizados, como veremos ao longo
deste artigo.
Dos Algarves n.º20 - 2011
Página | 75
Gráfico 1: Leitura: Auto-avaliação vs Dialang
No que diz respeito à expressão escrita, continuamos a verificar alguma
inconsistência no que os alunos julgam ser as suas capacidades (e o que na
verdade são). Os dados mais relevantes observados são a percentagem de
estudantes que afirma ter um conhecimento bom – 15% (good) ou mesmo muito
bom – 5% (very good) e são posicionados pelo Dialang no nível A2.
Gráfico 2: Escrita: Auto-avaliação vs Dialang
A. P. Correia • F. Perdigão Ribeiro
Página | 76
Relativamente ao conhecimento das estruturas gramaticais, no gráfico 3
podemos verificar que há uma maior correspondência entre aquilo que o aluno
julga saber e aquilo que sabe na verdade. Se somarmos os alunos que dizem ser
bons e muito bons na gramática (good, very good), verificamos que uma grande
maioria se posiciona no nível B1 e B2 e destes temos também cerca de 35% dos
alunos que fazem uma avaliação muito conservadora do que sabem, ou seja,
avaliam os seus conhecimentos de gramática como suficientes (fair) e são
posicionados no nível B1 e principalmente B2.
Gráfico 3: Gramática: Auto-avaliação vs Dialang
No que diz respeito aos resultados para o vocabulário, no gráfico 4 podemos
também verificar que há uma maior correspondência entre a auto-avaliação do
aluno e os resultados do teste de vocabulário do Dialang. Os alunos que dizem
ser bons (good) (35%) e muito bons (very good) (20%) no domínio vocabular são
maioritariamente posicionados no nível B1 e B2.
Procurámos também comparar o número de anos de aprendizagem de inglês
dos alunos com o nível geral obtido nos quatro testes Dialang aplicados (reading,
writing, grammar, vocabulary).
Dos Algarves n.º20 - 2011
Página | 77
Gráfico 4: Vocabulário: Auto-avaliação vs Dialang
Quando fizemos o cruzamento dos nove alunos com oito ou mais anos de
inglês (ver Tabela 2, acima) com as quatro componentes avaliadas pelo Dialang,
verificámos que as competências da leitura (reading) e da escrita (writing) estão
muito abaixo do que se esperaria para oito ou mais anos de aprendizagem uma
vez que muitos destes alunos aparecem posicionados nos níveis A1-A2 e também
B1.
Gráfico 5: Alunos com oito ou mais anos de aprendizagem
A. P. Correia • F. Perdigão Ribeiro
Página | 78
Também se verifica que os resultados dos testes de gramática e vocabulário
estão maioritariamente ao nível do B1 e B2e que não se avaliam alunos com
resultados ao nível do C1 e C2.
No gráfico 6 podemos verificar que os estudantes que estudaram inglês
durante seis ou sete anos (total de oito alunos da amostra) ou seja, até ao 11.º ano
do
ensino
secundário,
são
maioritariamente
incluídos
no
nível
A2,
principalmente no que diz respeito à competência de leitura (reading).
Paradoxalmente, estes alunos com seis - sete anos de aprendizagem parecem ter
globalmente melhores resultados do que os que têm oito ou mais anos de
aprendizagem, uma vez que não há inquiridos com nível A1.
Gráfico 6: Alunos com seis a sete anos de aprendizagem
Surpreendentemente, no gráfico 7, temos alunos que dizem ter três a cinco
anos de aprendizagem de inglês e que se distribuem pelos cinco níveis de
conhecimento.
Gráfico 7: Alunos com três a cinco anos de aprendizagem
Dos Algarves n.º20 - 2011
Página | 79
O gráfico 8 (abaixo) apresenta a síntese da situação na sala de aula da
disciplina de Inglês I para Turismo da ESGHT, ou seja, vinte e dois alunos de
uma mesma turma apresentam-se com esta dispersão de nível de conhecimento
nas quatro componentes, quando esperaríamos eventualmente ter apenas um ou
dois alunos nas pontas e a larga maioria (cerca de 85 – 90%) nos níveis B1 – B2.
Como balanço dos resultados apresentados, verificamos que a turma de Inglês I
para Turismo possui alunos de cinco níveis diferentes, desde o nível A1 ao C1.
Podemos também adiantar que para a leitura e escrita temos dez alunos
posicionados no A1-A2, ou seja, cerca de 50% dos alunos que frequentam a
disciplina numa base regular. Na gramática e no vocabulário temos cerca de 25%
dos alunos nestes níveis elementares. Posicionados no nível esperado para 1.º ano
do curso de Turismo temos 40% (9) na Leitura (B1-B2), 50% (11) na Escrita,
(B1-B2), 80% (17) na Gramática (B1-B2) e 65% (14) no Vocabulário (B1-B2).
Para terminar, verificamos que os resultados apresentados no gráfico-síntese
provam claramente que o professor tem uma tarefa muito complexa ao ter de
gerir um conjunto de alunos com níveis tão díspares, e comprovam também que
os alunos têm a sua aprendizagem de língua muito dificultada.
Gráfico 8: Síntese: Nível global de aprendizagem
A. P. Correia • F. Perdigão Ribeiro
Página | 80
7. Limitações do estudo-piloto
No decorrer do nosso estudo, deparámo-nos com algumas limitações,
nomeadamente o facto de não se encontrarem quaisquer outros estudos com
populações internacionais ou com a população portuguesa nos quais o sistema
Dialang tenha sido aplicado. Como também não foram encontrados estudos nos
quais se investigasse a aferição do nível de inglês de grupos de alunos
portugueses, não foi possível proceder-se a uma análise comparada ou
contrastiva na população universitária portuguesa.
Não obstante o tamanho reduzido da amostra, consideramos que este estudo
nos permite tirar alguns resultados preliminares que devem ser comprovados em
estudos futuros.
Uma limitação adicional foi a não realização do teste de compreensão oral
por razões técnicas, uma vez que necessitaríamos de equipamento áudio para
cada computador respectivamente e laboratório de línguas equipado com
auscultadores individuais.
8. Conclusões
Partimos do pressuposto que, conforme enuncia Weigle (2002: 1), há uma
necessidade cada vez maior de encontrar formas válidas e fiáveis para testar os
conhecimentos de língua. Estamos conscientes da importância das duas vertentes
promovidas pelo Conselho da Europa aqui apresentadas: por um lado, a
promoção do ensino centrado no aluno e, por outro, a importância vital do
multilinguismo no contexto Europeu (e também global). Este estudo teve como
objectivo aferir o nível de inglês de vinte e dois alunos que frequentaram o 1.º
ano da Licenciatura em Turismo da ESGHT (2009/2010) e, para tal, foi utilizado
o software de avaliação Dialang. O presente estudo assume uma natureza de
estudo exploratório no qual procurávamos testar várias componentes: a aplicação
Dos Algarves n.º20 - 2011
Página | 81
da ferramenta Dialang na população da ESGHT; a exequibilidade num conjunto
grande de alunos; a utilidade da ferramenta na aferição dos conhecimentos dos
alunos; a utilidade da ferramenta para fornecer informação fiável e válida sobre
os conhecimentos de língua inglesa dos nossos alunos.
Como conclusões, podemos afirmar que o Dialang foi considerado uma
ferramenta útil, fácil de utilizar para aferir, com rigor, a capacidade linguística
destes alunos. Verificámos e comprovámos que numa mesma turma/sala de aula
nos deparamos com alunos com os mais diversos níveis de conhecimentos de
inglês. Este facto fundamenta o carácter de urgência de uma avaliação
diagnóstica dos alunos desde cedo no ano lectivo e também comprova a
necessidade do professor de língua compreender os diferentes estilos de
aprendizagem individuais (Vermunt e Verloop, 1999), que poderão também ser
responsáveis pela dispersão encontrada.
No que diz respeito aos alunos, o estudo contribuiu para a autopercepção das
suas próprias dificuldades e do nível em que se encontram, para tomarem
consciência face à sua própria aprendizagem e domínio da língua e para uma
maior motivação e eficácia relativamente à aprendizagem da língua inglesa.
Do ponto de vista do professor, contribuiu para uma actividade docente mais
informada e sustentada uma vez que nos permitiu ter uma maior percepção do
nível dos nossos alunos e, consequentemente, pensarmos em definir estratégias
para ultrapassar as dificuldades com que somos confrontados. Por outro lado,
esperamos que a aplicação desta ferramenta e a avaliação cuidadosa dos seus
resultados conduza a uma reavaliação das estratégias usadas em sala de aula.
O nosso próximo passo será aplicar este estudo a todos os alunos do 1.º ano
do curso de Turismo e confirmar ou infirmar os resultados agora apresentados,
bem como aferir a metodologia e os instrumentos utilizados. Por fim, estamos
conscientes que há um imenso trabalho a desenvolver na área da
conceptualização da aprendizagem do estudante, uma vez que estudos recentes
apontam para a investigação das inter-relações entre as componentes cognitiva,
reguladora e motivacional (Vermunt e Vermetten, 2004).
A. P. Correia • F. Perdigão Ribeiro
Página | 82
Referências
Alderson, J. (2005). Diagnosing foreign language proficiency. The interface between learning
and assessment. New York: Continuum.
Bell, J. (1991). Teaching multilevel classes in ESL. San Diego, CA: Dominie Press.
Council of Europe.(2001). Common European framework of reference for languages: learning,
teaching, assessment. Cambridge: Cambridge University Press.
Council of Europe. (n.d.).European language policy.
<http://www.coe.int/t/dg4/linguistic/default_EN.asp>consultado em 3.01.2011.
Dialang, <http://www.lancs.ac.uk/researchenterprise/dialang/about;actualizado> consultado em
10.11.2010.
Dickinson, L. (1994). Learner autonomy: what, why and how? In V. J. Leffa (Ed.), Autonomy in
Language Learning (pp. 2-12). Porto Alegre: Editora da Universidade.
Dickinson, L.(1995). Autonomy and motivation: a literature review. System, 23/2, 165 174.
Gardner, R.C. (1991). Attitudes and motivation in second language learning. In Allan. G.
Reynolds (Ed.), Bilingualism, Multiculturalism, and Second Language Learning (pp. 4363). Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum.
Gardner, R.C. (2001). Language Learning Motivation: The Student, the Teacher and the
Researcher. Texas Papers in Foreign Language Education, 6, 1-18.
Hughes, A. (2003). Testing For Language Teachers. Cambridge: Cambridge University Press.
Huhta, A., Luoma, S., Oscarson, M., Sajavaara, K., Takala, S. e Teasdale, A. (2002).
DIALANG - A Diagnostic Language Assessment System for Learners. In J.C. Alderson
(ed.), Common European Framework of Reference for Languages: Learning, Teaching,
Assessment - Case Studies (pp.130-146). Strasbourg: Council of Europe.
Sedgwick, C. (2007). Survey to investigate expectations of achievement in written English on
English Language Degree Programmes in Europe.Language Assessment Quarterly, 4 (3):
235-256.
Shank, C., & Terrill, L. (1995). Teaching multilevel adult ESL classes. ERIC Digest.
Washington, DC: National Clearinghouse for ESL Literacy Education.
Trang, T. T. R., & Baldauf, R. B. (2007). Demotivation: Understanding resistance to English
languagelearning: The case of Vietnamese students. The Journal of Asia TEFL, 4, 1, 79–
105.
Vermunt, J. D.şiVerloop, N. (1999). Congruence and friction between learning and
Teaching. Learning and Instruction, 9: 257-280.
Vermunt, J. D. e Vermetten, Y. J. (2004). Patterns in Student Learning: Relationships Between
Learning Strategies, Conceptions of Learning, and Learning Orientations. Educational
Psychology Review, 16, 4: 359-384.
Warschauer, M. (1996).Motivationalaspectsofusingcomputersforwritingandcommunication.In
M. Warschauer (Ed.), Telecollaboration in Foreign Language Learning (pp. 29-48).
Honolulu: University of Hawaii Press.
Weigle, Sara Cushing. (2002). Assessing Writing. Cambridge: Cambridge University Press.
Wrigley, H.S. &Guth, G.J.A. (1992).Bringing literacy to life: Issues and options in adult ESL
literacy.San Mateo, CA: Aguirre International.
Dos Algarves n.º20 - 2011
Página | 83
ANA PAULA CORREIA é equiparada a Professora adjunta da Escola Superior de Gestão,
Hotelaria e Turismo da Universidade do Algarve onde lecciona desde 1997. Tem ministrado
diversas disciplinas na área das Línguas, nomeadamente Inglês para Turismo, Inglês para
Gestão, Inglês para Gestão Hoteleira e Inglês para Assessoria de Administração. É, desde 2006,
membro da Comissão de Avaliação das Provas de Avaliação e Capacidade para a Frequência do
Ensino Superior para Maiores de 23 anos (candidatos às Licenciaturas em Turismo e
Informação e Animação Turística). Em 2009 foi convidada para integrar o conselho editorial da
revista Dos Algarves, sendo, actualmente, revisora desta publicação. Tem um mestrado em
Estudos Anglísticos pela Universidade Clássica de Lisboa. Actualmente, está a fazer
doutoramento na área dos Estudos Ingleses na Universidade Aberta.
FILIPA PERDIGÃO RIBEIRO é professora adjunta da Escola Superior de Gestão, Hotelaria e
Turismo da Universidade do Algarve onde lecciona desde 1993. Tem ministrado diversas
disciplinas na área das Línguas, nomeadamente Inglês para Turismo e Inglês para Gestão. Foi
uma das fundadoras do CLIMT – Centro de Línguas Modernas e Tradução da ESGHT – e
dirigiu este Centro durante vários anos. Frequentou o módulo de Language Assessment com o
professor Charles Alderson na Lancaster University, U.K. Foi também nesta instituição que
obteve o grau de doutor na área de Linguística Aplicada.
Submetido: Novembro 2010
Aceite: Fevereiro 2011
In Eroticization of the religious in the poetry of Florbela Espanca
Maria da Conceição Lopes Gordon
Instituto Superior de Línguas e Administração – Lisboa
[email protected]
Resumo
Deus e religião em Florbela Espanca: um discurso de ambivalência e de (in)devida
apropriação. Florbela Espanca nasceu em 1894 e morreu em 1930, um período agitado na
História de Portugal que abarcou o declínio da Monarquia, a implementação da Primeira
República e a emergência do que viria a ser o regime salazarista. Em paralelo, houve
também várias oscilações na relação entre o Estado e a Igreja. Este artigo começa por
apresentar indícios da conexão da autora com, por um lado, o seu tempo em termos
históricos e religiosos e, por outro, a sua faceta pagã. Procedemos então para uma análise
de alguns dos poemas das suas três últimas colecções – Livro de Soror Saudade,
Charneca em Flor and Reliquiæ –, realçando sobretudo a presença de aspectos religiosos
associados a metáforas de sexualidade, e substituindo assim a associação clássica entre a
religião e o saudosismo na sua poesia.
Palavras-chave: Florbela Espanca; Primeira República; paganismo; sexualidade;
religião.
Abstract
God and religion in Florbela Espanca: a discourse of ambivalence and (mis)appropriation.
Florbela Espanca was born in 1894 and died in 1930, a tumultuous period in Portuguese
history that encompassed the decline of the Monarchy, the implementation of the First
Republic and the emergence of what was to become the Salazarist regime. In parallel,
there were many fluctuations in the relationship between Church and State. This paper
begins by, on the one hand, addressing the connection between the author and her time in
terms of history and religion, while considering her pagan facet on the other hand. What
follows is an analysis of some of the poems of her last three collection – Livro de Soror
Saudade, Charneca em Flor and Reliquiæ –, seeking to emphasize religious aspects
linked to sexuality metaphors and, thus, to offer a fresher perspective in opposition to the
classic association between religion and saudosismo in her poetry.
Keywords: Florbela Espanca; First Republic; paganism; sexuality; religion.
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 85
1. Introduction
Florbela Espanca lived through a turbulent political period in Portuguese
history, the First Republic (1910-1926). Amongst other things, the regime was
controversial in terms of its approach to the Church. The present study begins by
addressing this issue, which is followed by a discussion of the pagan facet of
Florbela‟s lyrical voice in opposition to the religious. The final and the lengthiest
section concerns the discussion of the intertwinement of sexual and religious
imagery in three of the poet‟s collections: Livro de Soror Saudade, Charneca em
Flor and Reliquiæ. These are the last three published poetry works of the author
which, I would suggest, convey a more mature image of the relationship between
the sexual woman and the religious aspects of her time.
2. The First Republic
In accordance with its anticlerical attitude, the First Republic adopted strict
measures in relation to the strong influence of the institution of the Church. In the
opinion of Paul Christopher Manuel, this was one of the most successful
enterprises of the administration, an affirmation that could be disputed (2002:
78). To the effect of capping the Church‟s control over the population, the Prime
Minister at the time, Afonso Costa, instituted the well-known Lei da Separação
(1911), whereby Church and State were made completely separate entities and
the former was stripped of most of its power. Luís Aguiar Santos rationalizes this
law in the following way: “uma tentativa de controlo administrativo de todas as
actividades eclesiásticas, com a manutenção do mecanismo regalista do
beneplácito” (2002: 17). While this position had a practical intent, namely to free
the people from what the State considered to be a blind devotion to the Catholic
Church and to allow them to have choices hitherto unimaginable – the act of
divorce, for example –, it was, first and foremost, fuelled by the anticlerical
Portuguese Freemasonry. The radicalism implied in shifting from the clergy as
M. C. Lopes Gordon
Página | 86
the dominant force in the nation‟s psyche – something that worked remarkably
well at a parish level, as Eça‟s O Crime do Padre Amaro (first published in its
definitive version in 1880) mordantly demonstrates – to eradicating this in favour
of a depersonalized political figure and centralized government was far from
straightforward. Vitor Neto argues that:
Daí as razões de um combate infindável entre posições, que pareciam irredutíveis,
numa época em que a questão do combate contra o clero assumia grande relevância e
ocupava o espaço mental das elites republicanas e de largos sectores das camadas
populares. (2004: 27-8)
Neto‟s statement may be overambitious in declaring the support of a large
part of the Portuguese population. Traditionally, Portugal had – and it could be
argued that nowadays it is still the case – a divide between the macrocephalic
capital, Lisbon, and the rest of the country, and between coastal and rural areas.
This separation also reflected the position of the Church, which was stronger
outside of Lisbon, and particularly inland, where progress usually arrived at a
distinctively slow pace. Therefore, it is difficult to imagine “largos sectores das
camadas populares”, little accustomed to change, to have readily accepted such a
drastic overturning. In this context, Paul Christopher Manuel argues: “although
there were cases of popular anticlericalism in Portugal, it should be noted that the
anticlericalism under the First Portuguese Republic was found primarily among
the political elite” (2002: 76). Furthermore, as the regime became more unsteady
and the elites began to feel the instability and to express fear towards the current
situation, their position also changed. It is Santos who stresses the crucial point
that the Church, contrary to what the First Republic anticipated at first, was a
force with which to be reckoned and that, this being the case:
Muitas pessoas nas elites secularizadas, convencidas já da dificuldade de desmantelar
a Igreja e reduzir repentinamente a influência clerical, mostrar-se-iam até seduzidas
pelo seu aparato dogmático, institucional e hierárquico, capaz de fornecer à sociedade
uma superestrutura de valores e, a partir destes, uma uniformidade cultural muitas
vezes contraposta, em termos de paradigma, à “desordem”. (2002: 18)
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 87
The alleged stability provided by the institution of the Church was one of
many factors that, eventually, led to the demise of the First Republic and to the
ascension of the Second Republic (1926) and the Estado Novo (1933), both with
António de Oliveira Salazar as the prominent figure and both fundamentally proChurch at their core.
3. Paganism
The historical outline provided above is not without relevance to Florbela
Espanca as an author who lived through a time of socio-political change in
Portugal and to the poetic subject in her poetry who, despite questioning the
existence of one superior entity, frequently addresses a Catholic God in her
quest. In “Florbela Espanca e a subversão de alguns topoi”, Isabel Allegro de
Magalhães highlights:
Na poesia florbeliana existem frequentes marcas reveladoras da sua inserção num país
de cultura católica. No entanto, vêmo-la escapar-lhes, procurando libertar-se de
quaisquer amarras, religiosas e outras, que restrinjam a sua liberdade. Não é, contudo,
sem hesitação que esses escapes se fazem, pois várias vezes a ouvimos falar de culpa,
de blasfémia ou da sua situação de “perdida”. (1997: 224)1
Furthermore, Magalhães‟s deliberation that the lyrical voice oscillates
between the pagan who adores nature and the religious who searches for God –
while pursuing Self and Other –, at times appropriating the God-like image to
describe herself or the lover, makes a valid point. In relation to the overwhelming
pantheism conveyed in some of the author‟s sonnets and to “the sense of nature
as a manifestation of the law”, Northrop Frye is illuminating: “Local deities of
rivers, trees, mountains, along with the sun and the moon, are among the most
primitive of divinities” (1991: 59). All of these mark their presence in Florbela‟s
Indeed, Florbela has two sonnets titled “Minha Culpa” (Charneca em Flor, p. 343) and
“Blasfémia” (Reliquiæ, p. 369), and several of her poems allude to her status as perdida, one of
which being “Fanatismo” (Livro de Soror Saudade, p. 262).
1
M. C. Lopes Gordon
Página | 88
lyric and are employed by the poet to reveal a state of being.2 Frye also
underlines that, etymologically, a pagan is a peasant (paganus), and a wanderer
(1991: 60). Florbela‟s poetry offers several examples of the Judeu Errante who
does not know where he has come from and, least so, where he is headed. In
Livro de Soror Saudade, the sonnet “Hora Que Passa” presents the “Judeu
Errante que a ninguém faz dó!” (p. 292), whereas in Charneca em Flor the poetic
subject affirms that it was exactly the “Mocidade” “que fez de [si] Judeu Errante”
(p. 321). She borrows the image of the deserted wanderer with no homeland to
portray her own feeling of abandonment and subsequent solitude. This yields to
intense solipsism.
4. Sexual and religious imagery
The last aspect to be considered before proceeding to an analysis of poems
with specific semantics is the eroticization of the religious. According to
Angélica Soares, even if obliquely so, Florbela‟s poetry has a social dimension
when blending the two concepts:
A recuperação poética do carácter religioso do erotismo conduz a uma superação do
estreitamento das religiões ocidentais, que sempre se empenharam em separar o
sagrado do profano, situando neste último as manifestações do corpo e reunindo-se às
noções de impureza e de mácula. E note-se ainda que o moralismo das instituições
religiosas, ligado a estratégias de dominação masculina, acabaram por interditar, mais
fortemente, à mulher, a vivência do desejo. (1997: 133)
2
There are numerous exemplary poems throughout the three collections of the present study,
most of which in Charneca em Flor. Examples of such are “Charneca em Flor” (p. 299),
“Espera” (p. 326), “Volúpia” (p. 328), “Sou Eu!” (p. 339) and “Panteísmo” (p. 340). Florbela,
the author, also provides evidence of the belief in a pagan nature in her letters and diary.
Pantheistic symbols abound in her poetry, a quality that she reiterates in her diary, in the entry
dated 21 January 1930: “Não esgotei ainda, graças aos deuses, o arrepio de prazer, o
estremecimento de entusiasmo, este élan quase divino, para tudo o que é belo, grande e puro:
flor a abrir ou tinta de crepúsculo, raminho de árvore, ou gota de chuva, cores, linhas, perfumes,
asas, todas as belas coisas que me consolam de resto. Serei eu apenas uma panteísta?” (2002:
258).
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 89
While not contending with the argument that the junction of the two
prerogatives may be interpreted as a subversion of patriarchal dominance, it
could nonetheless be suggested that this is a response to a personal, rather than
social, need. As for the poetic subject, Magalhães observes the following: “[Ela
está] a viver a sensualidade como elemento constitutivo da sua religiosidade”
(1997: 225). Even when denying the existence of religion, she is still affirming it,
as illustrated in the line: “E eu, que não creio em nada, sou mais crente”
(“Anoitecer”, p. 275), in Livro de Soror Saudade.
4.1 Livro de Soror Saudade
Florbela was born during the monarchic regime, lived through the First
Republic and, in the last few years of her life, experienced the initial period of the
rule of Oliveira Salazar, the chief-to-be of the Estado Novo. Coming from the
inland region of Alentejo and not being part of the elites, one would suspect her
not to be entirely persuaded by the anticlerical rule that characterized the First
Republic. Moreover, she was actively writing when the later phase of the First
Republic was instituted and when the Second Republic commenced, the two
representing a gradual shift towards clericalism.3 The author was, therefore,
familiar with Catholic rituals. Despite the “beijos estáticos, pagãos” (“Exaltação”,
p. 295), which will afterwards symbolize the awakening of an active predatory
female sexuality, her poetry provides evidence of this acquaintance. In the poem
As Neto explains: “Durante a vigência da 1ª República existiram duas fases bastante
diferenciadas: a primeira, entre 1910 e 1917, caracterizada pela ausência de relações políticas e
diplomáticas com a Santa Sé e por uma verdadeira „guerra religiosa‟ no conjunto do país; a
segunda inaugurada pelo Sidonismo, após o reatamento das relações diplomáticas entre Portugal
e o Vaticano” (2004: 17). In respect to Florbela, she writes in her diary, in an entry dated 3
August 1930: “Eu não sou católica, como não sou protestante nem budista, maometana ou
teosofista. Não sou nada.” (2002: 274). Nonetheless, in another entry, dated 11 January 1930
and presented in a more recent version of her diary, she acknowledges her belief in God: “Deus
malicioso e frívolo que tão lindos mantos teces sobre os ombros das mulheres que vivem. Para
mim és um fantoche, ora amável ora rabugento, de que conheço todos os fios, de quem eu sei de
cor todas as contorções” (1986: IV, 123). Furthermore, there are abundant references to God in
her diary. For example, “Deus do Céu” (2002: 270), “Pelo amor de Deus” (2002: 274), “meu
Deus” (2002: 276), “graças a Deus” (2002: 278) and “Deus lho pagará” (2002: 296).
3
M. C. Lopes Gordon
Página | 90
“Sol Poente”, for instance, she makes reference to the rite of mass at the end of
the day: “Tardinha… <<Avé-Maria, Mãe de Deus…>> | E reza a voz dos sinos e
das noras…”. This is the time of the “cabeças mart‟rizadas | [que] ficam
pensativas… meditando…”, that moment of the day when, just as the evening is
about to settle in, the pain of the poetic voice is most exacerbated (p. 294). Hence,
it is associated with religious imagery appropriated by the subject in order to
convey a concordant state of being. Considering the designation of Soror
Saudade, Maria Lúcia Dal Farra highlights that:
Assumindo com convicção essa máscara poética propícia e convincente, ao mesmo
tempo que com o título veste o hábito e se recolhe à sua cela, Florbela tem
oportunidade de vasculhar, para conhecer, o que de recolhimento, de unção, de “hóstia
comungada”, de humilhação e de renúncia o percurso amoroso encerra. A partir de
então, o amor se revela via de martírio e de calvário, e a desistência do mundo,
sondada agora no signo “convento”, encontra justificativa no uso poético anterior e
posteriormente incisivo da sua “precoce velhice”. (1995: 45. Author‟s italics.)
Conversely, it could be suggested that she employs religious symbolism to
express negative feelings as a reaction to the oppression received from society
and, intrinsically, the institutional Church itself, as a long-standing representative
of the symbolic realm. Therefore, she reacts instinctively against what she
perceives as an aggressive exertion of power. In “Ódio?”, her “olhar de monja,
trágico, gelado” is “como um soturno e enorme Campo Santo” (p. 285). As the
lover has departed and she undergoes a period of mourning in isolation, common
icons of religiosity acquire a darker connotation. In “Cinzento”, there are:
Monges soturnos deslizando lentos,
Devagarinho, em mist‟riosos passos…
Perde-se a luz em lânguidos cansaços…
Ergue-se a minha cruz dos desalentos! (p. 279)
This is the cross of disillusionment, of an inevitable march to death, as she
feels crucified by emotional scarring. In fact, with its strong image of intangibility
conferred by terms such as poeiras, fumo leve and névoa, the poem may also be
alluding to the weak foundations of both individual and religious feeling. The
religious appropriation of the cross, itself a visual representation of the referential
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 91
horizontal and vertical axes, is recurrent in Florbela‟s poetry. Although broadly
correlated with pain, it serves different purposes.4 In “Renúncia”, her
youthfulness “passa dias, noites, sempre presa, | Olhos fechados, magras mãos em
cruz…”, a sacrificial scenario that is not sufficient for the lyrical subject to
express her extreme condition of suffering. Hence, she addresses herself
imperatively: “Prende os teu braços a uma cruz maior!”. As time slowly elapses,
she prays for a hastier death, the cure for the future of anguish she foresees. Yet:
Lá fora, a Noite, Satanás, seduz!
Desdobra-se em requintes de Beleza…
É como um beijo ardente a Natureza…(p. 286)
The poetic subject is fully alert to the world outside her confinement and is
making an effort to abdicate from it, in an attempt to shield herself from agony.
This is a form of moral masochism, as termed by Freud, “where the subject, as a
result of an unconscious sense of guilt, seeks out the position of victim without
any sexual pleasure being directly involved” (Laplanche & Pontalis, 2004: 24445). “Satanás”, the one who, according to Catholic rhetoric, is the “supremo
inimigo do ser humano, ao qual trata de manter sob a escravidão do pecado”, is
employed here as the irresistible seducer (A Bíblia, 2005: 83).5 In actual fact, she
is becoming the direct agent of self-inflicted pain, which leads to the lack of selfdefinition expressed in “Não sei o que em mim ri, o que em mim chora | Tenho
bênçãos d‟amor pra toda a gente!” (“Anoitecer”, p. 275). Having been debilitated
by pain and in need of protection, she cannot help but feel that there has been no
retribution to all the bênçãos d’amor she has given. Chevalier and Gheerbrant
suggest that “abençoar quer dizer, na realidade, santificar” (1994: 119). She feels
The entry “cruz, crucificação”, included in the appendix of the Bíblia de Estudo Almeida, is
the following: “Método de executar a pena capital que consistia em pendurar ou pregar o réu em
um poste com uma madeira atravessada para os braços” (2005: 51). This image of crucifixion is
one to which Florbela often alludes. However, the cross can also be seen as a spatial and
temporal reference. As Chevalier and Gheerbrant point out, in the cross “se confundem o tempo
e o espaço. Ela é o cordão umbilical, nunca cortado, do cosmos ligado ao centro original. De
todos os símbolos, ela é o mais universal, o mais totalizante” (1994: 245). This confusion, both
in relation to time and to space, and the need to define temporal and spatial boundaries in order
to attenuate it, is typical of the poetic subject and is amply exemplified in Florbela‟s lyric.
5
The entry “Satanás” is also included in the appendix of the Bíblia de Estudo Almeida (2005).
4
M. C. Lopes Gordon
Página | 92
that, like Christ, she has been sanctifying those around her, to endure pain as a
response. The lyrical subject no longer bears the weight of a fruitless pursuit, in
her view only equivalent to the crucifixion of the Christ. For this reason, the
“Anoitecer” comprises:
Horas tristes que são o [seu] rosário…
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Meu áspero e intérmino Calvário!
Calvário was the place of Christ‟s crucifixion. This reinforces the message
that, progressively more distant from reality, to the extent that she is unable even
to rely on her own fantasy world in order to tolerate the former, the lyrical voice‟s
spiritual being is what truly anoitece. The “saudades de saudades que não [tem]…
| Sonhos que são os sonhos dos que [teve]…” indicate the absence of a referential
axis that makes the soul of the “Princesa Desalento” “frágil como o sonho dum
momento, | Soturna como preces de agonia” (p. 290). In this latter poem, there is,
again, a refusal to accept the end of the relationship. As her soul “vive do riso
duma boca fria”, it is visible that there is no emotional feedback from the lover, a
cause of great anxiety for the subject. Consequently:
O luar ouve a [sua] alma, ajoelhado,
E vai traçar, fantástico e gelado,
A sombra duma cruz à […] porta [do Amado]… (p. 290)
So imperative is the need to be part of the lover, emotionally unified with
him, that moonlight itself delineates the shadow of a cross, the one which she
bears, by his doorstep. Hence, the sombra can be interpreted as both the desired
visualization of her despair by the lover so as to induce his pity, and the darker
side of herself propelled by his departure. In Livro de Soror Saudade, arguably
the collection of poems with the most striking religious imagery within Florbela‟s
body of work – in which she takes possession of the mantle of Soror Saudade –,
this is employed primarily to emphasize the pain of the subject. Rituals and
symbols of suffering are purposefully selected to illustrate the subject‟s fragile
state of being, thus feeding into a cycle of self-imposed torture, as her own
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 93
perception of Soror Saudade grows into a form of self-victimization. The last
poem of the collection to be considered is “Da Minha Janela”. The main focus
here is the sexual relation. It narrates the pattern of the relationship between the
subject and the lover: the beginning leads to the sexual act, sex makes the sense of
fusion more palpable, the lover departs and she struggles to let go of what they
once shared. For the purpose of religious imagery, the second quatrain is the most
important:
Sol! Ave a tombar, asas já feridas,
Batendo ainda num arfar pausado…
Ó meu doce poente torturado
Rezo-te em mim, chorando, mãos erguidas! (p. 293)
The description of the post-coital act works here as a blend between the
pantheism embedded in him as a sol, symbol of masculinity, who is also the ave
that takes its flight inside her body, and the religious is encapsulated in her
response as the recipient female in a passive sexual position, who cries with
pleasure and pain. She mirrors the jouissance expressed in his “doce poente
torturado”, whilst elevating him to the position of God when she prays to him
with an open gesture. The altar of God becomes the sexual bed in which, more
than just praying to him, she “prays him” inside her. This is the kind of
blasphemous imagery that is explored further in Charneca em Flor.
4.2 Charneca em Flor
In the intermediate collection being discussed here, religiosity is articulated
by prayers which are counterbalanced by sacrilegious statements expressing the
sexualization of the religious. While the latter could easily be associated with
Soror Saudade‟s sadness and incarceration in the first phase, in Charneca em
Flor, following on “Da Minha Janela”, it hints further at the sexual content (p.
293). An example of such is the chalice, symbol of the blood of Christ in the
Eucharist which, in this collection, may allude to the blood of the woman who
M. C. Lopes Gordon
Página | 94
offers herself to the lover as a sexual being: “Diluído numa taça de oiro a arder |
Toledo é um rubi. E hoje é só nosso!” (“Toledo”, p. 317). The taça contains
blood, which is interpreted by Chevalier and Gheerbrant in this manner:
“princípio de vida –; é, portanto, o homólogo do coração […] o hieróglico
egípcio do coração é uma taça” (1994: 627). In fact, blood has an ambivalent
meaning, as it can allude both to death and to life. In terms of female biology, it
is a sign of promise of life, for without menstrual blood and the rupture of the
hymen there would not be sexual or maternal fulfilment. Not only is she giving
herself sexually, she is succumbing to the “grande amor [que] é sempre grave e
triste” (p. 317). It follows that, in the sonnet “IX”, “perdi a minha taça” (p. 353)
could be interpreted not only as symbolic of the loss of her virginity, but also as
an expression of the loss of the sexual partner, who briefly gave her the
emotional feedback to feel more coherent as a psychic being. What is left is
nothing, the “mãos vazias”.
There are numerous references to God in Charneca em Flor, as one who
fulfils different roles according to the message that is being conveyed. Let us first
consider the instances in which the poetic subject addresses God directly. In the
poem “Rústica”, the lyrical voice paints a picture of a simple and pretty country
girl, in every manner the antithesis of her perception of Self as complex,
ambitious and proud. In the first quatrain, the last line – “A bênção do Senhor em
cada filho” (p. 301) – describes a utopian scenario that can accommodate no evil.
In the last tercet, she appeals to God as the only means through which the
impossible task of becoming that girl, “pura como a água da cisterna”, can be
achieved: “Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!” (p. 301). He is her God,
to whom she resorts in times of need. Likewise, in “Árvores do Alentejo”, the
trees that “gritam a Deus a bênção de uma fonte” reflect her own despair: “–
Também ando a gritar, morta de sede, | Pedindo a Deus a minha gota de água!”
(p. 336). Pleading turns into questioning in “As Minhas Mãos”, a sonnet in which
she queries the use of her hands if, faced with the lover‟s absence, they can no
longer feel the lines of his face: “– Pra que as quero eu – Deus!” (p. 311).
Conversely, she wonders about the lover‟s own relationship with God, in relation
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 95
to her role in his life: “– Que contas dás a Deus indo sozinho, | Passando junto a
mim, sem me encontrares? –” (“II”, p. 346). The idea of God as the creator is
also used. In “Conto de Fadas” he is the architect of the world. “Dou-te comigo o
mundo que Deus fez!” (p. 303) offers another example of sexuality and religion,
as sex is seen as a divine creation and in her body, which she wishes him to have,
the world is contained. God is also her maker. In her manic phase, she exclaims:
O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém! (“Versos de Orgulho”, p. 300)
From her perspective, God has created her as a superior being, who is above
mere mortals. Yet, that is also the reason for her isolation from the outside world,
locked up in her “torre de orgulho e de desdém”. If, on the one hand, she feels
that “se Deus nos deu voz, foi para cantar!” (“Amar!”, p. 322), on the other,
“Quis Deus dar-me o condão de ser sensível” (“O Meu Condão”, p. 310) and
“Quis Deus fazer-me tua… para nada!” (ibid, 310) indicate that God‟s enterprise
in making her and their union has been to little avail in the course of her
existence. After all, she remains on her own. There are also references to God
making the lover – “Quis Deus fazer de ti a ambrósia | Desta paixão estranha,
ardente, incrível!” (ibid, 310) – and the women that he will have after she is no
longer in his life – “Erva do chão que a mão de Deus levanta, | Folhas murchas
de rojo à tua porta…” (“Supremo Enleio”, p. 316). At this point, she is not
intimidated by these other women, as the goddess implied in “Mas eu sou a
manhã: apago estrelas!” (ibid, 316) discloses a higher ambition, that of finding an
Other to the Self who is compatible with her in being above the common person:
O amor dum homem? – Terra tão pisada!
Gota de chuva ao vento baloiçada…
Um homem? – Quando eu sonho o amor dum deus!... (“Supremo Enleio”, p. 316)
Whether the pursuit is angled at the man as God or the God of Christian
dogma (or both, perhaps), the suggestion of “Quem sabe?…” appears to be that
M. C. Lopes Gordon
Página | 96
this has been an unfruitful pursuit in which she persists still: “Queria encontrar
Deus! Tanto o procuro!” (p. 337). This leads to questioning her previously
ascertained source of origin, God as her maker: “E quem vestiu de monja a
andorinha, […] Quem me criou a mim?” (“?”, p. 334). The title of the poem itself
is indicative of the poetic subject‟s feeling of solipsism before the lover‟s
departure and realization that he is not to return. The andorinha that used to fly
in the open fields has become the imprisoned monja as a result, “uma chaga
sangrenta do Senhor” (“Minha Culpa”, p. 343). The blood that was symbolic of
pleasure in “Toledo” (p. 317) becomes synonymous with pain in this sonnet. In a
confession with the intent of attempting to expurgate herself of sin, she concludes
with the following:
Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,
Num mundo de maldades e pecados,
Sou mais um mau, sou mais um pecador…(“Minha Culpa”, p. 343)
Madalena Tavares Alexandre argues that this sonnet is “um dos mais
representativos do labiríntico processo de busca de identidade e da ignorância de
si mesmo” (1997: 72). The lyrical voice finds herself to be completely at a loss in
the world.
The significance of the cross, and how it paves the way to death, will be
considered next. In “O Meu Condão”, the lyrical voice exclaims: “– Vãos, os
meus braços de crucificada, | Inúteis, esses beijos que te dei!” (p. 310), imitating
the role of Christ on the cross. It is Angélica Soares who states that, in this poem:
“é a religião ainda a fonte de metáfora, a unir as ideias de sacrifício e paixão”
(1997: 134). The imagery of the crucified woman after the lover‟s abandonment
is stronger in the lines:
Crucificada em mim, sobre os meus braços,
Hei-de pousar a boca nos teus passos
Pra não serem pisados por ninguém. (“Crucificada”, p. 325)
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 97
Exhibiting an attitude of masochism towards herself and of possessiveness in
relation to the ex-lover, she proceeds to express the sense of fusion in a joint
crucifixion:
São mortos os que nunca acreditaram
Que esta vida é somente uma passagem,
Um atalho sombrio, uma paisagem
Onde os nossos sentidos se poisaram.
[…]
Que Deus faça de mim, quando eu morrer,
Quando eu partir para o País da Luz,
A sombra calma de um entardecer,
Tombando, em doces pregas de mortalha,
Sobre o teu corpo heróico, posto em cruz,
Na solidão dum campo de batalha! (“VII”, p. 351)
The Passion of the Christ, not erotic in itself but capable of producing
ecstatic reactions in fervent believers, here incites another kind of passion,
involving on her part a megalomaniac bloodshed. She equates both her body and
the ex-lover‟s to that of Christ when making the ultimate sacrifice for the sake of
humanity. His body, which she venerates still, is the one that is now also “posto
em cruz”. This takes places after her thoughts of life as a passage (to a better
world) prompt a call for her own death. It is in this new “País de Luz”, that her
view of God as the creator returns, and she hopes that he will grant her more
tranquillity. In the final sonnet of Charneca em Flor, “X”, the cross is associated
with the Discoveries, a theme that is carried to the last collection. Pondering on
all that she wanted from a life that has been of little more than disappointment,
the lyrical voice asserts that she would have liked to have had “mais sangue
sobre a cruz das caravelas!” (p. 354).
4.3 Reliquiæ
Reliquiæ has fewer semantic references to the religious. Towards the end of
the collection, when the fragmentation of the subject leads to a psychotic
M. C. Lopes Gordon
Página | 98
outbreak, her connection with the physical Other and with the ethereal God is
lost, to be substituted by death. Before that, the topic of sexualization of the
divine prevails. The divine is a concept used throughout Florbela‟s oeuvre. In
Livro de Soror Saudade, while in the company of the lover, “toda a graça | Duma
boca divina fala em mim” (“Fanatismo”, p. 262), and Charneca em Flor
highlights the lyrical subject‟s “divinos braços de Mulher” (“Mais Alto”, p. 330).
In the final collection, the divine is brought to the fore as the title of a poem that
deals with the female orgasm, considered to be the “Divino Instante” (p. 376).
Therefore, the notion of the divine is employed not as a person or a thing that is
truly divine, but in the metaphorical sense of the divine as that which is perfect
and beautiful. Sex and religion are unified more intensely in the last tercet of
“Blasfémia”:
Em ti sou glória, altura e poesia!
E vejo-me (Oh, milagre cheio de graça!)
Dentro de ti, em ti, igual a Deus!... (p. 369)
The author is aware of how blasphemous the poem is within the realm of a
predominantly Catholic society. Hence the title is both a preview and a warning
of what is to come. As was the case with the divine, the perception of a miracle is
also notable in Florbela‟s poetry. From the lover‟s arrival in Livro de Soror
Saudade – “Chegaste enfim! Milagre de endoidar!” (“Tarde Demais…”, p. 277)
– and, in Charneca em Flor, his hands, extraordinary because they are on her
body – “E sobre mim, […] | As tuas mãos […] milagrosas” (“Tarde no Mar, p.
307) –, the “milagre cheio de graça” evolves naturally to lovemaking in
Reliquiae. Whereas previously the lyrical voice had pleaded for the love of a
God, a request she believes to have been answered in “O Meu Desejo” – “Ó
minha perfeição que criou Deus | E que num dia lindo me fez sua!” (p. 374)
attests to this –, in “Blasfémia” she is the one who is made God-like through her
fusion with the lover. Additionally, this is one of the rare occasions in the
collection in which she is the one in control sexually, as the last line illustrates.
This is short-lived, and she soon begs for his return, addressing him as “Ó meu
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 99
Deus, ó meu dono, ó meu senhor” (p. 369) and unearthing the “doce e humilde
escrava” (“Escrava”, p. 375) of the sacrificial “Mendiga” (p. 315) of Charneca
em Flor. Faced with the lover‟s desertion and being no longer capable of
engaging in her cyclical pattern, the poetic subject isolates herself in the cell of
the convent of Livro de Soror Saudade in the fittingly named “Último Sonho de
<<Soror Saudade>>“: “Soror Saudade abriu a sua cela” and “entrou no seu
convento” (p. 384). In the end, she confesses to God: “Não sei de nada, Deus,
não sei de nada!...” (“Loucura”, p. 386).
5. Conclusion
In the three collections under discussion, religion functions on several levels.
Firstly, it demonstrates the prevalence of Catholic rhetoric in Portugal at the
time; secondly, it reflects the ambivalence of the lyrical subject who, in this
instance, questions the existence of a God to whom she turns in times of need;
thirdly, and most importantly for the argument underway, it provides the poetic
subject with the appropriate means to convey her state of being, both in the
presence and the absence of the lover, and their physical union. The “linguagem
da carne para recobrir uma semântica da alma” (Ana Luísa Vilela, 1997: 121)
articulated earlier is thus inverted, resulting in inflammatory sexual descriptions,
a concept that is epitomised in the sonnet “Amar!” (Charneca em Flor, p. 322).
References
Alexandre, M. T. (1997). A Busca da Identidade na Poesia de Florbela Espanca. In Lopes et al.
(Ed.), A Planície e o Abismo: Actas do Congresso sobre Florbela Espanca realizado na
Universidade de Évora, de 7 a 9 de Dezembro de 1994) (pp. 69-74), Lisbon: Vega.
A Bíblia. (2005). Bíblia de Estudo Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil.
Chevalier, J. and Gheerbrant, A. (1994). Dicionário dos símbolos: Mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Trans. C. Rodriguez and A. Guerra. Lisbon:
Teorema
Dal Farra, M. L. (1995). O amor na poesia de Florbela Espanca. In J. R. Paiva (Ed.), Estudos
sobre Florbela Espanca (pp. 39-52). Recife: Associação de Estudos Portugueses Jordão
M. C. Lopes Gordon
Página | 100
Emerenciano.
Espanca, F. (1998). Diário do Último Ano (1981). 4th ed. Amadora: Bertrand.
Espanca, F. (2000). Poesia Completa (1985). R. Guedes (Ed.), Lisbon: Publicações Dom
Quixote.
Espanca, F. (2002). Afinado Desconcerto: contos, cartas, diário. M. L. Dal Farra (Ed.). São
Paulo: Iluminuras.
Frye, N. (1991). The Double Vision: Language and Meaning in Religion. Toronto, Buffalo,
London: University of Toronto Press.
Laplanche, J. and Pontalis, J-B. (2004). The Language of Psycho-analysis. London: Karnac
Books.
Magalhães, I. A. (1997). Florbela Espanca e a Subversão de Alguns Topoi. In Lopes et al. (Ed.),
A planície e o abismo: actas do Congresso sobre Florbela Espanca realizado na
Universidade de Évora, de 7 a 9 de Dezembro de 1994 (pp. 215-226). Lisbon: Vega.
Manuel, P. C. (2002). Religion and Politics in Iberia: Clericalism, Anticlericalism and
Democratization in Portugal and Spain. In T. G. Jelen and C. Wilcox (Ed.), Religion and
Politics in Comparative Perspective: The One, the Few and the Many (pp. 71-98).
Cambridge: Cambridge University Press.
Neto, V. (2004) O Estado e a igreja na Primeira República. In Museu Bernardino Machado
(Ed.), A Igreja e o Estado em Portugal - Da 1.ª República ao limiar do Século XXI: actas
do Encontros de Outono, 21-22 de Novembro de 2003 (pp. 17-28). Vila Nova de
Famalicão: the author.
Santos, L. A. (2002). Elites culturais e políticas em Portugal no contexto da secularização da
sociedade (séculos XVIII, XIX e XX)
http://www.causaliberal.net/documentosLAS/Elites.pdf, 24 pp. accessed on 27.09.2010.
Soares, A. (1997). O Erotismo em Charneca em Flor. In Lopes et al. (Ed.), A planície e o
abismo: actas do Congresso sobre Florbela Espanca realizado na Universidade de Évora,
de 7 a 9 de Dezembro de 1994 (pp. 127-136). Lisbon: Vega.
Vilela, A. L. (1997). “Minh‟Alma, de sonhar-te, anda perdida” Erotismo e Mística de Soror
Florbela. In Lopes et al. (Ed.), A planície e o abismo: actas do Congresso sobre Florbela
Espanca realizado na Universidade de Évora, de 7 a 9 de Dezembro de 1994 (pp.119-126).
Lisbon: Vega.
MARIA DA CONCEIÇÃO LOPES GORDON’S research interests lie on late 19th and 20th
century Portuguese literature, Lusophone African literature, comparative literature,
national identity studies, cinema and critical theory. She has recently published an
article on the Cape Verdean novel O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo,
focusing on women‟s subversion under the scope of patriarchy, and is finalizing a
comparative paper for publication, on the poetry of Florbela Espanca and the American
author Sylvia Plath.
Submetido: Novembro 2010
Aceite: Fevereiro 2011
O intérprete estúpido
Rui Lopes
Agrupamento de Escolas Alexandre Herculano - Santarém
[email protected]
Resumo
Este artigo apresenta uma análise da forma como reagimos a coisas estranhas - entre as
quais se destacam os textos literários. Após ter identificado uma tendência para rirmos
dos disparates dos outros, comentarei textos de Robert Musil, Walter Pitkin, E.A. Poe e
H.P. Lovecraft, entre outros, e analisarei a acusação frequente de estupidez na sua relação
com as formas através das quais nos revelamos e descrevemos como intérpretes.
Palavras-chave: teoria; literatura; interpretação; cómico; estupidez.
Abstract
This paper analyses some ways of reacting to strange things - literary texts, for instance.
After identifying a tendency to laugh at other people's foolishness, I will be reading texts
by Robert Musil, Walter Pitkin, E.A. Poe, and H.P. Lovecraft, among others, and I will
analyse the frequent charge of stupidity in its relation to the ways through which we
reveal and describe ourselves as interpreters.
Keywords: theory; literature; interpretation; comic; stupidity.
Introdução
Este artigo tem uma personagem principal: o intérprete estúpido. Este
intérprete debate-se inevitavelmente com a necessidade de construir sentidos
num universo de objectos estranhos - para simplificar, chamemos-lhes "textos",
já que é nessa dimensão textual que a estranheza se torna mais perspícua.
Consciente da imperfeição dos meios ao seu dispor, o intérprete persiste na tarefa
de tornar inteligíveis as suas percepções e intuições, tentando simultaneamente
reforçar o carácter cognitivo da sua relação com os outros intérpretes e com os
textos que eles produzem. A história dos seus sucessos e falhanços não poderia
ser aqui contada - entre outras razões, por ser objecto de constantes actualizações
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Rui Lopes
Página | 102
(às quais o autor deste ensaio não pretende ser imune, já agora). Os seus
problemas são o problema deste artigo.
1. O princípio da estupidez
No conto “The System of Doctor Tarr and Professor Fether” de Edgar Allan
Poe, encontramos um narrador que pernoita numa Maison de Santé (eufemismo
para hospício) no Sul de França. Aí é muito bem recebido pelo director, que lhe
explica os métodos revolucionários empregues no tratamento dos doentes
mentais internados naquela instituição, caracterizando-os como métodos de
reductio ad absurdum:
We have had men, for example, who fancied themselves chickens. The cure was, to
insist upon the thing as a fact – to accuse the patient of stupidity in not sufficiently
perceiving it to be a fact – and thus to refuse him any other diet for a week than that
which properly appertains to a chicken. (Poe, 1982: 309)
Durante um jantar com uma série de personagens que o narrador descreve
como “apparently people of rank – certainly of high breeding” (Poe, 1982: 310),
pela forma como se vestiam e pelo seu porte, embora estranhe o excesso de jóias
e outros adereços – que atribui ao que lhe tinham dito sobre as peculiaridades dos
provincianos do sul -, a descrição de antigos doentes e das suas manias é
ilustrada pelos convivas com gestos e atitudes que provocam estranheza. O
próprio serviço de mesa e os pratos apresentados começam a perturbar o
narrador:
“Pierre,” cried the host, “change this gentleman’s plate, and give him a side-piece of
this rabbit au-chat.”
“This what?”, said I.
“This rabbit au-chat.” (Poe, 1982: 313)
O narrador então recusa a proposta gastronómica, reflectindo da seguinte
forma:
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 103
There is no knowing what one eats, thought I to myself, at the tables of these people of
the province. I will have none of their rabbit au-chat – and, for the matter of that, none
of their cat-au-rabbit either. (Poe, 1982: 313)
Ao longo do jantar, as narrativas acerca das peculiaridades de antigos
pacientes sucedem-se, sempre ilustradas pela imitação dos comportamentos
descritos: um que julgava ser um burro, outra que julgava ser uma galinha, outra
ainda que pretendia vestir-se por fora da roupa e não por dentro – ficando
despida, consequentemente -, entre outros casos exemplarmente descritos e
ilustrados pelos convivas.
Abrevio a sinopse, avançando para o desenlace, onde se fica a saber que
todos os convivas eram, afinal, os doentes internados naquele hospício, que
tinham conseguido fechar os guardas, sob o comando de Monsieur Maillard,
destituído do seu cargo de director por também ter enlouquecido.
O que julgo ser exemplar neste conto é, antes de mais, a forma como a
personagem / narrador resiste até ao final sem suspeitar do que realmente está a
ocorrer, mesmo com os comportamentos mais excêntricos das pessoas que com
ele se sentam à mesa de jantar, e até com a narrativa de um incidente que durante
algum tempo colocou os doentes no lugar dos encarregados e dos médicos:
But I presume a counter-revolution was soon effected. This condition of things could
not have long existed. The country people in the neighborhood – visitors coming to
see the establishment – would have given the alarm.
There you are out. The head rebel was too cunning for that. He admitted no visitors
at all – with the exception, one day, of a very stupid-looking young gentleman of
whom he had no reason to be afraid. He let him in to see the place – just by way of
variety, - to have a little fun with him. As soon as he had gammoned him sufficiently,
he let him out, and sent him about his business. (Poe, 1982: 319)
A perversidade desta descrição consiste em acentuar o que o leitor já sabe,
mas o narrador desconhece. Não poderia ser uma pista para este narrador que não
duvida da seriedade da personagem que o descreve sem que ele disso tenha
consciência.
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Rui Lopes
Página | 104
As razões para tal ausência de dúvida são, numa primeira fase,
cuidadosamente inseridas na narrativa, como a já referida associação das vestes
exageradas à informação de que o narrador dispunha relativamente às
idiossincrasias das pessoas do Sul de França, inclusivamente tidas como algo
antiquadas. O comportamento de Monsieur Maillard funciona, de um modo
semelhante, como garantia de alguma normalidade, não dando origem a qualquer
perturbação das expectativas existentes relativamente a um director de uma
instituição para doentes mentais. O breve episódio do “coelho com gato” ilustra
igualmente a forma como o narrador atribui as causas de algo insólito aos hábitos
das pessoas da província, isto é, a um sistema moral e cultural que praticamente
desconhece, e em relação ao qual não possui qualquer crença firme que possa
fornecer expectativas definidas.
O sistema descrito por Monsieur Maillard constitui um primeiro elemento de
estranheza que, paradoxalmente, evita que o narrador estranhe os acontecimentos
subsequentes. O seu desconhecimento de métodos psiquiátricos para curas de
doentes mentais deixa-o numa posição de estúpido ingénuo”, sujeito a um fluxo
de acontecimentos que não pode interpretar por não possuir qualquer informação
pertinente. Rimo-nos dele por essa razão. No final do texto, quando se ouvem
ruídos provenientes das caves, seguidos de pancadas nas portas, o narrador grita
para Monsieur Maillard: “Gracious heavens! [...] the lunatics have most
undoubtedly broken loose”; ao que este responde “I very much fear it is so” (Poe,
1982: 319). Neste momento, a ironia atinge o seu ponto culminante, depois de o
leitor ter a certeza – já não só a suspeição – de que os loucos se encontravam
soltos há bastante tempo, através do contraste com um narrador que persiste no
erro, apesar de todas as evidências. Para o leitor, é estranho que este narradorintérprete não reconheça as marcas da repetição excessiva de actos insólitos, que
normalmente indicia a intenção cómica. Este narrador não ri. Não poderia rir,
pois associa a estranheza dos comportamentos que observa a um conjunto
indistinto de preconceitos sobre uma gente que não conhece e a quem atribui um
sistema de valores incomensurável relativamente ao seu.
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 105
Merecerá, então, o narrador de Poe o epíteto -“very stupid-looking young
gentleman” - que lhe é atribuído por M. Maillard? Para responder a esta questão,
torna-se necessária uma digressão por um território vasto e pouco explorado,
embora possamos encontrar algumas contribuições notáveis em áreas diversas.
Comecemos – até pela ambição do título - por Walter B. Pitkin, que em 1932
publicou A Short Introduction to the History of Human Stupidity, legitimando a
necessidade de tal investigação desta forma:
Pode-se provar facilmente que a Estupidez é o supremo Mal Social. Três
factores combinam-se para a estabelecer como tal. Em primeiro lugar, o
número de estúpidos é legião. Em segundo lugar, grande parte do poder no
comércio, finanças, diplomacia e política está nas mãos de indivíduos que
são, mais ou menos, estúpidos. Finalmente, capacidades elevadas estão
muitas vezes ligadas à estupidez, de tal forma que essas capacidades brilham
perante todo o mundo enquanto o fundo de estupidez se esconde na sombra
para só ser descoberto por amigos íntimos ou por jornalistas curiosos.
(Pitkin, 1932: 6) 1
Perante a constatação da praga, Pitkin tenta definir com precisão os contornos
do mal. A dificuldade desta tarefa é, aliás, corroborada por diversos autores, com
maior ou menor ironia, sendo frequentemente atribuída a uma resiliência
particular do ser humano a confrontar-se com um tema que lhe pode devolver
uma imagem pouco abonatória de si próprio. A proximidade com a loucura, a
idiotice, e outros conceitos que relevam de comportamentos e lógicas pouco
habituais compromete a pesquisa, sendo necessário recorrer à etimologia e à
tradição semântica para esclarecer a natureza da estupidez.
Assim, comecemos por ver alguns dos resultados de Pitkin. Percorrendo
diversas culturas e dialectos, o autor conclui que os termos habitualmente
utilizados para descrever este conceito – na sua forma mais vaga - apontam para
“falta de sensibilidade”, “estados de confusão” e inabilidades diversas. Focando a
etimologia, sobressai igualmente o carácter de inacção perante um qualquer
acontecimento, que se mantém nos termos “estupor”2 e “estupefacção”,
1
2
Tradução minha, a partir do original em inglês.
Refira-se que também neste caso o sentido original sofreu alterações profundas no uso,
nomeadamente quando o termo é utilizado como adjectivo.
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Rui Lopes
Página | 106
remetendo o problema para o domínio da incapacidade de reagir positiva ou
eficazmente a acontecimentos surpreendentes, sobretudo quando a surpresa
advém do desconhecimento prévio das características desses acontecimentos. O
uso actual do termo não descarta este sentido, embora amplifique
semanticamente os significados possíveis em contextos diversos: não perceber,
não reagir da forma mais eficaz, não se fazer entender.
Pelo que ficou exposto anteriormente, poderemos acrescentar “não rir,
quando este é o comportamento esperado”, o que se poderia explicar por uma
incapacidade associativa peculiar, consonante com esta descrição de Pitkin (que a
considera ainda insatisfatória, porque incompleta):
Uma primeira classificação fácil levar-nos-ia a juntar num grupo todos os defeitos dos
sentidos primários, dos olhos, ouvidos, língua, nariz e pele; e, num outro grupo, todos
os sistemas deficitários de associação e integração central envolvidos nas funções
mais importantes da memória, imaginação, análise, linguagem, e outras similares.
(Pitkin, 1932: 37) 3
Uma primeira conclusão levar-nos-ia também a pensar que M. Maillard não
poderia revelar mais acuidade na caracterização do seu hóspede, pois a segunda
parte da classificação acima transcrita parece descrever o problema que o aflige.
Como intérprete, carece da capacidade de efectuar uma transposição para além
do que vê, mesmo perante o que considera um conjunto de situações absurdas.
Ao mesmo tempo, é a capacidade de aceitar provisoriamente comportamentos e
lógicas diferentes, classificando-os por vezes como “exóticos”, que permite a
ocorrência de situações como esta. Ou, nas palavras de um antropólogo:
Afinal de contas, o que torna o homem ímpar entre as espécies? É precisamente o ele
ser a única criatura que vê o Mundo perscrutar os seus próprios motivos e ao mesmo
tempo [ser capaz] de olhar para as outras pessoas como se elas fossem, não ele próprio
repetido, mas qualquer outra espécie estranha. (Bronowski, 1985: 24)
Acontece, no entanto, que partilhamos sempre com esta “espécie estranha”
mais do que por vezes supomos. Acontece também que ter consciência disto
3
Tradução minha, a partir do original em inglês.
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 107
mesmo, por si só, não resolve os problemas que persistem em surgir nas mais
diversas situações.
O episódio que passo a relatar é a paráfrase possível de um cartoon lido há
bastante tempo e cujo paradeiro e referência bibliográfica não posso,
infelizmente, fornecer. Ainda assim, não resisto a apresentá-lo como um exemplo
das questões aqui discutidas. Com um cenário de selva africana, vemos um grupo
de nativos, adornados com os inevitáveis ossos que lhes perfuram o nariz, com
expressões de enorme felicidade, à volta de um caldeirão que se encontra sobre
uma
fogueira;
dentro
do
caldeirão
com
água
em
ebulição,
um
explorador/antropólogo, com o também inevitável chapéu colonial, o suor a
pingar-lhe por toda a face, empunhando um bloco de notas e uma caneta,
pergunta: “E, para concluir, o prato principal é acompanhado com...?”.
Independentemente do que podemos considerar como uma sátira ao conceito
de “observação participante” (polémica cara às Ciências Sociais), a analogia com
o narrador do conto de Poe parece-me por demais evidente. A perspectiva séria
da
questão
assenta
nesta
tendência
curiosa
para
assimilar
situações
assumidamente estranhas, procurando enquadrá-las num sistema partilhável de
referências. Perante as dificuldades, no entanto, as decisões demoram mais tempo
a ser tomadas, enquanto o fluxo de acontecimentos não se detém a aguardar. Se o
intérprete sobrevive ao momento decisivo, a descrição retrospectiva poderá
conter valiosos ensinamentos para futuras ocorrências similares, como no caso do
conto de Poe; já o explorador/antropólogo não teria a mesma sorte, nem o seu
livro de notas se apresentaria provavelmente como um elemento de grande valor
didáctico. A ter esse valor, o conto de Poe acaba por descrever um problema
peculiar da interpretação: atribuir intenções, crenças e contextos é não só um
processo inevitável como igualmente um processo com fortes probabilidades de
erro.
A nota pessimista que se pode adivinhar pela conclusão agora apresentada é
ilustrada por uma afirmação de Robert Musil:
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Rui Lopes
Página | 108
Todos nós somos, por vezes, estúpidos; por vezes também, somos constrangidos a agir
cegamente ou semicegamente, sem o que o mundo se deteria; e se alguém retirasse
dos perigos da estupidez esta regra: Abstém-te de julgar e de decidir cada vez que te
faltam informações”, ficaríamos imobilizados! (Musil, 1994: 35)
Walter Pitkin, curiosamente, apresentara já o problema em termos muito
semelhantes:
Já não existem domínios de conhecimento comum, nem áreas de verdades simples que
possam ser conhecidas por comuns mortais. Se todos evitássemos falar excepto
quando soubéssemos exactamente o que estávamos a dizer, que silêncio de morte
assombraria este mundo de palradores natos! (Pitkin, 1932: 35) 4
Resta-nos, portanto, um universo de tentativas. A modéstia, proposta por
Musil como antídoto para a estupidez, constitui-se na exacta medida da
consciência de que uma grande parte dos nossos juízos acerca das coisas é
provisória, tornando-os sujeitos a constantes reavaliações e demonstrações de
erro. Aquilo que parece uma situação insustentável, quando apresentada em
termos meramente teóricos, encontra na prática quotidiana soluções que derivam
do senso comum: aprendemos a procrastinar ou apressar decisões de uma forma
que torna esses actos quase instintivos. O que se segue frequentemente a estes
momentos são descrições retrospectivas com base na avaliação dos efeitos que
essas decisões provocam. A margem de erro destas duas actividades é, como já
afirmei, consideravelmente elevada: da primeira, porque obviamente não existe
uma forma de avaliar na sua totalidade as consequências de uma decisão no
exacto momento em que é tomada; da segunda, porque se sujeita aos mesmos
condicionalismos que derivam da primeira, embora muitas vezes este facto passe
despercebido. Arthur Koestler chama a atenção para uma situação análoga:
A história da ciência é abundante em exemplos de descobertas recebidas por
gargalhadas estridentes, por parecerem ser um casamento de parceiros incompatíveis até que esse casamento deu frutos e a alegada incompatibilidade dos parceiros revelou
ser um resultado do preconceito. (Koestler, 1964: 95). 5
4
5
Tradução minha, a partir do original em inglês.
Tradução minha, a partir do original em inglês.
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 109
O preconceito que aqui surge como explicação para as atitudes descritas
deriva do hábito. É, aliás, congénere do instinto que vai garantindo a preservação
das espécies – e, em particular, da humana -, razão pela qual as perturbações
infligidas às expectativas criadas e estabilizadas por estes factores surgem
frequentemente como ameaças, o que talvez possa explicar, em parte, a frequente
– e por vezes desproporcionada - hostilidade face a novas teorias que ameacem
os códigos consensuais. A sombra do louco paira, ameaçadora, sobre as normas
que guiam o funcionamento das sociedades, pois devolve, como num espelho
distorcido, uma imagem que não se resigna ao distanciamento da alteridade, já
que este “outro” é ainda um potencial “eu”.
Daí também o anátema do “estúpido”, sobretudo quando este adjectivo serve
para descrever uma radical incomensurabilidade entre formas diferentes de
pensar, maioritariamente alicerçada na pretensão de uma superioridade
intelectual que atribui a este jogo um carácter menos inofensivo do que se pode
por vezes julgar. Ao descrever este mecanismo, não pretendo de forma alguma
sugerir que deveria – nem sequer que poderia – desenrolar-se de forma diferente.
As regras do jogo, aliás, adaptam-se a situações diversas - com uma certa
perversidade irónica -, como já pudemos ver por alguns exemplos citados, ao
qual acrescentarei mais uma citação do texto de Robert Musil:
Pensemos um instante nas anotações que cobrem as margens dos mais ambiciosos
romances que permaneceram muito tempo nos circuitos quase anónimos das
bibliotecas que emprestam livros: constatar-se-á que o juízo dos leitores que se
encontram finalmente a sós com o autor se exprime de preferência pela palavra
estúpido! ou os seus equivalentes: palerma!, absurdo!, estupidez insondável!, etc.
(Musil, 1994: 21)
O riso e a atribuição da estupidez ao outro têm em comum o facto de se
constituírem como estratégias económicas para lidar com determinadas
anomalias, permitindo a manutenção de normas e paradigmas que já deram
provas de eficácia. Mas, paradoxalmente, certos tipos de cómico e certas formas
de estupidez têm também em comum o facto de exibirem os mecanismos que
contribuem para a originalidade e a criatividade. Ao tentar resolver as
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Rui Lopes
Página | 110
dificuldades de interpretação criadas pelos “romances mais ambiciosos” com a
atribuição de estupidez ao autor, os leitores referidos por Musil confessam a sua
própria incapacidade de reagir positivamente a algo que lhes é estranho - o que,
como já vimos, pode ser um dos sinónimos dessa mesma estupidez. Continuando
com Musil, a ilustração das consequências desta dificuldade revela-se ainda mais
violenta:
Para voltar aos exemplos citados atrás, vê-se, em tais casos, os quadros - à falta
daquele que os pintou - a serem atacados a golpes de guarda-chuva e livros lançados
ao chão, como se um tal gesto bastasse para os desfazer. Mas também nestes casos se
verifica a opressão paralisante que precede estes acessos que supostamente deveriam
permitir libertá-la: “está-se quase a asfixiar” com a irritação; “já não se tem palavras”,
além das mais gerais e mais pobres, para traduzir o estado em que se está; “perde-se a
palavra”, “tem-se a respiração cortada”. O homem que perdeu a palavra e a cabeça a
um tal ponto só pode rebentar. Sofre um sentimento intolerável de insuficiência e as
palavras que precedem muitas vezes a explosão: “finalmente, era demasiado
estúpido”, revelam-se espantosamente perspicazes. Mas era “fui demasiado estúpido”
que seria necessário dizer. (Musil, 1994: 26)
A descrição é familiar, enquadrando uma vasta gama de situações que se
caracterizam precisamente pela incapacidade de atribuir um carácter significativo
a objectos para os quais “a linguagem não dispõe ainda, uma vez mais, de outra
palavra que não a de estupidez” (Musil, 1994: 29). É, portanto, e ao contrário do
que pode parecer, o último reduto defensivo de uma racionalidade impotente; ou,
com outro vocabulário, é a demonstração da incapacidade de assimilar eventos
estranhos na estrutura criada pelo hábito.
A estupidez surge-nos como uma contingência incontornável nas suas causas
e efeitos, como uma consequência inevitável da necessidade de apreender dados
que, pela sua natureza de coisas exteriores aos meios que temos ao nosso dispor,
exigem uma mediação. Chamemos, portanto, a esta instância mediadora
“interpretação”, abrangendo assim todas as operações que realizamos com o
objectivo de incorporar o que nos é estranho no conjunto dos conceitos e
vocabulários familiares de que dispomos, e é precisamente neste ponto que a
estupidez fará a sua aparição.
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 111
2. O cúmulo da estupidez
Dois indivíduos conversam acerca do indizível. Um deles, empenhado na
defesa do extra-sensível e dos poderes ilimitados da imaginação; o outro, crente
na ciência e no predomínio da razão. Conversam num cemitério abandonado,
onde um salgueiro gigantesco servirá como pretexto para o início de uma
discussão que os vai conduzir a uma estranha experiência - e é também de
experiências estranhas que se trata aqui.
Esta breve sinopse pretende dar conta da situação inicial do conto “The
Unnamable”, de H. P. Lovecraft. De forma quase inevitável, o carácter da
conversa entre as duas personagens - “speculating about the unnamable”
(Lovecraft, 1971: 99), nas palavras de Randolph Carter, narrador e alter-ego de
Lovecraft - introduz neste conto a ideia do paradoxo: falam, portanto, do que não
se pode falar. E, no entanto, o que dizem apresenta-se sob a forma de um
discurso argumentativo que ilustra e resume, de um modo algo perverso, as
ideias que nos têm ocupado neste texto.
O tom desta troca de argumentos oscila entre a cordialidade e a frontalidade que seria insultuosa caso as personagens não fossem colegas e amigos de longa
data - o que é compreensível, já que as posições que assumem os deixam perante
a evidência da incomunicabilidade, sujeitos à tentativa de demonstração do que
não se pode demonstrar, ou, pelo menos, do que não se pode demonstrar nos
termos de um interlocutor com crenças profundamente divergentes.
Joel Manton, o amigo de Carter, caracteriza-se pela impaciência perante a
exuberância da imaginação do seu interlocutor:
I had made a fantastic remark about the spectral and unmentionable nourishment
which the colossal roots must be sucking from that hoary, charnel earth; when my
friend chided me for such nonsense and told me that since no interments had occurred
for over a century, nothing could possibly exist to nourish the tree in other than an
ordinary manner.
Besides, he added, my constant talk about “unnamable” and “unmentionable”
things was a very puerile device, quite in keeping with my lowly standing as an
author. (Lovecraft, 1971: 99)
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Rui Lopes
Página | 112
A autoridade intelectual de Manton é justificada por partir de dois
argumentos fortes: ciência e senso comum - o que lhe permite resumir as crenças
do narrador, caracterizando-as como absurdas e pueris, e estendendo a
reprovação ao seu valor enquanto autor literário. Discute-se também literatura,
portanto. Ou melhor, discute--se acerca do que se pode também discutir em
literatura. Manton prossegue, em discurso indirecto:
I was too fond of ending my stories with sights or sounds which paralyzed my hero's
faculties and left them without courage, words or associations to tell what they had
experienced. We know things, he said, only through our five senses or our religious
intuitions; wherefore it is quite impossible to refer to any object or spectacle which
cannot be clearly depicted by the solid definitions of fact or the correct doctrines of
theology (...)
It was his view that only our normal, objective experiences possess any aesthetic
significance, and that it is the province of the artist not so much to rouse strong
emotion by action, ecstasy, and astonishment, as to maintain a placid interest and
appreciation by accurate, detailed transcripts of everyday affairs. (Lovecraft, 1971: 99100)
Locke é convocado por Manton para teorizar, entre outras coisas, acerca do
objecto e função da literatura, apoiado num empirismo que permite algumas
concessões à intuição religiosa. O discurso indirecto facilita a sugestão desta
contradição, sem que por isso Carter abdique de responder às teses do seu
interlocutor. A resposta é longa e recorre à paráfrase de dois textos: um conto do
próprio Carter / Lovecraft e o texto de Cotton Mather que o influenciou,
Magnalia Christi Americana. A escolha não é inocente, pois permite uma
resposta ao argumento religioso invocado por Manton, via Mather.
Mas antes de prosseguirmos com a demonologia de Randolph Carter,
vejamos com alguma atenção o conteúdo das críticas apresentadas no excerto
transcrito. Manton parece acusar Carter de estupidificar os seus heróis, paralisálos, deixá-los sem palavras e reduzir-lhes o poder de associação. Todas estas
incapacidades se conjugam para não permitir a essas pobres personagens uma
descrição da sua experiência. O argumento reside, então, nessa particular
crueldade que consiste em retirar a um intérprete os meios que lhe permitem a
mediação - isto é, a possibilidade de transformar os dados da experiência num
discurso que consubstancie a sua plena apropriação. O que Manton também
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 113
parece querer dizer é que, se essa experiência é tão bizarra e perturbante, as
regras estão viciadas à partida e nenhum intérprete conseguirá concluir o jogo.
Deixarei o essencial dos comentários ao segundo parágrafo transcrito para um
momento posterior, já que a resposta de Lovecraft / Carter permitirá, com
extrema ironia, retomá-los em tom de conclusão. O conceito de literatura que
resulta dessas palavras é construído com o recurso a conceitos que pretendem
afirmar de forma cada vez mais evidente o verdadeiro motivo desta discussão.
Afinal, na superfície deste confronto encontra-se a resistência heróica de uma
época -na qual a imaginação, enquanto valor criativo, foi o guia da produção
artística- a uma nova época, que pretende redireccionar o olhar para a realidade.
E, no entanto, este é um tópico superficial, como já afirmei, pois Lovecraft não é
propriamente exemplo do romantismo tardio que perpetuou uma polémica já
gasta e desprovida de pertinência. Antes pelo contrário, é Manton quem se presta
à caricatura, ao basear os seus argumentos nos conceitos imprecisos e
improfícuos que podemos ler no segundo parágrafo transcrito. Numa
manifestação do que Manton provavelmente designaria como “verosimilhança
narrativa”, Carter ajuda-nos a conhecer melhor o seu interlocutor:
[...] for although believing in the supernatural much more fully than I, he would not
admit that it is sufficiently commonplace for literary treatment. That a mind can find
its greatest pleasure in escapes from the daily treadmill, and in original and dramatic
re-combinations of images usually thrown by habit and fatigue into the hackneyed
patterns of actual existence, was something virtually incredible to his clear, practical,
and logical intellect.
[...] for I knew that Joel Manton actually half clung to many old-wives' superstitions
which sophisticated people had long outgrown; beliefs in the appearance of dying
persons at distant places, and in the impressions left by old faces on the windows
through which they had gazed all their lives. (Lovecraft, 1971: 100)
As regras do jogo continuam, assim, a ser viciadas. Manton confirma-se como
uma personagem que se caracteriza pela contradição, também ele um produto de
uma época na qual o ritmo do progresso científico não é suficiente para
exterminar de vez a superstição e outros resíduos medievais que tanto parecem
inquietá-lo. É esta debilidade que vai ser aproveitada por Carter:
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Rui Lopes
Página | 114
[...] since spirit, in order to cause all the manifestations attributed to it, cannot be
limited by any of the laws of matter; why is it extravagant to imagine psychically
living dead things in shapes - or absences of shapes - which must for human spectators
be utterly and appallingly “unnamable”? “Common sense” in reflecting on these
subjects, I assured my friend with some warmth, is merely a stupid absence of
imagination and mental flexibility. (Lovecraft, 1971: 101)
Que melhor ilustração para as teses apresentadas sobre a estupidez? Dois
indivíduos que mutuamente se consideram estúpidos tentam chegar a uma
conclusão acerca do que não se pode dizer... Ambos parecem julgar que o outro é
irredimível no que respeita às suas crenças e ainda assim persistem na discussão,
esgrimindo argumentos que falham sucessivamente. Nesta última transcrição,
Carter deixa bem claro o que pensa do senso comum: falta de imaginação e
flexibilidade mental.
Apesar de tudo isto, será precisamente a partir deste momento que o diálogo
começa a revelar as suas virtudes. Após a caracterização de Manton como um
indivíduo ainda sujeito a crenças pouco científicas, Carter passará à narração dos
episódios descritos no conto já mencionado - e que julgo dispensar sinopse -,
criando um ambiente que propiciará um final inesperado para toda esta situação.
A progressiva utilização do discurso directo permite revelar a inquietação de
Manton, influenciado pela história-dentro-da-história:
“I'd like to see that house, Carter. Where is it? Glass or no glass, i must explore it
a little. And the tomb where you put those bones, and the other grave without an
inscription - the whole thing must be a bit terrible.”
“You did see it - until it got dark.”
My friend was more wrought upon than i had suspected, for at this touch of
harmless theatricalism he started neurotically away from me and actually cried
out with a sort of gulping gasp which released a strain of previous repression. It
was an odd cry, and all the more terrible because it was answered. (Lovecraft,
1971: 105)
Como se compreenderá pela última frase transcrita, Carter não teve tempo para
saborear a vitória sobre o seu oponente. Após a manifestação de um fenómeno
assustador e inexplicável, os dois acordarão no hospital com marcas estranhas no
corpo. Carter terá vencido o confronto, mas a questão que aqui se pode colocar
diz respeito aos reais ganhos obtidos com esta vitória. Provar que existem coisas
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 115
indizíveis é ainda provar alguma coisa, certamente. E, no entanto, é a maior
derrota para a razão: a constatação da impossibilidade de apropriação e
assimilação pelos meios de que o ser humano dispõe. As últimas palavras de
Manton, a encerrar o conto, mostram que a solução possível para estes casos é
ainda tentar descrever o que não se compreende verdadeiramente, inventando
perífrases e citando o que outros já disseram (Edgar Allan Poe, neste caso):
It was everywhere - a gelatin - a slime -yet it had shapes, a thousand shapes of horror
beyond all memory. There were eyes - and a blemish. It was the pit - the maelstromthe ultimate abomination. Carter, it was the unnamable. (Lovecraft, 1971: 106)
O recurso que acaba por permitir maior expressividade, para além dos já
referidos, constitui a coroa de louros para Carter: a descrição de Manton só é
possível por este conseguir associar ideias estranhas, descobrir semelhanças
inusitadas que lhe permitem descrever até mesmo o que não pode ser descrito.
Na sua qualidade de intérprete de uma estranheza que desafia as suas crenças e,
consequentemente, revela as limitações dos meios de que dispõe para a assimilar,
Manton rende-se à necessidade de substituir o seu vocabulário por outro que, não
sendo ainda o ideal - até por ser o resultado de uma aprendizagem recente -,
revela a virtude pragmática de facilitar a descrição do fenómeno que presenciou.
Essa descrição é aqui a verdadeira prova do conhecimento e a derradeira vitória
sobre o potencial risco da estupidez - e é extremamente irónico que o meio
utilizado seja a mesma literatura que Manton caracterizara como inexacta e
estupidificante, justificando assim uma descrição pouco simpática do seu autor.
A irritação que as técnicas literárias de Carter provocam a Manton é análoga
de observações como a que Sigmund Freud faz, em “Das Unheimliche”, a
propósito de um conto de Arthur Schnitzler:
Ficamos com um sentimento de insatisfação, uma espécie de rancor por
tentarem enganar-nos. Reparei nisto particularmente depois de ter lido “Die
Weissagung” [A Profecia] e histórias semelhantes que cortejam o
sobrenatural. (Freud, 1990: 374)6
6
Tradução minha, a partir da tradução inglesa.
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Rui Lopes
Página | 116
As causas desse rancor devem-se, no caso a que se refere, à forma como
alguns autores inserem o elemento sobrenatural, ou misterioso [uncanny] 7 em
narrativas com um aparente carácter realista, o que contrasta com narrativas do
género dos contos de fadas, nas quais o elemento irrealista é, por assim dizer,
estrutural. A vantagem destes últimos é que permitem ao intérprete um maior
grau de previsibilidade no respeita ao tipo de acontecimentos que podem aí ser
descritos, enquanto os primeiros se caracterizam precisamente por um
mecanismo que o induz a expectativas que não se cumprirão. O engano a que
Freud faz referência consiste na ausência de explicações conclusivas para
fenómenos estranhos introduzidos por subtilezas da arte literária na esfera do
nosso quotidiano. O conto em questão é de facto um excelente exemplo deste
tipo de problemas, já que à natural atitude do leitor que diz “estas coisas não
acontecem na realidade”, Schnitzler responde com a objectividade distanciada de
um Posfácio Editorial, asseverando a existência real das personagens e o
conhecimento pessoal do narrador, que o teriam convencido do carácter de
verdade da narrativa. Este autor disfarçado de editor a comprovar a idoneidade
do narrador é a imagem perfeita do logro a que Freud se refere.
De facto, ninguém gosta de ser enganado, mas algumas pessoas gostam ainda
menos do que outras, o que pode sugerir que talvez não se apercebam da
verdadeira dimensão do problema. Nesta pequena nota dos diários de Robert
Musil, as palavras do imperador austro-húngaro Francis Joseph lembram os
termos de Freud:
Expressão frequente do Imperador: “Ele enganou-me”. Isto representa a atitude de
permanente desconfiança própria de alguém que se julga estúpido. (Musil, 1998: 206)8
Ser enganado por pessoas e textos é uma inevitabilidade que adquire
contornos quase grotescos quando um intérprete persiste na crença de que a pode
7
A dificuldade em encontrar na língua portuguesa um equivalente satisfatório para o termo
“uncanny” (“unheimliche”, no original alemão) é comprovada por Sigmund Freud: “As línguas
italiana e portuguesa parecem contentar-se com palavras que podemos descrever como
circunlocuções.” (Freud, 1984: 342)
8
Tradução minha, a partir da tradução inglesa.
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 117
evitar. De certa forma, esta descrição sugere um paradoxo que acompanha a
interpretação, na medida em que o ponto de partida possível para qualquer
intérprete é a pretensão de uma verdade que nasce do erro.
O que isto também sugere é que a ameaça da ininteligibilidade suscita
violentas reacções de defesa, disfarçadas frequentemente pelo tom cómico, como
nesta anedota: “What happens if you cross a Mafioso with a deconstructionist?
Someone who makes you an offer you can't understand”. (Berger, 1997: 57)
Embora permita vários níveis de leitura, na sua origem encontra-se muito
certamente uma crença que podemos reconstruir a partir das últimas palavras de
ambas as frases, invertendo a sua ordem: “you can't understand / a
deconstructionist”. Atendendo à natureza das propostas que nos habituámos a
associar a mafiosos - aqui na variante Corleone -, uma parte do efeito cómico
desta anedota deve-se a podermos imaginar a difícil posição em que se
encontraria um indivíduo que não conseguisse entender o seu interlocutor na
situação aludida, com as consequências trágicas que daí poderiam advir. Dito de
outra forma, o que a anedota sugere é que temos sorte por não dependermos - de
uma forma tão vital, digamos - das propostas que nos são habitualmente feitas
por desconstrutivistas. Mafiosos e desconstrutivistas têm ainda em comum o
facto de possuírem um código semi-privado - uma gíria, por assim dizer - que
cumpre funções diferentes em cada um dos casos. Se para um Mafioso esse
código é essencialmente uma questão de sobrevivência e de manutenção da
inviolabilidade do grupo, adivinha-se que para o autor anónimo desta anedota o
desconstrutivista usa um código estranho unicamente para não ser compreendido
por quem o lê ou ouve - o que, excluídos os motivos de segurança pessoal, só
pode ser considerado como uma idiossincrasia irritante.
Ao contrário do que algumas destas reacções poderiam sugerir, poucos serão
os casos em que o autor almeje a ininteligibilidade do texto que produz. Uma
excepção notável encontra-se na carta que o Cavaleiro de Oliveira escreve ao
padre Joseph Augusto (Oliveira, 1982: 14-34), para que (não) seja traduzida por
um italiano que se afirma capaz de verter para a sua língua natal qualquer texto
escrito em português:
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
Rui Lopes
Página | 118
O fim para que V. M. me obriga a fazer este papel terá o seu efeito. Esse presumido
estrangeirote, que promete traduzir em italiano todo e qualquer discurso que se fizer
em português, sabe tanto desta língua como eu da alemã, com a diferença que neste
caso não sei o que os brutos podem falar, e ele no mesmo caso ignora o que os homens
podem dizer. Creia V. M. que o seu compatriota se há-de ver em tremuras com este
papel, porque não só é impossível que o traduza, porém incrível que o entenda.
(Oliveira, 1982: 14-15)
Em tom de bravata, o Cavaleiro redige um texto repleto de regionalismos,
expressões coloquiais e frases verdadeiramente absurdas, pontuadas por
exclamações como estas: “Que galante tradução será a do nosso italiano! Quem
me dera já vê-la!” (Oliveira, 1982: 14-15); “Parece-me que estou já vendo a
tradução do italiano!” (Oliveira, 1982: 23). Temos, portanto, um texto que
anuncia previamente o insucesso do seu intérprete, exibindo ostensivamente que
é esse o seu objectivo. De todos os textos até agora citados, este é o único que
pretende verdadeiramente a estupidificação de quem o vai ler, e esse leitor é
também o único a poder queixar-se com propriedade de ser alvo de um logro.
Outro caso curioso encontra-se em The Talent for Stupidity, de Edmund
Bergler. Entre os vinte factores que identifica como constituintes da estupidez,
Bergler aponta a “incapacidade de admitir ignorância, mesmo quando
confrontado com tópicos pouco familiares” (Bergler, 1998: 215). O exemplo que
fornece é a narração de um episódio em que participa como personagem:
O volume de conhecimento especializado aumentou de tal forma que ninguém, hoje
em dia, pode afirmar ter uma verdadeira informação enciclopédica. Mesmo uma
pessoa com estudos só se sente à vontade com um sector pequeno da sua própria área,
tendo, no mínimo, uma noção vaga de sectores tangenciais. “Os especialistas”, afirma
Nicholas Murray Butler, de Columbia, “são pessoas que sabem cada vez mais acerca
de cada vez menos”. [...]
Há alguns anos atrás, publiquei um livro científico, The Battle of the Conscience. Era
extremamente técnico e escrito exclusivamente para psiquiatras. Devido a um erro do
editor, o livro foi enviado para jornais diários e semanais para ser objecto de recensão
crítica. Para minha surpresa, descobri pelas recensões que tinha escrito um livro
“excelente” e “nada complicado”, que podia ser lido com grande proveito e sem
dificuldade por qualquer leigo. [...]
Esta experiência ensinou-me que as pessoas nunca admitirão as limitações do seu
conhecimento. Para mim, transformou-se numa diversão aguardar o aparecimento de
uma recensão feita por um crítico que admitisse a sua ignorância nesta matéria.
(Bergler, 1998: 215-216)9
9
Tradução minha, a partir do original em inglês.
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 119
Decorrendo naturalmente do que tenho vindo a afirmar, o factor identificado
por Bergler parece corresponder a um dos antídotos para a estupidez, sobretudo
tomando em conta o exemplo acima transcrito. Afinal, Bergler queixa-se de ter
encontrado bons intérpretes para a sua obra, o que parecerá algo contraditório à
luz do ponto que anteriormente apresentara: “Falta de capacidade ou de vontade
para procurar informação e falta de imaginação, combinados com uma
recorrência persistente de noções preconceituosas” (Bergler, 1998: 212).
A diferença entre “não ser entendido por um tradutor italiano” e “ser
exclusivamente entendido por um pequeno grupo de pessoas que partilham de
um mesmo quadro de referências” é aqui de somenos importância. O aspecto
essencial desta questão é que Bergler não diz que o seu livro ostentava
claramente a indicação da intenção que posteriormente confessará. Para todos os
efeitos, é mais um livro sobre psiquiatria que sai para o mercado, sujeito a ser
adquirido e lido por leigos, ignorantes da complexidade que, aparentemente, só o
seu autor e dois críticos -respectivamente, do Brooklyn Eagle e do Greensboro
News- reconhecem. Estes dois homólogos do tradutor italiano (do qual,
infelizmente, não sabemos mais nada) representam a confirmação de que, por
vezes, a intenção do autor deve ser usada como argumento para a prática da
interpretação.
O exemplo de Bergler (e não o exemplo fornecido por Bergler) representa
mais um caso em que se mostra quão difícil é lidar com a estupidez. Musil tinha
proposto a modéstia como antídoto; agora, devemos acrescentar a atenção e
algum distanciamento, a partir de Bergler e das frases que passo a citar:
A febre tifóide é uma doença terrível; ou se morre, ou se fica idiota. Sei do que falo: já
a tive. (Frase célebre atribuída ao marechal Mac Mahon. Reproduzido em Bechtel e
Carriére, 1984: 504).10
O paradoxo de Mac Mahon acompanha parodicamente o do cretense Epiménides
de
10
Gnosso,
segundo
o
qual
“todos
Tradução minha, a partir do original em francês.
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347
os
cretenses
são
mentirosos”.
Rui Lopes
Página | 120
Independentemente das tradicionais considerações filosóficas acerca do valor de
verdade destes enunciados, interessa aqui realçar como - superficialmente, pelo
menos - estes exemplos sugerem a impossibilidade de um qualquer intérprete se
retirar voluntariamente do contexto dos objectos interpretados, sobretudo quando
partilha com eles esse mesmo contexto. E como é que o intérprete se esquece
disto? A citação de Bronowski, na primeira secção deste artigo, pode ser uma
resposta, mas acrescento-lhe agora o epítome da falta de modéstia - que completa
o retrato da espécie:
Eu, que sou culto, não encontro nada de errado em mim; e em todas as ocasiões sintome espontaneamente levado a apreciar o que me parece mais belo. Se todos fossem
tão cultos como eu, todos se encontrariam, tal como eu, na feliz impossibilidade de
agir erradamente. (Renan (1947). l'Avenir de l'intelligence, reproduzido em Bechtel e
Carriére, 1984: 133)11
A inclusão destas frases no Dictionaire de la Bêtise é também o símbolo de
uma ironia particular que assinala os caminhos da estupidez. Se é sempre ao
outro que atribuímos o epíteto “estúpido” (mesmo quando o outro é um eu-háduas-horas-atrás), vemo-nos confrontados com a necessidade de uma descrição
alternativa que nos garanta um lugar no panteão dos que não são estúpidos. O
que todos estes exemplos revelam é que essa descrição não depende de nós - ou,
pelo menos na maior parte dos casos, não é a descrição que fazemos de nós
próprios que marca a diferença. No confronto com a estranheza do outro, cresce
um paradoxo irredutível, verdadeiro obstáculo às capacidades do intérprete que
tem sido a personagem principal deste artigo.
Para concluir, imaginemo-lo agora em monólogo: “Todos os meus
semelhantes são diferentes de mim. Dizem coisas bizarras acerca dos objectos
que partilho com eles; associam, de forma estranha, ideias que me parecem não
ter qualquer relação umas com as outras; e chegam mesmo a ser estúpidos, pois
desconfio que não entendem o verdadeiro significado daquilo que os rodeia.”
Curiosamente, como admitirá o nosso intérprete, é precisamente este estado de
coisas que o impele a interpretar. Verdadeiro romance de aprendizagem, a sua
11
Tradução minha, a partir do original em francês.
Dos Algarves n.º 20 – 2011
Página | 121
história através dos tempos e lugares permitir-lhe-á, então, dizer que sabe do que
fala quando fala da estupidez.
Referências
Bechtel, G. e Carriére, J-C. (1984). Dictionnaire de la Betise e des Erreurs de Jugement.
Paris: Robert Laffont.
Bergler, E. (1998). The Talent for Stupidity. The Psychology of the Bungler, the Incompetent,
and the Innefectual. Madison/ Connecticut: International Universities Press.
Berger. P. L. (1997). Redeeming Laughter. The Comic Dimension of Human Experience. New
York and Berlin: Walter de Gruyter.
Bergson, H. (1991). O Riso. Lisboa: Relógio d’Água.
Bronowski, J. (1985). Magia, Ciência e Civilização. Lisboa: Edições 70.
Freud, S. (1990). Art and Literature. London: Penguin Books.
Koestler, A. (1964). The Act of Creation. London: Penguin Books.
Lovecraft, H.P. (1971). The Lurking Fear and Other Stories. New York: Ballantine Books.
Musil, R. (1998). Diaries. New York: Basic Books.
Musil, R. (1994). Da Estupidez. Lisboa: Relógio d’Água Editores.
Oliveira, C. (1982). Cartas. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora.
Pitkin, W. B. (1932). A Short Introduction to the History of Human Stupidity. New York: Simon
and Schuster.
Poe, E. A. (1982). The Complete Tales and Poems of Edgar Allan Poe. London: Penguin
Books.
Schnitzler, A. (1999). Selected Short Stories. London: Angel Books.
RUI LOPES é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas - Estudos Portugueses/Ingleses
(F.C.S.H. da Universidade Nova de Lisboa) e Mestre em Teoria da Literatura (Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa). Professor do Ensino Básico e Secundário, desde 1994. Entre
outras obras, traduziu O Dicionário do Diabo, de Ambrose Bierce (Tinta-da-China), O Espaço
Vazio, de Peter Brook (Orfeu Negro), e Correios, de Charles Bukowski (Antígona). Fundou e
dirige o grupo de teatro AN!MAL, tendo já encenado peças de Dennis Kelly e Tiago Rodrigues,
entre outros.
Submetido: Dezembro 2010
Aceite: Fevereiro 2011
Dos Algarves n.º20 - 2011
Revista da ESGHT/UAlg
ISSN: 0873-7347