revista eletrônica de história do brasil
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REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL Publicação semestral da Universidade Federal de Juiz de Fora Departamento de História Arquivo Histórico da UFJF Editora da UFJF Volume 2 - Número 1 - Jan./Jun. de 1998 Juiz de Fora - MG - Brasil Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 FICHA CATALOGRÁFICA REVISTA Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF. Semestral. 1998, http://www.ufjf.br/~clionet/rehb 1. História do Brasil 2. Periódicos eletrônicos: história Digitado em Word 7.0. Os direitos dos artigos publicados nesta edição são propriedade dos autores. Esta obra pode ser obtida gratuitamente através de assinatura eletronica pelo endereço web da Revista e da Lista de Discussão HBRASIL-L, reproduzida eletronicamente ou impressa, desde que mantida sua integridade. REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL Web: http://www.ufjf.br/~clionet/rehb E-mail: [email protected] Fone: (032) 229-3750 - FAX: (032) 231-1342 Endereço convencional: Revista Eletrônica de História do Brasil Arquivo Histórico da UFJF Prédio do CDDC - Campus Universitário Juiz de Fora - MG - 36036-330 Conselho Editorial: Alexandre Mansur Barata Carla Maria Carvalho de Almeida Galba Di Mambro Patrícia Falco Genovez Ronaldo Pereira Sonia Lino Vanda do Vale Arantes Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Conselho Consultivo: Adriano S. L. da Gama Cerqueira - UFOP Américo Guichard Freire - UFRJ e CPDOC Ângela Maria de Castro Gomes - UFF Ângelo Carrara - UFOP Beatriz Helena Domingues - UFJF Carlos Fico - UFOP Cláudia Maria Ribeiro Viscardi - UFJF Douglas Colle Libby - UFMG Hélen Osório - UFRS Horácio Gutierrez - UFG Ignacio José Godinho Delgado - UFJF Jairo Queiróz Pacheco - UEL Manolo Florentino - UFRJ Maria de Fátima da Silva Gouvêa - UFF Maria Leônia Chaves de Resende - FUNREI Paulo E. C. Parucker - Mestre pela UFF Renato Pinto Venâncio - UFOP Rodrigo Patto Sá Motta - UFMG Vera Lúcia Puga de Souza - UFU William Summerhill - UCLA - California UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Reitor: Profa. Dra. Maria Margarida Martins Salomão Vice-Reitor: Prof. Paulo Ferreira Pinto Pró-Reitora de Pesquisa: Prof. Dr. Murilo Gomes de Oliveira Diretor da Revista: Prof. Galba Ribeiro Di Mambro Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 SUMÁRIO Apresentação INICIAÇÃO CIENTÍFICA 04 DAIBERT JÚNIOR, Robert. Isabel, a Redentora; heroificação da princesa brasileira frente à crise monárquica e no advento da República ARTIGOS COUTINHO, Sérgio Ricardo. Frei Theodósio da Veiga e José Lopes Espínola; missionários do Rio Urubu (Amazônia - séc. XVII) OLIVEIRA, Lisa Batista de. Gênero, poder e prostituição CARDOSO, Maria Tereza. Caramuru somos nós RESENDE, Leônia Chaves de, et alii. A devassa da vida privada; o arquivo paroquial de Nossa Senhora do Pilar de São João del Rei SILVA FILHO, Osmar Luiz da. Imagens das cidades; oralidade, memória e história AXT, Gunter. A participação da iniciativa privada nacional no setor elétrico gaúcho; uma perspectiva histórica das maiores empresas (1887-1922) GENOVEZ, Patrícia Falco. O desafio de Clio: o esporte como objeto de estudo da História RESENHAS KRAAY, Hendrik. MEADE, Teresa A . "Civilizing" Rio: Reform and Resistance in a Brazilian City, 1889-1930 LEVINE, Robert M. OLIVEIRA, Maria e NEHRING, Marta. 15 Filhos (video Documentary), 1997, 25 minutes Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 para a reprodução do capital privado regional/nacional. Um tema, sem dúvida atual, tendo em vista o contexto de privatização vivenciado pelo país. APRESENTAÇÃO E, finalmente, Patrícia Falco Genovez, trabalha o esporte como objeto da História, separado da Educação Física, colocando os espaços e possibilidades de análise de um tema ainda pouco explorado pela historiografia. A partir deste segundo volume, será nosso objetivo, oferecer aos alunos de graduação um espaço para divulgação de suas pesquisas. O espaço destinado à Iniciação Científica traz, neste momento inaugural, o graduando Robert Daibert Júnior, analisando o mito em torno da Princesa Isabel, no momento da crise monárquica e a sua permanência após o advento da República, através de imagens e fontes escritas. A relevância e o ineditismo do tema nos mostra o quanto é importante abrir espaços para que alunos possam publicar seus trabalhos, seja monografias de final de curso ou mesmo trabalhos desenvolvidos a partir de bolsas de iniciação científica. Entre os artigos que integram a Revista Eletrônica de História do Brasil percebe-se uma tendência bastante variada, com abordagens de objetos, de um modo geral, ainda pouco explorados pela historiografia. Sérgio Ricardo Coutinho tem como objetivo acompanhar o processo de constituição da experiência de vida, e principalmente missionária, de frei Theodósio da Veiga e de seu amigo José Lopes Espínola, dentro da perspectiva das "novas" biografias, onde o indivíduo é estudado como um microcosmo de múltiplas relações, sejam elas racionais e/ou irracionais, no contexto da Amazônia do século XVII. Os artigos de Lisa Batista de Oliveira, Maria Teresa Cardoso e Maria Leônia Chaves de Resende, concentram-se em Minas Gerais. Lisa Batista tem como objetivo a compreensão do significado cultural da prostituição nas Minas Gerais do século XVIII, utilizando a categoria gênero, através da qual os papéis sexuais são concebidos como construções históricas diferenciadas, onde devem ser entendidos como contra-poderes sedutores e ilícitos que resultavam em uma existência mais autônoma para as prostitutas mineiras. Maria Teresa analisa os aspectos de uma rebelião escrava ocorrida na freguesia de Carrancas (São João del Rei - MG), em 1833, procurando tecer algumas considerações acerca das referências culturais e simbólicas que informaram a ação dos escravos. Maria Leônia tem por objetivo a descrição do arquivo paroquial do Pilar, especialmente da série Processos Matrimoniais, como resultado parcial do projeto “Levantamento, classificação e indexação, em banco de dados, dos documentos e obras raras dos arquivos de São João del-Rei e Tiradentes” (MG). Outro objeto de grande relevância é trabalhado por Osmar Luiz Silva Filho que busca um diálogo do historiador com as fontes orais que elege as dimensões do imaginário e das representações, dimensões estas, solenes, para a compreensão de uma realidade. Gunter Axt, numa perspectiva econômica trabalha os principais investimentos do capital privado nacional na indústria de energia elétrica do Estado do Rio Grande do Sul, desde 1887 a 1928. Seu propósito fundamental foi revelar, de um lado, os mecanismos de proteção governamental para com o setor, e, de outro, os obstáculos O Conselho Editorial 4 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 FREI THEODÓSIO DA VEIGA E JOSÉ LOPES ESPÍNOLA; missionários do Rio Urubu (Amazônia - séc. XVII)* COUTINHO, Sérgio Ricardo. Frei Theodósio da Veigas e José Lopes Espínola; missionários do Rio Urubu (Amazônia - séc. XVII). Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 05-19. Sérgio Ricardo Coutinho Professor de História da América do Centro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB) Membro do CEHILA-Brasil (Centro de Historia da Igreja na América Latina e Caribe) http://www.ufjf.br/~clionet/rehb RESUMO: Atualmente, observa-se uma recuperação do indivíduo na História. As "novas" biografias têm procurado ver o indivíduo como um microcosmo de múltiplas relações contraditórias, sejam elas racionais e/ou irracionais. Busca-se estudar o indivíduo e sua relação com redes sociais e discursivas mais amplas. Este artigo visa reconstruir, ou melhor, acompanhar o processo de constituição da experiência de vida, e principalmente missionária, de frei Theodósio da Veiga, religioso mercedário, e de seu amigo o negro, catequista (!?), “capitão-do-mato”, José Lopes Espínola: ambos trabalharam com os índios Aruaques e Muras no rio Urubu, durante o final do século XVII. Através das suas trajetórias, mostraremos a luta em viver e sobreviver na Amazônia, além das relações entre brancos, índios e negros na história colonial e religiosa daquela região. Endereço para correspondência: Revista Eletrônica de História do Brasil Arquivo Histórico da UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora - MG Prédio do CDDC - Campus Universitário Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330 ABSTRACT: At present moment, we observe the regeneration of the person on History. The “news” biographies have studied the person with a microcosme in the multiply contradictions relations (rational or irrational). Now, studies the person and his relationship with an extend social and discursives circles. This articles have an objetive: to follow the process of constitution of life experience, and missionarie life especially , about father Theodósio da Veiga, mercedarian, and about your negro friend, cathechist, “capitão-do-sertão”, José Lopes Espínola: both worked with the Aruaques and Muras indians in the Urubu river, during of XVII century. Over his way of life, we show the fight to live and survivel in the Amazon forest, and the relationship with whites, indians and negros in the colonial and religious history in region. http://www.ufjf.br/~clionet/rehb E-mail: [email protected] Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342 Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo e em sua estrutura física. PALAVRAS-CHAVE: Mercerdários; Amazônia: sec. XVII; Frei Theodósioda Veiga; José Lopes Espínola; Negros; Biografias INTRODUÇÃO Atualmente, observa-se uma recuperação do indivíduo na história. As "novas" biografias têm procurado ver o indivíduo como um microcosmo de múltiplas * Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla sobre os Mercedários entitulada "Documentos para a História dos Mercedários na Amazônia Colonial" desenvolvida no Núcleo de Estudos da Amazônia (NEAz/UnB). 5 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 relações contraditórias, sejam elas racionais e/ou irracionais. Busca-se estudar o indivíduo e sua relação com redes sociais e discursivas mais amplas. O personagem analisado "re-apresenta" uma realidade maior na dimensão da sua individualidade. Ele não se resume a esta realidade mas participa dela.1 Cabe ao historiador uma apreensão, mais sólida do que nunca, da totalidade da experiência humana. Os homens vivem sua experiência de vida integralmente com idéias, necessidades, aspirações, emoções, sentimentos, razão, desejos, como sujeitos sociais que improvisam, forjam saídas, resistindo, se submetendo, enfim vivendo. Pensar a história neste sentido, como experiência humana, é situá-la como um campo de possibilidades em que várias propostas estão em jogo. Deste modo, o historiador, para recuperar a problemática vivida pelos agentes em estudo, necessita acompanhar o processo de constituições dos atores sobre suas experiências. Este artigo visa a reconstruir, ou melhor, a acompanhar o processo de constituição da experiência de vida e, principalmente, missionária, de frei Theodósio da Veiga, religioso mercedário, e de seu amigo, o negro, catequista (!?), “capitão-domato”, José Lopes Espínola. Ambos trabalharam com os índios Aruaques e Muras no rio Urubu, durante o final do século XVII. Através das suas trajetórias, mostraremos a luta em viver e sobreviver na Amazônia, além das relações entre brancos, índios e negros na história colonial e religiosa daquela região. de Quito em 1639, procurou o provincial da ordem mercedária, solicitando-lhe que destacasse alguns missionários para trabalharem no Pará. Frei Francisco de Baana atendeu o pedido, designando alguns religiosos (Frei Pedro de la Rua Cirne, Frei João das Mercês, Frei Diogo da Conceição e Frei Afonso de Armejo) para acompanharem o regresso dos portugueses ao Brasil, onde o próprio capitão prometia dar todo o apoio possível para a instalação dos mesmos em terras portuguesas. Alguns historiadores falam do impacto que causou no capitão a grande veneração dos equatorianos pela Ordem de Nossa Senhora das Mercês e ele "encheu-se de entusiasmo, lembrando-se de trazer para Belém aquela gente que se cercava de tanta glória."3 Para entendermos o fato, devemos verificar antes a práxis missionária destes religiosos no Vice-Reino do Peru. Segundo Pedro Borges, os mercedários no "Novo Mundo" se converteram, desde o primeiro momento, em uma ordem religiosa com os mesmos objetivos das demais do seu tempo, ou seja, atender espiritualmente a população branca, se dedicar à conversão e posterior evangelização dos índios e, em menor medida, dos negros. No que diz respeito ao cuidado espiritual dos brancos, os mercedários procuraram trabalhar sob a forma da administração dos sacramentos e celebração dos cultos. Quanto à conversão e posterior cura pastoral dos indígenas, os mercedários não coincidem totalmente com as demais ordens religiosas. Na legislação oficial da época, ao falar das ordens missioneiras, há um silêncio sistemático à Ordem das Mercês. Por quê? A característica marcante dos mercedários na América foi sua participação nas conquistas armadas, muito superior às demais ordens. Rememorando e pondo em prática sua inicial denominação oficial de Real e Militar Ordem das Mercês, estes religiosos participaram como capelães em muitas das expedições de conquista organizadas no século XVI, ao ponto da primeira chegada a muitos territórios se realizar na qualidade de acompanhantes dos conquistadores. Os mercedários se acostumaram a iniciar suas vidas na América tendo como base as casas, terras e encomendas de índios que se lhes entregavam uma vez anexados, em recompensa aos méritos adquiridos durante o processo anexador.4 Foi o que aconteceu quando da conquista da região de Quito. Em 1534, acompanharam a expedição de conquista de Pedro de Alvarado, pelo Equador, seis mercedários. No ano seguinte, o capitão Pacheco se estabeleceu na cidade de Portoviejo, província de Quito. Este capitão levou consigo o mercedário Dionísio de Castro. Pela participação na campanha militar, o religioso OS MERCEDÁRIOS NA AMAZÔNIA Os mercedários ou religiosos da Real, Sagrada e Militar Ordem Calçada de Nossa Senhora das Mercês e da Redenção dos Cativos (O. de M.) foram fundados em 1218, na cidade espanhola de Barcelona, por São Pedro Nolasco. Nasceram com o fim primordial de aspirar à perfeição mediante o exercício da virtude da caridade, sob a forma específica da "redenção dos cativos",2 ao que se comprometiam na profissão de um quarto voto somados aos já tradicionais de pobreza, obediência e castidade. Juntamente com os franciscanos, foram os primeiros a chegar ao Novo Mundo, acompanhando Cristóvão Colombo em sua segunda viagem. Das Antilhas seguiram para a América Central, particularmente à Nicarágua, de onde foram em 1535 se estabelecer na cidade de Quito, capital do Vice-Reino do Peru. Sabe-se que o capitão-mor Pedro Teixeira, partindo do Pará, após uma expedição que se iniciou em 1637, subindo todo o Rio Amazonas e chegando à cidade 1 SCHIMIDT, Benito B. A Pós-Modernidade e o conhecimento histórico: considerações sobre a volta da biografia, in Cadernos de Estudos, Porto Alegre: Curso de Pós-Graduação da UFRGS, 1994, p. 52. 2 O frade mercedário ía de cidade em cidade esmolando para obter dinheiro e comprar a liberdade de muitos cristãos presos pelos mouros. Muitas vezes, quando não se tinha o dinheiro, o religioso ficava como refém no lugar daquele que recebia a liberdade. 3 REIS, Arthur César F. A Conquista Espiritual da Amazônia, São Paulo, Escolas Profissionais Salesianas, 1942, p. 28. Para uma pequena súmula dos mercedários no Pará e no Maranhão ver p. 28-33 4 BORGES, Pedro. Religiosos en Hispanoamérica. Madrid: Ed. Mapfre, 1992, p. 13. 6 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 recebeu um bom pedaço de terra para a edificação do primeiro convento. Nesse mesmo ano foi fundado também o convento de Quito. De acordo com um documento do século XVII, os mercedários tiveram um papel importantíssimo no que diz respeito ao estabelecimento do domínio espanhol na região de Quito, atuando como verdadeiros soldados. Vejamos um caso interessante descrito neste documento: Não trabalharam somente em estender o Império de Jesus Cristo (...): renderam serviços muito importantes à Coroa de Espanha, particularmente na horrível sedição que teve lugar em Portoviejo no ano de 1547, em que a maioria do povo, intimidado pelas ameaças do tirano [Governador], que se havia levantado contra o Rei, seu Soberano, para fazer-se dono desta Província irmã, havia tomado seu partido. O Venerável Padre Miguel de Santa Maria e seus Religiosos [mercedários] se opuseram generosamente a esse Tirano rebelde, e fizeram tanto com sua pregação e com suas admoestações, que o povo tomou as armas, o expulsou da cidade, em que pretendia estabelecer seu Trono imaginário, e permaneceu na fidelidade que era devida ao Rei de Espanha, seu Soberano Senhor.5 Berredo diz que os Superiores das diversas ordens religiosas de Quito, ofereceram a Pedro Teixeira "os operários mais virtuosos para o trabalho de tão inculta vinha", isto é, o Amazonas.6 Sem dúvida que ele ouviu as histórias e os sucessos das conquistas dos mercedários, ou melhor, daquela "gente que se cercava de tanta glória". O capitão-mor sabia que os religiosos das Mercês seriam muito úteis não só nas "conquistas para Deus" mas também "para o Rei". A conquista do rio Amazonas significou a concretização da União Ibérica na América, pois a colônia espanhola e a colônia portuguesa tinham agora um canal de comunicação. Além disso, e concordando com Hugo Fragoso, a ocupação da Amazônia serviu de ponto de apoio para a defesa contra os invasores (holandeses e franceses).7 Nesta viagem de exploração, Pedro Teixeira percebeu que o curso dos rios Negro, Branco e Urubu desaguava em pleno território inimigo, ao Norte, isto é, nas Güianas: é para lá que os mercedários seriam designados. Depois da fundação dos conventos em Belém (1640) e em São Luís (1660), os religiosos das Mercês iniciaram de forma efetiva o trabalho missionário e, porque não, militar. Em 1654, o padre Antônio Vieira reclama esta atitude dos mercedários: Só com o capitão João Betancor (sic) foi o padre Frei Antônio Nolasco, o qual sendo religioso mercenário, cuja profissão é reunir cativos, ia nesta tropa a fazer, como fez, grande quantidade de escravos; porque só à sua parte trouxe trinta e cinco, e os vendeu publicamente e os outros jogou e ganhou aos oficiais e soldados da tropa, sobre que anda pleito em juízo. 8 Em 1663, o sargento-mor Antônio Arnau Vilela e o mercedário frei Raimundo exploram o rio Urubu. Berredo diz que o nome do rio quer dizer corvo "nome, que tomou de serem assistidas as suas praias de infinito número destas fúnebres aves". Aquele rio era sinônimo de morte.9 Frei Raimundo e Arnau Vilela sentem na pele a fama do rio. No lago de Saracá, onde deságua o Urubu, frei Raimundo tinha fundado uma missão, porém ainda não tinha subido até a nascente do rio. Ali era povoado pelos 8 VIEIRA, Pe. Antônio. Escritos Instrumentais sobre os Índios. Introdução de José Carlos Sebe Bom Meihy. São Paulo: EDUC/Loyola/Giordano, 1992, p. 11. Padre Vieira cita a expedição do sargento-mor João Bettencourt Muniz que lutou no rio Jari contra os Aruaquis e, em seguida, contra os Anibá (Berredo escreve "Aníbal", op. cit., parágrafos 991-993) que seriam aldeados pelos mercedários. Além disso, Vieira, sarcasticamente, diz que o objetivo dos mercedários não era a "redenção dos cativos" mas "reunir cativos", isto é, adquirir e negociar escravos. Frei Antônio Nolasco fez sua profissão religiosa em 13 de dezembro de 1647 e segundo Vieira, no mesmo documento, não sabia a "língua geral", era soldado da fortaleza de Belém e tinha sido levado "por força a ser frade". O mercedário teria dito ao jesuíta que sua profissão tinha sido anulada e que a pleiteava novamente com sua Ordem. Talvez por isso Antônio Nolasco saiu de Belém e foi viver com o seu pai numa certa "ilha de São Miguel"; cf. Lembrança dos Religiosos que tomaram o hábito e professaram neste Convento da Natividade [Belém] conforme das profissões dos que são hoje vivos (1647-1677). Biblioteca Nacional de Madrid, Ms.18764. Os grifos são nossos. 9 BERREDO, Bernardo P., op. cit., parágrafos 1111-1116. Existe uma lenda amazônica sobre o Urubu: "Um dia, havia uma festa no céu em honra da Santa Virgem. Todos os animais da criação tinham sido convidados. O jaboti, tão lento no andar, não via meio de chegar tão alto. Pediu ao urubu que o levasse com ele. O urubu consentiu e colocou-o nas costas. Tendo chegado a certa altura, o urubu, de propósito, deixou cair o coitado do jaboti, que se quebrou em mil pedaços. Então, a Santa Virgem desceu do céu. Apanhou os pedaços do jaboti, restituiu-lhe a vida, abençoou-o, e maldisse para sempre o negro urubu. Foi desde esse tempo que o jaboti é coberto com uma carapaça que parece feita de pedaços, e que o urubu traz infelicidade a tudo o que toca. A árvore na qual se empoleira perde as folhas; o fuzil que aponta para ele explode na mão do caçador; seu corpo, depois de morto, fica abandonado; mesmo as formigas não o tocam"; cit. por NÉRI, Barão de Santa-Anna. O País das Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1979, p. 69. 5 La Merced en America, según la `Historia parisiana de la Orden' (1685), in Presencia de la Merced en America, Acta del I Congreso Internacional, Madrid, 30 de abril - 2 de mayo de 1991, vol. II. Madrid: Revista Estudios, 1991, p. 1043. 6 BERREDO, Bernardo Pereira. Anais Históricos do Estado do Maranhão. 4. ed. Rio de Janeiro: Tipo Editor/ALUMAR, 1988, p. 178, parágrafo 687. 7 FRAGOSO, Hugo. A era missionária (1686-1759), in História da Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 140. 7 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Caboquenas, Bararurus e Guanavenes que, avisados da chegada da expedição, foram procurá-la, persuadindo Vilela e frei Raimundo da facilidade de conseguir escravos se subissem mais para as cabeceiras do Urubu. Acreditando na notícia, a tropa de resgate acompanhou-os, ficando no Saracá apenas uma guarnição. Em caminho, Vilela foi atacado e morto pelos índios com quase todos os companheiros; os poucos que conseguiram salvar-se, entre eles Frei Raimundo e um companheiro de hábito10, buscaram refúgio na missão do Saracá, onde o alferes João Rodrigues Palheta organizou a defesa, e à frente dos soldados que lá estavam, foi ao encontro dos índios "degolando a maior parte deles".11 Concluimos, assim, que a tendência da Ordem das Mercês em participar das expedições de conquista é o que, provavelmente, atribuímos a total inibição na questão da licitude ou ilicitude das mesmas expedições. Desde o momento em que participam delas é porque as consideram lícitas, o que explica o seu silêncio na questão. Vimos como os mercedários iniciaram suas atividades missionárias no Amazonas. Para o "fúnebre" e perigoso rio Urubu, foi designado o frei Theodósio da Veiga - é sobre ele que iremos falar. FREI THEODÓSIO DA VEIGA E A MISSÃO DO URUBU Frei Theodósio era natural de Lisboa e fez sua profissão na Ordem de Nossa Senhora das Mercês em 10 de novembro de 1657.12 Outro ponto importante era o significado de seu nome, que provavelmente teria influência em toda a sua vida: Theodósio, ou Teodoro, significa "dádiva do Senhor". Para chegar ao dia da profissão, o noviço passa por várias etapas. Talvez Theodósio, como muitos meninos da época que seguiam a vida religiosa, tenha entrado para o Convento com uns 14 ou 15 anos de idade. Ele fazia parte de um grupo de noviços que foram alunos do jesuíta Padre Souto-Maior. Era costume entre os jesuítas estudar o trivium, isto é, gramática, retórica e dialética, depois estudavam o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música) e a última etapa era o estudo da teologia. O latim também fazia parte do currículo, mas era próprio dos jesuítas estudar e preservar por escrito a "língua brasília", ou "língua geral". Souto-Maior também fez o mesmo com seus alunos mercedários.13 De acordo com a "Relação dos Religiosos que Professaram...", o adjetivo dado a Theodósio é de "religioso grande língua da terra". A expansão e o predomínio da língua geral se desenvolveram sobretudo em São Paulo (principalmente entre os bandeirantes) e no Amazonas em geral, isto é, Maranhão, Pará e Amazonas. Na costa, a língua portuguesa predominou, mas na região Norte e em São Paulo a língua geral era a mais difundida. Francisco Lisboa dizia que no Estado do Maranhão, até mesmo nos púlpitos, se falava a língua geral. Para Ferreira Reis, o seu uso na região do Amazonas, durante os séculos XVII e XVIII, foi de tamanha amplitude que poderia afirmar-se que sem ela era, de certo modo, impossível viver integrado ao meio social, dele auferindo qualquer benefício.14 Depois de aproximadamente 4 anos de estudo, Theodósio fez sua profissão. Só encontraremos novas informações dele dez anos depois, em plena atividade missionária. Em 1668, o capitão Pedro da Costa Favela vai ao rio Urubu, despachado pelo governador Antônio de Albuquerque Coelho, como comandante de uma tropa de resgates. Ali encontrou os Aruaques, que o guiaram até o rio Negro onde os Tarumãs o acolheram. Frei Theodósio da Veiga, que o acompanhava, fundou então, nas imediações de Aruim, o primeiro povoado da região. Esse povoado, anos depois, foi transferido 10 Cf. BETTENDORFF, João Phelippe. Chronica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão (1698), in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 72, 1909. p. 208. Relatando a mesma expedição, Bettendorff fala em frei João da Silveira, natural de São Luís, que conseguiu escapar do ataque com muita habilidade por ter sido ele um militar (capitão) antes de se tornar religioso, "ficando o companheiro [Frei Raimundo?] com a cabeça quebrada durante o conflito, por querer livrar a um pobre morador do Maranhão, chamado Rosa, a quem os inimigos levavam às costas para o matarem depois ..." 11 REIS, Arthur César Ferreira. História do Amazonas. 2. ed. Belo Horizonte, Itatiaia, 1987, p. 68; BERREDO, Bernardo P., op. cit., parágrafo 1116. 12 Lembrança dos Religiosos que tomarão o hábito e professarão neste Convento da Natividade conforme das profissões dos que são hoje vivos (1647-1677), op. cit. 13 MORAES, Pe. José de. História da Companhia de Jesus na extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro, Alhambra, 1987, p. 223. A 1a edição é de 1759. WECKMANN, Luís. La herencia medieval del Brasil. México, FCE, 1993, p.215-216. 14 Apud RODRIGUES, José Honório. A vitória da língua portuguesa no Brasil Colonial, in História Viva. São Paulo: Global, 1985, p. 25. 8 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 para a foz do rio Jaú e, sob a direção dos carmelitas, recebeu o nome de Santo Elias do Jáu, conhecido posteriormente como Velho Airão.15 Entretanto, toda esta região ficou subordinada aos jesuítas, ou seja, o trecho compreendido entre o Urubu e o Negro e todo o vale deste. A repartição das aldeias entre os religiosos no Amazonas teve vários momentos onde os jesuítas e as demais ordens (franciscanos, carmelitas e mercedários) disputavam o Amazonas. Em 1655, as missões indígenas foram entregues aos jesuítas, com exclusividade. Tal privilégio provocou ressentimentos e protestos das outras ordens religiosas, inclusive dos mercedários. Nesse mesmo ano ocorre uma revolta contra os religiosos da Companhia, por parte dos colonos, que termina com a expulsão dos mesmos. Em 1661, ocorre o mesmo fato, sendo os jesuítas reintroduzidos no Estado do Maranhão no ano seguinte. Depois desta última expulsão, não foram entregues novamente aos jesuítas a administração das aldeias com a exclusividade que vinha ocorrendo. Em 12 de setembro de 1663, o rei perdoava os colonos pela atitude violenta contra os religiosos da Companhia, continuando, porém, com eles a administração espiritual dos aldeamentos. Contudo, as outras ordens começavam a adquirir maior espaço para atuação. Em 1680, torna o rei Pedro II a insistir na exclusividade jesuíta, mas no ano seguinte, ele determinava a criação da Junta das Missões, no Maranhão, o que alargará o campo da co-participação administrativa dos aldeamentos. Em 1684, ocorre a terceira expulsão dos jesuítas da região, motivada agora pela questão do governo temporal dos índios. Retornam ao Maranhão em 1685, mas exigem um Regimento das Missões, como condição para continuarem no trabalho missionário.16 O jesuíta Felipe Bettendorff disse que, com as várias expulsões de seus irmãos de hábito, tinham ficado à frente das missões poucos religiosos e que seu superior, padre Jódoco Peres, por pressão da Junta das Missões, decidiu liberar o rio Urubu para os mercedários. O religioso designado, frei Theodósio, tinha a permissão de "administrar os sacramentos até se dispor outra coisa em contrário".17 A pressão feita pela Junta das Missões nada mais era do que uma determinação do rei Pedro II em favor dos mercedários. Em 1682, o rei já tinha concedido à Ordem das Mercês autorização para construirem seu Hospício em Lisboa porque, segundo ele, exercitavam com desvelo no serviço de Deus e meu, tanto no asseio do Culto Divino, como nas Missões em conservação e propagação da fé, reduzindo aquela gentilidade ao grêmio da Igreja, batizando e doutrinando todos com grandíssimo trabalho, e risco da vida.18 A princípio, pode-se pensar numa concessão normal, porém o fato se torna importante no instante em que o rei beneficiava uma ordem estrangeira em detrimento de uma outra ordem portuguesa de igual objetivo de "redenção dos cativos": a Ordem da Santíssima Trindade (os trinitários). Os trinitários vinham fazendo pressão sobre o rei contra os mercedários desde quando aconteceu a Restauração (fim da União Ibérica) e, simultaneamente, da fundação do primeiro convento das Mercês em Belém, no ano de 1640. A disputa entre as duas ordens ficou tensa especialmente após o Alvará de 1672, quando o rei determinou que todos os mercedários se ausentassem do reino. O mercedário frei João Leal, numa carta ao rei solicitando a permanência da Ordem das Mercês no Estado do Maranhão, comentou os motivos da perseguição trinitária: ... perseguiram sempre com estranhavel ódio [os] Religiosos da Ordem da Santss Trind.e deste Reino [de Portugal], que naquele Estado [do Maranhão] não tem Convento algum, nem querem as incomodidades, e trabalhos de navegar mares, desterro do Reino, trabalhos, e riscos das vidas das Missões na conversão da Gentilidade ...19 A decisão do rei de Portugal em favor dos mercedários em 1682, fazia deles os "novos" Templários na "cruzada" contra os "infiéis" indígenas da Amazônia. Isto fica mais claro em um documento de 1689. O governador Arthur de Sá e Meneses, após ouvir os índios do rio Urubu, que tinham ido a Belém no ano anterior pedir um padre para os batizarem, resolveu efetivar Frei Theodósio da Veiga definitivamente na região. O rei Pedro II confirmou a resolução: não querendo admitir Religiosos da Companhia, instando que fosse o Padre Frei Theodosio, da ordem das Mercês pelo conhecerem, e os haver livrado de serem escravos, e por cuja causa e por assentar em uma junta que fizestes, lhe concedestes o dito Pe. Frei Thiodósio (sic), vistas as informações e 15 O Núcleo de Estudos da Amazônia (NEAz/UnB) juntamente com a Universidade do Amazonas, Museu Amazônico e a UNESCO realizaram o tombamento das ruínas desta cidade encontradas pelo pesquisador, do mesmo Núcleo, Prof. Victor Leonardi. 16 FRAGOSO, Hugo. op. cit., p. 148-149. 17 BETTENDORFF, João Phelippe. op. cit., p. 491-492. Cf. também LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, 4. ed. Rio de Janeiro/Lisboa, INL/Livraria Portugália, 1943, tomo III, p. 383. Pelas informações de Bettendorff e Serafim Leite, Theodósio da Veiga trabalhava de modo temporário no Urubu desde 1684. 18 Cédula Real, de 22 de junho de 1682, concedendo aos mercedários portugueses a fundação de uma Casa-Hospício em Lisboa, Biblioteca Nacional de Madrid, Ms. 18764, n. 23. 19 Memorial do P. João Leal ao Rei Pedro II (1673?). Biblioteca Nacional de Madrid, Ms. 18764, n. 20, f. 1; cf. também ALMEIDA, Fortunato de. História da Igreja em Portugal, Lisboa: Civilização Ed., 1968, v. 2, p.198. 9 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 tarde administrada pelos carmelitas. Muito provavelmente os índios do rio Urubu, vizinho destas tribos, tenham caído como escravos. Apesar de termos comentado anteriormente que os mercedários não eram propriamente missionários, não podemos esquecer que esses religiosos estavam muito identificados com o "quarto voto", ao ponto de entregarem suas vidas para salvar a fé do cativo. Dentro de um contexto tradicional, que poderíamos qualificar como "cavaleiresco", e relacionado ao fato de que a Ordem das Mercês era uma ordem militar, seus religiosos estavam acostumados a tratar com os infiéis mouros de Túniz e Argel, devidamente autorizados para a compra dos cativos. Sabe-se como era comum entre os cristãos europeus dizerem que os índios eram "escravos ou cativos do demônio", que lhes inspiravam os cruentos sacrifícios humanos, o canibalismo e o vício da sodomia. Além do "cativeiro espiritual", os índios se tornavam também "cativos temporais", seja de outros grupos indígenas, seja dos colonos. Como vimos acima, a posse de escravos aprisionados em guerra entre os indígenas era freqüente, mas, com a ocupação da região Amazônica e pela demanda dos brancos, eles adquiriram um valor de troca que fez do apresamento maciço de inimigos uma atividade econômica importante para muitas tribos. Esses prisioneiros foram designados pelos portugueses como "índios de corda", porque eram arrastados, como troféu de guerra, pelos seus inimigos, por meio de uma corda. Os colonizadores brancos obtiveram muitos desses prisioneiros, de acordo com as circunstâncias, fundamentalmente através da troca por mercadorias européias. Esse modo de proceder foi chamado de "resgate". Como o comprador salvava da morte os índios da coroa, os colonizadores portugueses acharam justo condenar os indígenas assim conseguidos a uma escravatura temporária ou vitalícia.21 Por volta de 1680, criou-se um sistema oficial de recrutamento de mãode-obra em que a própria fazenda real equipava e enviava expedições ocasionais para comprar escravos. Cada expedição ia acompanhada por um capelão jesuíta que, em princípio, devia vigiar que não se adquirissem escravos mais que por um acordo com os caciques amigos que entregavam seus prisioneiros "legitimamente" escravizados nas guerras intertribais normais. Com certeza este sistema sofreu muitas violações, mas uma vez estabelecida a lei, requeria que cada escravo trazido rio abaixo estivesse de posse de um certificado de escravização legítima, redigido e assinado por um jesuíta. Qualquer escravo encontrado sem tal certificado era, teoricamente, uma pessoa livre. Frei Theodósio participa e ajuda a consolidar as atividades de resgate de índios na região. Vejamos um caso relatado por frei Felipe Bettendorff: Ía o padre missionário [jesuíta] Miguel Antunes fazendo belamente sua obrigação, assim com agrado dos brancos como dos índios; só ao cabo [João de Morais] lhe parecia que faria mais escravos que tivera missionário mais a seu gosto, com que, circunstâncias que concorriam neste caso, em que não importava menos que a redução a nossa fé, e salvação destes Índios dar-selhes este Missionário, por que do contrário se arriscava, o fruto que se podia tirar para Deus, e repugnância que tiveram de ter Missionário Religioso da Companhia a quem tocava esta Missão, me pareceu dizer-vos que obraste bem.20 Pelo documento acima, temos uma primeira observação dos índios sobre frei Theodósio: ele era uma verdadeira "dádiva de Deus", pois os havia libertado da escravidão. Talvez possamos entender melhor a escravidão deste índios dentro do seguinte contexto: Os portugueses estavam a várias décadas estabelecidos em uma série de pequenos acampamentos em torno da desembocadura do Amazonas no Pará, e os holandeses, em acampamentos menores, na desembocadura do rio Essequibo, na costa do Caribe, justo ao norte do vale inferior do rio Negro. Ambos grupos de colonos europeus intentavam extrair suas fortunas das selvas tropicais do interior. Trocavam mercadorias por produtos da selva como cacau, a baunilha, salsa e certas madeiras aromáticas que podiam substituir à canela e o cravo do Oriente. Também caçavam índios e índias, convertendo-os em escravos para que fossem trabalhar em sua plantações e casas, e para conduzirem suas canoas, único meio disponível de transporte até o interior. Durante este período, final do século XVII, os portugueses haviam tentado criar uma nova ordem social exploradora nas terras americanas, em vez de simplesmente extrair delas certas mercadorias. Contudo, estavam obrigados a comprar a maioria de suas necessidades materiais, a preços altos, dos provedores holandeses e da Europa do Norte, e não dos fabricantes de seu próprio país; portanto, operavam com uma séria desvantagem comercial. Mais numerosos que os holandeses, os colonos portugueses necessitavam de mais escravos. Para fugirem do comércio com os holandeses, partiram para se apoderarem do grande vale do Amazonas, e de seus tesouros, mediante a força e por pura audácia. Em torno da desembocadura do rio Branco, estava a aldeia dos carajaí, que faziam trocas comerciais de produtos holandeses com os escravos capturados pelos índios manaos, que viviam mais acima do rio Negro até o oeste. Também rio abaixo, depois das aldeias dos carajaí, estavam os tarumã, também comerciantes de longas distâncias, que trocavam por produtos holandeses os escravos que caçavam, ao longo do rio Amazonas. No último quarto do século XVII, os portugueses fizeram guerra aos tarumãs levando muitos deles ao Pará e forçando os demais a se retirarem para o rio Branco, proporcionando um refúgio a alguns restantes em uma missão jesuíta, mais 20 21 LIVRO Grosso do Maranhão, Anais da Biblioteca Nacional, v. 66, p. 106, 1948. O grifo é nosso. Veja nota 22. THOMAS, Georg. Política Indigenista dos Portugueses no Brasil (1500-1640). São Paulo: Loyola, 1982, p. 48-49. 10 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 lingüístico autônomo e que não falavam dialeto conhecido, mas tudo leva a crer que frei Theodósio o dominava bem.25 Quanto aos Muras, eles ocupavam uma vasta região que abrangia os rios Negro, Urubu, Madeira, Amatari e Uatumã. Viviam em malocas grandes e compridas, cobertas de palha de cima à baixo, com duas saídas nas extremidades. Viviam nelas várias famílias com suas fogueiras. Era um grupo guerreiro e fazia várias incursões bélicas pelos rios próximos. Nos dias festivos, bebiam aguardente tirada da mandioca e consumiam. Além disso, faziam o Paricá, uma fruta alucinógena que era torrada, transformada em pó e absorvida pelo nariz. Quanto aos mortos, não tinham preocupação de exumá-los, enterravam-nos indiferentemente na beira dos rios, na floresta ou no interior das casas. Era um grupo semi-nômade e se dedicava mais à caça e à pesca que à agricultura.26 A principal aldeia ficava sobre uma ribanceira alta, de terra escura. Lá estava a casa de frei Theodósio e a igreja principal. O rio Urubu, segundo a descrição de Bettendorff, não tinha muitos peixes, a não ser alguns quilômetros para baixo onde a quantidade deles levavam os índios, anualmente, a pescá-los em abundância a ponto de não se preocuparem em buscar alimento por um bom tempo. Não era um rio habitado por muitas aldeias nas margens, mas sim em seu interior, chegando a um total de dezessete povoações. Próximo à casa do mercedário tinham umas seis aldeias, todas com capelas, onde ele as podia ver de sua varanda. Todos os dias frei Theodósio celebrava a missa na igreja principal e depois dela pregava toda a "doutrina". Talvez utilizasse o livro do próprio Bettendorff, publicado em 1687 "Compendio da Doutrina Cristã na Língua Portuguesa e Brasílica, Ordenada à Maneira de Diálogos". Pela tarde, cantava as ladainhas de Nossa Senhora das Mercês e de São Pedro Nolasco, onde participavam índios e índias. O jesuíta notou também algo interessante que poderia muito bem ser utilizado pelos pequenos povoados europeus. Quando os índios percebiam a chegada de alguma canoa grande, que comumente era de brancos, ou muitas pequenas, como faziam os índios, davam sinais batendo em um tambor. Com um certo número de batidas todas as aldeias do rio entendiam a quantidade e a qualidade das canoas que se aproximavam, não os apanhando de surpresa.27 Bettendorff observou que os índios ainda eram "tenros na fé", não tendo "muita afeição para as coisas de Deus", só queriam comer, beber, dançar e "viver à vontade, como brutos". Frei Theodósio tinha muito trabalho com aqueles indígenas no parte pelo muito trabalho e contínuas moléstias, parte pelo pouco costume de andar por esses climas mui doentios, veio aquele [jesuíta] a adoecer de tal maneira que, sendo-lhe impossível acompanhar mais a tropa, recolheu-se para o Pará a tratar de sua saúde, e como não houvesse no Colégio quem pudesse suprir esta falta, dei todos os poderes necessários ao muito reverendo Pe. Fr. Theodoro (sic) da Veiga, missionário das Mercês sobre o rio Urubú, grande língua e com fama de religioso de satisfação, para averiguar as escravidões dos escravos da tropa do Maranhão. Com esta mudança, fez o cabo João de Morais Lobo seu arraial sobre o rio Urubú, mandando de lá suas bandeiras para o rio da Madeira e rio Negro ...22 É certo que frei Theodósio da Veiga comprou muitos índios da região do Urubu com o dinheiro das "esmolas da redenção", arrecadadas em Belém e São Luís, e dos lucros obtidos com suas várias fazendas. Tinha gastado mais de 3000 cruzados no resgate daqueles índios, os quais tinham lhe assegurado que havia muito cravo (drogado-sertão) naquela região e que poderia conseguir algum dinheiro.23 Os missionários e os soldados foram enviados para aquela região para ajudar a forjar uma sociedade colonial portuguesa e cristã, para romper o vínculo comercial com os "infiéis" holandeses, e canalizar todo o comércio regional de produtos florestais e de seres humanos até Belém. Dadas as várias distâncias e os recursos limitados das autoridades portuguesas, contudo, nenhum dos grupos podia ser supervisionado ou subsidiado de uma maneira regular. Tanto soldados como religiosos deviam sobreviver por seus próprios meios. Os vários jesuítas que visitaram a missão do Urubu não cansavam em elogiá-lo dizendo que aquele religioso os recebera "com muito amor" (Fritz), "com muito mimo" (Bettendorff) e "com todo o cuidado e amor" (João Justo).24 A Missão de Urubu era formada por várias aldeias de Aruaques e Muras. Os primeiros eram considerados índios de "língua travada", ou seja, grupo 22 25 BETTENDORFF, João Phelippe. op. cit., p. 24. Id. ibid., p. 96. Para se ter idéia do montante em dinheiro investido no resgate por frei Theodósio, 3 mil cruzados representavam 1 conto e 200 mil réis (1:200$000) e daria para comprar 22 escravos negros (cada um a 55 mil réis). 24 PORRO, Antônio. Samuel Fritz e as notícias autênticas do rio Marañón (1686-1723), in idem. As Crônicas do Rio Amazonas: notas etno-históricas sobre as antigas populações indígenas da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 180; BETTENDORFF, João Phelippe. op. cit., p. 492 e 541. Era uma grandiosa nação indígena que habitava entre o rio Negro, Uatumã e o Jatapu, estendendo-se para o Matari e o Urubu. Em 1669, frei Teodósio dizia que tinham seu principal centro no Jauaperi; cf. NÉRI, Barão de Santa-Anna. op. cit., p. 222. 26 Cf. "Illustração necessaria, e interessante, relativa ao gentio da nação Mura" e "Observacções addicionaes a Illustração sobre o Gentio Mura (1846)", in NETO, Carlos de Araújo M. Índios da Amazônia, de maioria a minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988, p. 249-267. 27 No documento citado na nota anterior, o autor se espanta com a capacidade de comunicação dos Muras e a velocidade com que as notícias corriam entre eles. 23 11 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 que dizia respeito aos sacramentos. A dificuldade encontrada por ele talvez estivesse no fato de inexistir métodos pedagógicos próprios, pois os mercedários portugueses não eram uma ordem exclusivamente missionária. Daí, copiavam tudo dos jesuítas. Bettendorff procurou orientá-lo da seguinte forma: primeiro devia batizar os índios "já antigos e seguros" que aderiram à fé; aos adultos, deveria ensinar a doutrina até tornálos catecúmenos, depois disto poderiam ser batizados.28 Entretanto, o espírito religioso dos indígenas do rio Urubu, somado com as doenças, guerras e saques, os levaram a uma situação de privação aguda que possibilitou o surgimento de um movimento messiânico e milenarista na pessoa do jesuíta Samuel Fritz que estivera na aldeia em 1689. Três anos depois de ter chegado da Europa para as missões espanholas do Marañon, o jesuíta desceu de San Joaquin de Omaguas para as aldeias Jurimagua do médio Solimões, região que os portugueses estavam começando a ocupar. Passou quase dezoito anos ininterruptos entre as tribos do alto Amazonas, tornou-se um protetor incansável dos índios diante da violência dos colonos. Fritz tomou conhecimento da crença e do ritual de Guaricaya, no qual parece ter-se enraizado sua liderança carismática. No ritual aparecia uma entidade essencialmente benigna (porque curava os enfermos) mas que assumia feições assustadoras (como o Diabo); que impunha o castigo físico, mas o fazia com um fim educativo. Mais tarde, quando viaja para Belém, os Jurimagua começaram a atribuir ao jesuíta poderes sobrenaturais análogos aos de Guaricaya. Toda a região ficou na expecctativa da vinda do Guaricaya "branco". Esse clima de espera tomou conta não só dos índios mas também dos negros e brancos (cristãos e cristãos-novos) residentes em São Luís e Belém. Para uns eu era santo e filho de Deus, para outros o diabo. Uns, pela cruz que eu trazia, diziam que havia chegado um patriarca ou profeta; outros, que [era] um embaixador da Pérsia; até os negros do Pará diziam que havia chegado o seu libertador, que havia de ir a Angola para libertá-los.29 era a persistência ou a renovação de antigas crenças mescladas com a luta social, com a busca de uma identidade há muito destroçada pelo colonialismo, com a reestruturação ou inovação das relações de poder ("brancos em índios e índios em brancos") e, inclusive, com certas estratégias de sobrevivência no plano da vida material. Frei Theodósio da Veiga também estava inserido neste contexto de "expectativa". Chega a dizer ao padre Fritz que lhe tinham contado tantas coisas sobre ele, que achava que havia chegado ao seu povoado "alguma coisa ou portento do outro mundo". O clima de milenarismo e messianismo continuou. Causava temor a frei Theodósio, pois o carisma de Fritz entre os índios levam-nos a querer o jesuíta em vez do mercedário. Em 1690, ocorreu um grande terremoto na Amazônia que derrubou penhascos, árvores grandes e inundou as terras. Todos os índios atribuíam o fato à passagem do "profeta" Samuel Fritz por ali. Quando o jesuíta estava voltando de Belém para Quito e passou novamente pela aldeia do Urubu, em 1691, o religioso mercedário, para persuadir seus índios de que era homem como os demais, mandou que tocassem com as mãos em Fritz.32 Segundo Bettendorff, o clima era muito tenso entre frei Theodósio e os pajés porque como as "profecias" não se realizavam, estes tentaram fazê-la com as próprias mãos, isto é, matar o mercedário, porém não conseguiram. Frei Theodósio da Veiga estava cansado, desanimado e revoltado. As drogas que imaginava comercializar não eram muitas. Tinha dívidas e seus vinte escravos índios estavam insatisfeitos pois viviam um pouco mais acima do rio e a terra dali não era boa. Além disso, o religioso estava doente, com problemas de visão, "já não servia para estar em convento e acudir ao coro" com seus irmãos de hábito, isto é, não tinha o mesmo prestígio social se estivesse na capital do Estado. Tinha ele estudado muitos anos, diferentemente dos outros religiosos. Padre Vieira dizia que os religiosos do Maranhão eram "homens de poucas letras e menos zelo das almas; porque ou vieram para cá degredados, ou, por não terem préstimo com que ganhar a vida em outra parte, a vieram buscar a esta". Na falta de verdadeiras vocações religiosas, grassava o oportunismo puro e simples de tomar o hábito sacerdotal, o que naquela época conferia não pouco prestígio a quem o investisse.33 Bettendorff incentivou-o a continuar no trabalho missionário, que não desistisse e prometeu mandar uma carta ao rei relatando tudo o que viu.34 O sebastianismo português (a crença no "príncipe encantado" que viria salvá-los da penúria), o medo do Diabo (a insegurança do homem na crença de um Diabo todo-poderoso), o milenarismo judeu (a esperança da vinda de Elias, Jeremias ou um dos Profetas),30 a chegada de Zumbi (líder do Quilombo dos Palmares) e o movimento de santidade (os pajés do Urubu diziam que "os índios se haviam de converter em brancos e os brancos em índios")31 mais do que sentimentos "religiosos", Fritz. Mitologia Heróica e Messianismo na Amazônia Seiscentista. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 30,31,32, 1987/88/89, p. 383-389. Sobre a expectativa dos negros, lembremos que o Quilombo dos Palmares era conhecido por Angola Janga (Pequena Angola) e que seu líder, Zumbi, era visto por eles como um ser imortal. 32 PORRO, Antonio S. Fritz. op.cit., p. 185. 33 Cit. por ARAÚJO, Emanuel. O Teatro dos Vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial, Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p. 251. 34 BETTENDORFF, João Phelippe. op.cit., p. 496. 28 BETTENDORFF, João Phelippe. op. cit., p. 492-496. Cit. por PORRO, Antônio S. Fritz. op. cit., p. 180. 30 Sobre o Milenarismo português, brasileiro e judeu cf. Luso Brazilian Review, XXVIII, 1, 1991; cf. também Bíblia Sagrada. Mateus 16, 14. 31 CEHILA, História da Igreja no Brasil. Petrópolis/São Paulo: Vozes/Paulinas, 1992, tomo II/1, p.393; BETTENDORFF, João Phelippe. op. cit., p. 494. Cf. também PORRO, Antônio S. 29 12 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Frei Theodósio da Veiga não se deixou abater. Um balanço feito em 7 de fevereiro de 1693 pelo Conselho Ultramarino nos dá uma idéia do trabalho apostólico realizado pelo religioso mercedário: três aldeias do rio Anibá e mais vinte aldeias do Urubu estavam sob sua responsabilidade. Um pouco tempo depois (19/03/1693), o rei fez uma nova repartição das missões no Amazonas e reservou toda aquela região para os mercedários. Mais tarde, outras missões foram criadas em rios próximos como a do Amatari (ou Matari) e Uatumã. Por todo este trabalho frei Theodósio recebe um elogio importante: Pe. Fr. Tiodozio (sic) Missionário do Rio Urubú, eu El Rei vos envio muito saudar, o vosso zelo merece muito especial agradecimento e me fica muito na lembrança para vos agradecer de novo, assim como espero o (...) de continuar no serviço de Deus Nosso Senhor, e meu, e já neste conhecimento sou servido não só haver por boa a Missão, que fazeis no Rio Urubú nas que vós possuis nela e fazer outras no mesmo Rio com os Padres da Vossa Religião que forem capazes deste exercício como mando escrever ao Pe. Provincial, é nesta conformidade, mando escrever também ao meu Governador, e Capitão Geral deste Estado do qual seguireis para este Afeito as ordens que vos der da minha parte e da mesma maneira que os mais missionários decorridos vos mandarei assistir desejando muito, que vosso exemplo animem outros com verdadeiros espíritos de Missionários para que Deus Nosso Senhor seja mais exaltado, e as almas tenham todo o Pasto espiritual de que necessitam. Escrita em Lisboa a 28 de Novembro de 1694.35 “CATEQUISTA” E “CAPITÃO-DO-MATO” O Comissário dos mercedários, Frei Antônio Soares, havia comunicado ao rei sobre o trabalho exercido pelo negro José Lopes Espinola, que fazia na região do rio Urubu "grandes serviços a Deus e a Vossa Majestade". Natural do Cabo Verde, estava há muitos anos trabalhando junto aos índios Abacaxis e sendo grande amigo de frei Theodósio, foi convidado, não só pelas autoridades coloniais mas pelos próprios índios, a auxiliá-lo no trabalho catequético. 36 Comparativamente com a história de Frei Theodósio, temos pouquíssimas fontes sobre José Lopes Espínola, porém as mesmas nos trazem informações muito interessantes. Os africanos não foram numerosos na Amazônia colonial, zona cuja economia, tanto no lado português como no espanhol, era tão pobre que dificilmente permitia a acumulação de capital. Nela, toda a mercadoria era comercializada por meio da troca, ou em transações que utilizavam como moeda rolos de fio de algodão, ou tecidos, ou ainda grãos de cacau. A produção florestal era pouca em quantidade e muito irregular em qualidade; e seu transporte e venda, na Europa, eram muito problemáticos. Os moradores do Pará eram, em sua maioria, demasiado pobres para comprar os escravos trazidos da costa africana, e, de fato, foram poucos os que chegavam a oferecer-se no mercado de Belém. Vicente Salles faz referência a duas provisões régias sobre a introdução de peças da África, uma datada de 18/03/1662 e outra de 01/04/1680, que determinavam a condução, todos os anos, de negros da Costa de Guiné para o Maranhão e Pará por conta da fazenda real. José Lopes Espínola poderia ter chegado ao Pará através desta última ordenação. Nossa hipótese gira em torno das informações dadas pelos documentos acerca de sua “nacionalidade”, ou seja, ele teria vindo de “Cabo Verde”. Philip D. Curtin chama a atenção para o fato de que aquela expressão, durante o período, tinha uma significação bem mais ampla que as ilhas do Atlântico. Ela abrangia desde a península, e as ilhas, do mesmo Atlântico até o rio Serra Leoa; era mais conhecido como Guiné de Cabo Verde (hoje Gambia, Senegal e Guiné-Bissau).37 O prestígio de frei Theodósio da Veiga junto a corte aumentara. Pedro II mandou uma soma em dinheiro (cem mil réis) para ajudá-lo nas missões do rio Urubu. Além disso, o rei já tinha pedido ao Governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho que mandasse para lá alguns religiosos que o auxiliassem no trabalho missionário. Finalmente, depois de 40 anos de trabalho apostólico, frei Theodósio da Veiga morre, provavelmente, em 1697. 36 Para o Provedor Mor do Estado do Maranhão. Sobre se mandar entregar aos Missionários Mercenarios assistentes do Urubú cem mil réis. In LIVRO Grosso do Maranhão, Anais da Biblioteca Nacional, v. 66, p. 160; Carta do governador do Estado do Maranhão, Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho dirigida a el-Rei de Portugal, respondendo a uma consulta do Conselho Ultramarino concernente ao trabalho de catequese desenvolvido entre os índios do Solimões pelo preto José Lopes Espínolla, catequista leigo, que viera do Cabo Verde e ficara entre os índios. In n CEHILA, Das reduções latino-americanas às lutas indígenas atuais. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 176-177. 37 SALLES, Vicente. O Negro no Pará: sob o regime de escravidão, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1971, p. 13; CURTIN, Philip D. The Atlantic Slave Trade: a census. The University of Wisconsin, 1975, p. 103. JOSÉ LOPES ESPÍNOLA: 35 Notícias da fundação deste Convento de N.S. das Mercês desta cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará aonde se inclue o descobrimento do Rio das Amazonas, e outras notícias mais das fundações das Aldeias do Rio Negro pelos primeiros Religiosos da Congregação. Extraído tudo que se pode alcançar dos Documentos que se acham no Arquivo do dito Convento. Ano de 1784. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Ms. 21,2,18, n. 5, f. 10. 13 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Existe uma segunda possibilidade. José Espínola teria vindo do território espanhol, fugido, pelo rio Amazonas. Conhecemos casos de fuga no sentido inverso (Pará-Peru), além de seu nome ter uma sonoridade “hispânica” que reforça nossa especulação.38 A documentação analisada apresenta um negro com grande capacidade de liderança, organização, direção e adestramento militar. Existem outros casos, na própria região: em 1662 os moradores do Pará e Maranhão, revoltados, expulsaram os jesuítas e estes se refugiaram na fortaleza do Gurupá. Um “mulato”, segundo Bettendorff feitor de uma fazenda no Pará, assassinou um Saravai, natural do Gurupí. Na mesma ocasião, o negro Antônio de França, da ilha da Madeira, lutou com bravura, salvando muitos brancos da morte através da habilidade de sua espada.39 É bom lembrarmos que, quando algum negro chegava aos assentamentos espanhóis ou portugueses na Amazônia, eram empregados como serventes domésticos dos europeus ou como “administrador de trabalhos indígenas”, e não como trabalhador manual. Muito poucos africanos subiam ou desciam os rios, porém, quando o faziam, era porque estavam refugiados e não como servos de seus senhores.40 Sabemos, ainda, que José Lopes Espínola era casado, mas nada sabemos de sua idade. Demonstrava grande experiência e habilidade no trabalho de transporte, reconhecimento e subsistência, próprios do ambiente amazônico. Falava a “língua geral” de origem tupi, único meio de comunicação com a maior parte da população branca e indígena do Pará. Sabia outras línguas indígenas dos rios Negro, Branco, Urubu, Matary e outros. Dominava bem a canoa e ajudava os indígenas nas colheitas. Sabia abrir e supervisionar o cultivo das roças de mandioca, base alimentar do povo amazônico. Conhecia as técnicas regionais para construção de casas e canoas, pesca e a caça. Dominava bem as negociações com os grupos indígenas “selvagens”, e dizia-se que servia até para convencer-lhes da “necessidade” de viverem sob o mando dos “brancos”. José Lopes Espínola, ao que tudo parece, tinha muitos anos de experiência. O falecimento de Frei Teodósio causou pânico entre os indígenas do Urubu. José Lopes Espínola tentava acalmá-los, pois ao mesmo tempo em que estavam sentidos com a morte do seu missionário, estavam "receosos" de que os portugueses pensassem que o tinham matado. É certo que os índios foram duramente castigados todas as vezes que mataram algum missionário. O temor não era sem sentido. Os índios tentaram fugir da missão, mas José Espínola conseguiu que permanecessem até a chegada de outro religioso mercedário para substituir frei Theodósio. Tudo leva a crer que a missão do Urubu ficou por algum tempo sem religioso. Em 1698, o rei mandou uma carta para o comissário dos mercedários para que seus religiosos, que fossem para lá, se comportassem como verdadeiros missionários e não como militares. Acrescentou que os Religiosos que se ocuparem e [se] oferecem para aquele Santo Exercício, imitem ao Pe. Fr. Tiodozio (sic) na contínua assistência das suas Missões assim como me significas que eles o fazem despidos de todo interesse ...41 Enquanto isso não acontecia, o negro José Lopes Espínola assume a direção da missão do Urubu e soube se aproveitar bem do fato para adquirir certo prestígio social. Em abril de 1700, ele escreve uma carta ao rei descrevendo suas "façanhas" religiosas e militares na selva, apesar de doente: construiu várias igrejas, trouxe ao "grêmio da Igreja" um bom número de indígenas e fez muitos "melhoramentos" dizendo que "o sertão de primeiro era inferno, hoje está feito cidade."42 Quando soube da presença de franceses no Maranhão, José Lopes Espínola escreveu ao governador declarando sua fidelidade e dedicação a el rei e o trabalho que vinha desenvolvendo com os índios, preparando-os para uma possível guerra em defesa de Portugal: Tenho praticado a todos os principais que estão debaixo do meu mando para qualquer aviso de V.S.; de irmos todos a mostrar que com suas armas gentílicas (...) e armas de fogo para o que puder suceder para acudirmos a fortaleza do Rio Negro; tenho praticado seis mil arcos, a saber, a missão do Urubu, a missão de Matary, a missão de Anibá, Saracá, Caraby, Paraquizes, Uguatumã (Uatumã), e as suas mais anexas estão praticadas para qualquer função que se oferecer do serviço de Sua Majestade que Deus guarde; e lhe tenho dado ferramentas bastantes; que V.Sa. me mandou para eles roçarem bastantes mantimentos; se houverem guerras para que V.S. se possa socorrer deles para a Infantaria; assim estou aparelhado para tudo ...43 Todos os "serviços prestados" resultaram na sua promoção, isto é, de um simples “catequista” passou ele a "Capitão do Sertão". Em carta, o governador comunica ao rei sua decisão e conta como o negro tinha pedido várias vezes licença para embarcar para “Cabo Verde”, a fim de rever sua mulher e como ele, o governador, não lhe concedia, porque o considerara muito necessário. O posto de “capitão” foi confirmado pelo rei de Portugal e o Conselho Ultramarino sugeriu que, no caso da mulher de José Espínola querer vir para a Amazônia, que viesse de navio “com todo o 38 Cf. SWEET, David G. Juan de Silva y Fernando Rojas: baqueanos africanos de la selva americana (Perú y Gran Pará, siglo XVIII), in: Idem. Lucha por la superviviencia en la America colonial, México: FCE, 1987, p. 234-246. 39 SALLES, op, cit., p. 17. 40 SWEET, David G. op. cit., p. 237. 41 Notícias da Fundação deste convento de Nossa Senhora das Mercês..., op. cit., f. 13. Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, tomo XIII, p. 394. 43 Idem, p. 395. 42 14 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 resguardo e lhe dê muito bom, e honesto tratamento, tudo à custa da Fazenda de Vossa Magestade...” 44 Em janeiro de 1701, o rei ordenou ao governador que lhe lançassem "ao pescoço a medalha de ouro". No entanto, José Lopes abusou da confiança depositada pelos governantes portugueses e empreendeu uma série de "guerras injustas" aos índios. Em finais de 1703, estava morto.45 A presença do negro José Lopes Espínola põe por terra uma afirmação que durava já algum tempo: na conquista da Amazônia, os portugueses não contaram com a colaboração do elemento africano.46 A partir daí, a missão do Urubú entra em decadência. Em 1745, a aldeia do rio Uatumã tinha acabado, "fugindo os índios para o mato" e deixando só o missionário mercedário. As aldeias dos rios Matari e Urubu foram transferidas para o rio Anibá.47 Depois disso, não se tem mais notícias das missões mercedárias na Amazônia. para sobreviver, não faz justiça a adaptação criativa das pessoas dentro de uma ordem social colonial que bem era, evidentemente, exploradora e indestrutível. A adaptação era freqüentemente uma forma sutil de desafio, uma máscara que ocultava um espírito indomável, isto é, o de viver a vida plenamente e ser feliz. A mesma estratégia foi usada por José Lopes Espínola. Ele tem uma função religiosa (catequista, construtor de igrejas), mas principalmente um papel político; ele é praticamente o “senhor”, no meio da população indígena. Estava plenamente incorporado àquilo que Hugo Fragoso intitulou: “O projeto português de ‘dilatar a fé e o império’ na Amazônia”.49 Esse projeto expansionista dos reis de Portugal precisava de um grupo de especialistas, que se dedicassem de corpo e alma “ao serviço de Deus e de Sua Magestade”, no labor de dilatar as fronteiras da Fé e do Império. Para isso, contou com religiosos, mas também com José Lopes Espínola. Ele via nesta política sua “sobrevivência”. CONCLUSÃO Falar dos Mercedários no Pará e Maranhão e envolvê-los apenas à corrupção colonial é subtrair muita sua história e acaba numa generalização perigosa,48 pois vimos, através desta pequena biografia de Theodósio da Veiga que aqueles religiosos, como todos as outras pessoas que conviviam com eles, estavam inseridos num contexto histórico e geográfico específico: a Amazônia. Esta era uma região inóspita e perigosa. Tinha maior importância militar e geopolítica que econômica, pois as "drogas-do-sertão" nunca conseguiram rivalizar com a cana-de-açúcar no Nordeste brasileiro e nem mesmo com a nascente economia do gado no interior nordestino. No entanto, seus rios e igarapés, furos e canais, florestas e campos eram intensamente vasculhados pelos portugueses que queriam ouro, pedras preciosas, "drogas" e índios cativos. Na busca desenfreada por lucros, é natural que a corrupção aflore. Porém, o mais importante para todos os habitantes do lugar era viver a vida e manter-se vivo. Para isto, se utilizavam de várias estratégias: a luta coletiva, o desafio individual, a competência ou a adaptação. Frei Theodósio da Veiga escolheu o seu: preferiu se adaptar ao sistema. A adaptação não era só uma tática de sobrevivência, também era uma estratégia a longo prazo. A princípio, a adaptação aparece como o reverso da luta, implica uma aceitação do sistema, uma desprezível convicção de que a resistência era inútil. Mas este ponto de vista simplista, acerca de uma importância estratégica humana 44 Idem, p. 399. LIVRO Grosso do Maranhão, Anais da Biblioteca Nacional, op. cit., v. 66, p. 208 e 255. 46 SALLES, Vicente. op. cit., p.13. 47 MORAES, Pe. José de, op. cit., p. 360. 48 DUSSEL, Enrique. As reduções: um modelode evangelização e um controle hegemônico, in CEHILA. Das reduções latino-americanas às lutas indígenas atuais, op. cit., p. 18. 45 49 15 FRAGOSO, Hugo. op. cit., p. 145. Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 GÊNERO, PODER E PROSTITUIÇÃO OLIVEIRA, Lisa Batista de. Gênero, poder e prostituição. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 20-38. Lisa Batista de Oliveira Mestranda em História Social pela UFF http://www.ufjf.br/~clionet/rehb RESUMO: A compreensão do significado cultural da prostituição nas Minas Gerais do século dezoito implica na utilização da categoria gênero, através da qual os papéis sexuais são concebidos como construções históricas diferenciadas. Essa categoria, ao incorporar a dimensão das relações de poder as relações entre homens e mulheres, possibilita a percepção dos poderes informais femininos permitidos por uma situação de sujeição, que nesse contexto histórico, devem ser entendidos como contra-poderes sedutores e ilícitos que resultavam em uma existência mais autônoma para as prostitutas mineiras. Endereço para correspondência: Revista Eletrônica de História do Brasil Arquivo Histórico da UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora - MG Prédio do CDDC - Campus Universitário Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330 ABSTRACT:The comprehention of the cultural meaning of the prostitution in the eighteenth-century Minas Gerais implies in using the rate gender through which the sexual roles are conceived as distinguished historical construtions.This rate as it incorporates the power relations dimention to the relations among men and women enables the perception of the female power allowed by a subjection situation that in this historical context should be understood as a charming and ilicit “counterpower”which results in a more independent existence for the prostitutes from Minas Gerais. http://www.ufjf.br/~clionet/rehb E-mail: [email protected] Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342 PALAVRAS-CHAVE: Gênero; Prostituição; Minas Gerais: sec. XVIII. GÊNERO E PODER Este trabalho tem como proposta uma revisão historiográfica das abordagens sobre a prostituição nas Minas Gerais do século XVIII, feitas por Laura de Mello e Souza e Luciano Figueiredo. Estes autores, seguindo a linha interpretativa de Caio Prado Jr., supervalorizam os condicionantes econômicos na caracterização da prostituição nessa região, considerando esta atividade, a expressão feminina da miséria social.1 Para Laura de Mello e Souza, as meretrizes do século XVIII mineiro, pertenciam a uma camada fluída e inconsistente formada por libertos e livres pobres, pessoas que não conheciam o significado pleno da liberdade, pois eram desarticuladas da sociedade por não pertencerem aos seus extremos, constituídos por senhores e escravos, pârametros básicos da hierarquia social, sendo que o resultado de seus Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo e em sua estrutura física. 1 FIGUEIREDO, Luciano.O Avesso da Memória; cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no séculoXVIII. Rio de Janeiro, José Olympio, 1993. 16 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 relacionamentos sexuais ilícitos, era um vasto contingente de mestiços que aumentavam o número de “desclassificados sociais” em Minas Gerais.2 De acordo com Luciano Figueiredo, as escassas oportunidades de inserção da mulher nas atividades produtivas em Minas, associada à pesada carga tributária, tornaram a prostituição uma prática quase obrigatória para que negras e mulatas forras, administradoras de vendas ou negras de tabuleiro, escapassem de confiscos ou multas dirigidos aos incapazes de cumprir com o pagamento do imposto da capitação ao Estado, que recaía sobre os libertos em função de sua condição social. Assim, a prostituição enquanto forma de sobrevivência, expressaria antes de tudo o limitado significado concreto da liberdade para essa população despossuída e desclassificada, com a pobreza “determinando uma prática em si já violentamente degradante” acompanhada da miséria em sua condição social. Em relação as escravas, que exerciam as mesmas atividades profissionais que as forras, o meretrício é colocado como forma de pagamento ao senhor do jornal fixado.3 Entretanto, vista como uma espécie de contingência da desclassificação, a prostituição é sempre entendida como expressão da promiscuidade sexual, da miséria e da fome, como resultado de condicionamentos econômicos, como objetivação de um cotidiano que não dava margens para escolhas,4 perdendo-se de vista a capacidade de iniciativa e os laços associativos constituídos pelas mulheres pobres do século XVIII mineiro. Não se trata de negar a pobreza enquanto forte condicionante na escolha da prostituição como alternativa de sobrevivência, mas de relativizá-la, fazendo emergir o potencial de luta presente nas ações das meretrizes mineiras. Nesse sentido, a motivação desse trabalho é explicitamente política, objetivando a transformação da representação historiográfica5 de mulheres desqualificadas enquanto sujeitos sociais capazes de produzir formas próprias de experiências. A partir dessa perspectiva, a continuidade do meretrício, passado de geração à geração em Minas Colonial, pode ser interpretada não como a faceta mais embrutecedora da prostituição,6 conforme indica Luciano Figueiredo, mas como indício de uma capacidade de improvisação no cotidiano de mulheres pobres que criaram toda uma tradição de luta e sobrevivência através de seus corpos . Essa vontade política de atribuir as mulheres pobres do século XVIII mineiro o estatuto de sujeito coincide com o desejo de construir categorias de análise a partir de suas experiências, que devem ser entendidas como ações providas de sentido.Nesse ponto, esse trabalho filia-se, de certa forma, à melhor tradição da história social, vinculada ao revisionismo marxista de E.P.Thompson.7 Por outro lado, a substimação ou indiferença pela influência do gênero na constituição do sentido na cultura e a redução deste a um mero subproduto das forças econômicas por algumas vertentes da história social, 8 resultam necessariamente na busca de instrumentais teóricos que permitam aprofundar a análise da experiência feminina. A necessidade de um modo de se pensar como a diferença sexual é transformada em conhecimento cultural e como esse conhecimento define as relações entre os indivíduos nos leva à utilização da categoria gênero.9 O gênero é a organização social da diferença sexual, ou seja, é o saber que estabelece significados para a diferença entre os sexos. Práticas cotidianas e rituais específicos são partes integrantes desse saber, que é um modo de ordenar as relações sociais.10 Enquanto organização social das relações entre os sexos, o gênero é um sistema de distinções sociais e não uma descrição objetiva de traços inerentes, pois o masculino e o feminino são construções históricas e subjetivas. Por conseguinte, a categoria gênero enfatiza o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, rejeitando o determinismo biológico de termos auto-evidentes como “sexo” ou “diferença sexual”.11 Por ser uma noção relacional, o gênero define as mulheres e os homens em termos recíprocos. E, na medida que nenhuma compreensão de qualquer um pode existir num estudo que os considere em separado,12 as relações sociais entre os sexos devem ser contextualmente examinadas e vinculadas às variáveis classe social e etnia, de modo que se perceba os significados variados e contraditórios atribuídos à diferença sexual e à instabilidade das categorias “mulheres” e “homens”, que se articulam uma em termos da outra de diversas maneiras ao longo do tempo.13 O gênero nos possibilita pensar as diferenças sexuais enquanto construções históricas diferenciadas, oferecendo um meio de distinguir a prática social dos papéis atribuídos as mulheres e aos homens.14 A sua utilização pode ser profícua na reconstrução de papéis sociais femininos como mediações improvisadas no processo 7 Thompson concebe a formação da classe operária como um fazer-se e como algo que ocorre efetivamente nas relações humanas.Essa concepção contribui para o estudo das relações forjadas pelos processos sociais, engendrando consequentemente, uma percepção mais concreta das experiências sociais na história.THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 8 VARIKAS, Eleni. ”Gênero, Experiência e Subjetividade:a propósito do desacordo Tilly-Scott”. Cadernos PAGU, n. 3, 1994. p. 72, 73 e 74. 9 SCOTT , Joan. ”História das Mulheres”, in: BURKE, Peter. A Escrita da História. 2. ed. .São Paulo: Unesp, 1992, p. 86. 10 Idem. op.cit., p. 12 e 13 . 11 Idem. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Recife: S.O.S. Corpo, 1991. p. 1 e 11. 12 Idem, p .1 e 2. 13 Idem. "Prefácio a Gender and Politics of History". op.cit., p. 25 e 26. 14 Idem. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. op.cit., p. 4. 2 MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ouro; a pobreza mineira no século XVIII. 2. ed. Rio de Janeiro, Graal, 1986. 3 FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 75-110. 4 Idem , p. 98 e 99. 5 SCOTT, Joan. ”Prefácio a Gender and Politics of History”. Cadernos PAGU, Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, n. 3, 1994. p. 14. 6 FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 99. 17 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 global de tensões e conflitos, entendendo por isso, não os papéis sexuais prescritos e dominantes,15 mas os papéis informais de resistência assumidos pelas meretrizes no cotidiano. Para Maria Odila da Silva Dias, a história da experiência vivida enquanto papéis informais de resistência das mulheres, deve ter como base a crítica a totalidades universais e a princípios teóricos muito rígidos como o sujeito universal masculino, pois é através da desconstrução de idealidades abstratas e do questionamento da idéia de uma identidade feminina inalterável que a história social das relações de gênero abre espaço para a documentação das configurações específicas e das diferenças, mostrando a diversidade e a fluidez das relações de gênero e dos conceitos relativos aos papéis femininos tidos como universais. 16 Essa historiadora também enfatiza a busca pela perspectiva histórica feminista de conceitos provisórios e abordagens necessariamente parciais, propondo a elaboração da historicidade das relações de gênero como meio de se desmistificar o próprio conceito.Ao invés de lidar com a mera confirmação no passado de princípios teóricos estabelecidos, o feminismo assume a historicidade do próprio conhecimento histórico num mundo em processo de transformação.17 A história das mulheres desde o início articulou seu projeto a uma crítica das categorias de análise existentes. No entanto, conforme ressalta Joan Scott, é típico das visões sobre o que constitui o masculino e o feminino na história, o apelo ou incorporação de definições normativas. A política engendrada por esse tipo de história das mulheres, termina por endossar as idéias de uma discriminação sexual inalterável, legitimando as hierarquias de gênero e atribuindo a práticas estabelecidas uma existência permanente que elas nunca tiveram. É justamente através da exposição da ilusão de permanência da verdade de qualquer saber sobre a diferença sexual que o feminismo historiciza a história e abre caminho à mudança. A política feminista e os estudos acadêmicos de gênero são uma tentativa coletiva de confrontar e contestar as distribuições de poder existentes. Essa perpectiva torna as análises críticas do passado e do presente uma ação contínua: o historiador pode interpretar o mundo ao mesmo tempo que tenta transformá-lo.18 Dessa forma, a teoria se configura como uma prática local e não totalizadora, como um sistema regional de luta e um instrumento de combate.19 As representações históricas do passado participam ativamente na produção do saber sobre a diferença sexual, isto é, ajudam a construir o gênero no presente. Os usos e significados desse conceito nascem de uma disputa política e são os meios pelos quais relações de poder são construídas. A história enquanto produção de saber cultural é um modo de compreensão dos processos de constituição de identidades de gênero.Tal saber não é absoluto ou verdadeiro, mas sempre relativo.20 Um conceito relativizado de gênero como um saber historicamente específico sobre a diferença sexual é um instrumento analítico que desafia as políticas da história, ao engendrar um saber novo sobre ambos os sexos. 21Preocupando-se com a parcialidade das verdades possíveis, os estudos feministas voltam-se para o problema da representação e do valor ideológico implícito na interpretação do historiador. O conhecimento histórico torna-se relativo a uma determinada época do passado e a uma dada situação do historiador no tempo, que constrói o objeto segundo sua própria subjetividade. Trata-se de abarcar com os conceitos de nosso tempo a especificidade dos contexto históricos, pois a história é necessariamente um diálogo de nossa contemporaneidade com o passado.22 Esse ponto de vista destrói a possibilidade do historiador proclamar sua imparcialidade ou sua neutralidade sensorial ou de apresentar sua história e sua visão particular, como se elas fossem universais, completas ou objetivamente determinadas.23 A história social das mulheres constitui uma força política potencialmente crítica que desafia e desestabiliza as premissas disciplinares estabelecidas. Reinvindicar a importância das mulheres na história, significa ir contra as definições de história estabelecidas como verdadeiras ou como reflexões objetivas sobre o que aconteceu no passado. Essa perspectiva desafia a competência de qualquer história de fazer um relato completo, pois o sujeito da história não é uma figura universal e os historiadores que escrevem como se ele o fosse, não podem mais reivindicar estar contando toda a história. E isso é lutar contra padrões consolidados e contra pontos de vista jamais expressos como tais, expondo a hierarquia implícita de termos como “homens” e “mulheres”.24 A diferença sexual como um problema a ser analisado trás à luz questões sobre a relação entre poder e conhecimento, pois as mulheres não podem ser simplesmente adicionadas à história, sem uma remodelação dos termos e padrões da historiografia tradicional. Esta, inclui em sua própria definição a exclusão feminina 25e 15 DIAS, Maria Odila da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. 2. ed , SãoPaulo: Brasiliense, 1995, p. 13. 16 Idem, “Novas Subjetividades na Pesquisa Histórica Feminista : uma hermenêutica das diferenças”. Estudos Feministas. Rio de Janeiro, CIEC/UFRJ, 2. sem., 1994. 17 Idem, ”Teoria e Método dos Estudos Feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano”. COSTA, Albertina de Oliveira & BRUSCHINI, Cristina.Uma Questão de Gênero. São Paulo: Rosa dos Tempos, 1992, p. 40, 44 e 46. 18 SCOTT, Joan. "Prefácio a Gender and Politics of History". op. cit., p.16, 19 e 26. 19 FOUCAULT, Michel. “Os Intelectuais e o Poder:conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze”. Microfísica do Poder. 11. ed., Rio de Janeiro: Graal , 1993, p. 71. 20 SCOTT, Joan. "Prefácio a Gender and Politics of History". op. cit., p. 12 , 13 e 14. Idem , p. 25. 22 DIAS, Maria Odila da S. "Teoria e Método dos Estudos feministas...". op.cit., 1992, p. 45, 46 e 48. Ver também DIAS, Maria Odila da S. "Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista...". op.cit., p. 378. 23 SCOTT, Joan. "Prefácio a Gender and Politics of history". op. cit., p. 21. 24 Idem, "História das mulheres". op. cit., p. 76, 77, 78 e 86. 25 Idem, p. 85 e 90. 21 18 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 dificilmente coincide com a vivência concreta de indivíduos, principalmente quando se trata de mulheres.26 A contestação de objetivismos e de racionalismos abstratos, nos direciona para conceitos capazes de relacionar o cotidiano de seres individuais concretos aos processos históricos em que estavam inseridos. Os conceitos devem ser interpretados em sua historicidade no tempo e adaptados às transformações do processo social. Esse enfoque se pauta pela busca de um instrumental que dê conta do conhecimento enquanto processo, porque as mulheres são, também, e a despeito dos condicionamentos culturais, agentes de si mesmas, daí a necessidade de não ficarem presas a categorias fixas e universais.27 A ênfase na experiência histórica à margem de sujeitos abstratos e de sistemas teóricos que sempre se constituíram como sistema de dominação na história racional que conceituavam, proporciona a construção da subjetividade como processo essencialmente social e histórico, 28 sendo que a forma através da qual as mulheres são integradas à história, depende de como o gênero é desenvolvido enquanto categoria de análise.29 O conceito de gênero possibilita o questionamento de definições estáticas e de valores culturais herdados como inerentes a uma natureza feminina, através da historicização dos próprios conceitos pelos quais as mulheres são pensadas, que relativizados no tempo perdem a conotação universal que o valor ideológico lhes confere.30 A relativização dos conceitos desfaz o falso objeto natural “mulher”, que tem como presuposto uma pretensa “condição feminina” que se refere a uma essência metafísica. As mulheres passam a ser pensadas enquanto diversidade e historicidade de situações em que se encontram, isto é, enquanto objetivações de práticas culturais específicas.31 As instabilidades dos significados dos conceitos, abertos a redefinições e a disputas sugerem a natureza política de sua construção. Ao enfatizar o caráter dinâmico dos significados de conceitos como o gênero, a perspectiva feminista volta-se para o jogo de forças presente na construção do gênero, ou seja, para os processos conflitivos de estabelecimento de significados para o masculino e o feminino em qualquer sociedade, para as formas através das quais o gênero adquire uma aparência fixa e para as contestações as definições sociais dominantes desse conceito, que contém em si várias possibilidades de significação.32 Ao problematizarmos os conceitos de identidade e experiência, estes se tornam instáveis e historicamente variáveis, objetivando interpretações dinâmicas do gênero que enfatizam a luta, a contradição ideológica e as complexidades das relações de poder em mutação.33 Nessa perpectiva, a política é entendida como um processo no qual jogos de poder e saber constituem a identidade e a experiência, que são fenômenos variáveis organizados discursivamente.34 Consequentemente, devemos assumir a responsabilidade pela utilização de um determinado significado para os conceitos pelos quais as mulheres são pensadas na história. A complexidade e instabilidade de qualquer identificação de sujeito, relativiza a identidade, privando-a de suas bases em uma experiência essencializada. A negação da suposição de uma identidade feminina pré-existente conduz à investigação dos processos de construção de identidades de sujeitos e de estabelecimento de significados inerentes para categorias como homens e mulheres. Tal problematização nos leva ao questionamento dos termos que pautam a constituição das identidades, pois as culturas produzem compreensões diferentes acerca da diferença sexual e a experiência não tem uma posição externa à convenção linguística ou construção cultural.35 A crítica a noções totalizantes e essencialistas como razão, identidade, sujeito, verdade e ideologia, e o questionamento dos valores supostamente universais e das supostas permanências patriarcais, resultam na busca de compatibilização de enfoques diversos, 36 pois as experiências políticas femininas e suas diferenças, não podem ser explicadas pela ideologia e pela falsa consciência37. Essa crítica se insere em um contexto de redefinição do conhecimento contemporâneo, que se caracteriza pela construção de uma nova racionalidade e pela tentativa de desconstrução do próprio conceito de natureza humana. Nesse sentido, uma multiplicidade de vertentes críticas renovadoras do conhecimento têm uma participação crucial na formulação de uma nova teoria feminista, pois uma pluridade de métodos é uma forma de se explorar as diferenças.38 Portanto, cabe lembrar a importância da convicção de Michel Foucault no caráter historicamente constituído da sexualidade, considerada como um resultado e não como ponto de partida ou como fundamento de nossa subjetividade. Essa proposta ressalta o discurso como uma prática instituinte e não como reflexo do real, percebendo no poder uma positividade que produz comportamentos e figuras sociais..39 A sua genealogia do poder fornece elementos para uma análise dos saberes situando-os como 26 DIAS, Maria Odila da S. "Teoria e Método dos estudos feministas". op. cit., p. 49. Idem, p. 40 e 47. 28 Idem, p. 40 e 45. 29 SCOTT, Joan. Gênero: uma nova categoria útil para análise histórica. op. cit., p. 2. 30 DIAS, Maria Odila da S. "Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista". op. cit., p. 375 e 381. 31 RAGO, Margareth. “As Mulheres na Historiografia Brasileira”. SILVA , Zélia Lopes da. Cultura Histórica em Debate. São Paulo: Unesp , 1994, p. 85 e 87. 32 SCOTT, Joan. "Prefácio a Gender..." op. cit., p. 17. 27 33 Idem, "História das mulheres". op. cit., p. 91. Idem, "Prefácio a Gender..."op. cit., p. 18. 35 Idem, "História das mulheres". op. cit., p. 89, 90 e 93. 36 Idem, "Prefácio a Gender..." op. cit., p. 374 e 382. 37 Idem, p. 18. 38 DIAS, Maria Odila da S. "Teoria e método dos estudos feministas..." op. cit., p. 41 e 51. 39 RAGO, Margareth. op. cit., p. 87 e 88. 34 19 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 peças de um dispositivo político de natureza essencialmente estratégica40, engendrado por relações políticas que geram certas formas de subjetividades.41 O próprio sujeito é concebido como produto de práticas culturais, o que não conduz necessariamente a sua desvalorização, pois o poder só existe em ação.42 E na medida que este deve ser apreendido a partir da relação como uma situação estratégica complexa43 que tem como meta induzir ações, tal concepção possibilita a percepção das relações de gênero enquanto relações de força implicando na possibilidade de reversão tática de um mesmo tipo de discurso e resultando em uma maior visualização da participação feminina na história. O método de Foucault consiste em descrever as práticas e não pressupor mais nada. A análise das práticas elimina os fantasmas que a linguagem suscita em nós. É também não desenvolver a análise a partir de noções eternas que banalizam e tornam anacrônica a originalidade das práticas sucessivas. Ao desviarmos os olhos dos objetos naturais podemos perceber a prática que os objetivou, sendo que o objeto ao qual ela se aplica só é o que é, se relacionado a ela. A relação determina o objeto que não é senão o correlato da prática correspondente. Explicar a história consiste em vê-la em seu conjunto, em correlacionar os pretensos objetos naturais com as práticas datadas e raras que os objetivam, vinculando essas práticas a todas as práticas afins sobre as quais se encontram fixadas. As relações substituem os objetos44 pois são elas que o constituem segundo composições sempre singulares. Precisamos pensar como todas as relações se organizam de acordo com lógicas que põem em jogo os esquemas de percepção dos diferentes sujeitos sociais e as representações constitutivas de uma cultura.45 A palavra discurso ocorre tão naturalmente para designar o que é dito quanto o termo prática para designar o que é praticado. Para Foucault o discurso tem um sentido técnico muito particular: é uma prática discursiva. As representações fazem parte da prática. Longe de nos convidar a julgar as coisas a partir das palavras, ele nos mostra que as palavras nos enganam e nos fazem acreditar na existência de coisas, de objetos naturais. É preciso que deixemos de acreditar que o objeto é óbvio para historicizá-lo, 46 o que significa dizer que devemos atentar para as distinções entre o nosso vocabulário de análise e o material que queremos analisar, isto é, devemos estabelecer uma distância analítica entre a linguagem aparentemente fixada do passado e nossa própria terminologia.47 Por detrás da permanência enganadora de um vocabulário não devemos reconhecer objetos, mas objetivações que constroem de cada vez uma forma original.48 Foucault rompe com visões que dissimulam a realidade sob reificações. Suas análises nos permitem colocar em um mesmo plano as práticas e as representações, pois na medida que os sujeitos fazem o que pensam, existe uma articulação fundamental entre esses dois níveis. A mentalidade corresponde a seus atos materiais. Ambos são interligados e compõem a prática. A distinção é absurda, pois quando se tem uma conduta tem-se necessariamente a mentalidade correspondente. As representações e os enunciados fazem parte da prática, por isso a ideologia não existe. Essa última idealiza as práticas sob o pretexto de descrevê-las, dissimulando os contornos diferenciados das práticas reais que se sucedem. Esse novo modelo histórico desdobra-se na dimensão de uma história geral, não se especializa na prática ou no discurso.49 Então, a distinção entre uma história social das mulheres, voltada para as prática, e uma história social das relações de gênero, direcionada para as representações, transforma-se num falso problema, pois as descontinuidades admitem sob formas diferentes, contraditórias e historicamente específicas os saberes e os atos. A história cultural enquanto análise das representações, dirigi-se as práticas complexas, múltiplas e diferenciadas que contraditoriamente dão sentido ao mundo, construindo-o como representação.50 Inscrita nas práticas, organizando a realidade e o cotidiano, a diferença sexual é sempre constituída por um discurso que a legitima.51 Entretanto, as múltiplas maneiras pelas quais as mulheres interpretam e elaboram suas significações, muitas vezes transcendem o caráter normativo do discurso. Recusar-se a tomar como referência estrita as definições dominantes da diferença entre os sexos possibilita não somente estudar as experiências históricas das mulheres, mas também analisar a dinâmica das relações de poder que as tornam possíveis e que reformulam sem cessar as divisões que pautam as construções do gênero.52 Invocar a experiência feminina sem implicitamente sancionar conceitos essencializados e identidades a-históricas 53, consiste em elaborá-la enquanto parte da historicidade das representações das mulheres.54 Os estudos das relações de gênero, 40 MACHADO, Roberto. “Por uma Genealogia do Poder ”.Introdução à Microfísica do Poder. 11. ed., Rio de Janeiro: Graal , 1993, p. X. 41 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Cadernos da PUC, Rio de Janeiro, n. 16, p. 8, 1974. 42 Idem. “Genealogia e Poder ”.Microfísica do Poder, op. cit., p. 175. 43 Idem. História da Sexualidade; a vontade de saber. 11. ed., Rio de Janeiro, Graal, 1993, p. 89. Ver também: VEYNE, Paul. “Foucault revoluciona a História”. In: Como se escreve a história. Brasília: UnB ,1982, p. 177. 44 VEYNE, Paul. op. cit., p. 154 , 157, 15 , e 181. 45 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre praticas e representações.Lisboa: Difel, 1990, p .65 e 66. 46 VEYNE, Paul. op. cit., p. 151, 160, 161, 163 . 47 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil... op. cit., 1991, p. 13 e 21. CHARTIER, Roger. op. cit., p. 65. 49 VEYNE, Paul. op. cit., p. 159, 161 e 180. 50 CHARTIER, Roger. op. cit., p. 28 e 65. 51 Idem, “Diferença entre os sexos e dominação simbólica”. Cadernos PAGU. Campinas, n. 4., p. 43, 1995. 52 VARIKAS, Eleni. op. cit., p. 69-70. 53 SCOTT, Joan. "História das mulheres". op. cit., p. 94. 54 DIAS, Maria Odila da S. "Teoria e método dos estudos feministas..." op. cit., 1992, p. 40. 48 20 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 substituem a noção de identidade e passam a privilegiar o exame dos processos de construção das relações entre os sexos e das formas que o poder as articula em momentos históricos determinados. As noções de “linguagem feminina” e “identidade feminina”, exigem a avaliação das condições históricas em que foram estruturadas.55 Próxima às formulações de Michel Foucault, na epistemologia feminista sujeito e objeto estão diluídos um no outro. Em vez de categorizar a realidade como objeto do conhecimento procura-se interpretá-la como processo. Esse ponto de vista resulta na articulação da ação feminina em seu devir a contextos sociais definidos. Tal fato propicia a construção do objeto fora da linguagem, e da ordem simbólica in abstrato. 56 Libertar-se de idealidades universais como a “condição feminina” é uma preocupação que busca a desconstrução de valores ideológicos. Por isso, o principal objetivo da crítica feminista a conceitos fixos e categorias abstratas é a destruição de estereótipos e totalidades universais. As teorias feministas postulam uma consciência estritamente histórica e insistem na crítica de dualidades genêricas e de polarizações como o masculino e o feminino. Afinal, trabalhar no sentido de vencer as polaridades das relações de gênero e das categorias de pensamento implica em lidar com problemas teóricos de ruptura e descontinuidade históricas. No entanto, cabe mais ao pensamento feminista destruir parâmetros herdados do que definir marcos teóricos muito nítidos. Devido ao próprio caráter transitório das mulheres enquanto objetos da história, a instabilidade dos conceitos torna-se imprescindível para o estudo das relações de gênero. 57 A documentação das diferenças e das especificidades dos papéis femininos tem como meta produzir mudanças nas representações estereotipadas das relações de gênero. O questionamento de normas e estereótipos através da constatação da historicidade inerente a todo conhecimento, resulta na crítica da dualidade das relações de gênero, pois a transitoriedade do conhecimento e dos valores culturais constitui uma referência para a interpretação da mudança na história58. Trata-se de um deslocamento da oposição binária para o questionamento de como ela é estabelecida. Precisamos rejeitar o caráter fixo e permanente da oposição binária entre o masculino e o feminino; precisamos de uma desconstrução dos termos da diferença sexual. Devemos analisar em seu contexto a maneira que opera qualquer oposição binária, revertendo e deslocando sua construção hierárquica, em lugar de aceitá-la como real, como óbvia, ou como estando na natureza das coisas.59 Expor a instabilidade de pares aparentamente dicotômicos significa contestar seu pretenso estatuto natural, pois oposições fixas escondem a heterogeneidade de qualquer categoria. Esse tipo de análise, teorizada por Jacques Derrida como desconstrução, contribui para o estudo dos processos conflitivos de produção de saberes sobre as relações entre os gêneros. A desconstrução é uma teoria epistemológica que oferece um método de análise dos processos pelos quais os significados são constituídos, e pelos quais nós constituímos os significados.60 A percepção das relações entre as múltiplas forças, quer pesam sobre as escolhas e as ações das meretrizes mineiras, devem ser vinculadas a processos múltiplos e conflitantes de constituição de significados.61Em lugar de procurarmos causas únicas temos que conceber processos ligados entre si,62 pois no centro dos processos de produção de sentido e de formação do gênero, estão relações conflitantes em confronto permanente.63 O estudo das modalidades através das quais homens e mulheres deram sentido a sua existência deve incluir a análise dos processos de reelaboração e de transformação das tradições e práticas culturais disponíveis a partir dos quais eles resistiram as relações de força. A análise das significações culturais e de suas formas de constituição nas crenças populares proporciona a interrogação da dinâmica social e da polissemia de suas significações, sendo que a referência à linguagem como atividade humana intencional remete à importância dos sujeitos, que procuram se desligar das determinações para transformá-las.64 A ênfase no gênero como um produto das relações sociais, coloca o conflito no centro da análise, pois sugere um estudo de causas múltiplas, de processos políticos,65 nos quais vários atores e várias significações se enfrentam para conseguir o controle.66 Portanto, a necessidade de examinarmos o gênero contextulmente e concretamente, significa que este precisa ser considerado como um fenômeno histórico, produzido, reproduzido e transformado67 pelos próprios sujeitos políticos ao longo do tempo. Assumir a temporalidade histórica do tema e proceder à construção do objeto proporciona a redescoberta de papéis informais, de situações inéditas e atípicas e de processos sociais invisíveis devido à tonalidade restrita das perguntas formuladas tendo em vista o estritamente normativo. A reconstituição de processos não determinantes e alternativos e a ênfase nas particularidades e nas diversidades dos papéis femininos, contribuem para a percepção de subjetividades plurais e de momentos 60 Idem, op. cit., 1994, p. 21 e 23. VARIKAS, Eleni. op. cit, p.82. 62 SCOTT, Gênero: uma categoria útil... op. cit., 1991, p. 14. 63 VARIKAS, Eleni. op. cit., p. 77. 64 Idem, p. 72, 75-76. 65 SCOTT, Joan. "Prefácio a Gender..." op. cit., p. 16, e 23. 66 Idem, Gênero: uma categoria útil... op. cit., p.21. 67 Idem, "Prefácio a Gender..." op.cit., p. 19. 55 61 HOLANDA, Heloísa Buarque. “Os Estudos sobre a Mulher e Literatura no Brasil: uma primeira avaliação”. In: COSTA, Albertina de Oliveira. & BRUSCHINI, Cristina. Uma Questão de Gênero. São Paulo: Rosa dos Tempos , 1992, p. 59. 56 DIAS, op. cit., 1992, p. 41-42 e 48. 57 Idem , p. 39-43. Ver também DIAS, op. cit., 1994, p. 374. 58 Idem, op. cit., 1994. 59 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil... op. cit., p. 13. 21 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 de resistência,68 consequências do estabelecimento de relações entre fenômenos globais e as mudanças que provocam nos sentimentos, na vida íntima e nos processos de construção das identidades de gênero dos sujeitos.69 Ao esmiuçar múltiplas mediações sociais, o conceito de gênero permite a análise de subjetividades femininas em dados momentos históricos, que devem ser apreendidas como parte do mundo. Juntamente com um enfoque do cotidiano, a elaboração de conceitos temporalizados possibilita a reconstrução de aréas de resistência, de improvisação e de papéis sociais alternativos.70 Para isso, torna-se necessário uma interrelação entre o micro e o contexto global, através de uma abordagem dos papéis informais, elementos fundamentais na apreensão das vivências dos grupos oprimidos, de suas formas de luta e resistência.71 Documentar uma multiplicidade de diferenças femininas através de focos narrativos e da historicização de aspectos concretos da vida cotidiana, é uma necessidade vinculada à reinvenção constante de convívio de valores sociais e étnicos diferenciados, que tem como consequência a esperança na sobrevivência de múltiplas relatividades e de conjuntos sociais diversos.72A história das mulheres:ao se concentrar nos papéis informais e nas mediações sociais, relativiza as normas, abrindo caminho para o questionamento de uma ideologia normativa e institucionalizante. A perspectiva de construir a narrativa através do pormenor e de suas relações com o global favorece uma melhor interpretação da inserção social feminina, pois as relações entre minúcias e o conjunto do processo social constituem uma atitude aberta para a posibilidade de papéis informais que escapam aos papéis prescritos.73 Conforme destaca Rachel Soihet, a história social das mulheres deve ater-se à trama de seu cotidiano em detrimento de uma racionalidade universal, sendo que a ampliação dos campos de investigação histórica implica em uma história direcionada para os domínios onde há maior evidência de participação feminina e para a busca de sutilezas nas relações entre os sexos, que incluem suas alianças e consentimentos. Assim, o questionamento de uma visão unilateral do poder sobre os dominados passivos e impotentes resulta no deslocamento do binômio dominação/resistência enquanto terreno único de confronto, no sentido de fazer emergir a criatividade tática dos dominados e as manifestações cotidianas de resistência.74 Cotidiano e poder constituem o campo por excelência de construção e atuação da teoria feminista. O caráter representativo transforma a própria ordenação do cotidiano em uma ação moral e política, que envolve uma margem de liberdade, certa possibilidade de equilíbrio entre a individualidade e o ser genérico. O cotidiano enquanto espaço de resistência ao processo de dominação define um campo social de múltiplas interseções de fatores, que contribuem para transcender categorias e polaridades ideológicas. A busca da especificidade histórica admite o contingencial, o fortuito, a inventividade dos agentes históricos. É o que torna possível vislumbrar, na interpretação do processo histórico, a invenção de um futuro libertário.75 A crítica da racionalidade, a descoberta do cotidiano como tema das ciências humanas e a historicização de verdades, se inserem num direcionamento em relação a conhecimentos, que resultem em verdades aproximadas ao vir a ser de,76 pois os homens e mulheres reais não cumprem de maneira rigorosa os termos e prescrições da cultura dominante.77 Essa possibilidade nos leva a constatar que a reconstituição da ação social feminina precisa se pautar na definição dos poderes informais femininos permitidos por uma situação de sujeição, que devem ser percebidos como uma autoridade detida em uma esfera restrita e como uma reapropriação dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação masculina.78 No que se refere ao século XVIII mineiro, trata-se de interpretar a integração das meretrizes no conjunto das relações de poder com o conceito de gênero permitindo perceber, de um lado, as relações sexuais inseridas no contexto das relações sociais; e, de outro, a “circulação social” dos diferentes padrões culturais e as formas e limites de sua introjeção pelos grupos sociais.79 De acordo com Roger Chartier, os poderes informais femininos estão relacionados as representações da inferioridade das mulheres, inscritas nos corpos de umas e de outros, pois a construção da identidade feminina se enraíza na interiorização de normas enunciadas pelos discursos masculinos, a partir das quais são criadas estratégias de resistência. Essa incorporação da linguagem da dominação, constitui uma tática que mobiliza uma representação imposta para seus próprios fins, deslocando e subvertendo a relação de dominação. Um objeto maior da história das mulheres é então a análise do discurso e das práticas que garantem o consentimento feminino as representações dominantes da diferença entre os sexos.80 75 DIAS, Maria Odila da S. "Teoria e método dos estudos feministas..." op. cit., p. 49, 50 e 51. Ver Também HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. 4. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1992. 76 .DIAS, Maria Odila da S. "Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista..." op. cit. 77 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil... op. cit., p. 16. 78 CHARTIER, Roger. “Diferença entre os sexos e dominação simbólica”. Cadernos PAGU. Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, v. 4, p. 47, 1995. 79 CUNHA, Maria Clementina Pereira. ”Loucura , Gênero Feminino: as mulheres do Juquery na São Paulo do início do século XX”. A Mulher e o Espaço Público. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 9, n. 18, 1989. p. 144. 80 CHARTIER, Roger. op. cit, 1995, p. 40 e 41. 68 DIAS, Maria Odila da S. "Teoria e método dos estudos feministas..."op.cit., p. 40 , 44 e 48. Idem, op. cit., "Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista..." op. cit., p. 380. 70 Idem, op. cit., p. 373, 374, 379 e 380. 71 SOIHET, Rachel. Enfoques Feministas e a História: desafios e Perspectivas. Exemplar mimeografado. p. 6 e 7. 72 DIAS, Maria Odila da S. "Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista..." op. cit., p. 374 e 380. 73 Idem, "Teoria e método dos estudos feministas..."op. cit., p. 49 e 50 . 74 SOIHET, Rachel. op. cit. 69 22 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Na dominação masculina é fundamental uma violência simbólica que supõe a adesão dos dominados as categorias nas quais a dominação se baseia. Definir a submissão imposta como violência simbólica ajuda compreender como a relação de dominação que é histórica, cultural e linguisticamente construída, é sempre colocada como uma diferença natural, irredutível e universal. E na medida que é justamente a questão do consentimento o ponto central no funcionamento de todo sistema de poder, o essencial é identificar para cada configuração histórica, os mecanismos que enunciam e representam como “natural” a divisão social dos papéis e funções sexuais.81 As análises das relações de gênero como produção de saberes culturais variados acerca da diferença sexual incluem as identidades políticas e os símbolos culturais. Essas análises são dirigidas aos conceitos, aos significados, aos códigos linguísticos e à organização da representação.82 Os historiadores devem examinar as maneiras que as identidades de gênero são realmente construídas e relacioná-las a representações culturais historicamente situadas, pois o gênero estrutura a percepção e a organização simbólica e concreta de toda a vida social. Descobrir a amplitude do simbolismo sexual em cada contexto, consiste em reconstituir o sentido dos papéis sexuais e saber como funcionavam para manter a ordem social e para mudá-la. Trata-se de saber quais as representações simbólicas evocadas, quais suas modalidades e em que contextos.83 Ao atentarmos para a especificidade da diferença sexual, em cada contexto histórico, devemos articulá-la a um código de comportamento partilhado pelos dois sexos.84 Como demonstram os altíssimos índices de ilegitimidade,85 e as inúmeras denúncias de concubinato, que na devassa de 1737-38, chegaram a perfazer 87,4% 86 do total, a prostituição nas Minas setecentistas era parte integrante de uma cultura popular na qual a sexualidade era vivida de forma informal. Tal cultura popular deve ser percebida como ação simbólica, o que implica colocar em questão as diversas formas do discurso social dentro dessa construção. Porém, não caberia definir o meretrício tendo em vista um sistema abstrato de valores, caberia incluí-lo na própria definição desse sistema 87 a partir da percepção de práticas culturais específicas. Nesse sentido, delimitando melhor o tema de análise, este trabalho tem como proposta, a compreensão da prostituição nas Minas setecentistas tendo em vista seu significado em termos de resistência social articulada uma cultura popular, em uma sociedade essencialmente urbana, que devido à incidência expressiva de uma população negra e mestiça, ao intenso fluxo populacional, e ao desiquilíbrio numérico entre os sexos,88 favorecia o surgimento de organizações familiares não ortodoxas e de comportamentos de gênero alternativos aos padrões oficiais. Através da análise das devassas eclesiásticas, é impossível a apreensão de uma extrema miséria que determinaria a ação das meretrizes do século XVII mineiro. Ao contrário, o que fica evidente é a vivência de pápeis contrários aos padrões oficiais de comportamento que configuram formas peculiares de luta. Antes de ser contingência da pobreza, a prostituição deve ser percebida como escolha e como parte integrante de uma moralidade popular que se pautava em uma utilização informal da sexualidade89 e, assim, como uma estratégia de resistência vinculada a tradições e hábitos de mulheres pobres. A principal questão a ser colocada, é saber como a representação imposta da mulher “mal procedida”, presente no discurso eclesiástico e nas práticas das meretrizes mineiras, foi utilizada como alternativa de resistência diante das desigualdades de gênero e de uma ordem social patriarcal e escravista, que através das devassas, tinha como objetivo controlar as formas de religiosidade e conjugalidade populares. 81 88 De 1776 à 1821 , a participação demográfica de negros e mulatos na capitania e província de Minas Gerais, correspondeu sempre a cifras próximas de 75%. Quanto ao desequilíbrio numérico entre os sexos, este diferenciou-se segundo a condição social : entre os brancos, os homens eram a maioria (59% em 1776), o mesmo se dando em relação aos negros (70% em 1776). Inversamente, as mulheres compunham a maior parte dos mulatos (51% em 1776), o que explica a alta incidência de forras como chefes de família, ou como prostitutas. VILALTA, Luiz Carlos. A torpeza diversificada dos vícios: celibato, concubinato e casamento no mundo dos letrados de Minas Gerais (1748-1801). Dissertação de Mestrado. São Paulo, USP, 1993, p. 18 e 19. 89 PRIORE, Mary Del. Ao Sul do Corpo; maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. 2. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1995, p .80. 90 LUNA, Francisco e COSTA, Araci Del Nero da. op. cit. PROSTITUIÇÃO E TRATOS ILÍCITOS NAS MINAS SETECENTISTAS As devassas realizadas nas Minas setecentistas a partir de 1721, eram “visitas ordinárias” enquadradas na esfera de ação episcopal, que tinham como função investigar crimes contra a fé, como bigamia, incesto, concubinato, prostituição, alcovitice, feitiçaria etc. Esses crimes e pecados constavam nos interrogatórios da visita, aos quais deveriam oferecer resposta às pessoas chamadas a depor.90 Idem, p. 42. SCOTT, Joan. "Prefácio a Gender..." op. cit., p. 19 e 23. 83 Idem. Gênero: uma categoria útil... op. cit., p. 2, 15 e 16 . 84 CHARTIER, op. cit., 1995, p. 39. 85 Essa relação de ilegitimidade variou entre um quarto e a metade de todos os nascimentos livres da paróquia de Antônio Dias de Vila Rica. RAMOS, Donald. “A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto”. MARCÍLIO, Maria Luíza et alii. História e População: estudos sobre a América Latina. São Paulo: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados , 1990, p. 155. 86 LUNA, Francisco Vidal & COSTA, Iraci Del Nero da. ”Devassas nas Minas Gerais: observações sobre casos de concubinato”. Anais do Museu Paulista. São Paulo, 1982, p. 8. 87 FONSECA, Cláudia. ”Honra, humor e relações de gênero: um estudo de caso”. In: COSTA, Albertina de Oliveira & BRUSCHINI, Cristina, op. cit., p. 329. 82 23 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 O objetivo principal desse trabalho, é a apreensão de múltiplas subjetividades femininas a partir da percepção dos poderes informais exercidos pelas mulheres denunciadas nas devassas como meretrizes públicas, alcoviteiras e “malprocedidas”. Esses poderes serão definidos como contra-poderes sedutores e ilícitos91 que ampliavam as opções de comportamento92 para as mulheres pobres do século XVIII mineiro. Inúmeras foram as mulheres denunciadas nas devassas por não viverem com seus maridos. Em 1777, o pardo forro Manoel Borges, um carpinteiro de trinta e nove anos, denunciou sua sogra Mariana de Maya por alcovitar homens para sua mulher, que de acordo com suas palavras, não o consentia em casa, nem com ele queria “fazer vida”, talvez por estar na sua liberdade de “usar mal de si”. 93 Aos olhos da Igreja, essa escolha traduzia-se em uma ampliação dos domícílios chefiados por mulheres, contrariando a expectativa de implantação do casamento tridentino em detrimento das uniões consensuais. Em Vila Rica, tais fogos chegaram a constituir cerca de 45% das unidades domésticas em 1804, sendo que 90%94 das mulheres que os chefiavam eram negras e mulatas forras. Em regiões essencialmente rurais, como Santo Antônio da Casa Branca95, onde perfaziam 41% dos fogos no começo do século XIX, esses domicílios eram igualmente importantes. Um interessante exemplo que ilustra essa questão é a denúncia contra Antônia Nunes, conhecida como Antonica, moradora em 1753 na freguesia dos Carijós, atual Conselheiro Lafaiete: Antônia Nunes tem umas filhas (...)que se diz publicamente serem mal-procedidas, admitindo homens em casa para fins torpes e desonestos , estando a mãe em casa, não lhes proíbe estes desaforos (...) tendo dois filhos, um chamado José e o outro Manuel, estes são amancebados, o José com uma parda forra e o Manuel com uma bastarda Margarida, as quais estão na mesma casa morando com a dona Antônia Nunes, suas filhas, com dois filhos...96 Em relação ao século XVIII, a análise das devassas evidencia a recorrência da prostituição enquanto estratégia de sobrevivência das famílias pobres encabeçadas por mulheres.97 Ligada a uma organização familiar típica a prostituição nas Minas setecentistas estava articulada a uma moralidade alheia à ética católica oficial, na qual mães cúmplices de “tratos ilícitos” incentivavam em suas filhas um uso indiscriminado da sexualidade, sendo que o “viver meretrismente”, designava antes a vida fora dos padrões habituais de mulheres solteiras ou de maridos ausentes, com todo comportamento desregrado confundindo-as com prostitutas.98 Esses papéis informais improvisados têm um sentido importante na desmistificação do sistema patriarcal brasileiro, na medida que demonstram a impossibilidade de homens e mulheres das classes desfavorecidas, seguirem os rígidos valores dos meios senhoriais, onde o casamento e a organização familiar tinham uma função estratégica, objetivando a preservação da propriedade e a manutenção de privilégios. Fenômeno peculiar à urbanização como um todo na colônia, o fenômeno das mulheres sós, chefes de família, prendia-se ao sistema de dominação, cujo resultado era um excedente de mulheres pobres sem dotes, que permaneciam solteiras ou tendiam a constituir uniões consensuais sucessivas.99 Em zonas de intenso fluxo populacional, como as áreas urbanas e os centros mineradores, esses valores eram menos importantes ainda, como sugere a alta incidência de domicílios matrifocais. As relações sexuais tendiam a ser esporádicas e casuais arcando as mulheres com seus filhos bastardos.100 Em Vila Rica, assim como em vários outros pontos das Minas Gerais, as mulheres tornaram-se presença predominante na na vida urbana, pois permaneciam na retaguarda do povoamento. O caráter de constante mobilidade intrínseco à atividade mineratória, que tinha como resultado a presença de uma população masculina flutuante, impedida de fixar estruturas familiares estáveis,101 fazia das Minas setecentistas um contexto propício à prática da prostituição. Ronaldo Vainfas, baseado no argumento de que não se pode afirmar seguramente que as famílias alternativas viviam alheias ao poder e aos valores patriarcais, chega a concebê-las como contingência da “desclassificação”, como resultado da fome e da falta de recursos para almejar uma vida conjugal minimamente alicerçada segundo os costumes sociais e a ética oficial. Para as índias, negras e mestiças, inferiorizadas no imaginário colonial por sua condição feminina racial e servil, só restaria o destino de objeto sexual dos portugueses e de mulheres degradadas face à misogínia patriarcal.102 Mas, por que devemos nos decidir pela ótica da família patriarcal, pelo elemento da “ordem” em meio uma “desordem” em que as uniões irregulares eram de fato a ordem dominante? Será que não estaríamos assumindo a visão da classe 91 98 CHARTIER, Roger. op. cit., 1995, p. 47. DAVIS, Natalie Zemon. “As mulheres por cima”. Culturas do Povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 112. 93 Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM), Devassas, 1767-1777. f. 21. 94 RAMOS, Donald. "A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto". op. cit., p. 155. 95 RAMOS, Donald. op. cit, 1975, p. 219. 96 AEAM, Devassas,1753, f .71, apud FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 98. 97 FIGUEIREDO, Luciano. op., cit., p. 100. PRIORE, Mary Del. op. cit., p. 82 e 87. DIAS, Maria Odila da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. op. cit., p.30, 31 e 53. 100 FARIA, Sheila. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (sudeste, século XVIII). Niterói, Dissertação de Mestrado, UFF, 1994, p. 17. 101 FIGUEIREDO, Luciano. op. cit, p. 77 e 78. 102 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados; moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 65, 87 e 110. 92 99 24 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Para Fernando Torres Londoño, a persistência do concubinato enquanto forma de conjugalidade era decorrente de um catolicismo popular que constituía a base de uma moral que não passava pelas rígidas prescrições tridentinas. Esse tipo de catolicismo era fruto de uma mescla de tradições religiosas, transmitida predominantemente de forma oral, na qual a noção de pecado era muito mais diluída do que normalmente imaginamos. Por conseguinte, o concubinato seria uma alternativa viável de relacionamento conjugal para muitas mulheres, que por serem escravas, forras, bastardas e brancas pobres, não encontravam ofertas atrativas de matrimônio.108 Esta também era a escolha de forros e escravos 109, e de muitos homens de boa condição social ou imigrantes portugueses, que por serem casados em Portugal, ou por contarem com uma oferta reduzida de matrimônios com mulheres brancas optavam por relações esporádicas ou por concubinatos estáveis com mulheres escolhidas por afeto, desejo, ou necessidade doméstica.110 Essas considerações podem ser extensivas ao meretrício e confirmadas através da análise da denúncia feita em 1764 à pousada de Josefa Maria de Souza, em Ouro Branco. Josefa “abrigava toda a casta de passageiros”, cozinhando para eles e lhes prestando outros serviços, sendo infamada de serví-los em atos lascivos. Além de concorrer para que sua filha Jacinta Maria de São José se desonestasse com os hóspedes, principalmente com o português Manoel Gomes Chaves, com quem era concubinada, ela dava pousada para o mesmo fim a mulheres meretrizes, como é uma bastarda (...) por nome RosaMaria (...) como foi algumas vezes Joana Xavier mulher branca e uma crioula por nome Ana (...) preta forra e Gertrudes (...) mulher branca (...). E quando os hóspedes eram muitos e eram necessárias mais mulheres, as convocava deste arraial, e também de outras partes, vinham assistir a sua casa....111 dominante da sociedade colonial, ao utilizarmos o modelo vencedor sobre várias formas alternativas que se propuseram concretamente no decorrer de nossa história?103 É difícil perceber amancebamentos e “tratos ilícitos” apenas como contingência da pobreza e não como parte integrante de uma lógica própria de comportamento da população pobre dessa região. Para Mariza Corrêa o estudo da família patriarcal no Brasil, que era a forma de organização familiar do grupo dominante, não pode substituir a história das formas de organização familiar da sociedade colonial. Ao fazermos isso, esquecemos o emaranhado de tensões entre os impositores de uma ordem pré-definida e aqueles que resistiam cotidianamente, e instituímos teoricamente possibilidade alternativas como marginais.104 Temos que dar a devida atenção as famílias ilegítimas de negras, mulatas e brancas pobres, constituídas principalmente nas áreas urbanas e as quais a prostituição, no século dezoito mineiro estava articulada.105 Por mais que os valores patriarcais estivessem enraízados na sociedade colonial, eles não pautavam de forma estrita a vida dos grupos desfavorecidos da Colônia. O mais importante é saber como, com base em relações de dependência pessoal assumidas entre parentes ou amigos, ou com os membros da classe dominante, as meretrizes mineiras criaram alternativas de resistência. Nesse sentido, é necessário vincular comércio sexual, “tratos ilícitos” e alcovitices a relações de convívio comunitário, pois estas práticas dependiam da existência de fortes laços de solidariedade estabelecidos entre mães e filhas, ou entre homens e mulheres da vizinhança. Através de toda uma rede de conhecimentos e favores pessoais, concubinato, proteção, compadrio e prostituição,106 e de uma forma de inserção específica nas relações de poder, as “mal procedidas” das Minas Gerais tornaram suportável o cotidiano. Contudo, vale destacar as considerações de Carlo Ginsburg a respeito das influências recíprocas entre cultura dominante e cultura popular, de modo a se buscar o horizonte de possibilidades latentes oferecido pela cultura da época,107 com base no qual as mulheres pobres das Minas Gerais do século XVIII criaram estratégias de resistência à sociedade patriarcal. Por outro lado, os relacionamentos sexuais ilícitos escapam em parte à moral e à cultura dominante através do comércio sexual, dos papéis informais e das uniões irregulares. 108 LONDOÑO, Fernando T. “El concubinato y la Iglesia en el Brasil Colonial”. Cadernos CEDHAL. São Paulo, USP, n 2, p. 39, 1988. As considerações de Londoño, podem ser demonstradas com base na análise da devassa de 1737-38 feita por Luna e Costa. As relações de mancebia ocorriam, principalmente, entre homens livres (90%) e mulheres forras (54%). Às escravas cabia a expressiva cifra de 27% e às livres o peso relativo de 18%. Contudo, as devassas seguintes, sugerem uma maior diversificação dos relacionamentos ilícitos. LUNA, Francisco & COSTA, Iraci Del Nero da. op. cit., p. 9. 109 Os altos índices de ilegitimidade entre os escravos e as baixíssimas porcentagens de cativos casados, indicam a predominância entre esse segmento, das uniões consensuais fortuitas ou duradouras. No entanto, o casamento, em si, não foi muito importante entre esses indivíduos devido à existência de plantéis pequenos nessa região. VILALTA, Luiz Carlos. op. cit., p. 34. 110 LONDOÑO, Fernando. op. cit., p. 39 e 40. 111 AEAM, Devassas, 1762-69, f. 65v, 66, 67 e 68. Apud MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit., p. 184 e 185. 103 CORRÊA, Mariza. ”Repensando a Família Patriarcal no Brasil”. In: ALMEIDA, Maria Suely Kofes et alii. Colcha de Retalhos; estudos sobre a família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 16 e 26. 104 Idem, p. 16, 17, 35 e 36. 105 SAMARA, Eni de Mesquita. As Mulheres, o Poder e a Família: São Paulo, século XIX. São Paulo: Marco Zero, 1989. 106 DIAS, Maria Odila da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. op. cit., p. 20. 107 GUISBURG,Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 13 e 27. 25 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Esses pápeis de gênero alternativos que emergem da análise das devassas, vêm se contrapor ao plano das normas e estereótipos, pois exemplificam atitudes que se opõem aos estereótipos de dominação cultural,112 tornando possível a crítica a uma tradição historiográfica, que a partir do discurso da classe dominante da época e da Igreja católica, concebe os relacionamentos sexuais ilícitos como indício de “desclassificação social” e como sinônimo de desordem e vadiagem.113 Trata-se do questionamento de um enfoque globalizante, essencialista e ahistórico, construído a partir de preconceitos, que concebe a prostituição como expressão feminina da degradação humana e como determinação da miséria.Tal abordagem, além de não dar conta da possibilidade de vivências constituídas através da prostituição, impede a compreensão do signicado cultural peculiar da prostituição nas Minas setecentistas. O gênero enquanto conceitualização que questiona as categorias dominantes contribui para a redefinição das questões das determinações e das subjetividades na história. O potencial heurístico inerente a essa categoria, permite visitar o passado como um estrangeiro que procura decifrar mais do que tomar como dada a significação social das coisas conhecidas. Nos indagarmos sobre o que implica ser uma meretriz em uma determinada cultura, restitui a estrutura problemática dos fatos que se acreditava conhecidos e permite analizá-los como questões históricas pertinentes.114 Por conseguinte, a recusa de posturas absolutistas e totalizantes, de explicações globalizantes e de categorias essencialistas de análise, reforça os estudos das variações e dos processos115 e nos remete à necessidade de utilização cuidadosa dos conceitos. Esse posicionamento nos leva ao questionamento da pouca importância concedida nas análises de Laura de Mello e Souza e Luciano Figueiredo as meretrizes brancas. Ao que tudo indica, elas não eram praticamente inexistentes conforme ressalta esse último historiador. Brancas, forras ou escravas, as “mal-procedidas” das Minas setecentistas não se enquadram no padrão único da “desclassificada social”, ou seja, da mulher mestiça e forra que devido a injunções econômicas é obrigada a se entregar aos “tratos ilícitos”. Em vez de contribuir para a manutenção do estereótipo racista da mulata promíscua e reificada como objeto sexual, o ideal é atentar para um quadro rico e diversificado de vivências criadas através dos relacionamentos sexuais ilícitos. As devassas eclesiásticas não fornecem evidências empíricas que comprovem que a prostituição era, principalmente, um recurso adicional de sobrevivência utilizado por mulatas forras para complementar a renda do comércio de gêneros alimentícios. De quarenta e nove denúncias arroladas, somente sete ou 14% referiam-se a vendas ou negras de tabuleiros. Dessas, apenas três se relacionavam a mulheres forras proprietárias de vendas. Nas restantes três eram escravas administradoras de vendas e apenas uma referia-se a escravas negras de tabuleiro, sendo que nessa não fica explícita a existência de um comércio sexual.116 As relações sociais entre os sexos entendidas como um subproduto das forças econômicas resultam em generalizações redutoras ou simples demais que minam o sentido da complexidade da causalidade social. A crítica de narrativas sintéticas que atribuem ao passado uma unidade inerente117 e o questionamento do caráter mistificador de categorias através das quais as mulheres eram pensadas na história, expõem sua objetividade científica como profundamente idelógica.118 Conceitos dominantes que colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos tomam a forma de uma oposição binária que afirma de forma categórica o sentido do masculino e do feminino. A posição que emerge como dominante é considerada a única possível e a história posterior é escrita como se as posições dominantes fossem o produto de um consenso e não de um conflito.119 Mas na medida que as estruturas hierárquicas baseiam-se em compreensões generalizadas da relação pretensamente natural entre o masculino e o feminino, o gênero implica na construção de relações de poder.120 O não reconhecimento dos conflitos entre os gêneros pode resultar em uma condição feminina abstraída de sua historicidade, pois o poder está no centro das relações sociais. Distanciando-se de dicotomias que trabalham de modo simplificado com antagonismos como dominação e resistência, ou com o simples engendramento de práticas discursivas abstraídas de sujeitos sociais, uma história de gênero deve ter como meta as oposições explícitas e secretas solidariedades, e a subordinação e insubordinação na qual se mesclam as relações de gênero e as relações sociais.121 Deixar de questionar um enfoque que atribui uma passividade a mulheres em aréas onde a sua participação era primordial, significa, de certa forma, concordar com o silêncio e a invisibilidade aos quais as mulheres foram relegadas na história. Uma história verdadeiramente engajada, não deve ter como referência estrita os discursos dominantes acerca dos oprimidos, pois estes discursos objetivavam justamente a instituição da dominação. Qual seria a participação ativa dos atores situados na base da hierarquia nos processos de diferenciação que as próprias 116 AEAM, Devassas, 1730, 1731, 1733, 1734, 1738, 1747-48, 1748-49, 1746-87, 1753, 1756-57, 1759, 1763-64, 1762-69, 1767-77. FIGUEIREDO, Luciano. op. cit.. MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit.. 117 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil... op. cit., p. 3. 118 VARIKAS, op. cit., p. 70. 119 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil... op. cit., p. 15. 120 Idem, p. 19. 121 CUNHA, Maria Clementina Pereira. op. cit., p. 143 e 144. 112 DIAS, op. cit., p. 381. MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit. 114 VARIKAS, Eleni. op. cit., p. 65 e 67, 68. 115 TILLY, Louise A. “Gênero, História das Mulheres e História Social”. Cadernos PAGU. Campinas, n. 3, 1994. p. 59. 113 26 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 hierarquias estabelecem?122 E qual o efeito sobre práticas estabelecidas da história de se olhar as ações pelo lado dos sujeitos femininos?123 A crítica da experiência das mulheres no passado, deve incluir suas concepções de si e do mundo de modo a se construir uma história que respeite a iniciativa humana.124 Mas como reconstruir o olhar de mulheres, como tratá-las como sujeitos de percepção ao mesmo tempo em que as referimos as categorias de percepção dominantes?125 Conceber as prostitutas das Minas como sujeitos históricos secundários ou adicionais não resulta em um desafio aos pressupostos metodológicos da disciplina, pois homens e mulheres passam a ser percebidos como categorias naturais e segregadas e não como termos relacionais, com a categoria mulheres assumindo uma existência conceitual separada de seu relacionamento historicamente situado com a categoria homens.126 A apreensão da participação das prostitutas mineiras como sujeitos políticos, deve ser feita a partir das formas através das quais a prostituição foi vivenciada e interpretada pelas próprias prostitutas.127 Portanto, a redefinição do que é historicamente importante deve incluir também experiências subjetivas e experiências sociais radicalmente diferentes.128 Esse ponto de vista favorece a percepção da fluidez de práticas e costumes, tornando possível a historicização da prostituição, que ao invés de ser concebida como uma prática em si violentamente degradante como faz Luciano Figueiredo em uma pespectiva essencialista e a-histórica ligada à idéia de natureza feminina, pode ser contextualizada e vinculada a estratégias de sobrevivência improvisadas no vir a ser das prostitutas das Minas Gerais do século XVIII. No avesso das práticas prescritas pelos valores patriarcais, as meretrizes mineiras faziam do “mal uso de si”129 um desafio ao casamento sacramentado pela Igreja. Assim, concubinatos e prostituição constituíam alternativas que além de propiciarem condições de sobrevivência, resultavam muitas vezes, em uma margem mais ampla de autonomia e num exercício maior de poder. Em 1756, em Conçeicão do Mato Dentro, a meretriz Paula Perpétua embora fosse casada se ausentava de seu marido quando queria, vivendo como senão o fosse. Este último só “se acomodava por temer os impulsos da referida” e “que a mesma lhe maquine a morte”.130 Outra que “trazia o marido debaixo dos pés” era D.Vitoriana, “dando-lhe pancadas e chamando-lhe de cornudo diante de gente”. Amancebada com o ouvidor geral da Comarca de Vila Rica do Ouro Preto, que entrava e saía de sua casa, D.Vitoriana “que antes era pobre mas honrada”, alcovitava as filhas. Distante do estereótipo da meretriz pobre e miserável ela dizia “que não há cousa como ser mulherdama, que sempre têm duas patacas na algibeira”.131 De acordo com Laura de Mello e Souza, o fato de uma mulher possuir roupas era luxo o suficiente para incriminá-la como “mal-procedida”, sinal de que os “tratos ilícitos” podiam ser utilizados como forma de se driblar pobreza. EmVila Rica, a escrava do sacristão Diogo Pereira causava escândalo por andar bem tratada como se fosse senhora “com saias de camelão e chinelas”.132 Em 1733, João Gomes Chaves foi denunciado por tratar com estimação sua escrava Maria Bonita, “calçada em sua saia de estofo.133 No entanto, mais do que uma simples necessidade de sobrevivência, os relacionamentos sexuais ilícitos podiam ter como consquência a ascensão de pardas enriquecidas, que se transformavam em senhoras fidalgas, como Mariana Baptista de Paracatu, que em 1798 ofereceu a Dona Maria I um cacho de bananas de ouro, em troca de um título de nobreza e da permissão de frequentar missa na irmandade dos brancos, onde o vigário esperava sua chegada para começar.134 A famosa Chica da Silva, concubina do contratador dos diamantes, possuía em sua casa de campo um teatro particular e um lago privado com sua galera de sonhos.135 Em decorrência do meretrício, muitas cativas conquistavam uma maior liberdade de movimentos. Em 1764, em Baependi, Francisca Poderosa consentia que suas escravas andassem por casas de homens “gastando o jornal, sem lhe darem o que ganham com seus corpos”.136 Já as escravas do padre Francisco Teixeira de Assunção, denunciadas como meretrizes na devassa de 1756-57, viviam separadas de seu senhor137, assim como a alcouceira Antônia, escrava de Luzia Pinta, que vivia em casa separada, ainda que vizinha de sua senhora.138 Para as escravas, o amancebamento com seus senhores ou com terceiros, também podia proporcionar a conquista da alforria. Em 1738, o minerador Bernardo da Silva Esteves, denunciou o padre José Felipe de Gusmão, por andar amancebado com sua escrava Arcângela. Esta dormia quase todas as noites com o padre, que chegou a 122 VARIKAS, Eleni. op. cit., p .78. SCOTT, Joan. "História das mulheres". op. cit., p. 78. 124 TILLY, Louise A . op. cit., p. 51 e 59. 125 BOURDIEU, Pierre. ”Observações sobre a História das Mulheres”. In: DUBY, George & PERROT, Michele. As Mulheres e a História. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995, p. 59. 126 SCOTT, Joan. "História das mulheres". op. cit., p. 81 e 83. 127 VARIKAS, Eleni. op. cit., p. 81 e 82. 128 SCOTT, Gênero: uma categoria útil... op. cit., p. 2. 129 PRIORE, Mary Del. op.cit., p. 101. 130 AEAM, Devassas, 1756-57, f. 7v e 8, apud FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 101 e 138. 123 131 AEAM, Devassas, 1762-69, f. 77v, apud MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit., p. 155. MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit., p. 146. 133 FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 128. 134 DIAS, Maria Odila da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. op. cit., p. 94. 135 CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1968, p. 20. 136 AEAM, Devassas , 1746-87, f. 35. 137 Idem, 1756-57, f. 101v. 138 Idem, 1753, f. 132, 132v, 133. 132 27 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 propor a compra de sua liberdade.139 Tal possibilidade não era muito remota. Na devassa de 1733, Luciano Figueiredo localizou a denúncia contra Francisco Teixeira Carvalho, que por amor forrou a sua escrava Violante.140 Em 1777, na freguesia de São João do Morro Grande, um Miguel Gonçalves oficial de pedreiro, vivia amancebado com uma sua escrava que ele forrou por nome Josefa, a qual tem de portas adentro, porque causa grande escândalo, de tal sorte que já o Reverendo Pároco o expulsou fora por vezes pela mesma culpa.141 Antônio da Silva, que desistiu do casamento com o cadete João Luciano após ter tido “tratos ilícitos” com dois seminaristas e com um Francisco de Paula.146 A descrição fisica da alcoviteira Felipa de Moraes, distancia-se da extrema pobreza sugerida por Mello e Souza e Figueiredo. Felipa de Moraes era uma parda forra, de cerca de cinquenta anos que vestia “um timão de baeta azul abandado de tafeta branco com uma camisa de bretanha de França” e calçava umas chinelas de couro preto. Nas orelhas, usava uns brincos de ouro, nos pulsos umas contas de prata, e no pescoço, umas granadas de cor rocha com uma imagem de Santana.147 A imagem de Santana, confirma a existência de uma vivência específica da religiosidade, decorrente de um contexto em que o catolicismo propiciava oportunidades de convívio através das grandes festividades que se multiplicavam o ano todo.148 Em 1738, no arraial da Contagem, a forra Luzia de Mello dava “pública casa de alcouce, admitindo (...) todos aqueles que querem pecar com duas negras que tem (...) especialmente nos domingos e dias santos, em que fica junto mais gente no arraial...” 149 Profundamente associados aos encontros amorosos ilícitos, os batuques e feitiçarias revelam o potencial de resistência de um sincretismo afro-católico,150 que encerrava em si uma cultura negra extremamente rica. Na devassa de 1763-64, Custódio Dias foi denunciado por dar casa de alcouce,151 consentindo “que na mesma casa se dancem quase todas as noites batuques”. Na freguesia dos Carijós, o feiticeiro Salvador de Freitas era procurado por várias mulheres para abortarem e Josefa Doce usava de ingredientes para que os homens lhe quizessem.152 Em 1777, em Vila do príncipe, um mulato forro chamado Antônio Julião, fazia feitiçarias para adquirir mulheres públicas. Apartado de sua mulher e amancebado com uma mulata-dama chamada Teresa a opção de Antônio Julião era recorrente em Minas Gerais.153 Em 1753, Antônio Gonçalves de Figueiredo foi denunciado por tratar mal sua mulher Eugênia, devido ao amancebamento com Teodósia bastarda, meretriz que também era concubinada com o pardo forro Francisco.154 Integradas a um código de comportamento que tinha o concubinato como característica essencial, as relações Entretanto, parece ter sido entre brancas e forras que os “tratos ilícitos” resultaram em uma margem mais ampla de autonomia. Em 1753, na freguesia dos Carijós, Gertrudes de Oliveira vivia “separada de seu marido Manoel Francisco dos Santos, que querendo por várias vezes chamá-la para sua companhia ela nunca quiz”. Após abandonar o marido, ela expulsou os filhos deste de sua casa, para em seguida parir os seus, o que a colocava em reputação de “mal procedida”.142 Esse também foi o caso de uma mulher branca chamada Ignês de Oliveira, “por alcunha Claridade, que alcançara sentença de divórcio no juízo da cidade do Rio de Janeiro, donde veio para o arraial do Brumado onde vive meretrismente para todos que a procuram”.143 Na devassa de 1747-48, Laura de Mello e Souza e Luciano Figueiredo analisaram as denúncias contra a meretriz Maria da Costa uma negra forra que através do meretrício resistia as pancadas de um concubino que em vão tentava submête-la. Demonstrando uma concepção específica da religião católica ela chegou a dizer que se ela era mulher pecadora, por ela tinha sido Santa Maria Madalena.144 Nas Minas Gerais do século XVIII, a prostituição era uma opção de trabalho para muitas mulheres que optavam pela separação de seus maridos ou concubinos145 ou que almejavam uma existência mais autônoma. No entanto, em um contexto onde o “viver meretrismente” designava tanto uma alternativa de comportamento como uma opção de trabalho, ser “mal-procedida” era, inclusive, a forma encontrada por moças que desejavam viver uma sexualidade mais livre. Em 1794, em Mariana, a parteira Felipa Maria de Moraes foi denunciada por alcovitar “moças recolhidas”. A moça em questão, era Maria, filha de um tal Dr. 146 Casa Setecentista - CS - Mariana, 4621 cod. 185-2ofício/série crimes. Devassa Janeirinha de 1794, f. 4v, 5, 5v. Essa devassa, realizada em Mariana, apesar de idêntica as devassas eclesiásticas, estava vinculada à ouvidoria geral da comarca de Vila Rica do Ouro Preto. 147 CS , 5590 cod 225-2ofício/série crimes. Processo de livramento da culpa imputada pela devassa janeirinha de 1794: Felipa Maria de Moraes, f. 4. 148 FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p.154. 149 AEAM, Devassas, 1737-38. f. 18v. 150 MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 151 AEAM, Devassas. 1763-64, f. 10v. apud FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 92. 152 AEAM, Devassas, 1753, f. 52 e 59. 153 Idem, 1767-77, f. 45. 154 Idem, 1753, f. 71. 139 Idem, 1738, f. 133. FIGUEIREDO, Luciano. op. cit. p. 128. 141 AEAM, Devassas,1767-77, f. 25. 142 Idem, 1753, f. 70v e 71. 143 Idem, 1756-57, f. 219. 144 AEAM, Devassas, 1747-48, f. 31, 31v, 32, 32v, apud FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 109 e 110 e MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit., p. 184. 145 FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 102. 140 28 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 estabelecidas através do meretrício resultavam em amancebamentos. Ser meretriz nas Minas Gerais do século XVIII significava ter vários amásios, situação que, por vezes, gerava brigas sérias, como as que ocorriam entre o ferreiro Sebastião, que por ciúmes batia em Maria da Costa.155 Nas casas de alcouce, através de uma forma específica de intervenção social, foram constituídas identidades, pautadas na prática comum da prostituição. Em 1734, no arraial do Tijuco, a parda Rosa Pereira da Costa “dava casa de alcouce, em forma que nela se ajuntam todas as noites, quase todas as mulheres damas que há nesse arraial”.156 Em Congonhas do Campo, a parda Ana Maria, que vivia ausente de seu marido, consentia “em sua casa homens, não só para si, mas também para sua irmã Francisca e para suas filhas Maria e Ana.”157 Espaços de sociabilidade feminina, esses locais foram propícios para a constituição de fortes laços associativos entre mulheres pobres, que através da sedução lutavam contra as limitações impostas por uma sociedade misógina. Presença indispensável em tais locais, essas mulheres, ao invés de serem apenas objeto sexual, conforme ressalta Figueiredo, eram sujeitos de suas ações. Alvos de desejos e amores, elas tinham oportunidades de escolha. 155 Idem, 1747-48, f.31, 31v, 32, 33v, apud. FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 109 e 110. AEAM, Devassas, 1734, f.73v, 74v, 75, apud MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit. p. 184. 157 AEAM, Devassas, 1762-69, f. 47. 156 29 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 CARDOSO, Maria Tereza Pereira. Caramuru somos nós. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 39-44. CARAMURU SOMOS NÓS Maria Tereza Pereira Cardoso Professora do DECIS/FUNREI doutoranda em História Social pela UNICAMP http://www.ufjf.br/~clionet/rehb RESUMO: Este artigo pretende analisar aspectos de uma rebelião escrava ocorrida na freguesia de Carrancas (São João del Rei - MG), em 1833, procurando tecer algumas considerações acerca das referências culturais e simbólicas que informaram a ação dos escravos. Endereço para correspondência: Revista Eletrônica de História do Brasil Arquivo Histórico da UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora - MG Prédio do CDDC - Campus Universitário Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330 ABSTRACT: This paper aims at analysing aspects of a slavish rebellion stricken at Carrancas’s parish (São João del Rei - MG), 1833, trying to weave some considerations about the cultural and symbolic references wich shaped the slave’s action. PALAVRAS-CHAVE: Processos criminais; Criminalidade escrava; Comarca do Rio das Mortes: século XIX. http://www.ufjf.br/~clionet/rehb E-mail: [email protected] Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342 I Era o dia 13 de maio de 1833, por volta do meio dia, quando os escravos do deputado Francisco Junqueira, munidos de foice, paus e armas de fogo, invadiram as fazendas Campo Alegre e Bela Cruz, localizadas na freguesia de Carrancas, Comarca do Rio das Mortes. Cercaram o proprietário da fazenda desmontando-o do cavalo e o mataram. Depois foram em direção à fazenda Bela Cruz onde arregimentaram os escravos que estavam na roça e, em seguida, invadiram a sede, matando todos os seus moradores. Segundo o auto de corpo de delito indireto, referendado por réus e testemunhas, na fazenda Bela Cruz foram mortas nove pessoas, entre adultos e crianças.1 Uniformemente disseram que sabem pelo ver que os finados Manoel Joze da Costa e sua mulher Hermelianna Francisca Junqueira e seus filhos, Joze de idade de cinco annos e Maria de idade de doeis meses, Donna Anna Candida da Costa e Antonia filha legitima de Manoel Vilella, de idade de quatro annos, forão atros mente assassinados e mortos no dia treze do corrente pelas Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo e em sua estrutura física. 1 Este trabalho baseia-se no processo-crime da família Junqueira, Carrancas, 1833, caixa. 4. Acervo do Arquivo do Museu Regional de São João del-Rei. 30 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 A rebelião iniciada na fazenda Campo Alegre parece ter sido organizada por Ventura, João, Julião e Casemiro, todos africanos, juntamente com Domingos e André, crioulos. No decorrer do processo foram arrolados 36 réus que se declararam oriundos do Congo, de Angola e Moçambique e se identificaram como cassange, benguela, cabunda, mufumbe e mina. Dos autos constam nove escravos crioulos, sendo um deles, André, filho de Ventura. Vários cativos receberam a pena de enforcamento e outros foram condenados a açoites e ferros. Ventura Mina, citado como o principal líder da revolta, morreu no confronto com a Guarda Nacional, quando a rebelião foi sufocada. Os depoentes afirmaram que a rebelião tinha por objetivo o alforriamento dos escravos e que Francisco Silvério, homem branco, tido como o insuflador dos atos, em consonância com o negro Ventura, teria informado aos escravos que em Ouro Preto os caramurus3 já haviam começado a prender os brancos e a matá-los. Cabia-lhes fazer o mesmo. Segundo testemunhas, os planos da rebelião incluíam a morte de todos os brancos das fazendas Bela Cruz, Jardim, Campo Belo, Prata, Santo Inácio, Favacho, Traituba e Campo Alegre. E embora o “medo branco” impregnasse esses depoimentos, há referências de que a rebelião já havia sido pensada dois anos antes. Tais informações constam dos autos do processo de 1833. O ofício do Juiz de Paz ao Presidente da Província relata que, ... esta insurreição não hé d’agora mas sim já (...) a dois annos pouco mais ou menos e que o cabessa della nesta Freguesia hera o ex-vigário della Joaquim Joze Lobo o que he mui publico e notório pellas comvocaçoins e seuçoins que, o dito vigário fizera naquelle tempo a diversos escravos para isso induzidos por elle, e por Domingos Crioulo seu agente, o qual athé promoveo (...) esmolas pella escravatura dessa Freguesia para se celebrar um terço a Nossa Senhora do Rosário para os felicitar no seu intento de se libertarem por meio do assassinato de seos senhores ... 4 seis horas da tarde na propria casa do finado Joze Francisco Junqueira aonde fizerão aos assassinados as feridas. Receberam a saber, Junqueira se achou com hum tiro de arma de fogo no peito no lado direito de cuja parte se achava fraturado o braço logo assima do punho e doutro tiro na bouca que mostrava ser dado de perto que desmanchou o rosto que lhe esmagou o rosto deixando huma grande concavidade e Donna Antonia Maria Jezus, mulher do dito se achou com toda a cabessa e rosto com imenças feridas que elles testemunhas não podiam contar com coivo carne cortada com grande efusão de sangue cujas feridas mostravam ser feitas com instrumentos cortantes afim de que a sinta para baixo se achava muito ensanguentada o que elles testemunhas (...) tiveram de examinar. Manoel Joze da Costa se achou com huma grande ferida sobre o olho da parte esquerda com couro e carne cortada do comprimento de quatro polegadas, além de outras muitas feridas pello rosto que todas mostravam ser feitas com instrumento cortante além de hum tiro de arma de fogo no peito. Donna Hermelianna Francisca Junqueira se achava com hum grande golpe na cabessa pella parte de tras e logo assima na nuca que lhe tinha separado a maior parte do cranio além de outras feridas que tinha no rosto que todas mostravão ser feitas com instrumento cortante. Joze filho de Manoel Joze da Costa de idade de sinco annos se achou com duas grandes feridas no rosto com couro e carne cortada e ambas de comprimento de sinco polegadas que mostravam ser feitas com instrumento cortante. Maria filha do ditto Costa se achou digo se achou com a cabeza toda cortada com cor mudada para preto que mostrava ser assassinada dando com a cabessa por pau ou pedra. Donna Anna Candida da Costa viuva de Francisco Joze Junqueira se achou com parte do couro que cobriu o cranio não se lhe devizando parte alguma da cabessa e rosto que se não achava unida ao corpo. Antonia filha de Manoel Vilella de idade de quatro annos se achou com huma grande ferida redonda no alto da cabessa por onde se lhe devizava travazão do cerebro alem de outras muitas feridas no rosto com couro e carne cortada que tudo e elles testemunhas sabião pelo ver e serem elles proprios os que deram sepultura a todos estes cadaveres no Cimeterio da Serra da Letras onde são moradores, no dia quatro do corrente mez”. 2 2 Segundo trabalho recente,5 a rebelião de 1833 teve grande repercussão na província, deixando em polvorosa todo o sul de Minas, inclusive vilas limítrofes com as províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Revoltas, motins, ajuntamentos de negros, quilombos e bandos salteadores de estradas são comuns em Minas, desde o século XVIII. Na primeira 3 Trata-se da Sedição Militar de Ouro Preto ocorrida em 1833, durante a qual os restauradores, também denominados caramurus, tomaram o governo da província por dois meses. Durante este período, os liberais moderados se estabeleceram em São João del-Rei. 4 Ofício constante no referido processo-crime da família Junqueeira. 5 ANDRADE, Marcos Ferreira de. Rebeldia e resistência: as revoltas escravas na Província de Minas Gerais, 1831-1840. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, 1996, p. 182-186. Transcrição do Auto do corpo de delito indireto. Processo da família Junqueira, cx. 4. 31 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 metade do século XIX, com as notícias da rebelião no Haiti e a revolta dos Malês, na Bahia, cresce a tensão em toda a província. O medo alia-se ao fato real de que as revoltas, embora ainda pouco estudadas, efetivamente ocorreram com alguma freqüência, principalmente, ao que parece, em regiões com grandes concentrações de escravos africanos. Em Minas Gerais, que contava com a maior população cativa de todo o Império6 e com as mais baixas taxas de alforria, seguramente o temor tendia a acentuar-se, fazendo com que a vigilância e o controle em relação à população de “cor” e, principalmente, em relação aos escravos, aumentasse. Em 1837 o Juiz de Paz do Distrito de Pouso Alto envia correspondência ao Presidente da Província, solicitando a permanência do destacamento militar no distrito devido a “numerosa porção de africanos que este Districto e outros vizinhos tem em si, e que a qualquer momento podem expalhar o terror e a morte nestes lugares”. 7 A população negra e parda parece ter excedido em grande medida à população branca, fazendo com que as solidariedades aí construídas muitas vezes se tornassem decisivas em momentos de tensão. Dessa forma, escravos ou libertos, negros ou pardos, significavam, no imaginário das elites, perigo iminente. Para Manoela Carneiro da Cunha8 o africano era quem melhor representava este “outro” que tanto atemorizava o Governo e os senhores. É sobre significados culturais e alteridades que falaremos a seguir. entretanto, que todos os réus eram trabalhadores no eito, quase todos eram de origem africana e desconheciam sua idade e que, a maioria admitiu ter participado da morte de seus senhores. Apenas um réu, Julião Congo procurou justificar seus atos, afirmando que, “seo senhor o tratava mal, não estava satisfeito com o seo serviço dava lhe pancadas ainda mesmo quando estava doente”. 9 Os outros nada disseram em sua defesa. Entrementes, há um traço comum em todos os depoimentos dos réus, a relação entre os caramurus, o rei e a alforria e, talvez, seja esse o elo, menos visível, entre as revoltas de 1831 e 1833. Os escravos atribuíram sentidos próprios à ação dos caramurus mas o fizeram a partir de que referências culturais? Quais os caminhos que os levaram do terço de Nossa Senhora do Rosário ao genocídio da família Junqueira? Lembramo-nos de um texto de Alfredo Bosi em que as datas são vistas como de “icebergs”, enfatizando a densidade que elas contêm.10 Procurando recuperar essa densidade, faremos um pequeno roteiro articulando datas, fatos, e significados simbólicos. Começamos por 1831, ano da abdicação de D. Pedro e da promulgação da primeira medida de proibição ao tráfico. Sobre esse período, o Alfredo Joaquim da Silva Pais, natural da Freguesia de São João del-Rei e morador em Carrancas, informa por ouvir dizer que, segundo os escravos participantes da primeira rebelião, ... o Imperador andou por Minas que foi com o sentido de forrar mas os senhores não quizerão e o lançarão para fora, e que apesar disso tinha deixado ordem para elles serem forros pelos Bispos, estes tinham canonizado (?) aos vigários.” 11 II A história de Ventura Mina, João Cabunda e outros, participantes das rebeliões de 1831 e 1833, parece-nos interessante para pensar no confronto inter-étnico através do qual, senhores, brancos, donos de terra e gente, exercendo o monopólio da violência, são assassinados por escravos, negros, africanos, que parecem agir com respaldo e legitimidade de seu grupo social. Alguns depoimentos de réus e testemunhas deixam indícios imprecisos e esparços que procuraremos seguir para dar continuidade a essa análise. Em documentos jurídicos, como ações de liberdade, ouvimos em alta voz o depoimento dos escravos, que através de seus curadores, argumentam e justificam suas ações. O mesmo não sucede com os processos-crime, particularmente com um processo por insurreição e homicídio, no qual a fala dos escravos soa distante, lacônica, interditada pelas tramitações processuais e condicionamentos de toda ordem. Anotamos, Em 1833, outra vez a figura do rei está posta em cena. Afinal, os caramurus são os defensores da restauração e a eles é imputada a defesa da alforria. Portanto, é sob a figura emblemática do rei que parece tecer-se uma primeira legitimidade que pode, inclusive, relacionar-se a formas culturais presentes no universo africano.12 9 Processo-crime da família Junqueira, cx 4, Arquivo do Museu Regional de São João del-Rei. BOSI, Alfredo. O Tempo e os Tempos, in: NOVAES, Adauto (org.) Tempo e História. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. 11 Depoimento constante do processo-crime da família Junqueira, cx.4. 12 Em correspondência remetida ao presidente da província em 16 de maio de 1833, o Juiz de Paz de Baependi assim se refere ao negro Ventura Mina: “Exmo. Snr. de ontem para hoje os diversos destacamentos em pontos apropriados tem capturado vinte e oito escravos, tendo morrido hum, que se havia coroado Rey delles, pertencente ao Deputado Gabriel Francisco Junqueira, como que desarmados os que restão se achão debandados, e perseguidos por todos os lados, e pareceme que ao mais tardar por estes dois dias serão prezos os que faltão”(APM Seção Provincial, SP PP 1/18, cx. 86, doc. nº 32). Apud ANDRADE, Marcos Ferreira de, op. cit., p. 189. 10 6 A respeito, ver MARTINS, Roberto. A economia escravista em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMF, 1992. 7 Correspondência do Juiz de Pouso Alto ao Presidente da Província de 30 de agosto de 1837. Arquivo Público Mineiro, seção provincial. Códice SP PP 1/18, cx. 88, doc. n.19. Apud ANDRADE, Marcos Ferreira de, op. cit., p. 34. 8 CUNHA, Manoela Carneiro da. Negros estrangeiros; os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 12. 32 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Outro aspecto presente nas duas revoltas se relaciona aos elementos religosos que as permeiam. Em 1831 os escravos recolheram esmolas para realizar um terço para que Nossa Senhora do Rosário os auxiliasse em seus propósitos e, em 1833, segundo vários depoimentos, a revolta deveria eclodir no domingo do Espírito Santo, embora tenha sido adiantada em alguns dias. Assim, as revoltas parecem ter sido planejadas, no imaginário de seus participantes, sob o manto do rei e da santa, adquirindo uma legitimidade que, parece estar ancorada em símbolos apropriados da sociedade senhorial e resignificados naquele universo cultural particular. Uma última observação se faz necessária. Aqui estão sendo deixados propositadamente de lado todos os outros elementos que compõem a cena onde estes personagens se movem. Referimo-nos, sobretudo, à tensa situação do período regencial e suas disputas políticas e às condições concretas em que viviam os cativos pertencentes ao deputado Junqueira. Caminhamos ainda como um antropólogo perdido que chega a uma aldeia distante. E é justamente o estranhamento o que nos salva. Assim, concluímos com Robert Slenes, que observamos duas culturas “dramaticamente diferentes”15 que assimetricamente se confrontam. É a partir dessa noção de alteridade que buscamos situar as revoltas de Carrancas. O “complexo cultural ventura-desventura” que parece ser referência central para compreender o universo simbólico da África bantu16 atribuirá algum significado particular à morte violenta? Naquele quadro cosmológico, reordenado historicamente, as agressões na parte superior do corpo revelarão uma forma de garantir que o morto não retorne? Ou nos deparamos com uma naturalização da violência assentuada em situações opressivas ou condições em que o mínimo vital está em disputa, como afirmaria Maria Sylvia de Carvalho Franco, embora tratando de situações bastante diferentes das que abordamos nessa história.17 As respostas a essas perguntas ficam para um segundo momento, quando um maior conhecimento das etnias africanas que viveram em Minas Gerais e a compreensão de como tratavam a morte e a violência nos auxilie na análise de crimes de homicídio cometidos por escravos. Resta-nos observar que, ademais de todas as diferenças realçadas, estamos, provavelmente, diante de noções de justiça distintas e opostas. Tais noções explicitadas nas revoltas se evidenciam quando a parda Maria Junquina do Espírito Santo, agregada da fazenda Bom Jardim, relata em seu depoimento como testemunha no processo de 1833 que: hera verdade que o preto Antonio Benguella pullava no seo terreiro e batia nos pretos dizendo para ella e seo companheiro: voces não costumão falar nos caramurus, pois conheção agora os caramurus. Nós somos os caramurus, vamos arrasar tudo”. 18 III Segundo Robert Slenes, a população cativa do sul mineiro era composta de 50% de africanos, de origem bantu, introduzidos na região entre o final do século XVIII e 1850.13 Vivendo a maioria desses em pequenos plantéis, foram construindo, ao longo de todo o período de cativeiro, relações de solidariedade e identidade redefinidas e reelaboradas a partir de suas referências culturais de origem. Assim, colocavam em risco empírico, como afirma Marshall Sahlins,14 os suportes culturais de suas tradições, imprimindo-lhes outros significados cunhados na situação de tráfico e de cativeiro nas novas paragens que os recebiam. Uma vez mais, a história de Ventura Mina, João Cabunda e outros, nos auxilia a pensar, desta vez, nas noções de cultura operadas por historiadores e antropólogos. E nos indica a necessidade de lidar com referências flexíveis, através das quais, essa noção possa enraizar-se na experiência e nos costumes de determinado grupo social, construídos e redefinidos na diacronia. Estamos ainda distantes de entender o que de fato aconteceu nas revoltas de Carrancas. Sobretudo, estamos distantes de compreender a violência utilizada pelos escravos no acerto de contas com seus senhores. Se pensarmos que a família Junqueira era conhecida como de tradição liberal, opositora aos caramurus, talvez uma pequena luz apareça no final do túnel. Poderíamos afirmar que, em síntese algumas polaridades se destacam: caramurus versus liberais, senhores versus escravos, violência versus violência. Oxalá as coisas fossem tão simples. A utilização do termo caramuru parece indicar uma apropriação cultural que, ao mesmo tempo redefine o lugar ocupado pelos escravos nesse confronto. Embora sob o manto da santa e do rei são eles, os caramurus negros, “filhos do trovão”19, que se apropriam do direito de definir os rumos dessa história, embora tenham naufragado no último momento. 15 SLENES, Robert. op. cit., p. 61. Idem, p. 58. 17 Refiro-me ao livro de FRANCO, Maria Sylviade Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 383. 18 Processo-crime da família Junqueira (1833), caixa 4, Arquivo do Museu Regional de São João del-Rei.. 19 Uma das acepções do verbete “caramuru” no dicionário de Aurélio Buarque de Holanda. 16 13 SLENES, Robert. África Coberta e Descoberta no Brasil. Revista da USP, São Paulo, n. 12, p. 55, dez./jan./fev. 1991-1992. 14 SAHLINS, Marshall. Ilhas da História. Rio de Janeiro: Jorje Zahar Editores, 1990, p. 9. 33 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 A DEVASSA DA VIDA PRIVADA; o arquivo paroquial de Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei (XVIII-XX) RESENDE, Maria Leônia Chaves de, et alii. A devassa da vida privada; o arquivo paroquial de Nossa Senhora do Pilar de São João del Rei (XVIII-XX). Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 45-50. Maria Leônia Chaves de Resende http://www.ufjf.br/~clionet/rehb Professora do DECIS/FUNREI Doutoranda em História Social pela UNICAMP Mercês Miriam dos Santos Licencianda em Filosofia pela FUNREI Maria Angélica de Andrade Bolsistas de Iniciação Científica/FAPEMIG Endereço para correspondência: Revista Eletrônica de História do Brasil Arquivo Histórico da UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora - MG Prédio do CDDC - Campus Universitário Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330 RESUMO: Este artigo visa à descrição do arquivo paroquial do Pilar, especialmente da série Processos Matrimoniais, como resultado parcial do projeto “Levantamento, classificação e indexação, em banco de dados, dos documentos e obras raras dos arquivos de São João del-Rei e Tiradentes” (MG), financiado pela (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), em curso pelo Departamento de Ciências Sociais, Políticas e Jurídicas (DECIS) da FUNREI (Fundação Universitária de São João del Rei - MG) http://www.ufjf.br/~clionet/rehb E-mail: [email protected] Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342 ABSTRACT: This paper aims at a description of the parochial files of the Church of Pilar, especially of the marriage certificates. It shows the partial results of the research project entilled “Data gathering, classification and indexation of documents and rare works from the archives of São João del-Rei e Tiradentes”(MG)z. This project is sponsered by FAPEMIG, through the Department of Social, Political and Legal Sciences at FUNREI. . Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo e em sua estrutura física. PALAVRAS-CHAVE: História de Minas Gerais; paroquiais; São João del Rei (MG). Fontes Históricas; Arquivos Este artigo é o relato parcial do trabalho de mapeamento, identificação, organização, classificação e indexação, em banco de dados, dos documentos e obras raras dos arquivos históricos e bibliotecas de São João del-Rei e Tiradentes, que vem sendo desenvolvido no DECIS/FUNREI. Afinal, a riqueza dos acervos de São João delRei e Tiradentes é indiscutível. Dotados de vários arquivos, dispersos sob a guarda de várias instituições, os fundos documentais são quantitativamente expressivos e guardam particularidades interessantes. Atualmente, finalizamos nossos trabalhos, em São João del-Rei, nos Arquivos da Câmara Municipal, da Santa Casa de Misericórdia, da Irmandade de Nossa Sra. do Rosário dos Homens Pretos e, recentemente, no Arquivo 34 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Paroquial de Nossa Sra. do Pilar. De todos eles, seguramente o Arquivo Paroquial do Pilar, como é conhecido, é de inestimável valor, especialmente por possuir séries documentais bastante completas. Muitos dos arquivos encontravam-se em total desordem, constituindo-se em um amontoado de papéis velhos e empoeirados, inacessível aos usuários. O acervo Paroquial do Pilar, contrariando essa regra geral, é muitíssimo bem conservado. Nos anos cinqüenta, foi organizado durante a vigararia de Monsenhor Almir de Rezende Aquino. Ainda hoje é zelado com grande acuidade pelo pároco Monsenhor Sebastião Raimundo de Paiva, de quem guardamos as melhores das impressões pela generosidade e empenho em nos auxiliar durante o período em que lá trabalhamos. Assim, nosso objetivo foi o de catalogar a documentação e fazer um guia de consulta visando à divulgação desse acervo para a produção do conhecimento histórico. O procedimento adotado foi padronizado para todos os arquivos. Em primeiro lugar, buscou-se identificar a existência de uma ordem original dos fundos documentais, a fim de que pudesse ser respeitada e recuperada. Assim, organizou-se o registro em consonância com sua tipologia documental, estabelecendo-se como critério a ordem original definida pela paróquia. Caso esses indícios não existissem ou não permitissem sua recuperação, procedeu-se à organização de acordo com a tipologia documental e ordem cronológica. A seguir, distinguiram-se os códices em títulos convencionais e fezse o fichamento. Após a leitura de cada documento, preencheu-se uma ficha de cadastro com os seguintes campos: 1) Tipo de documento; 2) Número do livro ou pasta; 3) Termo de Abertura; 4) Rubrica; 5) Data; 6) Número de folhas; 7) Conteúdo; 8) Estado de conservação; 9) Observações. ÍNDICE DE BATIZADOS INVENTÁRIOS ÓBITOS ÓBITOS E PASTORAIS PROCESSOS MATRIMONIAIS PROVISÕES RECEITA E DESPESA RECIBOS REGISTROS REGULAMENTO REQUSIÇÃO TESTAMENTOS E ÓBITOS TÍTULO DE AFORAMENTO TOMBO DATA 1892-1985 1737 – 1997 1790 - 1815 1782 – 1924 1956 – 1989 1804 – 1834 1954 1729 – 1997 1925- 1996 1769 - 1806 VOLUME 62 86 01 02 01 01 01 24 12 01 1714 - 1753 01 1917 - 1978 09 76 02 22 01 4157 02 32 02 06 01 01 17 01 25 Quanto à documentação avulsa, adotamos os mesmos critérios, tendo em conta a ordem original a ser recuperada e separando os documentos por tipos e cronologia, acondicionando-os em pastas devidamente identificadas. Em seguida, fez-se um resumo do teor das pastas, registrando-se o título, datas limites, número de documentos, conteúdo e observações. Ainda que haja algumas interrupções na série, consideramos bastante expressivo o acervo. No arquivo do Pilar, o resultado final do mapeamento arrolou 389 livros e 4.157 avulsos, constituídos por Processos Matrimoniais. Após o preenchimento das fichas, passou-se à indexação dos dados, contemplando os campos indicados. Para uma amostragem quantitativa da tipologia documental do arquivo paroquial, apresentamos os dados que definem o acervo (em livros) e/ou documentação avulsa (pastas), datas limites e seu volume em valores absolutos. A diversidade e amplidão da documentação do arquivo paroquial de São João del-Rei nos acenam para inúmeras questões temáticas. Naturalmente, não pretendemos enveredar nas discussões historiográficas que envolvem muito da documentação aqui arrolada, mas apenas apontamos, por hora, à guisa de exemplo, alguns tipos de documentos e seu conteúdo, buscando demonstrar como este acervo poderá auxiliar nas pesquisas históricas. Para além do entendimento desses documentos como fonte exclusiva de instrumento de controle do estado pontifical ou dos braços das autoridades eclesiásticas, eles podem ser lidos como expressão das vivências e sentimentos da gente mineira. Tomados diacronicamente, é possível recuperar as transformações do universo do povo mineiro no que diz respeito às relações escravistas, ao espírito gregário frente às doenças, à morte, à religião, às devoções; formas de alianças e compadrio social (as ARQUIVO PAROQUIAL DO PILAR TIPOLOGIA DOCUMENTAL ATAS BATIZADOS BATIZADOS E CASAMENT0S BATIZADOS, CASAMENTOS E ÓBITOS BATIZADOS (CONFIRMAÇÃO) BATIZADOS E ÓBITOS CADERNETA BANCÁRIA CASAMENTOS CRISMAS DOCUMENTOS DIVERSOS (ÓBITOS, TESTAMENTOS, CASAMENTOS) ENTRADA DE IRMÃO (IRMANDADE DO SANTÍSSIMO) FREQÜÊNCIA 1736 – 1988 1940 – 1960 1782-1995 1816-1860 1827-1979 1899-1989 1907-1986 1927-1966 1892-1973 1926 1940-1948 1786-1888 1928 1780-1977 35 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 práticas de apadrinhamento ligadas ao assistencialismo para com as minorias sociais bem como sua atuação junto aos desfavorecidos, enjeitados ou abandonados). Cobrindo uma expressiva série documental (ainda que haja interrupções), a documentação paroquial pode contribuir para responder às perguntas sobre as complexas relações sociais. Os registros contêm informações que, se bem trabalhadas, podem elucidar o universo que vai dos cativos aos homens livres das Minas Gerais. Assim, temos um representativo volume de “Livros de Batizados”, que podem ilustrar, pela sua natureza e complexidade, uma seara fértil e prometedora no campo das pesquisas de história cultural. A produção historiográfica sobre o período imperial, abordando as múltiplas facetas das relações escravistas, é tema de maior relevância para se compreender o caráter dessa sociedade. Nessa perspectiva, nos “Livros de Batizados”, encontramos data do evento, nome do batizando, seu sexo, nome da mãe e do pai, a cor, procedência de ambos, nome dos padrinhos, a respectiva situação jurídica (explícita quando se trata de forro ou escravo) e, se cativo, o nome do seu proprietário. Há os livros de “Índices” com a listagem dos paroquianos e seus respectivos registros de batismo. Uma temática instigante é sobre o Recolhimento dos Expostos, crianças órfãs e/ou abandonadas que ficavam sob os cuidados da Santa Casa. Há inúmeros registros nos livros de batismo e óbitos, que podem ser cruzados com a documentação da Câmara e os livros de “Recolhimento das Expostas” do acervo da Santa Casa de Misericórdia. Essas informações nem sempre estão em todos os registros, mas há uma expressiva predominância dos dados, favorecendo o tratamento quantitativo. As informações do “Livro de Óbitos” também são estimulantes, pois identificam por nome, idade, estado civil, naturalidade, falecimento com “causa mortis” e local do sepulcro. Também dentro desse espírito, temos o assento de nascimentos e falecimentos no Hospital N. Sra. das Mercês. Há também parte da documentação referente às Pastorais, ainda que em pequeno número, instruindo sobre o comportamento e procedimento do clero e indicando as obrigações da comunidade cristã. Interessante ainda, neste acervo, é a parte que se refere aos Tombos, onde se registra a vida paroquial. Tratando praticamente do século XX, essa documentação, ainda que pouco volumosa, é expressiva por revelar a política e a prática eclesiásticas na comunidade. Repletos de uma boa coleção de impressos, nos “Livros de Tombo”, encontramos relatos vicejantes sobre a política pastoral. Nesses escritos há notícias que vão das festividades à organização administrativa da paróquia, entre outras informações. É certamente para a história da igreja e da religião que esta documentação em muito vem contribuir. Ao cobrirem uma significativa série ao longo do tempo, esses livros paroquiais são admiráveis e ilustrativos quanto as práticas adotadas ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX. Toda essa massa documental acena para investigações de natureza social, cultural, econômica. Assim, a situação de legitimidade ou naturalidade das crianças, sexo, idade, são exemplos de aspectos que imprimem padrões demográficos da massa cativa da paróquia, possibilitando-se ainda acompanhar uma extensão temporal razoável. Pode-se também reconstruir a taxa da masculinidade existente, o índice de legitimidade das crianças cativas (decorrentes da freqüência de casamentos legais entre escravos), índice de africanidade e etnicidade, tamanho relativo de plantéis, teia de compadrio, relação de parentesco, percentuais de população livre e cativa na região, faixa etária, distribuição de plantéis, variação da situação jurídica, enfim, uma gama de temas que povoam as fontes paroquiais. Recentemente, Carlo Ginzburg atentou para as inúmeras possibilidades abertas ao historiador pela utilização onomástica, através da qual se pode “remontar”, pelo cruzamento de inúmeras fontes, as estratégias individuais dentro do cenário escravista.1 Curiosos e instigantes sãos os processos matrimonias. Com uma série bastante significativa para os séculos XIX e XX, os processos relatam os trâmites a que deve se submeter o casal junto ao Juízo Eclesiástico, para receber autorização visando ao casamento religioso. Aproximando-se sensivelmente da vida dos homens e mulheres comuns, esse tipo de fonte favorece um encontro com as formas de ver e interpretar o mundo desta sociedade: os comportamento, valores e seus significados. Desse acervo, podemos rastrear a vida cotidiana da região, especialmente dos imigrantes portugueses e italianos, que são em grande número nos processos do século XIX. O processo é montado a partir de uma petição ao vigário. Para tanto, o pároco procede à investigação sobre o batismo, registrando na justificação, quando não houver a certidão do sacramento, o local, filiação, data e padrinhos do batismo. Na ausência da documentação ou para averiguar as informações, o padre intima testemunhas para, sob juramento pelos Santos Evangelhos, declarar que compromete-se a “dizer a verdade do que soubesse e lhe fosse perguntado”. Geralmente na residência do reverendo ministro, faz-se o interrogatório em que se solicita às testemunhas informações sobre os nubentes, como a garantia de professarem a religião católica e não terem contraído matrimônio anteriormente. Nos autos há o registro dos suplicantes bem como das testemunhas no que se refere ao nome, idade, profissão, religião, estado civil, cor, naturalidade, filiação, dados bastantes sugestivos para estabelecer as teias de solidariedade ou cumplicidade. Há também o exame dos nubentes, em cinco momentos. O primeiro é o juramento, em que reconhecem estar prevenidos “da santidade do juramento e da gravidade das penas contra os perjuros”. O segundo é o interrogatório propriamente dito, em que se anota o nome do declarante, do pai, da mãe, lugar de nascimento, data de nascimento, data de batismo, lugar de batismo, se apresentou certidão, profissão, religião, documento de identidade e, enfim, se foi crismado. Se não houver certidão e na impossibilidade de encontrar o assentamento, o pároco deve fazer a justificação do batismo, pela fórmula que se encontra na cúria. 1 36 Ginzburg, Carlo. A micro–história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p. 169. Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 O terceiro momento é o sobre os impedimentos.2 Averigua-se se houve contração de matrimônio anterior, e, em caso afirmativo, com quem; se há filhos da união, e se foi desfeito o vínculo (por nulidade ou viuvez). Neste caso deve apresentar a certidão de óbito. Declara-se também a paróquia em que está domiciliado, rua e número da residência, o período em que reside nesta residência e se residiu pelo menos seis meses depois da puberdade (14 anos para o noivo e 12 para a noiva). No caso de residências fora da diocese por mais de seis meses, o pároco pede às respectivas cúrias certidão de estado livre e, se não houver tempo, faça a justificação, exija o juramento supletório do suplicante, emita a sentença e envie ao ordinário. Verifica-se, através de “indagação prudente do pároco”, se há impedimentos de consangüinidade (DC 1076), cognação espiritual (DC 768,1078), cognação por adoção legal (DC 1059,1080). Deve ser abordado se negou sua fé, ainda que não tenha adotado seita acatólica, se pertence a sociedade condenada pela Igreja, se aderiu a seita ateísta, se é público pecador ou está incurso em censura. Essa indagação deve ser feita aos nubentes, da noiva sobre o noivo e vice-versa. Ainda assim, se professam religião mista (DC 1066), se há disparidade de culto (DC 1070), de idade (DC 1067), de voto (DC 1059,1077) e de pública honestidade (DC 1078). O quarto momento é sobre a liberdade de consentimento. Os nubentes devem declarar se aceitam o matrimônio livre e espontaneamente, se estão compelidos direta e indiretamente por alguma pessoa. Essa informação deve “ser feita de modo especial quando se tratar de casamento de conveniência”, para que se evitem as penalidades da lei. Para os menores de vinte e um anos, caso não haja consentimento dos pais, o pároco deve dissuadir os noivos.3 O último momento versa sobre o conhecimento da doutrina e as regras de conduta do católico. O padre deve examinar os nubentes para saber se conhecem suficientemente a doutrina cristã em seus preceitos e sobre a necessidade e eficácia do sacramentos. Deve reafirmar, sobretudo, a santidade e indissolubilidade do matrimônio, bem como as várias obrigações do estado matrimonial, inclusive asseverando que sua finalidade é a procriação. Os noivos são instruídos sobre os deveres dos católicos: nos dia santificados ouvir missa inteira, abster-se dos trabalhos servis (DC 1248), observar as leis do jejum e abstinência (DC 1245), batizar os filhos quanto antes (DC 770), receber o sacramento da Confirmação (DC787), fazer Comunhão Pascoal todos os anos (DC 859), confessar-se ao menos uma vez ao ano (DC 906), receber oportunamente o Viático e a Extrema-unção (DC 865), fundar a família pelo sacramento do Matrimônio (DC 1012), dar aos filhos educação religiosa e moral (DC 1372,1113), cooperar com o culto divino e fins próprios da Igreja (DC 1496), trabalhar na Ação Católica e professar abertamente a fé quando as circunstâncias o exigirem, para “que da sua atitude não possa com razão inferir que a tenha implicitamente negado”(DC 1325). Ao final, o pároco atesta se considerou suficiente a instrução dos noivos. Os autos são encaminhados para o cartório com a sentença do Reverendo, acompanhados das despesas da Igreja: chancelaria do ministro, inquirições, juramento do justificante, sentença, provisão; do escrivão: autuação, intimações, testemunhas, termo de juramento, guia e conclusões, publicação, intimação ao justificante, provisão. Ao final, proclama-se a autorização para o casamento. Sobre os processos matrimoniais, sua riqueza ocorre seguramente dentro da história da cultura. Com inúmeros processos referentes aos imigrantes, há indícios das relações de solidariedade estabelecidas no seio dessa comunidade. Inquiridos (normalmente cerca de quatro testemunhas) sobre a idoneidade dos suplicantes (noivos), há um dialogismo cultural entremeado nos depoimentos, revelando na dupla face do processo a dinâmica do contato interétnico. Sobre a prática de externalização da crença, podemos acenar para essas fontes à medida em que remontam a tais práticas, como aquelas evidenciadas nas perguntas impingidas às testemunhas durante as inquirições do processo matrimonial. Todas elas permeadas por obrigatoriedades como condição para reconhecimento do fiel. Ainda assim, podemos analisar as visões sobre o casamento, bem como as motivações para a contração da união. Permitem também análises quantitativas a partir dos dados das idades dos nubentes, presenças de casamento consangüíneo, condição social etc. Pode-se aferir o valor social do casamento e as estratégias para burlar as regras sociais impositivas. Manancial da vida e cotidiano familiares, esses processos têm muito a dizer sobre três séculos de história mineira. Certamente há muitas ilações possíveis dentro desse rico e expressivo acervo. Nosso desejo é de que o resultado deste projeto, ainda que parcial neste momento, favoreça aos pesquisadores como referência para sua investigação. Com séries bastante completas, o Arquivo Paroquial de Nossa Senhora do Pilar muito pode contribuir para se recuperar a vida mineira. Além de toda dinâmica religiosa da Vila, registrada nos livros (1729-1997), das cópias de correspondência oficial nos livros de Tombo, encontramos valiosas informações da vida cotidiana. Enfim, é um fundo documental de grande importância para as investigações de cunho cultural, religioso, administrativo. O cruzamento dessas fontes pode transformá-las em instrumentos importantes para o mapeamento das propriedades e da vida social e econômica da região. 2 Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, os impedimentos canônicos eram divididos em dois tipos: os impedimentos (impediam a realização do matrimônio) e os dirimentes. (além de impedirem a celebração do casamento, invalidam os já realizados anteriormente). Cf. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1853), Tit. LXVII, 285 , APUD: BRÜGGER, Sílvia Maria J. Valores e Vivências Matrimoniais; o triunfo do discurso amoroso (Bispado do Rio de Janeiro, 1750-1888). Dissertação de Mestrado em História. Niterói, UFF,1995, p. 91. 3 Na verdade, havia uma lei portuguesa de 1775, confirmada pelo Código Criminal do Império, de 1831, que considerava ilegal a celebração de casamentos de menores, sem autorização paterna. BRÜGGER, op. cit., p. 82. Além das obras referidas nas notas anteriores, devem ser indicadas as duas seguintes, pois sua leitura contribuiu para a elaboração deste artigo: SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família. São Paulo: Marco Zero/Secretaria de Estado da Cultura, 1989. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). São Paulo: Ed. Nacional, 1978. 37 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Naturalmente, apenas acenamos para alguns temas que têm florescido no debate acadêmico. É evidente que novos olhares e objetos apontarão para a variedade, excelência e incontestável fertilidade desses acervos. Esperamos, com esse inventário de fontes, estar contribuindo para facilitar o acesso aos nossos bens históricos e culturais, valorizando e ampliando a possibilidade de novas investidas no debate histórico para aqueles que aceitarem esse risco e desafio. 38 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 IMAGENS DAS CIDADES; oralidade, memória e história SILVA FILHO, Osmar Luiz. Imagens das cidades; oralidade, memória e história. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 51-68. Osmar Luiz da Silva Filho Professor do Depto. de Ciências Sociais da UFPA Doutorando em História pela UFPE http://www.ufjf.br/~clionet/rehb RESUMO: O diálogo do historiador com as fontes orais fornece ao seu trabalho um posicionamento diante do estatuto do conhecimento histórico. Este conhecimento incorpora indeterminações, visto que a oralidade elege as dimensões do imaginário e das representações, dimensões estas, solenes, para a compreensão de uma realidade. A construção da memória pela sua formação, manutenção e elaboração das identidades individuais e coletivas, veiculada pela oralidade, expressa a multifacetada experiência humana no tempo, a história. Este artigo apresenta estas questões, estabelecendo relações e mediações com outros tipos de registro do real. Endereço para correspondência: Revista Eletrônica de História do Brasil Arquivo Histórico da UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora - MG Prédio do CDDC - Campus Universitário Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330 ABSTRACT: The historian's dialogue with the oral sources supplies to its work um positioning, before the statute of the historical knowledge. This knowledge incorporates indeterminations, because the vocally chooses the dimensions of the imaginary and of the representations, dimensions these, solemn, for the understanding of a reality. The construction of the memory, for its formation, maintenance and elaboration of the individual identities and the collective ones, transmitted by the vocally, expressed the multiform human experience in the time, the history. This article presents these subjects, establishing relationships and mediations with other types of registration of the real. PALAVRAS-CHAVE: Oralidade, memória e identidade. http://www.ufjf.br/~clionet/rehb E-mail: [email protected] Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342 INTRODUÇÃO Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo e em sua estrutura física. Em “O Mundo como Vontade e Representação”, Arthur Schopenhauer concebe a história da seguinte forma: A história nos apresenta a humanidade, como a vista do alto duma montanha nos apresenta a natureza; enxergamos muito duma só vez distâncias extensas, grandes massas; nada porém adquire nitidez na totalidade de sua essência propriamente. Em contraste, a apresentação da vida do indivíduo nos revela o homem do modo pelo qual conhecemos a natureza, ao passear entre suas árvores, plantas, rochas e cursos d’água.1 1 SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 66. 39 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Colhendo essa imagem notável do genial pensador, vamos apresentar ao leitor uma história possível da cidade de Cajazeiras, no alto Sertão Paraibano, na década de 20 de nosso século, percorrendo a seguinte trajetória: - uma visualização da totalidade histórica na transição do “oitocentos” para o “novecentos”, por meio de uma apresentação do Processo Civilizador, a Modernidade e suas feições nos novos espaços e tempos construídos, apresentando a cidade como o cenário maior dessa Modernidade; - em seguida, buscaremos uma aproximação com o nosso objeto de pesquisa - o fenômeno urbano nessa cidade e sua fisionomia (materialidade e imagética ) - no intuito de formular uma história da cidade. Nossa intenção é estabelecer uma investigação possível sobre a história, na busca de suas indeterminações, dos seus fragmentos, a partir do prisma teórico estabelecido por Walter Benjamin, explicitado, mais particularmente, em suas teses sobre o conceito de história. As noções de história, cidade, tempo, memória, representação, imaginário, vida cotidiana, cultura e modernidade constituirão os nossos aportes teóricos. O trabalho com as fontes orais, com a memória oral, por meio do seu confronto, como fonte potencial para a pesquisa histórica, diante das demais fontes, como também, o trabalho teórico e metodológico que vamos tentar estabelecer com as mesmas, com o cuidado de não torná-las um “dado oral”, uma realidade por si mesma, será o nosso principal foco de interesse para análise e compreensão. posto pela confluência de um ideário que buscava foros de autonomia e riqueza intelectual diante da civilização ocidental, que colocava a França como o centro dos processos sociais, econômicos e psíquicos das mudanças que as sociedades européias estavam conhecendo rumo a um novo mundo.3 No plano individual e social, o comportamento das pessoas em sociedade, traduzido por meio das regras do decoro corporal, da postura, do gesto, das expressões faciais, dos sons naturais, dos receios, do “mal-estar” ou do “bem-estar”, diante de uma diferente estrutura de emoções, movia-se, na modificação de novos padrões, de uma forma lenta, porém decisiva. Percorrendo a trilha dessas transformações Igor Stravinsky capta o novo momento e choca seus ouvintes exaltando em suas melodias o tom de ruptura com a tradição que os primeiros anos do século XX apresentavam - inovando na linguagem harmônica - pela introdução de um ritmo sincopado e infinito, celebrando em suas partituras um novo tempo. Em 1913, pela composição de “Le Sacre du Printemps”,4 Stravinsky incorporava a encenação dos bailados russos de Diaghilev, reunindo os ritmos mais diversos e o público mais adverso, chocados que foram pela “rudeza” de uma escrita orquestral, que nada mais era do que uma obra de criação, que detinha o nobre esforço de elaborar em âmbito estético as profundas transformações pelas quais passavam as sociedades européias, gestadas pelo Processo Civilizador, que conceituamos por Modernidade. A pujança dessa nova realidade em construção e depuração desnudava sua face estética através do ritmo crescente e excepcional de uma Revolução Industrial que estimulava desequilíbrios sociais de proporções gigantescas, configurando nas cidades um cenário desregulador do tradicional e regulador do moderno, o qual veio Microservice & Movieplay, Brasil, 1989. Disco Sonoro, 12 min. 3 Esse conjunto de transformações que processou a civilização ocidental desde a transição da sociedade feudal para a sociedade aristocrática e a sociedade burguesa, projeto histórico (de classe; sancionado, inicialmente, via Revoluções Burguesas) e civilizador, foi estudado pela obra clássica de Norbert Elias. Em O Processo Civilizador, Norbert Elias persegue o seguinte problema de pesquisa: “ Como ocorreu realmente essa mudança, esse processo “civilizador” do Ocidente? Em que consistiu? E quais foram suas causas ou forças motivadoras?” O autor desvenda o problema de investigação através da operação de um modelo conceitual ( o “conceito” como essência do real), colocando para fins de análise a relação do conceito de “civilização” e suas formas variantes anteriores (“courtoisie”, “civilité”) com os processos sociais específicos, onde encontramos a relação dos indivíduos com as instituições. A partir daí o autor vai poder examinar o problema da interrelação entre as pessoas, atentando para as mudanças sociais nas respectivas estruturas sociais historicamente configuradas. Pela análise da história dos costumes (a maneira como as pessoas se olhavam, as formas pelas quais se alimentavam, a maneira pela qual modelavam a voz nos espaços privados e públicos, como a Corte, etc.), da formação do Estado e da Civilização, ele coloca em questão a nossa estrutura mental. Ver NORBERT, Elias. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, 2 v. 4 STRAVINSKY, Igor. The Rite of Spring - Le Sacre du printemps. London: The Decca Record Company Limited, 1995. Disco Sonoro, 34 min. NOVOS TEMPOS, NOVOS MUNDOS Os primeiros anos do nosso século foram marcados por um conjunto de fatores que anunciaram um tom desiderativo de novos tempos. Na Europa, o caldeirão político da segunda metade do século XIX tinha sido dissolvido, embora, na Alemanha, o problema cultural perpassasse a vida dessa sociedade, desenhando pela ação de seus intelectuais e artistas as saídas para os impasses da formação de um Estado Nacional e da definição de uma identidade pelas perguntas: quem somos nós? que é a Alemanha? O drama musical, expresso na obra de Richard Wagner, dá o tom desse momento histórico, pela introdução de uma dramaticidade acentuada na melodia musical, rompendo com a modulação romântica de muitas composições do séc. XIX.2 O desvendamento do drama barroco alemão estava 2 Em Tannhäuser temos a expressão estética dos impasses políticos e culturais da Alemanha, através de uma melodia que passa do recitativo a ária por meio de algumas modulações, com o uso acentuado da tuba, instrumento que imprime uma sonoridade forte, contundente, anunciadora de uma saga, de um tom épico. WAGNER, Richard. The Best of Richard Wagner. São Paulo: 40 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 as declarações destes demonstram não só que as reformas de Paris haviam sido bem compreendidas, mas também que as reformas subsequentes em Viena, Antuérpia, Lisboa, Bruxelas e Buenos Aires eram do conhecimento dos engenheiros brasileiros, encarregados das reformas no Rio. 7 afetar o modo de vida dos homens, interferindo na construção da identidade cultural dos grupos sociais que, até então, não estavam incorporados ao ritmo dos maquinismos e da velocidade. As sanções políticas para a nova ordem moderna na transição do “oitocentos” para o “novecentos” advêm das democracias liberais, postas em cheque pela I Grande Guerra Mundial (1914-1919) e pela Revolução Russa de 1917, colocando em evidência o desafio e os desejos dos novos tempos.5 Essa nova ordem moderna, no entanto, foi responsável por um aspecto que consideramos de fundamental importância: o deslocamento da noção de espaço e tempo. Tanto na Europa quanto na América, as redefinições em torno do tempo, no que dizem respeito às novidades, implantação e substituição dos “modernismos”, impuseram a disciplinarização do mesmo pela presença assustadora e fascinante dos novos emblemas da modernidade (prédios monumentais, instauração dos novos maquinismos, dos relógios em lugares públicos, ferrovias, como também, a apresentação do mecanismo estético produtor de imagens, o cinema), e, igualmente, pelo processamento da “modernização”, a dinâmica do processo civilizador. Desde então, houve o estabelecimento de uma convivência de tempos múltiplos, influenciando o ritmo da vida material e simbólica dos homens nas grandes e pequenas cidades; no campo;6 nas cidades do além-Atlântico; enfim, uma reorientação dos diferentes espaços sociais que se incorporavam a esse novo mundo, territórios social e historicamente construídos. O Brasil, no final do século XIX e o início do século XX, conheceu essas mudanças por meio de reordenamentos dos espaços urbanos em centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, João Pessoa, Fortaleza, Manaus e outras. Dentro desse processo, a feição das cidades, que eram marcadas por uma arquitetura pombalina casario conjugado, com uma porta e duas janelas, com telhado em dois planos - recebeu a influência do neo-clássico europeu, como também, do processo cultural mais amplo que teve conseqüências no modo de pensar e de agir dos indivíduos. Se esse processo não é tão intenso como o da Europa, não podemos deixar de considerá-lo para análise e compreensão. Quando em 1915 Villa Lobos apresentava o primeiro concerto de suas obras, iniciando o modernismo musical brasileiro, a cidade do Rio de Janeiro já conhecia a sua remodelação urbana através das reformas de Pereira Passos (1903-1906). Segundo Jeffrey D. Needell, documentos dos engenheiros e publicações da época confirmam a influência de planejadores europeus na cidade do Rio, visto que Ao lado do Rio de Janeiro, cidades como Recife, Fortaleza e João Pessoa ganhavam ares de renovação. Essas cidades almejavam atingir a civilização por meio de mudanças concretas, de acordo com os atualizados padrões europeus. Em Recife, desde o final do século XIX, os pólos do velho e do novo se enfrentavam pelo reordenamento da cidade, através da instauração de um discurso em torno do moderno, elaborado por suas elites, a partir de um quadro de referência a uma ordem. Nesse sentido, segundo Antônio Paulo Rezende, o discurso da modernização contagiava o poder público: “Na mensagem encaminhada pelo governador pernambucano Manoel Borba em 6/3/1919 existem vários desses registros que anunciaram a necessidade e o desejo de modernização.” 8 Em Fortaleza, as disposições contidas nos códigos de posturas municipais, que se seguiram ao de 1865 exigiam o arejamento e a limpeza de armazéns de couros e peixes, gêneros que infectavam facilmente o ar. Segundo Sebastião Rogério Ponte, As disposições contidas nos códigos de posturas municipais, que se seguiram, são numerosas e demonstram ampla vontade de esquadrinhamento urbano. Elas intentavam uma fiscalização pormenorizada de ruas, casas, edificações, produtos, gêneros alimentícios, oficinas etc. 9 Por sua vez, a Cidade da Parahyba do Norte (João Pessoa) absorvia, processualmente, esse clima de mudanças. Na segunda metade do século XIX, a cidade importava produtos raros e exóticos, incorporando gostos e hábitos de consumo. No triênio 1853-1854; 1854-1855; 1855-1856, dentre as mercadorias importadas, as que representavam maiores valores constam do seguinte resumo, conforme TABELA 01. 10 7 NEEDELL, J. D. Belle Époque Tropical: Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 55. 8 REZENDE, Antônio Paulo de Morais. (Des)Encantos Modernos: histórias da cidade do Recife na década de vinte. Tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de História, área de História Social, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação da Profª. Drª. Maria de Lourdes Janotti, São Paulo, 1992, p. 19. 9 PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque; Reformas Urbanas e Controle Social (1860-1930). Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1993, p. 81. 10 RELATÓRIO DOS PRESIDENTES DE PROVÍNCIA. Exposição feita por Antônio Coêlho de Sá e Albuquerque na qualidade de Presidente da Província da Parahyba do Norte no ato de passar 5 EKSTEINS, Modris. A Sagração da Primavera. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. Em “O Campo e a Cidade - na história e na literatura”, Raymond Williams elabora uma sólida discussão sobre a relação campo-cidade: a ausência de uma relação de identidade; história e literatura em perspectiva da Velha Inglaterra; a perspectiva do “bucólico” na transição do mundo feudal para o burguês; na agudização do conflito social campo-cidade a construção de uma “ética do melhoramento” etc. WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 6 41 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Todavia a precária salubridade pública na Cidade da Parahyba do Norte, na segunda metade do século XIX, com suas epidemias de “bexiga”, “febre amarela” e “ cholera morbus”, era reveladora dos limites dessa modernização, limitando-se as iniciativas públicas a construir alguns poucos calçamentos, como os das ruas do Sanhauá e do Quartel da Polícia, que eram aquelas que davam entrada aos gêneros da Província. Em 1850, duas obras públicas de “summa utilidade” se deram iniciadas nesta cidade, sendo uma a Cadeia Pública, e a outra o Theatro, visto que a casa que servia como cadeia era de 1700. Enchadas Farinha de trigo Ferragens diversas Ferro em trem de cosinha Folhas em flandres em obras Genebra Lenços de diversos tecidos Linhas diversas Lonas Louça diversa Luvas Madapolão Manteiga Manufaturas e tecidos diversos Meias Metim Objetos diversos Panno de algodão e de lan Papel Pentes Polvora Quinquilharias diversas Rendas Riscados diversos Roupa feita Sarjas Setins e seus pertences Setins Taboado diverso Velas Vidros diversos Vinagre Vinhos diversos Etc TABELA 01 Azeite de Oliveira Bacalháo Baêtas e Baetões Banha ou unto de porco. Bebidas espirituosas Bezerros preparados e envernizados Bolachas Brins diversos Calçados Carnes seccas e salgadas Casemiras e cassinêtas Cassas diversas Cera em bruto e em velas Cerveja Chá..... Chales de diversos tecidos.... Chapeos e chapeos de sol Chitas Cobre em folha e em chapa Cortes de vestidos de diversos tecidos Drogas diversas 1853-1854 $ 49:560$000 $ $ 2:275$374 5:220$000 1854-1855 $ 53:250$000 $ $ 2:130$150 5:542$500 1855-1856 1:504$467 88:143$000 5:738$012 1:126$400 $ 3:871$600 $ 19:318$380 $ 34:610$700 $ $ $ $ 4:776$250 15:201$694 $ 226:086$616 $ $ $ 23:239$154 $ 25:413$880 $ $ 3:065$800 $ 5:844$720 13: 87$030 $ 185:158$600 $ $ 2:465$960 16:321$040 1:306$080 11:981$200 16:388$433 11:261$052 $ 2:780$920 6:347$900 14:639$932 24:960$070 113:573$874 1:119$560 17:481$250 2:574$678 2:872$368 5:499$874 a administração da Província ao Segundo Vice-Presidente, Flavio Clementino da Silva Freire em 29 de Abril de 1853. I ROLO de microfilme. Campus I, UFPB – CCHLA, NDIHR (Núcleo de Documentação e Informação em História Regional), Bloco da Central de Aulas. 42 $ 29:744$000 9:172$956 $ 1:309$000 $ 30:084$000 7:299$620 $ $ 7:006$720 66:165$020 1:631$630 2:288$320 $ $ 3:180$380 $ $ 2:850$000 $ 31:266$754 9:113$280 103:102$867 $ 1:039$071 $ $ 3:050$000 $ 40:794$490 7:017$600 86:903$385 5:277$090 1:270$300 3:247$956 2:110$000 15:555$508 4:031$000 101:403$558 27:463$588 30:687$250 $ $ $ 13:280$960 5:794$390 $ 2:800$000 4:895$000 $ 6:805$100 $ $ 1:720$000 $ 1:430$000 $ 2:832$000 1:200$000 19:534$500 etc $ $ $ 26:642$560 5:714$600 $ 2:104$180 1:865$300 $ 19:533$810 $ $ $ $ 1:008$000 $ $ 2:924$400 27:780$680 etc. 2:375$820 2:100$000 2:174$135 101:076$419 4:523$970 1:158$910 1:559$900 10:230$231 9:091$500 $ 4:730$000 7:039$605 $ 4:419$270 $ 4:336$500 1:343$600 3:204$800 28:930$400 etc. Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 construcção de uma estrada, que principiando n’esta Capital vá terminar, por ora, na Cidade d’Arêa, tendo de futuro de continuaar pelo interior de toda a Provincia, e seguir pelo interior da do Ceará, será um melhoramento da mais alta importancia, da mais manifesta utilidade publica.” 12 (Negritos nossos) Em 1853, o Comendador Frederico de Almeida e Albuquerque - 1º. Vice-Presidente da Província - relatava o estado de pacificação da mesma, de estabilidade da ordem pública, ponto de entrada de uma ordem social para a civilização. ... a Provincia se acha em paz; que a ordem publica nenhuma alteração há soffrido. Os Parahybanos, como todos os Brazileiros, sabem por experiencia, que a paz é a primeira condição da felicidade social: o conhecimento d’esta verdade tão importante, sendo um grande passo dado na carreira da civilisação, nos garante a consolidação da ordem publica. 11 (Negrito nosso.) Por esse tempo, as cidades do Alto Sertão Paraibano apresentavam outra visualização. Durante a maior parte do tempo, na transição do “oitocentos” para o “novecentos”, diversos núcleos urbanos da Província da Parahyba do Norte foram pequenos povoados, obtendo sucessivamente os títulos de “vila” e “cidade”. Onde buscar essas visualizações? Entendemos que as fontes orais nos fornecem um vasto campo de trabalho. Através dessas vemos desenhado o quadro mental de uma época, o imaginário social de um tempo histórico, o quadro de constituição da identidade dos habitantes, a memória dos grupos - a memória social - como também, uma memória histórica, às vezes cristalizada, por vezes em constante reelaboração. Portanto, vamos, a seguir, tentar dominar o “locus” do fato urbano, detectar as reminiscências de materialidade da cidade, buscar a aura urbana, contando com alguns pontos de apoio, aspectos, evidências, “mônadas” (método benjaminano) que nos permitam imaginar o que a cidade foi nas décadas de vinte e trinta, recorrendo, sobretudo, às fontes orais. Acima de tudo, buscaremos respostas para o seguinte problema de pesquisa: Sabedores de que as cidades estão sempre em movimento, incorporando um ritmo, uma determinada velocidade nas mudanças, como podemos situar a gênese e o grau de urbanização da cidade de Cajazeiras, cidade do alto Sertão Paraibano? Quais as imagens definidoras da fisionomia dessa cidade em seu movimento de construção da urbanização? Estariam essas imagens associadas ao tradicional ou, ao moderno? Essas imagens trariam à tona a tensão entre esses campos? Além dos fatores econômicos (criatório de gado e produção algodoeira) que forneceram condições de investimento na cidade, quais as diversas evidências, os diversos fragmentos, os emblemas, as representações, que compuseram a feição sócio-cultural do fenômeno urbano nesse núcleo? Em que medida se instalaram em Cajazeiras os mitos fundadores da modernidade (bem-estar, progresso, modernismos) modificadores da relação entre o real e o imaginário no espaço de vivência dos habitantes? Esses mitos foram criados? Se foram, chegariam através de algumas “formas” culturais? Enfim, qual a fisionomia sócio-cultural do fato urbano da cidade de Cajazeiras nas décadas de vinte e trinta e como ocorreu a configuração de suas imagens? Ora, os ecos da Praieira em Pernambuco já não eram mais ouvidos na Paraíba, fato que fez com que os governantes voltassem sua atenção para os melhoramentos de vias de comunicação terrestre e por mar, objetivando a prosperidade da Província. A utilidade dos melhoramentos das vias de comunicação e transporte, sua influencia real e positiva na prosperidade das Nações, é no século em que vivemos, um axioma. Nesta Provincia ainda se não incetarão os melhoramentos d’esta ordem, os quaes de certo se não poderão promover, em quanto se não encorporarem companhias, que emprehendão a construcção de estradas: nem as rendas publicas podem ministrar os avultados Capitaes necessarios para se levarem a effeito emprezas tão dispendiosas; e quando assim não fosse, não conviria que o Governo tomasse a seu cargo taes melhoramentos, visto que a experiencia nos ensina que nas obras e trabalhos dirigidos directamente pelos Governos encontrão-se ordinariamente dous poderosos inimigos a negligencia, e o peculato, que tudo transtormão. Si por hora não é rasoavel que aspiremos ás comunicações e transportes n’esta Provincia por meio de carros a vapor, ao menos em quanto nas Provincias mais ricas e populosas se não mostrar practicamente a possibilidade e exequibilidade de tão importantes melhoramentos; não é para mim duvidoso que podemos emprehender algumas estradas com trilhos de ferro, sendo os carros conduzidos por animaes, o que tornará as communicações e transportes muito mais rapidos e menos dispendiosos do que as que temos actualmente. A incorporação pois de uma companhia, que emprehenda a 11 Relatórios dos Presidentes de Província da Parahyba do Norte. Exposição feita pelo VicePresidente da Província da Parahyba, o Comendador Frederico de Almeida e Albuquerque no ato de passar a administração da Província ao Presidente Capistrano Bandeira de Mello, em 28 de outubro de 1853, p 2. I rolo de microfilme. Campus I, UFPB - CCHLA. NDIHR (Núcleo de Documentação e Informação em História Regional) 12 43 Ibidem, p. 07. Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Ele tinha uma maquininha de ferro onde hoje é a casa do Dr. Deusdedit. Ali era o vapor velho, que descaroçava algodão. Eu imprensei algodão muito, no vapor, numa prensa.(...) Era muita gente que trabaiava aqui, não é. Ajuntei muito algodão em casca, com costa de burro, pro motor também. (046-055, A)2 EM BUSCA DO “TEMPO PERDIDO”: A VISUALIZAÇÃO FORNECIDA PELO TRABALHO COM AS FONTES ORAIS A década de vinte em Cajazeiras foi marcada por modificações significativas em sua vida material e cultural. Desde sua criação, na segunda metade do século XIX, em torno de um colégio de instrução primária, fundada pelo Padre Inácio Rolim,13 e do crescimento de seu casario ,propiciado pela instauração das primeiras feiras, o núcleo urbano de Cajazeiras obteve um ritmo de desenvolvimento considerável relacionando-se com áreas circunvizinhas como Souza, Pombal, algumas cidades do Ceará e do Rio Grande do Norte ,estabelecendo os primeiros vínculos de comércio. Entretanto o estímulo de desenvolvimento para essa área urbana resultou do cultivo e comércio do algodão e do investimento dos recursos daí provenientes, melhorando as condições materiais da cidade. Esse “fator de crescimento” está presente não só em registros escritos, mas enfatizado pelo depoimento de habitantes que viveram os anos “vinte” e “trinta” nessa cidade, expressando por meio de suas experiências individuais uma visão particular que nos fornece um tom de aceitação em torno desse fato, um tom de generalização. O conhecimento do trabalho, exigido pelo plantio do algodão, que abrangia a limpeza do campo para o plantio, o cultivo, e a coleta do mesmo, com o extensivo envio do produto à bolandeira, imprimia a marca do cotidiano, acentuado pelo esforço físico no trato dessa cultura. A vida de seu Álvaro era de reclusão ao trabalho no “sítio”: “A vida era trabaiá o dia todo e outros, iam sambiar de noite.” (234, A) Sua atividade como empregado do Cel. Sabino Rolim também incluía o trato com o gado, na vacaria, uma atividade que exigia sua dedicação e abnegação: “Quem trabaia com o gado, sabe como é, não é? ... dava dois mil réis por semana, a custa da casa. Trabaiei muito aqui!” (079-085, A). Dessa forma, seu Álvaro participava da vida cotidiana14 de Cajazeiras, “trabalhando”, fato esse que é provido de significação para o depoente, visto que é reiterado várias vezes na entrevista. Através de sua inserção em um espaço definido, por meio de sua localização social, o seu agir era configurado por uma historicidade intrínseca: a de um ator social que era absorvido pelo mundo do trabalho, deslocando-se do “sítio” para sua casa, na periferia da cidade. “Eu não ia a estação. Eu não tinha tempo. Quem trabaia com o gado, sabe como é, não é?” (079, A) O contacto restrito apenas às pessoas que trabalhavam no cultivo do algodão e no trato com o gado, marcava a sua relação com os “habitantes” da cidade, pela sua “exclusão”, definindo sua identidade e marcando sua argumentação sobre o universo que o envolvia. Ele conhecia mais particularmente aqueles que desenvolviam o trabalho no plantio ,como também ,no comércio local de algodão. É sabido que o comércio desse produto obteve um rústico beneficiamento através da “descaroçadeira”, utilizada, inicialmente, pelo Cel. Joaquim Peba, quando o algodão era transportado em lombo de burro, por “tropas-de-burro”, até Mossoró e, de igual forma, para Campina Grande, onde era finalmente comercializado. - Conheceu o cel. Peba ? ORALIDADE E CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA “ O algodão era, como se diz, a flor da cidade. A flor da cidade era o algodão.” “ A vida era trabalhar o dia todo e outros, iam sambiar de noite.” “Só do recolhimento de Galdino Pires dava prá pagar o funcionalismo e a gente ainda mandava o resto para o Tesouro do Estado”. O ano de 1924 foi marcante para a vida do Sr. Álvaro Joaquim Gonçalves. Nascido em Alagoas - localidade de Pão-de-Açúcar, às margens do Rio São Francisco, no ano de 1903 - parte para Cajazeiras num momento difícil de sua história pessoal, visto que a localidade de Pedras, “do finado Delmiro Gouvêa”, onde residia por aquele tempo, sofria em decorrência da seca. A informação que chega até ao mesmo e aos seus de que estavam construindo os açudes de Boqueirão e Pilões alimenta as esperanças do grupo que, percorrendo trilhas e veredas, chegam até a cidade. Na chegada à mesma emprega-se, de imediato, com o Cel. Sabino Rolim, desistindo de trabalhar como “cassaco” na construção dos açudes. 2 As referências que aparecem logo após as falas dos entreveistados indicam a fita cassette onde foram gravadas as entrevistas, ou seja, essas letras e números – (097, A); (125-128, B) – dizem respeito aos lados A e B das fitascassete gravadas com os depoentes e, respectivamente, aos intervalos de fala capturados no display do gravador que processa o andamento do tempo da entrevista. 14 “ Que sentido tem, portanto, indagar-se qual é o sentido da vida de cada dia ? O fato de se fazer tal indagação nos fará encontrar um caminho para revelar a essência da vida cotidiana? Quando é que a vida de todo dia se torna problemática e qual o sentido que se desvenda ao problematizarse?” KOSIL, Karel. Dialética do concreto, 4. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 69. 13 PIRES, Heliodoro (Pe). Padre Mestre Inácio Rolim : um trecho da colonização do Norte brasileiro e o Padre Rolim, 2. ed., Teresina: Gráfica do Estado do Piauí, 1991, p. 43. 44 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Nessa época a flor da cidade era o algodão...Haviam muitos compradores de algodão. Havia a fábrica de Galdino Pires, que ainda hoje existe, não é a fábrica; para onde corria todo o algodão da cidade era para lá. (...) A Coletoria Estadual se chamava, na época, ‘Mesa de Renda’. Meu pai era escrivão da ‘Mesa de Renda’. (Dona Angelina Tavares, 370-381, B) - Dimais! Finado Joaquim Peba era um vei da barriga cheia. Ele era baixo. A propriedade dele era pegada com a de seu João Batista, aqui, era. Hoje é de Dr. Dulcídio. Ele morreu ficou Dr. Juca... Nunca fui a Mossoró. Ajuntava o algodão, e o caroço para descaroçar aqui, no motor.” (056-069, A) Entretanto, seu Antônio Carolino de Abreu, 102 anos, relembra de maneira pormenorizada essas viagens conduzindo animais de carga, viagens de mais de uma semana, por dentro do mato, para cidades como Mossoró e Juazeiro do Norte. Eu viajava! Dei vinte e uma viagens daqui pro Mosssoró: vinte com algodão e couro de gado e de bode, de ovelha e uma, foi com rapadura, pro Major Andrade dali da Picada (...) A base era quinze, dezesseis dias, botando arriba, duas vezes por dia, a carga de algodão, ou de couro de bode; botando de manhã, botava abaixo 11 hs ou 10; botava arriba 1 hora da tarde, botava abaixo 5 horas pra 6. E era desse jeito!15 A riqueza, daí decorrente, circulava pela cidade, estimulando a chegada de novas pessoas e o esquadrinhamento dessa através de muitas casas comerciais, com o conseqüente embelezamento da área urbana. Na esteira desse movimento, chegavam as novidades provenientes de Recife, João Pessoa e Fortaleza, e, por extensão, o anúncio de novos tempos. Além da riqueza proveniente do algodão, alguns outros fatores contribuíram para fazer chegar e circular dinheiro em Cajazeiras. Em 1921, um cronista16 relata a chegada da “Dwight P. Robinson”, firma norte-americana que veio iniciar a construção dos açudes do IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas) de Boqueirão e Pilões, próximos à cidade, trazendo, assim, um grupo de estrangeiros que vão difundir novos hábitos e gostos na mesma, organizando campeonatos de futebol, circulando com seus automóveis, tomando suas cervejas que chegavam ao porto de Fortaleza, sendo trazidas por trem até Cajazeiras. Dessa forma, ao dinheiro das safras favoráveis de algodão, somava-se o dinheiro da Inspetoria e dos americanos, trazendo ares modernos à cidade, movimentando as casas comerciais: “A Vencedora, era de Pedro Bezerra.” (Dona Angelina, 095, A) Além disso, outro elemento que movimenta a década de 20 em Cajazeiras é a chegada da ferrovia. O trem dinamiza o cotidiano da cidade, visto que é através dele que os habitantes passam a receber a influência de pessoas, de idéias, e das novidades das capitais mais próximas. Acresce a isso a opção que os cajazeirenses têm de contactar com o “celeiro da cultura”, como nos fala o cronista, a cidade de Fortaleza. A partir daí fica patente a circulação em ritmo mais veloz de mercadorias, incrementando a atividade comercial e, de igual forma, de idéias. Nesse momento jornais passam a ser produzidos em Cajazeiras e anunciam através de suas propagandas estes modernismos: Muitos foram aqueles que participaram dessas empreitadas com o algodão sertão adentro, resultando daí o desenvolvimento do perfil material da cidade, gerando circulação de dinheiro e o estabelecimento e desenvolvimento de casas de comércio e da mellhoria do beneficiamento dessa cultura com a instalação da Usina Santa Cecília. Como conseqüência, o algodão gerenciado por pessoas como Cel. Joaquim Peba, Cel. Sabino Rolim e o Major Galdino Pires trouxe à cidade ares de progresso, estimulou alterações na feição urbana. As feiras, que eram realizadas desde o século XIX na pequena “urbe”, nos períodos de safra do algodão, foram acompanhadas de animação e desenvolvimento. Com o algodão, a riqueza chegava a Cajazeiras, definitivamente: - Me fale mais um pouquinho sobre os anos do algodão. Os anos em que a senhora sentiu que a cidade começou a florescer. - Eu senti era quando era de Major Galdino, de Major Galdino Pires, porqüê tanto era rico Major Galdino como os filhos. A riquezona era, só se falava era na Usina. (Dona Maria Simplício, 565 - B) Clovis S. Moraes Rego - Cirurgiao dentista Executa todos os trabalhos concernentes a sua profissão pelos mais odiernos methodos americanos Preços modicos ao alcance de todos Consultório - rua 7 de Setembro Consultas das 8 ás 11 e das 2 ás 4 Decorre então um momento de transição na cidade onde o velho passa a conviver com o novo, o tradicional passa a conviver com o moderno. A década de vinte e o desenrolar dos anos trinta foram marcados pelo desenvolvimento econômico proveniente dessa “flor”: 15 CAROLINO, Antônio. Comunicação. Cajazeiras, ago. 1996. Entrevista concedida à Rádio Difusora de Cajazeiras. 16 45 COSTA, Antônio Assis. A(s) Cajazeiras que eu vi e onde vivi. João Pessoa: Progresso, 1986. Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Boanerges Maciel, aberto há poucos dias nesta cidade, num dos bairros mais aprazíveis defronte da casa do Cel. Peba. Encontrareis ahi todo o conforto necessario a uma casa desse genero. Todos ao Internacional Dr. J.J. Almeida - MEDICO, formado pela Universidade do Rio de Janeiro Especialidades: partos, cirurgias, molestas internas Tratamento moderno da syphiles e da ankylostomiase Atende a chamados para dentro e fóra da cidade, a qualquer hora do dia e da noite. Consultório: Rua 7 de Setembro n.16 - das 8 às 11 da manhã e de 1ás 3 da tarde Residencia - Rua Cel. Victal, n.3 Cajazeiras, Parahyba J . Mattos & Cia. • mais completo e variado sortimento de fazendas, miudezas, ferragens, chapéos, calçados, estivas. Especialidade em artigos finos e novidades. Compradores de algodão de comissão e conta propria em larga escala. 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A venda na PHARMACIA JULIANA Praça José de Alencar n.117 Ceará - Fortaleza Como podemos observar, a cidade vive em novos tempos, tendo os seus habitantes conhecimento deste perfil que ganhava a cidade. Na rua Padre José Tomaz, a loja do seu Sousinha vendia enlatados, conservas, vinhos e conhaques finos. A agência de Correios, na esquina da rua Padre Tomaz com a rua Padre Rolim, recebia anúncios de casas comerciais de localidades vizinhas e até de Fortaleza, como vemos pela última propaganda, através de “endereços telegraphicos”. Hotel Internacional Quereis ser bem tratado? Quereis comer bem e dormir bem? Gostaes de hygiene e asseio? - Procurae sem perda de tempo o “Hotel Internacional”, de propriedade de 46 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 As feiras movimentavam-se na época da safra do algodão, trazendo animação e progresso. Em 1925, por três meses, houve uma alta espetacular no preço do algodão. Alguns poucos automóveis foram comprados pelos maquinistas, gerenciadores do produto. A cidade agitava-se aos finais de semana com o campeonato de times de futebol, cujos regulamentos eram importados da Inglaterra. Em 1928 surge a Liga desportiva Cajazeirense. O saneamento da cidade ainda era incipiente, sendo a coleta de lixo feita por uma carroça, puxada por um boi. Todavia os perigos de epidemias graves que assolaram a cidade na década inicial do século, como a gripe bailarina em 1918, já estavam afastados. O governo municipal de Justino Bezerra e do Coronel Sabino Rolim já recebiam verbas do governo central, podendo investir no embelezamento da área urbana. A cidade, por outro lado, discutia os seus problemas, como o da insalubridade de algumas áreas - áreas estas que podem contaminar o ar com miasmas - o uso da jogatina e a recepção das novas idéias, como noticiam os Jornais Rio do Peixe, O Rebate e o Patria Jornal, todos de produção e circulação local: Urgem, portanto, efficazes providencias no sentido de promover os meios de pôr em pratica a extinção de tão pavorosa fonte de emanações miasmáticas, uma das causas determinantes de muitos obitos occasionados prematuramente nesta cidade. (Negrito nosso) LUZ ELÉTRICA Consta que se acham bastante adiantadas as negociações do sr. Prefeito, com um electricista que se encontra, actualmente, entre nós, attinentes a um contracto de installação completa para illuminação, a luz electra, da nossa estremecida cidade. Merece os nossos mais francos e calorosos applausos, esse gesto de benemerencia do sr. Prefeito, procurando levar a effeito um dos melhoramentos de que mais necessitamos satisfazendo, desta maneira, ás mais ávidas aspirações do nosso povo, que deseja ver Cajaseiras dotada de tudo que faz jús, afim de conquistar o lugar de destaque, que lhe está reservado entre as mais adiantadas cidades deste Estado e dos limitrophes. PÂNTANO Segundo a opinião de grandes summidades medicas, pantano é um terreno inundado d’água estagnada, que serve de veículo a substâncias vegetaes e animaes em estado de putrefação ,cuja ação deleteria, diffundindo-se no ambiente, torna-o um foco funestissimo de febres perniciosas, contra as quaes, muitas vezes, são improfícuos todos os recursos da sciencia de Hippocrates. Os efeitos dos pantanos, foram reconhecidos desde tempos immemoriaes, razão por que sempre foram objecto dos mais acurados estudos e da mais solicita attenção dos poderes publicos, não só no tocante á extincção dos mesmos, como no que diz respeito á divulgação das medidas prophylacticas contra os seus maleficos effeitos. Essas salutares providências dos governos, foram de tal fórma comprehendidas pelo povo, que, actualmente, não vemos um só pantano, nem mesmo nas imediações dos mais atrazados logarêjos do interior dos nossos Estados. Eis por que estranhamos, com estupefacção, a estabilidade de um mortífero pantano quasi no centro da cidade, alimentando cotidianamente pelas aguas retiradas do nosso < Açude Grande > , para lavagem de roupa do lado de fóra do sangradouro do mesmo, actualmente transformado em Lavanderia Pública, apesar de já se achar circundado de habitações de um punhado de cajaseirenses, cujas vidas estão em perigo imminente ! GABINETE DE LEITURA Um Gabinete de Leitura aqui, em Cajaseiras, daria mais um grande impulso ao nosso desenvolvimento moral e intelectual. Ousamos suscitar, em nossas colucnas essa idéa, porque faz parte do nosso programa, interpretes que somos, da opinião pública, desviarmos, sempre, as vistas indiffrentes dos nossos homens para as grandes realisações. (....) Com um pouco de coragem e bôa vontade, dotariamos, em breve, Cajaseiras de mais esse melhoramento, de mais esse lugar de educação para o nosso povo e para tantos de nossos moços avidos de instrucção e de saber. Quanto aos livros, ás revistas e outras cousas mais, poderemos angariar entre nós mesmos, ou mandaremos buscar na capital do nosso Estado, ou em Fortaleza. 17 17 PATRIA-JORNAL. Orgam Independente e Noticioso. Redator: Julio Moesia Rolim, estado da Parahyba, End. Telegraphico:...”PATRIA”; ANNO I, Cajazeiras, 24 de novembro de 1923. Numero 2. 47 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 - Os jornais não eram pra todo mundo não. Só pras pesssoas que faziam aquele contato com ele. (Dona Maria Simplício, 375 A) - O Centro de Cajazeiras nessa época era deste tamanhim, piquininhim. Tinha aquela igrejinha do Coração de Jesus, tinha aquela pracinha ali e o resto, do lado da estação era mato. (Seu Álvaro, 112-A) - Até José Américo dizia que Cajazeiras era uma cidade que tinha ares de Capital. (Dona Marilda Sobreira, 382-A) - O comércio não valia nada não. Era uma coisinha assim à toa, por muito tempo: sacaria, bodeguinha, coisinha pouca. (Seu Álvaro, 134-A) - ... de forma que o Comércio era muito movimentado na época. As ruas eram movimentadas. A educação era muito procurada. (Dona Angelina, 181-A) - Veio a ferrovia, o comércio foi melhorando, as costureiras foram ficando mais atualizadas. Os vestidos vinham da Capital, vinham de Fortaleza... (Dona Angelina, 280 – A ) - Olhe, nós, eu fazia serenata do sábado para o domingo nas noites enluaradas acompanhado de Dimas Sobreira Andreolla e Cícero mucuinho (violonista) .... e houve uma moça que chorou quando em cantei um samba.(...) Eu gostaria de voltar àquele tempo. Porque a vida só é boa quando a gente vive as primeiras ilusões. (Major Chiquinho,198-242-A) A JOGATINA Há dias vem o vibrante confrade <O Rio do Peixe> oppondo tenaz campanha á jogatina, no que tem merecido os nossos applausos de mistura com os da população desta terra. Creio que no desempenho desse desideratum os collegas não tem sabido evitar reiteradas referencias nada lisongeiras á pessoa e autoridade do nosso militar capitão Viégas, victima eté de aleives que conduzem em si injustiças directas à sua vida pública e privada. (...) Portanto achamos descabida a atitude dos colegas, reconhecendo os deserviços que o capitão Viégas vem prestando ao governo; e eis porque acordamos aturdidos de somno, com grande surpresa para os confrades d’<O Rio do Peixe>.18 Como vemos, a cidade de Cajazeiras na década de vinte é tecida por discursos, por idéias, por um tom desiderativo dos habitantes que concedem à aura urbana, pelo cruzamento de textos, de discursos, por meio da linguagem, uma visualização da materialidade e da imagética de uma cidade que participa dos novos tempos, dos tempos modernos, ganhando foros de modernização, introjetando modernismos. Entretanto, na construção de uma memória da cidade, através da oralidade de seus habitantes, encontramos o cruzamento de vários dados diferenciais que consideramos de fundamental importância para a construção do imaginário, das mentalidades e das representações sobre a realidade. Pela fala dos depoentes, encontramos rupturas, relações diferenciais que advêm da forma pela qual o passado e o presente foram introjetados por cada um, através de ritmos intra-subjetivos (orgânicos, fisiológicos, perceptivos, afetivos e imaginativos) e intersubjetivos – que diz respeito à comunicação entre os sujeitos no meio social - mostrando como cada depoente elabora ,como nos fala Hawbachs, um “ponto de vista sobre a memória coletiva”. 19 - Aquele povo se entusiasmou muito pelo Jornal. Aliás, Cajazeiras foi uma cidade onde o povo sempre gostou muito de ler. (Dona Marilda Sobreira, 365-A) A construção da história pela memória oral exige uma reflexão teórica e metodológica em torno da memória, visto que a mesma, por estar fundada no ato individual de lembrar não é a prova do real, ou, uma realidade em si mesma. A memória individual é uma constante interação entre níveis intra-subjetivos e intersubjeitvos, expressos na relação de cada indivíduo com seu grupo e a comunidade ou sociedade envolvente, marcados pelos tempos passado e presente, presente e passado. Os extratos de fala selecionados acima, por nossa pesquisa, é um exemplo disso. Eles são reveladores de contradições sobre a descrição material e cultural da cidade. No entanto, não podemos dizer que os relatos não são verídicos. O que colocamos para esclarecimento da discussão, que estamos travando, é o legado de alguns pensadores que refletiram suficientemente sobre “o ato de lembrar” como o neurologista e filósofo Henri Bergson,20 Julien Freud, 21 Maurice Halbwachs 22 e Walter 18 O REBATE, 16 de janeiro de 1926, n.30. (Sobre a polêmica da JOGATINA e sua extinção.) “Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios. (....) Mas por conteúdo do espírito é preciso entender todos os elementos que assinalam suas relações com os diversos meios. Um estado pessoal revela assim a complexidade da combinação de onde saiu.” HAUBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990, p. 51. 19 20 O fenômeno da memória em Bergson prescinde de um esclarecimento sobre os termos em que se desenvolvem, na vida psicológica do indivíduo, o fenômeno da percepção, da ação, das lembranças e do corpo. Operado através de um mecanismo sensório-motor as imagens são produzidas no indivíduo. O tempo presente (ídeo-motor) apresenta as coisas aos homens e essas 48 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Benjamin.23 A memória está perpassada pela influência de múltiplos fragmentos que a elaboram e a reelaboram. O que está em questão para nós é o cuidado em não tornar a memória pela oralidade - um dado oral sobre a realidade, um dado pronto e acabado, fornecido pela fala do depoente. Se pensarmos asssim a memória é reificação, não podendo ser um vetor de construção do imaginário social e das represtações sociais, construindo a liberdade do sujeito na história, um vetor de alteridade. Portanto, entendemos que os depoimentos cruzam fragmentos os mais diversos, expressando um potencial de sonho, de desejo, de imaginação e até de utopia. Temos diante de nós, pela memória, a revelação de um imaginário, um domínio cujo conjunto de fatos ultrapassa os fatos diretamente experimentáveis, e de um conjunto de representações sociais, que é uma instância intermediária entre conceito e percepção, situando-se sobre as atitudes, informações e imagens, instância esta moldada pela dimensão da comunicação social e contribui de igual forma para essa comunicação.24 E ainda, a memória, assim perspectivada, é reveladora de nossa estrutura de mentalidades. Ao analisarmos os depoimentos acima, na busca de uma compreensão desses quadros mentais, poderemos perceber as diferentes trajetórias sociais dos depoentes e a maneira pela qual o vivido de cada um fixou as experiências de vida na cidade, fazendo-os falar a partir de um lugar social. Constatamos, pelos depoimentos dos habitantes, que o moderno impactava o tradicional ou, com maior força, o tradicional impunha muitos limites ao moderno, tudo isso, repetimos, se colocarmos o ponto-de-vista de cada habitante, como um ponto-de-vista sobre a memória coletiva. A partir desse passo metodológico, poderemos verificar como que a construção social do discurso está associada à construção social da realidade. Seu Álvaro era um agricultor que teve sua experiência de vida marcada pela vida dura e pesada do campo. “Eu vivia no sítio. Agora, às vezes, quando eu ia fazer um negócio, comprar uma camisa eu ia a cidade”. O ponto de confluência da visão contraditória de seu Álvaro sobre o perfil material da cidade, diante da visão dos outros, que também é contraditória sobre a recepção das novidades, como o acesso aos jornais, à moda etc, é que seu Álvaro percorre uma trajetória social que o exclui da vida cultural da cidade. Seu universo é a vida no sítio; tudo em volta dele é “mato”. A narrativa dele é precisa sobre alguns acontecimentos como aqueles concernentes ao algodão, mesmo que ele também seja excluído das decisões que envolvem a comercialização do produto e aceite seu papel social. O que está em questão é que, para ele, o processo civilizador, que a cidade está adquirindo, não significa nada, visto que ele não mantém sua identidade como habitante da cidade. Ele mantém sua identidade com os trabalhadores do “sítio” que saem à noite para “sambiar”. Quando Dona Marilda Sobreira, filha de um dos homens mais ricos da cidade - o Major Epifânio Sobreira - nos fala: “Aquele povo se entusiasmou muito pelo Jornal. Aliás, Cajazeiras, foi uma cidade onde o povo sempre gostou muito de ler” o que entra em contradição pelo depoimento de Dona Maria Simplício “- “ Os jornais coisas sofrem variações porqüê guardamos imagens passadas delas que podem ser reformuladas, ou não. Portanto, para Bergson, “é em função de imagens e somente de imagens que devemos colocar o problema.” BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito, Sâo Paulo: Martins Fontes, 1990. 21 Para Freud a memória, no indivíduo, depende fundamentalmente de um aparelho mental: o aparelho psíquico. Este é um aparelho de linguagem e um aparelho de memória. A memória desse aparelho é memória de linguagem ,de uma escritura. O sonho, deve ser entendido em função desta dupla referência: memória e linguagem. Este aparelho de linguagem se forma aos poucos, processualmente. Daí passam a perceber uma relação entre objetos e as representaçõespalavras (relação significante) que embasa a interpretação sobre o mundo. Quando significamos as coisas possuimos impressões sobre elas que deixam traços inalteráveis. Daí Freud afirma que possuímos traços e não, lembranças das coisas. Quando revisitamos estes traços, estas “marcas”, a memória passa a ser construída através de novas “trilhas”, um processo que implica um diferencial de valor entre caminhos possíveis. A memória é concebida com o poder de que uma vivência tem de continuar produzindo efeitos. E esse poder depende de dois fatores: da ênfase da impressão e da repetição dessa impressão. A impressão, por sua vez, só é conservada como “traço” ou como “representação”. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana. São Paulo: Jorge Zahar, 1991, v. 2. 22 A formulação da teoria de Halbwachs sobre a memória coloca-se em contraposição à teoria de Bergson. Para Halbwachs a memória - memória individual - está submetida a quadros sociais, tornando-se impossível localizar o problema da evocação das lembranças somente no indivíduo e sua auto-biografia, se não tomarmos os quadros reais de referência à reconstrução da memória individual. HALBWACHS, Maurice, op. cit. 23 Para Walter Benjamin a memória apresenta-se como o “choque” por excelência do passado com o presente. Nessa perspectiva, a memória não é “um resgate” do passado e sim, “uma construção” fundada no presente. Para Benjamin é impossível “resgatar” o passado ,como um depositário da memória individual. “ O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade. Mas é por isso que a compreendemos, e tanto melhor, quanto mais profundamente jaz em nós o esquecido.” Portanto, “a memória é uma “construção”, construção essa interessada pelo tempo que é, por sua vez, “uma sucessão de agoras”. Passado e futuro são demarcados a partir do presente. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II - Rua de Mão Única, 2. ed., São Paulo: Brasiliense, s.d., p. 104-105. 24 NÓBREGA, Sheva Maia da. O que é Representação Social. Texto apresentado, inicialmente, no curso de doutorado em Psicologia Social da École des Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris, para obtenção do título “Diplomé d’Etudes Approfondies”, sob a orientação do professor Serge Moscovici. Tradução parcial, revisada e ampliada do trabalho intitulado “La maladie mentale au Brésil: étude sur les représentations sociales de la folie par des sujects internés à l’hôpital psychiatrique et leurs familes”. 1990, 77 p. Mimeografado. 49 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 não eram pra todo mundo não. Só pras pesssoas que faziam aquele contato com ele”, podemos reter algumas visões que povoavam o imaginário social. Os jornais, emblema exemplar da modernidade - a informação era produzida em tipos gráficos e distribuída em grande quantidade , dando à informaçào uma “velocidade” - eram exclusivos de uma “comunidade de leitores”. O que dá suporte à narrativa de Dona Maria Simplício é a sua história de vida como pessoa de poucas condições financeiras, filha de um marchante que trabalhava no mercado público, portadora de uma escolaridade insuficiente, talvez inexistente, visto que ao perguntarmos sobre a sua formação em uma escola de instrução primária ela se retrai e se cala. Dona Angelina Tavares recompõe o passado por suas lembranças de uma cidade bucólica, agradável, onde as moças absorviam as novidades da moda que iam chegando por meio do trem, para as costureiras; uma cidade que melhorava por meio do comércio. Relembra, ainda, as cantigas de infância: “...havia inocência, uma juventude sadia...” (241-B). “Eu brincava muito, a gente brincava à vontade”. Portanto, o que está em questão não é a “narrativa verídica sobre o passado”, até porque, a narrativa de todos os depoentes era acompanhada do zelo em dizer: - O Sr. Desculpe eu não saber dizer tudo, não é. Pra eu dizer aquilo que eu não vi, tô mentindo, não é? Tô dizendo o que vi e fiz, e vi fazer. (Seu Álvaro) - Vá desculpando, que eu não tenho leitura e já estou muito acabada. (Dona Maria Simplício) etc. por último, - a dimensão da “imaginação” que é aquela capaz de fantasiar a realidade, colocando “novas sensações”, incorporando a narrativa da memória individual diante de certos acontecimentos, como fatos realmente ocorridos.25 Dessa forma, podemos afirmar que a construção da história, pela memória, está intrinsecamente mediada pela “vivência”. Essa “vivência”, por sua vez, está perpassada por uma multiplicidade de fragmentos fornecidos pelas dimensões que apresentamos acima, orientada pela dialética entre o tempo presente e tempo passado, na história de vida de cada depoente. Todo esse “caleidoscópio” é expresso pela “narrativa” do depoente. Portanto, a memória é um trabalho de recordação, recordação esta, que é uma construção, fornecida pela vivência em um quadro espaço-temporal. Portanto, o que vemos pelos depoimentos é um contexto de perdas e ganhos, de encantos e desencantos com o tradicional e com o moderno, que são, por sua vez, perdas e ganhos de pontos de referências da identidade do habitante na cidade: - Cajazeiras era uma cidade que parecia muito que tinha uma gente vaidosa. Era uma cidade que imitava muito a capital. Era um povo que sabia se vestir e a orientação era mais de Fortaleza. ( Dona Marilda Sobreira, 206,A) - As pessoas vinham à cidade no sábado. Não era como hoje. Hoje está mais adiantado mais é fraco. Naquela época existia dinheiro, mais hoje a fraqueza é grande... Eu achava melhor do que hoje. Aqueles comboios de farinha, aquelas carnes bonitas, gordas. (Dona Maria Simplício 220-234, A) - As feiras? Era uma palhocinha velha; grande, mais dentro de uma palhocinha feia... Eu vendia muito feijão, rapadura. Agora quando o prefeito Araruna tomou conta foi que levantou aquele prédio do comércio. (Seu Álvaro,117-A) - A farinha, o millho, comprava lá na serra do Orebe e vinha vender aqui na feira. Toda feira nós tava aqui. Ainda hoje tá do mesmo jeito. ( Seu José Vieira de Moraes, 053-058, A) - O que mais me atraía era a Praça D. Adauto. Era o chamariz para a criança”.(Dona Angelina Tavares,185 A) - “ E eu sou cantor. Quer que eu cante uma valsa pro sr. ouvir? Música de Augusto Calheiros (...) Eu comecei a beber com 17 anos. (Major Chiquinho, 183-A) - Naquele tempo era muito animado...Ave-Maria, eu era “ piolho- de- dança”. (Dona Maria Simplício,447-B) Logo, o que está retido no discurso e na linguagem de cada depoente, são imagens diferenciadas da história da cidade. Por quê? Pelo fato de cada depoente introjetar significados diferentes por meio de sua vivência no cotidiano. O cotidiano é uma dimensão que expõe a capacidade dos sujeitos de estar no mundo. Daí decorre a vivência organizada, o dia-a-dia, a vida dos homens, envolvidos por uma atmosfera natural e normativa (social). De uma certa forma, no cotidiano, as coisas simplesmente são, fazendo com que o ‘princípio de vontade’ se depare com o ‘princípio de razão’, que orienta as normas da conduta humana, pelo que está instituído na sociedade. Por outro lado, de igual forma, há a elaboração, no espaço de vivência, de algumas dimensões que afetam a construção da memória na história de vida das pessoas: - a dimensão “perceptiva” onde os “signos” são elaborados pelos “impactos”, os “choques”, que o presente (“sucessão de agoras”, como vemos em Benjamin) causa no passado, em nível intra-subjetivo, nas percepções de cada um; - a dimensão “afetiva” que está relacionada à forma de “sentir” o mundo ,sendo, portanto, uma forma de “sensibilidade” (aqui estão presentes as “emoções” que depositamos diante das coisas, das pessoas, do mundo) no decorrer de nosso tempo existencial e social, o nosso tempo de vivência, ou seja, as emoções sentidas durante o tempo passado e tempo presente. Para Walter Benjamin é nesta dimensão que se opera a “identidade” de uma pessoa, com o sentimento de “pertencimento” a um grupo e, 25 PORTELLI, Alessandro. Sonhos Ucrônicos, memórias e possíveis mundos dos trabalhadores. In: Projeto de História 10, “História & Cultura”. São Paulo: PUC, 1993. p. 41-58. 50 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 referentes dessa ordem moderna “Cajazeiras era uma cidade que parecia muito que tinha uma gente vaidosa. Era uma cidade que imitava muito a capital. Era um povo que sabia se vestir e a orientação era mais de Fortaleza”. - Nesse tempo chegou o automóvel. Eram dois carros: um era de Sebastião Bandeira e o outro era de Rosarina, mulher de Justino Bezerra. (Dona Marilda Sobreira, 134, A) - Naquela época, que eu me entendia como gente, as pessoas só andavam todas completas: chapéu, gravatiha de laço... Hoje, se eu sair na rua daquele jeito o povo pergunta logo: ‘vai votar major Chiquinho? (Major Chiquinho, 493-B) - A vida da gente era muito humilde e a gente não tinha quase roupa. Agora, aqui, tinha um pessoal que se vestia muito bem. O papai mesmo... 26 - Era, os retratos dele e dos avós são ! mas vocês não! Os avós eram. Eles se vestiam muito bem. Olha, tinha um retrato de um enterro aqui, olhe, “um chique”. As mulheres tudo de sombrinha, de longo, aquelas mulheres tudo ... e os homens tudo de fraque. (271-A) - Dia de domingo ia a orquestra tocar na estação de trem. Aquelas moças .... Juarez Távora acabou com a ferrovia, na época da Revolução. Foi um crime. (Major Chiquinho, 428 - B) Enfim, os habitantes representavam a cidade como um espaço desiderativo num “tempo perdido”, com alguns emblemas novos, modernos, referenciando “suas maneiras de ver”, suas representações, a partir de um confronto de interpretações que faziam confluir os diversos fragmentos que compunham a aura urbana, não só para o “novo”, como também, para as permanências, apontando a presença do tradicional Dessa forma concluímos nosso trabalho com as fontes orais, dialogando com as mesmas, na tentatva de conseguir imagens que nos pudessem fornecer uma visualização dos quadros mentais, das representações e do imaginário de uma época, psicanalisando o passado num trabalho de contrução. Entendemos que o trabalho do historiador com as fontes orais é potencial para o saber histórico, visto que este ganha, cada vez mais, foros de autonomia e riqueza intelectual por pesquisadores que manifestam contundentes posicionamentos relativos à formação, manutenção e reelaboração de identidades coletivas através da memória. Pela vivência no cotidiano da cidade os habitantes elaboram uma imagem da mesma pelo cruzamento de suas atividades e interesses. A vida cotidiana se impõe à consciência do sujeito de maneira urgente, objetivando pela linguagem referências que são evocadas e construídas pela memória do grupo de habitantes. Algumas dificuldades, no entanto, parecem consistir nas investidas e exclusões metodológicas entre o todo e as partes. Recusando cair nessa armadilha metodológica pensamos a cidade, a partir destes depoimentos, como múltipla: ela oferecia pontos de inspiração: - “O que mais me atraía era a Praça D. Adauto. Era o chamariz para a criança”; a cidade fornecia locais de sociabilidade: “Dia de domingo ia a orquestra tocar na estação de trem. Aquelas moças .... Juarez Távora acabou com a ferrovia - na época da Revolução. Foi um crime.” ; seus habitantes incorporavam maneiras e hábitos modernos, na maneira de vestir, nos costumes ... “Olha, tinha um retrato de um enterro aqui, olhe, “um chique”. As mulheres tudo de sombrinha, de longo, aquelas mulheres tudo ... e os homens tudo de fraque.”; a manifestação coletiva do grupo fala dos emblemas modernos, lançando pontos 26 O depoente é filho do Cel. Sabino Rolim, bisneto do Comandante Vital Rolim, tido como um dos heróis fundadores da cidade. Esta entrevista foi concedida pelo Dr. Sabino Rolim - médico oftalmologista - e sua esposa Dona Joaninha, filha de um dos intelectual mais expressivos da década de vinte em Cajazeiras, Cristiano Cartaxo. 51 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 A PARTICIPAÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA NACIONAL NO SETOR ELÉTRICO GAÚCHO; uma perspectiva histórica das maiores empresas (1887-1922) AXT, Gunter. A participação da iniciativa privada nacional no setor elétrico gaúcho; uma perspectiva histórica das maiores empresas (1887-1922). Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 69-83. Gunter Axt Pesquisador do CPDHPRS/Assembléia Legislativa RS Doutorando pela USP http://www.ufjf.br/~clionet/rehb Endereço para correspondência: Revista Eletrônica de História do Brasil Arquivo Histórico da UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora - MG Prédio do CDDC - Campus Universitário Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330 RESUMO: Este artigo recupera a história dos principais investimentos do capital privado nacional na indústria de energia elétrica do Estado do Rio Grande do Sul, especialmente locados em sua capital, Porto Alegre, desde sua instalação, em 1887, até sua incorporação por concessionárias estrangeiras, em 1928. Procurou-se conduzir a análise de forma a detalhar as diferentes companhias então atuantes e sua inserção no contexto político-econômico do período em foco. Seu propósito fundamental foi revelar, de um lado, os mecanismos de proteção governamental para com o setor, e, de outro, os obstáculos para a reprodução do capital privado regional/nacional. http://www.ufjf.br/~clionet/rehb E-mail: [email protected] Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342 ABSTRACT: This paper recovers the History of the main private national investments into the Electric Energy Industry of the Rio Grande do Sul State Capital, since it was first installed, in 1887, until its incorporation, by foreign concessionaries, in 1928. An analysis was conducted in order to detail the different companies inserting them in the political-economical context of that period. Its main purpose was to reveal the protection mecanisms and the obstacles to the regional/national private capital reproduction. PALAVRAS-CHAVE: Energia elétrica: RS. Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo e em sua estrutura física. A produção e distribuição de energia elétrica no Rio Grande do Sul nem sempre foi apanágio dos poderes públicos. O governo estadual, com efeito, assumiu a dianteira no setor apenas a partir dos anos 1950, quando então a capacidade geradora instalada da CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica) ultrapassou a das companhias privadas.1 Antes da criação da Comissão Estadual de Energia Elétrica, em 1943, apenas as instalações, em Porto Alegre, Canoas e Pelotas, da maior empresa privada no ramo, ligada ao grupo norte-americano Amforp, representavam quase 44% 1 AXT, Gunter. A formação da Empresa Pública no Setor Elétrico Gaucho. Anos 90. Revista do Programa de Pós-graduação em História da UFRGS. Porto Alegre, n.4, 1996. 52 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 A Empresa de Luz Elétrica Fiat Lux (...) tem sua oficina na Rua Sete de Setembro, esquina General João Manoel. A iluminação da oficina é produzida por 15 lâmpadas de 10 e 16 velas sistema Edison; o motor é uma máquina a vapor demi fixe, Compound, de força elétrica de 50 cv com descarga automática (Paxman), e foi construída em Colchester (Inglaterra), pelos construtores Davey Paxman & Cia. A corrente elétrica é fornecida por três máquinas denominadas dínamos Gramme, podendo produzir 800 lâmpadas de 10 velas. Nos primeiros dias de outubro, principiaram as experiências, que continuaram até hoje dando esplêndido resultado. da capacidade nominal total instalada, respondendo as mesmas por 70% de toda energia consumida no estado. Os poderes públicos controlavam, então, não mais de 25% do parque gerador sul-riograndense.2 A iniciativa privada de fato ocupou espaço dominante no setor por mais de 60 anos, desde o surgimento da indústria de eletricidade no Rio Grande do Sul em 1887, dentre os quais com a liderança por cerca de 40 anos do capital nacional. Em 1927, o Anuário Estatístico registrava o controle pela iniciativa privada de 70% do potencial gerador global no estado, sendo que 75% dos investimentos no setor provinham do capital nacional, de cujo total, 30% operando 47 instalações no interior do estado e 70% investidos nas duas empresas da capital. Ao todo, funcionavam no território gaúcho 86 usinas elétricas, 35 sob controle municipal, uma estadual e uma, em Pelotas, sob administração do capital estrangeiro. A iniciativa privada computava então o emprego de 757 dos 963 operários que trabalhavam no setor (78,6%). Os maiores estabelecimentos geradores de eletricidade eram controlados pelo capital privado, que investia predominantemente na termeletricidade (menos de 10% da energia total gerada provinha de fonte hídrica).3 Em 1939, segundo o Anuário Estatístico daquele ano, operavam no estado 249 usinas (148 termelétricas e 101 hidrelétricas), 193 das quais eram administradas por empresas particulares, respondendo estas por quase 80% da produção de eletricidade no Rio Grande do Sul. Na geração hidrelétrica, contudo, o capital privado estava em desvantagem: as administrações municipais controlavam cerca de 75% do conjunto do potencial hídrico instalado. Todavia, apenas 9,8% da energia total produzida procedia de fonte hídrica. Os principais centros urbanos gaúchos eram então abastecidos pelas empresas privadas, com exceção das cidades de Rio Grande, São Leopoldo, Santa Cruz e Passo Fundo. Nesta época, contudo, o capital nacional controlava não mais do que 20% da capacidade nominal instalada, perdendo sua posição de liderança para as companhias estrangeiras. As maiores empresas privadas de capital nacional do setor elétrico gaúcho atuaram em Porto Alegre, principal mercado consumidor de energia no estado. Entre 1887 e 1928, as companhias Fiat Lux e Força e Luz Porto-Alegrense (CFL), e as suas respectivas sucessoras, a Companhia Energia Elétrica Rio-Grandense (CEERG) e Cia. Carris Porto-Alegrense (CPA), chegaram a responder por 70% do capital nacional total aplicado no setor elétrico gaúcho. A primeira destas empresas a surgir foi a Sociedade Fiat Lux, cujas instalações, pioneiras no estado, foram inauguradas em 1º de dezembro de 1887,4 após seis meses de experimentos,5 Está estabelecida uma linha dupla da oficina até a Rua do Rosário, com duas denominações: uma para o Hotel Lagache e outra para a Praça Conde D'Eu. Na noite de 12 de novembro, quando teve lugar no salão do Club Comercial o banquete oferecido ao Sr. Senador Gaspar Martins, colocou-se na entrada da rua duas lâmpadas a arco Gramme, ou lâmpadas reguladoras de 300 velas. Conservaram-se elas acesas até as 2,5 horas da manhã, causando um efeito tal que parecia dia claro. Atualmente estão colocadas nas casas comerciais da Rua dos Andradas mais de 300 lâmpadas. Pode-se admirar todas as noites a luz elétrica das lâmpadas Gramme. O vasto Salão Continental está iluminado por uma só lâmpada. Os bosques do Hotel Lagache, por duas lâmpadas e em ambos os estabelecimentos a luz é inexedível. Breve terá o público o gosto pelo mesmo benefício no jardim da Praça Conde D'Eu ....6 A novidade, que fez da cidade a primeira capital brasileira a contar com um serviço regular de fornecimento de eletricidade aos consumidores, era então oferecida para casas comerciais e particulares, (...) aos moradores da Rua dos Andradas, desde a Travessa Paysandú, até a Vigário José Ignácio (...). A Companhia encarrega-se da colocação e de fornecer o material e as lâmpadas (...), [cobrando o serviço pelo tipo de lâmpada instalada.] A luz será fornecida até às 10,5 horas. 2 ANUÁRIO Estatístico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Departamento Estadual de Estatística, 1941. 3 Idem, Porto Alegre: Secretaria do Estado dos Negócios do Interior e Exterior; Oficinas Gráficas d’A Federação, 1928. 4 Fed - 18.01.1888 (MCS). 5 Câmara Municipal/Livro de Vereança nº 21 p. 15 (AHMPoA). 6 53 Fed - 30.11.1887 (CPDHPRS). Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 não mais estando disponível a todos os interessados. Mas, a partir de 31 de dezembro de 1906, os consumidores da companhia passaram a usufruir do fornecimento de luz por toda noite. Em 1909, a usina passou finalmente a distribuir eletricidade durante as vinte e quatro horas do dia, melhoramento cujos investimentos exigiram a elevação do capital para 1.200 contos de réis. O sistema de cobrança dos serviços pelo consumo de kilowatts, por meio de contadores instalados nas residências, foi adotado pela companhia em 1º de abril de 1908, ao preço, então, de 800 réis o kilowatt. Em 1910, a Fiat Lux administrava 940 assinantes, gerando cerca de 250 kW/h por consumidor. Em 1915, a empresa totalizava 2.600 consumidores, vindo a alcançar 3.600 em 1920 e 5.100 em 1925, quando então a geração de kW/h por consumidor chegou a 616, tendo, para tanto, de serem as instalações da usina sucessivamente ampliadas.14 Entrando em funcionamento em 1887 com uma pequena locomóvel, em 1891 a usina já operava com um gerador térmico de 160 kW, tendo sido novamente ampliada em 1899. Por volta de 1913, as instalações geradoras deveriam alcançar cerca de 600 kW de potência, o que representava uma capacidade inferior à disponível nas usinas da Cia. Força e Luz, em Porto Alegre, e, mesmo, nas usinas de Rio Grande e Uruguaiana.15 Outro aumento de capital, através de um empréstimo conseguido junto aos maiores acionistas, permitiu à companhia colocar em atividade, em abril de 1914, uma nova central geradora, equipada com uma moderna turbina de 1.000 cv, à qual ligavam-se dois geradores de 350 kW cada um e de 220 volts de corrente contínua. Em 1920, entrou em serviço uma segunda unidade na usina nova, idêntica à primeira, totalizando então 1.400 kW de capacidade instalada. A potência de ambas as usinas deveria situar-se, nesta época, em torno de 2.000 kW, sendo aumentada em mais 500 kW até 1925.16 Embora a situação finaceira da empresa fosse positiva, sendo acumulada uma dívida relativamente pequena (Rs 326.830$990), durante os anos da Primeira Guerra, a Fiat Lux enfrentou algumas dificuldades, decorrentes da forte alta nos preços do carvão inglês e da lenha a partir de 1915. O carvão nacional, por sua vez, desapareceu do mercado.17 A posição financeira da companhia voltou a melhorar com a estabilização do preço da lenha, em 1917. Para este fato, concorreu a extinção do imposto sobre a lenha, tributo cobrado desde 1903. Neste período, foram ainda Para hotéis, clubs, cafés, etc. a luz será fornecida até a meia-noite com 12% de aumento.7 Sob direção dos cidadãos franceses Aimable Jouvin, cônsul e representante comercial, e S. Dernuit, engenheiro representante da firma Gramme,8 a companhia teve seus estatutos redigidos em 11 de maio de 1891. Foram os mesmos reformulados em 30 de junho de 1892, quando então o controle acionário transferiu-se a Graciano A. de Azambuja, F.P. Sertório Leite e Armênio Jouvin.9 Nesta transação, o capital da empresa foi elevado de Rs 640:000$000 para Rs 800:000$000.10 Em setembro de 1896, uma nova administração, capitaneada pelo Cel. Antônio Soares de Barcellos11 - que, como principal acionista, exerceu a direção por 21 anos - assumiu o comando da companhia. Estando a Fiat Lux em dificuldades, procedeu-se então a uma manobra financeira, na qual reduziu-se o capital da mesma para 480 contos de réis, para em seguida reelevá-lo a 600 contos de réis (600:000$000), divididos em seis mil ações nominativas. Reunindo então a empresa 26 acionistas,12 aceitaram eles arcar com o prejuízo da ordem de 40% à guisa de garantia à operação. Em dois anos a companhia, até então deficitária, estava distribuindo dividendos a razão de 10% ao ano aos acionistas. Em outra medida de austeridade, a Fiat Lux abriu mão do privilégio para a prestação dos serviços nas demais cidades do estado, chegando a abandonar as fundações já iniciadas do prédio de uma usina em Pelotas. Novos estatutos foram aprovados em 22 de setembro de 1898. Em 1904, o capital da companhia foi elevado a mil contos de réis.13 A partir de 1º de janeiro de 1900, a Fiat Lux, em atenção às solicitações de grande número de seus consumidores, que não careciam de luz até a meia-noite, resolveu adotar novo sistema de cobrança, estabelecendo dois horários diferentes: um até as dez horas, outro até a meia-noite. A qualidade do serviço, contudo, passou a suscitar algumas reclamações, sendo a iluminação considerada de intensidade fraca e 7 Fed - 11.10.1887 (CPDHPRS). Fed - 11.10.1887 (CPDHPRS). 9 Revisão dos Estatutos da Sociedade Fiat Lux - 30.06.1892 (AHMPoA). 10 PORTO ALEGRE e as novas obras da CEERG. Porto Alegre, 1927, p. 9. 11 Foi deputado pela Assembléia dos Representantes entre 1891 e 1904, e entre 1909 e 1916. Tenente-Coronel da Guarda Nacional, foi um dos principais articuladores da chapa do PRR à Constituinte de 1891. Foi Presidente da ARRS (Assembléia dos Representantes do estado do Rio Grande do Sul) entre 1897 e 1903. 12 Três dos quais, A. S. de Barcellos, Manoel Py e Virgílio do Valle, dentre os principais, tornarse-íam importantes acionistas da futura Cia. Força e Luz. Entre outros acionistas de destaque da Fiat Lux, estavam a família Chaves Barcellos, Francisco Gonçalves Carneiro, Conrado Bertinasco e o Banco da Província. 13 Fed - 22.02.1898 - Relatório da Cia. Fiat Lux do ano de 1897; Fed - 14.10.1898 - Estatutos da Cia. Fiat Lux (MCS); PORTO ALEGRE e as Novas Obras da CEERG. op.cit. p. 9.; A HISTÓRIA da Companhia de Energia Elétrica Rio Grandense. Roteiro. Porto Alegre, CEERG, Ano III, n. 27, p. 10, ago. 1957. 8 14 Fed - 20.12.1899 (MCS); Fed - 06.12.1904 (CPDHPRS); A HISTÓRIA da Companhia de Energia Elétrica Rio Grandense. Roteiro. Porto Alegre, CEERG, Ano 3, n. 29, p.3, out. 1957; JC - 18.03.1908 (MCS); PORTO ALEGRE e as Novas Obras da CEERG. Porto Alegre, 1927, p. 3. 15 A HISTÓRIA da Companhia de Energia Elétrica Rio Grandense, Roteiro, ano 3, n.29, p. 3, out. 1957. 16 Fed - 16.03.1915 - Relatório da Cia. Fiat Lux do ano de 1914 (MCS); PORTO ALEGRE e as novas obras da CEERG, op. cit., p. 9. 17 Fed - 16.03.1916 (MCS). 54 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 realizadas diversas obras nas caldeiras da usina, objetivando a redução do consumo de combustível.18 Contudo, os próprios diretores da companhia19 avaliavam que "a produção de energia elétrica em Porto Alegre era notoriamente insuficiente". Não obstante a Fiat Lux verificasse bons rendimentos, seu imprescindível programa de expansão "não manifestou muito interesse junto aos acionistas". Em assembléia extraordinária, realizada a 9 de novembro de 1923, os sócios decidiram aprovar a proposta de venda do acervo à Companhia de Energia Elétrica Rio-Grandense (CEERG): a transação foi concluída por 2.400 contos de réis em debêntures.20 A CEERG fora incorporada a 8 de novembro de 1923 na cidade do Rio de Janeiro, com um capital social inicial de 3.000 contos de réis. Tinha como principal acionista a Cia. Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo, empresa que atuava na mineração de carvão gaúcho desde 1889. O emprego do "carvão nacional" encontrou amiúde significativa resistência junto às estradas de ferro, navegação fluvial e fábricas a vapor, pois era mais caro que a lenha e de menor rendimento que o carvão inglês, devido ao alto teor de cinzas na sua constituição.21 Após uma violenta queda no consumo de carvão de São Jerônimo na virada do século, o volume de sua comercialização foi sendo lentamente recuperado, insuflado pela ação das isenções fiscais e do imposto sobre a lenha.22 Às vésperas da Primeira Guerra, as usinas da capital eram em boa parte alimentadas pelo carvão de São Jerônimo, mas, em virtude da elevação de seus preços, passou novamente a perder terreno para o carvão inglês e para o de Santa Catarina, tendência que se aprofundou no início dos anos 20.23 O surgimento da CEERG, num período de retração do consumo do carvão gaúcho, foi o corolário da estratégia da Cia. São Jerônimo, onde a tentativa de estabelecimento de um mercado próprio ao seu produto visou uma alternativa ao desgastado protecionismo fiscal mantido pelo governo.24 Outra importante empresa a operar na capital gaúcha foi a Companhia Força e Luz Porto-Alegrense (CFL). Incorporada em 1906 a partir da fusão de duas companhias que exploravam o transporte por tração animal por meio de trilhos em Porto Alegre - a Cia. Carris de Ferro Porto-Alegrense, uma sociedade anônima constituida em 1872, e a Cia. Carris Urbanos de Porto Alegre, fundada em 1891 -, tornou-se o maior empreendimento do capital sul-riograndense no setor elétrico. Em 14 de abril de 1906 foi celebrado um contrato para a exploração dos serviços de tração elétrica entre a nova companhia e a Intendência Municipal, tendo sido dispensada a concorrência pública. A empresa subscrevia um capital ativo de Rs 2.652:000$000, além de tomar um empréstimo no valor de 2.500 contos de réis, dividido em cinco parcelas iguais, a serem descontadas até 1908, ao juro de 7% ao ano, o qual fora garantido pelo Banco da Província e pelo Banco do Comércio.25 Desde 1896 (seis anos após ter circulado o primeiro bonde elétrico do mundo, em Nova Yorque), já discutia-se a adoção deste sistema em Porto Alegre, quando então o interesse de alguns particulares inspirava a realização de estudos pela Intendência Municipal.26 Após longas discussões, uma nova proposta, apresentada pelo representante local da firma alemã Siemens & Halsche, conduziu à abertura de uma concorrência pública, a 2 de junho de 1904. Não logrou a mesma nenhum resultado, pois, garantindo os interesses das concessionárias em atividade, determinava a dependência da nova concessão à encampação da Carris Porto-Alegrense, cujo alto valor fixado afastou os pretendentes. No ano seguinte, o rumo das negociações evoluiu para uma proposta de parceria entre a Intendência Municipal e a Carris Urbanos, que, todavia, não chegou a concretizar-se, pois as duas empresas de transporte urbano fundiram-se para criar a Força e Luz.27 O principal idealizador deste empreendimento foi Possidônio Mâncio da Cunha, grande acionista da Carris Porto-Alegrense.28 Influente político ligado às hostes do PRR,29 Possidônio também era um ágil capitalista, que na época integrava a diretoria de importantes empresas, como a Cia. Telephônica Rio-Grandense (fundada em 1908), a Cia. Predial e Agrícola, a Cia. de Seguros de Vida Previdência do Sul, a Cia. Fiação e Tecidos de Porto Alegre (fundada em abril de 1901) e o Banco Comercial Franco-Brasileiro (este último fundado posteriormente, em 1913). Acompanharam-no na nova iniciativa seus maiores sócios nestas empresas, juntamente com investidores ligados a outras importantes empresas locais (muitos dos quais tendo igualmente 18 Fed - 13.03.1917 (MCS). Desde a morte do Cel. Barcellos em 1916, a direção foi conduzida por Domingos da Costa Lino, Carlos Saturnino Peixoto, e Virgílio do Valle, o qual, integrava também, na época, a diretoria da Cia. Força e Luz. 20 Fed - 10.11.1923 (MCS). 21 ANUÁRIO do Rio Grande do Sul para o ano de 1905; Porto Alegre: Krahe & Cia, 1905. ANAIS da Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul. 1892/96. Discursos de José Carlos Pinto. 22 ANUÁRIO do Rio Grande do Sul para o ano de 1904. Porto Alegre, Krahe & Cia, 1904. 23 Fed - 01.03.1914 (MCS); Relatório do Intendente Pedro Luiz Osório. Pelotas, 20.09.1922 (BBP). 24 Em 22 de novembro de 1921, o governo isentara, pelo espaço de cinco anos, a indústria carbonífera de todos os impostos estaduais, como forma de auxiliar o segmento a recuperar o mercado perdido após a guerra e de insentivar o consumo do carvão de pedra. LAGEMANN, Eugenio. Os benefícios fiscais na história gaucha: uma aproximação ao tema. In: 150 Anos de Finanças Públicas. Porto Alegre, FEE, 1985, p. 258. 19 25 JC - 19.04.1906 (MCS). Câmara Municipal de PoA. Comissão de Construção e Melhoramentos do Município. 26.11.1896 (AHMPoA). 27 Relatório do Município de Porto Alegre pelo Intendente José Montaury de Aguiar Leitão. In: Fed - 23.11.1907 (CPDHPRS). 28 Fed - 16.10.1905 (CPDHPRS). 29 Deputado estadual na Constituinte de 1891, na 1ª, 7ª, 8ª, 9ª, 10ª legislaturas, além de também ter exercido o cargo de deputado federal pelo Rio Grande do Sul e ter exercido o cargo de Secretário da Fazenda do Estado. 26 55 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 ocupado cargos políticos pelo PRR), além de bancos, companhias de seguros e de imóveis. 30 Tendo reunido uma expressiva parcela dentre políticos governistas e investidores do momento, a CFL foi um evento marcante no incipiente capitalismo sulriograndense, constituindo-se numa corporação moderna, com capital aberto, contrariando a tendência de "empresas familiares"31 do período. As obras de construção da usina e dos trilhos foram iniciadas em 6 de dezembro de 1906 pela firma inglesa Dick, Kerr & C. Limited. Em outubro de 1907 já estavam colocados cerca de 30 Km de trilhos, "sendo metade em base de concreto e metade em dormentes de madeira de lei assentados sobre uma camada de poeira britada". Os trilhos, com 1,43 m. de bitola, achavam-se distribuídos pelas 12 linhas de bondes, em apenas um sentido. A rede de distribuição aérea, sustentada sobre postes de ferro, compunha-se de fios de cobre de 11,6 mm., de ida e de volta, com caixas comutadoras e pára-raios assentados de meia em meia milha, sendo os "cabos de alimentação (feeders) de arame de cobre torcidos em aspiral, cobertos com trança impermeável e de diversos diâmetros".32 As primeiras experiências com bondes elétricos foram realizadas em inícios de março de 1908, sendo a primeira linha inaugurada no dia 28 de março. Foram de início colocados em circulação 38 carros motores, sendo um deles um limpa-trilhos, e dois do tipo "imperial", todos com potência de 70 cv. No Campo da Redenção foram construídos o depósito de carros e as oficinas auxiliares, com capacidade para 40 bondes. A usina geradora, situada à Rua Voluntários da Pátria próximo à Rua Conceição, constituía-se de duas seções, uma para as caldeiras e outra para os geradores. A chaminé, com seus 47,10 m de altura, 3,5 m de diâmetro interno na base e 2,6 m no topo, era a maior de Porto Alegre na época, sendo também a primeira obra realizada com emprego de tijolos refratários no estado.33 Operavam na usina três caldeiras Balkok & Wilkox de 2.500 pés quadrados de superfície de aquecimento, cada uma montada sobre colunas de ferro forjado com base de ferro fundido de modo a que fique independente das bases de tijolo. Três máquinas verticais "Bellis & Morcom" de 450 cv de força cada, ligadas a três geradores de corrente contínua do tipo "Dick Kerr" de 300 kW cada um, trabalhando a uma tensão de 500 volts. Existem também três condensadores de superfície, um guindaste automóvel para elevar 10 ton., duas bombas para 2.000 galões e jogo completo para chaves comutadoras, um guindaste elétrico de força de 1 ton., para o desembarque de carvão ...34 30 Manoel Py, que exerceu cargos de diretoria em diversas compahias e, também, na Cia. Comercial Manufatora e na Fiat Lux, da qual tornara-se também um dos principais acionistas. Foi ainda deputado estadual pelo PRR, da 2ª a 5ª legislatura; Aurélio Py, acionista nas companhias citadas e deputado pelo PRR da 8ª a 10ª legislaturas; João Py Crespo, deputado pelo PRR na 2ª legislatura; João Batista Sampaio, incorporador minoritário do Banco Franco-Brasileiro, onde tinha 150 ações; Antônio Carlos Panafiel, igualmente deputado durante a 7ª e 8ª legislaturas; Armênio Jouvin, acionista da Fiat Lux e deputado durante a 6a legislatura; Antônio Soares de Barcellos, presidente da Fiat Lux e deputado da Constituinte de 1891 à 7ª legislatura, com excessão da 5ª, em que não exerceu mandato no estado; Antônio Mostardeiro, diretor do Banco da Província de 1915 a 1925 e de 1928 a 1930, diretor do Banco Nacional de Comércio de 1906 a 1914, e sócio das firmas "Mostardeiro Irmãos & Co., fundada em 1873, "Companhia de Seguros Previdência do Sul", "Sociedade de Seguros Porto-Alegrense", cuja diretoria integrou de 1905 a 1921, e "Coampanhia Fábrica de Papel e Papelão", cuja diretoria incorporou de 1923 a 1926; Thimóteo Pereira Rosa, sócio de Possidônio e deputado durante a 7ª legislatura. Entre outros grandes e médios acionistas da CFL estavam, ainda, Floriano Nunes Dias; Frederico Dexheimer, sócio da Cia. Previdência do Sul, diretor do Banco da Província em 1907 e de 1910 a 1917, sócio-fundador das firmas "F.C. Kessler & Cia.", fábrica de chapéus instalada em 1901, e "F. Dexheimer & Kessler", engenho de arroz, tendo ainda sido um dos incorporadores do "Engenho Central", em Cachoeira do Sul, pertencente a "Aydos, Neves & Cia."; Manoel Carvalho da Costa; Emílio Guilayn, diretor do Banco da Província, entre 1911 e 1914, sóciofundador da casa bancária "Emílio Guilayn", de Bagé, e da firma de representação comercial "Buxton & Guilayn", também administradora das usinas elétricas de Pelotas, Bagé e Santa Maria; foi ainda deputado da 5ª à 8ª legislaturas; Firmino Torelli, comerciante e membro do Partido Libertador; Plínio Alvin, ligado do Banco da Província; Edmundo e Otávio da Costa Gomes, Armando Bello Barbedo, Virgilio do Valle e João Carlos Toledo Bordini. Entre os pequenos acionistas estavam ainda João Batista Soares da Silveira, Firmino de Azambuja Rangel, Emílio de Castilhos, Dr. Martins Costa Jr. (advogado), José de Almeida, Monoel Escobar e Francisco Caldas Jr. (diretor do jornal Correio do Povo). Possuíam ainda ações da CFL as firmas Cia. União de Seguros, Cia. de Seguros Phenix, Banco da Província, Cia. Mostardeiro Irmão & Co., Banco de Comércio de Porto Alegre e a Cia. Predial e Agrícola. Ver: Fed18.04.1901; 27.03.1908; 05.07/12.08.1910 (CDHPRS); LAGEMANN, Eugenio. O Banco Pelotense e o Sistema Financeiro Regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, p. 47 e 94; TRINDADE, Hélgio. Poder Legislativo e Autoritarismo no Rio Grande do Sul (1891-1937). Porto Alegre: Sulina,1980, p. 287-300; O ESTADO do Rio Grande do Sul, Paris, Monte Domecq’ & Cia., 1915, p. 120-1, 459-60 e 466; AITA, Carmen & AXT, Gunter. Parlamentares Gaúchos, das cortes de Lisboa aos nossos dias (1821-1996). Porto Alegre, Assembléia Legislativa do RS, 1996. 31 Ver: PESAVENTO, S. J. História da Indústria Sul-Rio-Grandense. Guaíba: Riocell, 1985. Em 1912, a CFL passou a distribuir força elétrica à pequenas e médias indústrias, sendo a primeira usina a fazê-lo na capital. Em 1914, a potência da usina foi ampliada em cerca de 400 kW. A rede de trilhos também expandira-se. A companhia dispunha então de 67 carros elétricos e 34 reboques.35 Durante o ano de 1907, a companhia transportou 3.274.327 passageiros; em 1913, transportou 11.928.734 32 Fed - 03.10.1907 (CPDHPRS). JC - 10.03.1908; 25.03.1908 (MCS) 34 Fed - 03.10.1907 (CPDHPRS). 35 Fed - 01.03.1914 (MCS). 33 56 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 passageiros. Em 1923, então com 87 carros elétricos 32 reboques, transportaria 24.568.652 passageiros.36 A medida em que progredia e a rentabilidade do capital investido pôde ser comprovada, novos investidores engajavam-se na corporação.37 Embora a situação financeira da CFL fosse considerada promissora às vésperas da Primeira Guerra, seus serviços vinham, contudo, apresentando problemas desde a inauguração. As linhas de transmissão dos bondes partiam-se com freqüência, interrompendo por horas o tráfego em certos pontos. Os cabos aéreos da companhia também entravam em curto com os fios telefônicos. Já o sistema de travas dos bondes não era considerado muito seguro.38 Os acidentes com bondes, envolvendo pedestres ou automóveis, eram bastante usuais. Finalmente, os carros elétricos trafegavam sempre lotados, e os passageiros dos arrabaldes, em geral operários, queixavam-se veementemente por terem de pagar duas passagens para deslocarem-se ao centro, onde trabalhavam, pois tinham de fazer baldeação com os bondes circulares do perímetro central.39 Para que o tráfego de veículos pudesse ser aumentado, foi necessário duplicar os trilhos e a capacidade da usina. Em 1914, concebeu-se um plano de expansão, que acabou esbarrando nas dificuldades impostas pela Guerra. A crise provocada pela conflagração mundial, além de obstaculizar a importação de maquinário, fez crescer as despesas da companhia com o combustível e restringiu sua perspectiva de receita - o índice de aumento de passageiros transportados caiu de 15% ao ano para 2,8% entre 1914 e 1915.40 As novas obras de ampliação da usina foram concluídas apenas em 1916, quando a capacidade instalada alcançou então a casa dos 2.000 kW.41 No início dos anos 20, contudo, o discurso da diretoria da empresa sofreu uma guinada, passando a sustentar que o serviço tramviário da capital estava deficitário. A dívida da empresa aumentara sensivelmente: apenas entre 1906 e 1910, a companhia tomara quatro diferentes empréstimos e fizera duas emissões de títulos, totalizando um aumento de capital da ordem de 6.500 contos, sobre o capital inicial de 2.652 contos! Assim, quatro anos após seu surgimento, a companhia apresentava já um patrimônio líquido negativo, sustentando a distribuição de dividendos com base em sucessivas operações de crédito. Em 1910, os acionistas minoritários mostraram-se revoltados contra a política administrativa da diretoria, que, através destas operações financeiras, privilegiava os grandes investidores, em prejuízo dos menores, já que as ações vinham sendo progressivamente desvalorizadas. Liderados então por Caldas Júnior, os pequenos acionistas exprimiram suas críticas à presidência de Possidônio da Cunha através do jornal Correio do Povo, de propriedade do primeiro.42 O episódio estabeleceria um modelo, passando o Correio do Povo a atacar frontalmente os serviços e a administração da companhia, sobretudo com o aprofundamento da crise durante os anos 20. Em 1º maio de 1925, a CFL assinou um polêmico acordo com a Intendência que garantia a reformulação do contrato de 1906 e permitia o aumento das passagens, de Rs $200 para Rs $300, o que deveria instrumentalizar o saneamento da empresa.43 Em contrapartida, a CFL prometeu colocar em circulação mais 40 novos carros e aumentar em mais 50% o potencial da usina.44 O acordo foi criticado pela imprensa em geral, que entendeu ser a medida insuficiente para vencer a demanda por transporte na capital, além de desconfiar da seriedade da administração da companhia.45 Já a população, revoltada, promoveu quebra-quebras e tumultos.46 A eclosão de mais um movimento grevista dos funcionários da CFL contribuiu para o aprofundamento das tensões, servindo também de elemento de pressão da diretoria da empresa sobre os poderes públicos, a fim de lograr seus objetivos.47 Nascido juntamente com a empresa, em 1906, o Sindicato dos Trabalhadores da CFL foi sempre muito ativo, participando das greves gerais de 1906, 1917 e 1919 e promovendo ainda paralisações individuais, em 1911 e em 1925, sempre por melhores salários e condições de trabalho. O trauma derivado do saldo trágico da greve de 1919 (quando, aliás, fora o sindicato da CFL particularmente combativo), semeou apreensão nos governos, tanto mais açulada por esta nova ebulição operária.48 Os recursos para os investimentos previstos no acordo firmado foram obtidos junto à CEERG, que subscreveu um aumento de 5.000 contos de réis ao capital da CFL. Uma reformulação na presidência da companhia amparou então a expressão dos interesses dos novos acionistas, na pessoa de George Gugenheim, diretor da Cia. Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo. O diretor do Banco da Província do Rio Grande do Sul, instituição até o momento dona da maior parcela das dívidas da Força e Luz, Antônio Mostardeiro Filho, também acionista da companhia, passou igualmente a 36 Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Porto Alegre pelo Intendente engenheiro José Montaury de Aguiar Leitão; 19.10.1924. Porto Alegre: Oficinas Gráficas d'A Federação, 1924. 37 Fed - 1º.03.1914 (MCS). 38 JC - 12.04.1908 (MCS). 39 JC - 05.04.1908 (MCS). 40 Relatório da Intendência de Porto Alegre de 1915; Fed - 28.11.1916 (MCS). 41 Os Relatórios do Intendente Otávio Rocha de 1925 e 1926 (AHMPoA) indicam uma potência instalada de 2.650 kW para a termelétrica da Força e Luz, mas os Relatórios da própria companhia, não acusam uma potência superior a 2.000 kW (CP - 19.05.1928 - MCS). 42 Fed - 01.07; 02.07; 15.07; 19.07; 12.08.1910 (CPDHPRS). DN - 08.03.1925 (MCS). 44 DN - 12.03.1925 (MCS). 45 DN - 13.03.1925 (MCS). 46 Jornal Correio do Povo (CP) - 09.05.1925; 07.04; 19.10.1926 (MCS). 47 CP - 21.05.1926 (MCS). 48 Ver: AXT, Gunter. A voz do trabalho no coração de Porto Alegre. Porto Alegre: 1995. (Datilografado) 43 57 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 incorporar a nova administração.49 Com esta transação, a CEERG e a São Jerônimo assumiam o controle sobre as duas maiores empresas de eletricidade no estado (Fiat Lux e CFL). Esta piramidação do capital caracterizou o que o jornal Correio do Povo denominou de "truste carbo-elétrico".50 Em outubro de 1925, em mais uma medida impopular, o foro judicial da CFL foi transferido para o Rio de Janeiro, onde localizava-se o escritório da CEERG.51 Em 24 de março de 1926, uma assembléia dos acionistas realizada na capital federal, determinou a conversão da razão social da empresa para Cia. Carris Porto Alegrense (CPA). À guisa deste coup de grâce, eclipsava-se irremediavelmente a atividade do capital sul-riograndense na indústria de energia elétrica. Por seu turno, o Correio do Povo intensificava sua campanha em denúncia da má qualidade e alto custo dos serviços da CEERG e da CPA.52 O periódico argumentava que se ambas apresentavam contas deficitárias, era devido a comprarem carvão super-faturado, auferindo, em verdade, lucros indiretos através da Cia. São Jerônimo, o que, portanto, depunha contra as pretensões de aumento nas tarifas. Sustentava, ainda, que a população não poderia ser penalizada pela evasão de rendas que vitimava a CPA.53 Alheia a todas as críticas, a CEERG praticava, de fato, rumo a uma acelerada capitalização, essencial na continuidade de seu plano de expansão, um alto regime tarifário, cuja sustentação procedia da crônica escassez e do quase monopólio na distribuição de energia elétrica.54 Desde 1925, a companhia dava publicidade ao projeto de construção de uma grande termelétrica em Porto Alegre com capacidade de 20.000 kW, para consumo exclusivo de carvão nacional, de acordo com o contrato firmado com o governo federal, por intermédio do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, em 29 de dezembro de 1924.55 Tendo herdado a influência política ao nível regional da Fiat Lux e, em especial, da CFL, a CEERG procedeu à construção da nova usina sem qualquer garantia formalizada por um contrato de concessão com a Intendência. Da mesma forma, conseguiu fixar o prédio da usina em local considerado inadequado em parecer dos técnicos da Superintendência dos Serviços Industriais do município.56 De fato, a fuligem cuspida pelas chaminés da usina traria logo sérios transtornos aos moradores da zona oeste da capital, que passaria a ser conhecida como "zona vezuviana". Vinte e cinco diferentes prédios foram adquiridos pela CEERG na Ponta da Cadeia, próximo à Praça da Harmonia, constituindo, assim, um terreno de 5.700 m2 para a instalação da nova termelétrica.57 A 16 de abril de 1926, uma concorrida cerimônia celebrou o lançamento da pedra fundamental da nova usina de Porto Alegre.58 Em março de 1927, o porto da cidade agitava-se com a descarga de um dos geradores da usina, pesando 15 toneladas. O custo total da obra era avaliado em 15.000 contos de réis.59 As obras foram contratadas à firma Christian & Nielsen, que havia construído diversas hidrelétricas para os Guinle, no Rio de Janeiro, além das usinas de Alberto Torres e de Pombos, em Minas Gerais. Trabalhavam na obra, em ritmo acelerado, cerca de 150 operários.60 O edifício da usina foi o primeiro prédio em concreto armado da arquitetura industrial no Rio Grande do Sul. Representou uma impressionante obra de engenharia para a época. A construção das ensecadeiras, por exemplo, foi feita em pleno curso do Rio Guaíba, a 20 m. abaixo do nível médio das águas. A grandiosidade da usina podia ser averiguada pelo seu consumo de água, previsto em 8.000 m3 por dia, o equivalente a 6,5 vezes o consumo diário de água de toda a cidade de Porto Alegre, ou igual ao consumo diário de água da cidade de São Paulo, na época. A proximidade com o rio também permitiu o funcionamento de um cais próprio, construído com estacas de cimento armado, que facilitava o desembarque do carvão, livrando-o das taxas do porto da cidade. O carvão chegava ao cais transportado por chatas, das quais era retirado por enormes aparelhos de garras com capacidade de 2,5 toneladas e colocado nos britadores, de onde era conduzido por elevadores verticais, de caçamba, até a esteira distribuidora nos silos. 61 56 Parecer da Superintendência à Intendência quanto ao melhor local para instalação da nova usina. 08.09.1925 (AHMPoA). 57 Não obstante haver uma lei federal que facilitasse desapropriações no caso de empresas de serviços públicos, a aquisição dos prédios foi amigável. As desapropriações custaram à companhia Rs 495:363$376 (CP-17.04.1926; MCS). Houve confronto judicial apenas com um locatário de um dos prédios incorporados pela CEERG, em torno da utilização de um pequeno porto nos fundos do imóvel, que fora obstruído pelo atracadouro instalado pela empresa construtora (CP-18.05.1926; MCS). 58 CP - 17.04.1926 (MCS). 59 Era a maior soma investida numa usina gaúcha. Para se ter uma idéia, a hidrelétrica da Tóca, então em construção, que seria a maior usina no gênero no estado, estava orçada em 2.000 contos. Ver: AXT, Gunter. A Indústria de Energia Elétrica em São Leopoldo (1913-1946. Estudos Leopoldinenses. São Leopoldo: Unisinos. No prelo. 60 CP - 18.03.1927 (MCS). 61 A aparelhagem interna da usina correspondia à seguinte descrição: "A primeira bateria de geradores a vapor ficou constituída por cinco unidades. Cada caldeira aquatubular, tipo `Sulzer-Garbe', com jogo de tubos de aquecimento, verticais um tambor superior e um tambor 49 CP - 01.04.1925 (MCS). CP - 05.05.1926 (MCS). 51 DN - 10.11.1925 (MCS). 52 CP - 22.04.1926 (MCS). 53 Um estudo técnico encomendado pela companhia estimava que cerca de 20% da renda era perdida com passagens que os usuários deixavam de pagar, e 25% era desviada pelos condutores mancomunados com os fiscais, o que importava em razão de 45% de evasão de rendas. (RAMOS, Mário. Carta ao Superintendente da Companhia Carris Porto-Alegrense de 23.01.1926. Livro de Correspondências. Cia. Carris). 54 "A míngua de capital, a CEERG tem exigido altas cauções para operar ligações de força às indústrias." CP - 1º.04.1928 (MCS). 55 Ver: RAMOS, Mário de Andrade. A Nova Usina Thermo Elétrica de Porto Alegre. Conferência realizada em sessão extraordinária do Conselho Diretor do Club de Engenharia. Rio de Janeiro: Niemeyer Soares & Cia., 1929. 50 58 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Com tamanho investimento, a CEERG esperava já de saída duplicar o número de assinantes, que em 1927 beirava os 6.000.62 A demanda reprimida em Porto Alegre era de fato considerável. O potencial das três usinas em operação (a da antiga Fiat Lux, da Carris e a pequena Usina Municipal) totalizavam apenas 5.168 kW, sendo a energia transportada com grandes perdas, em virtude do sistema de corrente contínua e do mau estado da rede de distribuição, e consumindo as velhas instalações muito carvão para gerá-la. As antigas centrais geradoras controladas pela CEERG reuniam 4.500 kW de potência.63 As duas usinas da empresa teriam produzido conjuntamente cerca de 13.500.000 kWh em 1927, 6.981.213 kWh dos quais foram destinados ao serviço de tração elétrica (pelos trilhos da CPA transitavam, então, 97 carros). Do restante, cerca de 65% foram destinados à iluminação particular, 25% distribuídos às indústrias e apenas 10% foram consumidos pela iluminação pública da capital. Fora a energia destinada aos tramways, o principal mercado da companhia continuava sendo o da iluminação privada. O capital conjunto da CEERG e CPA alcançava 31.000:000$000, que eqüivalia a 60% do capital total investido em usinas termelétricas inferior um coletor de vapor, e construída cada uma dentro das seguintes especificações técnicas: superfície de aquecimento 325 m2; pressão de serviço, 20 atmosferas efetivas; pressão de experiência 30 atmosferas efetivas. Superaquecedor de vapor: superfície de superaquecimento, 150 m2; pressão de serviço 20 atmosferas efetivas; temperatura de vapor medida na saída do superaquecedor, 375 graus centígrados. Economizador para cada caldeira, com superfície de aquecimento de 240 m2; dispositivo raspador para limpeza contínua dos tubos e todos os acessórios necessários. As caldeiras foram providas de todas as válvulas, torneiras, registros, etc., e dos aparelhos de medida registradores para verificação da pressão, da porcentagem de gás carbônico CO2 nos gases de combustão, de tiragem, de temperatura dos gases, de temperatura do vapor etc. dando-se preferência aos aparelhos construídos sob o princípio elétrico. A água de alimentação das caldeiras é retirada do rio Guaíba passando antes por aparelhos de destilação, com uma capacidade mínima de 6.000 litros por hora.(...) O serviço de alimentação de água para as caldeiras é feito pela forma mais eficiente, com uma turbo-bomba `Sulzer', da capacidade de 33.000 litros por hora, altura de elevação manométrica de 225 m., com todos os acessórios e também por uma bomba elétrica centrífuga `Sulzer', de alta pressão da mesma capacidade. Além dessas duas bombas, há uma terceira bomba `Sulzer', de sobressalente. A sala da usina destinada aos turbo-geradores, foi construída para conter: quatro turbogeradores de 5.000 kW cada um ou a alternativa de dois de 5.000 kW e dois de 10.000 kW, com ligeiras modificações na superfície das fundações para o caso de 10.000 kW." A usina entrou em operação com "dois turbo-geradores de corrente trifásica, fabricação de `Oerlikon', da Suiça, com condensação, e compreendendo" cada um "uma turbina a vapor, tipo com condensação, construída para os seguintes dados: capacidade normal medida nos bornes do gerador, 5.000 kW; velocidade, 3.000 rpm; pressão do vapor de admissão, 18 Kg por cm2, acima da pressão atmosférica; temperatura do vapor de admissão, 350 graus centígrados. São os principais acessórios da turbina, cuja parte de alta pressão é de ferro fundido especial: uma bomba de óleo para dispositivo regulador e para lubrificação dos mancaes; uma bomba de óleo, a vapor, para demarragem; um resfriador de óleo, com circulação de água doce, para uma temperatura máxima de 25 graus centígrados; uma válvula reguladora automática, para o servo-motor a óleo, de pressão, com um dispositivo de segurança contra excesso de velocidade, verificável durante a marcha; um dispositivo contra o movimento axial do motor; um dispositivo de segurança contra a falta de óleo, de pressão, munido de aparelho de alarme; uma válvula de sobrecarga, automática, etc., aparelhos de medida, como: tachímetros, manômetros, vacuômetros, termômetros, etc. Cada gerador de corrente trifásica, diretamente ligado por luva à turbina, foi construído para os seguintes dados: capacidade 5.000 kWh, com cos.f.= 0,8, ou sejam, 6.250 KVA; frequência 50 ciclos por segundo, tensão elétrica 6.600 volts; quantidade de ar de resfriamento, 8 m3 de ar por segundo, aproximadamente. A excitatriz de 110 volts de tensão é ligada diretamente ao gerador por meio de luva. O conjunto turbo-gerador assenta sobre uma base cumum de ferro fundido, a qual foi selada por meio dos respectivos parafusos às fundações de concreto. Cada turbina está provida de um condensador de superfície, construído para trabalhar com água doce, consumindo 1.930 m3 por hora, devendo a temperatura dessa água ser de cerca de 25 graus centígrados. São seus aparelhos acessórios, um grupo bomba-motor, compreendendo um motor trifásico de 110 HP, 380 volts, 50 ciclos e 1.450 rpm; uma bomba centrífuga para água de resfriamento; uma bomba de ar e uma bomba para água condensada. O controle e a distribuição de energia gerada, para as linhas de alimentação, é realizado pelo perfeito e moderno sistema de pupitros e chaves para comando à distância dos interruptores de óleo. O regime de corrente em todas as suas modalidades é sempre conhecido pelos aparelhos de medida e registradores, como: ampérímetros eletro-magnéticos; voltímetros magnéticos; fasômetros eletro-dinâmicos; voltímetro de precisão eletro-dinâmico; frequenciômetro; sincronóscopo; voltímetro duplo eletro magnético de 0-8.000 volts; kilowattômetros registradores de 0-7.000 kW para cada turbina; aparelhos de proteção, etc." Ver: RAMOS, Mario de Andrade. A Nova Usina Thermo Elétrica de Porto Alegre. Conferência realizada em sessão extraordinária do Conselho Diretor do Club de Engenharia. Rio de Janeiro: Niemeyer Soares & Cia, 1929, p. 10-15. 62 Outros 2.000 consumidores eram atendidos pela Usina Municipal, o que totalizava 8.000 assinantes na capital. Em 1927, a população total de Porto Alegre beirava os 250.000 habitantes. Estima-se que entre 10 e 15% da população usufruía portanto dos serviços em suas residências e estabelecimentos comerciais. 63 "Subdividida por pequenas máquinas a vapor de 75 kW, 150 kW e 300 kW e apenas três turbinas, sendo duas de 750 kW na Fiat Lux e uma de 1.000 kW na Força e Luz Porto Alegrense, maravilhosa máquina que a quatorze anos funcionava ininterruptamente, tendo as suas palhetas já tão gastas que chegava a consumir quinze quilos de vapor para gerar um KW mas, não era possível pará-la, a não ser graças a dedicação do chefe da usina, apenas algumas horas pela madrugada, horas de menos carga, para uma ligeira limpeza, ou reparo indispensável. (...) Geradores a vapor, alguns (...) contavam 25 e 30 anos de serviço, pois, como as velhas caldeiras "Belleville", da Fiat, datavam da sua inauguração e ainda eram necessários nas horas de máxima carga. (...) O estudo dos detalhes com relação às péssimas condições da rede de distribuição de energia, instalações, etc., só poderia carregar as cores desse quadro..." (RAMOS, Mário de Andrade, op. cit., p. 8.) 59 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 no estado, em sua maior parte privadas. Segundo o Anuário Estatístico de 1927, Porto Alegre teria consumido cerca de 43% da energia elétrica total gerada no estado.64 Mas a construção da termelétrica da Volta do Gasômetro, um verdadeiro palácio da eletricidade, terminou conduzindo a CEERG a dificuldades financeiras. Em 1928, a distribuição de dividendos aos acionistas foi suspensa, após ter sido reduzida, nos anos anteriores, inicialmente para 6%, depois para 4%. Os problemas de reunião de recursos para a conclusão da obra agravaram-se em novembro de 1927, quando então iniciou-se o cortejo entre a São Jerônimo e o grupo norte-americano Amforp, empresa de capital norte-americano, ligada ao Banco Morgan de Nova Yorque, que estava entrando no Brasil e vinha açambarcando grande número de concessões em diferentes pontos do país.65 Entretanto, a concretização da transação dependia da possibilidade da companhia americana conseguir um contrato de exclusividade em Porto Alegre. Em outubro de 1927, intensificaram-se, portanto, as negociações entre a Amforp e a Intendência, apadrinhadas pelo técnico da Seção de Eletricidade, Dr. Fernando Martins, que em seguida viria a tornar-se funcionário da CEERG americana. Tendo inicialmente as condições da companhia sido rejeitadas pelos principais engenheiros do Intendente Otávio Rocha, as negociações foram reencetadas apenas em março de 1928, imediatamente após a morte deste último e com a sua substituição pelo Cel. Alberto Bins, grande industrial local, deputado estadual pelo PRR da 7a a 10a legislaturas (1913-1927) e vice-intendente. Chamou-se, então, às pressas uma concorrência pública que englobava a venda dos acervos da CEERG, CPA e Intendência Municipal (usina elétrica e gasômetro) e, após algumas manobras eficazes, que tiraram de cena os técnicos do município contrários ao acordo, celebrou-se, em 5 de maio, o contrato de concessão com a Companhia Brasileira de Força Elétrica (CBFE/Amforp).66 Esta operação resolvia o problema de caixa da São Jerônimo e continuava a garantir-lhe a reserva de mercado para o seu carvão, mesmo porque as máquinas da nova termelétrica haviam sido especificamente projetadas para uso do carvão nacional. De outra parte, os acionistas gaúchos, que agora mantinham participação minoritária nas empresas, apoiaram a transação, pelo que se depreende das declarações à imprensa da época. Doravante, entretanto, jamais voltaram estes a perceber quaisquer rendimentos por suas ações. O jornal Correio do Povo, por seu turno, seguiu em porfia com a CEERG, sustentando uma nota dissonante na imprensa da capital que dava voz à inconformidade de muitos consumidores face aos serviços prestados. De um modo geral, contudo, os serviços das empresas, CEERG e CPA, obtiveram uma sensível melhora, que manteve-se pelo menos até a década de 40. Todavia, analisado em um contexto mais amplo, o ônus do acordo firmado entre Alberto Bins e a CBFE foi pago especialmente pelas comunidades em processo de industrialização do interior do estado: no Vale do Sinos, Jacuí e região do Rio Santa Maria. Isto porque ao determinar a condição de privilégio em Porto Alegre, o principal mercado consumidor de eletricidade do estado era fechado, inviabilizando definitivamente o projeto de construção de uma central hidrelétrica no Rio Jacuí, que forneceria energia abundante e barata à capital e à região citada. Nesta, em meados dos anos 30, o espectro do racionamento tornar-se-ía já uma realidade sufocante. CONSIDERAÇÕES FINAIS O contrato de maio de 1928 importou num refluxo definitivo da participação do capital nacional na produção e distribuição de energia elétrica no Rio Grande do Sul, em benefício da expansão do capital estrangeiro, que até então ocupara uma posição periférica, nas cidades de Pelotas67 e Rio Grande, nesta última apenas até a encampação da Cie. Française du Port du Rio Grande pelo governo estadual, em 1919. Entre 1923 e 1925, o capital de origem regional, diante das dificuldades que enfrentava, havia recuado, tendo cedido espaço ao capital nacional, já consorciado ao estrangeiro, através da Cia. Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo. Embora a indústria de energia elétrica tenha sido pioneira no Rio Grande do Sul, surgindo apenas quatro anos após ter sido inaugurada a primeira usina distribuidora de eletricidade do mundo, por Thomas Edison, em Manhattan, o desenvolvimento das principais empresas responsáveis pelos serviços, sediadas em Porto Alegre, esteve sempre em descompasso com as demandas verificáveis pelo mercado de consumo. De fato, ainda que tenha sido feito um grande esforço para que empresas de origem inteiramente regional estruturassem-se desde o início sob forma de corporações modernas, com capital aberto a uma larga relação de acionistas, contrariando a tendência dominante do incipiente capitalismo sul-riograndense, marcado pela presença de empresas familiares, a natureza própria dos serviços de eletricidade, caracterizada pela exigência constante de investimentos dependentes da reunião de considerável volume de capital, determinou o permanente impasse na indisponibilidade de recursos suficientes garantidores dos programas de expansão das instalações. Tanto a Fiat Lux quanto a Força e Luz, procuraram promover sucessivos aumentos de capital, em geral captados junto aos maiores acionistas das companhias, junto a instituições financeiras regionais, algumas empresas ou investidores isolados, ou, em último caso, junto a grandes empresas de fora, capazes de proporcionar um vultoso aporte de capital; operações estas, que em ambas as companhias implicaram em 64 CP - 19.05.1928 (MCS); PORTO ALEGRE e as Novas Obras da CEERG, op. cit. p. 4; ANUÁRIO Estatístico do Rio Grande do Sul (1928), op. cit. 65 CP - 10.04.1928 (MCS). 66 Ver: AXT, Gunter. Política Energética e Indústria de Energia Elétrica no Rio Grande do Sul Republicano. Cadernos de Estudos. Curso de Pós-Graduação em História da UFRGS. Porto Alegre, n. 10, p.74-96, 1994. 67 Ver: AXT, Gunter. A Indústria de Energia Elétrica em Pelotas (1913-1946). Revista do Núcleo de Pesquisa da UFPel. Pelotas, n. 2, p. 149-173, 1996. 60 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 certos casos na alteração da constituição de suas diretorias, importando, inclusive, no afastamento de seus sócios-fundadores, no caso, Aimable Jouvin e S. Dernuit, e Possidônio M. da Cunha, respectivamente. À guisa de conclusão, depreende-se que o mercado financeiro regional, representado tanto por investidores isolados como por instituições de financiamento locais, foi incapaz de responder às necessidades de investimentos dispostas pela indústria de energia elétrica. Por outro lado, as tentativas de obtenção de recursos no mercado externo de capitais caracterizaram-se, via de regra, pelo fracasso, como, por exemplo, por ocasião das negociações conduzidas por Possidônio da Cunha, em 1905, na Europa. Doutra sorte, as operações de crédito e as emissões de títulos (em sua maioria quirografários) sucessivamente levadas a efeito pela administração da CFL indispuseram acionistas majoritários e minoritários entre si. Os termos desta polêmica foram detalhadamente vertidos pela imprensa em 1910. Com o tempo, a defesa dos interesses dos acionistas minoritários por intermédio de setores da imprensa aos mesmos ligados deriva a um ataque frontal à diretoria da CFL e, portanto, também aos serviços da companhia e ao contrato celebrado com o poder público municipal. A administração da CFL perde credibilidade perante a comunidade, e a crescente impopularidade dos serviços prestados pode ser avaliada diante das depredações ao patrimônio da empresa promovidas em repetidos distúrbios e tumultos sociais. Sem dúvida, as expectativas de rendimentos sobre o capital investido, sempre bastante elevadas, entraram em choque com o interesse público dos usuários dos serviços, o que insuflou grande celeuma em torno das pretensões de reajustes nas tarifas. A um tempo, incapaz de vencer os encargos de sua enorme dívida e de investir na ampliação de suas instalações, a CFL busca um novo parceiro financeiro, passando a diretoria a ser assumida por este e pelo principal credor da empresa. Da mesma forma, ao entenderem os acionistas da Fiat Lux ser inviável ou desinteressante a sustentação de novos aportes de capital, as ações foram integralmente transferidas a CEERG. O esgotamento da capacidade reprodutiva do capital repetiu-se com a Cia. São Jerônimo, determinando o processo que culminou com a absorção dos acervos da CEERG e da CPA pela CBFE norte-americana, em 1928. No transcorrer de sua controvertida existência, a CFL dispôs de um inegável favorecimento de parte dos poderes públicos, tanto ao âmbito municipal quanto estadual, o que em grande medida ajudou a viabilizar o empreendimento.68 Bastaria lembrar que nove dentre seus principais acionistas foram deputados estaduais e/ou federais pelo partido governista uma ou mais vezes. Embora os governos republicanos propalassem o tema da isenção e imparcialidade administrativa, verifica-se com efeito o favoritismo dos poderes públicos nos episódios da concorrência municipal de 1904; da realização dos projetos para implantação dos serviços; do contrato de 1906; da polêmica em torno das obras em 1907; das greves dos trabalhadores da empresa, especialmente em 1919 e 1925; e da revisão contratual em 1925.69 Durante a década de 20, a denúncia desta relação passa a ser sugerida pelos ataques da imprensa. Tal eficazes, de modo a realizar-se o melhoramento (...). A municipalidade concorreu para a formação da empresa (...). Foi a municipalidade que obteve isenção de direitos aduaneiros (...); que por causa das obras da companhia mandou retificar o perfil de diversas ruas nos arrabaldes (...); que mandou reparar calçamentos, obras estas que a cia. era obrigada fazer por força das obrigações do contrato ..." (Fed - 25.03.1908 - CPDHPRS). 69 É bem verdade que a Intendência foi acusada de perseguição à CFL por ocasião da rejeição da proposta da companhia para fornecimento de iluminação pública aos arrabaldes, em 1907. A controvérsia desenvolve-se quase que diariamente entre maio e julho de 1908 através dos jornais "Gazeta do Comércio", "Folha da Manhó" e "A Federação". Entretanto, não fosse pelo oportunismo eleitoreiro dos primeiros, que pretenderam explorar a polêmica gerada pela intervenção direta dos poderes públicos num chamado "serviço industrial", o debate pareceria insólito, pois além da Usina Municipal já estar quase concluída no momento da oferta da CFL, esta última previa custos mais elevados para os serviços dos que os projetados pela Intendência, os quais, ainda, seriam de difícil execução, pois a capacidade instalada na usina da CFL não permitia tal encargo. Sobretudo, porém, a usina de Porto Alegre era uma peça chave na política governamental de incentivo ao consumo do carvão nacional, constituindo-se num indispensável laboratório de testes para seu emprego e espaço privilegiado para propagandea-lo: "(...) Foi preciso a enérgica intervenção do intendente de Porto Alegre para acabar de vez com o preconceito de que o carvão nacional não se prestava ao fim de manter pressão nas caldeiras." (Fed - 07.03.1907 - CPDHPRS). E ainda: "São notórias as contrariedades com que tem lutado a empresa das minas de São Jerônimo para a colocação do carvão mineral. A guerra que sofreu foi surda às vezes, aberta de outras. Às dificuldades que surgiam ao desenvolvimento da empresa acresciam as que provinham dos que, sem conhecimento exato do assunto, depreciavam o gênero, dizendo que o carvão rio-grandense era imprestável. (...) Esta indústria de futuro grandioso definhava quanto o dr. Borges de Medeiros, então no governo, atento ao desenvolvimento das forças econômicas do estado, resolveu, de acordo com a Assembléia dos Representantes, tomar uma medida de dupla vantagem: prevenir a devastação das matas e proteger a definhante indústria do carvão de pedra. Taxado o consumo de lenha (...), a decisão do poder público foi recebida com antipatia, por todos quanto visam efeitos imediatos (...). A celeuma foi grande. A lenha era obtida por preços inferiores aos do carvão, e diante deste argumento calaram-se outras considerações de maior monta (...)." (Fed- 18.03.1908 - CPDHPRS). Enfim, para o governo estadual, que colocava o incentivo à indústria carbonífera acima das demandas da indústria em geral e das iniciativas para a eletrificação do estado, não se justificaria o simples abandono do projeto da usina de Porto Alegre: o favoritismo à CFL era limitado pelo protecionismo mais amplo ao setor extrator. 68 "... Se existe hoje a tração elétrica em Porto Alegre é devido à iniciativa municipal, que muito anteriormente a qualquer iniciativa da Carris Porto Alegrense tinha incumbido o dr. Cândido Godoy, atual secretário do governo de Carlos Barbosa, de estudar na Europa este sistema, com prévia autorização dos amigos do intendente e acionistas dessa empresa. Mais tarde, ou espontâneamente ou por conhecimento do projeto intendencial, respectivos orçamentos e plantas, a CPA resolveu entrar nas negociações para a tração elétrica. Dessas negociações e das indicações e intermediações dos amigos do intendente na Carris Urbanos, resultou a fusão com a CPA. De tudo teve conhecimento o benemérito dr. Borges de Medeiros, cujos esforços foram muito 61 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 protecionismo subliminar opera na alavancagem do ainda frágil capital regional, compensando a inexistência de uma política oficial definida para o setor elétrico. O capital que reuniu-se para a incorporação da Fiat Lux e da CFL teve origem num grupo de investidores especialmente ligados às atividades financeiras e comerciais na capital gaúcha. Dentre os principais acionistas das companhias encontram-se casas comerciais, imobiliárias, operadoras de seguros, bancos e capitalistas ou financistas isolados conectados a tais atividades. Além das empresas ligadas a Possidônio da Cunha, encontram especial destaque neste quadro de investidores e prestadores de créditos os bancos da Província e do Comércio. Finalmente, a condição de livre concorrência do mercado de energia elétrica na capital, festejada pelos poderes públicos, jamais afirmou-se na prática. Primeiramente porque nenhuma das empresas seria capaz de gerar energia suficiente para toda cidade, podendo cada uma atender apenas uma parcela restrita da demanda real. Além disso, possuindo diversos investidores ações em ambas as corporações, tornava-se indesejável qualquer confronto entre a Fiat Lux e a CFL. A partir de 1925, quando ambas empresas passam ao controle da CEERG, a condição de monopólio torna-se ainda mais evidente. Por sua vez, a Usina Municipal jamais chegou a constituir uma ameaça de concorrência às empresas privadas, pois distribuía energia a zonas nas quais as mesmas não atuavam. No momento em que, destarte, a reprodução do capital passou a exigir a garantia de privilégio de exploração dos serviços em Porto Alegre, a encampação do acervo municipal pela nova concessionária foi incluída na concorrência pública de 1928. Ainda que, efetivamente, o contrato de 1928 tenha, pelo menos a médio prazo, propiciado a melhora substancial dos serviços na capital gaúcha, não deixou de ser o mesmo um antídoto arranjado para o esgotamento das empresas atuantes no município. A Cia. São Jerônimo, que em 1923 iniciara uma ofensiva no setor elétrico de Porto Alegre com o intuito de fomentar o consumo do carvão que extraía de suas minas, chegara a 1928 incapaz de concluir as obras que desencadeara. Socorria-se, assim, empresas praticamente falidas redimensionando-se a questão energética da capital. Porém, sob um prisma imediatista e informado pelas determinações da indústria carbonífera e do capital financeiro regional, esta redefinição trouxe prejuízos ao estado como um todo. Tais medidas se deram numa época em que a indústria de energia elétrica era reconhecida sobretudo em sua dimensão comercial, e as empresas e concessões governamentais representavam células isoladas, dispersas pela inexistência de um plano geral de política energética definido. O capital privado que prosperou neste sistema, revelou sua fragilidade, apesar do favoritismo governamental, no momento em que foi chamado a resolver a equação determinada i) pela necessidade de maiores investimentos; ii) pelas altas expetativas de rendimentos sobre as somas investidas; iii) pela escassez de recursos disponíveis no mercado financeiro regional; iv) pela falta de acesso ao mercado estrangeiro de capitais; v) pela pressão do movimento operário, da opinião pública e dos usuários dos serviços prestados pelas companhias; vi) e, por fim, pelas contradições oriundas dos eventuais prejuízos acarretados à saúde das empresas a partir das especulações financeiras levadas a cabo pelas diretorias administrativas. Se num primeiro momento, a condição periférica da acumulação de capital no Rio Grande do Sul face ao cenário nacional permitiu a reprodução do capital regional no setor elétrico, pois os grandes investidores externos mostraram-se pouco entusiasmados com o incipiente mercado de consumo gaúcho, com o desgaste das iniciativas locais as companhias estrangeiras terminaram ocupando-lhes o espaço, sendo então de fato recebidas como alternativa redentora. 62 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 O DESAFIO DE CLIO: o esporte como objeto de estudo da História ∗ GENOVEZ, Patrícia Falco. O desafio de Clio: o esporte como objeto de estudo da História. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 84-92. Patrícia Falco Genovez Doutoranda em História pela UFF Membro do Núcleo de História Regional da UFJF http://www.ufjf.br/~clionet/rehb Endereço para correspondência: Revista Eletrônica de História do Brasil Arquivo Histórico da UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora - MG Prédio do CDDC - Campus Universitário Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330 RESUMO: O artigo trabalha o esporte como objeto da História, separado da Educação Física, colocando os espaços e possibilidades de análise de um tema ainda pouco explorado pela historiografia. ABSTRACT: The article deals with sport as a subject of History, disconnected from physical education, presenting the spaces and possibilities of analyses of theme still not much exploited by historiographie. PALAVRAS-CHAVE: Esporte: história; Historiografia: esporte. http://www.ufjf.br/~clionet/rehb E-mail: [email protected] Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342 Milhares de pessoas, enfrentando o mau tempo, se dirigiram ao caes Mauá para dizer o seu adeus aos “azes” patrícios, dandolhes um grande conforto na hora em que partiam para terra estranha em busca de maiores gloria para o Brasil esportivo. Desde meio-dia, portanto duas horas antes do “larga” do “Arlanza”, o povo começou a afluir ao caes, que cerca das 14 horas apresentava um aspecto grandioso e um ambiente de intensa vibração. A multidão se comprimia na praça Mauá, ocupando todos os pontos de onde fosse possível vêr melhor a chegada dos “azes”. Estes, à medida que iam aparecendo, tornavam-se alvo de enthusiasticas aclamações que partiam sinceras daquela multidão. Um extenso cordão de isolamento foi instalado sob a vigilancia de grande contingente da Guarda Municipal afim de evitar que o povo, levado pelo seu enorme enthusiamo, opuzesse qualquer dificuldade ao embarque da delegação. (...) Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo e em sua estrutura física. ∗ Este artigo, traduzido para o espanhol, foi publicado originalmente na revista Lecturas: Educacion Física y Deportes. Buenos Ayres, año 3, n. 9, Marzo 1998. <http://www.sirc;ca/revista> 63 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 interpretar la conyuntura y lo estrutuctural en la E. F. escolar hoy. 4 O “Arlanza” fez-se ao largo às 14,40 horas. E ao se afastar o navio, a multidão, em delírio, ovacionava freneticamente os “azes” brasileiros que, postados no convez, retribuiam as aclamações com o agitar de lenços. Só quando o “Arlanza” desaparecia ao longe a mole humana deixou o caes, certa de que, em terras longínquas, os “azes” patrícios jogarão com o pensamento na pátria distante, ouvindo, sempre, o grito de enthusiasmo e de incintamento que partiu de milhares de brasileiros na hora do embarque e que é o grito unisono do paiz inteiro. 1 O passo mais adequado, no momento, é nos valer cada vez mais de trocas interdisciplinares, levando a História até a educação física e trazendo a educação física para mais próxima dos historiadores. Nesse sentido, o esporte pode ser apenas o elemento inicial deste processo. Um objeto que tem sido trabalhado por alguns historiadores renomados ao nível internacional 5 mas, que aqui no Brasil, ainda não encontrou abrigo nos meios acadêmicos. 6 Por quê? Acredito que a resposta a esta pergunta nos levará, inevitavelmente, a um breve retrospecto da produção e das preocupações inerentes à historiografia brasileira. Não pretendo com isto, conduzir o texto para um debate sobre a historiografia, analisada em si mesma. Mas, tentar colocar os espaços e a possibilidade de trabalhar com um objeto tão pouco explorado. Aliás, não apenas pouco explorado como, às vezes, menosprezado no meio intelectual, tanto por aqueles que se dedicam a estudar a prática esportiva, como é o caso da educação física, 7 como por aqueles que se propõem a estudar o homem no espaço e no tempo, em suas mais variadas atividades, como é o caso da História. Nesse sentido, delimito meu escopo de observação aos historiadores brasileiros de formação, buscando trabalhos que procurem pensar metodológica e teoricamente o esporte como objeto de estudo da História. Exercício que se faz urgente num momento em que, recentemente, foi lançado, no país, um livro de grande importância e magnitude, Os Domínios da História, organizado por dois grandes historiadores, Ciro Cardoso e Ronaldo Vainfas. 8 Uma obra coletiva, com o objetivo de traçar um panorama atualizado dos vários campos de investigação da História. Curiosamente, nos capítulos referentes à História social e à História cultural, áreas que apresentam possibilidades teóricas e metodológicas para tratarem de um vasto leque de objetos, sequer citam o esporte. Atento à leitura do texto acima, magnificamente escolhido por Fábio Franzini, para descrever a partida da delegação brasileira de futebol para a Copa do Mundo realizada na França, em 1938 2, nenhum brasileiro teria qualquer dúvida sobre a importância do esporte no seu cotidiano. Contudo, tal objeto não parece receber, por parte de historiadores brasileiros, a atenção devida. Vale ressaltar, desde o início, que o recorte no presente artigo, trabalhando o esporte como objeto da História, separado da educação física, ocorre no sentido de que os mesmos nos pareça objetos distintos. Compreendemos que educação física e esporte são objetos diferenciados que vão solicitar caminhos metodológicos e preocupações teóricas diferenciadas. 3 Acredito que no momento atual da produção historiográfica, acerca de tais objetos, o esporte, encontre uma maior abertura na História do que a educação física. Não por ser esta última considerada menos importante mas, por ser entendida como um campo específico de conhecimento, talvez mais técnico. Contudo, é inegável que seu estudo também apresente questões pertinentes. Conocer la historia de la Educacion Fisica y desarrollar con esos datos la conciencia histórica de los professores de E.F. (en tanto competencia que se apoya en las operaciones mentales: percibir; interpretar y orientar) puede colaborar en el análisis y comprensión de nuestro habitus profesional (en tanto sentido práctico que dirige nuestras acciones). La investigación en História y la circulación de la información histórica puede ser parte del proceso de construcción i desarrollo de la conciencia histórica de los profesores de E. F. como perspectiva para 4 AISENSTEIN, Angela. “La investigación histórica en Educación Fisica”. Lecturas: Educación Fisica y Deportes. Buenos Aires, año 1, n. 3, 1996. 5 Como o Dr. J. A. Mangan, Chris Rogek e o sociólogo Eric Dunning. 6 Não podemos deixar de ressaltar alguns historiadores brasileiros já envolvidos no processo: Isabel Marson, Cecília Salles de Oliveira, Plínio Labriola e Edgar Deddeca. Além de um espaço virtual para troca de informação: a lista de discussão CEVHIST, moderada pelo professor Victor A. de Mello <[email protected]>. 7 Ver MELLO, Victor Andrade de. “História da Educação Física e do Esporte no Brasil Panorama, perspectivas e problemas”. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, vol. 1, n. 1, maio/97, p. 13. <http://www.ufjf.br/~clionet/rehb> 8 CARDOSO, Ciro Flamarion e VIANFAS, Ronaldo (org). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 1 “Uma apotheose o embarque da embaixada brasileira para a França!”. A Gazeta - Edição Esportiva. São Paulo, 02 de maio de 1938, p. 2. 2 FRANZINI, Fábio. “Futebol, identidade e cidadania no Brasil dos anos 30”. In: Caderno de Resumos; XIX Simpósio da ANPUH, Belo Horizonte, 1997. 3 Conforme MELLO, Victor A. de. “História da Educação Física e dos Desportos”. In: FARIA JÚNIOR, Alfredo Fomes et alli (org). Uma introdução a Educação Física. Niterói, Ed. Corpus, 1988. (no prelo). p. 5. 64 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 intelectual), fê-la apegar-se aos diversos “marxismos” disponíveis, sobretudo nos cursos de História. Não por acaso, aliás, as principais temáticas de pesquisa e publicação de fins da década de 1970 foram, grosso modo, as do “movimento operário” e da “revolução” (...) sem falar nas pesquisas de temas socioeconômicos, matéria que despertava enorme interesse naquele tempo. 13 Mesmo reconhecendo os limites de um livro que, evidentemente, encontra-se submetido a uma série de imposições editoriais, o esporte como objeto da História, não tem conquistado o espaço que lhe é devido nem mesmo no simpósio de historiadores (ANPUH) realizado a cada dois anos. Por incrível que possa parecer os historiadores que se dedicam ao esporte tem motivos para festejarem os quatro trabalhos inscritos e apresentados na ANPUH 9, num universo de aproximadamente mil e quatrocentas (1400) comunicações (somando livres e coordenadas), vinte e duas (22) conferências, cinquenta e sete (57) mesas redondas e trinta (30) cursos 10 em comparação à ANPUH de 1995, quando apenas um trabalho foi inscrito e apresentado. 11 Aliás, vale chamar a atenção para o fato de todos os trabalhos centrarem-se no futebol. Não havendo, portanto, apresentação de trabalhos tratando de outros esportes ou discutindo questões metodológicas, teóricas ou empíricas acerca do esporte como objeto de estudo. Esta ênfase no futebol não deve ser analisada apenas como o reflexo da paixão de alguns historiadores que resolveram “unir o útil ao agradável”, ou seja, fazer História ao falar de futebol. Na verdade, encaro tal processo, como parte de um outro, mais amplo, tratado adiante, que vem ocorrendo na historiografia brasileira. Do outro lado da moeda, estudantes e professores de educação física organizarão, neste próximo ano, o VI Encontro Nacional de História da Educação Física e do esporte. Um esforço que merece respeito e, mais do que isto, exige que se abra um diálogo cada vez mais estreito entre as duas disciplinas: História e Educação Física. Para explicar tamanho ostracismo é preciso voltar ao início do século, quando a historiografia brasileira desenvolvia-se em base rankiana, mostrando-se, nos anos 30, voltada para as abordagens clássicas. Diferentemente do que ocorria na Europa, no Brasil, a profissionalização do historiador se fez fortemente marcada pela influência das abordagens econômicas e sociológicas, predominantes na década de 60. 12 Tal influência garantiu trabalhos acadêmicos voltados, primeiramente, para o negro e a escravidão, e, nos últimos anos, áreas que privilegiam a História social da família, a História social do trabalho e a História social do Brasil Colonial e da escravidão. Numa outra perspectiva, a defasagem da historiografia brasileira, já na década de 70, tinha relação direta com o contexto histórico no qual encontrava-se inserida. O fato de a universidade ter sido confinada como uma espécie de “gueto” de resistência ao regime (resistência pelo menos Neste contexto, os poucos trabalhos com uma perspectiva histórica do esporte já nasciam comprometidos pela influência, primeiramente, da História tradicional, positivista e, em segundo lugar, por ser considerado assunto secundário em meio a temas como revolução, classe operária, marxismo e tantos outros. Conforme Victor Andrade de Mello, podemos pensar tais trabalhos dirigidos ao estudo dos desportos e da educação física dividindo-os em três fases: na primeira, predominam os livros importados voltados para os aspectos históricos da ginástica; na segunda, embora apresentando semelhanças com a fase anterior, já demonstram certo desenvolvimento no uso documental; na terceira, buscam ressaltar os aspectos ideológicos da educação física, contudo, apresentam-se metodologicamente confusos em relação à História.14 Tendo em vista o levantamento bibliográfico, já realizado pelo autor, não nos deteremos em avaliar tal produção. 15 De um modo geral, as obras relacionadas a estas três fases, apontam para uma bibliografia em que poucos são os autores que possuem formação em História. É, exatamente, pelas dificuldades inerentes à historiografia brasileira e, principalmente, pela afinidade desta para com a sociologia que teremos que compreender o menosprezo da História para com o esporte. Para Eric Dunning, ... no quadro da tendência que orienta o pensamento reducionista e dualista ocidental, o desporto é entendido como uma coisa vulgar, uma atividade de lazer orientada para o prazer, que envolve o corpo mais do que a mente, e sem valor econômico. Em consequência disso, o desporto não é considerado como um fenômeno que levante problemas sociológicos de significado 9 Os quatro trabalhos foram: SILVA, Eliazar João da. “A função social do futebol no Brasil (1894-1920), CABO, Álvaro Vicente do. “Copa do Mundo de 50 - Nação, confronto e derrota”, FRANZINI, Fábio. op. cit., PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “A Pátria calçando chuteiras: o futebol e a emergência social do nacionalismo”. Caderno de Resumos; XIX Simpósio Nacional de História da ANPUH. Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, 1997. 10 Informativo - XIX Simpósio Nacional de História: História e cidadania. Maio/1997, Ano II, n. 02, Belo Horizonte, MG. p. 2. 11 SILVA, Eliazar João da. A História do futebol no Brasil. Caderno de Resumos; XVIII Simpósio de História da ANPUH. Recife, UFPE, 1995. 12 CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro F. & VIANFAS, R. (org), op. cit., p. 55. 13 VAINFAS, Ronaldo. “História das mentalidades e História cultural”. In CARDOSO, C. e VAINFAS, R. (org), op. cit., p. 159. 14 MELLO, Victor A. de. op. cit., 14 a 21. 15 Para um levantamento sobre o tema ver GENOVEZ, Patrícia Falco e MELO, Victor Andrade de. Bibliografia Brasileira sobre História da Educação Física e do Esporte. Rio de Janeiro: Editora Central da Universidade Gama Filho, 1998. A obra está publicada, também, eletronicamente pela Clio Edições Eletrônicas <http://www.ufjf.br/ ~clionet/clioedel>, podendo ser consultada na Biblioteca Virtual de História do Brasil: <http://www.ufjf.br/~clionet/bvhbr> 65 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 específicos.21 Nesse sentido, a citação que abre o presente ensaio é bastante significativa e emblemática acerca da comoção nacional que a partida da seleção brasileira de futebol proporcionou aos torcedores e, principalmente, aos cidadãos brasileiros. Num outro sentido, o esporte também é um indicativo de modelos de sociabilidade e de conduta. Aliás, temos que estar atentos para a importância das regras que conduzem os confrontos esportivos tornando-os prazerosos e excitantes a um número cada vez maior de espectadores. Um processo longo, que para Norbert Elias, é mais um exemplo de avanço da civilização.22 E, que se constitui, no século XX, como representação simbólica da forma não violenta e não militar de competição entre Estados.23 Seria uma espécie de contramedida diante das tensões que as sociedades avançadas criam. Ou seja, Enquanto a excitação é bastante reprimida na ocupação daquilo que se encara habitualmente como as atividades sérias da vida exceto a excitação sexual, que está mais estritamente confinada à privacidade -, muitas ocupações de lazer oferecem um quadro imaginário que se destina a autorizar o excitamento, ao representar, de alguma forma, o que tem origem em muitas situações da vida real, embora sem os seus perigos e riscos. 24 equivalente aos que habitualmente estão associados com os negócios “sérios” da vida econômica e política. 16 Sem valor econômico e considerado vulgar, os historiadores, tal qual os sociólogos, insistem em não perceberem o esporte como um objeto de estudo capaz de mostrar as mais tênues nuances das relações sociais que, fora da lógica esportiva, parecem excludentes, como a competição e a cooperação ou o conflito e a harmonia.17 É, justamente, por abrir esta possibilidade de análise que podemos pensar no esporte como um objeto da História social ou da História cultural. Passemos, portanto, a avaliar mais detidamente tais possibilidades teóricas e metodológicas. Pensar o esporte como objeto para aclarar as relações sociais não é, absolutamente, nada novo. Eric Hobsbawm, renomado historiador, aponta o esporte como um dos elementos capaz de estabelecer o pertencimento à burguesia ou à classe média, na Inglaterra, no final do século XIX e início do XX. Todos exigiam que se preenchessem duas condições: deviam distinguir claramente os membros da classe média dos das classes operárias, dos camponeses e de outros ocupados em trabalhos manuais, e deviam apresentar uma hierarquia de exclusividade, sem afastar a possibilidade de o candidato galgar os degraus da escadaria social. Um estilo de vida e uma cultura de classe média era um destes critérios; uma atividade ociosa e especialmente a nova invenção, o esporte, era outro; mas o principal indicador do pertencimento de classe crescentemente veio a ser, e ficou sendo, a educação formal. 18 O descontrole “controlado” favorecido pelo esporte apresenta-se como um antídoto para o stress da vida real através de tensões miméticas, envolvendo o perigo e a tensão da realidade em contraposição àqueles criados numa prova desportiva. Mas, para além do emocional, o esporte também favorece o estudo das ações humanas em grupo, tendo em vista que o processo do jogo é exatamente este: uma configuração dinâmica de seres humanos cujas ações e experiências se interligam continuamente, representando um processo social em miniatura. 25 Mas, no que concretamente a História social e a História cultural podem contribuir? Por que o esporte seria, por excelência, o objeto destas duas áreas da História? Mais do que respostas acabadas, o que tentaremos colocar são elementos para futuras discussões. Exatamente, por ser um objeto ainda recente para a História, muitos debates serão necessários para aclarar cada vez mais as possibilidades metodológicas. Tentarei, portanto, levantar algumas delas. Nascida para contrapor-se à História factualista, centrada em heróis e batalhas, a História social pretendida pelos Annales, priorizava os fenômenos coletivos e as tendências de longo prazo. 26A partir da década de 60, a História social apresentou- Como uma tradição inventada, Hobsbawm nos abre caminho para apreendermos o esporte como um instrumento, entre tantos outros, utilizado para inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição. 19 Assim, o esporte pode ser um indício, um indicador, das relações humanas e das ações que as legitimam, podendo, em alguns casos, se colocar como cimento da coesão grupal.20 Para o autor, o esporte da classe média representava a tentativa de desenvolver um novo e específico padrão de lazer e um estilo de vida, um critério flexível e ampliável de admissão num grupo, além disso, a ascensão do esporte proporcionou novas expressões de nacionalismo através da escolha ou invenção de esportes nacionalmente 16 21 17 22 ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1985, p. 17. Idem. p. 18. 18 HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988, p. 245. Grifo nosso. 19 HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (org). A invenção das tradições. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1984. p. 9. 20 Idem. p. 21. Idem. p. 309. ELIAS, N. The civilizing process. Oxford: 1978. 23 ELIAS, N. e DUNNING, E. op. cit., p. 45. 24 Idem. p. 70. 25 Idem. p. 87. 26 FEBVRE, Lucien. Combates pela História. 3 ed., Lisboa: Presença, 1989. Neste livro o autor mostra, através de vários ensaios, a proposta dos Annales e os combates travados por uma 66 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 cometida. Por esse motivo, a vingança é, com frequência, o seu grito de guerra. Um dia a gota d’água transborda e eles procuram vingar-se sobre alguém. 29 se mais próxima da antropologia, privilegiando abordagens socioculturais sobre os enfoques sócio-econômicos. Nesse aspecto, Hebe Castro, aponta múltiplas referências. Em primeiro lugar, a elaboração de uma noção de cultura percebida como inerente à natureza humana e que engloba e informa toda a ação social. Da perspectiva de Geertz, toda a ação humana (e não apenas o hábito ou o costume) é culturalmente informada para que possa fazer sentido num determinado contexto social. É a cultura compartilhada que determina a possibilidade de sociabilidade nos agrupamentos humanos e dá inteligibilidade aos comportamentos sociais. 27 Além da questão de sociabilidade e comportamental, há ainda outro aspecto: o simbólico. Um escopo de pesquisa ainda pouco explorado pela História cultural, preocupada com a sexualidade e a moralidade cotidiana do período colonial e do século XIX, ou ainda, com a mentalidade e a cultura escravista. 30Contudo, sua afeição pelo informal, como festas, crenças etc, abre espaço para o historiador trabalhar o lazer e o esporte. Gestos, cores, emblemas, todo o aparato que envolve as práticas esportivas podem ser objeto de estudo da História cultural. Assim como as bandeiras e hinos nacionais evocam e representam o patriotismo de uma nação tais símbolos podem ter o mesmo tratamento com relação a clubes ou delegações de atletas. 31 Aliás, no aspecto representativo, muitas vezes o próprio atleta já é um símbolo. Ao relatar os mecanismos pelos quais o futebol criava uma identidade e auxiliava a ideologia nacionalista na década de trinta no Brasil, Fábio Franzini nos remete para as tênues fronteiras entre o esporte, a sociedade e os símbolos que o primeiro é capaz de perpetrar no imaginário da população. Os jogadores eram os representantes do Brasil no exterior, e deles se esperava o mesmo que da nação: coragem, disciplina, e, acima de tudo, patriotismo. Mas o mais importante era que a população brasileira via que esses representantes não lhe eram estranhos; ao contrário, tinham saído dela própria: eram negros, mulatos, filhos de imigrantes - precisamente aqueles que consquistaram o futebol dos pés da elite para transformá-lo em uma das expressões populares mais enraizadas. Em que pese toda a importância da ideologia nacionalista do momento, essa identificação primeira, da população com os jogadores e destes com a nação, é que foi fundamental para promover a coesão nacional em torno do futebol. 32 No âmbito da sociabilidade e dos comportamentos de agrupamentos humanos, o esporte, sem dúvida teria um papel relevante como objeto de estudo. Não só pelo aspecto grupal de certas práticas esportivas mas pelos símbolos e comportamentos sociais que implicam. Aprofundando um pouco mais na questão da sociabilidade podemos nos remeter a gerações de atletas, redes de amizades e de rivalidades. E, não apenas de atletas profissionais mas, também, de grupos esportivos que restringem seus integrantes de acordo com a classe social a que estão inseridos. Além das trajetórias de tais grupos é possível traçar algumas características do “viver em classe”, das relações comuns a uma geração. O mundo esportivo é um mundo a parte com redes complexas, daí a necessidade de compreender a maneira como as associações vão se formando, assim como, as práticas esportivas características de cada classe social. 28 Nesse sentido, uma análise sócio-econômica pode se tornar extremamente reveladora, mostrando conflitos sociais e formas de marginalizações. Basta, para tanto, tomarmos como exemplo os diversos casos de violência de torcidas, ocorridos não apenas em países pobres mas, também em sociedades que apresentam um nível sócio-econômico satisfatório para grande parte da população, como é o caso da Inglaterra. A partir das áreas cinzentas de marginais que se formam à volta da maior parte das grandes cidades mais desenvolvidas, as pessoas, em especial os jovens, olham através das janelas para o mundo estabelecido. Podem ver que é possível uma vida com mais sentido e mais realizada do que a sua própria vida. Seja qual for o seu sentido intrínseco, isso possui um significado para eles e sabem, ou talvez apenas possam sentir, que estão privados disso para toda a vida. E embora por vezes acreditem que lhes foi feita uma grande injustiça, nem sempre é claro saber por quem foi Não apenas o futebol mas outros esportes podem contribuir com a formação de uma identidade de um determinado grupo ou até cidade. É, partindo desse pressuposto que Gatón Gil analisa o basquete na cultura urbana no interior da Argentina.33 Para o autor o esporte é 29 História do social contrapondo-se ao modelo rankiano. 27 CASTRO, Hebe. op. cit., p. 52. 28 Sobre geração ver ATTIAS-DONFUT, Claudine. “La notion de genération. Usages sociaux et concept sociologique”. L’homme et la societé. n. 90, XXII année, 1988. Sobre sociabilidade ver LEROY, Geraldi. “La mondanite literaire a la Belle-Epoque”. Les cachiers de L’IHTP. Paris, n. 20, mars, 1992. Neste artigo o autor trabalha a questão da sociabilidade nos cafés parisienses. ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. op. cit., p. 93. VAINFAS, Ronaldo. op. cit., p. 160. 31 Sobre símbolos, bandeiras, cores ver BETTHENCOURT, F. & CURTO, Diogo. (org). A memórias da nação. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1987. 32 FRANZINI, Fábio. op. cit., p. 9. 33 GIL, Gastón. “Rebotes de identidad, el basquete en la cultura urbana del interior. Lecturas: 30 67 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 un foco de una extraordinaria variedad de posibilidades de identificación, al modularlas de acuerdo a los hábitos específicos de las diferentes categorías de espectadores: identificación, por supuesto, con una ciudad, una región, con una firma o compañía en términos del estilo del equipo del que uno es hincha; una identificación preferencial con tal y tal tipo de juagador de acuerdo a las cualidades (fuerza, fineza, sentido de organización...) que son valorodas en un proprio universo cultural y práctica profesional; la identificación de un equipo o club con una imagem ideal de vida colectiva; la idenficación de una drama que constituye el juego con sus experiencias (felices o infelices) de la propria experiencia personal de un sujeto. 34 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pensar tais áreas de pesquisa exige, em contrapartida, um trabalho especial com as fontes. Nesse sentido, é preciso estar atento para a grande variedade de fontes disponíveis: das mais convencionais (jornais, revistas, fotos, atas de reuniões, livros de contabilidade dos clubes, cadastro de sócios etc) às menos formais (emblemas, uniformes, hinos, gritos de guerra de torcidas etc). Além, é claro, das possibilidades das fontes orais, envolvendo relatos de antigos e de novos ídolos. A História oral permite a elaboração de documentos que podem revelar processos diversos de formação de uma imagem, de elementos distintos que compõem cada geração. Trajetórias que podem ser reveladas através de relatos de torcedores e especialistas da área esportiva. As fontes visuais, também, podem e devem ser utilizadas, sempre procurando incorporar a engrenagem que as produziram. As matérias publicadas, as reportagens devem ser entendidas e analisadas buscando os mecanismos através dos quais a mídia constrói ou destrói os mitos e as formas diferenciadas de formação da opinião pública. Contudo, é importante que o historiador não perca de vista a metodologia adequada a cada tipo de fonte e, muito menos, a crítica que cada uma delas deverá sofrer. Uma questão já bastante conhecida para os historiadores de formação mas, que talvez, para alunos e professores da área de educação física possa causar certo incômodo. Sem a pretensão de fazer um breve manual metodológico, é preciso ressaltar que sem um total afinamento entre teoria, metologia e empiria, sem qualquer preocupação com o recorte temporal e espacial do objeto é, absolutamente, impossível estar fazendo História sobre qualquer tipo de objeto. 36 Parece que está posto o desafio de Clio aos seus discípulos historiadores. Cabe a nós entrarmos no jogo sem perder de vista suas regras, a metodologia adequada no trato das fontes e os instrumentos teóricos que, em simbiose, com o próprio objeto de estudo, contribuirá para levantar novas perspectivas acerca do convívio do homem, no tempo e no espaço. Além da identificação que o esporte pode suscitar a questão simbólica e ritualística, também, deve ser observada. Enquanto prática esportiva repetitiva e de alto conteúdo dramático o desporto apresenta uma ritualidade que lhe é característica, revelando o sentimento de pertencimento ou de exclusão, marcando diferenças sociais mas, ao mesmo tempo, propiciando a coesão e a identificação grupal. Contudo, la celebración del rito no anula todas las diferencias, sino que, eventualmente, anula aquellas que se derivam de lo que acabamos de llamar la primera alteridad (la relativa a la edad, al sexo, etc.). En cuanto a lo demás, la celebración del rito se organiza alredor de las alteridades diferentemente constituidas, alteridades funcionales que ponen en escena (...) diferencias derivadas de la primera alteridad (separar los hombres de las mujeres, por exemplo) y relativizar por eso la identidad compartida: ésta es compartida ahora sólo por la presión de diferencias que no se conciben planamente como relativas, como teñidas en cierta forma por la identidad. El dispositivo ritual alcanza su límite y el de su eficacia cuando la alteridad que le es propria (oficiantes/asistentes, etc) abarca, de maneira más o menos amplia, la alteridad social que dicho dispositivo debe reconecer y tratar. Ese vuelco de la relativización (la identidad compartida sólo es relativamente a la ceremonia y las alteridades correspondem a diferencias insuperables) es notorio en los rituales llamados de inversión, en los que las diferencias se presentam, se imitam, pero non se borran. 35 Educación Fisica y Deportes. Buenos <http://www.sirc.ca/revista/edfxtes.htm> 34 Idem. 35 Idem. Aires, ano 2, n. 5, Junio 1997. 36 Sobre os passos de um projeto de pesquisa em História ver CARDOSO, Ciro F. Uma introdução à História. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 81 a 115. 68 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 INICIAÇÃO CIENTÍFICA DAIBERT JÚNIOR, Robert. Isabel, a Redentora: heroificação da princesa brasileira frente à crise monárquica e no advento da República. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 93-112. ISABEL, A REDENTORA: heroificação da princesa brasileira frente à crise monárquica e no advento da República * http://www.ufjf.br/~clionet/rehb Robert Daibert Junior Graduando em História pela UFJF [email protected] Endereço para correspondência: Revista Eletrônica de História do Brasil Arquivo Histórico da UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora - MG Prédio do CDDC - Campus Universitário Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330 ...os traços de heroísmo, de virtudes cívicas oferecidas aos olhos do povo, eletrificam suas almas e fazem surgir as paixões da glória, da devoção à felicidade de seu país. David, pintor da Revolução Francesa RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar a construção do mito em torno da Princesa Isabel, como a principal responsável pela abolição da escravidão no Brasil. Esta supervalorização é encarada como um mecanismo discursivo de sustentação do regime monárquico no final do século XIX. Através da pesquisa em imagens e fontes escritas, aborda-se a formação do mito no momento da crise monárquica, bem como sua permanência após o advento da República. http://www.ufjf.br/~clionet/rehb E-mail: [email protected] Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342 ABSTRACT: The aim of this article is to analyse the construction of the myth around the Princess Isabel, as principal responsible for the abolition of slavery in Brazil. This increased value is faced as an ideological mechanism to mantain the monarchial regime in the end of nineteenth century. Through the research in images and sources documents, the text approach the making of the myth in the moment of monarchial crisis, as well as its permanence after the coming of the Republic. Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo e em sua estrutura física. PALAVRAS-CHAVE: Princesa Isabel: heroificação; Crise monárquica; Abolição; República: advento. * Este texto foi produzido originalmente, pelo autor, como trabalho final da disciplina História da Arte V, lecionada pela Professora Maraliz de Castro Vieira Christo, no segundo semestre letivo de 1997, no Curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 69 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 linguagem própria e passível de ser decodificada. Desta forma, estaremos analisando os elementos contidos nestas imagens, bem como o sentido dos mesmos no contexto de crise do regime. Nossa proposta, num primeiro momento, é demonstrar a necessidade de construção do mito, bem como sua relação com o período abordado. Num segundo momento, estaremos analisando a própria construção do mito, onde buscaremos desvendar a presença de um discurso pedagógico, presente nas imagens analisadas. Um discurso que busca legitimar a herdeira do trono associando-a à idéia de moderno, progresso etc, conferindo-lhe, com isso, caráter de autenticidade, merecimento e, por parte dos súditos, aceitabilidade. Posteriormente, iremos analisar a permanência do mito da Redentora após a Proclamação da República. Verificaremos, neste contexto, a vitória de uma leitura monarquista da abolição. Uma proposta discursiva que, se não conseguiu alcançar seu objetivo principal - legitimar o Terceiro Reinado - foi forte o bastante, a ponto de sobreviver à queda da Monarquia e encobrir a interpretação republicana que também tentou, sem obter sucesso, defender sua maternidade em relação à abolição. Nosso material de pesquisa - fontes primárias - se encontra, quase totalmente no Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora), instituição responsável por um dos maiores acervos do Brasil Império. 3 Elegemos como material de análise iconográfica: uma estatueta comemorativa do treze de maio de 1888 e estampas veiculadas na Revista Ilustrada. 4 Analisamos também, notícias diversas transmitidas pela imprensa em momentos significativos. Analisaremos agora as motivações para a criação do mito. INTRODUÇÃO Em treze de maio de 1888 chegava ao fim a mais complexa e tortuosa campanha social já realizada no Brasil. Após décadas de intensas discussões políticas, campanha abolicionista, fugas e rebeliões escravas, era abolida a escravidão negra no país. Depois de ser aprovada na Câmara e no Senado, foi finalmente sancionada, pela Princesa Isabel, a famosa Lei Áurea. E assim, estabeleceu-se na memória coletiva somente a parte final deste longo processo. Ou seja, a visão sobre a abolição tem sido reduzida ao momento de sanção da lei que é interpretada como resultado de um decreto de extrema bondade da Princesa Isabel. Estamos nos referindo à visão que foi difundida e se estabeleceu entre os diversos setores e classes sociais. Uma visão que foi gestada pelos monarquistas, corroborada pela historiografia tradicional e que ainda hoje, apesar de toda renovação na concepção da história, não foi ainda totalmente apagada da memória coletiva. A historiografia, ao se renovar, buscou se contrapor àquela visão tradicional, responsável pela heroificação da Princesa Isabel. E, desta forma, passou a explicar a abolição através de uma análise que privilegiou como determinante ora as explicações estruturais, ora o imigrantismo, o movimento abolicionista ou o próprio imaginário das elites.1 De um modo geral, o pós-abolição tem sido visto como o período onde a monarquia perde o apoio dos cafeicultores do Vale do Paraíba que, insatisfeitos, aderem ao movimento republicano. Conseqüentemente a abolição é interpretada como uma das causas da proclamação da República. 2 Acreditamos, porém, que este não foi um momento de passividade monárquica, como deixa transparecer a historiografia. Antes, foi um período de intensas disputas, onde posições antagônicas - republicanas e monarquistas- se enfrentavam continuamente. O que nos propomos neste trabalho é analisar os primeiros momentos do pós-abolição, onde a monarquia brasileira celebrava o fim do cativeiro e via nesta ruptura a garantia de legitimidade do Terceiro Reinado. Certamente a Monarquia não assistiu sua decadência de braços cruzados. Os meses que antecederam a instauração do regime republicano são momentos privilegiados onde percebemos as articulações monárquicas em prol da garantia de sua estabilidade. Nesta perspectiva é que iremos estudar a heroificação da Princesa Isabel. Isto é, estaremos analisando a construção do mito da Redentora como principal mecanismo de articulação discursiva na busca da estabilidade monárquica. É este o enfoque que buscaremos dar a idealização deste Terceiro Reinado frente ao contexto de crise da monarquia. Para tanto, iremos nos debruçar sobre a produção de imagens relativas à Princesa Isabel que buscam associá-la de forma direta à abolição. Isto é, como defensora-mor da causa abolicionista. Buscaremos identificar as mensagens presentes nessas imagens, entendendo-as como construções históricas que detêm Faz parte da mística de qualquer Monarquia elaborar e difundir uma visão supervalorizada de seus governantes. Ao verificar uma proposta de heroificação da Princesa Isabel não estamos nos deparando, portanto, com nenhum processo estranho à tradição monárquica, sobretudo se considerarmos que ao longo dos séculos “os reis foram percebidos como personagens capazes de ‘proteger’ e ‘salvar’.” 5 Contudo, entendemos que, nas circunstâncias pelas quais passava a monarquia brasileira, no final do século XIX, a heroificação da herdeira do trono assumiu um sentido especial, como veremos. Antes de entrarmos na construção deste discurso legitimador, precisamos esclarecer a que discurso ele se opunha. Ou melhor dizendo, qual o conteúdo do discurso “inimigo” que precisava ser enfrentado e que desafios a nova sociedade lhe impunha. Com isso, entenderemos a necessidade e o sentido da heroificação, a demanda pelo mito. 1 3 1. A DEMANDA PELO MITO DA REDENTORA CARDOSO, C.F.S. (Org.) Escravidão e abolição no Brasil; novas perspectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 74-106. 2 COSTA, E.Viotti. Da monarquia à república; momentos decisivos. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, p. 327. Apesar de ser pouco conhecida, a instituição perde, em matéria de acervo do século XIX brasileiro, somente para o Museu Imperial de Petrópolis. 4 Periódico semanal circulado entre 1876 e 1896. 5 RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Os símbolos do poder. Brasília: UNB, 1995, p. 105. 70 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 representado-o como arcaico, ultrapassado, não condizente com os novos tempos, ligado às trevas. Em oposição a tal situação, apresentavam-se como portadores do progresso, da liberdade, das luzes. E, neste sentido, escolhemos este manifesto por considerá-lo um ponto de inflexão. A partir de sua publicação é que o movimento republicano irá se organizar e gradualmente ganhar força também em outras províncias. Apesar da falta de coesão entre os diferentes grupos defensores do republicanismo, que como vimos assenta raízes nos tempos coloniais, este momento (1870) foi responsável por um grande impulso nas discussões em torno da possibilidade de um regime republicano para o país. É a partir daí que a ameaça republicana, sempre presente nas discussões políticas, irá se consolidar a ponto de impor uma nova direção para as articulações monarquistas. A publicação do Manifesto Republicano coincide com a emergência de uma série de mudanças na sociedade brasileira oitocentista. É a partir de 1870 que as transformações econômicas que vinham ocorrendo desde meados do século tomam crescente impulso... Acelera-se o processo de urbanização e industrialização, favorecido pela expansão da rede ferroviária e pela entrada crescente de imigrantes, notadamente para as regiões Sul e Sudeste.8 A ameaça republicana não se constituía uma particularidade das últimas décadas oitocentistas. Mesmo em escala menor, ideais republicanos vinham se aflorando em nosso meio desde os tempos coloniais. Um exemplo claro pode ser observado na Inconfidência Mineira, movimento fortemente reprimido no final do século XVIII. Também nos debates travados em torno do nosso processo de independência lá estava a proposta republicana colocando-se como obstáculo aos partidários da Monarquia. Após a abdicação de D. Pedro I, e durante todo o período regencial (1831-1840), novamente percebemos movimentações em torno de propostas republicanas. Ao longo de nossa História, a estabilidade do regime monárquico esbarrava constantemente e, em escala cada vez maior, com os ideais republicanos. Estes, se colocavam como portadores de um projeto político alternativo e superior à ordem imperial. Uma melhor delimitação deste projeto pode ser observada no Manifesto Republicano de 1870. Fundamentado nos princípios da liberal-democracia, defendia reformas profundas nas estruturas do país que estariam, segundo os articuladores do documento, empregnadas pelo ranso absolutista português. E, neste sentido, declaravam que “o elemento monarchico não têm coexistencia possivel com o elemento democratico.” 6 Contrapondo-se ao regime, então em vigor, procuravam se afirmar apresentando-se como portadores de um projeto político alternativo e superior. Colocavam-se como defensores de uma missão que iria solucionar os problemas do país, como se pode verificar no trecho seguinte: As armas da discussão, os instrumentos pacificos da liberdade, a revolução moral, os amplos meios do direito, postos ao serviço de uma convicção sincera, bastam, a nosso entender, para a victória da nossa causa, que é a causa do progresso e da grandeza de nossa pátria (...) A imprevidencia, as contradições, os erros e as usurpações governamentaes... hão creado esta situação deploravel, em que as intelligencias e characteres politicos parecem fatalmente obliterados por um funesto eclipse. (...) O perigo está indicado e é manifesto. Sente-se a ação do mal e todos apontam a origem dele. E quanto maior seja o empenho dos que buscam occultar a causa na sombra de uma prerrogativa privilegiada e quasi divina, tanto maior deve ser o nosso esforço para espancar essa sombra e fazer a luz sobre o mysterio que nos rodeia.7 (Os grifos são nossos.) Concomitantemente a este processo de desenvolvimento econômico, no campo das idéias “tudo parecia novo: os modelos políticos, o ataque à religião, ao regime de trabalho, a literatura, as teorias científicas.” 9 Dentro deste quadro de significativas transformações, as discussões em torno do problema de mão-de-obra passavam a assumir lugar central. Sabemos que houve forte resistência por parte dos fazendeiros contra o processo abolicionista. Contudo, interessa-nos perceber a força que esta nova sociedade urbana impôs a este processo, sobretudo no campo ideológico, na formação do imaginário coletivo. Além das pressões inglesas pela extinção do tráfico negreiro transatlântico, desde o início do século XIX, o desenvolvimento de setores urbanos (descompromissados com os interesses agroexportadores) que empreenderam efetiva campanha abolicionista foi fundamental para o crescimento de uma forte convicção anti-escravista. Apesar de estar inserida em uma racionalidade própria do sistema agroexportador (sobretudo do Vale do Paraíba) a escravidão não se conciliava com as efervecentes mudanças pelas quais passava aquela sociedade. E, no aspecto discursivo, era freqüentemente encarada como sinônimo de atraso e obstáculo ao desenvolvimento e ao progresso nacional, valores fortemente difundidos na época. Neste sentido, uma crônica de 1887 intitulada “O resultado da emancipação” nos aponta algumas considerações interessantes. 10 Trata-se de uma apologia ao Visconde Como se percebe, a idéia de moderno se contrapondo ao atraso era um forte argumento que perpassava as questões apontadas pelos republicanos. Em seus discursos, os republicanos expressavam severas críticas ao regime monárquico, sempre 8 MONTEIRO, Hamilton M. Brasil Império. Ática: São Paulo, 1986, p. 58. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 28. 10 MARCIAL, S. O resultado da emancipação. Revista Illustrada. Rio de Janeiro, ano 12, n. 453, p. 3, 15 mar. 1887. 9 6 PESSOA, Reynaldo Carneiro. A idéia republicana no Brasil através dos documentos. AlfaÔmega: São Paulo, 1973, p. 59. 7 Idem, p. 40-41. 71 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 de não ser mencionada no Manifesto Republicano, era um problema que se arrastava por todo o Império. Apresentada como uma das causas do nosso atraso, deveria ter um tratamento especial pelo regime político então em vigor. Este precisava eliminar aquela visão negativa, gradativamente difundida no país e que lhe era atribuída pelos opositores. Na medida em que a abolição tornava-se assunto de ansiedade popular, surgia a oportunidade para que a monarquia se apresentasse aos súditos como defensora da abolição, o que equivale dizer: defensora do progresso e do desenvolvimento da nação. A abolição era portanto um caminho viável e pertinente para que a Monarquia assumisse a nova roupagem que os novos ares do fin de siècle lhe impunham. Ao assumir tal discurso estaria, ao mesmo tempo: resolvendo um velho problema (escravidão), neutralizando o discurso dicotômico do qual tomava parte no lado das “trevas”, além de se apresentar sob uma nova faixada condizente com os novos tempos. Estaria portanto garantindo sua legitimidade, freqüentemente questionada nos últimos anos. Entretanto, somente o ato da abolição, em si, não era suficiente para garantir ares de modernidade ao regime. Era preciso criar uma propaganda eficiente em cima da abolição para que a Monarquia fosse associada aos novos tempos e, portanto, se mostrasse capaz de responder às aspirações do povo do qual devia se apoximar. Como já vimos, a atitude do visconde que libertou seus escravos mereceu destaque e elogios. Seu ato foi considerado literalmente o de um herói e de um patriota portador de uma visão de futuro e portanto digno de admiração. Estes atributos resumem de modo significativo as necessidades discursivas da Monarquia naquele momento. Ao enfrentar os desafios dos novos tempos, precisava, para se manter de pé, encarnar o espírito da modernidade, da nacionalidade, do patriotismo. Ou seja, precisava ser associada a elementos que lhe conferisse admiração por parte dos súditos, precisava de um herói nacional, ou melhor dizendo de uma heroína. Mas por que D. Pedro II não poderia cumprir este papel ? Diante desta questão algumas considerações se impõe. Primeiro pela própria idade do imperador,17 agravada consideravelmente por suas barbas brancas. Seria difícil associá-lo a qualquer elemento inovador. Segundo por ser constantemente criticado por sua dedicação aos estudos de astronomia, literatura, línguas etc em detrimento de seu aparente desinteresse pelas questões políticas e pela função pública. Terceiro por se encontrar doente por ocasião da assinatura da Lei Áurea chegando a ficar afastado do trono por mais de um ano. Além disso era freqüentemente ironizado pelos jornais que o chamavam de Pedro Banana e dorminhoco, sátiras que apontavam para sua falta de preocupação e desprendimento pelo exercício do poder público. A doença associada a velhice contribuía para o aumento das críticas relacionadas ao seu despreparo.18 Sua da Silva Figueira, agricultor do Rio de Janeiro, que havia libertado seus duzentos e um escravos. Em sua análise, o cronista não poupou esforços para elogiar a atitude do visconde, bem como os resultados obtidos pelo mesmo. Assinala que o fazendeiro praticou um “nobre ato” que a “História registrará em suas páginas áureas.” 11 Destaca que os libertos “mostram-se, em geral, satisfeitos e gratos” e que os que seguirem a atitude do visconde receberão “uma quantia 10 ou 20 vezes maior do que o mais elevado saldo que tiveram nos seus tempos de esclavagismo.” 12 O discurso abolicionista é claro ao afirmar que aos adeptos daquela causa “não haverá superlativos que lhes cheguem, como hoje não os ha nos Estados Unidos para esse punhado de patriotas e de heroes, que desvendaram o futuro aos seus concidadãos obsecados! ” 13 A ligação entre abolicionismo e o progresso dos novos tempos fica evidente no trecho (ainda da mesma crônica) que se segue abaixo: Tudo isso virá com certeza, amanhã. Mas a homens, como Visconde da Silva Figueira, que, seguindo os impulsos de sua nobre índole e tendo a visão do futuro, se antecedem um pouco (...) ninguém poderá recusar a sua admiração e a sua mais íntima estima. Honra a esse benemerito14. (Os grifos são nossos.) Como se pode perceber, a visão abolicionista, notadamente urbana, esforçava-se por propagar seus ideais a todo custo. Estes, eram difundidos em nome de um futuro brilhante e moderno, onde o progresso iria iluminar os caminhos outrora obscurecidos por um nefasto passado escravocrata. Atitudes como a daquele nobre fazendeiro eram abertamente elogiadas e exaltadas. Os jornais, principais veículos de comunicação da época, eram responsáveis pela propaganda abolicionista que crescia assustadoramente, a ponto da sorte dos escravos se transformar “a partir de 1880 numa corrente de opinião apaixonada e avassaladora.” 15 O povo ansiava pela abolição. Mas o que isso tudo tem a ver com a heroificação da Princesa Isabel? Que elementos nos apontam para a demanda do mito? Ora, ao longo desta seção temos visto que os novos tempos, sobretudo a partir de 1870, apresentaram desafios a Monarquia. Tanto o movimento abolicionista quanto o republicano apresentavam um discurso marcado por uma leitura dicotômica da realidade. Direta ou indiretamente a Monarquia era associada a um passado absolutista, retrogrado, maléfico, atrasado e envolto em trevas. Ao passo que as “novas” idéias se colocavam como portadoras de um futuro liberal, avançado, benéfico, progressista e iluminado.16 A escravidão, apesar 11 Idem. Idem. 13 Idem. 14 Idem. 15 BASBAUM, Leôncio. História sincera da República; das origens à 1889. 4. ed. AlfaÔmega: São Paulo, 1982. Vol. 1, p. 245. 16 Deve-se deixar claro que o movimento abolicionista não tinha, necessariamente, ligação direta com o republicanismo. Alguns dos mais famosos abolicionistas eram também monarquistas fiéis, 12 como é o caso de Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e de André Rebouças que inclusive exilouse junto à Família Imperial após a Proclamação da República. Grosso modo, o que há de comum entre os dois movimentos é a idéia de um futuro mais democrático e liberal. 17 No ano da abolição D. Pedro II completou 63 anos. 18 A própria Revista Illustrada apresentava estampas que expressavam essa imagem do 72 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 negativo, pelo menos pelos intelectuais influenciados pelo pensamento positivista (anticlerical), era a proximidade da princesa com a Igreja Católica. Por esse motivo era com freqüência chamada de beata. Diante destes problemas, buscou-se conquistar a simpatia do povo, que precisava valorizar a futura imperatriz e, porque não dizer, amála. Estes fatos de caráter pessoal, associados ao contexto já analisado, impunham a necessidade de construção do mito da Redentora. Era preciso associar de forma tríade abolição-princesa-povo. O elo de ligação viria da heroificação da princesa como redentora dos escravos. imagem continha assim, alguns elementos dos quais a Monarquia precisava se desvincular. Contrariamente ao pai, a Princesa Isabel poderia encarnar bem os requisitos já apontados por nós. Sobretudo se considerarmos que um príncipe simboliza a promessa de um poder supremo, (...) as virtudes régias no estado da adolescência, ainda não dominadas nem exercidas. Uma idéia de juventude e de radiância (...) Ele faz mais o gênero do herói do que o do sábio. A ele pertencem os grandes feitos (...) O príncipe e a princesa são a idealização do homem e da mulher, no sentido da beleza, do amor, da juventude, do heroísmo.19 (Os grifos são nossos.) 2. A CONSTRUÇÃO DOS “TRAÇOS DE HEROÍSMO” A expectativa popular em torno do processo de abolição é inquestionável. Acreditamos que tal fato não passou desapercebido aos olhos dos defensores da Monarquia. Estes, esforçaram-se a todo custo em enfatizar a presença da população, seja em torno dos eventos relativos a aprovação da lei ou nas comemorações posteriores a ela. Era preciso empreender, como já dissemos, uma associação tríade: abolição-princesa-povo. A busca desta associação pode ser melhor percebida se observarmos as notícias de um periódico de caráter monarquista, onde fica evidente a necessidade de heroificação e de aproximação com o povo. Vejamos: A abolição promulgada já, de ha muito pelos corações traduzida em facto, consumado pelo povo, (...) todos compreenderam que à excelsa Princeza se devia um testemunho de apreço, pelo muito que também fez em pról dos captivos. Assim, expontaneamente, quasi sem accordo prévio, cada qual se preparou para glorificar e cobrir de flores a herdeira do trono, acontecendo que, concorrendo todos para esta manifestação, ella tornou-se, por si mesma grandiosa, sublime, única. Nunca se viu scena igual, desde que o Brasil existe! A efusão popular chegou ao auge na hora em que o throno se consorciava com a população, no mesmo afã de tornar o Brazil um pais livre, espalhando sobre elle, como uma bênção, os primeiros clarões da liberdade.21 (Os grifos são nossos.) Um príncipe encarna em sua figura um potencial ainda não explorado. É desta forma que a figura da princesa se coloca como portadora de um novo tempo. Neste sentido, o Terceiro Reinado, que deveria ser comandado pela futura Imperatriz Isabel I, precisava ser encarado e imaginado como um governo melhor que o Segundo Reinado. Diante das dificuldades do momento, a celebração da abolição e sua associação direta com a figura da herdeira do trono, funcionaria como uma pequena demonstração das inovações futuras que o Terceiro Reinado prometia. Deve-se ressaltar, ainda, que a princesa não dispunha, anteriormente de boa aceitação pública. Seu casamento com o Conde D’ Eu (francês) custava-lhe severas críticas. Acreditava-se que o país seria futuramente governado segundo os interesses franceses. A demora em engravidar-se (dez anos) também se constituiu motivo de preocupação e especulação popular, uma vez que comprometia-se a continuidade da dinastia através de seu ramo.20 Outro aspecto apontado como elemento imperador D. Pedro II. Algumas dessas estampas podem ser visualisadas em suporte eletrônico na Biblioteca Virtual de História do Brasil http://www.ufjf.br/~clionet/bvhbr/imagens.htm. As mesmas imagens também podem ser visualisadas em suporte de papel em ALENCAR, Francisco. et alli. História da sociedade brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1985, p. 170. ALENCAR, CHICO. et alli. Brasil vivo; uma nova história da nossa gente. 13. ed. Vozes: Petrópolis, 1993, p. 136. AGOSTINI, Angelo. Revista Illustrada, 2 set. 1882, apud LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, v. 1, p. 205. 19 CHEVALIER, Jean. & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 744. 20 Isto porque D Pedro II havia perdido dois filhos homens, falecidos nos primeiros anos de vida. A Princesa Leopoldina (segunda filha de D.Pedro II) falecera não antes de deixar filhos, mas pelo menos seu filho mais velho (D.Pedro Augusto), segundo comentavam as más línguas, sofria de problemas mentais. A própria Princesa Isabel (única filha de D Pedro II, ainda viva) já havia perdido seu primeiro filho, uma menina nascida morta. O falecimento desta criança foi atribuído a viagem de navio realizada em condições precárias da França ao Brasil. Isso por exigências dos deputados brasileiros que queriam evitar o nascimento do herdeiro do trono em Como se pode perceber , a princesa é apresentada como uma figura generosa que se aproxima do povo respondendo aos anseios de seus corações. Por isso é merecedora de glorificação e reconhecimento público. Através de seu gesto, esperavase que a monarquia se conciliasse com o povo. Note-se que tais afirmações datam de dias anteriores a assinatura da Lei Áurea, quando o projeto ainda tramitava na Câmara e solo francês. Cf. LACOMBE, Lourenço Luiz. Isabel, a princesa redentora; baseado em documentos inéditos. Petrópolis: Instituto Histórico de Petrópolis, 1989, p. 183-184. 21 VERIM, Julio. 3 de maio de 1888. Revista Illustrada. Rio de Janeiro, ano 13, n. 496, p. 2-3 mai. 1888. 73 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 no Senado do Império. A expectativa popular foi fortemente destacada pelo mesmo periódico num texto sugestivamente intitulado “Na rua”: Ao sahir a Princeza acompanhada de seu esposo, o povo fez-lhe uma estrondosa ovação. O carro seguia, litteralmente, sob uma chuva de flôres desfolhadas e, de todos os lados os lenços e os chapeus acenavam saudando a Princeza libertadora! Gratas recordações deve Sua Alteza ter levado do dia de ante-hontem, sentindo bater tão de perto o coração, puro e magnanimo, do povo brazileiro. 22 Puzestes cobro ao longo soffrimento De uma raça infeliz que só sabia Que tinha vida, no cruel momento Em que o sangue, aos açoites escorria. (...) Alma não tinha, estupida operava; Os olhos sempre temidos de pranto Seguia pela treva que a cercava De um espanto cahindo n’outro espanto. O apelo às massas se fazia necessário. O povo foi retratado como participante dos momentos de glória da nação e da própria Monarquia. O sentimento de nacionalidade, de amor à pátria e ao regime político precisavam ser aguçados. Diversas fontes nos informam da presença maciça da população em torno dos acontecimentos ligados ao processo final de aprovação da tão esperada lei.23 A associação assumia gradativamente aquela forma tríade que proporcionaria a construção de uma imagem democrática da instituição e da própria herdeira do trono. A imprensa monarquista, aproveitando-se da inquestionável expectativa popular, empreendeu uma efetiva propaganda das comemorações abolicionistas procurando enfatizar a presença da Monarquia e sobretudo da regente como responsável pelo grande acontecimento. Buscou-se aproveitar ao máximo este momento para melhorar sua imagem. As celebrações na Corte prolongaram-se por dias: a elite assistiu a corridas de cavalo no Derby Clube e o povo passeou de graça nos trens da Estrada de Ferro D.Pedro II. Os teatros também foram franqueados ao público. E em Botafogo realizou-se uma regata comemorativa. Destas e de inúmeras outras formas, a assinatura da lei ganhou grande repercussão em todas as camadas sociais, impregnando a atmosfera Era preciso perpetuar aquele acontecimento entendendo-o como um fruto da ação corajosa da futura imperatriz que, de antemão, demonstrava sua potencialidade a ser desenvolvida. Neste sentido, multiplicavam-se elogios e saudações à princesa que começava a ser chamada de Redentora. O aspecto de ruptura com o velho e inauguração de um tempo novo fica evidente nas poesias dedicadas à princesa e a seus súditos no pós-abolição. Como mostram as estrofes abaixo: De subito um clarão desconhecido Fere-lhe a vista, avulta esse clarão, E o peito morto acorda comovido, E a vez primeira pulsa o coração. Iluminam-se os rostos de improviso; O amor irrompe repentinamente; Abre-se o labio em flôr - nasce o sorriso; Cantando, a vida torna-se patente. Começou para nós nossa existencia Porque, Senhora, libertando um povo, Deste-lhes coração e consciencia, Arrancastes do cahos um mundo novo. E quando o sol, apoz a redempção, Apareceu no céu, a patria grata Apenas viu, Augusta Democrata, Em vez do sol o vosso coração. 24 Os momentos do pós-abolição foram sistemeticamente interpretados como tempo das luzes trazidas pela Redentora. Com exceção da ira dos cafeicultores, amenizada a princípio pela esperança de uma possível indenização, a princesa conquistava a crescente simpatia da povo, num movimento que partia da Corte e atingia outras províncias do Império. Faltava-lhe, porém, a benção da Igreja, da qual tornara-se árdua defensora. Este reconhecimento não tardou a chegar. Em vinte oito de setembro, do mesmo ano, ela recebia, em uma pomposa celebração religiosa na Capela Imperial, a mais importante condecoração conferida pela Santa Sé. Trata-se da Rosa de Ouro, 22 Idem. Veja, por exemplo, a fotografia da missa campal realizada no Campo de São Cristóvão (RJ) em comemoração à abolição da escravidão e a fotografia que mostra a multidão concentrada diante do Paço Imperial, para festejar a assinatura da Lei Áurea. Estas fotografias encontram-se disponíveis em suporte eletrônico na Biblioteca Virtual de História do Brasil: http://www.ufjf.br/~clionet/bvhbr/imagens.htm ou em suporte de papel em ALENCASTRO, Luiz Felipe de. (Org.) História da vida privada no Brasil; Império: a Corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v. 2. p. 366-367 e 436. 23 24 PASSOS, Guimarães. A Sua Alteza a Princeza Imperial Regente. Mai. 1888. Arquivo Histórico do Museu Mariano Procópio. Coleção Família Imperial. Registro provisório 022. 74 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 oferecida à princesa pelo Papa Leão XIII.25 Este fato impunha um caráter de reconhecimento internacional e favorecia a projeção do Brasil frente à outras nações. Internamente, traduzia-se em mais um fator de glorificação da herdeira do trono que, com heroísmo, colocava o país em posição de destaque internacional. Naquela cerimônia, a presença dos bispos D. Vital e D. Antônio de Macedo Costa “trazia a segurança de ter ficado no passado a Questão Religiosa.” 26 Aquele antigo mal estar que havia fragilizado as relações entre o Império e a Igreja Católica, tornando-se um dos elementos da crise monárquica, parecia estar sendo dissipado. Várias foram as nações que se manifestaram, parabenizando o Brasil, na figura da princesa. Chegou-se inclusive a enviar estampas que foram imediatamente reproduzidas pela imprensa monarquista com o intuito de corroborar a heroicidade da princesa, responsável pela elevação do país ao nível das nações desenvolvidadas.27 Ao comemorarar seus quarenta e dois anos, pouco mais de dois meses após a assinatura da Lei Áurea, a princesa foi homenageada pela publicação de uma estampa de Ângelo Agostini,28 na Revista Illustrada.29 (Veja anexo 1.) A estampa, situada na primeira página, apresenta uma mesa que assume o papel de altar doméstico onde se vê uma fotografia da princesa cercada de flores. Diante da mesa percebemos a presença de um um casal e de uma criança, que ensinada pela mãe, presta homenagem a sua redentora. Ao fundo, vemos uma porta à qual se dirigem uma série de pessoas negras (certamente todos são ex-escravos) com a mesma intenção de prestar homenagem. A intenção não poderia ser mais clara. A própria presença do casal e da criança (provavelmente seu filho) já simboliza o valor da família que era agora definitivamente garantido mesmo àqueles mais miseráveis. O homem, em atitude de respeito, diferencia-se dos demais que ainda não entraram na sala ao retirar o chapéu. Sua atitude será seguida certamente pelos demais quando adentrarem no recinto, que assume assim o caráter sagrado de um lugar de adoração. A presença da criança revela-nos a necessidade de se ensinar às gerações futuras a importância da Redentora que deveria ser por todos reconhecida e admirada. Para se construir o mito era preciso perpetuar esta idéia. Deve-se ressaltar ainda a inclinação da mulher diante da imagem reforçando com isso a idéia de adoração e gratidão. Todos estes elementos confluem para a exaltação da princesa, uma idéia que era transmitida através de um discurso pedagógico, evidenciado na estampa. Esta intenção torna-se mais clara se considerarmos seu veículo de transmissão. E neste sentido, damos voz a Walter Benjamin ao destacar que a reprodução do objeto tal como a fornecem o jornal ilustrado e a revista semanal é incontestavelmente uma coisa bem diversa de uma imagem. A imagem associa de modo bem estreito as duas feições da obra de arte: a sua unidade e a sua duração; ao passo que a foto da atualidade, as duas feições opostas: aquelas de uma realidade fugidia e que se pode reproduzir indefinidamente.(...) graças à reprodução, consegue até estandardizar aquilo que existe uma só vez.30 Se levarmos em consideração nosso atual dinamismo telecomunicativo, o papel de uma revista semanal certamente será insignificante. Contudo, devemos levar em consideração o lugar deste veículo naquela sociedade. Ao historicizá-lo nos deparamos com um eficiente veículo de comunicação, o mais moderno mecanismo de propaganda de imagens, costumes e idéias das últimas décadas oitocentistas. Um meio eficiente de se divulgar uma crença e de se construir um mito, oferecendo-o constantemente “aos olhos do povo”, conforme as palavras do principal pintor da Revolução Francesa. 31 E neste sentido, mais potente do que uma obra de arte, que nos é dada uma só vez. Entretanto, David certamente não estava se referindo exclusivamente a períodicos.32 O que queremos assinalar é que apesar do fato do caráter popular das gravuras veiculadas na imprensa (como é o caso do anexo 1) ter conferido maior eficiência na difusão e criação do mito redentor, nada nos impede de descobrir um papel semelhante numa obra de caráter acadêmico. Observaremos o mesmo objetivo heroificador na estatueta fundida pelo Jokey Club do Rio de Janeiro (instituição tradicionalmente ligada à Monarquia) em homenagem à Princesa Isabel. (Veja anexo 2.) Trata-se de uma peça exposta na sala D. 25 Esta condecoração era oferecida unicamente à chefes de Estado, uma vez por ano, em virtude de atos de benemerência e caridade. 26 LACOMBE, Lourenço Luiz. Op. cit, p. 243. 27 Veja, por exemplo, a estampa oferecida pela Argentina por ocasião da Abolição da escravidão. A estampa, reproduzida pela Revista Illustrada, pode ser visualisada eletronicamente na seguinte homepage http://www.ufjf.br/~clionet/bvhbr/imagens.htm ou em suporte de papel em ALENCAR, CHICO. et alli. Brasil vivo; uma nova história da nossa gente. 13. ed. Vozes: Petrópolis, 1993, p. 158. 28 Caricaturista e redator artístico do periódico. Intelectual de origem italiana e de formação francesa que mudou-se para o Brasil onde fundou a Revista Illustrada, espaço que utilizava para abordar assuntos políticos, satirizar costumes, comentar peças teatrais e fazer críticas artísticas. 29 AGOSTINI, Ângelo. Revista Illustrada. Rio de Janeiro, ano 13, n. 507, p. 1, 29 jul. 1888. Ver a estampa no anexo 1 ou na Biblioteca Virtual de História do Brasil: http://www.ufjf.br/~clionet/bvhbr/imagens.htm. 30 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: CIVITA, Vitor. (Ed.) Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1975, (Os Pensadores, 48), p. 15. 31 Cf. David, apud CARVALHO, J. M., A formação das almas; o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 11. Ver epígrafe deste artigo. 32 Como pintor neoclássico, foi um dos principais responsáveis pela produção artística ligada à Revolução Francesa. Seus quadros refletiam a idéia de adesão voluntária à causa revolucionária. Baseando-se nos ideais liberais, segundo os quais a soberania estava no povo, David expressava artisticamente a necessidade do sacrifício individual em nome dos ideais de virtudes cívicas. Sua arte foi inegavelmente pedagógica e se valeu da apologia aos heróis da Antiguidade que deveriam servir de exemplo ao momento presente. Esta arte neoclássica, da qual falamos, transforma-se no período napoleônico em uma arte acadêmica, ligada ao Estado, do qual David torna-se o principal expoente artístico. Ao tornar-se arte oficial perde seu potencial revolucionário tornando-se porta-voz dos interesses do Império de Napoleão. 75 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Pedro II, no museu Mariano Procópio (Juiz de Fora-MG). 33 Sua exposição, enquanto peça de um museu, através da constante visualização pública ao longo das décadas, tem contribuído para a perpetuação do imaginário heroificador da princesa redentora. E coseqüentemente tem possibilitado a permanência da imagem mítica, função que as estampas, relegadas a um arquivo, não conseguem cumprir com tanta eficiência. A peça, fundida em prata com a base em mármore, aproxima-se de uma proposta acadêmica na medida em que caracteriza-se por uma preocupação com a perfeição anatômica e com os valores estéticos de uma beleza formal. Na obra estão presentes as categorias estéticas do sentimento propostas por Edmund Burke, das quais se destacam a beleza delicada, sutil, atraente, aprazível, bela por si mesma, beleza do sublime.34 E ainda, uma arte pautada numa função pedagógica, que deve educar para a razão, deve edificar. Como já dissemos, sua proposta está relacionada ao mesmo objetivo da estampa, situada no anexo 1. Isto é, pretende afirmar a heroicidade do ato realizado pela Princesa Isabel no dia treze de maio de 1888, legitimando-a como merecedora do Terceiro Reinado que parecia aproximar-se. A análise da simbologia presente na peça confirmará nossa hipótese relativa a produção de imagens da Princesa Isabel no pósabolição. 35 A escolha da posição dos elementos já começa a nos dizer alguma coisa. O negro situa-se à esquerda da princesa, posição tradicionalmente ligada a elementos negativos, obscuros e satânicos. Indica sentido de enfermidade, lugar onde se busca justiça social, progresso inovação e libertação.36 Todavia , o escultor apresenta uma solução a este pobre coitado que não permanecerá nesta posição por muito tempo. Apesar de se situar à esquerda, o negro tem os olhos fitos na mão direita da princesa. Tal fato é de extrema importância, sobretudo se considerarmos que na Bíblia “olhar à direita (Salmo 142,5) é olhar para o lado do defensor; é lá o seu lugar. Como será o dos Eleitos no Juízo Final, quando os danados ficarão à esquerda. A esquerda é a direção do inferno; a direita , a do paraíso.” 37 O negro, em posição de rendição, observa a placa (situada na mão direita) que traz a inscrição “ 13 de Maio”. A direita simboliza, em política: a tradição, a ordem, a estabilidade, a força e o sucesso. Estes elementos são assim valorizados e apresentados ao negro como promessas de um futuro mais digno, do qual a princesa se coloca como intermediadora. Com a mão esquerda no peito, sobre o coração, a princesa expressa o compromisso de um futuro brilhante, o qual parece buscar com seu olhar direcionado ao horizonte. Ao mesmo tempo, o peito expressa o abrigo de um coração generoso que expande suas dádivas vivificadoras, um sentido de proteção e de segurança. Ali, naquele momento, coloca-se como heroína, alguém que foi capaz de proporcionar uma nova situação aos desfavorecidos que agora têm a possibilidade de olhar da esquerda para a direita, isto é, vislumbrar do inferno o paraíso, alcançar a redenção de seus sofrimentos. Deve-se ressaltar ainda que, apesar da mão direita da princesa estar completamente abaixada, o negro situa-se numa posição ainda inferior a esta, sendo preciso, para observá-la, inclinar levemente a cabeça e o olhar para cima, para o alto. Tal elemento encarna uma simbologia interessante se considerarmos que o “olhar dirigido lentamente de baixo para cima é um signo ritual de benção nas tradições da África negra.” 38 A princesa assume assim uma feição sagrada. Além disso, situa-se sobre o tapete, elemento que “resume o simbolismo da morada, com seu caráter sagrado e todos os desejos da felicidade paradisíaca que ela encerra.” 39 A preocupação em sacralizar aquele momento ímpar fica, por fim evidente, na estrutura da base da estátua que apresenta uma escada de três degraus. A princesa, em pé, de forma harmoniosa e equilibrada, destaca-se numa posição de supremacia e superioridade, um pedestal que lhe confere um caráter sagrado. Aliás, elemento comum às aclamações e poemas da época que não se cansavam de repetir vivas à “Santa Isabel”. Assim é que o escravo, neste ambiente sacralizado, porta-se de joelhos respectivamente no segundo e terceiro degraus, numa atitude de contemplação e admiração diante de sua redentora. As vestes da princesa também nos apontam alguns elementos interessantes. Trazendo em suas costas um manto, ela nos apresenta sua escolha pela sabedoria. Portar-se com um manto significa “assumir uma dignidade, uma função, um papel, de que a capa ou o manto é o emblema.” 40 No caso, busca aproximar-se de sua futura função, a de uma governante digna de assumir a direção do Estado brasileiro. Esta dignidade expressa-se também através da fita, que amarrada a sua cintura, significa a recompensa de um “ato de coragem ou uma vida que se distingue, marca um sucesso, um triunfo, uma realização. Seu símbolo é orientado no sentido da manifestação de uma vitória.” 41 Esta vitória, deve ser entendida como o fim do cativeiro, sobre o qual Isabel deve reinar triunfante. Ao triunfar sobre aquele passado vergonhoso e obscuro, ela coloca-se como iniciadora e ao mesmo tempo portadora de um novo tempo, o qual começa a se despontar através de seu golpe fatal sobre a servidão, atitude que precisa ser perpetuada nas mentes e nos corações do povo brasileiro. A atitude do negro, como vimos, é de inteira adoração. Sua feição encerra um ar de contemplação e admiração, projetados através de um sorriso alienado. A posição de sua mão esquerda (lado da emoção) “com as palmas repousando sobre o joelhos exprimem a concentração meditativa.” 42 Ao passo que a mão direita (lado da 33 A autoria e a data precisa de sua fundição são desconhecidas. A peça tem por dimensões:0,52 m de altura e 0,25 m de largura. Ver anexo 2. 34 MIRABENT, Isabel Coll. Saber ver a arte neoclássica. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 13. 35 O desenvolvimento desta tarefa será realizado com base em CHEVALIER, Jean. & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. 36 Idem, p. 341-344. 37 Idem, p. 341. 38 Idem, Idem, 40 Idem, 41 Idem, 42 Idem, 39 76 p. 653. p. 864. p. 589. p. 433. p. 590. Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 para o futuro, para o progresso, lugar para onde ela dirige o olhar. Mais do que isso, há também um sentido de afirmação. De acordo com a simbologia, não se trata “de dizer vim, mas de afirmar: estou aqui e aqui fico .” 47 Todos estes elementos, em sua simbologia, revelam-nos a intenção clara de heroificação da princesa. Percebemos, por traz de cada detalhe, um projeto monarquista com pretensões pedagógicas e legitimadoras. Era preciso apresentar aos brasileiros a superioridade e a grandeza do governo ao qual estavam destinados. Num momento de crise, onde uma nova sociedade urbana, portadora de novos ideais, despontava-se, era necessário a incorporação imediata destes valores que precisavam ser rearticulados pela lógica monárquica e oferecidos a esta nova sociedade. Isto é, os valores defendidos e ambicionados pelos novos tempos tornavam-se ingredientes necessários da nova imagem monárquica. Esta imagem inovadora só poderia ser construída por meio de um elemento novo que viesse curar as enfermidades daquela sociedade. Se o republicanismo, como já vimos, esforçava-se, do ponto de vista discursivo, para se apresentar enquanto responsável por esse papel curador, os monarquistas não podiam aceitar passivamente tal situação. Diante do escravismo, encarado como principal doença da sociedade, precisavam elaborar uma solução que, do ponto de vista simbólico, lhes conferisse um caráter inovador. A heroificação da futura imperatriz como redentora dos escravos cumpriria perfeitamente este papel, sobretudo se considerarmos que “o tema do Salvador, do chefe providencial aparecerá sempre associado a símbolos de purificação: o herói redentor é aquele que liberta, corta os grilhões, aniquila os monstros, faz recuar as forças más.” 48 A necessidade de se associar aos elementos dos novos tempos levava a Monarquia a elaborar um novo imaginário. Dentro do discurso dicotômico, era preciso se associar ao lado da luz, do bem. Para tal objetivo, a difusão do mito era imprescindível. Ao se realizar tal tarefa, de acordo com Raoul Girardet: Nos corações, nas consciências, os equilíbrios rompidos se reconstituem. Fornecendo-lhes novos elementos de compreensão e de adesão, o imaginário mítico permite àquele que a ele se abandona rearmar-se em um presente reconquistado, tomar pé em um mundo que voltou a ser coerente, que voltou a si, com efeito, claramente ‘legível’. (...) o mito é também potência mobilizadora. À função de reestruturação mental do imaginário político, corresponde então , uma outra, que é de reestruturação social. Surgindo em uma situação de rompimento do meio histórico, desenvolvendo-se em um clima de vacuidade social, o mito político é instrumento de reconquista de uma identidade comprometida. 49 (Os grifos são nossos.) razão) “levantada, os dedos indicador e médio esticados e unidos, os outros dedos dobrados [representa] a argumentação, a dialética.” 43 Ao mesmo tempo em que dobra-se em adoração à sua Redentora, ele reflete sobre sua grandeza expressa na atitude redentora da assinatura da lei. Ao contrário da figura clássica de um escravo, comumente apresentado sem camisa, o negro aparece aqui trajado com uma camisa semi aberta. Esta vestimenta, símbolo de proteção, representa assim um pequeno indício da nova situação do negro que agora alcança um lugar na sociedade, tornando-se menos selvagem. A ausência da camisa, denotaria um sinal de “completa solidão moral, e de ter sido relegado pela sociedade”, 44 idéia contrária aos objetivos da estátua. Ao refletir sobre a presença dos cavalos ao redor da base da estátua, percebemos não só elementos ligados ao Jokey Club como também o sentido de vitória que a peça apresenta. O cavalo é normalmente apresentado como símbolo de poder, imagem de uma beleza vencedora carregada de dinamismo. Tal sentido é reforçado na peça pela presença do louro envolvido no pescoço dos cavalos. Sua presença simboliza “a imortalidade adquirida pela vitória. É por isso que sua folhagem é usada para coroar os heróis, os gênios e os sábios.” 45 A princesa era portanto vencedora e triunfava sobre seus inimigos. Esta vitória conferia status e superioridade à herdeira do trono. Ela, por seu ato de bravura e grandeza, destacava-se como alguém especial. Era uma heroína brasileira. E por fim destacamos a coroa, elemento que reforça a busca de legitimação do Terceiro Reinado. Diferentemente das outras monarquias de tradição mais antiga (como é o caso da inglesa, onde existem coroas específicas para cada tipo de príncipe) nossa Monarquia não se preocupava com esta sofisticação simbólica. Só havia uma coroa destinada ao uso do imperador nos momentos de abertura e encerramento das atividades anuais da assembléia legislativa. Portanto, só era utilizada duas vezes por ano. A preocupação do escultor em apresentar a princesa com a coroa na cabeça dá-nos a impressão de que, naquela circunstância (abolição), ela já assumira o caráter de uma imperatriz, uma vez que nem nos momentos de regência era comum o uso da coroa. Este era portanto um elemento especial na medida em que “a coroa simboliza uma dignidade, um poder, uma realeza, o acesso a um nível e a forças superiores.” 46 Ansiava-se por legitimar o Terceiro Reinado. Tal objetivo confirma-se, por fim, através do pé direito da princesa. Isso mesmo! Detalhe quase imperceptível na composição da escultura e que aparentemente não faria a menor diferença quando observado a primeira vista. A escolha por não encobrir este pé (como foi feito com o esquerdo) revela-nos a intenção de um caminhar, a busca de se projetar para frente, 43 A descrição das mãos e dos dedos dada pelo dicionário coincide exatamente com a disposição dos mesmos na composição do negro. Cf. idem, p. 590. 44 Idem, p. 172. 45 Idem, p. 561. 46 Idem, p. 289. 47 Idem, p. 694. GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 17. 49 Idem, p.183. 48 77 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Diante dos momentos de crise pelos quais passava o regime monárquico, a gestação do mito da Redentora colocava-se como solução legitimadora. Por meio de sua difusão seria possível mobilizar a população em torno de uma nova visão da instituição. O movimento de gestação e de difusão do mito beneficiou-se, a nosso ver, da grande expectativa popular em torno da abolição, bem como das idéias de modernidade incorporadas pelos abolicionistas. De posse de tais elementos, é que os monarquistas empreenderam sua “campanha publicitária”, valendo-se de notícias, charges, festas, missas, celebrações, poesias, estátuas etc; elementos que multiplicaram-se indefinidamente por todo o país. A necessidade de se perpetuar a lembrança da abolição fica também evidente na criação da Guarda Negra, milícia organizada por José do Patrocínio, composta somente por negros e mulatos que, elegantemente fardados, desfilavam pela cidade. A chamada guarda isabelista chegou inclusive a entrar em conflito com os propagandistas republicanos. O mais sério deles, segundo José Murilo de Carvalho “deu-se com a interrupção, que resultou em mortos e feridos, de uma conferência de Silva Jardim, em dezembro de 1888, na Sociedade Francesa de Ginástica.” 50 Assim, gradualmente o imaginário coletivo foi povoado por imagens e notícias da abolição que vinham acompanhadas da exaltação à princesa. Na construção de seus “traços de heroísmo” utilizaram-se de inúmeros mecanismos, por nós já apresentados aqui. A gestação de uma visão mítica da Redentora não se deu de forma gratuita ou natural. Neste sentido, concordamos com Ernest Cassirer ao afirmar que Siempre se ha descrito al mito como resultado de una actividad inconsciente y como un producto libre de la imaginación. Pero aqui nos encontramos con un mito elaborado de acuerdo con un plan. Los nuevos mitos politicos no surgen libremente, no son frutos silvestres de una imaginación exuberante. Son cosas artificiales, fabricadas por artífices muy expertos y habilidosos. 51 3. A SOBREVIVÊNCIA DO MITO DA REDENTORA REPÚBLICA NA Se a Monarquia não conseguiu evitar sua queda por meio do discurso de heroificação da Princesa Isabel, isso não significa que a permanência do mito após o 15 de novembro de 1889 estivesse comprometida. Ao contrário, o que se verifica é a sua consolidação e enraizamento no imaginário coletivo, mesmo contrariando-se os interesses republicanos. O que nos interessa neste momento é a preocupação comum a monarquistas e republicanos em torno da comemoração da data, bem como a permanência do mito da Redentora enquanto proposta discursiva vencedora, mesmo após a Proclamação da República. A intenção de se perpetuar e oficializar a data de assinatura da Lei Áurea enquanto feriado nacional foi evidenciada por um projeto de lei derrubado pelos deputados, ainda no período monárquico. O descontentamento dos fazendeiros, em relação ao encaminhamento dado pela monarquia à abolição, foi responsável pela não aprovação da lei. Isto porque a polêmica e a insatisfação, em torno da recusa em indenizar os antigos senhores de escravos, fez com que os deputados questionassem a pertinência de se oficializar a data. Naquele momento delicado e conflituoso a abolição não representava, pelo menos para os cafeicultores dos quais os deputados eram representantes, um motivo de grandes festejos. Apesar do projeto ter sido derrubado pelo Congresso monarquista, interessa-nos perceber a intenção que havia por traz desta idéia. A necessidade de se festejar a abolição é defendida abertamente em maio de 1889 (ainda na monarquia) no seguinte texto publicado pela Revista Illustrada: ...o enthusiasmo uniu todas as classes, n’uma commemoração patriotica das mais tocantes. (...) Não mais haverá scena igual! O dia 13 de Maio (...) tinha em seu favor todas essas razões e mais, ser o unico dia que possuíamos com esse caracter. O 7 de septembro, não satisfazia a esses requisitos porque as suas tradições historicas não eram muito heroicas. O 25 de março lembrava-nos uma constituição outorgada. Os outros, occupavam uma plana inferior. Não tinhamos, pois, um dia de gala, um dia de festa nacional e nenhum povo póde viver sem isso.53 (Os grifos são nossos.) Assim, enquanto construção, o mito da Redentora encarnou simbolicamente as aspirações coletivas daquele momento, tornando-se um instrumento eficaz para atingir a cabeça e o coração dos brasileiros a serviço da legitimação do regime monárquico.52 Apesar de não ter conseguido evitar a proclamação da República, o empreendimento monárquico em torno do projeto de heroificação da Princesa Isabel garantiu a permanência do mito, mesmo após a queda da Monarquia. É o que iremos analisar na próxima seção. Como afirma claramente o autor do texto, que defende a transformação da data em feriado nacional, era preciso se criar uma celebração anual em torno do momento significativo que não poderia ser esquecido. Aqui estamos diante de mais um elemento que expressa a estratégia monarquista de se legitimar diante da nação, como vimos na seção anterior. Como já enfatizamos anteriormente, o abolicionismo, 50 CARVALHO, José Murilo. Os bestializados; o Rio de Janeiro e a república que não foi. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 30. 51 CASSIRER, Ernest. El mito del Estado. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992, p. 333. 52 Nós nos inspiramos, aqui, no papel dado ao mito por José Murilo de Carvalho. Cf.: A formação das almas, op. cit, p. 55. 53 CRUZ, João da. O 13 de maio na Câmara. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, ano 14, n. 550, p. 6, 25 maio 1889. 78 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 associações abolicionistas, no estrado inferior, sobre um montao de camelias e de ferros empregados para castigo dos ex-escravos, as figuras da Imprensa e da Abolição sentadas e abraçadas, tendo por diadema um arco de flores.(...) Seguia-se outro (carro) não menos bello, que levava o riquíssimo presente offerecido ao generallissimo Deodoro ...55 (Os grifos são nossos.) enquanto movimento intelectual associado a nova sociedade emergente, era portador de ideais liberais que se autocelebravam enquanto avançados, progressistas e iluminados. A aproximação de tais idéias fazia parte da estratégia republicana e também da monarquista na busca de afirmação. É desta forma, então, que a celebração da abolição assumia, para ambas as correntes, importância capital. A comemoração do primeiro aniversário da abolição (13/05/1889) ocorreu ainda sob o regime monárquico. Na ocasião evidenciou-se, mais uma vez, a exaltação da princesa e as comemorações populares se multiplicaram sob várias formas. O mito já havia se consolidado e a associação abolição-princesa-povo tornouse fato evidente neste primeiro aniversário. O segundo aniversário da abolição (13/05/1890) ocorreu sob o regime republicano. Era, portanto, a primeira vez que a República comemorava a abolição. E neste momento colocava-se diante de um desafio: construir um novo universo simbólico capaz de derrubar o imaginário monarquista que havia se apropriado da abolição e, ao mesmo tempo, se associar às idéias inovadoras e democráticas presentes no discurso abolicionista. Ainda sob o governo provisório, e portanto sem a aprovação de um Congresso, a República preocupou-se com a já famosa data. Logo em seu segundo mês de existência, o novo regime dedicou-se ao 13 de maio declarando-o feriado nacional. Isto, “pelo decreto nº 155-B, sancionado pelo Marechal Deodoro, em janeiro de 1890”. Curiosamente, a criação deste feriado nacional, bem como sua extinção enquanto tal, ocorreram em governos provisórios e portanto em situações nada democráticas. 54 A data, que lembrava a imagem da monarquia em seu momento mais glorioso precisava ganhar uma nova faixada. Ou seja, o novo regime em seus primeiros e difíceis momentos, precisava apagar aquela propaganda monarquista viva e criar uma nova leitura da abolição, colocando-se como participante de seus ideais. A visão de um governo provisório instável e ditatorial não podia ser difundida. Com esse objetivo, também organizou a festa do segundo aniversário da assinatura da lei, que nos é apresentada no texto abaixo: ... solemnidade honrada com a presença do chefe do governo, do corpo diplomatico e do ministerio, desfilou pelas ruas desta capital, brilhantemente ornamentadas e concorridas, um grandioso prestito civico. (...) em meio de palmas calorosas (...) O seu primeiro carro era uma allegoria vivaz e commovente. Alli estava a Republica ricamente vestida, tendo n’uma das mãos um ramo de oliveira e apoiando a outra no globo estrellado, com a divisa Ordem e Progresso - globo sustentado por um poderoso leão, symbolo da força. Aos pés da Republica, abertos em leque e n’um plano inclinado, todos os gloriosos estandartes das Como se pode perceber, há um objetivo de se construir um novo imaginário associando-se a abolição à idéia de uma República democrática. A princesa é substituída por uma nova heroína: a República, que se personifica numa figura feminina. Os valores defendidos pelo novo regime (ordem e progresso), de inspiração positivista, são literalmente inscritos em um globo no qual a figura da República sugestivamente se apoia. Destaca-se os aplausos (elogio e agradecimento público). Mais uma vez aparecem os ramos de louro designando a vitória. E por fim a exaltação ao Presidente da República merecedor de um presente não identificado no texto do periódico. Buscava-se, com isso, elaborar uma nova associação igualmente tríade. Era preciso ligar abolição-República-povo. Porém, o objetivo não vigorou. A explicação deste fracasso está certamente ligada à força e a eficácia do projeto da Redentora que se consolidou no imaginário coletivo, impedindo modificações imediatas. Além do mais, não podemos discordar de José Murilo de Carvalho ao apontar para o caráter anti-popular da República e mesmo os retrocessos sociais sofridos em decorrência da mesma. 56 O povo, distante do movimento republicano caracteristicamente de cunho intelectual, também não havia participado da Proclamação da República, acontecimento a que assistiram “bestializados”. Além do mais, vivia-se naquele momento sob um governo militar e provisório, sem uma nova constituição. Ou seja, o caráter não popular do novo governo estava fortemente presente. O mesmo não se deu com a abolição que, como vimos, atraiu uma infinidade de pessoas, demostrando a popularidade da instituição monárquica. Um outro fator a ser considerado é que, ao ser derrubada, a Monarquia passou a ser encarada como portadora de um projeto inacabado e obstacularizado pelos interesses de uma elite agrária prejudicada em seus interesses econômicos. O Terceiro Reinado, fortemente idealizado na figura da princesa, passou a ser interpretado como portador da esperança de um futuro que não pode se concretizar. A República assumia assim, a responsabilidade pelo triste destino dos libertos que ficaram órfãos de sua protetoramor, exilada na França e impossibilitada de defendê-los. O novo regime, em suas dificuldades iniciais, no que diz respeito às questões sociais, aparentemente impedia a concretização do ideal redentor de um futuro melhor. O fracasso da celebração abolicionista de caráter republicano pode ser observado no terceiro aniversário da abolição (13/05/1891), o segundo celebrado pela 54 “...o feriado foi revogado por Getúlio Vargas, Chefe do Governo Provisório, que assumiu o poder depois da Revolução de 1930. A razão alegada é que a escravidão fora uma marca na história brasileira; e, portanto festejar a abolição seria lembrar que houve a escravidão; assim, julgou-se que melhor seria extinguir o feriado, como foi feito”. Cf. CARVALHO, André. Dicionário de datas comemorativas. 2. ed. Juiz de Fora: UNED, p. 48. 55 56 79 Festas. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, ano 15, n. 590, p. 6, 13 maio 1890. CARVALHO, J. M. Os bestializados, op. cit. p. 29-31 e 45. Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Ao encerrarmos este trabalho, podemos constatar que a Monarquia não assistiu passivamente a seu declínio. Toda a construção de um discurso heroificador em torno da Princesa Isabel é prova inquestionável das articulações monárquicas, pelo menos do ponto de vista discursivo, na busca de sua manutenção. Não foi nosso objetivo analisar os motivos de decadência da Monarquia nem as causas da proclamação da República, tarefa sobre a qual a historiografia tem se debruçado de forma constante ao longo deste século. 59 Nossa proposta, na verdade, foi resgatar os momentos finais de sobrevivência do regime, sob uma ótica cultural, abordagem não muito presente na historiografia que trata do período. A figura da Princesa Isabel tem sido igualmente relegada ao esquecimento em nome de um discurso anti-historicista que privilegia o papel das estruturas em detrimento do indivíduo. Esta posição só recentemente começou a ser revista através de uma nova abordagem que, sem cair na exaltação historicista, pretende resgatar o papel do indivíduo na História. Assim é que acreditamos estar contribuindo para novas interpretações de objetos desprezados por preconceitos que só recentemente começaram a ser superados. Não há dúvida de que este trabalho não esgotou as fontes nem as possibilidades de abordagem do tema. Certamente uma pesquisa futura poderá elencar melhor os atores envolvidos bem como a ação efetiva das forças sociais participantes neste processo. A historiografia brasileira começa a dar os primeiros passos para uma abordagem cultural do Segundo Reinado. Estamos portanto diante de um campo aberto e amplo para que muitas pesquisas venham ser realizadas. Nosso objetivo no presente texto é, em última instância, chamar atenção para questões que têm sido ignoradas pela historiografia e apontar caminhos para investigações futuras. A heroificação da Princesa Isabel foi fruto de um efetivo empreendimento realizado por diferentes atores e mecanismos que confluíam para o mesmo objetivo legitimador. Ao ser derrubado o regime, o mito disseminou-se pelo imaginário coletivo e passou a ser transmitido às novas gerações. Apesar de ser questionado, o mito da Redentora ainda permanece vivo em nossa sociedade. Ao se comemorar o sesquicentenário de nascimento da princesa (1997), uma das publicações, destinadas a enumerar e apresentar o roteiro das celebrações, afirma que “seus netos, bisnetos e os poucos amigos ainda vivos, que conheceram a Princesa Isabel no exílio, nos contam que ainda hoje ouvem os ecos de sua doce voz a dizer para as crianças: ‘Danadinhos, não estraguem minhas rosas’.” 60 Ao finalizar este trabalho podemos afirmar que, diante dos atuais questionadores do mito, a princesa certamente afirmaria a mesma sentença. república. Mais uma vez, recorremos à Revista Illustrada, periódico que escolhemos como forma de homogeneizar nossa pesquisa em torno de um mesmo tipo de documento. Diferentemente do ano anterior, a revista não noticia comemorações, limitando-se a afirmar que o pouco entusiasmo com o treze de maio foi “reflexo do que vae correndo pela política e das idéas, opiniões e procedimento dos homens que actualmente nos governam.” 57 O empreendimento republicano na construção de um novo universo simbólico que legitimasse o novo regime não foi capaz de destruir a tradição monarquista, fortemente arraigada na memória coletiva. Conforme ressaltou Lúcia Lippi Oliveira, a construção de um novo imaginário “não foi capaz de conferir legitimidade à nação republicana. Os monarquistas, por outro lado, não foram suficientemente fortes para restaurar a monarquia; entretanto, foram-no para garantir a supremacia de sua interpretação sobre o Brasil.” 58 A comemoração republicana da abolição, oficializada por Deodoro, foi extinta por Getúlio Vargas em 1930. Isto, num contexto onde a busca de pipularidade e os mecanismos de aproximação com o povo exigiam reformulações. Naquele momento, a imagem e os valores presentes na abolição já não satisfaziam os requisitos das novas estratégias governamentais. Um novo arsenal ideológico carregado de um discurso populista precisava ser construído. Mas isto é um outra história. De qualquer forma, a leitura monarquista da abolição sobreviveu à Proclamação da República, permaneceu durante toda a República Velha e mesmo aos governos populistas posteriores, chegando inclusive aos nossos dias. Mesmo sendo questionado, o mito da Redentora ainda está presente na memória coletiva. A associação da abolição como fruto exclusivo da ação da Princesa Isabel ainda permanece viva. O mito da princesa redentora realmente triunfou. CONSIDERAÇÕES FINAIS Não há dúvida de que o discurso de um abolicionismo monárquico se sobrepôs ao republicano. Nossa memória coletiva atual é prova do sucesso do mito redentor que se perpetuou ao longo deste século e só recentemente começou a ser reavaliado e questionado pela memória pública. Ao se comemorar o centenário da abolição, presenciamos o início de discussões defendidas por grupos anti-racistas que procuravam questionar o mito da Redentora substituindo-o pela valorização de Zumbi dos Palmares. E poderíamos até arriscar, buscou-se heroificá-lo. O que se percebe na verdade, é a eterna busca pela humanização das relações sociais. Na falta de propostas concretas para a solução de tais problemas, busca-se projetar os ideais em ídolos que encarnem a esperança de tempos melhores. 59 COSTA, Emília Viotti. Op. cit. MELLO, Cláudio Prado de. Princesa Isabel 150 Anos; roteiro da exposição comemorativa de 25 de outubro de 1997 organizada pelo Museu Nacional./ Rio de Janeiro: Gráfica do Banco do Brasil, 1996, p. 24. (O texto não foi paginado, originalmente.) 60 57 BLODIN. De Maromba. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, ano 16, p. 6, maio 1891. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. As festas que a república manda guardar. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 187, 1989. 58 80 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 ANEXO 1 Estampa oferecida à Princesa Isabel por ocasião de seu quadragésimo segundo aniversário, dois meses após a assinatura da Lei Áurea. ANEXO 2 Estátua comemorativa do 13 de maio de 1888 Fonte: DIAS, Renato Henrique. Museu Mariano Procópio. Juiz de Fora: Tribuna de Minas, 1996, p. 29. Fonte: MELLO, Cláudio Prado de.(org.) Princesa Isabel - 150 anos: roteiro dos eventos comemorativos. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, Departamento Geral de Imprensa Oficial - SMA, 1996, p. 6. 81 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 RESENHA KRAAY, Hendrik. Resenha. MEADE, Teresa A . "Civilizing" Rio: reform and Resistance in a Brazilian City, 1889-1930. University Park Press, 1997. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, vol. 2, no. 1, jan./jun.1998. p. 113-115. http://www.ufjf.br/~clionet/rehb MEADE, Teresa A . "Civilizing" Rio: Reform and Resistance in a Brazilian City, 1889-1930. University Park Press, 1997. 1 Hendrik Kraay University of Calgary [email protected] Endereço para correspondência: Revista Eletrônica de História do Brasil Arquivo Histórico da UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora - MG Prédio do CDDC- Campus da UFJF Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330 This book analyzes the "near constant conflict and upheaval" that characterized Old-Republic Rio de Janeiro and seeks "to explain why different social classes, organized in neighborhood groups, labor unions, and affiliated societies, quarreled and fought with the city and federal government from 1890 to 1930" (p. 4). Insights from urban sociology -- particularly Manuel Castells's observation that social conflicts in cities can take the form of struggles over the "allocation of urban space" or "collective consumption" (pp. 5, 10) -- provide new ways of looking at this period. At the same time, the study places Rio de Janeiro's development squarely within in the international political economy (the capitalist world system) in which the Brazilian capital served as an export funnel for primary products and a showcase for the Old Republic oligarchy's pretensions to "civilization," with deleterious effects for the masses: "[I]t is only, ultimately, on the level of the world system that the development of any major city can be understood" (p. 191). Chapters on "Civilization," "The Features of Urban Life," "Sanitation and Renovation," "The Resistance" (the 1904 riots ostensibly against obligatory vaccination), "Living and Working Conditions," and "The [1917] General Strike," tell a story familiar in its broad outlines from the work of (among others), Jose Murilo de Carvalho, Eduardo Silva, Eulalia Maria Lahmeyer Lobo, June Hahner, Sandra Lauderdale Graham, and Jeffrey Needell (not to mention historians of the labor movement and the historical geographers who have traced the changing urban morphology): Europhile Old Republic elites determined to remake their capital into a "modern" city by renovating and sanitizing http://www. ufjf.br/~clionet/rehb E-mail: [email protected] Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342 Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo e em sua estrutura física. 1 Publicado por [email protected] (March 1998). Dados completos da obra: Teresa A. Meade. "Civilizing" Rio: Reform and Resistance in a Brazilian City, 1889-1930. University Park: The Pennsylvania State University Press, 1997. xi + 212 pp. Map, figures, tables, bibliography, and index. $45.00 (cloth), ISBN 0-271-01607-8; $19.95 (paper), ISBN 0-271-016086. 82 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 demonstrates their importance for Brazilian history. One wonders, however, if police and judicial records (so ably used, for example, by Sidney Chalhoub in his study of the last years of Rio slavery) might not afford an even richer understanding of plebeian society? These latter points are, however, minor quibbles with a book that will become required reading for students of not only Old Republic Rio de Janeiro but also Latin American urbanization in general. Its length makes it ideal for classroom use and assigning it alongside Jeffrey Needell's studies of elite culture in the carioca belle epoque produced a useful seminar discussion earlier this semester. 3 their downtown core, retreating to fashionable beachfront neighborhoods well served by streetcar lines and other amenities. The destruction of downtown tenements entrained the removal of lower-class residents to unhealthy northern suburbs that suffered from inadequate infrastructure. Meade sensitively portrays the devastation that urban reforms wrought on vibrant downtown plebeian communities, for whom "civilization" offered nothing. In response to the destruction of their way of life, the urban poor resisted through petitions, marches, letters to the editor, strikes, and street violence. The book's strength and major historiographical contribution lie in its linkage of the allegedly pre-modern forms of protest such as riots over living conditions to the class struggle that is so often perceived in narrow work-place terms. To be sure, some of Rio's workers adopted "modern" forms of protest as they unionized and struck; to relegate all other forms of protest to the "pre-modern" category is, however, for Meade, a mistake: Riots over community issues "are as integral a part of the capitalist system as is the urban structure that has spawned them and the official intractability that has ignored the misery of the poor" (p. 187). Given the long tradition of collective action on the part of the urban poor, Meade's book is a call to consider class struggle broadly: "People lived in a society that was based not simply on buying and selling their labor but also on governing and distributing land, housing, labor, and capital" (p. 188). Struggles over the latter were thus an integral part of class conflict and reflected the emerging carioca class consciousness. The sensitive portrayal of popular life and the insightful discussion of resistance to the reform program, however, is not matched by an equally sophisticated discussion of the "civilizers" and their project. The chapter on "Civilization" resembles a textbook account; based heavily on secondary sources, it includes little discussion of the views of those who justified and carried out the "civilizing" project in Rio. Rather, there are analyses of Domingo Faustino Sarmiento's Civilizacion y Barbarie (1845) and Euclides da Cunha's Os Sertoes (1901); both, to be sure, set something of an intellectual context for turn-of-the-century Latin American elites but neither brings the reader particularly close to Old Republic Rio. Indeed, in this light, Meade's book (with its focus and strongest chapters on the urban poor) falls short of William Taylor's call for whole histories that effectively combine the histories of elites and masses, the need for which Todd Diacon recently underscored in a review of literature on Rio de Janeiro. 2 While the book is well-grounded in international literature and makes frequent reference to relevant events in Europe and North America, one particular error merits correction: the author greatly exaggerates the brutality of Tudor England's poor laws and misdates Henry VIII's reign (1509-45) by two centuries (p.62). The extensive use of newspapers, the principal primary source mentioned in the footnotes conveniently placed at the bottom of the page (kudos to Penn State Press for sparing readers the trouble of constantly flipping to the back of the book), 3 Jeffrey D. Needell, "Rio de Janeiro and Buenos Aires: Public Space and Public Consciousness in Fin-de-Siecle Latin America," Comparative Studies in Society and History, 37:3 (July 1995), 519-540; idem, A Tropical Belle Epoque: Elite Culture and Society in Turn-of-the-Century Rio de Janeiro. (Cambridge: Cambridge University Press, 1987). 2 Todd A. Diacon, "Down and Out in Rio de Janeiro: Urban Poor and Elite Rule in the Old Republic," Latin American Research Review, 25:1 (1990), 243-252. 83 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 RESENHA LEVINE, Robert M. Resenha de filme. OLIVEIRA, Maria e NEHRING, Marta. 15 Filhos (Video Documentary). 1997, 25 minutes. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, vol. 2, no. 1, jan./jun.1998. p. 116-117. http://www.ufjf.br/~clionet/rehb OLIVEIRA, Maria e NEHRING, Marta. 15 Filhos (video Documentary), 1997, 25 minutes. 4 Robert M. Levine University of Miami, Coral Gables <[email protected]> Endereço para correspondência: Revista Eletrônica de História do Brasil Arquivo Histórico da UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora - MG Prédio do CDDC- Campus da UFJF Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330 The imposition of military dictatorship on Brazil in 1964 led to mass arrests, the eruption of pockets of resistance in large cities as well as in the countryside, and the complete abrogation of civil rights of Brazilian citizens. Brazil underwent a series of military presidencies, from the moderate but stern Castello Branco to the far harsher Costa e Silva, Figueiredo, and Garrastazu Medici. Under Ernesto Geisel, the final military president, the armed forces prepared to step back however gradually but the damage to the lives of thousands of Brazilians had been done. The repression increased significantly after 1968. Brazil was engulfed in urban bank robberies and terrorism (the curious and flawed film Four Days in September deal with this theme) and guerrilla insurgency in the interior. Although never as savage as in neighboring Argentina under its generals, or as in Chile under Pinochet, for left-wing Brazilian activists (as well as sympathetic intellectuals, students, and journalists), life during the 1970s was hell. Every branch of the military practiced counterinsurgency terrorism, routinely torturing its captives, some of whom simply "disappeared." The regime drove thousands into exile, including Brazil's current president, Fernando Henrique Cardoso. Some Brazilian leftists fled to Chile, where they found haven under the government of Salvador Allende -- only to be captured again when Allende was overthrown. Brazilian military officials sent teams of agents to Santiago to "work with" their Chilean counterparts in interrogating Brazilian prisoners. For some, this was not a bad period. Conservatives hailed the crushing of the Left, although moderates (including some heroic members of the Brazilian Roman http://www. ufjf.br/~clionet/rehb E-mail: [email protected] Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342 Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo e em sua estrutura física. 4 Publicado por [email protected] (March 1998). Dados completos da obra: 15 Filhos, a video documentary by Maria Oliveira and Marta Nehring, 1997, 25 minutes. English subtitles. Available from Michelle McCabe, Cinematographer, 241 Lafayette Street, 3rd floor, New York, NY 10012. <[email protected]>. 84 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1 Catholic Church) found peaceful ways to protest the abuses against human rights. The economic scene was different. Against the background of the repression, Brazil experienced its "economic miracle," a period of unprecedented growth aided to a large degree by the enforced stability that accompanied the crushing of labor unions, student groups, and a muzzled press. Brazil gradually won back civilian government and democratic practices, although the process took an entire generation to achieve. 15 Filhos is the story of the children of victims of the repression: men, for the most part anti-military left-wing activists who fought the military regime and who paid with their lives. The film is simple, almost all of it in the form of close-ups of the young men and women most in their 20s who tell the story of fathers who they only knew in infancy before they disappeared into clandestinity and ultimately into death. As a documentary, the video is a moving reminder of the human costs of political conflict. Although it has won awards at festivals in Fortaleza, Rio de Janeiro, and Holland, and recently has been submitted to a film festival in Germany, it has limited classroom use because it was produced for Brazilian viewers presumably knowledgeable about the history of the events of the 1960s and 1970s that cost the fathers of the interviewed subjects their lives. The documentary does not even provide the full names of the fallen fathers. This is too bad: the film would be much more suitable for nonBrazilian audiences if the directors were to add a five-minute preface to their video explaining the origins of the 1964 coup and its aftermath. Still, 15 Filhos remains a moving testimony to the human side of ideological conflict and political warfare. 85