revista eletrônica de história do brasil

Transcrição

revista eletrônica de história do brasil
REVISTA ELETRÔNICA
DE
HISTÓRIA DO BRASIL
Publicação semestral da
Universidade Federal de Juiz de Fora
Departamento de História
Arquivo Histórico da UFJF
Editora da UFJF
Volume 2 - Número 1 - Jan./Jun. de 1998
Juiz de Fora - MG - Brasil
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
FICHA CATALOGRÁFICA
REVISTA Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF.
Semestral. 1998, http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
1. História do Brasil 2. Periódicos eletrônicos: história
Digitado em Word 7.0. Os direitos dos artigos publicados nesta edição
são propriedade dos autores. Esta obra pode ser obtida gratuitamente
através de assinatura eletronica pelo endereço web da Revista e da Lista
de Discussão HBRASIL-L, reproduzida eletronicamente ou impressa,
desde que mantida sua integridade.
REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL
Web: http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
E-mail: [email protected]
Fone: (032) 229-3750 - FAX: (032) 231-1342
Endereço convencional:
Revista Eletrônica de História do Brasil
Arquivo Histórico da UFJF
Prédio do CDDC - Campus Universitário
Juiz de Fora - MG - 36036-330
Conselho Editorial:
Alexandre Mansur Barata
Carla Maria Carvalho de Almeida
Galba Di Mambro
Patrícia Falco Genovez
Ronaldo Pereira
Sonia Lino
Vanda do Vale Arantes
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Conselho Consultivo:
Adriano S. L. da Gama Cerqueira - UFOP
Américo Guichard Freire - UFRJ e CPDOC
Ângela Maria de Castro Gomes - UFF
Ângelo Carrara - UFOP
Beatriz Helena Domingues - UFJF
Carlos Fico - UFOP
Cláudia Maria Ribeiro Viscardi - UFJF
Douglas Colle Libby - UFMG
Hélen Osório - UFRS
Horácio Gutierrez - UFG
Ignacio José Godinho Delgado - UFJF
Jairo Queiróz Pacheco - UEL
Manolo Florentino - UFRJ
Maria de Fátima da Silva Gouvêa - UFF
Maria Leônia Chaves de Resende - FUNREI
Paulo E. C. Parucker - Mestre pela UFF
Renato Pinto Venâncio - UFOP
Rodrigo Patto Sá Motta - UFMG
Vera Lúcia Puga de Souza - UFU
William Summerhill - UCLA - California
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
Reitor: Profa. Dra. Maria Margarida Martins Salomão
Vice-Reitor: Prof. Paulo Ferreira Pinto
Pró-Reitora de Pesquisa: Prof. Dr. Murilo Gomes de Oliveira
Diretor da Revista: Prof. Galba Ribeiro Di Mambro
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
SUMÁRIO
Apresentação
INICIAÇÃO CIENTÍFICA
04
DAIBERT JÚNIOR, Robert.
Isabel, a Redentora; heroificação da princesa
brasileira frente à crise monárquica e no advento
da República
ARTIGOS
COUTINHO, Sérgio Ricardo.
Frei Theodósio da Veiga e José Lopes Espínola;
missionários do Rio Urubu (Amazônia - séc. XVII)
OLIVEIRA, Lisa Batista de.
Gênero, poder e prostituição
CARDOSO, Maria Tereza.
Caramuru somos nós
RESENDE, Leônia Chaves de, et alii.
A devassa da vida privada; o arquivo paroquial de
Nossa Senhora do Pilar de São João del Rei
SILVA FILHO, Osmar Luiz da.
Imagens das cidades; oralidade, memória e história
AXT, Gunter.
A participação da iniciativa privada nacional no
setor elétrico gaúcho; uma perspectiva histórica das
maiores empresas (1887-1922)
GENOVEZ, Patrícia Falco.
O desafio de Clio: o esporte como objeto de estudo
da História
RESENHAS
KRAAY, Hendrik.
MEADE, Teresa A . "Civilizing" Rio: Reform and Resistance
in a Brazilian City, 1889-1930
LEVINE, Robert M.
OLIVEIRA, Maria e NEHRING, Marta. 15 Filhos (video
Documentary), 1997, 25 minutes
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
para a reprodução do capital privado regional/nacional. Um tema, sem dúvida atual,
tendo em vista o contexto de privatização vivenciado pelo país.
APRESENTAÇÃO
E, finalmente, Patrícia Falco Genovez, trabalha o esporte como objeto da
História, separado da Educação Física, colocando os espaços e possibilidades de análise
de um tema ainda pouco explorado pela historiografia.
A partir deste segundo volume, será nosso objetivo, oferecer aos alunos de
graduação um espaço para divulgação de suas pesquisas. O espaço destinado à
Iniciação Científica traz, neste momento inaugural, o graduando Robert Daibert Júnior,
analisando o mito em torno da Princesa Isabel, no momento da crise monárquica e a sua
permanência após o advento da República, através de imagens e fontes escritas. A
relevância e o ineditismo do tema nos mostra o quanto é importante abrir espaços para
que alunos possam publicar seus trabalhos, seja monografias de final de curso ou
mesmo trabalhos desenvolvidos a partir de bolsas de iniciação científica.
Entre os artigos que integram a Revista Eletrônica de História do Brasil
percebe-se uma tendência bastante variada, com abordagens de objetos, de um modo
geral, ainda pouco explorados pela historiografia. Sérgio Ricardo Coutinho tem como
objetivo acompanhar o processo de constituição da experiência de vida, e
principalmente missionária, de frei Theodósio da Veiga e de seu amigo José Lopes
Espínola, dentro da perspectiva das "novas" biografias, onde o indivíduo é estudado
como um microcosmo de múltiplas relações, sejam elas racionais e/ou irracionais, no
contexto da Amazônia do século XVII.
Os artigos de Lisa Batista de Oliveira, Maria Teresa Cardoso e Maria Leônia
Chaves de Resende, concentram-se em Minas Gerais. Lisa Batista tem como objetivo a
compreensão do significado cultural da prostituição nas Minas Gerais do século XVIII,
utilizando a categoria gênero, através da qual os papéis sexuais são concebidos como
construções históricas diferenciadas, onde devem ser entendidos como contra-poderes
sedutores e ilícitos que resultavam em uma existência mais autônoma para as prostitutas
mineiras. Maria Teresa analisa os aspectos de uma rebelião escrava ocorrida na
freguesia de Carrancas (São João del Rei - MG), em 1833, procurando tecer algumas
considerações acerca das referências culturais e simbólicas que informaram a ação dos
escravos. Maria Leônia tem por objetivo a descrição do arquivo paroquial do Pilar,
especialmente da série Processos Matrimoniais, como resultado parcial do projeto
“Levantamento, classificação e indexação, em banco de dados, dos documentos e obras
raras dos arquivos de São João del-Rei e Tiradentes” (MG).
Outro objeto de grande relevância é trabalhado por Osmar Luiz Silva Filho que
busca um diálogo do historiador com as fontes orais que elege as dimensões do
imaginário e das representações, dimensões estas, solenes, para a compreensão de uma
realidade.
Gunter Axt, numa perspectiva econômica trabalha os principais investimentos
do capital privado nacional na indústria de energia elétrica do Estado do Rio Grande do
Sul, desde 1887 a 1928. Seu propósito fundamental foi revelar, de um lado, os
mecanismos de proteção governamental para com o setor, e, de outro, os obstáculos
O Conselho Editorial
4
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
FREI THEODÓSIO DA VEIGA E JOSÉ LOPES ESPÍNOLA;
missionários do Rio Urubu (Amazônia - séc. XVII)*
COUTINHO, Sérgio Ricardo. Frei Theodósio da Veigas e José Lopes
Espínola; missionários do Rio Urubu (Amazônia - séc. XVII).
Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 2,
n. 1, jan./jun. 1998. p. 05-19.
Sérgio Ricardo Coutinho
Professor de História da América do Centro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB)
Membro do CEHILA-Brasil (Centro de Historia da Igreja na América Latina e Caribe)
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
RESUMO: Atualmente, observa-se uma recuperação do indivíduo na História. As
"novas" biografias têm procurado ver o indivíduo como um microcosmo de múltiplas
relações contraditórias, sejam elas racionais e/ou irracionais. Busca-se estudar o indivíduo e
sua relação com redes sociais e discursivas mais amplas. Este artigo visa reconstruir, ou
melhor, acompanhar o processo de constituição da experiência de vida, e principalmente
missionária, de frei Theodósio da Veiga, religioso mercedário, e de seu amigo o negro,
catequista (!?), “capitão-do-mato”, José Lopes Espínola: ambos trabalharam com os índios
Aruaques e Muras no rio Urubu, durante o final do século XVII. Através das suas
trajetórias, mostraremos a luta em viver e sobreviver na Amazônia, além das relações entre
brancos, índios e negros na história colonial e religiosa daquela região.
Endereço para correspondência:
Revista Eletrônica de História do Brasil
Arquivo Histórico da UFJF
Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
Prédio do CDDC - Campus Universitário
Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330
ABSTRACT: At present moment, we observe the regeneration of the person on
History. The “news” biographies have studied the person with a microcosme in the
multiply contradictions relations (rational or irrational). Now, studies the person and
his relationship with an extend social and discursives circles. This articles have an
objetive: to follow the process of constitution of life experience, and missionarie life
especially , about father Theodósio da Veiga, mercedarian, and about your negro friend,
cathechist, “capitão-do-sertão”, José Lopes Espínola: both worked with the Aruaques
and Muras indians in the Urubu river, during of XVII century. Over his way of life, we
show the fight to live and survivel in the Amazon forest, and the relationship with
whites, indians and negros in the colonial and religious history in region.
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
E-mail: [email protected]
Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342
Este texto pode ser reproduzido livremente,
para uso pessoal e sem finalidades comerciais,
desde que não sofra alterações em seu conteúdo
e em sua estrutura física.
PALAVRAS-CHAVE: Mercerdários; Amazônia: sec. XVII; Frei Theodósioda Veiga;
José Lopes Espínola; Negros; Biografias
INTRODUÇÃO
Atualmente, observa-se uma recuperação do indivíduo na história. As
"novas" biografias têm procurado ver o indivíduo como um microcosmo de múltiplas
*
Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla sobre os Mercedários entitulada "Documentos
para a História dos Mercedários na Amazônia Colonial" desenvolvida no Núcleo de Estudos da
Amazônia (NEAz/UnB).
5
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
relações contraditórias, sejam elas racionais e/ou irracionais. Busca-se estudar o
indivíduo e sua relação com redes sociais e discursivas mais amplas. O personagem
analisado "re-apresenta" uma realidade maior na dimensão da sua individualidade. Ele
não se resume a esta realidade mas participa dela.1
Cabe ao historiador uma apreensão, mais sólida do que nunca, da
totalidade da experiência humana. Os homens vivem sua experiência de vida
integralmente com idéias, necessidades, aspirações, emoções, sentimentos, razão,
desejos, como sujeitos sociais que improvisam, forjam saídas, resistindo, se
submetendo, enfim vivendo. Pensar a história neste sentido, como experiência humana,
é situá-la como um campo de possibilidades em que várias propostas estão em jogo.
Deste modo, o historiador, para recuperar a problemática vivida pelos agentes em
estudo, necessita acompanhar o processo de constituições dos atores sobre suas
experiências.
Este artigo visa a reconstruir, ou melhor, a acompanhar o processo de
constituição da experiência de vida e, principalmente, missionária, de frei Theodósio da
Veiga, religioso mercedário, e de seu amigo, o negro, catequista (!?), “capitão-domato”, José Lopes Espínola. Ambos trabalharam com os índios Aruaques e Muras no
rio Urubu, durante o final do século XVII. Através das suas trajetórias, mostraremos a
luta em viver e sobreviver na Amazônia, além das relações entre brancos, índios e
negros na história colonial e religiosa daquela região.
de Quito em 1639, procurou o provincial da ordem mercedária, solicitando-lhe que
destacasse alguns missionários para trabalharem no Pará. Frei Francisco de Baana
atendeu o pedido, designando alguns religiosos (Frei Pedro de la Rua Cirne, Frei João
das Mercês, Frei Diogo da Conceição e Frei Afonso de Armejo) para acompanharem o
regresso dos portugueses ao Brasil, onde o próprio capitão prometia dar todo o apoio
possível para a instalação dos mesmos em terras portuguesas.
Alguns historiadores falam do impacto que causou no capitão a grande
veneração dos equatorianos pela Ordem de Nossa Senhora das Mercês e ele "encheu-se
de entusiasmo, lembrando-se de trazer para Belém aquela gente que se cercava de
tanta glória."3 Para entendermos o fato, devemos verificar antes a práxis missionária
destes religiosos no Vice-Reino do Peru.
Segundo Pedro Borges, os mercedários no "Novo Mundo" se
converteram, desde o primeiro momento, em uma ordem religiosa com os mesmos
objetivos das demais do seu tempo, ou seja, atender espiritualmente a população branca,
se dedicar à conversão e posterior evangelização dos índios e, em menor medida, dos
negros.
No que diz respeito ao cuidado espiritual dos brancos, os mercedários
procuraram trabalhar sob a forma da administração dos sacramentos e celebração dos
cultos.
Quanto à conversão e posterior cura pastoral dos indígenas, os
mercedários não coincidem totalmente com as demais ordens religiosas. Na legislação
oficial da época, ao falar das ordens missioneiras, há um silêncio sistemático à Ordem
das Mercês. Por quê?
A característica marcante dos mercedários na América foi sua
participação nas conquistas armadas, muito superior às demais ordens. Rememorando e
pondo em prática sua inicial denominação oficial de Real e Militar Ordem das Mercês,
estes religiosos participaram como capelães em muitas das expedições de conquista
organizadas no século XVI, ao ponto da primeira chegada a muitos territórios se
realizar na qualidade de acompanhantes dos conquistadores.
Os mercedários se acostumaram a iniciar suas vidas na América tendo
como base as casas, terras e encomendas de índios que se lhes entregavam uma vez
anexados, em recompensa aos méritos adquiridos durante o processo anexador.4 Foi o
que aconteceu quando da conquista da região de Quito.
Em 1534, acompanharam a expedição de conquista de Pedro de
Alvarado, pelo Equador, seis mercedários. No ano seguinte, o capitão Pacheco se
estabeleceu na cidade de Portoviejo, província de Quito. Este capitão levou consigo o
mercedário Dionísio de Castro. Pela participação na campanha militar, o religioso
OS MERCEDÁRIOS NA AMAZÔNIA
Os mercedários ou religiosos da Real, Sagrada e Militar Ordem Calçada
de Nossa Senhora das Mercês e da Redenção dos Cativos (O. de M.) foram fundados
em 1218, na cidade espanhola de Barcelona, por São Pedro Nolasco. Nasceram com o
fim primordial de aspirar à perfeição mediante o exercício da virtude da caridade, sob a
forma específica da "redenção dos cativos",2 ao que se comprometiam na profissão de
um quarto voto somados aos já tradicionais de pobreza, obediência e castidade.
Juntamente com os franciscanos, foram os primeiros a chegar ao Novo
Mundo, acompanhando Cristóvão Colombo em sua segunda viagem. Das Antilhas
seguiram para a América Central, particularmente à Nicarágua, de onde foram em 1535
se estabelecer na cidade de Quito, capital do Vice-Reino do Peru.
Sabe-se que o capitão-mor Pedro Teixeira, partindo do Pará, após uma
expedição que se iniciou em 1637, subindo todo o Rio Amazonas e chegando à cidade
1
SCHIMIDT, Benito B. A Pós-Modernidade e o conhecimento histórico: considerações sobre a
volta da biografia, in Cadernos de Estudos, Porto Alegre: Curso de Pós-Graduação da UFRGS,
1994, p. 52.
2
O frade mercedário ía de cidade em cidade esmolando para obter dinheiro e comprar a liberdade
de muitos cristãos presos pelos mouros. Muitas vezes, quando não se tinha o dinheiro, o religioso
ficava como refém no lugar daquele que recebia a liberdade.
3
REIS, Arthur César F. A Conquista Espiritual da Amazônia, São Paulo, Escolas Profissionais
Salesianas, 1942, p. 28. Para uma pequena súmula dos mercedários no Pará e no Maranhão ver p.
28-33
4
BORGES, Pedro. Religiosos en Hispanoamérica. Madrid: Ed. Mapfre, 1992, p. 13.
6
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
recebeu um bom pedaço de terra para a edificação do primeiro convento. Nesse mesmo
ano foi fundado também o convento de Quito.
De acordo com um documento do século XVII, os mercedários tiveram
um papel importantíssimo no que diz respeito ao estabelecimento do domínio espanhol
na região de Quito, atuando como verdadeiros soldados. Vejamos um caso interessante
descrito neste documento:
Não trabalharam somente em estender o Império de Jesus Cristo
(...): renderam serviços muito importantes à Coroa de Espanha,
particularmente na horrível sedição que teve lugar em Portoviejo
no ano de 1547, em que a maioria do povo, intimidado pelas
ameaças do tirano [Governador], que se havia levantado contra o
Rei, seu Soberano, para fazer-se dono desta Província irmã, havia
tomado seu partido. O Venerável Padre Miguel de Santa Maria e
seus Religiosos [mercedários] se opuseram generosamente a esse
Tirano rebelde, e fizeram tanto com sua pregação e com suas
admoestações, que o povo tomou as armas, o expulsou da cidade,
em que pretendia estabelecer seu Trono imaginário, e permaneceu
na fidelidade que era devida ao Rei de Espanha, seu Soberano
Senhor.5
Berredo diz que os Superiores das diversas ordens religiosas de Quito,
ofereceram a Pedro Teixeira "os operários mais virtuosos para o trabalho de tão
inculta vinha", isto é, o Amazonas.6 Sem dúvida que ele ouviu as histórias e os sucessos
das conquistas dos mercedários, ou melhor, daquela "gente que se cercava de tanta
glória".
O capitão-mor sabia que os religiosos das Mercês seriam muito úteis não
só nas "conquistas para Deus" mas também "para o Rei". A conquista do rio Amazonas
significou a concretização da União Ibérica na América, pois a colônia espanhola e a
colônia portuguesa tinham agora um canal de comunicação. Além disso, e concordando
com Hugo Fragoso, a ocupação da Amazônia serviu de ponto de apoio para a defesa
contra os invasores (holandeses e franceses).7
Nesta viagem de exploração, Pedro Teixeira percebeu que o curso dos
rios Negro, Branco e Urubu desaguava em pleno território inimigo, ao Norte, isto é, nas
Güianas: é para lá que os mercedários seriam designados.
Depois da fundação dos conventos em Belém (1640) e em São Luís
(1660), os religiosos das Mercês iniciaram de forma efetiva o trabalho missionário e,
porque não, militar.
Em 1654, o padre Antônio Vieira reclama esta atitude dos mercedários:
Só com o capitão João Betancor (sic) foi o padre Frei Antônio
Nolasco, o qual sendo religioso mercenário, cuja profissão é
reunir cativos, ia nesta tropa a fazer, como fez, grande quantidade
de escravos; porque só à sua parte trouxe trinta e cinco, e os
vendeu publicamente e os outros jogou e ganhou aos oficiais e
soldados da tropa, sobre que anda pleito em juízo. 8
Em 1663, o sargento-mor Antônio Arnau Vilela e o mercedário frei
Raimundo exploram o rio Urubu. Berredo diz que o nome do rio quer dizer corvo
"nome, que tomou de serem assistidas as suas praias de infinito número destas fúnebres
aves". Aquele rio era sinônimo de morte.9 Frei Raimundo e Arnau Vilela sentem na pele
a fama do rio.
No lago de Saracá, onde deságua o Urubu, frei Raimundo tinha fundado
uma missão, porém ainda não tinha subido até a nascente do rio. Ali era povoado pelos
8
VIEIRA, Pe. Antônio. Escritos Instrumentais sobre os Índios. Introdução de José Carlos Sebe
Bom Meihy. São Paulo: EDUC/Loyola/Giordano, 1992, p. 11. Padre Vieira cita a expedição do
sargento-mor João Bettencourt Muniz que lutou no rio Jari contra os Aruaquis e, em seguida,
contra os Anibá (Berredo escreve "Aníbal", op. cit., parágrafos 991-993) que seriam aldeados
pelos mercedários. Além disso, Vieira, sarcasticamente, diz que o objetivo dos mercedários não
era a "redenção dos cativos" mas "reunir cativos", isto é, adquirir e negociar escravos. Frei
Antônio Nolasco fez sua profissão religiosa em 13 de dezembro de 1647 e segundo Vieira, no
mesmo documento, não sabia a "língua geral", era soldado da fortaleza de Belém e tinha sido
levado "por força a ser frade". O mercedário teria dito ao jesuíta que sua profissão tinha sido
anulada e que a pleiteava novamente com sua Ordem. Talvez por isso Antônio Nolasco saiu de
Belém e foi viver com o seu pai numa certa "ilha de São Miguel"; cf. Lembrança dos Religiosos
que tomaram o hábito e professaram neste Convento da Natividade [Belém] conforme das
profissões dos que são hoje vivos (1647-1677). Biblioteca Nacional de Madrid, Ms.18764. Os
grifos são nossos.
9
BERREDO, Bernardo P., op. cit., parágrafos 1111-1116. Existe uma lenda amazônica sobre o
Urubu: "Um dia, havia uma festa no céu em honra da Santa Virgem. Todos os animais da criação
tinham sido convidados. O jaboti, tão lento no andar, não via meio de chegar tão alto. Pediu ao
urubu que o levasse com ele. O urubu consentiu e colocou-o nas costas. Tendo chegado a certa
altura, o urubu, de propósito, deixou cair o coitado do jaboti, que se quebrou em mil pedaços.
Então, a Santa Virgem desceu do céu. Apanhou os pedaços do jaboti, restituiu-lhe a vida,
abençoou-o, e maldisse para sempre o negro urubu. Foi desde esse tempo que o jaboti é coberto
com uma carapaça que parece feita de pedaços, e que o urubu traz infelicidade a tudo o que
toca. A árvore na qual se empoleira perde as folhas; o fuzil que aponta para ele explode na mão
do caçador; seu corpo, depois de morto, fica abandonado; mesmo as formigas não o tocam"; cit.
por NÉRI, Barão de Santa-Anna. O País das Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
EDUSP, 1979, p. 69.
5
La Merced en America, según la `Historia parisiana de la Orden' (1685), in Presencia de la
Merced en America, Acta del I Congreso Internacional, Madrid, 30 de abril - 2 de mayo de
1991, vol. II. Madrid: Revista Estudios, 1991, p. 1043.
6
BERREDO, Bernardo Pereira. Anais Históricos do Estado do Maranhão. 4. ed. Rio de
Janeiro: Tipo Editor/ALUMAR, 1988, p. 178, parágrafo 687.
7
FRAGOSO, Hugo. A era missionária (1686-1759), in História da Igreja na Amazônia.
Petrópolis: Vozes, 1992, p. 140.
7
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Caboquenas, Bararurus e Guanavenes que, avisados da chegada da expedição, foram
procurá-la, persuadindo Vilela e frei Raimundo da facilidade de conseguir escravos se
subissem mais para as cabeceiras do Urubu. Acreditando na notícia, a tropa de resgate
acompanhou-os, ficando no Saracá apenas uma guarnição. Em caminho, Vilela foi
atacado e morto pelos índios com quase todos os companheiros; os poucos que
conseguiram salvar-se, entre eles Frei Raimundo e um companheiro de hábito10,
buscaram refúgio na missão do Saracá, onde o alferes João Rodrigues Palheta organizou
a defesa, e à frente dos soldados que lá estavam, foi ao encontro dos índios "degolando
a maior parte deles".11
Concluimos, assim, que a tendência da Ordem das Mercês em participar
das expedições de conquista é o que, provavelmente, atribuímos a total inibição na
questão da licitude ou ilicitude das mesmas expedições. Desde o momento em que
participam delas é porque as consideram lícitas, o que explica o seu silêncio na questão.
Vimos como os mercedários iniciaram suas atividades missionárias no
Amazonas. Para o "fúnebre" e perigoso rio Urubu, foi designado o frei Theodósio da
Veiga - é sobre ele que iremos falar.
FREI THEODÓSIO DA VEIGA E
A MISSÃO DO URUBU
Frei Theodósio era natural de Lisboa e fez sua profissão na Ordem de
Nossa Senhora das Mercês em 10 de novembro de 1657.12 Outro ponto importante era o
significado de seu nome, que provavelmente teria influência em toda a sua vida:
Theodósio, ou Teodoro, significa "dádiva do Senhor".
Para chegar ao dia da profissão, o noviço passa por várias etapas. Talvez
Theodósio, como muitos meninos da época que seguiam a vida religiosa, tenha entrado
para o Convento com uns 14 ou 15 anos de idade.
Ele fazia parte de um grupo de noviços que foram alunos do jesuíta Padre
Souto-Maior. Era costume entre os jesuítas estudar o trivium, isto é, gramática, retórica
e dialética, depois estudavam o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e
música) e a última etapa era o estudo da teologia. O latim também fazia parte do
currículo, mas era próprio dos jesuítas estudar e preservar por escrito a "língua brasília",
ou "língua geral". Souto-Maior também fez o mesmo com seus alunos mercedários.13
De acordo com a "Relação dos Religiosos que Professaram...", o adjetivo
dado a Theodósio é de "religioso grande língua da terra". A expansão e o predomínio
da língua geral se desenvolveram sobretudo em São Paulo (principalmente entre os
bandeirantes) e no Amazonas em geral, isto é, Maranhão, Pará e Amazonas. Na costa, a
língua portuguesa predominou, mas na região Norte e em São Paulo a língua geral era a
mais difundida. Francisco Lisboa dizia que no Estado do Maranhão, até mesmo nos
púlpitos, se falava a língua geral.
Para Ferreira Reis, o seu uso na região do Amazonas, durante os
séculos XVII e XVIII, foi de tamanha amplitude que poderia
afirmar-se que sem ela era, de certo modo, impossível viver
integrado ao meio social, dele auferindo qualquer benefício.14
Depois de aproximadamente 4 anos de estudo, Theodósio fez sua
profissão. Só encontraremos novas informações dele dez anos depois, em plena
atividade missionária.
Em 1668, o capitão Pedro da Costa Favela vai ao rio Urubu, despachado
pelo governador Antônio de Albuquerque Coelho, como comandante de uma tropa de
resgates. Ali encontrou os Aruaques, que o guiaram até o rio Negro onde os Tarumãs o
acolheram. Frei Theodósio da Veiga, que o acompanhava, fundou então, nas imediações
de Aruim, o primeiro povoado da região. Esse povoado, anos depois, foi transferido
10
Cf. BETTENDORFF, João Phelippe. Chronica da missão dos padres da Companhia de Jesus
no Estado do Maranhão (1698), in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio
de Janeiro, v. 72, 1909. p. 208. Relatando a mesma expedição, Bettendorff fala em frei João da
Silveira, natural de São Luís, que conseguiu escapar do ataque com muita habilidade por ter sido
ele um militar (capitão) antes de se tornar religioso, "ficando o companheiro [Frei Raimundo?]
com a cabeça quebrada durante o conflito, por querer livrar a um pobre morador do Maranhão,
chamado Rosa, a quem os inimigos levavam às costas para o matarem depois ..."
11
REIS, Arthur César Ferreira. História do Amazonas. 2. ed. Belo Horizonte, Itatiaia, 1987, p.
68; BERREDO, Bernardo P., op. cit., parágrafo 1116.
12
Lembrança dos Religiosos que tomarão o hábito e professarão neste Convento da
Natividade conforme das profissões dos que são hoje vivos (1647-1677), op. cit.
13
MORAES, Pe. José de. História da Companhia de Jesus na extinta Província do Maranhão
e Pará. Rio de Janeiro, Alhambra, 1987, p. 223. A 1a edição é de 1759. WECKMANN, Luís. La
herencia medieval del Brasil. México, FCE, 1993, p.215-216.
14
Apud RODRIGUES, José Honório. A vitória da língua portuguesa no Brasil Colonial, in
História Viva. São Paulo: Global, 1985, p. 25.
8
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
para a foz do rio Jaú e, sob a direção dos carmelitas, recebeu o nome de Santo Elias do
Jáu, conhecido posteriormente como Velho Airão.15 Entretanto, toda esta região ficou
subordinada aos jesuítas, ou seja, o trecho compreendido entre o Urubu e o Negro e
todo o vale deste.
A repartição das aldeias entre os religiosos no Amazonas teve vários
momentos onde os jesuítas e as demais ordens (franciscanos, carmelitas e mercedários)
disputavam o Amazonas.
Em 1655, as missões indígenas foram entregues aos jesuítas, com
exclusividade. Tal privilégio provocou ressentimentos e protestos das outras ordens
religiosas, inclusive dos mercedários. Nesse mesmo ano ocorre uma revolta contra os
religiosos da Companhia, por parte dos colonos, que termina com a expulsão dos
mesmos. Em 1661, ocorre o mesmo fato, sendo os jesuítas reintroduzidos no Estado do
Maranhão no ano seguinte.
Depois desta última expulsão, não foram entregues novamente aos
jesuítas a administração das aldeias com a exclusividade que vinha ocorrendo. Em 12
de setembro de 1663, o rei perdoava os colonos pela atitude violenta contra os
religiosos da Companhia, continuando, porém, com eles a administração espiritual dos
aldeamentos. Contudo, as outras ordens começavam a adquirir maior espaço para
atuação.
Em 1680, torna o rei Pedro II a insistir na exclusividade jesuíta, mas no
ano seguinte, ele determinava a criação da Junta das Missões, no Maranhão, o que
alargará o campo da co-participação administrativa dos aldeamentos. Em 1684, ocorre a
terceira expulsão dos jesuítas da região, motivada agora pela questão do governo
temporal dos índios. Retornam ao Maranhão em 1685, mas exigem um Regimento das
Missões, como condição para continuarem no trabalho missionário.16
O jesuíta Felipe Bettendorff disse que, com as várias expulsões de seus
irmãos de hábito, tinham ficado à frente das missões poucos religiosos e que seu
superior, padre Jódoco Peres, por pressão da Junta das Missões, decidiu liberar o rio
Urubu para os mercedários. O religioso designado, frei Theodósio, tinha a permissão de
"administrar os sacramentos até se dispor outra coisa em contrário".17
A pressão feita pela Junta das Missões nada mais era do que uma
determinação do rei Pedro II em favor dos mercedários. Em 1682, o rei já tinha
concedido à Ordem das Mercês autorização para construirem seu Hospício em Lisboa
porque, segundo ele,
exercitavam com desvelo no serviço de Deus e meu, tanto no
asseio do Culto Divino, como nas Missões em conservação e
propagação da fé, reduzindo aquela gentilidade ao grêmio da
Igreja, batizando e doutrinando todos com grandíssimo trabalho,
e risco da vida.18
A princípio, pode-se pensar numa concessão normal, porém o fato se
torna importante no instante em que o rei beneficiava uma ordem estrangeira em
detrimento de uma outra ordem portuguesa de igual objetivo de "redenção dos cativos":
a Ordem da Santíssima Trindade (os trinitários).
Os trinitários vinham fazendo pressão sobre o rei contra os mercedários
desde quando aconteceu a Restauração (fim da União Ibérica) e, simultaneamente, da
fundação do primeiro convento das Mercês em Belém, no ano de 1640. A disputa entre
as duas ordens ficou tensa especialmente após o Alvará de 1672, quando o rei
determinou que todos os mercedários se ausentassem do reino.
O mercedário frei João Leal, numa carta ao rei solicitando a permanência
da Ordem das Mercês no Estado do Maranhão, comentou os motivos da perseguição
trinitária:
... perseguiram sempre com estranhavel ódio [os] Religiosos da
Ordem da Santss Trind.e deste Reino [de Portugal], que naquele
Estado [do Maranhão] não tem Convento algum, nem querem as
incomodidades, e trabalhos de navegar mares, desterro do Reino,
trabalhos, e riscos das vidas das Missões na conversão da
Gentilidade ...19
A decisão do rei de Portugal em favor dos mercedários em 1682, fazia
deles os "novos" Templários na "cruzada" contra os "infiéis" indígenas da Amazônia.
Isto fica mais claro em um documento de 1689. O governador Arthur de Sá e Meneses,
após ouvir os índios do rio Urubu, que tinham ido a Belém no ano anterior pedir um
padre para os batizarem, resolveu efetivar Frei Theodósio da Veiga definitivamente na
região. O rei Pedro II confirmou a resolução:
não querendo admitir Religiosos da Companhia, instando que
fosse o Padre Frei Theodosio, da ordem das Mercês pelo
conhecerem, e os haver livrado de serem escravos, e por cuja
causa e por assentar em uma junta que fizestes, lhe concedestes o
dito Pe. Frei Thiodósio (sic), vistas as informações e
15
O Núcleo de Estudos da Amazônia (NEAz/UnB) juntamente com a Universidade do
Amazonas, Museu Amazônico e a UNESCO realizaram o tombamento das ruínas desta cidade
encontradas pelo pesquisador, do mesmo Núcleo, Prof. Victor Leonardi.
16
FRAGOSO, Hugo. op. cit., p. 148-149.
17
BETTENDORFF, João Phelippe. op. cit., p. 491-492. Cf. também LEITE, Serafim. História
da Companhia de Jesus no Brasil, 4. ed. Rio de Janeiro/Lisboa, INL/Livraria Portugália, 1943,
tomo III, p. 383. Pelas informações de Bettendorff e Serafim Leite, Theodósio da Veiga
trabalhava de modo temporário no Urubu desde 1684.
18
Cédula Real, de 22 de junho de 1682, concedendo aos mercedários portugueses a
fundação de uma Casa-Hospício em Lisboa, Biblioteca Nacional de Madrid, Ms. 18764, n. 23.
19
Memorial do P. João Leal ao Rei Pedro II (1673?). Biblioteca Nacional de Madrid, Ms.
18764, n. 20, f. 1; cf. também ALMEIDA, Fortunato de. História da Igreja em Portugal,
Lisboa: Civilização Ed., 1968, v. 2, p.198.
9
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
tarde administrada pelos carmelitas. Muito provavelmente os índios do rio Urubu,
vizinho destas tribos, tenham caído como escravos.
Apesar de termos comentado anteriormente que os mercedários não eram
propriamente missionários, não podemos esquecer que esses religiosos estavam muito
identificados com o "quarto voto", ao ponto de entregarem suas vidas para salvar a fé
do cativo. Dentro de um contexto tradicional, que poderíamos qualificar como
"cavaleiresco", e relacionado ao fato de que a Ordem das Mercês era uma ordem
militar, seus religiosos estavam acostumados a tratar com os infiéis mouros de Túniz e
Argel, devidamente autorizados para a compra dos cativos.
Sabe-se como era comum entre os cristãos europeus dizerem que os
índios eram "escravos ou cativos do demônio", que lhes inspiravam os cruentos
sacrifícios humanos, o canibalismo e o vício da sodomia. Além do "cativeiro espiritual",
os índios se tornavam também "cativos temporais", seja de outros grupos indígenas,
seja dos colonos. Como vimos acima, a posse de escravos aprisionados em guerra entre
os indígenas era freqüente, mas, com a ocupação da região Amazônica e pela demanda
dos brancos, eles adquiriram um valor de troca que fez do apresamento maciço de
inimigos uma atividade econômica importante para muitas tribos.
Esses prisioneiros foram designados pelos portugueses como "índios de
corda", porque eram arrastados, como troféu de guerra, pelos seus inimigos, por meio
de uma corda. Os colonizadores brancos obtiveram muitos desses prisioneiros, de
acordo com as circunstâncias, fundamentalmente através da troca por mercadorias
européias. Esse modo de proceder foi chamado de "resgate". Como o comprador
salvava da morte os índios da coroa, os colonizadores portugueses acharam justo
condenar os indígenas assim conseguidos a uma escravatura temporária ou vitalícia.21
Por volta de 1680, criou-se um sistema oficial de recrutamento de mãode-obra em que a própria fazenda real equipava e enviava expedições ocasionais para
comprar escravos. Cada expedição ia acompanhada por um capelão jesuíta que, em
princípio, devia vigiar que não se adquirissem escravos mais que por um acordo com os
caciques amigos que entregavam seus prisioneiros "legitimamente" escravizados nas
guerras intertribais normais. Com certeza este sistema sofreu muitas violações, mas
uma vez estabelecida a lei, requeria que cada escravo trazido rio abaixo estivesse de
posse de um certificado de escravização legítima, redigido e assinado por um jesuíta.
Qualquer escravo encontrado sem tal certificado era, teoricamente, uma pessoa livre.
Frei Theodósio participa e ajuda a consolidar as atividades de resgate de
índios na região. Vejamos um caso relatado por frei Felipe Bettendorff:
Ía o padre missionário [jesuíta] Miguel Antunes fazendo
belamente sua obrigação, assim com agrado dos brancos como
dos índios; só ao cabo [João de Morais] lhe parecia que faria
mais escravos que tivera missionário mais a seu gosto, com que,
circunstâncias que concorriam neste caso, em que não importava
menos que a redução a nossa fé, e salvação destes Índios dar-selhes este Missionário, por que do contrário se arriscava, o fruto
que se podia tirar para Deus, e repugnância que tiveram de ter
Missionário Religioso da Companhia a quem tocava esta Missão,
me pareceu dizer-vos que obraste bem.20
Pelo documento acima, temos uma primeira observação dos índios sobre
frei Theodósio: ele era uma verdadeira "dádiva de Deus", pois os havia libertado da
escravidão.
Talvez possamos entender melhor a escravidão deste índios dentro do
seguinte contexto: Os portugueses estavam a várias décadas estabelecidos em uma série
de pequenos acampamentos em torno da desembocadura do Amazonas no Pará, e os
holandeses, em acampamentos menores, na desembocadura do rio Essequibo, na costa
do Caribe, justo ao norte do vale inferior do rio Negro. Ambos grupos de colonos
europeus intentavam extrair suas fortunas das selvas tropicais do interior. Trocavam
mercadorias por produtos da selva como cacau, a baunilha, salsa e certas madeiras
aromáticas que podiam substituir à canela e o cravo do Oriente. Também caçavam
índios e índias, convertendo-os em escravos para que fossem trabalhar em sua
plantações e casas, e para conduzirem suas canoas, único meio disponível de transporte
até o interior.
Durante este período, final do século XVII, os portugueses haviam
tentado criar uma nova ordem social exploradora nas terras americanas, em vez de
simplesmente extrair delas certas mercadorias. Contudo, estavam obrigados a comprar a
maioria de suas necessidades materiais, a preços altos, dos provedores holandeses e da
Europa do Norte, e não dos fabricantes de seu próprio país; portanto, operavam com
uma séria desvantagem comercial. Mais numerosos que os holandeses, os colonos
portugueses necessitavam de mais escravos. Para fugirem do comércio com os
holandeses, partiram para se apoderarem do grande vale do Amazonas, e de seus
tesouros, mediante a força e por pura audácia.
Em torno da desembocadura do rio Branco, estava a aldeia dos carajaí,
que faziam trocas comerciais de produtos holandeses com os escravos capturados pelos
índios manaos, que viviam mais acima do rio Negro até o oeste. Também rio abaixo,
depois das aldeias dos carajaí, estavam os tarumã, também comerciantes de longas
distâncias, que trocavam por produtos holandeses os escravos que caçavam, ao longo do
rio Amazonas. No último quarto do século XVII, os portugueses fizeram guerra aos
tarumãs levando muitos deles ao Pará e forçando os demais a se retirarem para o rio
Branco, proporcionando um refúgio a alguns restantes em uma missão jesuíta, mais
20
21
LIVRO Grosso do Maranhão, Anais da Biblioteca Nacional, v. 66, p. 106, 1948. O grifo é
nosso. Veja nota 22.
THOMAS, Georg. Política Indigenista dos Portugueses no Brasil (1500-1640). São Paulo:
Loyola, 1982, p. 48-49.
10
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
lingüístico autônomo e que não falavam dialeto conhecido, mas tudo leva a crer que frei
Theodósio o dominava bem.25
Quanto aos Muras, eles ocupavam uma vasta região que abrangia os rios
Negro, Urubu, Madeira, Amatari e Uatumã. Viviam em malocas grandes e compridas,
cobertas de palha de cima à baixo, com duas saídas nas extremidades. Viviam nelas
várias famílias com suas fogueiras. Era um grupo guerreiro e fazia várias incursões
bélicas pelos rios próximos. Nos dias festivos, bebiam aguardente tirada da mandioca e
consumiam. Além disso, faziam o Paricá, uma fruta alucinógena que era torrada,
transformada em pó e absorvida pelo nariz. Quanto aos mortos, não tinham
preocupação de exumá-los, enterravam-nos indiferentemente na beira dos rios, na
floresta ou no interior das casas. Era um grupo semi-nômade e se dedicava mais à caça
e à pesca que à agricultura.26
A principal aldeia ficava sobre uma ribanceira alta, de terra escura. Lá
estava a casa de frei Theodósio e a igreja principal. O rio Urubu, segundo a descrição de
Bettendorff, não tinha muitos peixes, a não ser alguns quilômetros para baixo onde a
quantidade deles levavam os índios, anualmente, a pescá-los em abundância a ponto de
não se preocuparem em buscar alimento por um bom tempo.
Não era um rio habitado por muitas aldeias nas margens, mas sim em seu
interior, chegando a um total de dezessete povoações. Próximo à casa do mercedário
tinham umas seis aldeias, todas com capelas, onde ele as podia ver de sua varanda.
Todos os dias frei Theodósio celebrava a missa na igreja principal e depois dela pregava
toda a "doutrina". Talvez utilizasse o livro do próprio Bettendorff, publicado em 1687 "Compendio da Doutrina Cristã na Língua Portuguesa e Brasílica, Ordenada à Maneira
de Diálogos". Pela tarde, cantava as ladainhas de Nossa Senhora das Mercês e de São
Pedro Nolasco, onde participavam índios e índias.
O jesuíta notou também algo interessante que poderia muito bem ser
utilizado pelos pequenos povoados europeus. Quando os índios percebiam a chegada de
alguma canoa grande, que comumente era de brancos, ou muitas pequenas, como
faziam os índios, davam sinais batendo em um tambor. Com um certo número de
batidas todas as aldeias do rio entendiam a quantidade e a qualidade das canoas que se
aproximavam, não os apanhando de surpresa.27
Bettendorff observou que os índios ainda eram "tenros na fé", não tendo
"muita afeição para as coisas de Deus", só queriam comer, beber, dançar e "viver à
vontade, como brutos". Frei Theodósio tinha muito trabalho com aqueles indígenas no
parte pelo muito trabalho e contínuas moléstias, parte pelo pouco
costume de andar por esses climas mui doentios, veio aquele
[jesuíta] a adoecer de tal maneira que, sendo-lhe impossível
acompanhar mais a tropa, recolheu-se para o Pará a tratar de sua
saúde, e como não houvesse no Colégio quem pudesse suprir esta
falta, dei todos os poderes necessários ao muito reverendo Pe. Fr.
Theodoro (sic) da Veiga, missionário das Mercês sobre o rio
Urubú, grande língua e com fama de religioso de satisfação, para
averiguar as escravidões dos escravos da tropa do Maranhão.
Com esta mudança, fez o cabo João de Morais Lobo seu
arraial sobre o rio Urubú, mandando de lá suas bandeiras para o
rio da Madeira e rio Negro ...22
É certo que frei Theodósio da Veiga comprou muitos índios da região do
Urubu com o dinheiro das "esmolas da redenção", arrecadadas em Belém e São Luís, e
dos lucros obtidos com suas várias fazendas. Tinha gastado mais de 3000 cruzados no
resgate daqueles índios, os quais tinham lhe assegurado que havia muito cravo (drogado-sertão) naquela região e que poderia conseguir algum dinheiro.23
Os missionários e os soldados foram enviados para aquela região para
ajudar a forjar uma sociedade colonial portuguesa e cristã, para romper o vínculo
comercial com os "infiéis" holandeses, e canalizar todo o comércio regional de produtos
florestais e de seres humanos até Belém. Dadas as várias distâncias e os recursos
limitados das autoridades portuguesas, contudo, nenhum dos grupos podia ser
supervisionado ou subsidiado de uma maneira regular. Tanto soldados como religiosos
deviam sobreviver por seus próprios meios.
Os vários jesuítas que visitaram a missão do Urubu não cansavam em
elogiá-lo dizendo que aquele religioso os recebera "com muito amor" (Fritz), "com
muito mimo" (Bettendorff) e "com todo o cuidado e amor" (João Justo).24
A Missão de Urubu era formada por várias aldeias de Aruaques e
Muras. Os primeiros eram considerados índios de "língua travada", ou seja, grupo
22
25
BETTENDORFF, João Phelippe. op. cit., p. 24.
Id. ibid., p. 96. Para se ter idéia do montante em dinheiro investido no resgate por frei
Theodósio, 3 mil cruzados representavam 1 conto e 200 mil réis (1:200$000) e daria para
comprar 22 escravos negros (cada um a 55 mil réis).
24
PORRO, Antônio. Samuel Fritz e as notícias autênticas do rio Marañón (1686-1723), in idem.
As Crônicas do Rio Amazonas: notas etno-históricas sobre as antigas populações indígenas da
Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 180; BETTENDORFF, João Phelippe. op. cit., p. 492 e
541.
Era uma grandiosa nação indígena que habitava entre o rio Negro, Uatumã e o Jatapu,
estendendo-se para o Matari e o Urubu. Em 1669, frei Teodósio dizia que tinham seu principal
centro no Jauaperi; cf. NÉRI, Barão de Santa-Anna. op. cit., p. 222.
26
Cf. "Illustração necessaria, e interessante, relativa ao gentio da nação Mura" e "Observacções
addicionaes a Illustração sobre o Gentio Mura (1846)", in NETO, Carlos de Araújo M. Índios da
Amazônia, de maioria a minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988, p. 249-267.
27
No documento citado na nota anterior, o autor se espanta com a capacidade de comunicação
dos Muras e a velocidade com que as notícias corriam entre eles.
23
11
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
que dizia respeito aos sacramentos. A dificuldade encontrada por ele talvez estivesse no
fato de inexistir métodos pedagógicos próprios, pois os mercedários portugueses não
eram uma ordem exclusivamente missionária. Daí, copiavam tudo dos jesuítas.
Bettendorff procurou orientá-lo da seguinte forma: primeiro devia batizar os índios "já
antigos e seguros" que aderiram à fé; aos adultos, deveria ensinar a doutrina até tornálos catecúmenos, depois disto poderiam ser batizados.28
Entretanto, o espírito religioso dos indígenas do rio Urubu, somado com
as doenças, guerras e saques, os levaram a uma situação de privação aguda que
possibilitou o surgimento de um movimento messiânico e milenarista na pessoa do
jesuíta Samuel Fritz que estivera na aldeia em 1689.
Três anos depois de ter chegado da Europa para as missões espanholas do
Marañon, o jesuíta desceu de San Joaquin de Omaguas para as aldeias Jurimagua do
médio Solimões, região que os portugueses estavam começando a ocupar. Passou quase
dezoito anos ininterruptos entre as tribos do alto Amazonas, tornou-se um protetor
incansável dos índios diante da violência dos colonos.
Fritz tomou conhecimento da crença e do ritual de Guaricaya, no qual
parece ter-se enraizado sua liderança carismática. No ritual aparecia uma entidade
essencialmente benigna (porque curava os enfermos) mas que assumia feições
assustadoras (como o Diabo); que impunha o castigo físico, mas o fazia com um fim
educativo. Mais tarde, quando viaja para Belém, os Jurimagua começaram a atribuir ao
jesuíta poderes sobrenaturais análogos aos de Guaricaya. Toda a região ficou na
expecctativa da vinda do Guaricaya "branco".
Esse clima de espera tomou conta não só dos índios mas também dos
negros e brancos (cristãos e cristãos-novos) residentes em São Luís e Belém.
Para uns eu era santo e filho de Deus, para outros o diabo. Uns,
pela cruz que eu trazia, diziam que havia chegado um patriarca
ou profeta; outros, que [era] um embaixador da Pérsia; até os
negros do Pará diziam que havia chegado o seu libertador, que
havia de ir a Angola para libertá-los.29
era a persistência ou a renovação de antigas crenças mescladas com a luta social, com a
busca de uma identidade há muito destroçada pelo colonialismo, com a reestruturação
ou inovação das relações de poder ("brancos em índios e índios em brancos") e,
inclusive, com certas estratégias de sobrevivência no plano da vida material.
Frei Theodósio da Veiga também estava inserido neste contexto de
"expectativa". Chega a dizer ao padre Fritz que lhe tinham contado tantas coisas sobre
ele, que achava que havia chegado ao seu povoado "alguma coisa ou portento do outro
mundo".
O clima de milenarismo e messianismo continuou. Causava temor a frei
Theodósio, pois o carisma de Fritz entre os índios levam-nos a querer o jesuíta em vez
do mercedário. Em 1690, ocorreu um grande terremoto na Amazônia que derrubou
penhascos, árvores grandes e inundou as terras. Todos os índios atribuíam o fato à
passagem do "profeta" Samuel Fritz por ali. Quando o jesuíta estava voltando de Belém
para Quito e passou novamente pela aldeia do Urubu, em 1691, o religioso mercedário,
para persuadir seus índios de que era homem como os demais, mandou que tocassem
com as mãos em Fritz.32 Segundo Bettendorff, o clima era muito tenso entre frei
Theodósio e os pajés porque como as "profecias" não se realizavam, estes tentaram
fazê-la com as próprias mãos, isto é, matar o mercedário, porém não conseguiram.
Frei Theodósio da Veiga estava cansado, desanimado e revoltado. As
drogas que imaginava comercializar não eram muitas. Tinha dívidas e seus vinte
escravos índios estavam insatisfeitos pois viviam um pouco mais acima do rio e a terra
dali não era boa. Além disso, o religioso estava doente, com problemas de visão, "já
não servia para estar em convento e acudir ao coro" com seus irmãos de hábito, isto é,
não tinha o mesmo prestígio social se estivesse na capital do Estado.
Tinha ele estudado muitos anos, diferentemente dos outros religiosos.
Padre Vieira dizia que os religiosos do Maranhão eram "homens de poucas letras e
menos zelo das almas; porque ou vieram para cá degredados, ou, por não terem
préstimo com que ganhar a vida em outra parte, a vieram buscar a esta". Na falta de
verdadeiras vocações religiosas, grassava o oportunismo puro e simples de tomar o
hábito sacerdotal, o que naquela época conferia não pouco prestígio a quem o
investisse.33
Bettendorff incentivou-o a continuar no trabalho missionário, que não
desistisse e prometeu mandar uma carta ao rei relatando tudo o que viu.34
O sebastianismo português (a crença no "príncipe encantado" que viria
salvá-los da penúria), o medo do Diabo (a insegurança do homem na crença de um
Diabo todo-poderoso), o milenarismo judeu (a esperança da vinda de Elias, Jeremias
ou um dos Profetas),30 a chegada de Zumbi (líder do Quilombo dos Palmares) e o
movimento de santidade (os pajés do Urubu diziam que "os índios se haviam de
converter em brancos e os brancos em índios")31 mais do que sentimentos "religiosos",
Fritz. Mitologia Heróica e Messianismo na Amazônia Seiscentista. Revista de Antropologia,
São Paulo, v. 30,31,32, 1987/88/89, p. 383-389. Sobre a expectativa dos negros, lembremos que o
Quilombo dos Palmares era conhecido por Angola Janga (Pequena Angola) e que seu líder,
Zumbi, era visto por eles como um ser imortal.
32
PORRO, Antonio S. Fritz. op.cit., p. 185.
33
Cit. por ARAÚJO, Emanuel. O Teatro dos Vícios: transgressão e transigência na sociedade
urbana colonial, Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p. 251.
34
BETTENDORFF, João Phelippe. op.cit., p. 496.
28
BETTENDORFF, João Phelippe. op. cit., p. 492-496.
Cit. por PORRO, Antônio S. Fritz. op. cit., p. 180.
30
Sobre o Milenarismo português, brasileiro e judeu cf. Luso Brazilian Review, XXVIII, 1,
1991; cf. também Bíblia Sagrada. Mateus 16, 14.
31
CEHILA, História da Igreja no Brasil. Petrópolis/São Paulo: Vozes/Paulinas, 1992, tomo
II/1, p.393; BETTENDORFF, João Phelippe. op. cit., p. 494. Cf. também PORRO, Antônio S.
29
12
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Frei Theodósio da Veiga não se deixou abater. Um balanço feito em 7 de
fevereiro de 1693 pelo Conselho Ultramarino nos dá uma idéia do trabalho apostólico
realizado pelo religioso mercedário: três aldeias do rio Anibá e mais vinte aldeias do
Urubu estavam sob sua responsabilidade. Um pouco tempo depois (19/03/1693), o rei
fez uma nova repartição das missões no Amazonas e reservou toda aquela região para
os mercedários. Mais tarde, outras missões foram criadas em rios próximos como a do
Amatari (ou Matari) e Uatumã.
Por todo este trabalho frei Theodósio recebe um elogio importante:
Pe. Fr. Tiodozio (sic) Missionário do Rio Urubú, eu El Rei vos
envio muito saudar, o vosso zelo merece muito especial
agradecimento e me fica muito na lembrança para vos agradecer
de novo, assim como espero o (...) de continuar no serviço de
Deus Nosso Senhor, e meu, e já neste conhecimento sou servido
não só haver por boa a Missão, que fazeis no Rio Urubú nas que
vós possuis nela e fazer outras no mesmo Rio com os Padres da
Vossa Religião que forem capazes deste exercício como mando
escrever ao Pe. Provincial, é nesta conformidade, mando escrever
também ao meu Governador, e Capitão Geral deste Estado do
qual seguireis para este Afeito as ordens que vos der da minha
parte e da mesma maneira que os mais missionários decorridos
vos mandarei assistir desejando muito, que vosso exemplo animem
outros com verdadeiros espíritos de Missionários para que Deus
Nosso Senhor seja mais exaltado, e as almas tenham todo o Pasto
espiritual de que necessitam. Escrita em Lisboa a 28 de Novembro
de 1694.35
“CATEQUISTA” E “CAPITÃO-DO-MATO”
O Comissário dos mercedários, Frei Antônio Soares, havia comunicado
ao rei sobre o trabalho exercido pelo negro José Lopes Espinola, que fazia na região do
rio Urubu "grandes serviços a Deus e a Vossa Majestade". Natural do Cabo Verde,
estava há muitos anos trabalhando junto aos índios Abacaxis e sendo grande amigo de
frei Theodósio, foi convidado, não só pelas autoridades coloniais mas pelos próprios
índios, a auxiliá-lo no trabalho catequético. 36
Comparativamente com a história de Frei Theodósio, temos pouquíssimas
fontes sobre José Lopes Espínola, porém as mesmas nos trazem informações muito
interessantes.
Os africanos não foram numerosos na Amazônia colonial, zona cuja
economia, tanto no lado português como no espanhol, era tão pobre que dificilmente
permitia a acumulação de capital. Nela, toda a mercadoria era comercializada por meio
da troca, ou em transações que utilizavam como moeda rolos de fio de algodão, ou
tecidos, ou ainda grãos de cacau. A produção florestal era pouca em quantidade e muito
irregular em qualidade; e seu transporte e venda, na Europa, eram muito problemáticos.
Os moradores do Pará eram, em sua maioria, demasiado pobres para comprar os
escravos trazidos da costa africana, e, de fato, foram poucos os que chegavam a
oferecer-se no mercado de Belém.
Vicente Salles faz referência a duas provisões régias sobre a introdução
de peças da África, uma datada de 18/03/1662 e outra de 01/04/1680, que
determinavam a condução, todos os anos, de negros da Costa de Guiné para o
Maranhão e Pará por conta da fazenda real.
José Lopes Espínola poderia ter chegado ao Pará através desta última
ordenação. Nossa hipótese gira em torno das informações dadas pelos documentos
acerca de sua “nacionalidade”, ou seja, ele teria vindo de “Cabo Verde”. Philip D.
Curtin chama a atenção para o fato de que aquela expressão, durante o período, tinha
uma significação bem mais ampla que as ilhas do Atlântico. Ela abrangia desde a
península, e as ilhas, do mesmo Atlântico até o rio Serra Leoa; era mais conhecido
como Guiné de Cabo Verde (hoje Gambia, Senegal e Guiné-Bissau).37
O prestígio de frei Theodósio da Veiga junto a corte aumentara. Pedro II
mandou uma soma em dinheiro (cem mil réis) para ajudá-lo nas missões do rio Urubu.
Além disso, o rei já tinha pedido ao Governador Antônio de Albuquerque Coelho de
Carvalho que mandasse para lá alguns religiosos que o auxiliassem no trabalho
missionário.
Finalmente, depois de 40 anos de trabalho apostólico, frei Theodósio da
Veiga morre, provavelmente, em 1697.
36
Para o Provedor Mor do Estado do Maranhão. Sobre se mandar entregar aos Missionários
Mercenarios assistentes do Urubú cem mil réis. In LIVRO Grosso do Maranhão, Anais da
Biblioteca Nacional, v. 66, p. 160; Carta do governador do Estado do Maranhão, Antônio de
Albuquerque Coelho de Carvalho dirigida a el-Rei de Portugal, respondendo a uma consulta do
Conselho Ultramarino concernente ao trabalho de catequese desenvolvido entre os índios do
Solimões pelo preto José Lopes Espínolla, catequista leigo, que viera do Cabo Verde e ficara
entre os índios. In n CEHILA, Das reduções latino-americanas às lutas indígenas atuais. São
Paulo: Paulinas, 1982, p. 176-177.
37
SALLES, Vicente. O Negro no Pará: sob o regime de escravidão, Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1971, p. 13; CURTIN, Philip D. The Atlantic Slave Trade: a census. The
University of Wisconsin, 1975, p. 103.
JOSÉ LOPES ESPÍNOLA:
35
Notícias da fundação deste Convento de N.S. das Mercês desta cidade de Santa Maria de
Belém do Grão-Pará aonde se inclue o descobrimento do Rio das Amazonas, e outras notícias
mais das fundações das Aldeias do Rio Negro pelos primeiros Religiosos da Congregação.
Extraído tudo que se pode alcançar dos Documentos que se acham no Arquivo do dito Convento.
Ano de 1784. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Ms. 21,2,18, n. 5, f. 10.
13
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Existe uma segunda possibilidade. José Espínola teria vindo do território
espanhol, fugido, pelo rio Amazonas. Conhecemos casos de fuga no sentido inverso
(Pará-Peru), além de seu nome ter uma sonoridade “hispânica” que reforça nossa
especulação.38
A documentação analisada apresenta um negro com grande capacidade de
liderança, organização, direção e adestramento militar. Existem outros casos, na própria
região: em 1662 os moradores do Pará e Maranhão, revoltados, expulsaram os jesuítas e
estes se refugiaram na fortaleza do Gurupá. Um “mulato”, segundo Bettendorff feitor de
uma fazenda no Pará, assassinou um Saravai, natural do Gurupí. Na mesma ocasião, o
negro Antônio de França, da ilha da Madeira, lutou com bravura, salvando muitos
brancos da morte através da habilidade de sua espada.39
É bom lembrarmos que, quando algum negro chegava aos assentamentos
espanhóis ou portugueses na Amazônia, eram empregados como serventes domésticos
dos europeus ou como “administrador de trabalhos indígenas”, e não como trabalhador
manual. Muito poucos africanos subiam ou desciam os rios, porém, quando o faziam,
era porque estavam refugiados e não como servos de seus senhores.40
Sabemos, ainda, que José Lopes Espínola era casado, mas nada sabemos
de sua idade. Demonstrava grande experiência e habilidade no trabalho de transporte,
reconhecimento e subsistência, próprios do ambiente amazônico. Falava a “língua
geral” de origem tupi, único meio de comunicação com a maior parte da população
branca e indígena do Pará. Sabia outras línguas indígenas dos rios Negro, Branco,
Urubu, Matary e outros. Dominava bem a canoa e ajudava os indígenas nas colheitas.
Sabia abrir e supervisionar o cultivo das roças de mandioca, base alimentar do povo
amazônico. Conhecia as técnicas regionais para construção de casas e canoas, pesca e a
caça. Dominava bem as negociações com os grupos indígenas “selvagens”, e dizia-se
que servia até para convencer-lhes da “necessidade” de viverem sob o mando dos
“brancos”. José Lopes Espínola, ao que tudo parece, tinha muitos anos de experiência.
O falecimento de Frei Teodósio causou pânico entre os indígenas do
Urubu. José Lopes Espínola tentava acalmá-los, pois ao mesmo tempo em que estavam
sentidos com a morte do seu missionário, estavam "receosos" de que os portugueses
pensassem que o tinham matado. É certo que os índios foram duramente castigados
todas as vezes que mataram algum missionário. O temor não era sem sentido. Os índios
tentaram fugir da missão, mas José Espínola conseguiu que permanecessem até a
chegada de outro religioso mercedário para substituir frei Theodósio.
Tudo leva a crer que a missão do Urubu ficou por algum tempo sem
religioso. Em 1698, o rei mandou uma carta para o comissário dos mercedários para que
seus religiosos, que fossem para lá, se comportassem como verdadeiros missionários e
não como militares. Acrescentou
que os Religiosos que se ocuparem e [se] oferecem para aquele
Santo Exercício, imitem ao Pe. Fr. Tiodozio (sic) na contínua
assistência das suas Missões assim como me significas que eles o
fazem despidos de todo interesse ...41
Enquanto isso não acontecia, o negro José Lopes Espínola assume a
direção da missão do Urubu e soube se aproveitar bem do fato para adquirir certo
prestígio social. Em abril de 1700, ele escreve uma carta ao rei descrevendo suas
"façanhas" religiosas e militares na selva, apesar de doente: construiu várias igrejas,
trouxe ao "grêmio da Igreja" um bom número de indígenas e fez muitos
"melhoramentos" dizendo que "o sertão de primeiro era inferno, hoje está feito
cidade."42
Quando soube da presença de franceses no Maranhão, José Lopes
Espínola escreveu ao governador declarando sua fidelidade e dedicação a el rei e o
trabalho que vinha desenvolvendo com os índios, preparando-os para uma possível
guerra em defesa de Portugal:
Tenho praticado a todos os principais que estão debaixo do meu
mando para qualquer aviso de V.S.; de irmos todos a mostrar que
com suas armas gentílicas (...) e armas de fogo para o que puder
suceder para acudirmos a fortaleza do Rio Negro; tenho
praticado seis mil arcos, a saber, a missão do Urubu, a missão de
Matary, a missão de Anibá, Saracá, Caraby, Paraquizes,
Uguatumã (Uatumã), e as suas mais anexas estão praticadas para
qualquer função que se oferecer do serviço de Sua Majestade que
Deus guarde; e lhe tenho dado ferramentas bastantes; que V.Sa.
me mandou para eles roçarem bastantes mantimentos; se
houverem guerras para que V.S. se possa socorrer deles para a
Infantaria; assim estou aparelhado para tudo ...43
Todos os "serviços prestados" resultaram na sua promoção, isto é, de um
simples “catequista” passou ele a "Capitão do Sertão". Em carta, o governador
comunica ao rei sua decisão e conta como o negro tinha pedido várias vezes licença
para embarcar para “Cabo Verde”, a fim de rever sua mulher e como ele, o governador,
não lhe concedia, porque o considerara muito necessário. O posto de “capitão” foi
confirmado pelo rei de Portugal e o Conselho Ultramarino sugeriu que, no caso da
mulher de José Espínola querer vir para a Amazônia, que viesse de navio “com todo o
38
Cf. SWEET, David G. Juan de Silva y Fernando Rojas: baqueanos africanos de la selva
americana (Perú y Gran Pará, siglo XVIII), in: Idem. Lucha por la superviviencia en la
America colonial, México: FCE, 1987, p. 234-246.
39
SALLES, op, cit., p. 17.
40
SWEET, David G. op. cit., p. 237.
41
Notícias da Fundação deste convento de Nossa Senhora das Mercês..., op. cit., f. 13.
Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, tomo XIII, p. 394.
43
Idem, p. 395.
42
14
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
resguardo e lhe dê muito bom, e honesto tratamento, tudo à custa da Fazenda de Vossa
Magestade...” 44
Em janeiro de 1701, o rei ordenou ao governador que lhe lançassem "ao
pescoço a medalha de ouro". No entanto, José Lopes abusou da confiança depositada
pelos governantes portugueses e empreendeu uma série de "guerras injustas" aos
índios. Em finais de 1703, estava morto.45
A presença do negro José Lopes Espínola põe por terra uma afirmação
que durava já algum tempo: na conquista da Amazônia, os portugueses não contaram
com a colaboração do elemento africano.46
A partir daí, a missão do Urubú entra em decadência. Em 1745, a aldeia
do rio Uatumã tinha acabado, "fugindo os índios para o mato" e deixando só o
missionário mercedário. As aldeias dos rios Matari e Urubu foram transferidas para o
rio Anibá.47 Depois disso, não se tem mais notícias das missões mercedárias na
Amazônia.
para sobreviver, não faz justiça a adaptação criativa das pessoas dentro de uma ordem
social colonial que bem era, evidentemente, exploradora e indestrutível. A adaptação
era freqüentemente uma forma sutil de desafio, uma máscara que ocultava um espírito
indomável, isto é, o de viver a vida plenamente e ser feliz.
A mesma estratégia foi usada por José Lopes Espínola. Ele tem uma
função religiosa (catequista, construtor de igrejas), mas principalmente um papel
político; ele é praticamente o “senhor”, no meio da população indígena. Estava
plenamente incorporado àquilo que Hugo Fragoso intitulou: “O projeto português de
‘dilatar a fé e o império’ na Amazônia”.49 Esse projeto expansionista dos reis de
Portugal precisava de um grupo de especialistas, que se dedicassem de corpo e alma “ao
serviço de Deus e de Sua Magestade”, no labor de dilatar as fronteiras da Fé e do
Império. Para isso, contou com religiosos, mas também com José Lopes Espínola. Ele
via nesta política sua “sobrevivência”.
CONCLUSÃO
Falar dos Mercedários no Pará e Maranhão e envolvê-los apenas à
corrupção colonial é subtrair muita sua história e acaba numa generalização perigosa,48
pois vimos, através desta pequena biografia de Theodósio da Veiga que aqueles
religiosos, como todos as outras pessoas que conviviam com eles, estavam inseridos
num contexto histórico e geográfico específico: a Amazônia.
Esta era uma região inóspita e perigosa. Tinha maior importância militar
e geopolítica que econômica, pois as "drogas-do-sertão" nunca conseguiram rivalizar
com a cana-de-açúcar no Nordeste brasileiro e nem mesmo com a nascente economia
do gado no interior nordestino. No entanto, seus rios e igarapés, furos e canais, florestas
e campos eram intensamente vasculhados pelos portugueses que queriam ouro, pedras
preciosas, "drogas" e índios cativos.
Na busca desenfreada por lucros, é natural que a corrupção aflore. Porém,
o mais importante para todos os habitantes do lugar era viver a vida e manter-se vivo.
Para isto, se utilizavam de várias estratégias: a luta coletiva, o desafio individual, a
competência ou a adaptação. Frei Theodósio da Veiga escolheu o seu: preferiu se
adaptar ao sistema. A adaptação não era só uma tática de sobrevivência, também era
uma estratégia a longo prazo. A princípio, a adaptação aparece como o reverso da luta,
implica uma aceitação do sistema, uma desprezível convicção de que a resistência era
inútil. Mas este ponto de vista simplista, acerca de uma importância estratégica humana
44
Idem, p. 399.
LIVRO Grosso do Maranhão, Anais da Biblioteca Nacional, op. cit., v. 66, p. 208 e 255.
46
SALLES, Vicente. op. cit., p.13.
47
MORAES, Pe. José de, op. cit., p. 360.
48
DUSSEL, Enrique. As reduções: um modelode evangelização e um controle hegemônico, in
CEHILA. Das reduções latino-americanas às lutas indígenas atuais, op. cit., p. 18.
45
49
15
FRAGOSO, Hugo. op. cit., p. 145.
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
GÊNERO, PODER E PROSTITUIÇÃO
OLIVEIRA, Lisa Batista de. Gênero, poder e prostituição. Revista
Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 2, n. 1,
jan./jun. 1998. p. 20-38.
Lisa Batista de Oliveira
Mestranda em História Social pela UFF
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
RESUMO: A compreensão do significado cultural da prostituição nas Minas Gerais do
século dezoito implica na utilização da categoria gênero, através da qual os papéis
sexuais são concebidos como construções históricas diferenciadas. Essa categoria, ao
incorporar a dimensão das relações de poder as relações entre homens e mulheres,
possibilita a percepção dos poderes informais femininos permitidos por uma situação de
sujeição, que nesse contexto histórico, devem ser entendidos como contra-poderes
sedutores e ilícitos que resultavam em uma existência mais autônoma para as prostitutas
mineiras.
Endereço para correspondência:
Revista Eletrônica de História do Brasil
Arquivo Histórico da UFJF
Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
Prédio do CDDC - Campus Universitário
Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330
ABSTRACT:The comprehention of the cultural meaning of the prostitution in the
eighteenth-century Minas Gerais implies in using the rate gender through which the
sexual roles are conceived as distinguished historical construtions.This rate as it
incorporates the power relations dimention to the relations among men and women
enables the perception of the female power allowed by a subjection situation that in this
historical context should be understood as a charming and ilicit “counterpower”which
results in a more independent existence for the prostitutes from Minas Gerais.
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
E-mail: [email protected]
Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342
PALAVRAS-CHAVE: Gênero; Prostituição; Minas Gerais: sec. XVIII.
GÊNERO E PODER
Este trabalho tem como proposta uma revisão historiográfica das
abordagens sobre a prostituição nas Minas Gerais do século XVIII, feitas por Laura de
Mello e Souza e Luciano Figueiredo. Estes autores, seguindo a linha interpretativa de
Caio Prado Jr., supervalorizam os condicionantes econômicos na caracterização da
prostituição nessa região, considerando esta atividade, a expressão feminina da miséria
social.1
Para Laura de Mello e Souza, as meretrizes do século XVIII mineiro,
pertenciam a uma camada fluída e inconsistente formada por libertos e livres pobres,
pessoas que não conheciam o significado pleno da liberdade, pois eram desarticuladas
da sociedade por não pertencerem aos seus extremos, constituídos por senhores e
escravos, pârametros básicos da hierarquia social, sendo que o resultado de seus
Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades
comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo
e em sua estrutura física.
1
FIGUEIREDO, Luciano.O Avesso da Memória; cotidiano e trabalho da mulher em Minas
Gerais no séculoXVIII. Rio de Janeiro, José Olympio, 1993.
16
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
relacionamentos sexuais ilícitos, era um vasto contingente de mestiços que aumentavam
o número de “desclassificados sociais” em Minas Gerais.2
De acordo com Luciano Figueiredo, as escassas oportunidades de
inserção da mulher nas atividades produtivas em Minas, associada à pesada carga
tributária, tornaram a prostituição uma prática quase obrigatória para que negras e
mulatas forras, administradoras de vendas ou negras de tabuleiro, escapassem de
confiscos ou multas dirigidos aos incapazes de cumprir com o pagamento do imposto da
capitação ao Estado, que recaía sobre os libertos em função de sua condição social.
Assim, a prostituição enquanto forma de sobrevivência, expressaria antes de tudo o
limitado significado concreto da liberdade para essa população despossuída e
desclassificada, com a pobreza “determinando uma prática em si já violentamente
degradante” acompanhada da miséria em sua condição social. Em relação as escravas,
que exerciam as mesmas atividades profissionais que as forras, o meretrício é colocado
como forma de pagamento ao senhor do jornal fixado.3
Entretanto, vista como uma espécie de contingência da desclassificação, a
prostituição é sempre entendida como expressão da promiscuidade sexual, da miséria e
da fome, como resultado de condicionamentos econômicos, como objetivação de um
cotidiano que não dava margens para escolhas,4 perdendo-se de vista a capacidade de
iniciativa e os laços associativos constituídos pelas mulheres pobres do século XVIII
mineiro.
Não se trata de negar a pobreza enquanto forte condicionante na escolha
da prostituição como alternativa de sobrevivência, mas de relativizá-la, fazendo emergir
o potencial de luta presente nas ações das meretrizes mineiras. Nesse sentido, a
motivação desse trabalho é explicitamente política, objetivando a transformação da
representação historiográfica5 de mulheres desqualificadas enquanto sujeitos sociais
capazes de produzir formas próprias de experiências.
A partir dessa perspectiva, a continuidade do meretrício, passado de
geração à geração em Minas Colonial, pode ser interpretada não como a faceta mais
embrutecedora da prostituição,6 conforme indica Luciano Figueiredo, mas como indício
de uma capacidade de improvisação no cotidiano de mulheres pobres que criaram toda
uma tradição de luta e sobrevivência através de seus corpos .
Essa vontade política de atribuir as mulheres pobres do século XVIII
mineiro o estatuto de sujeito coincide com o desejo de construir categorias de análise a
partir de suas experiências, que devem ser entendidas como ações providas de
sentido.Nesse ponto, esse trabalho filia-se, de certa forma, à melhor tradição da história
social, vinculada ao revisionismo marxista de E.P.Thompson.7 Por outro lado, a
substimação ou indiferença pela influência do gênero na constituição do sentido na
cultura e a redução deste a um mero subproduto das forças econômicas por algumas
vertentes da história social, 8 resultam necessariamente na busca de instrumentais
teóricos que permitam aprofundar a análise da experiência feminina.
A necessidade de um modo de se pensar como a diferença sexual é
transformada em conhecimento cultural e como esse conhecimento define as relações
entre os indivíduos nos leva à utilização da categoria gênero.9 O gênero é a organização
social da diferença sexual, ou seja, é o saber que estabelece significados para a
diferença entre os sexos. Práticas cotidianas e rituais específicos são partes integrantes
desse saber, que é um modo de ordenar as relações sociais.10
Enquanto organização social das relações entre os sexos, o gênero é um
sistema de distinções sociais e não uma descrição objetiva de traços inerentes, pois o
masculino e o feminino são construções históricas e subjetivas. Por conseguinte, a
categoria gênero enfatiza o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no
sexo, rejeitando o determinismo biológico de termos auto-evidentes como “sexo” ou
“diferença sexual”.11
Por ser uma noção relacional, o gênero define as mulheres e os homens
em termos recíprocos. E, na medida que nenhuma compreensão de qualquer um pode
existir num estudo que os considere em separado,12 as relações sociais entre os sexos
devem ser contextualmente examinadas e vinculadas às variáveis classe social e etnia,
de modo que se perceba os significados variados e contraditórios atribuídos à diferença
sexual e à instabilidade das categorias “mulheres” e “homens”, que se articulam uma
em termos da outra de diversas maneiras ao longo do tempo.13
O gênero nos possibilita pensar as diferenças sexuais enquanto
construções históricas diferenciadas, oferecendo um meio de distinguir a prática social
dos papéis atribuídos as mulheres e aos homens.14 A sua utilização pode ser profícua na
reconstrução de papéis sociais femininos como mediações improvisadas no processo
7
Thompson concebe a formação da classe operária como um fazer-se e como algo que ocorre
efetivamente nas relações humanas.Essa concepção contribui para o estudo das relações forjadas
pelos processos sociais, engendrando consequentemente, uma percepção mais concreta das
experiências sociais na história.THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa: a
árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
8
VARIKAS, Eleni. ”Gênero, Experiência e Subjetividade:a propósito do desacordo Tilly-Scott”.
Cadernos PAGU, n. 3, 1994. p. 72, 73 e 74.
9
SCOTT , Joan. ”História das Mulheres”, in: BURKE, Peter. A Escrita da História. 2. ed. .São
Paulo: Unesp, 1992, p. 86.
10
Idem. op.cit., p. 12 e 13 .
11
Idem. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Recife: S.O.S. Corpo, 1991. p. 1 e
11.
12
Idem, p .1 e 2.
13
Idem. "Prefácio a Gender and Politics of History". op.cit., p. 25 e 26.
14
Idem. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. op.cit., p. 4.
2
MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ouro; a pobreza mineira no século XVIII.
2. ed. Rio de Janeiro, Graal, 1986.
3
FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 75-110.
4
Idem , p. 98 e 99.
5
SCOTT, Joan. ”Prefácio a Gender and Politics of History”. Cadernos PAGU, Campinas,
Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, n. 3, 1994. p. 14.
6
FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 99.
17
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
global de tensões e conflitos, entendendo por isso, não os papéis sexuais prescritos e
dominantes,15 mas os papéis informais de resistência assumidos pelas meretrizes no
cotidiano.
Para Maria Odila da Silva Dias, a história da experiência vivida enquanto
papéis informais de resistência das mulheres, deve ter como base a crítica a totalidades
universais e a princípios teóricos muito rígidos como o sujeito universal masculino, pois
é através da desconstrução de idealidades abstratas e do questionamento da idéia de
uma identidade feminina inalterável que a história social das relações de gênero abre
espaço para a documentação das configurações específicas e das diferenças, mostrando
a diversidade e a fluidez das relações de gênero e dos conceitos relativos aos papéis
femininos tidos como universais. 16 Essa historiadora também enfatiza a busca pela
perspectiva histórica feminista de conceitos provisórios e abordagens necessariamente
parciais, propondo a elaboração da historicidade das relações de gênero como meio de
se desmistificar o próprio conceito.Ao invés de lidar com a mera confirmação no
passado de princípios teóricos estabelecidos, o feminismo assume a historicidade do
próprio conhecimento histórico num mundo em processo de transformação.17
A história das mulheres desde o início articulou seu projeto a uma crítica
das categorias de análise existentes. No entanto, conforme ressalta Joan Scott, é típico
das visões sobre o que constitui o masculino e o feminino na história, o apelo ou
incorporação de definições normativas. A política engendrada por esse tipo de história
das mulheres, termina por endossar as idéias de uma discriminação sexual inalterável,
legitimando as hierarquias de gênero e atribuindo a práticas estabelecidas uma
existência permanente que elas nunca tiveram. É justamente através da exposição da
ilusão de permanência da verdade de qualquer saber sobre a diferença sexual que o
feminismo historiciza a história e abre caminho à mudança. A política feminista e os
estudos acadêmicos de gênero são uma tentativa coletiva de confrontar e contestar as
distribuições de poder existentes. Essa perpectiva torna as análises críticas do passado e
do presente uma ação contínua: o historiador pode interpretar o mundo ao mesmo
tempo que tenta transformá-lo.18 Dessa forma, a teoria se configura como uma prática
local e não totalizadora, como um sistema regional de luta e um instrumento de
combate.19
As representações históricas do passado participam ativamente na
produção do saber sobre a diferença sexual, isto é, ajudam a construir o gênero no
presente. Os usos e significados desse conceito nascem de uma disputa política e são os
meios pelos quais relações de poder são construídas. A história enquanto produção de
saber cultural é um modo de compreensão dos processos de constituição de identidades
de gênero.Tal saber não é absoluto ou verdadeiro, mas sempre relativo.20
Um conceito relativizado de gênero como um saber historicamente
específico sobre a diferença sexual é um instrumento analítico que desafia as políticas
da história, ao engendrar um saber novo sobre ambos os sexos. 21Preocupando-se com a
parcialidade das verdades possíveis, os estudos feministas voltam-se para o problema da
representação e do valor ideológico implícito na interpretação do historiador. O
conhecimento histórico torna-se relativo a uma determinada época do passado e a uma
dada situação do historiador no tempo, que constrói o objeto segundo sua própria
subjetividade. Trata-se de abarcar com os conceitos de nosso tempo a especificidade
dos contexto históricos, pois a história é necessariamente um diálogo de nossa
contemporaneidade com o passado.22 Esse ponto de vista destrói a possibilidade do
historiador proclamar sua imparcialidade ou sua neutralidade sensorial ou de apresentar
sua história e sua visão particular, como se elas fossem universais, completas ou
objetivamente determinadas.23
A história social das mulheres constitui uma força política potencialmente
crítica que desafia e desestabiliza as premissas disciplinares estabelecidas. Reinvindicar
a importância das mulheres na história, significa ir contra as definições de história
estabelecidas como verdadeiras ou como reflexões objetivas sobre o que aconteceu no
passado. Essa perspectiva desafia a competência de qualquer história de fazer um relato
completo, pois o sujeito da história não é uma figura universal e os historiadores que
escrevem como se ele o fosse, não podem mais reivindicar estar contando toda a
história. E isso é lutar contra padrões consolidados e contra pontos de vista jamais
expressos como tais, expondo a hierarquia implícita de termos como “homens” e
“mulheres”.24
A diferença sexual como um problema a ser analisado trás à luz questões
sobre a relação entre poder e conhecimento, pois as mulheres não podem ser
simplesmente adicionadas à história, sem uma remodelação dos termos e padrões da
historiografia tradicional. Esta, inclui em sua própria definição a exclusão feminina 25e
15
DIAS, Maria Odila da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. 2. ed ,
SãoPaulo: Brasiliense, 1995, p. 13.
16
Idem, “Novas Subjetividades na Pesquisa Histórica Feminista : uma hermenêutica das
diferenças”. Estudos Feministas. Rio de Janeiro, CIEC/UFRJ, 2. sem., 1994.
17
Idem, ”Teoria e Método dos Estudos Feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do
cotidiano”. COSTA, Albertina de Oliveira & BRUSCHINI, Cristina.Uma Questão de Gênero.
São Paulo: Rosa dos Tempos, 1992, p. 40, 44 e 46.
18
SCOTT, Joan. "Prefácio a Gender and Politics of History". op. cit., p.16, 19 e 26.
19
FOUCAULT, Michel. “Os Intelectuais e o Poder:conversa entre Michel Foucault e Gilles
Deleuze”. Microfísica do Poder. 11. ed., Rio de Janeiro: Graal , 1993, p. 71.
20
SCOTT, Joan. "Prefácio a Gender and Politics of History". op. cit., p. 12 , 13 e 14.
Idem , p. 25.
22
DIAS, Maria Odila da S. "Teoria e Método dos Estudos feministas...". op.cit., 1992, p. 45, 46 e
48. Ver também DIAS, Maria Odila da S. "Novas subjetividades na pesquisa histórica
feminista...". op.cit., p. 378.
23
SCOTT, Joan. "Prefácio a Gender and Politics of history". op. cit., p. 21.
24
Idem, "História das mulheres". op. cit., p. 76, 77, 78 e 86.
25
Idem, p. 85 e 90.
21
18
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
dificilmente coincide com a vivência concreta de indivíduos, principalmente quando se
trata de mulheres.26
A contestação de objetivismos e de racionalismos abstratos, nos direciona
para conceitos capazes de relacionar o cotidiano de seres individuais concretos aos
processos históricos em que estavam inseridos. Os conceitos devem ser interpretados
em sua historicidade no tempo e adaptados às transformações do processo social. Esse
enfoque se pauta pela busca de um instrumental que dê conta do conhecimento
enquanto processo, porque as mulheres são, também, e a despeito dos
condicionamentos culturais, agentes de si mesmas, daí a necessidade de não ficarem
presas a categorias fixas e universais.27
A ênfase na experiência histórica à margem de sujeitos abstratos e de
sistemas teóricos que sempre se constituíram como sistema de dominação na história
racional que conceituavam, proporciona a construção da subjetividade como processo
essencialmente social e histórico, 28 sendo que a forma através da qual as mulheres são
integradas à história, depende de como o gênero é desenvolvido enquanto categoria de
análise.29
O conceito de gênero possibilita o questionamento de definições estáticas
e de valores culturais herdados como inerentes a uma natureza feminina, através da
historicização dos próprios conceitos pelos quais as mulheres são pensadas, que
relativizados no tempo perdem a conotação universal que o valor ideológico lhes
confere.30 A relativização dos conceitos desfaz o falso objeto natural “mulher”, que tem
como presuposto uma pretensa “condição feminina” que se refere a uma essência
metafísica. As mulheres passam a ser pensadas enquanto diversidade e historicidade de
situações em que se encontram, isto é, enquanto objetivações de práticas culturais
específicas.31
As instabilidades dos significados dos conceitos, abertos a redefinições e
a disputas sugerem a natureza política de sua construção. Ao enfatizar o caráter
dinâmico dos significados de conceitos como o gênero, a perspectiva feminista volta-se
para o jogo de forças presente na construção do gênero, ou seja, para os processos
conflitivos de estabelecimento de significados para o masculino e o feminino em
qualquer sociedade, para as formas através das quais o gênero adquire uma aparência
fixa e para as contestações as definições sociais dominantes desse conceito, que contém
em si várias possibilidades de significação.32
Ao problematizarmos os conceitos de identidade e experiência, estes se
tornam instáveis e historicamente variáveis, objetivando interpretações dinâmicas do
gênero que enfatizam a luta, a contradição ideológica e as complexidades das relações
de poder em mutação.33 Nessa perpectiva, a política é entendida como um processo no
qual jogos de poder e saber constituem a identidade e a experiência, que são fenômenos
variáveis organizados discursivamente.34 Consequentemente, devemos assumir a
responsabilidade pela utilização de um determinado significado para os conceitos pelos
quais as mulheres são pensadas na história.
A complexidade e instabilidade de qualquer identificação de sujeito,
relativiza a identidade, privando-a de suas bases em uma experiência essencializada. A
negação da suposição de uma identidade feminina pré-existente conduz à investigação
dos processos de construção de identidades de sujeitos e de estabelecimento de
significados inerentes para categorias como homens e mulheres. Tal problematização
nos leva ao questionamento dos termos que pautam a constituição das identidades, pois
as culturas produzem compreensões diferentes acerca da diferença sexual e a
experiência não tem uma posição externa à convenção linguística ou construção
cultural.35
A crítica a noções totalizantes e essencialistas como razão, identidade,
sujeito, verdade e ideologia, e o questionamento dos valores supostamente universais e
das supostas permanências patriarcais, resultam na busca de compatibilização de
enfoques diversos, 36 pois as experiências políticas femininas e suas diferenças, não
podem ser explicadas pela ideologia e pela falsa consciência37. Essa crítica se insere em
um contexto de redefinição do conhecimento contemporâneo, que se caracteriza pela
construção de uma nova racionalidade e pela tentativa de desconstrução do próprio
conceito de natureza humana. Nesse sentido, uma multiplicidade de vertentes críticas
renovadoras do conhecimento têm uma participação crucial na formulação de uma nova
teoria feminista, pois uma pluridade de métodos é uma forma de se explorar as
diferenças.38
Portanto, cabe lembrar a importância da convicção de Michel Foucault
no caráter historicamente constituído da sexualidade, considerada como um resultado e
não como ponto de partida ou como fundamento de nossa subjetividade. Essa proposta
ressalta o discurso como uma prática instituinte e não como reflexo do real, percebendo
no poder uma positividade que produz comportamentos e figuras sociais..39 A sua
genealogia do poder fornece elementos para uma análise dos saberes situando-os como
26
DIAS, Maria Odila da S. "Teoria e Método dos estudos feministas". op. cit., p. 49.
Idem, p. 40 e 47.
28
Idem, p. 40 e 45.
29
SCOTT, Joan. Gênero: uma nova categoria útil para análise histórica. op. cit., p. 2.
30
DIAS, Maria Odila da S. "Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista". op. cit., p. 375
e 381.
31
RAGO, Margareth. “As Mulheres na Historiografia Brasileira”. SILVA , Zélia Lopes da.
Cultura Histórica em Debate. São Paulo: Unesp , 1994, p. 85 e 87.
32
SCOTT, Joan. "Prefácio a Gender..." op. cit., p. 17.
27
33
Idem, "História das mulheres". op. cit., p. 91.
Idem, "Prefácio a Gender..."op. cit., p. 18.
35
Idem, "História das mulheres". op. cit., p. 89, 90 e 93.
36
Idem, "Prefácio a Gender..." op. cit., p. 374 e 382.
37
Idem, p. 18.
38
DIAS, Maria Odila da S. "Teoria e método dos estudos feministas..." op. cit., p. 41 e 51.
39
RAGO, Margareth. op. cit., p. 87 e 88.
34
19
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
peças de um dispositivo político de natureza essencialmente estratégica40, engendrado
por relações políticas que geram certas formas de subjetividades.41 O próprio sujeito é
concebido como produto de práticas culturais, o que não conduz necessariamente a sua
desvalorização, pois o poder só existe em ação.42 E na medida que este deve ser
apreendido a partir da relação como uma situação estratégica complexa43 que tem como
meta induzir ações, tal concepção possibilita a percepção das relações de gênero
enquanto relações de força implicando na possibilidade de reversão tática de um
mesmo tipo de discurso e resultando em uma maior visualização da participação
feminina na história.
O método de Foucault consiste em descrever as práticas e não
pressupor mais nada. A análise das práticas elimina os fantasmas que a linguagem
suscita em nós. É também não desenvolver a análise a partir de noções eternas que
banalizam e tornam anacrônica a originalidade das práticas sucessivas. Ao desviarmos
os olhos dos objetos naturais podemos perceber a prática que os objetivou, sendo que o
objeto ao qual ela se aplica só é o que é, se relacionado a ela. A relação determina o
objeto que não é senão o correlato da prática correspondente. Explicar a história
consiste em vê-la em seu conjunto, em correlacionar os pretensos objetos naturais com
as práticas datadas e raras que os objetivam, vinculando essas práticas a todas as
práticas afins sobre as quais se encontram fixadas. As relações substituem os objetos44
pois são elas que o constituem segundo composições sempre singulares. Precisamos
pensar como todas as relações se organizam de acordo com lógicas que põem em jogo
os esquemas de percepção dos diferentes sujeitos sociais e as representações
constitutivas de uma cultura.45
A palavra discurso ocorre tão naturalmente para designar o que é dito
quanto o termo prática para designar o que é praticado. Para Foucault o discurso tem
um sentido técnico muito particular: é uma prática discursiva. As representações fazem
parte da prática. Longe de nos convidar a julgar as coisas a partir das palavras, ele nos
mostra que as palavras nos enganam e nos fazem acreditar na existência de coisas, de
objetos naturais. É preciso que deixemos de acreditar que o objeto é óbvio para
historicizá-lo, 46 o que significa dizer que devemos atentar para as distinções entre o
nosso vocabulário de análise e o material que queremos analisar, isto é, devemos
estabelecer uma distância analítica entre a linguagem aparentemente fixada do passado
e nossa própria terminologia.47 Por detrás da permanência enganadora de um
vocabulário não devemos reconhecer objetos, mas objetivações que constroem de cada
vez uma forma original.48
Foucault rompe com visões que dissimulam a realidade sob reificações.
Suas análises nos permitem colocar em um mesmo plano as práticas e as
representações, pois na medida que os sujeitos fazem o que pensam, existe uma
articulação fundamental entre esses dois níveis. A mentalidade corresponde a seus atos
materiais. Ambos são interligados e compõem a prática. A distinção é absurda, pois
quando se tem uma conduta tem-se necessariamente a mentalidade correspondente. As
representações e os enunciados fazem parte da prática, por isso a ideologia não existe.
Essa última idealiza as práticas sob o pretexto de descrevê-las, dissimulando os
contornos diferenciados das práticas reais que se sucedem. Esse novo modelo histórico
desdobra-se na dimensão de uma história geral, não se especializa na prática ou no
discurso.49 Então, a distinção entre uma história social das mulheres, voltada para as
prática, e uma história social das relações de gênero, direcionada para as representações,
transforma-se num falso problema, pois as descontinuidades admitem sob formas
diferentes, contraditórias e historicamente específicas os saberes e os atos. A história
cultural enquanto análise das representações, dirigi-se as práticas complexas, múltiplas
e diferenciadas que contraditoriamente dão sentido ao mundo, construindo-o como
representação.50
Inscrita nas práticas, organizando a realidade e o cotidiano, a diferença
sexual é sempre constituída por um discurso que a legitima.51 Entretanto, as múltiplas
maneiras pelas quais as mulheres interpretam e elaboram suas significações, muitas
vezes transcendem o caráter normativo do discurso. Recusar-se a tomar como referência
estrita as definições dominantes da diferença entre os sexos possibilita não somente
estudar as experiências históricas das mulheres, mas também analisar a dinâmica das
relações de poder que as tornam possíveis e que reformulam sem cessar as divisões que
pautam as construções do gênero.52
Invocar a experiência feminina sem implicitamente sancionar conceitos
essencializados e identidades a-históricas 53, consiste em elaborá-la enquanto parte da
historicidade das representações das mulheres.54 Os estudos das relações de gênero,
40
MACHADO, Roberto. “Por uma Genealogia do Poder ”.Introdução à Microfísica do Poder.
11. ed., Rio de Janeiro: Graal , 1993, p. X.
41
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Cadernos da PUC, Rio de Janeiro, n.
16, p. 8, 1974.
42
Idem. “Genealogia e Poder ”.Microfísica do Poder, op. cit., p. 175.
43
Idem. História da Sexualidade; a vontade de saber. 11. ed., Rio de Janeiro, Graal, 1993, p.
89. Ver também: VEYNE, Paul. “Foucault revoluciona a História”. In: Como se escreve a
história. Brasília: UnB ,1982, p. 177.
44
VEYNE, Paul. op. cit., p. 154 , 157, 15 , e 181.
45
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre praticas e representações.Lisboa: Difel,
1990, p .65 e 66.
46
VEYNE, Paul. op. cit., p. 151, 160, 161, 163 .
47
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil... op. cit., 1991, p. 13 e 21.
CHARTIER, Roger. op. cit., p. 65.
49
VEYNE, Paul. op. cit., p. 159, 161 e 180.
50
CHARTIER, Roger. op. cit., p. 28 e 65.
51
Idem, “Diferença entre os sexos e dominação simbólica”. Cadernos PAGU. Campinas, n. 4.,
p. 43, 1995.
52
VARIKAS, Eleni. op. cit., p. 69-70.
53
SCOTT, Joan. "História das mulheres". op. cit., p. 94.
54
DIAS, Maria Odila da S. "Teoria e método dos estudos feministas..." op. cit., 1992, p. 40.
48
20
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
substituem a noção de identidade e passam a privilegiar o exame dos processos de
construção das relações entre os sexos e das formas que o poder as articula em
momentos históricos determinados. As noções de “linguagem feminina” e “identidade
feminina”, exigem a avaliação das condições históricas em que foram estruturadas.55
Próxima às formulações de Michel Foucault, na epistemologia feminista
sujeito e objeto estão diluídos um no outro. Em vez de categorizar a realidade como
objeto do conhecimento procura-se interpretá-la como processo. Esse ponto de vista
resulta na articulação da ação feminina em seu devir a contextos sociais definidos. Tal
fato propicia a construção do objeto fora da linguagem, e da ordem simbólica in
abstrato. 56
Libertar-se de idealidades universais como a “condição feminina” é uma
preocupação que busca a desconstrução de valores ideológicos. Por isso, o principal
objetivo da crítica feminista a conceitos fixos e categorias abstratas é a destruição de
estereótipos e totalidades universais. As teorias feministas postulam uma consciência
estritamente histórica e insistem na crítica de dualidades genêricas e de polarizações
como o masculino e o feminino. Afinal, trabalhar no sentido de vencer as polaridades
das relações de gênero e das categorias de pensamento implica em lidar com problemas
teóricos de ruptura e descontinuidade históricas. No entanto, cabe mais ao pensamento
feminista destruir parâmetros herdados do que definir marcos teóricos muito nítidos.
Devido ao próprio caráter transitório das mulheres enquanto objetos da história, a
instabilidade dos conceitos torna-se imprescindível para o estudo das relações de
gênero. 57
A documentação das diferenças e das especificidades dos papéis
femininos tem como meta produzir mudanças nas representações estereotipadas das
relações de gênero. O questionamento de normas e estereótipos através da constatação
da historicidade inerente a todo conhecimento, resulta na crítica da dualidade das
relações de gênero, pois a transitoriedade do conhecimento e dos valores culturais
constitui uma referência para a interpretação da mudança na história58. Trata-se de um
deslocamento da oposição binária para o questionamento de como ela é estabelecida.
Precisamos rejeitar o caráter fixo e permanente da oposição binária entre
o masculino e o feminino; precisamos de uma desconstrução dos termos da diferença
sexual. Devemos analisar em seu contexto a maneira que opera qualquer oposição
binária, revertendo e deslocando sua construção hierárquica, em lugar de aceitá-la como
real, como óbvia, ou como estando na natureza das coisas.59 Expor a instabilidade de
pares aparentamente dicotômicos significa contestar seu pretenso estatuto natural, pois
oposições fixas escondem a heterogeneidade de qualquer categoria. Esse tipo de análise,
teorizada por Jacques Derrida como desconstrução, contribui para o estudo dos
processos conflitivos de produção de saberes sobre as relações entre os gêneros. A
desconstrução é uma teoria epistemológica que oferece um método de análise dos
processos pelos quais os significados são constituídos, e pelos quais nós constituímos os
significados.60
A percepção das relações entre as múltiplas forças, quer pesam sobre as
escolhas e as ações das meretrizes mineiras, devem ser vinculadas a processos múltiplos
e conflitantes de constituição de significados.61Em lugar de procurarmos causas únicas
temos que conceber processos ligados entre si,62 pois no centro dos processos de
produção de sentido e de formação do gênero, estão relações conflitantes em confronto
permanente.63
O estudo das modalidades através das quais homens e mulheres deram
sentido a sua existência deve incluir a análise dos processos de reelaboração e de
transformação das tradições e práticas culturais disponíveis a partir dos quais eles
resistiram as relações de força. A análise das significações culturais e de suas formas de
constituição nas crenças populares proporciona a interrogação da dinâmica social e da
polissemia de suas significações, sendo que a referência à linguagem como atividade
humana intencional remete à importância dos sujeitos, que procuram se desligar das
determinações para transformá-las.64
A ênfase no gênero como um produto das relações sociais, coloca o
conflito no centro da análise, pois sugere um estudo de causas múltiplas, de processos
políticos,65 nos quais vários atores e várias significações se enfrentam para conseguir o
controle.66 Portanto, a necessidade de examinarmos o gênero contextulmente e
concretamente, significa que este precisa ser considerado como um fenômeno histórico,
produzido, reproduzido e transformado67 pelos próprios sujeitos políticos ao longo do
tempo.
Assumir a temporalidade histórica do tema e proceder à construção do
objeto proporciona a redescoberta de papéis informais, de situações inéditas e atípicas
e de processos sociais invisíveis devido à tonalidade restrita das perguntas formuladas
tendo em vista o estritamente normativo. A reconstituição de processos não
determinantes e alternativos e a ênfase nas particularidades e nas diversidades dos
papéis femininos, contribuem para a percepção de subjetividades plurais e de momentos
60
Idem, op. cit., 1994, p. 21 e 23.
VARIKAS, Eleni. op. cit, p.82.
62
SCOTT, Gênero: uma categoria útil... op. cit., 1991, p. 14.
63
VARIKAS, Eleni. op. cit., p. 77.
64
Idem, p. 72, 75-76.
65
SCOTT, Joan. "Prefácio a Gender..." op. cit., p. 16, e 23.
66
Idem, Gênero: uma categoria útil... op. cit., p.21.
67
Idem, "Prefácio a Gender..." op.cit., p. 19.
55
61
HOLANDA, Heloísa Buarque. “Os Estudos sobre a Mulher e Literatura no Brasil: uma
primeira avaliação”. In: COSTA, Albertina de Oliveira. & BRUSCHINI, Cristina. Uma Questão
de Gênero. São Paulo: Rosa dos Tempos , 1992, p. 59.
56
DIAS, op. cit., 1992, p. 41-42 e 48.
57
Idem , p. 39-43. Ver também DIAS, op. cit., 1994, p. 374.
58
Idem, op. cit., 1994.
59
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil... op. cit., p. 13.
21
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
de resistência,68 consequências do estabelecimento de relações entre fenômenos globais
e as mudanças que provocam nos sentimentos, na vida íntima e nos processos de
construção das identidades de gênero dos sujeitos.69
Ao esmiuçar múltiplas mediações sociais, o conceito de gênero permite a
análise de subjetividades femininas em dados momentos históricos, que devem ser
apreendidas como parte do mundo. Juntamente com um enfoque do cotidiano, a
elaboração de conceitos temporalizados possibilita a reconstrução de aréas de
resistência, de improvisação e de papéis sociais alternativos.70 Para isso, torna-se
necessário uma interrelação entre o micro e o contexto global, através de uma
abordagem dos papéis informais, elementos fundamentais na apreensão das vivências
dos grupos oprimidos, de suas formas de luta e resistência.71
Documentar uma multiplicidade de diferenças femininas através de focos
narrativos e da historicização de aspectos concretos da vida cotidiana, é uma
necessidade vinculada à reinvenção constante de convívio de valores sociais e étnicos
diferenciados, que tem como consequência a esperança na sobrevivência de múltiplas
relatividades e de conjuntos sociais diversos.72A história das mulheres:ao se concentrar
nos papéis informais e nas mediações sociais, relativiza as normas, abrindo caminho
para o questionamento de uma ideologia normativa e institucionalizante. A perspectiva
de construir a narrativa através do pormenor e de suas relações com o global favorece
uma melhor interpretação da inserção social feminina, pois as relações entre minúcias e
o conjunto do processo social constituem uma atitude aberta para a posibilidade de
papéis informais que escapam aos papéis prescritos.73
Conforme destaca Rachel Soihet, a história social das mulheres deve
ater-se à trama de seu cotidiano em detrimento de uma racionalidade universal, sendo
que a ampliação dos campos de investigação histórica implica em uma história
direcionada para os domínios onde há maior evidência de participação feminina e para a
busca de sutilezas nas relações entre os sexos, que incluem suas alianças e
consentimentos. Assim, o questionamento de uma visão unilateral do poder sobre os
dominados passivos e impotentes resulta no deslocamento do binômio
dominação/resistência enquanto terreno único de confronto, no sentido de fazer emergir
a criatividade tática dos dominados e as manifestações cotidianas de resistência.74
Cotidiano e poder constituem o campo por excelência de construção e
atuação da teoria feminista. O caráter representativo transforma a própria ordenação do
cotidiano em uma ação moral e política, que envolve uma margem de liberdade, certa
possibilidade de equilíbrio entre a individualidade e o ser genérico. O cotidiano
enquanto espaço de resistência ao processo de dominação define um campo social de
múltiplas interseções de fatores, que contribuem para transcender categorias e
polaridades ideológicas. A busca da especificidade histórica admite o contingencial, o
fortuito, a inventividade dos agentes históricos. É o que torna possível vislumbrar, na
interpretação do processo histórico, a invenção de um futuro libertário.75
A crítica da racionalidade, a descoberta do cotidiano como tema das
ciências humanas e a historicização de verdades, se inserem num direcionamento em
relação a conhecimentos, que resultem em verdades aproximadas ao vir a ser de,76 pois
os homens e mulheres reais não cumprem de maneira rigorosa os termos e prescrições
da cultura dominante.77
Essa possibilidade nos leva a constatar que a reconstituição da ação social
feminina precisa se pautar na definição dos poderes informais femininos permitidos por
uma situação de sujeição, que devem ser percebidos como uma autoridade detida em
uma esfera restrita e como uma reapropriação dos instrumentos simbólicos que
instituem a dominação masculina.78 No que se refere ao século XVIII mineiro, trata-se
de interpretar a integração das meretrizes no conjunto das relações de poder com o
conceito de gênero permitindo perceber, de um lado, as relações sexuais inseridas no
contexto das relações sociais; e, de outro, a “circulação social” dos diferentes padrões
culturais e as formas e limites de sua introjeção pelos grupos sociais.79
De acordo com Roger Chartier, os poderes informais femininos estão
relacionados as representações da inferioridade das mulheres, inscritas nos corpos de
umas e de outros, pois a construção da identidade feminina se enraíza na interiorização
de normas enunciadas pelos discursos masculinos, a partir das quais são criadas
estratégias de resistência. Essa incorporação da linguagem da dominação, constitui uma
tática que mobiliza uma representação imposta para seus próprios fins, deslocando e
subvertendo a relação de dominação. Um objeto maior da história das mulheres é então
a análise do discurso e das práticas que garantem o consentimento feminino as
representações dominantes da diferença entre os sexos.80
75
DIAS, Maria Odila da S. "Teoria e método dos estudos feministas..." op. cit., p. 49, 50 e 51.
Ver Também HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. 4. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra ,
1992.
76
.DIAS, Maria Odila da S. "Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista..." op. cit.
77
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil... op. cit., p. 16.
78
CHARTIER, Roger. “Diferença entre os sexos e dominação simbólica”. Cadernos PAGU.
Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, v. 4, p. 47, 1995.
79
CUNHA, Maria Clementina Pereira. ”Loucura , Gênero Feminino: as mulheres do Juquery na
São Paulo do início do século XX”. A Mulher e o Espaço Público. Revista Brasileira de
História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 9, n. 18, 1989. p. 144.
80
CHARTIER, Roger. op. cit, 1995, p. 40 e 41.
68
DIAS, Maria Odila da S. "Teoria e método dos estudos feministas..."op.cit., p. 40 , 44 e 48.
Idem, op. cit., "Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista..." op. cit., p. 380.
70
Idem, op. cit., p. 373, 374, 379 e 380.
71
SOIHET, Rachel. Enfoques Feministas e a História: desafios e Perspectivas. Exemplar
mimeografado. p. 6 e 7.
72
DIAS, Maria Odila da S. "Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista..." op. cit., p.
374 e 380.
73
Idem, "Teoria e método dos estudos feministas..."op. cit., p. 49 e 50 .
74
SOIHET, Rachel. op. cit.
69
22
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Na dominação masculina é fundamental uma violência simbólica que
supõe a adesão dos dominados as categorias nas quais a dominação se baseia. Definir a
submissão imposta como violência simbólica ajuda compreender como a relação de
dominação que é histórica, cultural e linguisticamente construída, é sempre colocada
como uma diferença natural, irredutível e universal. E na medida que é justamente a
questão do consentimento o ponto central no funcionamento de todo sistema de poder, o
essencial é identificar para cada configuração histórica, os mecanismos que enunciam e
representam como “natural” a divisão social dos papéis e funções sexuais.81
As análises das relações de gênero como produção de saberes culturais
variados acerca da diferença sexual incluem as identidades políticas e os símbolos
culturais. Essas análises são dirigidas aos conceitos, aos significados, aos códigos
linguísticos e à organização da representação.82 Os historiadores devem examinar as
maneiras que as identidades de gênero são realmente construídas e relacioná-las a
representações culturais historicamente situadas, pois o gênero estrutura a percepção e a
organização simbólica e concreta de toda a vida social. Descobrir a amplitude do
simbolismo sexual em cada contexto, consiste em reconstituir o sentido dos papéis
sexuais e saber como funcionavam para manter a ordem social e para mudá-la. Trata-se
de saber quais as representações simbólicas evocadas, quais suas modalidades e em que
contextos.83
Ao atentarmos para a especificidade da diferença sexual, em cada
contexto histórico, devemos articulá-la a um código de comportamento partilhado pelos
dois sexos.84 Como demonstram os altíssimos índices de ilegitimidade,85 e as inúmeras
denúncias de concubinato, que na devassa de 1737-38, chegaram a perfazer 87,4% 86 do
total, a prostituição nas Minas setecentistas era parte integrante de uma cultura popular
na qual a sexualidade era vivida de forma informal. Tal cultura popular deve ser
percebida como ação simbólica, o que implica colocar em questão as diversas formas
do discurso social dentro dessa construção. Porém, não caberia definir o meretrício
tendo em vista um sistema abstrato de valores, caberia incluí-lo na própria definição
desse sistema 87 a partir da percepção de práticas culturais específicas.
Nesse sentido, delimitando melhor o tema de análise, este trabalho tem
como proposta, a compreensão da prostituição nas Minas setecentistas tendo em vista
seu significado em termos de resistência social articulada uma cultura popular, em uma
sociedade essencialmente urbana, que devido à incidência expressiva de uma população
negra e mestiça, ao intenso fluxo populacional, e ao desiquilíbrio numérico entre os
sexos,88 favorecia o surgimento de organizações familiares não ortodoxas e de
comportamentos de gênero alternativos aos padrões oficiais.
Através da análise das devassas eclesiásticas, é impossível a apreensão de
uma extrema miséria que determinaria a ação das meretrizes do século XVII mineiro.
Ao contrário, o que fica evidente é a vivência de pápeis contrários aos padrões oficiais
de comportamento que configuram formas peculiares de luta. Antes de ser contingência
da pobreza, a prostituição deve ser percebida como escolha e como parte integrante de
uma moralidade popular que se pautava em uma utilização informal da sexualidade89 e,
assim, como uma estratégia de resistência vinculada a tradições e hábitos de mulheres
pobres.
A principal questão a ser colocada, é saber como a representação imposta
da mulher “mal procedida”, presente no discurso eclesiástico e nas práticas das
meretrizes mineiras, foi utilizada como alternativa de resistência diante das
desigualdades de gênero e de uma ordem social patriarcal e escravista, que através das
devassas, tinha como objetivo controlar as formas de religiosidade e conjugalidade
populares.
81
88
De 1776 à 1821 , a participação demográfica de negros e mulatos na capitania e província de
Minas Gerais, correspondeu sempre a cifras próximas de 75%. Quanto ao desequilíbrio numérico
entre os sexos, este diferenciou-se segundo a condição social : entre os brancos, os homens eram
a maioria (59% em 1776), o mesmo se dando em relação aos negros (70% em 1776).
Inversamente, as mulheres compunham a maior parte dos mulatos (51% em 1776), o que explica
a alta incidência de forras como chefes de família, ou como prostitutas. VILALTA, Luiz Carlos.
A torpeza diversificada dos vícios: celibato, concubinato e casamento no mundo dos
letrados de Minas Gerais (1748-1801). Dissertação de Mestrado. São Paulo, USP, 1993, p. 18 e
19.
89
PRIORE, Mary Del. Ao Sul do Corpo; maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. 2. ed.,
Rio de Janeiro: José Olympio, 1995, p .80.
90
LUNA, Francisco e COSTA, Araci Del Nero da. op. cit.
PROSTITUIÇÃO E TRATOS ILÍCITOS NAS MINAS
SETECENTISTAS
As devassas realizadas nas Minas setecentistas a partir de 1721, eram
“visitas ordinárias” enquadradas na esfera de ação episcopal, que tinham como função
investigar crimes contra a fé, como bigamia, incesto, concubinato, prostituição,
alcovitice, feitiçaria etc. Esses crimes e pecados constavam nos interrogatórios da visita,
aos quais deveriam oferecer resposta às pessoas chamadas a depor.90
Idem, p. 42.
SCOTT, Joan. "Prefácio a Gender..." op. cit., p. 19 e 23.
83
Idem. Gênero: uma categoria útil... op. cit., p. 2, 15 e 16 .
84
CHARTIER, op. cit., 1995, p. 39.
85
Essa relação de ilegitimidade variou entre um quarto e a metade de todos os nascimentos livres
da paróquia de Antônio Dias de Vila Rica. RAMOS, Donald. “A mulher e a família em Vila Rica
do Ouro Preto”. MARCÍLIO, Maria Luíza et alii. História e População: estudos sobre a
América Latina. São Paulo: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados , 1990, p. 155.
86
LUNA, Francisco Vidal & COSTA, Iraci Del Nero da. ”Devassas nas Minas Gerais:
observações sobre casos de concubinato”. Anais do Museu Paulista. São Paulo, 1982, p. 8.
87
FONSECA, Cláudia. ”Honra, humor e relações de gênero: um estudo de caso”. In: COSTA,
Albertina de Oliveira & BRUSCHINI, Cristina, op. cit., p. 329.
82
23
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
O objetivo principal desse trabalho, é a apreensão de múltiplas
subjetividades femininas a partir da percepção dos poderes informais exercidos pelas
mulheres denunciadas nas devassas como meretrizes públicas, alcoviteiras e “malprocedidas”. Esses poderes serão definidos como contra-poderes sedutores e ilícitos91
que ampliavam as opções de comportamento92 para as mulheres pobres do século XVIII
mineiro.
Inúmeras foram as mulheres denunciadas nas devassas por não viverem
com seus maridos. Em 1777, o pardo forro Manoel Borges, um carpinteiro de trinta e
nove anos, denunciou sua sogra Mariana de Maya por alcovitar homens para sua
mulher, que de acordo com suas palavras, não o consentia em casa, nem com ele queria
“fazer vida”, talvez por estar na sua liberdade de “usar mal de si”. 93
Aos olhos da Igreja, essa escolha traduzia-se em uma ampliação dos
domícílios chefiados por mulheres, contrariando a expectativa de implantação do
casamento tridentino em detrimento das uniões consensuais. Em Vila Rica, tais fogos
chegaram a constituir cerca de 45% das unidades domésticas em 1804, sendo que 90%94
das mulheres que os chefiavam eram negras e mulatas forras. Em regiões
essencialmente rurais, como Santo Antônio da Casa Branca95, onde perfaziam 41% dos
fogos no começo do século XIX, esses domicílios eram igualmente importantes.
Um interessante exemplo que ilustra essa questão é a denúncia contra
Antônia Nunes, conhecida como Antonica, moradora em 1753 na freguesia dos Carijós,
atual Conselheiro Lafaiete:
Antônia Nunes tem umas filhas (...)que se diz publicamente serem
mal-procedidas, admitindo homens em casa para fins torpes e
desonestos , estando a mãe em casa, não lhes proíbe estes
desaforos (...) tendo dois filhos, um chamado José e o outro
Manuel, estes são amancebados, o José com uma parda forra e o
Manuel com uma bastarda Margarida, as quais estão na mesma
casa morando com a dona Antônia Nunes, suas filhas, com dois
filhos...96
Em relação ao século XVIII, a análise das devassas evidencia a
recorrência da prostituição enquanto estratégia de sobrevivência das famílias pobres
encabeçadas por mulheres.97 Ligada a uma organização familiar típica a prostituição
nas Minas setecentistas estava articulada a uma moralidade alheia à ética católica
oficial, na qual mães cúmplices de “tratos ilícitos” incentivavam em suas filhas um uso
indiscriminado da sexualidade, sendo que o “viver meretrismente”, designava antes a
vida fora dos padrões habituais de mulheres solteiras ou de maridos ausentes, com todo
comportamento desregrado confundindo-as com prostitutas.98
Esses papéis informais improvisados têm um sentido importante na
desmistificação do sistema patriarcal brasileiro, na medida que demonstram a
impossibilidade de homens e mulheres das classes desfavorecidas, seguirem os rígidos
valores dos meios senhoriais, onde o casamento e a organização familiar tinham uma
função estratégica, objetivando a preservação da propriedade e a manutenção de
privilégios. Fenômeno peculiar à urbanização como um todo na colônia, o fenômeno
das mulheres sós, chefes de família, prendia-se ao sistema de dominação, cujo resultado
era um excedente de mulheres pobres sem dotes, que permaneciam solteiras ou tendiam
a constituir uniões consensuais sucessivas.99
Em zonas de intenso fluxo populacional, como as áreas urbanas e os
centros mineradores, esses valores eram menos importantes ainda, como sugere a alta
incidência de domicílios matrifocais. As relações sexuais tendiam a ser esporádicas e
casuais arcando as mulheres com seus filhos bastardos.100 Em Vila Rica, assim como
em vários outros pontos das Minas Gerais, as mulheres tornaram-se presença
predominante na na vida urbana, pois permaneciam na retaguarda do povoamento. O
caráter de constante mobilidade intrínseco à atividade mineratória, que tinha como
resultado a presença de uma população masculina flutuante, impedida de fixar
estruturas familiares estáveis,101 fazia das Minas setecentistas um contexto propício à
prática da prostituição.
Ronaldo Vainfas, baseado no argumento de que não se pode afirmar
seguramente que as famílias alternativas viviam alheias ao poder e aos valores
patriarcais, chega a concebê-las como contingência da “desclassificação”, como
resultado da fome e da falta de recursos para almejar uma vida conjugal minimamente
alicerçada segundo os costumes sociais e a ética oficial. Para as índias, negras e
mestiças, inferiorizadas no imaginário colonial por sua condição feminina racial e
servil, só restaria o destino de objeto sexual dos portugueses e de mulheres degradadas
face à misogínia patriarcal.102
Mas, por que devemos nos decidir pela ótica da família patriarcal, pelo
elemento da “ordem” em meio uma “desordem” em que as uniões irregulares eram de
fato a ordem dominante? Será que não estaríamos assumindo a visão da classe
91
98
CHARTIER, Roger. op. cit., 1995, p. 47.
DAVIS, Natalie Zemon. “As mulheres por cima”. Culturas do Povo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990, p. 112.
93
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM), Devassas, 1767-1777. f. 21.
94
RAMOS, Donald. "A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto". op. cit., p. 155.
95
RAMOS, Donald. op. cit, 1975, p. 219.
96
AEAM, Devassas,1753, f .71, apud FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 98.
97
FIGUEIREDO, Luciano. op., cit., p. 100.
PRIORE, Mary Del. op. cit., p. 82 e 87.
DIAS, Maria Odila da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. op. cit., p.30, 31
e 53.
100
FARIA, Sheila. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial
(sudeste, século XVIII). Niterói, Dissertação de Mestrado, UFF, 1994, p. 17.
101
FIGUEIREDO, Luciano. op. cit, p. 77 e 78.
102
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados; moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro: Campus, 1989, p. 65, 87 e 110.
92
99
24
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Para Fernando Torres Londoño, a persistência do concubinato enquanto
forma de conjugalidade era decorrente de um catolicismo popular que constituía a base
de uma moral que não passava pelas rígidas prescrições tridentinas. Esse tipo de
catolicismo era fruto de uma mescla de tradições religiosas, transmitida
predominantemente de forma oral, na qual a noção de pecado era muito mais diluída do
que normalmente imaginamos. Por conseguinte, o concubinato seria uma alternativa
viável de relacionamento conjugal para muitas mulheres, que por serem escravas,
forras, bastardas e brancas pobres, não encontravam ofertas atrativas de matrimônio.108
Esta também era a escolha de forros e escravos 109, e de muitos homens de boa condição
social ou imigrantes portugueses, que por serem casados em Portugal, ou por contarem
com uma oferta reduzida de matrimônios com mulheres brancas optavam por relações
esporádicas ou por concubinatos estáveis com mulheres escolhidas por afeto, desejo, ou
necessidade doméstica.110
Essas considerações podem ser extensivas ao meretrício e confirmadas
através da análise da denúncia feita em 1764 à pousada de Josefa Maria de Souza, em
Ouro Branco. Josefa “abrigava toda a casta de passageiros”, cozinhando para eles e
lhes prestando outros serviços, sendo infamada de serví-los em atos lascivos. Além de
concorrer para que sua filha Jacinta Maria de São José se desonestasse com os
hóspedes, principalmente com o português Manoel Gomes Chaves, com quem era
concubinada, ela dava pousada para o mesmo fim a mulheres meretrizes,
como é uma bastarda (...) por nome RosaMaria (...) como foi
algumas vezes Joana Xavier mulher branca e uma crioula por
nome Ana (...) preta forra e Gertrudes (...) mulher branca (...). E
quando os hóspedes eram muitos e eram necessárias mais
mulheres, as convocava deste arraial, e também de outras partes,
vinham assistir a sua casa....111
dominante da sociedade colonial, ao utilizarmos o modelo vencedor sobre várias formas
alternativas que se propuseram concretamente no decorrer de nossa história?103 É difícil
perceber amancebamentos e “tratos ilícitos” apenas como contingência da pobreza e
não como parte integrante de uma lógica própria de comportamento da população pobre
dessa região.
Para Mariza Corrêa o estudo da família patriarcal no Brasil, que era a
forma de organização familiar do grupo dominante, não pode substituir a história das
formas de organização familiar da sociedade colonial. Ao fazermos isso, esquecemos o
emaranhado de tensões entre os impositores de uma ordem pré-definida e aqueles que
resistiam cotidianamente, e instituímos teoricamente possibilidade alternativas como
marginais.104 Temos que dar a devida atenção as famílias ilegítimas de negras, mulatas
e brancas pobres, constituídas principalmente nas áreas urbanas e as quais a
prostituição, no século dezoito mineiro estava articulada.105
Por mais que os valores patriarcais estivessem enraízados na sociedade
colonial, eles não pautavam de forma estrita a vida dos grupos desfavorecidos da
Colônia. O mais importante é saber como, com base em relações de dependência
pessoal assumidas entre parentes ou amigos, ou com os membros da classe dominante,
as meretrizes mineiras criaram alternativas de resistência. Nesse sentido, é necessário
vincular comércio sexual, “tratos ilícitos” e alcovitices a relações de convívio
comunitário, pois estas práticas dependiam da existência de fortes laços de
solidariedade estabelecidos entre mães e filhas, ou entre homens e mulheres da
vizinhança. Através de toda uma rede de conhecimentos e favores pessoais,
concubinato, proteção, compadrio e prostituição,106 e de uma forma de inserção
específica nas relações de poder, as “mal procedidas” das Minas Gerais tornaram
suportável o cotidiano.
Contudo, vale destacar as considerações de Carlo Ginsburg a respeito das
influências recíprocas entre cultura dominante e cultura popular, de modo a se buscar o
horizonte de possibilidades latentes oferecido pela cultura da época,107 com base no
qual as mulheres pobres das Minas Gerais do século XVIII criaram estratégias de
resistência à sociedade patriarcal. Por outro lado, os relacionamentos sexuais ilícitos
escapam em parte à moral e à cultura dominante através do comércio sexual, dos papéis
informais e das uniões irregulares.
108
LONDOÑO, Fernando T. “El concubinato y la Iglesia en el Brasil Colonial”. Cadernos
CEDHAL. São Paulo, USP, n 2, p. 39, 1988. As considerações de Londoño, podem ser
demonstradas com base na análise da devassa de 1737-38 feita por Luna e Costa. As relações de
mancebia ocorriam, principalmente, entre homens livres (90%) e mulheres forras (54%). Às
escravas cabia a expressiva cifra de 27% e às livres o peso relativo de 18%. Contudo, as devassas
seguintes, sugerem uma maior diversificação dos relacionamentos ilícitos. LUNA, Francisco &
COSTA, Iraci Del Nero da. op. cit., p. 9.
109
Os altos índices de ilegitimidade entre os escravos e as baixíssimas porcentagens de cativos
casados, indicam a predominância entre esse segmento, das uniões consensuais fortuitas ou
duradouras. No entanto, o casamento, em si, não foi muito importante entre esses indivíduos
devido à existência de plantéis pequenos nessa região. VILALTA, Luiz Carlos. op. cit., p. 34.
110
LONDOÑO, Fernando. op. cit., p. 39 e 40.
111
AEAM, Devassas, 1762-69, f. 65v, 66, 67 e 68. Apud MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit.,
p. 184 e 185.
103
CORRÊA, Mariza. ”Repensando a Família Patriarcal no Brasil”. In: ALMEIDA, Maria Suely
Kofes et alii. Colcha de Retalhos; estudos sobre a família no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1982, p. 16 e 26.
104
Idem, p. 16, 17, 35 e 36.
105
SAMARA, Eni de Mesquita. As Mulheres, o Poder e a Família: São Paulo, século XIX.
São Paulo: Marco Zero, 1989.
106
DIAS, Maria Odila da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. op. cit., p. 20.
107
GUISBURG,Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 13 e 27.
25
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Esses pápeis de gênero alternativos que emergem da análise das devassas,
vêm se contrapor ao plano das normas e estereótipos, pois exemplificam atitudes que se
opõem aos estereótipos de dominação cultural,112 tornando possível a crítica a uma
tradição historiográfica, que a partir do discurso da classe dominante da época e da
Igreja católica, concebe os relacionamentos sexuais ilícitos como indício de
“desclassificação social” e como sinônimo de desordem e vadiagem.113
Trata-se do questionamento de um enfoque globalizante, essencialista e ahistórico, construído a partir de preconceitos, que concebe a prostituição como
expressão feminina da degradação humana e como determinação da miséria.Tal
abordagem, além de não dar conta da possibilidade de vivências constituídas através da
prostituição, impede a compreensão do signicado cultural peculiar da prostituição nas
Minas setecentistas.
O gênero enquanto conceitualização que questiona as categorias
dominantes contribui para a redefinição das questões das determinações e das
subjetividades na história. O potencial heurístico inerente a essa categoria, permite
visitar o passado como um estrangeiro que procura decifrar mais do que tomar como
dada a significação social das coisas conhecidas. Nos indagarmos sobre o que implica
ser uma meretriz em uma determinada cultura, restitui a estrutura problemática dos
fatos que se acreditava conhecidos e permite analizá-los como questões históricas
pertinentes.114 Por conseguinte, a recusa de posturas absolutistas e totalizantes, de
explicações globalizantes e de categorias essencialistas de análise, reforça os estudos
das variações e dos processos115 e nos remete à necessidade de utilização cuidadosa dos
conceitos.
Esse posicionamento nos leva ao questionamento da pouca importância
concedida nas análises de Laura de Mello e Souza e Luciano Figueiredo as meretrizes
brancas. Ao que tudo indica, elas não eram praticamente inexistentes conforme ressalta
esse último historiador. Brancas, forras ou escravas, as “mal-procedidas” das Minas
setecentistas não se enquadram no padrão único da “desclassificada social”, ou seja, da
mulher mestiça e forra que devido a injunções econômicas é obrigada a se entregar aos
“tratos ilícitos”. Em vez de contribuir para a manutenção do estereótipo racista da
mulata promíscua e reificada como objeto sexual, o ideal é atentar para um quadro rico
e diversificado de vivências criadas através dos relacionamentos sexuais ilícitos.
As devassas eclesiásticas não fornecem evidências empíricas que
comprovem que a prostituição era, principalmente, um recurso adicional de
sobrevivência utilizado por mulatas forras para complementar a renda do comércio de
gêneros alimentícios. De quarenta e nove denúncias arroladas, somente sete ou 14%
referiam-se a vendas ou negras de tabuleiros. Dessas, apenas três se relacionavam a
mulheres forras proprietárias de vendas. Nas restantes três eram escravas
administradoras de vendas e apenas uma referia-se a escravas negras de tabuleiro, sendo
que nessa não fica explícita a existência de um comércio sexual.116
As relações sociais entre os sexos entendidas como um subproduto das
forças econômicas resultam em generalizações redutoras ou simples demais que minam
o sentido da complexidade da causalidade social. A crítica de narrativas sintéticas que
atribuem ao passado uma unidade inerente117 e o questionamento do caráter mistificador
de categorias através das quais as mulheres eram pensadas na história, expõem sua
objetividade científica como profundamente idelógica.118
Conceitos dominantes que colocam em evidência interpretações do
sentido dos símbolos tomam a forma de uma oposição binária que afirma de forma
categórica o sentido do masculino e do feminino. A posição que emerge como
dominante é considerada a única possível e a história posterior é escrita como se as
posições dominantes fossem o produto de um consenso e não de um conflito.119
Mas na medida que as estruturas hierárquicas baseiam-se em
compreensões generalizadas da relação pretensamente natural entre o masculino e o
feminino, o gênero implica na construção de relações de poder.120 O não
reconhecimento dos conflitos entre os gêneros pode resultar em uma condição feminina
abstraída de sua historicidade, pois o poder está no centro das relações sociais.
Distanciando-se de dicotomias que trabalham de modo simplificado com antagonismos
como dominação e resistência, ou com o simples engendramento de práticas discursivas
abstraídas de sujeitos sociais, uma história de gênero deve ter como meta as oposições
explícitas e secretas solidariedades, e a subordinação e insubordinação na qual se
mesclam as relações de gênero e as relações sociais.121
Deixar de questionar um enfoque que atribui uma passividade a mulheres
em aréas onde a sua participação era primordial, significa, de certa forma, concordar
com o silêncio e a invisibilidade aos quais as mulheres foram relegadas na história.
Uma história verdadeiramente engajada, não deve ter como referência estrita os
discursos dominantes acerca dos oprimidos, pois estes discursos objetivavam
justamente a instituição da dominação. Qual seria a participação ativa dos atores
situados na base da hierarquia nos processos de diferenciação que as próprias
116
AEAM, Devassas, 1730, 1731, 1733, 1734, 1738, 1747-48, 1748-49, 1746-87, 1753, 1756-57,
1759, 1763-64, 1762-69, 1767-77. FIGUEIREDO, Luciano. op. cit.. MELLO E SOUZA, Laura
de. op. cit..
117
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil... op. cit., p. 3.
118
VARIKAS, op. cit., p. 70.
119
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil... op. cit., p. 15.
120
Idem, p. 19.
121
CUNHA, Maria Clementina Pereira. op. cit., p. 143 e 144.
112
DIAS, op. cit., p. 381.
MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit.
114
VARIKAS, Eleni. op. cit., p. 65 e 67, 68.
115
TILLY, Louise A. “Gênero, História das Mulheres e História Social”. Cadernos PAGU.
Campinas, n. 3, 1994. p. 59.
113
26
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
hierarquias estabelecem?122 E qual o efeito sobre práticas estabelecidas da história de se
olhar as ações pelo lado dos sujeitos femininos?123
A crítica da experiência das mulheres no passado, deve incluir suas
concepções de si e do mundo de modo a se construir uma história que respeite a
iniciativa humana.124 Mas como reconstruir o olhar de mulheres, como tratá-las como
sujeitos de percepção ao mesmo tempo em que as referimos as categorias de percepção
dominantes?125 Conceber as prostitutas das Minas como sujeitos históricos secundários
ou adicionais não resulta em um desafio aos pressupostos metodológicos da disciplina,
pois homens e mulheres passam a ser percebidos como categorias naturais e segregadas
e não como termos relacionais, com a categoria mulheres assumindo uma existência
conceitual separada de seu relacionamento historicamente situado com a categoria
homens.126 A apreensão da participação das prostitutas mineiras como sujeitos políticos,
deve ser feita a partir das formas através das quais a prostituição foi vivenciada e
interpretada pelas próprias prostitutas.127 Portanto, a redefinição do que é historicamente
importante deve incluir também experiências subjetivas e experiências sociais
radicalmente diferentes.128
Esse ponto de vista favorece a percepção da fluidez de práticas e
costumes, tornando possível a historicização da prostituição, que ao invés de ser
concebida como uma prática em si violentamente degradante como faz Luciano
Figueiredo em uma pespectiva essencialista e a-histórica ligada à idéia de natureza
feminina, pode ser contextualizada e vinculada a estratégias de sobrevivência
improvisadas no vir a ser das prostitutas das Minas Gerais do século XVIII.
No avesso das práticas prescritas pelos valores patriarcais, as meretrizes
mineiras faziam do “mal uso de si”129 um desafio ao casamento sacramentado pela
Igreja. Assim, concubinatos e prostituição constituíam alternativas que além de
propiciarem condições de sobrevivência, resultavam muitas vezes, em uma margem
mais ampla de autonomia e num exercício maior de poder.
Em 1756, em Conçeicão do Mato Dentro, a meretriz Paula Perpétua
embora fosse casada se ausentava de seu marido quando queria, vivendo como senão o
fosse. Este último só “se acomodava por temer os impulsos da referida” e “que a
mesma lhe maquine a morte”.130
Outra que “trazia o marido debaixo dos pés” era D.Vitoriana, “dando-lhe
pancadas e chamando-lhe de cornudo diante de gente”. Amancebada com o ouvidor
geral da Comarca de Vila Rica do Ouro Preto, que entrava e saía de sua casa,
D.Vitoriana “que antes era pobre mas honrada”, alcovitava as filhas. Distante do
estereótipo da meretriz pobre e miserável ela dizia “que não há cousa como ser mulherdama, que sempre têm duas patacas na algibeira”.131
De acordo com Laura de Mello e Souza, o fato de uma mulher possuir
roupas era luxo o suficiente para incriminá-la como “mal-procedida”, sinal de que os
“tratos ilícitos” podiam ser utilizados como forma de se driblar pobreza. EmVila Rica, a
escrava do sacristão Diogo Pereira causava escândalo por andar bem tratada como se
fosse senhora “com saias de camelão e chinelas”.132 Em 1733, João Gomes Chaves foi
denunciado por tratar com estimação sua escrava Maria Bonita, “calçada em sua saia
de estofo.133
No entanto, mais do que uma simples necessidade de sobrevivência, os
relacionamentos sexuais ilícitos podiam ter como consquência a ascensão de pardas
enriquecidas, que se transformavam em senhoras fidalgas, como Mariana Baptista de
Paracatu, que em 1798 ofereceu a Dona Maria I um cacho de bananas de ouro, em
troca de um título de nobreza e da permissão de frequentar missa na irmandade dos
brancos, onde o vigário esperava sua chegada para começar.134 A famosa Chica da
Silva, concubina do contratador dos diamantes, possuía em sua casa de campo um teatro
particular e um lago privado com sua galera de sonhos.135
Em decorrência do meretrício, muitas cativas conquistavam uma maior
liberdade de movimentos. Em 1764, em Baependi, Francisca Poderosa consentia que
suas escravas andassem por casas de homens “gastando o jornal, sem lhe darem o que
ganham com seus corpos”.136 Já as escravas do padre Francisco Teixeira de Assunção,
denunciadas como meretrizes na devassa de 1756-57, viviam separadas de seu
senhor137, assim como a alcouceira Antônia, escrava de Luzia Pinta, que vivia em casa
separada, ainda que vizinha de sua senhora.138
Para as escravas, o amancebamento com seus senhores ou com terceiros,
também podia proporcionar a conquista da alforria. Em 1738, o minerador Bernardo da
Silva Esteves, denunciou o padre José Felipe de Gusmão, por andar amancebado com
sua escrava Arcângela. Esta dormia quase todas as noites com o padre, que chegou a
122
VARIKAS, Eleni. op. cit., p .78.
SCOTT, Joan. "História das mulheres". op. cit., p. 78.
124
TILLY, Louise A . op. cit., p. 51 e 59.
125
BOURDIEU, Pierre. ”Observações sobre a História das Mulheres”. In: DUBY, George &
PERROT, Michele. As Mulheres e a História. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995, p. 59.
126
SCOTT, Joan. "História das mulheres". op. cit., p. 81 e 83.
127
VARIKAS, Eleni. op. cit., p. 81 e 82.
128
SCOTT, Gênero: uma categoria útil... op. cit., p. 2.
129
PRIORE, Mary Del. op.cit., p. 101.
130
AEAM, Devassas, 1756-57, f. 7v e 8, apud FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 101 e 138.
123
131
AEAM, Devassas, 1762-69, f. 77v, apud MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit., p. 155.
MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit., p. 146.
133
FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 128.
134
DIAS, Maria Odila da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. op. cit., p. 94.
135
CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais. São Paulo:
Cia. Editora Nacional, 1968, p. 20.
136
AEAM, Devassas , 1746-87, f. 35.
137
Idem, 1756-57, f. 101v.
138
Idem, 1753, f. 132, 132v, 133.
132
27
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
propor a compra de sua liberdade.139 Tal possibilidade não era muito remota. Na
devassa de 1733, Luciano Figueiredo localizou a denúncia contra Francisco Teixeira
Carvalho, que por amor forrou a sua escrava Violante.140 Em 1777, na freguesia de São
João do Morro Grande, um Miguel Gonçalves oficial de pedreiro,
vivia amancebado com uma sua escrava que ele forrou por nome
Josefa, a qual tem de portas adentro, porque causa grande
escândalo, de tal sorte que já o Reverendo Pároco o expulsou fora
por vezes pela mesma culpa.141
Antônio da Silva, que desistiu do casamento com o cadete João Luciano após ter tido
“tratos ilícitos” com dois seminaristas e com um Francisco de Paula.146
A descrição fisica da alcoviteira Felipa de Moraes, distancia-se da
extrema pobreza sugerida por Mello e Souza e Figueiredo. Felipa de Moraes era uma
parda forra, de cerca de cinquenta anos que vestia “um timão de baeta azul abandado
de tafeta branco com uma camisa de bretanha de França” e calçava umas chinelas de
couro preto. Nas orelhas, usava uns brincos de ouro, nos pulsos umas contas de prata, e
no pescoço, umas granadas de cor rocha com uma imagem de Santana.147
A imagem de Santana, confirma a existência de uma vivência específica
da religiosidade, decorrente de um contexto em que o catolicismo propiciava
oportunidades de convívio através das grandes festividades que se multiplicavam o ano
todo.148 Em 1738, no arraial da Contagem, a forra Luzia de Mello dava “pública casa
de alcouce, admitindo (...) todos aqueles que querem pecar com duas negras que tem
(...) especialmente nos domingos e dias santos, em que fica junto mais gente no
arraial...” 149
Profundamente associados aos encontros amorosos ilícitos, os batuques e
feitiçarias revelam o potencial de resistência de um sincretismo afro-católico,150 que
encerrava em si uma cultura negra extremamente rica. Na devassa de 1763-64, Custódio
Dias foi denunciado por dar casa de alcouce,151 consentindo “que na mesma casa se
dancem quase todas as noites batuques”. Na freguesia dos Carijós, o feiticeiro Salvador
de Freitas era procurado por várias mulheres para abortarem e Josefa Doce usava de
ingredientes para que os homens lhe quizessem.152 Em 1777, em Vila do príncipe, um
mulato forro chamado Antônio Julião, fazia feitiçarias para adquirir mulheres públicas.
Apartado de sua mulher e amancebado com uma mulata-dama chamada Teresa a opção
de Antônio Julião era recorrente em Minas Gerais.153
Em 1753, Antônio Gonçalves de Figueiredo foi denunciado por tratar mal
sua mulher Eugênia, devido ao amancebamento com Teodósia bastarda, meretriz que
também era concubinada com o pardo forro Francisco.154 Integradas a um código de
comportamento que tinha o concubinato como característica essencial, as relações
Entretanto, parece ter sido entre brancas e forras que os “tratos ilícitos”
resultaram em uma margem mais ampla de autonomia. Em 1753, na freguesia dos
Carijós, Gertrudes de Oliveira vivia “separada de seu marido Manoel Francisco dos
Santos, que querendo por várias vezes chamá-la para sua companhia ela nunca quiz”.
Após abandonar o marido, ela expulsou os filhos deste de sua casa, para em seguida
parir os seus, o que a colocava em reputação de “mal procedida”.142
Esse também foi o caso de uma mulher branca chamada Ignês de
Oliveira, “por alcunha Claridade, que alcançara sentença de divórcio no juízo da
cidade do Rio de Janeiro, donde veio para o arraial do Brumado onde vive
meretrismente para todos que a procuram”.143
Na devassa de 1747-48, Laura de Mello e Souza e Luciano Figueiredo
analisaram as denúncias contra a meretriz Maria da Costa uma negra forra que através
do meretrício resistia as pancadas de um concubino que em vão tentava submête-la.
Demonstrando uma concepção específica da religião católica ela chegou a dizer que se
ela era mulher pecadora, por ela tinha sido Santa Maria Madalena.144
Nas Minas Gerais do século XVIII, a prostituição era uma opção de
trabalho para muitas mulheres que optavam pela separação de seus maridos ou
concubinos145 ou que almejavam uma existência mais autônoma. No entanto, em um
contexto onde o “viver meretrismente” designava tanto uma alternativa de
comportamento como uma opção de trabalho, ser “mal-procedida” era, inclusive, a
forma encontrada por moças que desejavam viver uma sexualidade mais livre.
Em 1794, em Mariana, a parteira Felipa Maria de Moraes foi denunciada
por alcovitar “moças recolhidas”. A moça em questão, era Maria, filha de um tal Dr.
146
Casa Setecentista - CS - Mariana, 4621 cod. 185-2ofício/série crimes. Devassa Janeirinha de
1794, f. 4v, 5, 5v. Essa devassa, realizada em Mariana, apesar de idêntica as devassas
eclesiásticas, estava vinculada à ouvidoria geral da comarca de Vila Rica do Ouro Preto.
147
CS , 5590 cod 225-2ofício/série crimes. Processo de livramento da culpa imputada pela
devassa janeirinha de 1794: Felipa Maria de Moraes, f. 4.
148
FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p.154.
149
AEAM, Devassas, 1737-38. f. 18v.
150
MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
151
AEAM, Devassas. 1763-64, f. 10v. apud FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 92.
152
AEAM, Devassas, 1753, f. 52 e 59.
153
Idem, 1767-77, f. 45.
154
Idem, 1753, f. 71.
139
Idem, 1738, f. 133.
FIGUEIREDO, Luciano. op. cit. p. 128.
141
AEAM, Devassas,1767-77, f. 25.
142
Idem, 1753, f. 70v e 71.
143
Idem, 1756-57, f. 219.
144
AEAM, Devassas, 1747-48, f. 31, 31v, 32, 32v, apud FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 109
e 110 e MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit., p. 184.
145
FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 102.
140
28
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
estabelecidas através do meretrício resultavam em amancebamentos. Ser meretriz nas
Minas Gerais do século XVIII significava ter vários amásios, situação que, por vezes,
gerava brigas sérias, como as que ocorriam entre o ferreiro Sebastião, que por ciúmes
batia em Maria da Costa.155
Nas casas de alcouce, através de uma forma específica de intervenção
social, foram constituídas identidades, pautadas na prática comum da prostituição. Em
1734, no arraial do Tijuco, a parda Rosa Pereira da Costa “dava casa de alcouce, em
forma que nela se ajuntam todas as noites, quase todas as mulheres damas que há
nesse arraial”.156 Em Congonhas do Campo, a parda Ana Maria, que vivia ausente de
seu marido, consentia “em sua casa homens, não só para si, mas também para sua irmã
Francisca e para suas filhas Maria e Ana.”157 Espaços de sociabilidade feminina, esses
locais foram propícios para a constituição de fortes laços associativos entre mulheres
pobres, que através da sedução lutavam contra as limitações impostas por uma
sociedade misógina. Presença indispensável em tais locais, essas mulheres, ao invés de
serem apenas objeto sexual, conforme ressalta Figueiredo, eram sujeitos de suas ações.
Alvos de desejos e amores, elas tinham oportunidades de escolha.
155
Idem, 1747-48, f.31, 31v, 32, 33v, apud. FIGUEIREDO, Luciano. op. cit., p. 109 e 110.
AEAM, Devassas, 1734, f.73v, 74v, 75, apud MELLO E SOUZA, Laura de. op. cit. p. 184.
157
AEAM, Devassas, 1762-69, f. 47.
156
29
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
CARDOSO, Maria Tereza Pereira. Caramuru somos nós. Revista
Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 2, n. 1,
jan./jun. 1998. p. 39-44.
CARAMURU SOMOS NÓS
Maria Tereza Pereira Cardoso
Professora do DECIS/FUNREI
doutoranda em História Social pela UNICAMP
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
RESUMO: Este artigo pretende analisar aspectos de uma rebelião escrava ocorrida na
freguesia de Carrancas (São João del Rei - MG), em 1833, procurando tecer algumas
considerações acerca das referências culturais e simbólicas que informaram a ação dos
escravos.
Endereço para correspondência:
Revista Eletrônica de História do Brasil
Arquivo Histórico da UFJF
Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
Prédio do CDDC - Campus Universitário
Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330
ABSTRACT: This paper aims at analysing aspects of a slavish rebellion stricken at
Carrancas’s parish (São João del Rei - MG), 1833, trying to weave some considerations
about the cultural and symbolic references wich shaped the slave’s action.
PALAVRAS-CHAVE: Processos criminais; Criminalidade escrava; Comarca do Rio
das Mortes: século XIX.
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
E-mail: [email protected]
Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342
I
Era o dia 13 de maio de 1833, por volta do meio dia, quando os escravos
do deputado Francisco Junqueira, munidos de foice, paus e armas de fogo, invadiram as
fazendas Campo Alegre e Bela Cruz, localizadas na freguesia de Carrancas, Comarca
do Rio das Mortes. Cercaram o proprietário da fazenda desmontando-o do cavalo e o
mataram. Depois foram em direção à fazenda Bela Cruz onde arregimentaram os
escravos que estavam na roça e, em seguida, invadiram a sede, matando todos os seus
moradores.
Segundo o auto de corpo de delito indireto, referendado por réus e
testemunhas, na fazenda Bela Cruz foram mortas nove pessoas, entre adultos e
crianças.1
Uniformemente disseram que sabem pelo ver que os finados
Manoel Joze da Costa e sua mulher Hermelianna Francisca
Junqueira e seus filhos, Joze de idade de cinco annos e Maria de
idade de doeis meses, Donna Anna Candida da Costa e Antonia
filha legitima de Manoel Vilella, de idade de quatro annos, forão
atros mente assassinados e mortos no dia treze do corrente pelas
Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades
comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo
e em sua estrutura física.
1
Este trabalho baseia-se no processo-crime da família Junqueira, Carrancas, 1833, caixa. 4.
Acervo do Arquivo do Museu Regional de São João del-Rei.
30
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
A rebelião iniciada na fazenda Campo Alegre parece ter sido organizada
por Ventura, João, Julião e Casemiro, todos africanos, juntamente com Domingos e
André, crioulos. No decorrer do processo foram arrolados 36 réus que se declararam
oriundos do Congo, de Angola e Moçambique e se identificaram como cassange,
benguela, cabunda, mufumbe e mina. Dos autos constam nove escravos crioulos, sendo
um deles, André, filho de Ventura. Vários cativos receberam a pena de enforcamento e
outros foram condenados a açoites e ferros. Ventura Mina, citado como o principal líder
da revolta, morreu no confronto com a Guarda Nacional, quando a rebelião foi
sufocada.
Os depoentes afirmaram que a rebelião tinha por objetivo o alforriamento
dos escravos e que Francisco Silvério, homem branco, tido como o insuflador dos atos,
em consonância com o negro Ventura, teria informado aos escravos que em Ouro Preto
os caramurus3 já haviam começado a prender os brancos e a matá-los. Cabia-lhes fazer
o mesmo.
Segundo testemunhas, os planos da rebelião incluíam a morte de todos os
brancos das fazendas Bela Cruz, Jardim, Campo Belo, Prata, Santo Inácio, Favacho,
Traituba e Campo Alegre. E embora o “medo branco” impregnasse esses depoimentos,
há referências de que a rebelião já havia sido pensada dois anos antes. Tais informações
constam dos autos do processo de 1833. O ofício do Juiz de Paz ao Presidente da
Província relata que,
... esta insurreição não hé d’agora mas sim já (...) a dois annos
pouco mais ou menos e que o cabessa della nesta Freguesia hera
o ex-vigário della Joaquim Joze Lobo o que he mui publico e
notório pellas comvocaçoins e seuçoins que, o dito vigário fizera
naquelle tempo a diversos escravos para isso induzidos por elle, e
por Domingos Crioulo seu agente, o qual athé promoveo (...)
esmolas pella escravatura dessa Freguesia para se celebrar um
terço a Nossa Senhora do Rosário para os felicitar no seu intento
de se libertarem por meio do assassinato de seos senhores ... 4
seis horas da tarde na propria casa do finado Joze Francisco
Junqueira aonde fizerão aos assassinados as feridas. Receberam a
saber, Junqueira se achou com hum tiro de arma de fogo no peito
no lado direito de cuja parte se achava fraturado o braço logo
assima do punho e doutro tiro na bouca que mostrava ser dado
de perto que desmanchou o rosto que lhe esmagou o rosto
deixando huma grande concavidade e Donna Antonia Maria
Jezus, mulher do dito se achou com toda a cabessa e rosto com
imenças feridas que elles testemunhas não podiam contar com
coivo carne cortada com grande efusão de sangue cujas feridas
mostravam ser feitas com instrumentos cortantes afim de que a
sinta para baixo se achava muito ensanguentada o que elles
testemunhas (...) tiveram de examinar. Manoel Joze da Costa se
achou com huma grande ferida sobre o olho da parte esquerda
com couro e carne cortada do comprimento de quatro polegadas,
além de outras muitas feridas pello rosto que todas mostravam ser
feitas com instrumento cortante além de hum tiro de arma de fogo
no peito. Donna Hermelianna Francisca Junqueira se achava com
hum grande golpe na cabessa pella parte de tras e logo assima na
nuca que lhe tinha separado a maior parte do cranio além de
outras feridas que tinha no rosto que todas mostravão ser feitas
com instrumento cortante. Joze filho de Manoel Joze da Costa de
idade de sinco annos se achou com duas grandes feridas no rosto
com couro e carne cortada e ambas de comprimento de sinco
polegadas que mostravam ser feitas com instrumento cortante.
Maria filha do ditto Costa se achou digo se achou com a cabeza
toda cortada com cor mudada para preto que mostrava ser
assassinada dando com a cabessa por pau ou pedra. Donna Anna
Candida da Costa viuva de Francisco Joze Junqueira se achou
com parte do couro que cobriu o cranio não se lhe devizando
parte alguma da cabessa e rosto que se não achava unida ao
corpo. Antonia filha de Manoel Vilella de idade de quatro annos
se achou com huma grande ferida redonda no alto da cabessa por
onde se lhe devizava travazão do cerebro alem de outras muitas
feridas no rosto com couro e carne cortada que tudo e elles
testemunhas sabião pelo ver e serem elles proprios os que deram
sepultura a todos estes cadaveres no Cimeterio da Serra da Letras
onde são moradores, no dia quatro do corrente mez”. 2
2
Segundo trabalho recente,5 a rebelião de 1833 teve grande repercussão na
província, deixando em polvorosa todo o sul de Minas, inclusive vilas limítrofes com as
províncias do Rio de Janeiro e São Paulo.
Revoltas, motins, ajuntamentos de negros, quilombos e bandos
salteadores de estradas são comuns em Minas, desde o século XVIII. Na primeira
3
Trata-se da Sedição Militar de Ouro Preto ocorrida em 1833, durante a qual os restauradores,
também denominados caramurus, tomaram o governo da província por dois meses. Durante este
período, os liberais moderados se estabeleceram em São João del-Rei.
4
Ofício constante no referido processo-crime da família Junqueeira.
5
ANDRADE, Marcos Ferreira de. Rebeldia e resistência: as revoltas escravas na Província de
Minas Gerais, 1831-1840. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, 1996, p.
182-186.
Transcrição do Auto do corpo de delito indireto. Processo da família Junqueira, cx. 4.
31
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
metade do século XIX, com as notícias da rebelião no Haiti e a revolta dos Malês, na
Bahia, cresce a tensão em toda a província. O medo alia-se ao fato real de que as
revoltas, embora ainda pouco estudadas, efetivamente ocorreram com alguma
freqüência, principalmente, ao que parece, em regiões com grandes concentrações de
escravos africanos. Em Minas Gerais, que contava com a maior população cativa de
todo o Império6 e com as mais baixas taxas de alforria, seguramente o temor tendia a
acentuar-se, fazendo com que a vigilância e o controle em relação à população de “cor”
e, principalmente, em relação aos escravos, aumentasse.
Em 1837 o Juiz de Paz do Distrito de Pouso Alto envia correspondência
ao Presidente da Província, solicitando a permanência do destacamento militar no
distrito devido a “numerosa porção de africanos que este Districto e outros vizinhos
tem em si, e que a qualquer momento podem expalhar o terror e a morte nestes
lugares”. 7
A população negra e parda parece ter excedido em grande medida à
população branca, fazendo com que as solidariedades aí construídas muitas vezes se
tornassem decisivas em momentos de tensão. Dessa forma, escravos ou libertos, negros
ou pardos, significavam, no imaginário das elites, perigo iminente.
Para Manoela Carneiro da Cunha8 o africano era quem melhor
representava este “outro” que tanto atemorizava o Governo e os senhores. É sobre
significados culturais e alteridades que falaremos a seguir.
entretanto, que todos os réus eram trabalhadores no eito, quase todos eram de origem
africana e desconheciam sua idade e que, a maioria admitiu ter participado da morte de
seus senhores. Apenas um réu, Julião Congo procurou justificar seus atos, afirmando
que, “seo senhor o tratava mal, não estava satisfeito com o seo serviço dava lhe
pancadas ainda mesmo quando estava doente”. 9 Os outros nada disseram em sua
defesa.
Entrementes, há um traço comum em todos os depoimentos dos réus, a
relação entre os caramurus, o rei e a alforria e, talvez, seja esse o elo, menos visível,
entre as revoltas de 1831 e 1833.
Os escravos atribuíram sentidos próprios à ação dos caramurus mas o
fizeram a partir de que referências culturais? Quais os caminhos que os levaram do
terço de Nossa Senhora do Rosário ao genocídio da família Junqueira?
Lembramo-nos de um texto de Alfredo Bosi em que as datas são vistas
como de “icebergs”, enfatizando a densidade que elas contêm.10 Procurando recuperar
essa densidade, faremos um pequeno roteiro articulando datas, fatos, e significados
simbólicos.
Começamos por 1831, ano da abdicação de D. Pedro e da promulgação
da primeira medida de proibição ao tráfico. Sobre esse período, o Alfredo Joaquim da
Silva Pais, natural da Freguesia de São João del-Rei e morador em Carrancas, informa
por ouvir dizer que, segundo os escravos participantes da primeira rebelião,
... o Imperador andou por Minas que foi com o sentido de forrar
mas os senhores não quizerão e o lançarão para fora, e que
apesar disso tinha deixado ordem para elles serem forros pelos
Bispos, estes tinham canonizado (?) aos vigários.” 11
II
A história de Ventura Mina, João Cabunda e outros, participantes das
rebeliões de 1831 e 1833, parece-nos interessante para pensar no confronto inter-étnico
através do qual, senhores, brancos, donos de terra e gente, exercendo o monopólio da
violência, são assassinados por escravos, negros, africanos, que parecem agir com
respaldo e legitimidade de seu grupo social.
Alguns depoimentos de réus e testemunhas deixam indícios imprecisos e
esparços que procuraremos seguir para dar continuidade a essa análise.
Em documentos jurídicos, como ações de liberdade, ouvimos em alta voz
o depoimento dos escravos, que através de seus curadores, argumentam e justificam
suas ações. O mesmo não sucede com os processos-crime, particularmente com um
processo por insurreição e homicídio, no qual a fala dos escravos soa distante, lacônica,
interditada pelas tramitações processuais e condicionamentos de toda ordem. Anotamos,
Em 1833, outra vez a figura do rei está posta em cena. Afinal, os
caramurus são os defensores da restauração e a eles é imputada a defesa da alforria.
Portanto, é sob a figura emblemática do rei que parece tecer-se uma primeira
legitimidade que pode, inclusive, relacionar-se a formas culturais presentes no universo
africano.12
9
Processo-crime da família Junqueira, cx 4, Arquivo do Museu Regional de São João del-Rei.
BOSI, Alfredo. O Tempo e os Tempos, in: NOVAES, Adauto (org.) Tempo e História. São
Paulo: Cia. das Letras, 1992.
11
Depoimento constante do processo-crime da família Junqueira, cx.4.
12
Em correspondência remetida ao presidente da província em 16 de maio de 1833, o Juiz de Paz
de Baependi assim se refere ao negro Ventura Mina: “Exmo. Snr. de ontem para hoje os diversos
destacamentos em pontos apropriados tem capturado vinte e oito escravos, tendo morrido hum,
que se havia coroado Rey delles, pertencente ao Deputado Gabriel Francisco Junqueira, como
que desarmados os que restão se achão debandados, e perseguidos por todos os lados, e pareceme que ao mais tardar por estes dois dias serão prezos os que faltão”(APM Seção Provincial, SP
PP 1/18, cx. 86, doc. nº 32). Apud ANDRADE, Marcos Ferreira de, op. cit., p. 189.
10
6
A respeito, ver MARTINS, Roberto. A economia escravista em Minas Gerais no século XIX.
Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMF, 1992.
7
Correspondência do Juiz de Pouso Alto ao Presidente da Província de 30 de agosto de 1837.
Arquivo Público Mineiro, seção provincial. Códice SP PP 1/18, cx. 88, doc. n.19. Apud
ANDRADE, Marcos Ferreira de, op. cit., p. 34.
8
CUNHA, Manoela Carneiro da. Negros estrangeiros; os escravos libertos e sua volta à África.
São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 12.
32
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Outro aspecto presente nas duas revoltas se relaciona aos elementos
religosos que as permeiam. Em 1831 os escravos recolheram esmolas para realizar um
terço para que Nossa Senhora do Rosário os auxiliasse em seus propósitos e, em 1833,
segundo vários depoimentos, a revolta deveria eclodir no domingo do Espírito Santo,
embora tenha sido adiantada em alguns dias.
Assim, as revoltas parecem ter sido planejadas, no imaginário de seus
participantes, sob o manto do rei e da santa, adquirindo uma legitimidade que, parece
estar ancorada em símbolos apropriados da sociedade senhorial e resignificados naquele
universo cultural particular.
Uma última observação se faz necessária. Aqui estão sendo deixados
propositadamente de lado todos os outros elementos que compõem a cena onde estes
personagens se movem. Referimo-nos, sobretudo, à tensa situação do período regencial
e suas disputas políticas e às condições concretas em que viviam os cativos pertencentes
ao deputado Junqueira.
Caminhamos ainda como um antropólogo perdido que chega a uma aldeia
distante. E é justamente o estranhamento o que nos salva. Assim, concluímos com
Robert Slenes, que observamos duas culturas “dramaticamente diferentes”15 que
assimetricamente se confrontam.
É a partir dessa noção de alteridade que buscamos situar as revoltas de
Carrancas. O “complexo cultural ventura-desventura” que parece ser referência central
para compreender o universo simbólico da África bantu16 atribuirá algum significado
particular à morte violenta? Naquele quadro cosmológico, reordenado historicamente,
as agressões na parte superior do corpo revelarão uma forma de garantir que o morto
não retorne? Ou nos deparamos com uma naturalização da violência assentuada em
situações opressivas ou condições em que o mínimo vital está em disputa, como
afirmaria Maria Sylvia de Carvalho Franco, embora tratando de situações bastante
diferentes das que abordamos nessa história.17 As respostas a essas perguntas ficam para
um segundo momento, quando um maior conhecimento das etnias africanas que
viveram em Minas Gerais e a compreensão de como tratavam a morte e a violência nos
auxilie na análise de crimes de homicídio cometidos por escravos.
Resta-nos observar que, ademais de todas as diferenças realçadas,
estamos, provavelmente, diante de noções de justiça distintas e opostas. Tais noções
explicitadas nas revoltas se evidenciam quando a parda Maria Junquina do Espírito
Santo, agregada da fazenda Bom Jardim, relata em seu depoimento como testemunha
no processo de 1833 que:
hera verdade que o preto Antonio Benguella pullava no seo
terreiro e batia nos pretos dizendo para ella e seo companheiro:
voces não costumão falar nos caramurus, pois conheção agora os
caramurus. Nós somos os caramurus, vamos arrasar tudo”. 18
III
Segundo Robert Slenes, a população cativa do sul mineiro era composta
de 50% de africanos, de origem bantu, introduzidos na região entre o final do século
XVIII e 1850.13 Vivendo a maioria desses em pequenos plantéis, foram construindo, ao
longo de todo o período de cativeiro, relações de solidariedade e identidade redefinidas
e reelaboradas a partir de suas referências culturais de origem. Assim, colocavam em
risco empírico, como afirma Marshall Sahlins,14 os suportes culturais de suas tradições,
imprimindo-lhes outros significados cunhados na situação de tráfico e de cativeiro nas
novas paragens que os recebiam.
Uma vez mais, a história de Ventura Mina, João Cabunda e outros, nos
auxilia a pensar, desta vez, nas noções de cultura operadas por historiadores e
antropólogos. E nos indica a necessidade de lidar com referências flexíveis, através das
quais, essa noção possa enraizar-se na experiência e nos costumes de determinado
grupo social, construídos e redefinidos na diacronia. Estamos ainda distantes de
entender o que de fato aconteceu nas revoltas de Carrancas. Sobretudo, estamos
distantes de compreender a violência utilizada pelos escravos no acerto de contas com
seus senhores. Se pensarmos que a família Junqueira era conhecida como de tradição
liberal, opositora aos caramurus, talvez uma pequena luz apareça no final do túnel.
Poderíamos afirmar que, em síntese algumas polaridades se destacam: caramurus versus
liberais, senhores versus escravos, violência versus violência. Oxalá as coisas fossem
tão simples.
A utilização do termo caramuru parece indicar uma apropriação cultural
que, ao mesmo tempo redefine o lugar ocupado pelos escravos nesse confronto. Embora
sob o manto da santa e do rei são eles, os caramurus negros, “filhos do trovão”19, que
se apropriam do direito de definir os rumos dessa história, embora tenham naufragado
no último momento.
15
SLENES, Robert. op. cit., p. 61.
Idem, p. 58.
17
Refiro-me ao livro de FRANCO, Maria Sylviade Carvalho. Homens Livres na Ordem
Escravocrata. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 383.
18
Processo-crime da família Junqueira (1833), caixa 4, Arquivo do Museu Regional de São João
del-Rei..
19
Uma das acepções do verbete “caramuru” no dicionário de Aurélio Buarque de Holanda.
16
13
SLENES, Robert. África Coberta e Descoberta no Brasil. Revista da USP, São Paulo, n. 12, p.
55, dez./jan./fev. 1991-1992.
14
SAHLINS, Marshall. Ilhas da História. Rio de Janeiro: Jorje Zahar Editores, 1990, p. 9.
33
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
A DEVASSA DA VIDA PRIVADA;
o arquivo paroquial de Nossa Senhora do Pilar
de São João del-Rei (XVIII-XX)
RESENDE, Maria Leônia Chaves de, et alii. A devassa da vida privada;
o arquivo paroquial de Nossa Senhora do Pilar de São João del Rei
(XVIII-XX). Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora:
UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 45-50.
Maria Leônia Chaves de Resende
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
Professora do DECIS/FUNREI
Doutoranda em História Social pela UNICAMP
Mercês Miriam dos Santos
Licencianda em Filosofia pela FUNREI
Maria Angélica de Andrade
Bolsistas de Iniciação Científica/FAPEMIG
Endereço para correspondência:
Revista Eletrônica de História do Brasil
Arquivo Histórico da UFJF
Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
Prédio do CDDC - Campus Universitário
Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330
RESUMO: Este artigo visa à descrição do arquivo paroquial do Pilar, especialmente da
série Processos Matrimoniais, como resultado parcial do projeto “Levantamento,
classificação e indexação, em banco de dados, dos documentos e obras raras dos
arquivos de São João del-Rei e Tiradentes” (MG), financiado pela (Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), em curso pelo
Departamento de Ciências Sociais, Políticas e Jurídicas (DECIS) da FUNREI
(Fundação Universitária de São João del Rei - MG)
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
E-mail: [email protected]
Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342
ABSTRACT: This paper aims at a description of the parochial files of the Church of
Pilar, especially of the marriage certificates. It shows the partial results of the research
project entilled “Data gathering, classification and indexation of documents and rare
works from the archives of São João del-Rei e Tiradentes”(MG)z. This project is
sponsered by FAPEMIG, through the Department of Social, Political and Legal
Sciences at FUNREI. .
Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades
comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo
e em sua estrutura física.
PALAVRAS-CHAVE: História de Minas Gerais;
paroquiais; São João del Rei (MG).
Fontes Históricas;
Arquivos
Este artigo é o relato parcial do trabalho de mapeamento, identificação,
organização, classificação e indexação, em banco de dados, dos documentos e obras
raras dos arquivos históricos e bibliotecas de São João del-Rei e Tiradentes, que vem
sendo desenvolvido no DECIS/FUNREI. Afinal, a riqueza dos acervos de São João delRei e Tiradentes é indiscutível. Dotados de vários arquivos, dispersos sob a guarda de
várias instituições, os fundos documentais são quantitativamente expressivos e guardam
particularidades interessantes. Atualmente, finalizamos nossos trabalhos, em São João
del-Rei, nos Arquivos da Câmara Municipal, da Santa Casa de Misericórdia, da
Irmandade de Nossa Sra. do Rosário dos Homens Pretos e, recentemente, no Arquivo
34
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Paroquial de Nossa Sra. do Pilar. De todos eles, seguramente o Arquivo Paroquial do
Pilar, como é conhecido, é de inestimável valor, especialmente por possuir séries
documentais bastante completas.
Muitos dos arquivos encontravam-se em total desordem, constituindo-se
em um amontoado de papéis velhos e empoeirados, inacessível aos usuários. O acervo
Paroquial do Pilar, contrariando essa regra geral, é muitíssimo bem conservado. Nos
anos cinqüenta, foi organizado durante a vigararia de Monsenhor Almir de Rezende
Aquino. Ainda hoje é zelado com grande acuidade pelo pároco Monsenhor Sebastião
Raimundo de Paiva, de quem guardamos as melhores das impressões pela generosidade
e empenho em nos auxiliar durante o período em que lá trabalhamos.
Assim, nosso objetivo foi o de catalogar a documentação e fazer um guia
de consulta visando à divulgação desse acervo para a produção do conhecimento
histórico. O procedimento adotado foi padronizado para todos os arquivos. Em primeiro
lugar, buscou-se identificar a existência de uma ordem original dos fundos documentais,
a fim de que pudesse ser respeitada e recuperada. Assim, organizou-se o registro em
consonância com sua tipologia documental, estabelecendo-se como critério a ordem
original definida pela paróquia. Caso esses indícios não existissem ou não permitissem
sua recuperação, procedeu-se à organização de acordo com a tipologia documental e
ordem cronológica. A seguir, distinguiram-se os códices em títulos convencionais e fezse o fichamento. Após a leitura de cada documento, preencheu-se uma ficha de cadastro
com os seguintes campos: 1) Tipo de documento; 2) Número do livro ou pasta; 3)
Termo de Abertura; 4) Rubrica; 5) Data; 6) Número de folhas; 7) Conteúdo; 8) Estado
de conservação; 9) Observações.
ÍNDICE DE BATIZADOS
INVENTÁRIOS
ÓBITOS
ÓBITOS E PASTORAIS
PROCESSOS MATRIMONIAIS
PROVISÕES
RECEITA E DESPESA
RECIBOS
REGISTROS
REGULAMENTO
REQUSIÇÃO
TESTAMENTOS E ÓBITOS
TÍTULO DE AFORAMENTO
TOMBO
DATA
1892-1985
1737 – 1997
1790 - 1815
1782 – 1924
1956 – 1989
1804 – 1834
1954
1729 – 1997
1925- 1996
1769 - 1806
VOLUME
62
86
01
02
01
01
01
24
12
01
1714 - 1753
01
1917 - 1978
09
76
02
22
01
4157
02
32
02
06
01
01
17
01
25
Quanto à documentação avulsa, adotamos os mesmos critérios, tendo em
conta a ordem original a ser recuperada e separando os documentos por tipos e
cronologia, acondicionando-os em pastas devidamente identificadas. Em seguida, fez-se
um resumo do teor das pastas, registrando-se o título, datas limites, número de
documentos, conteúdo e observações. Ainda que haja algumas interrupções na série,
consideramos bastante expressivo o acervo. No arquivo do Pilar, o resultado final do
mapeamento arrolou 389 livros e 4.157 avulsos, constituídos por Processos
Matrimoniais.
Após o preenchimento das fichas, passou-se à indexação dos dados,
contemplando os campos indicados. Para uma amostragem quantitativa da tipologia
documental do arquivo paroquial, apresentamos os dados que definem o acervo (em
livros) e/ou documentação avulsa (pastas), datas limites e seu volume em valores
absolutos.
A diversidade e amplidão da documentação do arquivo paroquial de São
João del-Rei nos acenam para inúmeras questões temáticas. Naturalmente, não
pretendemos enveredar nas discussões historiográficas que envolvem muito da
documentação aqui arrolada, mas apenas apontamos, por hora, à guisa de exemplo,
alguns tipos de documentos e seu conteúdo, buscando demonstrar como este acervo
poderá auxiliar nas pesquisas históricas.
Para além do entendimento desses documentos como fonte exclusiva de
instrumento de controle do estado pontifical ou dos braços das autoridades eclesiásticas,
eles podem ser lidos como expressão das vivências e sentimentos da gente mineira.
Tomados diacronicamente, é possível recuperar as transformações do universo do povo
mineiro no que diz respeito às relações escravistas, ao espírito gregário frente às
doenças, à morte, à religião, às devoções; formas de alianças e compadrio social (as
ARQUIVO PAROQUIAL DO PILAR
TIPOLOGIA DOCUMENTAL
ATAS
BATIZADOS
BATIZADOS E CASAMENT0S
BATIZADOS, CASAMENTOS E ÓBITOS
BATIZADOS (CONFIRMAÇÃO)
BATIZADOS E ÓBITOS
CADERNETA BANCÁRIA
CASAMENTOS
CRISMAS
DOCUMENTOS DIVERSOS (ÓBITOS,
TESTAMENTOS, CASAMENTOS)
ENTRADA DE IRMÃO
(IRMANDADE DO SANTÍSSIMO)
FREQÜÊNCIA
1736 – 1988
1940 – 1960
1782-1995
1816-1860
1827-1979
1899-1989
1907-1986
1927-1966
1892-1973
1926
1940-1948
1786-1888
1928
1780-1977
35
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
práticas de apadrinhamento ligadas ao assistencialismo para com as minorias sociais
bem como sua atuação junto aos desfavorecidos, enjeitados ou abandonados).
Cobrindo uma expressiva série documental (ainda que haja interrupções),
a documentação paroquial pode contribuir para responder às perguntas sobre as
complexas relações sociais. Os registros contêm informações que, se bem trabalhadas,
podem elucidar o universo que vai dos cativos aos homens livres das Minas Gerais.
Assim, temos um representativo volume de “Livros de Batizados”, que
podem ilustrar, pela sua natureza e complexidade, uma seara fértil e prometedora no
campo das pesquisas de história cultural. A produção historiográfica sobre o período
imperial, abordando as múltiplas facetas das relações escravistas, é tema de maior
relevância para se compreender o caráter dessa sociedade. Nessa perspectiva, nos
“Livros de Batizados”, encontramos data do evento, nome do batizando, seu sexo, nome
da mãe e do pai, a cor, procedência de ambos, nome dos padrinhos, a respectiva
situação jurídica (explícita quando se trata de forro ou escravo) e, se cativo, o nome do
seu proprietário. Há os livros de “Índices” com a listagem dos paroquianos e seus
respectivos registros de batismo.
Uma temática instigante é sobre o Recolhimento dos Expostos, crianças
órfãs e/ou abandonadas que ficavam sob os cuidados da Santa Casa. Há inúmeros
registros nos livros de batismo e óbitos, que podem ser cruzados com a documentação
da Câmara e os livros de “Recolhimento das Expostas” do acervo da Santa Casa de
Misericórdia. Essas informações nem sempre estão em todos os registros, mas há uma
expressiva predominância dos dados, favorecendo o tratamento quantitativo.
As informações do “Livro de Óbitos” também são estimulantes, pois
identificam por nome, idade, estado civil, naturalidade, falecimento com “causa
mortis” e local do sepulcro. Também dentro desse espírito, temos o assento de
nascimentos e falecimentos no Hospital N. Sra. das Mercês.
Há também parte da documentação referente às Pastorais, ainda que em
pequeno número, instruindo sobre o comportamento e procedimento do clero e
indicando as obrigações da comunidade cristã.
Interessante ainda, neste acervo, é a parte que se refere aos Tombos,
onde se registra a vida paroquial. Tratando praticamente do século XX, essa
documentação, ainda que pouco volumosa, é expressiva por revelar a política e a prática
eclesiásticas na comunidade. Repletos de uma boa coleção de impressos, nos “Livros
de Tombo”, encontramos relatos vicejantes sobre a política pastoral. Nesses escritos há
notícias que vão das festividades à organização administrativa da paróquia, entre outras
informações. É certamente para a história da igreja e da religião que esta documentação
em muito vem contribuir.
Ao cobrirem uma significativa série ao longo do tempo, esses livros
paroquiais são admiráveis e ilustrativos quanto as práticas adotadas ao longo dos
séculos XVIII, XIX e XX. Toda essa massa documental acena para investigações de
natureza social, cultural, econômica. Assim, a situação de legitimidade ou naturalidade
das crianças, sexo, idade, são exemplos de aspectos que imprimem padrões
demográficos da massa cativa da paróquia, possibilitando-se ainda acompanhar uma
extensão temporal razoável. Pode-se também reconstruir a taxa da masculinidade
existente, o índice de legitimidade das crianças cativas (decorrentes da freqüência de
casamentos legais entre escravos), índice de africanidade e etnicidade, tamanho relativo
de plantéis, teia de compadrio, relação de parentesco, percentuais de população livre e
cativa na região, faixa etária, distribuição de plantéis, variação da situação jurídica,
enfim, uma gama de temas que povoam as fontes paroquiais. Recentemente, Carlo
Ginzburg atentou para as inúmeras possibilidades abertas ao historiador pela utilização
onomástica, através da qual se pode “remontar”, pelo cruzamento de inúmeras fontes, as
estratégias individuais dentro do cenário escravista.1
Curiosos e instigantes sãos os processos matrimonias. Com uma série
bastante significativa para os séculos XIX e XX, os processos relatam os trâmites a que
deve se submeter o casal junto ao Juízo Eclesiástico, para receber autorização visando
ao casamento religioso. Aproximando-se sensivelmente da vida dos homens e mulheres
comuns, esse tipo de fonte favorece um encontro com as formas de ver e interpretar o
mundo desta sociedade: os comportamento, valores e seus significados. Desse acervo,
podemos rastrear a vida cotidiana da região, especialmente dos imigrantes portugueses
e italianos, que são em grande número nos processos do século XIX.
O processo é montado a partir de uma petição ao vigário. Para tanto, o
pároco procede à investigação sobre o batismo, registrando na justificação, quando não
houver a certidão do sacramento, o local, filiação, data e padrinhos do batismo. Na
ausência da documentação ou para averiguar as informações, o padre intima
testemunhas para, sob juramento pelos Santos Evangelhos, declarar que compromete-se
a “dizer a verdade do que soubesse e lhe fosse perguntado”. Geralmente na residência
do reverendo ministro, faz-se o interrogatório em que se solicita às testemunhas
informações sobre os nubentes, como a garantia de professarem a religião católica e não
terem contraído matrimônio anteriormente. Nos autos há o registro dos suplicantes bem
como das testemunhas no que se refere ao nome, idade, profissão, religião, estado
civil, cor, naturalidade, filiação, dados bastantes sugestivos para estabelecer as teias de
solidariedade ou cumplicidade.
Há também o exame dos nubentes, em cinco momentos. O primeiro é o
juramento, em que reconhecem estar prevenidos “da santidade do juramento e da
gravidade das penas contra os perjuros”. O segundo é o interrogatório propriamente
dito, em que se anota o nome do declarante, do pai, da mãe, lugar de nascimento, data
de nascimento, data de batismo, lugar de batismo, se apresentou certidão, profissão,
religião, documento de identidade e, enfim, se foi crismado. Se não houver certidão e na
impossibilidade de encontrar o assentamento, o pároco deve fazer a justificação do
batismo, pela fórmula que se encontra na cúria.
1
36
Ginzburg, Carlo. A micro–história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p. 169.
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
O terceiro momento é o sobre os impedimentos.2 Averigua-se se houve
contração de matrimônio anterior, e, em caso afirmativo, com quem; se há filhos da
união, e se foi desfeito o vínculo (por nulidade ou viuvez). Neste caso deve apresentar a
certidão de óbito. Declara-se também a paróquia em que está domiciliado, rua e
número da residência, o período em que reside nesta residência e se residiu pelo menos
seis meses depois da puberdade (14 anos para o noivo e 12 para a noiva). No caso de
residências fora da diocese por mais de seis meses, o pároco pede às respectivas cúrias
certidão de estado livre e, se não houver tempo, faça a justificação, exija o juramento
supletório do suplicante, emita a sentença e envie ao ordinário.
Verifica-se, através de “indagação prudente do pároco”, se há
impedimentos de consangüinidade (DC 1076), cognação espiritual (DC 768,1078),
cognação por adoção legal (DC 1059,1080). Deve ser abordado se negou sua fé, ainda
que não tenha adotado seita acatólica, se pertence a sociedade condenada pela Igreja, se
aderiu a seita ateísta, se é público pecador ou está incurso em censura. Essa indagação
deve ser feita aos nubentes, da noiva sobre o noivo e vice-versa. Ainda assim, se
professam religião mista (DC 1066), se há disparidade de culto (DC 1070), de idade
(DC 1067), de voto (DC 1059,1077) e de pública honestidade (DC 1078).
O quarto momento é sobre a liberdade de consentimento. Os nubentes
devem declarar se aceitam o matrimônio livre e espontaneamente, se estão compelidos
direta e indiretamente por alguma pessoa. Essa informação deve “ser feita de modo
especial quando se tratar de casamento de conveniência”, para que se evitem as
penalidades da lei. Para os menores de vinte e um anos, caso não haja consentimento
dos pais, o pároco deve dissuadir os noivos.3
O último momento versa sobre o conhecimento da doutrina e as regras de
conduta do católico. O padre deve examinar os nubentes para saber se conhecem
suficientemente a doutrina cristã em seus preceitos e sobre a necessidade e eficácia do
sacramentos. Deve reafirmar, sobretudo, a santidade e indissolubilidade do matrimônio,
bem como as várias obrigações do estado matrimonial, inclusive asseverando que sua
finalidade é a procriação. Os noivos são instruídos sobre os deveres dos católicos: nos
dia santificados ouvir missa inteira, abster-se dos trabalhos servis (DC 1248), observar
as leis do jejum e abstinência (DC 1245), batizar os filhos quanto antes (DC 770),
receber o sacramento da Confirmação (DC787), fazer Comunhão Pascoal todos os anos
(DC 859), confessar-se ao menos uma vez ao ano (DC 906), receber oportunamente o
Viático e a Extrema-unção (DC 865), fundar a família pelo sacramento do Matrimônio
(DC 1012), dar aos filhos educação religiosa e moral (DC 1372,1113), cooperar com o
culto divino e fins próprios da Igreja (DC 1496), trabalhar na Ação Católica e professar
abertamente a fé quando as circunstâncias o exigirem, para “que da sua atitude não
possa com razão inferir que a tenha implicitamente negado”(DC 1325). Ao final, o
pároco atesta se considerou suficiente a instrução dos noivos. Os autos são
encaminhados para o cartório com a sentença do Reverendo, acompanhados das
despesas da Igreja: chancelaria do ministro, inquirições, juramento do justificante,
sentença, provisão; do escrivão: autuação, intimações, testemunhas, termo de
juramento, guia e conclusões, publicação, intimação ao justificante, provisão. Ao final,
proclama-se a autorização para o casamento.
Sobre os processos matrimoniais, sua riqueza ocorre seguramente dentro
da história da cultura. Com inúmeros processos referentes aos imigrantes, há indícios
das relações de solidariedade estabelecidas no seio dessa comunidade. Inquiridos
(normalmente cerca de quatro testemunhas) sobre a idoneidade dos suplicantes
(noivos), há um dialogismo cultural entremeado nos depoimentos, revelando na dupla
face do processo a dinâmica do contato interétnico. Sobre a prática de externalização da
crença, podemos acenar para essas fontes à medida em que remontam a tais práticas,
como aquelas evidenciadas nas perguntas impingidas às testemunhas durante as
inquirições do processo matrimonial. Todas elas permeadas por obrigatoriedades como
condição para reconhecimento do fiel.
Ainda assim, podemos analisar as visões sobre o casamento, bem como as
motivações para a contração da união. Permitem também análises quantitativas a partir
dos dados das idades dos nubentes, presenças de casamento consangüíneo, condição
social etc. Pode-se aferir o valor social do casamento e as estratégias para burlar as
regras sociais impositivas. Manancial da vida e cotidiano familiares, esses processos
têm muito a dizer sobre três séculos de história mineira.
Certamente há muitas ilações possíveis dentro desse rico e expressivo
acervo. Nosso desejo é de que o resultado deste projeto, ainda que parcial neste
momento, favoreça aos pesquisadores como referência para sua investigação. Com
séries bastante completas, o Arquivo Paroquial de Nossa Senhora do Pilar muito pode
contribuir para se recuperar a vida mineira. Além de toda dinâmica religiosa da Vila,
registrada nos livros (1729-1997), das cópias de correspondência oficial nos livros de
Tombo, encontramos valiosas informações da vida cotidiana. Enfim, é um fundo
documental de grande importância para as investigações de cunho cultural, religioso,
administrativo. O cruzamento dessas fontes pode transformá-las em instrumentos
importantes para o mapeamento das propriedades e da vida social e econômica da
região.
2
Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, os impedimentos canônicos eram
divididos em dois tipos: os impedimentos (impediam a realização do matrimônio) e os
dirimentes. (além de impedirem a celebração do casamento, invalidam os já realizados
anteriormente). Cf. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1853), Tit. LXVII, 285 ,
APUD: BRÜGGER, Sílvia Maria J. Valores e Vivências Matrimoniais; o triunfo do discurso
amoroso (Bispado do Rio de Janeiro, 1750-1888). Dissertação de Mestrado em História. Niterói,
UFF,1995, p. 91.
3
Na verdade, havia uma lei portuguesa de 1775, confirmada pelo Código Criminal do Império,
de 1831, que considerava ilegal a celebração de casamentos de menores, sem autorização
paterna. BRÜGGER, op. cit., p. 82. Além das obras referidas nas notas anteriores, devem ser
indicadas as duas seguintes, pois sua leitura contribuiu para a elaboração deste artigo: SAMARA,
Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família. São Paulo: Marco Zero/Secretaria de Estado
da Cultura, 1989. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro
(1808-1821). São Paulo: Ed. Nacional, 1978.
37
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Naturalmente, apenas acenamos para alguns temas que têm florescido no
debate acadêmico. É evidente que novos olhares e objetos apontarão para a variedade,
excelência e incontestável fertilidade desses acervos. Esperamos, com esse inventário
de fontes, estar contribuindo para facilitar o acesso aos nossos bens históricos e
culturais, valorizando e ampliando a possibilidade de novas investidas no debate
histórico para aqueles que aceitarem esse risco e desafio.
38
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
IMAGENS DAS CIDADES;
oralidade, memória e história
SILVA FILHO, Osmar Luiz. Imagens das cidades; oralidade, memória e
história. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora:
UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 51-68.
Osmar Luiz da Silva Filho
Professor do Depto. de Ciências Sociais da UFPA
Doutorando em História pela UFPE
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
RESUMO: O diálogo do historiador com as fontes orais fornece ao seu trabalho um
posicionamento diante do estatuto do conhecimento histórico. Este conhecimento
incorpora indeterminações, visto que a oralidade elege as dimensões do imaginário e
das representações, dimensões estas, solenes, para a compreensão de uma realidade. A
construção da memória pela sua formação, manutenção e elaboração das identidades
individuais e coletivas, veiculada pela oralidade, expressa a multifacetada experiência
humana no tempo, a história. Este artigo apresenta estas questões, estabelecendo
relações e mediações com outros tipos de registro do real.
Endereço para correspondência:
Revista Eletrônica de História do Brasil
Arquivo Histórico da UFJF
Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
Prédio do CDDC - Campus Universitário
Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330
ABSTRACT: The historian's dialogue with the oral sources supplies to its work um
positioning, before the statute of the historical knowledge. This knowledge incorporates
indeterminations, because the vocally chooses the dimensions of the imaginary and of
the representations, dimensions these, solemn, for the understanding of a reality. The
construction of the memory, for its formation, maintenance and elaboration of the
individual identities and the collective ones, transmitted by the vocally, expressed the
multiform human experience in the time, the history. This article presents these
subjects, establishing relationships and mediations with other types of registration of the
real.
PALAVRAS-CHAVE: Oralidade, memória e identidade.
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
E-mail: [email protected]
Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342
INTRODUÇÃO
Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades
comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo
e em sua estrutura física.
Em “O Mundo como Vontade e Representação”, Arthur Schopenhauer
concebe a história da seguinte forma:
A história nos apresenta a humanidade, como a vista do alto duma
montanha nos apresenta a natureza; enxergamos muito duma só
vez distâncias extensas, grandes massas; nada porém adquire
nitidez na totalidade de sua essência propriamente. Em contraste,
a apresentação da vida do indivíduo nos revela o homem do modo
pelo qual conhecemos a natureza, ao passear entre suas árvores,
plantas, rochas e cursos d’água.1
1
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação In: Os Pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 66.
39
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Colhendo essa imagem notável do genial pensador, vamos apresentar ao
leitor uma história possível da cidade de Cajazeiras, no alto Sertão Paraibano, na
década de 20 de nosso século, percorrendo a seguinte trajetória:
- uma visualização da totalidade histórica na transição do “oitocentos”
para o “novecentos”, por meio de uma apresentação do Processo Civilizador, a
Modernidade e suas feições nos novos espaços e tempos construídos, apresentando a
cidade como o cenário maior dessa Modernidade;
- em seguida, buscaremos uma aproximação com o nosso objeto de
pesquisa - o fenômeno urbano nessa cidade e sua fisionomia (materialidade e
imagética ) - no intuito de formular uma história da cidade.
Nossa intenção é estabelecer uma investigação possível sobre a história,
na busca de suas indeterminações, dos seus fragmentos, a partir do prisma teórico
estabelecido por Walter Benjamin, explicitado, mais particularmente, em suas teses
sobre o conceito de história.
As noções de história, cidade, tempo, memória, representação,
imaginário, vida cotidiana, cultura e modernidade constituirão os nossos aportes
teóricos.
O trabalho com as fontes orais, com a memória oral, por meio do seu
confronto, como fonte potencial para a pesquisa histórica, diante das demais fontes,
como também, o trabalho teórico e metodológico que vamos tentar estabelecer com as
mesmas, com o cuidado de não torná-las um “dado oral”, uma realidade por si mesma,
será o nosso principal foco de interesse para análise e compreensão.
posto pela confluência de um ideário que buscava foros de autonomia e riqueza
intelectual diante da civilização ocidental, que colocava a França como o centro dos
processos sociais, econômicos e psíquicos das mudanças que as sociedades européias
estavam conhecendo rumo a um novo mundo.3
No plano individual e social, o comportamento das pessoas em sociedade,
traduzido por meio das regras do decoro corporal, da postura, do gesto, das expressões
faciais, dos sons naturais, dos receios, do “mal-estar” ou do “bem-estar”, diante de uma
diferente estrutura de emoções, movia-se, na modificação de novos padrões, de uma
forma lenta, porém decisiva.
Percorrendo a trilha dessas transformações Igor Stravinsky capta o novo
momento e choca seus ouvintes exaltando em suas melodias o tom de ruptura com a
tradição que os primeiros anos do século XX apresentavam - inovando na linguagem
harmônica - pela introdução de um ritmo sincopado e infinito, celebrando em suas
partituras um novo tempo. Em 1913, pela composição de “Le Sacre du Printemps”,4
Stravinsky incorporava a encenação dos bailados russos de Diaghilev, reunindo os
ritmos mais diversos e o público mais adverso, chocados que foram pela “rudeza” de
uma escrita orquestral, que nada mais era do que uma obra de criação, que detinha o
nobre esforço de elaborar em âmbito estético as profundas transformações pelas quais
passavam as sociedades européias, gestadas pelo Processo Civilizador, que
conceituamos por Modernidade.
A pujança dessa nova realidade em construção e depuração desnudava
sua face estética através do ritmo crescente e excepcional de uma Revolução Industrial
que estimulava desequilíbrios sociais de proporções gigantescas, configurando nas
cidades um cenário desregulador do tradicional e regulador do moderno, o qual veio
Microservice & Movieplay, Brasil, 1989. Disco Sonoro, 12 min.
3
Esse conjunto de transformações que processou a civilização ocidental desde a transição da
sociedade feudal para a sociedade aristocrática e a sociedade burguesa, projeto histórico (de
classe; sancionado, inicialmente, via Revoluções Burguesas) e civilizador, foi estudado pela obra
clássica de Norbert Elias. Em O Processo Civilizador, Norbert Elias persegue o seguinte
problema de pesquisa: “ Como ocorreu realmente essa mudança, esse processo “civilizador” do
Ocidente? Em que consistiu? E quais foram suas causas ou forças motivadoras?” O autor
desvenda o problema de investigação através da operação de um modelo conceitual ( o
“conceito” como essência do real), colocando para fins de análise a relação do conceito de
“civilização” e suas formas variantes anteriores (“courtoisie”, “civilité”) com os processos
sociais específicos, onde encontramos a relação dos indivíduos com as instituições. A partir daí o
autor vai poder examinar o problema da interrelação entre as pessoas, atentando para as
mudanças sociais nas respectivas estruturas sociais historicamente configuradas. Pela análise da
história dos costumes (a maneira como as pessoas se olhavam, as formas pelas quais se
alimentavam, a maneira pela qual modelavam a voz nos espaços privados e públicos, como a
Corte, etc.), da formação do Estado e da Civilização, ele coloca em questão a nossa estrutura
mental. Ver NORBERT, Elias. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, 2 v.
4
STRAVINSKY, Igor. The Rite of Spring - Le Sacre du printemps. London: The
Decca Record Company Limited, 1995. Disco Sonoro, 34 min.
NOVOS TEMPOS, NOVOS MUNDOS
Os primeiros anos do nosso século foram marcados por um conjunto de
fatores que anunciaram um tom desiderativo de novos tempos.
Na Europa, o caldeirão político da segunda metade do século XIX tinha
sido dissolvido, embora, na Alemanha, o problema cultural perpassasse a vida dessa
sociedade, desenhando pela ação de seus intelectuais e artistas as saídas para os
impasses da formação de um Estado Nacional e da definição de uma identidade pelas
perguntas: quem somos nós? que é a Alemanha? O drama musical, expresso na obra de
Richard Wagner, dá o tom desse momento histórico, pela introdução de uma
dramaticidade acentuada na melodia musical, rompendo com a modulação romântica de
muitas composições do séc. XIX.2 O desvendamento do drama barroco alemão estava
2
Em Tannhäuser temos a expressão estética dos impasses políticos e culturais da Alemanha,
através de uma melodia que passa do recitativo a ária por meio de algumas modulações, com o
uso acentuado da tuba, instrumento que imprime uma sonoridade forte, contundente, anunciadora
de uma saga, de um tom épico. WAGNER, Richard. The Best of Richard Wagner. São Paulo:
40
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
as declarações destes demonstram não só que as reformas de
Paris haviam sido bem compreendidas, mas também que as
reformas subsequentes em Viena, Antuérpia, Lisboa, Bruxelas e
Buenos Aires eram do conhecimento dos engenheiros brasileiros,
encarregados das reformas no Rio. 7
afetar o modo de vida dos homens, interferindo na construção da identidade cultural dos
grupos sociais que, até então, não estavam incorporados ao ritmo dos maquinismos e
da velocidade. As sanções políticas para a nova ordem moderna na transição do
“oitocentos” para o “novecentos” advêm das democracias liberais, postas em cheque
pela I Grande Guerra Mundial (1914-1919) e pela Revolução Russa de 1917, colocando
em evidência o desafio e os desejos dos novos tempos.5
Essa nova ordem moderna, no entanto, foi responsável por um aspecto
que consideramos de fundamental importância: o deslocamento da noção de espaço e
tempo.
Tanto na Europa quanto na América, as redefinições em torno do tempo,
no que dizem respeito às novidades, implantação e substituição dos “modernismos”,
impuseram a disciplinarização do mesmo pela presença assustadora e fascinante dos
novos emblemas da modernidade (prédios monumentais, instauração dos novos
maquinismos, dos relógios em lugares públicos, ferrovias, como também, a
apresentação do mecanismo estético produtor de imagens, o cinema), e, igualmente,
pelo processamento da “modernização”, a dinâmica do processo civilizador. Desde
então, houve o estabelecimento de uma convivência de tempos múltiplos, influenciando
o ritmo da vida material e simbólica dos homens nas grandes e pequenas cidades; no
campo;6 nas cidades do além-Atlântico; enfim, uma reorientação dos diferentes espaços
sociais que se incorporavam a esse novo mundo, territórios social e historicamente
construídos.
O Brasil, no final do século XIX e o início do século XX, conheceu essas
mudanças por meio de reordenamentos dos espaços urbanos em centros como São
Paulo, Rio de Janeiro, Recife, João Pessoa, Fortaleza, Manaus e outras. Dentro desse
processo, a feição das cidades, que eram marcadas por uma arquitetura pombalina casario conjugado, com uma porta e duas janelas, com telhado em dois planos - recebeu
a influência do neo-clássico europeu, como também, do processo cultural mais amplo
que teve conseqüências no modo de pensar e de agir dos indivíduos. Se esse processo
não é tão intenso como o da Europa, não podemos deixar de considerá-lo para análise e
compreensão.
Quando em 1915 Villa Lobos apresentava o primeiro concerto de suas
obras, iniciando o modernismo musical brasileiro, a cidade do Rio de Janeiro já
conhecia a sua remodelação urbana através das reformas de Pereira Passos (1903-1906).
Segundo Jeffrey D. Needell, documentos dos engenheiros e publicações da época
confirmam a influência de planejadores europeus na cidade do Rio, visto que
Ao lado do Rio de Janeiro, cidades como Recife, Fortaleza e João Pessoa
ganhavam ares de renovação. Essas cidades almejavam atingir a civilização por meio de
mudanças concretas, de acordo com os atualizados padrões europeus. Em Recife, desde
o final do século XIX, os pólos do velho e do novo se enfrentavam pelo reordenamento
da cidade, através da instauração de um discurso em torno do moderno, elaborado por
suas elites, a partir de um quadro de referência a uma ordem. Nesse sentido, segundo
Antônio Paulo Rezende, o discurso da modernização contagiava o poder público: “Na
mensagem encaminhada pelo governador pernambucano Manoel Borba em 6/3/1919
existem vários desses registros que anunciaram a necessidade e o desejo de
modernização.” 8
Em Fortaleza, as disposições contidas nos códigos de posturas
municipais, que se seguiram ao de 1865 exigiam o arejamento e a limpeza de armazéns
de couros e peixes, gêneros que infectavam facilmente o ar. Segundo Sebastião Rogério
Ponte,
As disposições contidas nos códigos de posturas municipais, que
se seguiram, são numerosas e demonstram ampla vontade de
esquadrinhamento urbano. Elas intentavam uma fiscalização
pormenorizada de ruas, casas, edificações, produtos, gêneros
alimentícios, oficinas etc. 9
Por sua vez, a Cidade da Parahyba do Norte (João Pessoa) absorvia,
processualmente, esse clima de mudanças. Na segunda metade do século XIX, a cidade
importava produtos raros e exóticos, incorporando gostos e hábitos de consumo. No
triênio 1853-1854; 1854-1855; 1855-1856, dentre as mercadorias importadas, as que
representavam maiores valores constam do seguinte resumo, conforme TABELA 01. 10
7
NEEDELL, J. D. Belle Époque Tropical: Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na
virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 55.
8
REZENDE, Antônio Paulo de Morais. (Des)Encantos Modernos: histórias da cidade do
Recife na década de vinte. Tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de História,
área de História Social, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, sob a orientação da Profª. Drª. Maria de Lourdes Janotti, São Paulo, 1992, p. 19.
9
PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque; Reformas Urbanas e Controle Social
(1860-1930). Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1993, p. 81.
10
RELATÓRIO DOS PRESIDENTES DE PROVÍNCIA. Exposição feita por Antônio Coêlho de
Sá e Albuquerque na qualidade de Presidente da Província da Parahyba do Norte no ato de passar
5
EKSTEINS, Modris. A Sagração da Primavera. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
Em “O Campo e a Cidade - na história e na literatura”, Raymond Williams elabora uma sólida
discussão sobre a relação campo-cidade: a ausência de uma relação de identidade; história e
literatura em perspectiva da Velha Inglaterra; a perspectiva do “bucólico” na transição do
mundo feudal para o burguês; na agudização do conflito social campo-cidade a construção de
uma “ética do melhoramento” etc. WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: na história e
na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
6
41
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Todavia a precária salubridade pública na Cidade da Parahyba do Norte,
na segunda metade do século XIX, com suas epidemias de “bexiga”, “febre amarela”
e “ cholera morbus”, era reveladora dos limites dessa modernização, limitando-se as
iniciativas públicas a construir alguns poucos calçamentos, como os das ruas do
Sanhauá e do Quartel da Polícia, que eram aquelas que davam entrada aos gêneros da
Província. Em 1850, duas obras públicas de “summa utilidade” se deram iniciadas nesta
cidade, sendo uma a Cadeia Pública, e a outra o Theatro, visto que a casa que servia
como cadeia era de 1700.
Enchadas
Farinha de trigo
Ferragens diversas
Ferro em trem de cosinha
Folhas em flandres em
obras
Genebra
Lenços de diversos tecidos
Linhas diversas
Lonas
Louça diversa
Luvas
Madapolão
Manteiga
Manufaturas
e
tecidos
diversos
Meias
Metim
Objetos diversos
Panno de algodão e de lan
Papel
Pentes
Polvora
Quinquilharias diversas
Rendas
Riscados diversos
Roupa feita
Sarjas
Setins e seus pertences
Setins
Taboado diverso
Velas
Vidros diversos
Vinagre
Vinhos diversos
Etc
TABELA 01
Azeite de Oliveira
Bacalháo
Baêtas e Baetões
Banha ou unto de porco.
Bebidas espirituosas
Bezerros preparados
e envernizados
Bolachas
Brins diversos
Calçados
Carnes seccas e salgadas
Casemiras e cassinêtas
Cassas diversas
Cera em bruto e em velas
Cerveja
Chá.....
Chales de diversos tecidos....
Chapeos e chapeos de sol
Chitas
Cobre em folha e em chapa
Cortes de vestidos de
diversos tecidos
Drogas diversas
1853-1854
$
49:560$000
$
$
2:275$374
5:220$000
1854-1855
$
53:250$000
$
$
2:130$150
5:542$500
1855-1856
1:504$467
88:143$000
5:738$012
1:126$400
$
3:871$600
$
19:318$380
$
34:610$700
$
$
$
$
4:776$250
15:201$694
$
226:086$616
$
$
$
23:239$154
$
25:413$880
$
$
3:065$800
$
5:844$720
13: 87$030
$
185:158$600
$
$
2:465$960
16:321$040
1:306$080
11:981$200
16:388$433
11:261$052
$
2:780$920
6:347$900
14:639$932
24:960$070
113:573$874
1:119$560
17:481$250
2:574$678
2:872$368
5:499$874
a administração da Província ao Segundo Vice-Presidente, Flavio Clementino da Silva Freire em
29 de Abril de 1853. I ROLO de microfilme. Campus I, UFPB – CCHLA, NDIHR (Núcleo de
Documentação e Informação em História Regional), Bloco da Central de Aulas.
42
$
29:744$000
9:172$956
$
1:309$000
$
30:084$000
7:299$620
$
$
7:006$720
66:165$020
1:631$630
2:288$320
$
$
3:180$380
$
$
2:850$000
$
31:266$754
9:113$280
103:102$867
$
1:039$071
$
$
3:050$000
$
40:794$490
7:017$600
86:903$385
5:277$090
1:270$300
3:247$956
2:110$000
15:555$508
4:031$000
101:403$558
27:463$588
30:687$250
$
$
$
13:280$960
5:794$390
$
2:800$000
4:895$000
$
6:805$100
$
$
1:720$000
$
1:430$000
$
2:832$000
1:200$000
19:534$500
etc
$
$
$
26:642$560
5:714$600
$
2:104$180
1:865$300
$
19:533$810
$
$
$
$
1:008$000
$
$
2:924$400
27:780$680
etc.
2:375$820
2:100$000
2:174$135
101:076$419
4:523$970
1:158$910
1:559$900
10:230$231
9:091$500
$
4:730$000
7:039$605
$
4:419$270
$
4:336$500
1:343$600
3:204$800
28:930$400
etc.
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
construcção de uma estrada, que principiando n’esta Capital vá
terminar, por ora, na Cidade d’Arêa, tendo de futuro de
continuaar pelo interior de toda a Provincia, e seguir pelo interior
da do Ceará, será um melhoramento da mais alta importancia, da
mais manifesta utilidade publica.” 12 (Negritos nossos)
Em 1853, o Comendador Frederico de Almeida e Albuquerque - 1º. Vice-Presidente da
Província - relatava o estado de pacificação da mesma, de estabilidade da ordem
pública, ponto de entrada de uma ordem social para a civilização.
... a Provincia se acha em paz; que a ordem publica nenhuma
alteração há soffrido. Os Parahybanos, como todos os Brazileiros,
sabem por experiencia, que a paz é a primeira condição da
felicidade social: o conhecimento d’esta verdade tão importante,
sendo um grande passo dado na carreira da civilisação, nos
garante a consolidação da ordem publica. 11 (Negrito nosso.)
Por esse tempo, as cidades do Alto Sertão Paraibano apresentavam outra
visualização. Durante a maior parte do tempo, na transição do “oitocentos” para o
“novecentos”, diversos núcleos urbanos da Província da Parahyba do Norte foram
pequenos povoados, obtendo sucessivamente os títulos de “vila” e “cidade”. Onde
buscar essas visualizações? Entendemos que as fontes orais nos fornecem um vasto
campo de trabalho. Através dessas vemos desenhado o quadro mental de uma época, o
imaginário social de um tempo histórico, o quadro de constituição da identidade dos
habitantes, a memória dos grupos - a memória social - como também, uma memória
histórica, às vezes cristalizada, por vezes em constante reelaboração.
Portanto, vamos, a seguir, tentar dominar o “locus” do fato urbano,
detectar as reminiscências de materialidade da cidade, buscar a aura urbana, contando
com alguns pontos de apoio, aspectos, evidências, “mônadas” (método benjaminano)
que nos permitam imaginar o que a cidade foi nas décadas de vinte e trinta, recorrendo,
sobretudo, às fontes orais. Acima de tudo, buscaremos respostas para o seguinte
problema de pesquisa:
Sabedores de que as cidades estão sempre em movimento, incorporando
um ritmo, uma determinada velocidade nas mudanças, como podemos situar a gênese e
o grau de urbanização da cidade de Cajazeiras, cidade do alto Sertão Paraibano? Quais
as imagens definidoras da fisionomia dessa cidade em seu movimento de construção da
urbanização? Estariam essas imagens associadas ao tradicional ou, ao moderno? Essas
imagens trariam à tona a tensão entre esses campos? Além dos fatores econômicos
(criatório de gado e produção algodoeira) que forneceram condições de investimento na
cidade, quais as diversas evidências, os diversos fragmentos, os emblemas, as
representações, que compuseram a feição sócio-cultural do fenômeno urbano nesse
núcleo? Em que medida se instalaram em Cajazeiras os mitos fundadores da
modernidade (bem-estar, progresso, modernismos) modificadores da relação entre o
real e o imaginário no espaço de vivência dos habitantes? Esses mitos foram criados?
Se foram, chegariam através de algumas “formas” culturais? Enfim, qual a fisionomia
sócio-cultural do fato urbano da cidade de Cajazeiras nas décadas de vinte e trinta e
como ocorreu a configuração de suas imagens?
Ora, os ecos da Praieira em Pernambuco já não eram mais ouvidos na
Paraíba, fato que fez com que os governantes voltassem sua atenção para os
melhoramentos de vias de comunicação terrestre e por mar, objetivando a prosperidade
da Província.
A utilidade dos melhoramentos das vias de comunicação e
transporte, sua influencia real e positiva na prosperidade das
Nações, é no século em que vivemos, um axioma. Nesta Provincia
ainda se não incetarão os melhoramentos d’esta ordem, os quaes
de certo se não poderão promover, em quanto se não
encorporarem companhias, que emprehendão a construcção de
estradas: nem as rendas publicas podem ministrar os avultados
Capitaes necessarios para se levarem a effeito emprezas tão
dispendiosas; e quando assim não fosse, não conviria que o
Governo tomasse a seu cargo taes melhoramentos, visto que a
experiencia nos ensina que nas obras e trabalhos dirigidos
directamente pelos Governos encontrão-se ordinariamente dous
poderosos inimigos a negligencia, e o peculato, que tudo
transtormão. Si por hora não é rasoavel que aspiremos ás
comunicações e transportes n’esta Provincia por meio de carros
a vapor, ao menos em quanto nas Provincias mais ricas e
populosas se não mostrar practicamente a possibilidade e
exequibilidade de tão importantes melhoramentos; não é para
mim duvidoso que podemos emprehender algumas estradas com
trilhos de ferro, sendo os carros conduzidos por animaes, o que
tornará as communicações e transportes muito mais rapidos e
menos dispendiosos do que as que temos actualmente. A
incorporação pois de uma companhia, que emprehenda a
11
Relatórios dos Presidentes de Província da Parahyba do Norte. Exposição feita pelo VicePresidente da Província da Parahyba, o Comendador Frederico de Almeida e Albuquerque no
ato de passar a administração da Província ao Presidente Capistrano Bandeira de Mello, em 28
de outubro de 1853, p 2. I rolo de microfilme. Campus I, UFPB - CCHLA. NDIHR (Núcleo de
Documentação e Informação em História Regional)
12
43
Ibidem, p. 07.
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Ele tinha uma maquininha de ferro onde hoje é a casa do Dr.
Deusdedit. Ali era o vapor velho, que descaroçava algodão. Eu
imprensei algodão muito, no vapor, numa prensa.(...) Era muita
gente que trabaiava aqui, não é. Ajuntei muito algodão em casca,
com costa de burro, pro motor também. (046-055, A)2
EM BUSCA DO “TEMPO PERDIDO”:
A VISUALIZAÇÃO FORNECIDA PELO TRABALHO
COM AS FONTES ORAIS
A década de vinte em Cajazeiras foi marcada por modificações
significativas em sua vida material e cultural. Desde sua criação, na segunda metade do
século XIX, em torno de um colégio de instrução primária, fundada pelo Padre Inácio
Rolim,13 e do crescimento de seu casario ,propiciado pela instauração das primeiras
feiras, o núcleo urbano de Cajazeiras obteve um ritmo de desenvolvimento considerável
relacionando-se com áreas circunvizinhas como Souza, Pombal, algumas cidades do
Ceará e do Rio Grande do Norte ,estabelecendo os primeiros vínculos de comércio.
Entretanto o estímulo de desenvolvimento para essa área urbana resultou
do cultivo e comércio do algodão e do investimento dos recursos daí provenientes,
melhorando as condições materiais da cidade. Esse “fator de crescimento” está presente
não só em registros escritos, mas enfatizado pelo depoimento de habitantes que viveram
os anos “vinte” e “trinta” nessa cidade, expressando por meio de suas experiências
individuais uma visão particular que nos fornece um tom de aceitação em torno desse
fato, um tom de generalização.
O conhecimento do trabalho, exigido pelo plantio do algodão, que
abrangia a limpeza do campo para o plantio, o cultivo, e a coleta do mesmo, com o
extensivo envio do produto à bolandeira, imprimia a marca do cotidiano, acentuado
pelo esforço físico no trato dessa cultura. A vida de seu Álvaro era de reclusão ao
trabalho no “sítio”: “A vida era trabaiá o dia todo e outros, iam sambiar de noite.”
(234, A) Sua atividade como empregado do Cel. Sabino Rolim também incluía o trato
com o gado, na vacaria, uma atividade que exigia sua dedicação e abnegação: “Quem
trabaia com o gado, sabe como é, não é? ... dava dois mil réis por semana, a custa da
casa. Trabaiei muito aqui!” (079-085, A).
Dessa forma, seu Álvaro participava da vida cotidiana14 de Cajazeiras,
“trabalhando”, fato esse que é provido de significação para o depoente, visto que é
reiterado várias vezes na entrevista. Através de sua inserção em um espaço definido, por
meio de sua localização social, o seu agir era configurado por uma historicidade
intrínseca: a de um ator social que era absorvido pelo mundo do trabalho, deslocando-se
do “sítio” para sua casa, na periferia da cidade. “Eu não ia a estação. Eu não tinha
tempo. Quem trabaia com o gado, sabe como é, não é?” (079, A)
O contacto restrito apenas às pessoas que trabalhavam no cultivo do
algodão e no trato com o gado, marcava a sua relação com os “habitantes” da cidade,
pela sua “exclusão”, definindo sua identidade e marcando sua argumentação sobre o
universo que o envolvia. Ele conhecia mais particularmente aqueles que desenvolviam
o trabalho no plantio ,como também ,no comércio local de algodão. É sabido que o
comércio desse produto obteve um rústico beneficiamento através da “descaroçadeira”,
utilizada, inicialmente, pelo Cel. Joaquim Peba, quando o algodão era transportado em
lombo de burro, por “tropas-de-burro”, até Mossoró e, de igual forma, para Campina
Grande, onde era finalmente comercializado.
- Conheceu o cel. Peba ?
ORALIDADE E CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA
“ O algodão era, como se diz, a flor da cidade. A flor da cidade era o
algodão.”
“ A vida era trabalhar o dia todo e outros, iam sambiar de noite.”
“Só do recolhimento de Galdino Pires dava prá pagar o funcionalismo e a gente ainda
mandava o resto para o Tesouro do Estado”.
O ano de 1924 foi marcante para a vida do Sr. Álvaro Joaquim
Gonçalves. Nascido em Alagoas - localidade de Pão-de-Açúcar, às margens do Rio São
Francisco, no ano de 1903 - parte para Cajazeiras num momento difícil de sua história
pessoal, visto que a localidade de Pedras, “do finado Delmiro Gouvêa”, onde residia
por aquele tempo, sofria em decorrência da seca. A informação que chega até ao mesmo
e aos seus de que estavam construindo os açudes de Boqueirão e Pilões alimenta as
esperanças do grupo que, percorrendo trilhas e veredas, chegam até a cidade. Na
chegada à mesma emprega-se, de imediato, com o Cel. Sabino Rolim, desistindo de
trabalhar como “cassaco” na construção dos açudes.
2
As referências que aparecem logo após as falas dos entreveistados indicam a fita cassette onde
foram gravadas as entrevistas, ou seja, essas letras e números – (097, A); (125-128, B) – dizem
respeito aos lados A e B das fitascassete gravadas com os depoentes e, respectivamente, aos
intervalos de fala capturados no display do gravador que processa o andamento do tempo da
entrevista.
14
“ Que sentido tem, portanto, indagar-se qual é o sentido da vida de cada dia ? O fato de se fazer
tal indagação nos fará encontrar um caminho para revelar a essência da vida cotidiana? Quando é
que a vida de todo dia se torna problemática e qual o sentido que se desvenda ao problematizarse?” KOSIL, Karel. Dialética do concreto, 4. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 69.
13
PIRES, Heliodoro (Pe). Padre Mestre Inácio Rolim : um trecho da colonização do Norte
brasileiro e o Padre Rolim, 2. ed., Teresina: Gráfica do Estado do Piauí, 1991, p. 43.
44
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Nessa época a flor da cidade era o algodão...Haviam muitos
compradores de algodão. Havia a fábrica de Galdino Pires, que
ainda hoje existe, não é a fábrica; para onde corria todo o
algodão da cidade era para lá. (...) A Coletoria Estadual se
chamava, na época, ‘Mesa de Renda’. Meu pai era escrivão da
‘Mesa de Renda’. (Dona Angelina Tavares, 370-381, B)
- Dimais! Finado Joaquim Peba era um vei da barriga cheia. Ele
era baixo. A propriedade dele era pegada com a de seu João
Batista, aqui, era. Hoje é de Dr. Dulcídio. Ele morreu ficou Dr.
Juca...
Nunca fui a Mossoró. Ajuntava o algodão, e o caroço para
descaroçar aqui, no motor.” (056-069, A)
Entretanto, seu Antônio Carolino de Abreu, 102 anos, relembra de
maneira pormenorizada essas viagens conduzindo animais de carga, viagens de mais de
uma semana, por dentro do mato, para cidades como Mossoró e Juazeiro do Norte.
Eu viajava! Dei vinte e uma viagens daqui pro Mosssoró: vinte
com algodão e couro de gado e de bode, de ovelha e uma, foi com
rapadura, pro Major Andrade dali da Picada (...) A base era
quinze, dezesseis dias, botando arriba, duas vezes por dia, a carga
de algodão, ou de couro de bode; botando de manhã, botava
abaixo 11 hs ou 10; botava arriba 1 hora da tarde, botava abaixo
5 horas pra 6. E era desse jeito!15
A riqueza, daí decorrente, circulava pela cidade, estimulando a chegada
de novas pessoas e o esquadrinhamento dessa através de muitas casas comerciais, com
o conseqüente embelezamento da área urbana. Na esteira desse movimento, chegavam
as novidades provenientes de Recife, João Pessoa e Fortaleza, e, por extensão, o
anúncio de novos tempos. Além da riqueza proveniente do algodão, alguns outros
fatores contribuíram para fazer chegar e circular dinheiro em Cajazeiras. Em 1921, um
cronista16 relata a chegada da “Dwight P. Robinson”, firma norte-americana que veio
iniciar a construção dos açudes do IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas)
de Boqueirão e Pilões, próximos à cidade, trazendo, assim, um grupo de estrangeiros
que vão difundir novos hábitos e gostos na mesma, organizando campeonatos de
futebol, circulando com seus automóveis, tomando suas cervejas que chegavam ao
porto de Fortaleza, sendo trazidas por trem até Cajazeiras. Dessa forma, ao dinheiro das
safras favoráveis de algodão, somava-se o dinheiro da Inspetoria e dos americanos,
trazendo ares modernos à cidade, movimentando as casas comerciais: “A Vencedora,
era de Pedro Bezerra.” (Dona Angelina, 095, A)
Além disso, outro elemento que movimenta a década de 20 em Cajazeiras
é a chegada da ferrovia. O trem dinamiza o cotidiano da cidade, visto que é através dele
que os habitantes passam a receber a influência de pessoas, de idéias, e das novidades
das capitais mais próximas. Acresce a isso a opção que os cajazeirenses têm de
contactar com o “celeiro da cultura”, como nos fala o cronista, a cidade de Fortaleza. A
partir daí fica patente a circulação em ritmo mais veloz de mercadorias, incrementando
a atividade comercial e, de igual forma, de idéias. Nesse momento jornais passam a
ser produzidos em Cajazeiras e anunciam através de suas propagandas estes
modernismos:
Muitos foram aqueles que participaram dessas empreitadas com o
algodão sertão adentro, resultando daí o desenvolvimento do perfil material da cidade,
gerando circulação de dinheiro e o estabelecimento e desenvolvimento de casas de
comércio e da mellhoria do beneficiamento dessa cultura com a instalação da Usina
Santa Cecília. Como conseqüência, o algodão gerenciado por pessoas como Cel.
Joaquim Peba, Cel. Sabino Rolim e o Major Galdino Pires trouxe à cidade ares de
progresso, estimulou alterações na feição urbana. As feiras, que eram realizadas desde o
século XIX na pequena “urbe”, nos períodos de safra do algodão, foram acompanhadas
de animação e desenvolvimento. Com o algodão, a riqueza chegava a Cajazeiras,
definitivamente:
- Me fale mais um pouquinho sobre os anos do algodão. Os anos
em que a senhora sentiu que a cidade começou a florescer.
- Eu senti era quando era de Major Galdino, de Major Galdino
Pires, porqüê tanto era rico Major Galdino como os filhos. A
riquezona era, só se falava era na Usina. (Dona Maria Simplício,
565 - B)
Clovis S. Moraes Rego - Cirurgiao dentista
Executa todos os trabalhos concernentes a sua profissão pelos mais odiernos methodos
americanos
Preços modicos ao alcance de todos
Consultório - rua 7 de Setembro
Consultas das 8 ás 11 e das 2 ás 4
Decorre então um momento de transição na cidade onde o velho passa a
conviver com o novo, o tradicional passa a conviver com o moderno. A década de vinte
e o desenrolar dos anos trinta foram marcados pelo desenvolvimento econômico
proveniente dessa “flor”:
15
CAROLINO, Antônio. Comunicação. Cajazeiras, ago. 1996. Entrevista concedida à Rádio
Difusora de Cajazeiras.
16
45
COSTA, Antônio Assis. A(s) Cajazeiras que eu vi e onde vivi. João Pessoa: Progresso, 1986.
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Boanerges Maciel, aberto há poucos dias nesta cidade, num dos bairros mais aprazíveis defronte da casa do Cel. Peba.
Encontrareis ahi todo o conforto necessario a uma casa desse genero.
Todos ao Internacional
Dr. J.J. Almeida - MEDICO, formado pela Universidade do Rio de Janeiro
Especialidades: partos, cirurgias, molestas internas
Tratamento moderno da syphiles e da ankylostomiase
Atende a chamados para dentro e fóra da cidade, a qualquer hora do dia e da noite.
Consultório: Rua 7 de Setembro n.16 - das 8 às 11 da manhã e de 1ás 3 da tarde
Residencia - Rua Cel. Victal, n.3
Cajazeiras, Parahyba
J . Mattos & Cia.
• mais completo e variado sortimento de fazendas, miudezas, ferragens, chapéos,
calçados, estivas. Especialidade em artigos finos e novidades. Compradores de
algodão de comissão e conta propria em larga escala. Proprietário da “Usina
Santa Cecília”, de beneficiamento de algodão em fardos de 140 a 200 kilos.
• sub-agente da “Anglo-Mexican Petroleum Cia. Ltda.” E sub-agente da Comp.
Aliança da Bahia. Encarregam-se de cobrança de saques.
Quer vestir bem e barato ?
Va à Alfaiataria Freire
REI DO NORDESTE
A melhor farinha de trigo que se vende no Brasil
Deposito permanente na casa de Lucas Moreira
Sendo o preço actual da sacca 60$000
Soffreis dos olhos ? usae a OFTHALMINA DE MOÉSIA
O mais poderoso remedio para o tratamento de molestias de olhos, taes como:
trachoma opthalmia, belidas da cornea, blepharitis, espasmo das palpebras,
lagrimação, queimadura pelacal, ectropion, o humor expresso e glutinoso que se
accumula em roda das palpebras, fistulas lagrimaes, tomores, chimosis, relaxação
das palpebras, queda das pestanas, inflamações produzidas por corpos extranhos,
constipação, ferimentos de qualquer natureza, como estrepadas, contusões, etc.
Como remedio veterinario, é o melhor para todas as molestias dos animaes, quer
espontaneas, quer traumaticas.
Ler com atenção o prospecto que acompanha cada vidro
DEPOSITO:
Pharmacia Hygino Rolim
do pharmaceutico chimico
CHRISTIANO CARTAXO ROLIM
Pharmacia Confiança do Pharmaceutico Aprígio Sá
Mantém constantemente grande deposito das mais afamadas especialidades
pharmaceuticas nacionais e estrangeiras. Completo e aperfeiçoado serviço de
manipulação, podendo aviar qualquer receituario no menor espaço de tempo possivel.
Abre-se a qualquer hora da noite.
Modicidade e uniformidade de preços para todos
Rua Vidal de Negreiros n. 2
Cajaseiras
Parahyba
CASA ESTRELLA de Marcolino Perreira Diniz
Neste acreditado estabelecimento, encontra-se um completo e variado sortimento de
FAZENDAS, MIUDEZAS, PERFUMARIAS,
CALÇADOS, LOUÇAS, VIDROS e objetos para presentes.
Vendas a preços redusidissimos, não teme competência
Vêr para Crêr
Faça V. Excia. uma visita a casa Estrella e será recebido com a mais delicada atenção.
A venda na PHARMACIA JULIANA
Praça José de Alencar n.117
Ceará - Fortaleza
Como podemos observar, a cidade vive em novos tempos, tendo os seus
habitantes conhecimento deste perfil que ganhava a cidade. Na rua Padre José Tomaz, a
loja do seu Sousinha vendia enlatados, conservas, vinhos e conhaques finos. A agência
de Correios, na esquina da rua Padre Tomaz com a rua Padre Rolim, recebia anúncios
de casas comerciais de localidades vizinhas e até de Fortaleza, como vemos pela última
propaganda, através de “endereços telegraphicos”.
Hotel Internacional
Quereis ser bem tratado? Quereis comer bem e dormir bem? Gostaes de hygiene e
asseio? - Procurae sem perda de tempo o “Hotel Internacional”, de propriedade de
46
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
As feiras movimentavam-se na época da safra do algodão, trazendo
animação e progresso. Em 1925, por três meses, houve uma alta espetacular no preço do
algodão. Alguns poucos automóveis foram comprados pelos maquinistas, gerenciadores
do produto. A cidade agitava-se aos finais de semana com o campeonato de times de
futebol, cujos regulamentos eram importados da Inglaterra. Em 1928 surge a Liga
desportiva Cajazeirense.
O saneamento da cidade ainda era incipiente, sendo a coleta de lixo feita
por uma carroça, puxada por um boi. Todavia os perigos de epidemias graves que
assolaram a cidade na década inicial do século, como a gripe bailarina em 1918, já
estavam afastados. O governo municipal de Justino Bezerra e do Coronel Sabino Rolim
já recebiam verbas do governo central, podendo investir no embelezamento da área
urbana. A cidade, por outro lado, discutia os seus problemas, como o da insalubridade
de algumas áreas - áreas estas que podem contaminar o ar com miasmas - o uso da
jogatina e a recepção das novas idéias, como noticiam os Jornais Rio do Peixe, O
Rebate e o Patria Jornal, todos de produção e circulação local:
Urgem, portanto, efficazes providencias no sentido de
promover os meios de pôr em pratica a extinção de tão pavorosa
fonte de emanações miasmáticas, uma das causas determinantes
de muitos obitos occasionados prematuramente nesta cidade.
(Negrito nosso)
LUZ ELÉTRICA
Consta que se acham bastante adiantadas as negociações do
sr. Prefeito, com um electricista que se encontra, actualmente,
entre nós, attinentes a um contracto de installação completa para
illuminação, a luz electra, da nossa estremecida cidade.
Merece os nossos mais francos e calorosos applausos, esse
gesto de benemerencia do sr. Prefeito, procurando levar a effeito
um dos melhoramentos de que mais necessitamos satisfazendo,
desta maneira, ás mais ávidas aspirações do nosso povo, que
deseja ver Cajaseiras dotada de tudo que faz jús, afim de
conquistar o lugar de destaque, que lhe está reservado entre as
mais adiantadas cidades deste Estado e dos limitrophes.
PÂNTANO
Segundo a opinião de grandes summidades medicas, pantano é
um terreno inundado d’água estagnada, que serve de veículo a
substâncias vegetaes e animaes em estado de putrefação ,cuja
ação deleteria, diffundindo-se no ambiente, torna-o um foco
funestissimo de febres perniciosas, contra as quaes, muitas vezes,
são improfícuos todos os recursos da sciencia de Hippocrates.
Os efeitos dos pantanos, foram reconhecidos desde tempos
immemoriaes, razão por que sempre foram objecto dos mais
acurados estudos e da mais solicita attenção dos poderes
publicos, não só no tocante á extincção dos mesmos, como no que
diz respeito á divulgação das medidas prophylacticas contra os
seus maleficos effeitos.
Essas salutares providências dos governos, foram de tal fórma
comprehendidas pelo povo, que, actualmente, não vemos um só
pantano, nem mesmo nas imediações dos mais atrazados
logarêjos do interior dos nossos Estados.
Eis por que estranhamos, com estupefacção, a estabilidade de
um mortífero pantano quasi no centro da cidade, alimentando
cotidianamente pelas aguas retiradas do nosso < Açude Grande
> , para lavagem de roupa do lado de fóra do sangradouro do
mesmo, actualmente transformado em Lavanderia Pública,
apesar de já se achar circundado de habitações de um punhado
de cajaseirenses, cujas vidas estão em perigo imminente !
GABINETE DE LEITURA
Um Gabinete de Leitura aqui, em Cajaseiras, daria mais um
grande impulso ao nosso desenvolvimento moral e intelectual.
Ousamos suscitar, em nossas colucnas essa idéa, porque faz
parte do nosso programa, interpretes que somos, da opinião
pública, desviarmos, sempre, as vistas indiffrentes dos nossos
homens para as grandes realisações.
(....)
Com um pouco de coragem e bôa vontade, dotariamos, em
breve, Cajaseiras de mais esse melhoramento, de mais esse lugar
de educação para o nosso povo e para tantos de nossos moços
avidos de instrucção e de saber.
Quanto aos livros, ás revistas e outras cousas mais, poderemos
angariar entre nós mesmos, ou mandaremos buscar na capital do
nosso Estado, ou em Fortaleza. 17
17
PATRIA-JORNAL. Orgam Independente e Noticioso. Redator: Julio Moesia Rolim, estado da
Parahyba, End. Telegraphico:...”PATRIA”; ANNO I, Cajazeiras, 24 de novembro de 1923.
Numero 2.
47
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
- Os jornais não eram pra todo mundo não. Só pras pesssoas
que faziam aquele contato com ele. (Dona Maria Simplício, 375 A)
- O Centro de Cajazeiras nessa época era deste tamanhim,
piquininhim. Tinha aquela igrejinha do Coração de Jesus, tinha
aquela pracinha ali e o resto, do lado da estação era mato. (Seu
Álvaro, 112-A)
- Até José Américo dizia que Cajazeiras era uma cidade que
tinha ares de Capital. (Dona Marilda Sobreira, 382-A)
- O comércio não valia nada não. Era uma coisinha assim à
toa, por muito tempo: sacaria, bodeguinha, coisinha pouca. (Seu
Álvaro, 134-A)
- ... de forma que o Comércio era muito movimentado na
época. As ruas eram movimentadas. A educação era muito
procurada. (Dona Angelina, 181-A)
- Veio a ferrovia, o comércio foi melhorando, as costureiras
foram ficando mais atualizadas. Os vestidos vinham da Capital,
vinham de Fortaleza... (Dona Angelina, 280 – A )
- Olhe, nós, eu fazia serenata do sábado para o domingo nas
noites enluaradas acompanhado de Dimas Sobreira Andreolla e
Cícero mucuinho (violonista) .... e houve uma moça que chorou
quando em cantei um samba.(...) Eu gostaria de voltar àquele
tempo. Porque a vida só é boa quando a gente vive as primeiras
ilusões. (Major Chiquinho,198-242-A)
A JOGATINA
Há dias vem o vibrante confrade <O Rio do Peixe> oppondo
tenaz campanha á jogatina, no que tem merecido os nossos
applausos de mistura com os da população desta terra.
Creio que no desempenho desse desideratum os collegas não
tem sabido evitar reiteradas referencias nada lisongeiras á pessoa
e autoridade do nosso militar capitão Viégas, victima eté de
aleives que conduzem em si injustiças directas à sua vida pública
e privada.
(...)
Portanto achamos descabida a atitude dos colegas,
reconhecendo os deserviços que o capitão Viégas vem prestando
ao governo; e eis porque acordamos aturdidos de somno, com
grande surpresa para os confrades d’<O Rio do Peixe>.18
Como vemos, a cidade de Cajazeiras na década de vinte é tecida por
discursos, por idéias, por um tom desiderativo dos habitantes que concedem à aura
urbana, pelo cruzamento de textos, de discursos, por meio da linguagem, uma
visualização da materialidade e da imagética de uma cidade que participa dos novos
tempos, dos tempos modernos, ganhando foros de modernização, introjetando
modernismos.
Entretanto, na construção de uma memória da cidade, através da
oralidade de seus habitantes, encontramos o cruzamento de vários dados diferenciais
que consideramos de fundamental importância para a construção do imaginário, das
mentalidades e das representações sobre a realidade.
Pela fala dos depoentes, encontramos rupturas, relações diferenciais que
advêm da forma pela qual o passado e o presente foram introjetados por cada um,
através de ritmos intra-subjetivos (orgânicos, fisiológicos, perceptivos, afetivos e
imaginativos) e intersubjetivos – que diz respeito à comunicação entre os sujeitos no
meio social - mostrando como cada depoente elabora ,como nos fala Hawbachs, um
“ponto de vista sobre a memória coletiva”. 19
- Aquele povo se entusiasmou muito pelo Jornal. Aliás,
Cajazeiras foi uma cidade onde o povo sempre gostou muito de
ler. (Dona Marilda Sobreira, 365-A)
A construção da história pela memória oral exige uma reflexão teórica e
metodológica em torno da memória, visto que a mesma, por estar fundada no ato
individual de lembrar não é a prova do real, ou, uma realidade em si mesma. A
memória individual é uma constante interação entre níveis intra-subjetivos e
intersubjeitvos, expressos na relação de cada indivíduo com seu grupo e a comunidade
ou sociedade envolvente, marcados pelos tempos passado e presente, presente e
passado. Os extratos de fala selecionados acima, por nossa pesquisa, é um exemplo
disso. Eles são reveladores de contradições sobre a descrição material e cultural da
cidade.
No entanto, não podemos dizer que os relatos não são verídicos. O que
colocamos para esclarecimento da discussão, que estamos travando, é o legado de
alguns pensadores que refletiram suficientemente sobre “o ato de lembrar” como o
neurologista e filósofo Henri Bergson,20 Julien Freud, 21 Maurice Halbwachs 22 e Walter
18
O REBATE, 16 de janeiro de 1926, n.30. (Sobre a polêmica da JOGATINA e sua extinção.)
“Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo
muda segundo as relações que mantenho com outros meios. (....) Mas por conteúdo do espírito é
preciso entender todos os elementos que assinalam suas relações com os diversos meios. Um
estado pessoal revela assim a complexidade da combinação de onde saiu.” HAUBWACHS,
Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990, p. 51.
19
20
O fenômeno da memória em Bergson prescinde de um esclarecimento sobre os termos em que
se desenvolvem, na vida psicológica do indivíduo, o fenômeno da percepção, da ação, das
lembranças e do corpo. Operado através de um mecanismo sensório-motor as imagens são
produzidas no indivíduo. O tempo presente (ídeo-motor) apresenta as coisas aos homens e essas
48
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Benjamin.23 A memória está perpassada pela influência de múltiplos fragmentos que a
elaboram e a reelaboram.
O que está em questão para nós é o cuidado em não tornar a memória pela oralidade - um dado oral sobre a realidade, um dado pronto e acabado, fornecido
pela fala do depoente. Se pensarmos asssim a memória é reificação, não podendo ser
um vetor de construção do imaginário social e das represtações sociais, construindo a
liberdade do sujeito na história, um vetor de alteridade.
Portanto, entendemos que os depoimentos cruzam fragmentos os mais
diversos, expressando um potencial de sonho, de desejo, de imaginação e até de
utopia. Temos diante de nós, pela memória, a revelação de
um imaginário, um domínio cujo conjunto de fatos ultrapassa os
fatos diretamente experimentáveis, e de um conjunto de
representações sociais, que é uma instância intermediária entre
conceito e percepção, situando-se sobre as atitudes, informações e
imagens, instância esta moldada pela dimensão da comunicação
social e contribui de igual forma para essa comunicação.24
E ainda, a memória, assim perspectivada, é reveladora de nossa estrutura de
mentalidades.
Ao analisarmos os depoimentos acima, na busca de uma compreensão
desses quadros mentais, poderemos perceber as diferentes trajetórias sociais dos
depoentes e a maneira pela qual o vivido de cada um fixou as experiências de vida na
cidade, fazendo-os falar a partir de um lugar social.
Constatamos, pelos depoimentos dos habitantes, que o moderno
impactava o tradicional ou, com maior força, o tradicional impunha muitos limites ao
moderno, tudo isso, repetimos, se colocarmos o ponto-de-vista de cada habitante, como
um ponto-de-vista sobre a memória coletiva. A partir desse passo metodológico,
poderemos verificar como que a construção social do discurso está associada à
construção social da realidade.
Seu Álvaro era um agricultor que teve sua experiência de vida marcada
pela vida dura e pesada do campo. “Eu vivia no sítio. Agora, às vezes, quando eu ia
fazer um negócio, comprar uma camisa eu ia a cidade”. O ponto de confluência da
visão contraditória de seu Álvaro sobre o perfil material da cidade, diante da visão dos
outros, que também é contraditória sobre a recepção das novidades, como o acesso aos
jornais, à moda etc, é que seu Álvaro percorre uma trajetória social que o exclui da vida
cultural da cidade. Seu universo é a vida no sítio; tudo em volta dele é “mato”. A
narrativa dele é precisa sobre alguns acontecimentos como aqueles concernentes ao
algodão, mesmo que ele também seja excluído das decisões que envolvem a
comercialização do produto e aceite seu papel social. O que está em questão é que, para
ele, o processo civilizador, que a cidade está adquirindo, não significa nada, visto que
ele não mantém sua identidade como habitante da cidade. Ele mantém sua identidade
com os trabalhadores do “sítio” que saem à noite para “sambiar”.
Quando Dona Marilda Sobreira, filha de um dos homens mais ricos da
cidade - o Major Epifânio Sobreira - nos fala: “Aquele povo se entusiasmou muito pelo
Jornal. Aliás, Cajazeiras, foi uma cidade onde o povo sempre gostou muito de ler” o
que entra em contradição pelo depoimento de Dona Maria Simplício “- “ Os jornais
coisas sofrem variações porqüê guardamos imagens passadas delas que podem ser reformuladas,
ou não. Portanto, para Bergson, “é em função de imagens e somente de imagens que devemos
colocar o problema.” BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo
com o espírito, Sâo Paulo: Martins Fontes, 1990.
21
Para Freud a memória, no indivíduo, depende fundamentalmente de um aparelho mental: o
aparelho psíquico. Este é um aparelho de linguagem e um aparelho de memória. A memória
desse aparelho é memória de linguagem ,de uma escritura. O sonho, deve ser entendido em
função desta dupla referência: memória e linguagem. Este aparelho de linguagem se forma aos
poucos, processualmente. Daí passam a perceber uma relação entre objetos e as representaçõespalavras (relação significante) que embasa a interpretação sobre o mundo. Quando significamos
as coisas possuimos impressões sobre elas que deixam traços inalteráveis. Daí Freud afirma que
possuímos traços e não, lembranças das coisas. Quando revisitamos estes traços, estas “marcas”,
a memória passa a ser construída através de novas “trilhas”, um processo que implica um
diferencial de valor entre caminhos possíveis. A memória é concebida com o poder de que uma
vivência tem de continuar produzindo efeitos. E esse poder depende de dois fatores: da ênfase da
impressão e da repetição dessa impressão. A impressão, por sua vez, só é conservada como
“traço” ou como “representação”. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia
Freudiana. São Paulo: Jorge Zahar, 1991, v. 2.
22
A formulação da teoria de Halbwachs sobre a memória coloca-se em contraposição à teoria de
Bergson. Para Halbwachs a memória - memória individual - está submetida a quadros sociais,
tornando-se impossível localizar o problema da evocação das lembranças somente no indivíduo e
sua auto-biografia, se não tomarmos os quadros reais de referência à reconstrução da memória
individual. HALBWACHS, Maurice, op. cit.
23
Para Walter Benjamin a memória apresenta-se como o “choque” por excelência do passado
com o presente. Nessa perspectiva, a memória não é “um resgate” do passado e sim, “uma
construção” fundada no presente. Para Benjamin é impossível “resgatar” o passado ,como um
depositário da memória individual. “ O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que,
no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade. Mas é por isso
que a compreendemos, e tanto melhor, quanto mais profundamente jaz em nós o esquecido.”
Portanto, “a memória é uma “construção”, construção essa interessada pelo tempo que é, por sua
vez, “uma sucessão de agoras”. Passado e futuro são demarcados a partir do presente.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II - Rua de Mão Única, 2. ed., São Paulo: Brasiliense,
s.d., p. 104-105.
24
NÓBREGA, Sheva Maia da. O que é Representação Social. Texto apresentado, inicialmente,
no curso de doutorado em Psicologia Social da École des Hautes Études em Sciences Sociales,
em Paris, para obtenção do título “Diplomé d’Etudes Approfondies”, sob a orientação do
professor Serge Moscovici. Tradução parcial, revisada e ampliada do trabalho intitulado “La
maladie mentale au Brésil: étude sur les représentations sociales de la folie par des sujects
internés à l’hôpital psychiatrique et leurs familes”. 1990, 77 p. Mimeografado.
49
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
não eram pra todo mundo não. Só pras pesssoas que faziam aquele contato com ele”,
podemos reter algumas visões que povoavam o imaginário social.
Os jornais, emblema exemplar da modernidade - a informação era
produzida em tipos gráficos e distribuída em grande quantidade , dando à informaçào
uma “velocidade” - eram exclusivos de uma “comunidade de leitores”. O que dá
suporte à narrativa de Dona Maria Simplício é a sua história de vida como pessoa de
poucas condições financeiras, filha de um marchante que trabalhava no mercado
público, portadora de uma escolaridade insuficiente, talvez inexistente, visto que ao
perguntarmos sobre a sua formação em uma escola de instrução primária ela se retrai e
se cala.
Dona Angelina Tavares recompõe o passado por suas lembranças de uma
cidade bucólica, agradável, onde as moças absorviam as novidades da moda que iam
chegando por meio do trem, para as costureiras; uma cidade que melhorava por meio do
comércio. Relembra, ainda, as cantigas de infância: “...havia inocência, uma juventude
sadia...” (241-B). “Eu brincava muito, a gente brincava à vontade”. Portanto, o que
está em questão não é a “narrativa verídica sobre o passado”, até porque, a narrativa de
todos os depoentes era acompanhada do zelo em dizer:
- O Sr. Desculpe eu não saber dizer tudo, não é. Pra eu dizer
aquilo que eu não vi, tô mentindo, não é? Tô dizendo o que vi e fiz,
e vi fazer. (Seu Álvaro)
- Vá desculpando, que eu não tenho leitura e já estou muito
acabada. (Dona Maria Simplício) etc.
por último, - a dimensão da “imaginação” que é aquela capaz de fantasiar a realidade,
colocando “novas sensações”, incorporando a narrativa da memória individual diante
de certos acontecimentos, como fatos realmente ocorridos.25
Dessa forma, podemos afirmar que a construção da história, pela
memória, está intrinsecamente mediada pela “vivência”. Essa “vivência”, por sua vez,
está perpassada por uma multiplicidade de fragmentos fornecidos pelas dimensões
que apresentamos acima, orientada pela dialética entre o tempo presente e tempo
passado, na história de vida de cada depoente. Todo esse “caleidoscópio” é expresso
pela “narrativa” do depoente. Portanto, a memória é um trabalho de recordação,
recordação esta, que é uma construção, fornecida pela vivência em um quadro
espaço-temporal.
Portanto, o que vemos pelos depoimentos é um contexto de perdas e
ganhos, de encantos e desencantos com o tradicional e com o moderno, que são, por
sua vez, perdas e ganhos de pontos de referências da identidade do habitante na
cidade:
- Cajazeiras era uma cidade que parecia muito que tinha uma
gente vaidosa. Era uma cidade que imitava muito a capital. Era
um povo que sabia se vestir e a orientação era mais de Fortaleza.
( Dona Marilda Sobreira, 206,A)
- As pessoas vinham à cidade no sábado. Não era como hoje.
Hoje está mais adiantado mais é fraco. Naquela época existia
dinheiro, mais hoje a fraqueza é grande... Eu achava melhor do
que hoje. Aqueles comboios de farinha, aquelas carnes bonitas,
gordas. (Dona Maria Simplício 220-234, A)
- As feiras? Era uma palhocinha velha; grande, mais dentro de
uma palhocinha feia... Eu vendia muito feijão, rapadura. Agora
quando o prefeito Araruna tomou conta foi que levantou aquele
prédio do comércio. (Seu Álvaro,117-A)
- A farinha, o millho, comprava lá na serra do Orebe e vinha
vender aqui na feira. Toda feira nós tava aqui. Ainda hoje tá do
mesmo jeito. ( Seu José Vieira de Moraes, 053-058, A)
- O que mais me atraía era a Praça D. Adauto. Era o chamariz
para a criança”.(Dona Angelina Tavares,185 A)
- “ E eu sou cantor. Quer que eu cante uma valsa pro sr.
ouvir? Música de Augusto Calheiros (...) Eu comecei a beber com
17 anos. (Major Chiquinho, 183-A)
- Naquele tempo era muito animado...Ave-Maria, eu era “
piolho- de- dança”. (Dona Maria Simplício,447-B)
Logo, o que está retido no discurso e na linguagem de cada depoente, são
imagens diferenciadas da história da cidade. Por quê? Pelo fato de cada depoente
introjetar significados diferentes por meio de sua vivência no cotidiano. O cotidiano é
uma dimensão que expõe a capacidade dos sujeitos de estar no mundo. Daí decorre a
vivência organizada, o dia-a-dia, a vida dos homens, envolvidos por uma atmosfera
natural e normativa (social). De uma certa forma, no cotidiano, as coisas simplesmente
são, fazendo com que o ‘princípio de vontade’ se depare com o ‘princípio de razão’, que
orienta as normas da conduta humana, pelo que está instituído na sociedade.
Por outro lado, de igual forma, há a elaboração, no espaço de vivência, de
algumas dimensões que afetam a construção da memória na história de vida das
pessoas: - a dimensão “perceptiva” onde os “signos” são elaborados pelos
“impactos”, os “choques”, que o presente (“sucessão de agoras”, como vemos em
Benjamin) causa no passado, em nível intra-subjetivo, nas percepções de cada um; - a
dimensão “afetiva” que está relacionada à forma de “sentir” o mundo ,sendo,
portanto, uma forma de “sensibilidade” (aqui estão presentes as “emoções” que
depositamos diante das coisas, das pessoas, do mundo) no decorrer de nosso tempo
existencial e social, o nosso tempo de vivência, ou seja, as emoções sentidas durante o
tempo passado e tempo presente. Para Walter Benjamin é nesta dimensão que se opera
a “identidade” de uma pessoa, com o sentimento de “pertencimento” a um grupo e,
25
PORTELLI, Alessandro. Sonhos Ucrônicos, memórias e possíveis mundos dos trabalhadores.
In: Projeto de História 10, “História & Cultura”. São Paulo: PUC, 1993. p. 41-58.
50
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
referentes dessa ordem moderna “Cajazeiras era uma cidade que
parecia muito que tinha uma gente vaidosa. Era uma cidade que
imitava muito a capital. Era um povo que sabia se vestir e a
orientação era mais de Fortaleza”.
- Nesse tempo chegou o automóvel. Eram dois carros: um era
de Sebastião Bandeira e o outro era de Rosarina, mulher de
Justino Bezerra. (Dona Marilda Sobreira, 134, A)
- Naquela época, que eu me entendia como gente, as pessoas
só andavam todas completas: chapéu, gravatiha de laço... Hoje, se
eu sair na rua daquele jeito o povo pergunta logo: ‘vai votar
major Chiquinho? (Major Chiquinho, 493-B)
- A vida da gente era muito humilde e a gente não tinha quase
roupa. Agora, aqui, tinha um pessoal que se vestia muito bem. O
papai mesmo... 26
- Era, os retratos dele e dos avós são ! mas vocês não! Os avós
eram. Eles se vestiam muito bem. Olha, tinha um retrato de um
enterro aqui, olhe, “um chique”. As mulheres tudo de sombrinha,
de longo, aquelas mulheres tudo ... e os homens tudo de fraque.
(271-A)
- Dia de domingo ia a orquestra tocar na estação de trem.
Aquelas moças .... Juarez Távora acabou com a ferrovia, na
época da Revolução. Foi um crime. (Major Chiquinho, 428 - B)
Enfim, os habitantes representavam a cidade como um espaço
desiderativo num “tempo perdido”, com alguns emblemas novos, modernos,
referenciando “suas maneiras de ver”, suas representações, a partir de um confronto de
interpretações que faziam confluir os diversos fragmentos que compunham a aura
urbana, não só para o “novo”, como também, para as permanências, apontando a
presença do tradicional
Dessa forma concluímos nosso trabalho com as fontes orais, dialogando
com as mesmas, na tentatva de conseguir imagens que nos pudessem fornecer uma
visualização dos quadros mentais, das representações e do imaginário de uma época,
psicanalisando o passado num trabalho de contrução. Entendemos que o trabalho do
historiador com as fontes orais é potencial para o saber histórico, visto que este ganha,
cada vez mais, foros de autonomia e riqueza intelectual por pesquisadores que
manifestam contundentes posicionamentos relativos à formação, manutenção e
reelaboração de identidades coletivas através da memória.
Pela vivência no cotidiano da cidade os habitantes elaboram uma imagem
da mesma pelo cruzamento de suas atividades e interesses. A vida cotidiana se impõe à
consciência do sujeito de maneira urgente, objetivando pela linguagem referências que
são evocadas e construídas pela memória do grupo de habitantes.
Algumas dificuldades, no entanto, parecem consistir nas investidas e
exclusões metodológicas entre o todo e as partes. Recusando cair nessa armadilha
metodológica pensamos a cidade, a partir destes depoimentos, como múltipla: ela
oferecia pontos de inspiração:
- “O que mais me atraía era a Praça D. Adauto. Era o chamariz
para a criança”; a cidade fornecia locais de sociabilidade: “Dia
de domingo ia a orquestra tocar na estação de trem. Aquelas
moças .... Juarez Távora acabou com a ferrovia - na época da
Revolução. Foi um crime.” ; seus habitantes incorporavam
maneiras e hábitos modernos, na maneira de vestir, nos
costumes ... “Olha, tinha um retrato de um enterro aqui, olhe,
“um chique”. As mulheres tudo de sombrinha, de longo, aquelas
mulheres tudo ... e os homens tudo de fraque.”; a manifestação
coletiva do grupo fala dos emblemas modernos, lançando pontos
26
O depoente é filho do Cel. Sabino Rolim, bisneto do Comandante Vital Rolim, tido como um
dos heróis fundadores da cidade. Esta entrevista foi concedida pelo Dr. Sabino Rolim - médico
oftalmologista - e sua esposa Dona Joaninha, filha de um dos intelectual mais expressivos da
década de vinte em Cajazeiras, Cristiano Cartaxo.
51
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
A PARTICIPAÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA NACIONAL
NO SETOR ELÉTRICO GAÚCHO;
uma perspectiva histórica das maiores empresas (1887-1922)
AXT, Gunter. A participação da iniciativa privada nacional no setor
elétrico gaúcho; uma perspectiva histórica das maiores empresas
(1887-1922). Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de
Fora: UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 69-83.
Gunter Axt
Pesquisador do CPDHPRS/Assembléia Legislativa RS
Doutorando pela USP
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
Endereço para correspondência:
Revista Eletrônica de História do Brasil
Arquivo Histórico da UFJF
Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
Prédio do CDDC - Campus Universitário
Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330
RESUMO: Este artigo recupera a história dos principais investimentos do capital
privado nacional na indústria de energia elétrica do Estado do Rio Grande do Sul,
especialmente locados em sua capital, Porto Alegre, desde sua instalação, em 1887, até
sua incorporação por concessionárias estrangeiras, em 1928. Procurou-se conduzir a
análise de forma a detalhar as diferentes companhias então atuantes e sua inserção no
contexto político-econômico do período em foco. Seu propósito fundamental foi
revelar, de um lado, os mecanismos de proteção governamental para com o setor, e, de
outro, os obstáculos para a reprodução do capital privado regional/nacional.
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
E-mail: [email protected]
Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342
ABSTRACT: This paper recovers the History of the main private national investments
into the Electric Energy Industry of the Rio Grande do Sul State Capital, since it was
first installed, in 1887, until its incorporation, by foreign concessionaries, in 1928. An
analysis was conducted in order to detail the different companies inserting them in the
political-economical context of that period. Its main purpose was to reveal the
protection mecanisms and the obstacles to the regional/national private capital
reproduction.
PALAVRAS-CHAVE: Energia elétrica: RS.
Este texto pode ser reproduzido livremente,
para uso pessoal e sem finalidades comerciais,
desde que não sofra alterações em seu conteúdo
e em sua estrutura física.
A produção e distribuição de energia elétrica no Rio Grande do Sul nem
sempre foi apanágio dos poderes públicos. O governo estadual, com efeito, assumiu a
dianteira no setor apenas a partir dos anos 1950, quando então a capacidade geradora
instalada da CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica) ultrapassou a das
companhias privadas.1 Antes da criação da Comissão Estadual de Energia Elétrica, em
1943, apenas as instalações, em Porto Alegre, Canoas e Pelotas, da maior empresa
privada no ramo, ligada ao grupo norte-americano Amforp, representavam quase 44%
1
AXT, Gunter. A formação da Empresa Pública no Setor Elétrico Gaucho. Anos 90. Revista do
Programa de Pós-graduação em História da UFRGS. Porto Alegre, n.4, 1996.
52
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
A Empresa de Luz Elétrica Fiat Lux (...) tem sua oficina na
Rua Sete de Setembro, esquina General João Manoel. A
iluminação da oficina é produzida por 15 lâmpadas de 10 e 16
velas sistema Edison; o motor é uma máquina a vapor demi fixe,
Compound, de força elétrica de 50 cv com descarga automática
(Paxman), e foi construída em Colchester (Inglaterra), pelos
construtores Davey Paxman & Cia. A corrente elétrica é
fornecida por três máquinas denominadas dínamos Gramme,
podendo produzir 800 lâmpadas de 10 velas. Nos primeiros dias
de outubro, principiaram as experiências, que continuaram até
hoje dando esplêndido resultado.
da capacidade nominal total instalada, respondendo as mesmas por 70% de toda energia
consumida no estado. Os poderes públicos controlavam, então, não mais de 25% do
parque gerador sul-riograndense.2
A iniciativa privada de fato ocupou espaço dominante no setor por mais
de 60 anos, desde o surgimento da indústria de eletricidade no Rio Grande do Sul em
1887, dentre os quais com a liderança por cerca de 40 anos do capital nacional. Em
1927, o Anuário Estatístico registrava o controle pela iniciativa privada de 70% do
potencial gerador global no estado, sendo que 75% dos investimentos no setor
provinham do capital nacional, de cujo total, 30% operando 47 instalações no interior
do estado e 70% investidos nas duas empresas da capital. Ao todo, funcionavam no
território gaúcho 86 usinas elétricas, 35 sob controle municipal, uma estadual e uma, em
Pelotas, sob administração do capital estrangeiro. A iniciativa privada computava então
o emprego de 757 dos 963 operários que trabalhavam no setor (78,6%). Os maiores
estabelecimentos geradores de eletricidade eram controlados pelo capital privado, que
investia predominantemente na termeletricidade (menos de 10% da energia total gerada
provinha de fonte hídrica).3
Em 1939, segundo o Anuário Estatístico daquele ano, operavam no
estado 249 usinas (148 termelétricas e 101 hidrelétricas), 193 das quais eram
administradas por empresas particulares, respondendo estas por quase 80% da produção
de eletricidade no Rio Grande do Sul. Na geração hidrelétrica, contudo, o capital
privado estava em desvantagem: as administrações municipais controlavam cerca de
75% do conjunto do potencial hídrico instalado. Todavia, apenas 9,8% da energia total
produzida procedia de fonte hídrica. Os principais centros urbanos gaúchos eram então
abastecidos pelas empresas privadas, com exceção das cidades de Rio Grande, São
Leopoldo, Santa Cruz e Passo Fundo. Nesta época, contudo, o capital nacional
controlava não mais do que 20% da capacidade nominal instalada, perdendo sua
posição de liderança para as companhias estrangeiras.
As maiores empresas privadas de capital nacional do setor elétrico
gaúcho atuaram em Porto Alegre, principal mercado consumidor de energia no estado.
Entre 1887 e 1928, as companhias Fiat Lux e Força e Luz Porto-Alegrense (CFL), e as
suas respectivas sucessoras, a Companhia Energia Elétrica Rio-Grandense (CEERG) e
Cia. Carris Porto-Alegrense (CPA), chegaram a responder por 70% do capital nacional
total aplicado no setor elétrico gaúcho.
A primeira destas empresas a surgir foi a Sociedade Fiat Lux, cujas
instalações, pioneiras no estado, foram inauguradas em 1º de dezembro de 1887,4 após
seis meses de experimentos,5
Está estabelecida uma linha dupla da oficina até a Rua
do Rosário, com duas denominações: uma para o Hotel
Lagache e outra para a Praça Conde D'Eu. Na noite de
12 de novembro, quando teve lugar no salão do Club
Comercial o banquete oferecido ao Sr. Senador Gaspar
Martins, colocou-se na entrada da rua duas lâmpadas a
arco Gramme, ou lâmpadas reguladoras de 300 velas.
Conservaram-se elas acesas até as 2,5 horas da manhã,
causando um efeito tal que parecia dia claro. Atualmente
estão colocadas nas casas comerciais da Rua dos
Andradas mais de 300 lâmpadas. Pode-se admirar todas
as noites a luz elétrica das lâmpadas Gramme. O vasto
Salão Continental está iluminado por uma só lâmpada. Os
bosques do Hotel Lagache, por duas lâmpadas e em
ambos os estabelecimentos a luz é inexedível. Breve terá o
público o gosto pelo mesmo benefício no jardim da Praça
Conde D'Eu ....6
A novidade, que fez da cidade a primeira capital brasileira a contar com
um serviço regular de fornecimento de eletricidade aos consumidores, era então
oferecida
para casas comerciais e particulares, (...) aos moradores da Rua
dos Andradas, desde a Travessa Paysandú, até a Vigário José
Ignácio (...). A Companhia encarrega-se da colocação e de
fornecer o material e as lâmpadas (...), [cobrando o serviço pelo
tipo de lâmpada instalada.] A luz será fornecida até às 10,5 horas.
2
ANUÁRIO Estatístico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Departamento Estadual de
Estatística, 1941.
3
Idem, Porto Alegre: Secretaria do Estado dos Negócios do Interior e Exterior; Oficinas Gráficas
d’A Federação, 1928.
4
Fed - 18.01.1888 (MCS).
5
Câmara Municipal/Livro de Vereança nº 21 p. 15 (AHMPoA).
6
53
Fed - 30.11.1887 (CPDHPRS).
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
não mais estando disponível a todos os interessados. Mas, a partir de 31 de dezembro de
1906, os consumidores da companhia passaram a usufruir do fornecimento de luz por
toda noite. Em 1909, a usina passou finalmente a distribuir eletricidade durante as vinte
e quatro horas do dia, melhoramento cujos investimentos exigiram a elevação do capital
para 1.200 contos de réis. O sistema de cobrança dos serviços pelo consumo de
kilowatts, por meio de contadores instalados nas residências, foi adotado pela
companhia em 1º de abril de 1908, ao preço, então, de 800 réis o kilowatt. Em 1910, a
Fiat Lux administrava 940 assinantes, gerando cerca de 250 kW/h por consumidor. Em
1915, a empresa totalizava 2.600 consumidores, vindo a alcançar 3.600 em 1920 e
5.100 em 1925, quando então a geração de kW/h por consumidor chegou a 616, tendo,
para tanto, de serem as instalações da usina sucessivamente ampliadas.14
Entrando em funcionamento em 1887 com uma pequena locomóvel, em
1891 a usina já operava com um gerador térmico de 160 kW, tendo sido novamente
ampliada em 1899. Por volta de 1913, as instalações geradoras deveriam alcançar cerca
de 600 kW de potência, o que representava uma capacidade inferior à disponível nas
usinas da Cia. Força e Luz, em Porto Alegre, e, mesmo, nas usinas de Rio Grande e
Uruguaiana.15
Outro aumento de capital, através de um empréstimo conseguido junto
aos maiores acionistas, permitiu à companhia colocar em atividade, em abril de 1914,
uma nova central geradora, equipada com uma moderna turbina de 1.000 cv, à qual
ligavam-se dois geradores de 350 kW cada um e de 220 volts de corrente contínua. Em
1920, entrou em serviço uma segunda unidade na usina nova, idêntica à primeira,
totalizando então 1.400 kW de capacidade instalada. A potência de ambas as usinas
deveria situar-se, nesta época, em torno de 2.000 kW, sendo aumentada em mais 500
kW até 1925.16
Embora a situação finaceira da empresa fosse positiva, sendo acumulada
uma dívida relativamente pequena (Rs 326.830$990), durante os anos da Primeira
Guerra, a Fiat Lux enfrentou algumas dificuldades, decorrentes da forte alta nos preços
do carvão inglês e da lenha a partir de 1915. O carvão nacional, por sua vez,
desapareceu do mercado.17 A posição financeira da companhia voltou a melhorar com a
estabilização do preço da lenha, em 1917. Para este fato, concorreu a extinção do
imposto sobre a lenha, tributo cobrado desde 1903. Neste período, foram ainda
Para hotéis, clubs, cafés, etc. a luz será fornecida até a meia-noite
com 12% de aumento.7
Sob direção dos cidadãos franceses Aimable Jouvin, cônsul e
representante comercial, e S. Dernuit, engenheiro representante da firma Gramme,8 a
companhia teve seus estatutos redigidos em 11 de maio de 1891. Foram os mesmos
reformulados em 30 de junho de 1892, quando então o controle acionário transferiu-se a
Graciano A. de Azambuja, F.P. Sertório Leite e Armênio Jouvin.9 Nesta transação, o
capital da empresa foi elevado de Rs 640:000$000 para Rs 800:000$000.10
Em setembro de 1896, uma nova administração, capitaneada pelo Cel.
Antônio Soares de Barcellos11 - que, como principal acionista, exerceu a direção por 21
anos - assumiu o comando da companhia. Estando a Fiat Lux em dificuldades,
procedeu-se então a uma manobra financeira, na qual reduziu-se o capital da mesma
para 480 contos de réis, para em seguida reelevá-lo a 600 contos de réis (600:000$000),
divididos em seis mil ações nominativas. Reunindo então a empresa 26 acionistas,12
aceitaram eles arcar com o prejuízo da ordem de 40% à guisa de garantia à operação.
Em dois anos a companhia, até então deficitária, estava distribuindo dividendos a razão
de 10% ao ano aos acionistas. Em outra medida de austeridade, a Fiat Lux abriu mão
do privilégio para a prestação dos serviços nas demais cidades do estado, chegando a
abandonar as fundações já iniciadas do prédio de uma usina em Pelotas. Novos
estatutos foram aprovados em 22 de setembro de 1898. Em 1904, o capital da
companhia foi elevado a mil contos de réis.13
A partir de 1º de janeiro de 1900, a Fiat Lux, em atenção às solicitações
de grande número de seus consumidores, que não careciam de luz até a meia-noite,
resolveu adotar novo sistema de cobrança, estabelecendo dois horários diferentes: um
até as dez horas, outro até a meia-noite. A qualidade do serviço, contudo, passou a
suscitar algumas reclamações, sendo a iluminação considerada de intensidade fraca e
7
Fed - 11.10.1887 (CPDHPRS).
Fed - 11.10.1887 (CPDHPRS).
9
Revisão dos Estatutos da Sociedade Fiat Lux - 30.06.1892 (AHMPoA).
10
PORTO ALEGRE e as novas obras da CEERG. Porto Alegre, 1927, p. 9.
11
Foi deputado pela Assembléia dos Representantes entre 1891 e 1904, e entre 1909 e 1916.
Tenente-Coronel da Guarda Nacional, foi um dos principais articuladores da chapa do PRR à
Constituinte de 1891. Foi Presidente da ARRS (Assembléia dos Representantes do estado do Rio
Grande do Sul) entre 1897 e 1903.
12
Três dos quais, A. S. de Barcellos, Manoel Py e Virgílio do Valle, dentre os principais, tornarse-íam importantes acionistas da futura Cia. Força e Luz. Entre outros acionistas de destaque da
Fiat Lux, estavam a família Chaves Barcellos, Francisco Gonçalves Carneiro, Conrado Bertinasco
e o Banco da Província.
13
Fed - 22.02.1898 - Relatório da Cia. Fiat Lux do ano de 1897; Fed - 14.10.1898 - Estatutos da
Cia. Fiat Lux (MCS); PORTO ALEGRE e as Novas Obras da CEERG. op.cit. p. 9.; A
HISTÓRIA da Companhia de Energia Elétrica Rio Grandense. Roteiro. Porto Alegre, CEERG,
Ano III, n. 27, p. 10, ago. 1957.
8
14
Fed - 20.12.1899 (MCS); Fed - 06.12.1904 (CPDHPRS); A HISTÓRIA da Companhia de
Energia Elétrica Rio Grandense. Roteiro. Porto Alegre, CEERG, Ano 3, n. 29, p.3, out. 1957; JC
- 18.03.1908 (MCS); PORTO ALEGRE e as Novas Obras da CEERG. Porto Alegre, 1927, p. 3.
15
A HISTÓRIA da Companhia de Energia Elétrica Rio Grandense, Roteiro, ano 3, n.29, p. 3,
out. 1957.
16
Fed - 16.03.1915 - Relatório da Cia. Fiat Lux do ano de 1914 (MCS); PORTO ALEGRE e as
novas obras da CEERG, op. cit., p. 9.
17
Fed - 16.03.1916 (MCS).
54
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
realizadas diversas obras nas caldeiras da usina, objetivando a redução do consumo de
combustível.18
Contudo, os próprios diretores da companhia19 avaliavam que "a
produção de energia elétrica em Porto Alegre era notoriamente insuficiente". Não
obstante a Fiat Lux verificasse bons rendimentos, seu imprescindível programa de
expansão "não manifestou muito interesse junto aos acionistas". Em assembléia
extraordinária, realizada a 9 de novembro de 1923, os sócios decidiram aprovar a
proposta de venda do acervo à Companhia de Energia Elétrica Rio-Grandense
(CEERG): a transação foi concluída por 2.400 contos de réis em debêntures.20
A CEERG fora incorporada a 8 de novembro de 1923 na cidade do Rio
de Janeiro, com um capital social inicial de 3.000 contos de réis. Tinha como principal
acionista a Cia. Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo, empresa que atuava na
mineração de carvão gaúcho desde 1889.
O emprego do "carvão nacional" encontrou amiúde significativa
resistência junto às estradas de ferro, navegação fluvial e fábricas a vapor, pois era mais
caro que a lenha e de menor rendimento que o carvão inglês, devido ao alto teor de
cinzas na sua constituição.21 Após uma violenta queda no consumo de carvão de São
Jerônimo na virada do século, o volume de sua comercialização foi sendo lentamente
recuperado, insuflado pela ação das isenções fiscais e do imposto sobre a lenha.22 Às
vésperas da Primeira Guerra, as usinas da capital eram em boa parte alimentadas pelo
carvão de São Jerônimo, mas, em virtude da elevação de seus preços, passou novamente
a perder terreno para o carvão inglês e para o de Santa Catarina, tendência que se
aprofundou no início dos anos 20.23 O surgimento da CEERG, num período de retração
do consumo do carvão gaúcho, foi o corolário da estratégia da Cia. São Jerônimo,
onde a tentativa de estabelecimento de um mercado próprio ao seu produto visou uma
alternativa ao desgastado protecionismo fiscal mantido pelo governo.24
Outra importante empresa a operar na capital gaúcha foi a Companhia
Força e Luz Porto-Alegrense (CFL). Incorporada em 1906 a partir da fusão de duas
companhias que exploravam o transporte por tração animal por meio de trilhos em
Porto Alegre - a Cia. Carris de Ferro Porto-Alegrense, uma sociedade anônima
constituida em 1872, e a Cia. Carris Urbanos de Porto Alegre, fundada em 1891 -,
tornou-se o maior empreendimento do capital sul-riograndense no setor elétrico. Em 14
de abril de 1906 foi celebrado um contrato para a exploração dos serviços de tração
elétrica entre a nova companhia e a Intendência Municipal, tendo sido dispensada a
concorrência pública. A empresa subscrevia um capital ativo de Rs 2.652:000$000,
além de tomar um empréstimo no valor de 2.500 contos de réis, dividido em cinco
parcelas iguais, a serem descontadas até 1908, ao juro de 7% ao ano, o qual fora
garantido pelo Banco da Província e pelo Banco do Comércio.25
Desde 1896 (seis anos após ter circulado o primeiro bonde elétrico do
mundo, em Nova Yorque), já discutia-se a adoção deste sistema em Porto Alegre,
quando então o interesse de alguns particulares inspirava a realização de estudos pela
Intendência Municipal.26 Após longas discussões, uma nova proposta, apresentada pelo
representante local da firma alemã Siemens & Halsche, conduziu à abertura de uma
concorrência pública, a 2 de junho de 1904. Não logrou a mesma nenhum resultado,
pois, garantindo os interesses das concessionárias em atividade, determinava a
dependência da nova concessão à encampação da Carris Porto-Alegrense, cujo alto
valor fixado afastou os pretendentes. No ano seguinte, o rumo das negociações evoluiu
para uma proposta de parceria entre a Intendência Municipal e a Carris Urbanos, que,
todavia, não chegou a concretizar-se, pois as duas empresas de transporte urbano
fundiram-se para criar a Força e Luz.27
O principal idealizador deste empreendimento foi Possidônio Mâncio da
Cunha, grande acionista da Carris Porto-Alegrense.28 Influente político ligado às
hostes do PRR,29 Possidônio também era um ágil capitalista, que na época integrava a
diretoria de importantes empresas, como a Cia. Telephônica Rio-Grandense (fundada
em 1908), a Cia. Predial e Agrícola, a Cia. de Seguros de Vida Previdência do Sul, a
Cia. Fiação e Tecidos de Porto Alegre (fundada em abril de 1901) e o Banco Comercial
Franco-Brasileiro (este último fundado posteriormente, em 1913). Acompanharam-no
na nova iniciativa seus maiores sócios nestas empresas, juntamente com investidores
ligados a outras importantes empresas locais (muitos dos quais tendo igualmente
18
Fed - 13.03.1917 (MCS).
Desde a morte do Cel. Barcellos em 1916, a direção foi conduzida por Domingos da Costa
Lino, Carlos Saturnino Peixoto, e Virgílio do Valle, o qual, integrava também, na época, a
diretoria da Cia. Força e Luz.
20
Fed - 10.11.1923 (MCS).
21
ANUÁRIO do Rio Grande do Sul para o ano de 1905; Porto Alegre: Krahe & Cia, 1905.
ANAIS da Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul. 1892/96.
Discursos de José Carlos Pinto.
22
ANUÁRIO do Rio Grande do Sul para o ano de 1904. Porto Alegre, Krahe & Cia, 1904.
23
Fed - 01.03.1914 (MCS); Relatório do Intendente Pedro Luiz Osório. Pelotas, 20.09.1922
(BBP).
24
Em 22 de novembro de 1921, o governo isentara, pelo espaço de cinco anos, a indústria
carbonífera de todos os impostos estaduais, como forma de auxiliar o segmento a recuperar o
mercado perdido após a guerra e de insentivar o consumo do carvão de pedra. LAGEMANN,
Eugenio. Os benefícios fiscais na história gaucha: uma aproximação ao tema. In: 150 Anos de
Finanças Públicas. Porto Alegre, FEE, 1985, p. 258.
19
25
JC - 19.04.1906 (MCS).
Câmara Municipal de PoA. Comissão de Construção e Melhoramentos do Município.
26.11.1896 (AHMPoA).
27
Relatório do Município de Porto Alegre pelo Intendente José Montaury de Aguiar Leitão. In:
Fed - 23.11.1907 (CPDHPRS).
28
Fed - 16.10.1905 (CPDHPRS).
29
Deputado estadual na Constituinte de 1891, na 1ª, 7ª, 8ª, 9ª, 10ª legislaturas, além de também
ter exercido o cargo de deputado federal pelo Rio Grande do Sul e ter exercido o cargo de
Secretário da Fazenda do Estado.
26
55
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
ocupado cargos políticos pelo PRR), além de bancos, companhias de seguros e de
imóveis. 30 Tendo reunido uma expressiva parcela dentre políticos governistas e
investidores do momento, a CFL foi um evento marcante no incipiente capitalismo sulriograndense, constituindo-se numa corporação moderna, com capital aberto,
contrariando a tendência de "empresas familiares"31 do período.
As obras de construção da usina e dos trilhos foram iniciadas em 6 de
dezembro de 1906 pela firma inglesa Dick, Kerr & C. Limited. Em outubro de 1907 já
estavam colocados cerca de 30 Km de trilhos, "sendo metade em base de concreto e
metade em dormentes de madeira de lei assentados sobre uma camada de poeira
britada". Os trilhos, com 1,43 m. de bitola, achavam-se distribuídos pelas 12 linhas de
bondes, em apenas um sentido. A rede de distribuição aérea, sustentada sobre postes de
ferro, compunha-se de fios de cobre de 11,6 mm., de ida e de volta, com caixas
comutadoras e pára-raios assentados de meia em meia milha, sendo os "cabos de
alimentação (feeders) de arame de cobre torcidos em aspiral, cobertos com trança
impermeável e de diversos diâmetros".32 As primeiras experiências com bondes
elétricos foram realizadas em inícios de março de 1908, sendo a primeira linha
inaugurada no dia 28 de março. Foram de início colocados em circulação 38 carros
motores, sendo um deles um limpa-trilhos, e dois do tipo "imperial", todos com
potência de 70 cv.
No Campo da Redenção foram construídos o depósito de carros e as
oficinas auxiliares, com capacidade para 40 bondes. A usina geradora, situada à Rua
Voluntários da Pátria próximo à Rua Conceição, constituía-se de duas seções, uma para
as caldeiras e outra para os geradores. A chaminé, com seus 47,10 m de altura, 3,5 m de
diâmetro interno na base e 2,6 m no topo, era a maior de Porto Alegre na época, sendo
também a primeira obra realizada com emprego de tijolos refratários no estado.33
Operavam na usina
três caldeiras Balkok & Wilkox de 2.500 pés quadrados de
superfície de aquecimento, cada uma montada sobre colunas de
ferro forjado com base de ferro fundido de modo a que fique
independente das bases de tijolo. Três máquinas verticais "Bellis
& Morcom" de 450 cv de força cada, ligadas a três geradores de
corrente contínua do tipo "Dick Kerr" de 300 kW cada um,
trabalhando a uma tensão de 500 volts. Existem também três
condensadores de superfície, um guindaste automóvel para elevar
10 ton., duas bombas para 2.000 galões e jogo completo para
chaves comutadoras, um guindaste elétrico de força de 1 ton.,
para o desembarque de carvão ...34
30
Manoel Py, que exerceu cargos de diretoria em diversas compahias e, também, na Cia.
Comercial Manufatora e na Fiat Lux, da qual tornara-se também um dos principais acionistas. Foi
ainda deputado estadual pelo PRR, da 2ª a 5ª legislatura; Aurélio Py, acionista nas companhias
citadas e deputado pelo PRR da 8ª a 10ª legislaturas; João Py Crespo, deputado pelo PRR na 2ª
legislatura; João Batista Sampaio, incorporador minoritário do Banco Franco-Brasileiro, onde
tinha 150 ações; Antônio Carlos Panafiel, igualmente deputado durante a 7ª e 8ª legislaturas;
Armênio Jouvin, acionista da Fiat Lux e deputado durante a 6a legislatura; Antônio Soares de
Barcellos, presidente da Fiat Lux e deputado da Constituinte de 1891 à 7ª legislatura, com
excessão da 5ª, em que não exerceu mandato no estado; Antônio Mostardeiro, diretor do Banco
da Província de 1915 a 1925 e de 1928 a 1930, diretor do Banco Nacional de Comércio de 1906 a
1914, e sócio das firmas "Mostardeiro Irmãos & Co., fundada em 1873, "Companhia de Seguros
Previdência do Sul", "Sociedade de Seguros Porto-Alegrense", cuja diretoria integrou de 1905 a
1921, e "Coampanhia Fábrica de Papel e Papelão", cuja diretoria incorporou de 1923 a 1926;
Thimóteo Pereira Rosa, sócio de Possidônio e deputado durante a 7ª legislatura. Entre outros
grandes e médios acionistas da CFL estavam, ainda, Floriano Nunes Dias; Frederico
Dexheimer, sócio da Cia. Previdência do Sul, diretor do Banco da Província em 1907 e de 1910 a
1917, sócio-fundador das firmas "F.C. Kessler & Cia.", fábrica de chapéus instalada em 1901, e
"F. Dexheimer & Kessler", engenho de arroz, tendo ainda sido um dos incorporadores do
"Engenho Central", em Cachoeira do Sul, pertencente a "Aydos, Neves & Cia."; Manoel
Carvalho da Costa; Emílio Guilayn, diretor do Banco da Província, entre 1911 e 1914, sóciofundador da casa bancária "Emílio Guilayn", de Bagé, e da firma de representação comercial
"Buxton & Guilayn", também administradora das usinas elétricas de Pelotas, Bagé e Santa Maria;
foi ainda deputado da 5ª à 8ª legislaturas; Firmino Torelli, comerciante e membro do Partido
Libertador; Plínio Alvin, ligado do Banco da Província; Edmundo e Otávio da Costa Gomes,
Armando Bello Barbedo, Virgilio do Valle e João Carlos Toledo Bordini. Entre os pequenos
acionistas estavam ainda João Batista Soares da Silveira, Firmino de Azambuja Rangel,
Emílio de Castilhos, Dr. Martins Costa Jr. (advogado), José de Almeida, Monoel Escobar e
Francisco Caldas Jr. (diretor do jornal Correio do Povo). Possuíam ainda ações da CFL as
firmas Cia. União de Seguros, Cia. de Seguros Phenix, Banco da Província, Cia. Mostardeiro
Irmão & Co., Banco de Comércio de Porto Alegre e a Cia. Predial e Agrícola. Ver: Fed18.04.1901; 27.03.1908; 05.07/12.08.1910 (CDHPRS); LAGEMANN, Eugenio. O Banco
Pelotense e o Sistema Financeiro Regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, p. 47 e 94;
TRINDADE, Hélgio. Poder Legislativo e Autoritarismo no Rio Grande do Sul (1891-1937).
Porto Alegre: Sulina,1980, p. 287-300; O ESTADO do Rio Grande do Sul, Paris, Monte
Domecq’ & Cia., 1915, p. 120-1, 459-60 e 466; AITA, Carmen & AXT, Gunter. Parlamentares
Gaúchos, das cortes de Lisboa aos nossos dias (1821-1996). Porto Alegre, Assembléia
Legislativa do RS, 1996.
31
Ver: PESAVENTO, S. J. História da Indústria Sul-Rio-Grandense. Guaíba: Riocell, 1985.
Em 1912, a CFL passou a distribuir força elétrica à pequenas e médias
indústrias, sendo a primeira usina a fazê-lo na capital. Em 1914, a potência da usina foi
ampliada em cerca de 400 kW. A rede de trilhos também expandira-se. A companhia
dispunha então de 67 carros elétricos e 34 reboques.35 Durante o ano de 1907, a
companhia transportou 3.274.327 passageiros; em 1913, transportou 11.928.734
32
Fed - 03.10.1907 (CPDHPRS).
JC - 10.03.1908; 25.03.1908 (MCS)
34
Fed - 03.10.1907 (CPDHPRS).
35
Fed - 01.03.1914 (MCS).
33
56
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
passageiros. Em 1923, então com 87 carros elétricos 32 reboques, transportaria
24.568.652 passageiros.36
A medida em que progredia e a rentabilidade do capital investido pôde
ser comprovada, novos investidores engajavam-se na corporação.37 Embora a situação
financeira da CFL fosse considerada promissora às vésperas da Primeira Guerra, seus
serviços vinham, contudo, apresentando problemas desde a inauguração. As linhas de
transmissão dos bondes partiam-se com freqüência, interrompendo por horas o tráfego
em certos pontos. Os cabos aéreos da companhia também entravam em curto com os
fios telefônicos. Já o sistema de travas dos bondes não era considerado muito seguro.38
Os acidentes com bondes, envolvendo pedestres ou automóveis, eram bastante usuais.
Finalmente, os carros elétricos trafegavam sempre lotados, e os passageiros dos
arrabaldes, em geral operários, queixavam-se veementemente por terem de pagar duas
passagens para deslocarem-se ao centro, onde trabalhavam, pois tinham de fazer
baldeação com os bondes circulares do perímetro central.39
Para que o tráfego de veículos pudesse ser aumentado, foi necessário
duplicar os trilhos e a capacidade da usina. Em 1914, concebeu-se um plano de
expansão, que acabou esbarrando nas dificuldades impostas pela Guerra. A crise
provocada pela conflagração mundial, além de obstaculizar a importação de
maquinário, fez crescer as despesas da companhia com o combustível e restringiu sua
perspectiva de receita - o índice de aumento de passageiros transportados caiu de 15%
ao ano para 2,8% entre 1914 e 1915.40 As novas obras de ampliação da usina foram
concluídas apenas em 1916, quando a capacidade instalada alcançou então a casa dos
2.000 kW.41
No início dos anos 20, contudo, o discurso da diretoria da empresa sofreu
uma guinada, passando a sustentar que o serviço tramviário da capital estava deficitário.
A dívida da empresa aumentara sensivelmente: apenas entre 1906 e 1910, a companhia
tomara quatro diferentes empréstimos e fizera duas emissões de títulos, totalizando um
aumento de capital da ordem de 6.500 contos, sobre o capital inicial de 2.652 contos!
Assim, quatro anos após seu surgimento, a companhia apresentava já um patrimônio
líquido negativo, sustentando a distribuição de dividendos com base em sucessivas
operações de crédito.
Em 1910, os acionistas minoritários mostraram-se revoltados contra a
política administrativa da diretoria, que, através destas operações financeiras,
privilegiava os grandes investidores, em prejuízo dos menores, já que as ações vinham
sendo progressivamente desvalorizadas. Liderados então por Caldas Júnior, os
pequenos acionistas exprimiram suas críticas à presidência de Possidônio da Cunha
através do jornal Correio do Povo, de propriedade do primeiro.42
O episódio estabeleceria um modelo, passando o Correio do Povo a
atacar frontalmente os serviços e a administração da companhia, sobretudo com o
aprofundamento da crise durante os anos 20. Em 1º maio de 1925, a CFL assinou um
polêmico acordo com a Intendência que garantia a reformulação do contrato de 1906 e
permitia o aumento das passagens, de Rs $200 para Rs $300, o que deveria
instrumentalizar o saneamento da empresa.43 Em contrapartida, a CFL prometeu colocar
em circulação mais 40 novos carros e aumentar em mais 50% o potencial da usina.44 O
acordo foi criticado pela imprensa em geral, que entendeu ser a medida insuficiente
para vencer a demanda por transporte na capital, além de desconfiar da seriedade da
administração da companhia.45 Já a população, revoltada, promoveu quebra-quebras e
tumultos.46
A eclosão de mais um movimento grevista dos funcionários da CFL
contribuiu para o aprofundamento das tensões, servindo também de elemento de
pressão da diretoria da empresa sobre os poderes públicos, a fim de lograr seus
objetivos.47 Nascido juntamente com a empresa, em 1906, o Sindicato dos
Trabalhadores da CFL foi sempre muito ativo, participando das greves gerais de 1906,
1917 e 1919 e promovendo ainda paralisações individuais, em 1911 e em 1925, sempre
por melhores salários e condições de trabalho. O trauma derivado do saldo trágico da
greve de 1919 (quando, aliás, fora o sindicato da CFL particularmente combativo),
semeou apreensão nos governos, tanto mais açulada por esta nova ebulição operária.48
Os recursos para os investimentos previstos no acordo firmado foram
obtidos junto à CEERG, que subscreveu um aumento de 5.000 contos de réis ao capital
da CFL. Uma reformulação na presidência da companhia amparou então a expressão
dos interesses dos novos acionistas, na pessoa de George Gugenheim, diretor da Cia.
Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo. O diretor do Banco da Província do Rio
Grande do Sul, instituição até o momento dona da maior parcela das dívidas da Força e
Luz, Antônio Mostardeiro Filho, também acionista da companhia, passou igualmente a
36
Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Porto Alegre pelo Intendente
engenheiro José Montaury de Aguiar Leitão; 19.10.1924. Porto Alegre: Oficinas Gráficas d'A
Federação, 1924.
37
Fed - 1º.03.1914 (MCS).
38
JC - 12.04.1908 (MCS).
39
JC - 05.04.1908 (MCS).
40
Relatório da Intendência de Porto Alegre de 1915; Fed - 28.11.1916 (MCS).
41
Os Relatórios do Intendente Otávio Rocha de 1925 e 1926 (AHMPoA) indicam uma potência
instalada de 2.650 kW para a termelétrica da Força e Luz, mas os Relatórios da própria
companhia, não acusam uma potência superior a 2.000 kW (CP - 19.05.1928 - MCS).
42
Fed - 01.07; 02.07; 15.07; 19.07; 12.08.1910 (CPDHPRS).
DN - 08.03.1925 (MCS).
44
DN - 12.03.1925 (MCS).
45
DN - 13.03.1925 (MCS).
46
Jornal Correio do Povo (CP) - 09.05.1925; 07.04; 19.10.1926 (MCS).
47
CP - 21.05.1926 (MCS).
48
Ver: AXT, Gunter. A voz do trabalho no coração de Porto Alegre. Porto Alegre: 1995.
(Datilografado)
43
57
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
incorporar a nova administração.49 Com esta transação, a CEERG e a São Jerônimo
assumiam o controle sobre as duas maiores empresas de eletricidade no estado (Fiat
Lux e CFL). Esta piramidação do capital caracterizou o que o jornal Correio do Povo
denominou de "truste carbo-elétrico".50
Em outubro de 1925, em mais uma medida impopular, o foro judicial da
CFL foi transferido para o Rio de Janeiro, onde localizava-se o escritório da CEERG.51
Em 24 de março de 1926, uma assembléia dos acionistas realizada na capital federal,
determinou a conversão da razão social da empresa para Cia. Carris Porto Alegrense
(CPA). À guisa deste coup de grâce, eclipsava-se irremediavelmente a atividade do
capital sul-riograndense na indústria de energia elétrica.
Por seu turno, o Correio do Povo intensificava sua campanha em
denúncia da má qualidade e alto custo dos serviços da CEERG e da CPA.52 O
periódico argumentava que se ambas apresentavam contas deficitárias, era devido a
comprarem carvão super-faturado, auferindo, em verdade, lucros indiretos através da
Cia. São Jerônimo, o que, portanto, depunha contra as pretensões de aumento nas
tarifas. Sustentava, ainda, que a população não poderia ser penalizada pela evasão de
rendas que vitimava a CPA.53
Alheia a todas as críticas, a CEERG praticava, de fato, rumo a uma
acelerada capitalização, essencial na continuidade de seu plano de expansão, um alto
regime tarifário, cuja sustentação procedia da crônica escassez e do quase monopólio na
distribuição de energia elétrica.54 Desde 1925, a companhia dava publicidade ao projeto
de construção de uma grande termelétrica em Porto Alegre com capacidade de 20.000
kW, para consumo exclusivo de carvão nacional, de acordo com o contrato firmado
com o governo federal, por intermédio do Ministério da Agricultura, Indústria e
Comércio, em 29 de dezembro de 1924.55
Tendo herdado a influência política ao nível regional da Fiat Lux e, em
especial, da CFL, a CEERG procedeu à construção da nova usina sem qualquer
garantia formalizada por um contrato de concessão com a Intendência. Da mesma
forma, conseguiu fixar o prédio da usina em local considerado inadequado em parecer
dos técnicos da Superintendência dos Serviços Industriais do município.56 De fato, a
fuligem cuspida pelas chaminés da usina traria logo sérios transtornos aos moradores da
zona oeste da capital, que passaria a ser conhecida como "zona vezuviana".
Vinte e cinco diferentes prédios foram adquiridos pela CEERG na Ponta
da Cadeia, próximo à Praça da Harmonia, constituindo, assim, um terreno de 5.700 m2
para a instalação da nova termelétrica.57 A 16 de abril de 1926, uma concorrida
cerimônia celebrou o lançamento da pedra fundamental da nova usina de Porto
Alegre.58 Em março de 1927, o porto da cidade agitava-se com a descarga de um dos
geradores da usina, pesando 15 toneladas. O custo total da obra era avaliado em 15.000
contos de réis.59 As obras foram contratadas à firma Christian & Nielsen, que havia
construído diversas hidrelétricas para os Guinle, no Rio de Janeiro, além das usinas de
Alberto Torres e de Pombos, em Minas Gerais. Trabalhavam na obra, em ritmo
acelerado, cerca de 150 operários.60
O edifício da usina foi o primeiro prédio em concreto armado da
arquitetura industrial no Rio Grande do Sul. Representou uma impressionante obra de
engenharia para a época. A construção das ensecadeiras, por exemplo, foi feita em
pleno curso do Rio Guaíba, a 20 m. abaixo do nível médio das águas. A grandiosidade
da usina podia ser averiguada pelo seu consumo de água, previsto em 8.000 m3 por dia,
o equivalente a 6,5 vezes o consumo diário de água de toda a cidade de Porto Alegre, ou
igual ao consumo diário de água da cidade de São Paulo, na época. A proximidade com
o rio também permitiu o funcionamento de um cais próprio, construído com estacas de
cimento armado, que facilitava o desembarque do carvão, livrando-o das taxas do porto
da cidade. O carvão chegava ao cais transportado por chatas, das quais era retirado por
enormes aparelhos de garras com capacidade de 2,5 toneladas e colocado nos
britadores, de onde era conduzido por elevadores verticais, de caçamba, até a esteira
distribuidora nos silos. 61
56
Parecer da Superintendência à Intendência quanto ao melhor local para instalação da nova
usina. 08.09.1925 (AHMPoA).
57
Não obstante haver uma lei federal que facilitasse desapropriações no caso de empresas de
serviços públicos, a aquisição dos prédios foi amigável. As desapropriações custaram à
companhia Rs 495:363$376 (CP-17.04.1926; MCS). Houve confronto judicial apenas com um
locatário de um dos prédios incorporados pela CEERG, em torno da utilização de um pequeno
porto nos fundos do imóvel, que fora obstruído pelo atracadouro instalado pela empresa
construtora (CP-18.05.1926; MCS).
58
CP - 17.04.1926 (MCS).
59
Era a maior soma investida numa usina gaúcha. Para se ter uma idéia, a hidrelétrica da Tóca,
então em construção, que seria a maior usina no gênero no estado, estava orçada em 2.000 contos.
Ver: AXT, Gunter. A Indústria de Energia Elétrica em São Leopoldo (1913-1946. Estudos
Leopoldinenses. São Leopoldo: Unisinos. No prelo.
60
CP - 18.03.1927 (MCS).
61
A aparelhagem interna da usina correspondia à seguinte descrição: "A primeira bateria
de geradores a vapor ficou constituída por cinco unidades. Cada caldeira aquatubular, tipo
`Sulzer-Garbe', com jogo de tubos de aquecimento, verticais um tambor superior e um tambor
49
CP - 01.04.1925 (MCS).
CP - 05.05.1926 (MCS).
51
DN - 10.11.1925 (MCS).
52
CP - 22.04.1926 (MCS).
53
Um estudo técnico encomendado pela companhia estimava que cerca de 20% da renda era
perdida com passagens que os usuários deixavam de pagar, e 25% era desviada pelos condutores
mancomunados com os fiscais, o que importava em razão de 45% de evasão de rendas. (RAMOS,
Mário. Carta ao Superintendente da Companhia Carris Porto-Alegrense de 23.01.1926. Livro de
Correspondências. Cia. Carris).
54
"A míngua de capital, a CEERG tem exigido altas cauções para operar ligações de força às
indústrias." CP - 1º.04.1928 (MCS).
55
Ver: RAMOS, Mário de Andrade. A Nova Usina Thermo Elétrica de Porto Alegre.
Conferência realizada em sessão extraordinária do Conselho Diretor do Club de Engenharia. Rio
de Janeiro: Niemeyer Soares & Cia., 1929.
50
58
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Com tamanho investimento, a CEERG esperava já de saída duplicar o
número de assinantes, que em 1927 beirava os 6.000.62 A demanda reprimida em Porto
Alegre era de fato considerável. O potencial das três usinas em operação (a da antiga
Fiat Lux, da Carris e a pequena Usina Municipal) totalizavam apenas 5.168 kW, sendo
a energia transportada com grandes perdas, em virtude do sistema de corrente contínua
e do mau estado da rede de distribuição, e consumindo as velhas instalações muito
carvão para gerá-la. As antigas centrais geradoras controladas pela CEERG reuniam
4.500 kW de potência.63 As duas usinas da empresa teriam produzido conjuntamente
cerca de 13.500.000 kWh em 1927, 6.981.213 kWh dos quais foram destinados ao
serviço de tração elétrica (pelos trilhos da CPA transitavam, então, 97 carros). Do
restante, cerca de 65% foram destinados à iluminação particular, 25% distribuídos às
indústrias e apenas 10% foram consumidos pela iluminação pública da capital. Fora a
energia destinada aos tramways, o principal mercado da companhia continuava sendo o
da iluminação privada. O capital conjunto da CEERG e CPA alcançava
31.000:000$000, que eqüivalia a 60% do capital total investido em usinas termelétricas
inferior um coletor de vapor, e construída cada uma dentro das seguintes especificações técnicas:
superfície de aquecimento 325 m2; pressão de serviço, 20 atmosferas efetivas; pressão de
experiência 30 atmosferas efetivas.
Superaquecedor de vapor: superfície de superaquecimento, 150 m2; pressão de serviço
20 atmosferas efetivas; temperatura de vapor medida na saída do superaquecedor, 375 graus
centígrados.
Economizador para cada caldeira, com superfície de aquecimento de 240 m2;
dispositivo raspador para limpeza contínua dos tubos e todos os acessórios necessários.
As caldeiras foram providas de todas as válvulas, torneiras, registros, etc., e dos aparelhos de
medida registradores para verificação da pressão, da porcentagem de gás carbônico CO2 nos
gases de combustão, de tiragem, de temperatura dos gases, de temperatura do vapor etc. dando-se
preferência aos aparelhos construídos sob o princípio elétrico.
A água de alimentação das caldeiras é retirada do rio Guaíba passando antes por
aparelhos de destilação, com uma capacidade mínima de 6.000 litros por hora.(...)
O serviço de alimentação de água para as caldeiras é feito pela forma mais eficiente,
com uma turbo-bomba `Sulzer', da capacidade de 33.000 litros por hora, altura de elevação
manométrica de 225 m., com todos os acessórios e também por uma bomba elétrica centrífuga
`Sulzer', de alta pressão da mesma capacidade. Além dessas duas bombas, há uma terceira bomba
`Sulzer', de sobressalente.
A sala da usina destinada aos turbo-geradores, foi construída para conter: quatro turbogeradores de 5.000 kW cada um ou a alternativa de dois de 5.000 kW e dois de 10.000 kW, com
ligeiras modificações na superfície das fundações para o caso de 10.000 kW."
A usina entrou em operação com "dois turbo-geradores de corrente trifásica, fabricação
de `Oerlikon', da Suiça, com condensação, e compreendendo" cada um "uma turbina a vapor, tipo
com condensação, construída para os seguintes dados: capacidade normal medida nos bornes do
gerador, 5.000 kW; velocidade, 3.000 rpm; pressão do vapor de admissão, 18 Kg por cm2, acima
da pressão atmosférica; temperatura do vapor de admissão, 350 graus centígrados.
São os principais acessórios da turbina, cuja parte de alta pressão é de ferro fundido
especial: uma bomba de óleo para dispositivo regulador e para lubrificação dos mancaes; uma
bomba de óleo, a vapor, para demarragem; um resfriador de óleo, com circulação de água doce,
para uma temperatura máxima de 25 graus centígrados; uma válvula reguladora automática, para
o servo-motor a óleo, de pressão, com um dispositivo de segurança contra excesso de velocidade,
verificável durante a marcha; um dispositivo contra o movimento axial do motor; um dispositivo
de segurança contra a falta de óleo, de pressão, munido de aparelho de alarme; uma válvula de
sobrecarga, automática, etc., aparelhos de medida, como: tachímetros, manômetros, vacuômetros,
termômetros, etc.
Cada gerador de corrente trifásica, diretamente ligado por luva à turbina, foi construído
para os seguintes dados: capacidade 5.000 kWh, com cos.f.= 0,8, ou sejam, 6.250 KVA;
frequência 50 ciclos por segundo, tensão elétrica 6.600 volts; quantidade de ar de resfriamento, 8
m3 de ar por segundo, aproximadamente.
A excitatriz de 110 volts de tensão é ligada diretamente ao gerador por meio de luva. O
conjunto turbo-gerador assenta sobre uma base cumum de ferro fundido, a qual foi selada por
meio dos respectivos parafusos às fundações de concreto.
Cada turbina está provida de um condensador de superfície, construído para trabalhar
com água doce, consumindo 1.930 m3 por hora, devendo a temperatura dessa água ser de cerca de
25 graus centígrados.
São seus aparelhos acessórios, um grupo bomba-motor, compreendendo um motor
trifásico de 110 HP, 380 volts, 50 ciclos e 1.450 rpm; uma bomba centrífuga para água de
resfriamento; uma bomba de ar e uma bomba para água condensada.
O controle e a distribuição de energia gerada, para as linhas de alimentação, é realizado
pelo perfeito e moderno sistema de pupitros e chaves para comando à distância dos interruptores
de óleo. O regime de corrente em todas as suas modalidades é sempre conhecido pelos aparelhos
de medida e registradores, como: ampérímetros eletro-magnéticos; voltímetros magnéticos;
fasômetros eletro-dinâmicos; voltímetro de precisão eletro-dinâmico; frequenciômetro;
sincronóscopo; voltímetro duplo eletro magnético de 0-8.000 volts; kilowattômetros registradores
de 0-7.000 kW para cada turbina; aparelhos de proteção, etc." Ver: RAMOS, Mario de Andrade.
A Nova Usina Thermo Elétrica de Porto Alegre. Conferência realizada em sessão
extraordinária do Conselho Diretor do Club de Engenharia. Rio de Janeiro: Niemeyer Soares &
Cia, 1929, p. 10-15.
62
Outros 2.000 consumidores eram atendidos pela Usina Municipal, o que totalizava 8.000
assinantes na capital. Em 1927, a população total de Porto Alegre beirava os 250.000 habitantes.
Estima-se que entre 10 e 15% da população usufruía portanto dos serviços em suas residências e
estabelecimentos comerciais.
63
"Subdividida por pequenas máquinas a vapor de 75 kW, 150 kW e 300 kW e apenas três
turbinas, sendo duas de 750 kW na Fiat Lux e uma de 1.000 kW na Força e Luz Porto Alegrense,
maravilhosa máquina que a quatorze anos funcionava ininterruptamente, tendo as suas palhetas já
tão gastas que chegava a consumir quinze quilos de vapor para gerar um KW mas, não era
possível pará-la, a não ser graças a dedicação do chefe da usina, apenas algumas horas pela
madrugada, horas de menos carga, para uma ligeira limpeza, ou reparo indispensável. (...)
Geradores a vapor, alguns (...) contavam 25 e 30 anos de serviço, pois, como as velhas caldeiras
"Belleville", da Fiat, datavam da sua inauguração e ainda eram necessários nas horas de máxima
carga. (...) O estudo dos detalhes com relação às péssimas condições da rede de distribuição de
energia, instalações, etc., só poderia carregar as cores desse quadro..." (RAMOS, Mário de
Andrade, op. cit., p. 8.)
59
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
no estado, em sua maior parte privadas. Segundo o Anuário Estatístico de 1927, Porto
Alegre teria consumido cerca de 43% da energia elétrica total gerada no estado.64
Mas a construção da termelétrica da Volta do Gasômetro, um verdadeiro
palácio da eletricidade, terminou conduzindo a CEERG a dificuldades financeiras. Em
1928, a distribuição de dividendos aos acionistas foi suspensa, após ter sido reduzida,
nos anos anteriores, inicialmente para 6%, depois para 4%. Os problemas de reunião de
recursos para a conclusão da obra agravaram-se em novembro de 1927, quando então
iniciou-se o cortejo entre a São Jerônimo e o grupo norte-americano Amforp, empresa
de capital norte-americano, ligada ao Banco Morgan de Nova Yorque, que estava
entrando no Brasil e vinha açambarcando grande número de concessões em diferentes
pontos do país.65
Entretanto, a concretização da transação dependia da possibilidade da
companhia americana conseguir um contrato de exclusividade em Porto Alegre. Em
outubro de 1927, intensificaram-se, portanto, as negociações entre a Amforp e a
Intendência, apadrinhadas pelo técnico da Seção de Eletricidade, Dr. Fernando Martins,
que em seguida viria a tornar-se funcionário da CEERG americana. Tendo inicialmente
as condições da companhia sido rejeitadas pelos principais engenheiros do Intendente
Otávio Rocha, as negociações foram reencetadas apenas em março de 1928,
imediatamente após a morte deste último e com a sua substituição pelo Cel. Alberto
Bins, grande industrial local, deputado estadual pelo PRR da 7a a 10a legislaturas
(1913-1927) e vice-intendente. Chamou-se, então, às pressas uma concorrência pública
que englobava a venda dos acervos da CEERG, CPA e Intendência Municipal (usina
elétrica e gasômetro) e, após algumas manobras eficazes, que tiraram de cena os
técnicos do município contrários ao acordo, celebrou-se, em 5 de maio, o contrato de
concessão com a Companhia Brasileira de Força Elétrica (CBFE/Amforp).66
Esta operação resolvia o problema de caixa da São Jerônimo e
continuava a garantir-lhe a reserva de mercado para o seu carvão, mesmo porque as
máquinas da nova termelétrica haviam sido especificamente projetadas para uso do
carvão nacional. De outra parte, os acionistas gaúchos, que agora mantinham
participação minoritária nas empresas, apoiaram a transação, pelo que se depreende das
declarações à imprensa da época. Doravante, entretanto, jamais voltaram estes a
perceber quaisquer rendimentos por suas ações. O jornal Correio do Povo, por seu
turno, seguiu em porfia com a CEERG, sustentando uma nota dissonante na imprensa
da capital que dava voz à inconformidade de muitos consumidores face aos serviços
prestados. De um modo geral, contudo, os serviços das empresas, CEERG e CPA,
obtiveram uma sensível melhora, que manteve-se pelo menos até a década de 40.
Todavia, analisado em um contexto mais amplo, o ônus do acordo firmado entre
Alberto Bins e a CBFE foi pago especialmente pelas comunidades em processo de
industrialização do interior do estado: no Vale do Sinos, Jacuí e região do Rio Santa
Maria. Isto porque ao determinar a condição de privilégio em Porto Alegre, o principal
mercado consumidor de eletricidade do estado era fechado, inviabilizando
definitivamente o projeto de construção de uma central hidrelétrica no Rio Jacuí, que
forneceria energia abundante e barata à capital e à região citada. Nesta, em meados dos
anos 30, o espectro do racionamento tornar-se-ía já uma realidade sufocante.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O contrato de maio de 1928 importou num refluxo definitivo da
participação do capital nacional na produção e distribuição de energia elétrica no Rio
Grande do Sul, em benefício da expansão do capital estrangeiro, que até então ocupara
uma posição periférica, nas cidades de Pelotas67 e Rio Grande, nesta última apenas até a
encampação da Cie. Française du Port du Rio Grande pelo governo estadual, em
1919. Entre 1923 e 1925, o capital de origem regional, diante das dificuldades que
enfrentava, havia recuado, tendo cedido espaço ao capital nacional, já consorciado ao
estrangeiro, através da Cia. Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo.
Embora a indústria de energia elétrica tenha sido pioneira no Rio Grande
do Sul, surgindo apenas quatro anos após ter sido inaugurada a primeira usina
distribuidora de eletricidade do mundo, por Thomas Edison, em Manhattan, o
desenvolvimento das principais empresas responsáveis pelos serviços, sediadas em
Porto Alegre, esteve sempre em descompasso com as demandas verificáveis pelo
mercado de consumo. De fato, ainda que tenha sido feito um grande esforço para que
empresas de origem inteiramente regional estruturassem-se desde o início sob forma de
corporações modernas, com capital aberto a uma larga relação de acionistas,
contrariando a tendência dominante do incipiente capitalismo sul-riograndense,
marcado pela presença de empresas familiares, a natureza própria dos serviços de
eletricidade, caracterizada pela exigência constante de investimentos dependentes da
reunião de considerável volume de capital, determinou o permanente impasse na
indisponibilidade de recursos suficientes garantidores dos programas de expansão das
instalações. Tanto a Fiat Lux quanto a Força e Luz, procuraram promover sucessivos
aumentos de capital, em geral captados junto aos maiores acionistas das companhias,
junto a instituições financeiras regionais, algumas empresas ou investidores isolados,
ou, em último caso, junto a grandes empresas de fora, capazes de proporcionar um
vultoso aporte de capital; operações estas, que em ambas as companhias implicaram em
64
CP - 19.05.1928 (MCS); PORTO ALEGRE e as Novas Obras da CEERG, op. cit. p. 4;
ANUÁRIO Estatístico do Rio Grande do Sul (1928), op. cit.
65
CP - 10.04.1928 (MCS).
66
Ver: AXT, Gunter. Política Energética e Indústria de Energia Elétrica no Rio Grande do Sul
Republicano. Cadernos de Estudos. Curso de Pós-Graduação em História da UFRGS. Porto
Alegre, n. 10, p.74-96, 1994.
67
Ver: AXT, Gunter. A Indústria de Energia Elétrica em Pelotas (1913-1946). Revista do Núcleo
de Pesquisa da UFPel. Pelotas, n. 2, p. 149-173, 1996.
60
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
certos casos na alteração da constituição de suas diretorias, importando, inclusive, no
afastamento de seus sócios-fundadores, no caso, Aimable Jouvin e S. Dernuit, e
Possidônio M. da Cunha, respectivamente.
À guisa de conclusão, depreende-se que o mercado financeiro regional,
representado tanto por investidores isolados como por instituições de financiamento
locais, foi incapaz de responder às necessidades de investimentos dispostas pela
indústria de energia elétrica. Por outro lado, as tentativas de obtenção de recursos no
mercado externo de capitais caracterizaram-se, via de regra, pelo fracasso, como, por
exemplo, por ocasião das negociações conduzidas por Possidônio da Cunha, em 1905,
na Europa.
Doutra sorte, as operações de crédito e as emissões de títulos (em sua
maioria quirografários) sucessivamente levadas a efeito pela administração da CFL
indispuseram acionistas majoritários e minoritários entre si. Os termos desta polêmica
foram detalhadamente vertidos pela imprensa em 1910. Com o tempo, a defesa dos
interesses dos acionistas minoritários por intermédio de setores da imprensa aos
mesmos ligados deriva a um ataque frontal à diretoria da CFL e, portanto, também aos
serviços da companhia e ao contrato celebrado com o poder público municipal. A
administração da CFL perde credibilidade perante a comunidade, e a crescente
impopularidade dos serviços prestados pode ser avaliada diante das depredações ao
patrimônio da empresa promovidas em repetidos distúrbios e tumultos sociais. Sem
dúvida, as expectativas de rendimentos sobre o capital investido, sempre bastante
elevadas, entraram em choque com o interesse público dos usuários dos serviços, o que
insuflou grande celeuma em torno das pretensões de reajustes nas tarifas.
A um tempo, incapaz de vencer os encargos de sua enorme dívida e de
investir na ampliação de suas instalações, a CFL busca um novo parceiro financeiro,
passando a diretoria a ser assumida por este e pelo principal credor da empresa. Da
mesma forma, ao entenderem os acionistas da Fiat Lux ser inviável ou desinteressante
a sustentação de novos aportes de capital, as ações foram integralmente transferidas a
CEERG. O esgotamento da capacidade reprodutiva do capital repetiu-se com a Cia.
São Jerônimo, determinando o processo que culminou com a absorção dos acervos da
CEERG e da CPA pela CBFE norte-americana, em 1928.
No transcorrer de sua controvertida existência, a CFL dispôs de um
inegável favorecimento de parte dos poderes públicos, tanto ao âmbito municipal
quanto estadual, o que em grande medida ajudou a viabilizar o empreendimento.68
Bastaria lembrar que nove dentre seus principais acionistas foram deputados estaduais
e/ou federais pelo partido governista uma ou mais vezes. Embora os governos
republicanos propalassem o tema da isenção e imparcialidade administrativa, verifica-se
com efeito o favoritismo dos poderes públicos nos episódios da concorrência municipal
de 1904; da realização dos projetos para implantação dos serviços; do contrato de 1906;
da polêmica em torno das obras em 1907; das greves dos trabalhadores da empresa,
especialmente em 1919 e 1925; e da revisão contratual em 1925.69 Durante a década de
20, a denúncia desta relação passa a ser sugerida pelos ataques da imprensa. Tal
eficazes, de modo a realizar-se o melhoramento (...). A municipalidade concorreu para a
formação da empresa (...). Foi a municipalidade que obteve isenção de direitos aduaneiros (...);
que por causa das obras da companhia mandou retificar o perfil de diversas ruas nos arrabaldes
(...); que mandou reparar calçamentos, obras estas que a cia. era obrigada fazer por força das
obrigações do contrato ..." (Fed - 25.03.1908 - CPDHPRS).
69
É bem verdade que a Intendência foi acusada de perseguição à CFL por ocasião da rejeição da
proposta da companhia para fornecimento de iluminação pública aos arrabaldes, em 1907. A
controvérsia desenvolve-se quase que diariamente entre maio e julho de 1908 através dos jornais
"Gazeta do Comércio", "Folha da Manhó" e "A Federação". Entretanto, não fosse pelo
oportunismo eleitoreiro dos primeiros, que pretenderam explorar a polêmica gerada pela
intervenção direta dos poderes públicos num chamado "serviço industrial", o debate pareceria
insólito, pois além da Usina Municipal já estar quase concluída no momento da oferta da CFL,
esta última previa custos mais elevados para os serviços dos que os projetados pela Intendência,
os quais, ainda, seriam de difícil execução, pois a capacidade instalada na usina da CFL não
permitia tal encargo.
Sobretudo, porém, a usina de Porto Alegre era uma peça chave na política
governamental de incentivo ao consumo do carvão nacional, constituindo-se num indispensável
laboratório de testes para seu emprego e espaço privilegiado para propagandea-lo: "(...) Foi
preciso a enérgica intervenção do intendente de Porto Alegre para acabar de vez com o
preconceito de que o carvão nacional não se prestava ao fim de manter pressão nas caldeiras."
(Fed - 07.03.1907 - CPDHPRS). E ainda: "São notórias as contrariedades com que tem lutado a
empresa das minas de São Jerônimo para a colocação do carvão mineral. A guerra que sofreu foi
surda às vezes, aberta de outras. Às dificuldades que surgiam ao desenvolvimento da empresa
acresciam as que provinham dos que, sem conhecimento exato do assunto, depreciavam o gênero,
dizendo que o carvão rio-grandense era imprestável. (...) Esta indústria de futuro grandioso
definhava quanto o dr. Borges de Medeiros, então no governo, atento ao desenvolvimento das
forças econômicas do estado, resolveu, de acordo com a Assembléia dos Representantes, tomar
uma medida de dupla vantagem: prevenir a devastação das matas e proteger a definhante indústria
do carvão de pedra. Taxado o consumo de lenha (...), a decisão do poder público foi recebida com
antipatia, por todos quanto visam efeitos imediatos (...). A celeuma foi grande. A lenha era obtida
por preços inferiores aos do carvão, e diante deste argumento calaram-se outras considerações de
maior monta (...)." (Fed- 18.03.1908 - CPDHPRS).
Enfim, para o governo estadual, que colocava o incentivo à indústria carbonífera acima
das demandas da indústria em geral e das iniciativas para a eletrificação do estado, não se
justificaria o simples abandono do projeto da usina de Porto Alegre: o favoritismo à CFL era
limitado pelo protecionismo mais amplo ao setor extrator.
68
"... Se existe hoje a tração elétrica em Porto Alegre é devido à iniciativa municipal, que muito
anteriormente a qualquer iniciativa da Carris Porto Alegrense tinha incumbido o dr. Cândido
Godoy, atual secretário do governo de Carlos Barbosa, de estudar na Europa este sistema, com
prévia autorização dos amigos do intendente e acionistas dessa empresa. Mais tarde, ou
espontâneamente ou por conhecimento do projeto intendencial, respectivos orçamentos e plantas,
a CPA resolveu entrar nas negociações para a tração elétrica. Dessas negociações e das indicações
e intermediações dos amigos do intendente na Carris Urbanos, resultou a fusão com a CPA. De
tudo teve conhecimento o benemérito dr. Borges de Medeiros, cujos esforços foram muito
61
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
protecionismo subliminar opera na alavancagem do ainda frágil capital regional,
compensando a inexistência de uma política oficial definida para o setor elétrico.
O capital que reuniu-se para a incorporação da Fiat Lux e da CFL teve
origem num grupo de investidores especialmente ligados às atividades financeiras e
comerciais na capital gaúcha. Dentre os principais acionistas das companhias
encontram-se casas comerciais, imobiliárias, operadoras de seguros, bancos e
capitalistas ou financistas isolados conectados a tais atividades. Além das empresas
ligadas a Possidônio da Cunha, encontram especial destaque neste quadro de
investidores e prestadores de créditos os bancos da Província e do Comércio.
Finalmente, a condição de livre concorrência do mercado de energia
elétrica na capital, festejada pelos poderes públicos, jamais afirmou-se na prática.
Primeiramente porque nenhuma das empresas seria capaz de gerar energia suficiente
para toda cidade, podendo cada uma atender apenas uma parcela restrita da demanda
real. Além disso, possuindo diversos investidores ações em ambas as corporações,
tornava-se indesejável qualquer confronto entre a Fiat Lux e a CFL. A partir de 1925,
quando ambas empresas passam ao controle da CEERG, a condição de monopólio
torna-se ainda mais evidente. Por sua vez, a Usina Municipal jamais chegou a constituir
uma ameaça de concorrência às empresas privadas, pois distribuía energia a zonas nas
quais as mesmas não atuavam.
No momento em que, destarte, a reprodução do capital passou a exigir a
garantia de privilégio de exploração dos serviços em Porto Alegre, a encampação do
acervo municipal pela nova concessionária foi incluída na concorrência pública de
1928. Ainda que, efetivamente, o contrato de 1928 tenha, pelo menos a médio prazo,
propiciado a melhora substancial dos serviços na capital gaúcha, não deixou de ser o
mesmo um antídoto arranjado para o esgotamento das empresas atuantes no município.
A Cia. São Jerônimo, que em 1923 iniciara uma ofensiva no setor elétrico de Porto
Alegre com o intuito de fomentar o consumo do carvão que extraía de suas minas,
chegara a 1928 incapaz de concluir as obras que desencadeara. Socorria-se, assim,
empresas praticamente falidas redimensionando-se a questão energética da capital.
Porém, sob um prisma imediatista e informado pelas determinações da indústria
carbonífera e do capital financeiro regional, esta redefinição trouxe prejuízos ao estado
como um todo.
Tais medidas se deram numa época em que a indústria de energia elétrica
era reconhecida sobretudo em sua dimensão comercial, e as empresas e concessões
governamentais representavam células isoladas, dispersas pela inexistência de um plano
geral de política energética definido. O capital privado que prosperou neste sistema,
revelou sua fragilidade, apesar do favoritismo governamental, no momento em que foi
chamado a resolver a equação determinada i) pela necessidade de maiores
investimentos; ii) pelas altas expetativas de rendimentos sobre as somas investidas; iii)
pela escassez de recursos disponíveis no mercado financeiro regional; iv) pela falta de
acesso ao mercado estrangeiro de capitais; v) pela pressão do movimento operário, da
opinião pública e dos usuários dos serviços prestados pelas companhias; vi) e, por fim,
pelas contradições oriundas dos eventuais prejuízos acarretados à saúde das empresas a
partir das especulações financeiras levadas a cabo pelas diretorias administrativas.
Se num primeiro momento, a condição periférica da acumulação de
capital no Rio Grande do Sul face ao cenário nacional permitiu a reprodução do capital
regional no setor elétrico, pois os grandes investidores externos mostraram-se pouco
entusiasmados com o incipiente mercado de consumo gaúcho, com o desgaste das
iniciativas locais as companhias estrangeiras terminaram ocupando-lhes o espaço, sendo
então de fato recebidas como alternativa redentora.
62
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
O DESAFIO DE CLIO:
o esporte como objeto de estudo da História ∗
GENOVEZ, Patrícia Falco. O desafio de Clio: o esporte como objeto de
estudo da História. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz
de Fora: UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 84-92.
Patrícia Falco Genovez
Doutoranda em História pela UFF
Membro do Núcleo de História Regional da UFJF
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
Endereço para correspondência:
Revista Eletrônica de História do Brasil
Arquivo Histórico da UFJF
Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
Prédio do CDDC - Campus Universitário
Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330
RESUMO: O artigo trabalha o esporte como objeto da História, separado da Educação
Física, colocando os espaços e possibilidades de análise de um tema ainda pouco
explorado pela historiografia.
ABSTRACT: The article deals with sport as a subject of History, disconnected from
physical education, presenting the spaces and possibilities of analyses of theme still not
much exploited by historiographie.
PALAVRAS-CHAVE: Esporte: história; Historiografia: esporte.
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
E-mail: [email protected]
Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342
Milhares de pessoas, enfrentando o mau tempo, se dirigiram
ao caes Mauá para dizer o seu adeus aos “azes” patrícios, dandolhes um grande conforto na hora em que partiam para terra
estranha em busca de maiores gloria para o Brasil esportivo.
Desde meio-dia, portanto duas horas antes do “larga” do
“Arlanza”, o povo começou a afluir ao caes, que cerca das 14
horas apresentava um aspecto grandioso e um ambiente de
intensa vibração. A multidão se comprimia na praça Mauá,
ocupando todos os pontos de onde fosse possível vêr melhor a
chegada dos “azes”. Estes, à medida que iam aparecendo,
tornavam-se alvo de enthusiasticas aclamações que partiam
sinceras daquela multidão. Um extenso cordão de isolamento foi
instalado sob a vigilancia de grande contingente da Guarda
Municipal afim de evitar que o povo, levado pelo seu enorme
enthusiamo, opuzesse qualquer dificuldade ao embarque da
delegação. (...)
Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades
comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo
e em sua estrutura física.
∗
Este artigo, traduzido para o espanhol, foi publicado originalmente na revista Lecturas:
Educacion Física y Deportes. Buenos Ayres, año 3, n. 9,
Marzo 1998.
<http://www.sirc;ca/revista>
63
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
interpretar la conyuntura y lo estrutuctural en la E. F. escolar
hoy. 4
O “Arlanza” fez-se ao largo às 14,40 horas. E ao se afastar o
navio, a multidão, em delírio, ovacionava freneticamente os
“azes” brasileiros que, postados no convez, retribuiam as
aclamações com o agitar de lenços. Só quando o “Arlanza”
desaparecia ao longe a mole humana deixou o caes, certa de que,
em terras longínquas, os “azes” patrícios jogarão com o
pensamento na pátria distante, ouvindo, sempre, o grito de
enthusiasmo e de incintamento que partiu de milhares de
brasileiros na hora do embarque e que é o grito unisono do paiz
inteiro. 1
O passo mais adequado, no momento, é nos valer cada vez mais de trocas
interdisciplinares, levando a História até a educação física e trazendo a educação física
para mais próxima dos historiadores.
Nesse sentido, o esporte pode ser apenas o elemento inicial deste
processo. Um objeto que tem sido trabalhado por alguns historiadores renomados ao
nível internacional 5 mas, que aqui no Brasil, ainda não encontrou abrigo nos meios
acadêmicos. 6 Por quê? Acredito que a resposta a esta pergunta nos levará,
inevitavelmente, a um breve retrospecto da produção e das preocupações inerentes à
historiografia brasileira.
Não pretendo com isto, conduzir o texto para um debate sobre a
historiografia, analisada em si mesma. Mas, tentar colocar os espaços e a possibilidade
de trabalhar com um objeto tão pouco explorado. Aliás, não apenas pouco explorado
como, às vezes, menosprezado no meio intelectual, tanto por aqueles que se dedicam a
estudar a prática esportiva, como é o caso da educação física, 7 como por aqueles que se
propõem a estudar o homem no espaço e no tempo, em suas mais variadas atividades,
como é o caso da História.
Nesse sentido, delimito meu escopo de observação aos historiadores
brasileiros de formação, buscando trabalhos que procurem pensar metodológica e
teoricamente o esporte como objeto de estudo da História. Exercício que se faz urgente
num momento em que, recentemente, foi lançado, no país, um livro de grande
importância e magnitude, Os Domínios da História, organizado por dois grandes
historiadores, Ciro Cardoso e Ronaldo Vainfas. 8 Uma obra coletiva, com o objetivo de
traçar um panorama atualizado dos vários campos de investigação da História.
Curiosamente, nos capítulos referentes à História social e à História cultural, áreas que
apresentam possibilidades teóricas e metodológicas para tratarem de um vasto leque de
objetos, sequer citam o esporte.
Atento à leitura do texto acima, magnificamente escolhido por Fábio
Franzini, para descrever a partida da delegação brasileira de futebol para a Copa do
Mundo realizada na França, em 1938 2, nenhum brasileiro teria qualquer dúvida sobre a
importância do esporte no seu cotidiano. Contudo, tal objeto não parece receber, por
parte de historiadores brasileiros, a atenção devida. Vale ressaltar, desde o início, que o
recorte no presente artigo, trabalhando o esporte como objeto da História, separado da
educação física, ocorre no sentido de que os mesmos nos pareça objetos distintos.
Compreendemos que educação física e esporte são objetos diferenciados que vão
solicitar caminhos metodológicos e preocupações teóricas diferenciadas. 3 Acredito
que no momento atual da produção historiográfica, acerca de tais objetos, o esporte,
encontre uma maior abertura na História do que a educação física. Não por ser esta
última considerada menos importante mas, por ser entendida como um campo
específico de conhecimento, talvez mais técnico. Contudo, é inegável que seu estudo
também apresente questões pertinentes.
Conocer la historia de la Educacion Fisica y desarrollar con esos
datos la conciencia histórica de los professores de E.F. (en tanto
competencia que se apoya en las operaciones mentales: percibir;
interpretar y orientar) puede colaborar en el análisis y
comprensión de nuestro habitus profesional (en tanto sentido
práctico que dirige nuestras acciones). La investigación en
História y la circulación de la información histórica puede ser
parte del proceso de construcción i desarrollo de la conciencia
histórica de los profesores de E. F. como perspectiva para
4
AISENSTEIN, Angela. “La investigación histórica en Educación Fisica”. Lecturas: Educación
Fisica y Deportes. Buenos Aires, año 1, n. 3, 1996.
5
Como o Dr. J. A. Mangan, Chris Rogek e o sociólogo Eric Dunning.
6
Não podemos deixar de ressaltar alguns historiadores brasileiros já envolvidos no processo:
Isabel Marson, Cecília Salles de Oliveira, Plínio Labriola e Edgar Deddeca. Além de um espaço
virtual para troca de informação: a lista de discussão CEVHIST, moderada pelo professor Victor
A. de Mello <[email protected]>.
7
Ver MELLO, Victor Andrade de. “História da Educação Física e do Esporte no Brasil Panorama, perspectivas e problemas”. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora:
UFJF, vol. 1, n. 1, maio/97, p. 13. <http://www.ufjf.br/~clionet/rehb>
8
CARDOSO, Ciro Flamarion e VIANFAS, Ronaldo (org). Domínios da História: ensaios de
teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
1
“Uma apotheose o embarque da embaixada brasileira para a França!”. A Gazeta - Edição
Esportiva. São Paulo, 02 de maio de 1938, p. 2.
2
FRANZINI, Fábio. “Futebol, identidade e cidadania no Brasil dos anos 30”. In: Caderno de
Resumos; XIX Simpósio da ANPUH, Belo Horizonte, 1997.
3
Conforme MELLO, Victor A. de. “História da Educação Física e dos Desportos”. In: FARIA
JÚNIOR, Alfredo Fomes et alli (org). Uma introdução a Educação Física. Niterói, Ed. Corpus,
1988. (no prelo). p. 5.
64
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
intelectual), fê-la apegar-se aos diversos “marxismos”
disponíveis, sobretudo nos cursos de História. Não por acaso,
aliás, as principais temáticas de pesquisa e publicação de fins da
década de 1970 foram, grosso modo, as do “movimento operário”
e da “revolução” (...) sem falar nas pesquisas de temas
socioeconômicos, matéria que despertava enorme interesse
naquele tempo. 13
Mesmo reconhecendo os limites de um livro que, evidentemente,
encontra-se submetido a uma série de imposições editoriais, o esporte como objeto da
História, não tem conquistado o espaço que lhe é devido nem mesmo no simpósio de
historiadores (ANPUH) realizado a cada dois anos. Por incrível que possa parecer os
historiadores que se dedicam ao esporte tem motivos para festejarem os quatro
trabalhos inscritos e apresentados na ANPUH 9, num universo de aproximadamente mil
e quatrocentas (1400) comunicações (somando livres e coordenadas), vinte e duas (22)
conferências, cinquenta e sete (57) mesas redondas e trinta (30) cursos 10 em
comparação à ANPUH de 1995, quando apenas um trabalho foi inscrito e apresentado.
11
Aliás, vale chamar a atenção para o fato de todos os trabalhos centrarem-se no
futebol. Não havendo, portanto, apresentação de trabalhos tratando de outros esportes
ou discutindo questões metodológicas, teóricas ou empíricas acerca do esporte como
objeto de estudo. Esta ênfase no futebol não deve ser analisada apenas como o reflexo
da paixão de alguns historiadores que resolveram “unir o útil ao agradável”, ou seja,
fazer História ao falar de futebol. Na verdade, encaro tal processo, como parte de um
outro, mais amplo, tratado adiante, que vem ocorrendo na historiografia brasileira. Do
outro lado da moeda, estudantes e professores de educação física organizarão, neste
próximo ano, o VI Encontro Nacional de História da Educação Física e do esporte. Um
esforço que merece respeito e, mais do que isto, exige que se abra um diálogo cada vez
mais estreito entre as duas disciplinas: História e Educação Física.
Para explicar tamanho ostracismo é preciso voltar ao início do século,
quando a historiografia brasileira desenvolvia-se em base rankiana, mostrando-se, nos
anos 30, voltada para as abordagens clássicas. Diferentemente do que ocorria na
Europa, no Brasil, a profissionalização do historiador se fez fortemente marcada pela
influência das abordagens econômicas e sociológicas, predominantes na década de 60.
12
Tal influência garantiu trabalhos acadêmicos voltados, primeiramente, para o negro e
a escravidão, e, nos últimos anos, áreas que privilegiam a História social da família, a
História social do trabalho e a História social do Brasil Colonial e da escravidão. Numa
outra perspectiva, a defasagem da historiografia brasileira, já na década de 70, tinha
relação direta com o contexto histórico no qual encontrava-se inserida.
O fato de a universidade ter sido confinada como uma espécie de
“gueto” de resistência ao regime (resistência pelo menos
Neste contexto, os poucos trabalhos com uma perspectiva histórica do
esporte já nasciam comprometidos pela influência, primeiramente, da História
tradicional, positivista e, em segundo lugar, por ser considerado assunto secundário em
meio a temas como revolução, classe operária, marxismo e tantos outros. Conforme
Victor Andrade de Mello, podemos pensar tais trabalhos dirigidos ao estudo dos
desportos e da educação física dividindo-os em três fases: na primeira, predominam os
livros importados voltados para os aspectos históricos da ginástica; na segunda, embora
apresentando semelhanças com a fase anterior, já demonstram certo desenvolvimento
no uso documental; na terceira, buscam ressaltar os aspectos ideológicos da educação
física, contudo, apresentam-se metodologicamente confusos em relação à História.14
Tendo em vista o levantamento bibliográfico, já realizado pelo autor, não nos deteremos
em avaliar tal produção. 15 De um modo geral, as obras relacionadas a estas três fases,
apontam para uma bibliografia em que poucos são os autores que possuem formação em
História.
É, exatamente, pelas dificuldades inerentes à historiografia brasileira e,
principalmente, pela afinidade desta para com a sociologia que teremos que
compreender o menosprezo da História para com o esporte. Para Eric Dunning,
... no quadro da tendência que orienta o pensamento reducionista
e dualista ocidental, o desporto é entendido como uma coisa
vulgar, uma atividade de lazer orientada para o prazer, que
envolve o corpo mais do que a mente, e sem valor econômico. Em
consequência disso, o desporto não é considerado como um
fenômeno que levante problemas sociológicos de significado
9
Os quatro trabalhos foram: SILVA, Eliazar João da. “A função social do futebol no Brasil
(1894-1920), CABO, Álvaro Vicente do. “Copa do Mundo de 50 - Nação, confronto e derrota”,
FRANZINI, Fábio. op. cit., PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “A Pátria calçando
chuteiras: o futebol e a emergência social do nacionalismo”. Caderno de Resumos; XIX
Simpósio Nacional de História da ANPUH. Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, 1997.
10
Informativo - XIX Simpósio Nacional de História: História e cidadania. Maio/1997, Ano II, n.
02, Belo Horizonte, MG. p. 2.
11
SILVA, Eliazar João da. A História do futebol no Brasil. Caderno de Resumos; XVIII
Simpósio de História da ANPUH. Recife, UFPE, 1995.
12
CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro F. & VIANFAS, R. (org), op. cit., p. 55.
13
VAINFAS, Ronaldo. “História das mentalidades e História cultural”. In CARDOSO, C. e
VAINFAS, R. (org), op. cit., p. 159.
14
MELLO, Victor A. de. op. cit., 14 a 21.
15
Para um levantamento sobre o tema ver GENOVEZ, Patrícia Falco e MELO, Victor Andrade
de. Bibliografia Brasileira sobre História da Educação Física e do Esporte. Rio de Janeiro:
Editora Central da Universidade Gama Filho, 1998. A obra está publicada, também,
eletronicamente pela Clio Edições Eletrônicas <http://www.ufjf.br/
~clionet/clioedel>, podendo ser consultada na Biblioteca Virtual de História do Brasil:
<http://www.ufjf.br/~clionet/bvhbr>
65
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
específicos.21 Nesse sentido, a citação que abre o presente ensaio é bastante significativa
e emblemática acerca da comoção nacional que a partida da seleção brasileira de futebol
proporcionou aos torcedores e, principalmente, aos cidadãos brasileiros.
Num outro sentido, o esporte também é um indicativo de modelos de
sociabilidade e de conduta. Aliás, temos que estar atentos para a importância das regras
que conduzem os confrontos esportivos tornando-os prazerosos e excitantes a um
número cada vez maior de espectadores. Um processo longo, que para Norbert Elias, é
mais um exemplo de avanço da civilização.22 E, que se constitui, no século XX, como
representação simbólica da forma não violenta e não militar de competição entre
Estados.23 Seria uma espécie de contramedida diante das tensões que as sociedades
avançadas criam. Ou seja,
Enquanto a excitação é bastante reprimida na ocupação daquilo
que se encara habitualmente como as atividades sérias da vida exceto a excitação sexual, que está mais estritamente confinada à
privacidade -, muitas ocupações de lazer oferecem um quadro
imaginário que se destina a autorizar o excitamento, ao
representar, de alguma forma, o que tem origem em muitas
situações da vida real, embora sem os seus perigos e riscos. 24
equivalente aos que habitualmente estão associados com os
negócios “sérios” da vida econômica e política. 16
Sem valor econômico e considerado vulgar, os historiadores, tal qual os
sociólogos, insistem em não perceberem o esporte como um objeto de estudo capaz de
mostrar as mais tênues nuances das relações sociais que, fora da lógica esportiva,
parecem excludentes, como a competição e a cooperação ou o conflito e a harmonia.17
É, justamente, por abrir esta possibilidade de análise que podemos pensar no esporte
como um objeto da História social ou da História cultural. Passemos, portanto, a avaliar
mais detidamente tais possibilidades teóricas e metodológicas.
Pensar o esporte como objeto para aclarar as relações sociais não é,
absolutamente, nada novo. Eric Hobsbawm, renomado historiador, aponta o esporte
como um dos elementos capaz de estabelecer o pertencimento à burguesia ou à classe
média, na Inglaterra, no final do século XIX e início do XX.
Todos exigiam que se preenchessem duas condições: deviam
distinguir claramente os membros da classe média dos das classes
operárias, dos camponeses e de outros ocupados em trabalhos
manuais, e deviam apresentar uma hierarquia de exclusividade,
sem afastar a possibilidade de o candidato galgar os degraus da
escadaria social. Um estilo de vida e uma cultura de classe média
era um destes critérios; uma atividade ociosa e especialmente a
nova invenção, o esporte, era outro; mas o principal indicador do
pertencimento de classe crescentemente veio a ser, e ficou sendo,
a educação formal. 18
O descontrole “controlado” favorecido pelo esporte apresenta-se como
um antídoto para o stress da vida real através de tensões miméticas, envolvendo o
perigo e a tensão da realidade em contraposição àqueles criados numa prova desportiva.
Mas, para além do emocional, o esporte também favorece o estudo das ações humanas
em grupo, tendo em vista que o processo do jogo é exatamente este: uma configuração
dinâmica de seres humanos cujas ações e experiências se interligam continuamente,
representando um processo social em miniatura. 25
Mas, no que concretamente a História social e a História cultural podem
contribuir? Por que o esporte seria, por excelência, o objeto destas duas áreas da
História? Mais do que respostas acabadas, o que tentaremos colocar são elementos para
futuras discussões. Exatamente, por ser um objeto ainda recente para a História, muitos
debates serão necessários para aclarar cada vez mais as possibilidades metodológicas.
Tentarei, portanto, levantar algumas delas.
Nascida para contrapor-se à História factualista, centrada em heróis e
batalhas, a História social pretendida pelos Annales, priorizava os fenômenos coletivos
e as tendências de longo prazo. 26A partir da década de 60, a História social apresentou-
Como uma tradição inventada, Hobsbawm nos abre caminho para
apreendermos o esporte como um instrumento, entre tantos outros, utilizado para
inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição. 19 Assim, o
esporte pode ser um indício, um indicador, das relações humanas e das ações que as
legitimam, podendo, em alguns casos, se colocar como cimento da coesão grupal.20
Para o autor, o esporte da classe média representava a tentativa de desenvolver um novo
e específico padrão de lazer e um estilo de vida, um critério flexível e ampliável de
admissão num grupo, além disso, a ascensão do esporte proporcionou novas
expressões de nacionalismo através da escolha ou invenção de esportes nacionalmente
16
21
17
22
ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1985, p. 17.
Idem. p. 18.
18
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988, p. 245. Grifo
nosso.
19
HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (org). A invenção das tradições. Rio de Janeiro :
Paz e Terra, 1984. p. 9.
20
Idem. p. 21.
Idem. p. 309.
ELIAS, N. The civilizing process. Oxford: 1978.
23
ELIAS, N. e DUNNING, E. op. cit., p. 45.
24
Idem. p. 70.
25
Idem. p. 87.
26
FEBVRE, Lucien. Combates pela História. 3 ed., Lisboa: Presença, 1989. Neste livro o autor
mostra, através de vários ensaios, a proposta dos Annales e os combates travados por uma
66
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
cometida. Por esse motivo, a vingança é, com frequência, o seu
grito de guerra. Um dia a gota d’água transborda e eles procuram
vingar-se sobre alguém. 29
se mais próxima da antropologia, privilegiando abordagens socioculturais sobre os
enfoques sócio-econômicos. Nesse aspecto, Hebe Castro, aponta múltiplas referências.
Em primeiro lugar, a elaboração de uma noção de cultura
percebida como inerente à natureza humana e que engloba e
informa toda a ação social. Da perspectiva de Geertz, toda a ação
humana (e não apenas o hábito ou o costume) é culturalmente
informada para que possa fazer sentido num determinado contexto
social. É a cultura compartilhada que determina a possibilidade
de sociabilidade nos agrupamentos humanos e dá inteligibilidade
aos comportamentos sociais. 27
Além da questão de sociabilidade e comportamental, há ainda outro
aspecto: o simbólico. Um escopo de pesquisa ainda pouco explorado pela História
cultural, preocupada com a sexualidade e a moralidade cotidiana do período colonial e
do século XIX, ou ainda, com a mentalidade e a cultura escravista. 30Contudo, sua
afeição pelo informal, como festas, crenças etc, abre espaço para o historiador trabalhar
o lazer e o esporte. Gestos, cores, emblemas, todo o aparato que envolve as práticas
esportivas podem ser objeto de estudo da História cultural. Assim como as bandeiras e
hinos nacionais evocam e representam o patriotismo de uma nação tais símbolos podem
ter o mesmo tratamento com relação a clubes ou delegações de atletas. 31 Aliás, no
aspecto representativo, muitas vezes o próprio atleta já é um símbolo. Ao relatar os
mecanismos pelos quais o futebol criava uma identidade e auxiliava a ideologia
nacionalista na década de trinta no Brasil, Fábio Franzini nos remete para as tênues
fronteiras entre o esporte, a sociedade e os símbolos que o primeiro é capaz de perpetrar
no imaginário da população.
Os jogadores eram os representantes do Brasil no exterior, e deles
se esperava o mesmo que da nação: coragem, disciplina, e, acima
de tudo, patriotismo. Mas o mais importante era que a população
brasileira via que esses representantes não lhe eram estranhos; ao
contrário, tinham saído dela própria: eram negros, mulatos, filhos
de imigrantes - precisamente aqueles que consquistaram o futebol
dos pés da elite para transformá-lo em uma das expressões
populares mais enraizadas. Em que pese toda a importância da
ideologia nacionalista do momento, essa identificação primeira,
da população com os jogadores e destes com a nação, é que foi
fundamental para promover a coesão nacional em torno do
futebol. 32
No âmbito da sociabilidade e dos comportamentos de agrupamentos
humanos, o esporte, sem dúvida teria um papel relevante como objeto de estudo. Não só
pelo aspecto grupal de certas práticas esportivas mas pelos símbolos e comportamentos
sociais que implicam. Aprofundando um pouco mais na questão da sociabilidade
podemos nos remeter a gerações de atletas, redes de amizades e de rivalidades. E, não
apenas de atletas profissionais mas, também, de grupos esportivos que restringem seus
integrantes de acordo com a classe social a que estão inseridos. Além das trajetórias de
tais grupos é possível traçar algumas características do “viver em classe”, das relações
comuns a uma geração. O mundo esportivo é um mundo a parte com redes complexas,
daí a necessidade de compreender a maneira como as associações vão se formando,
assim como, as práticas esportivas características de cada classe social. 28 Nesse sentido,
uma análise sócio-econômica pode se tornar extremamente reveladora, mostrando
conflitos sociais e formas de marginalizações. Basta, para tanto, tomarmos como
exemplo os diversos casos de violência de torcidas, ocorridos não apenas em países
pobres mas, também em sociedades que apresentam um nível sócio-econômico
satisfatório para grande parte da população, como é o caso da Inglaterra.
A partir das áreas cinzentas de marginais que se formam à volta
da maior parte das grandes cidades mais desenvolvidas, as
pessoas, em especial os jovens, olham através das janelas para o
mundo estabelecido. Podem ver que é possível uma vida com mais
sentido e mais realizada do que a sua própria vida. Seja qual for o
seu sentido intrínseco, isso possui um significado para eles e
sabem, ou talvez apenas possam sentir, que estão privados disso
para toda a vida. E embora por vezes acreditem que lhes foi feita
uma grande injustiça, nem sempre é claro saber por quem foi
Não apenas o futebol mas outros esportes podem contribuir com a
formação de uma identidade de um determinado grupo ou até cidade. É, partindo desse
pressuposto que Gatón Gil analisa o basquete na cultura urbana no interior da
Argentina.33 Para o autor o esporte é
29
História do social contrapondo-se ao modelo rankiano.
27
CASTRO, Hebe. op. cit., p. 52.
28
Sobre geração ver ATTIAS-DONFUT, Claudine. “La notion de genération. Usages sociaux et
concept sociologique”. L’homme et la societé. n. 90, XXII année, 1988. Sobre sociabilidade ver
LEROY, Geraldi. “La mondanite literaire a la Belle-Epoque”. Les cachiers de L’IHTP. Paris, n.
20, mars, 1992. Neste artigo o autor trabalha a questão da sociabilidade nos cafés parisienses.
ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. op. cit., p. 93.
VAINFAS, Ronaldo. op. cit., p. 160.
31
Sobre símbolos, bandeiras, cores ver BETTHENCOURT, F. & CURTO, Diogo. (org). A
memórias da nação. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1987.
32
FRANZINI, Fábio. op. cit., p. 9.
33
GIL, Gastón. “Rebotes de identidad, el basquete en la cultura urbana del interior. Lecturas:
30
67
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
un foco de una extraordinaria variedad de posibilidades de
identificación, al modularlas de acuerdo a los hábitos específicos
de las diferentes categorías de espectadores: identificación, por
supuesto, con una ciudad, una región, con una firma o compañía
en términos del estilo del equipo del que uno es hincha; una
identificación preferencial con tal y tal tipo de juagador de
acuerdo a las cualidades (fuerza, fineza, sentido de
organización...) que son valorodas en un proprio universo cultural
y práctica profesional; la identificación de un equipo o club con
una imagem ideal de vida colectiva; la idenficación de una drama
que constituye el juego con sus experiencias (felices o infelices) de
la propria experiencia personal de un sujeto. 34
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar tais áreas de pesquisa exige, em contrapartida, um trabalho
especial com as fontes. Nesse sentido, é preciso estar atento para a grande variedade de
fontes disponíveis: das mais convencionais (jornais, revistas, fotos, atas de reuniões,
livros de contabilidade dos clubes, cadastro de sócios etc) às menos formais (emblemas,
uniformes, hinos, gritos de guerra de torcidas etc).
Além, é claro, das possibilidades das fontes orais, envolvendo relatos de
antigos e de novos ídolos. A História oral permite a elaboração de documentos que
podem revelar processos diversos de formação de uma imagem, de elementos distintos
que compõem cada geração. Trajetórias que podem ser reveladas através de relatos de
torcedores e especialistas da área esportiva. As fontes visuais, também, podem e devem
ser utilizadas, sempre procurando incorporar a engrenagem que as produziram. As
matérias publicadas, as reportagens devem ser entendidas e analisadas buscando os
mecanismos através dos quais a mídia constrói ou destrói os mitos e as formas
diferenciadas de formação da opinião pública.
Contudo, é importante que o historiador não perca de vista a metodologia
adequada a cada tipo de fonte e, muito menos, a crítica que cada uma delas deverá
sofrer. Uma questão já bastante conhecida para os historiadores de formação mas, que
talvez, para alunos e professores da área de educação física possa causar certo
incômodo. Sem a pretensão de fazer um breve manual metodológico, é preciso ressaltar
que sem um total afinamento entre teoria, metologia e empiria, sem qualquer
preocupação com o recorte temporal e espacial do objeto é, absolutamente, impossível
estar fazendo História sobre qualquer tipo de objeto. 36
Parece que está posto o desafio de Clio aos seus discípulos historiadores.
Cabe a nós entrarmos no jogo sem perder de vista suas regras, a metodologia adequada
no trato das fontes e os instrumentos teóricos que, em simbiose, com o próprio objeto de
estudo, contribuirá para levantar novas perspectivas acerca do convívio do homem, no
tempo e no espaço.
Além da identificação que o esporte pode suscitar a questão simbólica e
ritualística, também, deve ser observada. Enquanto prática esportiva repetitiva e de alto
conteúdo dramático o desporto apresenta uma ritualidade que lhe é característica,
revelando o sentimento de pertencimento ou de exclusão, marcando diferenças sociais
mas, ao mesmo tempo, propiciando a coesão e a identificação grupal. Contudo,
la celebración del rito no anula todas las diferencias, sino que,
eventualmente, anula aquellas que se derivam de lo que acabamos
de llamar la primera alteridad (la relativa a la edad, al sexo, etc.).
En cuanto a lo demás, la celebración del rito se organiza alredor
de las alteridades diferentemente constituidas, alteridades
funcionales que ponen en escena (...) diferencias derivadas de la
primera alteridad (separar los hombres de las mujeres, por
exemplo) y relativizar por eso la identidad compartida: ésta es
compartida ahora sólo por la presión de diferencias que no se
conciben planamente como relativas, como teñidas en cierta
forma por la identidad. El dispositivo ritual alcanza su límite y el
de su eficacia cuando la alteridad que le es propria
(oficiantes/asistentes, etc) abarca, de maneira más o menos
amplia, la alteridad social que dicho dispositivo debe reconecer y
tratar. Ese vuelco de la relativización (la identidad compartida
sólo es relativamente a la ceremonia y las alteridades
correspondem a diferencias insuperables) es notorio en los
rituales llamados de inversión, en los que las diferencias se
presentam, se imitam, pero non se borran. 35
Educación Fisica y Deportes. Buenos
<http://www.sirc.ca/revista/edfxtes.htm>
34
Idem.
35
Idem.
Aires,
ano
2,
n.
5,
Junio
1997.
36
Sobre os passos de um projeto de pesquisa em História ver CARDOSO, Ciro F. Uma
introdução à História. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 81 a 115.
68
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
INICIAÇÃO CIENTÍFICA
DAIBERT JÚNIOR, Robert. Isabel, a Redentora: heroificação da
princesa brasileira frente à crise monárquica e no advento da
República. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora:
UFJF, v. 2, n. 1, jan./jun. 1998. p. 93-112.
ISABEL, A REDENTORA:
heroificação da princesa brasileira frente à crise monárquica e no
advento da República *
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
Robert Daibert Junior
Graduando em História pela UFJF
[email protected]
Endereço para correspondência:
Revista Eletrônica de História do Brasil
Arquivo Histórico da UFJF
Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
Prédio do CDDC - Campus Universitário
Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330
...os traços de heroísmo, de virtudes
cívicas oferecidas aos olhos do povo,
eletrificam suas almas e fazem surgir as
paixões da glória, da devoção à felicidade
de seu país.
David, pintor da Revolução
Francesa
RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar a construção do mito em torno da
Princesa Isabel, como a principal responsável pela abolição da escravidão no Brasil.
Esta supervalorização é encarada como um mecanismo discursivo de sustentação do
regime monárquico no final do século XIX. Através da pesquisa em imagens e fontes
escritas, aborda-se a formação do mito no momento da crise monárquica, bem como sua
permanência após o advento da República.
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
E-mail: [email protected]
Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342
ABSTRACT: The aim of this article is to analyse the construction of the myth around
the Princess Isabel, as principal responsible for the abolition of slavery in Brazil. This
increased value is faced as an ideological mechanism to mantain the monarchial regime
in the end of nineteenth century. Through the research in images and sources
documents, the text approach the making of the myth in the moment of monarchial
crisis, as well as its permanence after the coming of the Republic.
Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem finalidades
comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo
e em sua estrutura física.
PALAVRAS-CHAVE: Princesa Isabel: heroificação; Crise monárquica; Abolição;
República: advento.
*
Este texto foi produzido originalmente, pelo autor, como trabalho final da disciplina História da
Arte V, lecionada pela Professora Maraliz de Castro Vieira Christo, no segundo semestre letivo
de 1997, no Curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora.
69
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
linguagem própria e passível de ser decodificada. Desta forma, estaremos analisando os
elementos contidos nestas imagens, bem como o sentido dos mesmos no contexto de
crise do regime.
Nossa proposta, num primeiro momento, é demonstrar a necessidade de
construção do mito, bem como sua relação com o período abordado. Num segundo
momento, estaremos analisando a própria construção do mito, onde buscaremos
desvendar a presença de um discurso pedagógico, presente nas imagens analisadas. Um
discurso que busca legitimar a herdeira do trono associando-a à idéia de moderno,
progresso etc, conferindo-lhe, com isso, caráter de autenticidade, merecimento e, por
parte dos súditos, aceitabilidade. Posteriormente, iremos analisar a permanência do
mito da Redentora após a Proclamação da República. Verificaremos, neste contexto, a
vitória de uma leitura monarquista da abolição. Uma proposta discursiva que, se não
conseguiu alcançar seu objetivo principal - legitimar o Terceiro Reinado - foi forte o
bastante, a ponto de sobreviver à queda da Monarquia e encobrir a interpretação
republicana que também tentou, sem obter sucesso, defender sua maternidade em
relação à abolição.
Nosso material de pesquisa - fontes primárias - se encontra, quase
totalmente no Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora), instituição responsável por um
dos maiores acervos do Brasil Império. 3 Elegemos como material de análise
iconográfica: uma estatueta comemorativa do treze de maio de 1888 e estampas
veiculadas na Revista Ilustrada. 4 Analisamos também, notícias diversas transmitidas
pela imprensa em momentos significativos. Analisaremos agora as motivações para a
criação do mito.
INTRODUÇÃO
Em treze de maio de 1888 chegava ao fim a mais complexa e tortuosa
campanha social já realizada no Brasil. Após décadas de intensas discussões políticas,
campanha abolicionista, fugas e rebeliões escravas, era abolida a escravidão negra no
país. Depois de ser aprovada na Câmara e no Senado, foi finalmente sancionada, pela
Princesa Isabel, a famosa Lei Áurea.
E assim, estabeleceu-se na memória coletiva somente a parte final deste
longo processo. Ou seja, a visão sobre a abolição tem sido reduzida ao momento de
sanção da lei que é interpretada como resultado de um decreto de extrema bondade da
Princesa Isabel. Estamos nos referindo à visão que foi difundida e se estabeleceu entre
os diversos setores e classes sociais. Uma visão que foi gestada pelos monarquistas,
corroborada pela historiografia tradicional e que ainda hoje, apesar de toda renovação
na concepção da história, não foi ainda totalmente apagada da memória coletiva.
A historiografia, ao se renovar, buscou se contrapor àquela visão
tradicional, responsável pela heroificação da Princesa Isabel. E, desta forma, passou a
explicar a abolição através de uma análise que privilegiou como determinante ora as
explicações estruturais, ora o imigrantismo, o movimento abolicionista ou o próprio
imaginário das elites.1 De um modo geral, o pós-abolição tem sido visto como o período
onde a monarquia perde o apoio dos cafeicultores do Vale do Paraíba que, insatisfeitos,
aderem ao movimento republicano. Conseqüentemente a abolição é interpretada como
uma das causas da proclamação da República. 2 Acreditamos, porém, que este não foi
um momento de passividade monárquica, como deixa transparecer a historiografia.
Antes, foi um período de intensas disputas, onde posições antagônicas - republicanas e
monarquistas- se enfrentavam continuamente. O que nos propomos neste trabalho é
analisar os primeiros momentos do pós-abolição, onde a monarquia brasileira celebrava
o fim do cativeiro e via nesta ruptura a garantia de legitimidade do Terceiro Reinado.
Certamente a Monarquia não assistiu sua decadência de braços cruzados.
Os meses que antecederam a instauração do regime republicano são momentos
privilegiados onde percebemos as articulações monárquicas em prol da garantia de sua
estabilidade. Nesta perspectiva é que iremos estudar a heroificação da Princesa Isabel.
Isto é, estaremos analisando a construção do mito da Redentora como principal
mecanismo de articulação discursiva na busca da estabilidade monárquica. É este o
enfoque que buscaremos dar a idealização deste Terceiro Reinado frente ao contexto de
crise da monarquia. Para tanto, iremos nos debruçar sobre a produção de imagens
relativas à Princesa Isabel que buscam associá-la de forma direta à abolição. Isto é,
como defensora-mor da causa abolicionista. Buscaremos identificar as mensagens
presentes nessas imagens, entendendo-as como construções históricas que detêm
Faz parte da mística de qualquer Monarquia elaborar e difundir uma
visão supervalorizada de seus governantes. Ao verificar uma proposta de heroificação
da Princesa Isabel não estamos nos deparando, portanto, com nenhum processo
estranho à tradição monárquica, sobretudo se considerarmos que ao longo dos séculos
“os reis foram percebidos como personagens capazes de ‘proteger’ e ‘salvar’.” 5
Contudo, entendemos que, nas circunstâncias pelas quais passava a monarquia
brasileira, no final do século XIX, a heroificação da herdeira do trono assumiu um
sentido especial, como veremos. Antes de entrarmos na construção deste discurso
legitimador, precisamos esclarecer a que discurso ele se opunha. Ou melhor dizendo,
qual o conteúdo do discurso “inimigo” que precisava ser enfrentado e que desafios a
nova sociedade lhe impunha. Com isso, entenderemos a necessidade e o sentido da
heroificação, a demanda pelo mito.
1
3
1. A DEMANDA PELO MITO DA REDENTORA
CARDOSO, C.F.S. (Org.) Escravidão e abolição no Brasil; novas perspectivas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 74-106.
2
COSTA, E.Viotti. Da monarquia à república; momentos decisivos. 5. ed. São Paulo:
Brasiliense, p. 327.
Apesar de ser pouco conhecida, a instituição perde, em matéria de acervo do século XIX
brasileiro, somente para o Museu Imperial de Petrópolis.
4
Periódico semanal circulado entre 1876 e 1896.
5
RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Os símbolos do poder. Brasília: UNB, 1995, p. 105.
70
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
representado-o como arcaico, ultrapassado, não condizente com os novos tempos,
ligado às trevas. Em oposição a tal situação, apresentavam-se como portadores do
progresso, da liberdade, das luzes. E, neste sentido, escolhemos este manifesto por
considerá-lo um ponto de inflexão. A partir de sua publicação é que o movimento
republicano irá se organizar e gradualmente ganhar força também em outras
províncias. Apesar da falta de coesão entre os diferentes grupos defensores do
republicanismo, que como vimos assenta raízes nos tempos coloniais, este momento
(1870) foi responsável por um grande impulso nas discussões em torno da possibilidade
de um regime republicano para o país. É a partir daí que a ameaça republicana, sempre
presente nas discussões políticas, irá se consolidar a ponto de impor uma nova direção
para as articulações monarquistas.
A publicação do Manifesto Republicano coincide com a emergência de
uma série de mudanças na sociedade brasileira oitocentista. É a partir de 1870 que as
transformações econômicas que vinham ocorrendo desde meados
do século tomam crescente impulso... Acelera-se o processo de
urbanização e industrialização, favorecido pela expansão da rede
ferroviária e pela entrada crescente de imigrantes, notadamente
para as regiões Sul e Sudeste.8
A ameaça republicana não se constituía uma particularidade das últimas
décadas oitocentistas. Mesmo em escala menor, ideais republicanos vinham se
aflorando em nosso meio desde os tempos coloniais. Um exemplo claro pode ser
observado na Inconfidência Mineira, movimento fortemente reprimido no final do
século XVIII. Também nos debates travados em torno do nosso processo de
independência lá estava a proposta republicana colocando-se como obstáculo aos
partidários da Monarquia. Após a abdicação de D. Pedro I, e durante todo o período
regencial (1831-1840), novamente percebemos movimentações em torno de propostas
republicanas. Ao longo de nossa História, a estabilidade do regime monárquico
esbarrava constantemente e, em escala cada vez maior, com os ideais republicanos.
Estes, se colocavam como portadores de um projeto político alternativo e superior à
ordem imperial. Uma melhor delimitação deste projeto pode ser observada no
Manifesto Republicano de 1870. Fundamentado nos princípios da liberal-democracia,
defendia reformas profundas nas estruturas do país que estariam, segundo os
articuladores do documento, empregnadas pelo ranso absolutista português. E, neste
sentido, declaravam que “o elemento monarchico não têm coexistencia possivel com o
elemento democratico.” 6 Contrapondo-se ao regime, então em vigor, procuravam se
afirmar apresentando-se como portadores de um projeto político alternativo e superior.
Colocavam-se como defensores de uma missão que iria solucionar os problemas do
país, como se pode verificar no trecho seguinte:
As armas da discussão, os instrumentos pacificos da liberdade, a
revolução moral, os amplos meios do direito, postos ao serviço de
uma convicção sincera, bastam, a nosso entender, para a victória
da nossa causa, que é a causa do progresso e da grandeza de
nossa pátria (...) A imprevidencia, as contradições, os erros e as
usurpações governamentaes... hão creado esta situação
deploravel, em que as intelligencias e characteres politicos
parecem fatalmente obliterados por um funesto eclipse. (...) O
perigo está indicado e é manifesto. Sente-se a ação do mal e
todos apontam a origem dele. E quanto maior seja o empenho
dos que buscam occultar a causa na sombra de uma prerrogativa
privilegiada e quasi divina, tanto maior deve ser o nosso esforço
para espancar essa sombra e fazer a luz sobre o mysterio que nos
rodeia.7 (Os grifos são nossos.)
Concomitantemente a este processo de desenvolvimento econômico, no
campo das idéias “tudo parecia novo: os modelos políticos, o ataque à religião, ao
regime de trabalho, a literatura, as teorias científicas.” 9 Dentro deste quadro de
significativas transformações, as discussões em torno do problema de mão-de-obra
passavam a assumir lugar central. Sabemos que houve forte resistência por parte dos
fazendeiros contra o processo abolicionista. Contudo, interessa-nos perceber a força
que esta nova sociedade urbana impôs a este processo, sobretudo no campo ideológico,
na formação do imaginário coletivo. Além das pressões inglesas pela extinção do
tráfico negreiro transatlântico, desde o início do século XIX, o desenvolvimento de
setores urbanos (descompromissados com os interesses agroexportadores) que
empreenderam efetiva campanha abolicionista foi fundamental para o crescimento de
uma forte convicção anti-escravista. Apesar de estar inserida em uma racionalidade
própria do sistema agroexportador (sobretudo do Vale do Paraíba) a escravidão não se
conciliava com as efervecentes mudanças pelas quais passava aquela sociedade. E, no
aspecto discursivo, era freqüentemente encarada como sinônimo de atraso e obstáculo
ao desenvolvimento e ao progresso nacional, valores fortemente difundidos na época.
Neste sentido, uma crônica de 1887 intitulada “O resultado da emancipação” nos
aponta algumas considerações interessantes. 10 Trata-se de uma apologia ao Visconde
Como se percebe, a idéia de moderno se contrapondo ao atraso era um
forte argumento que perpassava as questões apontadas pelos republicanos. Em seus
discursos, os republicanos expressavam severas críticas ao regime monárquico, sempre
8
MONTEIRO, Hamilton M. Brasil Império. Ática: São Paulo, 1986, p. 58.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993,
p. 28.
10
MARCIAL, S. O resultado da emancipação. Revista Illustrada. Rio de Janeiro, ano 12, n.
453, p. 3, 15 mar. 1887.
9
6
PESSOA, Reynaldo Carneiro. A idéia republicana no Brasil através dos documentos. AlfaÔmega: São Paulo, 1973, p. 59.
7
Idem, p. 40-41.
71
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
de não ser mencionada no Manifesto Republicano, era um problema que se arrastava
por todo o Império. Apresentada como uma das causas do nosso atraso, deveria ter um
tratamento especial pelo regime político então em vigor. Este precisava eliminar aquela
visão negativa, gradativamente difundida no país e que lhe era atribuída pelos
opositores. Na medida em que a abolição tornava-se assunto de ansiedade popular,
surgia a oportunidade para que a monarquia se apresentasse aos súditos como
defensora da abolição, o que equivale dizer: defensora do progresso e do
desenvolvimento da nação. A abolição era portanto um caminho viável e pertinente
para que a Monarquia assumisse a nova roupagem que os novos ares do fin de siècle
lhe impunham. Ao assumir tal discurso estaria, ao mesmo tempo: resolvendo um velho
problema (escravidão), neutralizando o discurso dicotômico do qual tomava parte no
lado das “trevas”, além de se apresentar sob uma nova faixada condizente com os novos
tempos. Estaria portanto garantindo sua legitimidade, freqüentemente questionada nos
últimos anos. Entretanto, somente o ato da abolição, em si, não era suficiente para
garantir ares de modernidade ao regime. Era preciso criar uma propaganda eficiente
em cima da abolição para que a Monarquia fosse associada aos novos tempos e,
portanto, se mostrasse capaz de responder às aspirações do povo do qual devia se
apoximar.
Como já vimos, a atitude do visconde que libertou seus escravos
mereceu destaque e elogios. Seu ato foi considerado literalmente o de um herói e de
um patriota portador de uma visão de futuro e portanto digno de admiração. Estes
atributos resumem de modo significativo as necessidades discursivas da Monarquia
naquele momento. Ao enfrentar os desafios dos novos tempos, precisava, para se
manter de pé, encarnar o espírito da modernidade, da nacionalidade, do patriotismo. Ou
seja, precisava ser associada a elementos que lhe conferisse admiração por parte dos
súditos, precisava de um herói nacional, ou melhor dizendo de uma heroína.
Mas por que D. Pedro II não poderia cumprir este papel ? Diante desta
questão algumas considerações se impõe. Primeiro pela própria idade do imperador,17
agravada consideravelmente por suas barbas brancas. Seria difícil associá-lo a qualquer
elemento inovador. Segundo por ser constantemente criticado por sua dedicação aos
estudos de astronomia, literatura, línguas etc em detrimento de seu aparente
desinteresse pelas questões políticas e pela função pública. Terceiro por se encontrar
doente por ocasião da assinatura da Lei Áurea chegando a ficar afastado do trono por
mais de um ano. Além disso era freqüentemente ironizado pelos jornais que o
chamavam de Pedro Banana e dorminhoco, sátiras que apontavam para sua falta de
preocupação e desprendimento pelo exercício do poder público. A doença associada a
velhice contribuía para o aumento das críticas relacionadas ao seu despreparo.18 Sua
da Silva Figueira, agricultor do Rio de Janeiro, que havia libertado seus duzentos e um
escravos. Em sua análise, o cronista não poupou esforços para elogiar a atitude do
visconde, bem como os resultados obtidos pelo mesmo. Assinala que o fazendeiro
praticou um “nobre ato” que a “História registrará em suas páginas áureas.” 11
Destaca que os libertos “mostram-se, em geral, satisfeitos e gratos” e que os que
seguirem a atitude do visconde receberão “uma quantia 10 ou 20 vezes maior do que o
mais elevado saldo que tiveram nos seus tempos de esclavagismo.” 12 O discurso
abolicionista é claro ao afirmar que aos adeptos daquela causa “não haverá
superlativos que lhes cheguem, como hoje não os ha nos Estados Unidos para esse
punhado de patriotas e de heroes, que desvendaram o futuro aos seus concidadãos
obsecados! ” 13 A ligação entre abolicionismo e o progresso dos novos tempos fica
evidente no trecho (ainda da mesma crônica) que se segue abaixo:
Tudo isso virá com certeza, amanhã. Mas a homens, como
Visconde da Silva Figueira, que, seguindo os impulsos de sua
nobre índole e tendo a visão do futuro, se antecedem um pouco
(...) ninguém poderá recusar a sua admiração e a sua mais íntima
estima. Honra a esse benemerito14. (Os grifos são nossos.)
Como se pode perceber, a visão abolicionista, notadamente urbana,
esforçava-se por propagar seus ideais a todo custo. Estes, eram difundidos em nome de
um futuro brilhante e moderno, onde o progresso iria iluminar os caminhos outrora
obscurecidos por um nefasto passado escravocrata. Atitudes como a daquele nobre
fazendeiro eram abertamente elogiadas e exaltadas. Os jornais, principais veículos de
comunicação da época, eram responsáveis pela propaganda abolicionista que crescia
assustadoramente, a ponto da sorte dos escravos se transformar “a partir de 1880 numa
corrente de opinião apaixonada e avassaladora.” 15 O povo ansiava pela abolição.
Mas o que isso tudo tem a ver com a heroificação da Princesa Isabel? Que
elementos nos apontam para a demanda do mito? Ora, ao longo desta seção temos
visto que os novos tempos, sobretudo a partir de 1870, apresentaram desafios a
Monarquia. Tanto o movimento abolicionista quanto o republicano apresentavam um
discurso marcado por uma leitura dicotômica da realidade. Direta ou indiretamente a
Monarquia era associada a um passado absolutista, retrogrado, maléfico, atrasado e
envolto em trevas. Ao passo que as “novas” idéias se colocavam como portadoras de
um futuro liberal, avançado, benéfico, progressista e iluminado.16 A escravidão, apesar
11
Idem.
Idem.
13
Idem.
14
Idem.
15
BASBAUM, Leôncio. História sincera da República; das origens à 1889. 4. ed. AlfaÔmega: São Paulo, 1982. Vol. 1, p. 245.
16
Deve-se deixar claro que o movimento abolicionista não tinha, necessariamente, ligação direta
com o republicanismo. Alguns dos mais famosos abolicionistas eram também monarquistas fiéis,
12
como é o caso de Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e de André Rebouças que inclusive exilouse junto à Família Imperial após a Proclamação da República. Grosso modo, o que há de comum
entre os dois movimentos é a idéia de um futuro mais democrático e liberal.
17
No ano da abolição D. Pedro II completou 63 anos.
18
A própria Revista Illustrada apresentava estampas que expressavam essa imagem do
72
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
negativo, pelo menos pelos intelectuais influenciados pelo pensamento positivista (anticlerical), era a proximidade da princesa com a Igreja Católica. Por esse motivo era com
freqüência chamada de beata. Diante destes problemas, buscou-se conquistar a
simpatia do povo, que precisava valorizar a futura imperatriz e, porque não dizer, amála. Estes fatos de caráter pessoal, associados ao contexto já analisado, impunham a
necessidade de construção do mito da Redentora. Era preciso associar de forma tríade
abolição-princesa-povo. O elo de ligação viria da heroificação da princesa como
redentora dos escravos.
imagem continha assim, alguns elementos dos quais a Monarquia precisava se
desvincular.
Contrariamente ao pai, a Princesa Isabel poderia encarnar bem os
requisitos já apontados por nós. Sobretudo se considerarmos que um príncipe
simboliza
a promessa de um poder supremo, (...) as virtudes régias no
estado da adolescência, ainda não dominadas nem exercidas.
Uma idéia de juventude e de radiância (...) Ele faz mais o gênero
do herói do que o do sábio. A ele pertencem os grandes feitos (...)
O príncipe e a princesa são a
idealização do homem e da
mulher, no sentido da beleza, do amor, da juventude, do
heroísmo.19 (Os grifos são nossos.)
2. A CONSTRUÇÃO DOS “TRAÇOS DE HEROÍSMO”
A expectativa popular em torno do processo de abolição é inquestionável.
Acreditamos que tal fato não passou desapercebido aos olhos dos defensores da
Monarquia. Estes, esforçaram-se a todo custo em enfatizar a presença da população,
seja em torno dos eventos relativos a aprovação da lei ou nas comemorações
posteriores a ela. Era preciso empreender, como já dissemos, uma associação tríade:
abolição-princesa-povo. A busca desta associação pode ser melhor percebida se
observarmos as notícias de um periódico de caráter monarquista, onde fica evidente a
necessidade de heroificação e de aproximação com o povo. Vejamos:
A abolição promulgada já, de ha muito pelos corações traduzida
em facto, consumado pelo povo, (...) todos compreenderam que à
excelsa Princeza se devia um testemunho de apreço, pelo muito
que também fez em pról dos captivos. Assim, expontaneamente,
quasi sem accordo prévio, cada qual se preparou para glorificar e
cobrir de flores a herdeira do trono, acontecendo que,
concorrendo todos para esta manifestação, ella tornou-se, por si
mesma grandiosa, sublime, única. Nunca se viu scena igual, desde
que o Brasil existe! A efusão popular chegou ao auge na hora em
que o throno se consorciava com a população, no mesmo afã de
tornar o Brazil um pais livre, espalhando sobre elle, como uma
bênção, os primeiros clarões da liberdade.21 (Os grifos são
nossos.)
Um príncipe encarna em sua figura um potencial ainda não explorado. É
desta forma que a figura da princesa se coloca como portadora de um novo tempo.
Neste sentido, o Terceiro Reinado, que deveria ser comandado pela futura Imperatriz
Isabel I, precisava ser encarado e imaginado como um governo melhor que o Segundo
Reinado. Diante das dificuldades do momento, a celebração da abolição e sua
associação direta com a figura da herdeira do trono, funcionaria como uma pequena
demonstração das inovações futuras que o Terceiro Reinado prometia.
Deve-se ressaltar, ainda, que a princesa não dispunha, anteriormente de
boa aceitação pública. Seu casamento com o Conde D’ Eu (francês) custava-lhe
severas críticas. Acreditava-se que o país seria futuramente governado segundo os
interesses franceses. A demora em engravidar-se (dez anos) também se constituiu
motivo de preocupação e especulação popular, uma vez que comprometia-se a
continuidade da dinastia através de seu ramo.20 Outro aspecto apontado como elemento
imperador D. Pedro II. Algumas dessas estampas podem ser visualisadas em suporte
eletrônico
na
Biblioteca
Virtual
de
História
do
Brasil
http://www.ufjf.br/~clionet/bvhbr/imagens.htm. As mesmas imagens também podem ser
visualisadas em suporte de papel em ALENCAR, Francisco. et alli. História da sociedade
brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1985, p. 170. ALENCAR, CHICO. et alli.
Brasil vivo; uma nova história da nossa gente. 13. ed. Vozes: Petrópolis, 1993, p. 136.
AGOSTINI, Angelo. Revista Illustrada, 2 set. 1882, apud LIMA, Herman. História da
caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, v. 1, p. 205.
19
CHEVALIER, Jean. & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 4. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1991, p. 744.
20
Isto porque D Pedro II havia perdido dois filhos homens, falecidos nos primeiros anos de
vida. A Princesa Leopoldina (segunda filha de D.Pedro II) falecera não antes de deixar filhos,
mas pelo menos seu filho mais velho (D.Pedro Augusto), segundo comentavam as más línguas,
sofria de problemas mentais. A própria Princesa Isabel (única filha de D Pedro II, ainda viva) já
havia perdido seu primeiro filho, uma menina nascida morta. O falecimento desta criança foi
atribuído a viagem de navio realizada em condições precárias da França ao Brasil. Isso por
exigências dos deputados brasileiros que queriam evitar o nascimento do herdeiro do trono em
Como se pode perceber , a princesa é apresentada como uma figura
generosa que se aproxima do povo respondendo aos anseios de seus corações. Por isso é
merecedora de glorificação e reconhecimento público. Através de seu gesto, esperavase que a monarquia se conciliasse com o povo. Note-se que tais afirmações datam de
dias anteriores a assinatura da Lei Áurea, quando o projeto ainda tramitava na Câmara e
solo francês. Cf. LACOMBE, Lourenço Luiz. Isabel, a princesa redentora; baseado em
documentos inéditos. Petrópolis: Instituto Histórico de Petrópolis, 1989, p. 183-184.
21
VERIM, Julio. 3 de maio de 1888. Revista Illustrada. Rio de Janeiro, ano 13, n. 496, p. 2-3
mai. 1888.
73
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
no Senado do Império. A expectativa popular foi fortemente destacada pelo mesmo
periódico num texto sugestivamente intitulado “Na rua”:
Ao sahir a Princeza acompanhada de seu esposo, o povo fez-lhe
uma estrondosa ovação. O carro seguia, litteralmente, sob uma
chuva de flôres desfolhadas e, de todos os lados os lenços e os
chapeus acenavam saudando a Princeza libertadora! Gratas
recordações deve Sua Alteza ter levado do dia de ante-hontem,
sentindo bater tão de perto o coração, puro e magnanimo, do
povo brazileiro. 22
Puzestes cobro ao longo soffrimento
De uma raça infeliz que só sabia
Que tinha vida, no cruel momento
Em que o sangue, aos açoites escorria.
(...)
Alma não tinha, estupida operava;
Os olhos sempre temidos de pranto
Seguia pela treva que a cercava
De um espanto cahindo n’outro espanto.
O apelo às massas se fazia necessário. O povo foi retratado como
participante dos momentos de glória da nação e da própria Monarquia. O sentimento de
nacionalidade, de amor à pátria e ao regime político precisavam ser aguçados. Diversas
fontes nos informam da presença maciça da população em torno dos acontecimentos
ligados ao processo final de aprovação da tão esperada lei.23 A associação assumia
gradativamente aquela forma tríade que proporcionaria a construção de uma imagem
democrática da instituição e da própria herdeira do trono.
A imprensa monarquista, aproveitando-se da inquestionável expectativa
popular, empreendeu uma efetiva propaganda das comemorações abolicionistas
procurando enfatizar a presença da Monarquia e sobretudo da regente como
responsável pelo grande acontecimento. Buscou-se aproveitar ao máximo este momento
para melhorar sua imagem. As celebrações na Corte prolongaram-se por dias: a elite
assistiu a corridas de cavalo no Derby Clube e o povo passeou de graça nos trens da
Estrada de Ferro D.Pedro II. Os teatros também foram franqueados ao público. E em
Botafogo realizou-se uma regata comemorativa. Destas e de inúmeras outras formas, a
assinatura da lei ganhou grande repercussão em todas as camadas sociais, impregnando
a atmosfera
Era preciso perpetuar aquele acontecimento entendendo-o como um fruto
da ação corajosa da futura imperatriz que, de antemão, demonstrava sua potencialidade
a ser desenvolvida. Neste sentido, multiplicavam-se elogios e saudações à princesa que
começava a ser chamada de Redentora. O aspecto de ruptura com o velho e inauguração
de um tempo novo fica evidente nas poesias dedicadas à princesa e a seus súditos no
pós-abolição. Como mostram as estrofes abaixo:
De subito um clarão desconhecido
Fere-lhe a vista, avulta esse clarão,
E o peito morto acorda comovido,
E a vez primeira pulsa o coração.
Iluminam-se os rostos de improviso;
O amor irrompe repentinamente;
Abre-se o labio em flôr - nasce o sorriso;
Cantando, a vida torna-se patente.
Começou para nós nossa existencia
Porque, Senhora, libertando um povo,
Deste-lhes coração e consciencia,
Arrancastes do cahos um mundo novo.
E quando o sol, apoz a redempção,
Apareceu no céu, a patria grata
Apenas viu, Augusta Democrata,
Em vez do sol o vosso coração. 24
Os momentos do pós-abolição foram sistemeticamente interpretados
como tempo das luzes trazidas pela Redentora. Com exceção da ira dos cafeicultores,
amenizada a princípio pela esperança de uma possível indenização, a princesa
conquistava a crescente simpatia da povo, num movimento que partia da Corte e atingia
outras províncias do Império. Faltava-lhe, porém, a benção da Igreja, da qual tornara-se
árdua defensora. Este reconhecimento não tardou a chegar. Em vinte oito de setembro,
do mesmo ano, ela recebia, em uma pomposa celebração religiosa na Capela Imperial, a
mais importante condecoração conferida pela Santa Sé. Trata-se da Rosa de Ouro,
22
Idem.
Veja, por exemplo, a fotografia da missa campal realizada no Campo de São Cristóvão (RJ)
em comemoração à abolição da escravidão e a fotografia que mostra a multidão concentrada
diante do Paço Imperial, para festejar a assinatura da Lei Áurea. Estas fotografias encontram-se
disponíveis em suporte eletrônico na Biblioteca Virtual de História do Brasil:
http://www.ufjf.br/~clionet/bvhbr/imagens.htm ou em suporte de papel em ALENCASTRO,
Luiz Felipe de. (Org.) História da vida privada no Brasil; Império: a Corte e a modernidade
nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v. 2. p. 366-367 e 436.
23
24
PASSOS, Guimarães. A Sua Alteza a Princeza Imperial Regente. Mai. 1888. Arquivo
Histórico do Museu Mariano Procópio. Coleção Família Imperial. Registro provisório 022.
74
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
oferecida à princesa pelo Papa Leão XIII.25 Este fato impunha um caráter de
reconhecimento internacional e favorecia a projeção do Brasil frente à outras nações.
Internamente, traduzia-se em mais um fator de glorificação da herdeira do trono que,
com heroísmo, colocava o país em posição de destaque internacional. Naquela
cerimônia, a presença dos bispos D. Vital e D. Antônio de Macedo Costa “trazia a
segurança de ter ficado no passado a Questão Religiosa.” 26 Aquele antigo mal estar
que havia fragilizado as relações entre o Império e a Igreja Católica, tornando-se um
dos elementos da crise monárquica, parecia estar sendo dissipado.
Várias foram as nações que se manifestaram, parabenizando o Brasil, na
figura da princesa. Chegou-se inclusive a enviar estampas que foram imediatamente
reproduzidas pela imprensa monarquista com o intuito de corroborar a heroicidade da
princesa, responsável pela elevação do país ao nível das nações desenvolvidadas.27 Ao
comemorarar seus quarenta e dois anos, pouco mais de dois meses após a assinatura da
Lei Áurea, a princesa foi homenageada pela publicação de uma estampa de Ângelo
Agostini,28 na Revista Illustrada.29 (Veja anexo 1.) A estampa, situada na primeira
página, apresenta uma mesa que assume o papel de altar doméstico onde se vê uma
fotografia da princesa cercada de flores. Diante da mesa percebemos a presença de um
um casal e de uma criança, que ensinada pela mãe, presta homenagem a sua redentora.
Ao fundo, vemos uma porta à qual se dirigem uma série de pessoas negras (certamente
todos são ex-escravos) com a mesma intenção de prestar homenagem. A intenção não
poderia ser mais clara. A própria presença do casal e da criança (provavelmente seu
filho) já simboliza o valor da família que era agora definitivamente garantido mesmo
àqueles mais miseráveis. O homem, em atitude de respeito, diferencia-se dos demais
que ainda não entraram na sala ao retirar o chapéu. Sua atitude será seguida certamente
pelos demais quando adentrarem no recinto, que assume assim o caráter sagrado de um
lugar de adoração. A presença da criança revela-nos a necessidade de se ensinar às
gerações futuras a importância da Redentora que deveria ser por todos reconhecida e
admirada. Para se construir o mito era preciso perpetuar esta idéia. Deve-se ressaltar
ainda a inclinação da mulher diante da imagem reforçando com isso a idéia de adoração
e gratidão. Todos estes elementos confluem para a exaltação da princesa, uma idéia que
era transmitida através de um discurso pedagógico, evidenciado na estampa. Esta
intenção torna-se mais clara se considerarmos seu veículo de transmissão. E neste
sentido, damos voz a Walter Benjamin ao destacar que a reprodução do objeto
tal como a fornecem o jornal ilustrado e a revista semanal é
incontestavelmente uma coisa bem diversa de uma imagem. A
imagem associa de modo bem estreito as duas feições da obra de
arte: a sua unidade e a sua duração; ao passo que a foto da
atualidade, as duas feições opostas: aquelas de uma realidade
fugidia e que se pode reproduzir indefinidamente.(...) graças à
reprodução, consegue até estandardizar aquilo que existe uma só
vez.30
Se levarmos em consideração nosso atual dinamismo telecomunicativo, o
papel de uma revista semanal certamente será insignificante. Contudo, devemos levar
em consideração o lugar deste veículo naquela sociedade. Ao historicizá-lo nos
deparamos com um eficiente veículo de comunicação, o mais moderno mecanismo de
propaganda de imagens, costumes e idéias das últimas décadas oitocentistas. Um meio
eficiente de se divulgar uma crença e de se construir um mito, oferecendo-o
constantemente “aos olhos do povo”, conforme as palavras do principal pintor da
Revolução Francesa. 31 E neste sentido, mais potente do que uma obra de arte, que nos
é dada uma só vez. Entretanto, David certamente não estava se referindo
exclusivamente a períodicos.32 O que queremos assinalar é que apesar do fato do caráter
popular das gravuras veiculadas na imprensa (como é o caso do anexo 1) ter conferido
maior eficiência na difusão e criação do mito redentor, nada nos impede de descobrir
um papel semelhante numa obra de caráter acadêmico.
Observaremos o mesmo objetivo heroificador na estatueta fundida pelo
Jokey Club do Rio de Janeiro (instituição tradicionalmente ligada à Monarquia) em
homenagem à Princesa Isabel. (Veja anexo 2.) Trata-se de uma peça exposta na sala D.
25
Esta condecoração era oferecida unicamente à chefes de Estado, uma vez por ano, em virtude
de atos de benemerência e caridade.
26
LACOMBE, Lourenço Luiz. Op. cit, p. 243.
27
Veja, por exemplo, a estampa oferecida pela Argentina por ocasião da Abolição da
escravidão. A estampa, reproduzida pela Revista Illustrada, pode ser visualisada
eletronicamente na seguinte homepage http://www.ufjf.br/~clionet/bvhbr/imagens.htm ou
em suporte de papel em ALENCAR, CHICO. et alli. Brasil vivo; uma nova história da nossa
gente. 13. ed. Vozes: Petrópolis, 1993, p. 158.
28
Caricaturista e redator artístico do periódico. Intelectual de origem italiana e de formação
francesa que mudou-se para o Brasil onde fundou a Revista Illustrada, espaço que utilizava para
abordar assuntos políticos, satirizar costumes, comentar peças teatrais e fazer críticas artísticas.
29
AGOSTINI, Ângelo. Revista Illustrada. Rio de Janeiro, ano 13, n. 507, p. 1, 29 jul. 1888.
Ver
a estampa no anexo 1 ou na Biblioteca Virtual de História do Brasil:
http://www.ufjf.br/~clionet/bvhbr/imagens.htm.
30
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: CIVITA,
Vitor. (Ed.) Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1975, (Os Pensadores, 48), p. 15.
31
Cf. David, apud CARVALHO, J. M., A formação das almas; o imaginário da república no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 11. Ver epígrafe deste artigo.
32
Como pintor neoclássico, foi um dos principais responsáveis pela produção artística ligada à
Revolução Francesa. Seus quadros refletiam a idéia de adesão voluntária à causa revolucionária.
Baseando-se nos ideais liberais, segundo os quais a soberania estava no povo, David expressava
artisticamente a necessidade do sacrifício individual em nome dos ideais de virtudes cívicas. Sua
arte foi inegavelmente pedagógica e se valeu da apologia aos heróis da Antiguidade que
deveriam servir de exemplo ao momento presente. Esta arte neoclássica, da qual falamos,
transforma-se no período napoleônico em uma arte acadêmica, ligada ao Estado, do qual David
torna-se o principal expoente artístico. Ao tornar-se arte oficial perde seu potencial revolucionário
tornando-se porta-voz dos interesses do Império de Napoleão.
75
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Pedro II, no museu Mariano Procópio (Juiz de Fora-MG). 33 Sua exposição, enquanto
peça de um museu, através da constante visualização pública ao longo das décadas, tem
contribuído para a perpetuação do imaginário heroificador da princesa redentora. E
coseqüentemente tem possibilitado a permanência da imagem mítica, função que as
estampas, relegadas a um arquivo, não conseguem cumprir com tanta eficiência. A
peça, fundida em prata com a base em mármore, aproxima-se de uma proposta
acadêmica na medida em que caracteriza-se por uma preocupação com a perfeição
anatômica e com os valores estéticos de uma beleza formal. Na obra estão presentes as
categorias estéticas do sentimento propostas por Edmund Burke, das quais se destacam
a beleza delicada, sutil, atraente, aprazível, bela por si mesma, beleza do sublime.34 E
ainda, uma arte pautada numa função pedagógica, que deve educar para a razão, deve
edificar. Como já dissemos, sua proposta está relacionada ao mesmo objetivo da
estampa, situada no anexo 1. Isto é, pretende afirmar a heroicidade do ato realizado
pela Princesa Isabel no dia treze de maio de 1888, legitimando-a como merecedora do
Terceiro Reinado que parecia aproximar-se. A análise da simbologia presente na peça
confirmará nossa hipótese relativa a produção de imagens da Princesa Isabel no pósabolição. 35
A escolha da posição dos elementos já começa a nos dizer alguma coisa.
O negro situa-se à esquerda da princesa, posição tradicionalmente ligada a elementos
negativos, obscuros e satânicos. Indica sentido de enfermidade, lugar onde se busca
justiça social, progresso inovação e libertação.36 Todavia , o escultor apresenta uma
solução a este pobre coitado que não permanecerá nesta posição por muito tempo.
Apesar de se situar à esquerda, o negro tem os olhos fitos na mão direita da princesa.
Tal fato é de extrema importância, sobretudo se considerarmos que na Bíblia “olhar à
direita (Salmo 142,5) é olhar para o lado do defensor; é lá o seu lugar. Como será o
dos Eleitos no Juízo Final, quando os danados ficarão à esquerda. A esquerda é a
direção do inferno; a direita , a do paraíso.” 37 O negro, em posição de rendição,
observa a placa (situada na mão direita) que traz a inscrição “ 13 de Maio”. A direita
simboliza, em política: a tradição, a ordem, a estabilidade, a força e o sucesso. Estes
elementos são assim valorizados e apresentados ao negro como promessas de um
futuro mais digno, do qual a princesa se coloca como intermediadora. Com a mão
esquerda no peito, sobre o coração, a princesa expressa o compromisso de um futuro
brilhante, o qual parece buscar com seu olhar direcionado ao horizonte. Ao mesmo
tempo, o peito expressa o abrigo de um coração generoso que expande suas dádivas
vivificadoras, um sentido de proteção e de segurança. Ali, naquele momento, coloca-se
como heroína, alguém que foi capaz de proporcionar uma nova situação aos
desfavorecidos que agora têm a possibilidade de olhar da esquerda para a direita, isto é,
vislumbrar do inferno o paraíso, alcançar a redenção de seus sofrimentos.
Deve-se ressaltar ainda que, apesar da mão direita da princesa estar
completamente abaixada, o negro situa-se numa posição ainda inferior a esta, sendo
preciso, para observá-la, inclinar levemente a cabeça e o olhar para cima, para o alto.
Tal elemento encarna uma simbologia interessante se considerarmos que o “olhar
dirigido lentamente de baixo para cima é um signo ritual de benção nas tradições da
África negra.” 38 A princesa assume assim uma feição sagrada. Além disso, situa-se
sobre o tapete, elemento que “resume o simbolismo da morada, com seu caráter
sagrado e todos os desejos da felicidade paradisíaca que ela encerra.” 39 A
preocupação em sacralizar aquele momento ímpar fica, por fim evidente, na estrutura
da base da estátua que apresenta uma escada de três degraus. A princesa, em pé, de
forma harmoniosa e equilibrada, destaca-se numa posição de supremacia e
superioridade, um pedestal que lhe confere um caráter sagrado. Aliás, elemento comum
às aclamações e poemas da época que não se cansavam de repetir vivas à “Santa
Isabel”. Assim é que o escravo, neste ambiente sacralizado, porta-se de joelhos
respectivamente no segundo e terceiro degraus, numa atitude de contemplação e
admiração diante de sua redentora.
As vestes da
princesa também nos apontam alguns elementos
interessantes. Trazendo em suas costas um manto, ela nos apresenta sua escolha pela
sabedoria. Portar-se com um manto significa “assumir uma dignidade, uma função, um
papel, de que a capa ou o manto é o emblema.” 40 No caso, busca aproximar-se de sua
futura função, a de uma governante digna de assumir a direção do Estado brasileiro.
Esta dignidade expressa-se também através da fita, que amarrada a sua cintura, significa
a recompensa de um “ato de coragem ou uma vida que se distingue, marca um sucesso,
um triunfo, uma realização. Seu símbolo é orientado no sentido da manifestação de
uma vitória.” 41 Esta vitória, deve ser entendida como o fim do cativeiro, sobre o qual
Isabel deve reinar triunfante. Ao triunfar sobre aquele passado vergonhoso e obscuro,
ela coloca-se como iniciadora e ao mesmo tempo portadora de um novo tempo, o qual
começa a se despontar através de seu golpe fatal sobre a servidão, atitude que precisa
ser perpetuada nas mentes e nos corações do povo brasileiro.
A atitude do negro, como vimos, é de inteira adoração. Sua feição
encerra um ar de contemplação e admiração, projetados através de um sorriso alienado.
A posição de sua mão esquerda (lado da emoção) “com as palmas repousando sobre o
joelhos exprimem a concentração meditativa.” 42 Ao passo que a mão direita (lado da
33
A autoria e a data precisa de sua fundição são desconhecidas. A peça tem por dimensões:0,52
m de altura e 0,25 m de largura. Ver anexo 2.
34
MIRABENT, Isabel Coll. Saber ver a arte neoclássica. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p.
13.
35
O desenvolvimento desta tarefa será realizado com base em CHEVALIER, Jean. &
GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
36
Idem, p. 341-344.
37
Idem, p. 341.
38
Idem,
Idem,
40
Idem,
41
Idem,
42
Idem,
39
76
p. 653.
p. 864.
p. 589.
p. 433.
p. 590.
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
para o futuro, para o progresso, lugar para onde ela dirige o olhar. Mais do que isso, há
também um sentido de afirmação. De acordo com a simbologia, não se trata “de dizer
vim, mas de afirmar: estou aqui e aqui fico .” 47
Todos estes elementos, em sua simbologia, revelam-nos a intenção clara
de heroificação da princesa. Percebemos, por traz de cada detalhe, um projeto
monarquista com pretensões pedagógicas e legitimadoras. Era preciso apresentar aos
brasileiros a superioridade e a grandeza do governo ao qual estavam destinados. Num
momento de crise, onde uma nova sociedade urbana, portadora de novos ideais,
despontava-se, era necessário a incorporação imediata destes valores que precisavam
ser rearticulados pela lógica monárquica e oferecidos a esta nova sociedade. Isto é, os
valores defendidos e ambicionados pelos novos tempos tornavam-se ingredientes
necessários da nova imagem monárquica. Esta imagem inovadora só poderia ser
construída por meio de um elemento novo que viesse curar as enfermidades daquela
sociedade. Se o republicanismo, como já vimos, esforçava-se, do ponto de vista
discursivo, para se apresentar enquanto responsável por esse papel curador, os
monarquistas não podiam aceitar passivamente tal situação. Diante do escravismo,
encarado como principal doença da sociedade, precisavam elaborar uma solução que,
do ponto de vista simbólico, lhes conferisse um caráter inovador. A heroificação da
futura imperatriz como redentora dos escravos cumpriria perfeitamente este papel,
sobretudo se considerarmos que “o tema do Salvador, do chefe providencial
aparecerá sempre associado a símbolos de purificação: o herói redentor é aquele que
liberta, corta os grilhões, aniquila os monstros, faz recuar as forças más.” 48
A necessidade de se associar aos elementos dos novos tempos levava a
Monarquia a elaborar um novo imaginário. Dentro do discurso dicotômico, era preciso
se associar ao lado da luz, do bem. Para tal objetivo, a difusão do mito era
imprescindível. Ao se realizar tal tarefa, de acordo com Raoul Girardet:
Nos corações, nas consciências, os equilíbrios rompidos se
reconstituem. Fornecendo-lhes novos elementos de compreensão e
de adesão, o imaginário mítico permite àquele que a ele se
abandona rearmar-se em um presente reconquistado, tomar pé
em um mundo que voltou a ser coerente, que voltou a si, com
efeito, claramente ‘legível’. (...) o mito é também potência
mobilizadora. À função de reestruturação mental do imaginário
político, corresponde então , uma outra, que é de reestruturação
social. Surgindo em uma situação de rompimento do meio
histórico, desenvolvendo-se em um clima de vacuidade social, o
mito político é instrumento de reconquista de uma identidade
comprometida. 49 (Os grifos são nossos.)
razão) “levantada, os dedos indicador e médio esticados e unidos, os outros dedos
dobrados [representa] a argumentação, a dialética.” 43 Ao mesmo tempo em que
dobra-se em adoração à sua Redentora, ele reflete sobre sua grandeza expressa na
atitude redentora da assinatura da lei. Ao contrário da figura clássica de um escravo,
comumente apresentado sem camisa, o negro aparece aqui trajado com uma camisa
semi aberta. Esta vestimenta, símbolo de proteção, representa assim um pequeno
indício da nova situação do negro que agora alcança um lugar na sociedade, tornando-se
menos selvagem. A ausência da camisa, denotaria um sinal de “completa solidão
moral, e de ter sido relegado pela sociedade”, 44 idéia contrária aos objetivos da
estátua.
Ao refletir sobre a presença dos cavalos ao redor da base da estátua,
percebemos não só elementos ligados ao Jokey Club como também o sentido de vitória
que a peça apresenta. O cavalo é normalmente apresentado como símbolo de poder,
imagem de uma beleza vencedora carregada de dinamismo. Tal sentido é reforçado na
peça pela presença do louro envolvido no pescoço dos cavalos. Sua presença simboliza
“a imortalidade adquirida pela vitória. É por isso que sua folhagem é usada para coroar
os heróis, os gênios e os sábios.” 45 A princesa era portanto vencedora e triunfava sobre
seus inimigos. Esta vitória conferia status e superioridade à herdeira do trono. Ela,
por seu ato de bravura e grandeza, destacava-se como alguém especial. Era uma heroína
brasileira.
E por fim destacamos a coroa, elemento que reforça a busca de
legitimação do Terceiro Reinado. Diferentemente das outras monarquias de tradição
mais antiga (como é o caso da inglesa, onde existem coroas específicas para cada tipo
de príncipe) nossa Monarquia não se preocupava com esta sofisticação simbólica. Só
havia uma coroa destinada ao uso do imperador nos momentos de abertura e
encerramento das atividades anuais da assembléia legislativa. Portanto, só era utilizada
duas vezes por ano. A preocupação do escultor em apresentar a princesa com a coroa
na cabeça dá-nos a impressão de que, naquela circunstância (abolição), ela já assumira
o caráter de uma imperatriz, uma vez que nem nos momentos de regência era comum o
uso da coroa. Este era portanto um elemento especial na medida em que “a coroa
simboliza uma dignidade, um poder, uma realeza, o acesso a um nível e a forças
superiores.” 46
Ansiava-se por legitimar o Terceiro Reinado. Tal objetivo confirma-se,
por fim, através do pé direito da princesa. Isso mesmo! Detalhe quase imperceptível na
composição da escultura e que aparentemente não faria a menor diferença quando
observado a primeira vista. A escolha por não encobrir este pé (como foi feito com o
esquerdo) revela-nos a intenção de um caminhar, a busca de se projetar para frente,
43
A descrição das mãos e dos dedos dada pelo dicionário coincide exatamente com a disposição
dos mesmos na composição do negro. Cf. idem, p. 590.
44
Idem, p. 172.
45
Idem, p. 561.
46
Idem, p. 289.
47
Idem, p. 694.
GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.
17.
49
Idem, p.183.
48
77
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Diante dos momentos de crise pelos quais passava o regime monárquico,
a gestação do mito da Redentora colocava-se como solução legitimadora. Por meio de
sua difusão seria possível mobilizar a população em torno de uma nova visão da
instituição. O movimento de gestação e de difusão do mito beneficiou-se, a nosso ver,
da grande expectativa popular em torno da abolição, bem como das idéias de
modernidade incorporadas pelos abolicionistas. De posse de tais elementos, é que os
monarquistas empreenderam sua “campanha publicitária”, valendo-se de notícias,
charges, festas, missas, celebrações, poesias, estátuas etc; elementos
que
multiplicaram-se indefinidamente por todo o país. A necessidade de se perpetuar a
lembrança da abolição fica também evidente na criação da Guarda Negra, milícia
organizada por José do Patrocínio, composta somente por negros e mulatos que,
elegantemente fardados, desfilavam pela cidade. A chamada guarda isabelista chegou
inclusive a entrar em conflito com os propagandistas republicanos. O mais sério deles,
segundo José Murilo de Carvalho “deu-se com a interrupção, que resultou em mortos e
feridos, de uma conferência de Silva Jardim, em dezembro de 1888, na Sociedade
Francesa de Ginástica.” 50
Assim, gradualmente o imaginário coletivo foi povoado por imagens e
notícias da abolição que vinham acompanhadas da exaltação à princesa. Na construção
de seus “traços de heroísmo” utilizaram-se de inúmeros mecanismos, por nós já
apresentados aqui. A gestação de uma visão mítica da Redentora não se deu de forma
gratuita ou natural. Neste sentido, concordamos com Ernest Cassirer ao afirmar que
Siempre se ha descrito al mito como resultado de una actividad
inconsciente y como un producto libre de la imaginación. Pero
aqui nos encontramos con un mito elaborado de acuerdo con un
plan. Los nuevos mitos politicos no surgen libremente, no son
frutos silvestres de una imaginación exuberante. Son cosas
artificiales, fabricadas por artífices muy expertos y habilidosos. 51
3. A SOBREVIVÊNCIA DO MITO DA REDENTORA
REPÚBLICA
NA
Se a Monarquia não conseguiu evitar sua queda por meio do discurso de
heroificação da Princesa Isabel, isso não significa que a permanência do mito após o 15
de novembro de 1889 estivesse comprometida. Ao contrário, o que se verifica é a sua
consolidação e enraizamento no imaginário coletivo, mesmo contrariando-se os
interesses republicanos. O que nos interessa neste momento é a preocupação comum a
monarquistas e republicanos em torno da comemoração da data, bem como a
permanência do mito da Redentora enquanto proposta discursiva vencedora, mesmo
após a Proclamação da República.
A intenção de se perpetuar e oficializar a data de assinatura da Lei Áurea
enquanto feriado nacional foi evidenciada por um projeto de lei derrubado pelos
deputados, ainda no período monárquico. O descontentamento dos fazendeiros, em
relação ao encaminhamento dado pela monarquia à abolição, foi responsável pela não
aprovação da lei. Isto porque a polêmica e a insatisfação, em torno da recusa em
indenizar os antigos senhores de escravos, fez com que os deputados questionassem a
pertinência de se oficializar a data. Naquele momento delicado e conflituoso a abolição
não representava, pelo menos para os cafeicultores dos quais os deputados eram
representantes, um motivo de grandes festejos. Apesar do projeto ter sido derrubado
pelo Congresso monarquista, interessa-nos perceber a intenção que havia por traz desta
idéia. A necessidade de se festejar a abolição é defendida abertamente em maio de
1889 (ainda na monarquia) no seguinte texto publicado pela Revista Illustrada:
...o enthusiasmo uniu todas as classes, n’uma commemoração
patriotica das mais tocantes. (...) Não mais haverá scena igual! O
dia 13 de Maio (...) tinha em seu favor todas essas razões e mais,
ser o unico dia que possuíamos com esse caracter. O 7 de
septembro, não satisfazia a esses requisitos porque as suas
tradições historicas não eram muito heroicas. O 25 de março
lembrava-nos uma constituição outorgada. Os outros, occupavam
uma plana inferior. Não tinhamos, pois, um dia de gala, um dia
de festa nacional e nenhum povo póde viver sem isso.53 (Os grifos
são nossos.)
Assim, enquanto construção, o mito
da Redentora
encarnou
simbolicamente as aspirações coletivas daquele momento, tornando-se um instrumento
eficaz para atingir a cabeça e o coração dos brasileiros a serviço da legitimação do
regime monárquico.52 Apesar de não ter conseguido evitar a proclamação da República,
o empreendimento monárquico em torno do projeto de heroificação da Princesa Isabel
garantiu a permanência do mito, mesmo após a queda da Monarquia. É o que iremos
analisar na próxima seção.
Como afirma claramente o autor do texto, que defende a transformação
da data em feriado nacional, era preciso se criar uma celebração anual em torno do
momento significativo que não poderia ser esquecido. Aqui estamos diante de mais um
elemento que expressa a estratégia monarquista de se legitimar diante da nação, como
vimos na seção anterior. Como já enfatizamos anteriormente, o abolicionismo,
50
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados; o Rio de Janeiro e a república que não foi. 3. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 30.
51
CASSIRER, Ernest. El mito del Estado. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992, p. 333.
52
Nós nos inspiramos, aqui, no papel dado ao mito por José Murilo de Carvalho. Cf.: A
formação das almas, op. cit, p. 55.
53
CRUZ, João da. O 13 de maio na Câmara. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, ano 14, n. 550,
p. 6, 25 maio 1889.
78
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
associações abolicionistas, no estrado inferior, sobre um montao
de camelias e de ferros empregados para castigo dos ex-escravos,
as figuras da Imprensa e da Abolição sentadas e abraçadas,
tendo por diadema um arco de flores.(...) Seguia-se outro (carro)
não menos bello, que levava o riquíssimo presente offerecido ao
generallissimo Deodoro ...55 (Os grifos são nossos.)
enquanto movimento intelectual associado a nova sociedade emergente, era portador de
ideais liberais que se autocelebravam enquanto avançados, progressistas e iluminados.
A aproximação de tais idéias fazia parte da estratégia republicana e também da
monarquista na busca de afirmação. É desta forma, então, que a celebração da abolição
assumia, para ambas as correntes, importância capital.
A comemoração do primeiro aniversário da abolição (13/05/1889)
ocorreu ainda sob o regime monárquico. Na ocasião evidenciou-se, mais uma vez, a
exaltação da princesa e as comemorações populares se multiplicaram sob várias
formas. O mito já havia se consolidado e a associação abolição-princesa-povo tornouse fato evidente neste primeiro aniversário. O segundo aniversário da abolição
(13/05/1890) ocorreu sob o regime republicano. Era, portanto, a primeira vez que a
República comemorava a abolição. E neste momento colocava-se diante de um desafio:
construir um novo universo simbólico capaz de derrubar o imaginário monarquista que
havia se apropriado da abolição e, ao mesmo tempo, se associar às idéias inovadoras e
democráticas presentes no discurso abolicionista. Ainda sob o governo provisório, e
portanto sem a aprovação de um Congresso, a República preocupou-se com a já
famosa data. Logo em seu segundo mês de existência, o novo regime dedicou-se ao 13
de maio declarando-o feriado nacional. Isto, “pelo decreto nº 155-B, sancionado pelo
Marechal Deodoro, em janeiro de 1890”. Curiosamente, a criação deste feriado
nacional, bem como sua extinção enquanto tal, ocorreram em governos provisórios e
portanto em situações nada democráticas. 54 A data, que lembrava a imagem da
monarquia em seu momento mais glorioso precisava ganhar uma nova faixada. Ou
seja, o novo regime em seus primeiros e difíceis momentos, precisava apagar aquela
propaganda monarquista viva e criar uma nova leitura da abolição, colocando-se como
participante de seus ideais. A visão de um governo provisório instável e ditatorial não
podia ser difundida. Com esse objetivo, também organizou a festa do segundo
aniversário da assinatura da lei, que nos é apresentada no texto abaixo:
... solemnidade honrada com a presença do chefe do governo, do
corpo diplomatico e do ministerio, desfilou pelas ruas desta
capital, brilhantemente ornamentadas e concorridas, um
grandioso prestito civico. (...) em meio de palmas calorosas (...)
O seu primeiro carro era uma allegoria vivaz e commovente. Alli
estava a Republica ricamente vestida, tendo n’uma das mãos um
ramo de oliveira e apoiando a outra no globo estrellado, com a
divisa Ordem e Progresso - globo sustentado por um poderoso
leão, symbolo da força. Aos pés da Republica, abertos em leque e
n’um plano inclinado, todos os gloriosos estandartes das
Como se pode perceber, há um objetivo de se construir um novo
imaginário associando-se a abolição à idéia de uma República democrática. A
princesa é substituída por uma nova heroína: a República, que se personifica numa
figura feminina. Os valores defendidos pelo novo regime (ordem e progresso), de
inspiração positivista, são literalmente inscritos em um globo no qual a figura da
República sugestivamente se apoia. Destaca-se os aplausos (elogio e agradecimento
público). Mais uma vez aparecem os ramos de louro designando a vitória. E por fim a
exaltação ao Presidente da República merecedor de um presente não identificado no
texto do periódico. Buscava-se, com isso, elaborar uma nova associação igualmente
tríade. Era preciso ligar abolição-República-povo. Porém, o objetivo não vigorou. A
explicação deste fracasso está certamente ligada à força e a eficácia do projeto da
Redentora que se consolidou no imaginário coletivo, impedindo modificações
imediatas. Além do mais, não podemos discordar de José Murilo de Carvalho ao
apontar para o caráter anti-popular da República e mesmo os retrocessos sociais
sofridos em decorrência da mesma. 56 O povo, distante do movimento republicano
caracteristicamente de cunho intelectual, também não havia participado da Proclamação
da República, acontecimento a que assistiram “bestializados”. Além do mais, vivia-se
naquele momento sob um governo militar e provisório, sem uma nova constituição. Ou
seja, o caráter não popular do novo governo estava fortemente presente. O mesmo não
se deu com a abolição que, como vimos, atraiu uma infinidade de pessoas,
demostrando a popularidade da instituição monárquica. Um outro fator a ser
considerado é que, ao ser derrubada, a Monarquia passou a ser encarada como
portadora de um projeto inacabado e obstacularizado pelos interesses de uma elite
agrária prejudicada em seus interesses econômicos. O Terceiro Reinado, fortemente
idealizado na figura da princesa, passou a ser interpretado como portador da esperança
de um futuro que não pode se concretizar. A República assumia assim, a
responsabilidade pelo triste destino dos libertos que ficaram órfãos de sua protetoramor, exilada na França e impossibilitada de defendê-los. O novo regime, em suas
dificuldades iniciais, no que diz respeito às questões sociais, aparentemente impedia a
concretização do ideal redentor de um futuro melhor.
O fracasso da celebração abolicionista de caráter republicano pode ser
observado no terceiro aniversário da abolição (13/05/1891), o segundo celebrado pela
54
“...o feriado foi revogado por Getúlio Vargas, Chefe do Governo Provisório, que assumiu o
poder depois da Revolução de 1930. A razão alegada é que a escravidão fora uma marca na
história brasileira; e, portanto festejar a abolição seria lembrar que houve a escravidão; assim,
julgou-se que melhor seria extinguir o feriado, como foi feito”. Cf. CARVALHO, André.
Dicionário de datas comemorativas. 2. ed. Juiz de Fora: UNED, p. 48.
55
56
79
Festas. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, ano 15, n. 590, p. 6, 13 maio 1890.
CARVALHO, J. M. Os bestializados, op. cit. p. 29-31 e 45.
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Ao encerrarmos este trabalho, podemos constatar que a Monarquia não
assistiu passivamente a seu declínio. Toda a construção de um discurso heroificador
em torno da Princesa Isabel é prova inquestionável das articulações monárquicas, pelo
menos do ponto de vista discursivo, na busca de sua manutenção. Não foi nosso
objetivo analisar os motivos de decadência da Monarquia nem as causas da
proclamação da República, tarefa sobre a qual a historiografia tem se debruçado de
forma constante ao longo deste século. 59 Nossa proposta, na verdade, foi resgatar os
momentos finais de sobrevivência do regime, sob uma ótica cultural, abordagem não
muito presente na historiografia que trata do período. A figura da Princesa Isabel tem
sido igualmente relegada ao esquecimento em nome de um discurso anti-historicista
que privilegia o papel das estruturas em detrimento do indivíduo. Esta posição só
recentemente começou a ser revista através de uma nova abordagem que, sem cair na
exaltação historicista, pretende resgatar o papel do indivíduo na História. Assim é que
acreditamos estar contribuindo para novas interpretações de objetos desprezados por
preconceitos que só recentemente começaram a ser superados. Não há dúvida de que
este trabalho não esgotou as fontes nem as possibilidades de abordagem do tema.
Certamente uma pesquisa futura poderá elencar melhor os atores envolvidos bem como
a ação efetiva das forças sociais participantes neste processo. A historiografia brasileira
começa a dar os primeiros passos para uma abordagem cultural do Segundo Reinado.
Estamos portanto diante de um campo aberto e amplo para que muitas pesquisas
venham ser realizadas. Nosso objetivo no presente texto é, em última instância,
chamar atenção para questões que têm sido ignoradas pela historiografia e apontar
caminhos para investigações futuras.
A heroificação da Princesa Isabel foi fruto de um efetivo empreendimento
realizado por diferentes atores e mecanismos que confluíam para o mesmo objetivo
legitimador. Ao ser derrubado o regime, o mito disseminou-se pelo imaginário coletivo
e passou a ser transmitido às novas gerações. Apesar de ser questionado, o mito da
Redentora ainda permanece vivo em nossa sociedade. Ao se comemorar o
sesquicentenário de nascimento da princesa (1997), uma das publicações, destinadas a
enumerar e apresentar o roteiro das celebrações, afirma que “seus netos, bisnetos e os
poucos amigos ainda vivos, que conheceram a Princesa Isabel no exílio, nos contam
que ainda hoje ouvem os ecos de sua doce voz a dizer para as crianças: ‘Danadinhos,
não estraguem minhas rosas’.” 60 Ao finalizar este trabalho podemos afirmar que,
diante dos atuais questionadores do mito, a princesa certamente afirmaria a mesma
sentença.
república. Mais uma vez, recorremos à Revista Illustrada, periódico que escolhemos
como forma de homogeneizar nossa pesquisa em torno de um mesmo tipo de
documento. Diferentemente do ano anterior, a revista não noticia comemorações,
limitando-se a afirmar que o pouco entusiasmo com o treze de maio foi “reflexo do
que vae correndo pela política e das idéas, opiniões e procedimento dos homens que
actualmente nos governam.” 57 O empreendimento republicano na construção de um
novo universo simbólico que legitimasse o novo regime não foi capaz de destruir a
tradição monarquista, fortemente arraigada na memória coletiva. Conforme ressaltou
Lúcia Lippi Oliveira, a construção de um novo imaginário “não foi capaz de conferir
legitimidade à nação republicana. Os monarquistas, por outro lado, não foram
suficientemente fortes para restaurar a monarquia; entretanto, foram-no para
garantir a supremacia de sua interpretação sobre o Brasil.” 58 A comemoração
republicana da abolição, oficializada por Deodoro, foi extinta por Getúlio Vargas em
1930. Isto, num contexto onde a busca de pipularidade e os mecanismos de
aproximação com o povo exigiam reformulações. Naquele momento, a imagem e os
valores presentes na abolição já não satisfaziam os requisitos das novas estratégias
governamentais. Um novo arsenal ideológico carregado de um discurso populista
precisava ser construído. Mas isto é um outra história.
De qualquer forma, a leitura monarquista da abolição sobreviveu à
Proclamação da República, permaneceu durante toda a República Velha e mesmo aos
governos populistas posteriores, chegando inclusive aos nossos dias. Mesmo sendo
questionado, o mito da Redentora ainda está presente na memória coletiva. A
associação da abolição como fruto exclusivo da ação da Princesa Isabel ainda
permanece viva. O mito da princesa redentora realmente triunfou.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há dúvida de que o discurso de um abolicionismo monárquico se
sobrepôs ao republicano. Nossa memória coletiva atual é prova do sucesso do mito
redentor que se perpetuou ao longo deste século e só recentemente começou a ser
reavaliado e questionado pela memória pública. Ao se comemorar o centenário da
abolição, presenciamos o início de discussões defendidas por grupos anti-racistas que
procuravam questionar o mito da Redentora substituindo-o pela valorização de Zumbi
dos Palmares. E poderíamos até arriscar, buscou-se heroificá-lo. O que se percebe na
verdade, é a eterna busca pela humanização das relações sociais. Na falta de propostas
concretas para a solução de tais problemas, busca-se projetar os ideais em ídolos que
encarnem a esperança de tempos melhores.
59
COSTA, Emília Viotti. Op. cit.
MELLO, Cláudio Prado de. Princesa Isabel 150 Anos; roteiro da exposição comemorativa de
25 de outubro de 1997 organizada pelo Museu Nacional./ Rio de Janeiro: Gráfica do Banco do
Brasil, 1996, p. 24. (O texto não foi paginado, originalmente.)
60
57
BLODIN. De Maromba. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, ano 16, p. 6, maio 1891.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. As festas que a república manda guardar. Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, v. 2, n. 4, p. 187, 1989.
58
80
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
ANEXO 1
Estampa oferecida à Princesa Isabel por ocasião de seu quadragésimo segundo
aniversário, dois meses após a assinatura da Lei Áurea.
ANEXO 2
Estátua comemorativa do 13 de maio de 1888
Fonte: DIAS, Renato Henrique. Museu Mariano Procópio.
Juiz de Fora: Tribuna de Minas, 1996, p. 29.
Fonte: MELLO, Cláudio Prado de.(org.) Princesa Isabel - 150 anos: roteiro dos
eventos comemorativos. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro,
Departamento Geral de Imprensa Oficial - SMA, 1996, p. 6.
81
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
RESENHA
KRAAY, Hendrik. Resenha. MEADE, Teresa A . "Civilizing" Rio: reform
and Resistance in a Brazilian City, 1889-1930. University Park Press,
1997. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF,
vol. 2, no. 1, jan./jun.1998. p. 113-115.
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
MEADE, Teresa A . "Civilizing" Rio: Reform and Resistance in a
Brazilian City, 1889-1930. University Park Press, 1997. 1
Hendrik Kraay
University of Calgary
[email protected]
Endereço para correspondência:
Revista Eletrônica de História do Brasil
Arquivo Histórico da UFJF
Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
Prédio do CDDC- Campus da UFJF
Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330
This book analyzes the "near constant conflict and upheaval" that
characterized Old-Republic Rio de Janeiro and seeks "to explain why different social
classes, organized in neighborhood groups, labor unions, and affiliated societies,
quarreled and fought with the city and federal government from 1890 to 1930" (p. 4).
Insights from urban sociology -- particularly Manuel Castells's observation that social
conflicts in cities can take the form of struggles over the "allocation of urban space" or
"collective consumption" (pp. 5, 10) -- provide new ways of looking at this period. At the
same time, the study places Rio de Janeiro's development squarely within in the
international political economy (the capitalist world system) in which the Brazilian
capital served as an export funnel for primary products and a showcase for the Old
Republic oligarchy's pretensions to "civilization," with deleterious effects for the masses:
"[I]t is only, ultimately, on the level of the world system that the development of any
major city can be understood" (p. 191).
Chapters on "Civilization," "The Features of Urban Life," "Sanitation and
Renovation," "The Resistance" (the 1904 riots ostensibly against obligatory vaccination),
"Living and Working Conditions," and "The [1917] General Strike," tell a story familiar
in its broad outlines from the work of (among others), Jose Murilo de Carvalho, Eduardo
Silva, Eulalia Maria Lahmeyer Lobo, June Hahner, Sandra Lauderdale Graham, and
Jeffrey Needell (not to mention historians of the labor movement and the historical
geographers who have traced the changing urban morphology): Europhile Old Republic
elites determined to remake their capital into a "modern" city by renovating and sanitizing
http://www. ufjf.br/~clionet/rehb
E-mail: [email protected]
Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342
Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem
finalidades comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo e
em sua estrutura física.
1
Publicado por [email protected] (March 1998). Dados completos da obra: Teresa A.
Meade. "Civilizing" Rio: Reform and Resistance in a Brazilian City, 1889-1930. University
Park: The Pennsylvania State University Press, 1997. xi + 212 pp. Map, figures, tables,
bibliography, and index. $45.00 (cloth), ISBN 0-271-01607-8; $19.95 (paper), ISBN 0-271-016086.
82
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
demonstrates their importance for Brazilian history. One wonders, however, if police and
judicial records (so ably used, for example, by Sidney Chalhoub in his study of the last
years of Rio slavery) might not afford an even richer understanding of plebeian society?
These latter points are, however, minor quibbles with a book that will
become required reading for students of not only Old Republic Rio de Janeiro but also
Latin American urbanization in general. Its length makes it ideal for classroom use and
assigning it alongside Jeffrey Needell's studies of elite culture in the carioca belle epoque
produced a useful seminar discussion earlier this semester. 3
their downtown core, retreating to fashionable beachfront neighborhoods well served by
streetcar lines and other amenities. The destruction of downtown tenements entrained the
removal of lower-class residents to unhealthy northern suburbs that suffered from
inadequate infrastructure. Meade sensitively portrays the devastation that urban reforms
wrought on vibrant downtown plebeian communities, for whom "civilization" offered
nothing. In response to the destruction of their way of life, the urban poor resisted
through petitions, marches, letters to the editor, strikes, and street violence.
The book's strength and major historiographical contribution lie in its
linkage of the allegedly pre-modern forms of protest such as riots over living conditions
to the class struggle that is so often perceived in narrow work-place terms. To be sure,
some of Rio's workers adopted "modern" forms of protest as they unionized and struck; to
relegate all other forms of protest to the "pre-modern" category is, however, for Meade, a
mistake: Riots over community issues "are as integral a part of the capitalist system as is
the urban structure that has spawned them and the official intractability that has ignored
the misery of the poor" (p. 187). Given the long tradition of collective action on the part
of the urban poor, Meade's book is a call to consider class struggle broadly: "People lived
in a society that was based not simply on buying and selling their labor but also on
governing and distributing land, housing, labor, and capital" (p. 188). Struggles over the
latter were thus an integral part of class conflict and reflected the emerging carioca class
consciousness.
The sensitive portrayal of popular life and the insightful discussion of
resistance to the reform program, however, is not matched by an equally sophisticated
discussion of the "civilizers" and their project. The chapter on "Civilization" resembles a
textbook account; based heavily on secondary sources, it includes little discussion of the
views of those who justified and carried out the "civilizing" project in Rio. Rather, there
are analyses of Domingo Faustino Sarmiento's Civilizacion y Barbarie (1845) and
Euclides da Cunha's Os Sertoes (1901); both, to be sure, set something of an intellectual
context for turn-of-the-century Latin American elites but neither brings the reader
particularly close to Old Republic Rio. Indeed, in this light, Meade's book (with its focus
and strongest chapters on the urban poor) falls short of William Taylor's call for whole
histories that effectively combine the histories of elites and masses, the need for which
Todd Diacon recently underscored in a review of literature on Rio de Janeiro. 2
While the book is well-grounded in international literature and makes
frequent reference to relevant events in Europe and North America, one particular error
merits correction: the author greatly exaggerates the brutality of Tudor England's poor
laws and misdates Henry VIII's reign (1509-45) by two centuries (p.62).
The extensive use of newspapers, the principal primary source mentioned
in the footnotes conveniently placed at the bottom of the page (kudos to Penn State Press
for sparing readers the trouble of constantly flipping to the back of the book),
3
Jeffrey D. Needell, "Rio de Janeiro and Buenos Aires: Public Space and Public Consciousness in
Fin-de-Siecle Latin America," Comparative Studies in Society and History, 37:3 (July 1995),
519-540; idem, A Tropical Belle Epoque: Elite Culture and Society in Turn-of-the-Century
Rio de Janeiro. (Cambridge: Cambridge University Press, 1987).
2
Todd A. Diacon, "Down and Out in Rio de Janeiro: Urban Poor and Elite Rule in the Old
Republic," Latin American Research Review, 25:1 (1990), 243-252.
83
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
RESENHA
LEVINE, Robert M. Resenha de filme. OLIVEIRA, Maria e NEHRING,
Marta. 15 Filhos (Video Documentary). 1997, 25 minutes. Revista
Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, vol. 2, no. 1,
jan./jun.1998. p. 116-117.
http://www.ufjf.br/~clionet/rehb
OLIVEIRA, Maria e NEHRING, Marta. 15 Filhos (video
Documentary), 1997, 25 minutes. 4
Robert M. Levine
University of Miami, Coral Gables
<[email protected]>
Endereço para correspondência:
Revista Eletrônica de História do Brasil
Arquivo Histórico da UFJF
Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
Prédio do CDDC- Campus da UFJF
Juiz de Fora - MG - Brasil CEP: 36036-330
The imposition of military dictatorship on Brazil in 1964 led to mass
arrests, the eruption of pockets of resistance in large cities as well as in the countryside,
and the complete abrogation of civil rights of Brazilian citizens. Brazil underwent a
series of military presidencies, from the moderate but stern Castello Branco to the far
harsher Costa e Silva, Figueiredo, and Garrastazu Medici. Under Ernesto Geisel, the final
military president, the armed forces prepared to step back however gradually but the
damage to the lives of thousands of Brazilians had been done.
The repression increased significantly after 1968. Brazil was engulfed in
urban bank robberies and terrorism (the curious and flawed film Four Days in
September deal with this theme) and guerrilla insurgency in the interior. Although never
as savage as in neighboring Argentina under its generals, or as in Chile under Pinochet,
for left-wing Brazilian activists (as well as sympathetic intellectuals, students, and
journalists), life during the 1970s was hell. Every branch of the military practiced
counterinsurgency terrorism, routinely torturing its captives, some of whom simply
"disappeared." The regime drove thousands into exile, including Brazil's current
president, Fernando Henrique Cardoso. Some Brazilian leftists fled to Chile, where they
found haven under the government of Salvador Allende -- only to be captured again when
Allende was overthrown. Brazilian military officials sent teams of agents to Santiago to
"work with" their Chilean counterparts in interrogating Brazilian prisoners.
For some, this was not a bad period. Conservatives hailed the crushing of
the Left, although moderates (including some heroic members of the Brazilian Roman
http://www. ufjf.br/~clionet/rehb
E-mail: [email protected]
Fone: (032) 229-3750 --- Fax (032) 231-1342
Este texto pode ser reproduzido livremente, para uso pessoal e sem
finalidades comerciais, desde que não sofra alterações em seu conteúdo e
em sua estrutura física.
4
Publicado por [email protected] (March 1998). Dados completos da obra: 15 Filhos, a
video documentary by Maria Oliveira and Marta Nehring, 1997, 25 minutes. English subtitles.
Available from Michelle McCabe, Cinematographer, 241 Lafayette Street, 3rd floor, New York,
NY 10012. <[email protected]>.
84
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Revista Eletrônica de História do Brasil - Volume 2, número 1
Catholic Church) found peaceful ways to protest the abuses against human rights. The
economic scene was different. Against the background of the repression, Brazil
experienced its "economic miracle," a period of unprecedented growth aided to a large
degree by the enforced stability that accompanied the crushing of labor unions, student
groups, and a muzzled press.
Brazil gradually won back civilian government and democratic practices,
although the process took an entire generation to achieve. 15 Filhos is the story of the
children of victims of the repression: men, for the most part anti-military left-wing
activists who fought the military regime and who paid with their lives. The film is simple,
almost all of it in the form of close-ups of the young men and women most in their 20s
who tell the story of fathers who they only knew in infancy before they disappeared into
clandestinity and ultimately into death.
As a documentary, the video is a moving reminder of the human costs of
political conflict. Although it has won awards at festivals in Fortaleza, Rio de Janeiro,
and Holland, and recently has been submitted to a film festival in Germany, it has limited
classroom use because it was produced for Brazilian viewers presumably knowledgeable
about the history of the events of the 1960s and 1970s that cost the fathers of the
interviewed subjects their lives. The documentary does not even provide the full names
of the fallen fathers. This is too bad: the film would be much more suitable for nonBrazilian audiences if the directors were to add a five-minute preface to their video
explaining the origins of the 1964 coup and its aftermath. Still, 15 Filhos remains a
moving testimony to the human side of ideological conflict and political warfare.
85