Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho

Transcrição

Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho
Imagens Religiosas em Minas Gerais
Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho
Professora Emérita – Universidade Federal de Minas Gerais
Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (Ceib) – Presidente
Introdução
O restaurador moderno examina todos os aspectos de uma obra antes de restaurá-la. Esse exame envolve identificação da obra, proprietário, procedência, dimensões, alguns aspectos técnicos, e, especialmente, as características do estado de conservação e as causas das deteriorações ou de alterações apresentadas. Por volta de
1990, percebi que o fato de ter a obra de arte nas mãos e saber examiná-la, era um
privilégio que poucos tinham, mesmo os historiadores de arte. Considerei que era
preciso aproveitar esse fato, aprofundando, de maneira sistemática, os estudos e exames técnicos e científicos da obra. Escolhi, para isso, as imagens religiosas do estado
de Minas Gerais, de grande importância religiosa, social, artística e cultural. Comecei, então, no Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Cecor), da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisa
interdisciplinar sobre esculturas religiosas em madeira policromada. Com esse intuito, foram pesquisadas até hoje, mais de 90 imagens devocionais do século XVIII e
começo do XIX em igrejas de cidades históricas, buscando aprofundar o conhecimento da iconografia, dos aspectos formais e estilísticos e, especialmente, dos materiais e técnicas utilizados pelos santeiros que nasceram, ou moraram e trabalharam
em Minas Gerais nesse período. As pesquisas foram financiadas, em parte, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).
A metodologia usada foi dividida em duas partes: trabalho de gabinete e trabalho de campo. As atividades de gabinete foram: levantamento e leitura da bibliografia
sobre o assunto; elaboração de banco de dados, com fichas e formulários; digitação
dos dados obtidos; exames e análises complementares realizados nos diversos laboratórios especializados; exames de algumas imagens através de raios X; análise comparativa entre as diversas imagens estudadas. O trabalho de campo envolveu viagens
722 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
às cidades selecionadas; exame detalhado das obras escolhidas; remoção de material
para análises; documentação fotográfica, escrita, gravações e filmagens.
Nos locais, as peças eram examinadas atentamente, com observação de sua
estrutura, emendas, marcas de instrumentos, cores do bolo armênio, presença de
folhas metálicas e sua distribuição, camada de policromia e também motivos e
técnicas usadas na ornamentação. Eram preenchidas as fichas previamente elaboradas, feitos desenhos esquemáticos da estrutura da obra, decalques de algumas
áreas da policromia, sendo executadas fotografias e gravações em áudio e vídeo.
Durante mais de dez anos, submetemos 90 esculturas policromadas (imagens
devocionais) a essa metodologia que, aos poucos, foi se aperfeiçoando. Durante
certo período da pesquisa, contamos com a participação mais próxima e muito
produtiva, do especialista em conservação de bens culturais móveis e mestre em
história da arte, Marcos César de Senna Hill. A partir daí, aprofundamos as análises
da composição, as observações dos detalhes da anatomia do santo representado,
bem como do panejamento e de suas relações com a anatomia.
Análise dos suportes
Com as devidas autorizações, amostras de madeira foram removidas e enviadas ao doutor em botânica, na área de anatomia da madeira, Pedro Luiz Braga
Lisboa, do Museu Goeldi, em Belém do Pará, para identificação. Posteriormente,
outras amostras foram analisadas pelos biólogos e mestres em botânica, Adriana D.
C. Costa, Maria José de A. C. Miranda e Geraldo José Zenid do Laboratório de
Análise e Identificação de Madeiras (Laim), do Instituto de Pesquisas Tecnológicas
do Estado de São Paulo (IPT). É importante esclarecer que a amostra não pode ser
demasiado pequena (um cubo de 5 mm, aproximadamente) e que deve ser removida sem danificar a obra. Isso torna quase impossível a identificação da madeira
no caso de imagens pequenas.
Amostras de madeira de 42 esculturas (46,6%) foram identificadas. O cedro,
ou Cedrela, da família das Meliaceas, foi encontrado em 31 amostras (73,80%).
Foram identificadas, entretanto, outras nove madeiras brasileiras (21,42%), especialmente em imagens do início do século XVIII:
Da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto, foram analisadas amostras de sete esculturas. Nas amostras das imagens de São Miguel (uma do capacete e
de duas da base), São Rafael, (base) e São Domingos de Gusmão, (base), foi identificado o nosso conhecido cedro. Em outras esculturas foram encontradas diversas
madeiras: Nossa Senhora da Conceição, (base), louro, Cordia (da família Boraginá-
Esclarecemos que é difícil obter autorização para esse tipo de exame, quando o objetivo
não é a restauração. Heliana Angotti informa as dificuldades até para conseguir fotografar
algumas peças. SALGUEIRO. Heliana Angotti. 1983. p 21 e 28.
Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho - 723
cea); São Tomás de Aquino, (base) cambará, Moquinia sp. (Compositae); São João
Evangelista (base e cabeça) pinho-do-paraná, Araucaria angustifolia (Araucariaceae);
Nossa Senhora do Pilar, (parte interna, atrás) castanheiro, Castanea sp. (Fagaceae).
Na Capela do Padre Faria, em Ouro Preto, foram identificadas amostras das
seguintes imagens: São Bento - guaperê ou cangalheiro, nome científico Lamanonia da família das Cunoniaceae; Nossa Senhora do Bom Parto, (base e figura) - canela, nome científico Ocotea, Nectandra ou Aniba sp. (Lauraceae); e Nossa Senhora do Rosário, carvoeiro, quaresmeira-da-estrada ou carvão-vermelho; nome
científico Miconia (Metastomatacea).
Da Igreja de Santa Efigênia, também em Ouro Preto, outras amostras foram analisadas, sendo identificadas duas madeiras: canela, nome científico Ocotea, Nectandra (Lauraceae) na escultura de Santa Bárbara (base) e marinheiro, Guarea (Meliaceae) na imagem de Santa Efigênia, (manto, atrás) e no Santo Elesbão, (base).
Do acervo do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana, o cedro foi
identificado em amostras de três imagens: São Bernardo de Claraval, (amostra da
base e da mão); Santo Inácio de Loyola (base) e Coroação da Virgem, atribuída a
Francisco Xavier de Brito, também conhecida como Nossa Senhora Rainha dos
Anjos, (base). Entretanto, em outras duas foram identificadas madeiras diferentes:
Santana Mestra (base) cambará, Moquinia sp. Compositae e Santo Antônio (base)
jequitibá, nome científico, Cariniana (Lecythidaceae);
Nas outras imagens analisadas, que pertenciam à igreja de Nossa Senhora da
Assunção, mais conhecida como a Sé de Mariana, (Nossa Senhora do Carmo, São
Pedro e São Sebastião), à Matriz de Nossa Senhora da Conceição, de Catas Altas
(Nossa Senhora do Rosário, São Gonçalo do Amarante, Santo Antônio e Nossa
Senhora da Conceição), à Matriz de Santo Antônio, de Tiradentes (Santa Rita de
Cássia, Santa Gertrudes, Nossa Senhora da Piedade, São João Nepomuceno, Santana Mestra e São João Batista), a madeira identificada foi, em todas, o cedro.
Nas esculturas com documentos comprobatórios da autoria de Aleijadinho - São
Simão Stock e São João da Cruz, (Igreja de Nossa senhora do Carmo, de Sabará) - e em
outras a ele atribuídas - Santana Mestra, (Museu do Ouro, em Sabará), Anjo tocheiro
(Museu da Inconfidência, Ouro Preto), Nossa Senhora das Mercês (Ouro Preto) e Nossa Senhora da Piedade (Felixlândia), a madeira encontrada foi também o cedro.
Apenas em uma imagem - a pequena Nossa Senhora do Pilar, da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto - foi identificada a madeira do castanho, Castanea (Fagaceae), que não existe no Brasil, sendo muito usada em Portugal. Acreditamos que apenas em casos como esse é possível afirmar que se trata de uma imagem
européia. Penso que algumas imagens consideradas portuguesas, por sua erudição,
devem ter sido feitas por artífice português residente no Brasil, uma vez que a madeira é brasileira, e dificilmente teria sido levada para Portugal para de lá retornar como
escultura. A madeira Albiza lebbeck (L.) Benth, da família das Leguminosas, cujo
FERNANDES. Orlandino Seitas. 1999. p.1-4.
724 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
nome mais popular é angico, foi encontrada na Nossa Senhora do Ó, da Igreja do
mesmo nome, em Sabará. Essa madeira, no entanto, também pode ser encontrada no
Brasil, não podendo afirmar-se, nesse caso, tratar-se de escultura feita em Portugal.
Resumindo, o cedro foi encontrado em todas as imagens examinadas da Matriz
de Catas Altas, (1a metade do século XVIII), em três da Sé de Mariana (1a metade do
século XVIII), em seis da Matriz de Tiradentes, em algumas esculturas do Museu Arquidiocesano de Mariana, sendo também encontrado em todas as imagens examinadas do Aleijadinho (2a metade do século XVIII). Entretanto, na maioria das imagens
da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, da Capela do Padre Faria e da Igreja de Santa
Efigênia, em Ouro Preto, foram identificadas outras madeiras. Ainda não chegamos a
nenhuma explicação sobre este fato, pois é muito pequeno até hoje, o número de
peças das quais foi afeita identificação científica das madeiras.
Estrutura
Pudemos verificar que, em Minas Gerais, as imagens do início do século XVIII são
formadas, geralmente, por apenas dois blocos, o corpo e a mão direita, que segura o
atributo. Isso resulta do pouco movimento das imagens desse período, com a indumentária muito próxima do corpo, embora algumas vezes já apresentando movimentação.
Na maior parte das peças da segunda metade do século XVIII, foi observado o emprego
de muitos blocos, para possibilitar a representação de gestualidade típica do estilo rococó. Em uma única imagem, São João Nepomuceno, da Matriz da cidade de Santa
Luzia, pudemos constatar que a peça fora executada com dois blocos de madeira pouco espessos, colados no sentido vertical da escultura, o que resultou em um afastamento das bordas dessas placas em toda a altura da imagem.
Os resultados dos exames visuais devem ser reavaliados com a execução e
análise de radiografias. As radiografias complementam os exames a olho nu, trazendo informações importantes do interior da obra. Elas têm por finalidade documentar detalhes da estrutura interna, como emendas, vazados, tipo de olhos de
vidro, introdução de pinos, cravos, pregos, parafusos ou outros materiais. O pesquisador experiente pode distinguir materiais originais e acréscimos com relativa
facilidade. Na nossa pesquisa, algumas radiografias foram feitas nas igrejas, e outras no Cecor, por Alexandre Soares Leal (na época, bolsista do CNPq), sob orientação do Dr. Luiz Antônio Cruz Souza. Em apenas um caso, foi executada na Santa
Casa de Misericórdia, de Ouro Preto.
Em alguns casos, constatamos uniões apenas com cola, mais difíceis de serem
observadas nas radiografias, mas, em muitos outros, podemos encontrar cravos
(pregos artesanais), que são originais, e também pregos e parafusos, que indicam
claramente, intervenção na obra estudada. A radiografia dá uma informação precisa do tipo de olhos de vidro (esféricos ou com apenas uma calota de vidro) bem
como de sua colocação e da fixação da parte seccionada entre a face o crânio,
Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho - 725
além de outras possíveis emendas ou aberturas. Dá informações, também sobre a
densidade ou peso molecular dos materiais.
Encontramos muitas esculturas feitas em blocos maciços, porém verificamos
que outras são ocas, e que as aberturas têm, ou tiveram, tampas para seu fechamento. Sobre essas tampas, encontramos policromias perfeitamente executadas, mesmo nas emendas, indicando que não foram feitas para serem removidas. Verificamos em seis esculturas atribuídas ao escultor português, Francisco Vieira Servas
(todas representando tocheiros), que elas são ocas, com duas e não uma abertura
nas costas, porém com a madeira continuando inteiriça na altura da cintura. Nesses
casos, há tampas fechando a abertura, ou marcas de que foram feitas para receberem uma tampa (FIG. 1). É interessante registrar o que Le Gac e Alcoforado informam sobre as aberturas em esculturas da autoria de Frei Cipriano da Cruz, bem
diferente do que encontramos aqui: “o esvaziamento do tronco, que também visava diminuir o peso das obras, ficou aparente, não chegando, em nenhum dos casos
que nos foi dado observar, a ser tapado por uma tábua.”
Gráfico tocheiro Congonhas estrutura
LE GAC, Agnes; ALCOFORADO, Ana. (2003). p. 39
726 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
Algumas obras do Aleijadinho por nós examinadas apresentavam vários blocos de madeira e, na parte oca, encontramos - quando foi possível observar -,
marcas de goivas e formões, e pequenas peças de madeira, como tacos, reforçando
algumas partes. Estes foram os casos do São João da Cruz, da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, de Sabará, e da Nossa Senhora da Piedade, de Felixlândia.
Examinamos, também, a direção das fibras das madeiras e constatamos que,
como era de se esperar, as fibras estão no sentido vertical da escultura, e as mãos,
quando executadas separadamente, têm as fibras no sentido longitudinal. Algumas
esculturas têm o corpo da figura no sentido vertical, mas a base tem as fibras no
sentido horizontal (FIG. 2).
Santa Rita fibras
Encontramos imagens com olhos esculpidos e pintados, outras com olhos de
vidro, sendo neste último caso, esféricos e com pedúnculos, constatados através de
radiografias. Consideramos que olhos de vidro não são indicação correta da época
da confecção da escultura. Examinamos duas esculturas de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, com autoria comprovada por documentos (São Simão Stock e
São João da Cruz, de 1779, da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, de Sabará), que
têm olhos de vidro; entretanto, o Mau Ladrão, executado pelo mesmo artista posteriormente, entre 1796 e 1799, tem olhos esculpidos e pintados, como quase todas
as outras figuras dos passos da Paixão, em Congonhas, excetuando-se os Cristos.
Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho - 727
Policromia
Quanto à policromia, o primeiro fato a registrar é que, como sabido, na escultura policromada a talha é feita por um artífice – o escultor ou entalhador –, enquanto o douramento e a policromia são executados por um pintor dourador da
mesma ou de outra oficina. Algumas vezes o douramento poderia ser executado
por um artífice e a policromia por outro. Portanto, normalmente, a policromia não
dá informações precisas sobre o possível autor da escultura. Outro aspecto a destacar é a distinção entre a carnação (imitação da cor da carne) e o estofamento (representação dos tecidos das indumentárias). Pela qualidade, podemos aquilatar a
experiência e a habilidade do pintor. O aprendiz, ainda não tendo uma mão firme,
pode cometer algumas falhas com o instrumento, fato que pode ser observado especialmente no esgrafito.
Em muitas imagens encontramos a policromia tão bem executada na parte da
frente da indumentária quanto na parte de trás. Contudo, em inúmeros casos, há uma
simplificação bem marcada entre a frente e as costas do vestuário. Isso se explica
pelo fato de que quase todas as imagens por nós examinadas foram feitas para colocação em nichos de altares (retabulares), quando seriam vistas apenas pela frente.
Essa simplificação diminuía também os custos do trabalho a ser pago pelo encomendante, sobretudo se não eram colocadas folhas de ouro na parte posterior da vestimenta. Muitas vezes, o douramento está apenas na parte da frente; em outros casos,
a partir dos ombros, o douramento passa a ser em reservas, havendo uma simplificação do emprego de punções ou, ainda, a inexistência da pintura a pincel, encontrada
na parte anterior do panejamento. Em quatro imagens (dois anjos tocheiros da Basílica do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, e dois do Museu da Inconfidência,
de Ouro Preto) não há, praticamente, policromia nas costas dos personagens, que
têm pintados apenas os cabelos e uma faixa que prende a cintura. Mais uma vez,
registramos a diferença entre o que encontraram Le Gac e Alcoforado nas esculturas
de Frei Cipriano da Cruz: “É nas costas da maior parte das imagens, isentas de policromia [...] que se pode melhor apreciar a estrutura homogénea da madeira deixada
à vista.” Na nossa pesquisa, não encontramos nenhuma escultura com as costas
deixadas na madeira.
Para surpresa nossa, encontramos folhas de prata em várias esculturas, especialmente do final do século XVIII. São Simão Stock e São João da Cruz, do Aleijadinho, da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, de Sabará, bem como Santa Efigênia,
da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de Mariana (FIG. 3), têm toda a capa ou o
com revestimento total em folhas de prata, sendo as bordas douradas. Por medida
de economia, entretanto, nos três casos as folhas de prata estão colocadas com um
centímetro de separação entre elas, aproximadamente. Se, por um lado, houve o
emprego de um material mais caro (a prata era mais cara do que o ouro, na época),
por outro, procurou-se reduzir os gastos, pois nas costas encontramos essa separa-
A palavra vem do francês étoffe, que significa tecido.
LE GAC, Agnes; ALCOFORADO, Ana. (2003). p.38.
728 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
ção. Os resplendores de São Simão Stock e de São João da Cruz são em madeira,
totalmente revestidos de folhas de prata. A cruz de São João também é executada
do mesmo modo, porém sobre a prata há uma laca amarela, dando a impressão de
ouro. Em imagens de Nossa Senhora, pudemos identificar folhas de prata em nuvens e, em outras esculturas, encontramos a prata distribuída economicamente, no
sistema que, no Brasil, é denominado “reserva”.
Gráfico Efigênia ouro e prata
A punção foi encontrada em abundância, com marcas em vários formatos, distribuída de diferentes maneiras, preenchendo espaços vazios, criando contrastes entre fosco e
brilhante, destacando o contorno de folhas e pétalas de flores, ou formando barrados
com círculos e triângulos, curvas e ziguezagues, em decotes e bordas de mantos.
Encontramos o esgrafito em quase todas as esculturas analisadas, formando desenhos fitomorfos (FIG. 4) ou geométricos. Há desenhos bem executados e esgrafitos desenhados com grande perfeição encontrados também em imagens de certo sabor popular.
Gráfico Crisântemo Simão Stock
Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho - 729
A pintura a ponta de pincel destaca algumas partes do desenho, sugerindo
relevo, especialmente em representações fitomorfas. Em imagens com a policromia
bem completa, continua a execução do douramento, das punções e da pintura a
pincel, mesmo na parte das costas das peças. Em apenas uma das esculturas estudadas - Santana Mestra, da Igreja Matriz de Catas Altas - encontramos representações antropomorfas, executadas com pintura a pincel.
Os relevos foram amplamente observados nas bordas dos mantos, das túnicas
e nos decotes das indumentárias. Algumas vezes eles podem ser executados diretamente na madeira, pelo entalhador, em outras podem ser realizados com superposições de camadas de preparação, ou com o auxílio de um cordão, que dará a espessura desejada. Nas imagens mineiras, encontramos um único caso em que o
relevo foi esculpido na madeira (São Miguel, da Igreja Matriz de Santa Luzia). Em
todos os outros casos, ele foi executado com superposições de camadas de preparação. No ano 2000 pudemos conhecer, no módulo Barroco da exposição do Redescobrimento (Brasil 500 anos, São Paulo), uma grande escultura de São Lourenço, de
São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, sem policromia e contendo muitos
relevos, executados na madeira. Heliana Angotti cita “pastilhamentos” em algumas
esculturas do escultor goiano Veiga Valle. Ela os descreve, entretanto, como “incisões com instrumento apropriado”, o que não corresponde ao que foi usado em Minas Gerais. Os relevos, muito utilizados no norte de Portugal e empregados em imagens de barro do século XVII, na Bahia, por Frei Agostinho da Piedade, praticamente
não são encontrados em imagens devocionais em madeira de outras localidades no
Brasil, reduzindo-se seu emprego aos artistas de Minas Gerais ou de portugueses que
aqui viveram. Nos outros estados, os barrados são ornamentados com esgrafitos ou
punções, e não com relevos.
Nas imagens pesquisadas, encontramos também rendas douradas, feitas, segundo análise realizada por Claudina Maria Dutra Moresi, no laboratório do Cecor,
com rendas de bilro executadas com fios de linho. Muitas vezes, encontramos apenas resquícios da renda, mas podemos afirmar que na maioria dos casos ela é original, pois existe um pequeno degrau para sua colocação nas bordas dos mantos
ou das túnicas. Recentemente, estivemos analisando uma imagem de Nossa Senhora das Mercês, da Igreja Matriz de São Gonçalo do Rio Abaixo, em Minas Gerais,
que mantém, nas bordas, aplicação de renda dourada, em excelente estado.
Análise morfológica
Segundo Michel Lefftz: “A análise morfológica da escultura se baseia principalmente em três eixos: a composição, a anatomia e o panejamento.” Nas nossas
pesquisas, terminado o exame dos procedimentos técnicos, passávamos a realizar
SALGUEIRO. Heliana Angotti. 1983. p 72.
LEFFTZ, Michel. 2003. p. 57-60. Ver também: LEFFTZ, Michel. 2006. p. 99-111.
730 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
a análise formal e estilística das imagens. Observávamos e registrávamos as linhas
principais da composição, as secundárias e a predominância de verticais, diagonais
ou horizontais, que sugerem rigidez; as curvas e contracurvas, que sugerem movimento. Em seguida, observávamos a gestualidade da figura, movimento do personagem que resulta nas linhas principais da composição e a maneira de representar detalhes anatômicos. Também observávamos as dobras do panejamento, sua
proximidade ou distância do corpo do personagem representado, bem como a coerência do panejamento em relação à anatomia. Observamos e registramos, sobretudo detalhes anatômicos - lábios, narizes, orelhas dedos e unhas - que podem marcar
alguns cacoetes do escultor. Atualmente, estamos iniciando a análise mais detalhada
do panejamento seguindo metodologia sugerida por Lefftz, que estabelece parâmetros bem objetivos para seu estudo, que ele denomina “gramática da morfologia.”
Comparações podem ser feitas, com bastante precisão, quanto à identificação
dos procedimentos e dos materiais empregados. No caso da policromia, também
podem ser feitas comparações de motivos, técnicas e materiais empregados, podendo-se chegar a estabelecer o que foi adotado em uma determinada época, atelier ou artista. No entanto, é mais difícil realizar, de maneira suficientemente objetiva, a análise das formas da composição, detalhes anatômicos, tipos de dobras dos
panejamentos, e de se chegar a conclusões sobre a autoria das esculturas. É necessário muita prudência e, de preferência, uma análise minuciosa e objetiva para
evitar afirmações equivocadas.
Em artigo publicado em 2003, Natália Marinho registra que, em Portugal, falta
cooperação “entre historiadores da arte e técnicos de conservação e restauro (só
recentemente iniciada e de forma muito restrita), tendo sido esta uma das razões
que mais contribuiu para o atraso no desenvolvimento dos estudos sobre a policromia da imaginária portuguesa”. Acredito que, com o desenvolvimento da nossa
pesquisa, o conhecimento sobre a imaginária mineira foi ampliado, que as análises
feitas em laboratório trouxeram importante contribuição de profissionais de outras
áreas, como química e botânica, tendo sido também de grande importância a convivência e a troca de idéias e de informações com historiadores de arte. Estamos
certos, também, de que os conhecimentos adquiridos podem ser úteis para o campo da conservação-restauração como também para o da história da arte.
Bibliografia
COELHO, Beatriz. (Org.). Devoção e arte: Imaginária religiosa em Minas Gerais.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. 292 p.
COELHO, Beatriz. Imaginária devocional policromada no Brasil: materiais e técnica In: POLICROMIA. A escultura policromada religiosa dos séculos XVII e XVIII.
FERREIRA-ALVES, Natália Marinho. 2003. p. 17.
Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho - 731
Actas do Congresso Policromia. Lisboa 29 a 31 de outubro de 2002. Instituto Português de Conservação e Restauração. Lisboa. 2003, p. 247-252.
COELHO, Beatriz; QUITES, Maria Regina Emery; QUEIROZ. Moema Nascimento.
Nossa Senhora da Piedade do Aleijadinho: confirmação de atribuição. In: Imagem
Brasileira. Belo Horizonte: v. 2. Ceib, 2003.
COELHO, Beatriz; DAVID, Helena; QUITES, Ma. Regina Emery. Duas esculturas
do Aleijadinho: análise comparativa. In: Boletim do Ceib. Belo Horizonte, v. 6, n.
21, fev. 2002.
COELHO, Beatriz, HILL, Marcos. La sculpture polychromée du XVIIIe siècle dans
l’état de Minas Gerais, Brésil: quelques caractéristiques techniques, formelles et
stylistiques. In: IIth Triennial Meeting Edimburgh 1-6 September, 1996, 1996, Edimburgo. 11th Triennial Meeting Edimburgh - ICOM Committee for Conservation of
Museums - Committee for Conservation, London. London: James & James, 1996.
v.2. p.399 - 404.
COELHO, Beatriz. A escultura policromada no Século XVIII em Minas Gerais: uma
abordagem interdisciplinar In: VII Seminário da Associação Brasileira de Conservadores e Restauradores, 1994, Petrópolis. ABRACOR VII Seminário. Rio de Janeiro:
ABRACOR, 1994. v.1. p.40 - 45.
ETZEL, Eduardo. Imagem sacra brasileira. São Paulo: Universidade de São Paulo:
Melhoramentos, 1978.
LEFFTZ, Michel. Élements de méthodologie pour servir á l’analiyse morphologique du
drapé. Cas d’application: la sculpure In: POLICROMIA. A escultura policromada religiosa dos séculos XVII e XVIII. Actas do Congresso Policromia. Lisboa 29 a 31 de outubro de 2002. Instituto Português de Conservação e Restauração. Lisboa. 2003. p.57 60.
LEFFTZ, Michel. Análises morfológicas dos drapeados na escultura brasileira e portuguesa: Método e vocabulário. In: Imagem Brasileira. Belo Horizonte: v. 3. Ceib
2006. p. 99 -111.
FERREIRA-ALVES, Natália Marinho. O douramento e a policromia no Norte de
Portugal à luz da documentação dos séculos XVII e XVIII. In: POLICROMIA. A escultura policromada religiosa dos séculos XVII e XVIII. Actas do Congresso Policromia. Lisboa 29 a 31 de outubro de 2002. Instituto Português de Conservação e
Restauração. Lisboa. 2003. p. 17-22.
LE GAC, Agnès; ALCOFORADO, Ana. Frei Cipriano da Cruz em Coimbra. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2003.
SALGUEIRO, Heliana Angotti. A Singularidade da obra de Veiga Valle. Goiânia:
Universidade Católica de Goiás, 1983.

Documentos relacionados

PDF - Conservar Património

PDF - Conservar Património personagens; os Três Magos surgem montados num cavalo branco, num elefante e num camelo e cada um dos criados traz outro animal idêntico. Tal como referido, esta cena desenvolve-se do plano superio...

Leia mais