1˚ Fórum Latino-americano de Fotografia de São Paulo Entrevista

Transcrição

1˚ Fórum Latino-americano de Fotografia de São Paulo Entrevista
1˚ Fórum Latino-americano de Fotografia de São Paulo
Entrevista Miguel Rio Branco
Iatã Cannabrava: Nosso entrevistado é Miguel Rio Branco, artista
plástico, fotógrafo, cineasta, transita sem problema nenhum
nestas diversas áreas de expressão. O universo de Miguel Rio
Branco é o ser humano, a dor, a paixão e a vida. E isso ele traduz
através da cor. O vermelho é uma das cores fundamentais no seu
trabalho, e a importância que a cor e as texturas têm em sua obra
vêm de sua formação como pintor. Para entrevista-lo, eu convido
novamente nossa dupla dinâmica de entrevistadores oficiais do
primeiro
Fórum
Latino-americano
de
Fotografia.
Simonetta
Persichetti, jornalista, crítica de fotografia, docente universitária.
Ricardo Mendes, pesquisador, escritor e criador do site Fotoplus.
E como entrevistador surpresa convido o fotógrafo, editor e
curador mexicano Pablo Ortiz Monastério. Pablo foi fundador do
Centro de la Imagen da Cidade do México, tem nove livros
publicados e foi editor da revista Luna Córnea.
Miguel Rio Branco: Eu vou falar um pouco sobre alguns
aspectos do meu trabalho e vou tentar ver se a gente consegue
fazer um sistema mais de entrevista do que apenas mostrar o meu
trabalho e depois discutir. Tentar ter uma coisa um pouco mais
dinâmica.
No ano 2000 eu fiz uma exposição no Centro Helio Oiticica, no Rio
de Janeiro. Era uma exposição que tinha instalação, audiovisual,
pintura, fotografia, ou seja, tinha esses caminhos todos. E junto
com o catálogo foi feito um CD-ROM que hoje ainda funciona nos
PCs. Nos Macintosh’s isso já não funciona, porque é um dos
problemas que eu acho que a gente está enfrentando hoje. As
coisas são completamente perecíveis. A gente faz um CD-ROM
que de repente já não vai funcionar mais.
Esse CD-ROM, já mostra muito a questão do meu trabalho,
inclusive usando essas novas tecnologias que não são tão
confiáveis assim. A gente fez uma introdução bastante dinâmica,
onde já tocando entrava o plano da exposição, que tinha várias
situações. O CD-ROM foi criado com um amigo que trabalha com
computador, Carlos Azambuja, que já foi fotógrafo e hoje em dia
trabalha só com computador.
Simonetta Persichetti: Eu já queria te fazer uma pergunta que
acho que vai permear um pouco o seu trabalho, que é essa sua
característica, desde sempre, de trabalhar as suas exposições, os
seus livros, sempre juntando várias linguagens, várias formas.
Tem a arquitetura, o espaço, o cenário, a imagem, a música... Os
teus livros vêm acompanhados com DVD, onde a gente
acompanha toda essa arquitetura. Eu queria que você falasse um
pouco desse seu processo de criação, dessa integração que você
faz entre as várias linguagens já há muito tempo, desde
praticamente o início do seu trabalho até como pintor.
Miguel Rio Branco: O meu início mesmo foi com o desenho, com
pintura, e isso foi até 1968. Neste ano eu fiz 6 meses na Escola
Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro, mas era uma
época que todo mundo estava mais correndo da polícia do que
outra coisa. Havia a questão se o desenho industrial funcionaria
no Brasil, porque a realidade brasileira era muito diferente, não se
sabia da necessidade do desenho industrial no país naquela
época. Então eu comecei a entrar em cinema e em fotografia ao
mesmo tempo, ou seja, eu fui juntando aprendizados em geral,
aprendizados que não foram adquiridos somente na escola. Aqui
no Brasil teve uma época em que era trabalhando que as pessoas
aprendiam, e eu faço parte dessas pessoas. Fui autodidata em
pintura. Em fotografia, eu tinha feito um curso de um mês em
Nova York, o que era suficiente, na verdade, pra te dar uma base
para trabalhar. E a medida que o tempo foi passando eu fiquei
entre a questão da pintura e da fotografia. A fotografia em cinema
ficou sendo o meio principal pra mim de 1968 até 1985,
praticamente, quando eu voltei a pintar também. Entre tempos, a
fotografia sempre foi feita de uma forma onde a questão da
montagem e a apresentação, em termos de exposição ou em
termos de livro, eram sempre tão importantes quanto fazer as
imagens. Hoje em dia, inclusive, as imagens eu quase não estou
fazendo. A parte de estruturação fica até sendo mais interessante.
Mas naquela época isso foi me formando, a montagem de cinema,
a construção onde a narrativa poderia ser tradicional, que
contasse alguma coisa. Então, eu acabei optando por uma
questão muito mais poética, não-linear. Por isso foi uma questão
de eu mesmo não ser uma pessoa linear. Eu não consigo contar
uma história sem ter “flashbacks”, sem ir para frente e para trás.
Ricardo Mendes: Só complementando, Miguel, você que teve
próximo do cinema, tem esse DVD, outro livros também
trabalhados com DVDs, eu tenho uma curiosidade. Você nunca
experimentou a internet como meio, não de difusão, mas de
expressão, como um outro tipo de suporte?
Miguel Rio Branco: Não, ainda não. Você sabe o que acontece.
Eu boto a coisa na máquina e a máquina não funciona.
Ricardo Mendes: Mas nem por isso você deixou de fazer o
DVD...
Miguel Rio Branco: Demora, ela fica pensando. Não dá. Eu não
posso confiar na questão da internet ainda porque primeiro eu não
tenho a paciência pra ficar esperando que a máquina decida por
mim, entendeu? A questão dos equipamentos hoje é a mesma
historia. Você tem câmera de vídeo absolutamente “performante”,
só que de repente ela fica pensando, né? Você já podia ter feito
varias imagens, por exemplo, no caso de fazer fotografia, mas a
máquina está pensando.
Esta pintura que mostro agora é de Nova Iorque, de uma época
que meu pai era diplomata. Ele estava em Nova York e eu estava
acabando os estudos, já pintava há uns 3 anos. Foi uma época
onde a minha pintura já tinha a questão das cores que vocês vão
ver nas fotografias. A questão da textura, a própria eleição da
construção.
Isso seria uma primeira fotografia interessante, latino-americana
por sinal, feita na Guatemala, ainda na época que eu pintava. Eu,
depois de 1968, realmente parei de pintar porque a dinâmica da
fotografia e do cinema em relação a um público maior sempre foi
uma coisa mais intrigante, e não tinha aquela questão que eu
estava vivendo um pouco nas artes plásticas, que eram os
vernissages, uma certa arrogância, que enfim, continua até hoje.
Mas a fotografia me deu uma espécie de sentimento mais
autêntico.
Em 1970, acho que quando eu realmente aprendi algo, foi em
Itaparica, numa filmagem do Arnaldo Jabour, onde o diretor de
fotografia Affonso Beato me chamou pra fazer o still do filme. A
maior parte das imagens - essa que estou mostrando é uma das
poucas imagens que sobraram -, numa tentativa que eu tive de
morar em São Paulo em 1980, pegaram fogo. Nesses três meses
que eu passei em Itaparica, eu fazia slides, fazia preto e branco,
fazia fotografia 6x6, revelava e mostrava. Ou seja, havia uma
edição que era mostrada à equipe das cenas da filmagem e isso
já me deu essa estrutura de edição, já me fez pegar um
conhecimento
desse
tipo
de
apresentação.
E
essas
apresentações de diapositivos acabaram sendo uma base de
construção.
Esta imagem é em Nova York, em 1970. Eu fiquei de 1970 a 1972
praticamente fotografando nas ruas. Também fui lá para estudar
no School of Visual Arts, que eu sai depois de um mês também,
porque a estrutura de ensino, pra mim, não funciona. E eu acabei
fotografando nas ruas, conheci vários artistas brasileiros, e acabei
conhecendo o Hélio Oiticica, que foi uma pessoa cujo trabalho eu
não conhecia nada. Mas ele me dava uma força, um incentivo
muito forte em termos de ter uma câmera de super 8 com a qual
fiz vários filmes nessa época também. Então tinha um lado que
era da rua mais dura, e o lado, eu diria, dos meus filmes, que era
mais positivo. No meu trabalho tem sempre uma dualidade entre
sexualidade e morte, entre dor e prazer.
Eu voltei pro Brasil em 1970, onde fazia mais fotografia de
cinema. Fiz still de um filme apenas, o Sagarana, do Paulo
Thiago, e fiz um trabalho de encomenda através da Magnum. O
meu primeiro contato na Magnum, na verdade, foi em 1972, na
época que Charles Harbutt era o presidente. Mas os meus
interesses eram muito mais conectados com o cinema e não tanto
com a fotografia. Eu fiz um trabalho que era para um audiovisual
educativo, feito em Campos. Aí eu já venho para um trabalho em
papel, que é relacionado a 1974 mas foi feito posteriormente, um
trabalho que tem uma conexão direta com uma das imagens que
eu gosto muito que é a imagem da Monalisa, que foi um trabalho
numa área de meretrício perto de Brasília (em Brasília mesmo
parece que não tinha meretrício). Ficava na cidade do lado, não
sei se isso ainda acontece.
Em 1976, fiz um trabalho em Carnaíba, que era um garimpo de
esmeraldas. Este trabalho foi mostrado pela primeira vez em 1978
na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e também em uma
exposição em 1979 no MASP e já tinha muito a questão da
fotografia com a collage e com a construção. O trabalho era todo
colado em papel carne seca.
Já essa imagem foi em 1980 e eu já estava trabalhando assim, ao
invés de ser na parede, o trabalho estava suspenso, criando uma
espécie de pequeno labirinto. Algumas dessas peças estão sendo
mostradas no Instituto Tomie Ohtake em uma exposição dos anos
1970. Essa mesma exposição foi mostrada no ano passado em
um museu em Groningen, na Holanda.
Ricardo Mendes: É a série Negativo sujo?
Miguel Rio Branco: Isso mesmo. Foi uma exposição que usava
fotografia, cinema e impressões em materiais diversos, tinha uma
peça que era toda impressa em voil. Eram nove salas, tinha Entre
os olhos e o deserto, que virou um livro pela Cosac Naif; tinha o
filme Nada levarei quando morrer projetado em tela; Out of
Nowhere, que é uma peça mostrada em Havana, em 1994. Era
uma exposição bastante complexa, talvez até um pouco demais
porque era muita informação.
Em 1979 tem o trabalho que eu fiz durante seis meses
fotografando o Maciel [área no Pelourinho, Salvador], levando
retratos para as pessoas, ou seja, havia um pouco de troca. Um
pouco porque eram retratos que eu fazia e o meu trabalho ficou
diferente disso, apesar de várias vezes aparecerem retratos no
meio do trabalho. E praticamente os nus e tudo isso foram
imagens que acabaram nunca sendo mostradas em Salvador por
pedidos das meninas.
Eu sempre achei que fazia uma questão documental mais
tradicional. Hoje em dia eu vejo que o resultado não era bem isso.
Eu tinha uma leitura um pouquinho mais adiantada em termos de
informação. Tinha um lado simbólico, tinha uma questão da
cicatriz do lugar e das pessoas, a ponto de mostrar esse filme há
uns dois anos atrás em Paris e ser um filme que tem ainda uma
construção que permite que não envelheça tanto. Podia ser um
pouco mais curto hoje em dia.
Ricardo Mendes: Miguel, eu tenho uma pergunta, uma
curiosidade. Não querendo ir para o lado anedótico, mas eu
sempre fui curioso da sua presença. Você tem sempre muitas
imagens de zonas de meretrício. Como que você, o homem
branco ali, classe media, se inseria ou se aproximava? Eu sempre
fiquei muito curioso dessa convivência.
Miguel Rio Branco: Eu não tinha. Eu comecei indo lá e fazendo
retratos. Esses retratos viravam os monóculos e os monóculos eu
colocava em um saquinho e as pessoas muitas vezes pediam
para eu ir fazer retratos da família... Então acabou sendo um
pouco o meu passaporte. Tinha esse trabalho que era puramente
retratos e tinha o trabalho que acabou virando isso. Porque eu
fotografei por seis meses, filmei durante três dias, no começo de
1980, e a montagem foi feita no ano de 1980 e acabou em 1981.
São outros processos.
Pablo Ortiz Monastério: A mi, además de preocuparme por como
lo hacías, me interesa para qué lo hacías. O sea, ¿Era una
búsqueda de la belleza o era por otra razón que te ibas a meter
allá?
Miguel Rio Branco: Yo he vivido una gran parte de mi vida hasta
los años 1970 fuera de Brasil. Quando eu comecei a fotografar no
Brasil eu não entendia, e continuo não entendendo, porque essa
distancia e miséria é tão forte, mas ao mesmo tempo que é muito
forte existe um poder de reação na vida destas pessoas. Eu tinha
feito um trabalho sobre o menor de rua em 1979 para a revista
GEO, passei por Salvador e conheci essa área do Maciel, no
Pelourinho. E obviamente me interessou porque tinha questões
além das questões das paredes, dos lugares caídos. Um lugar
histórico totalmente caindo aos pedaços com a marca de tempo
muito forte, tinha uma sexualidade que era um pouco uma reação
contra essa questão da morte. Havia várias questões que me
atraíam ali. Uma força de reação nessas mulheres que
praticamente só fotografei de dia. Eu estava na época casado com
a irmã do Mario Cravo Neto, a mãe do meu filho. Então eu ia lá
para fotografar. E aquilo tinha um visual... primeiro que Salvador já
tem uma luz absolutamente fantástica. Todos os elementos em
termos de cor, de pessoas e de drama estavam ali, apesar de
existir esta força de reação. Então o que me interessou foi isso,
era uma questão existencial mesmo, de achar alguma coisa que
pudesse me explicar um pouco.
Pablo Ortiz Monastério: Y en esta misma línea, las cicatrices
aparecen por todo los lados, o sea es una presencia muy grande.
¿Tu dirías que las cicatrices son bellas? Son hermosas? Me
explico: sin duda alguna implican dolor, implican huellas de
tiempo, de cosas pasadas, etcetera, pero está unida a estas
imagens sensuales y de sexualidad una presencia de las
cicatrices. ¿Que hay? ¿Belleza, dolor?
Miguel Rio Branco: Eu acho que a cicatriz tem haver com a dor,
mas ela tem haver sobretudo com questões que são um pouco
diferentes de uma cicatriz em pessoas brancas. No africano, é
também usada como uma forma de iniciação. Por exemplo, você
vai no candomblé e tem uns cortes que você faz no braço que
ficam marcados, que é uma maneira de você proteger seu corpo.
Salvador, sendo muito africana, tem essas marcas de cicatrizes,
que algumas vezes podem ser até infringidas pela própria surra. E
algumas talvez sejam como uma espécie de tatuagem. Agora
algumas realmente são de violência, são de tortura. Tinha uma
que tinha uma cicatriz em formato de caju que tinha sido feita pela
polícia com cajus quentes.
O meu trabalho muitas vezes tem um lado que vem do meu
inconsciente. Ele não vem de uma proposta racional. Eu vou
agora fotografar isso porque vai ser interessante para as pessoas
verem ou para eu explicar alguma coisa. Eu faço muitas vezes
como uma questão de entender o que é esse mundo e como é
que eu fico na frente dele. Isso não foi uma trabalho que foi feito
como uma questão de denúncia específica, apesar de no começo
ter tido um pouco disso. Era uma denuncia porque eu achava
aquilo absurdo, mas nunca consegui colocar muito dessa maneira,
esse filme está sendo visto mais hoje em dia do que naquela
época.
Pablo Ortiz Monastério: A mi me queda claro revisando tu
trabajo, que he visto tantas veces, que hay un impulso intuitivo,
inconsciente, que te lleva a hacer cosas. Pero luego el montaje,
inevitablemente es una construcción más racional, hay múltiples
opciones que tu vas construyendo que, sin dudas alguna, tendrán
una parte intuitiva y una parte que no. Uno no sabe desde donde
toma las decisiones, pero también es Miguel Rio Branco, racional,
inteligente, culto, que ha visto todo el mundo y que ahí está
metiendo…
Miguel Rio Branco: Sim, as duas coisas existem. Muitas vezes
no momento de fotografar, a relação com as pessoas é muito mais
intuitiva do que “alemã”. É uma coisa de ter que sentir um pouco
as pessoas. É uma questão da fotografia que sempre me
interessou muito. Um contato mais direto, mais envolvente. Mas
claro que quando eu finalizo o trabalho eu tenho que racionalizar,
porque senão vira uma porcaria.
Ricardo Mendes: Continuando um pouco mais na temática do
Pablo, existe um elemento muito presente na sua obra, que você
mesmo falou aqui, que são os animais. Principalmente a matança,
que está muito próxima talvez da questão da cicatriz. Por
exemplo, os cães, que estão sempre presentes. Algumas imagens
de cães, como aquele cão quase esmagado, quase textura
esmagada sobre o chão, sempre me atraiu profundamente. Eu
fico muito curioso de como você vê essa relação com a natureza,
essa presença do cão. Qual é o teu caminho em relação a isso?
Miguel Rio Branco: Os cães que eu tenho feito, em geral não
estão na natureza. Eles tem uma liberdade por viverem nas ruas.
Se estivessem na Europa, eles estariam mortos provavelmente. O
cachorro de rua representa uma relação solitária, machucada,
sofrida. O cachorro até do índio é também muito sofrido, mas ele
tem uma liberdade...
Ricardo Mendes: Eu entendo como um representante da
natureza que é um parceiro do homem nessa mesma relação de
dor e sobrevivência. Essa é a minha interpretação.
Miguel Rio Branco: É um pouco isso. Tem um cachorro que
aparece no trabalho como um cachorro-homem, que muitas vezes
aparece junto com outro homem que também está deitado. Ele é
quase como um mapa da vida, da dor, do que você já passou.
Nesse ponto, é obvio que existe uma riqueza de drama nessas
imagens.
Ricardo Mendes: A persistência da vida no cachorro. A
simbologia...
Miguel Rio Branco: Eu penso que eu sou cachorro também. No
horóscopo chinês eu sou cachorro. Deve ser por causa disso...
Ricardo Mendes: Você tem cachorro?
Miguel Rio Branco: Cachoro, gato, peixe...
Simonetta Persichetti: Gostaria de voltar ao que o Pablo estava
falando. Saindo do lado instintivo da tua fotografia, queria falar
sobre o trabalho de edição, que você já falou que tem que
racionalizar. Ao mesmo tempo, os teus livros propõem quase
sempre leituras múltiplas, especialmente Entre os olhos e o
deserto. É uma generosidade tua com o leitor ou faz parte dessa
tua angustia de não saber como encaixar esse mundo que você
fotografa?
Miguel Rio Branco: Não, ele se encaixa. O Entre os olhos e o
deserto, na verdade, foi uma encomenda cultural para o In Site em
San Diego em 1997, e resultou em um audiovisual de uns 40
minutos. É talvez o trabalho mais lírico que, inclusive, não tem
tanta dor. Pode ter uma certa melancolia, mas era uma época que
minhas filhas eram mais jovens e eu estava vivendo uma época
menos pesada e mais positiva. Para mim, o trabalho tem muito a
haver com o que você sente, não é um trabalho distante da minha
vida, na verdade. Essa questão foi se multiplicando quase que
como um baralho. Em um trabalho que eu fiz em 1983, Diálogos
com Amaú, que eram cinco projeções que foram mostradas na
XVII Bienal Internacional de São Paulo, eu estava usando um
computador que tinha uns alfinetes que a partir de um programa
de ritmo mudava as imagens. Tinha sempre o Amaú, que era um
índio surdo e mudo que dialogava com imagens da sociedade
brasileira. Já era uma maneira de criar quase um ritmo. O trabalho
Entre os olhos e o deserto tem essa multiplicidade de conexões,
só que não são quaisquer conexões. Aí elas estão com uma razão
específica, tanto no livro quanto na projeção, têm um começo e
um fim.
[inicia projeção]
Esta imagem foi feita em Xique-xique, no sertão da Bahia, onde
tinha uma cabeça de boi no mercado e uma moça passando perto
com o vestido vermelho. Tem essa dualidade da bela e a fera. Na
mesma época eu estava pintando em outra parte das telas. Essa
conexão entra fotografia e pintura é um vai e vem, vou para um e
vou para outro, e um traz coisas para o outro. Não é apenas
porque a fotografia foi pintada ou trabalhada que ela é
considerada artística, só porque foi manipulada. A fotografia
sozinha, sem ser manipulada, é arte também.
Este é um trabalho de 1984 que se chama Blue Tango, um
trabalho que tem essa conexão, é extremamente gráfico, onde a
manipulação não vem em lugar nenhum, é simplesmente por
justaposição.
Nessa imagem é o Amaú, um índio kayapó que virou ator nesta
instalação onde as projeções eram feitas em voil. Tinha uma trilha
sonora, mas acabei esquecendo dela.
Já este trabalho foi feito em 1983, nos Kayapós, junto com o
Amaú. Nessa época eu estava como nominado na Magnum e
comecei a me dar conta que meu interesse primordial, mais do
que fazer trabalho sempre para revistas, era ter uma liberdade de
criação que me permitiria desenvolver uma série de trabalhos
mais abertos, como vídeo. A Magnum hoje em dia está de outra
maneira. Existe uma renovação muito forte em termos de autor e
em termos de criação artística.
A questão de voltar à pintura em 1985 também tem uma conexão
direta com essa experiência que eu tive nos Kayapós, tem a parte
do som que eu gravei de várias danças de iniciação e a parte de
realmente ter uma vida onde o stress talvez não seja tão grande e
a questão profissional também não.
Em 1992, eu voltei tentando fazer um trabalho diferenciado. Eu
estava fotografando em 6X6 com uma outra visão. E na verdade
não deu muito certo. A tribo tinha mudado muito, havia uns jovens
na tribos que queriam mais dinheiro do que outra coisa. O trabalho
foi para Stern Magazine naquela época.
Outro
trabalho
bastante
conhecido,
Barroco,
possui
uma
construção que parece aleatória, mas na verdade não é. Tudo
está conectado, existe uma relação com a questão católica com
imagens feitas em vários lugares diferentes. Para mim, usar vários
lugares era mais interessante que ficar preso a um tema,
enquanto no começo eu tinha trabalhado muitos temas ou achava
que estava trabalhando.
Estas são imagens que também viraram um livro, Silent Book, da
Cosac Naif. Aqui a imagem acaba sendo sempre mais importante
do que as explicações. Esse livro possui imagens feitas na
Espanha, em Portugal e no Brasil, na academia Santa Rosa, pela
bolsa que eu ganhei com a Fundação Vitae. Acabou que eu nunca
fiz um livro realmente sobre a academia Santa Rosa. Acabou se
misturando com outras questões e criando uma nova poética.
Essa imagem é em Havana, em 1994. Em 2001 também passei
por lá. É um trabalho ainda meio inédito, apenas publicado em um
calendário da Burti. São trabalhos que tem que ser ainda
colocados para fora.
Existe uma outra instalação feita em Havana em 1994, onde a
questão da fotografia fora do contexto também me interessou. Eu
usei as fotografias da academia, fotografias de várias épocas do
meu trabalho, imagens de jornais encontrados na própria
academia ligando ideias de corpo e de tempo. É uma instalação
chamada Out of Nowhere, que foi mostrada em vários lugares, e a
última vez aqui no Brasil foi na Casa Vermelho, durante a Bienal
de Curitiba. É um sistema de montagem que volta às minhas
colagens de pintura, às minhas colagens do preto e branco e ao
meu sistema de fazer “colchas de retalhos” com imagens
significativas. Dessas imagens, várias delas podem funcionar
perfeitamente de forma individual, mas talvez eu tenha um prazer
maior em criar um ritmo com isso, inclusive em uma exposição
que eu fiz na Galeria da Magnum em 1985. O Dennis Stock, que é
um fotógrafo muito interessante e com uma sensibilidade
extraordinária, me disse: “o seu problema, Miguel, é que você
tenta fazer música com fotografia”. Eu não via isso como um
problema, é uma questão de criar um ritmo. Acho que ele também
não via como um problema, mas é que eu dou uma ênfase de
colocar mais imagens.
Agora vou mostrar um audiovisual sobre o livro Entre os olhos e o
deserto. Esta por exemplo é uma imagem que não é quase nada.
Se chama Teoria da Cor, que foi um título que um dos meus
assistentes na época, Matheus Rocha Pitta, deu e eu achei ótimo.
Pablo Ortiz Monastério: Yo tengo una asociación de los trípticos
con una relación directa y cercana a la tradición cristiana. Es
Cristo y estos otros dos que lo acompañan, en una imagen central
y estas otras dos… ¿Para ti tiene esta asociación? Porque sí veo
que en este libro en particular el tríptico está muy presente. Y
luego tiene que ver con otra pregunta que Alexis Fabry hice otro
día. Yo he visto que haces tus exposiciones cada vez más
grandes, enormes y en cambio veo que tus libros están cada vez
más chicos, como este último, que está divino. A mi también me
gustan los libros pequeñitos, pero debe haber una razón oscura,
brava, tremenda, pavorosa, perversa…
Miguel Rio Branco: O livro que pode ser colocado no bolso é
muito mais prático. Além do mais, eu acho que se cria com um
livro pequeno uma maior intimidade com o que você está vendo.
Então quando eu faço as exposições, gosto de ter espaço.
Ultimamente, fiz várias exposições e são todas em espaços
grandes. Em Arles, em 2005, fiz uma exposição onde o espaço da
catedral se conectava muito bem com o trabalho. Existe a questão
arquitetônica com a qual se começa a conectar. Cada espaço
precisa ter uma adequação. Os livros de tamanho maior que fiz, o
Nakta, por exemplo, que foi feito na Bienal de Curitiba em 1996, e
outro livro que eu fiz 2005 na Maison Européenne de La
Photographie, já são um tamanho um pouco maior, mas eu
continuo gostando mais de um trabalho com um tamanho mais
intimista, que você pode ver em qualquer lugar. Não precisa de
uma mesa para poder apreciar as imagens.
Sobre o tríptico e a questão católica: houve sim esta relação com
a religião nos trípticos, onde havia uma parte colorida no meio e
preto e branco dos lados. Já os significados de Entre os olhos, o
deserto já não vêm mais de uma questão tão católica assim,
apesar de seguir existindo. O elemento cristão presente no
trabalho tem mais a ver com uma ideia ligada à dor que temos nos
países latinos, não só da América Latina, mas também na Itália,
Espanha, Portugal. Mas eu já fiz outros trabalhos onde tinha uma
imagem colorida no meio e preto e branco dos lados.
Ricardo Mendes: Eu nunca tinha visto uma montagem de
Negativo Sujo e pra mim foi muito importante porque sua obra
sempre tem sido marcada pela referência à pintura, ao desenho, à
textura e tudo mais. E de repente me pareceu muito claro, mais
que a questão do cinema ou uma tentativa de uma narrativa
linear, desde um primeiro momento uma busca por uma narrativa
do espaço...
Miguel Rio Branco: O espaço das exposições realmente me
parece essencial. Não adianta fugir do espaço que senão não se
consegue fazer uma boa exposição. O livro já é outra história.
Ricardo Mendes: O que eu queria apontar é que o Negativo Sujo,
naquela montagem, traz a questão de uma narrativa que não é
mais linear, é uma narrativa que se dá espacialmente. Me parece
muito mais adequada na aproximação do que apenas ver a sua
obra na relação com desenho ou a textura.
Miguel Rio Branco: Acho que existe relações com várias
questões. Não adianta a gente querer dizer que é só a pintura,
porque é muito mais cinema, é arquitetura também... É um pouco
o que eu vejo ao meu redor na vida mesmo. Eu não tenho uma
formação de história da arte com referências. Minhas referências,
inclusive fotográficas, sempre foram de fora. Eu passei dois anos
em Nova York, entre 1970 e 1972, onde eu não vi um trabalho
sequer de fotógrafo. Meu contato era com artistas plásticos e com
cinema. Cinema que eu via muitas vezes na televisão à noite,
filmes antigos americanos. Minhas influências são de coisas muito
corriqueiras, não é intelectualizada. Quando o Pablo perguntou do
tríptico católico, é uma realidade do tríptico, mas ele já virou outra
coisa, não ficou somente na referência religiosa.
Ricardo Mendes: O que eu queria apontar é que essa estratégia
de edição está bem ligada à questão da narrativa do espaço. Uma
coisa que se vê há mais de 20 anos claramente nessas suas
instalações...
Miguel Rio Branco: Nunca foi uma coisa extremamente
consciente, mas uma coisa de sair um pouco da parede. A
instalação de Diálogos com Amaú, em 1983 na Bienal de São
Paulo, era uma sala com cinco telas transparentes que se podia
ver o de dentro e o de fora. O espaço virava fluído.
PERGUNTAS DO PÚBLICO
André Cypriano: Minha curiosidade é com relação aos
sentimentos que você tem hoje com o Pelourinho e se o vermelho
tem alguma relação com Exu?
Miguel Rio Branco: Tem relação com Exu, tem relação com
sangue, tem relação com Coca-cola... E com relação ao
Pelourinho de hoje, eu não conheço, faz muitos anos que eu não
vou à Bahia. Imagino que não seja tão diferente, porque as coisas
são renovadas, mas acabam caindo de novo. A questão do
trópico, da umidade, a própria educação das pessoas.
Simonetta Persichetti: Saindo um pouco de tudo, me ficou uma
dúvida nessas mesas e nesses debates, principalmente quando
se falou do mercado da fotografia, de como realmente a fotografia
acaba sendo vista. Não sei se o problema é do galerista, do
museu, do curador, do próprio artista. Como você vê o artista que
se insere nesse mercado? Porque ficou uma sensação muito
pessoal, e espero que completamente errada, de que a fotografia
ainda é vista um pouco de lado.
Miguel Rio Branco: Nos Estados Unidos tinha e ainda tem um
mercado muito grande de fotografia tradicional e hoje isso está
mudando, mas no sentido de que ainda existe uma diferenciação
entre um fotógrafo que faz uma fotografia tradicional e o que é
artista. Essa fotografia tradicional ainda não é vista exatamente
como artística pelo sistema da curadoria, dos museus e por
muitas galerias que ainda continuam achando que aquilo não é
tão artístico assim porque não tem uma ideia conceitual primaria,
mas acaba sendo colocada à frente com apoio de curadores ou
pessoas que são consideradas importantes na área de artes
plásticas. Os curadores na área de fotografia ainda são olhados
de uma maneira inferior aos curadores de artes plásticas.
Pablo Ortiz Monastério: Yo quiero volver a tu trabajo, Miguel. Yo
tuve el privilegio de hacer un libro con Rio Branco hace muchos
años en México. Llegó y se quedó 42 días en mi casa. Así le
conocí y de verdad lo digo, fue un privilegio. Yo veo una gran
diferencia. El libro se llamaba Dulce sudor amargo. El trabajo de
aquellos años, a lo que he podido revisar estos días, yo tengo la
impresión que te has ido alejando de la representación de la cara.
Ya no hay más rostros, ya es todo segmentos. Eso implica
abandonar el individuo o de que va?
Miguel Rio Branco: A questão de fotografar gente chegou em um
momento em que comecei a ver as marcas e os traços que a
pessoa deixava. Eu conseguia mostrar uma pessoa sem mostrar a
pessoa e também sentia uma necessidade de abstração em um
mundo onde o retrato das pessoas são absolutamente presentes,
de uma forma gigantesca, todo mundo fotografa todo mundo. E eu
fico meio me sentindo sem graça. Por que será que está todo
mundo fotografando e querendo ser fotografado? Uma das
revistas mais vendidas se chama Caras. Todo mundo quer ser
visto ou é uma predisposição a uma grande catástrofe, em que
tudo que vai sobrar serão essas fotografias? Uma espécie de
bomba de nêutron, onde só vai sobrar esses retratos das pessoas.
Eu acho que tem uma coisa muito esquisita, muito estranha. Por
que será que todo mundo fotografa gente o tempo todo? O que
isso quer dizer? Acho que a humanidade as vezes pode ser
representada por detalhes que não são exatamente a pessoa, o
olhar dela.
Pergunta do público: Você falou das fotografias na Bahia, que
você começou pensando na denúncia e depois partindo para outra
coisa. Me parece muito claro que você utiliza sua fotografia para
se expressar, como uma relação pessoal com o mundo. É
possível falar que essa fotografia te mudou ou você só estava se
expressando?
Miguel Rio Branco: Ela sempre muda. Você tem sempre um
conhecimento que vem das imagens que você faz. Por exemplo,
na estadia que tive na tribo Gorotire/Kayapó duas vezes durante
quinze dias, eu fiquei gravando umas danças rituais que duravam
a noite toda, e isso me mudou mais do que todas as fotografias
que eu fazia. Porque trabalho de fotografia que possa mudar tem
que ser diferente, com uma conexão maior com as pessoas. Eu
não tenho mais fotografado gente. E você tem que, talvez,
acreditar mais nas pessoas. Tem horas que eu não acredito tanto
assim nas pessoas. A gente vive uma época onde as pessoas já
não se juntam mais, todo mundo quer virar um profissional,
ganhar dinheiro e ficar muito bem de vida. Cada um por si, Deus
por todos. Então, existe a questão da fotografia com a questão
humanista, como é por exemplo o caso da Susan Meiselas, e ela
pode ajudar muitas pessoas. No meu caso já não funciona mais,
ou seja, minha fotografia mudou com um aprendizado enorme em
relação à estética, em relação à emoções minhas que eu possa
transmitir a partir da fotografia ou a partir de um audiovisual.
Mudou para mim nesse sentido. Eu tenho trabalhado ultimamente
com projetos onde entram as árvores em sua essência, não como
o Sebastião Salgado, que está fazendo um grande projeto, mas é
aquela coisa da árvore ela mesma, sentir a questão da vida na
natureza, que acaba sendo sempre a maneira que a gente se
safa. A natureza sempre traz uma sensação mais calma para
gente. A fotografia tecnológica hoje em dia me traz muito pouco.
Somente está trazendo algo no momento das construções dos
livros e das exposições. Mas tenho feito pouca fotografia. Os
últimos trabalhos que eu fiz foi em Tóquio este ano e com aquele
filme Babel, há uns dois anos atrás. Porque Tóquio talvez seja
uma sociedade que me traz um pouco mais de esperança de que
as pessoas possam se entender, pelo respeito que elas tem entre
elas, apesar de ser uma cultura mais rígida na questão de respeito
às leis (que a gente por exemplo não é....). Se a fotografia mudou
a minha vida? Mudou sim no começo, mas acho que seja um
conjunto de coisas. Ela sozinha não muda minha vida.
Pergunta
do
público:
Me
causa
curiosidad
en
sus
presentaciones audiovisuales la selección de la música. A mi me
reacciona personalmente como un poco casi explícita la música
que pone, siempre muy conocidas o que casi van de alguna
manera explicando las imágenes. ¿Cuáles son tus sentidos de la
elección de la música?
Miguel Rio Branco: A música que foi usada no filme Nada
levarei, é uma música que tinha muito a ver com as que eram
tocadas no próprio local, ou seja, eram utilizadas de uma maneira
quase documental. Era Bartô Galeno, Roberto Carlos, eram
músicas especificas usadas de uma maneira praticamente
documental e com o caráter emocional que elas trazem.
No caso do Entre os olhos, o deserto, eu usei Erik Satie, músicas
de balé, tem guitarristas que tocam... foi o último trabalho,
inclusive, onde eu usei músicas já existentes. Ultimamente,
trabalho com músicos que compõem as trilhas para as
instalações. É uma necessidade que eu tenho, talvez uma grande
frustração minha de não ter sido músico ao invés de fotografo.
Talvez eu teria aprendido mais, ao menos em relação a tocar com
outras pessoas. Fotógrafo é uma pessoa muito sozinha. Para mim
é muito normal por conta do cinema, onde eu vejo trilha sonora
como um elemento importante.
Pergunta do público: Como você produz os seus trípticos? Você
disse que trabalha de uma forma bem intuitiva, então a minha
pergunta é: quando você está trabalhando, você simplesmente sai
coletando as imagens e depois que elas estão prontas você olha
como se fosse um quebra-cabeça e monta, ou você já tem uma
pré-noção do que você está buscando no momento de fotografar?
Miguel Rio Branco: Eu vou fotografar em geral com uma ideia de
mais ou menos o que eu vou querer, mas não na parte da
construção. Isso realmente vem depois. As imagens são feitas,
são coletadas, e ás vezes demoram meses até que eu trabalhe
com elas. Não é feita a priori. Eu gosto muito dessa possibilidade
que a fotografia dá de achar objetos, pessoas ou situações. Existe
uma idéia do objeto encontrado, que é muito rica para mim. Você
pode sair a um lugar, sabe mais ou menos o que vai encontrar ou
acontecer, mas não sabe realmente o que pode conseguir.
Somente depois de ver as imagens é que eu construo o trabalho.

Documentos relacionados